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públicos, pichando muros contra usinas nucleares, em plena ressaca, um dia de
monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Teresa de Calcutá, um dia
de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para
poder pagar essa poltrona de couro autêntico onde neste exato momento vossa
reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha de centro
em junco indiano que apóia nossos fatigados pés descalços ao fim de mais
outra semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e
crediários atrasados. (…) Éramos diferentes, éramos melhores, éramos
vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não
endureceram e o teu pau não levantou. Cultura demais mata o corpo da gente,
cara, filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir me
masturbando, tinha a biblioteca de Alexandria separando nossos corpos (…) o
que acontece é que como bons intelectuais-pequeno-burgueses o teu negócio é
homem e o meu é mulher (…) não, não tenho nada contra lésbicas, não tenho
nada contra decadentes em geral, não tenho nada contra qualquer coisa que
soe a: uma tentativa. (…) ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha
antiga essa, a velha angst, saco, mas ando, ando, mais de duas décadas de
convívio cotidiano, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco,
uma sede, um peso, ah não me venha com essas histórias de atraiçoamos-
todos-os-nossos-ideais, eu nunca tive porra de ideal nenhum, eu só queria era
salvar a minha, veja só que coisa mais individualista elitista capitalista, eu só
queria era ser feliz, cara, gorda, burra, alienada e completamente feliz. Podia
ter dado certo entre a gente, ou não, eu nem sei o que é dar certo, mas
naquele tempo você ainda não tinha se decidido a dar o rabo nem eu a lamber
buceta, ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich,
depois Castañeda, depois Laing debaixo do braço, aqueles sonhos tolos
colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e
Jean-Paul nos 50 em Paris, 60 em Londres ouvindo here comes the sun here
comes the sun little darling, 70 em Nova York dançando disco-music no Studio
54, 80 a gente aqui mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem
cuspir fora nem esquecer esse azedo na boca. Já li tudo, cara, já tentei
macrobiótica psicanálise drogas acupuntura marxismo candomblé boate gay
ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê?” (op.cit.: 17-19).
Um trecho do livro de Moriconi (1996:44) sobre a poeta Ana Cristina
Cesar assinala, na mesma direção, algo como um turning point inexorável,
a “crise dos trinta anos”:
“Naqueles idos de 82/83, muitos de nós mal conseguimos prestar
atenção nos problemas da Ana porque o desemprego assolava as profissões
intelectuais (principalmente o magistério), todos estavam vivendo suas crises
dos trinta anos e não eram poucos os que passavam por depressões ou
revoluções interiores, motivadas por razões que iam desde a necessidade de
finalmente batalhar a sério para assumir uma carreira profissional estável até a
urgência de definitivamente fixar-se na hetero ou na homossexualidade, depois
do ideal orgiástico e bissexual dos anos 70 que para muitos apenas adiara essa
questão enquanto opção dolorosa, trágica e inescapável. Ao “conseguir matar-
se”, para usar a expressão dura mas exata de uma amiga, citada por Caio
Fernando Abreu, Ana estava sendo um pouco antena da raça, sua raça, nossa
raça. “Antena da praça” (ver poema ‘Sumário’, em A teus pés). Ela catalizou
todas as sombras que nos cercavam naquele esquisito final de época”.
A imagem da “crise dos trinta anos” tem sua persistência. Mas é
notável que, nos círculos da cena, ela apareça antes no já citado “projeto
trinta tudo” empreendido por um dos rapazes que entrevistei, que não
assinala uma “crise” mas sim a produção “precavida” de um “melhor do que
bem”, de um estoque de “boa forma” excedente que venha a permitir,