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Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/IFCS
Mestrado em História Comparada/PPGHC
ADAM TOMMY VASQUES VIDAL
História do Circo Voador
Cultura, Sociedade e Democracia no Brasil
Contemporâneo
1982/1996
Rio de Janeiro
2006
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2
ADAM TOMMY VASQUES VIDAL
História do Circo Voador
Cultura, Sociedade e Democracia no Brasil
Contemporâneo
1982/1996
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em História Comparada, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em História Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Weffort
Rio de Janeiro
2006
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Vidal, Adam Tommy Vasques
História do Circo Voador – Cultura, Sociedade
e Democracia no Brasil Contemporâneo 1982/1992
2006
163 folhas
Dissertação (Mestrado em História Comparada)
Universidade Federal do Rio de janeiro,
IFCS, Rio de janeiro, 2005
Orientador: Prof. Dr. Francisco Weffort
1. Cultura e pós-modernidade 2. Ditadura no Brasil
3. Política e redemocratização no Brasil 4. Música, teatro, dança e cultura popular
5. Projetos sociais, cursos e oficinas
I. Weffort, Francisco (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
IFCS/Programa de Pós-Graduação em História Comparada
III. História do Circo Voador - Cultura, Sociedade e Democracia no Brasil
Contemporâneo
1982/1996
4
FOLHA DE APROVAÇÃO
História do Circo Voador - Cultura, Sociedade e Democracia no Brasil
Contemporâneo 1982/1996
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História Comparada, Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em História Comparada.
Aprovada em 04 de Setembro de 2006
(Prof. Dr. Francisco Weffort, IFCS/PPGHC,UFRJ)
(Profa. Dra. Maria Conceição Pinto de Góes, IFCS/PPGHC,UFRJ)
(Prof. Dr. Paulo Knauss de Mendonça, UFF)
5
RESUMO DA DISSERTAÇÃO
VIDAL, Adam Tommy Vasques. História do Circo Voador Cultura, Sociedade e Democracia no
Brasil Contemporâneo - 1982/1996, Rio de Janeiro; dissertação de mestrado PPGHC/UFRJ: 2005.
Este trabalho aborda a história do Circo Voador como instituição de cultura no período de
redemocratização do Brasil nos anos oitenta. Fizemos em um primeiro momento, uma abordagem da
cultura mundial a partir dos anos sessenta e um panorama histórico dos processos de consolidação da
cultura do nosso país.
Para ilustrarmos o novo movimento cultural que se firmava na década de 80, abordamos, em
um segundo momento, o Circo Voador, pois acreditamos que ele seja uma grande ícone não do
rock nacional desse período, como também da cultura da geração “abertura” que encontrou no Circo
Voador espaço para se desenvolver e criar novos agentes de cultura. O Circo Voador, na década de
80, assim como nos anos 90, foi de fundamental importância para firmar o novo movimento sócio-
cultural que nascia e crescia, a partir do período de redemocratização do país.
Atestamos também que o Circo Voador funcionou como instituição social trabalhado com
comunidades carentes, além de possuir uma creche funcionando em seu espaço e ministrar diversos
cursos para crianças e adultos. Neste sentido, nosso trabalho defende o Circo Voador como instituição
que ultrapassa os limites internos da produção cultural.
Por outro lado, a instalação do Circo Voador na Lapa foi fundamental para reutilização,
reocupação e conseqüente revitalização do bairro, antes abandonado em termos de segurança, lazer e
cultura.
Finalmente, concluímos que o Circo Voador possuiu grande importância ao caracterizar a
cultura e a arte como movimento social, não se resumindo apenas à expressão artística, mas
possibilitando também um projeto de inserção cultural, promovendo novos sujeitos sociais no Rio de
Janeiro e no Brasil.
6
ABSTRACT
VIDAL, Adam Tommy Vasques. História do Circo Voador Cultura, Sociedade e Democracia no
Brasil Contemporâneo - 1982/1996, Rio de Janeiro; dissertação de mestrado PPGHC/UFRJ: 2005.
This paper examines the history of the Flying Circus as a cultural institution during the
redemocratization of Brazil during the ’80s decade. To start, a summary of global culture aspects
marking the world from the ‘60s decade will be examined together with a panorama of the historical
cultural consolidation process underway in Brazil at that time.
To illustrate the new cultural movement that was forming in the 1980s, this study will look at
the Flying Circus as we believe that this to have been a major icon not only of national rock music in
the period but also the “opening” of a generation of culture that found in the Flying Circus, a space
for the birth and development of new cultural agents. The Flying Circus in the 80’s decade, as well as
in the 1990s, played a significant role in consolidating a new socio-cultural movement that was born
and began to flourish thanks to the redemocratization period experienced in Brazil at that time.
There are other substantiated indications at the Flying Circus also acted as a social institution
working with underprivileged communities and offered a popular daycare center used to organize
various courses for children and adults alike. In this sense, this paper defends the concept of the
Flying Circus as an institution that moved beyond the internal limitations of simple cultural
production.
The physical presence of the Flying Circus, set up in the old downtown Rio area called Lapa,
was a key factor in the revitalizing and reoccupation of this dilapidated section of the city which, had
virtually been abandoned by the urban population as a result of the lack of security and cultural and
recreational options in the area.
To conclude, the Flying Circus has played a significant role in the characterization of culture
and art as social movements, not simply reduced to artistic expressions and has made feasible, a
cultural insertion project that promoted new social advancements for Rio de Janeiro and for Brazil.
7
RÉSUMÉ DE LA DISSERTATION
VIDAL, Adam Tommy Vasques. História do Circo Voador Cultura, Sociedade e Democracia no
Brasil Contemporâneo - 1982/1996, Rio de Janeiro; dissertação de mestrado PPGHC/UFRJ: 2005.
Ce travail aborde l´histoire du Cirque Voleur comme institution culturelle à l´époque de la
rédemocratization du Brésil dans les années 80. Dans um premier temps nous avons fait une approche
de la culture mondiale à partir des années 70 ainsi comme un panorama historique des processus de
consolidation de la culture de notre pays.
Pour illustrer le nouveau mouvement culturel qui s´installait dans les années 80, nous avons
abordé dans un deuxième moment l´histoire du Cirque Voleur, puisque nous défendons son
importance comme icone non seulement du Rock national, mais aussi comme symbole de la culture
de la génération « ouverture » qui a trouvé au Cirque Voleur un espace pour dévelloper, créer et
entretenir de nouveau agent de culture. Le Cirque Voleur des années 80 ainsi comme des années 90, a
été d´importance fondamentale pour donner de la force et établir le nouveau mouvement socio-
culturel qui naissait et se développait au début de la rédémocratization du Brésil.
Nous nous sommes rendu-compte aussi que le Cirque Voleur a fonctionné comme institution
sociale travaillant avec des communautés déporvus et des favelas. Le Cirque Voleur donnait aussi des
cours pour enfants et adultes et avait une crèche qui fonctionnait à l´intérieur de son espace. Nous
défendons ainsi le Cirque Voleur comme institution qui a dépassé les limites internes de la production
culturelle.
D´un autre côté, l´installation du Cirque Voleur à Lapa a été fondamentale pour la
réutilization, réoccupation et par conséquence révitalization de ce quartier qui avant était abandonné
en ce qui concerne la sécurité, le loisir et la culture.
Enfin nous avons conclu que le Cirque Voleur a été très important puisqu´il a caractérisé la
culture et l´art comme mouvemnent social, ne se limitant pas à l´expréssion artistique, mais
possibilitant aussi un projet d´insertion culturelle, créant d´autres acteurs sociaux à Rio de Janeiro et
au Brésil.
8
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro, lugar à minha e por ter me apresentado vários domínios da arte
desde criança. Agradeço à ela por ter me incentivado, quando tomei a decisão, em 1996, de fazer
uma transferência interna de curso, na UFF, deixando o curso de Economia para ingressar na
Faculdade de História.
Agradeço ao meu orientador, Dr. Francisco Weffort, por me aceitar como seu orientando,
incentivando de imediato a idéia de trabalhar com o Circo Voador. Orientando-me sempre de forma
clara e pontual, resolveu assim minhas dúvidas e ampliou meu horizonte dentro do tema pesquisando.
Agradeço em particular à Dra. Maria Conceição Pinto de Góes por toda sua generosidade,
atenção e carinho, sempre me auxiliando de forma clara e serena na minha formação como
intelectual.
Agradeço com muito carinho ao meu orientador na graduação em História na UFF, Dr. Paulo
Knauss de Mendonça, que viu a idéia de trabalhar com o Circo Voador nascer, sempre me
estimulando a trabalhar com o tema e que logo me incentivou a tentar o mestrado.
Agradecimentos especiais ao Perfeito Fortuna por todas as entrevistas e esclarecimentos que
foram primordiais para o bom desenvolvimento do presente trabalho.
Agradeço à Maria Juçá que me atendeu com muita simpatia e estímulo, sendo também uma
das peças fundamentais na elaboração deste trabalho.
Agradeço ao jornalista Arthur Dapieve que me recebeu muito gentilmente em sua residência,
me dando um depoimento enriquecedor e esclarecedor sobre vários momentos da história do BRock e
do contexto sócio-cultural da época.
Agradeço ao Departamento de Historia Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro
espaço onde me enriqueci enormemente, em aulas, leituras, conversas... Agradeço por ter podido
ainda estudar em uma universidade pública com qualidade de ensino.
Agradeço a todos os artistas que alegram e atingem os seres humanos, cada um de forma
diferente e universal, e oferecem a nós historiadores fontes extremamente ilustrativas e particulares
para um olhar sobre as sociedades, a cultura e a história.
9
SUMÁRIO
Introdução 13
Parte I – Cultura, política e economia no Brasil e no mundo pós-moderno. 16
Capítulo I - Contexto cultural e político mundial: os impasses do mundo
contemporâneo. 16
Capítulo II - Cultura brasileira e identidade nacional: uma breve e necessária retrospectiva
da história da cultura no Brasil. 20
1 - O Estado Novo e uma nova abordagem cultural. 20
2 - O surgimento da cultura de massa no Brasil: as décadas de 40 e 50. 22
3 - Alienação e cultura: ISEB. 26
4 - Identidade nacional x dominação estrangeira. 27
5 - Da cultura desalienada à cultura popular: CPC 29
6 - O Estado e as políticas culturais. 30
Capítulo III - Estado, política e cultura de massa. 32
1 - A cultura e a repressão como formas de controle social: o regime militar
pós-64 e a censura. 32
1.1 – Os antecedentes ao golpe de 64. 32
10
1.2 – O golpe dentro do golpe: 1964-1968. 34
1.3 – A ditadura militar no Brasil. 39
1.4 - A crise dos anos 70, o fim da ditadura militar no Brasil
e o período de redemocratização. 41
2 - Cultura, repressão, resistência e mercado na ditadura militar. 44
2.1 – Considerações prévias sobre identidade nacional. 44
2.2 – Os anos 70 no Brasil. 45
2.3 - O Centro Nacional de Referência Cultural sob a direção de AloísioMagalhães. 48
2.4 - O mercado cultural no contexto capitalista da Ditadura brasileira. 50
2.5 – Asdrúbal Trouxe o Trombone. 55
2.6 – A Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV). 57
3 - Um pouco mais sobre a década de 80 no Rio de Janeiro. 61
3.1 - Os anos 80 no Brasil. 61
3.2 – Fundação da Escola Nacional de Circo. 63
3.3 – A Intrépida Trupe. 65
3.4 – Artistas e curiosidades da década de oitenta. 66
3.5 - A decadência do mercado fonográfico no início dos 80. 67
Parte II: o Circo Voador 69
Capítulo I - O Circo Voador, surgimento de um espaço alternativo de cultura. 70
1 - Curriculum vitae dos fundadores. 72
2 - Ergue-se a lona no Arpoador. 73
11
3 - A banda Blitz: um exemplo de grupo que levantou asas na esteira do Circo. 78
4 - O Circo na “lona” despede-se do Arpoador. 78
Capítulo II - O Circo Voador na Lapa é um novo espaço de lazer e alegria do carioca. 80
1 - O rock nacional, o projeto “Rock Voador”e a Rádio Fluminense. 83
1.1. O Brock. 83
1.2 O projeto Rock Voador. 87
1.3 A Maldita, a rádio Fluminense. 90
2 - A Domingueira Voadora. 92
3 - Dança e “Domingo do Corpo”. 93
4 - O Circo Voador, um espaço do teatro desde seus primórdios. 97
5 - A ginga da capoeira está no circo. 98
6 - O Circo, diversificação e perfil revolucionário. 100
7 - Cultura popular no Circo Voador. 103
Capítulo III - O “Circo social”- cursos diversos, a CrecheApareche, o Projeto Favela
e a criação de posto de saúde. 105
1 - Um espaço para a educação e a cidadania. 105
2 - Um exemplo ilustrativo de atividade social: a CrecheApareche. 108
3 - Investidas do Circo Voador nas comunidades carentes - o Projeto Favela. 109
Capítulo IV - O Circo e seus tentáculos: viagens por todo o país e
até mesmo ao exterior. 111
12
1 - A Coluna Voadora: “eu não prestes, mas eu te amo”. 111
2 - O Circo chega a São Luís do Maranhão. 112
3 - A Coluna Voadora chega a Recife. 113
4 - Um outro Circo nasce em Nova Friburgo. 113
5 - O Circo vai à copa do México. 114
6 - Estação Cabo Frio. 118
7 - O Circo Voador e a Fundição Progresso. 120
Capítulo V - O Circo Voador, espaço da democracia. 123
1 - Um espaço coração de mãe que abrangeu todas as formas 124
de arte e expressão cultural.
2 - A diversificação de seu público: uma prova de democracia e cidadania. 125
3 - Um discurso político diferente. 126
4 - O Circo e o movimento das “Diretas Já”. 128
Capítulo VI - Um novo Circo abre suas asas. 130
Capítulo VII - O processo de fechamento do Circo Voador. 131
Capítulo VIII - As Lonas Culturais no Rio de Janeiro. 135
1 - A gênese das lonas culturais: o Teatro de Arena. 136
2 - As lonas culturais do Rio de Janeiro. 137
13
2.1 A lona Elza Osborne. 137
2.2. A lona cultural Hermeto Pascoal. 138
2.3 Lona cultural Gilberto Gil. 138
2.4 Lona cultural João Bosco. 139
2.5 Lona cultural Carlos Zéfiro. 139
2.6 Lona cultural Terra. 140
2.7 Lona cultural Sandra Sá. 141
2.8 Lona cultural Herbert Viana. 141
3 - Política cultural e social das lonas culturais. 141
Conclusão 144
Anexo I: linha do tempo 149
Anexo II: linha do tempo 152
Referências bibliográficas 174
14
INTRODUÇÃO
Estou presente em todas as partes
e para ver melhor,
para melhor arder,
me apago.
Octavio Paz
Todo homem ao olhar em volta de si, ao olhar para seus amados, para seus inimigos ou para
um simples objeto, enxerga através de um “filtro”. Tomemos um exemplo para melhor elucidar esta
afirmação. Se fotografarmos um objeto qualquer com um filtro de luz, e depois tirarmos uma outra
foto do mesmo objeto, desta vez sem filtro algum, teremos duas imagens do mesmo objeto. No
entanto, não teremos duas imagens iguais. O objeto é o mesmo, mas a forma de olhá-lo, de captar a
coisa, foi diferente.
O que quero afirmar aqui é algo muito defendido: o fato de que o homem, estando
inserido em seu tempo, em um determinado contexto histórico, percebe as coisas através destes
“filtros” desenvolvidos pelas suas vivências e conseqüentes críticas e opiniões. Como nos diz
Hobsbawm: “É inevitável que a experiência pessoal [no tempo] modele a maneira como [...] vemos
[os fatos], e até a maneira como avaliamos a evidência à qual todos nós, não obstante nossas opiniões,
devemos recorrer e apresentar.”
1
De fato, não podemos deixar de ser o que somos: homens em seu tempo, o quê torna as nossas
convicções apaixonadas e as experiências históricas e sociais que as formaram a “grande lente” com a
qual “olhamos” o mundo e percebemos a própria História. O historiador por sua vez, como agente
particular, deve ter a consciência plena para desenvolver um trabalho o mais fidedigno possível e com
real compromisso histórico. Para tal é necessário, além de um trabalho considerável de pesquisa e
reflexão teórica, a suspensão de determinadas crenças baseadas em sua própria experiência de vida.
Mas, como sabemos, a história é sempre reconstrução
2
e o próprio historiador está, como qualquer
homem, engajado, de uma forma ou de outra, em seu tempo. Sendo assim, é preciso que o historiador
1
HOBSBAWM, Eric. (1998) Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras.
2
FERREIRA, Marieta Moraes & AMADO, Janaína (org.) (2001). Usos & abusos da história oral. 4
a
ed. Rio de
Janeiro: Editora FGV.
15
considere os conceitos e as linhas de investigação e suas evidentes técnicas que devem ser utilizadas
durante a pesquisa, de forma a termos um trabalho final de real valor histórico.
No que tange à presente pesquisa, que tem como tema o Circo Voador, trabalhamos com a
história do presente. Lançamos mão da história oral, utilizando-nos de entrevistas, além do recurso a
fontes da imprensa e da mídia em geral. No que diz respeito aos conceitos e técnicas da história oral,
utilizamos diversos procedimentos, como a escolha dos informantes, a construção de sua ficha
sumária, a preparação da entrevista em si, as técnicas de transcrição da fita da entrevista e a
preservação da fita.
Por outro lado, nos deparamos com o âmago da história oral: a relação entre memória e
história. Trabalhar com a memória, é trabalhar com a ressurreição do passado, ou com essa dimensão
física e psíquica, essa passagem do passado para a consciência da percepção.
3
O trabalho de
construção da memória é no entanto um trabalho social onde utilizamos a língua, o contato humano
direto.
4
Existem pessoas às quais nós podemos ter acesso através da história oral, como é o caso
dos analfabetos, das crianças, dos loucos, dos miseráveis e dos excluídos em geral. Ainda neste viés,
podemos dizer que a história oral evoca a ‘história dos excluídos’ no nosso debate histórico.
É claro que o trabalho com a memória apresenta uma série de problemas, pois toda memória
contém a elaboração ideológica de um discurso político. Além disso, ao trabalharmos com um tema
como o Circo Voador, teremos que lidar com a história do tempo presente, e assim conviver com
testemunhas vivas, presentes no momento do desenrolar dos fatos, que podem vigiar ou contestar o
pesquisador.
5
Podemos nos perguntar também se a relação entre memória e história é de diálogo ou
de oposição. Apesar de conscientes de toda a problemática que envolve a história oral, estamos certos
de que é impossível a deixarmos de lado para abordarmos o tema da presente dissertação: a História
do Circo Voador.
O Circo Voador foi uma instituição cultural e social, que no contexto da abertura política e
conseqüente redemocratização do Brasil, incorporou o espírito dos artistas alternativos e tomou
forma de uma lona de circo nas areias da praia do Arpoador, Copacabana, Rio de Janeiro, em janeiro
de 1982. O Circo Voador acabou por se instalar em definitivo sob os Arcos da Lapa, Rio de Janeiro,
3
H. Bergson
4
Hallbwachs.
5
FERREIRA, Marieta Moraes & AMADO, Janaína (org.) (2001). Usos & abusos da história oral. 4
a
ed. Rio de
Janeiro: Editora FGV.
16
no dia 23 de outubro do mesmo ano e funcionou até o dia 18 de novembro de 1996 quando teve seu
alvará caçado pela Prefeitura do Rio de Janeiro.
Concebido por Perfeito Fortuna, Márcio Galvão e Maurício Sette, e “apadrinhado” pela
primeira dama do Estado do Rio de Janeiro, Dona Zoé de Chagas Freitas, podemos dizer que o Circo
Voador era um audacioso misto de centro cultural e comunitário, estando aberto a todas as formas
de manifestações artísticas e educacionais.
6
O Circo Voador foi um espaço de promoção da cultura,
do saber e da cidadania que durante mais de 15 anos abrigou as mais diversas expressões artísticas do
teatro, da música, do circo, da poesia, dentre outras, sempre incorporando o perfil alternativo e
revolucionário de seus artistas que talvez sem se dar conta disso iniciaram um importante movimento
de renovação cultural.
Pelo Circo Voador passaram Ziraldo, Millôr Fernandes, tantos grupos teatrais como Coringa e
o Asdrúbal Trouxe o Trombone, a Escola Nacional de Circo, o Tà na Rua, Carlinhos de Jesus, Débora
Cocker, Casseta e Planeta, Chacal, etc. Na música podemos lembrar de apresentações históricas para
todos os gostos: Blitz, Geraldo Azevedo, Ivone Lara, Caetano, nosso atual Ministro da Cultura
Gilberto Gil, Erasmo Carlos, Zezé Mota, Yuri Popoff, Chico Science e Nação Zumbi, O Rappa, o
norte americano James Taylor, & Guarabira, Palalamas do Sucesso, Clementina de Jesus, Wilson
Moreira, Raul de Barros, Altamiro Carrilho, e tantos mais.
6
Site: www. Circo Voador. com.br e depoimento de Maria Juçá. Informações tomadas em 23/10/2003.
17
Parte I – Cultura, política e economia no Brasil e no mundo pós-moderno.
Capítulo I - Contexto cultural e político mundial: os impasses do mundo contemporâneo.
Eu aceito o caos,
o que quero saber
é se o caos me aceita.
Bob Dylan
Começarei estas linhas defendendo que os anos sessenta e setenta foram grandemente
significativos e ilustrativos no que toca à revolução cultural contemporânea. Concordo, por um lado,
com Hobsbawm, e penso que de certa forma, a melhor abordagem dessa revolução cultural se faz
através da família e das casas, ou seja, através das relações entre os sexos e as gerações.
7
Citemos alguns aspectos a título de ilustração do que chamamos de revolução cultural: a
desaceleração da economia e de sua prosperidade no pós-Segunda Guerra; a Revolução dos
estudantes em 68; a Revolução Cultural na China; a Guerra Fria; o período Brejnev na URSS; o
Vietnam; Gandhi no poder; os anticoncepcionais; o aborto, o divórcio, os filhos ilegítimos; a redução
do desejo de ter filhos; a emancipação da mulher; os hippies; os Beatles; Bob Dylan; o primeiro
transplante de coração; as drogas se multiplicando junto com as armas; vida e assassinato de Martin
Luther King, vida e assassinato de Kennedy, vida e assassinato de Malcolm X; a aparição da fome na
mídia
8
; a ecologia; a homossexualidade e a bissexualidade chegando ao grande público; o número
crescente de pessoas que passam a viver só...
A crise da família e do indivíduo social estava instaurada e parecia relacionar-se diretamente
com mudanças extremamente fortes nos padrões públicos que governam a conduta sexual, a parceria
e a procriação. De fato, todas as mobilizações, inquietudes, criatividade e esperanças que surgiam
nesse período demonstravam justamente o que chamamos de “mal-estar da civilização”, mal-estar
este do qual os principais portadores eram os jovens. Para muitos intelectuais e pensadores não se
7
HOBSBAWM, Eric. (1995) Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras.
8
CASTRO, Josué (2003) Geografia da fome. 3
a
ed. Rio de janeiro: Civilização Brasileira. A obra é um estudo
clássico sobre a questão da fome no Brasil. uma abordagem desta questão no mundo
contemporâneo no prefácio da mesma obra.
18
desenvolveu necessariamente uma revolução política que, de fato não aconteceu, e sim uma revolução
no âmbito das culturas e mentalidades, revolução esta tão bem expressa no avanço da liberdade
sexual e na afirmação do feminismo.
9
Devemos nos lembrar aqui de momentos históricos de todo
ilustrativos como a “Primavera de Praga”, as manifestações nas universidades americanas contra a
Guerra do Vietnã e o racismo, e a revolta dos estudantes parisienses em maio de 68.
A vitória da guerrilha cubana na América Latina, bem como o contexto mundial, mostravam
que o imperialismo revelava nítidos sinais de fraqueza. No plano geral da cultura, além da nítida
revolução dos costumes, surgiam novas formas de expressão artística. Em alguns países ditos
periféricos, submetidos a regimes ditatoriais, como foi o caso do Brasil, ocorreu uma espécie de
florescimento cultural.
O mundo pós-moderno transformava-se grandemente, e isso demandava tempo e “digestão”.
Neste sentido, aparece-nos um paradoxo, pois, se por um lado o processo de constituição da
subjetividade demanda tempo, o da cultura (pelo menos a contemporânea) pede instantaneidade.
10
Dentro do quadro onde o tempo do instantâneo se torna a máxima da cultura imagética, as relações
humanas são atingidas diretamente pela cultura do instantâneo, em que não lugar nem tempo para
relações duradouras, visto que as relações precisam adaptar-se ao tempo-prazer-contínuo. Nesse novo
contexto, a felicidade se configura como sinônimo de euforia e inscreve-se, muitas vezes, sob égide
da droga e do consumo desenfreado que se multiplicará em nosso tempo.
11
O divórcio, os nascimentos ilegítimos e o aumento de famílias com um dos pais (na grande
maioria das vezes a mãe) são indícios bastante fortes de uma crise entre os sexos. Por outro lado, o
aumento de uma cultura específica e extraordinariamente forte indicava uma evidente e profunda
mudança na relação entre as gerações.
12
A juventude passou, por sua vez, nas décadas de setenta e oitenta, a ser um agente social
independente. O mercado capitalista entendeu que essa juventude era uma massa gigantesca de
consumidores em potencial, que fazia a fortuna do mercado fonográfico através do rock. Sendo assim,
o surgimento do adolescente como ator consciente de si mesmo passou a ser tomado como algo de
extrema importância pelos fabricantes de bens de consumo. De fato, a juventude começou a
9
Fausto & Devoto, 2004.
10
Maia, 2003.
11
Op. cit.
12
Hobsbawm, 1995.
19
representar uma massa concentrada de poder de compra de incrível internacionalismo, aparecendo o
blue jeans e o rock como marcas, ícones da juventude moderna. Todo esse contexto cultural
possibilitou ao jovem dos anos 70 e 80 a descoberta de símbolos materiais ou culturais de identidade
que foram fundamentais no contexto político e cultural tanto dessas décadas quanto dos dias atuais.
Foram essas gerações que também lutaram pela abertura política no Brasil, através não das armas,
mas também das artes e das expressões tão variadas de nossa cultura e identidade. Os artistas ditos
‘alternativos’ são um dos exemplos fundamentais desta luta militante, e, no nosso entender, o mais
importante no que tange ao nosso objeto de estudo - o Circo Voador.
Assim, a cultura jovem foi a matriz da revolução cultural (no sentido mais amplo de uma
revolução nos modos e sentidos da sociedade contemporânea) e foi ela que formatou a atmosfera
respirada por homens e mulheres vivendo no ambiente urbano. Por outro lado, tal abundância de
mudanças culturais e de mentalidades como um todo, trouxe para todos um estranhamento que
poderia ser comparado, por exemplo, àquele vivido durante a época dos grandes descobrimentos e da
busca pelo Novo Mundo. Na passagem dos anos sessenta aos oitenta o mundo mudava claramente, e
isso se via na televisão, nas propagandas, nos outdoors, nos transportes, nas armas, na velocidade das
coisas, na família, na escola, nas praças, e agora nos shoppings.
A questão é que o homem no seu ‘novo tempo’, nesse novo mundo de mudanças perceptíveis
a olho nu, desenvolveu múltiplas modalidades de sofrimento. É claro que o homem sempre sofreu, e
algumas das questões inerentes ao homem parecem apenas repetir-se em contextos diversos,
adquirindo o que eu chamaria de outro “colorido”. No entanto, a psicanálise mostra que a mudança
face ao sofrimento está na sua abundância e, por outro lado, na intenção do meio psicanalítico de
acolhê-lo clinicamente. Como observam Green e Pontalis (ap. Maia, 2003), desde o início da década
de setenta, o perfil da demanda clínica vem se modificando e os casos ditos difíceis se tornam mais
freqüentes, já não sendo considerados ‘exceção’.
13
O mundo contemporâneo é, por excelência, o mundo das indagações, dos questionamentos,
das revoluções de mentalidades - um momento de “rasgo histórico”. A cultura contemporânea rompe
com valores sociais e culturais que eram garantias ao homem desde a era moderna e nos lança em
uma ‘cultura do imediato’, do instantâneo, da adaptatividade constante, da especialização permanente.
Essas tendências, certamente, não afetaram todo o Mundo de forma necessariamente uniforme e
homogênea. O que é preciso compreender, contudo, é que elas se apresentam como marcantes e
13
Maia, 2003.
20
ilustrativas das décadas de sessenta e setenta em praticamente todo o globo, e por isso podem ser
abordadas e discutidas no plano da cultura mundial ocidental.
Capítulo II - Cultura brasileira e identidade nacional: uma breve e necessária retrospectiva história
da cultura no Brasil.
1 - O Estado Novo e uma nova abordagem cultural.
A partir das primeiras décadas do século XX o Brasil começa a sofrer mudanças profundas. A
urbanização e a industrialização aceleram-se, surgindo uma classe média e um proletariado urbano.
Se o modernismo é considerado por muitos como um ponto de referência, é porque este movimento
cultural trouxe consigo uma consciência histórica que até então se encontrava de maneira esparsa na
sociedade.
14
O fox-trot, o cinema, o telégrafo e as asas do avião apontavam de fato para uma gama de
transformações que ocorriam no seio da sociedade brasileira.
Com a revolução de 30, o Estado, procurando consolidar o próprio desenvolvimento social,
reorienta politicamente as mudanças que vinham ocorrendo. Dentro deste contexto, as teorias racistas
do século XIX tornam-se gradativamente obsoletas, visto que a realidade social impunha um outro
tipo de interpretação do Brasil. As obras Casa Grande e Senzala (1936) de Gilberto Freyre, Evolução
Política do Brasil de Caio Prado Júnior (1936) e Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buarque de
Hollanda vêm atender à “demanda social” e comprovam, como afirma Carlos Guilherme Mota (ap.
Ortiz, 1994) em seu livro Ideologia da Cultura Brasileira, que os anos 30 foram decisivos na
reorientação da historiografia brasileira.
15
Para Renato Ortiz:
Sérgio Buarque e Caio Prado Júnior estão na origem de uma instituição recente na sociedade
brasileira: a universidade. Neste sentido eles são os fundadores de uma nova linhagem, que busca
no universo acadêmico uma compreensão distinta da realidade nacional. Não é por acaso que a
USP é fundada nos anos 30, ela corresponde à criação de um espaço institucional onde se
ensinam técnicas e regras específicas ao universo acadêmico. Gilberto Freyre representa o ápice
de uma outra estirpe que se inicia no século anterior mas que [...] se prolongou até hoje como
discurso ideológico.
16
14
Ortiz, 1994.
15
Op. cit.
16
Op. cit, p. 40.
21
Com relação a Gilberto Freyre, não podemos falar de uma ruptura, por exemplo, com a obra
de Silvio Romero (que se voltava para a questão da cultura popular no século XIX), mas sim de uma
reinterpretação da mesma problemática proposta pelos intelectuais do final daquele século. Neste
sentido, Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite
completar definitivamente os contornos de uma identidade nacional que há muito vinha sendo
desenhada.
17
Dentro do contexto de um novo Estado e dos rumos do desenvolvimento, o mito das três raças
torna-se então plausível. A ideologia da mestiçagem, ao ser reestruturada, libertando-se das
ambigüidades das teorias racistas, pôde difundir-se socialmente, tornando-se senso comum,
‘ritualizando-se’ e sendo celebrada nas relações do cotidiano, ou em grandes eventos populares como
o carnaval e o futebol. A idéia de mestiço desvincula-se das teorias racistas e passa a dar uma
identidade ao brasileiro, ou seja, o mestiço torna-se nacional. Ao retomar a problemática da cultura
brasileira, Gilberto Freyre, assim, oferece ao brasileiro uma carteira de identidade. A ambigüidade da
identidade do Ser nacional forjada pelos intelectuais do século XIX, havia de fato tornado-se
incompatível com o processo de desenvolvimento econômico e social do país.
Assim, nos anos 30, transforma-se radicalmente o conceito de homem brasileiro e qualidades
como a preguiça e a indolência, consideradas como inerentes à raça mestiça, são substituídas por uma
ideologia do trabalho. Como mostram alguns cientistas políticos, como Lippi (1980), tal ideologia
constituiu-se como a pedra de toque do Estado Novo, o mesmo processo sendo identificado na ação
cultural do governo de Vargas. Assistimos, nesse momento, a uma transformação cultural profunda
onde se busca adequar as mentalidades às novas exigências de um Brasil “moderno”.
Durante o Estado Novo, o aparelho estatal encontra-se também associado à expansão da rede
das instituições culturais, à criação de cursos do ensino superior, e, como estamos tentando
demonstrar, à elaboração de uma ideologia da cultura brasileira. Nesse sentido, a revista Cultura e
Política foi, entre 1941 e 1945, um órgão ideológico do Estado, no mesmo período em que o DIP
(Departamento de Imprensa e Propaganda) exerceu suas funções de censura.
18
Seguindo a mesma linha de raciocínio da elaboração de uma ideologia da cultura brasileira
por parte do Estado Novo, nunca é demais lembrar que os canais de televisão e rádio eram
concessões estatais que podiam ser revogadas a qualquer momento, e que o controle massivo do
17
Op. cit.
18
Miceli, 1984.
22
Estado fez-se sentir, em relação à cultura, pelo menos desde a criação da indústria cultural.
19
Na
década de 30, quando uma sociedade urbana industrial começa a se consolidar no Brasil, a
interferência estatal em relação à cultura passa a se acentuar. É neste sentido que nos parece
revelador que uma das preocupações centrais do DIP na época do Estado Novo tenha sido a de
inverter na música popular brasileira a tendência à exaltação da malandragem, procurando incentivar,
por todos os meios, a valorização do trabalho. A idéia de seriedade esteve também acompanhada de
outro tipo de ideologia: a glorificação de determinado tipo específico de brasileiro.
20
Em suma, podemos afirmar que durante o Estado Novo desenvolvem-se duas tendências
complementares do Estado em relação à cultura. O Estado interfere proibindo e censurando aquilo
que é visto como prejudicial à imagem “séria” do Brasil, mas, em contrapartida, atua promovendo a
imagem sui generis de nossa cultura. O papel do Estado é, assim, não apenas o de agente de
repressão e de censura, mas também de incentivador da produção cultural, criador de uma imagem
integrada do Brasil que tenta se apropriar do monopólio da memória nacional. O Estado mantém
acesa a chama da memória nacional e se transforma assim no criador e bastião da mesma.
21
2 - O surgimento da cultura de massa no Brasil: as décadas de 40 e 50.
Para Ortiz (1991), é somente na década de 40 que podemos considerar, de forma cabível, a
presença de uma série de atividades que podem ser ditas como vinculadas a uma cultura popular de
massa no Brasil. É de fato na década de 40 que podemos apontar o início de uma “sociedade de
massa” no Brasil, visto que é nessa época que se consolida o que os sociólogos denominaram de
sociedade urbana industrial. É importante lembrar que a sociedade brasileira, particularmente após a
Segunda Guerra Mundial, se moderniza em diferentes setores. Devemos, por conseguinte, entender
como se articulam, nesse período, os diversos ramos de produção e difusão de massa.
22
O rádio foi introduzido no Brasil em 1922 e, até 1935, organizava-se basicamente em termos
não-comerciais (as emissoras constituindo-se em sociedades e clubes cujas programações eram de
cunho erudito, literário e musical).
23
Na década de 20 existiam poucos aparelhos, e o ouvinte devia
pagar uma taxa de contribuição para o Estado pelo uso das ondas. Esta pode ser considerada como
19
Op. cit.
20
Op. cit.
21
Op. cit.
22
Ortiz, 1991.
23
Federico, 1982.
23
uma fase de experimentação do novo veículo, estando este fundado mais no talento e na
personalidade de alguns indivíduos, do que numa organização de tipo empresarial.
A situação começa a mudar a partir da década de 30, com a introdução dos rádios de válvula,
que vêm baratear os custos de produção dos aparelhos, e possibilitar sua difusão junto a um público
ouvinte mais amplo. Com a legislação de 1952 será permitido o aumento percentual da publicidade
(que havia sido introduzida nas rádios em 1932) para 20% do tempo da programação. Tal dimensão
comercial acentuou-se, concretizando-se desta forma a expansão de uma cultura de massa que
encontra no meio radiofônico um ambiente propício para desenvolver-se.
24
É ainda nas décadas de 40 e 50 que o cinema se torna de fato um bem de consumo,
particularmente em função da chegada dos filmes americanos, que no pós-guerra dominam o mercado
cinematográfico (não apenas brasileiro), devido à política exportadora de filmes americanos que se
torna mais agressiva, iniciando-se uma política de criação de órbita cultural e política americana.
25
Além disso, na década de 40 foram criados novos centros de produção cinematográfica em São Paulo.
Devemos ainda sublinhar que a década de 40 caracteriza-se por uma aproximação entre Washington e
a América Latina através de sua “política de boa vizinhança”, segundo a qual o desenvolvimento do
cinema dar-se-ia estreitamente vinculado às necessidades políticas dos EUA e às necessidades
econômicas dos grandes distribuidores de filmes no mercado mundial.
26
Se abordarmos o mercado de publicações, podemos afirmar que houve também um grande
desenvolvimento nesta área, ampliando-se o número de jornais, revistas e livros. Na década de 50
multiplicam-se os mais diversos empreendimentos culturais de cunho empresarial. Devemos destacar
a introdução da televisão na cidade de São Paulo em 1950, seguida de sua expansão para outros
centros: Rio de Janeiro, em 1951; Belo Horizonte, em 1955; e Porto Alegre em 1959. Observamos,
assim, um dinamismo crescente na área publicitária que, implantada no Brasil na década de 30 pelas
multinacionais, ganharia forças, consolidando-se realmente com o desenvolvimento do comércio
lojista, do acesso ao crediário, da comercialização de imóveis, etc.
27
No entanto, sendo mais realistas, percebemos que o processo de mercantilização da cultura
será atenuado pela impossibilidade de desenvolvimento econômico mais generalizado, aspecto que se
transformará, até certo ponto, com o processo de modernização capitalista do Brasil, impelido pelas
24
Ortiz, 1991.
25
Op. cit.
26
Op. cit.
27
Ortiz, 1991.
24
forças militares. Evidentemente as empresas culturais existentes na época buscavam expandir suas
bases materiais. Porém, os obstáculos que se interpunham ao desenvolvimento do capitalismo
brasileiro colocavam limites concretos para o crescimento de uma cultura popular de massa.
28
Por outro lado, é impossível compreendermos a década de 50, e parte da de 60, sem levarmos
em conta o sentimento de esperança e a profunda convicção dos “participantes culturais” de estarem
vivendo um momento particular da história brasileira. A recorrente utilização do adjetivo “novo”
evidencia todo o espírito de uma época com termos como: Cinema Novo, Bossa Nova, Teatro Novo,
sem falarmos da análise “isebiana”, calcada na oposição entre a velha e a nova sociedade.
29
Em suma, devemos sublinhar que a televisão brasileira se esboça nessa época, e que, em uma
sociedade de massa incipiente, ela opera com duas lógicas - uma cultural e a outra de mercado. Mas
como essa última não pode ainda consagrar a lógica comercial como prevalecente, cabe ao universo
da chamada alta cultura desempenhar um papel importante na definição dos critérios de distinção
social.
30
A televisão opera também com duas perspectivas: uma política e a outra nacionalista. A fala
de um literato da época - Dias Gomes revela-nos um pouco da primeira dimensão destacada. Eis o
que ele afirma:
Faço parte de uma geração de dramaturgos que levantou entre os anos 50 e 60 a bandeira
quixotesca de um teatro político e popular. Esse teatro esbarrou numa contradição básica: era
um teatro dirigido a uma platéia popular, mas visto unicamente por uma platéia de elite. De
repente a televisão me ofereceu essa platéia popular.
31
A outra perspectiva é a nacionalista, visto que a proposta da construção de uma linguagem, de
uma dramaturgia brasileira, encontra na televisão espaço para se realizar. A fala de Guarnieri é, aqui,
ilustrativa:
Eu acho que é na televisão que o ator aprendeu a interpretar dentro dos padrões de atuação
brasileiros, imitando o homem, brasileiro, da realidade brasileira, pela qual nós tanto lutamos
no teatro de arena, Oficina, etc. Ou seja, deixar a impostação do teatro estrangeiro e viver mais
a nossa realidade de interpretação.
32
28
Op. cit.
29
Op. cit.
30
Op. cit., p. 76.
31
Entrevista com Dias Gomes, Opinião, 26 de fevereiro - 4 de março, 1973, p. 19.
32
Depoimento de Gianfrancesco Guarnieri, In: IDART: história da telenovela).
25
Não é difícil, segundo Ortiz (1991), apontarmos para diversas contradições nos discursos dos
agentes sociais do contexto que estamos destacando. No entanto, o que é importante sublinhar é que a
proposta do nacional-popular, quando enunciada no contexto da cultura popular de massa, conserva
categorias do passado que adquirem agora uma função justificativa do funcionamento da indústria
cultural, e que a cultura ‘desalienou-se' na medida em que o ‘Ser nacional’ se realizou. Por ou outro
lado, Ortiz (1991) acredita que:
[os] intelectuais do nacional-popular não perceberam que eles são presas de um discurso que se
aplicava a uma outra conjuntura da história brasileira, e são, portanto, incapazes de entender
que a ausência de contradição os impede inclusive de tomar criticamente consciência da
sociedade moderna em que vivem.
