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ANTÔNIO CARLOS TRINDADE DA SILVA
A PERSPECTIVA METAFÍSICA DE JOSEPH
MARECHAL: DO REALISMO
À MÍSTICA
UFRJ/IFCS
2007
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A PERSPECTIVA METAFÍSICA DE JOSEPH
MARECHAL: DO REALISMO À MÍSTICA
ANTONIO CARLOS TRINDADE DA SILVA
Tese apresentada à Pós-Graduação
do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do Título de Doutor em
Filosofia.
Orientador:
Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães
RIO DE JANEIRO
2007
2
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A PERSPECTIVA METAFÍSICA DE JOSEPH
MARECHAL: DO REALISMO À MÍSTICA
ANTONIO CARLOS TRINDADE DA SILVA
Tese apresentada à Pós-Graduação do Departamento de Filosofia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do Título de Doutor em
Filosofia.
Aprovada por:
_________________________________________
Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães
(Orientador – UFRJ)
_________________________________________
Prof. Dr. Luigi Bordin
(Membro – UFRJ)
__________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
(Membro – UFJF)
__________________________________________
Profª. Drª. Regina Coeli Barbosa Pereira
(Membro - UFJF)
__________________________________________
Profª. Drª. Rosilene de Oliveira Pereira
(Membro - UFJF)
3
4
S586j
Silva, Antonio Carlos Trindade da
A perspectiva metafísica de Joseph Marechal: do realismo à
mística / Antonio Carlos Trindade da Silva. Rio de Janeiro :
UFRJ/IFCS, 2007.
199 f.
Tese (Doutorado em Filosofia)
1. Metafísica 2. Ética 3. Razão 4. Neotomismo I. Título.
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Departamento de Filosofia.
Dedico aos meus pais e irmãos
que me encorajaram nessa
tarefa.
À Profª. Soraya pelo carinho,
amizade e ajuda nos desafios
deste árduo trabalho.
Aos meus amigos Arthur e Ivani
pelo incentivo.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte da Sabedoria, pela luz e coragem nessa trajetória.
Ao Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães, ilustre pensador, pela
disposição, orientação e toda atenção na realização desse trabalho.
Ao Prof. José Carlos Rodrigues, pela amizade, atenção e incentivo
nessa caminhada.
À Profª. Ivani , pela amizade e cuidadosa revisão deste trabalho.
Aos Professores do curso e membros da Banca, pelo digno trabalho no
horizonte do pensar.
6
RESUMO
Joseph Marechal desenvolve seu sistema filosófico a partir da superação do
criticismo kantiano mediante uma doutrina amplamente coerente o repensamento
do realismo metafísico da crítica tomista do conhecimento. Marechal, nesta
perspectiva demonstra que a necessidade prática e subjetiva dos postulados da
razão prática consiste, de modo igual, numa necessidade objetiva e teórica. Assim,
um objeto produzido no ato da afirmação, é através deste mesmo ato um dado
sensível, uma síntese objetiva - conteúdo do julgamento é referido à ordem absoluta
do ser). Quando se afirma que algo existe, experimenta-se e conclui-se algo como
exigível, enquanto valor, portanto trata-se de uma axiologia. Estendendo o a priori e
o transcendental como termos que expressam a referência do ser e do conhecer nas
condições existenciais, Marechal não fecha seu pensamento no horizonte restrito de
um humanismo relativo. Ele abre então este horizonte para um Absoluto que se
impõe implicitamente em toda parte. Ele persegue sua investigação além das
potências, além da natureza, além do sujeito e do objeto, até chegar na condição
primordial de toda possibilidade, de toda existência, de todo dado. O trajeto filosófico
marechaliano aponta um encontro entre a filosofia, a teologia e a mística e sob este
aspecto se situa a originalidade de seu pensamento
Palavras-chave: Tomismo. Absoluto. Dinamismo. Mística. Metafísico
7
ABSTRACT
Joseph Marechal develops his philosophical system from the kantian criticism over
come through a widely coherent doctrine the rethinking of the metaphysical realism
of the thomist criticism of knowledge. Marechal, in this perspective shows that the
practical and subjective need of the practical reasoning postulates consists, on an
even manner, in a theorical and objective necessity. This, an object produced on the
act of affirmation, is through this same act, a sensible fact, an objective synthesis
the content of the judgement is reported to the absolute order of being. When one
affirms that something do exist, one experiences and concludes something as
requirable, while value, therefore it is regarded as an axiology. Widening the a priori
and the transcendental as terms that express the reference of the being and the
knowing on the existential conditions, Marechal doesn’t close his thought on the
restrict horizon of a relative humanism. He opens then his horizon for an Absolute
which imposes itself everywhere. He pursues his investigation beyond the potencies,
beyond nature, beyond the subject and the object, until reaching the primordial
condition of all possibility, of all existence, of all fact. The philosophical “Marechalian”
path points to a linking among philosophy, theology and the mystic and under this
aspect lies the originality of his thought.
Key-words: Thomism. Absolute. Dynamism. Mystic. Metaphysical.
8
ABREVIATURAS
KRV Kritik der Vernunft
KPV Kritik der praktischen Vernunft
KU Kritik der Urteilskraft
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................12
CAPÍTULO I – O REALISMO METAFÍSICO DOS ANTIGOS....................... 20
1.1. A oscilação entre os termos da antinomia nos pré
socráticos.........................................................................................................23
1.1.1.Heráclito: predomínio da multiplicidade...................................24
1.1.2. Os eleatas:predomínio da unidade.........................................26
1.2. O advento de uma crítica metafísica do conhecimento.................27
1.2.1. Sócrates: regresso ao equilíbrio do uno e o múltiplo.............28
1.3. A solução platônica: o realismo do entendimento..........................30
1.4. A solução aristotélica: moderação do realismo do entendimento..36
CAPÍTULO II – O REALISMO MODERADO DE SÃO TOMÁS......................48
2.1. Necessidade de uma crítica do objeto de conhecimento..............48
2.2. A questão transcendental da afirmação
ontológica.......................52
2.3. Relação recíproca dos atos primeiros da inteligência e da
vontade.................................................................................................68
2.4. O Princípio inicial do dinamismo intelectual..................................72
CAPÍTULO III – A QUESTÃO TRANSCEDENTAL KANTIANA....................78
3.1. A bipolaridade do objeto................................................................83
3.2. Subsunção formal e o ato sintético ...............................................89
3.3.Significado transcendental do movimento......................................94
3.4. Os postulados morais e a transcendência do objeto.....................97
10
CAPÍTULO IV – O ABSOLUTO COMO HORIZONTE DO PENSAMENTO..107
4.1. O absoluto do ser, a ordem ontológica........................................110
4.2. Impossibilidade do fenominismo absoluto...................................112
4.2.1. A atitude contemporânea: negação da norma absoluta......113
4.3. O fenomenismo absoluto ............................................................115
4.4. O princípio de identidade.............................................................117
4.5. Justificação racional do absoluto.................................................127
4.6. O método.....................................................................................129
4.6.1. O conteúdo da consciência e o princípio de identidade.......130
4.6.2. A noção de verdade e a ordem do julgamento.....................137
4.6.3.
Universalização.....................................................................143
4.6.4. A atualidade do intelecto - agente........................................146
4.6.5. A inteligibilidade da imagem sensível...................................147
4.6.6. Os caracteres próprios dos
conceitos...................................149
4.7. Julgamento e objetivação ...........................................................151
4.7.1. Conseqüências do julgamento afirmativo.............................154
4.7.2. A finalidade do conhecimento...............................................156
4.7.3. O julgamento e o absoluto do ser.........................................158
4.8. Um dever - ser sustenta o entendimento.....................................162
4.8.1. A ordem da finalidade ..........................................................169
4.8.2. Vontade e inteligência
..........................................................171
4.9. Objetivação e princípio de identidade..........................................174
4.10. O absoluto e os primeiros princípios..........................................177
4.11. O fim último do acontecer intelectual e o destino sobrenatural.180
CONCLUSÃO ...............................................................................................185
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................191
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................193
11
12
INTRODUÇÃO
Joseph Marechal é um filósofo e teólogo pouco conhecido nos
meios acadêmicos, constituindo-se, por isso mesmo, e lamentavelmente, uma
ausência entre os estudiosos da filosofia contemporânea. Apenas os que se
interessam pela corrente neo-escolástica, e particularmente do neotomismo, ou os
que pertencem à tradição filosófica lovaniense, têm algum conhecimento da obra
de Marechal e alguma idéia de sua importância para a investigação filosófica da
primeira metade do século XX. É verdade que sua influência permanece como
fonte primeira, embora nem sempre explicitada, nas chamadas correntes do
Tomismo Transcendental, sobretudo na Alemanha e na França.
Marechal viveu e desenvolveu toda sua obra nos meios
acadêmicos da Alemanha e França e ainda no Escolasticado da Companhia de
Jesus de Louvain. A originalidade de seu pensamento não poderia deixar de
despertar reservas e, também muitas polêmicas. Parte de sua produção intelectual
experimentou dificuldades em obter licença para a impressão, e sua difusão foi
bastante restrita e limitada apenas a alguns estudiosos. A segunda causa residiu
justamente na originalidade do pensamento marechaliano em face da rotina
repetitiva que dominava boa parte da produção neo-escolástica.
Marechal não foi um escritor fecundo e difuso. Seus textos são
redigidos em estilo sóbrio, conciso e obedecem a uma lógica rigorosa. Desta
sorte, o acesso a seu pensamento não deve enfrentar longos e fastidiosos
12
volumes. Toda sua obra está recolhida nos cinco cadernos sob o título Le point de
départ de la Metaphysique (1923-1927), dos quais apenas quatro foram
publicados durante sua vida (I, II, III, V), sendo o quarto editado postumamente
(1947).
É permitido afirmar que a primeira intenção de Marechal
representa uma tentativa de dialogar com Kant e superar as refutações
antikantianas convencionais dos manuais, perfeitamente estéreis na medida em
que permaneciam num campo conceptual extrínseco à estrutura e à lógica própria
do criador da filosofia transcendental. O projeto kantiano de elaborar uma nova
metafísica depurada do dogmatismo torna-se atraente a Marechal, na medida em
que nela a possibilidade de sua restauração e assim, de construir o edifício da
filosofia.
Recuperar a legitimidade da metafísica e torná-la possível a partir
do momento de sua depuração pela crítica, eis o grande desafio marechaliano. A
solução do problema do conhecimento teórico, que visa o inteligível puro, está
para Marechal, herdeiro assim de toda a tradição que tem origem em Parmênides,
ligada à demonstração da validez da primeira afirmação de onde parte a
Metafísica: a afirmação do ser. Pode-se dizer também que o projeto de Marechal
não se resume em tornar Kant palatável aos meios acadêmicos da tradição neo-
escolástica. Ele foi muito além disso ao estabelecer também a possibilidade de um
intercâmbio entre a filosofia, a teologia e a mística não no sentido de uma
subordinação de uma à outra, mas como meio de um discurso interdisciplinar.
Nesse sentido, o interesse marechaliano pela metafísica nasceu
provavelmente de seus estudos sobre a mística e, sobretudo sobre a mística
13
especulativa. A Mística apresenta-se historicamente como um caminho de acesso
ao Absoluto, alternativo ou paralelo à Metafísica. Esse caminho termina
necessariamente numa intuição do Absoluto. Ora, essa intuição, não obstante sua
componente afetiva, é considerada por Marechal numa perspectiva
eminentemente intelectualista. Eis porque ele a estuda preferencialmente em
Tomás de Aquino.
Metafísica e mística são alternativas e, desta sorte, caminhos para
o Absoluto, que freqüentemente se confundem. É no horizonte desse problema
que se a aparição de Kant. O filósofo de Königsberg, como é sabido, rejeitava
qualquer ingerência da mística nos domínios da Filosofia e, mais ainda, da
metafísica. Mas Kant, ao ser reinterpretado na década de 20, com o declínio da
exegese neokantista, não era visto mais como um anti-metafísico. Ao contrário,
para preservar o conhecimento metafísico de qualquer contaminação com a
intuição mística, ou das que ele considerava antinomias ou paralogismos da razão
pura, a retira do terreno da razão pura ou teórica para fundamentá-la no terreno da
razão prática, e recusa à razão pura qualquer tipo de intuição com alcance
ontológico. No terreno da razão pura, a antiga metafísica para Kant, limita-se ao
domínio do puro pensar, na forma de uma Dialética transcendental. Todo
conhecer lhe é vedado. Ao reconstituir historicamente o “ponto de partida” da
metafísica desde Parmênides, Marechal devia necessariamente encontrar-se com
o interdito kantiano. Dedicou-se a um estudo profundo das obras de Kant e expôs
sua interpretação da Crítica da razão pura. Mas, a partir do próprio Kant, como
restituir a validez teórica da metafísica e distingui-la da mística? Para tanto,
14
Marechal recorre a Tomás de Aquino e empreende uma leitura profundamente
original da noética tomásica em confronto com a crítica kantiana.
Marechal objeta à análise kantiana do conhecimento teórico, no
momento em que esse se defronta com a inevitável afirmação do ser, um caráter
estático e predominantemente logicista. Ora, a afirmação do ser é, por definição,
como se sabe desde Parmênides, absolutamente universal, tanto
extensionalmente quanto intencionalmente. Se à nossa inteligência limitada e finita
não é dada, no seu exercício normal distinto do conhecimento místico, a intuição
do Ser absoluto e infinito, ela deve ser dinamicamente ordenada a essa intuição
como termo da sua tendência intelectual mais profunda e constitutiva. Sem o
conhecimento do Absoluto, por intuição imediata ou como inscrito
necessariamente o dinamismo intelectual, não metafísica. Kant recusa a
intuição. Mas não leva em conta o dinamismo da inteligência.
É por esse caminho que Marechal tenta superá-lo. É importante
observar que Marechal está aqui na entrada noética, ou seja, no estabelecimento
da condição de possibilidade da metafísica e não no seu interior constituído
como ontologia. O dinamismo da inteligência não oferece uma prova formal da
existência de Deus, mas é sua condição transcendental a priori.
A aventura da metafísica ocidental, em todo o trajeto da história da
filosofia grega e da cristandade medieval, de Parmênides a Tomás de Aquino,
teve como protagonista uma certa concepção da inteligência cujo exercício
permitiu ao filósofo estender inquirição além do horizonte do sensível e propor
modelos diversos de uma ciência do puramente inteligível, admitindo-se inclusive
15
ora a metafísica como filosofia primeira ou teologia, ora esta subordinada ao
próprio discurso filosófico.
Neste contexto, o entendimento que leva a razão a postular a
metafísica é, propriamente, uma inteligência espiritual, e teve seu exercício
reconhecido e celebrado como o mais alto cimo que a inteligência humana pode
alcançar, até que o nominalismo tardo-medieval iniciou o lento trabalho de
“reconstrução” que acabou por depor a metafísica do lugar eminente que ocupava.
Mas, este pretendido retraimento epocal, representa, na verdade, um processo
histórico multissecular e é o avançar desse processo que permite caracterizar a
modernidade como um rompimento de uma metafísica como ontologia, ou como
ciência do ser enquanto ser, para ocupar-se com o sujeito. A modernidade não
exclui a metafísica de seus horizontes, ao contrário, aponta que uma metafísica
futura deve ser construída a partir da subjetividade ou, conforme Kant, da
subjetividade transcendental.
Marechal tenta ao revisitar a filosofia transcendental kantiana
empreender um novo projeto qual seja, estabelecer entre o kantismo e o tomismo
a possibilidade de um novo entendimento. É possível, a seu ver, um encontro
entre a escolástica depurada pela crítica e a crítica transcendental kantiana. Mas,
tal empreendimento se realiza na região da subjetividade e na afirmação da
possibilidade da objetividade do real. A afirmação desta objetividade ultrapassa os
limites da subjetividade adquirindo validade e universalidade.
Ao ser submetido ao dinamismo da afirmação, o juízo transgride a
limitação eidética da síntese concretiva, e eleva o objeto ao nível da
universalidade formal do ser o que implica, por sua vez, referí-lo ao absoluto real,
16
que é posto com a finalidade última do dinamismo intelectual. É justamente na
natureza dessa estrutura relacional constitutivamente metafísica do juízo que jaz
um dos mais profundos entre os problemas da metafísica: pensar as sequências
desses dois movimentos intencionais da inteligência, que definem sua pulsão
essencial: a passagem da síntese concretiva ou da representação ao ser e do ser
ao absoluto.
A afirmação do real leva a perguntar pelo absoluto, ou seja, pela
intuição do absoluto. Este absoluto se situaria ao fim do projeto metafísico. Ele
não é uma postulação inicial, mas deve-se admitir sua possibilidade, ou mesmo
como uma alternativa para a investigação metafísica.
A demonstração da existência de Deus não é, portanto o começo,
mas o fim do discurso metafísico. Ela supõe que a estrutura metafísica do real
acessível à nossa experiência externa e interna tenha sido elucidada e é essa
elucidação que nos permite articular tal demonstração. Ela o seria possível se
não apoiasse numa pré-compreensão original e originária do Absoluto que tem
lugar na intencionalidade do discurso metafísico, justamente, na descoberta da
dimensão tética do juízo no curso da análise reflexiva que, partindo da refutação
do ceticismo radical, põe em evidência a ordenação ao absoluto do dinamismo
intelectual.
Assim, as etapas de nosso projeto de investigação sobre a
trajetória de Marechal se constituirão, inicialmente, em reconstituir os momentos
decisivos da metafísica como momentos do desvelamento do ser. Isso quer
significar que não se pretende, como também tal não é a intenção de Marechal,
elaborar uma história da filosofia do ser. O que se pretende é delimitar reflexão
17
metafísica nos primórdios da filosofia grega e medieval. Essa reconstituição da
metafísica clássica tem seu ponto culminante na síntese tomista levada a cabo na
Idade Média, quando em Santo Tomás, o encontro entre Platão e Aristóteles.
Ressalte-se também nessa abordagem que nesse momento a metafísica como
discurso do ser ou como ontologia tem seu apogeu e fim.
É, justamente, a partir da modernidade, quando não mais lugar
para o ser considerado em si mesmo e, plenamente acessível à razão, aflora
então o sujeito como constituidor da objetividade. A temática da metafísica na
modernidade será desenvolvida privilegiando-se o sujeito como única
possibilidade de afirmação do ser. Marechal tenta fazer a transição entre a filosofia
clássica e a modernidade e envolve a mística como intuição do absoluto.
O problema fundamental a ser destacado é estabelecer os limites
dessa transição que será realizada no último capítulo dessa investigação. Trata-se
de investigar a transição do projeto da metafísica clássica situada sob o enfoque
do ser para o da modernidade sob o enfoque do sujeito. Outra questão a ser
discutida e pesquisada é os limites da inquirição filosófica que, conforme a
tradição encontra-se na imanência e os horizontes da teologia se encontram
justamente na transcendência. Este é o desafio de Marechal. O risco de construir
uma teologia transcendental deve ser levado em consideração. O que nos
propomos, no desenvolver dessa pesquisa, é discutir com o autor e, com os
subsídios fornecidos pela tradição filosófica, seu projeto filosófico.
Pretende-se, ante o exposto, encontrar um justo meio e
acompanhar o trajeto filosófico marechaliano e, vislumbrar o que nos parece sua
18
originalidade em sua investigação onde prometem um encontro entre a filosofia, a
mística e a teologia.
19
CAPÍTULO I
O REALISMO METAFÍSICO DOS ANTIGOS
A crítica do ceticismo antigo termina com esta conclusão: a
afirmação é inevitável; ela expressa a natureza mesma de nossa atividade
intelectual, até tal ponto que negar a afirmar é uma afirmação.
E tal necessidade da afirmação leva consigo a necessidade do
primeiro princípio (princípio de identidade), já que, com a falta dele, a afirmação se
destrói a si própria. A identidade consigo mesma é sem dúvida o mínimo que se
pode afirmar de um objeto qualquer.
Sem explicar sempre com toda claridade, os antigos tiveram
consciência de que esta crítica preliminar da afirmação bastava para fundar seu
realismo objetivo, ou seja, para fundar o valor absoluto do conteúdo do
conhecimento.
Considera-se atentamente a supremacia reconhecida ao primeiro
princípio sobre todo conteúdo de consciência sem exceção, reconhecer-se-á que
esta jurisdição universal implica uma verdade fundamental: todo objeto (todo dado
objetivo de consciência) pertence ao domínio do ser. Pois para ser idêntico a si
mesmo é preciso, antes de tudo, de uma outra maneira, ser. Aplicar o princípio de
20
identidade ou de contradição a um objeto é, portanto, referir a este objeto um juízo
implícito, mas absoluto, de ser.
Ao contrário, se patentiar sua repugnância lógica: um objeto de
meu pensamento não é ser de nenhuma maneira, é totalmente não-ser. Para que
uma proposição semelhante tivesse sentido, seria preciso que o total não-ser, a
nada absoluta, fosse pensável.
a idéia do nada não é mais que uma pseudo-idéia, um amontoamento
verbal ao que não corresponde (nem pode corresponder) nenhum
conceito homogêneo. O pretendido nada que nós representamos é
sempre relativo, sempre o não-ser de alguma coisa; não o não-ser
absoluto, senão o outro, é dizer, também o ser, real ou possível
1
.
Mas se nada não é pensável, segue-se que todo o pensável é. E,
deste modo, encontra-se uma imediata aplicação do primeiro princípio, a
afirmação absoluta e universal do ser, com a exclusão do nada. Tal é, o
fundamento do realismo metafísico nos gregos.
Sem embargo, o pensamento grego, ao impor como uma
necessidade primordial o princípio essencial do realismo, não mais que
preludiar sua tarefa crítica. Com efeito, se todo conteúdo do pensamento é o
objeto de uma absoluta afirmação de ser, é preciso indispensavelmente sob
pena de arruinar novamente o primeiro princípio e com ele a possibilidade mesma
1
No original: que la idea de la nada no es más que una pseudo-idea, un amontonamiento verbal al
que no corresponde (ni puede corresponder) ningún concepto homogéneo. La pretendida nada que
nos representamos es siempre relativa, siempre el no-ser de alguna cosa; no el no-ser absoluto,
sino lo outro, es decir, tambíen el ser, real o posible. (MARECHAL, Joseph. El punto de partida de
la Metafisica. I,p.58)
21
da afirmação, que os mais diversos conteúdos do pensamento se harmonizem
entre si, na unidade do ser, ao amparo da contradição lógica.
Revelar, como diz Aristóteles contra os sofistas, a incoerência
teórica e prática e, para falar da impossibilidade do ceticismo integral, não era,
senão colocar, de um modo mais expresso e crítico, o postulado instintivo de
todo o realismo antigo. Aristóteles, ao desenhar sua protofilosofia tinha dela uma
consciência muito clara, de que, protegendo-se com a necessidade da afirmação
absoluta como um preâmbulo crítico posto de uma vez por todas, se organizaria o
conjunto dos objetos dessa afirmação absoluta em um sistema devidamente
equilibrado; ou seja, se tratava de edificar uma metafísica rigorosamente coerente
o bastante compreensiva para que todo o conteúdo objetivo do pensamento
humano encontrasse nela seu lugar definido.
Acabamos de estabelecer o princípio metodológico da crítica do
conhecimento tal como a entenderam os Antigos, isto é, a Antigüidade e a Idade
Média.
A crítica metafísica do objeto permaneceria quando todo o
conteúdo do pensamento estivesse distribuído e coordenado sem choque nem
contradição. Em tal caso, com efeito, a afirmação necessária e absoluta de ser se
encontraria aplicada e graduada sem determinação alguma e, pelo mesmo,
também sem desviação possível. A antinomia da multiplicidade e a unidade, tema
básico da metafísica humana, estaria definitivamente superada.
2
2
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafísica, I, p.60
22
Mas não assinala um limite para a razão humana este ideal
imutável?
Buscaremos a resposta a esta questão através da sinuosa história
da metafísica; e deste modo nos encaminharemos até a posição moderna do
problema do conhecimento.
1.1 - A oscilação entre os termos da antinomia nos pré-
socráticos
Desde seu despertar, o espírito humano, essencialmente
unificador, se em apuros diante a multiplicidade dos dados; forcejeia-se com a
antinomia do uno e o múltiplo sem que tome imediatamente consciência da
envergadura real do conflito. Com efeito, os primeiros sistemas cosmológicos não
delatam ainda mais que o trabalho instintivo de unificação ao que a natureza,
cambiante e diversa, provoca ao espírito que a contempla. mais tarde se
adverte que a especulação cosmológica, não faz senão colocar em série as
etapas de um processo fundamental e de seu indefinido, a saber: a introdução da
unidade na pluralidade
3
.
Não faltam espíritos profundos e audaciosos que tomam
explicitamente consciência desta exigência sintética do pensamento, e lhe
concedem, em conseqüência, toda sua importância. Tales um dos pensadores de
Elea e Parmênides, ambos, mestres e discípulos, afirmam a unidade absoluta do
3
Cf.Ibid.p.61
23
ser. Sem dúvida, a multiplicidade da experiência se levanta contra esta atitude
imperiosa da razão. E, isto chega, até a Magna Grécia a partir de Heráclito de
Efeso (544), que coloca em contrapartida a tese dos eleatas.
A partir deste momento, a antinomia do uno e o múltiplo alcança
toda sua agudeza na consciência filosófica. Examinemos com mais determinação
as duas atitudes unilaterais e intransigentes que, mais que resolver, acentuam o
conflito: a atitude heráclita e a atitude eleática. E ao se colocar em primeiro plano
o real e multiplicidade representa a contrapartida da tese dos eleatas.
1.1 - Heráclito: predomínio da multiplicidade
Em base mesma de sua doutrina, o enigmático pensador de Efeso
situa a realidade experimental da mudança: tudo é devir. E se tudo é devir, tudo é
multiplicidade; multiplicidade interna das coisas cambiantes que transcorrem no
tempo: o é possível passar duas vezes no mesmo rio, que este arrasta
incessantemente novas águas”
4
(multiplicidade na diversidade contraditória das
mesmas propriedades de uma coisa: “a água do mar é simultaneamente a mais
pura e a mais suja, potável e mantenedora da vida para os peixes, não-potável e
mortal para os homens”). Pelo demais, a contradição não tem nada que deva
repugnar ao filósofo; é o lugar do devir e constitui, por conseguinte, o fundo das
coisas em sua essencial mobilidade. Heráclito ao destacar a variabilidade e a
contradição íntima dos objetos, pode deixar transparecer que a afirmação absoluta
4
PLATÃO, Crátilo, 402
24
não encontre realmente nada em que se apoiar; porque não há afirmação possível
sem uma certa unidade objetiva coerente e estável. Contudo, por uma espécie de
instinto metafísico, mais que por um raciocínio rigoroso, Heráclito restaura essa
unidade necessária: a descobre na mesma forma do devir universal e na harmonia
do contraste cósmico o verdadeiro logos divino, imanente às coisas. O paralelismo
realista do pensamento, animado por um mesmo princípio ativo (o fogo), é
arrebatado, a um ritmo idêntico, pelo movimento vertiginoso de um devir infinito.
Assim, pois, aos olhos de Heráclito, a existência objetiva se traduz exatamente na
multiplicidade: a unidade desta multiplicidade é puramente formal e de tendência.
A idéia de multiplicidade, em combinação com a idéia de homogeneidade, uma
base bastante firme às filosofias atomísticas. Demócrito ou Anaxágoras, os
atomistas, movidos pelo instinto unitário da razão, também se esforçaram, por sua
vez, em reduzir a infinita diversidade das coisas; que confundem unidade e
homogeneidade, reduzem a diversidade qualitativa a combinações locais de
átomos idênticos, e a mudança aos deslocamentos sofridos por estes átomos. A
simplificação introduzida deste modo nas coisas não tem mais a aparência da
unidade: é a unidade da quantidade e do movimento passivo; ou seja, a
multiplicidade pura, a homogeneidade material, a inércia. E neles a quantidade
material penetra os objetos e o pensamento. Nos objetos, o logos de Heráclito,
forma harmônica e princípio diretor, é substituído pela configuração espacial dos
grupos atômicos; no espírito, a unidade inteligível da idéia tende a reduzir-se a um
mero agregado de sensações elementares. Subsiste, portanto, uma vez mais, o
25
paralelismo entre o espírito e as coisas, mas a expensas da unidade propriamente
dita
5
.
1.1.2 - Os eleatas: predomínio da unidade
Frente ao dinamismo universal de Heráclito, os eleatas
sucessores de Jenófanes, e entre eles, em primeiro lugar, Parmênides, mantém, e
talvez, exageram os direitos da unidade.
Move-se no terreno comum do realismo: o pensamento objetivo é
rigorosamente co-extensivo ao ser. Segundo Parmênides, o ser se opõe
contraditoriamente ao não-ser. Por conseguinte, o ser é: somente ele pode ser
pensado; o não-ser não é, nem pode ser pensado.
Embargado por esta metafísica todavia nova, o poeta-filósofo leva
sua tese fundamental até as mais extremosas conseqüências; propõe o dilema:
ser (totalmente) ou não-ser (não ser em nenhum grau).
Não existe meio termo. Nem o menor rastro de não-ser pode contaminar
o ser. A multiplicidade, a divisibilidade, a mudança, o movimento,
implicam o não-ser. Por conseguinte, nem o múltiplo nem o cambiante
são. O ser é indivisível, imutável, imóvel: é uno
6
.
5
Cf. MARECHAL, op.cit., p. 63
6
No original: No hay término medio. Ni el menor rastro de no-ser podría contaminar al ser. La
multiplicidad, la divisibilidad,el cambio, el movimiento, implican el no-ser. Por consiguiente, ni lo
múltiple ni lo cambiante son. El ser es indivisible, inmutable, inmóvil: es uno. (Ibid.,p.65)
26
Posto que o ser é único, nosso pensamento objetivo, o que nos dá
a verdade do ser, é necessariamente monista. Como é possível então, que a
multiplicidade invada nosso espírito e apareça nos objetos?
A multiplicidade não tem realidade objetiva; é a forma ilusória de
nossos sentidos que descompõem a unidade do ser; é pura aparência. A fonte de
todo pluralismo se oculta no sujeito sensível, que uma objetividade fictícia ao
não-ser.
É patente a forma como os eleatas se livram da antinomia: no que
se refere ao objeto, sacrificam a multiplicidade: sua metafísica é um monismo do
ser; pelo lado do sujeito cognoscente negam todo valor objetivo ao sentido,
faculdade do múltiplo: sua epistemologia é um realismo da inteligência pura.
1.2 - O advento de uma crítica metafísica do
conhecimento
Até aqui, com efeito, a sistematização metafísica apenas abarcou
outra coisa que o objeto entendido no sentido estrito, isto é, as coisas exteriores
aos outros, e quando por acaso se estendeu ao sujeito cognoscente, também a
este se referiu por fora, como uma coisa em meio as outras.
A controvérsia com os sofistas, ao impor a necessidade de
graduar rigorosamente a afirmação que convém a cada conteúdo de consciência,
tanto ao da consciência direta quanto ao da reflexa, obrigou a revisar e ampliar os
quadros da metafísica. Isso precisou não aperfeiçoar e dar coerência à
27
metafísica do objeto (no sentido restrito); não só desenrolar a metafísica do sujeito
humano, considerando em si como sustância, senão também fazer lugar, nos
quadros da afirmação metafísica, a esta relação de sujeito e objeto que percebe-
se sempre que temos consciência de conhecer.
Com outras palavras: o problema do valor de nossos
conhecimentos, plantado no terreno geral do realismo antigo, apelava
necessariamente a uma ontologia do conhecimento, ou, mais exatamente, a uma
metafísica do sujeito cognoscente enquanto tal.
O problema total do conhecimento se introduz assim na filosofia
antiga, sob a égide da metafísica, como uma ampliação necessária do problema
objetivo do uno e o múltiplo. Desde este momento, se pode falar no sentido
próprio de uma crítica dos objetos, posto que, segundo o temos de ver com mais
detenimento, toda teoria ontológica do conhecimento envolve uma crítica.
Platão e Aristóteles foram, por distintos conceitos, os primeiros
artífices desta crítica metafísica do conhecimento. Sócrates lhes preparou o
terreno.
1.2.1 - Sócrates: regresso ao equilíbrio do uno e o
múltiplo
Sócrates, sem abandonar o realismo objetivista de seus
predecessores, modera a desalentadora oscilação que lhes arrastava
alternativamente da unidade intelectual à multiplicidade sensível, de Parmênides a
28
Heráclito, e à inversa. Ele não podia combater à Sofística de um modo mais eficaz
que o de habituar aos filósofos a conduzir seu espírito, sem contradição, desde as
sensações múltiplas até as unidades conceituadas cada vez mais gerais. Porque,
num sistema de conceitos, devidamente ordenado, as aportações do sentido e as
da inteligência devem constantemente equilibrar-se. Desta maneira, entre os
pontos de vista absolutos da unidade e a multiplicidade, empenha-se a
estabelecer uma hierarquia de unidades intermediárias nas quais os dois termos
opostos se combinam em proporções diversas: as idéias gerais.
Assim, para edificar uma metafísica compreensiva não basta
raciocionar de um modo exato, ainda fragmentário; é preciso, ademais, descobrir o
centro de perspectiva que domina o conjunto de nosso campo de visão. Mas,
numa metafísica humana, o centro de perspectiva não se pode encontrar muito
distante da idéia geral, que é a manifestação mais característica de nossa
inteligência imperfeita.
Sócrates, preocupado sobre todos os conceitos morais, não chega
a construir uma metafísica geral nem uma cosmologia. Sua filosofia não pode
ficar imune ao gérmen cético, mas outro grupo de discípulos de Sócrates continua
a obra construtiva do grande mestre. Este limitou-se a custodiar o dogmatismo
realista, infundindo nos espíritos um princípio de ordem; Platão e logo Aristóteles
acrescentam à indução socrática que permite construir corretamente as idéias
gerais, considerações mais amplas e precisas sobre a natureza e o valor objetivo
destas idéias. A síntese do uno e o múltiplo assegurada no conceito, é a partir de
então, transposta às coisas mediante condições melhores definidas. O realismo do
29
pensamento grego tende a uma forma crítica. Consideremos rapidamente esta
nova fase
7
.
1.3 - A solução platônica: o realismo do entendimento
Aristóteles faz notar, no livro I de sua Metafísica, que a
epistemologia de Platão é um ensaio de conciliação da teoria socrática dos
conceitos gerais com o movimento de Heráclito. Também pode-se afirmar que o
platonismo aproxima entre si pontos de vista de Heráclito e Parmênides. Ambas
fórmulas destacam igualmente o caráter sintético da solução platônica. Unidade e
pluralidade vão, por fim, encontrar-se, sem excluir-se, no seio de uma filosofia que
abarca o domínio inteiro do objeto.
No ponto de vista que nos ocupa, é preciso distinguir na obra de
Platão dois aspectos que são inseparáveis.
Em primeiro lugar, um aspecto lógico ou dialético. Platão
aperfeiçoa a dialética de Sócrates e dilata seu alcance. Seu método dialético
descobre ao espírito humano o meio de elevar-se desde as aparências sensíveis
até a idéia geral que expressa sua essência inteligível, seu substrato lógico
imediato e sua unidade universal ; ele ensina a comparar entre si estas formas
inteligíveis, a captá-las em suas delimitações e em sua mútua implicação,a fim de
referi-las todas ao último substrato ideal que lhes serve de base comum e não tem
7
Cf. MARECHAL, op.cit., p.69
30
necessidade de fundamento ulterior
8
. A dialética se conduz deste modo acima das
idéias ou formas, por um procedimento que assemelha-se muito a uma abstração
de espécies e gêneros, levada até o gênero supremo; a idéia se encontra nos
outros como conceito abstrato, e o signo verbal da idéia é, em nossa linguagem, o
termo universal.
Mas este aspecto dialético vem acompanhado de um aspecto
psicológico e metafísico, expressivo do fundamento ontológico das relações
lógicas.
A idéia platônica não é representável por uma imagem comum
que traduz a semelhança material das coisas sensíveis; não é, então, objeto de
ciências, porque todo trabalho de combinação e dissociação que podemos fazer
com o sensível cai dentro dos limites da aparência, da opinião. Com efeito, Platão
reconhece com Heráclito que as aparências sensíveis, o mundo das idéias, são a
variabilidade mesma; mas ademais, como Parmênides, considera incompatíveis a
mudança e o ser. O paralelismo entre o ser e o pensamento, postulado por toda a
antigüidade grega, não pode portanto, estabelecer-se valendo-se do intermediário
da sensibilidade.
Professa, por conseguinte, que com ocasião da percepção
sensível dos objetos, desperta sempre em nosso espírito uma idéia
correspondente. “ Esta idéia se introduz sob as representações sensíveis como
8
Cf. Ibid., p.71.
