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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO
RIO GRANDE DO SUL
SILVESTE OTTONELLI
A LUTA, ORGANIZAÇÃO E VIDA NO MST.
UMA FORMA DE EDUCAR E CONSTRUIR PESSOAS E VIVER NOVAS
FORMAS DE SUBJETIVIDADE
Orientadora: Profª. Drª. Elza Maria Fonseca Falkembach
Ijuí
2008
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2
SILVESTE OTTONELLI
A LUTA, ORGANIZAÇÃO E VIDA NO MST.
UMA FORMA DE EDUCAR E CONSTRUIR PESSOAS E VIVER NOVAS FORMAS
DE SUBJETIVIDADE
Dissertação apresentada para a Banca de
Defesa Final, no Programa de Pós-
Graduação em Educação nas Ciências -
Mestrado - da UNIJUÍ (Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul), como requisito parcial para
a obtenção do Título de Mestre em
Educação nas Ciências.
Orientadora: Profª. Drª. Elza Maria Fonseca Falkembach
Ijuí (RS), outubro de 2008.
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3
Este trabalho é uma homenagem a todos e todas os que fazem o Movimento Sem-
Terra constituir-se como força social de inclusão e transformação social, não importando se
intelectual, apoiador, acampado, assentado, liderança ou coordenação.
4
AGRADECIMENTOS
São as seguintes razões que me fazem sentir agradecido:
A Deus pela vida e a saúde recuperada;
A toda a organização que inclui o Movimento Sem-Terra: os que fazem parte
hoje do Movimento e aqueles que o apóiam;
Pela oportunidade que a história me presenteou, permitindo colaborar na
construção da luta pelos direitos dos excluídos;
Às Paróquias de Pejuçara e Augusto Pestana que têm como padroeiro São
José, pelo apoio, compreensão e partilha do tempo que dividimos, Em especial ao Pároco
Padre Eleandro da Silva e as Secretárias Geni e Cassiane Selle e as domésticas Maria de
Fátima e Maria Trada;
À família de Julimar e Lúcia Ottonelli Crescente e seus filhos Jonatam e
Eugênio, pelo espaço da Casa, (hospitalidade) e do Coração, (carinho caloroso feito à
afeição e à atenção cotidiana);
Ao Mestre e Professor Dinarte Belatto, pelos livros sugeridos antes do início
das aulas e pela assessoria prestada em um momento crítico de minha busca neste trabalho;
Aos professores(as), em especial pela amizade, exigência e paciência quase
infinita, de minha orientadora Elza Maria Fonseca Falkembach, num momento difícil e
conturbado de minha história pessoal.
5
“Do seu ferimento a ostra faz surgir uma pérola. A dor que a dilacera, ela a
transforma em jóia” (SHANON, apud MULLER, 1993 p. 86).
“Sobre meus ferimentos as pérolas crescem” (GRÜN, 2004, p. 95).
6
RESUMO
Este trabalho tem como base geográfica a Região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul,
mais especificamente, Boa Vista do Incra. Considerou alguns elementos da modernização e
da globalização da agricultura e, no interior desses movimentos, as mudanças tecnológicas,
econômicas e culturais, efetivadas pelo sistema capitalista, que afetaram as vidas de
instituições e pessoas. Centrou na análise das resistências ao processo de agravamento da
exclusão, êxodo, pobreza e miséria, decorrente do desenvolvimento capitalista referido, que
também gerou desestruturação, desconstrução de subjetividades, enfraquecimento e
adoecimento psíquico. Estas resistências foram lideradas pelo MST Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Por outro lado, o trabalho conta com a participação, os
entrevistados pela pesquisa, de um casal de assentados (no município de Boa Vista do Incra)
que, junto ao MST, contribuiu com o processo de geração de resistência à exclusão pela
Educação Popular (Resiliente) e Educação do MST, escolar e não escolar. Essas modalidades
de educação concorreram para a reconstrução do núcleo sustentador e recuperador da saúde
psíquica das pessoas, construindo e reorganizando identidades e articulando subjetividades
produtoras de princípios, relações e objetivos que dão estrutura e identidade ao Movimento e
aos seus integrantes. Movimento este que vem se organizando e coordenando a solidariedade
em nível local e que, hoje, está desenvolvendo articulações internacionais para fazer da
Reforma Agrária uma possibilidade de inclusão social. O que me motivou para este trabalho
de pesquisa foi a vontade de compreender como a sociedade desenvolve um processo de
desconstrução ou enfraquecimento da identidade do excluído e como ele reage a esta
desconstrução, e toma iniciativas, chegando a reconstruir e reorganizar essa identidade ao
criar e pertencer a um movimento social. Como metodologia, a dissertação construiu uma
combinação entre a análise de pesquisas realizadas junto ao MST e documentos do
Movimento, a observação participante e a narrativa de experiências de vida, possibilitada por
técnicas de história oral.
Palavras-chave: Modernização, Globalização, MST, Educação, Subjetividade.
7
ABSTRACT
This work has as geographic base the Northwest Region of the Rio Grande do Sul, more
specifically, Boa Vista do Incra. It considered some elements of agriculture modernization
and globalization in these movements, as the technological, economic and cultural changes,
accomplished by the capitalist system, that had affected the lives of institutions and people. It
centered in the analysis of the resistance by the aggravation of the exclusion process, exodus,
poverty and misery, decurrent of the capitalist development, that also brings destruction the
subjectivities, and psychological illness. These resistances had been led by the MST –
Landless Rural Workers’ Movement. By the way the work had a collaboration of a settle
couple ( from Boa Vista do Incra) associated to the MST that contributed with the resistance
process to the exclusion for the Popular Education and MST`s Education - formal and
nonformal education. These education modalities helped for the reconstruction and
recuperation the psycholological health of the people, reorganizing identities and
articulating subjectivities that produces principles, relationships and objectives that give
structure and identity to the Movement and its components. This movement organize and
coordinate the solidarity in local level and today is developing international joints to make
the Agrarian Reform a possibility of social inclusion. My insight for this research was
understand as the society develops a process of weakness about the excluded identity and how
it reacts and takes initiatives, reorganizing the identity belongs to a social movement. As
methodology, the present work used a combination among the analysis of research by MST,
documents about the Movement and life experiences (oral histories).
Key Words: Modernization, Globalization, MST, Education, Subjectivity.
8
SUMÁRIO
IDENTIFICAÇÃO.................................................................................................................. 02
CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................................09
CAPÍTULO 1 - A Agricultura Moderna como contexto de nascimento do MST....................17
1.1 – MST e Educação ............................................................................................32
1.2 – Educação e Resiliência .................................................................................37
CAPÍTULO 2 - Como a Globalização produz exclusão e a luta do MST pela inclusão..........52
CAPÍTULO 3 – A Construção do Sujeito na Luta dos Sem-Terra...................... ...................74
CAPÍTULO 4 Relato da História de Vida: Os Homens Lutando por uma Nova Forma de
Inclusão – A reforma agrária..................................................................................................101
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................................122
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................128
ANEXOS ...............................................................................................................................133
9
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente trabalho tem como tema “A Luta, Organização e Vida no MST”, como um
processo educativo que antagoniza a exclusão*, construindo uma forma de educar e construir
pessoas, a viverem novas formas de subjetividade. A problemática que trago está imbricada
no processo de exclusão, gestado no decorrer da modernização da economia e da vida social
que, no Brasil, foi acentuado pela globalização.
A história recente da Sociedade Brasileira foi marcada por diferentes momentos
configurados a partir das formas assumidas pelo desenvolvimento da agricultura, indústria e
comércio, fomentados pelo capital financeiro, cuja forma de intervenção se torna cada vez
mais clara e determinante sobre os rumos dos demais setores da economia. Considerando essa
história, no que diz respeito à agricultura, acesso à terra e tecnologia, vejo como importante
pontuar dois momentos que contribuíram para dar início e agravar a exclusão no campo
brasileiro. No primeiro momento, o capitalismo consegue manejar o problema da acumulação,
modernizando-se, produzindo a exclusão de trabalhadores no campo e gerando migração para
a cidade, mas com tal sincronia que consegue absorver a mão-de-obra na estrutura da
indústria, do comércio e dos serviços na cidade. Porém esta sincronia teve vida curta e a
modernização da agricultura tem efeitos, alterações, inovações e conseqüências nem sempre
esperadas.
10
Exclusão social considerada decorrente das formas como setores da população vivem
ou vivenciaram relações de poder no âmbito das sociedades: as decorrentes dos modos de
inserção nos circuitos econômico-produtivos da sociedade relações de classe - e também as
que se originam nos circuitos reprodutivos da vida social relações de gênero, geração,
raciais, étnicas e religiosas.
Vejo, de acordo com Sawaia (1999), a exclusão como processo complexo e
multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É
processo sutil e dialético, pois só existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela.
Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por inteiro e suas relações
com os outros” (p. 9).
Não desconheço, contudo, a crítica que alguns intelectuais da área das Ciências
Sociais fazem ao termo, inclusive sobre a sua ambigüidade – exclusão como forma de
inclusão vivida mediante relações de dominação
1
.
O segundo é o momento da globalização, com acentuação na informática,
desenvolvimento da bioquímica e da comunicação que afetou profundamente a agricultura
(biotecnologia dos transgênicos, plantio direto, etc.) e demais setores da produção com as
decorrentes mudanças em nível social, econômico, cultural e político, culminando com um
processo de exclusão social de ampla complexidade e de grandes dimensões.
“O desenvolvimento da história vai de par com o desenvolvimento das técnicas”,
afirma Santos (2000, p.24-25). Segue o autor: “A cada evolução técnica, uma nova etapa
histórica se torna possível”. E ainda: “Essas famílias de técnicas transportam uma história,
cada sistema técnico representa uma época”. E, afirmo eu, cada época apresenta aos humanos
1
Para José de Souza Martins (1997), não existe exclusão: existe contradição, existem vítimas de processos
sociais, políticos e econômicos excludentes, existe o conflito pelo qual a vítima dos processos excludentes
proclama seu inconformismo, seu mal-estar, sua revolta, sua esperança, sua força reinvidicativa e sua
reinvidicação corrosiva”. Posso afirmar que a palavra exclusão é o resultado de um processo que
simultaneamente pode ser econômico, político, cultural e que ao invés da expressão exclusão pode-se falar de
processos excludentes geradores da condição de exclusão. Por tudo isso que a exclusão é o resultado dos
diferentes processos excludentes orquestrados por mecanismos capitalistas neoliberais que os mesmos não se
excluem mas expressam uma complementaridade de funções”(p. 14).
11
situações problemáticas singulares, mesmo que decorrentes de problemas que historicamente
vêm se perpetuando.
O que me motivou para este trabalho de pesquisa foi a vontade de compreender
como a sociedade desenvolve um processo de desconstrução ou enfraquecimento da
identidade do excluído e como ele reage a esta desconstrução, e toma iniciativas, chegando a
reconstruir e reorganizar essa identidade ao criar e pertencer a um movimento social.
Diante das exigências colocadas para a elaboração de uma Dissertação de Mestrado
em Educação nas Ciências na Unijuí, e tendo em vista o processo de modernização e
globalização da agricultura, percebendo que os valores da sociedade contemporânea são, cada
vez mais, o mercado, o lucro e acumulação; e que este mercado precisa produzir
subjetividades manipuláveis, que o sustentem consumindo; passei a me perguntar mais
especificamente sobre a constituição dessa “amálgama” de milhões de pobres, principalmente
dos excluídos, chamados de “sem”: sem-casa, sem-saúde, sem-cultura e sem-terra,
especialmente. Diante desta conjuntura que gera sistematicamente a impossibilidade, para
alguns, de ter acesso aos bens (culturais, materiais, etc.) mínimos, sendo essa impossibilidade
justificada por razões de despreparo profissional e estabelecendo relações entre pobreza,
preguiça e ignorância, acredito que voltar-me sobre o conhecimento acumulado na história
possa facilitar a compreensão sobre este fenômeno que neste momento, ocorre em demasia.
Creio também que a minha disposição para a pesquisa possa encontrar alternativas
experimentadas em outros momentos da história, desenvolvendo o diálogo com outros
pesquisadores. Isso para que sejam criadas condições de subsidiar minhas buscas e apontar os
“genes” de alternativas, como soluções teóricas e práticas para problemas de homens e
mulheres que não conseguem, hoje, ter suas necessidades mínimas satisfeitas.
Nesse quadro social de carência ocorre a desestruturação de pessoas e famílias. Há,
no entanto, aqueles e aquelas que buscam, nesse ambiente complexo e desumanizador,
12
inventar e criar meios de sustento que possibilitem construir, juntos, as condições
fundamentais para ser possível a proximidade, o calor humano, a solidariedade, a
profundidade e a disposição intelectual para a mudança. Refaz-se, assim, o núcleo sustentador
e recuperador da saúde psíquica e física de um povo sofrido, criando condições para este se
firmar como agente de ações de protagonismo.
Nesse sentido é que a presente pesquisa se constitui a partir da problematização de
um movimento de resistência à exclusão social no campo e que, recentemente, passa a fazer
críticas à forma como o desenvolvimento técnico e científico vêm ocorrendo mundialmente e
afetando a vida do planeta. Este movimento é protagonizado por trabalhadores e trabalhadoras
rurais que, no Brasil, se reuniram e constituíram o MST Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem-Terra.
Dirijo minha atenção especialmente à região Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul, onde o assentamento “Boa Vista do INCRA” se implantou, resultante da perda das terras
e de seus lugares de vida por agricultores que viviam na área, em razão das inundações por
águas da barragem do Passo Real, construída na década de 1960. O coletivo de agricultores
que a pesquisa atinge viveu e sofreu todo o processo de modernização e globalização da
agricultura, integrando e desabrochando a luta pela terra, participando, assim, da constituição
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. E, frente ao drama da exclusão,
organizaram sua inquietação e indignação, construindo e constituindo-se como sujeitos que
geraram ações coletivas de libertação, exigindo mudanças na forma de organização do capital
no campo.
A pesquisa empreendida registra e realiza uma síntese das lutas que o coletivo do
assentamento viveu. Tem como objetivo verificar a forma e o grau de resistência dos Sem-
Terra e compreender como a educação pode contribuir para a construção e aprofundamento de
convicções e empenho, no decorrer da prática política dirigida à recuperação das terras
13
perdidas, o que, coletivamente, foi se constituindo como um movimento de resistência. Faz,
também, um esforço para sistematizar como os acontecimentos, vividos na luta, vão
constituindo a identidade de todos (indivíduos e coletivo), embora os ocorridos na
organização do movimento apresentassem desfechos, às vezes, inesperados pelas autoridades
governamentais e surpreendentes para a coordenação do Movimento e demais integrantes do
mesmo. Como metodologia, esta Dissertação tem o cuidado de construir uma combinação
entre a análise de pesquisas realizadas junto ao MST e documentos do Movimento, a
observação participante e a narrativa de experiências de vida, possibilitada por técnicas de
história oral.
A observação participante ocorreu a partir da vivência deste pesquisador em
mobilizações do MST, enquanto o Movimento tinha suas lutas nos municípios pertencentes à
jurisdição pastoral de responsabilidade da Diocese de Cruz Alta. Na ocasião, este pesquisador
atuava como agente de pastoral, sendo membro da Comissão Pastoral da Terra.
Como técnica de história oral, realizei entrevista com dois assentados que
participaram inicialmente no Movimento a partir do Assentamento Boa Vista do Incra, e hoje
estão assentados na localidade São Mirim, município de Jóia, Rio Grande do Sul. A escolha
deste casal como protagonista da presente pesquisa se deve a sua liderança junto ao
Movimento.
O texto se estrutura em quatro capítulos, procurando abordar, de forma integrada, A
Agricultura Moderna como contexto de nascimento do MST; Como a Globalização produz
exclusão e a luta do MST pela inclusão; A Contrução do Sujeito na Luta dos Sem-Terra e
Relatos da História de Vida: Os Homens Lutando por uma Nova Forma de Inclusão A
Reforma Agrária.
No primeiro capítulo, inicialmente situo a agricultura moderna, as mudanças
ocorridas na indústria e na própria agricultura, e o papel do Estado na constituição das
14
condições de viabilização da modernização. As resistências que se encontram para a
implementação das mudanças e como ocorre a modernização em Boa Vista do Incra - que é a
base social dos assentados entrevistados por esta pesquisa - também são discussões presentes
nesse capítulo. Apresento, ainda, considerações sobre a Educação popular, Educação e MST,
Educação Resiliente, Solidariedades institucionais e as contribuições para a luta do
Movimento. Por fim, elenco os princípios fundamentais do MST, o seu papel civilizatório, e
as relações e papéis do MST como um movimento instituído.
No segundo capítulo, procuro descrever a globalização hegemônica e a resposta
contra-hegemônica das organizações do campo e movimentos sociais. Trago reflexões sobre
os meios de comunicação como instrumento de criar hábitos e costumes homogêneos, através
de rede de computadores e navegação na Internet; sementes híbridas e a biotecnologia dos
transgênicos, que causam mudanças significativas e materializam a face rural dessas diversas
mudanças; as diferentes tecnologias, seus benefícios e suas mazelas. Como pobres elaboram
discursos e debates sobre a exclusão, na contemporaneidade; seus efeitos sobre o psiquismo e
organismo humano; de que forma as relações capitalistas produzem subjetividades para se
sustentar e se manter, “realizar-se” ou “realizar” o mercado; como o desempenho e a condição
de sujeito estão em dependência das relações que se estabelecem consigo e com os outros são
aspectos abordados nesse capítulo.
No terceiro, teço considerações sobre a temática da subjetividade humana, da
construção do sujeito na relação com a questão local da luta dos Sem-Terra; do conjunto de
dinamismos que compõem o humano e a potencialização de alguns deles para que as pessoas
constituam-se como seres relacionais, criadores de projetos, sustentados por ideais, planos e
ções, numa sociedade constituída por pessoas com práticas resilientes, que se tornam sujeitos
enquanto se posicionam contra o cerceamento de sua autonomia.
15
No quarto movimento textual apresento as histórias de vida do casal de assentados,
iniciando com a descrição da trajetória, que antecedeu a situação de acampamento, ocorrida
nas comunidades de origem dos dois integrantes do MST. A segunda parte trata do
acampamento, dos desafios iniciais na adaptação e os passos, cada vez mais exigentes, que a
situação de acampado desenhava. Versa sobre as tarefas de pesada responsabilidade na função
de coordenação, as marcas na identidade de cada um, a função também alimentadora da luta
do chimarrão, do baralho e do futebol e, por último, algumas nuances de gênero presentes nas
manifestações cotidianas e avaliações do vivido.
Este trabalho é fruto e conseqüência de uma experiência de militância de 20 (vinte)
anos junto a Associações de Bairros, Sindicatos de Trabalhadores na Alimentação e de
Metalúrgicos, Movimento Sem-Terra e, nos últimos 11 (onze) anos, de um acompanhamento
mais próximo realizado junto ao MST, em suas ocupações de prédios públicos, propriedades
improdutivas, caminhadas e cursos, encontros e celebrações em acampamentos, tendo em
vista o serviço de animação da luta pela reforma agrária. Sempre foi objeto de admiração o
segredo pelo qual pobres e excluídos, em meio às condições desumanas conseguem manter a
alegria e buscar alternativas de vida que amenizam seus sofrimentos; como conseguem tanta
alegria e realização mesmo que seja por um tempo exíguo.
Para esclarecer ainda mais tais considerações, tracei, ao planejar a realização deste
trabalho, algumas perguntas para as quais quero encontrar respostas:
a) Como e até onde o indivíduo que sofre relações de exclusão na sociedade, adapta e
canaliza suas energias e capacidades para construir relações que lhe permitam alcançar
a sobrevivência e inserir-se no mercado de produção e consumo?
b) Que esforços de “engenharia psíquica” o levam ao protagonismo; a estruturar com
grupos sociais, relações ricas de valorização, proteção e apoio?
16
c) Por que o excluído sozinho é frágil, facilmente combatível, e em grupo
(acampamento) se torna força política e social capaz de conduzir mudanças
estruturais?
d) O que estimula o heroísmo combatente na formação recebida nos acampamentos,
marchas, ocupações e nos espaços formais de educação?
e) Como os acampados, frente a tantos momentos de instabilidade, perigo e insegurança
para a vida, vão buscar o que contribui decisivamente para a sua saúde física e
harmonia mental?
São estas algumas das questões que me intrigam e me fizeram construir a presente
Dissertação.
17
CAPÍTULO 1
AGRICULTURA MODERNA COMO CONTEXTO DO NASCIMENTO DO MST
O processo de modernização, expressão da evolução de uma economia capitalista fez
com que o desenvolvimento industrial brasileiro, intensificado a partir da década de 50 do
século XX, gerasse amplos reflexos nas áreas urbanas do País. A agricultura, para se
modernizar, teve suas demandas atendidas e ofertas absorvidas, especialmente a partir da
década de 60, e de forma dependente do setor industrial, quando foi facilitado aos agricultores
o acesso a produtos e insumos industrializados, grande parte diretamente fabricada no país,
atendendo às necessidades e atividades próprias do campo. Neste período, a indústria, o
comércio e os bancos reestruturaram suas atividades e a agricultura passou a se adaptar às
novas formas de produção e circulação de produtos com toda a expectativa de rentabilidade
daí decorrente.