33
As contradições são no entanto inerentes e necessárias a qualquer sociedade ou grupo social
para que se desenvolva a prática da crítica e da conscientização política e social, práticas essas
extremamente presentes e cabíveis no discurso ideológico da modernidade.
3 - Alienação e cultura: ISEB
Ao construírem uma teoria do Brasil, os isebianos (intelectuais dos anos 50 que estabeleciam
sua filiação a uma corrente de pensamento distinta daquela representada por Silvio Romero ou
Gilberto Freyre) retomam diretamente a temática da cultura, dando, porém, novos rumos à discussão.
Se, anteriormente, o conceito de cultura tomara o lugar do conceito de raça, nos anos 50 aquele
conceito será remodelado. Contrariamente à perspectiva antropológica do culturalismo americano, os
intelectuais do ISEB analisam a questão cultural dentro de um quadro filosófico e sociológico, no
qual a cultura passaria a ser compreendida como as objetivações do espírito humano.
34
Para autores diretamente ligados ao debate acerca da questão cultural no Brasil, tais como
Ortiz (1994), “não seria exagero considerar o ISEB como matriz de um tipo de pensamento que baliza
a discussão da questão cultural no Brasil dos anos 60 até hoje.” Para o mesmo autor, o que se mostra
atual na corrente de pensamento isebiana é o fato desta não se constituir como fábrica de ideologia do
governo de Kubitscheck. Mesmo considerando-se fato de que o Estado desenvolvimentista de
33
Ortiz, 1991:181.
34
Para um entendimento mais abrangente da escola isebiana ver o 3
º
capítulo de obra de Ortiz, 1994.
26
Kubitscheck procurou uma legitimação ideológica junto a grupos de intelectuais, os isebianos
caminhavam em uma direção oposta à do Estado nacional da época.
Com o golpe de 64, encerraram-se de forma definitiva e autoritária, as atividades deste grupo
de intelectuais.
35
Entretanto, se por um lado tal golpe erradicou quaisquer pretensões de oficialização
das teorias do ISEB, tais teorias curiosamente encontraram um caminho de popularização que, aos
poucos, ganhou terreno junto aos setores progressistas e de esquerda, transformando-se no que Ortiz
denomina “religiosidade popular” nas discussões sobre cultura brasileira (o que demonstra que a
influência do ISEB na esfera cultural foi profunda). As formulações teóricas isebianas (ou pelo menos
parte delas) influenciaram tanto as forças da esquerda marxista quanto o pensamento social católico.
O instrumento teórico que era posse exclusiva de alguns intelectuais da cultura brasileira acaba sendo
distribuído socialmente, e, gradativamente, é integrado às peças de teatro, à música e, até mesmo, às
cartilhas escolares. Fala-se, nesse sentido, da necessidade de implantar-se no Brasil um “teatro
nacional”, em contraposição a um “teatro alienado” (cujo modelo seria o Teatro Brasileiro de
Comédia).
36
4 - Identidade nacional x dominação estrangeira.
A partir de Fanon (1970), podemos afirmar que a libertação nacional é o único meio possível
para a realização e legitimação de uma cultura autêntica e nacional.
37
A ênfase na autenticidade
revela, portanto, a necessidade básica de se construir uma identidade que se contraponha ao pólo de
dominação. Dentro desta perspectiva, o colonialismo impõe às suas colônias uma dupla dominação: a
primeira sendo econômica, com a exploração das matérias-primas e venda dos produtos acabados; a
segunda, a dominação principal, é sobretudo de cunho cultural. Como nos diz Ortiz (1994):
A analogia com a economia levará alguns autores a afirmar que a importação da Coca-Cola e
do chiclete implicam o consumo do ser do outro. Dito de outra forma, o colonizado importa a
sua consciência, ele é o reflexo do reflexo.
38
35
Sodré, 1978.
36
Para um melhor entendimento da questão do ‘teatro nacional’ no Brasil da época, ver G. Guarnieri, “O Teatro com
Expressão da Realidade Nacional” In: A. Boal, “Tentativa de Análise do Desenvolvimento do Teatro Brasileiro”, Arte em
Revista, no. 6, 1980.
37
Fanon, 1970. Ver em particular o Capítulo 4, “Sobre a cultura nacional.”
38
Ortiz, 1994:58.
27
Para os isebianos, o desenvolvimento de uma nação é igual ao seu “humanismo” por
excelência, pois restitui à tal nação a sua essência, devolvendo ao homem colonizado a sua dimensão
humana e, por conseguinte, toda a sua essência cultural, desvencilhada da influência e dominação
externas. De qualquer modo, não se deve pensar que a libertação da dominação cultural estrangeira
está ligada diretamente à idéia de Independência - tais coisas não são, em absoluto, iguais. Os
isebianos já tinham clareza com relação a este aspecto e afirmavam que a independência não continha
ainda as condições que se articulavam suficientemente entre si a ponto de possibilitarem a
constituição de um ‘povo brasileiro’. Para alguns intelectuais, como Corbesier, até antes da Semana
de Arte Moderna de 1922 o Brasil vivenciara uma ‘pré-história’ de seu povo. Somente a partir da
industrialização e da urbanização brasileiras, assim como da Revolução de 30, a história do Brasil
passa a possuir, de forma gradativa, um novo elemento: o advento do ‘povo brasileiro’. Considerando
ainda este processo, Maria Sílvia Carvalho Franco (apud Ortiz, 1991) afirma que os intelectuais
isebianos foram os fundadores da sociedade civil brasileira.
39
De fato, o ISEB, ao se colocar como representante legítimo do povo, procurava dar às classes
médias um papel político que elas nunca haviam desempenhado até então. A proposta política dos
intelectuais isebianos era, então, reformista, e não revolucionária. De forma mais descritiva, a função
dos intelectuais seria diagnosticar os problemas da nação e apresentar um programa a ser
desenvolvido.
5 - Da cultura desalienada à cultura popular: CPC
Com relação a este tema, em primeiro lugar devemos sublinhar que a proposta de organização
da chamada “cultura popular” insere-se dentro de limites precisos de um determinado momento
histórico: os anos de 1962 a 1964. Neste período funcionou o Centro Popular de Cultura (CPC), junto
à sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), na Guanabara.
O Centro Popular de Cultura centrou-se, num primeiro momento, na crítica à situação da
“cultura popular”, que era associada à noção de folclore pelas diversas ‘escolas folcloristas’ e pelos
pesquisadores mais conservadores. Gullar (1965) afirmaria que, a partir do desenvolvimento de um
novo ponto de vista, a noção de “cultura popular” desvinculou-se do caráter conservador que lhe era
atribuído anteriormente, passando a ser um ‘fenômeno novo’ na vida brasileira. Rompe-se, desta
39
Ortiz, 1991.
28
forma, com a identidade forjada entre folclore e cultura popular. A cultura popular passa a
desenvolver seu caráter ‘revolucionário’, abandonando-se as perspectivas quase museológicas do
folclorismo.
É a partir desse momento (a partir das críticas à atitude cultural paternalista dos folcloristas) que
se implantam as bases de uma política cultural segundo uma orientação reformista e revolucionária.
Para Estevam (1963), principal teórico do movimento, a cultura popular é uma forma particularíssima
de consciência: a consciência política, a consciência que imediatamente deságua na ação política.
Ainda assim, não a ação política em geral, mas a ação política do povo.
40
Gullar (1965), por sua vez,
define a “cultura popular” como sendo a “tomada de consciência da realidade brasileira.”
41
Contrariamente a Gramsci (ap. Vianna Filho, 1974), que acreditava que a cultura popular era
uma concepção de mundo das classes subalternas, os participantes do CPC defendiam que são os
intelectuais que levam cultura às massas, transformando-se em uma espécie de “pronto socorro
político.”
42
Na produção intelectual desenvolvida no CPC, a análise da realidade social articulava-se
fundamentalmente através da categoria da alienação - conceito largamente disseminado ao longo dos
escritos dos estudantes da UNE, e na obra do poeta Ferreira Gullar .
A característica que se manifesta como marcante no pensamento desenvolvido no CPC é a
preeminência do político em relação às outras dimensões da vida social. Dentro desta perspectiva,
somente a arte política poderia ser considerada como legítima, uma vez que ela encarnaria a única
forma possível de resposta ao perigoso processo de alienação. Leite (1965) observaria muito bem a
existência de uma contradição inerente à teoria do CPC para legitimar a ação da “cultura popular”,
visto que, a partir de tal teoria, haveria a necessidade de negação da validade das próprias
manifestações populares.
43
Outro aspecto importante da ideologia do CPC refere-se à questão do nacionalismo. Popular e
nacional representam, no contexto, faces de uma mesma moeda. Neste sentido, a prática do CPC
implicaria a tomada de consciência da dependência dos países subdesenvolvidos em relação aos
centros de decisões econômicas e culturais. De certa forma, retoma-se, nesse contexto, o argumento
isebiano que focalizava o problema da dependência cultural em termos de alienação. Sob este prisma,
a luta antiimperialista mostra-se tema marcante nas manifestações estudantis, perpassando os textos
40
Estevam, 1963:19-30.
41
Gullar, 1965:3.
42
Entrevista com Oduvaldo Vianna Filho, Opinião, 29/07/1974.
43
Leite, 1965:269-289.
29
artísticos a serem expostos à grande massa. Com a emergência da problemática do imperialismo
cultural, a questão dos fatos folclóricos enquanto “falsidade” transmuta-se em estado de veracidade
“nacional.”
Por outro lado, pela primeira vez o Estado começa a estabelecer uma política cultural de
âmbito nacional. Surgem organismos do tipo EMBRAFILME, FUNARTE, TV Globo e Projeto
Minerva, que começam a atuar como administradores culturais. Desta forma, toda manifestação
popular tenderia a ser inserida num espaço de subordinação imposto arbitrariamente ‘a partir do alto’.
6 - O Estado e as políticas culturais.
As políticas culturais no nosso país, como bem vimos nas linhas anteriores, ainda não
atingiram índices realmente positivos no que tange à sociedade como um todo. Em primeiro lugar, no
Brasil a ‘cultura’ não figura como um “bem” que esteja ao alcance de todos na realidade,
normalmente apenas a elite econômica possui os recursos necessários para pagar por uma boa peça de
teatro, comprar bons livros, assistir a bons espetáculos ou simplesmente assinar um jornal que possa
realmente informar.
De fato, existe em nosso país uma série de problemas que freiam o desenvolvimento na área
da cultura. Se, por um lado, é compreensível que as políticas culturais não ocupem um lugar de
destaque na agenda pública de uma sociedade que ainda enfrenta muitos problemas fundamentais de
organização democrática (assim como disparates no aspecto social), por outro, a pobreza dos
orçamentos destinados à área da cultura revela a ausência de interesse pelo tema nos planos
governamentais da União. A isto soma-se o fato de inexistirem diretrizes claras sobre os limites da
intervenção do Estado na área da cultura.
Entretanto, a inexistência de políticas governamentais de cultura que tenham vingado não
significa necessariamente a ausência de um projeto em execução. Tal projeto existe, que não é
engendrado pelo Estado, e sim por empresas privadas (este fato possui diversos desdobramentos e não
cabe desenvolvê-los aqui, haja vista a extensão que isso tomaria).
O que é certo é que não podemos mais permitir que as políticas culturais que se desenvolvem
na prática retornem ao conceito restritivo de memória nacional (política essa centrada na defesa do
chamado “patrimônio histórico e artístico nacional” e sendo literalmente conservadora). O conceito
de cultura precisa ser definitivamente ampliado, para incorporar a memória dos dominados, a cultura
30
popular e a história dos vencidos e esquecidos. É neste sentido que defenderemos, no Capítulo II do
presente estudo, a relevância e importância de tomar-se uma instituição como o Circo Voador
enquanto objeto preferencial de abordagem histórica (pensando-se em termos de história da cultura).
Também não podemos aceitar certas perspectivas existentes que tendem a valorizar as
manifestações culturais das classes dominadas como as verdadeiras raízes de nossa nacionalidade,
“defendendo” a cultura popular dos “ataques” que o progresso e as culturas estrangeiras estariam lhe
desferindo, e adotando, dessa forma, uma postura paternalista e essencialmente museológica.
O movimento modernista de 1922 é um divisor de águas no processo em questão, visto que,
por um lado, significa a reutilização do Brasil em relação aos movimentos culturais e artísticos que
ocorrem no exterior. Por outro lado, tal movimento implica também na busca por nossas raízes
nacionais, valorizando o que haveria de mais autêntico no Brasil. É significativo que tenha sido a
partir dessa época que as ideologias de caráter nacional brasileiro ganharam uma nova dimensão,
apostando-se assim na seriedade do brasileiro e afirmando-se que, havendo esforço e líderes, seria
possível fazer vingar uma grande nação brasileira.
A imagem que é proposta para o Brasil é, também, a de uma ‘cultura tropical’ com
características totalmente diferentes das de outros países, sugerindo-se assim, um ethos brasileiro que
incluiria o “jeitinho”, a malandragem, a malícia, a sensualidade, o dengo, etc. Percebe-se também um
processo através do qual manifestações culturais que se originaram nas classes dominadas, passam a
ser apropriadas pelas classes dominantes e acabam por ser transformadas em símbolos nacionais. São
exemplos disto o samba, a umbanda e a feijoada, manifestações que tiveram origens populares e que
foram posteriormente transformadas em símbolos nacionais. É, alias, no transcorrer desse processo de
apropriação das manifestações populares e de sua subseqüente transformação em símbolos de
identidade nacional que talvez resida uma das peculiaridades da dinâmica cultural brasileira.
No final dos anos 70, como tentamos mostrar em todo tópico relacionado ao Estado e cultura
de massa, começa uma mudança de postura em relação às questões culturais no Brasil. Podemos
sublinhar que Aloísio Magalhães encabeçou essa mudança de postura através do CNRC, que contou
com a chancela do Ministério da Indústria e Comércio e do Governo do Distrito Federal. É sob esse
viés e processo de abertura, que, a partir da década de 80, cria-se, aos poucos, a associação da cultura
com a democracia, sendo sublinhada a questão da diversidade cultural do Brasil (fato muito
trabalhado e desenvolvido sob a gestão de Aloísio Magalhães no CNRC). É importante lembrarmos
que o fim do regime militar corresponde ao processo de afirmação da democracia no Brasil. Nesse
31
momento, a renovação democrática da sociedade ultrapassa os limites de institucionalidade política e
promove uma nova ordem da criação e da produção cultural.
Capítulo III - Estado, política e cultura de massa.
A pura violência é muda,
e por este motivo a violência,
por si só, jamais pode ter grandeza.
Hannah Arendt
1 - A cultura e a repressão como formas de controle social: o regime militar pós-64 e a censura.
O tema da cultura e da identidade nacional é foco de um antigo debate há muito presente no
Brasil. Hoje, no entanto, tal debate apresenta-se como possuidor de características próprias, e
constitui uma espécie de base que fomenta a discussão em relação ao que vem a ser nacional. No
Brasil, a problemática da cultura brasileira tem sido (e permanece até hoje) uma questão basicamente
política. Na verdade, falar em cultura brasileira é a mesma coisa que falar em relações de poder.
Neste sentido, o golpe militar de 64 trouxe mudanças notáveis, não no plano político-econômico,
como também, de forma capital, no plano cultural de nossa sociedade.
Um dos elementos dinâmicos e definidores da problemática cultural é o Estado. Por
conseguinte, para pensarmos de que forma estrutura-se o campo da cultura no Brasil, é necessário
levar em consideração a atuação estatal neste domínio. Dentro deste quadro, no período pós-64, as
relações entre cultura e Estado foram sensivelmente alteradas em relação ao passado, fornecendo a
moldura para transformações expressivas de nossa sociedade. Tais transformações mais amplas,
pelas quais passaria toda a sociedade brasileira, teriam conseqüências imediatas no domínio cultural,
criando novas condições para nossa a história de nossa cultura, assim como, aprofundando, através
do regime militar, a interdependência entre a vida política e a realidade econômica.
1.1 – Os antecedentes ao golpe de 64.
32
O golpe de 64 significou, na verdade, uma dupla tentativa de busca por um ‘equilíbrio’. Por
um lado, alijavam-se e reprimiam-se os movimentos populares, e, por outro, afirmava-se a hegemonia
do capital monopolista sobre os demais segmentos.
44
No plano socioeconômico, o movimento sindical entre anos de 1960 a 1964 intensificou-se, e
ameaçava romper com as imposições estatais, bem como estender a mobilização a outros setores e
regiões do país. Nesse contexto, os trabalhadores, assim como os órgãos que os representavam,
demonstravam firme disposição no sentido de impedir a erosão salarial, multiplicando-se as greves,
que atingiam vários setores da economia brasileira, e que focavam a questão da instituição do 13
o
salário.
45
No contexto político, entre 1961 e 1964, “[...] as disputas partidárias, a polêmica entre
Executivo e Legislativo, as greves, a inflação, as conspirações, revelam a estreita relação entre todos
esses elementos e sua importância para o desfecho militar.”
46
Assim, como colocam Mantega &
Morais (1979): “A crise de 64 seria, pois, a unidade de determinações econômicas e políticas, pela
ascensão do movimento de massas.
47
Por outro lado, a crise estava atingindo também o próprio
empresariado, que interrogava-se sobre que setores deteriam a hegemonia do processo de acumulação
capitalista.
O período entre 1962 e 1964 caracterizou-se, assim, por intensa mobilização popular. Na cena
política, o instável equilíbrio entre os partidos configurava a ruptura do pacto populista, aliado à
crescente participação popular não tutelada pelo Estado. Com sua chegada, o golpe militar destruiu as
maiores conquistas dos trabalhadores, instaurando o fim do direito à greve, às associações de
camponeses, à estabilidade no emprego através do FGTS, e impedindo, em resumo, toda forma de
organização e associação popular. O que se segue a isto é algo já bastante discutido: prisões, torturas,
cassações de todo tipo, sujeição dos intelectuais, etc.
Um dos evidentes instrumentos de controle social utilizados pelo poder então vigente foi a
cultura. A cultura, como ferramenta para o controle social apresentaria, no bojo do Estado militar
brasileiro, a censura, assim como a tortura, como ferramentas evidentes de repressão. A cultura do
medo instaurou-se, assim, em nosso país, onde a violência era a palavra da hora, a ignorância o pano
de fundo, o medo e a revolta os sentimentos de milhares de brasileiros.
44
Mendonça & Fontes, 2001.
45
Op. cit.
46
Op. cit.
47
Mantega & Moraes, 1979:47.
33
1.2 – O golpe dentro do golpe: 1964-1968.
“A nossa história começa com um reveillon e termina com uma ressaca.” Essas são as
primeiras palavras de Ventura (1988), na sua obra 1968 o ano que não terminou, na qual o autor
busca enfatizar a importância fundamental daquele ano para a nossa história. Com estas palavras, o
autor pretende, por meio de uma metáfora, afirmar que foi de fato em 1968, que, com toda força,
lançou-se sobre o país a sombra e a violência da ditadura militar. Antes de abordarmos o chamado
“golpe dentro do golpe”, devemos, porém, falar um pouco sobre a geração que vivenciou o golpe,
como ela pensava, como ela agia e sonhava e, por fim, como ela sofreu com a repressão.
A geração 68 foi, para Ventura (1988), uma geração que foi à luta com toda a paixão possível.
Uma geração que lutou radicalmente, entregando, às vezes, sua vida por seu ideal, por sua utopia.
“Ela experimentou os limites de todos os horizontes: políticos, sexuais, comportamentais,
existenciais, sonhando em aproximá-los todos.”
48
Para o diretor teatral Flávio Rangel, em depoimento
vinte anos mais tarde, havia em 67-68 um clima de ‘Primavera de Praga’, um clima mal percebido de
abertura que, como em Praga, acabaria com a chegada dos tanques.
49
A cultura desses anos realmente jogou por terra diversos valores morais e sociais que, havia
muito, estavam firmados. As jovens mulheres dessa época, entre 20 e 30 anos, por exemplo,
questionavam fortemente os valores morais instituídos pela chamada “burguesia”. Rejeitavam o
casamento dito burguês e todos os valores circundantes a ele. Era preciso deixar a confortável
estabilidade econômica e psicológica de dona de casa e lançar-se na arriscada aventura experimental-
existencial, que podia traduzir-se pela busca de uma carreira ou profissão, por novas relações ditas
‘abertas’ e descompromissadas, ou simplesmente por um mergulho dentro de si, como em uma
análise psicanalítica de sua própria condição feminina.
Em 1968 as “moças” começaram a tomar a pílula, o que viria a facilitar e dar possibilidade e
força ao discurso de liberdade social e sexual. Tratava-se de um tema em voga e a questão da pílula e
48
Ventura, 1988.
49
Op. cit.
34
dos anticoncepcionais era debatida com freqüência em revistas e jornais, como foi o caso da revista
Paz e Terra. De fato, a revolução sexual havia começado nas prateleiras e não na cama como
esperado, era uma revolução que começara antes pela teoria - em cada três livros pelo menos um
tratava de questões sexuais. Em marco de 1968 a revista Cláudia sublinhava que: “O sexo se
converteu em tema de palestra, em diálogo social, em bate-papo em mesa de bar.”
50
Cabe ressaltar, todavia, que, se a pílula anticoncepcional acelerava as mudanças sociais e
morais no que toca às mudanças no comportamento da mulher brasileira, tal processo não atingia, de
maneira homogênea, todas as classes sociais. A Igreja Católica, por exemplo, desenvolveu papel de
evidente destaque, opondo-se ao uso das pílulas, e promovendo o surgimento de um sentimento de
desconfiança, o qual existia em certos setores das camadas populares. Pesquisa feita entre 1965 e
1967 mostrava tal desconfiança para com a pílula: segundo esta, das quatro mil mulheres ouvidas,
76% usavam todo tipo de anticoncepcional, menos a pílula.
51
A geração de 68 forjou, de fato, seu aprendizado intelectual e sua percepção estética através da
leitura. Ao contrário das gerações dos anos oitenta e noventa, ela foi criada mais lendo do que vendo.
Havia uma curiosidade teórica que ultrapassava o uso instrumental que os jovens revolucionários
faziam de alguns autores. Isto certamente explica o sucesso de algumas revistas, como o da Revista
Civilização Brasileira, que, de 65 a 69 foi o pólo de concentração da intelectualidade de esquerda.
Diversas obras eram disputadíssimas, como é o caso de Um Projeto para o Brasil, de Celso furtado,
que vendeu mais de 600 exemplares em três horas
52
, ou Desenvolvimento e crise no Brasil, de Luis
Carlos Bresser, isto sem falar nas tantas rodas de leitura e estudo de obras clássicas como O Capital,
de Marx. Os amantes da revolução acreditavam realmente que o capitalismo chegara a um impasse e
que seu fim estava próximo. Marx, Mao, Freud, Sartre, Bresser, Caio Prado Junior, Celso Furtado,
Althusser e, é claro Herbert Marcuse, dentre outros, estavam sempre à mão, ou melhor, na cabeça e
nas bocas dessa geração.
Os jovens de 68, como um todo, começaram a fazer política na prática. Era uma época de
redefinição dos comportamentos, na qual era preciso trazer a política para o comportamento ou vice-
versa. A revolução nos comportamentos rompia com a dita ‘esquizofrenia cultural’ anterior e
semeava um neo-existencialismo que rejeitava a separação entre a política e a existência, entre a arte
e a vida, entre a teoria e a prática, entre o discurso e a ação, entre o pensamento e a obra. Fazia-se
50
Op. cit.
51
Op. cit., p. 35.
52
Op. cit., p. 35.
35
política nas portas das fábricas, nas calçadas da Av. Rio Branco (no centro do Rio de Janeiro), nos
bares, nas universidades, nas assembléias, nas passeatas, na praia. Discutiam-se as idéias de Lukács, o
caráter socialista da Revolução, os impasses do PCB, a Tropicália, os efeitos da pílula
anticoncepcional, o tamanho dos cabelos dos rapazes, a altura das saias das meninas, e tantos outros
temas. Era, na verdade, praticamente impossível ficar ou ser indiferente em tempos tão marcadamente
passionais. Parece que os estudantes daquela época ficavam mais tempo nas assembléias do que na
sala de aula. “A moda era politizar.”
53
Por este viés, o discurso político dessa geração materializava-se por demais ambíguo e
contraditório, assim como sua ação. Os jovens buscavam as respostas para a existência e a felicidade
pela magia da Revolução destruindo o que viera antes, fossem tabus, preconceitos, conceitos,
resistências, enfim tudo que envolvia o universo da emoção. O modelo de revolução que era discutido
envolvia basicamente dois pólos: alguns (sobretudo os defensores da luta armada e representantes de
alguns setores estudantis e culturais) queriam uma ruptura violenta, na qual logo a classe operária
tomaria a frente do poder e criaria uma nova sociedade e um novo homem; outros (representados
sobretudo pelo PCB, que depois entraria em crise, por medo, por insegurança, por oportunismo),
defendiam, ao contrário, a Revolução, como um processo lento e gradual de reorganização da
sociedade civil, em que haveria um real acúmulo de forças.
Seja como for, em termos práticos, ser revolucionário estava na moda, era in, e carregar um
dos tantos autores citados como revolucionários sob o braço era sinal de pertencimento a esse grupo,
essa força, esse sonho inabalável. Podemos imaginar que um jovem universitário que, na época, não
estivesse embalado por esse sonho, poderia ser desprezado ou simplesmente rejeitado. A moda era a
Revolução - o que não significa que, para alguns, tal idéia fosse tratada como algo da esfera do “real”,
necessário e sério. A grande e seleta carga de leitura fazia com que se idealizasse uma sociedade
revolucionária, um mundo melhor, mais justo em todos os sentidos. Se por um lado, isto era um
sonho que até hoje não se realizou em nosso país, foram esses jovens que mostraram conhecimento,
leitura, coragem e espírito crítico de vanguarda para exigir mudanças que hoje são bandeiras de
muitos de nós.
O outro lado da moeda era a demonstração do fato de que todas essas mudanças de
comportamento davam sinais de retrocesso mais do que de avanço, revelando a decadência da
burguesia. No caso deste segmento da sociedade, por exemplo, o homossexualismo era caracterizado
53
Op. cit., p. 83.
36
como uma doença da própria burguesia. Por outro lado, descortinava-se um tipo de pureza moral que
envolvia a classe proletária, classe agora quase divinizada pelo seu sofrimento e condição de âmago
da revolução.
Apesar de tantos feitos na cultura de nosso país, antecipando idéias e comportamentos, a
geração 68 não conseguiu chegar ao poder, como, por exemplo, Fidel Castro chegou. O massacre
estava à espera. Édson Luís dos Santos, 18 anos, brasileiro, foi morto pelas forças militares, ou seja,
por um PM que lhe deu dois tiros no peito em pleno restaurante estudantil, o Calabouço. Um dia
depois, em uma sexta-feira 29, nada menos que cinqüenta mil pessoas iriam acompanhar o caixão de
Edson ao cemitério São João Batista. O assassinato de Édson desencadeou uma série de
manifestações e protestos que logo desembocariam na famosa passeata dos 100 mil. Como
sabiamente escreveu Ventura (1988), “[...] a repercussão de certos acontecimentos políticos nem
sempre é proporcional à importância dos atores neles envolvidos.”
54
O fato é que a morte de Édson
sensibilizou e mobilizou enormemente a opinião pública em diversos setores. Para alguns, foi ali que
tudo começou. A direita viria a exclamar: “[...] era o cadáver que faltava.”
55
Revoltados com a morte de Édson, os estudantes resolveram comemorar, no dia 1
o
de Abril,
os quatros anos do golpe de 64. À sua maneira, ou seja, com paus e pedras, e como quem vai à guerra,
paralisaram as ruas do centro por horas, depredando bancos, lojas, carros oficiais, travando embates
com pequenos contingentes da PM. Se até então os estudantes ou apanhavam ou corriam, agora a
tática consistia em atrair grupos de soldados da PM para um determinado local e então encurralá-los e
agredi-los. As manifestações estudantis passavam a mostrar certa coordenação por parte de cabeças
pensantes que desenvolviam múltiplas técnicas para confundir a polícia e desnorteá-la.
Rapidamente, tais manifestações se alastrariam por todo o país e, em meados de junho de
1968, o governo estava seriamente convencido de que um ‘Maio Francês’ poderia acontecer no
Brasil. A morte de Édson Luís havia provocado grande comoção: a repressão, que se passara à porta
da Candelária, chocou e indignou. Mas foi de fato a “Sexta-feira Sangrenta” que incitou o povo a
lutar fisicamente na guerra e fundamentar os alicerces para a “Passeata dos 100 mil”, em que
intelectuais, artistas e jornalistas também se mobilizariam. Para alguns, todavia, como é o caso de
Ventura (1988), se compararmos a “Passeata dos 100 Mil” com a “Marcha da Família com Deus e
pela Liberdade” em 64, ou com o comício das Diretas Já” em 84, aquela parece não ter passado de
54
Op. cit., p. 105.
55
Op. cit.
37
um modesto feito estudantil. De qualquer forma, é fundamental sublinharmos que a Passeata dos 100
Mil foi um marco simbólico da força estudantil, dos seus sonhos e limitações. Limitações como a do
XXX Congresso da UNE, que, mais do que um erro, foi também considerado um ato político
suicida.
56
A CIA (que mais do que qualquer órgão brasileiro de informação ou serviço secreto recolheu
muitas informações e dados a respeito da complexa política da época) não via quaisquer
possibilidades de que as manifestações pudessem, de fato, derrubar o governo, mas sabia que elas
poderiam de alguma forma aprofundar e dar novos alentos à cisão existente no meio militar. De fato,
os últimos meses de 1968, que haviam acumulado uma soma considerável de crises em praticamente
todas as áreas, fortaleciam as bases militares radicais e alimentavam a intolerância em um clima de
insensatez irreversível. O movimento estudantil, setores da política e o show-biz mostravam-se
radicais em resposta à postura e às atitudes do governo militar, e, assim, a possibilidade de diálogo
apresentava-se inviável e sem real teor de esperança. A intolerância superou quaisquer ideologias.
Um novo 64 estava por vir - só que agora os militares iriam até o fim. Ao editar o AI-5, em 13
de Dezembro de 1968, o Marechal Costa e Silva lançou mão de uma violência que logo se abateria
sobre o corpo e a alma de muitos brasileiros.
1.3 – A ditadura militar no Brasil.
A ordem imposta de fora gera sempre,
necessariamente a desordem.
Krishnamurti.
Os militares que participaram do golpe em abril de 1964 desestruturaram uma geração que
se mostrava cheia de promessas e esperanças. Havia um movimento cultural pré 64, segundo o qual
acreditava-se, de maneira megalômana, onipotente e egocêntrica, que tudo à volta dependia mais ou
menos da atuação dos agentes envolvidos com tal movimento. Essa ilusão terminaria em 64, indo
todo o resto pelo ralo em dezembro de 68, quando tais agentes tornaram-se ou clandestinos ou
“delinqüentes”.
A partir do ano de 1964, os militares no poder instauraram um projeto autoritário de
desenvolvimento econômico a qualquer custo, embalado por um discurso ético-moral de combate à
56
Op. cit., p. 250.
38
corrupção, e pela decisão político-ideológica de se acabar com o comunismo em nosso país.
57
Favoreceu-se, assim, a grande empresa como objetivo principal, e usou-se o arrocho salarial como
estratégia. O combate à inflação era sua bandeira, ou melhor, uma justificativa legitimadora, e o que
veio a ser chamado de “milagre” econômico, foi tomado como o grande resultado, “salvador” e ainda
mais legitimador.
O trabalhador, que não possuía mais o direito à palavra e à representatividade, via-se frente
apenas à duas saídas para recompor seu salário erodido: a extensão de sua jornada de trabalho e/ou a
intensificação do trabalho familiar. Foi justamente nesse período que vimos enormes aumentos do
contingente de mão de obra feminina e infantil no mercado, o que viria a abalar em muito a
estruturara familiar, principalmente da classe operária.
58
No entanto, tal movimento social do trabalho
piorou as coisas para a classe operária, que viu seu salário ainda mais rebaixado face ao volume de
oferta de mão de obra.
No plano cultural, o período pós-64 associa a cultura de massa ao Estado. Tratando-se de um
poder de ditadura militar e de repressão, devemos pensar em todos os mecanismos de terror e
manipulação utilizados pelo Estado para o controle social. Para melhor compreendermos a questão da
relação entre o terror e o Estado Moderno, é de todo importante citarmos Arendt (1989), para quem:
[...] a diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado está no uso do
terror não como meio de extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento
corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes.
59
Tais “massas obedientes” não foram, no entanto bloco único no caso do Brasil, visto que, “[...]
a partir de 1969, tiveram início efetivamente as práticas de guerrilha urbana e rural, que perdurariam
durante cinco anos, exacerbando uma ‘dialética da violência’ cujo resultado veio a ser a consolidação
da engrenagem do aparato repressivo.”
60
Sabe-se que a força é uma das realidades políticas básicas, e
que, sob o mesmo prisma, é a essência de toda estrutura política. Como nos diz Arendt (1989), “[...] a
violência sempre foi a ultima ratio na ação política, e a força sempre foi a expressão visível do
domínio e do governo.
61
Neste sentido, a censura se estabelece dentro do domínio da cultura como
ferramenta de controle social por parte do poder repressor. Devemos, assim, sublinhar que a
57
Fico, 1999.
58
Cabe aqui ressaltar a importância desta temática. Apesar de não pretendemos desenvolvê-la nestas linhas, acreditamos
que ela seja digna de longo estudo à parte.
59
Arendt, 1989.
60
Mendonça & Fontes, 2001.
61
Arendt, 1989.
39
resistência ao regime militar deu-se tanto no plano das armas, como e, sobretudo, no plano das artes,
cultura e conhecimento em geral, como veremos mais adiante.
A partir de 1968, ano em que os estudantes assumiram a liderança das manifestações coletivas
que resultaram no Ato Institucional n.5, a repressão passou a ser muito mais forte, atingindo, tanto
através da violência e da tortura quanto da censura, a atividade intelectual e artística, e desarticulando
instituições como universidades e órgãos da imprensa. Os salários propriamente ditos foram também
aviltados, atingindo níveis baixíssimos na década de 70, principalmente em função da crise mundial.
Qualquer tipo de reivindicação ou movimento contrário ao Estado era reprimido de forma rápida e
violenta - na verdade estes movimentos mal existiam. As perseguições policiais não precisavam
fundar-se em provas, a censura estava em tudo, a tortura era o pesadelo de boa parte dos brasileiros -
enfim, o medo pairava no ar.
A compressão salarial, que havia atingido veis absurdos, criou a segregação espacial e
redesenhava geograficamente e socialmente as cidades, ao envolvê-las em cinturões de novas favelas,
ampliando-se cada vez mais as favelas já existentes.
62
Por outro lado, já nos anos 70, o fechamento do
Congresso e a edição do “pacote de abrilem 1977 tornariam contraditório e problemático o apoio
dos intelectuais, ditos democráticos, ao governo Geisel.
63
Além disso, o processo de rearticulação da
sociedade civil tomava forças e levava a um redimensionamento das estratégias de resistência ao
regime autoritário. Surgiram nessa época diversas manifestações da sociedade através de movimentos
populares. No final da mesma década, em decorrência das greves do ABC paulista, foi criado o
primeiro partido de origem popular, o Partido dos Trabalhadores - PT.
64
No plano econômico, a crise
internacional do petróleo colocava em evidência as contradições inerentes ao modelo econômico e à
política de modernização do Estado militar. O Estado passa a enfrentar, nesse contexto, uma crise real
de legitimidade.
1.4 - A crise dos anos 70, o fim da ditadura militar no Brasil e o período de redemocratização.
O fim das ditaduras na América Latina fez parte de amplo movimento de democratização,
vivenciado também em certos países da Europa, como Portugal, Grécia e Espanha. A transição
62
Mendonça & Fontes, 2001.
63
Fonseca, 1997.
64
Op. cit.
40
brasileira para a democracia deu-se de forma lenta e gradual, como bem queriam os militares, mas
vinculou-se também a uma série de fatores presentes a partir da década de 70. Entre tais fatores,
podemos sublinhar as pressões cada vez maiores da oposição (MDB), da OAB (Ordem dos
advogados do Brasil) e da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), o importante papel da Igreja
Católica na denúncia da tortura, as greves desfechadas pelo novo sindicalismo e os próprios
desentendimentos entre os setores civis que apoiavam o regime. Além disso, desentendimentos dentro
das próprias Forças Armadas, do Exército em particular, vieram contribuir para o esfacelamento da
ditadura militar.
65
As transformações da sociedade e das formas de organização possibilitaram também o
surgimento de um movimento operário de peso e envergadura no ABC paulista, organizado a partir
da construção de sindicatos autônomos, ainda que estes mantivessem laços com o Estado. O
panorama econômico mundial tinha como principal destaque na imprensa e nos pronunciamentos
oficiais a chamada crise do petróleo, que se deu por volta de 1973. No Brasil, evidentemente também
atingido pela crise, entrávamos de forma clara no fim do dito milagre econômico, que havia sido
embasado pelo endividamento com o FMI, pelo arrocho salarial e pelo estímulo ao capital
estrangeiro.
O processo de abertura política começou no governo do presidente Geisel, que teve como um
de seus principais alvos a eliminação da tortura contra presos políticos, pelo fato de que, conforme o
discurso presidencial, tais métodos desmoralizavam as Forças Armadas.
66
Segundo afirmam, por
exemplo, Fausto & Devoto (2004):
Foi diante dos episódios da morte do jornalista Wladimir Herzog (outubro de 1975) e do
operário José Manuel Fiel Filho (janeiro de 1976), em São Paulo, gerando indignação em todo
país, que Geisel exonerou o comandante do II Exército Ednardo D’ Ávila e iniciou uma
batalha, pontilhada de marchas e contramarchas, no caminho da abertura.
67
Entretanto, se por um lado a transição para a democracia foi lenta e gradual, por outro não foi
tão segura, e continuou-se intimidando a imprensa e assolando-se o país com golpes violentos, como
foi o caso dos episódios do Riocentro e da OAB, no governo Figueiredo. No que toca à abertura, a
“Campanha pela Anistia” atingiu seu ápice em 1978 quando, pela primeira vez, membros do regime
65
Fausto, & Devoto, 2004.
66
Op. cit.
67
Fausto & Devoto, 2004: p. 455.
41
militar se pronunciavam sobre o tema.
68
A nossa História seguia seu curso, e o General e então
presidente Figueiredo anunciava, em agosto de 1979, o fim da censura aos jornais, a revogação do AI-
5, e a decretação da anistia, incluindo os responsáveis pelas violências do regime.
69
Em 1980, os
novos partidos surgidos com o fim do bipartidarismo e com a reorganização política apenas
legalizaram-se. Dentre eles, podemos destacar o Partido Popular (PP) que era cisão do MDB, o PFL
(Partido da Frente Liberal), o Partido Democrático Social (PDS), o Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), o Partido Democrático Brasileiro (PDT) e finalmente o Partido dos Trabalhadores (PT).
70
A partir de 1985, em um amplo movimento de redemocratização do continente latino-
americano, o esgotamento do regime militar torna-se evidente. De 1980 a 1982 o crescimento
econômico estagnou-se em toda a América Latina, o que acentuou a dependência dos países latinos
em relação ao endividamento externo. O grande tripé do nacional-desenvolvimentismo latino havia
esgotado toda a sua capacidade criativa. Neste sentido, muitos países passaram a conhecer uma nova
fase econômica: a da chamada ‘desindustrialização’.
O regime militar, por sua vez, não detinha nenhum recurso ou projeto para solucionar a crise,
e acabara por recolher-se, de forma acabrunhada, ao imobilismo. Nesse quadro, a chamada
“sociedade civil organizada”, através das associações de bairro, dos sindicatos, da Igreja, etc, passa a
assumir um papel de interlocutor legítimo com o Estado, deixando claro que os mecanismos clássicos
de representação estavam em crise, fato que conduziria à convocação da Assembléia Constituinte.
Enquanto isso, as manifestações de massa ocupavam as ruas de nosso país. Era a transição da
ditadura para um regime democrático representativo que se colocava em marcha. Outro aspecto
importante a ressaltar refere-se às eleições para governador de estado e para a câmara federal.
Realizadas em 1982, foram o maior passo político no sentido da redemocratização brasileira. Mais
que um acontecimento político a ser sublinhado, as eleições de 82 deram ao brasileiro ânimo e a
dimensão real da possibilidade de mudar o país.
Como vimos, o último presidente-general, João Batista Figueiredo, acelerou as transformações
institucionais, concedendo a anistia política que vinha sendo exigida pela sociedade e alterando a
legislação partidária: ele deu maior liberdade para a organização dos partidos. Entretanto, a crise
econômica permanecia, com uma inflação de 200% ao ano, e o Brasil tinha mais de quatro milhões
de desempregados.
68
Para um melhor entendimento da questão da anistia política, ver Fico, 1999.