31
base inteligível e a expressão mesma de sua realidade, porque em todas as
coisas é a idéia, e só ela, o que nossa inteligência conhece”
9
.
Mas as idéias, suscitadas ao azar dos encontros sensíveis, se
articulam entre si em nosso pensamento; superando a dialética abstrata, uma
dialética vivente das idéias, presidida pelo guia divino, o amor. O saber verdadeiro
e completo consiste, sob a influência estimulante do amor às idéias e nos impulsa
cada vez mais até a Idéia suprema do Bem. Ao recorrer, desde o centro mesmo
de nosso espírito, numa contemplação direta e progressiva, a hierarquia completa
das unidades ideais parciais, subordina-se à Idéia primeira que, dominando-as, as
articula. Sendo assim, todo o processo do despertar e da evolução das idéias é
teológico.
Esta contemplação ideal nos faz alcançar o ser, já que, segundo o
princípio, todavia inalterado do dogmatismo realista, o ser é o mesmo que é
pensado, com exclusão do que é sentido; o ser é o inteligível. A realidade
verdadeira e subsistente é preciso, portanto, encontrá-la no imóvel esplendor
destas Idéias.
Neste contexto, os sentidos e o entendimento buscam
verdadeiramente no exterior as determinações materiais ideais. Entre as
aparências exteriores e as idéias subsistentes existe um impreciso vínculo de
participação, de assistência que faz das Idéias os tipos superiores e os princípios
da unidade das aparências.
9
No original: Esta idea se introduce bajo las representaciones sensibles como su sostérn inteligible
y la espresíon misma de su relidad, porque en todas las cosas es la idea,y sólo ella, lo que nuestra
inteligencia conoce. (Ibid., p.72)
32
As idéias subsistentes, objetos imediatos de nosso conhecimento
intelectual, constituem ao mesmo tempo a unidade real imanente ou
transcendente das coisas que nos aparecem. O dogma do paralelismo
entre pensamento e os objetos encontram assim uma ampla base
metafísica
10
.
Segundo Marechal, se a epistemologia platônica se limitasse à
afirmação do paralelismo entre nossos conceitos gerais e as idéias subsistentes,
sem intentar nenhuma explicação metafísica de tal paralelismo, não excederia o
nível de um dogmatismo realista bastante arbitrário. De fato, a metafísica de
Platão faz um caminho de relação mesma de sujeito e objeto e engloba deste
modo uma teoria metafísica do conhecimento.
Assim, desde o momento em que se abandona o ponto de vista
criticamente insustentável de uma ausência total de relação ontológica entre o
objeto e o sujeito, se introduz a relação mesma de conhecimento no quadro das
relações metafísicas; e se obrigado, a partir desse momento, a descobrir
causas reais, necessárias e suficientes da operação cognoscitiva.
Portanto, uma das primeiras exigências metafísicas que chama a
atenção de Platão é a necessidade de encontrar no sujeito mesmo, com
anterioridade todo exercício imanente de sua atividade, o conjunto das suas
virtualidades, pois como podia eu conhecer um objeto se não o tenho em mim de
nenhum modo? Uma certa presença do objeto em mim é a condição necessária
da representação que eu me formo. Mas que presença? Pode o objeto estar
presente desde agora no seio de minhas faculdades cognoscitivas, seja pela
10
No original: As ideas subsistentes, objetos inmediatos de nuestro conocimiento intelectual,
constituyen al mismo tiempo la unidad real inmanente o transcendente de las cosas que nos
aparcen. El dogma del paralelismo entre el pensamiento y los objetos halla así una amplia base
metafísica. (Ibid., p.73)
33
semelhança de sua forma, seja por sua realidade própria? A partir da teoria da
anámnesis, há que se dizer que, segundo Platão:
as idéias gerais, latentes nos outros se desperta por ocasião da
percepção sensível as quais não são inatas: formam nos outros o
resíduo da intuição imediata que havia tido das idéias subsistentes numa
existência anterior, que na alma, não entorpecida ainda pela matéria,
vivia diretamente a vida das Idéias
11
.
Para conhecer as idéias é preciso a volta ao mundo ideal para
encontrar-se a si mesmo sob a carga sensível que a aprisiona. Também o
verdadeiro meio da contemplação das idéias consiste na ascética purificadora do
espírito, nessa que restaura na alma, de um modo progressivo, a primitiva
transparência de sua sustância ideal.
Assim, pois, desde que se intenta desenrolar sistematicamente a
metafísica platônica do conhecimento, chega quase necessariamente a
estabelecer, com os neoplatônicos, a imanência ontológica das idéias no espírito,
tanto na inteligência universal quanto na inteligência humana, emanação do
primeiro.
Entretanto, com independência inclusive de toda hipótese inatista,
imanentista ou emanatista, a unidade do sujeito e o objeto encontra ainda em
Platão uma certa expressão metafísica. Com efeito, o processo teológico do
conhecimento tem como fim último o mesmo do amor (Eros): a possessão do Bem
absoluto.
11
No original: las ideas generales, latentes en nosostros y despiertas com ocasíon de la percepcíon
sensible, nos son innatas: forman en nosostros el residuo de la intuicíon inmediata que habríamos
tenido de las Ideas subsistentes en una existencia anterior, vivía directamente la vida de las Ideas.
(Ibid., p.75)
34
Portanto, o ponto de vista teológico em Platão, apela, e em
parte dá lugar, a uma verdadeira metafísica do conhecimento.
Segundo Marechal toda metafísica do conhecimento concebida à
maneira platônica contém antinomias e permanecem impotentes para resolver o
problema crítico. Assim, por exemplo, pode reduzir de um modo excessivo o papel
da sensação no conhecimento do real. E por outra parte, ao tratar nossos
conceitos abstratos como a expressão adequada de puros inteligíveis, corre o
risco de introduzir na inteligência enquanto tal, certas condições da sensibilidade,
produtos da abstração.
Contudo, a consideração platônica da finalidade no
conhecimento, soma do ponto de vista de Parmênides um complemento destinado
a alcançar, na história ulterior da filosofia, uma extraordinária importância teórica.
A unidade suprema do conhecimento não pode, consequentemente, definir-se
como forma representativa; deve responder, ao mesmo tempo, aos caracteres de
um fim último
12
. Estabelecer esta exigência é inaugurar o princípio do que
necessariamente se desprende a tese da analogia metafísica ou, se prefere, a da
transcendência do ser. Com efeito, o cume supremo do conhecimento, enquanto
representação, não transforma a idéia universal de ser; o ápice do conhecimento,
enquanto finalidade ativa, é a posição do Bem em si. É pois, idêntica a posição do
Bem em si à intuição do ser? Não, responde Platão e, de um modo mais explícito,
seus sucessores alexandrinos: o Bem é superior ao Ser, porque o Bem, diferente
12
Cf. Ibid., p.523
35
do Ser, não admite a oposição de um Não-Ser. Para Platão a idéia suprema do
ser se confunde para com nosso conceito do ser, com a forma representativa do
ser adequado ao nosso entendimento. Em Aristóteles, veremos somar a distinção
crítica que fará possível que o Ser se coloque acima da região do conceito, até o
mesmo plano do Bem absoluto.
1.4 - A solução aristotélica: moderação do realismo do
entendimento
Em muitos aspectos, Aristóteles continua Platão, mas não sem
refrear algumas das audácias ontologistas de seu antecessor.
Como este, adota a equação entre o inteligível (humano) e o
universal, sendo que o conceito que expressa o inteligível, é primitivamente
universal.
Mas é aqui onde se aponta a divergência: em Aristóteles, o
conceito universal não provém de uma intuição ontológica das idéias subsistentes,
se origina nas coisas sensíveis; dentro dessas, realmente, descobrimos o
inteligível.
Aristóteles tira as idéias de seu pedestal e as submerge
totalmente na realidade material; as faz imanentes às coisas: de toda coisa
sensível se pode dizer, num sentido verdadeiro, que encerra o universal, a idéia.
Com efeito, segundo a física aristotélica, todos os objetos que afetam a nossa
sensibilidade estão compostos de um princípio material e de uma forma
36
especificativa que é uma verdadeira idéia, imanente aos indivíduos. E esta idéia
imanente oferece ao nosso pensamento os caracteres de um universal, por si
mesma, independentemente da matéria que a restringe, é a idéia ilimitada da
espécie inteira.
Em suas faculdades sensíveis,o sujeito recebe o selo qualitativo
das coisas exteriores. Mas ao mesmo tempo, por sua inteligência imaterial,
reacional sobre a imagem concreta que se lhe apresenta, de maneira que não
assimile mais que seu elemento formal, sem a matéria. Segundo Aristóteles, a
forma desmaterializada está, pelo mesmo, desindividualizada : “representa, na
inteligência abstrativa, o tipo geral da espécie [...], livre da concreção material que
a aprisionava no seio dos indivíduos múltiplos”
13
.
Neste sentido, a concepção aristotélica da intelecção pressupõe
uma metafísica do indivíduo material e, por uma vez, traz consigo como
conseqüência, uma epistemologia crítica que revela uma grande moderação do
realismo do entendimento.
Segundo Marechal, o pressuposto metafísico constitui essa tese
famosa da individuação, tão imersa no íntimo do ser quantitativo, que todavia
segue sendo o tema das mais sutis discussões entre filósofos. Aristóteles a
formula quase com a mesma claridade com que logo o farão os tomistas: toda
multiplicidade numérica no interior da espécie provém da matéria, princípio de
multiplicidade pura. A individualidade dos seres materiais depende também da
relação de sua essência com a matéria concreta. A essência, por si e,
13
No original: representa, en la inteligencia abstractiva, el tipo general de la espécie (...), libre de la
concrecíon material que la aprisionaba en el seno de los individuos múltiples. (Ibid., p.79-80)
37
primordialmente, é uma, o mesmo que é imaterial; pela matéria lugar a uma
multiplicidade. Deste modo, a essência não subsiste nas coisas com a forma da
universalidade de que se reveste no entendimento abstrativo. Em conseqüência, a
afirmação necessária do objeto de nossos conceitos deve ser crítica; tem de
distinguir, em cada conceito, como mais tarde expressará o tomismo, o que é
verdadeiramente significado e o modo abstrato da representação, ou seja, a parte
do objeto e a parte do sujeito no conceito objetivo
14
.
Esta distinção, pela primeira vez estabelecida aqui com toda
claridade, é de uma importância capital, pois introduz uma origem no dogmatismo
realista do pensamento grego primitivo, e assinala assim o ponto de partida de
toda crítica do conhecimento; trata-se de uma verdadeira crítica do objeto
enquanto tal, isto é, de uma crítica a qual recai sobre as condições do valor da
operação objetiva primária de nossos entendimentos.
A necessidade de uma afirmação absoluta de todo objeto, é dizer, a
verdade absoluta do primeiro princípio ( princípio de identidade) em sua
aplicação a qualquer conteúdo de consciência. O valor absoluto do
primeiro princípio não se demonstra; se consigna
15
.
14
Cf. ARISTÓTELES. Metafísica, A, 1074 a, 33.
15
No original: a necesidad de una afirmacíon absoluta de todo objeto, es decir, la verdad absoluta
del primer principio (principio de identidad) en su aplicacíon a cualquier contenido de conciencia.
(MARECHAL, op.cit., p.82)
38
Assim a verdade absoluta do primeiro princípio implica uma
afirmação absoluta de ser, ou, o que é o mesmo, a posição absoluta do objeto. Ao
contrário, o sacrifício do primeiro princípio leva consigo a completa relatividade do
ser. A realidade absoluta do ser nos mostra, portanto, inseparável da verdade
absoluta do primeiro princípio; sustentar uma é manter a outra.
Em segundo lugar, a necessidade de uma seleção do objeto
metafísico; isto é, do ser sob a norma do primeiro princípio. Com outras palavras:
a diversificação da afirmação ontológica segundo as relações lógicas de seu
conteúdo.
Nesta perspectiva Aristóteles compreende a necessidade de
recorrer ao ponto de vista dinâmico para escapar às antinomias que levantava
diante a razão o monismo do ser. Ele não encontra outro caminho que evite sair
da contradição, sendo que aplicar novamente o primeiro princípio é, pois, o único
caminho logicamente aberto.
Não que duvidar que Aristóteles era um físico tanto como um
metafísico: é, por certo, na sua Física nos remete à crítica decisiva do imobilismo
eleático. A revelação do dever, síntese geral de ser e não-ser, a encontrou na
percepção viva do movimento, lei universal do mundo físico .Todo conteúdo de
pensamento nos é dado, primeiro, sob a forma da sensação, e nos proporciona a
matéria imprescindível de nossos conceitos. Assim, o objeto sensível é
essencialmente móvel segundo os quatro modos de mudança
16
.
16
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, A, 986 b, 30.
39
Adquirida a noção central de movimento, Aristóteles a submete a
análise racional mais rigorosa. Descobre nela os elementos de sua teoria geral
das quatro causas: a essência ou forma, a matéria ou sujeito, o princípio e o fim.
Aliás, na mesma raiz da dualidade experimental de forma e matéria reconhece
Aristóteles os dois grandes princípios metafísicos que são, para os outros, a chave
do sistema do ser, porque fazem possível restabelecer a unidade ontológica no
seio da multiplicidade.
E ao lado do ato, a mudança nos manifesta, não o puro não-ser,
como supunha Parmênides senão o não-ato, a potência. Tal distinção entre o não-
ato e o não-ser não equivale a uma escapatória verbal, porque o não-ato, a
potência, longe de resolver-se no nada, implica uma proporção positiva ao ato,
uma predisposição a ser mais plenamente. Esta predisposição, não faz
referência a um ato que chega a cumpri-la, senão que dela mesma procede, em
última análise, de um ato anterior que a mantém. A potência passiva não é senão
a expressão objetiva de uma potência ativa, de um dinamismo positivo
antecedente.
Apenas é preciso mostrar que a noção peripatética do dever,
solução dialética da antinomia do uno e o múltiplo, se converte na chave da
metafísica aristotélica do ser.
Com efeito, já que o objeto primeiro de nosso conhecimento
ontológico está tomado no mundo sensível, e como o mundo sensível está
essencialmente sujeito à mudança comprende se que o ser se apresenta
primeiro à nossa inteligência como um devir, isto é, como repartido
complementariamente entre o ato e a potência.
40
Em conseqüência, é este devir, esta aliança do ato e a potência, a
forma em que de se revelar a totalidade do ser; pois o que não se transparece
no objeto próprio e primário de nossa inteligência permanece sempre inacessível
aos outros.
Mas todo devir, diz Aristóteles, procede de um ato que é seu
princípio motor e tende até um ato em que se acaba. Entretanto, se o princípio e
o fim de um devir particular contém todavia algo de potência ao lado do ato, eles
mesmos constituem devir e exigem, por sua vez, um ato que seja seu princípio e
outro que seja seu fim. A totalidade do devir; ou o dever como tal, se desenrola,
portanto, necessariamente, entre um princípio universal, um primeiro motor, que é
Ato puro, e um fim absolutamente último, que é igualmente Ato puro. E o que
torna possível o devir é a potência, a potência em todos os graus, até ao limite
inferior cuja realização separada implica contradição: a pura potência, a matéria
primeira.
Tanto do ponto de vista dialético como do ponto de vista
metafísico, a antinomia do uno e o múltiplo se faz resultado; de agora em diante,
os quadros gerais do ser fundamentam-se no primeiro principio.
A metafísica aristotélica ordena em um sistema coerente: “O
objeto inteiro do conhecimento direto, desde a pura potência, a matéria prima, até
o ‘primeiro motor imóvel’
17
, que é Ato puro e, por conseguinte, também Idéia
pura”
18
17
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, K., 1072 a, 25
18
Cf. Ibid., K., 1074 b, 34
41
Segundo Marechal não deixa de existir em Aristóteles alguma
obscuridade acerca da origem da matéria prima, princípio da multiplicidade, e da
natureza da noção criadora, da perfeita transcendência de Deus e do destino final
do homem. Os escolásticos, a mercê da idéia cristã do sobrenatural, tiveram
acerca destes pontos teses mais claras. Contudo, na metafísica aristotélica as
grandes linhas de uma metafísica do objeto alcançam seu perfil definitivo, irradiam
desde o mesmo ponto em que se verifica o contato entre essas faculdades
cognoscitivas e a realidade ontológica.
Todo o objeto do conhecimento é reflexivo. A reflexão, captando o ato
direto de conhecimento, percebe nela a oposição imanente de Sujeito
ativo e Objeto representando, ou, dito de outra forma, a que entre Eu
e Não-eu
19
.
Mas todo conhecimento intelectual é ontológico. Pela reflexão, que
o opõe a ele mesmo, o sujeito cognoscente se encontra, portanto, referido por sua
vez, ao plano absoluto do objeto ou do ser. O objeto do conhecimento direto
aparece, sob a reflexão, ao mesmo tempo, como uma representação imanente ao
sujeito e como uma realidade oposta ao sujeito.
19
No original: Todo el objeto del conocimiento reflexivo. La reflexión, captando e lacto directo de
conocimiento, percibe em él la oposicíon inmanente de Suejto activo y Objeto representado, o,
dicho de otra forma, la que hay entre Yo y No-yo. (MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la
Metafísica, I, p.88)
42
O conhecimento é considerado em si mesmo como relação de objeto e
sujeito. Em efeito, combinando os dados do conhecimento direto e os do
conhecimento reflexivo, se pode ver que o conteúdo da consciência, ou
a consciência considerada objetivamente, depende às vezes do Eu e do
Não-eu. Supõe uma certa relação de identidade entre um sujeito real e
um objeto real. É o que Santo Tomás expressará mais tarde com célebre
fórmula “intelligibile in actu est intelligens in actu”, simples tradução
metafísica do princípio aristotélico.
20
.
Mas, se o conhecimento se verifica na mesma medida em que o
objeto surge, ou se faz imanente ao sujeito, da mesma aproximação de uma
metafísica do objeto surge uma metafísica do conhecimento. Esta consiste na
análise dos graus possíveis de uma síntese objetiva-subjetiva no seio mesmo do
sujeito.
Portanto os aristotélicos medem o conhecimento objetivo pelo
grau de imanência do objeto ao sujeito. O conhecimento conceitual abarca,
portanto, essencialmente, uma síntese de condições objetivas e de condições
subjetivas. Mas, diante disso Marechal coloca uma questão: se o objeto primário,
imediato de nossa inteligência constituem as coisas materiais e extensas, como é
possível que estas entrem em síntese com o espírito, essencialmente imaterial e
inextenso?
20
No original: El conocimiento, considerado em si mismo como relacíon de objeto y sujeto. Em
efecto, combinando los datos del conocimiento directo y los del conocimiento reflexivo, se puede
ver que el contenido de la conciencia, o la conciencia considerada objetivamente, depende a la vez
del Yo e del No-yo. Supone uma cierta relacíon de identidad entre um sujeto real y um objeto real.
Es lo que Santo Tomás expresará más tarde com la lebre fórmula intelligibile in actu est
intelligens in actu, simple traducción metafísica del pricipio aristotélico: (Ibid., p.89.)
43
É indubitável que os objetos materiais atuem primeiro de uma
maneira física sobre nossos sentidos; a imagem que resulta desta ação prolonga a
forma do objeto material, abstraída da subjetividade concreta.
Mas a forma continua entorpecida pela matéria, porque a própria
imaginação é ato de uma faculdade orgânica. A forma muda a matéria do objeto
exterior pela do sujeito cognoscente; e é isso um começo de imanência da forma
no sujeito, mas não é todavia a imanência estritamente espiritual.
O espírito nunca por si possui sua atualidade última: não
conhece a não ser, passando sempre da potência ao ato. motivo, portanto,
para discernir em nossa inteligência um intelecto passivo, uma inteligência
sensível, isto é, uma potência de intelecção atual. Mas como o ato pode mover a
esta potência inteligível e revesti-la com as diversas formas do conhecimento?
desproporção entre uma atividade material e uma potência espiritual.
Necessariamente, pois, a atuação procederá de um agente imaterial da mesma
ordem que a inteligência passiva
21
.
Diante dessa questão encontra-se, de um lado, o objeto exterior,
prolongado, no que toca a sua forma, pela imaginação. De outro lado, o espírito
humano, enquanto passivo, encontra-se em condições de receber todas as formas
do ser e, enquanto ativo, é capaz de realizá-las em si próprio.
21
Cf. Ibid., p.91
44
Deste modo, a atividade pura de nosso espírito (não-intuitivo),
abandonada a si mesma, carece de um conteúdo diverso sobre o qual exercer.
Onde encontrará este conteúdo senão na imaginação ? E sob que condição o
encontrará senão sob a de poder exercer sobre a imaginação uma operação que o
leve a apreender ? Esta operação denominada “abstração” é descrita e consiste
na atividade espontânea pela qual o intelecto criador, em presença da imaginação
ajusta sua ação aos caracteres formais deste, para reproduzi-los no intelecto
passivo, no que chegam a ser as determinações próximas da intelecção.
A forma universal, abstraída do fantasma pelo intelecto ativo, chega,
portanto, através de um encadeamento contínuo de causalidades
ontológicas, a representar ou, mais exatamente, a prolongar, até o seio
da inteligência passiva, a forma concreta do objeto exterior. Deste modo
se realiza a medida de imanência do objeto requerido pela intelecção; a
forma sensível, desmaterializada” pelo intelecto ativo, se converte em
num inteligível, num “inteligível em ato” inerente à inteligência.
22
Concluindo, Marechal agrupa a crítica primeiramente a qualquer
conteúdo de consciência, e por estar submetido ao primeiro princípio, refere-se ao
absoluto do ser; a pura relatividade dos conteúdos de consciência estaria assim
em contradição com o primeiro princípio.
22
No original: La forma universal, abstraída del fantasma por el intelecto activo, llega, por tanto, a
través de un encadenamiento continuo de causalidades ontológicas, a representar o, más
exactamente, a prolongar, hasta el seno de la inteligência pasiva, la forma concreta del objeto
exterior. De este modo se realiza la medida de inmanencia del objeto requerido por la inteleccíon;
la forma sensible, desmaterializada por el intelecto activo, se convierte em um νοητόν , en un
inteligible em acto inherente al νομς . (Ibid., p.92)
45
Pelo que toca a este primeiro princípio, trata-se de algo que não
pode ser demonstrado em si, de uma maneira objetiva; mas demonstra
perfeitamente sua necessidade para todo sujeito cognoscente e pode ser
traduzido na linguagem dos modernos dizendo: o primeiro princípio, em seu
sentido absoluto, não é suscetível de demonstração analítica, mas sim de uma
prova transcendental.
Em segundo lugar, se todo conteúdo de consciência é,
absolutamente, na medida de sua identidade consigo mesma, isto é, na mesma
medida de sua essência com todas as relações que esta traz consigo; a ciência da
existência e a ciência da essência se confundem; dito de outra maneira, a ordem
lógica ou ideal expressa a ordem ontológica.
Assim, os conteúdos objetivos de pensamento, a todos os quais
refere se à ordem absoluta do ser e os designa sob a apelação comum de
seres, são múltiplas e diversas, não em suas notas representativas, senão em
sua relação com a existência concreta; cada uma delas não existem realmente
mais que segundo condições respectivas que lhe são próprias
23
.
23
Cf. Ibid., p.94
46
A determinação geral desta relação das essências com o absoluto
do ser, pertence à metafísica, ou seja, ao discernimento dos modos de ser sob a
norma do primeiro princípio.
Deste modo, a realidade, em geral, é patrimônio de todas as
essências, mas por títulos e sob modos muito diversos, e não necessariamente
pelo título da subsistência própria; pois o ser, objeto formal de nossa razão
afirmadora, tem múltiplas acepções.
o ser enquanto tal tem mais de um sentido: umas vezes designa o
acidente, outras significa a verdade, por oposição ao não-ser, que seria
o falso; outras vezes é atribuído segundo a divisão das categorias, é
dizer, segundo a essência, a qualidade, a quantidade, o lugar, o tempo,
e assim sucessivamente; por último, ademais de tudo isto, o ser abarca
a potência e o ato
24
.
A questão do conhecimento objetivo não consiste, segundo
Aristóteles, em efetuar um estranho trânsito de ordem lógica ou ideal à ordem
ontológica: toda ordem lógica é ontológica. O problema consiste, em encontrar a
relação inteligível de toda essência particular com a subsistência atual, subjetiva
ou objetiva, mediata ou imediata, que postula. Este problema pertence à crítica do
conhecimento, mas a uma crítica formulada originariamente em termos
metafísicos.
24
No original: el ser em cuanto tal tiene más de um sentido: unas veces designa el accidente, otras
significa la verdade, por oposicíon al no-ser, que sería lo falso; otras veces e atribuído según la
división de lãs categorias. es decir, según la esencia, la cualidad, la cantidad,el lugar, el tiempo, y
así sucesivamente; por último, además, de todo esto, el ser abarca la potencia y e lacto
(ARISTÓTELES, Metafísica, E., 1026 a, 33).
47
CAPÍTULO II
O REALISMO MODERADO DE SÃO TOMÁS
Tendo em vista que a filosofia medieval se desenrola dentro do
marco do realismo antigo, pretende se assinalar em São Tomás o renascimento
e o término da solução, dialética e metafísica, aportada por Aristóteles ao
problema do uno e o múltiplo. E nossa atenção à discussão deverá fixar-se em
dois aspectos do problema que mutuamente relacionam: a unidade compreensiva
geral da metafísica com relação aos objetos, e, a relação particular dos objetos
com o sujeito cognoscente, ou seja, a natureza do conceito. Será, pois,
considerado aqui a síntese tomista do uno e o ltiplo, sobretudo desde a
perspectiva psicológica e lógica.
2.1 - Necessidade de uma crítica do objeto de
conhecimento
48
A sensação ou, mais diretamente, a imagem derivada da
sensação é uma causa parcial, mas necessária, de nosso conhecimento
intelectual.
25
Causa parcial, porque a intelecção abarca algo mais que a sensação
ou a imagem; causa necessária, porque da passividade que resulta em nós da
união substancial da alma e o corpo, nossa inteligência não é movida mais que se
apresentam determinações sensíveis
26
, e tampouco utiliza os princípios
cognoscitivos adquiridos senão referindo-os à sensação ou a imagem:
convertendo-se em um fantasma
27
.
São Tomás se coloca, pois, ao lado de Aristóteles para afirmar,
tanto contra Demócrito como contra Platão, a necessidade de uma colaboração
íntima do sentido e o entendimento em todo conhecimento intelectual.
Mas a aportação do sentido constitui a multiplicidade das coisas
individuais e mutáveis. Captada pelo entendimento, esta multiplicidade se unifica e
se imobiliza.
Meus olhos veriam, juntos, Sócrates, Callias, Antístenes e tantos outros;
minha inteligência os solda, por assim dizer, num único conceito que
representa a todos e cada um deles: “o homem”. Heráclito dizia: “a mão
não toca duas vezes a água de um rio que flui”; a sensação, por
expressar um objeto essencialmente mutável, não poderia reaparecer de
um modo idêntico; e sem embargo minha inteligência, imóvel na orla,
contempla, sob a incessante corrente material, sob o fluxo do tempo que
ruge, a “água” sempre idêntica
28
.
25
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, I, 84, art.6
26
Cf. Ibid., I, 84, art.6
27
Ibid., I.c., art.7
28
No original: Mis ojos veían, juntos, a Sócrates, Callias, Antístenes y tantos otros; mi inteligência
los suelda, por así decirlo, en un único concepto que representa a todos y cada uno de ellos: el
hombre. Heráclito decía: la mano no toca dos veces el água de um rio que fluye; la sensacíon, por
expresar um objeto esencialmente cambiante, no podría reaparecer de um modo idêntico; y sin
embargo mi inteligência, inmóvil em la orilla, contempla, bajo la incesante corriiente material, bajo
el flujo del tiempo que huye, el água siempre idêntica. (Ibid., I, 84, art.1)
49
Segundo São Tomás, Heráclito equivoca-se indiscutivelmente:
não posso sacrificar desse modo o valor de minha inteligência. Mas Platão não
resolve o problema: a ciência que trata de explicar é a ciência abstrata das coisas
sensíveis e imutáveis; sobre estas, e não sobre nenhum estranho mundo de idéias
subsistentes e separadas, versam as afirmações aparentemente contraditórias.
Platão, nisto, é vítima de uma ilusão representando todo conhecimento segundo o
modo da semelhança, acredita que a forma do objeto conhecido de afetar
necessariamente o sujeito cognoscente segundo o mesmo modo que se reveste
no objeto conhecido. Pensa, então, que a forma concebida pela inteligência se
encontra nesta de um modo universal, imaterial, imutável, como se patentiza pela
mesma operação intelectiva, que se verifica de uma maneira universal e
necessária . Conclui-se que as coisas assim entendidas possuem analogicamente
uma subsistência imaterial e imutável.
Segundo Marechal, aqui se encontra, claramente formulada, a
tese fundamental do realismo crítico, que mais acima temos visto desprender-se
da filosofia de Aristóteles. Desde o ponto de vista epistemológico, a Idade Média
recobra totalmente o contrato com a filosofia grega da época de máximo
esplendor.
O realismo de ser crítico. Não deve admitir nenhuma afirmação
desentendida, indistintamente, de todo conteúdo do espírito. A afirmação, para ser
legítima e não trazer, antes ou depois, uma contradição interna deve liberar o
objeto do modo subjetivo que o envolve. Uma crítica do objeto pensado: isto é o
que exige o realismo, tanto o de São Tomás como o de Aristóteles.
50
O próprio São Tomás diz, sem embargo, o reparo seguinte: não é
empreender o caminho do ceticismo o distinguir no conceito um modo
meramente subjetivo e um conteúdo objetivo? “Quicumque enim
intellectus intelligit rem aliter quam sit, est falsus. . . Si ergo intelligamus
res materiales per abstractionem specierum a phantasmatibus, erit
falsitas in intellectu nostro”
29
.
Para São Tomás o conceito, por si mesmo, não é verdadeiro nem falso;
mero “estado subjetivo” pode ser materialmente semelhante ou
dessemelhante com relação a algum objeto exterior: A verdade ou o erro
surge no momento em que o sujeito cognoscente “se decide” pela
significação do conceito e o coloca “per modum composiotionis aut
divisionis” na afirmação judicativa. “Cum ergo dicitur quod intellectus est
falsus, qui intelligit rem aliter quam sit, verum est si ly aliter referatur ad
rem intellectam: tunc enim intellectus est falsus, quando intelligit rem
esse aliter quam sit
30
.
Segundo Marechal não encontrar outra fórmula mais clara para
dizer do uso legítimo da afirmação (isto é, do juízo) supõe uma prévia crítica do
objeto pensado. Portanto, o fim desta crítica consiste em extrair do conteúdo bruto
do espírito as modalidades enraizadas na constituição mesma do sujeito
cognoscente, e a significação real, que é o único que cabe afirmar de uma
maneira objetiva.
29
No original: El próprio Santo Tomás se hace, sin embargo, el reparo siguiente:¿ no es emprender
el camino del escepticismo el distinguir em el concepto um modo meramente subjetivo y um
contenido objetivo? Quicumque enim intellectus intelligit rem aliter quam sit, est falsus... Si ergo
intelligamus res materiales per abstractionem specierum a phantasmatibus, erit falsitas in intellectu
nostro. (TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, I, 85, art.1,1º)
30
No original: El concepto, por sií mismo, no es verdadero ni falso; mero estado subjetivo puede
ser materialmente semejante o desemejante com relacíon a algún objeto exterior: eso es todo. La
verdade o el error solo surge en el momento en que el sujeto cognoscente se decide por la
significacíon del concepto y lo pone per modum compositionis aut divisionis en la afirmacíon
judicativa. Cum ergo dicitur quod intellectus est falsus, qui intelligit rem aliter quam sit, verum est si
ly aliter referatur ad rem intellctam: tunc enim intellectus est falsus, quando intelligit rem esse aliter
quam sit . (MARECHAL, op. cit., p.111)
51
2.2 – A questão transcendental da afirmação ontológica
Marechal a partir do método dedutivo estabelece a priori, por
conceitos a possibilidade da inteligência não-intuitiva de representar, como
objetos, os conteúdos de consciência, a partir da afirmação estritamente
metafísica. Ou seja, essa realidade deve ser determinada, pelo menos
implicitamente, por uma realidade transcendente: sendo que recusar essa
afirmação eqüivale a negar a possibilidade mesma do pensamento objetivo. É
esta demonstração que permite afirmar o valor metafísico dos objetos, como
“númenos”, o pensamento objetivo, como tal. Isso nos leva, no quadro da
metafísica tomista, a uma dedução transcendental da afirmação ontológica.
Inicialmente é preciso afirmar que o valor de ser de um objeto
está na sua atualidade. O que é soberanamente ser esta eminente em ato,
reciprocamente. A existência é a atualidade de toda forma ou natureza; assim, a
bondade ou a humanidade não são atuais senão quando a supomos existentes
31
.
Ser é a atualidade de toda forma ou natureza; [...] O ser em si é mais
perfeito de todos por atualizar a todos; pois nenhum ser é atual senão
enquanto existente. Donde o ser em si é a atualidade de todas as
coisas, e, mesmo das próprias formas
32
.
A inteligência não concebe nada fora do ser, e tendo em vista o
“Ser primeiro”, a supremacia do universal, exclui toda potencialidade (potência):
31
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, q.3, a.4, in c.
32
No original: Esse actualitas omnis formae vel naturae; [...] Diendum ipsum esse perfectissimum
omnium; comparatur enim ad omnia ut actus; nihil enim habet actualitatem nisi in quantum est,
unde esse est actualitas omnium rerum,et etiam ipsarum formaum. (Ibid. I., q.4, a.1, ad 3m)
52
É necessário que aquilo que é o ente primeiro esteja no ato e de
maneira alguma em potência. Na verdade, é lícito em um e outro,
porque vai da potência para o ato, a potência seja primeiro no tempo que
o ato, o ato porém é simplesmente anterior a potência, porque o que
está em potência não se reduz a ato a não ser pelo ente, no ato
33
.
Assim, existe uma relação de equivalência entre o ato e o ser de
forma que a atualidade é a medida do ser, do mesmo modo que a atualidade, no
objeto, é a medida da inteligibilidade e no sujeito, a medida do poder de conhecer.
“Como um ser é conhecível enquanto atual, Deus, Ato puro, sem nenhuma
potência, é, em si mesmo, soberanamente conhecível”
34
.
Com efeito, o indeterminado, como tal, não pode ser objeto de
conhecimento: não se conhece a potência mais que pelo ato. E a causa disso é
porque a inteligência é ato. E por isso, é preciso que aquelas coisas que são
percebidas estejam em ato. Pelo que a partir do ato se conhece a potência
35
.
A matéria, aquilo que individualiza os objetos sensíveis é
totalmente desprovida de inteligibilidade; ela é conhecida na correlação com a
forma, e a forma finita que é, todavia, potência somente como limitação do ser ou
do ato. Assim, a atualidade do objeto mede, pois, absolutamente falando, a
inteligibilidade do objeto.
33
No original: Necesse est id quod est primum ens, esse actu et nullo modo in potentia. Licet enim
in uno et eodem, quod exit de potentia in actum, prius sit tempore potentia, quam actus, simpliciter
tamen actus prior est potentia, quia quod est in potentia non reducitur in actum nisi per ens in actu.
(Ibid., I, q.3, a.1, in c.)
34
No original: Dicendum quod, cum unumquodque sit cognoscibile secundum quad est in actu,
Deus, qui est actus purus, absque omni permixtione potentiae, quantum est in se, maxime
cognoscibile est.
(Ibid., I, q.12, a.1, in c.)
35
No original: Et hujus causa est quia intellectus actus est. Et ideo ea, quaeintelliguntur, oporter
esse in actu. Propter quo ex actu cognoscitur potentia. (ARISTÓTELES, Metafísica. Livro IX,
lição10)
53
Desse modo, quanto mais um sujeito está em ato, mais
capacidade de abarcar a inteligibilidade do objeto. A imaterialidade, isto é, o
afastamento da potência no seu grau mais ínfimo, define em qualquer ser o seu
grau de conhecimento. Isso porque a matéria é um princípio de concreção e de
passividade, uma cadeia, enquanto que o conhecimento requer uma certa
universalidade, ou ao menos uma flexibilidade maior do sujeito e um campo mais
extenso de potencialidades. “A imaterialidade de alguma coisa é a razão para que
seja cognoscitiva e, segundo esse entendimento, a imaterialidade é o modo de
entendimento”
36
. Nesse sentido, Santo Tomás deduz a inteligência de Deus de
sua qualidade de “Primeiro motor”, isto é, de sua atualidade suprema
37
.
Agora, se o conhecimento é a relação imanente da atualidade do
sujeito com a atualidade do objeto, uma infinidade de conhecimentos intuitivos se
perfila diante do metafísico.