[...] No processo de desenvolvimento capitalista brasileiro do pós-guerra, a
agricultura se converteu gradativamente num setor subordinado à industria e por ela
transformado. Foi no final da fase da expansão do ciclo da industrialização pesada
brasileira que se instalaram no País as principais indústrias de insumos agrícolas (em
particular a indústria de tratores e máquinas, rações, medicamentos veterinários,
18
etc.). A partir daí, a agricultura não podia ser mais vista apenas no seu papel
“passivo”, ela iria constituir-se cada vez mais num mercado não de bens de
consumo, mas de meios industriais de produção, quer como compradora de certos
insumos quer como vendedora de outros. É a isso que chamamos o processo de
industrialização da agricultura brasileira, num duplo sentido: o da elevação da
composição técnica nas suas unidades de produção e o da subordinação do setor aos
interesses do capital industrial e financeiro (SILVA, 1982, p. 46).
Segundo Brum (1983, p. 69), “no período, a atividade agrícola só teria dois caminhos
para tentar enfrentar e superar suas deficiências e problemas: a alternativa da reforma agrária
e a alternativa da modernização conservadora. O Brasil optou por este segundo caminho”.
Segundo este mesmo autor,
a segunda, a estratégia da modernização conservadora, tem por objetivo o aumento da
produção e da produtividade agropecuária mediante a renovação tecnológica, isto é, a
utilização de métodos, técnicas, equipamentos e insumos modernos, sem que seja
tocada ou grandemente alterada a estrutura agrária [...]. Esta opção começou a ser
feita na década de 50 e foi levada avante com maior determinação e intensidade
após 1964. Por meio desta opção se constituiu o chamado “Modelo Econômico
Brasileiro, capitalista, associado, dependente, concentrador, exportador e excludente
(BRUM, 1983, p.79- 80.).
Almeida (1992), citado por Carvalho (2005), vai mostrar como as mudanças
ocorridas na estrutura econômica do país não foram realizadas por acaso. O Estado brasileiro,
lembram os autores, teve papel decisivo na criação das condições políticas, institucionais e
econômicas para que a modernização se efetivasse de maneira rápida, em grande escala e de
forma conservadora.
As exigências de consolidação e reprodução em larga escala do modelo de
“industrialização da agricultura” comandaram uma drástica reestruturação dos
setores de produção de insumos e de transformação industrial, das instituições e
mecanismos de crédito, dos circuitos de comercialização e da estrutura dos
mercados. Mudanças adaptativas atingiram igualmente as instituições de ensino de
ciências agrárias, sobretudo através dos convênios de cooperação entre as grandes
universidades brasileiras, americanas e instituições internacionais de pesquisa.
Fechando o círculo das condições de viabilização da modernização, o Estado definiu
um amplo e complexo conjunto de instrumentos de intervenção – leis, regulamentos,
programas, instituições que passaram a favorecer a expansão e a consolidação do
modelo no terreno técnico-científico e a regular as relações sociais e os conflitos
resultantes das mudanças na organização social e técnica da produção agrícola
(ALMEIDA, 1992 apud CARVALHO, 2005, p. 231.).
19
Estas estratégias, embora sofisticadas e estruturadas de forma a comprometer o país
com novas formas de organização da produção e da vida social, quando são implementadas,
acabam possibilitando que ambigüidades se manifestem. A vida social está permeada por
iniciativas humanas, instituições e visões de mundo diversas, cuja manifestação não chega a
estruturar culturas homogêneas de uma hora para outra. As resistências são possíveis e nem
sempre previsíveis.
O tempo atinge de forma muito diferente as instâncias de reprodução social.
Enquanto as técnicas avançam em ritmo que sequer temos capacidade de
acompanhar, mesmo em áreas muito especializadas, o mesmo não acontece com o
universo cultural que constitui as nossas formas individualizadas de ser no mundo.
O ritmo incomparavelmente mais lento da evolução das culturas pode ser verificado
no nosso cotidiano, na nossa dificuldade em utilizarmos o potencial informático, não
por razões técnicas, mas por atitudes enraizadas em décadas de uma determinada
cultura de trabalho (DOWBOR, 1998, p. 22).
Segue o autor citado ajudando-nos a aprofundar nossas reflexões:
Estruturas empresariais, instituições de governo ou organizações da sociedade civil,
como sindicatos e outros, acumulam, além de resistências culturais à mudança que
vimos acima, um conjunto de fatores de inércia, como interesses corporativos, lutas
por poder e prestígio, que fazem com que instituições possam permanecer inertes
ainda quando todos os seus membros estejam de acordo com o que se deva mudar.
Se considerarmos o universo jurídico que de certa forma codifica o contexto das
próprias mudanças institucionais, esta diversidade de ritmos de evolução das
diferentes instâncias de uma sociedade fica ainda mais gritante. Periodicamente
afloram leis em pleno vigor sobre o tratamento a se dar a um cavalo, datando de
quando este era um meio vital de transporte [...] enquanto não temos sequer
embriões de regulamentação das manipulações genéticas descontroladas que se
multiplicam em todo o planeta. De certa forma, somos vítimas de um cérebro cujas
capacidades inventivas são incomparavelmente maiores do que a nossa frágil
capacidade de nos organizarmos como sociedade civilizada (DOWBOR, 1998,
p.24).
A forma persuasiva como o sistema capitalista propõe e implementa mudanças não
garante que o proposto se realize conforme o esperado. Isto porque, ao não considerar as
culturas locais, age mediante a persuasão, o que nem sempre leva os indivíduos a
20
incorporarem o proposto como forma de vida. Isso porque os indivíduos, tendo suas
necessidades e preferências, podem transformar as mesmas em resistência - rejeitando aquilo
que é apresentado como novo ou moderno e conservando neles o que na sua concepção é
essencial.
Mesmo no caso em que as transformações se fazem bruscamente, através, por
exemplo, de um processo acelerado de industrialização, ao qual não se associe um
esforço de ão cultural, em que pese a tendência à superação das forças mágicas de
comportar-se, muita delas são mantidas, expressando-se, apenas, diferentemente, em
função dos novos elementos introduzidos, enquanto outros se cristalizam como
tradição (FREIRE, 1983, p. 20).
As relações de poder, em qualquer sociedade não totalitária, têm aberturas, ainda que
restritas, ao diverso.
O que é essencial para nós, é constatarmos que hoje um “gap”, um fosso gritante
entre a evolução das tecnologias e a evolução das outras instâncias de reprodução
social. Como as instâncias cultural, institucional e jurídica da sociedade avançam em
ritmo muito mais lento do que as tecnologias, gera-se uma desarticulação entre as
diversas dimensões da sociedade (DOWBOR, 1998, p. 27.)
A região Noroeste do Rio Grande do Sul, no momento em análise, vive uma situação
cultural e tecnológica também de descompasso como as demais. Ela foi afetada pelo processo
de modernização em diferentes momentos. Como parte desta região, situando-se no município
de Cruz Alta, Boa Vista do Incra vivia uma situação isolada geográfica e socialmente e em
poucos anos teve duas experiências diferentes da modernização da agricultura.
A primeira foi
a partir de 1964 [quando] a Fazenda foi arrendada por completo, a Aparício Martins
Stefanello, “com direito a subarrendamento”, quando “os granjeiros foram chegando
e ocupando todas as terras da Fazenda. A gente era agregado, tinha umas cabeças de
21
gado, uns porquinhos, umas galinhas ao redor de casa, ficou tudo difícil. Com as
plantações dos granjeiros, não dava mais para permanecer com nosso jeito de criar.
O pessoal foi se retirando, indo para a cidade, como aconteceu conosco em 1967”,
testemunha Pedro Costa. As famílias moradoras da Fazenda tiveram dificuldade de
se acostumar com o novo jeito de tratar a natureza. Habituados com a tranqüilidade
dos cantos dos pássaros, com o mugir das vacas, com o verde das gramas, com o
trotear dos cavalos, de repente: Trator “roncando” dia e noite. Caminhões passando
cheios de adubo, de calcário e de sementes e, depois levando milhares de sacos de
grãos. Os rios e os udes começam a ficar com as águas avermelhadas. Aviões
jogando venenos nas lavouras. Foi muito difícil entender essa mudança diz Dona
Conceição Costa (FRONCHETTI, 1998, p.27).
Foi desta forma que aconteceu em 1967, na Região de Boa Vista do Incra, a primeira
experiência de êxodo rural, resultante do arrendamento das terras de Marcial Gonçalves Terra
pela família de Aparício Martins Stefanello que implementou, o processo de modernização da
agricultura, dispensando os peões da fazenda. Por outro lado, executando planos do
capitalismo no Estado, no que se refere à infra-estrutura, a Companhia Estadual de Energia,
avaliando condições geográficas e hídricas planeja barragens nesta região, para que fossem
fornecidas condições para o progresso através da modernização. A energia elétrica favorece a
venda de eletrodomésticos e aumenta o conforto para seus usuários e o petróleo movimenta
máquinas e motores gerando rapidez no desempenho das atividades produtivas. Sem energia
elétrica, a modernização nas residências e propriedades rurais torna-se inviável. A mesma
Companhia, ao construir uma barragem na região, concentrou-se só na execução da obra, não
planejou, nem estudou os efeitos desta, a desestruturação social que a mesma geraria para a
região, não planejou o assentamento das famílias envolvidas com a atividade agrícola, que
dali seriam despejadas, e também não colocou em outras áreas as demais famílias envolvidas
com outras atividades, como o comércio e os profissionais liberais. Informações
desencontradas foram amplamente disseminadas, a tal ponto que os agricultores foram
“atropelados” pelo crescimento do nível das águas, não retirando de sua propriedade os
objetos e pertences que poderiam ser úteis na nova localidade para onde foram dirigidos.
22
É difícil imaginar o que pode sentir alguém que deve deixar para trás tudo que
construiu na vida, tendo que sair rapidamente. Deixar, além do patrimônio, as
histórias de vida, a sua relação com a natureza rios, árvores, as terras, os animais,
os morros [...] sabendo que nunca mais poderá ver essa natureza, além do
rompimento da vida da comunidade (FRONCHETTI, 1998, p. 58-59).
A decisão de trabalhar pela organização desta gente deve-se à liderança de pequenos
agricultores que tomaram a iniciativa de organização dessas famílias para que pudessem ter
acesso a um pedaço de chão. Marcados pelas atividades com a terra, nas diferentes estações
do ano, sendo pessoas simples e “não estudadas”, construíram um exercício de liderança, ou
seja, um exercício de dar direção a ações junto ao povo, mesmo sem a certeza de que
conseguiriam o pretendido - serem proprietários de terra. Estas lideranças tiveram a
companhia de agentes do regime militar em suas reuniões e os mesmos, como espiões,
argumentavam que tinham apenas a defesa de direitos legítimos, intervindo para que a
desapropriação das terras fosse agilizada.
Se por um lado o militarismo cercou o processo de organização e o crescimento de
uma consciência política, por outro lado, os documentos e os depoimentos
comprovam a ação decisiva dos militares na definição do processo de
reassentamento, fazendo com que o governo comprasse um lote por família (25
hectares para que depois os agricultores pagassem [...] ) (FRONCHETTI, 1998, p.
54).
Os agricultores da Fazenda de Boa Vista do Incra passaram, em um curto espaço de
tempo, por duas mudanças marcantes: a primeira foi a inundação de suas terras pelas águas da
Barragem do Passo Real, que os obrigou a uma retirada inesperada e rápida de suas terras. O
outro momento foi instituído quando o INCRA impôs aos assentados a forma de organização,
não respeitando a tradicional forma de trabalho, a que aquele grupo estava habituado, como
mutirão, mútua-ajuda, empreitadas. Essa organização não levou em conta também que
aglutinou, no assentamento, pessoas que não tinham relação de vizinhança, de trabalho, de
23
amizade. Em seu trabalho utilizavam os instrumentos da agricultura camponesa tradicional:
enxada, machado, máquina manual de plantio e os recursos que administravam eram, em
geral, dinheiro resultante do trabalho semanal. Por serem os agricultores, na sua grande
maioria, peões as atividades que executavam eram decididas pelos patrões, não havia poder de
decisão sobre o que e como fazer. Contudo, o INCRA, desconhecendo todos estes aspectos,
[...]aglutinou os agricultores em grupos de mecanização abrangendo de 10 a 14
famílias, considerando a proximidade dos lotes. Essa formação visava, basicamente,
facilitar financiamentos para aquisição de máquinas e insumos, introduzir no
assentamento o “pacote tecnológico da agricultura mecânico-química”, direcionar a
mão-de-obra para a agricultura de monocultura exportadora, realizar a administração
e a comercialização coletiva, como mostram os documentos do Relatório do PIC
Projeto integrado de Colonização Passo Real, Incra, 1980. Os grupos de
mecanização “foram marcantes nos primeiros cinco anos de reassentamento, pois era
por eles que se adquiriu as máquinas e equipamentos para a produção
(FRONCHETTI, 1998, p. 72).
Levando em conta informações que constam no RELATÓRIO do PIC - Projeto
Integrado de Colonização Passo Real (INCRA, 1980), percebem-se algumas razões do fraco
desempenho e do insucesso desses grupos de mecanização, quais sejam:
a) A falta de habilidade administrativa dos encarregados do Incra, em compras
equivocadas, trazendo prejuízo expressivos aos agricultores,
b) A junção das famílias ao grupo feita de maneira extremamente autoritária,
não ocorrendo discussões que oportunizassem uma efetiva organização,
c) Grupos formados por pessoas estranhas entre si e com costumes e culturas
bastante diferentes.
d) [...] foram obrigados a produzirem para o mercado com insumos modernos,
mecanizando a produção [...] ao invés de produzirem primeiramente para a
subsistência da família [...]
e)
O próprio modelo tecnológico adotado dispensa a entre - ajuda (mutirão,
cooperação, como era costume entre os proprietários, meeiros e arrendatários), pois
a máquina passou a substituir as pessoas. (FRONCHETTI, 1998, p. 73-74.)
.
Dentre as desatualizações da sociedade civil, está sua incapacidade de captar todos os
pleitos, principalmente, daqueles cuja engrenagem o sistema não atende. E é por isto que o
24
Movimento Sem Terra - MST -, na condição de Movimento Social, acolhe em suas fileiras
seres humanos “descartados” pelo tipo de política agrícola e agrária em andamento no país. O
MST reúne aqueles que não fazem parte do grupo de possuidores dos meios de produção no
campo; agrega aqueles que não estão comprometidos com a exploração e acumulação
capitalistas, os trabalhadores informais do campo. São estes que emergem de um lugar de
privação, do não ter bens, do não ter espaço para trabalhar e morar, do não poder cultivar
relações menos desiguais; humanos moldados por violações, proibições e constrangimentos
que produzem a exclusão.
No Brasil,
foram cadastrados em 1972, aproximadamente 4,23 milhões de famílias residentes
nos imóveis rurais.
2
Dessas cerca de 1,92 milhões eram proprietários (e posseiros)
que residiam no imóvel (Estatísticas preliminares do convênio Incra/Serpro). Por
diferença temos cerca de 2, 31 milhões de famílias residentes “Sem Terra” que
podem assim ser discriminadas:
-arrendatários sem assalariados permanentes: 0,10 milhão;
-parceiros sem assalariados permanentes: 0,40 milhão;
-outros: 1,81 milhão (SILVA, 1982, p. 153).
Sabe-se também que
os dados captados pelo Incra m facilidade de quantificar proprietários (posseiros),
mas, dificuldade de especificar exatamente quais eram em números, os
arrendatários, subarrendatários, parceiros autônomos, parceiros subordinados,
dependentes, assalariado permanente e outros. Este é o quadro não descrito com
precisão por parte do órgão pesquisador mas que diz a quantidade de pessoas pela
sua condição social se enquadram nos critérios exigidos para participar no
movimento. A dificuldade de captação de informações mais precisas se deve a dois
motivos: primeiro, “omissão por parte dos proprietários com receios de
conseqüências fiscais; segundo, a declaração dos contratos de arrendamento e
parceria, sem mencionar os subarrendatários e subparceiros (SILVA, 1982, p.151-
152).
2
Censo Agropecuário de l975,FIBGE(EC/1, tabela 1.09).
25
O MST, além das lutas que lidera e processo organizativo que possibilita, dirige suas
forças para divulgar e trabalhar com números que revelam as históricas de injustiças tanto na
posse, quanto no uso das terras no Brasil. Experimenta também novas formas de organização
de vida e de produção, no campo brasileiro, e vai se constituindo como direção política,
orientado a viabilizar um projeto de sociedade alternativo ao vigente.
No novo tempo dos novos movimentos aparecem sujeitos e sujeitas que irão
responder a esse processo de exclusão através do rompimento construindo um
sujeito coletivo que fala por muitas vozes, transformando-se, na nova linguagem
antropológica, em um lugar onde se encontram, confraternizam, identificam-se e
lutam. Esse sujeito coletivo
3
tem sido capaz de produzir um imaginário que unifica,
transformando-se na voz e no lugar dos excluídos (BONETTI, 2000, p. 206.).
4
O MST nasceu no sul do Brasil em função de um conjunto de fatores que têm suas
raízes nas condições objetivas do desenvolvimento da agricultura. Stédile (2000, p. 15) afirma
que a gênese do MST foi determinada por rios fatores. Aponta, como o principal deles, o
aspecto sócio-econômico das transformações da agricultura brasileira, especialmente as
ocorridas na década de 70. “Nessa década, houve um processo de desenvolvimento que José
Graciano da Silva, denominou de modernização dolorosa”
5
. Foi o período da mais rápida e
mais intensa mecanização da lavoura brasileira” (STEDILE, 2000, p.15).
A introdução da soja agilizou a mecanização da agricultura no Rio Grande do Sul,
especialmente com uma lavoura casada com o trigo, que já possuía certa tradição na região. A
mecanização da lavoura e a introdução de uma agricultura com características capitalistas
expulsaram do campo, de uma maneira muito rápida, grandes contingentes populacionais
3
Sujeito Coletivo: grupo de pessoas com disposição de posicionarem-se frente aos acontecimentos, tomar
decisões, de forma conjunta, predispondo-se a riscos e atuando de forma articulada com interesses e objetivos
comuns.
4
“O desenvolvimento do capitalismo, em particular no campo, é um caminho sempre cheio de contradições [...]
acentuandas tanto pelo caráter extremamente desigual do desenvolvimento das várias regiões do País, como pela
presença do Estado na sua condução[...]. Uma modernização que converte camponeses em proletários, chegando
ao extremo de estar ‘lumpenizando” esses trabalhadores”( SILVA, 1982, p.64).
26
naquela década. Eram famílias que viviam como arrendatários, parceiros ou filhos de
agricultores que recebiam um lote desmembrado da pequena propriedade agrícola de seus
pais.
Foi um período em que uma grande parcela da população rural ainda “fazia” uma
agricultura com uso intensivo de mão-de-obra; agricultura “atrasada” para os padrões
propostos na época, agricultura que utilizava muita mão-de-obra e pouca mecanização.
Com a mecanização, se liberou um enorme contingente de pessoas. Num primeiro
momento, essa massa populacional migrou para as regiões de colonização, especialmente
Mato Grosso, Rondônia e Pará, em projetos de colonização do governo ou em associação com
cooperativas e grupos privados. O governo dirigia uma parcela desses excedentes
populacionais para os projetos de ocupação da Amazônia.
Havia também um grande contingente dessa população expulsa do campo que foi
para a cidade, motivado pelo acelerado processo de industrialização. Era o período do
chamado “milagre brasileiro”. “No final dos anos 70, começam a aparecer os primeiros sinais
da crise da indústria brasileira, que irá se prolongar por toda a década de 1980, conhecida
como a década perdida” (STEDILE, 2000, p. l5). Observa o autor citado:
Do ponto de vista socioeconômico, os camponeses expulsos pela modernização da
agricultura tiveram fechadas essas duas portas de saída o êxodo para as cidades e
para as fronteiras agrícolas. Isso os obrigou a tomar duas decisões: tentar resistir no
campo e buscar outras formas de luta pela terra nas próprias regiões onde viviam. É
essa a base social que gerou o MST. Uma base social disposta a lutar, que não aceita
nem a colonização nem a ida para a cidade como solução para os seus problemas.
Quer permanecer no campo e, sobretudo, na região onde vive (STEDILE, 2000, p.
17).
Neste ambiente de insatisfação com as alternativas que eram oferecidas, não no
Rio Grande do Sul, mas também em outros estados da Federação, criou-se um clima propício
para o surgimento de algo novo. Este algo novo, constituição do Movimento, favoreceu a
27
compreensão das iniciativas que viriam a ser tomadas e os fatores que contribuíram para que
“ocorresse o que ocorreu”.
[...] o MST nasce das lutas que já ocorriam, simultaneamente, nos Estados de Mato
Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Este
primeiro aspecto é socioeconômico. O segundo é ideológico. Quero ressaltá-lo
porque é importante na formação do movimento. É o trabalho pastoral,
principalmente da Igreja Católica e da Igreja Luterana. Como marco institucional
deste serviço pastoral foi o surgimento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em
1975 em Goiânia (GO), que foi muito importante para a reorganização das lutas
camponesas (STEDILE, 2000, p.19).
Embora a sociedade brasileira vivesse um momento pouco acolhedor às críticas e
proposições que fugissem à orientação política das elites e governo,
há um movimento de bispos, Padres, e agentes de pastoral, em plena ditadura
militar, contra o modelo implantado no campo. A CPT foi a aplicação da Teologia
da libertação na prática... Os Padres, agentes de pastorais, religiosos e pastores
discutiam com os camponeses a necessidade de eles se organizarem. A Igreja parou
de fazer um trabalho messiânico e de dizer para o camponês: “espera que terás terra
no céu”. Pelo contrário, passou a dizer: “Tu precisas te organizar para lutar e
resolver os teus problemas aqui na terra.”. A CPT fez um trabalho muito importante
de conscientização dos camponeses (STEDILE, 2000, p.20).