69
Fausto & Devoto, 2004: página 456.
70
Para um estudo mais detalhado ver: Mendonça & Fontes, 2001; e Fausto & Devoto, 2004:459 -461.
42
Os partidos, as igrejas e os órgãos de classes reuniram-se, assim, em uma imensa campanha
política por eleições diretas, no movimento intitulado “Diretas Já”. Tal articulação política colocou
lado a lado líderes como Tancredo Neves, Ulisses Guimarães (do PMDB e principal articulador da
União das oposições), Leonel Brizola do PDT, e Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. Nesse momento a
população voltara suas esperanças para a convocação de uma assembléia constituinte. Um nova
Constituição foi enfim aprovada em cinco de outubro de 1988, sendo a mais democrática constituição
brasileira, havendo preocupação com os chamados direitos sociais. Direitos antes negados - tais como
liberdade de expressão, privacidade de reunião, dentre outros - passam a ser assegurados.
2. Cultura, repressão, resistência e mercado na ditadura militar.
Sabemos que a relação entre a temática do popular e do nacional é uma constante na história da
cultura brasileira, a ponto de um autor como Nelson Werneck Sodré (ap. Ortiz, 1991) afirmar que só é
nacional aquilo que é popular.
71
Devemos lembrar, no entanto, que a memória coletiva é da ordem da
vivência, diferente da memória nacional, que se refere a uma história que transcende aos sujeitos e
não se concretiza no seu cotidiano, situando-se em outro nível, vinculando-se à História e
pertencendo ao domínio da ideologia.
72
2.1 – Considerações prévias sobre identidade nacional.
A memória coletiva em si aproxima-se do mito e manifesta-se, portanto, ritualmente. A
memória nacional, por sua vez, é o produto de uma história social, e não da ritualização da tradição.
Enquanto história, a memória nacional projeta-se para o futuro e não se limita a uma reprodução do
passado, considerado como sagrado. Por conseguinte, o mito é encarnado por um grupo restrito,
enquanto a ideologia se estende à sociedade como um todo.
Se, por um lado, os exemplos do candomblé e das manifestações folclóricas revelam a
importância da existência do grupo social portador da memória coletiva, por outro, o que caracteriza a
memória nacional é precisamente o fato dela não ser propriamente particularizada a nenhum grupo
social, definindo-se como algo ‘universal’, que se impõe a todos os grupos. Contrariamente à
71
Ortiz, 1991.
72
Op. cit.
43
memória coletiva, ela não possui uma existência concreta, mas sim virtual: por isso não pode se
manifestar imediatamente enquanto vivência. Para irmos um pouco mais longe, citemos Ortiz:
[...] a memória coletiva dos grupos populares é particularizada, ao passo que a memória
nacional é universal. Por isso o nacional não pode se constituir como prolongamento dos
valores populares mas sim como um discurso de segunda ordem.
73
A memória nacional não se situa junto à concretude do presente, mas se desvenda enquanto
virtualidade, ou seja, como um projeto que se vincula às próprias formas sociais que a desenvolvem e
sustentam. Nada unifica um candomblé, uma folia de reis, uma cavalhada, um bumba meu boi, a não
ser um discurso que se sobrepõe à realidade social. A essência da brasilidade, que tanto buscou
Corbisier, é uma construção permanente e, portanto, não pode ser definida como realidade primeira
da vida social. Na verdade, não existe uma única identidade, mas uma história da “ideologia da
cultura brasileira” que varia ao longo dos anos e segundo os interesses políticos dos grupos que a
elaboram. Nesta complexa “mecânica cultural” os intelectuais desenvolvem um papel relevante, pois
são eles os artífices deste jogo de construção simbólica.
2.2 – Os anos 70 no Brasil
No Brasil, não obstante o golpe militar de 1964 e o agravamento da repressão, a partir de
1968, o florescimento cultural ganhou novas formas de manifestação e funcionou, em parte, como
válvula de escape diante do fechamento de outros canais de expressão. Os grandes festivais da música
popular, na época, mostravam como a oposição política poderia se manifestar por outras vias que, no
entanto, ao movimentar grandes massas, se mostraram de fundamental importância para a construção
de outro tipo de resistência.
74
A partir de 1967, tendo como seus principais representantes Gilberto Gil e Caetano Veloso, a
Tropicália surge e explora fortemente a música popular. Mesmo sendo incompreendido pela esquerda
tradicional o movimento tropicalista representou uma verdadeira revolução na música brasileira,
incorporando elementos da música africana e caribenha, sem falar na enorme importância de seu
73
Ortiz, 1994:137.
74
Para a questão da importância política e cultural dos festivais dos anos setenta, consultar Mello, 2003.
44
discurso político, no clima reinante em 1968, com a celebre canção “É proibido proibir”, de Caetano
Veloso.
75
A Tropicália produziu uma nova forma de entender o país, assumindo-o como antigo e
moderno ao mesmo tempo. “Em vez do nacionalismo, sugeria pensar a cultura local em diálogo
permanente com a cultura universal; em vez de algo impalpável tratado como popular, lidar com a
realidade concreta das massas urbanas e de seus meios de comunicação.”
76
Paralelamente, a
Tropicália reintroduziu na cultura brasileira a rejeição a intérpretes e compositores considerados
exagerados, operísticos e melodramáticos, ligados principalmente à Rádio Nacional, rejeição essa,
que, vale a pena sublinhar, já havia sido amplamente desenvolvida no contexto da Bossa Nova.
Os tropicalistas adotaram todo tipo de inovação, como o uso de guitarras, amplificadores,
cenários, figurinos. Os excessos em cena não eram meros acessórios e “[..] sim uma síntese criativa
das diversas áreas da arte, como a música, o teatro e as artes plásticas.”
77
Se o mercado da música, apesar da censura imposta, prosperava, e permitia certo protesto
através de suas canções, “[...] o cinema brasileiro era praticamente tomado pela pornochanchada que,
como observa Avellar (ap. Brasil, 2005), nascera de um tipo de pressão da censura e de um tipo de
solicitação do público.”
78
A resistência do cinema nacional se encontrava, no entanto, tanto no
florescimento do cinema alternativo quanto em obras que filtravam a realidade, como é o caso de
Toda Nudez Será Castigada, dirigido por Arnaldo Jabor, em 1973, a partir da peça de Nelson
Rodrigues.
Por outro lado, os cineastas brasileiros foram os primeiros que, se podemos assim dizer,
aderiram à “abertura”. Alguns cineastas assumiram postos na Embrafilme, criada em 1968, sendo que
Glauber Rocha apoiou explicitamente o presidente-general Golberi do Couto e Silva. É neste período
que foi produzida a primeira proposta global de uma política para a área da cultura no regime militar -
o documento Política Nacional de Cultura, em 1975 - na gestão de Ney Braga no MEC.
Poucos eram os meios de resistência, como os jornais O Pasquim e Opinião. Foi apenas com o
início da “distensão”, no governo Geisel, que o Estado do regime militar passou a atuar não somente
como repressor, mas também como organizador da cultura. Nesta mesma época, a televisão é
marcada pela consolidação da Rede Globo, que se tornou porta-voz do “milagre” econômico da
75
Fausto & Devoto, 2004.
76
Naves & Coelho, 2005:28.
77
Op, cit., p. 32.
78
Brasil, 2005.
45
ditadura, mas que também abrigava figuras irreverentes como o Chacrinha que, atendendo ao
“povão”, chocava os padrões estéticos da imprensa. Como coloca Heloísa Buarque de Hollanda (ap.
Brasil, 2005), “[...] eram as contradições de uma década provocadora.”
No campo da cultura mundial, os anos 70 caracterizaram-se por uma “crise da modernidade”,
com a descolonização do Terceiro Mundo, com os movimentos dos negros pelos direitos civis, com a
contracultura nos Estados Unidos e com a “morte do sujeito” na filosofia européia. Tal crise da
modernidade coincidia, no Brasil, com os anos de “distensão”, bem como, no contexto internacional,
com os problemas econômicos relacionados à crise do petróleo.
A cultura como forma radical de controle social a partir do Estado, entra em crise e passa a ser
criada, aos poucos, uma afirmação da cultura relacionada à democracia. Neste sentido, dentro do
próprio meio do poder vigente, parentes de pessoas poderosas, algumas delas com trânsito assegurado
nos círculos de produtores culturais, não se furtaram a colaborar com o processo de “abertura” na
frente cultural.
79
Ministros como Severo Gomes e Golberi do Couto e Silva participaram direta e ativamente do
processo de mudança. O primeiro garantiu recursos e proteção institucional em favor da criação do
Centro Nacional de Referência Cultural no âmbito do Ministério da Indústria e Comércio, dando
assim alento às pretensões de reforma da vertente “patrimonial”. O segundo acolheu com simpatia o
projeto inovador de Aloísio Magalhães, afiançando seu nome para substituir Renato Soeiro, à testa do
IPHAN desde o início da gestão Portela.
80
No governo Figueiredo ocorreu uma reestruturação da área
cultural no Governo Federal que culminou na criação da Secretaria da Cultura, onde se aglutinaram
todos os órgãos do ministério, sob a direção de Aloísio Magalhães.
Na década de 60, o teatro havia sido a resistência cultural mais combativa e combatida.
81
Desde 64 o teatro estava em permanente suspeição e de fato, diretores e artistas como um todo, foram
brutalmente perseguidos e torturados. Não nos cabe aqui, no entanto nos aprofundarmos na história
do teatro no Brasil. Todavia, cabe ressaltar que o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, do qual
falaremos adiante, bebeu de todo este período, sendo parte deste processo.
79
Miceli, 1984.
80
Op. cit.
81
Ventura, 1988.
46
2.3 - O Centro Nacional de Referência Cultural sob a direção de Aloísio Magalhães.
A idéia da criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) não surgiu no interior
da burocracia estatal. Segundo depoimento de Aloísio Magalhães (ap. Fonseca, 1997), foi fruto das
conversas de um pequeno grupo que se reunia em Brasília, do qual participavam o empresário e então
Ministro da Indústria e Comércio Severo Gomes, o embaixador Vladimir Murtinho, então Secretário
de Educação e Cultura do Distrito Federal, além do próprio Aloísio, designer e artista plástico de
renome.
82
Segundo Fonseca (1997), a formulação da indagação que conduzia as discussões destes
intelectuais e políticos resume-se em: “Por que não se reconhece o produto brasileiro? Por que ele não
tem fisionomia própria?” Tratava-se, de fato, de uma nova forma de equacionar a velha questão da
identidade nacional, vinculando a questão cultural à questão do desenvolvimento. Inicialmente, o
objetivo era criar um banco de dados sobre a cultura brasileira, tratando-se assim de um trabalho
etnográfico, de dimensão estritamente cultural.
Desde sua criação, o CNRC foi dirigido por Aloísio Magalhães e o perfil dos agentes
recrutados por ele era bastante diferente dos tradicionais funcionários do IPHAN. A diversidade na
formação acadêmica e o interesse pessoal por mais de uma área do saber eram requisitos considerados
favoráveis a uma compatibilidade com a proposta do CNRC.
83
A especialização era na verdade
considerada um risco para a produção de conhecimento que se desejava alcançar.
Nos projetos desenvolvidos no CNRC procurava-se apreender a dinâmica específica de cada
processo cultural, estudando-se tipologias e modelos, e, em sua aplicação, gozava-se de certa
autonomia em relação aos órgãos da administração pública. Nesse espaço, elaboraram-se os conceitos
que no início da década de 80 fundamentaram as políticas da Secretaria de Cultura do MEC e que
foram incorporados à Constituição Federal de 1988.
84
Em um primeiro momento, o trabalho do
CNRC deu ênfase a experiências de referenciamento, recorrendo-se com freqüência à colaboração de
especialistas nacionais e estrangeiros.
85
Em um segundo momento, o CNRC estruturou–se em quatro
82
Fonseca, 1997.
83
Op. cit.
84
Op. cit.
85
Op. cit.
47
programas: mapeamento do artesanato brasileiro, levantamentos sócio-culturais, história da ciência e
da tecnologia no Brasil, e levantamento de documentação sobre o Brasil.
86
Podemos dizer, para concluir, que, segundo o ideário do CNRC, propunha-se modernizar a
noção de cultura brasileira, sem abrir-se mão, no entanto, de uma visão calcada no “nacional
popular.” O CNRC não se propunha a coletar bens e sim a produzir referências que pudessem ser
utilizadas no planejamento socioeconômico.
87
Progressivamente, foi sendo formulada, assim, a idéia
de bem cultural, que surgiu como alternativa atualizada e mais abrangente à noção de patrimônio
histórico.
O que se podia chamar de novo na proposta do CNRC era a perspectiva a partir da qual se
valorizavam as manifestações populares, revelando um interesse até então não percebido: a
capacidade de gerar valor econômico e de apresentar alternativas apropriadas ao desenvolvimento
brasileiro. A noção de cultura popular passa a ser ampliada, de modo a abranger tanto as
manifestações populares tradicionais quanto suas interseções com o mundo industrial e urbano. Com
uma abordagem e perspectiva antropológicas, o CNRC volta-se, desta forma, para manifestações
culturais vivas e inseridas em práticas sociais contemporâneas.
88
Aloísio Magalhães conseguiu, por outro lado, sintetizar sua visão sobre o papel da cultura no
planejamento econômico, tendo como eixo a questão da identidade nacional. Nas palavras do próprio
Aloísio (ap. Fonseca, 1997):
Resultam ainda frágeis os indicadores de nossa identidade cultural. Mas, apesar de frágeis, não
deixam de ser importantes como instrumentos para formulação de nossa política de
desenvolvimento.
89
2.4 - O mercado cultural no contexto capitalista da Ditadura brasileira
Se, por um lado, o golpe militar teve evidentemente um sentido político, por outro, ele
encobre mudanças econômicas substanciais que orientaram a sociedade brasileira na direção de um
modelo de desenvolvimento capitalista bastante específico. “[...] o próprio modo de produção cultural
86
Op. cit.
87
Op. cit.
88
Op. cit.
89
Op. Cit.
48
interno vai se subordinando não apenas ao capital comercial, mas também e sobretudo ao capital
industrial e financeiro internacionais.”
90
O que caracteriza o mercado cultural pós-64 é o seu volume e a sua dimensão que estão sob
controle do Estado que por sua vez estimula a cultura como meio de integração. Devemos ressaltar
todavia, que a ideologia do Estado não se volta exclusivamente para a repressão, mas também possui
um lado ativo, que serve de base para uma série de atividades. Neste tocante, vale a pena citar
Comblin (1980), para quem:
No Estado de Segurança Nacional, não apenas o poder conferido pela cultura não é reprimido,
mas é desenvolvido e plenamente utilizado. A única condição é que esse poder seja submisso
ao Poder Nacional, com vistas à Segurança Nacional.
91
Entender a atuação do Estado na esfera cultural torna-se o mesmo que entender a política
governamental do desenvolvimento brasileiro, sendo o Estado um elemento fundamental na
organização e dinamização deste mercado cultural, ao mesmo tempo em que nele atua através de sua
política governamental. O crescimento da classe média e a concentração da população em grandes
centros urbanos vão permitir a criação de um espaço cultural onde os bens simbólicos passam a ser
consumidos por um público cada vez maior. Se, por um lado, o golpe de 64 inaugurou um período de
enorme repressão política e ideológica, por outro, significou também a emergência de um mercado
que incorpora em seu seio tanto as empresas privadas como as instituições governamentais.
Durante o período 64-80 ocorreu uma formidável expansão da produção, da distribuição e do
consumo de bens culturais. É nesta fase que se a consolidação dos grandes conglomerados que
controlam os meios de comunicação de massa do nosso país, tais como a TV Globo e a Editora Abril.
Trata-se de uma evidente centralização de poder no plano nacional. O processo de expansão na área
cultural é nítido, com o crescimento da indústria do disco e do movimento editorial. Porém a
distribuição e criação dos produtos culturais irão reproduzir as contradições do próprio modelo
capitalista brasileiro, que acentua a diferença entre as regiões e reforça a divisão de trabalho entre
cidade e campo. Todavia, o mercado manifesta uma expansão de bens simbólicos que tem expressão
considerável, na medida em que possibilita a consolidação das indústrias culturais e reorganiza a
política estatal no que se refere à área da cultura.
90
Coutinho, 1979:19-48.
91
Comblin, 1980:239.
49
Em contrapartida, sabemos que existiu um relativo silêncio acadêmico sobre a existência de
uma “cultura de massa”, assim como sobre o relacionamento entre produção cultural e mercado. No
plano acadêmico, é praticamente apenas na década de 70 que surgem os primeiros escritos que tratam
dos meios de comunicação de massa, fruto, sobretudo, do desenvolvimento das faculdades de
comunicação. No ano de 1968, a Revista de Civilização Brasileira publica um artigo de Adorno e
outro de Benjamin, e a Tempo Brasileiro publica um número especial sobre comunicação e cultura de
massa.
92
A discussão sobre a sociedade e a cultura de massa se inicia nestas revistas como se nesse
momento de consolidação da indústria cultural no Brasil alguns intelectuais sentissem a necessidade
de buscar outras teorias para entender melhor a nova realidade brasileira - a Escola de Frankfurt
apresentando-se, nesse caso, como referência.
No entanto, o caráter capitalista industrial e comercial que a cultura passa a vivenciar fará com
que os intelectuais passem a atuar dentro da dependência da lógica comercial e fazer parte do sistema
empresarial, passando a ter, conseqüentemente, dificuldades em construir uma visão crítica em
relação ao tipo de cultura que produzem. É preciso entender que durante o período que vai de 64 a 80,
a censura, impelida pelo Estado militar, não se define tanto pelo veto a todo e qualquer produto
cultural, mas age primeiro como repressão seletiva que impossibilita a emergência de determinados
tipos de pensamento ou de obras artísticas. São censuradas as peças teatrais, os filmes, os livros, mas
não o teatro, o cinema ou a indústria editorial. O ato repressor atinge em especial a obra, mas não a
generalidade de sua produção.
93
O movimento cultural pós-64 caracteriza-se por dois aspectos que parecem contraditórios, mas
que, na verdade, não o são. Por um lado, trata-se de um período da história em que mais são
produzidos e difundidos os bens culturais; por outro lado, ele se define por uma repressão ideológica
e política intensa. Isto se deve ao fato de ser o próprio Estado autoritário o promotor do
desenvolvimento capitalista mais avançado. Logo após o golpe, foi promulgada uma série de leis e de
portarias ministeriais para o controle de diversas áreas sociais, ao mesmo tempo em que são extintas
entidades culturais e pedagógicas consideradas como subversivas, dentre elas a Comissão de Cultura
Popular, o Programa Nacional de Alfabetização, etc. A ação governamental iria intensificar-se
particularmente a partir de 1975, com a elaboração de um Plano Nacional de Cultura, a criação da
92
Ortiz, 1991.
93
Op. cit.
50
FUNARTE e a reformulação administrativa da EMBRAFILME, recebendo a área da cultura um
impulso bem maior em relação aos anos anteriores.
94
O presidente Castelo Branco iria explicar o atraso da política cultural do governo devido aos
imperativos problemas causados pelos estudantes e assim instituiria uma comissão com a finalidade
de elaborar as bases de um plano nacional de cultura. A comissão a ser criada, trabalhando junto ao
MEC, iria propor a criação de um Conselho Federal de Cultura (CFC). Os intelectuais que formavam
as instituições culturais do governo militar eram, por sua vez, recrutados nos Institutos Históricos e
Geográficos e nas Academias de Letras. Esses intelectuais conservadores iriam se ocupar da tarefa de
traçar as diretrizes de um plano cultural para o país.
Os membros do CFC afirmavam que a cultura brasileira é plural e variada, ou seja, procuram
sublinhar o aspecto da diversidade. Os elementos branco, negro e índio apontam neste sentido para
uma discussão que desde a obra de Gilberto Freire vinha sendo colocada como pluralidade étnica,
cultural e física. O Brasil seria, assim, o palco de uma pluralidade de culturas e diversidade de
regiões. Neste sentido, o elemento da mestiçagem conteria justamente os traços que naturalmente
definem a identidade brasileira: unidade na diversidade. Cabe aqui citar uma passagem da PNC
(Política Nacional de Cultura):
[A cultura brasileira] decorre do sincretismo de diferentes manifestações que hoje podemos
identificar como caracteristicamente brasileiras, traduzindo-se em um sentido que, embora
nacional, tem peculiaridades regionais.
95
A idéia de pluralidade encobre, no entanto, uma ideologia de harmonia característica, por
exemplo, do pensamento de Gilberto Freire. Para este autor, diversidade significa unicamente
diferenciação, o que elimina os aspectos de antagonismos e de conflito da sociedade. As partes são
distintas, mas se encontram harmoniosamente unidas pelo discurso que as engloba. Num certo
sentido, o pensamento de Gilberto Freire é tomista, pois elimina qualquer possibilidade de superação,
em um universo onde o senhor não se opõe ao escravo, mas se diferencia deste.
A ideologia do sincretismo exprime um universo isento de contradições, uma vez que o
contato cultural transcenderia às divergências reais que pudessem vir a existir. Fundamentada na
antropologia culturalista, a imagem de um Brasil melting pot das raças exprime o contato entre os
94
Op cit.
95
MEC, 1975:16.
51
povos como uma aculturação harmônica, sem que se leve em consideração as situações concretas que
orientam os próprios contatos culturais.
Um segundo aspecto do discurso do CFC diz respeito à tradição. Voltados para o passado, eles
insistem, como Gilberto Freyre em seu manifesto tradicionalista, na preservação das expressões e
manifestações configuradas no passado da história brasileira. Os folcloristas voltavam-se para o
estudo das tradições populares e a cultura brasileira era vista como um “patrimônio” a ser preservado.
O próprio documento da Política Nacional de Cultura, que revela boa parte da ideologia do CFC,
considera como seu objetivo primeiro “conservar o acervo constituído e manter viva a memória
nacional assegurando a perenidade da cultura brasileira.”
96
O argumento da tradição é fundamental
para a orientação de uma política de Estado que se volta para atividades como “pró-memória”,
“museu histórico”, “projeto memória do teatro brasileiro”, “dia do folclore”, etc. São inúmeros os
artigos que aparecem na revista Cultura, do MEC, associando a questão da tradição à da memória e
da identidade nacional.
No entanto, alguns intelectuais nos lembram que “[...] as culturas, em nenhum momento da
história, puderam desenvolver-se sobre programas e planos que controlassem e impedissem a
naturalidade de sua elaboração. A liberdade de criar não pode nem deve encontrar restrições, o que
não significa que o Estado esteja ausente.”
97
Há, desta forma, a necessidade de pensar-se
ideologicamente um planejamento que garanta a “democracia” e as tradições brasileiras.
No caso do CFC, a contradição é resolvida retomando-se o velho tema do “totalitarismo”, não
se levando em conta, desta forma, o dado de realidade que marca neste momento a sociedade
brasileira: a censura. Cultura brasileira significa, neste sentido, “segurança e defesa” dos bens que
integram o patrimônio histórico. Na mesma linha, o ministro Jarbas Passarinho afirmaria que a
personalidade nacional é a expressão mais elaborada da cultura brasileira; por isso “a sua defesa
impõe-se tanto quanto a do território nacional.” A ideologia da Segurança Nacional estende-se assim
à esfera da cultura, a memória devendo necessariamente ser preservada; caso contrário, o homem
brasileiro estaria privando-se de sua dimensão ontológica: o sincretismo. Trabalha-se desta forma a
noção de cultura como sendo um objeto quase que imutável, esquecendo-se da característica
fundamental desta: a sua mutação e transformação constante no decorrer dos tempos e o contato com
outros “ingredientes”.
96
MEC, 1975:28.
97
Palavras de Arthur César F. Reis, ap. Mota, 1977.
52
Ainda nesse mesmo recorte temporal, desperta a crítica da modernidade em nome de um
humanismo que privilegiaria a dimensão da qualidade em detrimento da quantidade. O ponto de
tensão entre esses dois termos pode ser apreendido quando se considera, por exemplo, a relação entre
cultura popular e cultura de massa. A cultura popular deve ser preservada, porque, em sua essência,
ela é tradição e identidade. Os meios de comunicação de massa pertencem, no entanto, ao domínio da
quantidade - eles massificam e uniformizam a diversidade do ideal brasileiro. Sob esse prisma, o
pensamento tradicional opõe os valores humanos e regionais ao tecnicismo moderno, brasileiro ou
estrangeiro, como por exemplo, a sua crítica aos centros de televisão (São Paulo e Rio de Janeiro) que
produzem uma cultura massificante e procuram impô-la a todo o país.
Para concluirmos a questão do Estado militar e da cultura brasileira, devemos sublinhar que
os aspectos de difusão e de consumo dos bens culturais aparecem como definidores da política do
Estado, a eles associando-se ainda a idéia de “democracia”. O Estado seria democrático na medida
em que procuraria incentivar os canais de distribuição dos bens culturais produzidos. O mercado,
enquanto espaço social onde se realizam as trocas e o consumo torna-se o local por excelência onde
se exerceriam as aspirações democráticas.
2.5 – Asdrúbal Trouxe o Trombone
No intuito de compreender o que representou o grupo teatral que nome a este tópico,
citemos Hollanda (2004):
O Asdrúbal Trouxe o Trombone foi um grupo de teatro, criado no Rio de Janeiro, em de
maio de 1974, por Hamilton Vaz Pereira, Regina Casé, Jorge Alberto Soares, Luiz Arthur
Peixoto e Daniel Dantas, que marcou a cena cultural dos anos setenta por sua audácia e
rebeldia em relação aos cânones e padrões teatrais da época.
98
Como sabemos, na época em que se desenvolveu o trabalho do Asdrúbal, a vida não era um
mar de rosas. De 1974 a 1978 vivia-se a era Geisel, e, apesar de certa distensão política, a ditadura
permanecia, com o AI-5, com a censura e a repressão policial que, aliás, estiveram presentes no
histórico de vida do grupo. De qualquer forma a história avança, o tempo não para, e o ar da abertura
política começava a se aproximar, com a volta dos exilados, a queda da censura e o evidente esforço
de reorganização da sociedade civil.
98
Hollanda, 2004:9.
53
Nesse contexto, o grupo teatral, musical e circense Asdrúbal Trouxe o Trombone representa,
sem dúvida, um dos ícones da história do teatro brasileiro, assim como da cultura brasileira da década
de setenta. O grupo “[...] implementou uma nova atitude no panorama teatral carioca, renovou
platéias, influenciou gerações e abriu portas para que outros grupos se consolidassem.”
99
Podemos,
hoje, enxergar a dimensão da importância do Asdrúbal Trouxe o Trombone para a cultura nacional
quando citamos diversos nomes como Hamilton Vaz Pereira, Regina Casé, Evandro Mesquita,
Perfeito Fortuna, Patricya Travassos, Nina de Pádua, Luiz Fernando Guimarães, todos ainda hoje
trabalhando em atividades artísticas e culturais de extrema importância e que nasceram do útero do
que foi o Asdrúbal.
O grupo tinha como marca registrada a irreverência e o compromisso com a inovação -
características visíveis já no espetáculo de estréia intitulado o Inspetor Geral, que logo em sua
primeira apresentação foi aclamado pelo público e pela crítica. O segundo espetáculo, Ubu, trazia por
sua vez uma grande novidade para o teatro: a utilização das técnicas, da visualidade e da performance
do circo. Novidade essa que foi novamente um sucesso.
100
O terceiro espetáculo do grupo, dirigido pelo genial e inovador Hamilton Vaz Pereira, era uma
encenação do olhar de sua geração sobre o mundo e sobre si mesmo. O Trate-me Leão abandona
qualquer apoio em textos clássicos e parte para a pesquisa livre, desprovida de referências ou padrões
pré-estabelecidos. Desta vez o resultado ultrapassou em muito qualquer expectativa, resultado esse
que para muitos emitiu a mais completa radiografia da juventude brasileira dos anos 70.
101
Mas o que foi o Asdrúbal? O Asdrúbal foi um grupo de pessoas livres, apaixonadas, era
interferência de todos, era autoria permanente, era arte feita na hora, era aqui e agora “[...] misturando
em cena o circo, a batucada, o vídeo, as artes plásticas, a coreografia, o rock, o pop. O efeito-
asdrúbal, antes de mais nada, é o fruto de uma ocorrência rara: a sintonia total, no plano da criação
artística, com seu momento.”
102
Por onde esse bando irreverente e apaixonado passasse causava
espanto, estranhamento, paixão. As pessoas que assistiam vinham de todas as classes sociais, de todos
os cantos, velhos, crianças, ricos ou menos afortunados, todos se encantavam com esses jovens que
mudaram de uma vez por toda o nosso teatro, a nossa arte. De fato o Asdrúbal mobilizou de forma
inédita um público tão grande quanto heterogêneo. Tratava-se do “efeito-asdrúbal”, de que Heloísa
99
Op. cit.
100
Op. cit., p. 9.
101
Op. cit., p.10.
102
Op cit., p. 10.
54
Buarque de Hollanda fala em sua obra Asdrúbal Trouxe o Trombone: memórias de uma trupe
solitária de comediantes que abalou os anos 70. Dizem as más línguas (ou seriam as boas?) que o
“efeito-asdrúbal” levava as pessoas a largarem tudo para seguir o grupo: carreira, amor, família,
religião, casa.
No entanto o “efeito-asdrúbal” transformou-se, assim como o país transformava-se e
caminhava para a tão desejada democracia. Depois de seu efeito catártico, de sua tradução de uma
geração, o Asdrúbal transmutou e passou a ter um maravilhoso efeito-asdrúbal disseminador. Uma
multidão de grupos musicais, teatrais, artísticos nasceu, assim, do seu seio, e são seus descendentes
diretos. Dentre esses tantos nomes podemos citar a Blitz, o Banduendes Por Acaso Estrelado, o
Manhas e Manias, a Intrépida Trupe, Cazuza, Fernando Guimarães, Fausto Fawcett, Fernanda Torres
e muito outros, sem falar de Perfeito Fortuna, que criou uma peça importante na história do Asdrúbal,
o Circo Voador. De fato, seria impossível terminar essas poucas linhas sobre o Asdrúbal sem
sublinhar que o Circo Voador e a banda Blitz foram os filhotes da linhagem asdrubalina que mais
frutos trouxeram para a geração dos anos 80. Nas palavras de Heloísa Buarque de Hollanda:
[...] a passagem da saída do grupo para a criação tanto da Blitz como do Circo Voador foi feita
de maneira quase natural, quase como se fosse um subproduto autêntico do conjunto de
atitudes artísticas, ideológicas e de formato de criação e produção que fizeram o Asdrúbal virar
história.
103
2.6 – A Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV).
Em 1975 o pintor Rubens Gerchman conseguia pela primeira vez fazer com que uma
instituição de ensino artístico perdesse o rótulo de Belas Artes, possibilitando assim, uma
denominação mais ampla: Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV). Esta proposta mudaria
para sempre o cenário cultural carioca.
104
Segundo o próprio Gerchman, não se tratava apenas de uma
mera nomenclatura: a expressão em si assinalava uma proposta de liberdade na formação do artista. A
proposta inovadora da EAV era expor o aluno a várias experiências, desenvolvendo um estímulo,
uma provocação permanente.
103
Op. cit., p. 171
104
Menezes, 2005.
55
Outro perfil inovador da EAV frente à antiquada estrutura do Instituto de Belas Artes era o
fato de que qualquer um podia seguir um curso sem uma grade reguladora e limitadora - o que atraiu
de pronto artistas de diversos segmentos, como o cantor Cazuza, a cineasta Sandra Werneck, o
fotógrafo Walter Carvalho, dentre outros. Os cursos, diferentemente do que acontecia no IBA
(Instituto de Belas Artes), eram ministrados por professores-artistas e recebiam (em suas rodas de
leitura de fins de semana, shows, palestras, aulas de teatro e cineclube) diversos convidados ilustres,
como Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Mário Pedrosa, Roberto da Matta e o poeta Cacaso. Quando o
pintor Gerchman assumiu a direção, entre 1975 e 1979, a EAV chegou a reunir 2000 alunos. “A
escola era um verdadeiro oásis”, comenta Luiz Ernesto.
105
De fato, o espaço era uma espécie de abrigo de proteção para toda produção artística, cultural
e política que não possuía espaço e encontrava-se engavetada. Era como uma enorme válvula de
escape que em pleno regime militar. Mesmo o sendo bem vista pelo poder repressor, conseguiu
permanecer como um dos mais importantes pólos de resistência política e cultural da época. Desta
forma, a EAV não somente produziu conhecimento e desenvolveu a crítica artística, cultural e
política, como também resistiu à repressão, à escuridão da ditadura, mostrando-se uma referência, um
bom termômetro da cena artística nacional.
Por falar em cena artística nacional, ou melhor, carioca, vocês lembram do Asdrúbal?
Lembram da época do efeito-asdrúbal, quando todos queriam saber o que é que o Asdrúbal tinha de
tão fantasticamente especial? Quando todos queriam lançar-se no palco e fazer parte desse grupo?
Pois é, a “família” do Asdrúbal tinha ficado muito grande e seus integrantes eram todos cheios de
talento e de idéias. Os caminhos do grupo iam de fato se abrindo com uma criatividade mais do que
impressionante. Por outro lado, como afirma Perfeito Fortuna, “Já não éramos crianças, queríamos ir
cada um para um lado e, também, não ganhávamos com os espetáculos o suficiente para
sobreviver.”
106
Nesse quadro, Hamilton propõe a criação de um curso de teatro diferenciado, curso
esse cuja demanda estaria “no ar”, visto que grande parte dos jovens que conheceram o Asdrúbal
passou a querer fazer esse tipo de teatro inovador.
Professores dispostos e talentosos eram o que não faltava, e assim o Asdrúbal começou a
ministrar (ou sabe-se que termo usar para tal liberdade e inovação), no segundo semestre de 1981,
cursos de teatro no Parque Lage. Durante três meses os “asdrúbals” literalmente invadiram o Parque
105
Op. cit. Luiz Erneto foi aluno da casa onde atuou como diretor.
106
Thys, 1986:4.
56
Lage, chegando a ter 350 alunos divididos em turmas de cinqüenta pessoas. Cada elemento do grupo
teve assim sua turma:
Luiz Fernando se juntou a Regina Casé e os dois ficaram responsáveis por uma turma; Patrícia
Travassos e Evandro Mesquita ficaram com outra; Perfeito Fortuna com mais uma e Hamilton
pegou duas turmas, porque já era um diretor reconhecido.
107
Muitos grupos surgiram desses cursos e oficinas. Patrícia Travassos e Evandro Mesquita, por
exemplo, montaram com sua turma a peça A incrível história de Nehemias Demutia, que esteve em
cartaz no Teatro Cacilda Becker e depois foi parar sabe onde? No Circo Voador! Por aqui já para
perceber onde vai dar todo esse grande caldeirão artístico. Mas enfim, tratava-se da estréia do grupo
formado no Parque Lage por “elementos” do Asdrúbal: Banduendes por Acaso Estrelados.
108
Perfeito Fortuna criou por sua vez o grupo Pára-Quedas do Coração com Cazuza, Bebel
Gilberto, Alice de Andrade, e Kátia Bronstein, e organizou uma série de festas e encontros
anárquicos
109
que jamais poderão ser repetidos com a mesma intensidade e fervor. Hamilton, de
seu lado, fundou com seus alunos o grupo Vivo Muito Vivo e, em um primeiro momento, concentrou-
se na prática de exercícios desenvolvidos nas aulas.
110
Enquanto todo esse fervor teatral acontecia, Cazuza cantava à frente do Barão Vermelho,
Evandro Mesquita fundava a Blitz e o Circo Voador de Perfeito Fortuna anunciava sua chegada com
dança, teatro, música, circo e tudo que quisesse chegar. O movimento cultural da época não se fazia
somente nos teatros, nas universidades, se fazia sobretudo na rua, nas festas, na praia, em total
improviso, não era apenas fazer arte, era viver arte, ser arte.
Mas voltando propriamente ao Parque Lage, foi também no fervor de todo esse movimento
social e cultural que Marcus Lontra, diretor do Parque de 1983 a 1987, idealizou e realizou em 1984 a
famosa exposição Como vai você, Geração 80? Como sabemos a palavra de ordem da época era a
experimentação. No clima de confiança e euforia reinante em 1984, as questões levantadas defendiam
antes de tudo a liberdade de expressão e a morte dos suportes convencionais, além da eliminação de
sugestões figurativas. Os artistas da EAV acreditavam “[...] que a pintura se fomenta por si só, pelo
simples gosto do gesto individual.”
111
107
Hollanda, 2004:166.
108
Op. cit., p. 166.
109
Op. cit..
110
Op. cit., p. 166.
111
Costa, 2004.
57
Grande parte desses artistas surgira na década de setenta e, com seus trabalhos e
personalidades, fomentaram importantes bases estéticas da arte da década de oitenta. Foi assim que a
liberdade se apresentou na variedade da produção dos anos oitenta, na qual podemos nos deliciar com
o desenho popular, anônimo, de caráter erótico e de apelo narrativo, com a pintura propriamente dita,
com a figuração pop, com a matéria pictórica expressiva, com as imagens do cotidiano, com o grafite,
com as camadas de cor, com a força do gesto e da expressão corporal, com o humor, com os signos de
comunicação urbana, com a geometria da arte brasileira, com os elementos da arte popular, com o
espírito barroco, com a sedução kitsch, com a luminosidade, etc. Uma forte e decidida poética
figurativa e emocional caracteriza grande parte da arte do período, quando são valorizados o gesto e o
registro corporal. Em tal processo, característico da expressão artística contemporânea, “[...] pintura e
objeto se fundem no mesmo corpo, formando uma única pele.”
112
De fato, um novo país nascia e se mostrava ávido por imagens, e o corpo em todo o seu
esplendor e acepções foi o tema de ação da geração oitenta, que surgia dos escombros e ocupava
agora a cena artística e cultural com uma presença marcante e espalhafatosa. A exposição Como vai
você, Geração 80?, realizada em 1984 com 13 artistas da EAV foi um momento para a nossa história
cultural e política extremamente emblemático “[...] em que a orquestra se estabeleceu e, em meio a
tanta dissonância, estabeleceu-se uma espécie de harmonia polifônica.”
113
Em uma grande e inédita ação coletiva, tanto quantitativa como qualitativa, a exposição Como
vai você, Geração 80? levou 123 jovens artistas a determinarem sua inserção no processo cultural
brasileiro. A geração 80 ousou nesse momento questionar uma visão restritiva até então legitimadora
e restabeleceu compromissos com a tradição figurativa e com a valorização das práticas artesanais no
processo artístico. Esse momento dinâmico, que, a partir do Rio de Janeiro abraçou todo o Brasil,
mostrou algo do que realmente somos: “[...] uma terra onde a diversidade das culturas se encontre e
um local onde as diferenças sejam admiradas e compreendidas como beleza intrínseca dos seres,
permitindo a sempre desejada integração da arte e da vida.”
114
A corajosa e bem sucedida ação desses
jovens artistas permitiu à nossa arte expansão, rompendo fronteiras e obtendo o seu tão merecido
reconhecimento internacional.
112
Op. cit.
113
Op. cit.
114
Op. cit.
58
3. Um pouco mais sobre a década de 80 no Rio de Janeiro.
3.1 – Os anos 80 no Brasil.
Para muitos os anos oitenta foram os mais bregas da nossa história com seus penteados e
roupas cafonérrimos, o conjunto Menudo, o seriado Ilha da Fantasia, as Paquitas e tantos outros
símbolos. No entanto, a década de 80 foi uma década como qualquer outra, com seus ícones, suas
particularidades, sua história. Foi assim também a década do boneco Falcon, do vídeo-game Atari, do
boneco Fofão, do tênis All Star, do Ultraje a Rigor, da mochila Company, do relógio Champion, da
calça Wrangler, do tal de “não esqueça minha Caloi”, do Cubo Mágico, da novela Roque Santeiro, do
poder do jogo do bicho estampado na Novela Partido Alto
115
e do inesquecível Sitio do Picapau
Amarelo que, aliás, existia desde o fim dos anos setenta.
No Rio de Janeiro a moda eram os patins, o wind surf, as noitadas na boate Hippopotamus e a
chegada do sensacional topless, a grande novidade do início dos anos oitenta nas praias cariocas. Foi
também em 1980 que apareceu pela primeira vez na televisão brasileira alguém preparando um
baseado, ou seja, um cigarro de maconha.
116
Mesmo sendo abertamente marcada pela cultura Pop e
pelo início do consumismo desenfreado que viria nos assolar nas décadas posteriores, a década de
oitenta foi extremamente produtiva para a cultura nacional.
Para alguns autores os anos oitenta estiveram muito próximos do que os países democráticos
viveram na década de sessenta: “[...] um tempo em que era bacana ser jovem, tudo parecia ser
novidade, a cada momento surgia algo desafiador, pensava-se que o mundo nunca mais seria o
mesmo depois do simples gesto de adentrar uma danceteria.”
117
Agora que podemos olhar para trás
com menos preconceito, percebemos que a geração 80 marcou uma época, um momento histórico da
nossa música com certeza importante para a indústria musical e para a nossa cultura como um todo.