Deus, Subsistente perfeito, totalmente Ato, de uma vez e identicamente
Intelecção em ato e Inteligível em ato, se conhece perfeitamente a si
mesmo, e, posto que é atualidade criadora, conhece perfeitamente, em si
mesmo, todas as coisas possíveis ou existentes
38
.
Nessa perspectiva, o ato abaixo de Deus se contamina de
potência, a essência limita o ser. Essa forma, quando é “subsistente”, isto é,
realizada segundo a plenitude de sua lei constitutiva como as essências angélicas,
36
No original: Immaterialitas alicujus rei est ratio quod sit cognoscitiva, es secundum modum
immaterialitas est modus cognitionis. (TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.14, a.1)
37
Cf. MARECHAL, El punto de partida de la Metafisica,III, p. 315
38
Cf. Ibid. I, q.14, a.1,2,3
54
permanece, certamente, em potência diante da infinidade de perfeições
acidentais, cujo limite (inacessível) é a posse integral do Ser; no entanto, em
relação ao seu grau de ser ou a sua essência, esta forma subsistente está em ato
acabado, determinado. E visto que essa essência se abre por sua potencialidade
à novas atuações, o conhecimento intuitivo se estende progressivamente a estes
enriquecimentos da atualidade essencial. A “forma subsistente” se conhece
intuitivamente em sua essência e na sua atividade
39
.
Assim, a alma humana, dentre as formas imateriais, conhece
também na medida de sua atualidade própria. que está unida ao corpo como
forma substancial, não possui o ato último de sua essência: a união substancial
com a matéria significa precisamente que todo ato acabado desta forma depende
do concurso, intrínseco ou extrínseco, da matéria. Mas, esse concurso não
permite a alma expressar e nem conhecer a sua própria essência
40
.
Contudo, uma vez colocada em cooperação com a sensibilidade
material, tem o poder sendo espiritual, de conhecer-se por reflexão sobre sua
atividade, mas somente na medida dessa atividade. E a intuição de si mesmo,
intuição essencial dos anjos, se reduz aqui a uma “consciência de si”: é o grau
mais simples da intuição intelectual, e como tal as intuições sensíveis.
Mas, o problema se complica de maneira singular no instante que
aparece a intermediação entre o modo intuitivo e o modo puramente receptivo de
nossas intelecções diretas. Com efeito, nosso conhecimento intelectual de todos
os objetos que não são identicamente nossa própria atividade é espontâneo de
39
Ibid. I , q.14, a.2; I. , q.56, a.1
40
MARECHAL, op. cit., p. 317
55
uma vez e dependente de um dado exterior. Como representar então a atualidade
do objeto e atualidade do sujeito?
Se a nossa inteligência humana fosse posta diretamente frente à
essência das coisas, apresentando cada uma um grau definido de inteligibilidade,
logicamente se conheceria os objetos tais quais são, por uma idéia simples, sem
“composição nem divisão”, ou não se poderia conhecer em absoluto, porque não
se poderia conhecer parcialmente, com perigo de equivocar-se a seu respeito. Ou
melhor, o nosso conhecimento intelectual, ao captar imediatamente os objetos
inteligíveis tendo em vista a inteligibilidade própria, seria simples e infalível
relativamente a cada um deles; caso contrário, o se teria em absoluto
conhecimento algum destes objetos
41
: “Nas coisas simples, em cujas definições
não se pode intervir, não podemos ser enganos; mas faltamos em não atingi-
las.
42
Assim, não somente diante das essências fisicamente compostas,
se não também diante do que, por natureza, é “simples” e “puramente inteligível”,
nosso conhecimento permanece composto e falível: possível de erro. Isso quer
dizer que a inteligibilidade em si dos objetos constitui talvez um dado indireto,
mas não um dado imediato de nosso conhecimento: nossas representações
intelectuais são todas compostas e divisíveis, sujeitas aos acidentais.
Portanto, é pretensão querer que a atualidade própria do objeto ou
sua inteligibilidade absoluta defina sua inteligibilidade imediata, em relação a nós.
41
Cf. Ibid. p. 319
42
No original: In rebus simplicibus, in quarum definitionibus compositio intervenire non potest, non
possumus decipi; sed deficimus in totaliter non attingendo. (TOMÁS DE AQUINO, Suma
Teológica, I, q.85, a.6, in c.)
56
Sem dúvida, como se havia dito mais acima: “absolutamente existem aquelas
coisas existentes em ato”
43
.
Mas, de quantos objetos que caem sob nossa afirmação, não é
possível dizer, pura e simplesmente, que são. Neles, com efeito, o ato está
revestido de potência.
E as que não existem em ato existem em potência, em relação ou a Deus
mesmo, ou, à criatura. Em potência ativa ou passiva, ou em potência de
opinar, de imaginar, ou de qualquer outro modo de significar
44
.
várias maneiras de estar em potência. Santo Tomás adota a
divisão e classificação do ente proposto por Aristóteles: “tantos modos de
afirmação, tantos de ser “
45
.
Sabe-se que a noção de potência na filosofia tomista, que
precisa, e inclusive supera, neste ponto, ao aristotelismo primitivo se divide em
dois graus: um grau inferior a “matéria primeira“ ou a “subjetividade pura“,
elemento potencial das “essências compostas”, principio radical da quantidade e
um grau superior, universal, a essência simples, oposto à existência como a
potência ao ato.
Sendo assim, a matéria prima considerada em si, isoladamente de
toda a forma, não constitui pois, um objeto legítimo de afirmação. Isso se confirma
em diversas expressões repetidas por Santo Tomás, onde ele afirma que a
43
No original: Simpliciter sunt, quae actu sunt. (Ibid., I, q.14, a.9, in c.)
44
No original: Ea vero quae no sunt actu, sunt in potentia, vel ipsius Dei, vel creaturae,; sive in
potentia activa, sive in passiva; sive in potentia opinandi, vel imaginandi, vel quocumque modo
dignificandi.
(Ibid., I, q.14, a.9, in c.)
45
Ibid., I, q.15, a.1, ad 1m
57
matéria não existe por si, não possui nem inteligibilidade, nem verdade, nem
atividade, nem bondade, nem nada que possa constituir um termo de ação:
A matéria prima, não sendo atual, mas somente potencial, não existe por
si mesma na natureza das coisas; e, por isso, tem mais de concriado que
de criado. Deus tem certamente idéia da matéria, não diferente, porém,
da idéia do composto. A matéria prima, assim como o ente, não existe
senão em potência, assim o bem existe senão em potência. Mas, na
verdade, alguma coisa participa do bem, certamente na mesma ordem ou
aptidão para o bem; e, por isso, não convém a si aquilo que é desejável,
mas aquilo que ele deseja. A matéria prima é mais alguma coisa formada
do que criada
46
.
Essa deficiência de ser na matéria deve-se antes de tudo, à sua
indeterminação, que a subsistência ontológica supõe a inteira determinação. No
mesmo sentido, Santo Tomás nega à forma material, substância incompleta,
principio de atuação da essência composta, o privilégio negado também à matéria:
como tal, isoladamente, a forma de um composto não é mais que a matéria.
Assim, pois, como o ser feito e o criado convenham propriamente ao
ser subsistente, não é próprio das formas o serem feitas nem criadas,
mas o serem concriadas. O que, porém, se faz por um agente natural é
composto, porque é feito da matéria
47
.
46
No original: Materia prima non existit in rerum natura per se ipsam, cum non sit in actu, sed
potentia tantum. Materia secundum se, neque esse habet, neque cognoscibils est. Habet quidem
materia ideam in Deo, non tamen ab idea compositi. Materia prima, sicut non est ens nisi in
potentia, ita ne bonum nisi i potentia. Sed tamen aliquid participat de bono scilicet ipsum ordinem,
vel aptitudinem ad bonum; et ideo non convenit sibi quod sit appetibile, sed quod appetat. (Ibid., I,
q.7, a.2, ad 3m; I, q.15, a.3, ad 3m.)
47
No original: Et ideo, cum fieri et creari non conveniant priprie nisi rei subsistenti... formarum non
est fieri, neque creari, sed concreatas esse. Quod autem proprie fit ab agenti naturali, est
compositum, quod fit ex materia. (Ibid., I, q.45, a.8, in c.)
58
Nem a matéria nem a forma merecem isoladamente receber os
atributos do ser: o composto, isto é, a unidade complementar da matéria e a
forma, é verdadeiramente, e pode ser conhecido como objeto.
Os elementos complementares de essência não são, pois,
suscetíveis de receber o atributo somente na relação de toda essência, seja
simples ou composta, se afirma realmente que possui o ser. O conhecimento da
matéria não pode, pois, representar mais que uma abstração de nosso
conhecimento da mesma essência
48
.
Marechal aqui recorda uma tese especificadamente tomista. Tão
somente de um ser se pode afirmar que sua essência e sua existência sejam
idênticas:
É preciso, portanto, que o mesmo seja dirigido pela essência, que é
oriunda do mesmo para outro fim, assim como o ato para a potência(...)
Como, pois, em Deus nada seja potencial, segue-se que a essência não
seja nele outra coisa que o ser. Sua essência, portanto, é o seu ser
49
.
Assim, todo ser fora de Deus está mesclado necessariamente de
potência; e o elemento potencial que determina o ato de ser à espécie, responde à
definição de uma essência. A essência finita é ao ser (ou a existência) o que a
potência é ao ato; proporciona ao ato de ser um suporte próximo, que é ao mesmo
48
Cf. MARECHAL, op. cit., p.322
49
No original: Esse est actualitas omnis formae, vel naturae... Oportet igitur quod ipsum esse ad
essentiam, quae est alio ab ipso, sicut actus ad potentiam. Cum igitur in Deo nihil sit potentiale (...),
seguitur quo non sit aliud in eo essentia quam suum esse. Sua igitur essentia est suum esse. (Ibid.
I, q.3, a.4, in c.)
59
tempo, uma delimitação especifica. “Matéria e forma dividem a substância
material, a potência, porém, e o ato dividem o ente comum”
50
.
Mas, se todo objeto inferior a Deus está composto de essência e
existência na relação de ato e potência, conclui-se que a inteligibilidade própria de
todo objeto inferior a Deus é a de um movimento, síntese de ato e potência e
única síntese logicamente concebível de ser e não-ser.
Todo ‘dever transcendental’ ou, para empregar a terminologia
propriamente escolástica, toda ‘contingência’ metafísica – implica, de seu,
uma determinação radical frente ao ser, um inacabamento das condições
internas de possibilidade. O objeto contingente, quando é, poderia não
ser, e quando não é, poderia ser: existente, não é simplesmente ser,
senão ‘tal’ ser; inexistente, não é simplesmente ‘nada’, posto que é
possível. Este objeto não apresenta, pois, por si só, à nossa inteligência,
as condições lógicas, seja de uma afirmação plena, seja de uma negação
plena: não desvenda completamente o ‘afirmável’ mais que em uma
síntese superior que o refere a uma condição absoluta de ser, isto é, que
o relacione a este topo, onde a essência alcança a existência e o
possível, o necessário
51
.
Nesse sentido, a afirmação objetiva e a atualidade do objeto
começam a apresentar-se melhor. Cada objeto é afirmável segundo o grau de sua
participação no Ato puro, Subsistência perfeita. Dessa forma, a matéria prima se
introduz na afirmação em relação à forma, seu ato e a essência mesma - forma
50
No original: Materia et forma dívidunt substantiam materialem, potentia autem et actum dívidunt
ens commune. (TOMÁS DE AQUINO.Summa contra gentes, II, 54.)
51
No original: Todo “devenir transcedental” - o, para emplear la terminología propiamente
escolástica, toda contingencia metafísica implica, de suyo, una indeterminación radical frente al
ser, un inacabamiento de las condiciones internas de posibilidad. El objeto contingente, cunado es,
podría no ser, y cuando no es, podría ser: existente, no es simplemente nada, puesto que es
posible. Este objeto no presenta, pues, por solo, a nuestra inteligencia, las condiciones lógicas,
sea de ua afirmación plena, sea de una, negación plena: no devendrá completamente afirmable
más que en una síntesis superior que lo refiera a una condición absolutade
ser, es decir, que lo relacione a esta cima, donde la essencia alcanza a la existencia y lo posible a
lo necesario. (MARECHAL, op. cit. 325)
60
simples, unidade de matéria e forma, está em potência em relação ao atributo de
existência atual. Isso quer dizer que o mesmo ato existencial de toda essência
finita se manifesta em nossos juízos como um ato precário e imperfeito, o qual
subsiste somente em dependência permanente de uma condição ontológica
suprema, absoluta, isto é, da atualidade pura.
É preciso ainda para a afirmação objetiva do ser, subdividi-lo em
“ser puramente intencional” e em “ser real”, perguntando se o movimento pode
todavia afirmar-se somente no pensamento ou no absoluto.
De uma e outra parte, ao que parece, trata-se de um objeto real
ou de um objeto ideal, a afirmação se regula sobre a atualidade do objeto, mas os
escalonamentos necessários de potência e ato, da afirmação, pertencem
unicamente ao pensamento ou se realizam também, paralelamente, fora do
pensamento
52
.
Conforme Marechal, no pensamento encontram-se, inicialmente,
“conceitos genéricos”. Estes, essencialmente, indeterminados, permanecem,
segundo sua forma ideal mesma, inseparavelmente afetados do coeficiente de
abstração que assinala sua origem: para acontecer suscetíveis da afirmação de
ser, precisam pelo menos, de uma determinação específica. O gênero pode ser
representado por um conceito preciso distinto, mas numa relação com a espécie,
52
É importante salientar, por conseguinte, que, para Marechal, o ser enquanto tal que constitui,
assim, o termo final, saturativo de nossa inteligência não é o ser abstrato, o ser oposto ao concreto,
o ideal, oposto ao real. Na verdade, o conteúdo, afirmado ou afirmável de nossa consciência, não
é, por si mesmo suficiente, logicamente, como representação pura ideal, oposto ao real . Nossa
afirmação do ser, que, em razão de sua matéria primitiva, se caracteriza, por uma invasão do real,
prolonga-se e completa-se (no implicitamente vivido) pela posição absoluta do Real transcendente:
passividade inicial, posição terminal, todo nosso saber formal se torna inobjetivo e inconsistente, a
não ser que seja referido a estes dois extremos.
61
que a existência (seja atual, seja possível); não tem idéia própria
53
: “Aos
gêneros não pode corresponder uma idéia diferente da de espécie, idéia
significando exemplar; pois, um gênero nunca se realiza a não ser em alguma
espécie”
54
.
A condição do gênero, no conceito objetivo, recorda a condição da
matéria prima no composto substancial. Na realidade, nossos conceitos explícitos,
de gênero, são conceitos secundários. É necessário volver sempre a tese
essencial do aristotelismo, aquela que centra todo nosso conhecimento do real no
objeto próprio e primário de nossa inteligência discursiva: “O objeto próprio da
inteligência humana é a qüididade da coisa material, que cai sob o sentido e sob a
imaginação”
55
.
Posto que nossa inteligência não é intuitiva, se faz logicamente
necessário que o primeiro objeto que afete nossas faculdades intelectuais seja
um atributo qüididativo, abstraído de indivíduos materiais, isto é, um conceito
específico. E é, pois, em nossos conceitos específicos, diretos, que está a fonte
onde descobrimos todos nossos outros conceitos objetivos; estes serão conceitos
objetivos, suscetíveis de receber o atributo de ser, somente na medida em que
relacionar-se a uma apreensão específica original.
53
Cf. Ibid., p.326
54
No original: Genera non possunt habere ideam ab idea speciei, secundum quod idea signíficat
exemplar: quia nunquam genus fit nisi in aliqua specie. (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I,
q.15, a.3, ad 4m.)
55
No original: Intellectus humani proprium objectum est quidditas rei materialis, quae sub sensu et
imaginatione cadit. (TOMÁS DE AQUINO, Summa contra gentes, I, q.85, a.5, ad 3m.)
62
Portanto, os conceitos genéricos e os conceitos de quantidades
devem, para objetivar-se, ser integrados a um conceito específico, sendo que
nenhum universal pode ser, como tal, “subsistência”, “essência primeira” porque
permanece essencialmente “em potência”. Para receber o atributo de ser atual,
em um juízo categórico, a qüididade abstrata deve despojar-se desta dupla
indeterminação, isto é: deve enquanto representação abstrata, subjetivar-se na
matéria concreta, e ao mesmo tempo, enquanto forma finita, encontrar o
complemento de sua unidade inteligível na sua dependência intrínseca em relação
ao ato puro de ser. Sendo, então, a pura matéria e Ato puro, requeridos para toda
realização atual da qüididade e do objeto possível ou afirmável, se comprova, sem
surpresa, que eles se estendem fora da esfera puramente conceitual, além de
toda “idéia” de nosso entendimento
56
.
Com efeito, a matéria prima, longe de constituir, em nosso conhecimento,
uma representação justaposta a outras representações, uma espécie de
matéria prima ideal, assinala realmente o limite inferior, extramental, de
nossos conceitos [...] Por outra parte, no limite superior de nossos
conceitos, o Ser puro, unidade suprema, não pode ser ‘representado’
em nós por uma forma ideal qualquer que lhe convenha em sentido
próprio; para assentar a chave de abóbada de nosso pensamento
objetivo, devemos franquear os limites deste pensamento mesmo e
submergirmos no real por um procedimento que utilize a representação
conceitual sobrepassando-a
57
.
56
Cf. MARECHAL. op. cit. p.330
57
No original: En efecto, la materia prima, lejos de constituir, en nuestro conocimiento, una
representación yuxtapuesta a otras representaciones, una especie de materia prima ideal, señala
realmente el límite inferior, extramental, de nuestros conceptos, o, si se quiere, el punto crítico
donde expira, para nosostros, el orden intencional. Nadie se representa un tal límite, sino en la
medida en que, físicamente, se sufre su constriccíon. Por otra parte, en el límite superior de
nuestros conceptos, el Ser puro, unidad suprema, no puede ya ser representado en nosostros por
una forma ideal cualquiera que le convenga en sentido propio; para asentar la clave de bóveda de
nuestro pensamiento objetivo, debemos franquear los límites de este pensamiento mismo y
sumergirnos en lo real por un procedimiento que utilice la representación conceptual
sobrepasándola. (Ibid, p.330)
63
O conteúdo afirmado ou afirmável de nossa consciência não se
basta, pois, logicamente, como representação pura. A afirmação de ser a qual se
inicia em nós por uma invasão do real concreto, se prossegue e termina (no
implícito vivido) pela posição absoluta do real transcendente, Ato Puro. Isso nos
leva às condições lógicas e ontológicas do real, e a clareza de que todo o abstrato
é secundário, ou seja, não é, originariamente, mais que a forma imaterial de nossa
percepção de indivíduos concretos. O puramente “pensado”, ainda que, não seja
em nós, mais que mero “possível“, e que esse conhecimento do “possível” não
seja, de nenhuma forma, uma etapa necessária para o conhecimento do
“existente”, o “possível nos é dado primitivamente no “existente”. O “existente” ,
portanto, o é inteligivelmente cognoscível mais que por sua relação vivida ao
ato absoluto de ser
58
.
Mas, de outro lado, sem contar que a metafísica racionalista, em
estrita lógica, conduz ao panteísmo imanente e não resiste à crítica kantiana, o
pensamento nos ultrapassa. Nenhum de nossos conceitos o representa tal como
é.
... a afirmação objetiva, se é indiferentemente aplicável a todas as
essências finitas, sem exigir nenhuma delas nem excluir tão pouco a
nenhuma, obedece, não obstante, enquanto que expressa o grau de
atualidade dos objetos, a uma lei de progressão rigorosa. Com efeito,
afirmar a matéria (na qual não é possível mais que em virtude de nossa
participação física da mesma ), é ao mesmo tempo afirmar a forma, ato
da matéria; afirmar a essência é indiretamente afirmar o esse, ato da
essência; afirmar o esse finito, ato limitado, é afirmar implicitamente o Ser
puro, perfeição necessária do ato; afirmar o Ato puro como condição
racional suprema, como Ideal por excelência é, logicamente, afirmar Ato
puro como realidade absoluta, porque um Ato puro ideal, que não se
assentara como ato puro real, seria uma potência de atuação declarada
em cima do ato
59
.
58
Cf. CAMPOS. Tomismo Hoje, p.162
59
MARECHAL, op. cit. p.333
64
Segundo Santo Tomás, o valor objetivo ou subjetivo do
conhecimento deve encontrar-se no sujeito mesmo. Um objeto é conhecido
segundo o modo e a medida de sua “interioridade”.
Um sujeito que é o protótipo e o produtor das coisas segundo a
amplitude inteira de seu ser possui em si, eminentemente, a totalidade das
determinações objetivas existentes e possíveis. Mas, uma tal plenitude de
conhecimento não pode pertencer mais que a uma Atualidade pura, pois essa
encerra e domina a infinita extensão do “possível”. Somente em Deus os objetos
conhecidos têm a plena interioridade: a interioridade do efeito em sua causa
adequada. A partir da essência e da existência de Deus podemos medir todas as
coisas. “A inteligência divina é mensurante, não mensurada”
60
.
O conhecimento divino realiza assim o tipo perfeito de intuição,
criadora de seu objeto. Desse modo, pode-se dizer que a forma das coisas está
prefigurada na inteligência divina, e que a existência das coisas esta
predeterminada na vontade divina. “A inteligência divina se entende a não ser
através de sua própria essência”
61
. E essa essência divina não é outra que o Ato
puro de ser, pura Idéia subsistente. O conhecer de Deus é a divina essência; e o
Ser divino é o próprio Deus; pois Deus é essência e seu próprio ser
62
.
60
No original: Intellectus divinus est mensurans, non mensuratus. (TOMÁS DE AQUINO, Summa
contra gentes, I, 44)
61
No original: Intellectus divinus nulla alia specie intelligit quam essentia sua. ( Ibid. I, 53)
62
No original: Intellígere Dei est divina essentia; et divinum esse est ipse Deus; nam Deus est
essentia et suum esse. (Ibid., I, 45, 1)
65
Nessa perspectiva, a inteligência humana, que ocupa o último
degrau, somente não é atualidade pura, mas uma potência sempre em ato: uma
inteligência afetada de passividade.
Assim, não percebemos diretamente, em si mesma, as formas ou
idéias subsistentes, o mundo imaterial não se revela mais que através da analogia
da matéria. E ainda que nossa inteligência participe da Inteligência divina, ela não
goza, de nenhuma maneira, nem em nenhum grau dessa visão objetiva em Deus.
Contudo, uma faculdade não-intuitiva, que o possui em si, por
natureza ou de origem, todos os elementos objetivos de sua atividade
cognoscitiva, deve buscar outro complemento que lhe falta: deve receber
extrinsecamente determinações objetivas, ou seja, deve ser impressionada desde
fora e reagir somente sob a dependência imediata dessa impressão sofrida, o que
é o próprio da sensibilidade.
E, por causa disso, uma sensibilidade não pode ser mais que
material, corporal, porque a recepção externa de uma impressão implica, entre o
agente e o paciente, uma potencialidade na continuidade da matéria
63
.
Porém, de outro lado, uma faculdade espiritual não pode
apresentar os atributos materiais de uma sensibilidade. Assim, a nossa faculdade
dos conceitos, faculdade do universal , é com certeza uma faculdade espiritual:
sua operação própria a eleva claramente acima da matéria concreta. Mas, agora é
preciso conciliar , na unidade de uma mesma consciência, a espiritualidade
63
Cf. MARECHAL., op. cit., p.339
66
(espontaneidade intelectual) com a passividade material (receptividade sensível )
64
.
Tal conciliação desses atributos é possível na teoria do
entendimento-agente.
65
É necessário de fato, conservar na inteligência imaterial
sua espontaneidade, mas, ao mesmo tempo, é necessário coordenar uma
faculdade receptiva, sensível e material. A faculdade intelectual deve, por
necessidade da natureza, relacionar sua atividade imanente com os caracteres
formais da atividade sensível, o qual se concebe a partir da unidade substancial
estrita de um sujeito sensitivo-racional.
Nossa inteligência possui, pois, por natureza, os princípios
transcendentais que permitem reconstruir uma unidade ‘inteligível em ato’
sobre o modelo de uma representação concreta, que não é inteligível
mais que em potência. O qual eqüivale dizer, na terminologia moderna,
que a inteligência encerra uma ‘condição sintética a priori’ , inquantitativa
e meta sensível, que, sem embargo, não entra no jogo mais que com o
favor de uma cooperação atual da sensibilidade. A cooperação sensível
completa materialmente as determinações transcendentais, inatas à
inteligência, permitindo-lhes assim expressar-se em representações
objetivas
66
.
A partir da interioridade intuitiva, perfeita, própria do Ato Puro, a
inteligência humana traz em si um modo transcendental de unidade que exige
uma matéria onde aplicar-se. A inteligência humana, em possessão natural, mas
não objetiva, enquanto ser, está limitada extrinsecamente por “coisas em si”
donde deve para passar ao ato objetivo, assimilar-se, por através dos sentidos, as
aportações sucessivas.
64
Cf. Ibid., p.339
65
Cf. Ibid., seç. II, c.3 .p.340
66
Ibid., p.341
67
Mas, em vista que os dados materiais da coisa em si não iguala a
potência à inteligência, na realidade, o que encontramos são conceitos
defeituosos e inacabados. A inteligência, ao produzi-los, não alcança o limite de
sua própria potência.
2.3 - Relação reciproca dos atos primeiros da inteligência
e da vontade
É evidente que este preâmbulo refere-se a toda operação de uma
potência que, ao apresentar uma parte de passividade, deve ser movida a seu
ato ou, como se dizia precedentemente, que por si mesma fica indeterminada
diante da sua diversidade.
Assim, para se tratar o problema inteiro do movimento requerido
por nossas faculdades é necessário considerar os atos da inteligência e da
vontade desde o primeiro momento não menos que os seguintes, tanto do ponto
de vista do exercício quanto do ponto de vista da especificação.
Aplicada esta questão por Santo Tomás as res naturales, isto é,
seja aos agentes inconscientes, seja aos agentes capazes de conhecimento, mais
que operam por modo natural, sem ser guiados atualmente, em sua ação, por um
conhecimento prévio. Na realidade todo movimento impresso nas diversas
potências da alma, se funda nos princípios reciprocamente primeiros: um principio
especificante (forma) que é obra da inteligência, e um principio dinâmico
68
(exercício) que é obra da vontade, de tal maneira que, na relação imanente das
faculdades, inteligência e vontade, não há espaço à prioridade racional
67
.
Na realidade, este argumento se funda nas propriedades
intrínsecas e objetivas da verdade e do bem, objetos formais respectivos da
inteligência e da vontade, e não sobre as circunstâncias de que a verdade seja
livremente requerida e o bem previsto como tal. A raiz psicológica da
reciprocidade entre as operações consiste, pois, na unidade natural da
inteligência, potência ilimitada de assimilação de formas e da vontade, apetite
universal do bem
68
.
Tal inclusão mútua dessas duas potências encontra-se, não
somente na alternância de suas operações respectivas, mas também e de forma
mais forte, na relação complementar e interdependente de seus atos primeiros.
Visto que a vontade, como apetite ilícito, regula sua operação pelo
bem objetivamente conhecido, a primeira operação da vontade pressupõe uma
intelecção que a especifique, ou seja, uma condição de natureza anterior a toda
operação. É evidente que a inteligência mesma encontra-se especificada pelo
objeto que ela apreende; mas como esta apreensão intelectual do objeto é
atividade e não pura passividade de uma forma, mas de uma matéria, é
necessário que exista antes do primeiro ato de apreensão objetiva da inteligência
uma determinação formal própria, uma espécie de “ato primeiro formal” que possui
por natureza, isto é, uma causa universal
69
.
67
MARECHAL, El punto de partida de la metafisica, III, p.382
68
Ibid., p.383
69
Ibid., p.384
69
De fato, essa moção formal é logicamente prévia à impressão
externa, direta ou indireta, do objeto. Resulta quase supérfluo notar que essa luz
inteligível, forma inata de nosso entendimento, designa identicamente este ato
primeiro formal.
Sob o movimento transcendente, nossa inteligência é , pois, base
de uma primeira especificação natural, por meio do qual passará ao ato segundo,
em que as condições extrínsecas de uma operação lhe sejam oferecidas. O ato
primeiro de nossa inteligência consiste nesta especificação primitiva.
Portanto, nossa natureza intelectual, antes de qualquer ato ilícito,
deve apresentar em si mesma, isto é, na unidade correlativa da inteligência e da
vontade consideradas segundo seus atos primeiros respectivos, “uma condição a
priori, uma vez formal e dinâmica, a saber: a capacidade e o desejo, igualmente
ilimitados, do ser (ens)”
70
.
Assim, a inteligência, ao encontrar um dado externo, passa ao ato
segundo por meio do movimento formal deste dado e sob o impulso permanente
do apetite natural, uma determinação particular, positiva, se encontra subsumida
pela forma universal do ser, a qual é exigência de todas as determinações
possíveis. o objeto se destaca e é representado na consciência. E esta
representação objetiva, traz para a faculdade dinâmica do apetite uma nova
especificação, um novo ponto de partida formal.
À medida que, sob a invasão incessante dos dados exteriores, os fins
parciais e as especificações particulares da tendência racional se
multiplicam, a potencialidade ou a indeterminação inicial desta se reduz.
Porque em uma faculdade espiritual nada se borra; a ciência adquirida
70
Ibid., p.388
70
que persiste em nossa inteligência no estado de ‘hábito’, é, por assim
dizer, uma segunda natureza, interposta entre o ato primeiro e os atos
segundos: é o surdo gravitar do passado sobre a atividade presente. O
‘hábito’ se acrescenta à forma natural da cada potência, para influenciar
por antecipado todo exercício desta
71
.
Nesse contexto, toda a atividade intelectual mesma é um
“acontecer”, “movimento assimilador”, que se propaga indefinidamente através das
formas acumuladas e conduz à verdade total, fim último da inteligência; tudo o
que concerne a atividade da inteligência se refere à ordem do exercício, ou da
causa final: pois, é obra do apetite racional seja como vontade natural, seja como
vontade propriamente dita, ou como vontade ilícita
72
.
Ao contrário, tudo o que nestas operações, como também na
atividade voluntária, é determinação, especificação, e não exercício, tudo isto com
certeza, refere-se a ordem da causa formal, nunca ao apetite como tal, o qual não
especifica nada. A vontade, quando impõe a ação determinações formais,
empresta seu dinamismo às determinações formais da inteligência. Assim, a
inteligência, por sua parte, se inserta, como forma, seja natural, seja intencional,
na finalidade ativa do sujeito, neste dinamismo que parte inicialmente do
movimento do Ato criador e que se prolonga na vontade propriamente dita:
“vontade e intelecto se incluem mutuamente”
73
.
Contudo, exercício e especificação, se identificam em Deus,
em quem a essência é o operário mesmo e o ser mesmo: em qualquer outro caso
estas funções, ainda que inseparáveis, se opõem relativamente e são, pois,
realmente distintas.
71
Ibid., p.389
72
Cf. MARECHAL., op. cit., p.390
73
TOMÁS DE AQUINO,Suma Teológica, I, q.16, a.4, ad 1m.
71
2.4 - O princípio inicial do dinamismo intelectual
A natureza da potência que revela a análise do movimento como
tal, embasa a correlação que existe entre o primeiro princípio e último da atividade
intelectual. A potência se baseia sempre num ato, que é logicamente prévio, e se
mede pela virtualidade produtora inerente a este ato, pois ela, longe de identificar-
se com o não-ser , designa uma aptidão positiva para o ser, uma exigência de
ser.
Assim, a potência objetiva, a possibilidade de ser, se concebe em
função da potência criadora, isto é, como virtualidade objetiva do ato divino.
Da mesma maneira, a matéria mesma , isto é, a potência subjetiva
intraessencial, princípio potencial do seres quantitativos, se concebe como um
apetite da forma, e, pela forma, como um apetite do ser ou do bem. Um apetite
de ser ou de forma significa ontologicamente a condição criada pelo movimento
prévio de um ser ou de ato.
Ou melhor, potência, é pois, a condição objetiva criada pelo
impulso original do Ato a comunicar-se direta ou indiretamente: no princípio
primeiro de toda potencialidade há uma vontade criadora
74
.
No exercício de nossas faculdades racionais percebemos a
passagem da potência ao ato e o impulso que ultrapassa o momento presente.
74
Cf. Ibid., p.408
72
Assim, São Tomás reconhece nelas as correlações essenciais a todo acontecer.
Se como foi afirmado o principio primeiro e o fim último são correlativos, logo o
intelecto agente, em um móbil é o impulso recebido do motor, é, portanto, o
principio do movimento
75
.
Visto que o fim último da atividade intelectual se confunde com o
fim último da atividade voluntária e que essas atividades se complementam
reciprocamente no caminho de todo o seu desenvolvimento como a ‘forma de um
dinamismo’ e o ‘dinamismo de uma forma’, é preciso concluir necessariamente
que essas faculdades racionais nascem de uma origem comum. Buscar o principio
original de uma é buscar o principio original da outra
76
.
Nossa vontade procede, pois, segundo Santo Tomás, de uma
virtualidade natural. Assim, essa coincide exatamente, no seu pensamento com o
primeiro princípio, a atividade total do sujeito inteligente. E esse dinamismo
radical e natural, que se estende na atividade propriamente voluntária, é o mesmo
precisamente que sustenta, como apetite natural, a atividade especulativa da
inteligência.
Tal dinamismo inicial, tanto intelectual como voluntário, depende
de uma virtualidade que vem pela natureza e que é imposta ao agente. Isso
porque a espontaneidade e a autonomia perfeitas não podem pertencer mais que
um agente cujo o ato não está limitado por nenhuma potência. Sendo o ato de ser
o fundamento de todo ato, a um agente cuja a mesma essência seja o ser,
75
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica,I, q.12, a.1, in c.
76
Cf. MARECHAL., op. cit., p.410
73
somente Deus, por conseguinte, goza de plena espontaneidade e de completa
autonomia.
A potência ao se misturar com o ato e a essência opõe-se
complementariamente ao ser, a espontaneidade é reduzida, ou seja, uma
participação limitada do ser; agentes inferiores ao Ser Absoluto, como a
inteligência e a vontade.
Entretanto, esta inclinação natural, que a vontade tem
originariamente de Deus, não apresenta nenhuma violentação exterior: “mover-se
voluntariamente é mover-se por si mesmo, isto é, a partir de um princípio
intrínseco; mas este princípio intrínseco pode ser de outro princípio extrínseco.”
77
Portanto, a autonomia da vontade é real, mas somente parcial e
relativa, que não exclui o movimento transcendente da causa primeira. Esse
movimento constitui precisamente a virtualidade natural que precede e sustenta
todo ato elícito da vontade. Ela possui um dinamismo natural através de um poder,
em virtude da inteligência por uma moção superior que, dada a universalidade de
seu objeto, não pode ser mais que uma moção divina.
Toda essa teoria do impulso primitivo da vontade representa na
realidade uma aplicação dos axiomas escolásticos que exigem que toda potência
se apoie sobre um ato, onde se mede e fundamente sua realidade, e que toda
potência, enquanto potência não tenha a possibilidade de atuar-se por si só. Se
77
No original: Moveri voluntarie est moveri ex se, id est a principio intrinseco; sed illud principium
intrinsecum potest esse ab alio principio extrinseco. (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica,I,
q.105, a.4)
74
requer, pois, um ato como fundamento último da toda possibilidade ontológica e
como princípio primeiro de toda atuação. Logo, um ato somente realiza esta dupla
condição universal, o Ato Puro e simples, Deus. Nossa natureza intelectual, como
princípio radical de atividade imanente, é, pois, uma participação finita dessa
atualidade infinita.
Nesse ponto, considera agora Marechal essa atividade na
perspectiva da forma absolutamente primitiva onde o ato primeiro intelectual é a
forma universal e abstrata de ser.
Nessa condição, a forma não representa ainda um objeto, nem
sequer virtual, mas somente a forma de uma virtualidade assimiladora, uma
condição formal a priori que regula nossa apreensão de objetos eventuais. Para
objetivar-se na consciência, é preciso que encontre, em primeiro lugar, uma
matéria sensível, um inteligível em potência. Mas, de onde vem ao sujeito
inteligível este princípio formal, que condiciona todas suas intelecções
particulares?
78
Para entendermos o que consiste esse movimento transcendente é
preciso reconhecer na base mesma de nossas intelecções sucessivas, um poder
ativo , sempre em ato, o entendimento-agente. Santo Tomás, ao refutá-lo mostra
que esse deve ser inerente a cada inteligência, visto que a atuação universal e
permanente de nossas inteligências imperfeitas, isto é, a atualidade mesma do
entendimento-agente, sua espontaneidade natural, não se concebe mais que pela
influência incessante de uma atividade superior, única e perfeita. O entendimento-
78
Cf. MARECHAL, op. cit., p.415
75
agente leva os indivíduos à participação da Inteligência Pura, Ato Supremo e
Primeiro.