A Igreja Católica, desenvolvendo um processo de escuta dentro da própria
instituição, articula membros da hierarquia eclesial e leigos portadores de uma visão crítica,
organizativa e mobilizadora para colocarem sua missão e status a favor dos pequenos
proprietários do campo e dos excluídos. Com isso, organiza dentro da Igreja oficial a
Comissão Pastoral da Terra, órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e
responsável pelo cuidado de toda a problemática que envolvesse o mundo rural.
Percebendo que a gravidade da situação de exclusão e a força do Evangelho
sensibilizam participantes de outras religiões e que em outros estados a Igreja Luterana tem
uma caminhada mais dinâmica e com mais impacto sobre os anseios dos agricultores e Sem-
Terras. Aglutinam-se forças entre os dois credos da religião cristã, somando iniciativas,
28
discernimento histórico, econômico e político com a motivação evangélica. “Tive fome e me
destes de comer” (Mt 25,31-46) impedindo, desta maneira, a divisão do movimento e
constituindo uma grande caminhada de unidade para a luta e a missão.
ainda mais um aspecto importante do trabalho da CPT na gênese do MST. Ela
teve uma vocação ecumênica ao aglutinar ao seu redor o setor luterano
principalmente nos estados do Paraná e de Santa Catarina. Por que isso foi
importante para o surgimento do MST? Porque se ela não fosse Ecumênica, e se não
tivesse essa visão maior, teriam surgido vários movimentos. A luta teria se
fracionado em varias organizações. A CPT foi uma força, que contribuiu para a
construção de um único movimento, de caráter nacional (STEDILE, 2000, p.2l).
Junto com o MST, além do empenho eclesial, na sociedade estava presente uma onda
libertadora onde se somava um conjunto de lutas que canalizavam os anseios do povo, como
as mobilizações pela Reforma Agrária, greves nas cidades por melhores condições de
trabalho. Também estava presente o desejo de que em todas as instituições houvesse a
concretização da participação popular efetivando um processo amplo de transparência e
democratização. “Trata-se da situação política, do processo de democratização do País [...]
uma luta pela Reforma Agrária somou-se ao surgimento das greves operárias, em 1978 e
1979, e a luta pela democratização da sociedade” (STEDILE, 2000, p.22).
Neste ímpeto de somar forças para a mudança, o próprio MST, na sua constituição
organizativa e institucional, buscando aprender com lutadores de outros grupos que
acumularam lições e aprendizagem com impasses, acertos e dificuldades em outros tempos,
mas com identidade própria, decidiu:
Queremos ser organizados, com características populares, sindicais e políticas de
outro tipo [...] outra coisa importante que assimilamos, seguindo os conselhos do
Professor Martins, é ter abertura para aprender com os outros. Com o objetivo de
aprender, fizemos várias conversas seja com os remanescentes dos líderes das ligas
Camponesas, da Ultab, do Master, seja a CPT (STEDILE, 2000, p.38.).
29
Em nossa sociedade temos tantas instituições, onde algumas trabalham com o
comércio, outras com a indústria, produção, serviços, cultura, educação formal, etc. Nestas
instituições temos pessoas que, com afinco, trabalham para manter a sociedade com o atual
desenvolvimento pelo favorecimento que esta estrutura lhe dá. Também nestas instituições
temos pessoas que mesmo beneficiadas pelos resultados, cultivam solidariedade com outra
porção da população que enfrentam carências e dificuldades. E esta sintonia os leva a tomar
iniciativas que possam esclarecer, motivar e ter atitudes de mobilização estruturando cursos e
encontros de formação que favorecem a leitura da dinâmica da Sociedade pela ótica dos que
sofrem e são excluídos. Estes cursos, encontros, material didáticos, livros, revistas que
enfocam a estrutura a partir do interesse dos mais pobres denominamos de Educação Popular.
Educação que realiza o objetivo da Educação em geral, com aplicação específica ao grupo
referido.
E o objeto dessa Educação é
guiar o homem no desenvolvimento dinâmico, no curso do qual se constituirá como
pessoa humana dotada das armas do conhecimento, do poder de julgar e das
virtudes morais – transmitindo-lhe ao mesmo tempo o patrimônio espiritual da
nação e da civilização às quais pertence e conservando a herança secular das
gerações (MARITAIN apud BRANDÃO, 1985, p.65).
Para Brandão (1985, p.9), no que se refere à educação, “não existe uma forma única
nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez
nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é
o seu único praticante”.
Ainda considerando especificamente a Educação, afirma o referido autor que
ela ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através
de passar de uns para os outros o saber que os constitui e legitima. Mais ainda, a
30
educação participa do processo de produção de crenças e idéias, de qualificações e
especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e poderes que, em
conjunto, constroem tipos de sociedade. E esta é sua força (BRANDÃO, 1985,
p.11).
Para compreender, influenciar, intervir e enriquecer a identidade das pessoas e
organizações sociais em geral, em especial as ligadas ao campo, podemos contar com a
contribuição da Educação Popular que tanto pode ser resultado da intervenção das
organizações populares ou o elemento provocador para que tal organização se efetive.
A Educação Popular pode ser entendida “(...) como um processo educativo que se
vincula de forma estrita à ação organizada das camadas populares, visando contribuir para a
construção de uma sociedade em e de acordo com os seus interesses” (PALUDO, 2001,
p.100).
Como tudo o que envolve educação e, neste particular, a Educação Popular, para que
ela mantenha sua identidade, desenvolva seu conteúdo, integre a experiência dos
participantes, atenda aos novos apelos e desafios que as necessidades dos excluídos
expressam, é indispensável uma metodologia potencializadora das particularidades presentes
em cada um desses aspectos para que a mesma caminhe, o mais próximo possível, da história
viva desse grupo. E que organize iniciativas que agilizem alternativas de soluções,
estruturando os resultados que precisam ser alcançados.
Quanto a metodologia, o que vem se consolidando é a perspectiva da construção ou
produção do conhecimento fecundado pelo saber do educador e dos livros com a
vivência e o saber dos sujeitos populares inseridos nos processos. A relação parece
firmar-se como uma relação de sujeito para sujeito mediada pelo diálogo. Estes
sujeitos debruçam-se sobre o que buscam conhecer (objeto), utilizando os mais
diversos recursos (vivência e conhecimento do próprio educando, do educador,
textos, conhecimento já acumulado pelas organizações, métodos diversos), cujo
resultado é a compreensão mais profunda, ampla e crítica do que se buscou
conhecer, a qualificação na elaboração dos projetos das organizações e as
possibilidades de renovação das inserções práticas (PALUDO, 2001, p.206).
A metodologia dessa Educação Popular integra um conjunto de conteúdos, reflexões,
vivências e pesquisa para que, pelo seu desenvolvimento e riqueza, torne o conhecimento
31
amplo e profundo capaz de gerar nos envolvidos compreensão, discernimento e clareza para
articularem forças por grupos de interesses do campo popular, capazes de gerar
transformação.
Resgata-se, estuda-se e discute-se a história dos grupos, dos Movimentos, dos
negros, dos trabalhadores, da economia política, dos projetos de desenvolvimento,
da formação do povo brasileiro, do Brasil, do mundo. Por meio dela discutem-se os
projetos em disputa na sociedade (PALUDO, 2001, p.190).
Todas as ações também no campo popular necessitam de pessoas que estudam,
expressam sua compreensão comum, sintonizam lacunas, desenham seus sonhos que vão ser
levados ao conhecimento dos outros através de “(...) educadores, educandos, classes populares
envolvidas, lideranças, coordenadores, direções, vereadores, prefeitos. Exige-se de todos a
vivência prática dos novos referenciais de valores que vão se constituindo” (PALUDO, 2001,
p.193).
Todas estas pessoas e funções, mesmo que sejam portadoras de elevado propósito de
defesa dos interesses dos que vivem um quadro dramático de carência na vida, precisam
construir canais específicos que acolham um conjunto semelhante de demandas e estruturar
diferentes organizações. Isso para pleitear junto aos diferentes setores da sociedade a
especificidade de suas reivindicações. Temos grupos que acreditam na capacidade libertadora
e que ela possa estar mais presente na organização eclesial. Outros na organização partidária,
também temos aqueles que apostam na cultura, associações, cooperativismo, sindicalismo e
ainda outros que sinalizam para o exercício do poder nas suas diferentes instâncias como meio
mais rápido de realizar o sonho popular através de um exercício participativo.
32
1.1 - MST E EDUCAÇÃO
O MST, como movimento, faz parte do grupo constituído por aqueles que
desenvolvem uma Educação Popular que o qualifica como Movimento e aos seus integrantes.
O MST consegue associar em suas fileiras, junto com os homens e mulheres que aglutinam
princípios, objetivos, estratégias e táticas de luta que, reforçados com o conhecimento que
favorece amadurecimento das consciências, organização e mobilização, estabelece confrontos
com o poder Executivo, Legislativo, Judiciário, Econômico e Agrário deste País. Exerce,
portanto, pressão sobre todos esses “poderes”. Isto resulta também de uma sistematização e
conhecimento sobre a conjuntura do momento, forças em oposição e motivos históricos
porque esta conjuntura teve tal desfecho em um momento da história do Movimento.
Toda a dificuldade para implementar tal ação, somada ao aumento de pressão,
tensão, sofrimento e desgaste na implementação da mesma; todos estes conteúdos formam a
riqueza reflexiva que vai dando convicção aos participantes e permitindo uma formação
aquecida pelo embate e que desafia a assimilação das informações e uma articulação
discursiva que leva em conta os elementos fundantes desse quadro de exclusão. Por isso, para
o MST, “não existe o educador ou a educadora como personagem central ou senhor da
pedagogia, mas, sim, um ambiente (com tensões e contradições próprias da vida) que educa a
todos” (CALDART, 2000, p. 251). É o coletivo das pessoas, famílias, cleos, coordenação,
princípios e conjuntura que atuam fazendo com os passos dados, as aproximações e
movimentações tenham uma unidade de direção e de multidão reunida produzindo uma força
que instiga mudança.
A presença pedagógica do próprio Movimento. É, ele o sujeito educativo principal
do processo de formação dos sem-terra, no sentido de que por ele passam as
diferentes vivências educativas de cada pessoa que o integra, seja em uma
33
ocupação, um acampamento, um assentamento, uma marcha, uma escola
(CALDART, 2000, p.205).
Os Sem-Terra se educam como Sem-Terra (sujeito social, pessoa humana, nome
próprio) sendo integrantes do MST (coletivo referenciado), o que quer dizer: “construindo o
Movimento que produz e reproduz sua própria identidade ou conformação humana e
histórica” (CALDART, 2000, p.205) na luta, em casa, na escola e em outros espaços de
convivência.
Tendo como base o livro Pedagogia do Movimento Sem-Terra, (CALDART,
2000, pp. 208-237), verificamos que as principais matrizes pedagógicas, no sentido de
processos educativos básicos ou potencialmente (con)formadores do ser humano que o MST
põe em movimento no processo de formação dos sem-terra, são as seguintes:
Primeira matriz: Pedagogia da luta social. Por isto, manter os Sem-Terra em
estado de luta permanente é uma das estratégias pedagógicas mais contundentes.
Segunda matriz: Pedagogia da organização coletiva. Ou: como os Sem-Terra do
MST se educam enraizando-se e fazendo-se em uma coletividade em movimento. O ser
humano precisa de raízes, e somente consegue produzi-las quando participa de uma
coletividade. O MST se enraíza enraizando os Sem-Terra em uma coletividade que eles
mesmos constroem através de sua luta e organização.
Terceira matriz: Pedagogia da terra. Ou: como os Sem-Terra do MST se
educam em sua relação com a terra, o trabalho e a produção. A terra como elemento vivo,
com seus microorganismos, com sua estrutura de composição juntamente com os demais
seres vivos, com as estações do ano exigem do agricultor um trato que a respeita como terra e
ao mesmo tempo o agricultor educa seus hábitos, atitudes e atividades em sintonia com aquilo
que a terra precisa para proporcionar boa produtividade. Alfredo Bosi nos diz em sua
Dialética da Colonização (1998) que o latim, segundo ele, é uma língua entranhadamente
campesina, criou a expressão colere vitam, que significa, ao pé da letra, lavrar a vida,
34
indicando que a vida não é mais do que uma ação continuada, uma tarefa com que o lavrador,
enquanto labuta, lavra-se a si mesmo (BOSI, 1988, p.18-9). (...) Assim como é possível lavrar
a terra, trabalhando-a para que se reproduza em vida, alimentos, beleza, também é possível
lavrar o ser humano, justamente para que se produza e reproduza na plenitude de sua
humanidade, no seu fazer-se humano.
Quarta Matriz: Pedagogia da cultura. Ou, como os Sem-Terra se educam
cultivando o modo de vida produzido pelo Movimento. Esta é uma matriz pedagógica que se
realiza necessariamente misturada às demais. cultura na pedagogia da luta, na pedagogia
da organização coletiva, na pedagogia da terra e da produção, na pedagogia da história.
Olhando para o conjunto da trajetória histórica de formação dos Sem-Terra, o que se não é
tanto uma boa reflexão conduzindo à ação. Vê-se, muito mais, a força e a radicalidade das
ações que conformam a luta do Movimento, exigindo uma permanente reflexão que as
sustente ou consolide, fazendo dos sem-terra seus sujeitos efetivos.
“Do entrelaçamento das vivências coletivas, que envolvem e se produzem desde
cada família, cada grupo, cada pessoa, com o caráter histórico da luta social que representam,
se forma então a coletividade Sem-Terra, com uma identidade que não se enxerga olhando
para cada pessoa, família ou grupo de Sem-Terra em si mesmos, mas que se sente ou se vive
participando das ações ou do cotidiano do MST (p. 205). Esta experiência para Lins (2005,
p.12) é expressa pela palavra sinergia, porque é um “trabalho em conjunto com melhor
resultado do que o esforço em separado”. Cada sem terra isolado, perde sua força. O estar
junto aciona dentre deles e entre eles um vigor que somente se apresenta quando estão juntos.
E levando em conta o ingresso de cada sem terra na organização e sua perseverança na luta a
partir dos princípios, podemos nos inspirar em Lins (2005, p.43), que se serve de uma
experiência da metalurgia para expressar o que acontece com a entrada de um Sem-Terra no
Movimento e o que este ingresso modifica na consciência e postura do acampado. Quem
35
participa é imantado pelo Movimento, carrega sua mística, seus princípios, sua organização,
os defende e vai atraindo os que precisam entrar no movimento pela sua condição social.
Aqueles que se desligam do Movimento retornam a sua condição anterior como excluídos,
desprezados e insignificante para a sociedade.
(...) após aproximarmos um imã de uma das extremidades da mesma barra de ferro
doce esta passará a atrair a limalha. Observa-se, no entanto, que o poder de atração
desaparece quando retiramos o imã das proximidades da barra. Assim o imã criou
no ferro doce um magnetismo “não permanente”. Se esta experiência for feita com
uma barra de aço, a mesma continuará a atrair limalha, mesmo depois que o imã
excitador for afastado. O imã criou na barra de aço um magnetismo permanente,
tornando-o um novo imã ( LINS, 2005, p.43).
Assim podemos afirmar que uma vez participante da luta pela terra e, mesmo após a
conquista da mesma, torna-se um cidadão que traz consigo a formação, a organização, a
mística e o valor do MST para a conquista da terra e como força do campo popular que não
descansa enquanto a mudança não atingir outras parcelas da sociedade, que produz outros
tipos de excluídos integrantes do campo popular. Neste ponto específico tem importância a
comunicação, como canal de difusão destas novas pretensões, que se utiliza de expressões que
traduzem com ênfase as particularidades de cada atitude a ser desenvolvida, não importando
se a mesma é mais de ordem interna à organização do Movimento ou relativa à ordem
estabelecida que se propõe a mudar. Dentro do Movimento Sem-Terra, existe um conjunto de
expressões que constituem a comunicação e a linguagem sem-terra e as diferencia dos demais
grupos populares. As expressões “marchas”, “núcleo”, “barraco”, “ocupação”, “negociação”
fazem parte e movimentam as pessoas de forma organizada, registrando que as expressões se
deslocam com movimentos que podem ser diversos ou sincronizados, conforme as táticas
definidas e sua aplicação em um determinado momento, posicionando-se no lugar estratégico
exigido. Estas palavras orientam os movimentos de todos, educando a cada um para a
inserção na ação que o Movimento planejou. Por isto, qualquer lugar pode ser espaço rtil e
36
fonte de educação. Este lugar ao constituir-se em espaço onde ocorre uma ação decisiva,
resulta em amadurecimento para a luta. Quanto mais concentração de tensão, disputa,
confronto de forças, interesses em disputa, mais educativa pode ser a ação, tanto pela
variedade e intensidade de elementos presentes e também pelas conseqüências que trazem.
Assim ambiente educativo são as condições criadas para que determinada ação ou
atividade seja feita. Na perspectiva de educar seus sujeitos, dando ênfase as
relações e aos processos que se estabelece entre as pessoas, os objetos, os tempos e
os espaços, mais do que as estruturas materiais ou de organização em si mesma
(CALDART, 2000, p.251).
Os ambientes que fazemos parte nos ensinam especialmente pela quantidade de
dificuldades e obstáculos que criam, quer de trânsito, de propriedade dos meios de produção
ou jurídicos. Quase tudo para o pobre e excluído é difícil, doloroso e demorado. Se
encontrarmos motivação para mudança, a imaginação é o instrumento facilitador e
organizador de estruturas mais perfeitas e completas com capacidade de fazer a sociedade ser
o espaço que oportuniza mais opções de solução para problemas. Se quisermos que os sonhos
sejam assumidos por mais pessoas e os que virão tenham em sua identidade estes contornos,
defendendo os mesmos com convicção, precisamos juntamente com todos os que assumem
este projeto, e os que irão assumi-lo, especialmente as mulheres que acompanharão educando
os que crescem ao nosso lado, a serem introduzidos nas razões, nos desafios e nos benefícios
desta escolha. Podemos afirmar que a educação do MST tanto a escolar como a não escolar
- é uma Educação Popular e está comprometida com um projeto de desenvolvimento do
campo popular. Isso porque além de lutar pela reforma agrária, que é pleito popular,
conseguiu empenho forte e resultado para que se organize uma educação com rosto e
identidade voltada ao campo e, hoje, a mesma está estruturada, organizada, regulamentada, e
a serviço dos interesses dos que lutam no campo.
37
O princípio de educar gerações, e então as novas ênfases pedagógicas ligadas à
cultura, aos valores, como forma de fazer a ligação entre as novas gerações e o
projeto histórico do MST; também reforça o lado terno do Movimento, que se
fazia presente com a incorporação do jeito feminino, ficou ainda mais forte com a
presença das crianças. Sem-Terrinha, sim senhor, Sem-Terrinha com amor!
(CALDART, 2000, p.195).
Nenhum projeto tem possibilidade de continuidade sem que ele mesmo se
encarregue de formar pessoas defensoras dele e ao mesmo tempo, seres com abertura, capazes
de ir descobrindo genes de novidades que atendam as perspectivas a que os sonhos sinalizam.
1.2 - EDUCAÇÃO E RESILIÊNCIA
A palavra resiliência traz a nós aspectos que podem ser associados às formas como
se constroem, recuperam, preparam, fortalecem e sustentam as subjetividades humanas,
capazes de assumir desafios, como a luta pela terra, vista como um dilatar da capacidade de
resistir às condições subumanas da exclusão e como estágio temporário e necessário para a
conquista da terra como instrumento de inclusão.
Frente a tantas instituições que trabalham a experiência e a riqueza da palavra
educação, é fundamental, especialmente no campo popular, que cada uma delas perceba que
uma das suas tarefas é criar um conjunto de resistências capazes de manter o rumo da vida e
da história em suas mãos daqueles que se educam. Isto envolve elementos como estrutura de
salas, metodologia, professores, material didático, diferentes conteúdos para que a partir deles
se possam dar passos em frente facilitando que, com o auxílio da educação, brotem pessoas
que desejam muito mais do que resistir. Pessoas que desejam, acima de tudo, combater as
estruturas que as colocam em condição deplorável. Mesmo,
38
(...) num mundo complexo, multideterminado e muitas vezes impiedoso, parece ser
mais exeqüível incentivar as capacidades auto-protetoras individuais, numa
reciclagem das vicissitudes, do que conseguir efetivamente modificar as condições
de existência das pessoas e sociedades de forma a banir a injustiça e a desigualdade
(TAVARES, 2002, p.96).
Diante de uma situação mundial em que nos sentimos impotentes para articular
forças para construir possíveis alternativas de mudança, é necessário encontrar dentro do
humano um exercício que reforce suas energias interiores para resistir às desestruturações
constantes e cada vez mais abrangentes e graves. Para alimentar esta tentativa de
fortalecimento interior, busco o sentido da palavra resiliência a partir de Tavares (2001, p.69)
que
discute a origem do termo sob três pontos de vista: o físico, o médico e o
psicológico. No primeiro, a resiliência é a qualidade de resistência de um material
ao choque, à tensão, à pressão, a qual lhe permite voltar, sempre que é forçado ou
violentado, à sua forma ou posição inicial por exemplo, uma barra de ferro, uma
mola, elástico etc. No segundo, a resiliência seria a capacidade de um sujeito
resistir a uma doença, a uma infecção, a uma intervenção, por si próprio ou com
ajuda de medicamentos. E, no terceiro, a resiliência também é uma capacidade de
as pessoas, individualmente ou em grupo, resistirem a situações adversas sem
perder o seu equilíbrio inicial, isto é, a capacidade de se acomodar e reequilibrar
constantemente.