No plano das idéias e mentalidades, no plano político e cultural, os artistas e intelectuais da
vanguarda estavam com suas “cabeças antenadas”. Na década de oitenta desenvolveu-se uma crítica
social mais ligada ao cotidiano e à individualidade e assim permitiu-se um grande avanço para o
debate político e cultural de que tanto precisávamos. Tratava-se da resposta “[...] ao sentimento
generalizado de falência e fracasso que os anos setenta conheceram. Dificilmente um próximo passo
115
Para maiores detalhes ver: Alzer & Claudino, 2005.
116
Alzer & Claudino, 2005.
117
Alexandre, 2002. “Prefácio.
59
poderá ignorar a quantidade de aquisições e experiências dessa geração”
118
que questionava e
estimulava o papel e a função do intelectual do Brasil.
Ainda sob esses ares, a mulher brasileira entrava em cena, agora como mulher ‘moderna’,
usando cabelo Punk, falando de carreira profissional, de doutorado, de batalha, e com diploma de
Masters of Arts de alguma instituição ou de Antropologia na Sorbonne. O movimento feminista
passava agora a ganhar real espaço e a mulher ‘modernabrasileira desenvolve um papel fundamental
no plano artístico, cultural e político. A reflexão sobre a condição da mulher ganha vigor e projeção e
até mesmo o quase inacreditável reconhecimento institucional.
119
Sim! O Brasil despertava de um longo pesadelo, da noite de arbítrio e violência, e os jovens de
nosso país descobriam novamente a força da mobilização popular e de sua possível participação
política. O sonho da democracia passava agora a ser mais real em uma sociedade que exigia eleições
livres e onde os artistas queriam espaço para criar e gritavam e espalhavam “Arte por toda parte!”.
O Rio de Janeiro também transpirava os horrores da longa ditadura e renascia do silencio, dos
escombros da década anterior. Explodiam por todos os lados manifestações culturais no ramo do
teatro, do circo, da dança e da música, muitas vezes todas aglomeradas em uma coisa só, como era o
caso do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, fundador do Circo Voador, se é possível afirmarmos
isto
120
.
Toda essa cultura fervilhava nos porões dos edifícios, nos barracões do subúrbio, nas esquinas,
nos bares, na praia. Em cada esquina era possível encontrar-se alguém “[...] com Brizola na cabeça e
Darcy Ribeiro no coração, tirando do bolso seu projeto para uma nova e revolucionária política
cultural para o Rio de Janeiro.”
121
As pessoas ligadas em cultura, na forma mais abrangente do
termo, estavam com muitas idéias inovadoras na cabeça. Realmente, na prática, percebíamos que um
novo movimento cultural brotava por toda parte na década de 80.
No plano cultural, podemos destacar elementos fundamentais para a fomentação desse novo
movimento no Rio de Janeiro: O grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, A EAV, o Circo Voador, o
surgimento da Rádio Fluminense e o conjunto musical Blitz, que rapidamente despontou e seguiu seu
caminho.
118
Gaspari; Hollanda, & Ventura, 2000:188.
119
Cabe sublinhar que na década de oitenta Gilka Machado ganha o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de
Letras. O reconhecimento dessa grande escritora nessa época não se por acaso: o contexto político e cultural era de
abertura à produção intelectual da mulher. Cf. Gaspari; Hollanda, & Ventura, 2000:188.
120
Anexo II, ilustração 4.
121
Gaspari; Hollanda, & Ventura, 2000:261.
60
Desse grande “caldeirão” de novas idéias surgiu, assim, o Circo Voador, apoiado por um forte
movimento teatral que se desenvolvia aglomerando aspectos musicais e circenses, capitaneado pelo
experiente grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone que, dentre muitas outras pessoas, contava com “as
cabeças” de Chacal, Breno Moroni, Nelson Motta, Hamilton Vaz Pereira e Perfeito Fortuna.
3.2 – Fundação da Escola Nacional de Circo
Se tivéssemos que traçar os marcos da História do Circo Contemporâneo e do teatro de rua no
Brasil, sem dúvida teríamos que nos voltar para os anos 70, época de “desbunde” dos jovens, do
‘Asdrúbal’ e de outros artistas alternativos que se utilizavam não só dos teatros, mas também da praia,
da praça, do espaço da rua em geral.
Os artistas alternativos em atividade na década de 70 não se cansavam de fazer reuniões,
laboratórios, exercícios, improvisações (que às vezes duravam horas). Para esses artistas não podia
haver pudores de pequeno-burguês e assim ficava-se nu (porque o corpo e a alma são um só), beijava-
se na boca de todos, gritava-se, esperneava-se, ou seja, liberdade total de expressão.
Além de toda a liberdade maravilhosa desses jovens, os alternativos faziam sucesso com o
público e provaram a viabilidade de uma nova estrutura de produção independente, cooperativada e
solidária. O início da década de 80 foi marcado assim por grandes sucessos de bilheteria de
espetáculos de grupos alternativos. Os prêmios oficiais eram, por outro lado, a prova formal do
reconhecimento do talento e do profissionalismo de toda uma nova geração. Surgia um jeito novo de
ser empreendedor e a ousadia passou a dar lucro.
No meio de todo fervor cultural dos primeiros anos da década de 80, o circo tradicional do
Brasil vivia uma crise. Era preciso renovar certos padrões e conceitos do circo, assim como renovar
seus artistas. Luiz Olimencha lutava assim para criar a Escola Nacional de Circo, espaço onde seriam
transmitidos os números tradicionais de circo que estavam desaparecendo e onde se pudesse também
desenvolver novas técnicas circenses. Seria de fato a primeira escola oficial de circo da América do
Sul.
O presidente do Instituto Nacional de Artes Cênicas, Orlando Miranda, comprou a idéia de
Luiz Olimencha e, em dois anos de luta conseguiu inaugurar a Escola Nacional de Circo em 13 de
maio de 1982, na Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro. Já existiam outras escolas de circo menores
no Brasil, como a Piolin, da Paraíba, e uma outra em São Paulo. No entanto, a criação da Escola
61
Nacional de Circo demostrava que o governo federal brasileiro reconhecia concretamente a
importância do Circo em nosso país.
122
Luiz Olimencha e Orlando Miranda realizavam o sonho de
gerações e a mistura da tradição circense e da modernidade cênica viria a dar grandes frutos. A Escola
Nacional de Circo acabou por ser uma ótima opção e complementação às escolas de teatro do Rio de
Janeiro e, sob sua lona, abrigava diversos grupos como a Blitz, o Senzala, a Nuvem Cigana, e
outros.
123
A Escola possuía instalações e equipamentos moderníssimos e Luiz Olimencha recrutou para
seu quadro grandes artistas do circo entregando-lhes a função de formar jovens artistas circenses que
no futuro se tornariam, por sua vez, professores também. A capatazia ficou sob a responsabilidade do
grande Jamelão. Fidélis Sigmaringa Freitas, professor de pirofagia que sabia tudo sobre aparelhos e
que ajudou Olimancha a montar na Escola, uma oficina para a construção e manutenção de aparelhos
e equipamentos junto com Hélio Assis, Ednilson dos Santos, João Bertulino, Nelson Costa e
Francisco de Assis.
124
A Escola Nacional de Circo, apesar de seus momentos difíceis, é até hoje um
local de construção do saber, mantendo viva a chama, os risos e as piruetas do Circo Brasileiro.
3.3 – A Intrépida Trupe
As seguintes palavras do poeta Chacal são ilustrativas para compreendermos o surgimento do
grupo de artistas denominado Intrépida Trupe:
Depois de ser por muito tempo massacrado pela palavra, o teatro descobriu o gesto, o salto, o
pulo. Então deu a mão à dança. O par achando que ainda podia ser mais espetacular, botou o
circo na roda. Os três se olharam e disseram ao mesmo tempo: Intrépida trupe somos! Isso faz
10 anos (agora são quase 20!). O lugar: algum ponto entre a baía de Guanabara e uma parada
em Guadalajara.
125
Fundada em 1986, a Intrépida Trupe chegou para revolucionar totalmente a linguagem
circense. Também não seria para menos! A formação dessa trupe envolveu fragmentos da Escola
Nacional de Circo, dançarinas do Coringa, atores do Manhas e Manias e a designer da Blitz.
126
Essa
grande alquimia resultou em uma das expressões artísticas mais completas do circo brasileiro
122
Castro, 2003:11.
123
JB, Rio de Janeiro, Caderno B, 17 de Agosto de 1996, p. 72.
124
Castro, 2003:11.
125
JB, Rio de Janeiro, Caderno B, 17 de Agosto de 1996, p. 71.
126
JB, Rio de Janeiro, Caderno B, 17 de Agosto de 1996, p. 71.
62
mesclando lirismo, vôos acrobáticos, teatro, dança, circo, tudo isso com fortes pitadas de genialidade,
ousadia e loucura. Extremamente contemporâneo, o grupo procura permanentemente inovar em
equipamentos e técnicas, sempre buscando uma linguagem renovadora e uma estética ousada e
impactante. Os espetáculos são uma fonte gigantesca de luz, música, efeitos especiais e, logicamente
muitos movimentos.
Sempre inovando, a Intrépida Trupe, em 1992 aliou-se à FASE, IDAC, IBASE e ISER no
projeto “Se Essa Rua Fosse Minha”, no qual explorou a utilização de técnicas circenses e da capoeira
para a reintegração de jovens em situação de risco.
127
O grupo mantém-se até hoje em constante
renovação, e se apresentou, além de todo Brasil, na França, Portugal, Alemanha, Estados Unidos, e
Argentina.
128
Foram de fato muitos os que ajudaram a Intrépida Trupe a decolar. O Asdrúbal no
teatro, o Coringa na dança, o Abracadabra no circo - todos esses grupos e artistas que ousaram utilizar
uma nova linguagem, atuando com todo corpo, com todo o sangue, com toda alma - gestaram a
Intrépida Trupe.
3.4 – Artistas e curiosidades da década de oitenta.
Como vimos, os anos oitenta foram os anos de apropriação da rua pelos artistas. Sendo assim,
não poderíamos começar a falar de artistas de rua dos anos oitenta no Rio de Janeiro sem falar de um
ícone que transformou o conceito do que é ser um grande artista em nosso país: o Tigre. Esse artista
sublime possuía a picardia de um charlatão medieval, tal qual um herdeiro direto de Tabarin, artista
de rua do século XVI.
Tigre era um pirofagista, ou melhor, um comedor de fogo, que se apresentava nas ruas e
praças do Rio, principalmente nas redondezas da Lapa e Centro da cidade, e sobrevivia dos trocados
que caíam em seu chapéu-coco. Mas Tigre era, sobretudo um artista de rua: contava piada, cuspia
fogo, dava cambalhotas, saltava e nos fazia rir. Tudo feito aqui e agora, no improviso total e para
alegria de todos que o assistiam.
Como Tigre, existem muitos artistas brasileiros que tomam a praça como picadeiro e palco.
Eles estão no Largo da Carioca, na Praça Quinze, na Feira de São Cristóvão, nas ruas do bairro de
127
Castro, 2003:13.
128
Castro, 2003:13.
63
Santa Teresa como um todo, enfim, são artistas que resgatam e alimentam permanentemente a cultura
popular.
Esses artistas chegavam de perna de pau, com tambor fazendo batucada, dando pirueta,
cuspindo fogo, recitando versos, interagindo com o público e improvisando muito, como bem lhes
ensinara o Asdrúbal. A lista desses artistas é sem dúvida muito grande, mas podemos citar, dentre
outros, o Borrachinha, Vic Militello, Chacal, Nuvem Cigana, o palhaço Xuxu, Dalmo Cordeiro,
Gerusa Perna Seca, o Grupo Na Rua (1974), a Grande Companhia Brasileira de Mystérios e
Novidades (1981), o Grupo Teatral Moitará (1988), a Cia do Gesto (1975), o Teatro de Anônimo
(1986), o Núcleo de Cultura Popular Céu Na Terra (1988), o Grupo Off-Sina (1986), sem falar da
importantíssima Feira de Poesia da Cinelândia, que reunia inúmeros poetas e artistas desse
movimento.
129
Ufa! Que lista longa, e sem dúvida esquecemos tantos outros, alguns não tão
conhecidos, mas que certamente contribuíram para a nossa cultura e fizeram parte desse grande
movimento cultural e social que viria a dar asas ao Circo Voador.
3.5 - A decadência do mercado fonográfico no início dos 80.
No dia 3 de janeiro de 1982, o Caderno B do Jornal de Brasil publicou um artigo escrito por
Tárik de Souza intitulado “Luzes e sombras do ano de crise”, que nos dava um panorama sinistro
sobre a situação econômica do Brasil, assim como do mercado musical. Dizia o autor:
A mais significativa exibição do ano foi a da sombra da recessão que se abateu sobre palcos,
prensas e microfones da MPB. A onipresente crise devastou tudo: reputações e empresas;
investimentos e festivais. Basta lembrar que o promovidíssimo MPB-81 da tevê Globo não
emplacou ninguém, a despeito da divulgação massificante.
130
Como nos mostram as palavras do autor, a situação para os músicos da época não era muito
boa, e a queda em 50% das vendas fez algumas gravadoras que não conseguiam lançar nenhum
grande “produto” fecharem suas portas, como foi o caso da Aydra. Pela primeira vez em 10 anos foi
preciso lembrar a um dos povos mais musicais do mundo que consumisse música. Não podemos
129
Teria sido certamente impossível fazer esse panorama sobre a cultura popular de rua na década de oitenta sem
recorrermos ao trabalho de Castro, 2003.
130
Souza, Tarik de. “Luzes e sombras do ano da crise”. JB Rio de Janeiro, Caderno B, 3 de Janeiro de 1982.
64
deixar de sublinhar, entretanto, que os contratos milionários do gênero Roberto Carlos continuaram a
existir, mesmo diante do contexto econômico-musical.
Os demais profissionais do mundo da música encontravam-se, na maioria dos casos, vivendo
as conseqüências da crise fonográfica. As novas bandas que surgiam viam-se, por sua vez, sem
espaço alternativo onde pudessem apresentar seu trabalho ao público jovem e desenvolver alguma
chance em um mercado restrito. O Circo Voador, como veremos, seria uma alternativa para esses
novos conjuntos musicais.
65
Parte II: o Circo Voador
Não existem pretos
Não existem brancos
Não existem amarelos,
Somos todos arco-íris.
Mário Quintana.
O Circo Voador, montado no Arpoador, reuniu uma ampla corte de discípulos do grupo teatral
Asdrúbal Trouxe o Trombone, além de artistas de rua dos mais variados que seguiam a trilha do
grupo que mudou a face do teatro brasileiro. A ideologia de toda uma geração encontrou no Circo
Voador o espaço para se expressar, seja através da música, do teatro, da poesia, das artes plásticas ou
da literatura. Podemos citar, por exemplo, o grupo Banduendes por Acaso Estrelados que, sem
cenário, mas com muita música, dança e um senso de humor inesgotável, foi apenas um dos tantos
filhos do Asdrúbal que modificou a cultura, principalmente do Rio de Janeiro, na década de 80
[Anexo II, ilustração 2].
Capítulo I - O Circo Voador, surgimento de um espaço alternativo de cultura.
Seria uma enorme injustiça dizer que o Circo Voador teve tais ou tais fundadores. O Circo
Voador não foi fundado, ele foi o resultado orgânico e óbvio de toda efervescência cultural e artística
que se vivia nos anos 80 no Rio de Janeiro. No início, sentia-se que os tantos grupos fundados pelo
Asdrúbal no Parque Lage estavam carentes de um espaço para ensaiar e se apresentar. Havia, na
verdade, uma sensação de que algo estava faltando para aglutinar toda a juventude alternativa que
fazia arte pela Zona Sul carioca. Nessa época, Perfeito Fortuna teve o insight de montar uma lona
onde poderiam se apresentar esses tantos grupos e artistas. Maurício Sette e Márcio Galvão, amigos
de Perfeito do futebol semanal, aderiram rapidamente à proposta.
66
Mas, afinal de contas, como nasceu a idéia do Circo Voador? Perfeito Fortuna nos conta, em
entrevista ao Jornal da Tarde de de fevereiro de 1983, que a idéia do Circo Voador surgiu durante
uma viagem do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone pelo Nordeste. O grupo havia parado num
lugarejo entre Sergipe e Recife e Perfeito Fortuna começara a fazer um número de dança. Logo juntou
um monte de gente (cena típica do interior) e no final do número perguntaram: "O que é isso?" Os
integrantes do Asdrúbal responderam: "Teatro." No entanto, aquelas pessoas simples não conheciam
teatro, não sabiam o que era. Então os Asdrúbals disseram: parecido com circo!" E assim todos
entenderam
131
. A questão é que o circo é muito mais popular e, no interior, sempre tem um circo, por
menor que seja, que algum dia passou por lá. Foi assim que Perfeito Fortuna provavelmente guardou
em algum lugar de sua memória aquela vivência e mais tarde viria a trazê-la para o campo da
consciência e da materialização.
No Rio de Janeiro, mais especificamente no Parque Lage, Perfeito Fortuna havia fundado o
seu próprio grupo, o "Pára-quedas do coração". No entanto, Perfeito queria fundar o seu próprio
espaço e ao mesmo tempo convidar todos os grupo que estavam aparecendo, de poesia, de teatro, de
dança, de música... Nessa época, Perfeito provavelmente entendeu a força daquele número de dança
que ele havia feito num vilarejo qualquer entre Recife e Sergipe. Era a idéia de fundar um circo, circo
itinerante, circo voador, na Praça Nossa Senhora da Paz, em Copacabana. No entanto, Perfeito não
conseguiu sequer chegar ao prefeito e assim se lançou de todas as formas a tentar um contato com
alguém do Palácio Guanabara. Não conseguia, todavia, nenhum resultado positivo. Certo dia, Perfeito
recebeu um conselho de Paulo Afonso Grisoli pelo telefone: "Procure a Zoé de Chagas Freitas!"
Assim, em um velho Karmann Ghia, Perfeito Fortuna, Maurício Sette e Márcio Galvão foram ao
Palácio Guanabara de chinelo, sem dinheiro e, ainda, com a informação errada: Dona Zoé estava no
Palácio Laranjeiras! Enfim, chegando ao Palácio Laranjeiras, o telefone da portaria, que se
encontrava quebrado, acabou por dar uma grande ajuda aos nossos jovens: o segurança deixou que
eles subissem diretamente.
O contato com Dona Zoé foi de total receptividade. Ela ligou, na frente dos rapazes, para o
Prefeito Júlio Coutinho e, dias depois, os mesmos três que visitaram Dona Zoé foram encontrar o
prefeito fazendo cooper no Iate Clube. Entretanto, o prefeito disse com todas as letras que não
131
LANDO, Vivien. “Circo Voador, onde a alegria e a arte do Rio se encontram.” Jornal da Tarde. Rio de Janeiro, de
fevereiro de 1983, p. 22.
67
poderia ser na Praça Nossa Senhora da Paz e acabou cedendo o Arpoador até que as obras do
calçadão do mesmo fossem concluídas.
1 - Curriculum vitae de todos os fundadores
- Perfeito Fortuna
Suburbano de Bonsucesso, Perfeito Fortuna é filho de imigrantes portugueses e, desde cedo, já
tinha uma história com o "rapa", quando desempenhava a função de camelô das bolsas que o pai
fabricava
132
.
Com 16 anos, Perfeito Fortuna estudava, trabalhava e dirigia peças teatrais, como Vida e
morte Severina e A paixão de Cristo, na Igreja de São Geraldo
133
. No dia 16 de dezembro de 1968,
Perfeito Fortuna seria preso com o mesmo grupo de jovens dessa igreja, passando um mês na Vila
Militar, onde ficou na mesma cela em que Caetano Veloso, Gilberto Gil e Ferreira Gullar
134
.
Formado pela escola de teatro da UniRio, esse "artista em geral" tinha na época 32 anos e
havia trabalhado no MEC, no antigo SNT, na Rádio Globo, na TV Tupi. Integrante durante sete anos
do Asdrúbal Trouxe o Trombone, deu cursos de teatro e trabalhou no Projeto Mutirão Cultural da
RioArte. Perfeito Fortuna, nesta época, havia saído da Zona Norte e freqüentava o Posto 9 em
Ipanema e o Baixo Leblon, points da juventude carioca.
- Márcio Galvão
Márcio Galvão, na época, era engenheiro pós-graduado em Planejamento Urbano. Ator havia
mais de dez anos, estava intimamente ligado ao teatro de rua e ao teatro infantil.
- Maurício Sette
132
MEDEIROS, Benício. Balada do hippie que cortou o cabelo e ficou rico. Status. 1º de fevereiro de 1987, p. 53-54.
133
TOLIPAN, Heloisa. “Perfeito Fortuna Para o animador cultural, o Rio lembra um ninho cercado pela montanha e o
mar.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 4 de julho de 1990, p. 4.
134
VENTURA, Zuenir. 1968 o ano que não terminou. A aventura de uma geração. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988,
p. 302.
68
Maurício Sette, cenógrafo por mais de 13 anos, exibia o seu trabalho: Molière em 1977,
Melhor Cenografia no Festival de Brasília com o filme Chuva de verão de Carlos Diegues, além de
mais três Mambembes.
- Ivo Setta
Era produtor executivo e ex-administrador da Concha Verde do Morro da Urca.
- Alice Andrade
Alice, na época com 17 anos, era atriz e vestibulanda, só não sabia ainda de quê.
2 - Ergue-se a lona no arpoador
Dois meses antes de o Circo Voador ser montado no Arpoador, os rapazes e as moças do
Asdrúbal Trouxe o Trombone fizeram corajosas investidas pelos escritórios do governo do Estado do
Rio de Janeiro, acompanhadas de incansáveis visitas às casas dos amigos mais ricos. Junto ao
governo, conseguiram, graças ao inesperado apoio da esposa do governador, Dona Zoé de Chagas
Freitas, como já vimos, o local para a instalação do Circo. As visitas às casas dos amigos da Zona Sul
resultaram, por sua vez, em uma grande “vaquinha” que levantou Cr$ 4 milhões
135
. E foi assim que a
Lona foi erguida: “O circo vem - e não apenas com artistas do picadeiro, palhaços e bichos. Terá
também shows de música, teatro, cinema, dança e poesia.”
Essas eram as belas e alegres palavras do Jornal do Brasil que anunciaram a chegada do Circo
Voador no Arpoador em 15 de janeiro de 1982
136
.
"Amadrinhado" pela primeira dama do estado do Rio de Janeiro, Dona Zoé de Chagas Freitas,
podemos dizer que o Circo Voador era um audacioso misto de centro cultural e comunitário, estando
aberto a todas as formas de manifestações artísticas e educacionais.
A pedra fundamental, ou melhor, o pique que esticou a primeira lona em 15 de janeiro de
1982, fez com que pousasse na praia do Arpoador o Circo Voador [Anexo II, ilustração 1]. De fato,
135
SOUZA, Tarik de. “Luzes e sombras do ano da crise.” in Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 3 de janeiro de
1982.
136
BOMFIM, Beatriz. “Numa grande festa de verão, a eterna alegria do circo.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno
B, 27 de dezembro de 1981, p. 1.
69
tudo havia começado ali mesmo no pontal do Arpoador, no mesmo verão quente de 1982, depois de
uma estrondosa ocupação de Baby e Pepeu no evento O sol tá solto, promovido pela Rádio Cidade. O
local já sinalizava a sua irresistível vocação para aglomerar pessoas em manifestações culturais.
Ainda sobre a reportagem do dia 15 de janeiro de 1982, no Caderno B do Jornal do Brasil, a
matéria em página dupla com o título Um pouso para vôos ousados, escrevia com entusiasmo:
O circo chegou. E, antes que fosse anunciado, todos já sabiam que vinham como em qualquer
cidade do interior. Comentários e suposições circulavam pela cidade. A parada ocorrida em
Ipanema no último domingo esclareceu. Carros alegóricos, triciclos e bicicletas desfilaram por
meio de pessoas, alegrando, motivando, anunciando. E hoje, a partir das 21 horas, na estrutura
montada na praia do Arpoador, o circo estréia.
É o Circo Voador. Um circo urbano dirigido por artistas. Um circo brasileiro nas cores verde,
amarelo, azul e branco. Uma maneira diferente de grupos de teatros se apresentarem
137
.
[Anexo II, ilustração 3]
Ainda na mesma matéria de 15 de janeiro, dia da estréia do Circo Voador com o show de
Moraes Moreira, a primeira gina do Jornal do Brasil exibia a chamada: Asdrúbal passa verão no
Circo do Arpoador, o texto prosseguia:
No Arpoador, durante todo o verão, funcionará o Circo Voador, que, a partir de hoje, mostra
30 grupos de teatro, dança, música e circo reunidos pelo elenco do Asdrúbal Trouxe o
Trombone. Com um investimento de Cr$ 4 milhões, o circo pretende atrair o público jovem
com concursos durante o dia e espetáculos à noite, além de vender camisetas a Cr$ 2 mil
como entrada
138
.
A compra da camiseta, sendo uma cor para cada dia, dava direito, além dos shows, a participar
de bailes, projeções de cinema e até mesmo outras festas. Perfeito Fortuna dava na época a seguinte
entrevista:
Esse lance da camiseta é pra pagar os Cr$ 4 milhões que gastamos na montagem do circo.
fiz isso em uma peça que o Corpo Cênico encenou, pagando os custos. É uma ajuda pra gente
não começar devendo muito, já que o Circo não aceita patrocínio
139
.
A matéria prosseguia dando a programação:
Em frente à praia do Arpoador, o Circo Voador, armado pelos integrantes do Asdrúbal Trouxe
o Trombone, pretende manter intensa programação durante o verão. Do circo ao teatro, do
show à dança, os espetáculos se sucederão em meio a cursos para adultos e crianças.
140
137
MACHADO, Sônia R. p. “Circo Voador: um pouso para vôos ousados.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B,
15 de janeiro de 1982.
138
Idem. Ib. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 15 de janeiro de 1982.
139
Idem. Ib. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 15 de janeiro de 1982.
140
Idem. Ib. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 15 de janeiro de 1982.
70
O Circo Voador, desde os seus primórdios, possuía características em termos culturais não
de divertimento, no que diz respeito aos shows, mas também, detinha um caráter social e educacional
com diversos cursos oferecidos.
A organização da lona cultural no Arpoador esteve por conta de diversas pessoas. Além das
citadas, estavam também Luis Fernando Guimarães, Ivo Setta, Hamilton Bastos Pereira, Regina Casé
e Evandro Mesquita do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone.
Devemos sublinhar, por outro lado, o papel de Alice de Andrade, que atuou como o grande
canal entre o Circo Voador e a mídia, conseguindo que o Jornal do Brasil e a Rádio Cidade
promovessem oficialmente o Circo, esse novo espaço que se criava e estava sendo aceito com alegria
e presença numerosa da população.
Evandro Mesquita falava na época do clima reinante e dos Banduendes por Acaso Estrelados:
Eles captaram a energia e a mesma linha do Asdrúbal, são 20 pessoas jovens que se
apresentaram em um musical, juntamente com a banda Blitz. Um espetáculo real de ficção
trágico e cômico, integral, natural. Vão fazer arte pintando o sete, descobrindo o mundo,
inventando o avião e indo fundo no seu coração.
141
Tínhamos ainda tantos outros grupos: Coringa de dança contemporânea, Manhas e Manias,
Cobra Coral (coral da Cultura Inglesa), Pessoal do Cabaré, Lua me dá Colo, Céu da Boca, Blitz, Beijo
na Boca, João Penca e seus Miquinhos Amestrados, Vira Avesso, Nuvem Cigana...
142
As apresentações dos espetáculos do circo eram feitas por Regina Casé e Luiz Fernando
Guimarães, únicos integrantes do grupo Asdrúbal a participar fisicamente do evento, os outros
estavam na direção dos respectivos espetáculos.
143
O Circo Voador no Arpoador ainda contou com o impresso Expresso Voador, pequeno jornal
que especificava as atividades culturais e artísticas do Circo, cortesia do Jornal do Brasil, sendo sua
distribuição gratuita.
144
Todavia, o Circo não se limitou apenas às apresentações. O espaço contava com uma
multiplicidade de cursos para adultos e crianças. O grupo Abracadabra ministrou aulas para adultos
de acrobacia, contorcionismo, pirâmides, cascatas, dublês, saltos ornamentais e lutas simuladas. As
aulas possuíam, além do entretenimento e da atividade educacional e cultural, o objetivo de montar
141
MACHADO, Sônia R. p. “Circo Voador: um pouso para vôos ousados.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B,
15 de janeiro de 1982.
142
Idem. Ib. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 15 de janeiro de 1982.
143
Idem. Ib. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 15 de janeiro de 1982.
144
Idem. Ib. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 15 de janeiro de 1982.
71
novos grupos acrobáticos a serem apresentados no decorrer da temporada, juntamente com outros
números de cursos. A duração dos cursos era de cinco semanas, com uma carga horária de
aproximadamente quatro horas semanais e o custo total era de Cr$ 8 mil. Também para adultos,
tínhamos um curso de dança ministrado pelo grupo Coringa, com mesma carga horária, ao custo de
Cr$ 5 mil.
A programação para as crianças foi também bastante intensa com o slogan Deixe seu filho no
voador e um mergulho no Arpoador. Três professoras deram aulas de teatro às terças e quintas
durante um mês. Tivemos também cursos de palhaço ministrados pelo grupo Abracadabra, de
acrobacia dado pelo grupo Manhas e Manias, de artes plásticas dado por Analú Prestes e Edgar
Macedo, de capoeira dado por Nestor Capoeira, além de cursos de dança ensinando postura, jazz e
dança livre.
O Caderno B de 15 de janeiro de 1982 nos dá a informação que cada um desses cursos infantis
custava Cr$ 3 mil e davam direito à criança assistir a todos os espetáculos infantis programados pelo
Circo Voador.
145
Dois dias depois da inauguração do Circo Voador no Arpoador, dia 17 de janeiro de 1982, o
Jornal do Brasil nos informou, na seção “Cidade”, que, na noite de sua estréia, sexta-feira dia 15, o
Circo, que contou com a participação de Moraes Moreira, teve seus 700 lugares lotados e ainda
divertiu quem não tinha os Cr$ 800 do ingresso, pois suas lonas laterais foram suspensas para que o
público de fora também pudesse assistir ao espetáculo, servindo assim de entretenimento também
para a população em geral.
146
Neste sentido, vemos que, desde o seu início, o Circo Voador e os seus
artistas tinham preocupações sociais, usando-se de elementos artísticos e culturais para integrar
socialmente a população carente.
No mesmo dia 17, a partir das 17h, tivemos um show com Caetano Veloso que, contagiado
pelo “clima” do circo, fez participação especial para um público de 500 pessoas e, no meio do
espetáculo, disse ao público: “...este circo está lindo, tem tudo para levantar vôo.”
147
Moraes Moreira
e Jorge Mautner também cantaram e tocaram juntos com Caetano sem cobrar cachê, para ajudar a
iniciativa cultural que se fomentava no Arpoador.
145
MACHADO, Sônia R. p. “Circo Voador: um pouso para vôos ousados.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B,
15 de janeiro de 1982.
146
Idem. “Circo Voador faz sucesso no Arpoador.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 17 de janeiro de
1982, p.21.
147
Site: www.circovoador.com.br
72
No entanto, a situação do Circo Voador estabelecido no Arpoador não era definitiva e, depois
de pouco mais de três meses de abertura, a Prefeitura “passou o rapa” levando toda a estrutura do
Circo para um depósito. Mais uma vez, foi dona Zoé de Chagas Freitas quem interveio a favor da
trupe.
148
Esse curto período do Circo Voador no Arpoador foi suficiente, no entanto, para chacoalhar a
cena cultural carioca com apresentações de astros da MPB como Chico Buarque, Moraes Moreira,
Caetano Veloso, além de novos grupos de rock como Blitz, Barão Vermelho e Brilho. No Circo
Voador, o teatro teve também cadeira cativa e ao dia 31 de março, dia em que o Circo Voador
decolou do pontal do Arpoador, diversos grupos de teatro se apresentaram: Banduendes por Acaso
Estrelados (formado por Evandro Mesquita e Patrícia Travassos), Abracadabra (Bruno Moroni), Vivo
Muito Vivo e Bem Disposto (com Hamilton Vaz Pereira), Corpo Cênico de Nossa Senhora dos
Navegantes (dirigido por Perfeito Fortuna), Sem Vergonha e Na Rua, todos filhos espirituais do
mitológico Asdrúbal Trouxe o Trombone
149
. [Anexo II, ilustrações 5, 6 e 7]
O teatro, a música, o circo e a dança fundiam-se todos em um grande movimento que nascia e
que daria “cara” ao movimento cultural da cada de 80. O Circo Voador se consolidaria em breve
em um espaço de diversas tendências, afirmando-se principalmente como palco do BRock, o assim
chamado rock nacional
150
.
3 - A banda Blitz: um exemplo de grupo que levantou asas na esteira do circo.
A Blitz surgiu mais ou menos quando o Circo Voador se instalou, em 1982, no Arpoador. Os
primeiros shows foram lá, ainda com Lobão na bateria, rebocados pelo sucesso do roque “Você Não
Soube Me Amar”
151
.
A vida do grupo Blitz foi curta e intensa. Em poucos anos, gravaram três discos e se
apresentaram da Apoteose até Moscou. O último disco do grupo saiu em 1984. A vocalista Márcia
Bulcão explicava na revista Programa do JB, de 22 de julho de 1994, porque que a banda acabou:
148
Site: www.circovoador.com.br
149
MACHADO, Sônia R. p. “Circo Voador; um pouso para vôos ousados”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B,
15 de janeiro de 1982.
150
Ver DAPIEVE, Arthur. BRock. Rio de Janeiro: 34, 1996, & ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil
dos anos 80. São Paulo: DBA Artes Gráfica, 2002.
151
“Rock e história”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Revista Programa, 22 de julho de 1994.
73
Os shows pareciam maratonas, era tudo massacrante. No fim, nos odiávamos, não queríamos nada
com nada. E nem mais existia criação.”
Foi assim que cada componente seguiu seu caminho. Evandro Mesquita, em 1994, havia
retomado sua carreira de ator, fez TV e arriscou até uma experiência como roteirista de cinema com
“Não Quero Falar Sobre Isso Agora”. Márcia Bulcão e o guitarrista Ricardo Barreto casaram-se e
formaram a banda Appaloosa, que não estourou. Ricardo havia antes liderado os Prisioneiros do Ar e,
também em 1994, tornou-se músico do grupo Cidade Negra. O tecladista William Forghieri fundou,
em 1992, junto com Ritchie e Cláudio Zoli, o grupo pop Tigres de Bengala. Antônio Pedro, que, antes
de fazer parte da Blitz, tocou com os Mutantes, abandonou durante vários anos o seu baixo. O
baterista Juba nunca conseguiu se livrar de Evandro Mesquita, acompanhando-o em sua carreira solo,
que deixou músicas como “Greg e sua Gangue”
152
.
A Blitz foi uma das bandas de pop-rock da década de 80 que surgiu do útero do Asdrúbal e
tomou força graças ao espaço do Circo Voador, tornando-se uma das mais bem-sucedidas bandas de
rock comercialmente.
4 - O Circo na “lona” despede-se do arpoador
Os dias do Circo Voador no Arpoador estavam contados. Como visto, patrocínio não houve,
ajuda sim. O dinheiro arrecadado com a venda de camisetas pelo grupo de Perfeito Fortuna
dificilmente teria sido suficiente para pagar os custos de sua instalação. O Circo Voador do Arpoador
precisava de Cr$ 1.000.000,00 mensais para funcionar e as receitas da bilheteria não eram suficientes
nem para cobrir os gastos realizados com a montagem. A empresa Rohr, que vendera as estruturas
metálicas para a montagem do Circo, já em meados de fevereiro de 1982 ameaçava retirá-las por falta
de pagamento. A idéia inicial de trabalhar sem patrocínio não podia mais ser mantida.
Na noite oficial de despedida do Circo Voador, uma terça-feira de fevereiro de 1982, com a
última sessão do “Musical dos Musicais”, cerca de 750 pessoas se cumprimentavam e se abraçavam
nas cadeiras. O poeta Chacal recitava poemas, Elba fazia dueto com Tânia Alves, Gilberto Gil
louvava “o palco” e Perfeito Fortuna falava em alto e bom som: “Não estamos indo embora.”
153
No dia 15 de abril de 1982, às 9:40 da manhã, chegou o “rapa” ao Circo Voador, com três
caminhões do Distrito de Fiscalização do Comércio Clandestino, enviados pelo seu diretor, Silva
152
“Rock e história”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Revista Programa, 22 de julho de 1994.
153
“Artes, jogos, discursos: a despedida do Circo Voador.” O Globo. Rio de Janeiro. 1º de abril de 1982, p. 34.
74
de Souza Pereira, que cumpria por sua vez uma ordem direta do prefeito Júlio Coutinho. Perfeito
Fortuna ficara de certa forma surpreso com a chegada do rapa, porque, desde o fim do contrato para a
localização do Circo Voador no Arpoador, ele vinha mantendo contatos com dona Nazaré, secretária
do prefeito. Perfeito Fortuna vinha negociando um novo local onde o Circo pudesse ser transferido,
assim como negociava a multa de Cr$7.000,00 diários que estava sendo cobrada desde o dia de
abril
154
.
O Circo no Arpoador teve 150 pessoas trabalhando diariamente e 500 trabalhando nos dois
meses e meio do empreendimento para um público de 50 mil pessoas que pagavam um ingresso de
Cr$ 300,00 para assistir a três espetáculos à noite, assim como para participar dos cursos pela
manhã
155
. O Circo Voador, que começou como uma brincadeira de verão e um lugar para encontrar
amigos e discutir idéias, acabou por se tornar um pólo de experimentação com sistemas alternativos
de produção cultural que viria a dar muito mais frutos.
A questão é que o Circo não tinha mais como sobreviver no Arpoador e deixava para trás a
marca notável de uma grande temporada de animação na cidade com teatro, música, dança e até um
mal-entendido com os vizinhos do bairro, que se queixavam de certa forma do som alto e do grande
movimento.
Dos quase três meses de atividade do Circo Voador no Arpoador, este se mostrou como o
“principal ponto de vida inteligente no pálido verão carioca”
156
, sendo um grande catalisador de
idéias, possibilitando misturar diversos trabalhos, forjando criações, aglomerando jovens e artistas.
Capítulo II - O Circo Voador na Lapa é um novo espaço de lazer e alegria do carioca.
A lona do Arpoador havia semeado muito bem o seu fruto. Os quase três meses em que o
Circo Voador esteve no Arpoador foram de grande impacto e alcance cultural e social. A população,
que no verão se concentra na praia, tinha tido ali, ao seu alcance, um caldeirão de cultura que
fervilhava com shows, espetáculos e cursos. Muitas crianças carentes tiveram a oportunidade de ver,
154
CABALLERO, Mara. “O Circo Voador está ‘voando’ mas garante que volta”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
Caderno B, 16 de abril de 1982, p. 1.
155
Declaração de Perfeito Fortuna em: CABALLERO, Mara. “O Circo Voador está ‘voando’ mas garante que volta”.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 16 de abril de 1982, p. 1.
156
“Artes, jogos, discursos: a despedida do Circo Voador.” O Globo. Rio de Janeiro, 1º de abril de 1982, p. 34.
75
nas paradas feitas na praia e também no centro da cidade, malabaristas, dançarinos, palhaços e
tocadores, manifestações culturais com as quais algumas jamais haviam entrado em contado direto.
O impacto na mídia também havia sido muito grande, afinal o Circo Voador fora apoiado pelo
Jornal do Brasil e, até certo ponto, pela Rádio Cidade. A questão é que o Circo Voador não havia
passado despercebido e a população havia demonstrado, pela sua presença massiva, a necessidade e a
boa aceitação de um espaço cultural como o Circo Voador.
É neste sentido que os organizadores do Circo, assim como todos os artistas que o
alimentavam, trabalharam para encontrar um novo lugar para a montagem da lona. Perfeito Fortuna,
em entrevista a O Globo do dia 24 de setembro de 1982:
Eu nunca pensei em ficar pra sempre no Arpoador, nem a Prefeitura permitiria. E nunca
pensei que, saindo do Arpoador, o Circo morreria. O Circo é uma idéia, e as idéias não
morrem, se transformam. (...) Pensamos no Centro, então, mas não queríamos a área que a
Prefeitura tradicionalmente reserva aos circos, que é a Praça Onze. Não queríamos ser vistos
exclusivamente como um circo, mas como um núcleo de animação cultural.
157
No dia 18 de setembro de 1982, uma grande parada desfila pelas ruas do Centro anunciando a
chegada do Circo Voador ao seu definitivo local: os Arcos da Lapa. O mesmo artigo do Jornal O
Globo, acima citado, nos confirma a chegada do Circo Voador ao Centro da cidade:
De fato, o Circo se transformou, como idéia e como realização. A partir de 5 de outubro, sua
lona azul, reformada e ampliada para conter arquibancadas em dois andares e 1 500
expectadores (mais do dobro do primeiro espaço, no Arpoador), estará entre 50 mudas de
palmeiras imperiais, 40 arbustos floridos e muitos gramados projetados pelos paisagistas
José Tabacow e Haruioshi Ono, do escritório de Burle Marx espaço na praça em frente a
Fundição Progresso, na Lapa.
