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do organismo, mas a própria fronteira não está isolada do ambiente”. Portanto, “não se deve
pensar o self como uma instituição fixada; ele existe onde quer que haja de fato uma interação
de fronteira, e sempre que essa existir. Parafraseando Aristóteles: quando se aperta o polegar,
o self existe no polegar dolorido” (p. 373, p. 179). Enquanto sistema de contatos – que integra
sempre funções perceptivo-proprioceptivas, funções motoras musculares e necessidades
orgânicas - o self não é uma “estrutura” fixa. Ou, então, o self não é a regularidade de uma
combinatória para a qual não pode haver mudança. Ao contrário, enquanto processo, o self é
uma integração não ociosa: ele é o “ajustamento criativo” da historicidade do campo
organismo/meio, é o sistema intencional (ou sistema-awareness) que, a cada momento,
mobiliza (na forma de um excitamento) meu passado como “fundo” de um dado material que,
assim, responde ao meu investimento “figurando”, como potencialidade, um horizonte de
futuro. Nesse sentido, “em situações de contato, o self é a força que forma a gestalt no campo;
ou melhor, o self é o processo de figura/fundo em situações de contato” (p. 374, p. 180). Em
decorrência disso, Perls e Goodman (1951) vão dizer que o self é, sobremodo, “a realização
do potencial” (p. 374, p. 180), que sou eu mesmo enquanto historicidade disponível a cada
novo contato, a cada novo evento de fronteira no campo organismo/meio. De onde se segue a
apresentação do self como uma espécie de espontaneidade engajada.
Em rigor, espontaneidade e engajamento são, conforme Perls e Goodman (1951), as
duas principais características do self: “O self é espontâneo – nem ativo, nem passivo – (como
fundamento da ação e da paixão) e engajado na situação concreta (como Eu, Tu e Isso)”
22
( p.
376, p. 181-2). Definem espontaneidade como “o sentimento de estar atuando no
organismo/ambiente que está acontecendo, sendo não somente seu artesão ou seu artefato,
mas crescendo dentre dele” (p. 376, p. 182). Perls e Goodman recorrem a uma distinção
lingüística para falar dessa dupla valência da espontaneidade. Trata-se da distinção que é feita
22
Ao empregar as expressões Eu, Tu, Isso, Perls e Goodman fazem explícita referência às categorias com as
quais, no livro “Eu e Tu”, Buber (1923) se ocupou de caracterizar nossa experiência da transcendência. Todavia,
o emprego estabelecido por Perls e Goodman não necessariamente corresponde à mística de Buber. Em Buber, o
termo “Tu” – por exemplo - designa a alteridade daquilo que se apresenta “no a priori da relação” como algo que
“não tem coerência no espaço e no tempo” (p. 38), que está aquém do espaço e do tempo e na mediação do que
posso compreender minha diferença (como “Eu”). Trata-se do “primado” da alteridade de Deus e, nesse sentido,
da alteridade do Todo frente à minha compreensão como individualidade. Perceber esse Todo é, para Buber,
condição para que eu possa compreender meu “Eu”, uma vez que esse “Eu” não é uma substância, mas aquilo
que se revela na relação. “Torno-me ‘Eu’ na relação com o ‘Tu’”, diz Buber (p. 32). Mas, tal como aparece no
livro “Gestalt-Terapia”, “Tu” não designa a alteridade do Todo. O termo “Tu” designa sim o movimento de
transcendência, o dirigir-se a algo e, nesse sentido, a própria intencionalidade. Trata-se, por conseguinte, de uma
interpretação extremamente fenomenológica do pensamento de Buber. Nas palavras de Perls e Goodman, o Eu
do
self
“é polar com relação a um ‘Tu’ e a um ‘Isso’”. O Isso é a sensação dos materiais, dos anseios e do
fundo; o Tu é o caráter direcionado do interesse; o Eu é tomar as providências e fazer as identificações e as
alienações progressivas” (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1951, p. 377,
p. 183
). Não obstante a
importância dessa temática, não é nosso propósito discuti-la no contexto desse trabalho.