Para o exercício do equilibrar-se constantemente, cada ser humano, em sua vida, é
afetado por tanto fatos e situações, variando o grau com que cada um é atingido em sua
subjetividade, variando, desta forma, a necessidade da intensidade de solidariedade e ajuda
que vai precisar para a sua reconstrução.
Enquanto a resiliência, como reações de resistência, fortifica a subjetividade
humana, o MST consegue, pela sua formação e organização, produzir e servir-se desta força
para mobilizar seus lutadores para conquistarem seus direitos. Isso ocorre de tal maneira que
esta vitalização interior transforma-se em aumento de intensidade da luta para a superação das
estruturas que dificultam o acesso ao pedaço de chão. O MST, como organização, fundamenta
39
sua atuação baseada na necessidade de cada Sem-Terra. Esta necessidade faz com que os
Sem-Terra enfrentem de forma corajosa uma caminhada, com reveses e impasses, construindo
uma educação que tem também como conteúdo tensão e conflito. Uma educação que vê como
necessária uma reflexão sobre cada momento, incluindo sua multiplicidade de elementos: o
que é decisivo para a organização na conjuntura para que tudo se torne novamente motivação
para novos momentos da luta. Toda essa dialética - momento político, ação MST, processo de
avaliação e ação novamente - vai criando na subjetividade dos lutadores um fortalecimento de
suas convicções e resistências, cada vez mais fortes, aos obstáculos, capazes de imprimir em
sua identidade a coragem e a ousadia para enfrentar situações cada vez mais complexas e
dramáticas.
O MST, pela construção de reservas de resiliência em seu povo, vai adiante, serve-se
deste lastro de vitalidade e vigor, coloca-o em situação de proximidade, estimula a partilha de
sabedoria - somatório de confronto, união e educação - organiza esta energia desenvolvida e a
transforma em acampamento, marchas e em outras estratégias de luta. São pessoas resilientes,
organizadas em sua maioria, gerando e constituindo uma organização resiliente, que estimula
“evolução” nas subjetividades, realimentando a organização, fazendo essa mais
enraizadamente resiliente.
A Educação desenvolvida no MST compõe a riqueza formativa da Educação
Popular, diversificada por cada organização social que elabora seu conteúdo específico. Os
formadores, assessores, intelectuais orgânicos foram desenvolvendo a consciência política e
organizativa com os exercícios resilientes criando nos acampados, especialmente, um
fortalecimento de seus mecanismos interiores para enfrentar situações mais duras e perigosas
do que as situações cotidianas geradas na e pela exclusão. Por isto é uma riqueza o fato de o
MST sintetizar três movimentos em seus processos educativos: a educação popular e suas
contribuições de cunho político, cultural e pedagógico, o outro que acontece pela dureza da
40
vida do excluído fomentado pela formação em luta do MST e um terceiro que acontece por
meio da educação resiliente, educando e criando estruturas facilitadoras para a resistência
entre os acampados e assentados. Com isso também foi provocando o exercício de vitalização
interior para resistir em tempos tão longos de instabilidade, mesclada com poucas condições
de vida e somada ao rico quadro das oscilações do psiquismo humano, possibilidade real de,
em meio aos desequilíbrios reencontrar um equilíbrio tão caro e tão fundamental. As
condições externas pressionam para acontecer o desequilíbrio, o desmonte, a desestruturação,
a dessubjetivação; o Movimento Popular com sua Educação Popular, o MST com sua prática
educativa, organizativa, mobilizadora, protagonizando reflexões, ações e reações resilientes
recuperam o equilíbrio, favorecendo a reestruturação e reconstrução da subjetividade do
excluído, reconhecendo o seu protagonismo que é sinérgico.
Foi a partir deste conjunto de conteúdos, metodologias, espaços educativos, fatos e
avaliações trabalhados na confluência entre Educação Popular, Educação do Movimento - que
produziram uma Educação Resiliente (mesmo sem ter consciência desta expressão), que o
MST, como movimento e organização social
6
, aprendendo também com a experiência de
educação de outras instituições do campo popular -, organizou sua identidade e decidiu sobre
os princípios, que deveriam fundá-lo. Conforme Stédile (2000), os princípios fundamentais do
MST são os seguintes:
1- Direção Coletiva com um Colegiado Dirigente;
2-Divisão de tarefas aproveitando diversidade de aptidões e de habilidades;
3-Disciplina: respeitar decisões das instâncias. Fazer regras e respeitá-las.
4-Estudo: combater o voluntarismo.
6
Para Martins (1997, p. 115), “O MST não é mais movimento social. É uma organização. Ele tem uma estrutura,
um corpo de funcionários. não tem as características de um movimento social. A tendência dos movimentos
sociais é a de desaparecerem uma vez atingidos ou esgotados seus objetivos ou sua capacidade de pressionar, ou
se transformaram em organizações, partidárias ou de outro tipo. Isso é próprio da dinâmica dos Movimentos
Sociais. Os Movimentos sociais existem enquanto existe uma causa não resolvida. Se o problema se resolve,
acaba o movimento. Se ele o se resolve, a tendência é a de que o movimento se institucionalize, se transforme
numa organização, como é o caso do MST”.
41
5-Formação de quadros. Precisamos de quadros técnicos, políticos, organizadores,
profissionais de todas as áreas.
6- Luta de massas. O povo conseguirá obter conquistas se fizer luta de massa. É
isso que altera a correlação de forças políticas na sociedade.
7- Vinculação com a base. Por mais alto vel que tenha um dirigente, se não
mantiver atividades de base não irá longe.
Além de todos os princípios destacados outro aspecto indispensável e decisivo para
organização é criar mecanismos para ouvir e consultar, se abastecer da força e da
determinação do povo (idem, p.39-43).
O pobre, o excluído é fruto, dentre outras causas, da predominância da influência do
sistema neoliberal. Esta influência na condição de excluído, na situação que vive pode
favorecer a construção de esquemas mentais que podem conduzir à destruição de sua própria
imagem ou ter percepção estrutural do problema, podendo também fazer escolhas que
contemplem percepções supersticiosas, ingênuas ou mágicas de sua história pessoal.
Para Bosi (2003, p. 134), “o sistema que transforma milhares de trabalhadores em
párias faz visível a correlação entre crime e pobreza. A discrepância social é, além disso, um
solo fértil para a superstição”. Segue o autor: “É terreno para o Acaso, a Sorte, a Fortuna, os
Astros, onde vicejam o jogo, a loteria, os videntes” (p. 134). É decisivo para o sistema que o
povo excluído continue pensando e atribuindo a forças, fora dos mecanismos de mercado, a
culpa ou responsabilidade pelos problemas que o afetam. Por lhe faltar formação e
discernimento político, especialmente conjuntural, não percebem e interpretam que é comum
em nosso cotidiano o confronto entre forças antagônicas, a mixagem entre obediência ou
rebelião contra a autoridade instituída. E, por incrível que possa parecer, contrariando o mito
de nosso estilo pacifista e acomodado, “um exame da história nos prova que a obediência
causou males maiores que a rebeldia (como aconteceu no nazismo)” (BOSI, 2003, p.129).
O espírito de lucidez, profundidade, disputa, confronto, discernimento, organização e
articulação abastecidas pelo estudo, pesquisa e experiência, favorecem a percepção de como
estão em andamento os atuais planos neoliberais e da possibilidade de novos planos estarem
sendo construídos. Esse plano de favorecimento de minorias apressa de forma assustadora e
quase irreversível o deslocamento de grupos humanos, ainda maiores, para uma condição
42
insustentável como resposta as suas necessidades básicas. Podemos concordar com Bosi
considerando este quadro de agravamento da situação e o que a aprofunda ou a fragiliza, “o
conformismo é o traço mais comum de comportamento da organização do mal no mundo
moderno” (BOSI, 2003, p. 130).
Entre os frutos produzidos pelo desenvolvimento do mal, causado às classes
empobrecidas, que é miséria, doença, não acessibilidade ao conforto, está
o desenraizamento que é a mais perigosa doença que atinge a cultura. Se a migração
e o trabalho operário são desenraizantes, o desemprego é um desenraizamento de
segundo grau. Às vésperas do nazismo, o proletariado alemão, que era o mais
avançado da Europa, em termos de consciência, sofria a crise do desemprego. Sobre
a desmoralização da pessoa vagando dia após dia atrás de trabalho, cada vez menos
esperança sobre esse vazio e anomia é que a sombra de Hitler se projetou. Aliás, os
primeiros campos de concentração se abriram para operários desempregados”
(BOSI, 2003, p.178).
Diante de um quadro de falta de alternativas e agravamento da situação econômica e
humana e ainda de incremento tecnológico dispensando ainda mais mão–de-obra ou o
mercado não encontrando mão-de-obra especializada,
do lado dos movimentos e meios intelectuais, sabe-se que os movimentos sociais
cumprem um papel civilizatório porque eles organizam o povo e dão consciência a
luta social. Onde o povo não consegue organizar movimentos sociais será a barbárie,
porque vai imperar a violência individual, ou a busca por saídas religiosas,
milagrosas, que não existem (GÖRGEM, 2004, p.164).
Tendo em conta a gravidade do quadro urbano em nossas cidades e da incapacidade
das instituições intelectuais, religiosas, políticas e econômicas de construir soluções
amenizadoras dos problemas que abalam o povo; e tendo informações da quantidade de
excluídos no campo, os movimentos sociais canalizam as reivindicações dos grupos
específicos, represando pressão sobre a sociedade no intento de construírem alternativas. É
por isso que “o papel do MST é justamente organizar os pobres. Dar consciência aos pobres,
43
para que a saída da pobreza seja de forma organizada. Sem o MST virão todos para as
cidades, para as favelas aos milhares” (GÖRGEM, 2004, p.170)
O ser humano organiza, na sociedade, estruturas que objetivam serviços necessários
para o andamento eficiente e harmonizado desta. A sociedade cria e, ao mesmo tempo, passa
a depender das instituições e as instituições a sustentam dando-lhe elementos vivificadores
com as diferentes ações que cada instituição realiza. A sociedade é “oxigenada” pelas
atividades desenvolvidas pelas instituições que têm a participação das pessoas que a
compõem.
Temos instituições que cuidam da educação, outras da saúde, do esporte, lazer, da
economia, cultura e/ou religião. Em todas as instituições existem diferentes e variados papéis
e, devido ao complexo e rico funcionamento das mesmas, é essencial e decisivo que as
pessoas desempenhem diferentes papéis com sua(s) especificidade(s) e alcance(s). Em geral,
esses papéis desempenhados com competência e perícia conduzem ao alcance das metas e
objetivos da instituição.
Abdalla (2004) considera que
[...] um sistema não funciona se as pessoas não consentirem em fazê-lo funcionar,
dedicando-lhe inteligência prática e modos de subjetividade. Ao gerir trabalho,
inventam-se formas de subjetivação e é a dedicação dessas formas subjetivas, de
modo de funcionamento singulares e imprevisíveis que viabiliza o funcionamento dos
sistemas (p. 103).
Portanto as instituições dependem dos indivíduos que a servem, para seu
funcionamento. Mas no mesmo tempo podemos afirmar que “o indivíduo não pode viver sem
instituições e papéis sociais” (SUNG, 2002, p. 61). Um alimenta o outro, a instituição
assegura ao indivíduo uma identidade construída pelo desempenho alcançado na atividade
específica. Mas a riqueza do ser humano não se esgota na aplicação de tal atividade
44
específica, de tal papel. Uma atividade humana pode ter sido desenvolvida em “plenitude”,
mas esta mesma atividade dificilmente utiliza todas as capacidades que este ser humano pode
desenvolver.
Toda a riqueza de um ser humano não se esgota em uma atividade desenvolvida. É
possível que o empenho da sua parcialidade energética para a realização de determinada
função alcance uma qualidade elevada. Por isto a “plenitude” da realização está na aplicação
da parcialidade das capacidades dentro das particularidades exigidas para tal trabalho
solicitado. O ser humano dificilmente esgota todas as suas capacidades em uma atividade que
executa. Pode alcançar a “plenitude” em uma atividade que desenvolve. O potencial dele
necessita de outras instituições e papéis, para a realização ser mais abrangente. Por isso que
Sung (2002) diz que “o ser humano, o indivíduo é um sujeito que transcende a todas as suas
objetivações, na linguagem e nas instituições [...] não é a somatória destes papéis, muito
menos se identifica com um único papel” (p. 61).
No instante que o ser humano está desempenhando seu papel em uma instituição, o
mesmo pode canalizar sua energia concentrada para tal função. A partir daí acontece uma
objetivação deste, porque “não é possível que instituições funcionem sem nenhum processo
de objetivação de seres humanos, ou sem que a própria dinâmica do sistema ou da instituição
determine ou delimite os papéis a serem vividos pelas pessoas que fazem parte delas” (SUNG,
2002, p. 77).
Por mais competente, conhecedor, portador de múltiplos talentos, o ser humano,
enquanto desempenha tal papel, suas potencialidades ficam concentradas aí. espaços para
invenção na especificidade do que determina o papel que está assumindo e desempenhando.
Porém, por mais inovador e criativo, toda esta inovação e criatividade precisa ser concentrada
na produtividade que o momento exige para a realização do que determina a instituição sobre
o papel a que está a serviço. espaço para a invenção, mas para tornar mais qualificada a
45
função institucional a que está submetido como servidor. O exercício da subjetividade é
construído enquanto cada um dos sujeitos vai se articulando e se organizando de forma
consistente e continuada no sentido do sujeito fazer o exercício, desta forma de ser, dentro do
espaço de movimentação que torna possível a realização dos objetivos e metas da instituição.
possibilidades de extrapolar o institucional, inclusive mediante a contestação dos
objetivos institucionais ou formas táticas de conduzi-los. Uma organização democrática pode,
contudo, administrar estas contestações e, no momento em que as reconhece, procura resolvê-
las de forma dialógica. Não ocorrendo isto, incide-se a desestabilização do institucional ou a
eliminação das forças opositoras.
O MST, além das dinâmicas que o constituem como Movimento, incorpora
características próprias de instituições, como as apontadas pelos autores citados. Esforça-se,
contudo, por não subjugar seus integrantes a uma burocracia organizacional, criando
mecanismos descentralizadores de gestão.
O Movimento concede autonomia e resolutividade para a coordenação (grupo de
sujeitos), em momentos críticos quando se defrontam com intervenções do órgão repressor,
em assumir posições que o institucional não previu nem planejou. A conjuntura muda a todo o
momento. A partir do instante que a avaliação da ação foi profunda, amadurecedora da luta,
tal ação começa a fazer parte da riqueza institucional. Portanto o sujeito realiza o institucional
e tem liberdade de dar ao institucional novas aplicações. Nesse sentido não teria receio de
afirmar que a instituição ganha no sujeito identidade, precisa do sujeito para realizar sua
identidade. Sem o sujeito esta instituição não existe. A estrutura desta instituição exige a
presença de sujeitos que pensam, discutam, decidam. Se a instituição é ditatorial, inflexível,
não espaço para contestação, para manifestação de rebeldia libertadora, porque “as
instituições não podem ser âmbito de reconhecimento entre sujeitos, porque tal
46
reconhecimento rompe, enquanto ocorre, à gica institucional” (SUNG, 2003, p. 78). Mas se
a instituição é democrática, participativa e dialogal, podemos
dizer que o sujeito transcende o sistema é dizer que nenhum sistema, nenhuma rede
de redes, esgota as potencialidades e a sujeiticidade (a qualidade de ser sujeito) do
ser humano; ao mesmo tempo em que afirma a necessidade de sistemas
institucionais; o sujeito [...] transcende a todas as suas objetivações, ainda que não
possa existir sem elas (SUNG, 2002, p. 78).
Mediante a instituição os indivíduos concentram seus potenciais a realizar os
objetivos dela, também assumindo táticas e estratégias criativas surpreendentes e inusitadas à
experiência da instituição, geram resultados que concretizam e extrapolam os objetivos da
instituição.
Para Hinkelammert “[...] quando o sujeito atua no âmbito das instituições, ele está
atuando como sujeito transformado em objeto de si mesmo e dos outros”
(HINKELAMMERT apud SUNG, p.71). Ele usa sua capacidade para materializar na
linguagem ou na ação o que lhe está sendo pedido ou determinado, objetivando sua riqueza
para tal função e sendo objeto de obediência dos gerenciadores ou coordenadores de tal
instituição. Não é reduzível o ser humano a isto. Mas, no momento da execução, ele adapta e
condiciona o seu ser e fazer, na tarefa solicitada, reinventando-a conforme especificidades da
conjuntura.
O ser humano tem um potencial que é inesgotável no seu desenvolvimento. Existem
atividades mais realizadoras, outras em menor grau, dependendo das circunstâncias e tipo de
atividade que ela proporciona. O agricultor assume o papel de pai, na instituição família, de
agricultor, quando a instituição é o sindicato, de torcedor na instituição esportiva, o papel de
doente, na instituição hospitalar, fiel na instituição religiosa. Nenhuma esgota as
possibilidades do ser humano. Em todas encontra necessidades, familiaridade e realização
47
parcial, no seu desempenho, e obrigatoriedade no assumir. É constituidor pertencer a uma
instituição.
No caso dos integrantes do MST isto fica claro. Embora integrem várias instituições,
a pertença ao Movimento é muito forte, as práticas que passam a integrar homens e mulheres,
adultos, jovens e crianças são radicais, o que leva à internalização muito rápida do caráter e
objetivos do Movimento. Mesmo assim, continuam sendo atingidas pelas demais instituições
que integram e, com isso, a ter possibilidade de fazer suas próprias sínteses. Na condição de
membros ativos do MST, todo o seu potencial e capacidade desenvolvida nos momentos que
estiverem envolvidos com a luta do Movimento, precisam estar a serviço da concretização dos
objetivos que são os seguintes:
1-Que a terra só esteja nas mãos de quem nela trabalha;
2- Lutar por uma sociedade sem exploradores e explorados;
3-Ser um movimento de massa autônomo dentro do movimento sindical para
conquistar a reforma agrária;
4-Organizar os trabalhadores rurais na base;
5-Estimular a participação dos trabalhadores rurais no sindicato e no partido
político;
6- Dedicar-se à formação de lideranças e construir uma direção política dos
trabalhadores;
7-Articular-se com os trabalhadores da cidade e da América Latina.
Estes Objetivos representam a luta histórica dos trabalhadores rurais.
(FERNANDES, 1999, p.79)
Estes objetivos traçados pelo MST contemplam a realidade da própria estrutura da
terra e os seus proprietários, indica o tipo de sociedade ideal necessária junto com os pleitos
sobre a Reforma Agrária. Constroem características dinâmicas e decisivas por ser MST,
favorecendo o mesmo espírito e participação em outras instituições que podem ser parceiras
na luta, como também formam pessoas com esquemas mentais ricos de elementos que
favoreçam o discernimento e as decisões. Estes objetivos engendram práticas, que vão
gestando a possibilidade de uma direção constituída por trabalhadores que sejam capazes de
fazer escolhas, articulem suas forças com lutadores urbanos brasileiros e de outras partes do
48
nosso continente latino-americano, que têm lutas comuns com o Movimento. E nesse
processo histórico do avanço das lutas, das conquistas de terra, dos assentamentos, dos novos
desafios criados em cada vitória, os trabalhadores rurais vão construindo a sua organização.
Desde l985 até hoje, 2008, o MST vem se transformando de acordo com a realidade da luta e
possui, hoje, a seguinte forma:
a- A instância máxima do movimento é o Congresso Nacional que se reúne de 5 em
5 anos e escolhe metas a serem atingidas;
b- No segundo momento temos o Encontro Nacional que acontece de 2 em 2 anos
avaliando e planejando a partir das metas apontadas;
c- A terceira é a Direção Nacional que tem um representante por Estado, dá a direção
política para o MST, é o grupo executivo do MST, agilizando os diferentes setores: Relações
Internacionais, Secretaria Nacional, Frente de Massa, Sistema Cooperativista dos Assentados,
Educação, Formação, Finanças, Projetos. Reúnem-se de 4 em 4 meses.
d- A Coordenação Nacional reúne-se 3 vezes ao ano.
e- No que diz respeito à Direção Estadual, Coordenação Estadual, são as instâncias
responsáveis pela conscientização, objetivação e agilização das metas assumidas pelo MST
em nível nacional com sua especificidade na realidade agrária e conjuntural de cada estado,
no caso em estudo, o Estado do Rio Grande do Sul.
f- A estrutura também é formada por uma Coordenação Regional, da qual fazem
parte da mesma as coordenações dos assentamentos ou dos acampamentos eleitos em
assembléias. As Coordenações de Assentamentos e Acampamentos são formadas pelos
membros de diferentes setores: produção, educação, saúde, comunicação, frente de massas,
finanças, religião etc.