158
O “novo” Circo, na Lapa, foi resultado do processo de transformação do circo de brincadeira
de verão em algo que se transformaria em um real espaço cultural da cidade do Rio de Janeiro.
Perfeito, Márcio, Ivo e Maurício sabiam que o novo circo e sua nova localização iriam ter um alcance
e um significado diferentes da primeira experiência.
159
[Anexo II, ilustração 8]
No dia 16 de agosto, começou assim a montagem da estrutura tubular do Circo Voador
alugada à Mundos por Cr$ 250.000,00 mensais e patrocinada pelo Ponto Frio Bonzão
160
.
157
“Agora à sombra dos arcos da Lapa, uma ‘usina cultural’ ”. O Globo. Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1989, p.25.
158
“Agora, à sombra dos arcos da Lapa, uma ‘usina cultural’ ”. O Globo. Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1989, p.25.
159
Ib. O Globo. Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1989, p.25.
160
MOTTA Paulo. “O Circo Voador desce na Lapa”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07 de setembro de 1982.
76
O Circo Voador e a sua nova localização nos Arcos da Lapa tinham agora a grande vantagem
geo-espacial de se localizar em um ponto de confluência da Zona Norte e da Zona Sul: pela rua
Riachuelo passa a grande maioria dos ônibus vindo da Zona Norte que vão em direção à Zona Sul,
pela rua Mem de passam muitos ônibus vindo da Zona Sul e que vão para a Zona Norte. A Lapa
pode assim reunir os públicos da Zona Sul, Zona Norte e Centro. Perfeito Fortuna declarava na época
ao Jornal do Brasil:
Queremos interferir no Centro da Cidade, trazer a arte, o relaxamento, para onde se produz
trabalho. Em vez de o público da Zona Sul, o circo quer também o pessoal da Zona Norte,
o bancário do Centro.
161
O Circo Voador na Lapa contava desta vez com o apoio de patrocinadores, encontrava-se em
situação legal definida e com projeto de criar um centro cultural na abandonada Fundição Progresso.
Após uma fase experimental no Arpoador, o Circo Voador, para dar continuidade ao seu trabalho,
precisou regularizar a sua situação, cumprir formalidades burocráticas e ceder dez ingressos por
sessão para a RioArte, além de distribuí-los também para entidades carentes e a rede escolar
municipal.
Projetado pelos paisagistas José Tabacow e Haruioshi Ono, do escritório de Burle Marx, o
espaço do Circo Voador, com sua lona azul reformada e ampliada para conter arquibancadas de 1.500
espectadores (mais do dobro do primeiro espaço, no Arpoador) estava agora entre mudas de palmeiras
imperiais
162
.
Com uma lotação esgotada, a programação era alinhavada aos poucos, sem pressa:
“uma roda de capoeira semanais, uma grande feira dominical para a venda de artesanato e
ponto de troca, espetáculos infantis, espetáculos de dança, música e teatro ao ar livre, corais e
orquestras grátis, fórum de debates para examinar temas como a preservação do patrimônio
histórico comunitário da cidade”
163
.
O novo Circo da Lapa era uma proposta de desenvolver diversos cursos que vão do teatro ao
VT, passando pela capoeira e por brincadeiras com crianças. O Circo pretendia adquirir uma nova
expressão que passava pelo “ideal de reunir todas as idéias e manifestações em diferentes oficinas
onde a prática podia ser realmente aliada à teoria”
164
.
161
Idem. Ib. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1982.
162
“Agora à sombra dos Arcos da lapa, uma ‘usina cultural’”. O Globo. Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1982, p. 25.
163
MOTTA, Paulo. “O Circo Voador desce na Lapa”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07 de setembro de 1982.
164
ROUCHOU, Joëlle. “O Circo Voador baixa na Lapa – Muito mais do que espetáculos”. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, Caderno B, 23 de outubro de 1982, p. 1.
77
A Lapa se apresentava realmente como saída para uma ainda maior popularização do Circo
Voador. Por sua especial localização, o novo Circo da Lapa era ideal para a mistura não das artes
como dos públicos da Zona Sul e da Zona Norte. A Lapa não é o centro do Rio necessariamente, mas
é totalmente central. Nos fins de semana, vem gente de todos os bairros da cidade.
O que poucos sabem é que inicialmente as autoridades quiseram mandar o Circo do Arpoador
para a Praça XI, que era um local tradicional de circo. No entanto, a idéia não agradava a Perfeito
Fortuna, que sabia que o Circo Voador era muito mais que um circo tradicional propriamente dito, e
sua fixação na Praça XI provavelmente limitaria seu raio de ão, além de, por sua própria definição
de misto de centro cultural, acabar por encontrar-se como um peixe fora da água. Todavia, Perfeito
Fortuna e Márcio Galvão passavam um dia pelos Arcos da Lapa e viram um grande terreno baldio
cheio de buracos, coisas jogadas, mendigos. Nesse ínterim, os dois conheceram também a Fundição
Progresso e botaram na cabeça que o Circo poderia ser uma base para a reativação da própria
Fundição Progresso. Foi assim que começou a história do Circo na Lapa.
O Circo na Lapa tornou-se um bem da comunidade. Como grande pólo congregador de toda a
cidade, tinha pela manhã a sua creche funcionando com atividades dirigidas, horta, pintura e merenda.
À noite, durante a semana, o Circo funcionava como palco para mostras de teatro ou oficinas de
dança, canto e artes cênicas. No final de semana, tinha shows de todas as correntes e ainda uma
gafieira. Isso sem falar nas exposições de artes plásticas, fotografia e cartuns em seus anexos.
1 - O rock nacional, o projeto “Rock Voador”e a Rádio Fluminense.
1.1. O Brock.
Como sabemos, no início da década de 80, novos ares tomaram conta do país com o processo
de abertura política concluído, o fim da vigência do Ato Institucional n.5 AI-5 e a concessão da
anistia dada na década anterior. Fatos como esses abriram espaço para um novo redimensionamento
cultural do país.
O Brasil desse novo período passou a difundir o rock como porta voz oficial da nova geração,
a chamada geração abertura”, um público jovem, de 15 a 25 anos, esquecido ou inatingido pela
MPB. Herbert Viana, vocalista e líder do Paralamas do Sucesso, uma das bandas de rock nacional que
78
“explodiu” na década de 80, dizia em depoimento à revista Bizz, em fevereiro de 1989: “a MPB não
supria as necessidades da minha geração, a geração abertura.”
De fato, diversas obras, como Brock, o rock brasileiro dos anos 80, de Arthur Dapieve,
mostram que a MPB da década de 80 teve dificuldades de se livrar da linguagem rebuscada, das
metáforas impenetráveis e, sobretudo, dificuldade de falar a novos blicos, incluindo o público
jovem urbano da “geração abertura”.
A “geração abertura” vivia um contexto diferente daquele vivido pelos músicos da MPB dos
anos 70 que conheceram a forte repressão e as torturas. A “geração abertura” passou assim a
demandar, de uma forma ou de outra, um novo movimento cultural que falasse a sua língua, que
falasse de uma forma aberta, não mais de forma velada, em entrelinhas, como foi a característica
necessária à música produzida durante o período militar. Os jovens dos anos 80 começaram a
fomentar novos ideais de cultura e para isso precisavam de espaço físico onde suas idéias pudessem
ser concretizadas e apresentadas ao público.
O Brasil passou assim a ter o rock nacional, assim como outros segmentos de cultura, como
porta-voz dos brasileiros jovens que questionavam e colocavam para fora todos os anseios contidos
neste longo período de ditadura militar.
Por outro lado, o BRock, como é chamado o rock nacional, fala da juventude em si, não de
uma forma diretamente política, mas sempre abordando questões contextuais do social e da política.
A banda Blitz, por exemplo, nas suas letras de música, não aborda diretamente nenhuma questão
política de forma crítica, no entanto, toca fatos corriqueiros como as “blitz”, revistas da polícia militar
existentes até hoje e que deram nome à banda. Esta abordava tais questões de uma forma irônica que
se mesclava a ingredientes teatrais e circenses.
O BRock, como gênero musical, não estava alienado do seu contexto histórico, nem de tudo
que acontecia de novo no cenário político, social e cultural. O rock nacional, logicamente filho do
rock nascido na Inglaterra, possuía uma característica inerente ao seu gênero: a contestação, a revolta,
a divergência com o estado das coisas.
No entanto, o BRock, contrariamente a música da geração dos anos 70 que havia vivido o
regime político da repressão militar, da censura e da tortura e, por conseguinte, desenvolveu uma
música com letras metafóricas, escondendo seu real sentido nas entrelinhas, possuía uma linguagem
simples e de acesso generalizado. A repressão havia caído. Não se precisava mais falar de forma
79
velada, às escondidas. Como afirmou Perfeito Fortuna em entrevista dada ao Jornal do Brasil: “A
juventude, hoje, não entende, nem se interessa mais por discursos. Quer fazer.”
165
A sociedade e a juventude queriam ver o mundo às claras. Assim, a linguagem usada para
representar e falar dos anseios desse novo movimento cultural e social que se criava precisava
também ser colocada de forma clara, direta e alegre. O circo e o clown foram muito usados pela
música dos anos 80 neste sentido. Podemos citar grupos como Blitz, Kid Abelha e os Abóboras
Selvagem, João Penca e seus Miquinhos Amestrados que se utilizavam no palco de tais
“ingredientes”.
A geração dos anos 80, principalmente no que toca à música, possuiu um discurso bem
diferente daquele dos artistas da década de 70. O discurso, a forma de expressão do movimento
cultural da década de 80, inclusive da música, possuía ingredientes na alegria dos palhaços, no
malabarismo e contorcionismo, nas cores do circo, no calor e na socialização da praia, no posto nove.
Sendo assim, o discurso produzido era mais solto, bem menos truncado, falando diretamente dos
anseios próprios dos jovens.
Logo, os temas das canções faziam referência a situações cotidianas e, numa primeira leitura,
eram menos politizados. A expressão da música de tal novo movimento se assemelhava por vezes
muito mais a um diário de adolescente do que ao discurso de “O que é isso companheiro?” da década
anterior, tratava de assuntos como casos de amor, festas, finais de semana, pôr-do-sol na praia.
Não podemos, sob nenhuma hipótese, afirmar que a música dos anos 80 estava desprovida de
pensar as questões políticas e sociais de seu tempo. Certos grupos, como o Legião Urbana, possuíam
uma consciência política e social extremamente aflorada, com letras de protesto, questionamentos e
tentativa de conscientização política de seu público. Para sublinharmos essa idéia, podemos citar o
título de uma das obras do Legião Urbana chamada Que país é esse? em função de uma das músicas
de mesmo nome que atacava diretamente a corrupção e a pobreza:
Nas favelas, no senado, sujeira pra todo lado,
ninguém respeita a constituição, mas
todos acreditam no futuro da nação!
Queremos sublinhar, assim, que o início dos anos 80 é acompanhado por um gênero musical
novo, o rock, diferente de certa forma do estrangeiro. Um rock brasileiro voltado para um público
165
MOTTA, Paulo. “O Circo Voador desce na Lapa.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 07 de setembro de 1982.
80
jovem que parecia estar esquecido pela MPB, a qual havia se tornado, na sua passagem de exílio na
Europa, uma música talvez erudita e elitista em demasia e, por conseqüência, inacessível à grande
massa de jovens.
Devemos atestar que o rock nacional, o BRock, conseguiu falar, em suas letras, das mazelas
de um país recém saído de um período de ditadura militar, assim como falar da alegria e da liberdade
tão necessárias para essa nova geração.
Por outro lado, no que toca a questões práticas de produção musical, a MPB havia se tornado
uma música quase que jazzística de gravadoras, seus interpretes eram caros, os músicos também,
além de demandar diversos arranjos que precisavam da contratação de instrumentistas de nível
elevado. No final, todo esse aparato exigido, extremamente caro, acabava por não vender muito, pois,
como vimos, tal música possuía uma linguagem rebuscada e não mais tão popular.
Em contrapartida, o rock, em seu estilo “garagem”, logo de cara desprezava todo esse aparato
técnico, demandando apenas modestas produções, o que mudaria após o Rock in Rio de 85, mas isso
é outra questão.
No plano socioeconômico, devemos sublinhar, como já vimos anteriormente, que a crise
econômica não brasileira, mas da América Latina, havia atingido o bolso dos consumidores e
desestruturado o mercado fonográfico. Era o momento de se abrirem novamente as portas da
sociedade de consumo, dar oportunidade para essas milhões de pessoas excluídas do mercado
consumidor. O plano cruzado de 1986, do então presidente José Sarney, apresentou mecanismos
econômicos para a consolidação do rock como fenômeno cultural de massa ao ampliar as
possibilidades do mercado consumidor.
O plano cruzado permitiu, de certa maneira, aos brasileiros começarem a consumir, inclusive
discos, sendo assim, o rock pôde virar moda. Além disso, e sobretudo, o rock nacional, produzido nas
garagens, aparecia como um alternativa viável, ou seja, barata para as gravadoras que, atravessando
uma crise financeira, não mais podiam bancar a música cara que tinha se tornado a MPB. Logo, o
Brock atendia às necessidades do mercado fonográfico de todos os lados, essa nova música produzida
nacionalmente era o que o público queria ouvir, clara, direta e alegre, e o que as gravadoras tinham
recursos para lançar, uma música de produção e gravação baratas.
O ano de 1986 superou todas as expectativas de vendagens das gravadoras. O LP Dois, da
banda de Brasília Legião Urbana, chegou à marca de 800 mil cópias vendidas e o LP Rádio Pirata ao
81
vivo, do RPM, superou até mesmo a “insuperável” marca de 2,5 milhões de cópias do “rei” Roberto
Carlos.
Superando a crise do mercado fonográfico, a chegada do rock ao mercado e os absurdos níveis
de vendagem que este atingia comprovavam o alto nível de excitação do movimento musical dos anos
80. Afinal, quem um dia poderia imaginar que a imbatível marca de vendagem do “rei” seria
superada, ainda mais por uma “banda de garagem”? O BRock havia se tornado um gênero de música
popular que tomou conta do Brasil de norte a sul, nas escolas, nas festas de fins de semana, na praia,
nos bares. E foi assim que diversos grupos se formaram e muitos alcançaram sucesso nacional. Um
artigo de O Globo de 1992 nos dá um panorama bem-humorado das bandas da época:
“Nobres barões, vermelhos de ira, tentavam alcançar os paralamas do sucesso. Irônica, a versão
carioca da nova turma do rock vestiu o ritmo 4/4 com um biquíni cavadão, deixando a patrulha
(666) azul limão de raiva. Foi então que uma blitz, com sua metralhadora tcheca, provocou a
maior ‘hojerizah’ na galera. No Planalto Central, era dado o pontapé inicial no rock da capital A
legião urbana não era formada apenas por operários padrão. Eram filhos do poder, travestidos de
plebe rude, que se manifestavam como uma escola de escândalos. No escuro, faziam arte sobre
páginas amarelas. Garotos de rua com vida de titãs faziam o ultrajante rock paulista. Seus
garotos podres cheios de cólera apenas se reuniam em banda de ‘patifes’ para mostrar o inocente
movimento punk do ABC.”
166
1.2 O projeto Rock Voador
O Circo Voador na Lapa contou com a participação de diversas pessoas que “tocavam pra
frente” esse grande projeto cultural. Dentre elas, podemos destacar Maria Juçá, que levou literalmente
o rock para o Circo com o projeto Rock Voador. Tal projeto foi, sem dúvida, um dos mais vitoriosos,
desenvolvido sob a lona, abrindo espaço para as novas bandas de rock que surgiam e que
consolidariam um novo gênero musical brasileiro.
As noites de fim de semana do Circo Voador e seus shows estão sem dúvida na lembrança de
muitos cariocas. Os shows aconteciam normalmente aos sábados e revelaram para o Brasil toda uma
geração de bandas que fizeram a história do rock pop brasileiro na década de 80.
166
“Circo Voador celebra a terceira geração do rock.” O Globo. Rio de Janeiro, 25 de novembro de 1992, p. 7.
82
Em outubro de 1982, com o Circo sob os Arcos da Lapa, Maria Juçá recebeu a proposta de
fazer um rock no Circo. De pronto, ela topou e, no dia 23 do mesmo mês, começaram os trabalhos de
uma proposta que se tornaria um dos grandes manifestos do Rock nacional
167
.
A idéia do Rock Voador surgiu da indagação de Maria Juçá do que era o rock que
produzíamos em nosso país. De fato, o Rock chegara de fora de muito tempo, desde antes de
Roberto e Erasmo Carlos e das guitarras de Gil e Caetano, mas afinal o nosso rock era ainda algo
puramente importado, algo estrangeiro como todos afirmavam ou se tratava de um movimento
próprio, de um novo ingrediente, uma nova característica da nossa música? O fato é que realmente
um rock nacional se construía e tomava novas formas, além de se tornar uma presença e força cada
vez mais notável na cultura da década de 80. Para Juçá: “Descobri que o rock é da África, é das
Américas, é tambor, é grito, é dizer bem alto o que a gente sonha, o que a gente deseja. É uma visão
moderna de vida, então é brasileiro também”
168
.
Nesse contexto cultural, o projeto Rock Voador desenvolveu-se como principal mecanismo de
difusão do rock nacional no Rio de Janeiro e no Brasil. no ano de 1982 (ano de instalação do Circo
na Lapa), o Circo promoveu o festival Rock Brasil, vitrine que revelou ao país a nata do rock
brasileiro com nomes como Lobão, Barão Vermelho e Celso Blues Boy.
169
Ao Rock Voador se deve grande parte das carreiras de grupos na época estreantes como Kid
Abelha, Celso Blues Boys, Blitz, Paralamas do Sucesso, Sangue da Cidade e outros. Juçá afirma: “Eu
tenho certeza de que eles iam levar com a porta na cara se não tivessem já batalhado esse espaço aqui
no Circo.”
170
.
O Rock Voador, no bado, era considerado o auge do Circo onde no mínimo duas mil
pessoas por noite se espalhavam pela tenda e seus jardins. Trata-se de um ponto de encontro que
pertencia aos jovens de todas as tribos: punks, hippies, surfistas, motoqueiros, new wave... O projeto
conseguia realizar o que Juçá propusera para o Rock: “...ser uma forma de misturar tudo e ensinar o
pessoal a gostar de tudo, a conviver, a ficar junto até do que é diferente deles.”
171
Juçá continua
dizendo: “Os meios de comunicação estimulam muito uma coisa de divisão em tribos fechadas,
167
FRANÇA, Jamari. “ ‘Rock’ reage, voa e solta 15 bandas.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 24 de fevereiro
de 1983, p. 2.
168
BAHIANA, Ana Maria. “Voador faz homenagem a Madame Satã.” O Globo. Rio de Janeiro, 22 de abril de 1983, p.
31.
169
“A comemoração da ousadia”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 5 de janeiro de 1989, p. 4.
170
BAHIANA, Ana Maria. “Voador faz homenagem a Madame Satã.” O Globo. Rio de Janeiro, 22 de abril de 1983, p.
31.
171
“No Voador, o espetáculo começa quando você chega.” O Globo. Rio de Janeiro, Revista de Domingo, 22 de Abril de
1983, p. 3.
83
rotulam tudo, limitam, uma atitude reacionária, fascista. Aos poucos estamos acabando com isto aqui
no Circo.”
172
No dia 23 de fevereiro de 1983, o Circo Voador comemorava os 180 dias de sucesso do
projeto Rock Voador, com o balanço impressionante de 32 mil espectadores que assistiram a mais de
quarenta bandas de Rock.
173
Em entrevista ao Jornal do Brasil de 24 de fevereiro de 1983, Maria Juçá
declarava que conseguira o traço desejado para o Rock Brasil: “a possibilidade alquímica de juntar as
mais variadas tendências musicais num mesmo espaço e tempo.”
174
O Circo Voador, em sua luta cultural e política, conseguiu alterar o comportamento de rádios e
gravadoras, que passaram a aceitar o Rock como produto viável no mercado. Foi Maria Juçá que
também alimentou o esquema Rádio Fluminense / Circo Voador, visitando também gravadoras,
encontrando programadores de rádio, passando de mão em mão fitas demos. Para alguns, não é
exagero dizer que ela foi uma das responsáveis pela grande virada que o rock brasileiro conseguiu nas
rádios brasileiras.
O Circo Voador e a parceira Rádio Fluminense foram responsáveis por dar a primeira
oportunidade a dezenas de bandas que formaram a geração chamada pela imprensa de BRock.
Podemos lembrar que, nos idos de 82, o panorama das rádios jovens possuía cerca de 80% de sua
programação de música estrangeira e o pouco da música nacional que chegava a tocar se resumia aos
óbvios medalhões de sempre da MPB. No entanto, tal panorama mudaria com a chegada da
dobradinha Circo Voador / Rádio Fluminense. Essa dobradinha foi a mais perfeita possível para a
criação e alimentação do público do rock nacional que se estabelecia no país, servindo assim o Circo
Voador como palco e a Rádio Fluminense, como meio de veiculação de massa. Eram as duas
“vitrines” perfeitas para as bandas, na época marginalizadas, se exporem no mercado musical e
fonográfico.
O Circo Voador foi o espaço físico, o palco por excelência do BRock. O Circo Voador e o
projeto Rock Voador ajudaram a gerir o rock nacional e o alimentaram por mais de 15 anos. Segundo
estatísticas apresentadas por Maria Juçá, idealizadora do projeto Rock Voador, nada mais nada menos
172
“No Voador, o espetáculo começa quando você chega.” O Globo. Rio de Janeiro, Revista de Domingo, 22 de Abril de
1983, p. 3.
173
FRANÇA, Jamari. “ ‘Rock’ reage, voa e solta 15 bandas.Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 24 de fevereiro
de 1983, p. 2.
174
Idem. ‘Rock’ reage, voa e solta 15 bandas.Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 24 de fevereiro de 1983, p.
2.
84
do que 258 bandas passaram pelo palco do projeto Rock Voador
175
, além de nomes extremamente
consagrados do rock internacional como Ramones
176
.
1.3 A Maldita, a rádio Fluminense
A Rádio Fluminense foi ao ar pela primeira vez às seis horas da manhã de 1
o
. de março de
1982. Situada na cidade de Niterói, Rio de Janeiro, a Maldita, como era conhecida, foi criada pelos
jornalistas Antonio Mello e Samuel Wainner Filho com o propósito firme de tocar rock, abrindo
assim um vasto leque de oportunidades para as bandas iniciantes que davam seus primeiros passos.
A Rádio Maldita foi uma rádio importantíssima na década de 80, pois rompia com todas as
normas do rádio brasileiro. A locução era exclusivamente feminina. Os produtores negavam-se à
execução da chamada música de trabalho” imposta pelas gravadoras, tocando somente o lado B dos
discos. Bandas como Blitz, Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Legião Urbana, Plebe Rude, Capital
Inicial, entre outras, deram seus primeiros passos na rádio. O depoimento de Luís Antônio Mello é
definitivo para entendermos a postura da rádio:
A emissora foi um projeto que fez revolução no rádio, graças aos profissionais envolvidos.
Nós estávamos ali e não tínhamos noção da revolução que estava sendo processada. A
Fluminense tinha não um conteúdo musical mas também social e político. Sendo a grande
marca da rádio no comportamento. A partir do momento em que o jovem passou a ser
respeitado, e como uma cabeça intensamente inquieta, angustiada e questionadora, ele se aliou
à rádio. E de certa maneira letras como a de Renato Russo que falam da miséria no Brasil, a
questão da desigualdade social, soaram como tudo aquilo que o jovem queria dizer e não
sabia, ou conseguia.
177
Não tardou, de fato, para que a Rádio Fluminense e o Circo Voador passassem a atuar juntos
no cenário cultural carioca da década de 80. Como dissemos, a parceria era perfeita, as bandas que
tocavam na Fluminense subiam ao palco do Circo Voador para mostrar seu trabalho ao vivo e a cores
para o público jovem carioca.
A dobradinha Fluminense / Circo Voador era uma espécie de rota obrigatória trilhada por
todas as bandas candidatas ao sucesso. Foi nessa trilha que a banda Blitz despontou no famoso verão
de 1982.
175
Site: www.circovoador.com.br
176
BARREIROS, Edmundo. “Rock de alta qualidade e sem confusão.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 7 de
novembro de 1994, p. 23.
177
Monografia: NUNES, Fábio da Silva. O Rock brasileiro dos anos 80; uma abordagem do movimento. Niterói, 2002.
85
O projeto “Pau de Sebo Voador”, LP engendrado pela tabelinha Circo/Maldita, foi outro
veículo de transmissão e veiculação do BRock, lançando grupos como o Kid Abelha e os Abóboras
Selvagens e o Celso Blues Boys.
Podemos, ainda, citar muitas outras bandas que tocaram na Fluminense e encontraram espaço
para se apresentar no Circo Voador da Lapa: Capital Inicial, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana,
Plebe Rude, Barão Vermelho, Camisa de Vênus. Todas estas bandas foram lançadas no mercado
fonográfico e, algumas delas, com recorde de vendagem. Era a partir da exposição no palco do Circo
Voador e da difusão na Rádio Fluminense que os executivos das FMs passaram a prestar atenção a
uma nova música que, até em tão, permanecia escondida, trancafiada nas garagens.
Foi por meio do Circo Voador e da Rádio Fluminense que os roqueiros, antes desprezados,
criticados e malvistos pelos empresários do mundo da música, passaram, em pouco tempo, a ser os
maiores vendedores de disco em âmbito nacional.
Mesmo com o fim do projeto Rock Voador, o palco do Circo continuou abrigando e sendo
plataforma de lançamento para os artistas brasileiros desapadrinhados e desamparados.
Foi também no Circo Voador que a geração dos anos 90, que acabou ficando sem espaço no
mercado musical, teve sua vez com produtores como Alexandre Rolinha Rossi e Diogo Tirado, que
abriram um palco para grupos que logo estouraram, como Raimundos, Chico Science e Planet Hemp,
entre tantos outros. Para Maria Juçá, foi no Circo Voador que quem decolou se deu bem, porque
muita gente boa ficou a mercê de um mercado cultural asfixiante e viciado que em nada lembra o
arejamento cultural do Circo Voador”.
178
O Circo Voador foi uma instituição de cultura por excelência e, sendo assim, não deve ser
apenas focado sob o prisma do palco carioca que impulsionou as bandas nacionais da década de 80. O
Circo Voador desenvolveu diversos outros trabalhos culturais, como a Domingueira Voadora,
freqüentada por um público totalmente diferente daquele dos shows da Blitz e do Celso Blues Boy. A
Domingueira Voadora também virou referência cultural no Rio de Janeiro da década de 80,
pertencendo, sem sombra de dúvida, à história cultural do nosso país.
178
Site: www.circovoador.com.br
86
2 - A Domingueira Voadora.
A gafieira surgiu na época em que os clubes faziam bailes onde podia entrar associado e
seu nome era quase pejorativo designando bailes populares onde se tocava qualquer gênero de música
e as pessoas não sabiam dançar.
Com a novela Pai herói, da TV Globo, a gafieira foi revalorizada, no entanto, pouco se sabe
sobre a gafieira. Raul de Barros nos conta um caso interressante: ...outro dia, num baile, depois de
tocar umas quatro horas, me chega um rapaz e me pede para tocar “gafieira”. Vê se pode, ele pensava
que gafieira fosse um gênero musical.”
179
Nos idos de 1982, a gafieira estava enfraquecida no Rio de Janeiro. A Estudantina, um dos
últimos refúgios da fina arte da dança de salão, resistia bravamente ao esquecimento e ao
envelhecimento de seu público. A gafieira agonizava. Mas o Circo Voador aterrissava na Lapa. Ali,
reduto da malandragem, terra de Madame Satã. A química era perfeita: a democracia do Circo, a
liberdade, a juventude e a descoberta. Quem enxergou a possibilidade foi Fernando Libardi, que
depois viria a ser produtor do evento. “No dia em que ele veio com essa idéia de gafieira, a gente
achou meio maluca, mas bancou”
180
, relembra Maria Juçá, saudosa do amigo morto em 1997. o
deu outra. Em outubro de 1982, tinha início um dos projetos mais vitoriosos da recente história
cultural carioca: a Domingueira Voadora.
A idéia da Domingueira Voadora era a de reproduzir o ambiente das gafieiras que durante
muitos anos estiveram desativadas, mas que voltavam a ter o seu público. A Domingueira Voadora
funcionava aos domingos, das nove da noite à uma hora da manhã, com uma orquestra formada por
16 músicos. Durante 15 anos, das nove da noite a uma da manhã, o circo era território dos pés de
valsa. No começo, era o Maestro Paulo Moura [Anexo II, ilustração 2] e seus 16 músicos, depois foi a
vez da maior orquestra do Brasil com Severino Araújo e a Orquestra Tabajara. A Orquestra Tabajara
fez história no Circo Voador e a Domingueira Voadora virou referência com os tantos casais que se
conheceram debaixo da lona do Circo. Basta dizer que os dois maiores nomes da dança de salão
carioca atual, Jaime Arôxa e Carlinhos de Jesus, devem muito de suas carreiras à Domingueira
Voadora.
Em dezembro de 1991, com a possibilidade da transferência do Circo Voador para a Fundição
Progresso, Carlinhos de Jesus tomava as dores da lona da Lapa: “O Circo Voador venceu pela
179
“É pelos cinqüenta anos do trombone de Raul de Barros.” O Globo. Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 1983, p. 25.
180
Site: www.circovoador.com.br
87
insistência. A cada domingo, ele foi crescendo. Aqui tem uma coisa de calor humano. Muita gente
se conheceu no Circo, noivou e casou”, declarava o dançarino ao Jornal do Brasil, destacando que o
Circo Voador foi um dos principais responsáveis pela corrida rumo às academias de dança de
salão.
181
3 - Dança e “Domingo do Corpo”.
Quem disse que não sou feliz? Eu danço!
Mário de Andrade
Pessoas das mais variadas formações, com namorados, amigos ou sozinhas, famílias inteiras,
com cabelos brancos ou crianças ainda descobrindo o próprio corpo, de trajes sofisticados ou
descalças, todas essas pessoas se encontravam aos domingos à tarde sob a lona do Circo e se
divertiam pra valer por apenas Cr$ 100.
182
A cada semana um professor diferente apresentava ao
grupo algo original e, na maioria das vezes, novo para muitos. Débora Colker, umas das
organizadoras do projeto, nos explicava que a família podia se integrar na mesma atividade onde
“expressões faciais, grunhidos, acessos de tosse e gritos de prazer também fazem parte da ginástica e
são imitados pelos seus participantes”
183
. O Domingo do Corpo era um espaço de experimentação, de
descoberta do corpo e do espaço. O professor de dança Mauro Cessar explica:
Mesclando dança e teatro, procuro utilizar elementos do cotidiano, em vez de chegar com
padrões codificados de dança. A proposta é estimular a disponibilidade interna de cada um,
furando os bloqueios que temos, de forma que cada pessoa descubra sua própria dança, sua
própria linguagem e forma de expressão
184
.
O projeto ainda trabalhava com a técnica da ginástica orgânica. Maria do Carmo, juntamente
com Carlos Afonso, nos dava detalhes sobre tal técnica:
A finalidade da ginástica orgânica é o desenvolvimento harmônico do homem. Cada pessoa tem
uma plástica fixa, mas, imitando o instrutor, o aluno deixa sua plástica original e experimenta
uma diferente, o que é importante para que ele descubra seus outros personagens. Mistura de
181
Site: www.circovoador.com.br
182
“Rio dança nas ruas, praças, no circo e nas construções.” Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4 de julho de 1983, p. 7.
183
“O ‘happening’ do Circo voador.” O Globo. Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1982, p. 3.
184
“O ‘happening’ do Circo voador.” O Globo. Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1982, p. 3.
88
ginástica e dança contemporânea, esse método nutre o aluno de energia, que depois é canalizada
em alguma proposta especifica185.
O Domingo do Corpo desenvolvia ainda cursos com técnicas de teatro e animação com
máscaras e bonecos, com o professor Mauro César, e capoeira, com Mestre Camisa, que se tornará
futuramente famoso e reconhecido em todo o mundo.
Para Débora Colker, “domingo é dia de lazer, dia de você trabalhar pra você e a intenção do
Domingo do Corpo é misturar, trabalhar junto.”
186
Tratava-se de higiene mental, de fazer amizades e
de relaxar. A diversificação não era de participantes, os cursos oferecidos eram dos mais variados:
aulas de jazz, movimentação, dança clássica, expressão corporal, etc.
No dia 20 de março de 1983, o Domingo do Corpo propunha, na Quinta da Boa Vista, shows,
aulas e palestras sobre medicina e alimentação natural. Segundo Márcio Calvão, organizador do
evento, esta era a primeira atividade do Circo fora de sua sede que, no entanto, não pretendia ser a
última.
187
A idéia de levar as atividades do Circo para a rua esteve sempre no âmago do que é o Circo
Voador, entretanto, passou a se concretizar com as aulas públicas dadas no verão anterior com o
Domingo do Corpo e com as aulas de teatro do projeto Bom de Ver, Bom de Fazer. A resposta por
parte do público desses cursos fora tão boa que o pessoal do Circo resolveu buscar um espaço e um
público maiores.
O Domingo do Corpo na Quinta da Boa Vista propunha, assim, no dia 20 de março de 1983,
variadas atividades e cursos como Do-in, dança, demonstração do diagnóstico visual de doenças e
uma exibição dos conjuntos Couro Cabeludo e Céu na Boca. Iniciando a programação, Juracy Lopes
Cançado comenta: “Para mim é uma coisa inédita, porque se trata de chamar a atenção das pessoas
para algo que elas normalmente desconhecem que é a energia.” O Domingo do Corpo teve, desde seu
início, sob a própria lona do Circo, um papel revolucionário em sua nova abordagem ao corpo. Existe,
na verdade, uma questão social do corpo fundamental para a melhora da qualidade. Tal questão para
muitos passa desapercebida ou não lhe é dada a devida importância. Perfeito Fortuna nos diz:
...começamos a descobrir essa nova maneira de os artistas possibilitarem às pessoas um
desenvolvimento de sua capacidade de manifestação. Todo mundo tem um lado de artista, de
uma sensibilidade forte. Então vamos incentivar isso. O cara vai no Domingo do Corpo e
dança, canta, faz massagem. E isso vai ajudá-lo a se colocar melhor no trabalho. É uma coisa
185
“O ‘happening’ do Circo voador.” O Globo. Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1982, p. 3.
186
“Rio dança nas ruas, praças, no circo e nas construções.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 4 de julho de 1983, p. 7.
187
“Voador leva Domingo do Corpo para Quinta.” O Globo. Rio de Janeiro, 19 de março de 1983, p. 28.
89
que ele pode fazer com a mulher e os filhos. E para ele falar melhor, se sentir mais à vontade. É
para o corpo dele namorar melhor.
188
Em maio de 1983, a revista Isto É publicava uma matéria sobre o Domingo do Corpo de três
páginas intitulada “Palavras num domingo do corpo”, de autoria de Fernando Gabeira. O artigo
mostra a boa aceitação da população, grande parte vinda do Nordeste, que aceitavam as novas
propostas com satisfação
189
.
A vida sedentária que o capitalismo impõe ao nosso corpo faz com que este se sinta
constantemente emperrado, o que reflete diretamente sobres nossas vidas, nos tornando pessoas
estressadas. Entretanto, existe uma política do corpo que acompanha o grande interresse quase
obsessivo pelo corpo desde os anos 60 em amplo movimento cultural.
O Domingo do Corpo pretendia levar à população uma outra idéia de postura; uma outra idéia
de utilização do seu corpo, além de mão-de-obra e sustento de si, era levada para milhares de pessoas,
atividades e informações sobre comida natural, medicina oriental, doença, capoeira, tai-chi-chuan,
jazz, gafieira, canto e tantas outras atividades corporais, todas não envolvidas apenas com o corpo,
mas com a saúde física e mental em um nível mais amplo. Participaram do Domingo do Corpo, além
de Débora Colker e os citados: Vilma Vernon para o Jazz, Camisa para a capoeira, Graziela
Figueiroa para a dança contemporânea e Angela Vale para a dança moderna e também Dalal
Achcar.
190
O Circo contou ainda com a formação da Cia. Aérea de Dança do Circo Voador criada pelo
bailarino João Carlos Ramos, na época com 24 anos. A Cia. tinha inicialmente como proposta a
formação de um núcleo representante, com bailarinos amadores para a montagem de espetáculos. Aos
poucos, a proposta foi se abrindo, surgindo a idéia de dar continuidade às aulas de dança sem a
preocupação com apresentações passando a se dançar por puro prazer. João Carlos nos explicava que
as aulas eram gratuitas e que “a proposta principal é mostrar que a dança contemporânea não tem
limite de idade e pode ser descoberta com 12 ou 40 anos.”
191
188
“Hoje, na Quinta, é dia do corpo.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 20 de março de 1983, p.17.
189
“Palavras num domingo do corpo.” Revista Isto É. Rio de Janeiro, 11 de maio de 1983, p. 44.
190
“A vez do baile no Domingo do Corpo.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 10 de julho de 1983, p.1.
191
“Circo Voador tem curso de dança.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 23 de setembro de 1986, p. 6.
90
4 - O Circo Voador, um espaço do teatro desde seus primórdios.
Eu sempre fiz teatro.
Eu sempre vi teatro em tudo à volta.
Trezentos e sessenta graus de truques
a humanidade é.
Chacal
Nas palavras de Maria Juçá:
Impossível falar do Circo Voador sem falar de teatro. Perfeito Fortuna, idealizador e fundador
do Circo, é um ator. Fez parte do lendário grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone, que
reunia, além dele, Hamilton Vaz Pereira, Evandro Mesquita, Patrícia Travassos, Regina Casé
e Luiz Fernando Guimarães. Reza a lenda que, quando Perfeito resolveu dar sua cartada
decisiva para concretizar sua idéia malucona de montar um circo descolado, ele e alguns
amigos invadiram a prefeitura encenando uma verdadeira performance circense. Se isso
realmente aconteceu, ninguém sabe, mas a verdade é que Dona Zoé de Chagas Freitas,
primeira-dama do prefeito Júlio Coutinho, aceitou receber a trupe e bancou a idéia do Circo
Voador. E o teatro e o circo decolaram junto com a música na nave mãe voadora do
Arpoador.
192
A questão toda era que os tantos grupos de teatro formados pelas oficinas do Asdrúbal Trouxe
o Trombone no Parque Lage não possuíam um espaço fixo para ensaiar e se apresentar e foi isso que
estimulou por um lado Perfeito a montar a Lona.
Logo depois de seu primeiro “pique” ficado no chão, a chegada do Circo Voador foi saudada
pela crítica teatral como “centro estimulador de experimentalismos”,“núcleo irradiador de criação” ou
“movimento cultural de muitas pontas”
193
.
Na Lapa, logo que o Circo aterrissou sob os Arcos, teve início o projeto Bom de Ver, Bonzão
de Fazer, quando, após uma aula pública de teatro, era montado um espetáculo de concepção coletiva
com os participantes. Os encarregados das aulas eram pessoas como Amir Haddad, Fábio Junqueira,
Hamilton Vaz Pereira e o próprio Perfeito Fortuna. O projeto encheu os olhos do conceituado crítico
do Jornal do Brasil Yan Michaslki, que escreveu uma enaltecedora matéria no jornal sob o título
Agora um teatro muito bom de ver”. Todas essas companhias de Dança e Teatro eram sucesso total
para com a comunidade.
192
Site: www.circovoador.com.br
193
“Um festival de rock para celebrar dois anos de Lapa.”. O Globo. Rio de Janeiro, Segundo Caderno, 04 de outubro de
1984, p.1.
91
A lona também promoveu lançamento de peças e artistas com esquetes ainda por estrear e
cenas de montagens famosas, tudo isso conduzido por Fernanda Montenegro. Para Perfeito, esse era
“o jeito mais sensato e imediato de se levar o teatro para o povo”
194
.
A Intrépida Trupe, por exemplo, se reuniu pela primeira vez na viagem tresloucada que o
Circo Voador fez ao México na Copa do Mundo de 1986. Talvez não seja realmente por acaso que
uma das maiores e mais premiadas companhias circenses brasileiras se formou dentro do Circo
Voador, como diz o poeta Chacal: “em algum ponto entre a Baía de Guanabara e uma parada em
Guadalajara.”
195
Quando a companhia de teatro popular do diretor Amir Haddad, Na Rua, foi despejada de
sua velha sede, um sobrado na Rua do Resende, foi no Circo que eles encontraram também abrigo.
Amir Haddad havia de fato aderido de corpo inteiro às agitações do Circo. Nas segundas-feiras de
1985, qualquer um podia virar ator indo ao Circo, escolhendo uma peça no guarda-roupa de
mulambos coloridos e participando da oficina teatral que se armava no picadeiro. “É hora de todo
mundo voltar a fazer arte”, conclamava Amir.
196
5 - A ginga da capoeira tá no Circo.
A capoeira é por excelência uma das fontes de arte e cultura mais importante que possuímos
em nosso país, seja em seu aspecto histórico, folclórico, cultural ou social. No entanto, sabemos que a
capoeira foi, durante muito tempo, proibida e continuava, na década de 80, marginalizada.