Contudo, pois, algo que represente, em nossa inteligência, a
participação no poder intuitivo da inteligência absoluta, esta é posse virtual dos
primeiros princípios, dos princípios do ser. É pela intelecção imediata, ou melhor
pela intuição dos primeiros princípios que nossa razão, discursivamente e não
discernindo o inteligível mais que no sensível, participa em algo da simplicidade da
inteligência pura
79
.
No entanto, esses primeiros princípios do ser não são
encaminhados de fora através da experiência sensível, mas essa somente os
levam a tomar corpo nas representações objetivas. E , ao mesmo tempo, isso é
realizado em nós analogamente e afastado da inteligência absoluta, onde se
compreende a plenitude do ser e se realiza a verdade primeira e perfeita.
A natureza mesma da faculdade intelectual e seu poder de
conhecer inteligivelmente. Antes de toda atividade elícita, recebe a Inteligência
Absoluta. O que quer dizer que a natureza seja ativa ou passiva, é uma
propriedade essencialmente ligada à imaterialidade da forma. A forma é de si
infinitamente acolhedora e é translúcida não menos que luminosa; toda opacidade
do inconsciente provém da matéria. De Deus recebemos nossas faculdades
intelectivas, ou seja, a substância imaterial da forma que nos anima
80
.
Sua determinação formal primordial, primeiramente simples lei de
sua potência aquisitiva ilimitada, mais que no contato com os dados externos, vai
79
Cf. Ibid., p.418
80
Cf. Ibid., p.419
76
projetando-se imediatamente como um ato de inteligibilidade. Tal forma objetiva
primordial refere-se aos primeiros princípios inteligíveis, na condição de um
implícito vivido: único movimento intelectual que não tem sua fonte na passividade
de nossa inteligência imperfeita frente a objetos externos.
Assim, segundo Marechal e fundamentado em Santo Tomás é
possível afirmar que o homem recebe alguma participação da verdade divina, das
idéias divinas, admitindo não mais que uma participação limitada aos “primeiros
princípios inteligíveis” - aos atributos transcendentais do ser
81
.
Aliás, essa participação, significa uma disposição natural de
ordem dinâmica necessitada de um complemento material, em que os “primeiros
inteligíveis” se imprimem primeiramente em nosso eu, como a forma vivida de uma
tendência, isto é, revelando-se, por conaturalidade, nos objetos mesmos que
compõem o exercício concreto desta tendência.
Um absoluto sustém nosso ser, um princípio radical está na
origem de nossos atos, um ato precede toda forma. Numa metafísica existencial
não se pode então parar aos aspectos formais da vida, mas é preciso ir até a
procura e determinar sua conduta diante da existência da causa universal.
Partindo da forma, é preciso progredir até a afirmação do Ato puro.
81
Ibid., p.419
77
CAPÍTULO III
A QUESTÃO TRANSCENDENTAL KANTIANA
O eu empírico está relacionado com o eu transcendental de igual
modo que a apercepção empírica está com a apercepção pura ou originária. O
primeiro está constituído pelas determinações concretas do sentido íntimo; o
segundo se confunde com o eu penso, suprema unidade a priori de toda
representação consciente. O primeiro se inserta no tempo e, por conseguinte,
pertence à série dos fenômenos: é a única expressão objetiva do segundo, que
segue sendo, por si mesmo, pura espontaneidade.
A doutrina que acabamos de resumir suscita um conjunto de
problemas: o principal concerne à unidade destes dois eus pela consciência.
Mas, como pode o eu do eu penso ser distinto do eu que se intui a
si mesmo (eu empírico), e, sem embargo, não formar com ele mais que um
mesmo sujeito? Em outros termos: como pode dizer que eu, enquanto inteligência
e sujeito pensante, me conheço como objeto pensado, somente de igual modo
que conheço os demais fenômenos, ou seja, não tal como sou ante o
entendimento segundo minha realidade metasensível, senão tal como me apareço
como fenômeno?
78
Diante desta questão, de um lado, o eu empírico é posto no plano
dos fenômenos, é um eu-objeto. Mas o fundamento imediato do fenômeno não é
outro que a coisa em si. O eu profundo, transcendental, princípio e sustento do eu
empírico, se confunde, deste ponto de vista, com a coisa em si. De outro lado,
Kant supõe, entre o eu transcendental e o eu empírico, uma relação de identidade,
segundo sua subjetividade comum, isto é, o sentido interno dominado pelo eu
transcendental, é o eu afetado por si mesmo: o eu determinante e o eu
determinável são dois aspectos do mesmo eu. Mas então, se o eu empírico está
em mim como meu e mais ainda se é percebido como meu segue sendo puro
fenômeno? Para aparecer como um eu, ou seja, como uma agrupação qualquer
de fenômenos, não deve oferecer a consciência imediata em uma espécie de
percepção reflexiva, equivalente a uma intuição intelectual o eu superior,
originário e determinante, ademais das representações concretas do sentido
interno?
Kant responde, descartando a intuição intelectual, mas não toda
capacitação metaempírica do eu:
Na unidade sintética originária de apercepção (função suprema do eu
transcendental), tenho consciência de mim, mas não tal como apareço,
nem tal como sou em mim mesmo (quer dizer, nem como fenômeno nem
como coisa em si): somente tenho consciência de que existo. Esta
representação é um pensamento que reduz os elementos diversos de
toda intuição possível a uma unidade da apercepção, um determinado
modo de intuição em virtude do qual são dados estes elementos diversos,
[...] a determinação de minha existência somente pode ter lugar segundo
a forma do sentido interno e de acordo com a maneira particular em que
os elementos diversos que enlaço vem dados na intuição interna; por
conseguinte, não me conheço de modo algum como sou unicamente
como me apareço a mim mesmo. Assim, pois, eu existo como uma
79
inteligência que tem simplesmente consciência de sua faculdade de
síntese
82
.
Na verdade, comenta Marechal, que Kant não exclui a percepção
metasensível de nossa própria existência - toda determinação formal da essência:
a inteligência tem simplesmente consciência de sua faculdade de síntese; quer
dizer, que a inteligência se percebe a si mesma, não certamente como fonte
permanente de unidade o qual equivale a um conhecimento da sustância do eu
senão como ato transcendental de síntese, ato superior ao tempo, ao que
determina a priori a elaboração do eu empírico. Firmo a existência, enquanto
percebo, através das agrupações espaço-temporal do eu empírico, o exercício
atual de uma síntese a priori. “Eu: simples representação, por si mesma vazia de
todo conteúdo, de que nem sequer se pode dizer que seja um conceito, senão que
é uma simples consciência que acompanha a todos os conceitos.”
83
Portanto, o eu abarca todos os fenômenos, e não somente os do
sentido interno; porque todos os fenômenos pertencem, desde o momento em que
82
No original: En la unidad sintética originaria de la apercepcíon [ funcíon suprema del yo
transcendental], tengo conciencia de mi, pero no tal como me aparezco, ni tal como soy en mi
mismo [ es decir, ni como fenômeno ni como cosa en si]: solamente tengo conciencia de que
existo. Esta representacíon es un pensamiento que reduce los elementos diversos de toda intuicíon
posible a la unidad de la apercepcíon, un determinado modo de intuicíon en virtud del cual son
dados estos elementos diversos [...] La determinacíon de mi existencia sólo puede tener lugar
según la forma del sentido íntimo y de acuerdo com la manera particular en que enlazo vienen
dados em la intuicíon interna; por consiguiente, no me conozco en modo alguno como soy sino
únicamente como me aparezco a mismo. Así , pues, yo existo como una inteligencia que tiene
simplemente consciencia de su faculdad de sintesis. (MARECHAL, Joseph. El punto de partida
de la Metafísica, II, p.105)
83
No original: Yo: simple representacíon, por misma vacía de todo contenido de la que ni
siquiera se puede decir que sea um concepto, sino que es una simple conciencia que acompaña a
todos los conceptos. (KANT, KRV, B, p.404)
80
emergem, à unidade universal da consciência. Se estabelece, dessa forma,
distinção de graus nesta pertença o grau da sensação externa, o do sentido
interno, o dos conceitos do entendimento nenhuma destas diferenças de grau
corresponde a separação eu não-eu. Portanto, é na órbita da consciência e, por
assim dizer, do eu mesmo, de onde será preciso descobrir a oposição eu não-
eu, que então adquire os caracteres de uma oposição imanente de sujeito e
objeto.
No entanto, a união dos dois eus em um eu pela consciência do
sujeito não é um problema tão fácil de resolver. Assim, Kant, de acordo com o
sentido comum, começa a supor o resultado do problema. Coloca de golpe o
desenrolar da reflexão crítica no marco de um individual, todavia indiviso. Afirma e
reafirma, sem provas, a radical unidade do sujeito sensitivo-racional.
O homem consciente da mudança (de seu pensamento), pode ainda
pretender que é um somente e o mesmo sujeito (enquanto a alma)? A
questão é impertinente; porque não adquire consciência dessas mudança
senão representando-se a si mesmo como um sujeito idêntico na
diversidade de seus estados. Certamente, o eu do homem é duplo
enquanto a forma (que dizer, enquanto ao modo de representação que
dele se faz), mas não enquanto a matéria
84
.
Para demonstrar, com absoluto rigor crítico, esta proposição (que
afirma algo mais que a unidade lógica da consciência) é necessário supor na
atividade intuitiva do eu empírico uma capacitação direta ou indireta do princípio
sintético originário, (do eu determinante) que a impõe.
84
No original: El hombre consciente ( de los) cambios ( de su pensamento), ¿ puede aún pretender
que es un solo y el mismo sujeto ( em cuanto al alma)? La cuestíon es impertinete; porque no ha
adquirido conciencia de esos cambios sino representándose de sus estados. Ciertamente, el yo del
hombre es doble em cuanto a la forma (es decir, en cuanto al modo de representacíon que de él se
hace), pero no en cuanto a la materia. (KANT, Antropologia, § 4, nota final)
81
Na perspectiva marechaliana, o eu transcendental deve conceber-
se, não somente como unidade lógica de nossas apercepções particulares, nem
unicamente como pedra angular do edifício das condições a priori, senão como
um pensamento capaz de captar-se a si mesmo, em sua ordem, segundo o
atributo essencial que o constitui em princípio originário de síntese. Ou seja, o eu
transcendental deve conceber-se, não somente como pensamento, senão como
espírito. Sobre o plano mesmo do eu penso (excluindo o plano da coisa e dos
fenômenos), o eu sou, essência e existência conjuntamente, se introduz aqui na
filosofia transcendental.
Mas esta interpretação hipotética sobrepassa, evidentemente, a
doutrina consignada na Crítica da Razão Pura.
Outra questão: a consciência que, segundo Kant, adquire-se do eu
transcendental como pura existência deve traduzir-se em uma afirmação
categorial ou metacategorial? Somente poderia ser categorial se a existência
afirmada estivesse representada no tempo como fenômeno, mas então, seria a
existência de um eu empírico, não de um eu transcendental. Assim, a Crítica nos
propõe a afirmação metacategorial de uma existência desprovida de toda
determinação categorial de essência e de modalidade. Neste sentido, Kant
escreve assim em 1793:
82
...do sujeito aperceptivo, do eu lógico enquanto representação a priori,
não há nada mais que conhecer: nem sua essência, nem sua
constituição natural; este eu é (para nós) algo análogo a (o que seria) a
substância, despojada de todos os acidentes que lhe foram inerentes, e
subtraída assim absolutamente a todo conhecimento ulterior, posto que
os acidentes seriam precisamente os que nos fariam cognoscível
85
.
Deste modo, conhecer o eu, abstração feita de toda determinação
particular, é conhecer o sujeito como é em si na pura consciência, não como
receptividade, senão como pura espontaneidade. A consciência do eu
transcendental se obtém, pois, por uma espécie de redução fenomenológica a
partir do eu-objeto (do eu empírico).
3.1 - A bipolaridade do objeto
Não conhecimento objetivo sem uma intuição
86
em virtude da
qual nos seja dado um objeto. A mesma declaração se faz no começo da Lógica
transcendental. Para conhecer um objeto não basta pensá-lo mediante conceitos,
é necessário ter intuição dele.
“O objeto é aquele cujo conceito reúne os elementos diversos de
uma intuição dada (literalmente: aquele em o conceito do qual está unificado o
diverso de uma intuição dada)”
87
.
85
No original: ...del sujeto aperceptivo, del yo lógico en cuanto representacíon a priori, no hay nada
más que conocer: ni su esencia, ni su constituicíon natural; este yo es [ para nosostros] algo
análogo a [ lo que seria] la sustancia, despojada de todos los accidentes que le fueran inherentes,
y sustraída así absolutamente a todo conocimiento ulterior, puesto que los accidentes serían
precisamente los que nos harían cognoscible. (MARECHAL, op.cit., p.112)
86
A intuição em Kant significa o modo como se refere imediatamente aos objetos e ao qual tende
como um meio de pensamento.
87
MARECHAL, op.cit. , p.114
83
Portanto, para constituir um conhecimento objetivo, é necessário
que um conteúdo intuitivo no homem, um conteúdo de intuição sensível
(receptiva) seja unificado no conceito, quer dizer, referido, mediante alguma das
categorias, à unidade da consciência. Pode-se ver que a definição kantiana
suspende o objeto de consciência entre dois pontos fixos e, por assim dizer, entre
dois pólos opostos: por um lado, através das categorias a unidade suprema do eu;
por outro, através da intuição sensível.
Nossa natureza quer que a intuição não possa ser nunca (para nós),
senão sensível, quer dizer, não contenha outra coisa que a maneira como
somos afetados pelos objetos [...] Sem a sensibilidade, nenhum objeto
nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado Os
pensamentos sem matéria são vazios; as intuições sem conceitos o
cegas
88
.
Portanto, Kant ao opor a intuição e o pensamento formal, pensa
menos em caracterizá-los, respectivamente, pela presença ou a ausência de um
conteúdo representativo, que em subtrair uma determinada qualidade de evidência
possuída pelo conteúdo intuitivo em virtude de sua mesma origem. Na intuição
88
No original: Nuestra naturaleza quiere que la intuicíon no pueda ser nunca ( para nosostros), sino
sensible, es decir, no contenga outra cosa que la manera como somos afectados por los objetos
[...] Sin la sensibilidad, ningún objeto nos seria dado; sin el entedimiento, ninguno seria pensado.
Los pensamientos sin materia son vacios; las intuiciones sin conceptos son ciegas. ( KANT, KRV,
A, p.51; B, p.75)
84
intelectual o conteúdo (determinado completamente a priori, como essência e
existência), se impõe de maneira apodíctica, como produção autônoma do sujeito.
Na intuição sensível, o conteúdo é dado primitivamente; se impõe também, mas
desde fora, por uma coação obscura. Assim, pois, de uma e outra parte, a intuição
estabelece originariamente um contato vital, um vínculo existencial entre a
consciência formal e algo absoluto, indiscutível, que reside, por cima e por fora da
hierarquia das formas. A intuição sensível é, pois, fator de objetividade, como
ministradora de conteúdo quanto como apreensora de realidade, ou seja, como
reflexo subjetivo de uma coisa em si.
Semelhante interpretação de diversos textos kantianos é plausível,
à condição de que não se introduza a coisa em si, como termo, nas relações de
verdade objetiva de que pode ocupar-se a Crítica; mas nada impede que essas
relações imanentes tenham um ponto de vinculação extrínseco e absoluto na
coisa em si.
Se os objetos de que se ocupa nosso conhecimento fossem coisas em si,
não poderíamos ter deles conceitos a priori. Efetivamente, de onde os
sacaríamos? [...] Pelo contrário, se não podemos entendê-los de modo
algum mais que com os fenômenos, não somente é possível, senão
necessário, que determinados conceitos a priori precedam ao
conhecimento empírico dos objetos. Com efeito, como os fenômenos,
constituem um objeto que somente existe em s, posto que uma pura
modificação de nossa sensibilidade nunca se encontra fora de nós. Agora
bem, esta mesma consideração, a saber, que todos os fenômenos em
questão, e consequentemente todos os objetos de que podemos ocupar-
nos, residem em mim, quer dizer, são determinações de meu eu idêntico
faz ressaltar a necessidade de uma unidade perfeita destes fenômenos
em uma só e a mesma apercepção. Mas nesta unidade do conhecimento
85
possível consiste precisamente a forma de todo conhecimento de objetos
(aquele em virtude do qual o diverso é pensado como pertencente a um
objeto).
89
O modo segundo o qual o diverso da representação sensível
(intuição) pertence à unidade de uma consciência precede, pois, a todo
conhecimento objetivo, como sua forma intelectual, e constitui um conhecimento
formal a priori de todos os objetos em geral, enquanto objetos pensados
(categorias). Assim, pois, os conceitos puros do entendimento são possíveis a
priori e inclusive necessários, por relação à experiência. Isso pela razão de que
nosso conhecimento não abarca senão fenômenos, cuja possibilidade reside em
nós, e cujo encadeamento e unidade (na representação de um objeto) unicamente
se encontram em nós. Portanto devem preceder a toda experiência, fazendo-a
primeiramente possível enquanto a forma
90
.
O tom idealista desta explicação não pode deixar de impressionar.
Afirma-se, não somente que o objeto está constituído por fenômenos, senão que
as condições que erigem o fenômeno em objeto, dentro da imanência do sujeito,
são as mesmas que referem esses fenômenos à unidade do eu aperceptivo: os
89
No original: Si los objetos de que se ocupa nuestro cooncimieto fuesen cosas em si, no
podríamos tener de ellos conceptos a priori. Efectivamente, ¿ de dónde los sacaríamos? [...] Por el
contrario, si no podemos entendérnoslas em modo alguno más que com los fenómenos, no sólo es
posible, sino necesario, que determinados conceptos a priori precedan al conocimiento empíricode
los objetos. En efecto, como fenómenos, constituyen un objeto que sólo existe em nosostros,
puesto que uma pura modificacíon de nuestra sensibilidad nunca se encunetra fuera de nosostros.
Ahora bien, esta misma consideracíon, a saber, que todos los fenomenos en cuestíon, y
consiguintemente todos los objetos de que podemos ocuparnos, residen en mí, es decir, son
determinaciones de mi yo idéntico, hace resaltar la necesidad de una perfecta de estos fenómenos
en una sola e la misma apercepcíon. Pero en esta unidad del conocimiento posible [ el subrayado
es nuestro] consiste precisamente la forma de todo conocimiento de objetos (aquello en virtud de lo
cual lo diverso es pensado como perteneciente a un objeto). KANT, KRV, A, p.129.
90
Cf. Ibid., A, p.130
86
fenômenos constroem objetos porque encontram no sujeito consciente as
condições a priori (permanentes) de sua própria possibilidade como fenômenos.
Na unidade da consciência possível consiste a forma de todo
conhecimento de objetos, isto é, aquele em virtude do qual o diverso da
sensibilidade é pensado como pertencente a um objeto.
Assim o objeto imanente, ainda quando exija um conteúdo de
origem intuitiva, recebe sua forma de objeto unicamente da espontaneidade
intelectual do sujeito. Os Prolegômenos, apesar da visível preocupação por
apartar a acusação de idealismo, contém mais de uma passagem que refere de
maneira especial à objetividade do objeto, à unidade superior da apercepção.
Assim atesta, entre outros, este texto:
Toda experiência contém, ademais da intuição sensível pela que algo
vem dado, o conceito de um objeto (que seja) dado como fenômeno
nessa intuição: há, portanto, conceitos de objetos em geral que, como
condição a priori, servem de fundamento a todo conhecimento da
experiência
91
.
Pensar em geral algo como objeto é assim a função dos conceitos
a priori. Também as categorias se definem como conceitos de um objeto em geral,
mediante os quais a intuição sensível do dito objeto é considerada como
determinada por relação a uma das funções lógicas do juízo.
91
No original: Toda experiencia contiene, además de la intuicíon sensible por la que algo viene
dado, el concepto de un objeto ( que sea) dado como fenómeno en esa intuicíon: hay, por tanto,
conceptos de objetos en general que, como condicíon a prori, sirven de fundamento a todo
conocimiento de experiencia. (KANT, KRV, A, p.93; B, p.126)
87
Isso resulta na compreensão de que o entendimento é
essencialmente uma faculdade objetivadora, que põe o objeto em gênero; que a
intuição sensível, captação puramente material de uma realidade em si, não
oferece a nós conhecimento do objeto em geral mais que uma diversidade
particularizante.
Isso apóia-se na observação da estreita relação que Kant
estabelece entre a objetividade e a universalidade de um conteúdo de
consciência. A representação sensível se objetiva subordinando-se a um conceito
universal: a universalidade é sinal de objetividade.
Estes últimos não exigem nenhum conceito puro do entendimento,
senão unicamente o vínculo lógico que associa as percepções na unidade de um
sujeito pensante. Os primeiros, pelo contrário, exigem sempre, as representações
de uma intuição sensível, conceitos especiais, originários do entendimento, que
fazem precisamente que o juízo da experiência seja objetivamente válido. Todos
nossos juízos o primeiramente simples, juízos de percepção, válidos para nós
somente, isto é, para nós enquanto sujeitos; unicamente depois os assinalamos a
uma nova relação – relação a um objeto – e pretendemos que (o juízo) seja válido,
não somente para nós em qualquer tempo, senão também para todos.
Efetivamente, se um juízo concorda com um objeto, todos os
juízos pronunciados sobre esse mesmo objeto devem assim concordar entre si;
deste modo, o valor objetivo do juízo da experiência não significa outra coisa que
o valor universal e necessário do juízo. Mas inversamente, se alguma razão
para considerar um juízo como universal e necessário, deve-se, por ele mesmo,
88
reconhecer que é objetivo, quer dizer, que não expressa somente a relação de
uma percepção a um sujeito, senão uma determinação constitutiva de um objeto
92
.
Desta forma, a universalidade e a necessidade de um juízo, seu
valor transubjetivo é independente dos sujeitos particulares. O valor transubjetivo
funda-se, no sujeito transcendental, na aprioridade, fonte de universalidade; esse
mesmo valor transubjetivo está fundado, fora do sujeito, nas coisas em si, único
fundamento (ontológico) concebível da verdade transubjetiva dos juízos.
Consequentemente, a coisa em si aparece aqui como a ratio essendi postulada
pela universalidade do conceito objetivo.
Assim, pois, vemos que, na noção kantiana de objeto, se verifica
mais de uma vez um desprendimento do centro de atenção para o pólo superior,
aperceptivo. Este passo parece tanto mais significativo quanto a objetividade do
conceito puro, não somente pela relação do conceito a uma intuição empírica
possível, senão também, de maneira mais próxima, pela relação do conceito das
intuições a priori de espaço e tempo, logicamente prévias a toda intuição empírica.
Este aspecto do problema do a priori sensível ocupará nossa atenção
posteriormente.
3.2 - Subsunção formal e ato sintético
Segundo Marechal a idéia de subsunção, quer dizer, uma
concepção essencialmente formal e lógica do transcendental, triunfa em toda
linha. Mas a Dedução Transcendental da segunda edição da Crítica reassume e
92
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafísica, II, p.121
89
reforça o tema da atividade sintética. É interessante investigar o princípio e o
alcance desta viagem.
O princípio não é outro que essa absoluta primazia da síntese
sobre a análise: toda unidade analítica pressupõe uma unidade sintética
correspondente; e a unidade analítica da apercepção pressupõe uma unidade
sintética da apercepção; se a unidade analítica é absolutamente universal, a
unidade sintética será primitiva, originária.
A síntese de que aqui se trata, é considerada como exercício
atual da síntese. O produto concreto da síntese é o primeiro que parece sob a
consciência, que abstrai dela a forma de unidade; mas esta abstração que é
uma reflexão não é possível se a forma de unidade não resulta, em última
análise, de uma condição a priori puramente sintética, que Kant não duvida em
chamar, na linguagem do dinamismo, ação, atividade do entendimento, ato da
espontaneidade do sujeito
93
.
A categoria pressupõe o enlace, isto é a representação da
unidade sintética do diverso. Efetivamente, todas as categorias se fundam em
determinadas funções lógicas de nossos juízos; nestes é pensado um enlace
e, por conseguinte, uma unidade de conceitos dados. Portanto, é preciso buscar
esta unidade, ali onde reside o princípio de unidade dos diferentes conceitos no
seio dos juízos; noutras palavras: o princípio da possibilidade do entendimento,
desde o ponto de vista de seu uso lógico.
93
Cf.Ibid., p.125
90
Assim, pois, a função sintética deve dominar, conjuntamente, o
uso lógico e o uso transcendental do entendimento. A unidade sintética da
apercepção deve suspender todo uso do entendimento, porque este poder
(sintético) é o entendimento mesmo.
Na concepção marechaliana, Kant traça com claridade a
topografia das funções do entendimento, colocando o ato sintético na cúspide.
O princípio (da unidade sintética, necessária da apercepção) não é,
aplicável a todo entendimento possível, senão somente aquele cuja pura
atividade aperceptiva, exercida na representação do Eu sou, não produz
todavia nenhum conteúdo diverso. Um entendimento, no qual o diverso
da intuição seja dado pela simples consciência de si (em outros termos)
um entendimento em que a representação realizaria, ao mesmo tempo,
na existência, os objetos dessa representação; semelhante entendimento
não necessitaria para nada de um ato sintético particular que reduz o
diverso à unidade da consciência.
94
Neste contexto, o (enlace) é um ato de espontaneidade da
faculdade representativa; e, posto que é preciso chamar a esta espontaneidade
entendimento, para distingui-la da sensibilidade; todo enlace, seja ou o
consciente, abarca elementos diversos da intuição ou diversos conceitos; e seja
a intuição sensível ou não, todo enlace é um ato do entendimento. Este ato é
denominado síntese, para dar a entender assim que não se pode representar
nada como compreendido na unidade do objeto sem uni-lo antes no entendimento.
A síntese é a única que não pode ser-nos proporcionada pelos objetos, senão
somente pelo sujeito mesmo, posto que é um ato de sua espontaneidade. É fácil
94
No original: El principio (de la unidad sintética necesaria de la apercepcíon) no es, empero,
aplicable a todo entendimiento posible, sino sólo a aquel cuya pura actividad aperceptiva, ejercida
en la represenrtacíon del Yo soy, no produce todavia ningun contenido diverso. Un entedimiento,en
el cual lo diverso de la intuicíon sería dado por la simple conciencia de si (en otros térrminos) un
entendimiento en el que la representacíon realizaria, al mismo tiempo, en la existencia, los objetos
de esa representacíon; semejante entendimiento no necesitaria para nada un acto sintético
particular que redujese lo diverso a la unidad de la conciencia. (Ibid., p.128).
91
observar aqui que este ato deve ser originariamente um e aplicar-se por igual a
toda síntese, e que a decomposição, a análise, que parece ser seu contrário, a
supõe sempre.
Este texto faz a aplicação do que precede:
Portanto, tenho consciência de um eu idêntico, pela relação à diversidade
das representações que me são dadas em uma intuição, posto que
chamo minhas a todas essas representações, que não constituem mais
que uma (unidade analítica). Agora bem, isto eqüivale a dizer que
tenho consciência de uma síntese necessária a priori destas
representações, e isso é o que constitui a unidade sintética originária da
apercepção, a qual encontram-se submetidas todas as representações
que me o dadas, mas devendo reduzir-se a ela por meio de uma
síntese
95
.
Desta forma, as representações, pelo fato de estar presente na
consciência, encontram-se submetidas à unidade sintética originária da
apercepção, mas que, para ser pensadas objetivamente, devem ser
explicitamente reduzidas a essa unidade originária, em uma síntese consciente.
Esta síntese aclaradora resulta de uma reflexão do entendimento sobre o
processo sintético, profundo e obscuro, que assegura diante das representações
a consciência dotada de unidade.
Em todo sujeito consciente, a unidade lógica geral convêm
indistintamente a qualquer conteúdo de pensamento. De maneira semelhante, a
unidade do eu, como centro universal de referência dos conteúdos de consciência,
95
No original: Por tanto, tengo conciencia de un yo idéntico, por relacíon a la diversidad de las
representaciones que me son dadas en uma intuicíon, puesto que llamo mías a todas esas
representaciones, que no constituyen más que una sola (unidad analítica). Ahora bien, esto
equivale a decir que tengo conciencia de una síntesis necesaria a priori de estas representaciones,
y éso es lo que constituye la unidad sintética originaria de la apercepcíon, a la cual se encuentram
sometidas todas las representaciones que me son dadas, pero debiendo reducirse a ella por medio
de una síntesis. (KANT, KRV, B, § 16, p.135-6)
92
pertence o mesmo a um entendimento intuitivo. Em compensação, a unidade
analítica e a unidade sintética originária da apercepção, se encontram sujeitas a
aquisição de um dado múltiplo. Por conseguinte, ao exercício de uma
sensibilidade não pode convir um entendimento intuitivo, criador de seu objeto. A
função sintética tomando aqui o termo síntese em sua mais ampla acepção, segue
sendo peculiar de um entendimento discursivo; a unidade sintética que produz
denota o caráter fenomênico do objeto assim unificado. Esta discursividade não
deve ser, por necessidade absoluta, espaço-tempo, ainda quando seja na
consciência humana. O princípio mesmo da unidade sintética aperceptiva tem um
alcance radical, sendo que não pode ser de modo algum restringido por nenhuma
classe de dados que tenha de sintetizar.
Neste sentido, Kant não nos oferece mais que um caminho destas
funções superiores de unidade, cuja pura possibilidade resista à necessidade
lógica, a saber: a intuição intelectual. À medida que a idéia de síntese,
primeiramente confinada ao plano da imaginação, invade o nível das categorias, o
plano superior da apercepção, onde a unidade aperceptiva suprema se revela
como atividade aperceptiva originária, o juízo se converte no ato mesmo da
síntese categorial dos fenômenos; o ato que os refere à unidade objetiva da
consciência. Então, a função objetivadora concentra-se no ato sintético: diante dos
elementos estruturais do juízo, somente a pula expressa a condição
transcendental que faz com que a unidade formal dos termos seja objetiva, mais
que subjetiva
96
.
96
Cf. MARECHAL.op.cit.p.134
93
Ainda que não se negue a necessidade de um dado de intuição
sensível para constituir um objeto, se presencia que o valor objetivo será buscado,
cada vez mais, na universal necessidade das condições a priori da representação
e, consequentemente, dependerá, no entanto da origem do conteúdo submetido à
síntese, quanto à prioridade absoluta do ato sintético que impõe uma forma ao
conteúdo. Assim, o objeto é de tipo dinâmico, e a síntese objetiva do dado
adquire, o objeto imanente com caráter de um devir.
3.3 - Significação transcendental do movimento
O devir, isto é, movimento no sentido mais amplo: é aqui um termo
inquietante, quando se pronuncia a palavra crítica. Kant confessa que durante
muito tempo se perguntou se a noção de movimento pertencia à filosofia
transcendental. Ele assinala inclusive a noção de espaço e tempo como uma das
fontes do método dialético inventado por Fichte e organizado por Hegel.
O movimento de um objeto no espaço não pertence a uma ciência pura
nem, por conseguinte, à geometria; porque não podemos saber a priori,
senão unicamente por experiência, que algo é móvel. Mas o movimento
como descrição de um espaço é um ato puro da síntese sucessiva
realizada, pela imaginação produtiva, entre os elementos diversos
contidos na intuição exterior no geral, e (enquanto tal) não pertence
somente à geometria, senão também à filosofia transcendental
97
.
97
No original: El movimiento de un objeto en el espacio no pertenece una ciencia pura ni, por
consiguiente, a la geometria; porque no podemos saber a priori, sino únicamente por experiencia,
que algo es móvil. Pero el movimiento como descripcíon de un espacio es un acto puro de la
síntesis sucesiva realizada, por la imaginacíon productiva, entre los elementos diversos contenidos
en la intuicíon exterior en general, y (en cuanto tal) no pertenece solamente a la geometria, sino
tambíen a la filosofia transcendental. (KANT, KRV., B, § 24, p.155)
94
Quer ele dizer que, a diferença do movimento dos corpos, de que
não temos mais que uma representação empírica, a síntese pura do espaço
segundo o tempo desenrola em nós com a ocasião de toda construção espacial
um movimento de determinações metaempíricas cuja realidade, como
determinação transcendental do sujeito, nos é dada a priori. Nesta ocasião,
recebemos do mesmo Kant a confissão reflexiva da sólida realidade do
movimento, não certamente como modificação ontológica de um sujeito-sustância,
senão como processo necessário de atuação do sujeito transcendental.
No fundo, toda extensão de uma condição a priori (prescindindo
do a priori analítico) a um conteúdo contingente é, de seu, um movimento; por
desvelar no campo mesmo do a priori, uma virtualidade conquistadora, este
movimento de atuação progressiva é uma determinação pura do tempo pela
espontaneidade do sujeito. Assim, pois, ainda que Kant nunca assemelhe o
conceito de movimento a uma categoria, dito conceito, ele participa das
propriedades lógicas dos dados a priori do sujeito cognoscente. Isto é,
determinada espécie deve exigir, enquanto processo imanente do sujeito
transcendental, a mesma afirmabilidade que, como disposições formais desse
sujeito, reclamam os conceitos a priori do entendimento e as intuições a priori da
sensibilidade.
Portanto, é no raciocínio crítico como no objeto da Crítica, que a
síntese avantaja decididamente a análise. Esta primazia absoluta, menos evidente
ao começo do período crítico, se afirma mais na medida que o sistema idealista
kantiano vai concentrando-se em maior massa ao redor da unidade do eu. Ao
mesmo tempo, aparece cada vez mais claro que as relações entre a unidade
95
analítica e a unidade sintética, examinadas nas páginas que precedem, não
colocam unicamente o problema da limitação recíproca de duas unidades formais,
senão também, com maior profundidade, o problema da limitação mútua entre o
ato e a forma na unidade total da consciência.
Ele realiza um cario entre o sujeito transcendental e as coisas em
si. O encontro destas com o sujeito estabelece na consciência um primeiro estrato
de determinações formais: a variedade analítica das sensações. Na continuação
do processo cognoscitivo, esta primeira diversidade qualitativa desempenha
constantemente o papel de objeto, nunca o de sujeito
98
.
Na escalação das determinações formais da consciência, um
segundo estrato vem constituído pelas intuições a priori de espaço e tempo, ou
seja, pelas formas puras da receptividade sensível, oferecidas objetivamente à
consciência, à maneira de conteúdo a priori. Estas formas devem subordinar-se à
unidade suprema do eu transcendental para entrar no conhecimento objetivo, mas
não as deduz desse eu; com respeito ao eu transcendental, seguem sendo algo
contingente.
Finalmente, alcançamos um terceiro estrato: a unidade
aperceptiva pura, acunhada nas categorias; somente nelas revela-se
imediatamente à consciência o sujeito transcendental como puro ato de síntese.
Estes três planos sobrepostos, qualidades sensíveis, intuições a
priori da sensibilidade e unidade da apercepção pura se reúnem no objeto
(imanente); em contrapartida, por parte do sujeito não se realiza a união; existe
98
Cf. Ibid., p.150
96
uma falta em dois níveis: nem as intuições puras do espaço e tempo nem as
qualidades sensíveis derivam logicamente da unidade originária do eu.
Semelhante imperfeição no encadeamento sistemático dos planos formais da
consciência, e sobre todo o dualismo sempre aberto entre a unidade aperceptiva e
o a priori da sensibilidade, têm parte nas oposições, não eliminadas por completo,
que temos denunciado mais acima: oposição entre o objeto em geral e o objeto da
experiência, entre o eu transcendental e o eu empírico. Estas oposições
desaparecem totalmente se logra-se completar a unidade funcional do eu, de
modo que deriva-se da espontaneidade do entendimento todo o elemento formal
de nossas representações, desde os conceitos puros até as qualidades sensíveis,
inclusive. Se entrevê aqui uma possível evolução do sistema kantiano,
precisamente na mesma direção em que se afirma a primazia do ato sintético.
3.4 - Os postulados morais e a transcendência do
objeto
Das obras publicadas por Kant, a Crítica da Razão Prática é onde
se afirma mais abertamente o dinamismo radical da razão, na plenitude de suas
exigências incondicionais. Como imperativo categórico, a razão intima a nossa
ação deliberada à mesma lei de unidade universal que, enquanto ato aperceptivo,
impõe as determinações objetivas de nossa consciência. É lamentável que, em
lugar de fazer a síntese direta destes dois aspectos de uma mesma posição
soberana, o filósofo criticista se contentara em vinculá-las, extrinsecamente,
97
mediante a teoria dos postulados. Esta teoria nos exige que, a examinemos
atentamente, porque representa uma evasão, perfeitamente consciente e querida,
em direção à transcendência metafísica. Também devemos examinar este
sistema, e cortejá-lo com as conclusões da razão prática.