Diante da estrutura do MST, é importantíssimo registrar que em nenhuma instância
formal da organização existe a função de chefe, presidente ou diretor, etc., mas somente
49
coordenadores ou membros. As decisões, tanto podem ser encaminhadas pelos grupos que
exercem a função de coordenação, nos diferentes níveis, quer regional, estadual ou nacional,
como podem também surgir de um processo de escuta, que nasce na base, ganhando
enriquecimento nas diferentes etapas de responsabilização coletiva, convertendo-se em tema e
questão coletiva e objeto de deliberação. O MST criou uma estrutura funcional mínima,
agilizadora, capaz de atender as demandas surgidas, tanto da base da organização, como
também, igualmente, das decisões assumidas como resposta às ações das diferentes instâncias
de poder do país. Sua estrutura de organização move-se e oscila conforme as exigências da
eficiência e eficácia de sua ação para fazer acontecer os seus intentos. O MST, como
movimento social, atua na história, desenvolvendo uma dinâmica inusitada e surpreendente
porque constrói, com esforço, a possibilidade de ser bem-sucedida a experiência de fazer com
que a instituição assuma diferentes facetas, conforme as solicitações e as demandas do
momento que enfrenta na luta. Às vezes, a instituição MST toma o formato de caminhada,
noutro momento de ocupação, um pouco mais em frente, de acampamento, em outro, é peça
de um inquérito policial. Em todos estes momentos, os membros ou coordenadores, como a
água, adaptam-se ao recipiente, os participantes moldam suas capacidades e características
com agilidade, rapidez e inspiração. Facilitam, assim, que o Movimento realize sua ação, na
urgência e radicalidade demandadas pela conjuntura, para alcançar um objetivo em
determinado momento, contrastando-se com a pesada máquina estatal. Por todos estes pontos
o MST tem desenvolvido um especial cuidado de adaptação da instituição que é às novas
necessidades e exigências do momento. Facilita, assim, a conservação da identidade de
Movimento, mas traz junto de si a instituição que visibilidade social, no intuito de que a
mesma se torne conservadora de sentido e estimuladora de objetividade, para que não pare no
tempo e fique no ostracismo da história, garantindo para a sociedade um grupo que coloca em
questionamento o modo de organizar esta sociedade, juntamente com a capacidade constante
50
de estar reinventando o próprio Movimento, dentro de uma estrutura nima, capaz de se
movimentar, ir motivando os seus membros, para esta permanente atenção com o novo que
pode e deve fazê-lo produtivo.
O MST consegue conservar, na sua dinâmica de inserção na sociedade, uma
visibilidade social como instituição que se estrutura mediante coordenações, membros,
coordenadores e uma dinâmica de atualização aonde a realidade conjuntural vai determinando
adaptações à parte institucional mínima, para que a mesma não entrave a peculiaridade do
Movimento Social nos seus aspectos de protesto, enfrentamento das estruturas e políticas
sociais, bem como na transformação da sociedade.
O dinamismo do Movimento se na Direção Colegiada, como canal de execução
dos apelos da base, considerado o momento conjuntural da nação, para que as reivindicações,
decisões e encaminhamentos alcancem o projetado. Existe uma estrutura organizativa da base
até a Direção Nacional que acolhe os pleitos e centraliza os encaminhamentos visando
práticas com melhores efeitos sobre a situação agrária e política. Esta experiência
institucionaliza. A partir do instante em que o Movimento vai executar as decisões passadas
pela Coordenação, as variáveis com que o MST se depara, fazem que ele produza novas
reações, e fazendo com que a organização surpreenda a sociedade com elementos
inesperados, mas eficientes para a realização das necessidades encontradas. Isto ocorre de tal
maneira que em cada ação o próprio movimento inova na prática cotidiana, alterando também
a postura de toda a organização sobre os elementos novos percebidos. Os participantes do
Movimento, todos eles, “fazem parte”, compondo o Movimento no que é conhecido da
prática, como também nas surpresas, nas ações não contempladas pelos responsáveis pelas
estratégias e táticas do Movimento.
O aspecto do Movimento como instituição se concretiza também ao permitir
estimular cada assentado, escolhido como representante de um grupo, a exercitar sua
51
liderança, estabelecendo um de relações para que as diversas instâncias sejam alimentadas
por ele, como também as diferentes e variadas instâncias alimentem nele o conjunto de
elementos que o transformam. Bosi (2003), referindo-se a relação pessoa e instituição, afirma
“mesmo que subterrânea ou abafada existe uma relação dialética entre personalidade e as
instituições” (p. 131). As colunas sustentadoras da instituição MST são os diferentes setores.
Nos diferentes setores do movimento, a pessoa é convocada para participar com suas
capacidades, tanto na organização interna, como também nos pleitos externos. Cada pessoa
tem a sua maneira de ver e de enfrentar cada situação, interfere e é influenciada na sua
estrutura de pessoa, ficando nela marcas que a ajudam a cultivar uma vivência comum,
deixando a vida desenvolver-se, mas participando de um “protagonismo social”. Somos, em
nossas vidas, uma mescla, ora de efeitos da história, ora de intervenções sobre as situações
cotidianas. No próximo capítulo queremos tecer considerações sobre a globalização e
conseqüências da mesma e de como a “estrutura” dos Sem-Terra resiste e luta por seus
direitos na contemporaneidade.
52
CAPÍTULO 2
COMO A GLOBALIZAÇÃO PRODUZ EXCLUSÃO E A LUTA DO MOVIMENTO
SEM-TERRA PELA INCLUSÃO
A partir da década de 1990, o desenvolvimento dos processos produtivos das
economias capitalistas apóia-se em um novo conjunto de técnicas que dispensam esforço
físico humano. Desenvolvem-se, a partir de então, atividades com mais agilidade e rapidez,
fazendo do trabalho uma atividade que pode ser realizada mediante maior “conforto” e
facilidade de desempenho, mesmo que isso resultasse em concentração de riqueza. A
agilidade, rapidez e eficiência da informática e da eletrônica impactam as rotinas de trabalho.
Distanciam-se da maioria das populações os benefícios da evolução técnica, evidenciando a
sua ambigüidade, restando a esta maioria, como conseqüência, herdar miserabilidade desta
forma de organização das relações econômicas e sociais.
A esta reestruturação do capitalismo chamou-se de globalização, operada pelo FMI
(Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial), OMC (Organização Mundial do Comércio)
e, para a América Latina, liderada pelo Acordo de Livre Comércio. Frente a estes organismos
internacionais e aplicação estrutural e política de suas estratégias, em nível nacional, o MST
53
em sua articulação e mobilização avaliou e constatou grandes dificuldades em implementar
suas estratégias de Reforma Agrária no âmbito nacional. Contudo, deu seguimento às suas
articulações e acabou fortificado pela atuação conjunta, em diversas frentes que construiu com
o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), Movimento dos Atingidos pelas
Barragens (MAB), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Comissão Pastoral da
Terra (CPT), Pastoral da Juventude Rural (PJR) e Federação dos Estudantes de Agronomia do
Brasil (FEAB).
Percebeu que a um capitalismo globalizado deveria corresponder uma articulação de
forças populares globalizada. O MST tornou-se, então, ativo articulador da Via Campesina,
em âmbito mundial, juntando camponeses do mundo todo, opondo-se às regras da
Organização Mundial do Comércio (OMC) para o mercado de alimentos, que são destruidoras
das formas camponesas de agricultura; defendendo as sementes caseiras ou tradicionais como
patrimônio da humanidade e contra o patenteamento de seres vivos, e em oposição ao controle
do mercado de alimentos, por um diminuto grupo de transnacionais.
No Brasil as instituições que assumem e participam da Via Campesina são:
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); Movimento Sem Terra (MST);
Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR); Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Pastoral da
Juventude Rural (PJR); Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB)
(GÖRGEN, 2004, p.153).
A Via Campesina é uma organização de camponeses que tem por objetivo defender
os interesses dessa fração da classe trabalhadora, pois ela ainda representa a maioria da
população mundial e historicamente vem sendo mantida à margem dos benefícios da
sociedade e das negociações de políticas nacionais e internacionais.
54
A Via campesina é um movimento mundial que coordena organizações camponesas
de pequenos e médios agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e
comunidades indígenas da Ásia, África, América e Europa. Trata-se de um
movimento autônomo, pluralista, mas com ligações políticas e econômicas. Nasceu
em Abril de 1992, quando vários dirigentes camponeses da América Central, da
América do Norte e da Europa reuniram-se em Manágua, Nicarágua no Contexto do
Congresso da União Nacional de Agricultores e Ruralistas. Em maio de 1993, foi
realizada a Primeira Conferência da Via Campesina em Mons, na Bélgica, durante a
qual foi constituída como organização mundial e foram definidas as primeiras linhas
estratégicas de trabalho, bem como suas estruturas [...] A Via Campesina está num
processo de expansão e consolidação e pela sua natureza é uma organização
politicamente complexa, pluricultural, com uma ampla cobertura geográfica
projetando-se como uma organização da representatividade de pequenos e médios
produtores a nível mundial [...] Ela trabalha na Construção de uma política de
alianças com outras forças sociais, econômicas e políticas, a nível mundial, para
lutar pelos seus direitos (WIKIPÉDIA, 2008).
7
Embora a globalização seja projetada e executada pelas inteligências a serviço das
empresas transnacionais, com todo o poderio dali decorrente, em articulações com forças
hegemônicas
8
nacionais e o apoio dos Estados Nacionais, os movimentos sociais como
institucionalização da reação das classes levadas à exclusão, ou que correm o risco de o
serem, emergem como forças contra-hegemônicas
9
e convertem-se em focos globalizados de
confronto de classe. Explicitam-se então interesses contraditórios em disputa. Movidos pela
necessidade, unidade da luta e geralmente com simpatia e apoio da população, formam uma
unidade resistente à imposição exploradora e concentradora de bens, capaz de criar espaços de
inclusão que a lógica global não contempla, nem possibilita. Toda esta articulação organizada
tem como sustentação e fortalecimento o desejo de tornar realidade os sonhos de uma
7
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Via_campesina . Acesso em 23.06.2007.
8
Hegemonia: em política é o tipo de dominação ideológica de uma classe social sobre a outra, particularmente
da burguesia sobre o proletariado e outras classes de trabalhadores. Na Sociedade burguesa moderna, os
intelectuais da classe hegemônica haviam conseguido produzir, em determinadas circunstâncias históricas, um
consenso cultural fabricado na intenção de que os membros da classe trabalhadora identificassem seus próprios
interesses particulares com aqueles da burguesia ajudando a manter o Status quo [grifo do autor]. Cf.
WIKIPEDIA, Antonio Gramsci. Disponível em : http://pt.wikipedia.org/wiki/Antonio_Gramsci. Acesso em:
23.06.2007.
9
Contra-hegemonia: Por isso, segundo Gramsci, a classe trabalhadora precisava desenvolver uma cultura
“contra-hegemônica”, primeiro para demonstrar que os valores da burguesia não representam os valores
“naturais”, “normais”, ou “desejáveis” e “inevitáveis” de uma Sociedade moderna e, segundo, para expressar
politicamente seus próprios interesses, interesses estes que eram majoritários na sociedade como um todo, já que
a classe trabalhadora forma a maioria da população de um País”. WIKIPEDIA, Antonio Gramsci. Disponível
em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Antonio_Gramsci. Acesso em: 23.06.2007.
55
democracia que pode ir crescendo em suas pretensões; sonhos que não descartam, mas
priorizam; o princípio de que os meios de produção pertencem à coletividade, diminuindo as
desigualdades sociais e fazendo crescer nas pessoas uma sensibilidade prática em favor dos
feridos pelo sistema, assumindo a solidariedade como marca constituidora de um jeito de
viver.
O aspecto “global” internamente se concretiza objetivamente na luta quando
o MST, ao optar pela ocupação dos grandes imóveis rurais improdutivos, confronta-
se diretamente com o grande capital financeiro e comercial, nacional e estrangeiro.
Por sua vez, reconhece o Estado, mas, ao concretizar sua luta, não fica na
dependência deste. Pede reconhecimento, mas de forma independente, sem atrelar-
se. Ao romper com as prerrogativas legais do direito de propriedade privada da terra
improdutiva, estava de maneira indireta, afirmando que não iria aguardar pela ação
do Estado para a realização da Reforma Agrária no Brasil. Portanto emancipa-se do
Estado. Rompia com a prática histórica de diversos movimentos sociais de luta pela
terra e da luta sindical e partidária de reivindicar do Estado a Reforma Agrária
(CARVALHO, in SANTOS, 2002, p. 245).
Mas o capital opera com meios de extraordinária eficácia, de forma massiva,
atingindo a totalidade da população. A propaganda, o estímulo ao consumo, a sedução da
posse criam um ideal que se superpõe à personalidade de cada pessoa.
As novas tecnologias de comunicação e informação constituem uma destas
circunstâncias de intermediação e contato entre representantes das culturas locais e
globais. Em nosso entender estão hoje, as potenciais possibilidades comunicacionais
renovadas e a alargar os espaços de subjetividade e os universos culturais de
referência e de influência dos sujeitos e grupos sociais (MCBEAATH e WEBB,
1997). Com a globalização da comunicação e a correspondente difusão dos meios
técnicos (máquinas e objetos) e dos conteúdos que suportam (imagens, textos e
narrativas) estamos a assistir, hoje, a paulatina constituição de um novo ethos
cosmopolita (SANTOS, 2002, p.450).
Através dos Meios de Comunicação Social, os acampados e os assentados, como
também toda a sociedade são estimulados a aceitar e assumir o esquema de apresentação (e
representação), convencimento e utilidade que produtos oferecidos pelo mercado podem
56
propor para o seu progresso, bem estar e enriquecimento. “É preciso distinguir entre os
produtos globais, que indiscutivelmente hoje existem como o automóvel, o computador e
vários outros, e os outros níveis de atividade econômica e social” (DOWBOR, 1998, p. 32).
Desta forma, principalmente, a televisão induz o agricultor a colocar na sua mente, que sua
felicidade e realização dependem diretamente da aquisição de produtos como: semente,
vermífugo, refrigerante, automóvel, colheitadeira, trator, caminhão, combustível, cigarro,
cerveja etc. E, por toda esta influência e pelas conseqüências que tudo isso traz, entende-se
que se chega a isso não tanto por interferência de fenômenos naturais, causalidades acidentais
ou forças invisíveis, mas pelo entendimento que “quem manda no planeta não é uma
abstração chamada de ‘forças de mercado’: são poderosas e concretas empresas
multinacionais” (DOWBOR, 1998, p. l4).
O movimento assumiu identidade não só como organização social de massa, pois
segundo o principal agente identificado em nossa jornada pelos campos povoados
por movimentos sociais consiste em uma forma de organização e intervenção das
centralizadas e integradas em redes, característica dos novos movimentos sociais,
refletindo a lógica da dominação da formação de redes na sociedade informacional e
reagindo a ela [...]. Essas redes fazem mais do que simplesmente organizar
atividades e compartilhar informações. Elas representam os verdadeiros produtores e
distribuidores de códigos culturais. Não pela rede mas em múltiplas formas de
intercâmbio e interação (SANTOS, 2002, p.258).
Os Movimentos sociais são classificados em clássicos(movimento operário,
sociedade amigos de bairro ou associação de moradores) e Novos (questões de gênero, raça,
sexo e ecológicos). Segundo Gohn (1997), “preferimos agrupar os movimentos em categorias
independentes da contemporaneidade ou não de suas reinvidicações e formas de atuação.
1 categoria: Movimentos construídos a partir da origem social da instituição que
apóia ou obriga seus demandatários;
2 categoria: Movimentos Sociais construídos a partir das características da natureza
humana: sexo, idade, raça e cor.
57
3 categoria: Movimentos sociais construídos a partir de determinados problemas
sociais.
4 categoria. Movimentos Sociais construídos em função de questões da conjuntura
das políticas de uma nação( socioeconômico, cultural, etc.).
5 categoria: movimentos sociais construídos a partir de ideologias.”(p. 268-271).
Nestas categorias estão incluídos os movimentos sociais chamados clássicos e os
novos. O MST na sua origem, estrutura e na sua organização enquadra-se dentro da terceira
categoria. O MST constrói formas de evolução e inserção nos novos desafios que a
sociedade produz e apresenta.
O Movimento organizou, inclusive, um site onde coloca à disposição da população
os seguintes artigos: história, linha política, nossas lutas, biblioteca, audiovisual, campanhas
nacionais e internacionais, loja da Reforma Agrária (onde vendem cadernos, livros, músicas,
vídeos, DVDs, roupas, jornal, revista), entrevistas, artigos, programas de rádio, informes,
mural (espaço para deixar recado).
O Movimento tem preparado pessoas para as mais diferentes frentes de atuação. Com
isto tem avançado a sua comunicação interna e com outros organismos da sociedade nacional
e internacional, através da rede de computadores e navegação na Internet. Na rede, cinco
anos, existe uma página do MST aberta internacionalmente
.
A exemplo dos Zapatistas no México, o MST, transferindo o conflito para ambientes
dos bits eletrônicos, lugar privilegiado da reprodução do capital internacional, como
os zapatistas fazem da linguagem sincrética a das “palavras eletrônicas andantes” as
suas armas principais (BRIGE, 2002, p. 36).
O MST, consciente do que exige este momento na sua jornada de luta, alimenta sua
página na Internet, informando à sociedade local, nacional e global, seus projetos, sua
história, seus conflitos e confrontos, suas realizações e conquistas. Do local, gera notícias, que
58
alimentam os fluxos de informações com conteúdos que envolvem a luta, ao mesmo tempo
em que alimenta a luta, no seu aspecto nacional.
Do mesmo modo que o sistema de comunicação sofreu profundas modificações ao
articular meios e fundi-los em rede, os maciços investimentos de capital nas ciências
biológicas, químicas e mecânicas, abriu imensos espaços de valorização do capital da mesma
forma como a Revolução Verde fora um espaço mundial de valorização. Vejamos este
processo em detalhe no conjunto de suas duas etapas:
o modelo tecnológico agropecuário, florestal e agroextrativista que vem sendo
adotado no país desde o inicio da década de 70 do século passado, e que alcança seu
ápice conjuntural com a introdução massiva das sementes transgênicas e do controle
pelas multinacionais, dos recursos naturais e da terra, é conseqüência e causa do
desenvolvimento rural do Brasil que tem tido como premissas o controle
oligopolista das sementes e do sêmen (com as exigências do processo de produção
que lhe são correlatas), das terras, das florestas, da biodiversidade e da água doce
pelo oligopolista multinacional (CARVALHO, 2005, p.199).
E acrescenta Carvalho:
O mundo rural com a Revolução Verde, com suas sementes híbridas e seu mais
recente desdobramento com a biotecnologia dos transgênicos e do plantio direto,
está sofrendo mudanças ecológicas, sociais, culturais e, sobretudo políticas (idem,
2005, p.248).
O que nem sempre se torna facilmente perceptível é o fato de que este avanço maciço
do capital monopolista sobre a agricultura aparece simplesmente como “tecnologia”, isto é,
como algo oposto às formas tecnológicas de baixa incorporação de capital ou que é de
domínio do camponês. Para o capital tais tecnologias são atrasadas e inúteis, porque não o
valorizam.
59
A imposição das tecnologias de capital intensivo se converte antes em luta política e
ideológica, cujo fundamento em última instância consiste no fato de que as tecnologias
exprimem a organização social do trabalho e o grau em que ele está ou não submetido ao
capital. As implicações são externas e vão além da produção stricto sensu.
As tecnologias são um modo pelo qual percebemos o mundo, organizamos nossas
experiências, fazendo emergir novas necessidades, o que exige novas formas de perceber, de
relacionar, de ação frente à realidade. Por isso a inovação tecnológica nos fascina. Adquiri-la
requer adaptações de nossa existência, redimensionamento de nosso tempo, de nosso espaço e
de nossas atividades e relações. A inovação tecnológica, na perspectiva do capitalismo,
diferentemente, implica também novas regulações que dizem respeito à propriedade, aos
conhecimentos exigidos para sua operação. Modifica, portanto, aspectos importantes das
relações sociais de produção.
Vivemos em uma sociedade sob o domínio capitalista da técnica. Sua presença e sua
forma de operar podem ser vistas quando os produtos são fabricados e transportados, na
conformação do território, na organização política e também no contexto cultural. O corpo
humano é permanentemente movido, regulado e sustentado por ela. Até o espírito humano é
condicionado e inspirado pela beleza e eficiência da tecnologia, facilitando que os objetos e
ações sejam conseqüência de sua intervenção. A sociedade hegemônica, sustentada pela
ciência e tecnologia, atendendo às exigências do mercado, produz necessidades e objetos que
vão fortalecendo o desejo de consumo por produtos, coisas, serviços, relações, idéias e
sonhos.
A inovação tecnológica, na perspectiva do capitalismo, diferentemente do que afirma
o senso comum, não visa melhorar, suavizar a vida das pessoas - trabalhadores e
consumidores. Ela visa o lucro, o acumulo de bens. A inovação ocorre quando, e só quando, a
taxa sistêmica de lucro começa a cair. Propõe-se a recuperar os espaços perdidos da
60
acumulação e, pela inovação, sua ampliação. Isto pressupõe, como adverte Belato (2008)
10
, ao
menos, três momentos:
- O primeiro: condicionar as necessidades de sobrevivência das pessoas às
mercadorias produzidas pelo capital; convencê-las que o consumo é a forma superior,
prestigiosa e desejável de vida. A propaganda exerce esta função;
- O segundo: manter em constante mudança as condições de acumulação de capital
que, ligadas à ampliação de consumo, permite a acumulação. Para tal é preciso o recurso da
pesquisa e o desenvolvimento contínuo de novos produtos. A ciência se torna fator estratégico
de acumulação;
- Finalmente, os gigantescos recursos continuamente aplicados na propaganda, na
pesquisa científica e no desenvolvimento de novos produtos acabam por concentrar
crescentemente o capital. É a tendência monopolista do capital.
Mas uma parcela considerável e cada vez mais crescente da sociedade não pode ter
acesso aos produtos, coisas, serviços, relações oferecidas pelo capital monopolista. Os novos
produtos tecnologicamente inovadores custam caro e o não-acesso aos mesmos produz
sensação de carência e insatisfação. O acesso aos bens reserva prestígio a uma pequena
parcela da população. As desigualdades sociais se exacerbam porque elas são visíveis,
escancaradas e produzem uma consciência aguda de exclusão que tem sua forma mais
dramática na miséria, que por vezes paralisam ao invés de incentivar a busca de formas de
superá-la.