A capoeira utilizava-se, e se utiliza até hoje, de espaços urbanos alternativos como praças e
parques e não encontrava facilmente, na década de 80 e até mesmo na de 90, espaço nas instituições
públicas para desenvolver o seu trabalho. Entretanto, o Jornal do Brasil escrevia, em outubro de 1990,
que o “circo Voador sempre manteve uma estreita ligação com a capoeira”,
197
abrindo suas portas
para essa arte que é uma das expressões primeiras da nossa cultura e de nossa brasilidade. [Anexo II,
ilustração 9]
194
“No Voador, o espetáculo começa quando você chega”. O Globo. Rio de Janeiro, Caderno de Domingo, 3 de maio de
1983, p.3.
195
Site: www.circovoador.com.br
196
“Arte por contágio.Isto É. 3 de junho de 1985, p.43.
197
TRINDADE, Mauro. “Samba e capoeira; capoeiristas e sambistas se reúnem para criar um carnaval em pleno agosto.”
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 10 de agosto de 1990, p.8.
92
Essa estreita ligação da capoeira com o Circo foi efetivada basicamente por Mestre Camisa,
um dos organizadores dos tantos encontros de capoeira que aconteceram na Lona, como foi o caso do
Pé quente, cabeça fria, realizado em 1984 sob os Arcos da Lapa. O renomado mestre explica que: “É
importante dizer que o que nós fazemos não é a capoeira como esporte, que é muito válida. Mas o
nosso caso é com a capoeira enquanto cultura. Existe um lado muito sincrético que buscamos
explorar.”
198
Outro encontro sem dúvida a ser sublinhado foi o do dia 12 de outubro de 1987 em
homenagem aos infantes, quando foi formada uma roda que misturava velhos mestres com idade
acima de 60 anos e meninos e meninas de no máximo seis primaveras. O evento também contou com
a presença de escolas de samba mirins, do grupo de circo Intrépida Trupe e com mais de 300 quilos
de peixe assado na brasa doados pela Associação de Pregoeiros da Praça XV.
199
Podemos ainda citar outros eventos de capoeira sob a Lona Azul, sempre lembrando que a
capoeira é uma das maiores resistências ao massacre à cultura popular brasileira. A capoeira é arte, é
saúde, é socialização, em que pretos, brancos, ricos e pobres gingam sob o som dos mesmos
atabaques, ladainhas e berimbaus. A cultura que a capoeira traz dignifica pessoas que passam a
representar um valor, valor de ser brasileiro, filho de negro, índio ou europeu. Essas pessoas passam a
respeitar melhor as diferenças, fazer frente a elas e, por conseguinte, passam a se respeitar
mutuamente.
6 - O Circo, diversificação e perfil revolucionário.
O que é o que é? Segunda é um fórum de debates, terça um teatro, quarta uma escola, quinta e
sexta uma casa de espetáculos, sábado um clube, domingo uma gafieira. Mas, ao mesmo
tempo, também é uma creche, uma galeria de arte, um jardim, uma horta e um bar.
200
Essas poucas palavras de O Globo de abril de 1983 definiam, com clareza e de forma direta, o
que era o Circo Voador na prática: um espaço múltiplo, um espaço de lazer, cultura e construção da
cidadania. Múltiplo no sentido de oferecer diversas possibilidades de diversão e desenvolvimento do
saber com seu perfil extremamente inovador e revolucionário. Tais características se apresentavam na
198
TRINDADE, Mauro. “Samba e capoeira; capoeiristas e sambistas se reúnem para criar um carnaval em pleno agosto.”
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 10 de agosto de 1990, p.8.
199
PAIVA, Anabela. “Hoje é dia de ginga no Circo Voador.Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1987, p.6.
200
“No Voador, o espetáculo começa quando você chega.” O Globo. Rio de Janeiro, Caderno de Domingo, 8 de maio de
1983, p. 3.
93
própria elaboração de suas programações da época, nas palavras de Maurício Sette em entrevista ao
Jornal do Brasil: “As idéias vão sendo anotadas, a programação organizada. Tudo vai surgindo na
medida em que o projeto vai sendo conhecido dos grupos...”
201
Marcio Calvão em outra entrevista,
desta vez a O Globo, explicava com mais detalhes o processo de criação e gestação da programação:
“Não trabalhamos com metas, com alvos. Nosso meio de trabalho é o próprio processo. A gente vai
fazendo o caminho à medida que vai andando, depois é que vê o que faz.”
202
Ainda Márcio nos informações mais adiante sobre a administração, o pessoal e a gestação
financeira:
O Circo não lucro nem prejuízo: o Ponto Frio fornece, como patrocínio, uma verba mensal
que ajuda na manutenção e nos salários dos 80 funcionários, de faxineiros a professores; as
bilheterias pagam os eventos, os artistas e os produtores.
203
No Pasquim de 25-31 de agosto de 1983, Márcio continua agora falando da manipulação e
aplicação do capital produzido pelo Circo: “Cada atividade tem uma organização e uma economia
própria, vinculada a uma economia central. São vários satélites. Os programas lucrativos geram uma
renda jogada nos programas não-lucrativos.”
204
Perfeito Fortuna, por sua vez, nos sua visão sobre a questão que envolve os apoios e
patrocínios:
Nós nunca recusamos patrocínio e afirmamos mesmo que sem a Lubrax, sem a Petrobras, por
exemplo, que pagam nossas despesas, não seria possível fazer quase nada do que fizemos. Ao
mesmo tempo, é bom para essas empresas terem o nome ligado a nosso logotipo. Hoje, todo
mundo busca patrocínio e não tem vergonha disso. As empresas, por sua vez, começam a
reconhecer sua obrigação para com a cultura e a vida da população.
205
As idéias da programação eram muitas, como uma roda de capoeira semanal, uma grande feira
dominical para venda de artesanato e também para servir de ponto de troca, espetáculos de dança,
música e teatro ao ar livre, corais e orquestras, espetáculos infantis, gincanas, gafieira, além de fóruns
de debates para examinar temas, como a preservação do patrimônio histórico da cidade e eventos para
a conscientização do uso de alimentos como o aipim e o peixe.
201
BOMFIM, Beatriz. “Numa grande festa de verão a eterna alegria do circo.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, caderno
B, 27 de dezembro 1981, p. 1.
202
“No Voador, o espetáculo começa quando você chega”. O Globo. Rio de Janeiro, 8 de maio de 1983, caderno de
Domingo, p.3.
203
“No Voador, o espetáculo começa quando você chega”. O Globo. Rio de Janeiro, 8 de maio de 1983, caderno de
Domingo, p.3.
204
“Olha o Circo Voador pousando no Pasquim!” Pasquim. Rio de Janeiro, 25-31 de agosto de 1983, p. 10.
205
“Circo Voador: três anos na ‘panela de pipoca’.” O Globo. Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1985, p. 1.
94
Isso sem falar nos inúmeros cursos e oficinas que envolviam teatro, tango, bolero, rock, coral,
iluminação e artes circenses.
A intenção era criar um clima propício entre o pessoal do Circo e as pessoas da comunidade
que participavam das atividades oferecidas no espaço. Foi assim que se percebeu a grande vantagem e
a necessidade de misturar os diferentes públicos.
A versatilidade do Circo Voador imperava com idéias que não paravam de jorrar para alívio
dos seus freqüentadores, que se mostravam cada vez mais numerosos. Os artistas possibilitavam às
pessoas, através das oficinas, o desenvolvimento de sua capacidade de manifestação. Esses
profissionais acreditavam que todas as pessoas possuíam um lado “artista”: muitos chegavam tímidos
e, ao final da oficina, dançavam, cantavam, davam piruetas, representavam, costuravam e até
pintavam o rosto dos colegas.
A diversificação dos espetáculos também era prova de revolução e democracia; um dia com
apresentações de samba, outro com jongo ou punk rock e ainda recital de poesia, folclore do
Panamá.
206
Sob o nome jurídico Corpo Cênico Nossa Senhora dos Navegantes, funcionava assim uma das
empresas mais prósperas do início dos anos 80 em trabalho, movimento e agitação. Com uma folha
de pagamento em outubro de 1983 em torno de 80 funcionários, a Lona Azul possuía atividades
divididas em mais de vinte projetos distribuídos em vários pontos do estado. Nos mais de 100
espetáculos realizados até então, a lona não abrigava shows de rock, gafieira e aula de circo, mas
também encontro promovido pela Secretaria de Bem-estar Social com uma centena de educadoras de
favelas. A Lona Azul promoveu também um mutirão na favela da Alvorada para construção de centro
comunitário. Com alto grau de eficiência em seus empreendimentos, que desafiam todos os conceitos
administrativos. O Circo do início dos anos 80 era uma verdadeira caixa de surpresas que realizava,
com rapidez admirável, diversos projetos independentemente das condições adversas.
Outro projeto revolucionário era o Canteiro de Obras feito em colaboração com a Pastoral
Operária. O projeto consistia em levar shows para os canteiros de obras de construção civil divertindo
os operários e ao mesmo tempo buscando sanfoneiros, dançarinos, lutadores, homens que podiam
mostrar seus talentos e espalhar alegria em outros canteiros de trabalho.
207
206
“Uma nova noite do Caribe agita o Circo Voador”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1983, Caderno B,
p.8.
207
“Arte por contágio.” Isto É. 3 de julho de 1985, p.43.
95
O Circo Voador, local de produção e revolução do saber, de inovação e diversificação,
conjugou sob sua lona azul meninos de rua, capoeira, poesia, rock, dança, creche, feira de artesanato,
fóruns de debates, aulas de alimentação natural etc.
8 - Cultura popular encontra espaço no Circo Voador.
O quê é vida?
É porque cultura é vida
e é com o povo que agente aprende a vida
e se faz realmente culto
Jorge Amado
208
O Circo Voador foi de fundamental importância para o surgimento e a consolidação do rock
nacional na década de 80, isso não resta dúvida. No entanto, é preciso que entendamos agora o Circo
Voador como um espaço de ampla produção e alimentação da cultura, assim como um espaço que
conseguiu irradiar também atividades socioeconômicas em diversas comunidades carentes do Rio de
Janeiro e de até outros pontos do Brasil. Nesse contexto, o jornal O Globo, de 24 de abril de 1983,
definia o Circo como “um dos pontos já característicos da vida da cidade”.
209
É preciso sublinhar ainda que o Circo possuía um perfil extremamente revolucionário como
instituição cultural, no que toca à sua administração e produção, isso sem falar é claro de sua
diversificação espetacular de espetáculos e eventos.
A década de 80 foi de fato um momento de “misturas”. Misturava-se teatro com dança, com
piruetas etc. e tudo isso achou espaço para suas expressões e desenvolvimento nesse “catalisador” de
idéias, “viabilizador” de planos.
O Circo era justamente o circo das misturas, com festas tradicionais, como juninas e julinas,
concurso de poesias, campanhas de amamentação, concursos de quadrilha, casamento na roça, quebra
moringa, forró com Luís Gonzaga, frevo, Festa da Independência, Festival Multimídia, Circo
208
Palavras de Jorge Amado no filme documentário Pastinha, uma vida de capoeira.
209
“O Circo Voador também toma conta das crianças”O Globo. Rio de Janeiro, Caderno Família, 24 de Abril de 1983, p.
6.
96
Rock´n´Roll, creche, lançamentos de livros, campanhas contra a fome, campanhas para o consumo de
peixe, plantios de árvores, feiras de trocas, diversos festivais de rock, etc.
210
O espaço do Circo abriu suas portas, por diversas vezes, a manifestações culturais mais
tradicionais como bumba-meu-boi, forró, folguedos, festas de junho, além de bancas de comidas
típicas de vários locais, ressaltando assim aspectos tradicionais de todo o país.
O Circo promoveu, nesta linha, concursos de quadrilha de festa junina que se encontravam
descaracterizadas, reunindo diversos bairros do Rio de Janeiro sob seu espaço. Podemos citar como
exemplo o dia 3 de junho de 1983, quando se apresentaram as quadrilhas do Méier, de Madureira, do
Tênis Clube, da Penha, dentre outras.
211
No mesmo mês de 1983, o Circo Voador havia programado,
para todas as sextas-feiras, folguedos que são uma tentativa de reviver as festas tradicionais de junho,
como a congada mineira, o bumba-meu-boi maranhense, a quadrilha baiana e do norte de Minas
Gerais e a rancheira do Rio Grande do Sul.
212
Entre as festas tradicionais brasileiras, o Circo Voador, apoiado pelo Ponto Frio Bonzão,
festejou, no mês de setembro de 1983, São Cosme e São Damião, reunindo duas mil crianças, na sua
maioria de comunidades carentes, e distribuindo mais de 14 mil doces, que por sua vez foram feitos
por senhoras das favelas da Rocinha, São Carlos e Borel.
213
Dentro e fora do Circo, as crianças
participaram de atividades diversificadas, das 10 às 19 horas. Palhaços e bailarinas reuniram em
grupos as crianças, que foram pintadas de palhaço e puderam correr e brincar no terreno.
214
[Anexo II,
ilustração 10]
210
“Perfeito Fortuna e o Circo dá saúde” Tribuna da Imprensa. 24 de julho de 1987, p. 1.
211
“Com Dominguinhos, o Circo Voador abre os seus folguedos juninos”. O Globo. Rio de Janeiro, 3 de junho de 1983,
p.23.
212
“Com Dominguinhos, o Circo Voador abre os seus folguedos juninos.” O Globo. Rio de Janeiro, 3 de junho de 1983,
p.23.
213
“Circo Voador reúne duas mil crianças no Doce Domingo”. O Globo. Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1983, p.10.
214
“Circo Voador reúne duas mil crianças no Doce Domingo”. O Globo. Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1983, p.10.
97
Capítulo III - O “Circo social”- cursos diversos, a CrecheApareche, o Projeto Favela e a crião de posto
de sde.
All we need is love.
John Lenon
1 - Um espaço para a educação e a cidadania
O que é educação? Será que a escola clássica é a melhor forma de educação? Estas eram
perguntas óbvias que colocavam os educadores e artistas do Circo. No entanto, uma coisa é certa: a
educação é o caminho para a transformação de uma sociedade, para a construção da cidadania de uma
nação. Por outro lado, acredito que a educação precisa estar intimamente ligada às artes, pois quanto
mais pessoas forem iniciadas nas artes mais estarão sensibilizadas a entender o mundo que as cerca.
As artes trabalham com a diferença, com a liberdade, com a experimentação e a possibilidade, a arte
tem algo democrático em si, a arte possibilita ao homem expandir sua consciência e percepção do
mundo. A arte e a educação são, assim, grandes aliados para a construção da cidadania. O Circo, sob
esse prisma, foi uma instituição inovadora que dava cursos que iam do teatro ao VT, da capoeira ao
plantio de árvores, da carpintaria à antropologia, da dança contemporânea ao tricô, de palestra sobre
camisinha e Aids
215
à produção de LP. A proposta era uma revisão do conceito de educação em que
muitos seguiam de certa forma os preceitos de nosso querido Paulo Freire. A educação sob a Lona se
baseava, por outro lado, no binômio educação/diversão que, para os educadores e artistas do Circo,
não são incompatíveis.
Desde sua fundação no Arpoador, a Lona Azul detinha uma grande e variada quantidade de
cursos e oficinas que se aglomeravam sob o slogan Deixe seu filho no Voador e um mergulho no
Arpoador.
216
Os cursos ministrados iam de aulas de pirâmide, doublé, saltos ornamentais, teatro,
dança, artes plásticas, capoeira, musicoterapia etc. Ainda sob esse espírito, uma atividade importante
no ciclo de cursos do Circo foi a de animação cultural, dirigida especialmente a líderes e pessoas
influentes em favelas e conjuntos habitacionais, curso esse promovido em colaboração com a Cehab e
o Instituto Municipal de Artes e Cultura.
217
215
“Chacal, no sétimo aniversário do Circo Voador”. O Estado de São Paulo. São Paulo, Caderno 2, 5 de janeiro de 1989,
p.1.
216
“Um pouso para vôos ousados.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 15 de janeiro 1982. p.5.
217
“Agora, à sombra dos Arcos da Lapa, uma usina cultural.” O Globo. Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1982, p.25.
98
Quando o Circo baixou na Lapa, além de persistir com a programação multifacetada do
Arpoador, o pessoal da Lona Azul desta vez lançou um curso de antropologia com Everardo Rocha
para que se pudesse pensar melhor a nova cultura do Circo em contraste com a velha Lapa e sua
história. A responsável pela organização dos 16 cursos que viriam a ser ministrados era na ocasião
Bia Junqueira.
218
Quando, durante as férias, as crianças esgotavam seu repertório de diversão de fim de semana,
a saída era trocar o cenário maravilhoso da Lagoa pelo da Lapa com o projeto “O Sábado das
Crianças” no Circo Voador. A entrada era grátis e as crianças ganhavam tinta, papel crepom, giz,
barbante, cola, lápis e um enorme espaço livre para dar asas à sua criatividade, isso tudo sob a
orientação de uma equipe especializada de arte-educação que, no entanto, insistia em interferir o
menos possível. Ana Seixas, uma das organizadoras na época nos conta que:
O importante é a criança viver aqui, através dos jogos, as relações que ela vive fora, é poder
transformá-la de acordo com o mundo dela, descobrindo que o impossível não é impossível.
Por exemplo, num destes bados o tema era um planeta novo e as crianças acharam que
tinham que ter um rei. pelas tantas, descobriram que o rei não tava com nada, queria
mandar nos outros, então destituíram o rei.
219
O “Sábado das Crianças” tinha seus custos cobertos pela Funarte e pelo Mate Leão, na base de
CR$ 100 mil por sábado, e na sua equipe figurava Ronaldo Ferreira, do pré-escolar do colégio
Senador Correia; Débora Colker e Ana Seixas e tantos outros.
A Lona Azul dedicou ainda outros projetos às crianças como o Bom de Ver, Bom de Fazer,
uma evolução do projeto “Domingo do Corpo”, em que as crianças aprendiam atividades utilitárias,
como cozinhar, tricotar, costurar, pois “muito mais mágico do que a criança fingir que es
cozinhando é cozinhar de verdade”.
220
Em outubro de 1984, o Circo enfeitou-se desta vez de bandeiras ostentando nomes como
Freud, Einstein, Newton, Darwin, tratava-se das “Feras da Ciência”, projeto realizado pela
Associação Promotora de Instrução e pelo Circo Voador, com o apoio da Feema e da Petrobras.
Alunos da rede pública e particular de mais de 20 escolas participaram, apresentando em torno de 70
218
“O Circo Voador baixa na Lapa: muito mais que espetáculos.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, caderno B, 23 de
outubro de 1982, p.1.
219
“O melhor das férias está no Circo.Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 7 de janeiro de 1983, p.8.
220
Palavras de Perfeito Fortuna em “O alto verão do Circo Voador começa hoje no Centro.” O Globo. Rio de Janeiro,
Caderno de Domingo, 13 de janeiro de 1983, p.1.
99
projetos em que crianças ensinavam crianças o que é um rádio, os males do açúcar, os insetos, as
ervas medicinais, o processo de produção do café e outros.
221
[Anexo II, ilustração 18].
Luís Antonio Silveira, Diretor-Geral da Escola Senador Corrêa e membro da Associação
Promotora de Instrução, foi um dos principais responsáveis pela organização desta feira de ciência.
Tudo começou, na verdade, quando a Secretaria de Educação informou que não promoveria a Feira
de Ciências de 1984. Os alunos, ansiosos para apresentar seus trabalhos, começaram a pressionar e o
jeito foi fazer justiça, dando espaço para que se realizasse a feira.
222
“Acredito podermos qualificar o Circo como espaço educativo, um centro de utilidade pública
e de construção da cidadania”, como definiu Perfeito Fortuna, “e não só um centro de lazer e cultura.”
A educação no Circo tinha como linha de trabalho a prática, o dinamismo das atividades, a realidade
substituindo teorias sofisticadas, a vivência da liberdade, das artes, do convívio espontâneo com
adultos e crianças de diversas classes sociais. Por outro lado, o Circo nunca esteve preso às suas
fronteiras e, já em 1983, levou cursos e palestras sobre medicina popular, Do-in e alimentação natural
para a Quinta da Boa Vista, onde Fernando Gabeira contribuiu, falando sobre alimentação escolar.
223
O fato é que “em três anos, o Circo, que começou como espaço alternativo para espetáculos,
criou longos braços e atua em outras cidades, na educação e na vida comunitária e até na política
cultural do País.”
224
2 - Um exemplo ilustrativo de atividade social: a CrecheApareche.
O Circo Voador sempre manteve funcionando, paralelamente aos shows de música, um
intenso programa de projetos sociais junto às comunidades carentes. Dentre todos esses projetos, um
dos mais significativos foi provavelmente a criação da Creche Apareche.
O problema de carência de atividades, escolas e creches para os pequeninos na região do
centro foi de certa forma atenuado com a inauguração, numa segunda-feira do início de abril de 1983,
221
“Circo exibe as ‘feras da ciência’: uma animada lição de arte e prazer.” O Globo. Rio de Janeiro, Segundo Caderno, 31
de outubro de 1984, p.2.
222
“Circo exibe as ‘feras da ciência’: uma animada lição de arte e prazer.” O Globo. Rio de Janeiro, Segundo Caderno, 31
de outubro de 1984, p.2.
223
“Voador leva Domingo do Corpo para a Quinta.O Globo. Rio de Janeiro, 19 de março de 1983, p.28.
224
Perfeito Fortuna e Márcio Galvão foram recebidos na época pelo então Presidente José Sarney. “Circo Voador: três
anos na ‘panela da pipoca’ ”. O Globo. Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1985, p.1.
100
da Creche Apareche Fica Bonzão que, ao preço de CR$ 100 diários, sem matrícula ou outro vínculo,
recebia crianças de 4 a 8 anos no período das 8 às 12 horas. O nome Bonzão era uma óbvia alusão ao
patrocínio do Ponto Frio Bonzão que, na época, era considerado um dos grandes responsáveis pela
viabilidade do Circo e a conseqüente transformação da Lapa.
225
Carlos Alberto Baía, então coordenador do projeto, explicava a O Globo de 24 de abril de
1983 que, apesar de possuir um núcleo fixo de 15 profissionais que atuavam na área de educação por
mais de 10 anos, não se tratava de uma creche nos moldes tradicionais, pois não tinha berçário, nem
mamadeiras. A idéia era oferecer para as mães um espaço onde elas pudessem deixar seus filhos
desenvolvendo atividades por uma quantia accessível enquanto realizavam tranqüilamente suas
tarefas pela manhã.
226
A creche era aberta a todos, mas foi criada para atender, principalmente, à população mais
carente que morava nas redondezas da Lapa. Na creche, as crianças cozinhavam, costuravam,
pintavam, brincavam, desenhavam, plantavam, aprendiam a construir seus próprios brinquedos como
também aprendiam sobre higiene e cuidados gerais com o corpo.
A Creche Apareche mudou de coordenador, de equipe, de patrocínio, ficou sem patrocínio,
teve suas atividades reduzidas por falta de verba, continuou aberta mesmo com o Circo fechado,
fechou, reabriu, mas continuou educando dentro de uma filosofia diferente. Nos seus 14 anos de
funcionamento, aulas de pintura com artistas plásticos, escolinhas de circo, oficinas com instrumentos
musicais são exemplos das tantas atividades que foram proporcionadas aos pequenos. Na Creche
Apareche, as crianças tinham uma horta e plantavam e colhiam seu próprio alimento, além de
aprender a prepará-lo. Um trabalho sério e inovador que perdeu seu espaço após o fechamento do
Circo Voador.
227
3 - Investidas do Circo Voador nas comunidades carentes - o projeto favela.
Quando o pessoal do Circo perdeu o espaço do Arpoador, a única solução para continuar
agindo foi um circo sem lona. Como o Circo é as pessoas e não a lona em si, bolou-se rapidamente
um projeto nas favelas e nos conjuntos habitacionais de Ramos e Bonsucesso que se chamou “Circo
Sem Lona”. Ia-se aos locais trocar idéias e produzir com os artistas e pessoas do local. Tudo era
225
“A Lapa Voadora. No antigo ‘antro da malandragem’ surge uma pacata área de lazer.” O Globo. Rio de Janeiro, 10 de
abril de 1983, p.3.
226
“Circo Voador também toma conta das crianças.” O Globo. Rio de Janeiro, Caderno Família, 24 de abril de 1983, p.3.
227
Site: www.circovoador.com.br
101
filmado e depois passavam os vídeos para que todos vissem. Novas idéias iam surgindo e percebeu-se
que bons frutos poderiam ser gerados ali. O pessoal do Circo propôs então fazer animação aos
domingos enquanto se discutia a possibilidade de construir um centro comunitário. Este
importantíssimo trabalho social aconteceu no Morro da Alvorada onde, em contato com a associação
de moradores, as pessoas do Circo colaboraram para a criação de centro comunitário construído em
mutirão.
228
Com o término da construção do centro comunitário, o Governo interveio querendo fazer o
trabalho de saneamento em parte da favela. Com o mesmo orçamento para tal empreitada, o pessoal
do Circo, junto com os moradores, conseguiu fazer mais do que o dobro de saneamento empregando
moradores locais que se encontravam desempregados.
229
Também no Morro da Alvorada, Marcio Galvão, Perfeito Fortuna, os animadores do Circo e o
arquiteto José Carlos Fernandes desenvolveram em mutirão um projeto comunitário com médicos,
psicólogos e professores. Além de entregar o centro comunitário aos moradores, José Carlos
Fernandes e o pessoal do Circo conseguiram “articular” o recebimento de equipamentos para o
ambulatório médico do local que foram entregues à Secretaria de Saúde.
230
O “Projeto Favela”, para crianças e adultos das favelas da Alvorada e do Morro dos Prazeres,
criou, em 1983, um sistema para gerar renda dentro das favelas. Planejou-se, assim, uma central de
produtos feitos pelos moradores dessas comunidades que seriam comerciali-zados no Circo.
Declarava Perfeito Fortuna: “Descobrimos, nas favelas, gente que faz colcha de retalhos, sandálias,
cestos e pretendemos vender esses produtos em benefício dos favelados.”
231
O Circo transformava-se em um elemento mobilizador muito importante ao perceber que é
mais fácil reunir pessoas quando se trabalha em cima do lazer e do prazer. Foi assim que se
produziram hortas, centro comunitário, campo de futebol, saneamento de água e esgoto, fez-se festa
de São Cosme e Damião para crianças de rua
232
, desfile de moda em favela com roupas
228
“Morro dos Prazeres, Santa Teresa: o Circo em seu novo e diferente ‘vôo’.” O Globo. Rio de Janeiro, 1
o
. de maio de
1984, p. 26.
229
Informações tiradas de depoimento de Márcio Calvão em “Perfeito Fortuna e Márcio Calvão: para que as diferenças
dancem juntas.” Correio Braziliense. 14 de abril de 1985, p. 01.
230
“Agora à sombra dos arcos da Lapa, uma ‘usina cultural’.” O Globo. Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1989, p.25.
231
“Com Dominguinhos, o Circo Voador abre os seus folguedos juninos.” O Globo. Rio de Janeiro, 3 de junho de 1983,
p.23.
232
“Circo Voador reúne duas mil crianças no Doce Domingo.” O Globo. Rio de Janeiro, 26 de agosto de 1983, p.10.
102
confeccionadas pelas próprias moradoras
233
, o I Encontro da Mulher da Favela e da Periferia,
idealizado por Benedita da Silva
234
, e tantos outros.
Pouco depois de sua instalação, à sombra dos Arcos da Lapa, o Circo Voador desenvolveu
também um curso de animador cultural dirigido especificamente a lideres e pessoas influentes em
comunidades carentes. Tais cursos eram promovidos em colaboração com a Cehab e o Instituto
Municipal de Arte e Cultura com já vimos.
235
Morro da Providência, Escondidinho no Rio Comprido, Alvorada em Bonsucesso, Prazeres
em Santa Teresa, essas foram algumas das comunidades por onde passou o Circo, semeando alegria,
trabalho e cidadania.
Capítulo IV - O Circo e seus tentáculos: viagens por todo o país e
Perfeito Fortuna: “Eu nunca pensei em ficar pra sempre no Arpoador... E nunca pensei que,
saindo do Arpoador, o Circo morreria. O Circo é uma idéia, e as idéias não morrem, se
transformam.”
236
Na verdade, o Circo saiu do Arpoador para a Lapa, mas não deixou de “voar” para outros
pontos do Brasil e até do exterior. Os tantos artistas e pessoas que formaram o Circo Voador nunca
tiveram um perfil estático, seja no que concerne à arte, seja no que concerne aos locais de
apresentação. Assim, os artistas do Circo voaram por outros ares aonde um circo sem lona poderia
levar a mesma alegria e animação, para praças públicas, colégios, subúrbios e favelas. O Circo
Voador dos Arcos da Lapa era a nave mãe; no entanto, o Circo significava uma solução barata e
inovadora para as necessidades culturais e assim saiu por encontrando outras pessoas que
pensavam como eles. Montou-se lona em Recife e Cabo Frio, assim como o conceito do Circo
Voador foi levado a São Luís, Fortaleza, Maceió, Brasília, Paraty e até mesmo a Guadalajara,
México. [Anexo II, ilustração 11] O Circo quase foi parar também em Angola, na África, e o
Conrado e Nova Iguaçu no Rio de Janeiro.
Mas, afinal, como surgiu a idéia das expedições do Circo Voador? Os artistas e pessoas
envolvidas com arte e com o Circo Voador começaram a encontrar pelas suas viagens muita gente
233
“A moda sobe o morro.” Isto É. São Paulo, 7 de março de 1984, p.57.
234
“Creche do Circo dá boa opção às mães.” Tribuna da Imprensa. 23 de junho de 1983, p. 6.
235
“Agora, à sombra dos arcos da Lapa, uma ‘usina cultural’.” O Globo. Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1989, p.25.
236
“Agora, à sombra dos arcos da Lapa, uma ‘usina cultural’.” O Globo. Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1989, p.25.
103
que pensava como eles e que muitas vezes adotava soluções parecidas para fazer face às carências em
termos culturais, sociais e educacionais da população local. “Esses parentes em outras aldeias”, como
os chamava Perfeito Fortuna, mostraram aos filhos do Circo que eles o estavam sós e assim os
estimularam a plantar sementes pelo Brasil afora.
1 - A Coluna Voadora: “eu não prestes, mas eu te amo”
Enveredar-se pelo Sertão adentro imbuído de um espírito revolucionário para lutar contra as
forças reacionárias e assim poder unir o Norte e o Sul. Não se trata do apelo de Prestes em 1924 e sim
de um convite para integrar-se à ultima invenção do Circo Voador: a Coluna Voadora, que partiu, em
09 de janeiro de 1986, do Rio de Janeiro e levou em três ônibus uma multiplicidade de artistas e
estudantes. A idéia principal era dar aulas, trocar experiências, estimular movimentos e artistas locais
por todo o Brasil e preencher um pouco da carência cultural de certas populações deixada por anos
vazia pelos militares. A Coluna deslocou-se para Vitória, Espírito Santo e depois foi subindo para
Ilhéus, Bahia Petrolina, em Pernambuco, Teresina, no Piauí até alcançar São Luís do Maranhão. A
Coluna era dirigida no início de 1986 por Chacal, Bussunda, Bial, Fernando Lombardi, Ralph,Viana,
Luís Torreão, Márcio Calvão e Perfeito Fortuna.
237
2 - O Circo chega a São Luís do Maranhão.
Pesando 15 toneladas dentre lona, mastros e aparelhagem de som, o Circo chegou ao
Maranhão na barriga de um Hércules da Força Aérea Brasileira no dia 19 de dezembro de 1985.
238
Perfeito Fortuna conta em entrevista que chegou num final de tarde a São Luís e que teve que
descarregar quase que tudo sozinho, ficando com uma dor lombar por duas sema-nas!
239
No dia 15 de janeiro de 1986, exatamente quatro anos depois de sua inauguração no Rio de
Janeiro, foi inaugurada a filial maranhense do Circo com a chegada da caravana Eu Não Prestes Mas
Eu te Amo, que saiu do Rio de Janeiro e chegou até São Luís pelo litoral. Festejando os quatro anos
de vida e luta do Circo Voador, foi lançado o LP “Circo Voador Brasil”, que reuniu trabalhos de
diversos artistas que passaram pelo Circo.
237
“Caravana é inspirada por Prestes.” Folha de São Paulo. São Paulo, 08 de janeiro de 1986, p.39.
238
“Turbulência em terra firme.” Isto É. 05 de março de 1986, p.41.
239
Entrevista concedida em 15 de fevereiro na Fundição Progresso.
104
Dez dias depois de sua chegada, o Circo, no Maranhão, estava com quase todas as suas
atividades em funcionamento. O Circo do Maranhão atuou em duas direções básicas: artística, com
shows musicais, peças de teatro, espetáculos de dança, artes plásticas, deo e cinema, e educativa,
com adultos, crianças da periferia e meninos de rua. A RFF cedeu também dois galpões onde foram
organizadas salas de aulas para dança e teatro, bem como creche, palco, bares e até um cantinho para
horta.
240
Com um apoio de verba de 800 milhões de cruzeiros e protegido sob as asas de um dos filhos
do presidente da República José Sarney, Fernando Sarney, o Circo logo enfrentou um violento
tiroteio cruzado entre políticos e produtores culturais da cidade enciumados com a generosa verba
injetada no projeto. Desavenças políticas à parte, o Circo seguiu adiante, mas deixou para trás a
Estação Voadora, uma velha garagem de trens desativada da Refesa que se tornou um centro cultural
com três mil metros quadrados.
241
3 - A Coluna Voadora chega a Recife.
Em outubro de 1986, Recife ganhou um novo colorido com o pouso de uma lona do Circo
Voador no Cais do Apolo, no bairro Recife, ao lado do poético rio Capibaribe em um terreno de 17
mil metros quadrados cedido pelo Ministério da Fazenda
242
. Com um espaço para mais de duas mil
pessoas, a inauguração da lona contou com show de Wagner Tiso.
243
Além de atrações locais, cursos
e oficinas, a lona de Recife contou também, dentre outros, com a presença de Gal Costa e Guilherme
Arantes.
244
4 - Um outro Circo nasce em Nova Friburgo.
O Circo em Nova Friburgo aterrissou na Praça do Suspiro, próximo ao Centro da cidade. O
responsável pelo Circo Azul, como foi chamado, não foi o pessoal do Circo e sim o grupo Gama, que
atuava na época na cidade serrana havia mais de 17 anos. Tratava-se de um outro pessoal também
ligado ao poder que uma lona de circo tem. À frente do Gama, nhamos um homem com uma
240
“Circo Voador em São Luís já de lona aberta.” O Globo. Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1986, p.06.
241
“Turbulência em terra firme.” Isto É. 05 de março de 1986, p.41.
242
“Voando nas asas do Circo sonhador.” Folha de São Paulo. São Paulo, 15 de outubro de 1986, p.07.
243
“Circo pousa em Recife.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1986, p.6.
244
“Cinco anos do Circo Voador.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1987, p.10.
105
vocação admirável de animador cultural: Júlio César Cavalcanti, que a cidade toda conhecia como
“Jaburu” e que conseguia conciliar de forma prodigiosa seus compromissos de funcionário do Banco
do Brasil com uma espetacular e fervilhante atividade como o verdadeiro dínamo da vida teatral
friburguense.
O sonho do circo existia também para Jaburu, sonho esse que vinha de longe, desde o dia em
que ouviu Dercy Gonçalves falar de uma fantástica lona inflável na Itália. Depois veio o contato com
Perfeito Fortuna e aos poucos o sonho foi se aproximando da realidade, até ser aberto um grande
espaço cultural para um público amplo e carente de cultura e arte.
O Circo Azul foi inaugurado no dia 04 de novembro de 1983 com uma solenidade animada
por uma das mais antigas das muitas bandas de Friburgo, a Euterpe, e também pelo grupo de dança
Nós da Dança, do Rio. Na noite de abertura, quando cerca de 2.000 pessoas comprimiam-se no
espaço concebido para no máximo 1.500, contou-se também com a presença de duas autoridades que
contribuíram para dar ao novo espaço seu impulso inicial: o Presidente do Inacen, Orlando Miranda,
que ofereceu ao grupo todo o material de iluminação e prometeu facilitar a ida a Friburgo de
espetáculos de dança e teatro do Rio de Janeiro; e o Prefeito de Friburgo, que ajudou com material e
mão-de-obra para a instalação do pavilhão.
245
A idéia da Lona Azul era suprir, para esse município rico em tradições culturais mas pobre em
infra-estrutura, a carência de locais destinados a atividades culturais e artísticas, além de dar estímulo
às tradições locais que estão perdendo representatividade e força. A intenção da programação era de
ser equilibrada, com igual destaque para música, teatro, artes plásticas, dança, cinema, folclore, roda
de leitura para crianças, além de cursos e palestras sobre essas expressões da arte e uma feira de troca.
A Lona de Friburgo teve shows do 14 Bis, Oswaldo Montenegro e Escolas de Samba de Friburgo
246
.
5 - O Circo vai à copa do México
No México, no dia 28 de maio de 1986, uma “parada voadora” anunciava ao povo de
Guadalajara a chegada do Circo Voador. Mais tarde, em agosto de 1996, Chacal iria contar ao Jornal
do Brasil:
245
MACHALSKI, Yan. “Em Nova Friburgo, o Circo Azul, sem ser voador, pretende voar alto.” Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro, 18 de novembro de 1983, Caderno B, p.6.
246
Idem, ib.
106
Sim, meus netinhos. Eu vi essa formidável trupe se formar.
247
Dentro da missão impossível
que foi a viagem do Circo Voador ao México para a Copa do Mundo de 1986, eles haviam
avulsos. Fragmentos da Escola Nacional de Circo, na Praça da Bandeira, somados a estilhaços
de dançarinos do Coringa, mixados a atores do Manhas e Manias e à designer da Blitz,
podia dar em algo além do nível do mar. Essa alquimia, que de vez em quando junta pessoas
na hora certa, caprichou na mão e tirou a Intrépida da cartola. A mesma mão maneira, que
tinha nos dado o Circo Voador como uma nave propulsora de vários grupos, nos deu a
Intrépida Trupe como a tradução mais perfeita do lirismo e da loucura, da genialidade e da
ousadia que essa lona alada representa.
248
Sim! O Circo Voador foi para o México e o projeto inicial era de levar 220 artistas brasileiros
dos mais diversos tipos para integrar uma verdadeira caravana da cultura em outro país.
249
É preciso
lembrar que estamos em meados de 1986, apenas dois anos após a abertura militar formalizada. Um
projeto dessa natureza era e foi formidável, visto que materializava, em termos prontamente culturais,
a afirmação da abertura política e a óbvia e tão desejada democracia. Depois de anos de censura e
ditadura, o Brasil iria para outro país, durante uma Copa do Mundo, mostrar um pouco de nossa
cultura, e agora liberdade, para as câmeras de todo o mundo. Tratava-se de uma significante
divulgação da cultura brasileira de grande ressonância internacional. Em vinte anos, não se fazia no
Brasil algo na área de cultura tão importante quanto essa ida ao México de artistas brasileiros. Tal
fato é bastante revelador para a história de nosso país, não por ilustrar uma transição de regime
político, mas principalmente por apontar para as evidentes transformações culturais, sociais e
políticas que viriam a moldar nossa sociedade e cultura a partir dos anos 80. Era, por outro lado, uma
boa ocasião para vender uma boa imagem do Brasil em um contexto de redemocratização e
conseqüente liberdade de expressão.
Mas como surgiu a idéia para essa grandiosa viagem ao México? Perfeito Fortuna, que adora
futebol, logo pensou na idéia de levar a cultura brasileira para a Copa e, assim, mataria dois coelhos
com uma cajadada só: levaria o Circo Voador para o México e poderia assistir à Copa do Mundo.
Para começar, o incansável empreendedor foi visitar o deputado Sarney Filho. Depois, foi ao
Ministério da Cultura e recebeu uma carta de apoio que lhe permitiu que o Itamaraty desse ao projeto
status de missão cultural brasileira. Com a carta em mãos e após pedir empréstimo bancário e vender
o seu carro Fiat por quatro milhões de Cruzeiros, Perfeito Fortuna partiu para o México. Resultado:
conseguiu uma promessa de 800 mil dólares da Coca-Cola mexicana, que divulgaria os eventos
brasileiros nas rádios, jornais e televisão, além de pagar pela hospedagem e traslado dos artistas.
247
A trupe a que Chacal faz aqui referencia é a Intrépida Trupe, que nasceu também no Circo Voador, e pelo que nos
consta, nesta viagem ao México. / CHACAL. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 17 de agosto de 1996.
248
CHACAL. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 17 de agosto de 1996.
249
“Quem vai ao México no Circo Voador.” O Globo. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1986, p. 01.
107
Fortuna também obteve o apoio da Televisa, televisão mexicana que atingia a América Central e os
Estados Unidos e concedeu seis chamadas nacionais por dia e dezesseis em Guadalajara. O Banco do
Brasil financiaria uma série de espetáculos com uma verba de 285 mil dólares. O Itamaraty e a Cacex
se propuseram a pagar por sua vez o som, a iluminação e outras despesas de produção. O ministro da
Indústria e Comércio da época, José Hugo Castello Branco, ofereceu passagens de avião e conseguiu
um Hércules da FAB para levar o equipamento e o pessoal.