É preciso inicialmente colocar o problema do maior ou menor
hermetismo das duas razões ou, com maior precisão, o problema da relação entre
o fundamento prático dos postulados e a possibilidade teórica dos objetos que se
postulam. Trata-se, no fundo, de saber se a razão, com anterioridade a toda
divisão de si mesma em razão teórica e razão prática, possui um alcance
objetivo geral.
Que os princípios da razão pura, em seu uso prático, quer dizer,
em seu uso moral, tem realidade objetiva, é, em resumo, o que a Crítica da Razão
Pura havia nos ensinado acerca dos postulados. Afirma Kant:
Entendo por postulado da razão prática [...] uma proposição teórica,
enquanto esta, que é teoricamente indemonstrável, é também
inseparadamente solidária de uma lei prática válida a priori e
incondicionalmente
99
.
Assim, para estender um conhecimento puro de ordem prática, é
preciso que uma meta, ou um fim, sejam dados a priori por modo de objeto, e que
este objeto, independentemente de todo princípio teórico, mas como
conseqüência de um imperativo (categórico) que determina de maneira imediata a
vontade, se represente como praticamente necessário; tal é, neste caso, o
99
No original: Entiendo por postulado de la razón prática [...] una proposicíon teórica, en cuanto
ésta, que es teoricamente indemostrable, es también inseparablemente solidaria de una ley
práctica válida a priori e incondicionalmente. (KANT apud MARECHAL. El punto de partida de la
Metafísica, II, p.162).
98
soberano bem. Mas este não é possível (concebível) senão pressupondo três
conceitos teóricos: a liberdade, a imortalidade da alma e Deus. Assim, a lei prática
que prescreve a realização do bem mais perfeito possível em um mundo dado,
postula, em benefício dos objetos (problemáticos) da razão pura especulativa, a
possibilidade, a realidade objetiva que essa razão não pode assegurá-los. Deste
modo, o conhecimento teórico recebe, sem dúvida, um acrescentamento dos
conceitos que, de outra maneira, seriam problemáticos (puros objetos de
pensamento); eles são agora enquadrados assertoricamente entre os conceitos
que correspondem a verdadeiros objetos.
Porque a razão prática não pode eximir-se de ter o soberano
bem,a razão teórica (que não concebe o soberano bem mais que rodeado de
certas condições objetivas) se encontra autorizada a pressupô-lo. Este
acrescentamento da razão teórica não é, então, uma ampliação da especulação;
não permite que se empenhem positivamente, com fins teóricos, os objetos
postulados; com efeito, não nos é dado nada de sua intuição real ou possível
100
.
As três idéias transcendentais, que não eram, todavia, por si
mesmas conhecimentos, senão somente pensamentos (transcendentes) não
contraditórios, agora, em virtude de uma lei prática apodíctica, o revestidas de
realidade objetiva, como outras tantas condições necessárias de possibilidade do
objeto (o soberano bem) que esta lei manda realizar.
100
Cf. KANT, KPV, p. 243-244
99
Desde o ponto de vista prático, as idéias, de transcendentes e
reguladoras que eram, se convertem em imanentes e constitutivas, ou seja, que
fundamentam a possibilidade de realizar o objeto necessário da razão prática pura
(o soberano bem).
Assim, pois, os objetos postulados nos são dados pela razão
prática como verdadeiros objetos com respeito a nossa ação; e a razão teórica
a este juízo a patente de objetividade; e inclusive leva mais longe sua
colaboração, aplicando a esses objetos reais as negociações e as afirmações
com que as idéias reguladoras rodeavam a seus objetos hipotéticos, antes de ser
erigidas em postulados; melhor ainda: aplicando esses predicados segundo toda a
amplitude intensiva que exige o absoluto moral. Por exemplo: na hipótese da
existência de Deus, a razão especulativa demonstra que o autor e ordenador do
universo deve ser imensamente sábio, bom, poderoso, mas não pode ir mais
longe: a omnisciência, a bondade absoluta, a omnipotência, escapam à
demonstração puramente física ou metafísica. Sem dúvida, a noção de Deus,
enquanto postulada pela lei moral, recebe por este título, não somente a
objetividade bruta, senão também os mesmos atributos de perfeição absoluta
inacessível por qualquer outro caminho: efetivamente, a razão teórica julga que
Deus não poderia assegurar a possibilidade do soberano bem, se não fosse a
onisciência, a onipotência, a onipresença, o eterno, em uma palavra, o Ser
absolutamente perfeito
101
.
101
Cf. KANT, KPV, p.252
100
Não parece, em conseqüência, que, uma vez dada a obrigação
absoluta da ação moral, todas as relações implicadas na teoria dos postulados
são de ordem lógica, analítica? Isso não é inteiramente exato. Kant põe à prova,
muito escrupulosamente, a qualidade lógica das principais articulações de sua
teoria.
Uma necessidade da razão pura em seu uso especulativo
somente conduz a hipóteses; a necessidade da razão pura prática conduz a
postulados.
A necessidade teórica responde à tendência que o pensamento tem
assim sua própria perfeição subjetiva; mas a possibilidade que se
reconhece de alcançar esse termo não se requer, de maneira alguma,
para a objetividade dos conhecimentos que a precedem
102
.
A necessidade da razão pura prática se funda em um dever, na
obrigação de estabelecer a meu querer um objeto (o soberano bem) ao que eu
tenda com todas as minhas forças; para fazê-lo, devo pressupor a possibilidade
desse bem e de suas condições (racionais), a saber, Deus, a liberdade, a
imortalidade.
Agora bem, o dever se impõe por si mesmo, com uma certeza
apodíctica, sem que precise de nenhum apoio especulativo.
Mas o efeito subjetivo desta lei (do dever), quero dizer a intenção
de ter a realização do soberano bem, pressupõe, pelo menos, a possibilidade
102
No original: La necesidad teórica responde a la tendencia que el pensamiento tiene hacia su
propia perfeccíon subjetiva; pero la posibilidad – que se reconoce – de alcanzar esse término no se
requiere, en manera alguna, para la objetividad de los conocimientos que la preceden. (KANT.
KPV, p.256).
101
deste último; se não fosse assim, tropeçaríamos com a impossibilidade prática de
ter para o objeto um conceito.
Porque a intenção moral, longe de ser somente uma decisão
facultativa, determinada por inclinações contingentes, é a obediência a um
mandamento absoluto, objetivamente fundado na natureza das coisas; portanto,
exclui a vida sobre a possibilidade objetiva do fim preceituado. A adesão
intelectual aos postulados, no sentido em que se acaba de definir, é denominada
por Kant fé moral ou fé racional pura prática
103
.
O princípio que determina nossa afirmação dos postulados é
subjetivo enquanto necessidade (da razão); ao mesmo tempo, como meio de
promover um fim prático, objetivo, é o fundamento da máxima que faz considerar
verdadeiros, na perspectiva moral (determinados objetos cuja demonstração
teórica segue sendo insuficiente).
Antes da conclusão deste parágrafo, levemos a cabo um rápido
reconhecimento na direção da terceira Crítica.
A razão prática descobre em nós um fim absoluto (o soberano
bem), do qual temos obrigação de realizar mediante a conformidade de nossa
ação empírica com a lei de nossa liberdade. Aceitar este fim último é, ao mesmo
tempo, admitir, entre nossas faculdades e o mundo dos fenômenos, a medida de
correspondência, de adequação prévia, que permite uma prossecução eficaz do
fim último. Esta adequação prévia se concebe necessariamente como efeito de
103
Cf. MARECHAL. El punto de partida de la Metafísica, II, p.166
102
uma inteligência ordenadora, que adequa a constituição das coisas às exigências
ativas de nossa razão prática.
Como vimos mais acima, a necessidade apodíctica da lei moral
não se discute; daí se deriva, para a razão teórica, um corolário imediato: a
possibilidade da ação moral; e como esta possibilidade deve estender-se em toda
a amplitude do preceito moral, inclui logicamente a possibilidade em si do fim
moral supremo, quer dizer, do soberano bem, ao menos enquanto esse soberano
bem representa uma perfeição moral. Assim, a aliança entre a razão prática e a
razão teórica proporciona conclusões certas, objetivamente válidas na ordem
supra-sensível do numêno
104
.
Enquanto a necessidade de uma inteligência transcendente para
fundamentar a harmonia dos dois elementos do soberano bem, não é,
propriamente falando, mais que um postulado prático, subjetivamente necessário,
no sentido de que nossa razão que não outra hipótese explicativa, mas que
pode, em rigor, abster-se de formular nenhuma cede à sua necessidade de
unidade sistemática mediante um ato positivo de crença, em conformidade com os
ditados do interesse moral.
Consequentemente deve-se admitir, no mundo dos fenômenos,
uma estrutura que se preste às exigências da ação moral. Se, ademais,
obedecendo a um desejo imperioso de nossa razão, postula-se uma suprema
sabedoria ordenadora, se reconhece a priori no mundo, não somente um
encadeamento mecânico de causas e efeitos, senão uma causalidade dirigida
104
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafísica, III, p.332
103
pela representação dos efeitos, quer dizer, uma ordem de fins objetivos. Mas o
que se sabe desses fins?
Não são dados objetivamente na experiência, somente se
conhece suas causas e efeitos. Mas, sabendo que existem e que devem estar
subordinados ao fim moral supremo, é possível a partir da idéia de finalidade
natural reconstrui-los hipoteticamente no marco de um sistema da experiência,
indefinidamente perfeito e perpetuamente controlado pela ação. A edificação deste
sistema é obra da faculdade de julgar considerada em seu uso reflexivo. A
faculdade de julgar:
... oferece, na idéia de uma finalidade da natureza, o intermediário
conceitual (que nos é indispensável) entre os conceitos de natureza e os
conceitos de liberdade, quer dizer, um conceito que acha possível o
passo do puro âmbito teórico ao puro âmbito prático, da regularidade
rígida do primeiro à perfeição final do segundo
105
.
Assim, por cima dos fins da natureza, existem os fins a liberdade,
os fins morais, e entre eles o fim absolutamente último, cuja possibilidade não está
condicionada por nenhum outro fim. A este fim está radicalmente ordenada a
natureza, apesar de que, por si mesma, é incapaz de realizá-lo; o homem, agente
livre, pode fazê-lo, submetendo a natureza à legislação incondicionada da ordem
moral. Sendo já fim de última natureza, seu destino moral o faz capaz também de
um fim supremo, ao que a natureza inteira está subordinada teleologicamente.
105
No original: ... ofrece, en la idea de una finalidad de la naturaleza, el intermediario conceptual
[ que nos es indispensable] entre los conceptos de naturaleza y los conceptos de liberdad, es decir,
un concepto que haga posible el paso del puro ámbito teórico al puro ámbito práctico, de la
regularidad rígida del primero a la perfeccíon final del segundo. (KANT, K.U. , p. 55)
104
Segundo tem mostrado a Crítica da Razão Pura, a interpretação
finalista da natureza considerada em si mesma abstração feita do imperativo
moral responde indiscutivelmente a uma necessidade de nossa razão, sem
sobrepassar, então, o valor lógico de uma hipótese admissível; sobre esta
hipótese se levanta a prova físico-teológica, mas persuasiva que conclui, em favor
da existência de um criador sapientíssimo e poderosíssimo. Evidentemente, para
Kant, todo este trabalho construtor da faculdade de julgar procede da atividade
reguladora ou heurística da razão e, do ponto de vista teórico, o mais que se pode
fazer é solicitar de nós uma adesão de doutrinal. Mas, tal como é, abre o
caminho aos requerimentos absolutos da liberdade, a esse complexo de
exigências apodícticas e de postulações teóricas que formam a trama de uma
ética-teologia:
A físico-teologia é uma teologia física mal compreendida, somente
utilizável, como preparação (propedêutica) para a teologia; não pode
contribuir, mais diretamente, a dito fim se não é tomado como ponto de
apoio um princípio inteiramente diferente (o princípio moral)
106
.
Então se converte em uma ética-teologia, objeto de um ato de
moral, cujo valor prático e certeza não é inferior, em sua ordem, ao valor certo das
evidências especulativas.
Neste sentido, pois, as duas razões estão mutuamente
coordenadas, e uma supre as insuficiências da outra. Mas essa simples
106
No original: La físico-teologia es una teologia física mal comprendida, solamente utilizable como
preparacíon (propedéutica) para la teologia; no puede contribuir, más directamente, a dicho fin si
no es tomado como punto de apoyo un principio enteramente diferente (el principio moral). (KANT,
K. U., § 85, p.410)
105
coordenação criaria conflitos: estas razões estão subordinadas uma a outra, sob a
primazia da razão prática:
Na união da razão especulativa com a razão pura prática com vistas ao
conhecimento, a primazia pertence à razão prática [...] Em última análise,
todo interesse da razão é prático (moral): o mesmo interesse especulativo
é condicionado e somente alcança sua plenitude no uso prático (moral)
107
.
Agora, com a clara afirmação da primazia da razão prática,
esboça-se, um sistema metafísico. A metafísica kantiana, pois, será
essencialmente uma metafísica da razão prática, um dogmatismo moral. Uma
metafísica puramente especulativa, uma ciência do ser, não pode ter, no kantismo,
outra significação que a de uma metafísica da intuição intelectual (atual ou
possível). As afirmações necessárias desta metafísica prática impõe à nossa
adesão intelectual autênticos objetos noumenais: os objetos da moral não são
nem menos certos nem menos reais que os de ciência teórica.
Uma última observação. Se a metafísica dos postulados é uma
metafísica do objeto, o dever é a posição singular do sujeito racional, no que se
reúnem os dois mundos da natureza e da liberdade, do fenômeno e do númeno.
Assim, o homem se revela, cada vez mais, como a chave do sistema kantiano,
como o centro de perspectiva desde o qual devem ser vistas todas as coisas para
adquirir, a nossos olhos, seu justo valor.
107
No original: En la unión de la razón especulativa con la razón pura práctica con vistas al
conocimiento, la primacía pertenece a la razón práctica [...] En último análisis, todo interés de la
razón es práctico (moral): el mismo interés especulativo es condicionado y sólo alcanza su
plenitud en el uso práctico (moral). (KANT, KPV, p.218-9)
106
CAPÍTULO IV
O ABSOLUTO COMO HORIZONTE DO
PENSAMENTO
Segundo Marechal, a metafísica é a ciência humana do absoluto.
Ela traduz imediatamente a percepção de nossa inteligência pelo absoluto,
percepção que não é um domínio conquistado, mas um princípio interno de vida.
Assim, Marechal introduziu a primeira redação do Ponto de partida da Metafísica
de 1917.
O absoluto, na filosofia marechaliana, pode ter dois sentidos : ou
ele designa o Ato puro, Absoluto sendo independente de qualquer outra coisa; ou
ele designa o objeto em si, como independente da própria operação afirmativa.
No primeiro sentido o Absoluto é condição prioritária de todo ato
de afirmação, mas esta tese será provada no final de nosso relato. No segundo
sentido, a cada ato de afirmação, a posição do absoluto é evidente para a
reflexão crítica e pode então servir de ponto de partida do raciocínio marechaliano.
Assim, a metafísica é, para Marechal, uma ciência fundamental
que exprime , em uma linguagem humana, nossa mira do divino e a influência do
Absoluto, Ato puro, sobre nossa existência.
107
Antes de poder elaborar uma ciência, antes de qualquer pensamento,
antes qualquer ato [...] já existe a presença do Absoluto. Mergulhamos na
sua luz, agimos sob seu impulso: é ele que age em nós. Impossível
escapar de sua influência, impossível de se privar, de desprezá-lo.
Devemos dar importância a isto pois foi ele quem nos compreendeu
desde nosso nascimento, porque a cada ato comungamos à sua
bondade
108
.
A presença do divino é como um pressuposto de toda a
metafísica. Tal pressuposto não é um preconcebido. Para ser verídico, ele exige
uma demonstração.
A atitude inicial de Marechal fica então em oposição aberta com a
orientação geral da ideologia kantiana. Ela marca uma verdadeira inversão de
perspectiva, uma inversão nos pontos de vista filosóficos, principalmente daqueles
que se modelaram na revolução copérnica de Kant. Se, para Kant, o homem se
encontra no centro da filosofia, para Marechal, é Deus.
Se houver verdade o qual tudo nos conspira, uma verdade que vivemos,
mesmo antes de conhecê-la , e que podemos perceber com certeza
antes mesmo de submetê-la ao controle da prova por conceitos, com
certeza é a existência de Deus
109
.
Não que esta verdade vivida e inconseqüente prove a validade do
raciocínio em si, mas serve como um índice de orientação. O controle racional,
108
No original: Avant de pouvoir élaborer une science, avant toute pensée, avant tout acte [...] il y a
déjà la présence de l’Absolu. Nous baignons dans sa lumière, nous agissons sous son impulsion:
c’est lui qui agit en nous. Impossible d’échapper à son emprise, impossible de s’en passer, de le
négliger. Il faut en tenir compte parce qu’il nous a saisis dès notre naissance à l’être, parce que
dans chaque acte nous communions à sa bonté. (DIRVEN, E. De la forme a L’Acte, p.150)
109
No original: S’il est une vérité vers laquelle tout em nous conspire, une vérité que nous vivons
avant même de la connaître, et que tant elle nous est connaturelle nous pouvons percevoir
avec certitude avant même de la soumettre au contrôle de la preuve par concepts, c’est à coup sûr
l’existence de Dieu. (Ibid.p.151)
108
direto ou indireto, vem em seguida garantir a firmeza de nossa afirmação
espontânea de Deus.
Marechal enfatiza que, uma doutrina que não conhece o Absoluto
como condição de possibilidade da realidade é incapaz de dar uma explicação
coerente desta realidade mesma, da nossa maneira de compreendê-la e da
maneira em que as provas da existência de Deus segundoo Tomás podem ser
legitimamente interpretadas.
Sua conclusão foi desde então lógica: aquele que parte do
humano, da evolução subjetiva, do ideal esperado pela atividade espiritual, ou do
pensamento-ação, atingirá certamente uma perfeição ulterior à própria ação o
último fim subjetivo do agente, diriam os escolásticos deve ser possível se a
ação, ela mesma, for racional . Aqui se abre o horizonte do divino. Para atingi-lo,
basta uma mudança de perspectiva, uma conversão da exigência dinâmica para o
pressuposto especulativo, do dever-ser para o ser necessário; pois é somente
como condição objetiva de possibilidade da perfeição subjetiva da ação, é
somente como fim último objetivo que a existência de Deus se impõe ao nosso
consentimento.
em 1908, na pesquisa sobre “O sentimento da presença “,
Marechal não pensa diferente :
A inteligência humana, diz-ele, não é um simples espelho refletindo
passivamente os objetos que passam por ele, mas uma atividade,
orientada no seu mais profundo intimo para um último termo, o único
onde ela possa se concentrar completamente para o Ser absoluto,
Verdadeiro e Bem absolutos. O Absoluto põe sua marca na tendência
lógica de nossa inteligência; assim, esta tendência ultrapassa
109
constantemente as percepções particulares, sempre relativas quanto
particulares.
110
Esta visão era também neste momento o resultado de uma
inversão dos termos do problema. Diante da tentativa de explicação do fenômenos
místicos, era preciso se perguntar se não seria mais lógico apresentar o real, a
afirmação e o objetivo e procurar ver como isto se desagrega ou se desdobra na
dúvida e no subjetivo.
4.1 - O absoluto do ser, a ordem ontológica
O que ele claramente imagina, desde 1908, o que ele considera,
em 1931, como uma posição bem estabelecida, Marechal quer demonstrar no Le
Point de départ, de 1917 à 1926.
É então uma nova revolução copérnica que Marechal quer por em
obra e, esta, em todo o sentido do termo. Ao invés de envolver a epistemologia no
horizonte humano e de rodear as criaturas e os seres envolta do homem, o
homem, ele mesmo, e todo ser, serão orientados em direção ao Absoluto, Ato
puro, o qual serão dependentes.
110
No original: L’intelligence humaine, dit-il, n’est pas un simple miroir reflétant passivement les
objets qui passent à sa portée, mais une activité, orientée dans son fond le plus intime vers un
terme dernier, le seul elle puisse s’absorber complètement, vers l’Etre absolu, Vrai et Bien
absolus. L’Absolu a mis sa marque sur la tendance foncière de notre intelligence; aussi bien, cette
tendance dépasse-t-elle constamment les intellections particulières, toujours relatives en tant que
particulières. (MARECHAL, J. Etudes sur la Psychologie des Mystiques, p.120)
110
No entanto esta revoluçãoserá possível se toda solução de um
problema qualquer de filosofia, toda discussão sobre os valores do kantismo toda
explicação de conceitos próprios, se enraizarem com um pressuposto radical, o
absoluto, aqui o absoluto objetivo, posto em toda aplicação do primeiro principio.
Uma percepção da realidade será possível se toda afirmação for relativa,
necessariamente e legitimamente, ao seu conteúdo no absoluto do ser, ou seja,
que um conhecimento puramente fenomenal seja impensável e impossível.
Ao contrário da sentença o pressuposto na percepção de
Marechal é: actus prior est forma. Porque o Ato puro condiciona toda a existência,
é impossível ter uma explicação da existência sem se referenciar a este Ato. Esta
visão vai se impor à inteligência porque, a inteligência ela mesma, está sempre
ativa na ordem ontológica do ser. Neste lugar, o aspecto existencial e dinâmico de
nossa existência concreta tem ainda uma preeminência sob o aspecto formal.
Segundo os escolásticos, como já foi visto, um existente isolado
que tem a atualidade de uma forma, é inexplicável. É esta visão que dirigiu os
trabalhos de exploração de Marechal.
Portanto, não basta afirmar uma certa posição doutrinal; é
preciso também provar ou pelo menos demonstrar o bien-fon.
Para poder, finalmente, concluir o Ato puro, como centro de toda
existência, é preciso mostrar no processo da pesquisa, ou da intuição do
marechaliana onde se baseia a teoria ou hipótese sobre a afirmação do absoluto
objetivo em cada ato, antes mesmo de poder aceitar as conseqüências. Deve-se
111
indicar onde se situa este absoluto; indicar sua presença e para bem dizer o modo
de operação, o funcionamento
111
.
De uma certa forma, todo o sistema servirá como confirmação da
hipótese marechaliana e da doutrina tomista. Os antigos discutiram sobre a critica
do conhecimento na via metafísica e perceberam que o conteúdo bruto do espírito
apresenta elementos contraditórios, que não podem então, indistintamente, ser
objeto de afirmações legitimas; o problema era introduzir, no conteúdo do espírito,
as distinções e as sobreposições necessárias a fim de preservar o primeiro
princípio normativo, sempre mantendo a necessidade absoluta e universal da
afirmação. Esta crítica objetiva do conhecimento, quase finda nos Gregos, atinge
seu ponto culminante no aristotelismo de São Tomás
112
.
4.2 - Impossibilidade do fenomenismo absoluto
Em cada pensamento existe uma relação entre a verdade e o ser.
É então normal concluir que além do pensamento deve existir uma outra regra que
sustenta este pensamento, levando em conta o que é verdadeiro ou falso.
Esta regra deve, acima de tudo, envolver um valor absoluto e
eterno. Ora, na afirmação, na negação e na dúvida quer dizer, a cada ato de
nossa inteligência, o ser sempre se opõe ao pensamento atual, o absoluto no
relativo. Nosso espírito é radicalmente incapaz de pensar no vazio absoluto
porque ele é incapaz de tomar uma atitude, seja por pura negação, seja por pura
111
Cf. DIRVEN, E., De la forme a L`Acte. p.154
112
Cf. Ibid., p.155
112
vontade : num esforço crítico pode-se dizer que, sempre o ser sustenta o não-ser,
a afirmação sustenta a negação, o querer apóia a vontade. No modo especulativo
não escapamos a uma verdade objetiva; no modo prático não escapamos a um
fim absoluto: tanto pelo pensamento quanto pelo poder, deposita-se sempre então
categoricamente o ser. Fora do pensamento deve então existir um ser com
caracteres absolutos e eternos.
4.2.1 - A atitude contemporânea: negação da norma
absoluta
É evidente que a existência de um pensamento, de uma verdade
ou de um ser, não implica nenhuma relação de um relativo ao absoluto, nem um
fim absoluto, nem um ser posto categoricamente e perpetuamente de maneira
absoluta. O que sabemos, nosso pensamento, nosso fim, nosso ser, apresentam,
pelo contrário, sinais totalmente diferentes: nada em nós é absoluto, e não
entendemos porque, nem como alegaríamos que do relativo se possa gerar um
absoluto. Dizer que o relativo sustenta o absoluto ou que o absoluto sustenta o
relativo, que ele é a fonte, é talvez uma explicação comumente e tradicionalmente
aceita, mas que não se impõe. Aquele que entende a estrutura do ser e a natureza
da existência no mundo, percebe que ela é desenvolvida nela mesma, sobre ela
mesma, para ela mesma.
Deste modo, contra todo apelo ao absoluto se ergue então a
seguinte afirmação, fundamental para alguns espíritos: é impossível ir além do
113
que sou, do que conheço, do que trato. Mesmo se eu me afirmar como autônomo
total num ato de liberdade espontânea, gratuita; mesmo se considero este ato
como um tipo de auto-criação uma posição própria onde a fonte se encontra em
mim mesmo em outras palavras: mesmo se examino o ato o mais elevado, que
parece ultrapassar o determinismo assim como a contingência, mesmo então e
principalmente, – eu ainda sou eu mesmo.
Este eu, é verdade, não é mais o eu limitado, acanhado, de um
psicologismo doentio, ou a palavra-chave de um racionalismo fechado
sobre ele mesmo [...] ele é um experimento como fonte de toda atividade,
lógica, psicológica e moral, como iniciativa, [...] Mas é o meu (ego).
Impossível deduzir daí a existência de um absoluto : não o atingiremos
jamais
113
.
Pretende-se, assim, atingir algo que excede o eu pessoal e a
situação presente, particularmente: o ser que se ocultando não é menos que
uma realidade.
Diante disso, o homem tem até mesmo a obrigação de se voltar
para a explicação, para um esclarecimento mais consciente, que encobre o
suposto além, que está ao nosso alcance. Enunciando o sempre transcendente,
ele justamente concretiza, na imanência de sua própria existência, a atualidade
deste transcendente. Nesta revelação progressiva aposta-se no destino do
homem e de sua história. O homem é verdadeiramente homem e a história só tem
sentido quando se mergulha neste misterioso abismo de onde jorram as fontes de
vida, de consciência, de realidade atual.
113
No original: Ce moi, il est vrai, n’est plus le moi restreint, étriqué, d’un psychologisme maladif, ou
le moi-sujet d’un rationalisme étranger à la vie, ou le moi transcendantal d’une critique enfermée
sur elle-même [...] Il est expérimenté comme source de toute activité, logique, psychologique et
morale, comme initiative, [...] Mais ce n’est que le moi. Impossible d’inférer de l’existence d’un
absolu: on ne l’atteindra jamais. (DIRVEN, op. cit., p.167)
114
4.3 - O fenomenismo absoluto
Marechal mostra por alto uma crítica do fenomenismo absoluto.
De certa forma, a objeção desse fenomenismo estava contida na objeção da
dúvida metódica e radical.
O que o fenomenismo defende é algo compreensível e, a primeira
vista, totalmente legítimo. Ele sustenta que o homem pode conhecer o humano
e isto ad modum humani.
O homem constata que apesar de seu desejo legítimo para a
unidade, apesar da afirmação da verdade e de ser contida a cada julgamento,
uma incerteza irremediável e radical ataca e dissolve a própria forma de toda
verdade lógica. O primeiro princípio racional, o princípio da identidade ou de
contradição parece flutuar na dúvida. Pois em todo objeto se conhece o
fenômeno transitório, o aparecimento efêmero de uma forma que permanece
sempre estranha. Nossa subjetividade perverte tudo o que ela toca.
No conhecimento o objeto permanece fora de nós, fechado aos
nossos olhares ávidos de conhecer. O que conhecemos, o fenômeno, o objeto
imediato, está sempre em uma oposição mais ou menos reconhecida no qual ele é
o objeto ou o fenômeno.
Contudo reconhecer que existe uma oposição, já é aceitar mais do
que o realismo tomista de Marechal exige. A polêmica deve começar desde que
pretende-se só conhecer o fenômeno interno. A primeira questão é: se no ato
115
direto da percepção, ato imanente, o objeto imediatamente conhecido é ou não é a
species como tal, ou seja, a forma particular deste ato. Reconhece-se aqui a
questão discutida por São Tomás na Suma Teológica
114
. Ora a conclusão em
comum de São Tomás e de Marechal é muito explicita. È impossível que a
species seja o objeto direto e próprio de nosso conhecimento. O que se conhece
diretamente, é o objeto mesmo, a realidade
115
. Pois:
...ou julgamos a aparência subjetiva atual, e nenhum julgamento é
absolutamente verdadeiro ou falso, se todos são verdadeiros todos são
falsos pois se contradizem, ou a species intelligibilis, ou seja, a
determinação subjetiva atual de nossa inteligência, não faz função de
objeto primário, mas somente de forma caracterizada segundo a qual o
ato intelectual se dirige diretamente ao objeto. Deve se escolher entre
esta verdade imediata do objeto e a negação mesma do “primeiro
princípio” como norma dos julgamentos “contradictoriae essent simul
verae
116
.
O argumento principal se resume então nesta única acusação
capital: porquê ele desconhece a lei do princípio de identidade, o fenomenismo se
condena por ele mesmo à contradição interna que se destrói por si mesma.
Ora por definição a species como tal não é mais que uma
modalidade acidental de nosso conhecimento: ela pertence ao sujeito como um
simples reflexo fugitivo, um fato bruto, um puro momento fluente e inconsistente;
ela não exclui nenhuma variabilidade; ela pode parar de ser, assim como ela pode
não ter sido: ela é uma relação sem essência nem suppositum, um simples esse
114
Cf. TOMAS DE AQUINO, Suma Teologica, I, 85.
115
Cf.TROISFONTAINES, De l`existence à l´etre, p.10
116
No original: ...ou bien nous ne jugeons que de l’apparence subjective actuelle, et auncun
jugement n’est absolument vrai ni faux; si tous sont vrais, tous sont faux, car ils se contredisent;
ou bien la species intelligibilis, c’est-à-dire la détermination subjective actuelle de notre intelligence,
ne fait point elle-même fonction d’objet primaire, mais seulement de forme spécifiante selon
laquelle l’acte intellectuel se porte directement à l’objet. Il faut choisir entre cette vérité immédiate
de l’objet et la négation même du “premier principe” comme norme des jugements “contradictoriae
essent simul verae”. (TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I, 85, 2, c)
116
ad. Mas de onde virá sua consistência, a necessidade, a capacidade de ser
aplicada validamente a um objeto ou a vários?
Somente o principio de identidade pode lhe conceder estas
qualidades. O que o elemento bruto, por ele mesmo, não expressa ainda, o
princípio de identidade lhe impõe: a referência ao ser. Se o elemento em si
permanece transitório, inconstante, contingente, pelo menos a relação
estabelecida entre o elemento e o ser oferece um aspecto não transitório,
imutável, absoluto.
A união do primeiro principio ao elemento subjetivo, ou à species,
se confunde assim com a objetivação mesma desse elemento, digamos: com a
síntese primordial deste elemento ao ser. A afirmação objetiva vai então além do
conteúdo bruto, fenomenal da species.
4.4 - O princípio de identidade
Até agora pretende-se dar uma justificação à condição de
possibilidade de base: o absoluto (como o objeto em si), colocado em ato,
recusando o fenomenismo absoluto e apelando à necessidade de colocar o
princípio de identidade.
O princípio de identidade pode, de fato, ser considerado como
uma das bases que torna esse argumento sólido. Em nenhum lugar a referência
ao absoluto do ser se impõe com tanta evidência. Resumindo, o homem recua
somente diante do fato, sobretudo se este fato é ele mesmo quem o coloca e o
117
qual ele não pode deixar de colocá-lo. Nenhuma questão grave, unindo o ser e o
humano, pode se resolver num diálogo discursivo por um simples raciocino. É
onde a questão se torna difícil, o raciocino o tem saída. o fato oferece uma
saída.
De fato, pode parecer que estamos encurralados num círculo
vicioso. De um lado, a existência de uma norma absoluta ou, pelo menos, a
refutação daqueles que não aceitam esta norma, enquanto que por outro lado esta
norma já é suposta para poder aplicar o mesmo princípio.
Neste contexto, Marechal afirma:
Nós colocamos o ser, como uma norma exterior ao nosso pensamento
atual e subjetivo. Para que “verdade seja”, é preciso que, entre essa
norma exterior e o pensamento atual, exista uma relação fixa,
inteiramente determinada, de concordância ou discordância. Se o objeto
do meu pensamento atual resulta somente em uma relação incerta e
indeterminada, alternando o sim ou não, em vão se falaria de uma
relação de verdade [...] Meu pensamento é verdadeiro ou falso só se, em
cada determinação que ele se dá, corresponde uma relação
absolutamente estável positiva ou negativa com o ser. Ora, esta
estabilidade necessária de qualquer objeto pensado é expressado pelo
“primeiro princípio”, o princípio da identidade
117
.
Ora, não tendo acesso diretamente ao absoluto, está bem claro
que o primeiro princípio deve dar conta tanto da existência do absoluto quanto
do seu valor.
117
No original: Nous posons l’être, disions-nous, comme une norme extérieure à notre pensée
actuelle et subjective. Pour que “vérité soit”, il faut qu’entre cette norme extérieure et la pensée
actuelle, existe un rapport fixe, entièrement déterminé, de concordance ou de discordance. Si
l’objet de ma pensée actuelle ne contractait avec l’être qu’une relation incertaine et indéterminée,
oscillant du oui au non, c’est en vain que je parlerais d’un rapport de vérité [...] Ma pensée n’est
vraie ou fausse que si, dans chaque détermination qu’elle se donne, correspond un rapport
absolument stable – positif ou négatif – avec l’être. Or, cette stabilité nécessaire de tout objet pensé
est exprimée par le “premier principe”, le principe d’identité. (DIRVEN, op. cit., p.175)
118
Mas, o fato pode decidir. Ora, o primeiro princípio é um fato.
Assim, o princípio de identidade se manifesta de duas formas: como princípio
abstrato e como concreto vivido. Estas duas maneiras vão, inclusive mais ou
menos juntas, com as duas funções do princípio de identidade: o ser é ser, o que
é ao mesmo tempo analítico e sintético.
O princípio de identidade é analítico enquanto os termos
coincidem. Ou, como identidade do ser com ele mesmo. Ele é sintético enquanto
que os dois termos são seguramente diferentes ou, como identidade do ser com o
pensamento.
Em outros termos: chama-se de analítico o julgamento que afirma
a identidade material do sujeito e do predicado. Chama-se de sintético o
julgamento onde o predicado acrescenta ao sujeito. É claro que se pode
considerar os dois termos, o sujeito e o predicado do julgamento de identidade, ou
como se referindo materialmente ao mesmo objeto, ou também segundo a função
formal que eles atestam no julgamento. No último caso o predicado acrescenta ao
sujeito a inteligibilidade formal, ou o ser como razão formal.
Este princípio não é uma proposta idêntica. Ele exprime a identidade do
ser real e do ser inteligível; o ser como ele é nele mesmo e idêntico ao
ser tal como no pensamento.É o princípio que os modernos chamam
“princípio de identidade do pensamento e do ser. Ele exprime a absoluta
objetividade do pensamento”
118
.
118
No original: Ce principe n’est pas une tautologie. Il exprime l’identité de l’être réel et de l’être
intelligible: l’être tel qu’il est en lui-même est identique à l’être tel qu’il est dans la pensée. C’est le
principe que les modernes appellent “principe de l’identité de la pensée et de l’être. Il énonce
l’absolue objectivité de la pensée”. (Ibid. p.176)
119
Nesta perspectiva toda metafísica nada será que uma aplicação
da identidade, vista tanto como princípio sintético que como princípio analítico
pois, o que a noção do ser é, como princípio incompleto, o princípio de identidade
do ser o é como princípio complexo. Estes princípios metafísicos, alguns são
deduzidos do princípio de identidade como sintético e outros, do mesmo princípio,
como analítico. À primeira classe pertence o princípio da causalidade
transcendental e suas diferentes formas, a segunda, todas as verdades sobre os
modos do ser, por exemplo, um espírito não é temporal, Deus é todo-poderoso.
Ora, o princípio da identidade se impõe como princípio sintético
porque “a essência do pensamento exige absolutamente a identidade do
pensamento e do ser”
119
.
Pensamento e princípio de identidade o iguais. Não se pode
pensar sem dizer que uma coisa é inteligível. Se isso não é dito, não se diz mais
nada. Dizer, pensar, é afirmar a inteligibilidade. Ora isto, é antes de tudo,
acrescentar à função formal do ser como sujeito, a razão inteligível do ser como
objeto. Afirma-se assim, a identidade dos dois termos formalmente opostos.