A miséria acaba por ser a privação total, com o aniquilamento, ou quase, da pessoa
[...] Miseráveis são os que se confessam derrotados. A pobreza é uma situação de
carência, mas também de luta, um estado vivo de vida ativa, em que a tomada de
consciência é possível [...] Mas os pobres não se entregam eles descobrem cada dia
formas inéditas de trabalho e luta. Assim eles enfrentam e buscam remédio para suas
dificuldades. Nesta condição de alerta permanente, não tem repouso intelectual. A
herança do passado é temperada pelo sentimento de urgência, essa consciência do
novo que é, também, um motor do conhecimento (SANTOS, 2000, p.132).
10
BELATO, Dinarte. Parecer. Banca de qualificação, 2008.
61
Certamente, a construção de uma alternativa à condição de miséria a que acabam
submetidos vastos contingentes humanos, passa pela construção da consciência de sua
condição, do vislumbre de alternativas que se experimentam no duro confronto com o
domínio do capital. O MST soube, ao longo de sua história, construir a consciência da
condição camponesa, miserabilizada pela valorização do capital, por meio da capacidade de
construir focos de luta. Focos que vão da condição de sujeitos, mergulhados na privação e
pobreza ao projeto da Reforma Agrária; e que dão visibilidade à orientação política da nação e
do Estado nacional. Ao mesmo tempo, estes focos de luta estão fundados na visão global da
luta dos camponeses e demais expropriados do planeta. Vejamos no detalhe esta trajetória. Os
camponeses começaram por entender sua condição mediata:
A economia mundial expulsou do campo milhões de pessoas, destruiu o modo
tradicional de produzir e reproduzir a vida, acabou com seus meios de subsistência,
mas não ofereceu alternativa. Em vez de serem absorvidos pela modernização da
economia e pelo desenvolvimento econômico, os pobres não desaparecem, ao
contrário, se multiplicam de maneira assustadora. Para sobreviver, eles não m
outra alternativa senão organizar-se segundo outra lógica... Neste combate à
exclusão não havia um sujeito social constituído era um sem-terra, um sem-teto, um
sem trabalho, sua condição era definida pela falta de inserção territorial, econômica,
social (BALSA, 2006, p. 159).
Carvalho (2005) descreve com precisão o que foi apontado como
o caráter desempregador do atual modelo agrícola. Entre 1985 e 1995, cerca de 5,5
milhões de ocupações em atividades agrícolas foram eliminadas. De 23,4 milhões
em 1995, passamos a l7,9 milhões de pessoas ocupadas nas atividades agrícolas em
1995 (CPP, 1999, a partir de dados dos Censos Agropecuários de 1985 e 1995)
(CARVALHO, 2005, p.233).
Na conjuntura atual, quando o novo patamar tecnológico se torna hegemônico,
contingentes de trabalhadores ainda atuam em conformidade com o paradigma anterior
simplesmente são substituídos, seja pelas novas máquinas, seja pelos novos insumos
62
bioquímicos. O novo paradigma tecnológico, além de destruir postos de trabalho, converte
trabalhadores em inaptos, incapazes para operar as novas tecnologias. Estes se tornam, em
relação ao novo paradigma, “mão-de-obra” desqualificada e inútil para o novo paradigma.
Subjetivamente, não é difícil imaginar o que sucede com eles. Eles são descartáveis no
campo. Não serão também na cidade?
Dando-se conta dessa realidade social, o MST somou forças com outros movimentos
específicos de luta, tanto do campo como os que pertencem à organização urbana, para fazer
frente aos novos desafios que ultrapassam, em muito, as articulações locais e nacionais.
O efeito combinado dos fatores desemprego e concentração da terra concorreu em
grande medida para que, nas últimas três décadas, cerca de 40 milhões de pessoas
migrassem para as cidades, em especial para os grandes centros urbanos,
praticamente invertendo o perfil da distribuição da população brasileira no curto
período de uma geração (Weid,1997). Em 1960, o Brasil tinha 60 milhões de
habitantes, com 32,4 milhões (54%) vivendo no campo (Gonçalves, l995). Em 1991,
a população rural apresenta um crescimento irrisório, chegando a 35,8 milhões,
representando apenas 24% do total de 146,8 milhões de habitantes. Isso quer dizer
que a população urbana no mesmo período cresceu 27,6 milhões (46% do total) para
111 milhões abrigando 75,6% da população em 1991 (IBGE, 1996)... Segundo
pesquisa do Ipea, publicada em 1993, mais conhecida como o Mapa da Fome no
Brasil, existiam no país, nesta data, cerca de 33 milhões de pessoas submetidas, em
diversos níveis, ao problema da fome, metade das quais em áreas rurais (Peliano,
1993) (CARVALHO, 2005, p. 235).
A miséria é socialmente constituída, mas pode ser teologicamente e
politicamente justificada. A consciência da pobreza, que consiste no vislumbre mínimo de
suas razões sociais, junto de relações sociais conduz a sua intolerabilidade. A miséria não faz
parte da condição humana. Quando esta conclusão elementar se instala, fruto da prática
educativa de classe, a vida das pessoas inicia uma trajetória de mudanças.
Vida de sujeitos que não suportando a amplitude das pressões econômicas, sociais e
políticas decorrentes das atuais dinâmicas de articulação do capital e globalização da
economia e da cultura, vem se permitindo a organização e a práxis em torno de
projetos emancipatórios, com o fim de cumprimento de objetivos conscientemente
genéricos, ou seja, objetivos de caráter ético-político (FALKEMBACH, 2002. p.12).
63
Os pobres não só tomam consciência, mas são capazes de elaborar um discurso novo,
capaz de dar função inovadora para tecnologias que estão sustentando um novo paradigma,
alterando também o que determina o social e até o conteúdo mais íntimo do ser, o afetivo.
Os pobres abrem um debate novo, inédito, às vezes ruidoso, com as populações e as
coisas já presentes. É assim que eles reavaliam a tecnosfera e a psicosfera,
encontrando novos usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas
articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva (SANTOS, 1996,
p.261).
Embora, em algum momento, as pessoas possam aceitar como natural o que é dado
ou imposto, e em suas atitudes predominar a acomodação, resignação e definhamento
humano, as mesmas pessoas, no entanto, por formação, por necessidade, sofrimento e
conhecimento das forças que geram tudo isto, podem em outro momento perceber
possibilidades de reação para mudança. Vão se deparar com instituições, que tendem a
reproduzir os interesses do grupo hegemônico, mas saberão identificar as possibilidades de
mudanças e as alternativas que a construção ou participação em um movimento apresentam
para que sejam capazes de romper com o instituído e não aceitar a exclusão.
A exclusão não se trata de um processo individual, embora atinja pessoas, mas de
uma lógica que está presente nas várias formas de relações econômicas, sociais, culturais e
políticas, presentificada em uma sociedade globalizada, com suas diversas configurações
nacionais. Este processo deve ser entendido como uma impossibilidade de partilhar, o que
leva à vivência da privação, da recusa, do abandono e da expulsão do convívio social,
inclusive com violência, de um conjunto significativo da população.
Nos anos 80, na chamada “década perdida”, ao contrário dos anos 60 e 70, quando
se chamava a atenção para os favelados e para a migração como figura emblemática
dos “excluídos” na cidade, pelo aumento da pobreza e da recessão econômica, ao
mesmo tempo em que se vivia a chamada “transição democrática”, chamava-se a
atenção para a questão da democracia, da segregação urbana (efeitos perverso da
64
legislação urbanística), a importância do território para a cidadania, a falência das
ditas políticas sociais, os movimentos sociais, as lutas sociais (SAWAIA, 1999,
p.3l).
A referida autora afirma que “assim, os excluídos, na terminologia dos anos 90, não
são residuais nem temporários, mas contingentes populacionais crescentes que não encontram
lugar no mercado” (idem, p.19). Não disponibilizando de renda, não participam da sociedade
de consumo - no vestuário, na alimentação, na aquisição de eletroeletrônicos, etc. Os seres
humanos participantes desta sociedade, mesmo os abastados, não dispõem de recursos para
serem consumidores do conjunto de bens propostos por ela, por isso também eles sentem-se
excluídos. Através da participação e da impossibilidade desta participação ajudamos na
formação e integração de uma identidade social.
Os excluídos [...] são mais precisamente conjunto de indivíduos separados de seus
atributos coletivos entregues a si próprios, e que acumulam a maioria das
desvantagens sociais: pobreza falta de trabalho, sociabilidade restrita, condições
precárias de moradia, grande exposição a todos os riscos da existência, etc.
(BALSA, 2006, p. 63).
Eles pertencem a grupos sociais em declínio e manifestam a desordem que também
tem uma dimensão coletiva. Têm fome e sede o do que é essencial para a vida humana,
para torná-la reproduzível; têm fome de trabalho, de sonhos que abarcam, inclusive, a vida
democrática incluindo a presença da justiça e da alegria.
“Atualmente são mais de 40 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha de
pobreza, ou seja, mais de 25% da população brasileira atual pode ser considerada miserável”
(BALSA, 2006, p. 232). Mesmo vivendo nesta condição o ser humano sofre, enfrenta suas
dificuldades, mas não perde a sua humanidade, pelo contrário, na busca de entendimento, na
fala, partilha a dor , refaz sua saúde interior, cultiva amizade e solidariedade com o outro.
65
O ser humano é comunicação, é diálogo, é relação.
Relação é a ordenação intrínseca de um ser em direção a outro [...]. O ser humano,
como um ser que se constrói e se constitui a partir dos milhões de relações que ele
estabelece com todos os seres existentes. Também os grupos humanos, e as
sociedades em geral, são melhor compreendidos se forem vistos como constituídos,
em sua essência, por relações [...] o que faz um grupo ser grupo são as relações que
nele se estabelecem (SAWAIA, 1999, p. 141).
A qualidade de um grupo fundamenta-se no fortalecimento das relações psico-
afetivas, asseguradas por uma condição econômica estável, mas não só. O ser humano
constrói vínculos dentro da família, com a vizinhança, freqüentando comunidades e
colaborando com instituições. A sua maturidade, riqueza e equilíbrio circulam por meio
destes canais de vivência, integração, serviço e também reflexão.
Enquanto ele é possuidor de uma condição econômica que permite sua circulação em
diversos ambientes, é bem visto, admirado e convidado para muitas atividades. Mas se por
uma conseqüência da estrutura econômica e organizativa da sociedade, pela diminuição dos
postos de trabalho, precarização do emprego ou perda da terra (tida como meio de
sobrevivência), não alcança mais esta circulação, passa a ser discriminado.
[...] A sociedade, as inserindo na zona franjal, ou nas migalhas institucionais de seus
projetos, contribui para a criação de um lugar social desvalorizado, portador de
sofrimento. Muitas vezes estes sujeitos sentem-se pertencendo à categoria de
“extranumerários” (Castel, 1995) ou normais inúteis (Douzelot) então a projeção
para a esfera da subjetividade da inutilidade, do não reconhecimento da
potencialidade do sujeito para participar da vida coletiva e integrar-se aos valores
sociais considerados positivos” (SAWAIA, 1999, p. 92).
A sensação de inutilidade é sempre geradora de sofrimento psíquico. Este
sofrimento, que tem origem social, gera doença. O aspecto da interação social fica abafado e o
66
que sobressai é um individuo debilitado, não é o sofrimento gerado na esfera social que
aparece, mas o indivíduo doente.
A exclusão, limitando as oportunidades sociais, provocaria desorganização familiar
e comunitária, socialização defeituosa, perda de sinais identificatórios,
desmoralização, etc. Isto porque o risco de enfraquecimento dos vínculos sociais é
proporcional às dificuldades encontradas no mercado de trabalho. Tanto mais
dolorosa é a experiência da precariedade profissional quanto mais atinge os
indivíduos no cerne da vida ativa. Também é maior a dificuldade em particular para
os homens, de formar um casal e de passar por uma experiência de divórcio ou
separação (Paugam et al, 1993). Ao enfrentar tais situações, o desempregado perde
rapidamente seus principais pontos de referência e atravessa uma profunda crise de
identidade (SAWAIA, 1999, p. 75).
Não poder ser ajudado pelos membros de sua família constitui privação de uma das
formas mais elementares de solidariedade, tornam-se indivíduos para os quais o “tombo foi
brutal e severo”. Sem esperança de encontrar uma saída, os indivíduos sentem-se inúteis para
a coletividade e procuram, de fato, alternativas marginais como meio de compensação para a
sua infelicidade.
De forma sádica, os meios de comunicação de massas reproduzem para o pobre sua
“auto-imagem”. São lançados ao ar os crimes, casos de estupro, infidelidade
conjugal, brigas e agressões entre os ditos marginais. Não é a dor moral, em si, que
se busca, mas a que esta arrasta de contrabando, humilhação, sentimento de culpa,
descaracterização do sujeito, ataque a identidade é a determinação de sua imagem
especular - eu sou mau. [...] Na representação social, fica estabelecida essa alienação
sádica e maniqueísta: no “centro estão os bons, na “periferia” estão os maus
(PEREIRA, 2004, p. 96).
Se nas relações humanas, no contato com natureza, no ambiente social, vamos
deixando registros das presenças que causam impacto, também podemos considerar que
as estruturas institucionais e o lugar social marcam os indivíduos e o seu corpo[...] O
corpo do subproletariado espelha inibição, o retraimento da musculatura e a
contração da face, próprios da posição servil e sulbalterna. Paralelamente a essa
inibição corporal, soma-se o bloqueio da vida psíquica, refletindo um baixo
rendimento criativo, intelectual e da própria articulação da fala (PEREIRA, 2004, p.
121).
67
uma infinidade de formas de somatização do sofrimento, este sentimento que pode
ser considerado uma “implicação desarmônica do sujeito com um referente, jamais
reconhecida na sua totalidade pelo outro, social ou individual, que põe em evidência alguma
falta (desejos, necessidades, expectativas, significados)” (FALKEMBACH, 2002, p. 226). O
sofrimento, se não reconhecido, acaba contribuindo para a exclusão do indivíduo do convívio
social. Ele enfrenta o primeiro nível de sofrimento por ser excluído. A busca de solução, pela
posse da terra, gera uma sobreposição de sofrimento, o segundo nível. As pessoas sentem na
pele que, além da miséria que as cerca, é necessário combinar a incerteza com a miséria:
acampar, ocupar, que é o “momento de maior preocupação da gente, nervosismo instigado
porque a gente nunca sabe o que vai acontecer”, diz Bárbara, em entrevista para esta pesquisa:
Mas assim que a gente teve ordem de despejo e então as cinco horas da tarde a gente
teve que sair da área, então todo mundo apavorado porque a polícia começou a cercar
nós e nós tava se organizando pra sair e não sabia como sair. Começou a vim os
policiais armados, com cachorros e veio também policiais de elite, né. Atirador de
elite. E daí assim bateu um pânico[...]. E o maior susto foi quando, primeiro, os
atiradores de elite atiraram, deram três tiros e arrebentou os três fios de luz. A gente já
viu que a coisa não ia ser boa. Eu sei que todo mundo tava se preparando pro pior. Era
criança chorando, era pais apavorados.
O sofrimento, pedagogia de amadurecer pessoas, é ao mesmo tempo forma pesada de
gerar pressão sobre a estrutura agrária e poder político. O movimento não é multiplicador e
intensificador de sofrimento, mas convive com ele, como estrutura de organização que exige
coragem de seus membros; enfrenta o sofrimento e contribui para que aqueles que reúne o
enfrentem também, para ele se transformar em algum “suporte” para a conquista da terra.
Pensemos ainda em quanta gente “sofre dos nervos”. Esse é um problema ligado a
muitas coisas entre elas:...a dificuldade de realizar os nossos sonhos na vida, a
insegurança como será [...]. E às vezes, a agressão psíquica, não se manifesta
claramente como doença nervosa. Ela aparece sob a forma de uma gastrite ou úlcera
no estômago, da pressão alta, do enfarte, do câncer ou de outras doenças agrupadas
como psicosomáticas. Por outro lado, este desenvolvimento não consegue acabar
com outros grupos de doenças, as doenças da miséria: a desnutrição, a anemia,
doenças infecciosas e parasitárias (PEREIRA, 2004, p. 153.)
68
O sofrimento pode estar intensamente presente na vida do indivíduo e da sociedade,
potencializando ações e práticas sociais ou impedindo-as de acontecer. O sofrimento -
categoria de análise do indivíduo, de grupos sociais e de sociedades -, é multidimensional,
“desenvolvendo a propriedade de objetivar as dimensões biológicas, racionais e psíquicas do
indivíduo, e as dimensões sociais e ético-políticas das circunstâncias que o constituem”
(FALKEMBACH, 2000, p. 226). O sofrimento se torna mais intenso, quando não se vê
sentido para que ele ocorra, tanto no plano pessoal como no plano social.
Realmente, podemos dizer que os problemas políticos e de divisão de classe acabam
refletindo-se diretamente na formação de subjetividade e identidade do indivíduo e
dos grupos populares. Tais mecanismos produzem populações clones engolidas
pelas formas masoquistas de subjetivação diante dos fascinantes e poderosos
algozes, protetores e sádicos capitalistas. Ora este efeito perverso decorrente dos
processo de massificação clonagem subjetiva, que as estruturas institucionais
capitalistas manipulam e reforçam, adoecem e enlouquecem o ser humano e
entorpecem por meio de drogas subjetivas e objetivas, ou atuações violentas,
direcionando as populações à destrutividade ou anulando-as através do silêncio dos
sintomas. (PEREIRA, 2004, p. 107)
Os porta-vozes do neoliberalismo sabem que o ser humano é portador de
necessidades, desejos e sonhos. “Os sentidos e anseios mais profundos da existência humana
são expressos através de marcas e mercadorias” (SUNG, 2002, p. 10). Ele se alimenta e se
fortalece pela dinâmica da compra e venda, do consumo. Ele sofistica com a propaganda o
que é comum, básico e necessário e estimula a imaginação criando cada vez mais desejos de
consumo nas pessoas.
[...] o que faz com que as forças do capital configurem regimes de dominação por
meio da produção de mentes e corpos bem como do esfacelamento ou da separação
dessas mesmas mentes e corpos da resistência que os constitui produção
concomitante da crença na hegemonia da lógica do capital e da descrença nas forças
de luta, nas forças de resistência (ABDALLA, 2004, p. 167).
Desta forma o capital não apresenta a lista preferencial de objetos-mercadorias,
mas difunde também sua preferência no conhecimento, nas imagens, nos sentimentos, na
69
política (que também transforma em mercadoria). Isso porque “consumimos além de objetos,
informações, conhecimentos, sensações, relações com o outro, novidades instantâneas à
disposição na mídia e nas vitrines das lojas, etc.” (ABDALLA, 2004, p. 149).
Os meios de comunicação social assumem o papel principal de difusores de
interesses no formato de imagens, sons e textos. As pessoas vão sendo contagiadas nas suas
energias conscientes e inconscientes, pela precisão e estética dos estímulos da propaganda
moldando-se, independente de idade, para aderir aos produtos que são apresentados pelas
propagandas e programas com uma forma de comunicação que transforma hábitos familiares
morais e éticos - arraigados - como convicções, costumes e hábitos de um povo. Para
Touraine (2006),
o indivíduo fragmentou-se rapidamente em múltiplas realidades. Um de seus
fragmentos nos revelou um eu fragilizado, mutante, submisso a todas as
publicidades, a todas as propagandas e as imagens da cultura de massa. O indivíduo
não passa então de uma tela sobre a qual se projetam desejos, necessidades, mundos
imaginários fabricados pelas novas indústrias de comunicação (idem, p. 119).
Junto a esta desestruturação da resistência e valores, a disposição para aceitar a
estrutura de um novo perfil, que é consumista. Percebemos também comportamentos,
assumidos por intermédio da cultura, que vão agravando e aprofundando esta desumanização.
Entre estes “o autoritarismo, a ignorância, são obstáculos a produção de si mesmo como
sujeito, que atingem mais duramente a uns do que outros. Ao mesmo tempo, estes obstáculos
são reforçados pela educação e valores dominantes” (TOURAINE, 2006, p. 114).
No capítulo anterior do presente estudo, apontamos que uma das prioridades do MST
é a educação. A luta pela Reforma Agrária trás consigo a luta pela educação: educação na
“escola de vida” que é o Movimento e educação escolar que é oferecida pelo Movimento.
Mas esta não é uma educação que reforça o autoritarismo e a ignorância. Pelo contrário, é
70
uma educação que combina leitura e escrita da palavra com a leitura e a escrita do sujeito e do
seu mundo. É culturalmente situada e socialmente libertadora.
O MST, para fortalecer a capacidade de resistência, melhorando ainda mais sua
organização rompendo com os interesses do sistema, faz com que cada um de seus membros
possa se educar permanentemente, aumentando assim sua capacidade de refazer-se frente a
luta; refazendo e reequilibrando suas forças diante de tantos e múltiplos obstáculos que o
enfraquecem e precisa enfrentar.
Ir nos cursos e nas palestras, ir em outros estados, outras regiões. Consegue ler
livros...consegue fazer lutas, também, que motivam e que mostram a realidade[...].
[...] a gente cresce enquanto ser humano e constrói outros valores, que antes a gente
não tinha. Como solidariedade, o respeito, a justiça, a dignidade e outros valores
que fazem parte do nosso cotidiano, que a gente começa a aprender (Bárbara).
Se o conjunto das atuações das pessoas e em especial das autoridades se propõe a
repetir e dar forma a um conteúdo que reproduza o sistema, é desafio grandioso construir
relações com base na criatividade e autonomia porque, conforme Abdalla (2004), “o modo de
produção de subjetividade predominante na sociedade é o da produção de repetição e de
submissão” (idem, p.110).