250
A cantora brasileira De Kalafe, no
México havia mais de dez anos na época, se apaixonou pelo ideal do Circo Voador e se transformou
em uma espécie de apoio logístico, trabalhando como empresária e conselheira.
251
No dia 29 de maio de 1986, um público pra de eclético superlotou o espaçoso auditório
Benito Juarez em Guadalajara. O dia de estréia e inauguração do Circo Voador no México foi
principalmente para jornalistas e convidados especiais, mas contou também com a presença de
diversos brasileiros e mexicanos que dançaram e cantaram ao som do Samba da Império Serrano:
“Me dá, me dá, me o que é meu, foram vinte anos que alguém comeu...” O show de inauguração
prosseguiu por conta de Milton Nascimento e Wagner Tiso ao piano, que cantaram, acompanhados do
coro do público, Coração de Estudante. Também foram muito bem recebidos e aplaudidos o conjunto
MP4, o cantor e compositor Alceu Valença, que cantou a música “Estação da luz” e o Trio Elétrico
do Armandinho, que incendiou o ginásio.
252
O público de rua deu também um show de simpatia e alegria ao se reunir em frente à Pousada
de Guadalajara, onde estavam hospedados os 170 artistas brasileiros que vieram para se apresentar
durante a Copa. Os mexicanos misturavam batucada brasileira com músicas e letras mexicanas.
253
Tudo parecia ir de vento em poupa, quando, de uma hora pra outra, a Coca-Cola do México retirou o
apoio financeiro prometido e deixou 170 artistas e técnicos sob ameaça de despejo. O Jornal do Brasil
nos explica no dia 06 de junho a situação:
A empresa mexicana havia se comprometido formalmente a pagar US$ 100 mil pela
hospedagem e alimentação de 170 integrantes da caravana do Circo vindos na primeira leva e
de mais 50 que sairão do Brasil no próximo dia 13, além de US$ 43 mil pela montagem
250
CABALLERO, Mara. “Circo vai à copa sem sair do Nordeste.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1986,
p. 8.
251
ADÁRIO, Paulo. “Circo Voador se instala no México.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 03 de junho de
1986, p. 8.
252
“Circo Voador dá show de samba em Guadalajara.” O Globo. Rio de Janeiro, 30 de abril de 1986, p. 25.
253
“Circo Voador dá show de samba em Guadalajara.” O Globo. Rio de Janeiro, 30 de abril de 1986, p. 25.
108
completa de um circo. Havia garantido também toda a publicidade necessária para o sucesso
dos shows programados. Não cumpriu a promessa.
254
Alejandro Gonzáles, diretor de marketing da Coca-Cola mexicana na época, alegava que o
sucesso dos brasileiros havia sido comprometido com a decisão do governador de Jalisco de
transferir, da Avenida Lopez Mateos para o auditório Benito Juarez, nos subúrbios de Guadalajara, a
sede do Circo. O governador alegava, por sua vez, falta de segurança no local inicialmente previsto,
visto que, a Lopez Mateos tornara-se, com a chegada da caravana brasileira, uma espécie de Marquês
de Sapucaí, palco de um carnaval diário que durava até altas horas da madrugada e que havia
presenciado enfrentamentos com a polícia e diversos tipos de brigas e confusão.
255
No dia 09 de junho de 1986, a Coca-Cola do México comunicava formalmente sua saída do
projeto de intercâmbio montado pelo Circo Voador com apoio do governo Sarney. Com a saída da
empresa que bancava boa parte dos custos, incluindo hospedagem, alimentação e publicidade, além
de funcionar como representante legal do Circo Voador no México através de sua coligada
Promovision, a delegação brasileira se viu sem capital nem para bancar a hospedagem.
256
Com a
retirada do patrocínio da Coca-Cola e o fraco movimento da bilheteria dos shows realizados no
distante ginásio Benito Juarez, a situação dos artistas brasileiros no México se tornou quase que
desesperadora. Artistas como Wagner Tiso, Alceu Valença e o MPB-4, as principais estrelas do
projeto, retornaram no dia 10 de junho de 1986, seguindo os passos de Omar do Trio Elétrico e de
Armandinho.
257
No dia 12 de junho de 1986, o jornal O Globo comunicava o encerramento definitivo
das atividades do Circo Voador no distante auditório Benito Juarez.
258
O restante dos artistas do Circo Voador no México teve que esperar o “resgate” feito por dois
aviões rcules da FAB mais ou menos duas semanas depois do fim das atividades no auditório
Benito Juarez. Enquanto isso, tais artistas aproveitaram para se apresentar em outros lugares, mas
principalmente aproveitaram para conhecer um pouco do México.
259
O Brasil desclassificado da
254
ADÁRIO, Paulo. “Circo Voador sem rede no México: Coca-Cola retira o patrocínio.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
Caderno B, 06 de junho de 1986, p. 01.
255
ADÁRIO, Paulo. “Circo Voador sem rede no México: Coca-Cola retira o patrocínio.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
Caderno B, 06 de junho de 1986, p. 01.
256
ADÁRIO, Paulo. “Circo voa mais baixo no México.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 10 de junho de
1986, p. 01.
257
“Circo Voador: o início da aterrissagem forçada.” O Globo. Rio de Janeiro, 11 de junho de 1986, p. 04.
258
Circo Voador tem “Galo Preto” para melhorar a sua sorte no México.O Globo. Rio de Janeiro, 12 de junho de
1986, p. 05.
259
Informações concedidas por Perfeito Fortuna em entrevista no dia 10 de março de 2006, Rio de Janeiro.
109
Copa, o Circo Voador sem patrocínio, só restava aos brasileiros da caravana do Circo voltarem para o
Brasil.
6 - Estação Cabo Frio.
No dia 04 de janeiro de 1995, mais um projeto do Circo Voador sob a produção de Maria
Juçá, agora coordenadora do Circo Voador da Lapa. O Circo Voador montava, desta vez, no sentido
literal da palavra, toda estrutura do Circo na Estação Cabo Frio, inaugurando a maior estrutura
montada fora da “nave mãe”: uma nave central que possuía ainda dois grandes anexos com galeria de
arte, bares, área de estar e jardins que incluíam uma área de recuperação da restinga de Cabo Frio.
Novamente a programação sócio-cultural, com diversos cursos e espetáculos, foi intensa e recebeu
apoio da Prefeitura de Cabo Frio. A programação se estendeu até a cidade de Búzios.
Em Cabo Frio, tivemos um outro recorde de público, que bateu até o recorde de seis mil
pagantes da Lapa no show do The Wailers, com o show de Lulu Santos, que reuniu 7.500
espectadores, além de artistas de todo o Brasil. A filial do Circo Voador permaneceu instalada em
Cabo Frio de dezembro de 1995 até meados de fevereiro de 1996, ministrando cursos variados e
apresentando espetáculos.
260
Apresentaram-se na Estação Cabo Frio Lobão, Gabriel Pensador, Beto
Guedes, Lulu Santos e outros.
5 - O Circo Voador e a Fundição Progresso.
A história da Fundição Progresso remonta ao ano de 1881, quando dois portugueses chamados
Luiz Bernardo de Almeida e Antonio de Almeida Pinho decidiram fundar a Fábrica de Fogões
Progresso, transformada depois em Fundição de Ferros e Outros Metais. O tempo passou, a falência
da fábrica se abateu sobre o local, que acabou por ser desativado em 1967.
261
O espaço voltou a
funcionar até o ano de 1975 como fábrica de artefatos de metal, quando foi desapropriado e passou
para as mãos da Prefeitura do Rio. Funcionou então como barracão de escolas de samba e também
como depósito para material de obras do metrô, para, em 1982, este marco da memória urbana do Rio
de Janeiro, ser ameaçado de demolição pelo prefeito Júlio Coutinho.
262
Foi aí que entraram em cena
Perfeito Fortuna, Márcio Calvão, Maurício Sette e outros.
260
Site: www.circovoador.com.br / Depoimento de Maria Juçá.
261
“Fundição Progresso vira espaço cultural.” O Globo. Rio de Janeiro, 05 de junho de 1988, 1º Caderno, p.47.
262
MARIA, Cleusa. “A Orquestra Tabajara no Circo Voador – Um baile para salvar um marco da memória urbana do
Rio.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18 de março de 1983, Caderno B, p. 7.
110
Perfeito Fortuna:
Três dias depois de conhecer a Fundição, passei por aqui e vi uns caras derrubando tinha
ouvido comentários de que ela seria derrubada, mas achei que ela fosse tombada ou algo
assim. Aí ligamos pra Zoé:
– Vão derrubar a Fundição Progresso. Que papo é esse?
– Ó, não tem jeito, já tentei tudo para não acontecer.
– Vamos comprar essa briga, não podemos deixar.
– Cuidado vocês vão perder o terreno
– Não tem jeito, senão é ridículo. Ganhar o terreno abrindo mão disso é um absurdo!
– Então entra, mas não apareçam muito... – concluiu dona Zoé de Chagas Freitas...
263
A briga pela Fundição Progresso estava declarada e foi briga mesmo. Maurício Sette se
colocou frente ao prédio agarrado nas cordas enquanto um guindaste se decidia a puxar as paredes
para derrubá-las. Foi quando perceberam que os operários estavam trabalhando sem nenhuma
condição de segurança, no escuro e sem capacete. Correram para o Ministério do Trabalho, que fica
relativamente próximo dali, e conseguiram trazer um delegado até a Fundição, que se viu na
obrigação de suspender a demolição por questões de segurança. A batalha, porém, não havia
terminado tão facilmente e a Comlurb trouxe por sua vez operários da Prefeitura que não eram
submetidos à CLT.
A noite caiu, travestis chegavam para tomar seus postos de trabalho, e um monte de gente
importante no orelhão da Lapa, como Cláudio Moacir e Orlando Miranda, ligando para o governador.
Ligaram para muita gente, mas ninguém veio, foi quando Alice Andrada, uma das pessoas
intimamente ligadas ao Circo, ligou para seu avô, Rodrigo de Melo Franco, do Patrimônio Histórico,
que mandou para o local Lúcio Costa. Ao adentrar a construção, Lúcio Costa exclamou: “Realmente
tem que ser conservado. É um palácio de cristal.” Telefonemas por todos os lados, até que, às 22
horas, veio a ordem do governador para interromper a demolição a tempo de não derrubarem a
fachada principal.
Além de conseguir sustar a demolição, o pessoal do Circo iniciou um processo de tombamento
possibilitando a abertura do espaço para um grande centro cultural, que inicialmente tinha a idéia de
ser polivalente, como o Sesc Pompéia, em São Paulo, e o Centro Georges Pompidou, em Paris.
Todavia, no ano de 1979, sob a administração de Isreal Klabin, o Projeto Corredor Cultural já havia
incluído a Fundição Progresso como um dos imóveis do Centro a ser conservado e reabilitado. Como
puderam, três anos depois, tentar colocar abaixo um prédio com evidências de ser um marco para
nossa História?
263
“Olha o Circo pousando no Pasquim.” Pasquim. 25-31 de agosto de 1983, p. 11.
111
Passaram-se cinco anos para o desfecho final da verdadeira novela que foi o resgate da
Fundição Progresso. No dia 12 de março de 1987, em grande festa no próprio Circo, com bolo,
exibição da Intrépida Trupe e ao som do trombone de Raul de Barros, o Prefeito do Rio de Janeiro,
Saturnino Braga, anunciou a cessão de uso por vinte anos do antigo prédio da Fundição Progresso ao
Circo Voador, que apresentara o melhor projeto para a criação de um centro cultural.
264
Perfeito
Fortuna, Márcio Calvão e Mauríco Sette assinaram assim, em 28 de abril de 1987, com a Prefeitura
do Rio o contrato de cessão de uso da Fundição.
265
O projeto audacioso de Cz$ 150 milhões desses
três empreendedores envolvia a construção de cinemas, estúdios de gravação, teatros, galeria de arte,
gráfica, auditório e casa de shows para quatro mil pessoas. O então presidente José Sarney deu grande
impulso ao projeto, ao liberar uma verba de Cz$ 5 milhões através do Fundo de Ação Social da
Seplan (Secretaria de Planejamento) para o início dos trabalhos de restauração do prédio. A Fundação
Pró-Memória também colaborou com Cz$ 2,6 milhões para a restauração da fachada.
266
. Depois
vieram os apoios de empresas como Brahma, Vilmolbrás, Mills, Siderbrás, Petrobras, Shell, White
Martins, Fundação Roberto Marinho, Pepsi
267
e outras, sem falar das verbas do BNDES, que
garantiram a conclusão do projeto.
268
Com o contrato da cessão em mãos, as coisas passaram a mudar e o lado criativo dos
“voadores” se viu perdendo espaço para o lado empresarial, financeiro, capitalista. Desavenças
ideológicas começaram a surgir e parte da diretoria acabou por se afastar, dentre essas pessoas,
Perfeito Fortuna.
É preciso lembrar também que, com o rapa no Arpoador, o Circo herdou o passivo que passou
por sua vez a ser responsabilidade da diretoria da Fundição. Discussões aqui e ali, debates
ideológicos, em 1999, a Fundição estava novamente em dificuldades, com 170 processos na justiça
trabalhista e civil e uma dívida monstruosa com o BNDES, acrescida de 13 anos de juros, boa parte
herança do Circo. Em 1999, Perfeito Fortuna voltou então a dirigir a Fundição e aos poucos
conseguiu que a dívida com o ICATU fosse perdoada, que Conde renovassa a concessão e que Cezar
Maia desse sinal verde para o trabalho.
264
DUMAR, Deborah. “Happy-end na Lapa, cultura com o Circo.” O Globo. Rio de Janeiro, 13 de março de 1987, p. 03.
265
ZACCONE, Orlando, & FREITAS, Armando. “Do Arpoador à Lapa, o picadeiro ganha prédio, vira uma empresa e
lança projeto de Cz$ 150 milhões.” O Globo. Rio de Janeiro, 25 de novembro de 1987, p. 01.
266
Ibid nota 256.
267
TERRA, Karla. “Circo Voador constrói shopping cultural – Na Lapa, Fundição terá reforma com verbas de empresas.”
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1987, p. 48.
268
SÓ, Pedro. “Alarme falso no Circo Voador.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 1992, p.06.
112
A Fundição de fato demorou para ficar pronta e sugou milhões de cruzeiros na época. O fato é
que, hoje, a Fundição Progresso é um dos maiores espaços culturais do Rio de Janeiro, apresentando
grandes atrações nacionais e internacionais.
Com uma filosofia artística contemporânea e arrojada, a Fundição abriga hoje sob seu teto
grupos importantíssimos para o cenário cultural brasileiro, como o Teatro do Anônimo, a Intrépida
Trupe, o Armazém Companhia do Teatro, a Companhia Steven Harper, a Companhia de Dança
Deborah Colker, a Rio Maracatu, a Fica (Fundação Internacional de Capoeira Angola), isso sem falar
na Vídeo Fundição.
Capítulo V - O Circo Voador, espaço da democracia.
Em 1985, o Circo Voador havia se transformado em referência cultural no Rio de Janeiro e
até mesmo no Brasil. A revista Isto É, uma das maiores tiragens do gênero, declarava que o Circo era
“o espaço cultural mais democrático do Rio. a cultura não é tratada como um tema solene que
deve ser regido por especialistas, mas como uma festa que diz respeito a todos”.
269
Um dia depois de sua posse, o ministro Aluísio Pimenta fez questão de visitar o Circo Voador
e ficou completamente aturdido com o que viu no pouco tempo de visita: comedores de fogo,
lutadores de capoeira, fogueira com batata doce assada, malabaristas. A jornalista Ana Maria Bahiana
já havia, no entanto, declarado em O Globo, em 1983:
Não seria justo dizer que ele (o Circo) é um espaço aberto para as manifestações culturais da
cidade – isso seria reduzir seu espectro de ação, sua beleza. Ele é, na verdade, o mais
informal, amplo democrático centro de convívio do Rio. Não importa o que haja no palco do
Circo Voador vai-se a ele como se vai à casa de um amigo, para estar à vontade, para ver
quem se gosta ou encontrar quem se busca, para viver. É um convívio que engloba a semana
inteira, de modos diferentes e que já reuniu mais de 120 mil pessoas, nestes seis meses.
270
Quando o Circo completou seus doze anos de festa, foram dez dias de alegria com intensa
programação e depoimentos apaixonados de artistas consagrados de todo o Brasil. Herbert Viana
começou com apelo poético e que comprova a importância histórica do Circo: “Limpe os pés antes de
269
CASTELLA, José. “Arte por contágio: o ator Perfeito Fortuna multiplica seu Circo Voador. Isto é. São Paulo, 3 de
Julho de 1985, p.43.
270
BAHIANA, Ana Maria. “Voador faz homenagem a Madame Satã.” O Globo. Rio de Janeiro, 22 de abril de 1983, p.
31.
113
entrar nesta lona sagrada.”
271
A homenagem de Lobão não foi menos enfática: “Sem dúvida
nenhuma, em 12 anos de vida, o Circo ocupa um espaço enorme em nossa vida, no nosso coração, na
cidade e no Brasil. Voa circo, voa sempre e parabéns pra você.”
272
Roberto Frejat, líder do Barão
Vermelho, resumiu por sua vez o que fora o Circo para essa geração: “O Circo Voador é o Hyde Park
carioca. Não existe no Brasil palco, tribuna, parlatório, altar ou qualquer outro tipo de lugar mais
democrático, sem preconceitos e anárquico do que ele.”
273
1 - Um espaço coração de mãe que abrangeu todas as formas de arte e expressão cultural.
Lobão usava calças curtas, os Paralamas ainda sonhavam com o sucesso e a Legião estava
longe de virar urbana, quando o Circo Voador ergueu sua lona: o espaço mais democrático da cultura
carioca.
274
Foi, sob esse picadeiro democrático da cultura, que tivemos uma multiplicidade de
manifestações culturais, como o rock, punk, funk, samba, pagode, dança de salão, balé, teatro, circo e
poesia.
De fato, como vimos anteriormente, o Circo ficou conhecido pela sua diversificação tanto em
termos de público, como veremos adiante, quanto pela sua programação e projetos. O Circo foi
realmente um grande catalisador, aglomerador e incentivador das tantas expressões artísticas
existentes em nosso país que encontraram nesse espaço democrático a possibilidade de se expressar.
Entre os muitos episódios inusitados acontecidos durante os shows, tivemos James Taylor que,
ao dar uma canja no Circo, acabou tomando uma latada na cabeça. Cazuza resolveu tirar a calça em
público, ao dar um show. Tiveram ainda Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, juntos,
naquele palco quente e empoeirado, prestigiando o símbolo cultural de uma geração.
275
Como me
explicou certa vez Maria Juçá, se todas as pegadas do Circo Voador ainda estivessem marcadas,
teríamos a comprovação de um espaço sócio-cultural por onde passou talvez a maior diversidade
social e artística do nosso país.
276
Tivemos além do rock, da música punk, do forró, dos campeonatos de skate, roda de capoeira,
dos encontros sobre comida natural, do trombone de Raul de Barros, o Jongo da Serrinha, o Império
271
“Circo festeja 12 anos.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 5 de outubro de 1994, p. 07.
272
Idem, Ib.
273
Idem, Ib.
274
“O picadeiro democrático da cultura.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 19 de novembro de 1996,
p.22.
275
Site: www.circovoador.com.br
276
Site: www.circovoador.com.br / Depoimento de Maria Juçá.
114
Serrano, homenagem a Madame Satã com um desfile de miss travesti, exposição de cartunistas,
grafiteiros juntos com poetas, seminários de todo tipo, oficina de franzine, sede durante a Eco 92 do
Parlamento Terra, lançamento de revista em quadrinhos, ateliê de pintura, exposição de fotografias e,
é claro, direito a banho de mangueira aos domingos. Se quisermos citar nomes para ilustrar essa casa
de promoção da cultura e da cidadania, a lista não acabará nunca, mas aí vão alguns que fizeram a
história da nossa cultura e que passaram ou “nasceram” no Circo: Paulo Moura, Blitz, Caetano
Veloso, Martinho da Vila, Ângela Rô, Ivone Lara, Tim Maia, Nelson Cavaquinho, Cazuza, Léo
Jaime, Lenine, Raimundos, Lobão, Beto Guedes, Erasmo Carlos, Millôr Fernandes, Gilberto Gil,
Cauby Peixoto, Altamiro Carrilho, Zezé Mota, Quarteto em Cy, Chacal, Planet Hemp, Celso Blues
Boy, Bussunda, Regina Casé, Cidinha Campos etc., etc., etc.
2 - A diversificação de seu público: uma prova de democracia e cidadania.
O Circo Voador foi, durante um bom tempo, a verdadeira “Meca” do Rio de Janeiro, o local
por excelência, “onde as diferenças dançam juntas”.
277
Estilos diferentes, modos de vida
contraditórios, realidades e costumes díspares, o Circo conseguiu juntar sob sua lona a Zona Sul e a
Zona Norte, a Barra da Tijuca e Niterói, os Punks e os surfistas, tudo isso na velha Lapa, antes
abandonada e desprezada.
O Circo foi um dos poucos lugares que reuniu, em uma única noite sob sua lona, motoqueiros,
surfistas hippies velhos, blacks, intelectuais e punks. Foi num sábado de março de 1983, quando se
deu a “Primeira Noite Punk do Rio de Janeiro”. Nas palavras de Ana Maria Bahiana:
Nunca as diferenças dançaram tão juntas como na noite de sábado. Nunca tantas diferenças
estiveram juntas. Nunca se dançou tanto. Lotado, o Circo provou, mais uma vez, que é um dos
mais importantes espaços de convívio e animação cultural da cidade. Lado a lado, das 21
horas às 5 da manhã de domingo, conviveram, dançaram, cantaram, namoraram, comeram
milho, acarajé e pipoca, beberam café e cerveja, quase todos os espécimes da população
jovem da cidade. Dos donos da noite um núcleo reduzido, mas unido, de uns cem punks
autênticos, muitos vindos de São Paulo em caravana, com pouquíssimo dinheiro, acampados
no próprio Circo a seus antagonistas históricos, os hippies velhos, de longos cabelos, olhar
beatífico, batas indianas e colares Rajneesh ao pescoço. De maduros intelectuais de cabeça
grisalha deleitados por poderem, enfim, dançar ao som de slogans como ‘a revolução está
nas nossas mãos’ a surfistas de camisas coloridas. De motoqueiros a blacks, de fãs do
Rolling Stones a fãs de Fagner (a julgar pelo desfile de camisetas). Assustados, de início os
punks, estranhando o ambiente, fora de seu próprio meio, os outros, com os punks todos,
afinal, se deixaram levar pela violenta catarse provocada pelo som adrenalínico que jorrava do
277
Frase de Perfeito Fortuna.
115
palco. No final da madrugada, um velho jornalista calejado por dezenas de anos e centenas de
shows de todo o tipo admitia que a emoção lhe trouxera, muitas vezes, lágrimas aos olhos.
É a coisa mais bonita que vi em minha vida disse. Nunca vi tanta sinceridade e
convicção.
278
Esse foi apenas um dos tantos encontros democráticos que o Circo proporcionou ao cidadão.
Passaram, de fato, pelo Circo milhares de pessoas, de todas as formações e camadas sociais, vindas de
diversos bairros do Rio de Janeiro, do Brasil e até do exterior. Congregador de diferenças, a
multiplicidade e mistura de seu público nos revela talvez um dos aspectos mais importantes da
democracia: o convívio harmonioso das diferenças. Maria Juçá escreveu uma vez:
A pista do Circo Voador se ficasse marcada de pegadas seria o documento mais fiel do
espírito democrático que reinou sob a lona. Ali poderiam ser vistas as marcas fortes dos
coturnos punks, o pisar marcado de ensaios de teatro e balés, os solados gastos de
trabalhadores em campanha salarial, os chinelos pacíficos dos hippies, os passos ritmados de
gafieira, os pés descalços dos capoeiristas e milhares de outra pegadas de pessoas que estão
muito além de meros espectadores.
279
Ainda sob esse prisma do Circo Voador como instituição cultural democrática das décadas de
80 e 90, Maria Juçá continuou, dizendo:
Não importa se aplaudindo, vaiando, pulando, gritando, rezando... amando ou odiando. Quem
um dia pisou na pista do Circo Voador pode se considerar um dos milhares de protagonistas da
história cultural do Rio de Janeiro, participante ativo e revolucionário da formação de boa parte
da identidade cultural carioca.
280
3 - Um discurso político diferente.
“A gente não é partido, a gente é inteiro.”
Perfeito Fortuna
O que é política? Uma ideologia, um discurso que se esgota e se limita no Senado? Claro que
não. Política é algo que se esboça dentro do corpo social, transformando-se, demandando, fazendo, de
uma forma ou de outra, apelos e reivindicações permanentes. Política é algo vivo, pois decorre
278
BAHIANA, Ana Maria. “Muita emoção, lágrimas: um massacre sonoro reúne motoqueiros, surfistas, ‘hippies’ velhos,
‘blacks’, intelectuais.” O Globo. Rio de Janeiro, 29 de março de 1983, p. 25.
279
Site: www.circovoador.com.br
280
Site: www.circovoador.com.br
116
diretamente do discurso, do que os gregos denominavam de Àgora, de Polis. A Polis se transformou,
é claro, e a política trouxe momentos aterrorizadores para a nossa história, como foi o caso do
nazismo. Mas, como sabemos, o poder toma diversas formas e, por conseguinte cria suas próprias
possibilidades e facetas fora do bojo do Estado, como defende Foucault. Intelectuais à parte, o fato é
que o Circo agiu de forma política em nossa sociedade e muitas vezes de uma forma totalmente
inovadora.
O pessoal do Circo não tinha nessa época um projeto político, uma ideologia partidária, não
pretendia catequizar ninguém, nem estava ligado por regras ou determinações ao Ministério da
Cultura. Para o pessoal do Circo, não havia uma receita cultural, pois cada caso é diferente e cada
problemática pode demandar caminhos e opções diferentes. O Circo era assim um espaço onde se
podiam fazer reivindicações políticas de uma forma diferente, inovadora e ao mesmo tempo
chamando atenção da mídia, da população e das autoridades.
Em um país com crises cíclicas, quase permanentes, o desperdício parece uma constante.
Contradição, paradoxo ou falta de política? No segundo semestre de 1983, chegou ao Circo a notícia
de que os produtores de banana do Sana estavam com sua produção encalhada, pois os empresários
que vendiam o quilo da banana a Cr$ 250,00 no mercado não queriam pagar os Cr$ 15,00 o quilo
pedidos pelos produtores. O jeito foi fazer o evento Banana Pra Dar e Vender durante as férias de
julho, em que, misturando rock, gafieira e banana, foram distribuídos 15 mil quilos de banana ao
público
281
, uma forma de conciliar o espírito circense e chamar a atenção para as autoridades sobre o
desperdício em época de crise de um produto natural abundante porém caro nas feiras livres e
supermercados.
O Circo desenvolveu, ainda, trabalho com meninos de rua. No dia 3 de julho de 1985, a
Revista Isto É declarava que, das 7 às 9 horas da manhã, em troca de uma rápida limpeza no Circo,
cerca de 50 menores abandonados ganhavam ca da manhã, tomavam banho, faziam ginástica e
aprendiam a arte das ruas com faquires, comedores de fogo, saltadores, mágicos.
282
Podemos citar ainda alguns eventos que tinham suas bilheterias revertidas para obras sociais,
como foi o caso do evento SOS Manchete, com renda revertida aos 1.300 profissionais com
281
SCHILD, Susana. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 1º de julho de 1983, p. 5.
282
CASTELLO, José. “Arte por contágio; o ator Perfeito Fortuna multiplica seu Circo Voador”. Isto É. São Paulo, 3 de
julho de 1985, p.43
117
pagamento atrasado, e do evento Fome de Rock, promovido pela Campanha Contra a Fome na
“Semana de Arte contra a miséria e pela vida”, com renda revertida à instituição.
283
Tivemos ainda a festa do Dia do Músico, em fevereiro de 1994, que pretendia agregar a
categoria tão sofrida e desunida, além de um encontro de artistas no Circo, em janeiro de 1995, que
manifestavam seu descontentamento para com o Ecad, que, além de ser acusado pelos artistas de não
repassar os direitos de autoria, arrecadava na época de 5 a 7% das bilheterias do shows mesmo de
bandas desconhecidas que não tinham nem editora, nem disco gravado.
284
Em março de 1995, parlamentares do PT e PPS, com apoio do Sindicato dos Médicos, do
Ibase e do Iser, lançaram na Assembléia Legislativa campanha pela descriminalização do uso de
drogas, para que o usuário deixe de ser taxado de criminoso. Foi novamente sob a lona do Circo que a
discussão sobre a descriminalização do usuário de drogas também encontrou espaço para se reunir
com festa e debates.
285
A campanha pretendia, durante tais eventos, recolher um milhão de assinaturas
para serem enviadas ao Congresso Nacional, pedindo a legalização da maconha e a descriminalização
do usuário.
286
Espaço para se discutir o uso de drogas, o uso da camisinha, a Aids, feira de trocas, economia
paralela, direitos de certas classes de profissionais, consumo de produtos naturais, saúde, o Circo não
tinha partido político, mas foi uma das mais importantes “agora” que o Rio de Janeiro teve a partir do
período de abertura.
4 - O Circo e o movimento das “Diretas Já”.
Nascido três anos antes do grande acontecimento das “Diretas Já”, na Candelária, o Circo
Voador foi sempre palco da democracia, uma instituição sócio-cultural que apoiou a liberdade e o
respeito às diferenças.
No dia 16 de fevereiro de 1984, aconteceu a grande manifestação do comício “Diretas Já”, que
reuniu uma multidão no Centro do Rio de Janeiro. A manifestação começou na Candelária e contou,
após a passeata, com um grande show promovido no Circo Voador pelo Sindicato dos Jornalistas.
287
283
Site: www.circovoador.com.br
284
Depoimento de Maria Juçá em BARROS LUIZ, André. “Artistas entram na briga.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
caderno B, 12 de janeiro de 1995, p. 57.
285
“Projeto pelo usuário de drogas tem apoio.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18 de março de 1995, p.7.
286
BARREIROS, Edmundo. “Criação nas nuvens.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 18 de março de 1995, p.
58.
287
Site: www.circovoador.com.br
118
A festa promovida no Circo se chamava Mamãe Eu Quero Votar e tinha como subtítulo I Grito de
Carnaval das Diretas.
288
O evento contaria com a participação da bateria da Mangueira, do grupo
MPB4, de Ze Motta, Gilberto Gil, Lucinha Lins, Leci Brandão, dentre outros. O cartaz bem-
humorado da festa tinha à direita um bebê chorando de boca arreganhada, segurando uma urna
[Anexo II, ilustração 13]. O Jornal do Brasil do dia 12 de fevereiro de 1984 nos falava do estímulo
direto desta festa do Circo ao ato de votar para presidente, ato esse que, para muitos jovens, e até para
muitos adultos, era desconhecido: “Na entrada, todos receberão cédulas para votar secreta e
diretamente no candidato de sua preferência para a presidência da República.”
289
Conta-nos também que a renda do evento iria ser revertida para o Comitê Pró Diretas, que
tinha um extenso plano de atividades até a votação da emenda que restabeleceria a eleição direta para
presidente da República, em abril.
290
Quase cinco anos mais tarde, em 1989, quando os jovens passariam a votar aos 16 anos e o
Circo Voador festejaria seus cinco anos de vida, o Circo repetiu a dose organizando uma eleição
direta com distribuição de cédulas eleitorais na porta de entrada, onde os jovens votariam em coisas
tão díspares quanto a presidência da República e a melhor banda de rock do mundo.
291
Pouco menos de um ano mais tarde do grande evento das “Diretas Já”, o evento Tancredance
festejou no Circo a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Para alguns, se tratou da maior
comemoração da vitória de Tancredo, do qual participaram novamente Caetano Veloso, Chico
Buarque, Bete Carvalho e o estrangeiro James Taylor.
292
Perfeito Fortuna chegou a anunciar o fim do Circo quando ele completou dez anos. Perfeito
lembrou: “O Tim Maia foi me dizer que eu não podia fechar, que ele (o Circo) não pertencia a
mim, mas ao povo.”
293
Tal fala ilustra bem no que o Circo Voador havia se tornado para a sociedade,
uma instituição com um massivo envolvimento sócio-cultural no processo de redemocratização de
nosso país.
288
“Baile no Circo Voador terá urna para eleições diretas.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Carnaval, 12 de
fevereiro de 1984, p. 3.
289
Idem, Ib.
290
Idem, Ib.
291
“Circo faz sete anos.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 09 de janeiro de 1989, p. 5, & MOCARZEL,
Evaldo. “Chacal, no sétimo aniversário do Circo Voador.O Estado de São Paulo. São Paulo, Caderno 2, 05 de janeiro de
1989, p. 1.
292
Site: www.circovoador.com.br
293
“O picadeiro democrático da cultura.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 19 de novembro de 1996,
p.22.
119
Capítulo VI - Um novo Circo abre suas asas.
“O filho nasceu, você o ama,
cuida de suas relações até certo
ponto. Mas ele se torna independente.
E, ao mesmo tempo em que ele te abandona,
você também o abandona.”
Márcio Calvão.
O Circo Voador, em meados de 1986, havia voado por boa parte de nosso país e fora até o
México levando a arte e a cultura brasileiras. Para resumir, em termos de números, o Circo havia
recebido sob sua lona, até 1987, uma média de 1,5 milhão de pessoas
294
.
Perfeito Fortuna e Márcio Calvão aprenderam e mudaram muito com o Circo Voador e, em
1986, ambos estavam muito mais envolvidos com as estações do Circo espalhadas pelos estados
brasileiros. Muita coisa havia mudado sob a Lona e Perfeito e Calvão foram saindo aos poucos para
dar espaço a uma nova geração de jovens de vinte e poucos anos que passaram a comandar a festa.
Com a cabeça bem mudada e passando mais para empresários do que para animadores culturais,
Perfeito (que cortara o cabelo e agora anda com pasta de couro e sapato bico fino) e Calvão seguiram
assim outros rumos “sem perder de vista” a maravilhosa Lona Azul.
O Circo da Lapa, a partir de 1986, vinha por sua vez sofrendo um processo de esvaziamento,
pelo menos como centro gerador de uma cultura de vanguarda, e era preciso repensar o Circo que
agora não tinha mais o apoio direto dos grandes grupos de rock que ali nasceram e que agora
tinham se comercializado e chegavam ao Canecão e às gravadoras multinacionais.
295
O Circo havia
mudado muito em relação à sua idéia inicial e refletia as tendências do Rio e do Brasil em termos de
arte e cultura. A nova geração que falava de um esvaziamento não do Circo, mas da cidade em
termos de arte e criação, não estava preocupada, no entanto, em gerar um novo movimento de
vanguarda e sim, abrir as portas do Circo para a nova geração de bandas e para os artistas da lapa
como um todo.
294
Balada do hippie que cortou o cabelo e ficou rico. Status. Fevereiro de 1987, p.53 e 54.
295
“Circo Voador – mudança de papéis.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1986, p. 5.
120
Capítulo VII - O processo de fechamento do Circo Voador.
O Circo Voador, apesar dos seus inúmeros serviços prestados à comunidade, sempre foi
apontado pelas autoridades como uma instituição causadora de certos problemas. O primeiro entre
esses problemas era no tocante à questão do som alto, visto que o Circo Voador nunca apresentou
nenhum tratamento acústico; o som alto dos shows irradiava pelos arredores.
No dia 19 de maio de 1995, o caderno Cidade do Jornal do Brasil publicava uma nota nos
informando que, depois de ter recebido uma série de abaixo-assinados de moradores vizinhos ao
Circo reclamando do excessivo barulho provocado pelos shows ali promovidos de quarta a domingo,
o prefeito César Maia determinou à Secretária Municipal de Cultura, Elena Severo, que estabelecesse
um acordo com a administração do Circo Voador. No documento dirigido ao Circo, o horário de
funcionamento da casa de espetáculos deveria ser alterado, no sentido de que fosse respeitada a lei do
silêncio. Sendo assim, o Circo Voador só funcionaria até as 22 horas.
296
No mesmo dia 19, Maria Juçá, diretora do Circo Voador, declarava ao Jornal do Brasil que,
caso o prefeito César Maia resolvesse cumprir a lei do silêncio, a casa de espetáculos não teria mais
condições de funcionar. Desabafava Maria Juçá: “Essa idéia é totalmente inviável, não podemos
mudar uma tradição de 13 anos de um dia para o outro.”
297
De fato, Maria Juçá tinha toda razão, visto que o Circo Voador havia se tornado uma
instituição cultural, ícone do movimento social das décadas de 80 e 90 e, desde sua instalação na
Lapa, tinha a tradição de ser uma casa noturna . No entanto, o prefeito da época, César Maia,
retrucava: “Os moradores que reclamam do baralho provocado pelos shows estão com toda a
razão.”
298
O impasse do Circo Voador parecia fadar o seu destino. Destino do local onde nasceram
grandes talentos de nossa música, como Ed Mota, Cazuza, Cássia Eller e por onde passou
praticamente toda a geração 80 do Rock Brasil. A direção do Circo Voador tentou solucionar o
problema, apresentando um projeto que visava a virar o palco da casa para os Arcos da Lapa,
diminuindo assim a reverberação do som nas ruas residenciais próximas. No entanto, tal projeto
entregue pessoalmente pela diretora do Circo, Maria Juçá, à secretária estadual de Cultura, Elena
296
“Lei do silêncio no Circo Voador.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 19 de maio de 1995, p.18.
297
“Circo Voador em perigo.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 20 de maio de 1995, p. 22.
298
Idem, Ib.
121
Severo, se mostrava inviável na execução, pois era uma obra orçada em pelo menos R$ 400 mil na
época, custo alto demais para que o Circo arcasse sozinho.
Para outros, o Circo Voador era uma instalação que apresentava riscos de incêndio e, por tal
razão, havia fechado algumas vezes. Outros sublinhavam que a casa noturna era sinônimo de
“baderna”. Mas não se pode querer que um local de público jovem seja necessariamente um
“santuário”. O Circo Voador funcionou durante muitos anos e não tivemos notícias nas nossas
pesquisas de incidente realmente violento. É claro que, em alguns shows como de punk-rock, que têm
uma característica agressiva em seu estilo, ocorriam certas confusões, mas nada que parecesse
“baderna”, muito menos violência; era mais a manifestação de uma característica comportamental de
tal tribo, assim como o Maracanã, um local de aglomeração de pessoas, onde as emoções exaltadas
podem ter levado a ser considerado, em determinadas situações, como um local violento.
No entanto, é preciso compreender as características comportamentais das pessoas que
freqüentam determinados locais. O Maracanã é um grande ícone de nosso país e nunca se cogitou
fechá-lo por nenhum incidente violento. De qualquer forma, acredito que, após sublinharmos os
diversos aspectos sociais e culturais do Circo Voador, qualquer pessoa com certo discernimento
social, não o classificaria como local de “baderna”, muito menos violento.
O Circo Voador, como vimos anteriormente, era um local democrático na sua essência. É
neste sentido que, na noite de 16 de novembro de 1996, a loja de CDs e artigos para skate, Skate Bone
Yard, festejava seu aniversário promovendo a Blood Fest com a participação das bandas Ratos do
Porão e Garotos Podres. Tratava-se de um festival supostamente punk; e punk que é punk é
anarquista, é contra o governo, o racismo, o sexismo, o fascismo e tantos outros ismos. Sendo assim,
odeia em primeira instância o governo, seja lá qual for. Resulta que, nesta noite, uma noite de festival
de música punk e, por conseguinte, de público punk, um grupo de correligionários do PFL chegou ao
Circo com uma banda tocando marchinhas de carnaval e bradando bandeiras do “25, César Maia é
Conde”. As eleições para a Prefeitura Municipal haviam se passado na véspera e, graças ao inovador
voto eletrônico, a mídia já havia declarado Luís Paulo Conde o novo prefeito.
O fato é que o prefeito eleito Luís Paulo Conde, ao chegar ao Circo Voador, onde estava
programada uma festa para sua vitória nas eleições, acabou sendo vaiado e praticamente expulso do
Circo Voador pelo público punk. Dois dias depois, 18 de novembro, o secretário municipal de
Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia, Paulo Mauricio Castelo Branco, assinou a
cassação do alvará de funcionamento do Circo Voador, baseado em denúncias de perturbação da
122
ordem pública. A Secretaria Municipal do Meio Ambiente havia recebido, alguns dias antes, um
abaixo-assinado com 340 assinaturas, protestando contra o barulho dos shows que chegava a 81,6
decibéis.
299
No entanto, apesar de reclamar do barulho, muitos moradores não queriam o fechamento
da casa. Dizia o fundador da Associação de Moradores da Lapa, Francisco de Assis, de 64 anos:
“Reclamamos do som alto, sim, mas queremos que a prefeitura faça algo para manter o
funcionamento do local sem tirar a nossa paz.”
300
Ainda no caderno Cidade do Jornal do Brasil do dia 19 de novembro de 1996, um outro artigo
dizia em suas linhas:
O prefeito César Maia vai enfrentar a ira de artistas de peso se resolver mesmo ir adiante com a
idéia de fechar o Circo Voador. o porque foi que surgiu quase toda uma geração da
música brasileira, mas também porque, para muitos, trata-se da única casa de shows
verdadeiramente democrática no Rio.