No entanto, nenhuma identificação do real e do inteligível, quer
dizer, que nenhum pensamento pode acontecer se a primeira identidade concreta
não for afirmada. De fato, se a identidade do real e do inteligível fosse para si
próprio, se ela já existisse, ela não poderia acontecer. Em suma: o ser que se
revela a nós, não é um pensamento abstrato, um conceito vazio, é o concreto, e
119
SCHEUER apud DIRVEN, De la forme a L`Acte, p. 177
120
este concreto é a identidade do real e ideal. Assim não se tem outra prova a dar
de nosso princípio fundamental, a não ser que dizer que um fato que pense
nele próprio ; que desta forma, é eu; que quando eu aplico a palavra ser, eu
transponho somente esta apreensão a outras coisas. Enfim, se o ser não é
concebido por homologia com a presença do eu no eu, não tem mais conteúdo,
nenhum sentido, e não é mais do que um conjunto de letras.
Assim o conhecimento humano não é um sistema de verdades abstratas
que se desenrolam diante o espírito, que são somente um objeto diante
do sujeito e exteriores a um sujeito, mas ela é um conjunto do qual um
sujeito dele mesmo faz parte; nossa existência faz parte do conjunto das
coisas, e assim sendo, que este conjunto toma a forma do sujeito
consciente , dizemos que este conjunto se torna conhecido
120
.
Entretanto, na perspectiva marechaliana, que o homem se
conhece por si mesmo somente no seus atos, e que eles dependem de todos,
diretamente ou indiretamente de uma maneira sensível, concebe-se que não pode
ter outra representação de si a não ser numa representação fenomenal.
O conhecimento ontológico do eu se encontra então voltado para
as condições gerais do conhecimento dos objetos da experiência. Entre o eu
empírico e os objetos empíricos, nossa inteligência não faz, no ponto de vista que
nos tocam, a distinção radical. O eu que revela a experiência interna é uma
relação objetiva ao absoluto, então um objeto inteligível do eu, não é nem mais
nem menos que os objetos de experiência externa.
121
120
No original: Ainsi la connaissance humaine n’est pas un système de vérités abstraites qui se
déroulent devant l’esprit, qui ne sont qu’un objet devant le sujet et extérieures à un sujet, mais elle
est un ensemble dont un sujet lui-même fait partie; notre existence fait partie de l’ensemble des
choses, et c’est em tant que cet ensemble prend la forme du sujet conscient que nous disons que
cet ensemble devient connu. (SCHEUER apud DIRVEN, De la forme a L`Acte, p.177)
121
Cf.DIRVEN,op.cit., p.178
121
Neste contexto é preciso compreender que a crítica kantiana
parece indecisa e incompleta sobre este ponto de vista, e que Marechal busca
completá-la a partir de Fichte, pois a crítica do conhecimento postula alguma coisa
que é do domínio da ação.
Porém, ao termo ação utilizado por Fichte para designar a
atividade profunda do eu, pode ser substituída por uma expressão mais precisa,
usando o vocabulário escolástico. Entre a causalidade formal e a causalidade
eficiente (a ação propriamente dita), os escolásticos conhecem uma causalidade
imanente que eles chamavam actio per modum naturae: ela é vizinha da
causalidade formal porque ela assimila os elementos estranhos; ela participa da
causalidade eficiente, porque ela tem, inconscientemente um fim. Designa esta
como atividade imanente, prévia à consciência como à ação voluntária, a
finalidade interna ou a tendência natural do sujeito inteligente ou do eu.
Marechal, conhece a importância de uma doutrina do eu, e ele
sabe que muitas dificuldades podem ser resolvidas levando em conta este ponto.
Esta doutrina do eu ou da finalidade não procura sua
importância no fato de ser uma intuição, de ser diretamente clara e evidente como
substância, mas no fato de ser uma atividade, que se revela por si mesmo, como
atividade subjetiva, como um ato novo principalmente na reflexão total. Este
conhecimento da atividade, ele a nomeia, portanto, como uma maneira de intuição
do eu.
122
122
Cf.Ibid., p.183
122
Assim, esta doutrina do eu como teoria de uma atividade finalista
se manifesta no interior de uma afirmação.
Ora, a filosofia chega normalmente a uma justificação – ex factis
do absoluto do ser, afirmado em cada ato. Esta justificação nos é presente em
toda aplicação do princípio de identidade segundo a sua forma abstrata; ela nos é
imposta, nós a tocamos, na vida direta do eu, que é o princípio de identidade
segundo sua forma concreta.
Por outro lado, a filosofia de Marechal, pelo menos neste ponto,
não é nada mais que uma outra expressão da mesma necessidade. E a conclusão
segue: a justificação do absoluto afirmado em cada ato, se impõe em sua filosofia
mútua, a partir do princípio da identidade.
Marechal conhece evidentemente o princípio de identidade em
sua forma abstrata. Parece mesmo ser o único do qual ele fala. Ele supõe que
todo mundo o aceita: todas filosofias, críticas ou não, reconhecem o valor do
primeiro princípio, pelo menos como regra analítica do pensamento. Além disso,
toda explicação do primeiro princípio afirma o absoluto objetivo.
O princípio da identidade diz mais do que uma simples
redundância, porque o predicado ultrapassa o sujeito. O sujeito exprime a
realidade na maneira de um dado bruto ; o predicado, por sua coerência com a
cópula, afeta este dado no modo de necessidade. E quando se diz:
ens est ens ou: o que é, é o que é, o sentido explícito dessas proposições
pode ser o que segue : ens est id quod habet r a t i o n e m (formam)
entis; ou: o que é, é o que tem a qualidade (ou a forma) expressada nas
palavras: o que é, todos julgamentos que traduzem, mediante a cópula
123
afirmativa, a unidade necessária de um suppositum hipotético o ser
como dado bruto – e de uma forma – o ser como razão inteligível.
123
O princípio de identidade exprime então, nos termos mais gerais
possíveis, a síntese necessária do quod e do quo, da existência e da essência; ele
significa, no fundo, que todo ser, como ser é um inteligível. Atribuição de
necessidade e de inteligibilidade: está então o que o predicado acrescenta ao
sujeito em cada enunciado do primeiro princípio.
Esta consideração do primeiro princípio no abstrato permite que
ele conclua que é pela aplicação mesma do primeiro princípio que um reflexo de
absoluto penetra em nossos conteúdos brutos de consciência e os eleva à
dignidade de conhecimentos objetivos. Mas para tal é preciso que a realização do
princípio de identidade seja verdadeiramente uma síntese a priori; a síntese a
priori por excelência, aquela que fundamenta todas as outras sínteses; a síntese
do dado ao ser, síntese conquistadora do absoluto.
124
A forma abstrata – síntese que torna inteligível o conteúdo objetivo
da consciência deve ser enraizada no vivido do ser, no concreto do ato, para ser
plenamente válida.
123
No original: “ ens est ens” ou: “ ce qui est, est ce qui est”, le sens explicité de ces propositions ne
peut être que le suivant: ens est id quod habet rationem (formam) entis”; ou: ce qui est, est ce
qui a la qualité (ou la forme) exprimée dans les mots: ce qui est”, tous jugements qui traduisent,
moyennat la copule affirmative, l’unité necéssaire d’un suppositum hypothétique l’être comme
donnée brute – et d’ une forme – l’ être comme ‘raison intellible”. ( DIRVEN,op.cit., p.184-185).
124
Cf. TROISFONTAINES, De l`existence à l´etre, p.89
124
O princípio de identidade vive-se no real, que não é: ou objeto, ou
sujeito, mas que é ao mesmo tempo sujeito e objeto. Seria de fato errado
imaginar uma experiência do ser numa tomada subjetiva do eu, e ao lado dela a
objetividade da qual se deve ainda provar que ela tem verdadeiramente uma
relação na realidade existente. Objeto e sujeito são dados no vivido mesmo da
consciência refletindo-se. O conhecimento dos objetos não estabelece numa
primeira etapa uma inteligibilidade a qual precisa acrescentar numa segunda
etapa uma realidade. A experiência, que acentua a realidade, não é um dado
irracional, um tipo de tomada emocional, onde se deve ainda clarificar a situação.
A inteligibilidade e a realidade são vividas no mesmo ato que afirma sua
identidade. Este ato é: vida consciente do sujeito se relacionando ao objeto.
Vários aspectos devem então ser analisados no princípio de
identidade.
primeiramente a constatação de que o princípio de identidade
se revela à nossa inteligência numa síntese concreta, ou seja, que toda noção de
ser, implicada no sujeito ou o predicado, se encontra aumentada por uma relação
a supposita materiais. Neste caso, ele mantém sempre uma conotação do tempo
o que é observado na fórmula negativa: “o que é, não pode, ao mesmo tempo e
sob a mesma relação, não ser”.
125
Mas além desta concreção na matéria, a afirmação de uma
unidade necessária de todo ser com o inteligível. Como o julgamento: o que é, é o
que é.
125
No original: ce qui est, ne peut pas, en même temps et sous le même rapport, ne pas être.
(DIRVEN,op.cit., p.186)
125
A diversidade, como diversidade, não pode ser princípio de sua
própria unificação, a necessidade de uma síntese deve ter sua fonte na
necessidade mesma de uma unidade onde se apaga a diversidade dos termos
sintéticos. Ora, com o princípio de identidade, possuI o tipo de unidade sintética
o mais geral possível. É o Absoluto, Ato puro, onde esse e essência, realidade e
pensamento se encontram na unidade do Ato puro do Ser.
126
então em cada afirmação do primeiro princípio uma exigência
do Absoluto. Mas este Absoluto nunca nos é dado na sua própria unidade. Não
temos nenhuma representação exaustiva dele; ele nunca está presente na
maneira dos objetos empíricos. Todo conhecimento intelectual humano se realiza
de fato pelo encontro de duas condições. Uma é o absoluto colocado em cada
ato, mas a outra tem nela todas as marcas da passividade, que ela é
essencialmente uma condição empírica: a intuição sensível.
Assim, segundo Marechal, uma aliança possível entre esta
passividade e o ato que evoca o Absoluto. Mas, essa ntese universal pode
ser fundada no Absoluto e esta aliança é possível somente por meio da finalidade
dinâmica de uma inteligência dirigindo-se a sua última perfeição por assimilações
sucessivas.
E sendo assim, a unidade do absoluto não é mais exprimível, de
maneira adequada, nem em conceitos nem em julgamentos. A unidade que
fundamenta a necessidade lógica do primeiro princípio se encontra
inevitavelmente rejeitada fora de nosso pensamento, num Absoluto subsistente.
126
Cf. BRETON, S. Essende et Existence. PUF. 1962.
126
Mas o que não pode ser representado pode ser significado. Aqui
ainda o dinamismo final nós dará os elementos de uma resposta completa.
4.5 - Justificação racional do absoluto
Marechal se coloca na metafísica tomista diante das diferentes
filosofias e seu objetivo particular é de colocar o kantismo ao diapasão do
tomismo. Para isso ele destaca da metafísica tomista as linhas salientes de uma
teoria geral do conhecimento e nesta análise mesma da doutrina tomista, reúne o
máximo de materiais de uma epistemologia conforme às exigências críticas dos
modernos.
Este propósito deliberado, ousado, de querer apresentar o método
ontológico tomista à moda transcendental confunde afinal de contas as
classificações etiquetadas prévias.
Marechal não hesitou a arriscar esta aproximação porque,
segundo ele, a crítica ontológica e a crítica transcendental, apesar de diferentes
no ponto de vista sob o qual elas consideram primeiramente o objeto conhecido,
convergem de direito para um mesmo resultado final: uma metafísica finalista.
Então a conclusão impõe-se, que de uma crítica à outra devem
existir correspondências estreitas, permitindo tratar uma como uma simples
transposição da outra. Já que o problema crítico do kantismo encontra seu lugar e
recebe seu desfecho no sistema metafísico do tomismo, as soluções antigas e
127
modernas se tornam comparáveis à única condição de transpor a linguagem
metafísica em linguagem crítica e inversamente.
A lei desta aproximação tomistica-kantiana esta inserida nas
seguintes linhas: O método transcendental de análise do objeto é um método não
exclusivo. No objeto do conhecimento espontâneo, se considera a influência
imediata das faculdades que erigem este em objeto conhecido. Quer dizer, em
linguagem kantiana: considera-se o a priori constitutivo do objeto, ou seja, as
condições transcendentais de possibilidades do objeto em oposição a sua conduta
empírica, o dado sensível. Ou seja, em linguagem escolástica é considerado o
cognoscível em ato segundo as condições que o constitue em sua atualidade
cognoscível. De fato, Marechal nota ele mesmo, no início de seu estudo, esta
ressonância kantiana de uma doutrina tomista
127
:
De hoje em diante, e sem perder de vista que devemos primeiramente
interpretar com fidelidade uma doutrina metafísica, nós vamos adotar o
método francamente dedutivo que exige o acabamento de uma
demonstração crítica [...] E talvez bastaria em seguida aliviar nossa
demonstração do contexto metafísico onde ela se cercava, para transpô-
la legitimamente, afinada mas não desanimada, sobre o terreno da
filosofia kantiana
128
.
Portanto, no pensamento marechaliano de nosso autor, as duas
doutrinas, apesar de muito diferentes, se encontram neste ponto preciso e se
cruzam. Nesta intercepção, onde duas concepções se identificam por um
127
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafisica, II, p. 90..
128
No original: Désormais, et sans perdre de vue que nous devons avant tout interpréter fidèlement
une doctrine métaphysique, nous allons adopter la méthode franchement déductive qu’exige
l’achèvement d’une démonstration critique […] Et peut-être nous suffirait-il ensuite d’alléger notre
démonstration du contexte métaphysique dont elle s’entourait, pour la transposer légitimement,
amincie mais non énervée, sur le terrain de la philosophie kantienne. (DIRVEN,op.cit.,p.191)
128
momento, efetua-se uma transposição dos pontos comuns, para se chegar em
seguida a um enriquecimento sobre os pontos antagonistas e divergentes.
Temos dois caminhos: um preliminar e metodológico, o outro
explicativo da consciência se desenvolvendo no coração mesmo do sistema
marechaliano.
4.6 - O método
Marechal compara uma com a outra a partir da teoria do a priori
kantiano e, especificamente tomista, do objeto formal. A chave desta aproximação
se encontra nesta frase à qual tomistas e kantianos poderiam assinar: “O termo
imanente de uma ação é necessariamente conforme à natureza do agente”
129
.
Assim que se conhece o resultado imanente de uma atividade,
pode-se deduzir as condições que o determinaram, e retornar até reencontrar
finalmente a natureza do agente.
Aquele que, finalmente, encontra todas as condições
determinantes de nosso ser em ato, que os estrutura segundo seus níveis
respectivos, que justifica a manobra, esclarecendo as origens (ou a fonte única),
este tem tornado possível definitivamente todo desenvolvimento filosófico.
129
No original: Le terme immanent d’une action est nécessairement conforme à la nature de l’agent.
(Ibid. p.193)
129
Contudo, a descoberta, a estruturação, a justificação, dessa
questão pede o estabelecimento de um método do qual parece depender o valor
mesmo da empresa.
Ora aqui se situa a primeira descoberta de Marechal após exame
detalhado, o método transcendental kantiano e o método tomisto-metafísico tem
uma grande semelhança.
Marechal não formula tão explicitamente seu pensamento, mas
sua exposição não deixa a sombra de uma dúvida a este respeito.
As duas iniciam-se de alguns preliminares quase idênticos, que
poderíamos classificar sobre os denominadores comuns: conteúdo de
consciência, princípio de identidade, reflexão.
4.6.1 - O conteúdo da consciência e o princípio de
identidade
Descartes investiga para ver e achar o que seria inevitavelmente
aceitável. Ele chega no eu que pensa e existe. O eu penso se impõe distintamente
como idéia clara, que não se pode não aceitar.
A escola socrática por seu lado, vinte séculos antes de Descartes,
estabeleceu com solidez a fatal necessidade da afirmação, sendo que tal se
confunde com a posição absoluta dos conteúdos de consciência segundo a regra
universal do primeiro princípio.
130
Em seguida, toda a tradição metafísica sustenta que uma única
verdade lógica existe e que tem um conteúdo necessário nas nossas afirmações.
O método deles - a dedução metafísica supõe inicialmente: quaisquer dados de
consciência, sob o indício do primeiro princípio.
Neste sentido, nomeia-se a afirmação objetiva universal do ser
nas suas duas partes sintéticas: o dado afirmável e sua aplicação ao ser.
De fato, o homem, afirmando ou reagindo, age sempre colocando
uma relação estável entre o que ele afirma e o ser.
A crítica transcendental pressupõe, ela também, tanto os dados objetivos
como o primeiro princípio, mas ela suspende a afirmação primitiva
absoluta do ser para examinar neles próprios os conteúdos de
consciência
130
.
O objeto é então considerado como fenômeno, e o primeiro
princípio é usado como norma reguladora do pensamento. Na crítica
transcendental o primeiro princípio é aceito como norma do pensamento: na crítica
metafísica ele entrega, inicialmente, a chave do real (ontológico).
Ora, vimos anteriormente que Marechal parte, como os antigos, da
afirmação do absoluto objetivo, que esta afirmação é necessariamente dada em
cada aplicação de princípio; que este primeiro princípio se apresenta sob dois
aspectos: um aspecto abstrato e um aspecto concreto que o aspecto abstrato se
impõe inevitavelmente, como um fato, em cada ato de pensamento, mas que ele
130
No original: La critique transcendantale présuppose, elle aussi, tant les données objectives que
le premier principe, mais “elle suspend l’affirmation primitive absolue de l’être pour examiner en
eux-mêmes les contenus de conscience”. (Ibid., p.195)
131
nos deixa insatisfeitos; que por conexão necessária, a afirmação do absoluto do
ser parece destinada à uma cláusula final que a joga no abstrato e que,
finalmente, o aspecto concreto pode dar plena satisfação ao nosso apetite de
segurança e a prova completa da afirmação de um Absoluto, Ato puro
131
.
Deste modo, ao passo que a crítica metafísica se coloca de
improviso em uma perspectiva finalista, a crítica transcendental realça a afirmação
absoluta de ser para atribuir ao primeiro princípio um valor normativo para o
pensamento.
Ora a reflexão transcendental, segundo a explicação de nosso
autor, envolve também o dinamismo final. Que ela se revela sendo
essencialmente dinâmica, ninguém coloca em dúvida. Kant descobriu
progressivamente ao longo dos anos, o papel essencial do dinamismo no seu
sistema. Daí as críticas finalmente não constituir sem uma propedêutica, mas
propriamente dito, uma pratico-metafísica. No método transcendental, a própria
investigação e a pesquisa crítica se tornam o ato filosófico por excelência,
incluindo toda a metafísica dinâmica.
Mas, na perspectiva marechaliana, a noção de prioridade, num
conceito clássico muito esquecido dos cartesianos assim como dos empiristas,
entra no conceito de casualidade formal.
O kantiano que fala de análise transcendental certamente
reconhece o direito de inventariar a escolha analítica das determinações e
condições do objeto.
131
Cf. Ibid., p.195
132
“O que o interessa não é tanto o desmembramento do objeto
constituído, mas o objeto na sua possibilidade interna, o objeto no estado
nascente (in fieri)”.
132
O que Kant quer é não destrinchar arbitrariamente, mas realmente
descobrir os elementos estruturais do objeto da consciência, ou seja, as condições
que tornam a representação possível. A informação e não somente a forma, a
síntese ativa dos fenômenos, o exercício da espontaneidade. A prioridade formal
deve então se situar numa ordem dinâmica de casualidade, deve ser entendida no
sentido ativo, dinâmico e determinado pela causa.
A casualidade formal, não pode então ser vista no sentido de uma
forma estática, tal como a forma de uma estátua, congelada no repouso do
mármore. Ela deve permanecer repleta de universalidade virtual, ou seja, de uma
significação expansiva. Ela vai além da forma estática como uma condição
permanente e dominadora.
Na língua escolástica, poderíamos dizer, segundo Marechal, que a
casualidade formal das condições a priori no objeto imanente de conhecimento,
não é um resíduo inerte, uma estrutura que constata-se e que descreve-se, mas o
investimento ativo de uma matéria reconhecida pela finalidade interna, pelo o se
tornar natural do sujeito. Para se apresentar como objeto, a matéria do
conhecimento deve primeiro se deixar captar pela corrente que leva o sujeito para
seu fim natural: o objeto, na nossa consciência é, propriamente dito, esta
132
No original: ce qui l’intéresse, c’est moins le dépeçage de l’objet déjà constitué, que l’objet dans
sa possibilité interne, l’objet à l’état naissant (in fieri). (Ibid. p.199)
133
percepção mesma de uma matéria sensível pelo movimento vital de nossa
natureza intelectual.
Portanto, para ser eficaz este todo transcendental deve então:
por um lado mostrar no a priori um caráter dinâmico e conclusivo, por outro lado
perceber a atividade imanente como inelutável e como condição sine qua non de
possibilidade. Ora, isto é possível se alcança-se a atividade dinâmica no
mesmo momento onde ela “se insere e põe em ato o elemento material de nossas
representações”
133
; o que quer dizer que deve-se captá-la no momento onde o
objeto pensado nos é oferecido “como passando da potência ao ato, como fase de
um movimento ou de um tornar-se intelectual”.
134
Ora, o pressuposto do método transcendental de análise parece
ser este: que nossos conceitos objetivos nos sejam dados, na reflexão, como
determinações ativas de uma matéria assimilada, como a transição de uma
potência objetiva de determinação à determinações atuais, resumindo, como o
movimento imanente de uma faculdade conhecedora tal como é.
Tudo isso: dinamismo, finalidade, reflexão, do conhecimento com
o movimento imanente da faculdade, provém do íntimo mesmo da análise crítica,
apesar de que Kant dele não tirou todas as conclusões. Ele ignorou, de fato,
numa certa forma “o papel essencial que a finalidade ativa do sujeito atual na
constituição mesma do objeto imanente, e este esquecimento torna impotente seu
método transcendental”.
135
133
No original: compénètre et met en acte l’élément matériel de nos représentations. (Ibid. p.200)
134
No original: comme passant de la puissance à l’acte, comme phase d’un mouvement ou d’un
devenir intellectuel. (Ibid. p.200)
135
No original: le le essentiel que la finalité active du sujet joue dans la constitution même de
l’objet immanent, et cet oubli frappe d’impuissance sa méthode transcendantale. (Ibid., p.201)
134
Uma conclusão, importante para o método de Marechal, aparece
deste estudo da transposição. Como na metafísica tradicional, ele parte da
afirmação do absoluto implicado em todo exercício do primeiro princípio, ou seja,
em toda atividade. Mas, sem assinalá-lo explicitamente, ele deixa parcialmente a
atitude espontânea dos Antigos, para se colocar no plano da crítica. Ele aceita o
primeiro princípio, mas sem mencionar que ele lhe inicialmente somente um
valor puramente intelectual: uma regra de controle, uma norma abstrata.
Essa norma terá um valor ontológico, como nos Antigos, mas somente se
ela controla realmente a realidade inteira; se podemos alcançá-la em sua
função de controle; se controle e aplicação à realidade concordam de
fato. Neste momento, diversificando, a realidade se fixará como
expressão e referência ao absoluto. Neste momento teremos reunido o
ideal ao real, o pensamento ao ser
136
.
O controle eficaz, essa coincidência de luminosidade e de ato no
interior de um conhecimento em plena mudança se faz graça à consciência, ou
melhor, graça à reflexão transcendental que identifica-se com a afirmação, no
momento mesmo onde se deduz transcendentalmente a necessidade do ato
afirmativo.
Entre os dois pontos de vista, não existe nenhuma
incompatibilidade, que o segundo é somente um aspecto preciso do primeiro; e
entre os dois métodos, não há nenhuma oposição, porque o segundo só explicita
136
No original: Cette norme aura une valeur ontologique, comme chez les Anciens, mais seulement
pour autant qu’elle contrôle effectivement la réalité entière; pour autant qu’on puisse la saisir dans
sa fonction de contrôle; pour autant que contrôle et application à la réalité coïncident de fait. A ce
moment-là, tout en se diversifiant, la réalité s’imposera comme expression et réference à absolu. A
ce moment-là on aura renoué l’idéal au réel, la pensée à l’être. (Ibid., p.201)
135
o que o primeiro aplicava desde muito tempo, mas muitas vezes de forma
impensada.
É necessário então partir para a segunda etapa de nossa
exploração, antes de tudo, de um conteúdo de consciência qualquer e do princípio
de identidade como regra de todo pensamento. Recusar um conteúdo de
consciência é retirar toda matéria de pensamento; negar o princípio de identidade
como norma intelectual, é querer defender o ato de inteligência de ser inteligência
em ato.
Um terceiro elemento se apresenta: a reflexão como meio de
explicitação de análise e de prova. Na sua fase implícita, ela coincide com o ato
mesmo do conhecer. Ela é então uma consciência concomitante que permite uma
auto-inspeção do ato em movimento. Desde a abertura de nossa inteligência para
o objeto, ela acompanha o andamento inteiro de sua atualização progressiva.
Pode-se com ela observar as diferentes determinações que constituem um objeto
em ato no pensamento, conhecer as diferentes faculdades, funções das quais ele
depende, atingir o conjunto das necessidades racionais (condições a priori de
possibilidade do objeto na consciência). Ela é toda transcendental.
Assim, é preciso, em conclusão, deduzir que a afirmação de um
objeto transcendente é uma condição constitutiva do objeto, não somente para a
prática, mas para a teoria. A afirmação ocupa esta função se ela toma o objeto
pelo íntimo desde sua emergência na consciência. Condição necessária de todo
conteúdo de consciência, esta afirmação participa do valor teórico dos objetos que
ela exige. Se esta condição implica logicamente a afirmação de um objeto
transcendente, igual afirmação reveste, não somente a necessidade prática de um
136
postulado, mas a necessidade teórica de uma evidência especulativa, pelo menos
de uma evidência especulativa indireta (analógica). Mas então, nós não nos
encontraríamos mais no kantiano.
4.6.2 - A noção de verdade e a ordem do julgamento
Devemos mostrar que nossa consciência pode, em certas
condições, reivindicar o atributo de verdade lógica, ou seja, ser verdadeiramente
objetiva.
Segundo Marechal, seguindo assim o Tomás somente o
julgamento pode reivindicar esta qualidade de ser emissário da verdade. O
julgamento em si conscientiza o objeto como objeto.
Este papel distinto reservado ao julgamento como base de toda
doutrina da verdade e até mesmo de toda filosofia, pode, a primeira vista,
surpreender. Não seria lhe conceder um valor que na verdade ele não possui?
É certo que para Marechal a verdade não pode ser encontrada em
nenhum outro elemento do conhecimento humano. Nem a sensação, nem o
simples conceito, nem a apreensão, nem a síntese concreta não apresentam
signate aut exercite – os elementos essenciais de uma relação de verdade lógica.
Assim, para ter uma relação de verdade lógica deve haver uma
verdade qualquer que esteja presente na inteligência. Pode-se falar de uma
verdade imanente à coisa – São Tomás a chama de verdade ontológica.
137
De outro modo, pode se supor que ela esteja corporalmente
presente, mas que ela não atinja nossa consciência de forma alguma, nem mesmo
implicitamente, então ela é para nós como algo sem realidade. A verdade no
sentido próprio pode ser dita em função de uma inteligência. As coisas
existentes, dependem de uma fonte de verdade: elas emergem do ser por uma
Inteligência infinita, elas são medidas pela Inteligência primeira.
A verdade existente na nossa inteligência não é esta verdade ontológica.
Aproveitando da inteligência para se encontrar na superfície da
consciência filosófica, querendo nos tornar expressões de verdade, a
coisa se relaciona com nossa inteligência : mesmo integrada no
conhecimento, a coisa mede nossa inteligência
137
.
O pensamento atinge a verdade mostrando uma conformidade
entre seu ser (se exercitando no ato da inteligência) e o objeto real (encontrando
sua expressão forma vicária no conhecimento). Esta conformidade de
oposição, da inteligência com a coisa, forma a relação de verdade lógica.
Deste modo, a noção de verdade sempre contém a atualização
proporcional entre o pensamento e a realidade: na verdade ontológica, verdade no
sentido derivado, a coisa é medida por uma inteligência; na verdade lógica,
verdade no sentido próprio, a inteligência é medida pela coisa; ela fica ao mesmo
tempo marcada pela oposição ao objeto.
137
No original: La vérité de ce que possêde notre intelligence n’est pas cette vérité ontologique. En
empruntant la voie de notre intelligence pour apparaître à la surface de la conscience
philosophique, en voulant devenir en nous expression de vérité, la chose contracte un certain
rapport avec notre intelligence: tout en étant intégrée dans la connaissance, la chose mesure notre
intelligence. (Ibid., p.205)
138
A apreensão dos objetos é verdade para nossa inteligência na
medida em que essa toma consciência de sua assimilação ao objeto o qual ela se
opõe. Na verdade, esta se encontra na intersecção das condições a priori e
das condições empíricas de nosso conhecimento objetivo.
Ora, dentre todas estas condições, nenhuma fica isolada, pois se
realiza a integração formal na alteridade que caracteriza o verdadeiro
conhecimento. Todas devem ser superadas, se ordenar hierarquicamente sob o
julgamento até realizar a afirmação ontológica que liga a inteligência ao ser
absoluto.
A luz de um conhecimento brota na inteligência no momento de
sua identificação com o objeto. Sujeito e objeto devem coincidir para que um
conhecimento ilumine nosso mundo interior. O conhecimento não ata esta união,
ele é a união, ele supõe a união feita. Mas nossa inteligência humana não é
intuitiva. Ela é discursiva, e uma inteligência discursiva, que nem sempre está apta
a conhecer, deve receber seus objetos. Seus objetos lhe o dados. Ela depende
dos outros quanto ao conteúdo de suas posses. Ela é receptiva.
Ora a recepção supõe um certo condicionamento recíproco de
receptividade e de comunicação. Qualquer um não recebe qualquer coisa. Deve-
se estar preparado para o que se quer aceitar; e isto se alguma coisa for dada
e esta alguma coisa estiver adaptada às nossas possibilidades.
Ora, por um lado constata-se o fato do conhecimento. Por ele
mesmo, mostra-se toda interioridade. Ele se apresenta como um ato imanente da
consciência. Ora a ação imanente não é transitiva entre um sujeito em si e um
objeto em si. Ela é possessão de objeto no interior do sujeito.
139
Por outro lado, nossa inteligência, discursiva, deve aceitar. Em
outras palavras: um objeto se opõe ao sujeito. Um objeto e um sujeito se
defrontam, se freqüentam. Para que eles se unem um deve agir sobre o outro.
Uma atividade transitiva é necessária.
Mas a atividade conhecedora é imanência e ato. Todo seu efeito
próprio é interioridade. O agente principal do ato transitivo parece então ser o
objeto. A ação do objeto sobre o sujeito se impõe como um pressuposto. Nos
encontramos diante coisas dadas, coisas recebidas. Dadas como frutos da
atividade do objeto, recebidas como aceitas pela inteligência. Dom e recepção são
os primeiros elementos que orientam nossa procura do condicionamento
inteligência-objeto.
A ação do objeto sobre o sujeito supõe no sujeito uma capacidade
de sofrer uma influência vinda do exterior, ela pede a aplicação de uma faculdade
receptiva externa. Assim, o conhecimento é possessão ativa de conteúdo, de
consciência. Se de uma maneira ou de outra ela recebe, a receptividade deve
estar inscrita na sua realidade viva. A receptividade puramente material não é
suficiente, a aceitação do dado e tudo que abrange o dom, deve se encontrar na
imanência, no ato.
A forma natural possui em si uma operação estritamente
imanente, ela não é totalmente absorvida pela matéria, ela emerge. Nela a
recepção material se prolonga em uma recepção imaterial que implica o
conhecimento. Ou melhor, a recepção imaterial que lhe é própria se dobra, se
exterioriza numa recepção material que a coloca em contato com o mundo físico.
Este é particularmente o caso dos seres sensíveis. Para se tornarem
140
conhecedores, eles começam por aceitar as influências exteriores que se
imprimem na sua materialidade, e eles a completam pela aceitação interior da
forma objetiva que foi comunicada nesta impressão.
Neste contexto, pode-se concluir: a recepção material, a pura
sensação, é, nela mesma, relatividade. Ela é constituída pela interação
material do sujeito e do objeto em si. Seu próprio conteúdo é a forma que resulta
diretamente da união dos dois termos, a marca pela qual o mundo exterior vem
ativamente modelar nossos órgãos sensíveis. Logo que é impressa no sensorium,
esta forma considerada como tal, pertence tanto ao sujeito como ao objeto. Ela é
relativa. Ela é entendida como um conjunto, o que a escolástica nomeia o objeto
formal.
O objeto formal que acabamos de citar existente na sensação,
marca sempre uma relação recíproca do sujeito ao objeto. Ele é o acordo mútuo,
apercpeção requerida; é então o aspecto sob a qual os objetos materiais da
potência se relacionam.
Na unidade universal que ele exprime, os objetos particulares estão
realmente em força, um próprio ato complementar de um sujeito
conhecedor; por outro lado, o objeto formal é a força mesma (a
capacidade) do sujeito com relação aos objetos exteriores, de onde as
determinações são recebidas pelo sujeito como também por outros atos
que o “aperfeiçoam”. Conhecendo bem o objeto, a atualização se torna
mútua : o objeto formal representa, para cada poder, a condição comum,
média, onde objeto e sujeito se completam e comungam naturalmente,
segundo uma relação recíproca de ato e de poder
138
.
138
No original: A l’unité universelle qu’il exprime, les objets particuliers sont réellement en
puissance, comme à leur acte complémentaire dans un sujet connaissant; d’autre part, l’objet
formel est la puissance même (la capacité) du sujet relativement aux objets extérieurs, dont les
déterminations sont reçues par le sujet comme autant d’actes seconds qui le “perfectionnent”. Dans
toute connaissance d’objet, l’actuation est donc mutuelle: l’objet formel e représente, pour chaque
faculté, la condition commune, mitoyenne, objet et sujet se complètent l’un l’autre et
communient par connaturalité, selon une relation réciproque d’acte et de puissance. (Ibid., p.210)
141
Então não é a ação física do objeto material que delimita o
aspecto formal, característica de uma faculdade. Nenhum objeto material
apresenta por si só as qualidades de unidade, de universalidade e de necessidade
que ele possui uma vez integrado no conhecimento. De fato, estas qualidades
estão em desproporção flagrante com a ação exterior, ltipla, particular e
contingente da materialidade. Mas é na adaptação conjunta que a forma preexiste
como resultante possível tanto no eu como no objeto.
que é pelos caracteres de imanência estrita que as
qualidades sensíveis chamam nossa atenção, a forma dada à sensibilidade deve
já estar na ordem das idéias assim como partícipe analogicamente das qualidades
da forma subsistente.
A forma da sensibilidade, apesar de sua perfeição, permanece
para os escolásticos, realmente orgânica, intrinsecamente limitada pela matéria do
sensorium, constituindo com esta matéria um principio indivis de operação
imanente. Mas ao mesmo tempo ela se apresenta como uma operação que, se
voltando-se para os objetos exteriores e sofrendo a marca material do mundo
objetivo, possui acima de tudo uma função intencional e psicológica, característica
para o conhecimento completo
139
.
Podemos dizer que sem matéria sensível e sem intuição
quantitativa desta matéria, o conhecimento fica no vazio, por falta de conteúdo
139
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafísica, III, p.341
142
determinado; mas também sem a desmaterialização deste conteúdo numa
atividade imanente, a matéria sensível nunca é conhecida.
Nossa inteligência possui, pois, por natureza, os princípios
transcendentais que permitem reconstruir uma unidade ‘inteligível em ato’
sobre o modelo de uma representação concreta, que não é inteligível
mais que em potência. O qual eqüivale dizer, na terminologia moderna,
que a inteligência encerra uma ‘condição sintética a priori,’ inquantitativa
e metasensível, que, sem embargo, não entra no jogo mais que com o
favor de uma cooperação atual da sensibilidade. A cooperação sensível
completa materialmente as determinações transcendentais, inatas à
inteligência, permitindo-lhes assim expressar-se em representações
objetivas
140
.
A partir da interioridade intuitiva, perfeita, própria do Ato Puro, a
inteligência humana traz em si um modo transcendental de unidade que exige
uma matéria onde aplicar-se. A inteligência humana, em possessão natural, mas
não objetiva, enquanto ser, está limitada extrinsecamente por “coisas em si”
donde deve para passar ao ato objetivo, assimilar-se, por através do sentidos, as
aportações sucessivas.