O mesmo autor afirma que “é preciso esquadrinhar, canalizar, compartimentar,
organizar, enclausurar a multidão, impedindo que ela se expresse na sua multiplicidade no
caráter imediato da sua força produtiva e emancipatória” (ABDALLA, 2004, p.61-62).
Todo o esquema montado socialmente tem objetivos bem traçados e urgência em sua
realização. É fundamental a adesão em grande número da multidão para que este projeto se
realize. Além de mercadorias, divinamente bem apresentadas, faz-se necessário,
concomitantemente, criar mentes simpatizantes e dependentes, consumidoras destes produtos
para alcançar um ideal inacessível de felicidade.
É por isto que o capitalismo se empenha tanto na produção de subjetividades, “o
capital produz aquilo mesmo que irá lhe sustentar e manter” (ABDALLA, 2004, p.171).
71
Esta produção/tipificação não acontece de forma harmoniosa, ela vem carregada de
trocas, conflitos, insuficiências, humilhações e impossibilidades. O mesmo autor coloca que
“na atualidade as máquinas capitalistas fabricam e corrompem a subjetividade, ou melhor,
elas geram e esfacelam as configurações subjetivas” (ABDALLA, 2004, p.166).
As pessoas são herdeiras de valores, de relações e marcas que desenharam
interiormente contornos preferenciais para suas vidas. Construímos nossas vidas mediante
relação de economia, proximidade, sinceridade, serviço ao outro, respeito a sua história e
tradição. A nossa felicidade é sustentada pela presença modesta das coisas, servindo o nosso
bem-estar e atendendo as nossas necessidades. Hoje temos a intervenção da propaganda e
marketing, porta-vozes das grandes empresas, que se apresentam, sugestionando a saciedade,
não só das necessidades, mas, principalmente, dos desejos, como algo que é fundamental para
nossa felicidade.
Junto com as coisas assimilamos também hábitos culturais, esportivos, políticos e
religiosos que vão retirando de nosso interior o que estava anteriormente enraizado. O fato de
termos raízes e fundamentos debilitados facilita que as forças do mercado construam sobre
nossas vidas uma relação que as reproduz. Quanto mais nos prestarmos a sermos
multiplicadores dos interesses do mercado, menos possibilidade teremos de gerar e integrar
coletivos pautados por relações de reconhecimento e solidariedade.
O ideal da sociedade neoliberal, é que não exista sujeito capaz de posicionar-se
frente ao que insistentemente oferece.
O filósofo Robert Kurz analisa o fenômeno da “dessubjetivação”, e mostra que a
moderna economia neoliberal é “sem-sujeito”. Não sujeito porque o trabalho
abstrato e o mercado livre constituem “força desconhecida”. Diz Tocqueville:”
Todos os homens de nossos dias são conduzidos por uma força desconhecida, que
levará a sociedade humana à dissolução completa”. Sem subjetividade, as pessoas
submetem-se à lógica do mercado com prazer quase masoquista”, conclui Kurz.
Segundo Chomsky, Celso Furtado, Ianni, Guattari, Jameson, entre outros, a
economia de mercado domina a “Sociedade Global” e debilita as soberanias
nacionais. É poder despótico mundializado e “desterritorializado”. André Gorz
estigmatiza a “impiedade” da economia de mercado que não obedece a nenhum
72
critério “social, cultural ou religioso”. No moderno sistema neoliberal sem sujeito,
não lugar para cidadãos. lugar para mercado e mercadoria (ARDUINI,
1994, p.08).
A sociedade neoliberal para alcançar a realização de ações que a sustentem tem
necessidade de que o grupo de seus consumidores apresente baixo nível de resistência às suas
investidas. Para isto, o anti-sujeito realiza seu intento enquanto não permite que o outro tenha
sua singularidade, seu projeto pessoal (individual e coletivo), suas preferências preservadas,
desenvolvidas e realizadas; que não crie espaços grupais de resistência aos interesses do
capitalismo que funda seu ideal de felicidade num conjunto de promessas que não consegue
atender. O consumo de mercadorias não conta de produzir felicidade duradoura e afastar o
sofrimento, apaziguando o indivíduo.
os que descobrem o sujeito em si mesmo e nos outros; são os que fazem o bem.
E há os que procuram matar o sujeito nos outros e em si mesmo; são os que fazem o
mal. Este não é uma essência, mas o resultado da ação humana. Os horrores, os
massacres, os sacrifícios humanos, os genocídios, as torturas, as execuções não
formam apenas um conjunto esmagador da violência e de destruição, que é no
sentido estrito da palavra, indizível como dissera tão bem os sobreviventes dos
campos de concentração particularmente Jorge Semfrum. Existe nos que fazem o
mal uma vontade extrema, uma paixão de humilhar e de degradar que vai além da
vontade de matar” (TOURAINE, 2006, p.111).
Temo que a mesma motivação que leva as pessoas a acumular e impossibilitar o
acesso de outros aos bens, seja a que as leva a cometer práticas de barbárie, destituindo o
humano de seus próprios rostos, de onde poderiam brotar possibilidades de cuidado e
evolução humana.
A crueldade não é necessária para destruir adversários ou mesmo inimigos, ela é
desencadeada para desumanizar o ser humano, para esmagar seu rosto e reduzi-lo a
uma massa sangrenta de carne e de ossos que não tem mais nada de um ser humano
(TOURAINE, 2006, p. 161).
73
Há, nos processos educativos do MST, a compreensão de que a combinação entre a
leitura e escrita da palavra com a leitura e escrita do sujeito e do mundo, os torna
culturalmente situados e socialmente libertadores e humanizadores para reconhecer e lutar
contra esta crueldade mencionada por Touraine.
74
CAPÍTULO 3
A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO NA LUTA DOS SEM-TERRA
Os elementos que configuram o ser humano se encontram em uma variabilidade de
movimentos e, dependendo das exigências e influências desses, o indivíduo se auto-desafia
para a busca de recriação de si mesmo, satisfazendo um desejo de crescimento.
Todo o ser humano traz dentro de si um conjunto de dinamismos conscientes, ou
semiconscientes que constituem motivações de todo o seu agir. Dinamismos esses
que se originam das suas vivências mais marcantes do passado, da internalização de
valores através da vida, da concretização dos mesmos na prática, das convicções
formadas, das habilidades adquiridas, dos apegos e rejeições, dos objetivos e ideais
visados, em face às solicitações, seduções, desafios e estímulos externos (CECREI,
2005, p..01)
O casal, César e Bárbara, viveu um momento de intensidade subjetiva e/ou
preparação para uma reestruturação, enquanto avaliava sonhos e possibilidades de objetiva-
los. Ambos consideraram as condições paternas, a disputa dos bens materiais e afetivos
(especialmente) com os demais familiares e a alternativa de trabalhar na região de origem,
antes de integrar o MST. O que foi considerado não alimentou esperança de um futuro
promissor.
Iniciou-se a intensificação do que é próprio de cada um: de um lado, forças psíquicas
interiores resistentes às dificuldades e aos problemas não resolvidos; de outro, fragilidades e
75
limitações, mas também capacidade de evolução dentro das oportunidades diferentes que se
apresentavam, com as surpresas frente ao acaso, condições de saúde para enfrentar, situação
continuada de precariedade, relacionamentos com pessoas tão próximas e com histórias tão
desconhecidas.
O que somos e do que somos constituídos resiste ou se conserva mediante tudo o que
vai ser alterado, sem desmoronar, mantendo uma estrutura unificadora? Do que sou, o que vai
puxar a frente em novas situações, justificando o abandono de marcas anteriormente
existentes, aquelas que não contribuem com a opção do momento? Como os envolvidos irão
desenvolver nova memorização que deixa em segundo plano as experiências anteriores? De
que forma as novas informações e situações vão ocupar prioritariamente espaços na memória?
E o que da história de cada um fica intocável, mesmo que as novidades assimiladas sejam
muitas, novas e importantes?
Instaura-se um processo de equiparação do que somos, o que até o momento fomos
capazes de realizar e o que é possível desabrochar para criar condições para resolver os
problemas ou conviver com os mesmos com criatividade.
Outro ponto que pode ser considerado é que somos relacionais, necessitados de
convivência, de comunicação, de diálogo, influenciando e deixando-nos modificar pelo outro.
Mediante a convivência estaremos nos enriquecendo, nos desenvolvendo ou sendo destruídos,
empobrecidos, também inibidos em nossas possibilidades. O terceiro ponto decorre do fato de
que entramos em contato com instituições, grupos e associações que trazem em sua história e
estrutura elementos que ao longo da vida se fixaram em sua identidade, exigindo adaptação,
subserviência ou resistência, marcando uma história pessoal e coletiva. Para Sawaia (1999,
p.116) “a vontade comum a todos é mais poderosa do que o conatus individual”.
também os que afirmam que “a pessoa deve exercitar-se e alcançar, em grau
sempre mais pleno, a percepção imediata de suas motivações internas, distanciando-se delas,
76
desidentificando-se das mesmas, para poder delas apropriar-se, discerni-las, ordená-las”
(Cecrei, São Leopoldo). Brota a pessoa, a partir das motivações, ideais, desejos, sistemas de
valores e normas que a sustentam e se transformam muitas vezes em projetos. Os projetos
abastecem-se de motivações e orientam a ação humana.
Como adianta Carreteiro (1999, p. 91)
o sujeito humano é criador de projetos, o que o leva a participar de sua cultura, de sua
história e a ser sujeito de seu corpo. Participar de projetos, imaginá-los, sonhá-los,
realizá-los, elaborá-los e destruí-los, abandoná-los representa laborar na construção da
civilização.
Este exercício, que cada ser humano vai desenvolvendo, estimula a identificação e o
desenvolvimento de suas potencialidades e possibilidades. Com isso, desenvolve a percepção
de onde este indivíduo tem facilidade de desempenho e onde se constata uma inaptidão para
tal conjunto de iniciativas e ações, facilitando escolhas confirmatórias de tal capacidade, e
identificando quais negam tal possibilidade. Isso ocorre mesmo sem o indivíduo dar-se por
conta. Na opinião de Sawaia, (1999), com base em Sartre (1943, p.21),
[...] a consciência surge no íntimo de seu ser, cria e sustenta sua essência, ou seja, o
agenciamento sintético de suas possibilidades”. “O ser humano vive em constante
movimento para a transcendência, o que supõe um constante “vir-a-ser” em que se
fazem presentes duas dimensões, a do ser e a do não ser (SAWAIA, 1999, p. 88).
Para Bárbara ao “conhecer o movimento, aprender a fazer barraca, como se
organizar, como lutar, a gente foi criando coragem, começou a pensar diferente”.
É do humano, a construção de fatos, coisas e realizações que vão favorecendo uma
ascendência permanente e a qualificação de tudo o que está ao seu redor. A presença
intencionada do humano é garantia de que as coisas alcançadas e tocadas pelo corpo ou pela
inteligência e pelo olhar vão ganhando aperfeiçoamento. Esta presença da pessoa é certeza
que sua intervenção para alterar o mundo é uma mudança realizada de forma diferenciada e
inconfundível, porque foi executada por tal ser humano, único e singular, na sua constituição
77
e na sua historicidade. Ao tocar diferentemente as coisas e interagir com os fatos, tudo isto
atinge o ser humano, de forma também singular, quando se nota a história da pessoa,
irrepetível, e a variedade com que ela reage e enfrenta o que está dado.
[...] O que cada um de nós procura, no meio dos acontecimentos em que está
mergulhado, é constituir sua vida individual, com sua diferença em relação a todos
os outros e sua capacidade de dar um sentido geral a cada acontecimento particular.
Esta procura não deveria ser a procura de uma identidade, que somos cada vez
mais compostos de fragmentos de identidades diferentes (TOURAINE, 2006, p.
124).
Cada pessoa, em cada momento, é marcada por diferentes acontecimentos que lhe
afetam com intensidade variada. Somos seqüencialmente, na convivência, a mais irrepetível
composição de estágios humanos, gerados por acontecimentos. Por isso para Sawaia (1999, p.
122), “a identidade humana é síntese das múltiplas ‘identificações em curso’ e, portanto não
um conjunto de atributos permanentes”.
Esse estado de variabilidade, na constituição e na intensidade das identificações, na
percepção da mesma autora, atua
como um processo constante de configuração de significações, que age como
elemento ordenador sobre os valores, afetos e motivações do sujeito individual ou
coletivo”. Por sua vez, “acolhe a multiplicidade em encontros afetivos, que geram
prazer, alimentados pela diversidade e sem temer o estranho (SAWAIA, 1999, p.
126).
A autora supracitada , como Ciampa (1987), a identidade como “processo de
construção de um modo de ser e estar no devir do confronto entre igualdade e diferença, que
nega o individualismo, abrindo o sujeito ao coletivo”. Para a referida autora “identidade
esconde negociações de sentido, choques de interesses, processos de diferenciação e
hierarquização das diferenças”, configurando-se como “estratégia sutil de regulação das
relações de poder, quer como resistência à dominação, quer como seu reforço”
(SAWAIA,1999, p.123).
78
Dentro desta multiplicidade de elementos e reações em disputa, que compõem a
identidade, para tornar mais rica a sua compreensão em um quadro de sobrevivência e
vivência da subjetividade, é importante para a nossa reflexão a riqueza da palavra resiliência e
seus desdobramentos para a subjetividade do excluído.
Para Leonardo Boff, a resiliência
comporta dois componentes: resiliência face às adversidades, capacidade de
manter-se inteiro quando submetido a grandes exigências e pressões e, em seguida,
é a capacidade de dar volta por cima, aprender das derrotas e reconstituir-se,
criativamente, ao transformar os aspectos negativos em novas oportunidades e em
vantagens (BOFF, 2007, p.8)
Pergunta-se por que o humano em condições sossegadas e tranqüilas deixa
adormecidas suas melhores iniciativas e soluções? Constata-se que a ferramenta capaz de
extrair de nossas forças interiores o melhor que podemos produzir e elaborar são as situações
limites que nos ferem e acordam forças criativas. Para Silva (2003, p. 4) “[...] é justamente, na
vigência de situações adversas que o ser humano revela potencialidades extraordinárias”.
Como tudo o que tem relação com o humano sua intervenção necessita do despertar das
energias e capacidades latentes. Nossa discussão sobre o sujeito passa pela identificação
dessas situações-limite e consideração aos movimentos (coletivos e individuais) que se criam
a partir delas, tornando possível “navegar em meio à tempestade” (CYRULNIK, 2001, apud
SILVA, 2003, p.3).
O ser humano, entre os seres vivos, é o único que, ao viver, pode ter consciência do
que se passa consigo. Junto a esta consciência de si, percebe um impulso, uma necessidade de
constituir sua história, compartilhando com outros humanos, ações, planos e idéias. Com isso
vai distinguindo diferenças e semelhanças e a possibilidade ou não de aproximar caminhos e
projetos.
79
aqueles que, tendo alternativas acentuadamente diferentes ou opostas, tendem a
distanciar-se, não se predispor à aceitação das diferenças e, dependendo da condição nas
tratativas, vão fazer uma oposição conflitiva e até rompimento de laços e vínculos. Frente a
este quadro é necessário distinguir os conflitos que envolvem a mesma classe, os pobres, e
aqueles que são resultantes do confronto com outra classe.
Em processos organizativos e lutas sociais, os da mesma classe se deparam com a
necessidade de superar conflitos, contando com as articulações de forças internas e a
assessoria de entidades que identifiquem os interesses implicados, as diferenças de história,
personalidades e marcas que a vida e a luta deixam; que se explicitem os conflitos e que se
apresentem algumas alternativas capazes de inspirar soluções às divergências, possibilitando
formas de respeitar a individualidade de cada um.
“O que cada um de nós procura, no meio dos acontecimentos em que está
mergulhado, é construir sua vida individual, com sua diferença em relação a todos os outros e
sua capacidade de dar sentido geral a cada acontecimento particular” (TOURAINE, 2006,
p.124).
A sociedade é constituída, sustentada, movimentada, atualizada, revigorada ou
transformada por pessoas. As pessoas exercem diferentes atividades e em cada atividade
desenvolvida existem diferentes graus de consciência sobre o que executam. Tanto nos feitos
de realização pessoal, como também sobre a natureza, e na construção dos acontecimentos.
Uns o fazem de forma rotineira e mecânica, outros o fazem de forma refletida, com certo
conhecimento dos efeitos internos dos mesmos, como também dos externos: relações com
empresas, mercado, natureza.
Na opinião de Sung (2002) “cada sujeito é um centro de convergência das relações
que o constituem. Cada sujeito é o que é pelas relações que o cruzam e, por isso, o
80
conformam. Cada sujeito é um da grande rede do Universo na qual todos e tudo estão
presos” (p.74).
Todas as atividades nascem das pessoas, são desenvolvidas e repercutem sobre elas.
As pessoas são o espaço onde os efeitos e significados circulam e se movimentam, geram
diferentes repercussões e efeitos que ultrapassam a formatação física e alteram o quadro de
realização interior.
Conforme Touraine (2006),
ser sujeito é busca de criação de si mesmo para além de todas as situações, de todas
as funções, de todas as identidades. Nós queremos existir como indivíduos no meio
das técnicas, das regras, da forma de produção, de poder e de autoridade, mas
também no meio das afirmações identitárias e das pulsões guerreiras (p. 108).
Afirma ainda o mesmo autor que “o eu é o conjunto mutante e sempre fragmentado
com o qual nos identificamos embora conscientes de que ele não tem nenhuma unidade
duradoura” (TOURAINE, 2006, p.114).
O sujeito se sustenta por uma variação de movimentos e a intensidade desses
depende da exigência da circunstância específica com que ele se depara.
Para que se forme esta consciência do sujeito é preciso que apareçam e se combinem
três componentes: primeiramente, uma relação a si mesmo, ao ser individual, como
portador de direitos fundamentais. O sujeito é o seu próprio fim. Em segundo lugar
[...] o sujeito não se forma a não ser entrando conscientemente em conflito com as
forças dominantes que lhe negam o direito e a possibilidade de agir como sujeito. E
por fim, cada um, enquanto sujeito, propõe uma certa concepção geral de indivíduo
(TOURAINE, 2006, p. 130).
O sujeito é continuamente confrontado por interesses que fragilizam sua identidade e
é imprescindível a retomada constante de seus fundamentos, para enxergar os desvios que o
distanciam do seu projeto de realização.
Eu defino o sujeito em sua resistência ao mundo impessoal do consumo ou ao da
violência e da guerra. Somos continuamente desintegrados, fragmentados e
81
seduzidos passando de uma situação a outra, de uns estímulos a outros... o sujeito é
um chamamento a si mesmo, em sentido contrário a vida ordinária. Para mim a idéia
de sujeito evoca uma luta social com a de consciência de classe (TOURAINE, 2006,
p. 120).
A construção do sujeito dá-se dependendo de tudo que afeta sua independência,
como também o exercício de uma rebeldia alimentada com a pressão que sofre de forças
externas e a constante dificuldade de se auto-construir. A todo instante nos deparamos com
fatos e acontecimentos protagonizados por outros ou por nós mesmos; de cada um deles
aprendemos, amadurecemos, modificamos, sofremos, nos questionamos, nos inquietamos,
escolhemos lições para nosso crescimento ou digerimos de forma demorada aquilo que nos
afetou profundamente.
O sujeito é mais forte, é mais consciente de si mesmo quando se defende contra
ataques que ameaçam sua autonomia e sua capacidade de perceber-se como sujeito
integrado, ou pelo menos lutando para sê-lo, para reconhecer-se e ser reconhecido
como tal [...] não há sujeito senão rebelde, dividido entre raiva contra o que ele sofre
e a esperança da existência livre, da construção de si - mesmo que é sua preocupação
constante (TOURAINE, 2006, p. 112)
Assumir o papel de sujeito na história, acontece em condições concretas, objetivas,
reais e locais. No MST este exercício fica assim explícito: os sujeitos vão se construindo na
medida em que são ativos na luta pela conquista da terra e no desenvolvimento de ações que
contribuem para manter a própria sobrevivência. Com isso vão criando identificações. Vão se
constituindo Sem-Terra.
“Se olharmos o nosso cotidiano, desde a casa onde moramos, a escola dos nossos
filhos, o médico para a família, o local de trabalho, até os hortifrutigranjeiros da nossa
alimentação cotidiana, trata-se de atividades de espaço local e não global” (DOWBOR, 1998,
p.32). Espaço constituidor, pois propicia, ao indivíduo, identificações e rejeições.
82
No que diz respeito ao local, podemos observar que os Sem-Terra vivem um
cotidiano marcado por diferentes vivências. A primeira é o acampamento. A vida no
acampamento é organizada a partir de duas dinâmicas distintas. A primeira vai ao encontro do
aspecto formal do acampamento, com as diferentes divisões de tarefas e atividades, onde cada
pessoa, no núcleo, assume atividades que preenchem as necessidades e atuam na organização
do mesmo, conforme a solicitação dos diferentes setores.
Respeitando esta organização, acontece a circulação das pessoas dentro do
acampamento. As pessoas, atendendo esta lógica organizativa, caminham por corredores entre
os barracos, posicionando-se conforme a escala de atividades em cada setor. Toda a disciplina
empenhada ali favorece a constituição de uma rigidez necessária para o enfrentamento do
poder do Estado e das elites dominantes.
A constituição do espaço de cada família se em metragem nima, desde dois
metros de largura por três de comprimento, onde o barraco de lona ou de plástico preto é
instalado. Dependendo da quantidade de pessoas, se maior ou menor, misturando num
mesmo espaço, sala, cozinha e dormitório. Os barracos são próximos, às vezes, não dando
espaço, entre eles, de um metro.