301
Ainda sobre o tom de estarrecimento diante do provável fechamento da casa, o guitarrista da
banda Legião Urbana, Dado Villa Lobos, declarava na época ao Jornal do Brasil: “Acho uma tragédia
o César Maia acabar com um espaço como Circo, numa cidade onde já há tão poucos lugares para se
tocar. Quanto ao incidente com o Luís Paulo Conde, houve um erro da assessoria. Ele estava no lugar
errado, na hora errada.”
302
No que toca ao fato de Conde estar no lugar errado, na hora errada, Maria Juçá, que então
administrava o Circo Voador, sabendo da visita de Luís Paulo Conde ao local, afirmou tê-lo avisado
com antecedência sobre público daquele evento, dizendo que não se tratava propriamente de “um
show de Ray Coniff”.
303
Em entrevistas aos jornais, César Maia se referia ao Circo Voador como um “suco de urina”,
onde se concentravam homossexuais agressivos, e referia-se aos punks como fascistas. Parece
realmente piada. No entanto, trata-se de um fato histórico, acontecido, e, assim, devemos nos
299
“César manda fechar Circo; casa de shows tem alvará caçado após confusão entre Conde e punks.” Jornal do Brasil.
Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 19 de novembro de 1996, p.21.
300
Idem, Ib.
301
“Artistas defendem o Circo Voador; decisão de prefeito pode acabar com berço musical de toda uma geração.” Jornal
do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 19 de novembro de 1996, p. 22.
302
Idem, Ib.
303
Site: www.p@ratodos-geral.com.br (em 12/06/06).
123
perguntar, como, aliás, se perguntou boa parte da mídia e dos artistas: “mas afinal, o que o Luís Paulo
Conde foi fazer num ‘suco de urina’ em meio a um festival de música punk?”
304
No mesmo dia 19, em que o Jornal do Brasil consagrava boa parte do caderno Cidade ao Circo
Voador, 1.500 pessoas, entre elas astros do rock e da música em geral, participaram de uma grande
manifestação. Informa-nos o Jornal do Brasil do dia 20 do mesmo mês que, com a chegada de um
oficial de justiça, os 21 diretores do Circo Voador e Perfeito Fortuna, que possuía as chaves do local,
estimulados pela multidão em ritmo de revolta popular, acabaram decidindo desafiar a decisão
judicial e entraram no Circo Voador, que havia sido, como visto, fechado pela prefeitura. Começou
assim um ato público de protesto que contou com a participação de artistas como B Negão, na época
do grupo Planet Hemp; Marcelo Yuka, do Rappa; todos os integrantes do Cidade Negra, do Barão
Vermelho; o deputado Carlos Minc do PT, o candidato pelo PT à prefeitura do Rio derrotado, Chico
Alencar, e os vereadores petistas Jorge Bittar e Eliomar Coelho.
305
Em meio à manifestação, que se concentrava agora dentro do Circo, o poeta Chico Chaves,
revoltado com o fechamento do Circo Voador, pediu demissão da Comissão Municipal de Cultura.
Por sua vez, o músico Yuka, do Rappa, lembrou-nos que a história do Circo Voador não poderia ser
apagada por decretos:
O Circo faz parte da memória da juventude do Brasil. Toda vez em que alguém passa aqui em
frente, sempre se lembra de um grande show a que já assistiu. Acabar com o Circo é tirar a nossa
identidade. Ele é o verdadeiro quilombo cultural dessa cidade.
306
Dois dias após o grande protesto popular no Circo Voador, o ainda prefeito César Maia
declarava ao Jornal do Brasil que não reabriria o Circo Voador, ameaçando ir à justiça para mantê-lo
fechado. Num primeiro instante, a instituição receberia multas caso os diretores insistissem em
mantê-la funcionando; passadas as multas, o prefeito ameaçava pedir apoio à guarda municipal ou
entrar na justiça para garantir o fechamento da casa de espetáculos.
307
304
Site: www.p@ratodos-geral.com.br (em 12/06/06) / “Prefeito não reabrirá o Circo Voador; César acusa casa de
espetáculo de ser local de baderna, drogas e homossexuais e ameaça ir à justiça para mantê-la fechada.” Jornal do Brasil.
Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 21 de novembro de 1996, p.26.
305
“Artistas desafiam justiça e abrem Circo; cerca de mil e 500 pessoas, entre elas astros do rock, participaram da
manifestação.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 20 de novembro de 1996, p. 24.
306
Idem, Ib.
307
“Prefeito não reabrirá o Circo Voador; César acusa casa de espetáculo de ser local de baderna, drogas e homossexuais e
ameaça ir à justiça para mantê-la fechada.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Cidade, 21 de novembro de 1996,
p.26.
124
O fato é que o Circo Voador foi realmente fechado. Assim, todas as suas funções também
deixaram de existir, como a Creche Apareche, que atendia a mais de 80 crianças carentes de toda a
região. O Circo Voador empregava diretamente cerca de 300 pessoas,
308
movimentava a economia,
agitando o mercado nacional da música, ao lançar bandas que estouravam os recordes de LPs
vendidos, gerando assim impostos, empregos indiretos, além de irradiar a nova cultura nacional para
todo o país, sem esquecer de firmar as tradições.
Capítulo VIII - As Lonas Culturais no Rio de Janeiro.
Em 1985, no dia 11 de junho, o cartunista Ziraldo Alves Pinto, ao tomar posse na presidência
de umas das instituições culturais e artísticas mais significativas do país, a Funarte, demonstrou a
importância do Circo Voador e de seus vôos ousados pelo país alegando serem esses realmente uma
boa alternativa para a política cultural do país. Ziraldo apresentava desta forma sua fórmula para a
política cultural da Nova República: encher o país de circos voadores.
309
Foi talvez seguindo a opinião de Ziraldo e percebendo a importância do Circo Voador, não
como instituição cultural, mas também como canal aberto para a transformação social, que o poder
público lançou o projeto lonas culturais que é um dos mais importantes projetos em termos de cultura
e integração social na cidade do Rio de Janeiro. Desde a criação da primeira Lona Cultural, Elza
Osborne, em Campo Grande, os subúrbios e as regiões periféricas do Rio de Janeiro ganharam uma
nova e qualificada alternativa de lazer e cultura, instrumentos tão necessários para a cidadania.
1 - A gênese das lonas culturais: o Teatro de Arena
Nos anos 50, um grupo de jovens, entre eles Rogério Fróes, Regina Pierini, Wilson Dray,
Zelia Moraes, J. Thomé, Dinear V. Plaza, Carlos Branco e outros, liderados por Herculano Leal
Carneiro, criaram o “Teatro Rural do Estudante”. A engenheira Drª. Elza Pinho Osborne ao conhecer
o trabalho desses jovens ficou maravilhada com o talento do grupo e resolveu presenteá-los com a
construção de um teatro de arena, o qual mais tarde merecidamente ganhou seu nome. De fato o
308
Site: www.circovoador.com.br / Depoimento da Maria Juçá.
309
CASTELLA, José. Arte por contágio; o ator Perfeito Fortuna multiplica seu Circo Voador. Isto é. 3 de Julho de
1985. P.43.
125
grupo era muito talentoso e ao participar do I Festival Nacional de Teatro Amador em Recife,
Pernambuco, dentre os onze prêmios disputados, trouxe para Campo Grande nove, com a peça “Zé do
Pato”, escrita pela própria Drª. Elza Osborne.
O lançamento da “pedra fundamental” para a construção do Teatro de Arena foi feito em 1956
pelo Dr. Juscelino Kubitschek, então Presidente da República. O teatro por sua vez foi fundado
somente em 1958. Entre as personalidades presentes, estavam a Primeira Ministra da Guatemala e o
então Prefeito, Negrão de Lima.
Devemos assim a Drª. Elza Osborne e ao Herculano Carneiro a construção do Teatro de Arena
Elza Osborne, inaugurado em 11 de janeiro de 1958. No entanto, o Teatro de Arena ficou por muitos
anos praticamente desativado, com tentativas aqui e acolá, para reerguê lo. Porém com a nova
administração sob o comando de Regina Pierini e Ives Macena, mostrou-se fundamental a
necessidade de uma cobertura para o espaço e assim lançou-se, em 1986 (justamente ano que o Circo
Voador está em seu aspe), a campanha: “Cubra o Arena e descubra nossa Arte”. Por longos anos, Ives
Macena apresentou para inúmeras empresas seu projeto, em prol de conseguir a doação de uma lona
de circo para o Teatro de Arena, não conseguindo no entanto a cobertura.
Muito tempo depois, com o notável empenho de Ricardo Macieira, depois Secretário de
Cultura do Rio de Janeiro, foi criado o projeto para ocupação das lonas das ONGs utilizadas na ECO
92. Em 1993, o Teatro de Arena recebeu assim do digníssimo Prefeito na época, Dr. César Maia, a
doação da lona para Campo Grande, que contou também com a colaboração de Fabio Ferreira, ex-
Presidente da RioArte. O Teatro de Arena, portanto, foi o pioneiro nesse empreendimento que deu
certo e se tornou o projeto Lonas culturais” hoje reconhecido pelo Mercosul e ainda premiado no
exterior como projeto sócio-cultural.
2 - As lonas culturais do Rio de Janeiro
2.1 A lona Elza Osborne.
Com vimos acima, a história da primeira lona cultural do Rio de Janeiro se confunde com a
própria história do teatro brasileiro. Na década de 50, através do ideal de jovens estudantes,
preocupados com a falta de espaços para suas manifestações culturais foi criada assim a Arena
Cultural Elza Osborne, em Campo Grande, que nascia por sua vez justamente na mesma época em
126
que se criava em São Paulo, o Teatro de Arena, onde jovens atores e dramaturgos conseguiam
diversas oportunidades, como foi o caso de Gianfrancesco Guarnieri com a peça "Eles Não Usam
Black-Tie". Foi nesse processo que em janeiro de 1958, em Campo Grande – Rio de Janeiro,
inaugurava-se o Teatro de Arena com formato originalmente "grego" que mais tarde viria a chamar-se
Teatro de Arena Elza Osborne.
Em 1986, Regina Pierini e Ives Macena assumiram sua direção, com o firme propósito de
tornar conhecido o TRE, Teatro Rural do Estudante, no cenário brasileiro. Após muitos anos de luta,
finalmente em 1993 eles realizaram seu sonho através de doação do Prefeito César Maia, em sua
primeira gestão, de uma das tendas que abrigaram a ECO 92, no Aterro do Flamengo, que após a
realização daquele encontro, foram doadas pelo governo inglês ao Município do Rio de Janeiro.
Surgiu assim, juntamente com a Hermeto Pascoal, a primeira Lona Cultural da Cidade do Rio de
Janeiro.
Mas quem foi afinal Elza Osborne ? Falecida em 1995, Elza Pinho Osborne foi a primeira
mulher engenheira a administrar quadros do funcionalismo da prefeitura do Distrito Federal. Osborne
foi responsável por diversas obras na Zona Oeste, então Zona Rural, como a construção do viaduto
Engenheiro Alim Pedro, Teatro de Arena, Teatro Artur Azevedo, o anfiteatro da Praça Filomena,
entre outras obras. No teatro escreveu inúmeras peças, entre elas "Zé do Pato" que deu ao Teatro
Rural do Estudante onze prêmios em disputa no I Festival Nacional do Teatro.Elza, além de outros
prêmios.
2.2. A lona cultural Hermeto Pascoal.
A Lona Cultural Hermeto Pascoal em Bangu foi criada juntamente com o Teatro de Arena
Elza Osborne em Campo Grande na primeira gestão do Prefeito César Maia, no intuito de compensar
a falta de teatros na Zona Oeste da Cidade, assim como com a idéia de democratizar a cultura,
levando espetáculos também para a Zona Oeste da cidade, em especial à Bangu. A Lona Cultural
Hermeto Pascoal é um verdadeiro centro cultural local, onde além de homenagear um dos grandes
nomes da MPB, o músico Hermeto Pascoal, abriga espetáculos de boa qualidade na área de música,
teatro, além de amostras de cinema, cursos, palestras e oficinas de todo tipo.
Muitos leigos espantam-se ao ouvir algum disco de Hermeto Pascoal, pois assim como seu
visual, a música deste mago da MPB é singular, resultado da fusão de ritmos como o forró e o jazz. À
toda genialidade de Hermeto devemos acrescentar uma cnica apurada em praticamente todos os
127
instrumentos, desde o piano a outros menos ortodoxos, como a chaleira e o porco. A música de
Hermeto Pascoal é uma verdadeira lição de brasilidade com suas misturas e transmutações que nos
possibilita um mergulho em um caldeirão cultural e artístico da música brasileira.
2.3 Lona cultural Gilberto Gil.
Inaugurada em 30 de maio de1998 com o nome de Lona Cultural Capelinha, o espaço cultural
passou a se chamar de Lona Cultural Gilberto Gil em novembro de 1999 em homenagem ao artista
que após os dois meses em que esteve preso no quartel da Polícia do Exército, na Vila Militar,
durante o período da ditadura, compôs a canção "Alô, alô Realengo, aquele abraço" onde cita o nome
do bairro em verso e prosa.
A Lona Cultural Gilberto Gil em Realengo tem como proposta facilitar o acesso ao público da
região à cultura e arte com trabalhos sólidos e de qualidade, desenvolvido por profissionais
reconhecidos no cenário cultural brasileiro. A Lona Cultural Gilberto Gil é hoje um empreendimento
cultural bem sucedido e surge em um momento em que a própria população local desperta e apóia a
realização de projetos dentro da área da cultura, como as outras lonas culturais do Rio de Janeiro.
2.4 Lona cultural João Bosco.
A história da Lona Cultural João Bosco começou no final dos anos 80 com uma união de
artistas moradores do Subúrbio do Rio de Janeiro interressados em montar espetáculos em praças,
escolas e outros espaços públicos e que veio a se chamar de Movimento de Integração Cultural
MIC. O MIC, após algumas tentativas de montar um espaço cultural alternativo no bairro de
Anchieta, viu no Projeto das Lonas Culturais a sua grande oportunidade. Em 14 de abril de 1999 foi
inaugurada assim a Lona Cultural João Bosco.
João Bosco sempre foi um grande apoiador do MIC divulgando o projeto por todos os lugares
onde passa. O grupo Movimento de Integração Cultural quis por conseguinte homenagear esse grande
artista da música popular brasileira. A escolha do nome de João Bosco foi unanimidade, pois em sua
música há uma ligação muito forte com o subúrbio carioca, sobretudo na época da parceria com Aldir
Blanc.
128
2.5 Lona cultural Carlos Zéfiro.
Das antigas e produtivas Fazendas de café e cana-de-açúcar Sapopemba e Nazaré, do século
XIX passando pela fundação do bairro em 1º de outubro de 1896, Anchieta só experimentaria
novamente a sensação de se tornar referência dentro do Município do Rio de Janeiro com a
inauguração da Lona Cultural no dia 20 de agosto de 1999 em seu bairro.
A Lona Cultural Carlos Zéfiro foi a quinta do desdobramento do Projeto das Lonas Culturais
inserindo assim o bairro de Anchieta no roteiro cultural da Cidade do Rio de Janeiro, promovendo a
sua integração e atendendo a uma expectativa de mais de 400 mil pessoas que vivem na região.
Nos anos 50, 60 e 70, Carlos Zéfiro desenhou e produziu histórias no formato de quadrinhos
eróticos chamados de "catecismos" - apelido dado as revistinhas com enredos pornográficos. Tais
revistas acabaram por se tornar referências, fazendo "a cabeça" de pelo menos três gerações.
Morador do bairro durante anos, Carlos Zéfiro era o pseudônimo usado pelo funcionário
público Alcides Caminha, parceiro de Nélson Cavaquinho e Guilherme de Brito, autor de pérolas da
MPB, como "A Flor e o Espinho". Para a maioria das pessoas que o conheciam no bairro, Zéfiro era o
animado "Seu Alcides" seresteiro, torcedor do São Cristóvão e diretor esportivo do Esporte Clube
Anchieta. A Lona Cultural Carlos Zéfiro, além de uma homenagem é uma iniciativa de resgate de
uma história revelada no início da década pelo jornalista Juca Kfouri, em novembro de 1991, depois
de quase 30 anos de silêncio. Mais ou menos na mesma época, o lançamento do CD "Barulhinho
Bom" da cantora Marisa Monte trazia em seu encarte os desenhos de Zéfiro o que provocou
escândalo na mídia dos Estados Unidos.
2.6 Lona cultural Terra.
A Lona Cultural Terra foi inaugurada no dia nove de dezembro de 2000 com o apoio da
Associação Cultural Amigos do Sanhaço e da participação de toda a comunidade do bairro de
Guadalupe. O nome Terra é uma homenagem ao cantor e compositor Caetano Veloso que compôs um
música com o mesmo nome. A razão da homenagem a Caetano Veloso está ligada também ao fato
que o compositor e cantor morou no bairro de Guadalupe com dois anos de idade na casa de
familiares. O CD de Caetano Veloso, "Noites do Norte", tem por sua vez uma homenagem a
Guadalupe, bairro pelo qual o músico afirma ter um grande carinho.
129
2.7 Lona cultural Sandra Sá .
Por intermédio da Secretaria das Culturas, o bairro de Santa Cruz foi o sétimo a receber uma
lona cultural. A Lona Cultural Sandra de Sá, inaugurada com show da cantora e compositora, é a
maior de todas as lonas culturais com 350 lugares e 1.864 metros quadrados, .possuindo nessa área
dois pavilhões, uma biblioteca, uma praça com parque infantil, um campo de futebol soçaite e
diversas mesas de jogos.
2.8 Lona cultural Herbert Viana.
A Lona Cultural Herbert Viana foi inaugurada no dia 25 de maio de 2005 no maior complexo
de favelas do Rio de Janeiro, o Complexo da Maré onde moram 113 mil pessoas. A inauguração da
lona contou com a presença do grupo Os Paralamas do Sucesso. A Lona Herbert Viana possui uma
estrutura de 300 metros quadrados e tem capacidade para receber 600 pessoas (400 pessoas sentadas e
200 pessoas em pé). Como todas as outras lonas culturais, a Lona Herbert Viana funciona como
centro de arte, espaço para espetáculos artísticos e para cursos, oficinas e palestras.
3 - Política cultural e social das lonas culturais
Se na década de 80 o centro do Rio de Janeiro possuía poucos locais para que os artistas
alternativos pudessem se apresentar e desenvolver suas atividades, o subúrbio do Rio de Janeiro como
um todo se encontrava, nesta mesma época, em uma situação de carência total no que consiste
políticas sociais e culturais.
O projeto das Lonas Culturais foi um projeto que saiu da retórica e partiu para a ação concreta
e objetiva na busca de levar para o subúrbio do Rio de Janeiro atividades e obras culturais a quem
normalmente não tem nenhuma possibilidade de acesso a elas. As lonas culturais funcionam na
verdade como centro de arte, espaço para espetáculos e para cursos, oficinas e palestras. Nas palavras
do então Secretario Municipal de Cultura do Rio de Janeiro em 2003, Ricardo Macieira:
130
O projeto representa um passo enorme na descentralização dos equipamentos urbanos de
cultura. Não tenho a menor duvida que o impacto do deslocamento das ações para estas áreas e a
adesão que as lonas culturais vem registrando são visíveis para a população. 310
Analisando as palavras acima percebemos que as lonas culturais se apresentam como
alternativa direta para a carência de projetos e atividades culturais. No entanto, o Circo Voador da
primeira fase se localizou sob os Arcos da Lapa na Zona Centro, enquanto que as lonas culturais estão
todas no subúrbio. É interessante sublinhar esse aspecto geopolítico, pois são instituições culturais
com padrões parecidos em relação ao que constroem em termos de arte e cultura, mas que no entanto,
estão em contextos muito diferentes tanto geográfico quanto político-histórico.
Por outro lado, contrariamente ao Circo Voador que foi criado completamente fora do bojo do
Estado, apesar de receber alguns apoios aqui e ali, as Lonas Culturais são, por sua vez, instituições do
poder político de Estado no que toca a política cultural do Rio de Janeiro. Algo muito ilustrativo para
demonstrar o controle pleno do Estado sob a gestão das Lonas e a sua subseqüente utilização como
ferramenta de poder político, é a ementa de código GAT 03081 (2-2-0) que em outubro de 2003
apontava as políticas a serem desenvolvidas sob todos os espaços culturais do Estado inclusive as
Lonas:
Política Cultural Integrada voltada à diversificação de atores e grupos sociais de localidades,
municípios ou regiões. Planejamento cultural com desenvolvimento de políticas setoriais.
Mapeamento e diagnostico cultural. Metodologia e conceito para o planejamento cultural ampliado.
Elaboração de programas e diretrizes para a gestão cultural. Cidadania e sustentabilidade.
O texto continua sublinhando a importância de patrocinar a realização de eventos que
consolidem a Cidade do Rio de Janeiro como principal pólo cultural do país, a necessidade do
incentivo e apoio à produção e a veiculação de bens duráveis, além da responsabilidade do Estado em
popularizar e complementar o ensino através da cultura desenvolvendo uma proposta alternativa de
educação e difusão científica e artística inovadoras e atraentes.
Por outro lado as Lonas Culturais não deixam de ter um caráter de parceria do poder publico
com a sociedade organizada sem a qual o projeto das Lonas Culturais teria sem dúvida menos
envergadura. A Prefeitura oferece o espaço e a comunidade entra com a oferta dos cursos e
espetáculos. O resultado desta união é a formação de platéias, valorização dos bairros, aquecimento
do comercio local como bares, restaurante, etc, sem falar dos bens culturais e sociais que são
310
“Lonas culturais vão sair do papel.” O Globo. Rio de Janeiro. 15 de maio de 2003. Pg. 21.
131
obviamente oferecidos à comunidade. As lonas culturais são assim espaços de produção de arte e
cultural, ingredientes fundamentais para a criação da cidadania.
Mesmo diante das dificuldades que impedem a realização de projetos culturais em
determinadas áreas da cidade, o Projeto das Lonas Culturais é um bem sucedido exemplo do quão
viável é o investimento em iniciativas desta natureza, cujo modelo descentralizador de administração
se adequa perfeitamente aos modelos propostos pela sociedade moderna contemporânea.
Palavras de João Bosco:
O público que comparece, como eu mesmo tive oportunidade de conferir, é vibrante e
participativo, deixando muito claro que, se depender dele, as Lonas devem se firmar e, assim
poder exercer seu papel na construção de uma Democracia cultural. O governo através de
incentivos, e a iniciativa privada, fazendo uso destes, podem contribuir para fazer do esforço
de alguns o trabalho de todos e, assim, diminuir a distância que separa o Brasil de si
mesmo".
Exposições fotográficas, encenação de peças teatrais, shows musicais, cursos, e oficinas, são
algumas das atividades comuns às lonas. Fundamentais no desenvolvimento da política cultural da
cidade, elas a um tempo geram empregos, criam oportunidades para novos artistas, aproveitam a
mão-de-obra local, e, acima de tudo, dão condições para a melhoria da qualidade de vida através da
arte e da cultura.
132
Conclusão
Tendo em vista que a fruição cultural é parte condicionante da qualidade de vida das
populações, é importantíssimo para o futuro da nossa cultura e da nossa história perspectivar as
atividades de defesa de um patrimônio cultural. A defesa do patrimônio, como forma de valorização
cultural, evidência o mecanismo de desenvolvimento global e integrado das comunidades e das
atividades locais e regionais do país.
Por outro lado, defender o patrimônio em termos de posteridade passa, antes de mais nada,
pela educação, pela sensibilização das novas gerações para que se desenvolva um sentimento de
preservação dos bens patrimoniais. Estes, por sua vez, constituem suporte de memória coletiva
nacional, refletindo o quadro de referencias e valores de uma sociedade.
No Brasil, ao desprezo ainda evidenciado dos poderes públicos para com o patrimônio
cultural do nosso país, tem de opor-se o zelo dos cidadãos na defesa dos bens que a todos pertence.
No entanto, para que se crie essa tão proveitosa consciência de defesa por parte dos cidadãos é
preciso que seja conhecida a história de tal patrimônio de forma a estimular e esclarecer a
importância daquele bem para a sociedade. Defender o patrimônio é, antes de mais nada, conhecê-lo.
Conhecer um patrimônio histórico implica em conhecer o percurso histórico no qual ele se enquadra
e fora do qual perde todo o significado. O patrimônio cultural tem enfim um papel relevante e
insubstituível enquanto referencial observável que nos permite obter respostas para muitas questões
relativas às sociedades que nos precederam.
No que toca diretamente a cultura no Brasil, a problemática da cultura tem sido uma questão
basicamente política. Na verdade, falar em cultura brasileira é falar em relações de poder, e devemos
assim reforçar que um dos elementos dinâmicos e definidores da problemática cultural, porém não o
único, é o Estado.
311
Para se pensar como se estrutura o campo da cultura, devemos levar então em
consideração a atuação do Estado brasileiro nesse domínio.
No período militar, o bloqueio de integração social por conta de elementos opressores como a
censura alterou sensivelmente as relações entre cultura e Estado. Tais transformações mais amplas,
por quais passou toda sociedade brasileira, tiveram conseqüências imediatas no domínio da cultura e
criaram novas condições para nossa história cultural. Com a abertura política foi possível, no entanto
311
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. 5
a
edição. São Paulo: Brasiliense,
1994.
133
uma reintegração moral da sociedade através da cultura e de seus símbolos que são os instrumentos
por excelência da “integração social” enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação;
eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente
para a reprodução da ordem social.
312
O Circo Voador por sua vez é o resultado e conseqüência de todo o processo político, histórico
e cultural onde os artistas alternativos dos anos 70 desenvolviam seus trabalhos no âmbito da rua, da
praia, da praça; sua forma de saber ainda não se encontrava necessariamente institucionalizada.
313
Tais artistas que se usavam do espaço social da rua desenvolviam um saber e consequentemente um
poder, um poder simbólico, esse poder invisível o qual pode ser exercido com a cumplicidade
daqueles que não querem saber que eles estão sujeitos ou mesmo que o exercem.
314
Ainda sob a
mesma linha de raciocínio é cabível ressaltar que, as diferentes classes e fracções de classes estão
envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais
conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo
em forma transfigurada o campo das posições sociais.
315
Por outro lado, e de forma complementar, a
produção do saber no Circo Voador é prova da existência de formas de exercícios de poder diferentes
do Estado, formas essas que se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social.
316
O Circo Voador incorporou fisicamente o desejo de uma geração de desabrochar os aspectos
culturais de uma época que estavam muito tempo calados e abafados por uma ditadura militar
possibilitando a combinação direta entre cultura e sociedade e desempenhando assim um papel chave
na afirmação da cultura para a construção da cidadania.
Os jovens alternativos dos anos 80 fomentavam novos ideais de cultura em um ambiente de
auto-superação, auto-negação permanentes e crítica aos conceitos tradicionais da arte, e para isso
precisavam de espaços físicos onde suas idéias pudessem ser concretizadas e apresentadas ao público.
Um dos poucos espaços culturais alternativos criados na década de oitenta que virá a dar voz a
diversos grupos sociais e respondeu a tal demanda cultural-artística foi justamente o Circo Voador
que nascido três anos antes do grande acontecimento físico na Candelária das Diretas acabou por
312
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL/Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989.
313
CASTRO, Alice Viveiros de (Org.). 1
o
Catálogo Carioca de Teatro e Circo Contemporâneo. Prefeitura da Cidade do
Rio de Janeiro, Secretaria Municipal das Culturas, RIOARTE, TEATROS DO RIO e Coordenação de Teatro e Circo.
Edição: Márcio Libar, 2003.
314
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL/Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989.
315
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL/Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989.
316
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
134
ser um espaço democrático por excelência, uma instituição sócio-cultural que apoiou, e possuía,
inerente à sua filosofia, a liberdade, a Democracia no sentido mais amplo da palavra.
Junto com a Rádio Fluminense, o Circo foi responsável por dar a primeira oportunidade a
dezenas de bandas que formaram a geração chamada pela imprensa de Brock, isso sem falar nos
inúmeros grupos de artistas de teatro e circo. Em pouco tempo, roqueiros antes desprezados passaram
a ser os maiores vendedores de discos graças, por um lado, à “vitrine do Rock que era o Circo
Voador. Não é nenhum exagero afirmar que sem o Circo Voador a história da música pop brasileira e
das artes cênicas a partir da década de 80 seria outra.
Os ingressos vendidos no Circo Voador eram, por outro lado, acessíveis à população em
termos de preço e davam possibilidade de assistir tanto a medalhões da MPB quanto a artistas
iniciantes, em uma variedade de estilos samba, rock, choro, blues, salsa, música erudita que
nenhum outro local oferecia. Passaram pelo Circo nomes ilustrativos como Chico Buarque, Caetano
Veloso, Moreira da Silva, Paulinho da Viola, Raphael Rabello, Egberto Gismonti e Arthur Moreira
Lima. As possibilidades de acesso à cultura e ao divertimento que o Circo Voador proporcionava
traziam multidões de jovens para o seu espaço.
No tocante a toda a revitalização da Lapa estimulada pelo Circo Voador, é com justiça que o
site do Circo escreveu as seguintes linhas:
Do Circo, uma nova Lapa nasceu. Os bares da redondeza voltaram a fervilhar, a movimentação
afastou o estigma de local de crime e violência e novas gerações de produtores de cultura se formaram
à sombra da lona voadora.
317
A presença do Circo na Lapa foi fundamental para reutilização e reocupação e, por
conseguinte, retomada de fôlego da região. Foram surgindo assim outros espaços de cultura dos mais
variados tipos, como a Casa Brasil Nigéria, a Casa do Na Rua, a Fundição Progresso, etc. O Circo
revitalizou a Lapa que hoje é o grande palco carioca da efervescência cultural e artísticas no Rio de
Janeiro. A Lapa é hoje o espaço social de muitas “tribos” onde vemos pelas ruas da Lapa punks
passeando junto a hippes. O Circo Voador conseguiu convergir o público da Zona Norte e o da Zona
Sul para si e para suas adjacências. O que vemos atualmente é um bairro que, assumindo sua vocação,
como diriam alguns, se consagrou como símbolo da música carioca de todos os estilos, onde vemos,
por exemplo, o sambista Nelson Sargento e o rapper Marcelo D2 darem as mãos em nome da cultura.
317
Site: www.circovoador.com.br
135
O Circo desenvolveu todos os tipos de arte, gerou capital interno, utilizou-se do seu espaço
para trabalhos sociais, se transformando em um verdadeiro instrumento social ao promover educação
e cidadania com suas inúmeras prestações de serviço à sociedade em diversas comunidades carentes.
O Circo possibilitou assim a aproximação dos artistas com a população e desenvolveu um papel de
fortalecimento do espaço público através da arte e da cultura.
No que cabe a parte econômica, o Circo Voador sob os Arcos da Lapa gerou cerca de 4.000
empregos diretos e indiretos, dentre bilheteiros, músicos, iluminadores, divulgadores e produtores,
isso logicamente não só na área da música, como também no teatro, no circo, na dança de salão.
No que cabe à irradiação geopolítica do Circo Voador, devemos ressaltar o fato do Circo
Voador levar para a Copa do Mundo no México, em 1986, mais 150 artistas brasileiros. A ida para o
México através do Circo Voador desse número de artistas foi sem nenhuma dúvida um dos grandes
marcos da abertura política do Brasil e uma das mais importantes empreitadas culturais do período de
reabertura sem a participação do Estado.
A importância do Circo Voador pode ser confirmada por outro lado com o lançamento, em
2003, pela Prefeitura do Rio de Janeiro, junto com a RioArte e a Secretaria das Culturas, do 1
o
Catálogo Carioca de Teatro de Rua e Circo Contemporâneo que imprimiu na primeira gina do
primeiro capítulo uma foto do Circo Voador com um texto afirmando que este inaugurou em 15 de
janeiro de 1982, uma nova era na cidade”.
318
O Circo Voador e seus artistas construíram um vínculo de cultura e cidadania para com a
sociedade. O Circo Voador foi espaço de criação do saber que estimulou e desenvolveu a cultura e as
artes, um patrimônio cultural, uma referência fundamental de uma geração e do movimento musical
Brock assim como do circo e do teatro, assumindo papel relevante na nossa cultura. A história do
Circo Voador vem assim sob um prisma diferente fertilizar o debate sob a nossa história e nossa
cultura. O Circo Voador, em sua trajetória, afirmou a autonomia da sociedade no contexto de
redemocratização, possibilitou e deu sustentabilidade para a criação de um movimento social, não se
resumindo à expressão artística, visto que caracterizou também um certo projeto de inserção cultural
dos artistas e produtores culturais ao promover novos sujeitos sociais na cena da sociedade.
318
CASTRO, Alice Viveiros de (Org.). 1
o
Catálogo Carioca de Teatro e Circo Contemporâneo. Prefeitura da Cidade do
Rio de Janeiro, Secretaria Municipal das Culturas, RIOARTE, TEATROS DO RIO e Coordenação de Teatro e Circo.
Edição: Márcio Libar, 2003.
136
Anexo I: Linha do tempo
15/01/82: O Circo Voador pousa no pontal do Arpoador com duração prevista somente para o
verão daquele ano. Os grupos Manhas e Manias, Banduendes por Acaso Estrelados, Beijo na Boca e
Sem Vergonha, em sua maior parte formado por integrantes oriundos do grupo teatral Asdrúbal
Trouxe o Trombone, inauguram o palco voador.
17/01/82: Caetano Veloso, contagiado pelo clima do Circo, faz participação especial para um
público de 500 pessoas.
21/03/82: Os homens do “rapa” botam abaixo a lona do circo.
10/07/82: Por intermédio dos organizadores do Circo Voador é interrompida a demolição da
Fundição Progresso.
18/09/82: A passeata Parada Voadora anuncia pelas ruas do Centro a chegada do Circo Voador ao
seu local definitivo: os Arcos da Lapa.
23/10 /82: Inauguração do Circo Voador.
24/10/82: Estréia da Domingueira Voadora.
05/01/83: Início do projeto Rock Voador.
01/10/83: Rock Voador traz Raul Seixas de volta ao Rio de Janeiro, durante o mês de
comemoração do aniversário do projeto.
16/02/84: Manifestação do comício “Diretas Já” no Centro do Rio de Janeiro e show promovido
pelo Sindicato dos Jornalistas no Circo Voador.
04/07/84: Primeiro show promovido pela Rádio Fluminense FM no Circo Voador.
05/10/84: Rock Voador promove Fest in Rock Brasil que passa a ser um festival anual.
15/01/85: Tancredance: festa da vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.
137
23/10/85: Maria Juçá deixa o Circo Voador por divergências com os sócios fundadores da Pára-
quedas do Coração, empresa que tem a concessão do Circo Voador.
16/01/86: Coluna Voadora: Eu Não Prestes Mas Eu Te Amo chega a São Luís do Maranhão,
tendo passado por Vitória, Ilhéus, Petrolina e Teresina.
18/03/86: Circo Voador Brasil aterrissa mais uma lona, a Estação Fortaleza.
28/05/86: Parada Voadora anuncia ao povo de Guadalajara a chegada do Circo Voador ao
México.
10/10/86: Inauguração da Estação Recife do Circo Voador Brasil.
04/12/86: Abertura das comemorações do centenário de Villa Lobos no projeto Viva Lobos.
01/03/88: Início das obras de reforma do Shopping-cultural Fundição Progresso, projeto antigo
dos idealizadores do Circo Voador.
19/10/88: Casseta & Planeta lança candidatura do Macaco Tião à prefeitura do Rio de Janeiro. O
show, que lotou o Circo, teve renda doada para a Anistia Internacional.
19/03/91: Forra do Boi, evento com programação ecológico-cultural, traz à tona a discussão
acerca da politicamente incorreta tradição gaúcha.
07/08/91: Os jornais noticiavam o fim do Circo, que superou as dificuldades e não fechou.
15/10/91: Maria Juçá volta ao Circo Voador e assume a direção-geral sem os sócios fundadores.
10/04/92: Circo Voador promove a ECO 92 e é considerado ONG internacional com a
programação Brasil Mostra a Sua Cara. O Circo Voador é palco do Parlamento da Terra e hospeda 90
índios brasileiros e estrangeiros debaixo de sua lona.
06/05/92: I Festival Nacional de Blues.
26/09/92: 50 anos de Tim Maia comemorados em casa.
07/12/92: Maior bilheteria da história do Circo – 6.000 pessoas pagaram para ver The Wailers.
138
24/03/93: SOS Manchete, com renda revertida para os 1.300 profissionais com pagamentos
atrasados da emissora.
25/03/93: Exploited, uma das bandas pioneiras do hardcore.
03/07/93: Reforma amplia espaço para o público e aumenta a visibilidade da platéia.
14/09/93: Fome de Rock, promovido pela Campanha Contra a Fome na Semana de Arte Contra a
Miséria e Pela Vida.
Dezembro/95: Circo Voador - Estação cabo Frio.
18/11/96: Circo Voador tem alvará cassado pela prefeitura do Rio de Janeiro.
139
Anexo II: Ilustrações e fotos.
Ilustração 1: O Circo Voador na praia do Arpoador.
319
319
DAPIEVE, Arthur. Brock. Rio de Janeiro: editora 34, 1996.
140
Ilustração 2: Banduendes por Acaso Estrelados.
320
320
“Os filhos de Asdrúbal”. Revista Veja. Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1982. p. 94-96.
141
Ilustração 3: O Circo Voador em plena atividade no Arpoador.
321
321
“Os filhos de Asdrúbal”. Revista Veja. Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1982. p. 94-96.
142
Ilustração 4: Asdrúbal Trouxe o Trombone.
322
322
“Os filhos de Asdrúbal”. Revista Veja. Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1982. p. 94-96.
143
Ilustrações 5, 6 e 7: Espetáculos e grupos de teatro.
323
323
“Os filhos de Asdrúbal”. Revista Veja. Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1982. p.94-96.
144
Ilustração 8: O Circo Voador sob os Arcos da Lapa.
324
324
“O espírito carioca vai ao circo. Folha de São Paulo. São Paulo, 15 de julho de 1983. p.38.
145
Ilustração 9: Capoeira no Circo.
325
325
TRINDADE, Mauro. “Samba e capoeira; Capoeiristas e sambistas se reúnem para criar um carnaval em pleno agosto”.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 10 de agosto de 1990. p.8.
146
Ilustração 10: Festas tradicionais no Circo: São Cosme e São Damião reúne duas mil crianças.
326
326
“Circo Voador reúne duas mil crianças no Doce Domingo”. O Globo. Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1983. p.10.
147
Ilustração 11: Perfeito Fortuna e o Circo Voador levantando asas.
327
327
CASTELLO, José. “Arte por contágio; o ator Perfeito Fortuna multiplica seu Circo Voador”. Isto É. São Paulo, 3 de
julho de 1985. p.43.
148
Ilustração 12: O Circo Voador em Parati.
328
328
“‘Circo Voador’ desce em Parati”. Folha de São Paulo. São Paulo, 13 de setembro de 1983. p.21.
149
Ilustração 13: Festa das Diretas Já no Circo Voador.
329
329
“Baile no Circo Voador terá urna para eleições diretas”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno Carnaval, 12 de
fevereiro de 1984. p. 3.
150
Ilustração 14: O Circo Voador em São Luis do Maranhão.
330
330
“Turbulência em terra firme”. Isto É. São Paulo, 5 de março de 1986. p.41.
151
Ilustração 15: Domingo do Corpo.
331
331
“Voador leva Domingo do Corpo para a Quinta”. O Globo. Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1983. p. 28.
152
Ilustração 16: Croquis Circo.
332
332
“Olha o Circo Voador voando no Pasquim!”. Pasquim., 25-31 de agosto de 1983. p. 10.
153
Ilustração 17: Raul de Barros e seu trombone.
333
333
“Show-baile no Voador celebra o 50 anos do som de Raul e seu trombone”. O Globo. Rio de Janeiro, 19 de setembro
de 1983. p. 21.
154
Ilustração 18: Feira de ciência no Circo.
334
334
“Circo exibe “as feras da ciência”: uma animada lição de arte e prazer”. O Globo. Rio de Janeiro, Caderno, 31 de
outubro de 1984.
155
Ilustração 19: O Circo em Recife.
335
335
“Circo pousa em Recife”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1986. p. 6.
156
Ilustração 20: O Adrúbal Trouxe o Trombone.
336
336
MEDEIROS, Benício. “Balada do Hippie que cortou o cabelo e ficou rico.”. Status. Fevereiro de 1987. p. 53-54.
157
Ilustração 21: Fundição Progresso.
337
337
TERRA, karla. “Circo Voador constrói shopping cultural.”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1987.
p.48.
158
Ilustração 22: O Rock no Circo Voador.
338
338
“A comemoração da ousadia.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 05 de janeiro de 1989. p.4.
159
Ilustração 23: Aniversário do Circo de 12 anos.
339
339
“Circo festeja 12 anos.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 05 de outubro de 1994. p.7.
160
Ilustração 24: Paulo Moura e Elza Soares no Circo.
340
340
“A gafieira volta ao Circo.” Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, Caderno B, 12 de fevereiro de 1995. p.7.
161
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