4.6.3 - Universalização
O objeto se apresenta e estampa: uma sensação é necessária. À
recepção material, esta sensação deve se desdobrar em uma receptividade
imaterial para se tornar realmente reconhecida. Este distintivo imaterial se
explica numa teoria da intencionalidade onde a forma surge além da matéria, tira
140
Ibid., p.341
143
dos objetos sua materialidade e se enriquece de conteúdos ideais pertencendo à
ordem da idéia.
Não, é somente o nível da receptividade, mas onde certos
caracteres se explicam com referência a um nível superior. Eles presumem o
andamento de uma atividade que não se encontra na própria natureza da
sensibilidade.
O fantasma (ou imagem sensível) é o produto específico da
sensibilidade. Dependendo do objeto material para sua presença física o fantasma
deve ser realçado de maneira a se assimilar finalmente o conteúdo da atividade
imanente. Para se dar conta então da desmaterialização da imagem sensível, é
preciso resolver o caráter intencional na gênese de nosso pleno conhecimento.
É evidente que a imagem sensível não pode preencher uma
função intencional. Esta figura existe se concretizada numa referência explicita
e direta ao materialismo do objeto sico; ela precisa de um condicionamento para
desencadear seu interior; e estando ligada à quantidade ela não apresenta as
qualidades de universalidade, de necessidade e de atividade reivindicadas pelo
nosso conhecimento.
A inteligência não é um tipo de sentido interno, passiva à sua
maneira. Os problemas e as exigências que foram formuladas para a
sensibilidade, não se fixam nem para o ato nem para o produto da inteligência. O
conceito, produto do ato intelectual, não é intrinsecamente ligado à imagem
concreta. De outra maneira o conceito se revestiria totalmente, consciente em si,
das propriedades estritamente individuais e quantitativas.
144
É então preciso uma inteligência que resolva o enigma da
receptividade imaterial, que aja sobre a imagem sensível, que assim revele a
intencionalidade do completo conhecimento e que forneça assim um objeto
idealizado ao ato imanente.
Ora, tudo isto só é possível pressupondo uma atividade que tenha
sua fonte própria na inteligência e que seja atividade, sem nenhuma recepção.
É necessário que a atividade intelectual, o seja somente a priori como a
sensibilidade, mas que ela seja espontânea num sentido mais estrito.
Mas será que não outra solução do que a espontaneidade da
inteligência? Como, por exemplo, a intervenção de um Ser transcendente?
Diante dessa questão, Marechal nos conduz a uma solução: supor
um Ser transcendente atuando diretamente sobre a inteligência seria contrário aos
princípios metodológicos fundamentais de uma filosofia saudável.
A inteligência é ativa sob um aspecto e passiva sob outro.
Reconhece-se aqui as teorias escolásticas, um pouco fora de moda, mas não
ultrapassadas, do intelecto-agente e do intelecto-possível.
A função necessária da inteligência-agente, diz Marechal, consiste
em criar no intelecto-possível os inteligíveis no ato, ou seja, lhe fornecer
determinações específicas (species), intrinsecamente livres de qualquer restrição
material.
4.6.4 - A atualidade do intelecto-agente
145
Tendo em vista que se deve colocar na inteligência um aspecto de
espontaneidade, um aspecto de atividade onde a fonte se encontra na potência
intelectual, um aspecto o qual denomina-se intelecto-agente, deve-se logicamente
admitir que a inteligência, neste ponto de vista, não necessita de ato desconhecido
para entrar em ação e que ela está sempre atuando. Os efeitos particulares de
sua atividade serão prolongamentos em ação do seu estado de ato. Naturalmente
dinâmico, o intelecto-agente está sempre em ato conforme sua substância.
Pode-se considerá-lo, pois, como uma espontaneidade radical, um
poder da alma que se estende ativamente em direção a tudo em que a
inteligência, como possibilidade de conhecimento, pode integrar.
Por outro lado, que não temos os objetos de nosso
conhecimento nascidos em nós, devemos dizer que:
a parte verdadeiramente espontânea de sua intervenção não vai além de
certos caracteres absolutamente gerais, os quais a próxima especificação
depende do dado sensível. Kant dizia o mesmo, em termos críticos : o
conceito não é totalmente a priori nem totalmente espontâneo : ele é a
posteriori (ou empírica) quanto à sua matéria (seu conteúdo diverso), a
priori e espontâneo quanto à sua forma sintética (sua forma de
universalidade)
141
.
Ou melhor, potência, é pois, a condição objetiva criada pelo
impulso original do Ato a comunicar-se direta ou indiretamente: no princípio
primeiro de toda potencialidade há uma vontade criadora
142
.
141
No original: la part vraiment spontanée de son intervention ne dépasse pas certains caractères
absolument généraux, dont la spécification prochaine dépend du phantasme. Kant disait de même,
en termes critiques: le concept n’est pas totalement a priori ni totalement spontané: il est a
posteriori (ou empirique) quant à sa matière (son contenu divers), a priori et spontané quant à sa
forme synthétique (sa forme d’universalité). (Ibid., p.216-7)
142
Cf. Ibid., p.408
146
No exercício de nossas faculdades racionais percebemos a
passagem da potência ao ato e o impulso que ultrapassa o momento presente.
Assim, Santo Tomás reconhece nelas as correlações essenciais a todo
acontecer. Se como foi afirmado o principio primeiro e o fim último são
correlativos logo, o intelecto agente, em um móbil é o impulso recebido do
motor, é, portanto, o principio do movimento
143
.
4.6.5 - A inteligibilidade da imagem sensível
O inteligível em ato, diz Marechal, não indica nada mais que a
forma objetiva de atuação da potência intelectual. Nem o objeto exterior, nem a
imagem sensível apresentam esta atualidade objetiva do conhecimento. Eles são
no máximo intelligibilia in potentia, os quais devem ser atualizados. O papel do
intelecto-agente será então facere intelligibilia in potentia esse intelligibilia in actu.
Como o intelecto-agente acontece? o por uma transformação
física da imagem sensível, mas por uma abstração da forma universal. Ao invés
de impedir o conhecimento da realidade segundo sua verdadeira natureza assim
como sua real existência, a abstração rende à imagem recebida todo teor
universal do ser real por ele mesmo; ela universaliza.
A inteligência mesma está em potência, mas com a possibilidade de sair de si
mesma, de seu estado de espera, no momento de um objeto presente sobre
sua trajetória. Ela capta então uma possibilidade pré-existente no objeto para
atualizá-lo. Esta atualização (o universal tal como revelado na inteligência após
143
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q.12, a.1, in c.
147
a reflexão) não é o objeto exterior, com certeza que não, mas ela realiza o que
o objeto possui de valido, de importante
144
.
A função do intelecto-agente com a imagem sensível parece
então, no sistema tomista, com a uma dupla casualidade. O intelecto-agente é ao
mesmo tempo e sob certos aspectos uma causa formal e causa eficiente.
A relação do intelecto-agente com a imagem sensível implica algo
nesta pluralidade de causas, se quisermos nos dar conta da atividade recíproca
dos dois elementos cognitivos. De fato, existe uma solidariedade natural muito
unida entre o intelecto-agente e a imagem sensível porquê, segundo São Tomás,
esta relação se prende à doutrina geral sobre a intercomunicação vital das
potências numa formação humana. Para São Tomás e para Marechal, o ser
humano só forma uma unidade, uma substância, um principio radical de agir. Toda
atividade humana é então profundamente uma, e cada potência particular se
encontra, parcialmente ou por repercussão, nas outras potências. Cada ato
exprime o ser humano inteiro, mas ao seu modo. Esta unidade não impede a
multiplicidade de faculdades, de possibilidades e atos, mas ela exige um princípio
de unificação contínua.
Paralelamente, a relação entre o intelecto-agente e a imagem
sensível é, por um lado a de uma casualidade material e formal e, por outro lado,
a de uma casualidade eficiente e final. No primeiro caso a imagem sensível é
como o suppositum ou o suporte material que permite ao intelecto-agente existir
144
No original: l’intelligence elle-même n’était qu’en puissance, mais avec la possibilité de sortir, de
soi-même, de son état d’attente, à l’occasion d’un objet présent sur sa route. Elle capte donc une
possibilité préexistante dans l’objet pour l’actualiser. Cette actualisation (l’universel tel qu’il est
révélé dans l’intelligence après réflexion) n’est pas l’objet extérieur, sûrement pas, mais elle réalise
ce que l’objet possêde de vraiment valable, d’important. (Ibid., p.217)
148
como informação num conteúdo. No outro caso, o intelecto-agente se mistura
continuamente, como um princípio ativo e dinâmico à sensibilidade; ele a dirige
como uma causa orienta seu efeito.
Então, no homem, a finalidade interna, o apetite natural da sensibilidade
não fica confinada à algo concreto espacial e transitório, mas sim, através
deste concreto, se orienta para o inteligível. É por isso que no homem,
não como nos animais, o produto superior da imaginação chama, por sua
natureza, como o complemento normal, a inteligibilidade. É o que exprime
a formula recebida: phantasma est intelligibile in potentia.
145
Assim, como foi dito a imagem sensível deve ser o produto de
uma receptividade tanto imaterial quanto material. A síntese passiva,
simplesmente resultante de associações automáticas e de marcas materiais, deve
então se duplicar em uma síntese ativa, construtiva ou re-construtiva, para entrar
como unidade na consciência.
4.6.6 - Os caracteres próprios dos conceitos
O intelecto-agente realiza para a inteligência a comunicação de
sua própria atualidade permanente a um paciente: a inteligência mesmo sendo
uma possibilidade de conhecimento. Logo que ele entra em exercício ele
comunica sua própria vitalidade à imagem sobrelevando-a, preparando-a para ser
captada, e depois do contato atual estabelecido entre as duas faculdades,
sensitiva e intelectual, o intelecto-agente transporta seu próprio movimento
145
No original: Chez l’homme donc, la finalité interne, l’appétit naturel de la sensibilité ne demeure
pas confiné au concret spatial et temporel, mais à travers ce concret, s’oriente vers l’intelligible.
C’est pourquoi, chez l’homme, à la différence des animaux, le produit supérieur de l’imagination
appelle, de sa nature, comme un complément normal, l’intelligibilité. C’est ce qu’exprime la formule
reçue: phantasma est intelligibile in potentia. (Ibid., p.219)
149
segundo as especificações de sua matéria sobre a qual ele agia. Neste
movimento, pelo qual a inteligência se especificou se adaptando
espontaneamente a uma matéria, ela possui o tipo formal, dinâmico,
intrinsecamente imaterial do termo sobre o qual o intelecto-agente exerceu sua
ação.
Do encontro, necessário e inconsciente, do intelecto-agente e do
fantasma, o primeiro se submetendo ativamente ao segundo
(analogicamente como causa principal e causa instrumental), resulta na
faculdade intelectual uma determinação dinâmica correspondendo à
estrutura qualitativa do fantasma, termo desta atividade
146
.
Segundo a doutrina de São Tomás a species ainda não constitui o
id quod do conhecimento, mas somente o id quo. Ela possui no conhecimento
(como possibilidade) uma função dinâmica e formal, mas não objetiva. Marechal
diz que ela é, a linha característica de uma atitude, mas de uma atitude objetiva,
dinâmica e não estática.
O aspecto puramente formal desta atitude pode muito bem se
exprimir pela terminologia kantiana das categorias ou puro conceitos. Segundo
Kant, estes conceitos só têm uma real existência por uma síntese concreta que os
ligam à unidade categorial do real. Marechal diz também que de uma maneira
geral, é uma condição necessária da representação objetiva no julgamento.
Deste modo, para passar do fantasma a um conceito universal é
necessária a presença simultânea de duas qualidades: primeiramente a species
deve ser liberada de qualquer resíduo particular próprio e estar integrada numa
função universal; em segundo lugar ela deve permanecer ligada de uma matéria
146
No original: De la rencontre, nécessaire et inconsciente, de l’intellect-agent et du phantasme, le
premier se subordonnant activement le second (analogiquement comme cause principale et cause
instrumentale), résulte dans la faculté intellectuelle une détermination dynamique correspondant à
la structure qualitative du phantasme, terme de cette activité. (Ibid., p.220)
150
qualquer a uma materialidade unificada. A primeira operação é efetuada pela ação
do intelecto-agente sobre o fantasma. A segunda se realiza pela síntese concreta.
São Tomás dizia o mesmo recorrendo à unidade do ser
quantitativo. A atividade intelectual sempre se liga a uma materialização muito
geral. Um elemento de representação sempre interfere em todas suas atividades.
Ela pode fazer funcionar as species na consciência objetiva e levando-as a
uma imagem atual e concreta correspondente.
Portanto, observa-se que, mesmo admitindo uma síntese
concreta, segundo São Tomás e Marechal, ainda não se vai além da função
representativa do conceito. O conceito não se torna totalmente objetivo porque ele
está ligado a uma unidade categorial do real. Conhecer a representação objetiva
do objeto, não é ainda conhecer o objeto ele mesmo como que se opondo
objetivamente ao sujeito. Esta última etapa, a objetivação propriamente dita,
será realizada no dinamismo final da inteligência.
4.7 - Julgamento e objetivação
A síntese concreta não basta para explicar a função objetiva do
conceito. Porque o conceito deve não somente apresentar um conteúdo
universalizado, uma species considerada precisa no interior de nosso
conhecimento próprio. Ele deve ser atribuído de maneira explicita ao objeto, ele
151
deve significar a unificação do objeto e do sujeito na oposição. Sozinho, ele o
conta. Isolado, ele é apenas uma representação. Ele tem nele a marca da
concreção, quer dizer de sua origem e de sua relação à imagem sensível; mas ele
não é ligado à realidade, ao ser.
Se a função objetiva do conceito se confunde totalmente com a
sua função representativa, como o supõe a Crítica da Razão Pura, é preciso
concluir que a espontaneidade do intelecto-agente, na formação das espécies
inteligíveis, se reduz a um poder formal de síntese numérica. A unidade inteligível
não é outra que a unidade abstrata do número. Ora São Tomás e Marechal
pretendem que através da unidade abstrata de número uma outra unidade,
inteligível, seja afirmada em cada conhecimento; que uma significação, inclusa
virtualmente em cada representação, transporte a consciência além de toda
imagem sensível para uma região metaempírica, conhecida analogicamente. Sem
essa unidade ulterior, sem essa importância significativa, cai-se no agnosticismo
metafísico, o se conhece realmente os objetos. Se a inteligência suporta o
objeto, ela deve, sobretudo se opor a ele ativamente. É preciso que não somente
o conhecimento perceba a origem estrangeira da determinação imanente (isso
conduz somente à afirmação de um objeto em si do qual não se sabe nada, nem
se ele existe de verdade), mas que conserve a relação ad extra, que ele afirme
esta relação na imanência do sujeito. Por isso, o tomismo tem o título de verdade
graça ao julgamento que afirma e que nega. A síntese, a pura composito e divisio
(quer dizer: uma união de um dado com as categorias do real ou do irreal), não
152
basta; uma síntese afirmando ou negando a referência ao ser, à realidade
existente é necessária
147
.
O conceito, visto isoladamente, reflete com mais ou menos
intensidade a fidelidade ao objeto exterior: existe um tipo de estado de
conformidade entre eles e o objeto, como num retrato, nada mais. A verdade aí se
encontra, mas somente como ela se encontra numa coisa na qual a realidade
própria manifesta. Se o conceito ou a simples apreensão implicam um grau mais
elevado de verdade, é que eles participam da composição do julgamento.
Para se conservar uma oposição na imanência mesma do sujeito
e não criar uma confusão de objeto e de sujeito no interior da consciência, é
preciso recorrer a uma função do julgamento que ultrapasse sua atividade
sintética. Ligar uma síntese de objeto e de sujeito numa unidade abstrata do
conceito, admitir uma composição e divisão sem participação explícita do ato
intelectual, não é mais suficiente, é necessário que o ato de afirmação ou de
negação seja integrado no conhecimento.
A verdade se une formalmente, não a uma expressão conceitual, mas a
um princípio quase intuitivo, a atividade intelectual. Ela ultrapassa o
quadro da imanência subjetiva para render a um objeto, o conteúdo da
representação conceitual.
148
Esta quase-intuição, Marechal a chama: a afirmação. A afirmação
confere ao julgamento o valor objetivo
149
. Ela, na qual prima o elemento ativo e
147
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafísica,III, p.498
148
No original: la vérité se rattache formellement, non à une expression conceptuelle, mais à un
principe quase intuitif, l’activité intellectuelle. Celleci déborde de cadre de l’immanence subjective
pour repporter à un objet le contenu de la représentation conceptuelle. (Ibid., p.223)
149
Cf. MARECHAL,op.cit., p.502
153
intuitivo da inteligência, é de uma importância capital para a teoria de Marechal.
Ora, sem perceber, ela esta presente em toda a evolução, em toda a gênese de
nosso conhecimento. Ela arrasta todo o peso da verdade, implicitamente contido
em cada elemento consciente. Ela é a força estimulante, a origem imanente e o
dinamismo final. Ela confere finalmente ao conceito uma relação de oposição que
o marca na nota de ser (ou melhor: que o liga à existência).
Antes de passar a nossa seção seguinte, que se move
diretamente sobre o plano ontológico, para conduzir definitivamente ao Absoluto
do ser, Marechal ainda destaca algumas conseqüências desta integração da
afirmação. Essas conseqüências poderiam ser como tantas razões que forçam a
aceitar a necessidade da afirmação. Elas apresentam somente a explicação de
certas exigências de nossa vida intelectual.
4.7.1 - Conseqüências do julgamento afirmativo
A faculdade de objetivar transborda, em nós, a capacidade de
representação formal; porque nosso poder de afirmar não é restrito aos objetos
representáveis segundo sua forma própria.
Mais uma vez é a retomada a questão doutrinal da distinção
existente entre id quod e id quo do conhecimento. A inteligência não pode possuir
a forma própria do objeto na sua conexão com a materialidade: uma forma de
vigor é necessária. Mas, como já observamos, esta forma vicariante, a species,
não é aquilo que nós conhecemos: São Tomás e Marechal nela voltam
154
regularmente. O que se conhece, é o objeto exterior. Existe então uma disjunção
entre a afirmação objetiva e o modo da representação. Na representação, não se
possui o valor total da afirmação. A afirmação ultrapasse a representação.
A species, em si e por precisão, é uma forma abstrata, universal,
exprimindo a semelhança entre o conhecimento e objeto conhecido. Mas a
semelhança não é a última palavra de nosso conhecimento, e a existência ao
modo universal não é o verdadeiro objeto concreto. A representação deve ainda
significar o objeto real, e por isso ser relatada ativamente à realidade, ao ser.
Ora, após a doutrina analisada até agora, deve-se dizer que o fato
de não ser representável não leva a dizer que o Absoluto não possa ser
significado. Certamente, uma certa representação deverá servir de suporte
material ou de suppositum à nossa significação do Absoluto. Mas representação
não é afirmação. A afirmação vai muito mais longe que a representação; o que
ela significa ultrapasse o representável. Escolhemos então uma representação
pelo menos mínima. Ela servirá de veículo à significação enquanto que esta falará
diretamente sobre a existência de Deus. Não haverá conhecimento representado
de Deus, mas sua existência será significada, afirmada
150
.
O conhecimento dos atributos divinos se apõe sobre
representações conceituais muito inadequadas em relação à realidade visada.
Tiradas da experiência concreta do mundo empírico, elas não dizem nada da
natureza própria de Deus. O julgamento sobre Deus deve então ter alguma coisa
150
Cf.MARECHAL,op.cit., p.503
155
a mais, que não apresenta a representação. E de fato, este julgamento é uma
comunicação ao ser, não na sua formulação conceitual, mas na realidade
dinâmica que o transporta além dos conceitos para o objeto significado. A
afirmação enriquece nossas representações dando-lhes um valor objetivo.
Inserida nas afirmações, a representação se dobra de uma referência explícita e
vivida ao ser e à perfeição.
4.7.2 - A finalidade de nosso conhecimento
O caráter dinâmico e conclusivo de nosso conhecimento,
qualidade evidente, poderia não fazer nenhuma dificuldade e assim pedir nenhum
desenvolvimento ulterior. Deste ponto depende, portanto, da boa compreensão e
eficácia do raciocino marechaliano.
Uma certa finalidade dinâmica move toda a estrutura, toda
disposição das diferentes partes que colaboram na eclosão da consciência
luminosa.
Um impulso contínuo dirige e condiciona nossa percepção. Ela
encontra sua fonte na espontaneidade intelectual, e se apõe na aquisição do
objeto perseguido. A espontaneidade dirige os elementos ativos a partir da
sensibilidade até o intelecto-agente; mas é o objeto, como fim procurado, que
determina a forma. então um funcionamento dirigido para um fim. Os dois,
função e fim, colaboram na construção progressiva do objeto imanente.
156
O fim dirige a forma de nosso dinamismo: a necessidade de
explicar a objetividade de nosso conhecimento uma objetividade que liga ao ser
e opõe um objeto a um sujeito obriga-nos a aceitar um dinamismo que leva a
mais longe que a representação. Sendo mais que uma representação, o objeto
exige que a atividade atinja mais que a representação, que ela significa o ser
mesmo. O fim deve ser presente no tipo formal e dinâmico da atividade
intelectual
151
.
Assim, a nossa inteligência conhece objetos dos quais ela não
tinha conhecimento antes e tende a conhecer vários outros; ela domina este
conhecimento com todo seu condicionamento a priori. Ela entra em ação por uma
espontaneidade que ela mesma esta orientada para uma aquisição de objetos.
Então é uma passagem de potência ao ato, sob a influência de um mundo
objetivo.
Ora, um movimento é a perseguição de um fim; o movimento
intelectual é especificado por seu objeto formal. A uma tal capacidade pode
corresponder um só fim absolutamente último: o Ser infinito.
Sob o desenvolvimento de nosso tornar intelectual, se reconhece
um movimento para um objeto que se afasta sempre mais. É uma verdadeira
ascensão o Absoluto, porque para ser totalmente saturante, o objeto de do
movimento se revela como sendo necessariamente o Ser infinito.
Mas, para mostrar que nosso dinamismo intelectual tem um fim
151
Cf. MARECHAL,op.cit.,p.402
157
sem limites, não somente ideal, mas ainda existente, é preciso agora falar da
intercomunicação de duas faculdades: inteligência e vontade.
4.7.3 - O julgamento e o absoluto do ser
Kant cria a realidade objetiva da existência de Deus sobre a
necessidade prática do bem agir. Este caminho é certamente uma via praticável
para se chegar pessoalmente a Deus, a condição de se engajar ou de
estabelecer a necessidade de bem agir. O dever moral, que se impõe
universalmente como sentimento natural, e sobretudo a fórmula explícita do dever
de onde Kant inferiu seus postulatos práticos, pode ser negados sem cair em
contradição. O agir se impõe a todos, mesmo na abstenção.
Ora, toda ação voluntária é a perseguição consciente de um fim; e
perseguir um fim é afirmar implicitamente as condições objetivas da realização
deste fim. Então, por causa da necessidade geral de agir, é necessário afirmar,
de uma maneira absoluta, tudo aquilo que condiciona a existência deste agir, ou
seja, simplesmente a existência da realidade ontológica, e notadamente a
existência de Deus.
Porém, uma certa dúvida afeta o caráter absoluto deste raciocínio.
Não se deve dizer como Kant propõe, que a cognoscibilidade do Ser Absoluto
recebe uma certeza convincente somente após estar necessariamente posto pela
ação. Esta ação é absolutamente necessária, é certo; mas o conhecimento das
condições que regem a ação tem valor se tiver sido atualizada pela ação. Em
158
outros termos: que o ato voluntário é, dentre outros atos, o único que afeta
nossa consciência clara e que este querer depende ou não de um dever, as
condições do querer se revela categoricamente à nossa consciência depois da
posição efetiva do ato. neste momento deve aceitar, pelo nosso conhecimento,
o condicionamento ou o não querer. A cognoscibilidade das condições segue a
atividade voluntária.
A posição ou não da ação voluntária pode não ser submissa ao
arbitrário de nossa vontade, mas o conhecimento das condições que regem este
agir, depende de qualquer forma de nosso compromisso voluntário. A prova
pretendida da existência de Deus e toda a metafísica, são submetidas, pelo
menos quanto à sua cognoscibilidade, ao nosso querer consciente.
A ação voluntária coloca no absoluto todas as relações especulativas
inseparáveis do objeto como tal. É preciso observar que essa posição
absoluta sobrevive ao objeto constituído no pensamento, pelo menos
como objeto fenomenal, e resulta então imediatamente não da
constituição necessária do objeto pensado, mas somente da constituição
necessária, do sujeito agindo como que para querer, deve jogar o objeto
fenomenal na ordem dos fins e tratá-lo como um objeto nominal. A
necessidade especulativa de colocar objetos metafísicos na ordem da
realidade permaneceriam então sujeita ao meu compromisso, ela seria
subjetiva.
152
Ora, Marechal se integra de uma certa forma ao desejo de um
entendimento para que, de uma certa forma, o conhecimento do Absoluto
152
No original: L’action volontaire pose dans l’absolu toutes les relations spéculatives inséparables
de l’objet comme tel. Il faut remarquer que cette position absolue survient à l’objet déjà constitué
dans la pensée, au moins comme objet phénoménal, et résulte donc immédiatement non pas de la
constitution nécessaire de l’objet pensé, mais seulement de la constitution nécessaire du sujet
agissant qui, pour vouloir, doit jeter l’objet phénoménal dans l’ordre des fins et le traiter comme un
objet nouménal. La nécessité spéculative de poser les objets métaphysiques dans l’ordre de la
réalité, demeurerait donc assujettie à mon engagement, elle serait, après tout, subjective. (Ibid.,
p.235)
159
dependa do compromisso, que ele não refuta subscrever a certas expressões de
autores modernos fazendo apelo, para as provas da existência de Deus, a um
conhecimento mais completo que o conhecimento intelectual. Nosso autor não
ultrapassa então Kant prático metafísico que ele descreve a intervenção da
vontade na prova de Deus, quando ele diz que: a unidade, que fundamenta a
necessidade lógica deste último (do princípio de identidade) se encontra
forçosamente rejeitada fora de nosso pensamento, num Absoluto subsistindo.
Esta conseqüência inelutável coloca a epistemologia diante de um dilema
decisivo, o único, na verdade, que se mostra lógico: ou então aceita-se a
evidência primitiva do primeiro princípio e coloca-se implicitamente o Real
absoluto, que é também o Pensamento absoluto; ou ainda recusa-se a evidência
primitiva do primeiro princípio e então, com os sofistas antigos, tenta-se sem
sucesso, pelo meio do pensamento, negar o pensamento mesmo.
Contudo, o conhecimento de Deus como absoluto constitutivo de
nossas percepções particulares de objetos, não depende de modo algum da
vontade ilícita. Ela não é então o resultado de uma opção livre. A afirmação do
infinito é uma condição de possibilidade de todo conhecimento intelectual,
independente de um poder explícito ou de uma opção. Deus não pode não ser
afirmado implicitamente em todo ato da inteligência.
Numa primeira especificação poderia se dizer então que a recusa
ou, pelo contrário, a livre aceitação, importa não sobre a finalidade, mas, como diz
Marechal, sobre a evidência primitiva do primeiro princípio.
A escolha, da qual fala nosso autor, não trata então sobre o
primeiro princípio como tal, mas sobre a evidência do primeiro princípio, ou o
160
primeiro princípio como evidente. O primeiro princípio como asserção coincide
com a afirmação do objeto que nos leva implicitamente ao Absoluto do Ser, e
então com o dinamismo finalizante da inteligência. Mas a evidência do primeiro
princípio pode ser somente um aspecto do movimento afirmativo, tal como ele se
impõe à nós.
Mas esta escolha, ela mesma, enfatiza melhor a influência de uma
certa vontade em todo exercício de conhecimento. Recusar o primeiro princípio
como evidência intelectual e não poder recusá-lo como exercício mostra que o
conhecimento não apresenta somente um aspecto formal, que ele não é
simplesmente um ato imanente ao sujeito, mas que ele é sempre propulsado por
uma tendência que o sustenta de dentro. O conhecimento não pode deixar de
perseguir um fim, seu fim. Ele deve se realizar: o fim é para ele um bem que ele
não pode negar. É este querer que visa-se falar da vontade, intervindo de uma
certa forma, no conhecimento.
Para ultrapassar o kantismo, é preciso então explicitar um pouco
esta certa maneira onde a vontade intervém tanto na constituição do
conhecimento objetivo, fenomenal, como no objeto da razão.
Aqui está, em poucas palavras, todo o caminho que nos resta a
fazer, para que a necessidade prática e subjetiva dos postulados se torne uma
necessidade objetiva e teórica.
Precisaria que a introdução do objeto no absoluto dos fins, em vez de se
fazer pelo querer ilícito, supondo o objeto constituído diante da
consciência, se faça na própria gênesis do objeto como objeto, na região
161
deste dinamismo implícito, ainda indiferenciado, onde a especulação e a
ação têm igualmente sua fonte.
153
Tenta-se então observar de onde a vontade se introduz na
intelecção, de forma que o conhecimento, permanecendo totalmente ele mesmo,
revista-se assim mesmo na sua gênesis.
4.8 - Um dever-ser sustenta o entendimento
O entendimento, de maneira nenhuma intuitiva, se exerce por
composição e divisão. Ora, estes termos contêm alusões e referências às sínteses
concretas e judicativas e, pedem em conseqüência, a inserção de um movimento,
ou seja, de uma passagem da potência ao ato.
Evidentemente, não é preciso compreender a palavra movimento
como um seguimento de estados sucessivos, ou de qualidades consecutivas num
substratum ontológico.
O movimento traduz a influência do ato sobre a potência e é
desde de então essencialmente dinâmico. Motus est actus existentis in potentia
prout in potentia. O movimento não é então movimento, se a ato do momento
presente não abrange virtualmente o ato do momento que seguirá.
Portanto, é possível considerar o movimento de um dos dois
lados: como potência que exige o ato seguinte, que é de novo uma propensão
153
No original: Il faudrait que l’introduction de l’objet dans l’absolu des fins, au lieu de se faire
seulement par des vouloirs élicites, supposant l’objet déjà constitué devant la conscience,
s’effectuât dans la genèse même de l’objet comme objet, dans la région de ce dynamisme implicite,
encore indifférencié, où la spéculation et l’action ont également leur source. (Ibid., p.239)
162
para; ou como atualização acontecendo, que ainda porta nela o efeito da
propulsão. No primeiro caso pode-se falar de um a priori funcional (o
transcendental kantiano):
É o lugar natural, a exigência formal de determinação; é então o que os
escolásticos chamam um poder passivo, dobrado de uma tendência”. No
segundo caso, a determinação acontecendo pode ser considerada como
um efeito do dado. Mas continuando possível uma aquisição ulterior, o
dado, para ser assimilado na faculdade, deve, nesta medida, e
correlativamente, responder à exigência que ela satura.
154
Existe então, um laço indissolúvel entre o dado e a potência. A
potência, existente numa tendência em movimento, existe somente em relação
com o ato seguinte: O poder contém, condensado em virtualidade (positiva ou
privativa), a expansão total da ação (exercida ou sofrida).
Entre a potência e o dado que aparece, entre a faculdade e o ato
a vir, entre o movimento e o termo, entre a forma do movimento e o fim, a relação
é recíproca, mas condicionada pelo fim. Num movimento em ato, a forma do
movimento não pode existir sem o fim, que a forma é somente antecipada do
fim.
Marechal faz observar que este fim, que produz um efeito
imanente ao agente ou que tenha um efeito exterior, deve sempre ser distinto da
atividade mesma:
154
No original: C’est le lieu naturel, l’exigence formelle de déterminations; c’est donc ce que les
scolastiques appellent une puissance passive, doublée d’une tendance. Dans le deuxième cas, la
détermination survenue pourrait être considérée comme un effet de la donnée. Mais tout en rendant
possible une acquisition ultérieure, la donnée, pour être subsumée dans la faculté, doit, dans cette
mesure, et corrélativement, répondre à l’exigence qu’elle sature. (Ibid., p.241)
163
Jamais uma atividade tendenciosa, quer dizer uma atividade que se
desdobra por passagem da potência ao ato, não saberia ser por si
mesmo seu próprio fim: o ato pelo qual queremos alguma coisa não se
confunde com o ‘qualquer coisa’ que queremos com este ato; assim, o
fim absolutamente último de nossas ações imanentes não pode ela ser
um ato de querer, que tão bem este, por definição mesma, é ordenado
ulteriormente a um objeto, que não pode ser indefinidamente um
querer.
155
Neste contexto procura-se então as características do objeto
completo de nossa tendência, constatando a sua infinidade e sua necessidade.
Assim, é preciso explicar esta tendência que se desloca sempre para o objeto.
Sem objeto infinito, pelo menos tão real quanto a realidade, vivida, inelutável,
concreta, de nosso dinamismo, não há tendência ao infinito.
Mas isto não implica nem que este objeto deve existir fora do
sujeito nem que ele seja mais real que o dinamismo. Em outras palavras: isto não
obriga, segundo nós, a ultrapassar um certo panteísmo evolutivo ou supor que o
objeto não esteja na medida de nossa tendência como nossa. Isto implica,
portanto, queo se pode atribuir aos objetos intermediários uma realidade maior
do que aquela do objeto final ilimitado na medida da tendência infinita, nem uma
existência mais desligada do sujeito.
Este caminho então demonstra a realidade e a objetividade das
coisas, pela realidade de um dinamismo que afirma o objeto ultrapassando toda
determinação concreta e representável. A existência real é atribuída a toda
afirmação: sujeito, dinamismo, fim.
155
No original: Jamais une activité tendancielle, c’est-à-dire une activité qui se déploie par passage
de la puissance à l’acte, ne saurait être à soi-même sa propre fin: l’acte par lequel on veut quelque
chose ne se confond pas avec le ‘quelque chose’ que l’on veut par cet acte; aussi, la fin
absolument dernière de nos actions immanentes ne peut-elle être un acte de vouloir, puisque aussi
bien celui-ci, par définition même, est ordonné ultérieurement à un objet, qui ne peut être
indéfiniment un vouloir. (Ibid., p.242)
164
Ora, que o objeto final ilimitado existe de maneira
transcendente, todo o mundo objetivo participa, como fim intermediário, e
analogicamente a desta transcendência, possuindo então uma existência
independente do agente imperfeito.
A realidade distinta dos objetos depende, desde então, não mais
da realidade do dinamismo, mas da realidade do último fim.
Tudo isso foi desenvolvido anteriormente. A questão colocada
finalmente era: o Ser ilimitado se encontra somente na ordem ideal, intencional, ou
ele se situa na realidade que nos transcende?
Neste ponto, acontece como uma transposição no raciocínio de
Marechal. Esta transposição, pelo nosso conhecimento, nunca foi notada nem por
Marechal nem por seus discípulos. Todo o desenvolvimento seguinte se entende
somente na ótica desta transposição.
Até agora analisou-se o movimento da inteligência para o fim.
constatou-se uma tendência e uma forma de tendência. A causa final teve um
papel preponderante. Todas estas linhas de exploração convergiram para um
termo de dinamismo: o objeto. Este se concretizou numa aglomeração de objetos
particulares, mas finalmente se confundiu com o objeto final: o Ser ilimitado.
Mas da realidade deste Absoluto depende a objetividade real dos
outros objetos. Os objetos existem porque eles participam da existência do Ser
primeiro; eles são objetivos para nós, porque eles são captados na afirmação que
coloca finalmente o objeto total e primeiro, o Ato puro. temos a existência
necessária do último final objetivo. Isso tende a provar, o a realidade da
existência de Deus, mas a realidade dos objetos afirmados, ou melhor, a
165
objetividade real de nosso conhecimento pela afirmação. Neste objetivo, são
analisadas: a tendência da faculdade intelectual, a possibilidade e a necessidade
do fim subjetivo, e como corolário a necessidade do fim objetivo: para que a
assimilação ao Ser absoluto seja possível, é preciso antes de tudo que este Ser
absoluto exista. Para esta afirmação é preciso pressupor a possibilidade de um fim
subjetivo que seja uma assimilação do Ser absoluto
156
.
Deste modo para Marechal a existência dialética, envolvida no
desejo, toma uma importância nova quando se trata de Deus. O que pressupõe
um desenvolvimento da exigência dialética do desejo. Esta última não visa
somente a análise sucessiva das diferentes fases da intelecção, nem a
necessidade de colocar um termo último ao dinamismo, mas sim a correlação
verdadeiramente dialética da inteligência com a vontade.
E, portanto, de uma certa maneira, é bem assim que Marechal
raciocina: provar a existência absoluta como condição de todo ser contingente. É
claro que esta existência dá um novo significado a tudo que é afirmado, mesmo na
afirmação de Deus. Afirmar que Deus que é possível, é afirmar puramente e
simplesmente que ele existe, que sua existência é a condição de toda
possibilidade.
A possibilidade de nosso último fim subjetivo pressupõe logicamente a
existência de nosso último fim objetivo, Deus, e que assim em cada ato
intelectual, é afirmada implicitamente a existência de um Ser absoluto”.
Da possibilidade de Deus segue realmente a existência de Deus, porque
foi provado que Deus é verdadeiramente, na existência, a condição de
toda possibilidade.
157
156
Cf. MARECHAL, op.cit.,p.521
157
No original: la possibilité de notre fin dernière subjective présuppose logiquement l’existence de
notre fin derniére objective, Dieu, et qu’ainsi dans chaque acte intellectuel, est affirmée
implicitement l’existence d’un Etre absolu. De la possibilité de Dieu suit réellement l’existence de
Dieu, parce qu’il a été prouvé que Dieu est vraiment, dans l’existence, la condition de toute
possibilité. (Ibid., p.251)
166
No Caderno V Marechal diz que:
a evidência propriamente objetiva, na ordem do conhecimento metafísico,
deriva ao mesmo tempo de duas fontes lógicas: de uma necessidade
normativa, estritamente analítica, e de uma necessidade pura, radical,
natural de afirmação, que nos permite chamar uma necessidade
transcendental
158
.
Nós falamos destas duas necessidades analisando o princípio de
identidade como norma do pensamento e retornando, para a necessidade
transcendental, à realidade do dinamismo finalizante ou do princípio de identidade
concreta. Revelamos agora o que diz Marechal destas duas necessidades: A
necessidade analítica, diz ele, nos tece uma rede hipotética de alternativas
formais: ser ou não ser; mas é a necessidade transcendental da afirmação que
nos impõe a aplicá-las num conteúdo, e de antemão as resolve em favor do Real.
Em outras palavras: a aplicação das atribuições ser ou não-ser a um conteúdo de
pensamento é somente válida sob esta condição: que a necessidade
transcendental da afirmação imponha esta aplicação. Mas então, na realidade, a
questão está de antemão, resolvida em favor do Real. Isso porque Deus
constituía e sempre foi a condição de possibilidade de toda afirmação no ser,
por causa disto pode e deve conceder o ser, não somente a Deus ele mesmo,
mas a todo o conhecimento objetivo.
Na realidade, aqui está como Marechal pensa resumir esta prova:
Negar o Ser necessário é destruir o fundamento de toda possibilidade. É então
158
No original: l’evidence proprement objective, dans l’ordre de la connaissance métaphysique,
dérive à la fois de deux sources logiques: d’une nécessité normative, strictement analytique, et
d’une nécessité pure, radicale, naturelle d’affirmer, que l’on nous permettra d’appeler une nécessité
transcendantale. (Ibid., p.251)
167
eliminar todo possível. Mas suprimir todo possível é negar o pensamento objetivo,
ele mesmo, suprimindo todo conteúdo possível do pensamento. Ora, negar o
pensamento objetivo, é uma impossibilidade a priori, que o pensamento
objetivo, negado num julgamento, se afirma implicitamente pela sua negação
mesma.
Tudo depende notadamente da maneira na qual se interpreta o
pensamento objetivo. Este não pode ser interpretado somente segundo seu
conteúdo pensado, deve ser levado em toda sua importância vivida e real, de tal
maneira que uma forma lógica seja aplicada a um conteúdo real. O pensamento
objetivo é, de fato, radicalmente impossível, não somente se não tem norma lógica
do pensamento, mas se não tem conteúdo para o pensamento. E Marechal
conclui:
Nós dizemos, examinando este argumento, que se Kant abandonou mais
tarde a conclusão, foi somente porque ele achou ter encontrado, em
nosso pensamento, outro conteúdo que o ‘dado fenomenal’, o resto
sendo de ordem puramente funcional e formal.
159
Assim, para ultrapassar o ponto de vista agnóstico de Kant, é
preciso descobrir, em nosso pensamento, um conteúdo objetivo que não seja
somente fenômeno, não somente matéria extrinsecamente recebida. Mas por
outro lado, para não se cair de novo no ontologismo, é preciso também que este
conteúdo objetivo metempírico não seja nem idéia inata, nem intuição ontológica.
A solução deste enigma reside na finalidade dinâmica da inteligência.
159
No original: Nous avons dit, en examinant cet argument, que si Kant en abandonna plus tard la
conclusion , ce fut seulement parce qu’il crut ne trouver, dans notre pensée, d’autre contenu que du
‘donné phénoménal’, tout le reste y étant d’ordre purement fonctionnel et formel. (Ibid., p.253)
168
De novo, a transposição acaba de ser feita: se queremos provar a
existência de Deus, é preciso partir de conteúdos reais da afirmação. Ora estes
conteúdos são reais porque eles são inseridos numa afirmação onde tem Deus
como condição absoluta de possibilidade da afirmação. Então, neste momento
somente, pode-se argumentar: Se Deus é possível, a possibilidade de Deus leva
sua existência. Mas Deus é possível? É provado, não pela análise lógica do
conteúdo conceitual, nem por um exame do puro finalismo (exame dos termos da
atividade intelectual), mas por uma fixação no ser do dinamismo, por uma
coincidência com a atividade como ato e exigência propulsiva, em outras palavras,
por um retorno até as fontes desenvolvendo as exigências dialéticas do desejo.
Vamos desenvolver as diferentes fases, sem tardar.
4.8.1- A ordem da finalidade
A tendência nos permite fazer a transposição e voltar à fonte de
toda a prioridade que é somente a moção natural da verdade primeira. O termo
nos ensina sobre a extensão e a essência desta fonte. A relação de união, que
constitui a função objetiva em exercício, nos faz ver a dependência ontológica
numa forma concreta, que é a ordem da finalidade. Por isso, esta ordem concreta
da finalidade toma, um sentido completo que não possuía talvez inicialmente. E,
em vez de informar somente sobre uma causa final ideal e abstrata, ela significa:
primeiramente uma origem que se explica somente em relação com uma causa
eficiente, depois um fim que retorna a uma causa final, e em terceiro, um laço
169
entre as duas que designa um mesmo Ser Absoluto tanto para a origem como
para o Fim.
Esta interpretação recusa a dependência na prova da existência
de Deus do único finalismo; ela apela tanto à causa eficiente, como à causa final;
ela pretende que as duas causas sejam significadas pela ordem da finalidade.
Assim, toda necessidade da ordem da finalidade, e de caráter experimental e
aquele do fato constatado, próprio ao dinamismo finalizante, devem ser atribuídos
tanto ao nosso conhecimento do mundo empírico quanto àquele do mundo real,
mas para cada um segundo sua constituição própria.
Na inteligência se possui então uma forma que se refere a um
último final, mas que se fixa numa natureza, e uma tendência que indica um
encaminhamento para uma perfeição onde o sujeito pré-contém a forma por
participação.
A afirmação consagra, em cada etapa, a penetração de um dado
na faculdade intelectual e efetua a projeção imediata deste dado na realidade
objetiva, certamente não como efeito produzido, mas como fim finalizado.
As duas funções da afirmação consagram a dupla finalidade
antecedente: a projeção se concebe somente na ordem dos fins e o dado se
objetiva se tornando um elemento da finalidade conseqüente do sujeito que
afirma.
Num quadro de uma metafísica franca do ato e da potência, lembraremos
então, para demonstrar que todo conceito abstrato, objetividade numa
afirmação de ser, teve não somente que se concretizar com referência à
matéria e assim se exteriorizar em relação ao pensamento, mas,
sobretudo, se subordinar, segundo a relação de analogia, a uma
condição essencial superior e absoluta, que não pode mais ficar interna
170
ao nosso pensamento, e quepode ser o cume absoluto do real, o Ato
puro.
160
De fato, a afirmação não é somente uma simples função categorial
oposta à negação, mas, com estes dois aspetos de finalidade antecedente e
conseqüente, ela cria raiz na natureza mesma da inteligência e da vontade pela
qual ela se torna uma antecipação transcendente do Ser infinito.
Para mostrar isto, devemos desde nos concentrar sobre o
estudo da reciprocidade dialética da forma e da tendência no tornar intelectual, ou,
sobre a prioridade recíproca do verdadeiro e do bem. As implicações desta
relação complementar conduzem inevitavelmente ao Absoluto.
4.8.2 - Vontade e inteligência
O próprio do dinamismo intelectual é constituir não somente um
finalismo, mas uma ordem da finalidade. Este significa ao mesmo tempo:
tendência, forma de uma tendência, termo de uma tendência e relação dinâmica
entre esses diferentes componentes. De uma certa forma, temos duas ordens: a
ordem da forma e a ordem do fim. Mas para Marechal os dois se coincidem na
ordem da finalidade. Isto provoca às vezes obscuridade, mas tem a vantagem de
160
No original: Dans le cadre d’une métaphysique franche de l’acte et de la puissance, on tiendra
donc pour démontré, que tout concept abstrait, objectivé dans une affirmation d’être, a non
seulement se concrétiser par référence à la matière, et déjà s’extérioriser ainsi par rapport à la
pensée, mais surtout se subordonner, selon la relation d’analogie, à une condition essentielle
supérieure et absolue, qui ne peut davantage demeurer interne à notre pensée, et même qui ne
peut être que le sommet absolu du réel, l’Acte pur. (Ibid., p.258)
171
não separar elementos que estão necessariamente juntos. Para maior clareza nós
os consideramos progressivamente.
A ordem da forma se manifesta de várias maneiras e não traz, no
conhecimento, nenhuma dificuldade.
Suponhamos um conhecimento de objeto na qual entra,
implicitamente ou explicitamente, um julgamento de verdade.
1. O objeto estava presente, potencialmente, num a priori. Ele
existia pré-formado na forma do conhecimento.
2. A forma do objeto, captada por um se tornar, é interiorizada no
conhecimento. Ela se insere como um bem possuído sobre o qual se modela a
inteligência.
3. Uma vez possuída, ela é objetivada. Ela se realiza de novo na
forma dinâmica da objetivação.
4. Finalmente, objetivada ela é possuída na consciência luminosa,
no ato próprio da inteligência, onde o objeto e o sujeito coincidem, por um instante
passageiro, e onde a tendência encontra seu repouso provisório.
Mas a inteligência se situa na ordem dos fins. Um dinamismo não
pode se manter numa pura forma, mas exige uma relação definida entre um
elemento formal e um elemento de atividade, de exercício. Esta relação da forma
e da atividade, na condição em que rege nosso dinamismo intelectual, deve
transparecer através do movimento de nossas intelecções. A movimentação da
espontaneidade intelectual, a mais pura, a presença ativa do intelecto-agente com
o fantasma e o intelecto-possível, orienta dinamicamente nossa inteligência
para o conhecimento e para o ser ilimitado.
172
Assim, a tendência como tendência, seguramente, não está mais
presente.
...a possessão satisfaz a ordem da causa final. No interior do
conhecimento objetivo, consciência (o ato próprio da inteligência) e
possessão (o ato que contém a tendência da vontade na inteligência)
coincidem, a consciência sendo o desafogo característico da possessão
numa faculdade especulativa.
161
Tudo isto nos mostra que a forma inteligível não existe isolada,
mas ela é levada por um exercício, assim ela pode ser considerada nela mesma
como forma especificadora do apetite racional: forma e tendência vão juntos na
elaboração da intelecção consciente. E, assim como a finalidade natural interna,
ou o apetite natural de um ser racional, pode se chamar vontade natural, em
oposição à vontade elícita, assim um apetite racional sustentando a forma
intelectual pode se chamar, de uma certa forma, uma vontade consciente, não
como vontade elícita conhecida pela inteligência, mas como consciência de uma
tendência que move a inteligência.
Então, no pensamento de Marechal, a vontade colabora para a
constituição do conhecimento e isto tanto para a ciência teórica quanto para a
ciência prática.
Na ciência prática, a forma inteligível não é então, em si, um
princípio de ação, mas se torna um princípio de ação quando a vontade se une a
161
No original: ...la possession couronne l’ordre de la cause finale. Au sein de la connaissance
objective, conscience (l’acte propre de l’intelligence) et possession (l’acte qui rassasie la tendance
de la volonté dans l’intelligence) coïncident, la conscience étant l’épanouissement caractéristique
de la possession dans une faculté spéculative. (DIRVEN, op. cit., p.260)
173
ela. A vontade, se introduz aqui no interior mesmo da inteligência. Não é alguma
coisa acrescentada, mas o conhecimento ele mesmo muda de tonalidade pela
vontade que o orienta para a ação.
4.9 - Objetivação e princípio de identidade
Existe uma reciprocidade entre a inteligência e a vontade: a
atividade intelectual se desenvolve sob a égide de tendências e, freqüentemente,
a vontade depende de fins objetivos que lhe são oferecidos somente pela
inteligência.
A vontade está presente no caráter intencional de toda intelecção;
ela torna possível o uso atual de conhecimentos precedentemente adquiridos; ela
decide sobre a aceitação das certezas livres (crenças) e dos julgamentos de
opinião.
A inteligência por sua vez especifica cada movimento como ela é
apreensiva de verdades; ela propõe à vontade o objeto de volição ela move a
vontade como um fim conhecido, objetivamente move uma tendência
162
.
Resumindo: a vontade reivindica a prioridade enquanto a
intelecção é colocada em exercício por um dinamismo subjetivo e a inteligência
antecede a vontade como especificação.
Tudo isto se aplica especificamente ao tornar intelectual. De fato,
este antes de conhecer, está em potência com várias formas de intelecção. Ora,
162
Cf. MARECHAL, op.cit.,p.380
174
alguma coisa que está em potência com relação a vários objetos precisa de uma
dupla intervenção para sair de seu estado de potência. A primeira intervenção visa
o exercício, a colocação em movimento, a segunda traz a especificação. Ora, tudo
o que se refere ao movimento, ao exercício, intervém como orientação para um
fim, apresentado como um bem a obter.
A especificação, pelo contrário, vem da determinação do objeto,
como princípio formal: “O primeiro princípio formal, porém, é o ente, e certamente
universal, o qual é o objeto do intelecto. E, portanto, por meio do movimento o
intelecto move a vontade apresentando assim, o seu objeto.”
163
Então: “A vontade move o intelecto quanto para o exercício do ato
[...] Mas quanto para a determinação do ato que é da parte do objeto, o intelecto
move a vontade.”
164
Marechal conclui: Toda especulação é ação. As duas são
inseparavelmente ligadas. A especificação nunca vai sem exercício, e o exercício
nunca opera sem a forma que a determina. Mas isto traz esta grave conseqüência:
que não se pode jamais separar a forma ou a especificação (ou o fim) da realidade
ontológica que a leva. Em um conhecimento, todo objeto reveste um valor
ontológico pelo fato que ele está inserido num exercício do valor de ser. Para
julgar o objeto, é preciso considerá-lo na tendência que o leva para o fim.
Portanto, o valor do conhecimento não depende antes de tudo da
forma, ou do termo, ou do objeto, nem do fim, considerados isoladamente, mas
163
No original: Primum autem principium formale est ens, et verum universale, quod est objectum
intellectus. Et ideo isto modo motionis intellectus movet voluntatem sicut praesentans ei objectum
suum . (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I,82, 3 ,ad.3)
164
Voluntas movet intellectum quantum ad exercitium actus [...] Sed quantum ad determinationem
actus, quae est ex part objecti, intellectus movet voluntatem.” (Ibid., ad. 3)
175
da realidade ontológica que o conhecimento possui como coisa em exercício. A
própria verdade é um certo bem, ao lado do qual o intelecto é uma certa coisa, e a
verdade é um fim de si própria.”
165
“Está claro também que nada impede que a
verdade seja um certo bem, segundo o qual o intelecto que conhece é aceito
como certa coisa.”
166
A inteligência e suas operações pertencem a ordem da
finalidade: como realidades ontológicas. A tomada de consciência, a cognitio, é
assim o efeito imediato e proporcionado da verdade intelectual no sentido
ontológico da expressão, ou seja, do verdadeiro na sua fase vivida.
Se todo valor do conhecimento como dinâmica finalizante está
suspensa da realidade ontológica das faculdades que colaboram com sua
aparição, compreende-se porque toda objetivação deve atingir a realidade. Não
por causa de ser a caminho de um objetivo, mas por causa de sua inserção na
existência pelo exercício real que tende para um objetivo. A luminosidade interna
da consciência ilumina o objeto vivido, conforme ao atual imanente, sem nada a
suprimir e nada a acrescentar. Por consequente, fora desta fosforescência
reveladora, que é a primeira propriedade do ato como ato, tudo o que apresenta o
objeto consciente: diversidade material, estrutura sintética, oposição ao sujeito,
deve já estar determinado no jogo da inteligência considerada como faculdade
ontológica, como res submissa às leis gerais da causalidade e da finalidade.
165
No original: Ipsum verum est quodddam bonum, secundum quod intellectusres quedam est, et
verum finis ipsius. (Ibid. 1,82, 3, ad 1)
166
No original: Patet etiam quod nihil prohibet verum esse quoddam bonum , secundum quod
intellectus cognoscens accipitur ut quaedam res. (ARISTÓTELES, Metafísica, Livro VI, lição IV)
176
4.10 - O Absoluto e os primeiros princípios
Se a realidade se declara em primeiro lugar acima do dinamismo,
é preciso então estudar o conhecimento na sua primeira aparição, onde ele toma
sua origem: em seus atos primeiros da inteligência e da vontade.
Marechal insiste então em esclarecer a reciprocidade dos atos
primeiros e sua origem. Ora, a raiz psicológica (tanto quanto ontológica) da
reciprocidade entre as operações elícitas de nossas duas faculdades, constitui na
unidade natural da inteligência, o poder ilimitado de assimilação das formas, e da
vontade, apetite universal do bem.
O que nos interessa então é a origem primeira do conhecimento
quanto à relação com a especificação (o aspeto próprio da inteligência). Tal
origem se encontra na condição de natureza, que precede toda operação.
Ou seja, um agente exterior não seria necessário se a intelecção e
a volição fossem faculdades em ato. Mas ambas são somente e potencialmente,
operativas e exigem então quantum ad primum motum um agente dando a
primeira impulsão ao poder.
Mas antes de concluir este raciocínio referente à existência de
Deus, causa universal de toda moção, é preciso colocar os dois aspectos de
especificação formal e de exercício dinâmico ao mesmo tempo na inteligência e na
vontade. Como impulsão dinâmica, em exercício, independentemente de toda
especificação, a moção que constitui a inteligência em ato primeiro não difere da
177
moção natural em exercício expresso pela causa universal, como o princípio
formal e especificador da vontade e da inteligência.
Mas, para conduzir até ao alvo o intinerário de Marechal é preciso
incluir o próprio da causalidade no princípio da densidade em exercício.
É somente numa metafísica do ser, segundo o ato e a potência,
que a relação com a causa e com a necessidade de ser, tomam um sentido
existencial que pode designar Deus. A causa é transcendente porque ela é
atualidade pura, o ser necessário é infinito porque ele é o ser essência.
Assim, não é a referência da forma conceitual ao fim, não é o
único finalismo da tendência, que nos faz concluir a idéia de um Ser único e
necessário para a sua existência. Um final ideal, por mais perfeito que seja, não é
ainda uma existência real. O fim pode ser a soma de uma infinidade de perfeições
acabadas, mas permanecer na ordem da idéia. A ordem da finalidade, pelo
contrário, muda completamente a realidade da existência. Ela não é antes de tudo
uma idéia; ela é um fato e um fato que é ao mesmo tempo realidade, idéia e
tendência. Entregar exatamente esta ordem é possível somente numa metafísica
da potência e do ato, porque esta metafísica exprime ao mesmo tempo a
complexidade do movimento e sua relação com o ser.
Ora, esta ordem da finalidade, como foi visto, é a expressão de
um princípio de identidade que é concretamente vivido no ato da afirmação. E a
afirmação, realizando concretamente uma identificação de objeto e de sujeito, de
idealismo e de realidade, coloca ao mesmo tempo uma dependência real diante
de um ser objetivo, real e infinito.
178
Recusar esta dependência, é recusar a ordem mesma da finalidade. Aceitar
esta dependência é reconhecer um princípio de causalidade em exercício. Pois
reconhecer o princípio de causalidade é, da mesma forma, admitir que a
constituição no ser da tendência concreta exige uma relação ontológica a uma
origem existencial.
167
Que esta origem deve ser infinita, foi provado segundo
Marechal. Ainda é necessário justificar o princípio que nos permite apelar para
esta origem primeira. Ora este princípio se firma no ato da afirmação: ele é um
fato. É sua justificativa.
Os primeiros princípios são então para Marechal como a luz que
se recebe diretamente da inteligência e do amor de Deus. Em outras palavras:
toda tendência de nosso ser é exigência de explicação; a explicação é dada
implicitamente na presença dos primeiros princípios; ela deve somente se
explicitar.
Diante disso, um ser absoluto aparece como fundamento de nossa
existência consciente e dinâmica. Deve-se afirmar a existência de um Ato puro, do
qual participamos, senão toda nossa vida se torna um absurdo, um movimento
ilógico; e, contudo, este movimento exprime uma exigência de lógica e de
coerência.
167
No original: Refuser cette dépendance, d’un être refuser l’ordre même de la finalité. Accepter
cette dêpendance, c’est reconnaitre le principe de causalité en exercice. Car, reconnaitre le
principe de causalité c’est idenquement admettre que la constitution-dans-l’être de la tendace
concréte exige una relation ontologique à une origine existentielle. (DIRVEN, De la forma a L’acte,
p.270)
179
4.11 - O fim último do acontecer intelectual e o destino
sobrenatural
Para Marechal, Deus pode satisfazer às nossas faculdades
ativas: Deus é nosso último fim. Mas, posto que, em um sentido, Deus é o fim
último de tudo o que existe, é preciso saber como Ele é nosso fim. Do homem,
pois, a Deus, é o fim último, não de uma maneira qualquer, senão objetivamente,
segundo o modo próprio da inteligência e da vontade. A felicidade perfeita deve
consistir, para ele na saturação de suas faculdades superiores por Deus: “A
beatitude significa o bem perfeito da natureza intelectual”
168
. A nossa inteligência
deseja possuir direta ou indiretamente a Deus mesmo como sua própria forma
intencional; e a nossa vontade, chegada ao término de suas apetições, deve
comprazer-se totalmente nessa posse de Deus.
Desse ponto de vista critico, a conclusão seguinte nos basta pelo
momento a vontade tende para o ato final do intelecto, se bem que é necessário
acrescentar com Santo Tomás: “para o ato do intelecto, que é a beatitude”
169
.
A felicidade perfeita consisti na intuição do Ser absoluto, e é esta
plenitude intelectual que, em toda hipótese, define o termo objetivo de nossa
atividade. A felicidade perfeita, segundo Santo Tomás, não consiste neste
conhecimento confuso e geral que todo homem tem de Deus.
168
TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I, q.26, a.1 et 2, in c.
169
Ibid., q.26, a.2
180
Não consiste tampouco no conhecimento de Deus obtido por via
de demonstração, que este conhecimento, analógico, imperfeito e precário,
permanece infinitamente por debaixo da atuação completa do entendimento-
possível. Não buscaremos tampouco nossa felicidade última no conhecimento de
fé, na cognição de Deus, que é pela fé, porque se é verdade que a amplia o
objeto acessível a nossa inteligência é necessário reconhecer que constitui, em
outro aspecto, um modo de intelecção mais imperfeito
170
.
O conhecimento intuitivo do Ser absoluto não nos leva ao engano.
Por isso, Santo Tomás conclui com uma audácia perfeitamente justificada: A
última e perfeita beatitude não pode ser senão visão da divina essência
171
.
Contudo, o conhecimento intuitivo de Deus, o supremo inteligível, não admite a
interposição de uma representação material. A inteligência mesmo que unida à
sensibilidade garante para nós o patrimônio de outra vida. ‘É impossível que nesta
vida esteja a última felicidade do homem’
172
.
Portanto, a inteligência infinita, por perfeita que se a suponha,
alcança aqui os limites de sua potência natural de intuição; para subir mais acima
por seu próprio esforço, deveria sobrepassar-se a si mesma. E, sem embargo, seu
desejo profundo não fica satisfeito: “No conhecimento natural que as inteligências
separadas têm a respeito de Deus não descança o desejo natural
173
”.
E como deve ser esta visão se presume suficientemente pelo que foi
dito. Pois temos demonstrado que a substância divina não pode ser vista
170
TOMÁS DE AQUINO, Summa contra gentes, III, 39, 40
171
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, q.25, a.3
172
TOMÁS DE AQUINO, Summa contra gentes, III, 48
173
No original: In naturali cognitione quam habent substantiae separatae de Deo non quiescit eorum
naturale desiderium. (Ibid., III, 50)
181
pelo entendimento mediante uma espécie criada. Por isso, é peciso que o
entendimento conheça através da própria essência de Deus, de modo
que em tal visão seja a essência divina a que se conhece e também o
meio se conhecer
174
.
Assim, a última perfeição de nossa inteligência supõe com efeito a
libertação das amarras materiais, por meio de uma condição extrínseca, superior a
nossa natureza, ou seja, uma comunicação ativa do Ser absoluto, que nesse
sentido não exige nada a respeito da criatura teologicamente falando , uma “graça
sobrenatural”
175
.
A realização do Fim último acaba de aparecer-nos em total
dependência de um fator acerca do qual não temos nenhuma influência, nem
enquanto inteligência para prevê-lo, nem enquanto vontade, para procurá-lo.
Santo Tomás proclama que essa realidade não pode ser
conhecida mais que pela revelação do designo de Deus de comunicar-nos
sobrenaturalmente. Nesse contexto, Santo Tomás com o cuidado de não cair num
fideísmo, afirma que mesmo que a fé ensine que Deus quer ou não fazer
nossa felicidade sobrenatural, deduzimos legitimamente da disposição e do
dinamismo radical da inteligência e da vontade, a possibilidade absoluta desta
felicidade, isto é, a existência das causas objetivas que fazem possível sua
realização.
174
No original: Modus autem huius visionis satis iam ex dictis, qualis esse debeat, apparet.
Ostensum enim est supra, quod divina substantia non potest videri per intellectum in aliqua specie
creata. Unde oportet, si Dei essentia videatur, quod per ipsammet essentiam divinam intellectus
ipsam videat; ut sic, in tali visione, divina essentia sit et quod videtur et quo videtur. (Ibid., III, 51)
175
MARECHAL, op. cit., p.402
182
Foi provado acima que todo intelecto naturalmente deseja a visão da
substância divina. Um desejo natural, porém, não pode ser vazio.
Qualquer intelecto criado, portanto, pode chegar à visão da substância
divina, não impedindo a inferioridade da natureza.
176
Nosso desejo natural da visão de Deus pertence a outro plano.
Não existe, pois, nenhuma incompatibilidade lógica entre a “possibilidade em si”
do fim último, para o qual nos orienta nosso desejo, e a ausência de toda
possibilidade próxima de realizar este fim, rigorosamente sobrenatural, se um
dom inteiramente livre e gratuito por parte de Deus. E inclusive podemos dizer
mais adiante que tão pouco há, nisto, incompatibilidade moral.
Em Marechal, contudo, esse desejo da visão de Deus é um desejo
natural propriamente dito, visto que a inteligência no seu movimento e
dinamicidade discerne perfeitamente em nós a tendência radical, inelutável dos
desejos superficiais que nos levam à incoerência. Mesmo na atitude de perseguir
a verdade até no erro ou de buscar o bem até no mal, também a aspiração
incessante da felicidade perfeita, a qual pode ser encontrada em Deus. O
dinamismo implícito de nossa inteligência nos domina universal e
necessariamente, ainda que nossas interpretações explícitas deste dinamismo de
nossa vontade não dêem garantias
177
.
176
No original: Supra probatum est quo omnis intellectus naturaliter desiderat divinae substantiae
visionem. Naturale autem desiderium non potest esse iname. Quilibet igitur intellectus creatus
potest pervenire ad divinae substantiae visionem, non impediente inferioritate naturae. (TOMÁS DE
AQUINO, Summa contra gentes, III, 57)
177
Cf. MARECHAL, op. cit., p.406
183
Nesse sentido, Santo Tomás deixa clara a distinção entre a
felicidade única a qual cada um deseja implicitamente e a relativa que se quer
explicitamente ou, mais exatamente, que se deseja querer.
Santo Tomás, portanto, conclui que o impulso natural nos
direciona para a intuição imediata do Ser absoluto; sobrepassando a potência e
ultrapassando a exigência de toda inteligência finita integrada a seus recursos
naturais. E, sem dúvida, esse impulso radical que lhe faz tender Absoluto não é
concebível sem a possibilidade objetiva, pelo menos remota, de alcançá-lo.
Assim, a possibilidade objetiva, implica duas condições
necessárias: “a existência de um Ser absoluto, capaz de comunicar-se, e a
aptidão de nossa inteligência para receber esta comunicação”
178
.
178
Cf. Ibid., p.407
184
CONCLUSÃO
Ao longo deste trabalho, tentamos penetrar a doutrina autêntica de
Marechal. Tentamos resgatar o que a caracteriza: uma interpretação particular do
Kantismo, o recurso a um absoluto como horizonte do pensamento, o dinamismo
que sustenta a gênese do conhecimento, a reciprocidade da inteligência e da
vontade, a integração na razão teórica do Ato puro como condição a priori de toda
existência atual e a objetividade real de cada afirmação de objeto.
O objetivo deste trabalho foi mostrar como, na concepção de
Marechal, o Kant histórico ficou sempre fechado num formalismo relativo que se
orientava para um idealismo construtivo. Este formalismo precisava então,
reconhecendo o que ele tinha de válido, ser ultrapassado por um apelo ao ato.
Assim, Marechal entendia, de fato, que para um tomista, a crítica transcendental
devia ser integrada numa concepção existencial, que não pode se entender,
exceto num dinamismo intelectual e então na reflexão sobre a afirmação. Ela
atinge um valor real somente numa retomada do ato.
Marechal procura fundamentos de seu próprio pensamento na
tradição escolástica, onde ele estudou, durante vários anos, com coerência e
solidez. É ela que sempre lhe serve de critério e de referência.
Esta adesão não lhe impõe preconceitos. A corrente escolástica,
no seu conjunto, muitas vezes é assunto de desaprovação pelo fato de se fechar
185
nos seus próprios conceitos e ignorar as tendências modernas. Um tanto quanto
diferente, Marechal interpreta por um aspecto especial do kantismo e do tomismo
a possibilidade de instituir uma crítica para fundar uma metafísica. Suas
perspectivas, sua terminologia, sua maneira de delimitar e de tratar um problema,
são muitas vezes inspiradas nas Críticas. Em suma, no aspecto de seu
pensamento, ele procura ou consente em se deixar modelar pelo kantismo no
fundo do seu pensamento. Ele insere os elementos da crítica transcendental numa
visão pessoal do mundo, sem se concentrar no agnosticismo da obra de Kant e
nem abandonar São Tomás.
Mais flexível, menos dependente de seu meio, Marechal teve a
audácia de abordar Kant com uma real simpatia a fim de reconhecer o que era
válido, e tentou integrá-lo à filosofia tomista. Estudando, em seguida retomando as
obras de Kant, ele viu nele, primeiramente, um crítico, depois um metafísico,
enfim um idealista. E neste sentido, ele mostra como o Absoluto pode se re-
introduzir, afirmando e provando que a existência divina está implicitamente posta
em cada ato da inteligência, e que Deus ocupa um lugar central no nosso
pensamento e nosso agir. O caráter racional desta idéia de Deus: isto é para ele a
prova de sua necessidade, e igualmente de sua continuidade natural com as
aspirações profundas de Kant. Um kantismo fiel a ele mesmo, ao seus próprios
pressupostos, deve encontrar este Absoluto, sem o qual nenhuma objetividade
não é garantida e as prerrogativas essenciais do conhecimento se dissipam num
vago relativismo ou um idealismo subjetivo. Pelo menos neste sentido podemos
dizer que a originalidade de Marechal foi de ter tentado superar o kantismo
unindo-o ao tomismo.
186
Marechal prova que uma crítica transcendental inclui sempre um
apelo aos pressupostos metafísicos; que ela é totalmente compreensiva e
eficaz num dinamismo reflexivo; e que os problemas metafísicos criados por ela,
se resolvem unicamente no ato, ou seja, na afirmação do ser. Os problemas do
uno e do múltiplo, do contingente e do absoluto, da representação e da
significação, do agnosticismo e da cognoscibilidade metafísica, tem, segundo
ele, uma solução adequada numa posição atual, que é ao mesmo tempo
idealidade e realidade, consciência e vida. É esta a sua posição firme e definitiva a
qual ele nunca se distanciou: o ato vital faz a pergunta e pelo próprio fato a
resolve.
Este ato que significa também uma referência ao Ato puro, se
formula no seu pensamento pelos termos: afirmação metafísica e dinamismo
intelectual.
De fato, acredita-se que uma certa visão pode aprovar a
doutrina de Marechal. Esta visão consiste em procurar, para a ávida e os
problemas que ele oferece uma solução adequada, coerente e o tanto quanto
possível plenamente compreensível; trata-se então de crer na radical
inteligibilidade do real e só considerá-lo em relação a uma inteligência.
Inteligibilidade que, inclusive, não se fecha num racionalismo humano: ela
comporta até mesmo elementos irracionais, ao nível humano, tais como o amor ou
uma condição absoluta inatingível; mas mesmo assim é possível imaginar o
porquê e a necessidade.
Marechal parte de um sistema que se encontrava então no estado
fechado. Ele quebra a sistemática estreita e isto duplamente. Primeiramente se
187
interessa com um esforço sincero de compreensão ao kantismo e a outras
tendências atuais. Em seguida, se aplica em sobressair o elemento dinâmico e
ativo na teoria do ato e da forma. O tomismo escolástico que ele conhecia dava
como explicação metafísica da vida um conjunto de noções abstratas, racionais e
dogmáticas. A crítica kantiana o coloca em contato com uma concepção do
transcendental e do a priori que destrói todo jogo de palavras puramente lógico.
Por conseguinte ele se submete em repensar o sistema recebido numa
perspectiva mais dinâmica. O contato com os textos de São Tomás o fez perceber
então a unidade profunda de todas as faculdades humanas, a ultrapassagem ativa
da representação pela significação, o valor dinâmico do ato na relação ato-
potência.
A teoria do dinamismo intelectual pode ainda fornecer, nesta ótica,
uma resposta a múltiplas questões. Pois se a realidade é um todo inteligível o qual
as partes se unem, sem por isso ser isento de mistérios e de problemas para a
inteligência humana, uma explicação desta realidade, não pode parar no caminho,
mas deve ser empurrada até a fonte de toda inteligibilidade: o Absoluto. Para
enlaçar a totalidade, ela deve partir do Absoluto, principio da existência, e
encontrar o Absoluto, termo de toda tendência. De Absoluto a Absoluto passando
pela matéria pura ela encontra sua coerência na tensão dinâmica que liga o
princípio ao fim.
O a priori e o transcendental se encontram no centro desta
filosofia, pois elucidam, não o condicionamento e o mecanismo do conhecimento
da maneira que Marechal interpreta o pensamento de Kant, mas a unidade vital,
a verdade atual, a plena bondade do ser concreto no lugar e no tempo.
188
Mas, concebendo o a priori e o transcendental como termos que
expressam a referência do ser e do conhecer nas condições existenciais,
Marechal não pode fechar seu pensamento no horizonte restrito de um
humanismo relativo. Ele abre então este horizonte para um Absoluto que se
impõe implicitamente em toda parte. Ele persegue sua investigação além das
potências, além da natureza, além do sujeito e do objeto, a chegar na condição
primordial de toda possibilidade, de toda existência, de todo dado.
Marechal percebe então, uma coincidência entre o ato e a
compreensão, notavelmente no que ele chama de reflexão, e justamente esta
reflexão, revela a necessidade do Ato puro e absoluto.
Se atualmente certas tendências filosóficas se renovam
parcialmente por uma reflexão existencial sobre o esse e o ato da vida concreta do
homem, elas estão encontrando uma linha inaugurada vários séculos por
São Tomás. Este tomismo, Marechal não somente o compreendeu e o re-
examinou, mas explicito, adaptado e confrontado com a problemática de seu
tempo. Esta confrontação ficou singularmente atual e manteve seu vigor. Pois as
tendências agnóstica ocupam e defendem posições no mínimo muito discutíveis,
principalmente quando elas querem, numa oposição arbitrária ao Absoluto, Ato
puro envolver a reflexão num conteúdo do relativo humano e se limitar a
experiência existencial excluindo todo ato de discussão. Nestas questões elas
ainda não encontraram todo o valor racional e todo conteúdo teocêntrico da
antropologia tomista. Face a esta rejeição, a doutrina de Marechal afirma e
legitima o direito de se situar na verdade. O ato na sua racionalidade própria e
uma coincidência de sujeito e de objeto no ato do pensar e do querer liberdade
189
não impede de nenhuma maneira uma explicação discursiva e racional. Esta ação
de discutir é uma exigência própria da vida e do espírito.
190
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