A organização interna é constituída pelas equipes de saúde, alimentação, segurança,
educação, religião, coordenação, tendo estas equipes sua autonomia, levando em conta as
regras gerais que devem ser respeitadas por todo o acampamento. No acampamento acontece
a quebra de quase todos os hábitos relacionais tradicionais, pela presença de poucas pessoas
conhecidas e muitas estranhas, com histórias e marcas diferentes em suas vidas. A
verticalização, nas comunidades de origem, sustentada pelas pessoas com mais recursos,
numa relação de opressão com as mais pobres, deixa de existir e neste ambiente, todos são
“despossuídos”, são Sem-Terra.
83
A área onde acampam é provisória e pequena, grande concentração de pessoas e de
barracos, existindo pouco espaço de privacidade. No que diz respeito à infra-estrutura básica,
como banheiro e pontos de água, estes são coletivos. Existe controle e autocontrole; pressão
interna e esforço de adaptação de todos os acampados. Estes se chocam com a pressão da
cultura da sociedade externa.
(...) a força da organização, a disciplina interna, o estudo e a formação dos sujeitos, a
capacidade de dialogar com a conjuntura e dar-lhe respostas criativas, enfim, a
capacidade de o acontecimento” não perecer, continuando a propagar-se, mantendo
os que contaminara e atingindo outros trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-
terra. (FALKEMBACH, 2002, p. 81 ).
A segunda dinâmica acontece no acampamento porque existem relações de amizade
entre os acampados. Existem amizades constituídas, que se reforçam dentro do núcleo
formado por municípios ou regiões, mas também a constituição de amizades intensas entre
pessoas que viveram em regiões distantes uma da outra e que, pelo favorecimento da
organização do MST, tem facilitado o seu desenvolvimento. É fácil de perceber que num
barraco, tomando chimarrão, estão pessoas de diferentes barracos, dos mais variados núcleos
da organização interna. Estas relações de amizade têm sido vistas como importantes para o
fortalecimento das lutas do Movimento; são vistas também como um dos elementos que dão
condições aos Sem-Terra de suportarem a “dureza” do cotidiano dos acampamentos e,
mesmo, dos assentamentos.
A forma de vida criada no âmbito da luta que constituiu o MST não somente
contemplou a marcante presença do companheiro “aquele que agente nunca tinha
visto na vida” e que de repente se tornou “como pessoa da família”; ela constitui-se
na própria expressão do companheirismo. (FALKEMBACH, 2004, p. 113).
As relações não respondem à lógica do núcleo conforme origem geográfica, mas de
amizade, de confiança e de parceria. Existe a simpatia, a afinação espontânea, a solidariedade
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que circula com calor entre os acampados. Nas conversas o cultivo do humor, da diversão, da
profundidade relacional, da fraternidade que estabelece vínculos profundos e entrelaçados;
ganha sofisticação pelas particularidades das histórias pessoais anteriores ao acampamento,
mesclando com ocorrências atuais dos diferentes momentos da luta. Temos aspectos que são
esquecidos como parte dos fatos e outros que a imaginação vai tecendo, narrando uma trama
mais cômica do que lógica, e vão dando à história de cada momento de fortalecimento, à
semelhança da terapia do drama, com riso e descontração, sublimando a pressão da alma
sofrida e as condições dolorosamente precárias que fazem parte da vida. Da experiência de
sofrimento que cada um traz, de dor, humilhação, carência e miséria que produzem
fragilização, destruição, desânimo e baixa auto-estima, o bem-querer e a amizade servem-se
como energia extraída da dor e instabilidade e constroem uma narrativa que gera uma alegria
que é rara, mas reconstituidora de sua identidade e dos laços que unificam corações e vidas
feridas pela exclusão e pelos vazios de tudo o que lhes falta.
No acampamento manifestações diversificadas: as discussões argumentadas sem
tanto rigor, as frases nem sempre bem constituídas, os acordos feitos para vencer as propostas
preferenciais nas assembléias, os demais discursos, cantos e acidentes gerados pelas pequenas
e raras comemorações que estão acima da capacidade de resistência do organismo, os
pernoites fora do barraco, os desentendimentos com a esposa, o teste da coragem do
companheiro de acampamento no posto da guarda, o prato de comida partilhado, o tiro dado
na direção dos jagunços ou fazendeiros, a bofetada dada no soldado. Estas situações e
vivências são conservadas vivas na prosa e transmitidas na conversa do povo lutador.
Auxiliam na construção e reconstituição da identidade de cada acampado que, por meio de
narrativa real ou desejada, ele organiza o enredo, misturando o drama acontecido com seus
sonhos, tornando-o vitorioso pela narrativa construída e falada que no momento, recebe
enriquecimento dos companheiros que a ilustram com pormenores pitorescos, favorecendo o
85
registro da história da classe sofrida e desprezada. É a narrativa-terapia construída pelos que
resistem às forças de oposição e da repressão.
Esse precisar do outro, entendê-lo, cuidá-lo, demandá-lo, não se envergonhar de
admitir as faltas partilhadas esse encontro concorreu para configurar uma forma de
existência companheira estilística de resistência – que passou a desenhar uma
subjetividade coletiva. Eu e o outro, e muitos outros experimentamos, criamos,
preenchemos um vazio com uma ação política da qual brotou sentido, o sentido da
liberdade (FALKEMBACH, 2004, p. 105).
A segunda são as marchas, onde milhares de pessoas acampadas, ocupando beiras de
estradas ou uma propriedade, reduzem seu espaço de mobilização e movimentação ao formato
da rua, estrada, asfalto, praças, salões paroquiais e comunitários, ginásio de esporte, praças e
igrejas.
A opção para passar em determinadas ruas e estradas, obedece à possibilidade que,
nestes espaços escolhidos, circulem potencialidades de pressão política e repercussão
significativa na opinião pública local, regional, nacional e internacional. Os participantes
formam fila dupla, ocupando um lado da pista da estrada.
Uma parte do grupo dos caminhantes é destacada para distribuir folhetos com as
razões da marcha. Junto à entrega do material ouvem-se xingamentos, expressões de desprezo
e racismo, para macular a dignidade da luta e das pessoas envolvidas. O serviço de som é,
contudo, utilizado pela coordenação do movimento, com constantes discursos de motivação,
embasados em dados atualizados sobre a conjuntura política, econômica e agrária do país.
Entre eles:
[...] Ninguém, em sã consciência, pode admitir que empresas estrangeiras sejam
donas de mais de 30 milhões de hectares, enquanto tantos brasileiros sem terra
nenhuma. Ninguém em consciência pode admitir que uma empresa canadense de
alumínio tenha 25 mil hectares das melhores terras paulistas. E muito menos aceitar
que a construtora CR Almeida tenha mais de dois milhões de hectares, registrado em
cartório e tudo (GÖRGEN, 2004, p. 170).
86
Este texto diz respeito ao todo do país. Quanto à realidade específica e mais próxima
do caso em estudo, a estrutura fundiária é a seguinte:
No Rio Grande do Sul a situação é muito semelhante. São apenas 838 os grandes
latifundiários com mais de dois mil hectares no Estado. Mas a área que ocupam é de
2.764 milhões de hectares. Em lotes médios de 25 hectares por família, será possível
assentar nesta área 110 mil famílias de agricultores sem terra. São 153 mil famílias
de agricultores que precisam de terra no Rio Grande do Sul. São os que trabalham
em estabelecimentos menores que dez hectares. Acrescente-se a isto
aproximadamente vinte mil famílias de peões, safristas, empregados de fazendas,
cortadores de mato e outros tantos que trabalham no campo sem vínculo direto com
a terra (GÖRGEM, 2004, p. 175).
Com o volume dos dados e a afronta, que significam a todos os que não têm acesso à
terra e considerando as dificuldades que são interpostas para conquistá-la, o conjunto dos
discursos abastece com motivação, convencimento e credibilidade a luta que no momento se
empreende. A todo o instante é preciso estimular e apresentar substancialmente informações
que fazem, dos participantes da luta, sujeitos aguerridos, capazes de reações cotidianamente
heróicas, como também iniciativas que possibilitem a demonstração da eficiência do
Movimento no construir seus objetivos. O Movimento se serve deste instrumento porque,
o dircurso veicula e produz poder, reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita.
Da mesma forma o silêncio e o segredo dão guarida ao poder. Os discursos são
elementos ou blocos táticos no campo das correlações de forças; podem existir
discursos diferentes e mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia
(MACHADO, 1998, p. 171).
Durante as marchas, em pontos estratégicos, onde tem mais concentração de
populares e em horário de pico, na saída do trabalho, são feitas pequenas paradas com
manifestações, quando acontece a fala de lideranças locais, simpatizantes da causa e
lideranças políticas estaduais e federais de oposição aos governos federal e estadual.
O que impressiona nos discursos não é somente o desenvolvimento semântico que
não é muito significativo na história desta palavra, cuja polissemia é
87
verdadeiramente notável. A associação imaginação e poder era uma prova da força,
quando não de provação. Por isto mesmo que a palavra em sua acepção comum
designa uma faculdade produtora de ilusões, de sonhos e de símbolos, e que exercia
em especial ligada a poesia e as artes, assim sua irrupção dá-se num terreno
reservado ao sério e ao real (BACZKO, 1991, p. 11).
Ao meio-dia é feita uma parada para o almoço. Quem pode espichar as pernas e
cochilar, o faz. Para que este almoço esteja preparado em tempo, uma equipe é destacada para
ir à frente e no lugar escolhido para a parada, o prepara. À noite é interrompida a caminhada
para o descanso, refeição e pernoite. Para dormir acontece uma partilha de colchões, de
espaços, de banheiros, material de higiene. De forma muito mais marcante são também
partilhados conversas, causos, gozações, fiascos ocorridos durante a marcha, cantos
populares, cantos de luta e rezas. Às vezes, o pernoite é feito a céu aberto ao lado da estrada
onde se caminha, onde não o conforto e a acomodação necessária para a recuperação das
forças. Além da provisoriedade do momento, às vezes, a natureza surpreende a todos e “o
vento destrói alguns barracos e a água penetra em tudo. Molha o chão, molha colchões velhos
e as surradas roupas. Maior parte da noite, todos molhados” (GÖRGEM, 2004, p.72). O MST
tem reunido um “povo” que cria motivação para suportar as “intempéries” da natureza, da
política, da própria história pessoal ou do grupo acampado, dos latifundiários e da mídia. São
encharcados diariamente pelo desprezo, pelas dificuldades, hostilidades, doenças e, mesmo
assim, não desistem; tornam-se enfraquecidos, mas não entregues, às vezes cansados, mas não
acovardados.
Na história das lutas do MST,
as vivências compartilhadas atribuíram sentido ao sofrimento, trazendo-o para o
plano da consciência da maioria dos homens e mulheres que reuniram. Sentido que
foi adensando com a energia emanada das tensões, do constante “perigo do
acontecimento”, e transformadas em manifestações de afeto o abraço, o aperto de
mãos, o compartilhar de objetos e noutros sentimentos que passaram a aumentar a
coesão do coletivo; o compromisso com o outro, a solidariedade, a amizade, a
felicidade (FALKEMBACH, 2004, p.89).
88
Por sua vez, esta mesma história de lutas vai ensinando a pensar e a reagir, cada dia e
cada ação, em perspectiva tática e estratégica.
Em sua história o MST foi constituindo o entendimento de que não existe uma
forma de luta que seja mais ou menos radical, melhor ou pior em si mesma. É a
conjuntura específica e a análise da correlação de forças onde será inserida que a
tornará mais ou menos eficaz; mais ou menos radical, por isto, o movimento
surpreende a sociedade quando retoma formas antigas e as recria tornando-as
perfeitamente justas para o momento histórico atual (CALDART, 2000, p.132).
As ações empreendidas dependem basicamente da conjuntura, do momento político.
Às vezes, taticamente, é melhor ficar acampado em determinado lugar, por pouco tempo ou
por tempo prolongado; às vezes, a forma de luta é uma caminhada; outras é uma ocupação de
propriedade ou prédio público.
A terceira forma de luta são as ocupações, quando
[...]
é possível, desde o enfrentamento dos corpos, em relação aos quais todos os
riscos são prováveis, inclusive o da perda total. É também negociação que pressupõe
a argumentação racional, o diálogo e a relação dissenso e consenso, quando são
admitidas perdas estratégias, mas vem sendo preservada a organização
(FALKEMBACH, 2002, p.10).
Quem participa delas é, em geral, o mesmo contingente do acampamento e das
marchas. As situações de ocupações representam os momentos mais cruciais. É a forma mais
radical nas relações de poder, de pressão do Movimento em relação ao opressor.
O latifúndio fica exposto e desprotegido, a disposição da organização, agilidade e
mobilização, da eficiência do Movimento. O grau de risco e perigo é extremamente alto. É um
espaço e momento denso de suspense, tensão, risco, confronto e ameaça. O Movimento
escolhe um momento, fora do foco de atuação do sistema de segurança, para ter sucesso em
89
sua iniciativa, dando entrada numa propriedade onde o proprietário e seus funcionários estão
ocupados com sua atividade de rotina. Acontece um choque, freqüentemente, indesejado pelo
proprietário. Às vezes a ocupação ocorre sem incidentes maiores. Em outras situações
encontra-se resistência. O proprietário desconfia da ocupação e arma seus funcionários com
arma pesada.
Todas as ocupações são precedidas pela ação de um grupo de elite que vigia a área,
observa os movimentos, planeja e executa a ocupação. A presença dos Sem-Terra na sede de
uma fazenda sempre ocasiona grande repercussão. Arma-se, a partir daí, a pressão
proprietário, classe empresarial rural, sindicatos dos mesmos, poder judiciário e aparelho de
segurança do Estado versus ocupante da área. Articula-se poder político municipal, estadual e
federal para encaminhamento de negociações. Os meios de comunicação têm uma notícia que
causa tensão, revolta os proprietários, desacomoda os governantes e o movimento procura dar
visibilidade social e realizar pressão sobre os órgãos responsáveis pela reforma agrária.
O serviço de construção dos barracos é ato contínuo à ocupação. Sabe-se que a
ocupação pode ser por um período curto, mas ao mesmo tempo, pode ter característica
definitiva, se a área está em processo adiantado de negociação. Agiliza-se também,
dependendo da pressão do movimento, meios de dificultar a chegada da polícia (Brigada
Militar) junto aos Sem-Terra, preparam-se cassetetes, barricadas e valas para o confronto
corporal. Os ocupantes e a coordenação do movimento também estabelecem seus contatos e
articulações com a coordenação estadual e nacional do MST, forças de apoio, imprensa para
que possa extrair da ocupação o máximo de pressão possível, fragilizando os proprietários,
aglutinando forças solidárias à causa e principalmente para tirar o governo do estado da
permanente inoperância na agilização da reforma agrária. Tudo é intensamente concentrado,
calculado e articulado para que a estratégia executada alcance o objetivo que o Movimento
planejou.
90
O movimento sabe que o expediente do discurso nunca levou à realização da reforma
agrária, muito pelo contrário, a retardou por isto. “Mas não basta uma pressão de discursos.
Faz-se necessária a pressão concreta sobre a terra, forçando que ela mude de mãos – saindo do
poder do latifúndio e passando para a mão dos trabalhadores”, afirma Görgem (2004, p.49). O
mesmo autor assevera que “as ocupações são uma forma legítima de pressão. Exigem firmeza,
organização, coragem e disciplina de parte dos sem-terra ocupantes, principalmente para
evitar violência e avançar nas negociações” (GÖRGEM, 2004, p.51).
A saída da área sempre é posterior ao marcado pela autorização judicial. Com
negociação pacífica, geralmente. Às vezes, a ação da Brigada Militar com despejo, tiro,
cassetetes, escudos, bombas de gás lacrimogêneo, revistas para tirar armas e efetivar prisões e
provocação entre policiais e Sem-Terra. O sofrimento decorrente da ação frustrada então se
instala. casos em que os danos materiais, corporais e morais são suficientemente grandes
para introduzir o desânimo, entre os envolvidos com a ação, ainda que este seja transitório.
Em outros casos, o sofrimento e o desânimo são amainados pelas relações de amizade; o
lugar para encontros, reencontros, lembranças dos enfrentamentos, das situações difíceis; cria-
se um estado de prazer, prazer-trágico entre os Sem-Terra.
O comentário sobre os eventos ocorridos procura diminuir o sofrimento próprio e do
outro e resgatar, dentro deles, pequenas ações de heroísmo que foi possível salvar frente às
forças de repressão tão poderosas. Esta forma de narrar os fatos brutais é o jeito de convidar a
dignidade humana, que foi ferida, a encontrar razões mobilizadoras para continuar se
empenhando na luta, dando a cada um alento e ânimo, aumentando a coragem e recuperando
o rumo da luta e da vida.
No caso de desocupação da área sem realização do assentamento, com violência
policial ou não, ocorre freqüentemente o desmantelamento dos barracos: taquaras, pregos e
lonas, misturam-se. O mesmo acontece com as panelas, chaleiras, colchões, facas e garfos.
91
Quem acha o que é de quem nesta “misturança” toda?! Sempre se “estravia” alguma coisa.
Não se localiza tudo. Volta-se novamente à reconstrução do acampamento em uma área um
pouco estável. Tempo de aquietação, avaliação e reorganização da rotina do acampamento.
Nestas estruturações e desestruturações de acampamentos e ocupações, os seres
humanos, que estão implicados, também vão se construindo e desconstruindo. Edificam-se,
não barracos, mas vão se edificando a perseverança, as convicções, a resistência, a fibra, a
coragem, o companheirismo, que são alimentados pelos desejos, pelos sonhos, mas também
pelas frustrações, dores, medos, chagas, ferimentos, perdas, inclusive do tempo investido e
ainda não compensado com resultados esperados.
Após cada ação, a pessoa que está na luta vai percebendo que os contornos de sua
subjetividade vão ficando mais alargados e robustos. Sua fraqueza e ingenuidade vão sendo
transformados, metamorfoseados em uma disposição de espírito, insistência, convicção
mobilizadora, que faz visualizar a necessidade e urgência do confronto com a brutalidade e a
destruição já causada pela exclusão.
Torna-se, assim, possível conseguir um mínimo de bens para si, que geram um
humano melhor e maior, mais enaltecido e glorioso, e impedir que a outra parte não tenha
acesso ao acúmulo de bens e viva da exploração, miséria, escárnio e aviltamento humano da
grande maioria excluída. Este submundo do humano gera desalento, abatimento, desistência e
depressão para alguns, mas para outros aciona, a partir da ameaça e desestruturação, um
ímpeto de defesa do humano e da vida, que faz assumir ações no limite máximo do risco de
tudo o que tem, não importando que forças precisam ser enfrentadas, que humilhações vão ser
sofridas e superadas, que resultados vão ser alcançados, com que forças vão ser defendidos.
É uma reação entranhada na dignidade, no calor humano, que entende que a vida
merece todas as proteções e cuidados, não importando a formatação que ela inclui, inspirando
comportamentos com uma concentração de energia acionadora e desbloqueadora das
92
possibilidades emancipatórias, dando ao ser humano o encaminhamento de possibilidades
múltiplas, impulsionadoras de concretizações históricas, capazes de incluir os humanos que
sentiram sua humanidade ferida pela miséria e pobreza, proibidos de realizar sonhos
minúsculos e a vislumbrar a possibilidade de reconstrução e recuperação deste humano. Isto
ocorre porque em dado momento histórico, pela atuação de pessoas lúcidas e corajosas, que
gestaram coletivamente a possibilidade, ainda que mínima, de acolher na estrutura fundiária e
econômica a materialização daquilo que sempre foi desejado, de forma muito intensa,
amorosa o seu pedaço de chão.
As ocupações de terra, com efeito, tem sido decisivas para impulsionar o programa
de reforma agrária, girando em torno de 100 ocupações, em todo o país, nos
primeiros anos da década de 1990, cresceram exponencialmente a partir de 1996,
quando atingiram 398 ocupações, chegando a quase 600, dois anos depois, com
pequena queda nos anos mais recentes. Sintomaticamente, é o período em que a
administração federal, mais avançou seu programa de formação de novos
assentamentos (SANTOS, 2002, p. 213).
Tudo depende da correlação de forças econômicas, políticas, culturais e militares, em
nível nacional, para alcançar com maior rapidez o resultado ou objetivo que se quer tornar
realidade. “Há inclusão de tendências contraditórias derivadas de conflitos e estratégias entre
atores sociais que representam interesses e valores opostos. Ademais, os processos sociais
exercem influência no espaço atuando no ambiente construído das estruturas socioespaciais
anteriores” (CASTELLS, 1999, p. 435).
A quarta experiência é o esforço constante e atento para alcançar a meta que é ser
assentado, ter um pedaço de terra.
Martins (1997, p. 20) considera que
As políticas econômicas atuais, no Brasil, implicam a proposital inclusão precária e
instável e marginal. São políticas de inclusão das pessoas nos processos econômicos,
na produção e circulação de bens e serviços, estritamente em termos daquilo que é
racionalmente conveniente e necessário à mais eficiente (e barata) reprodução do
capital.
93
O MST como lugar, movimento e instituição que garante a conquista da terra, não
limita um tempo-padrão para a luta, espera que cada participante persevere na organização, na
fidelidade às decisões coletivas e presença nas atividades planejadas.
A terra considerada como espaço de segurança, edificação de identidade, espaço de
desenvolvimento de conhecimentos e habilidades humanas. Com a terra em suas mãos o
agricultor, que até esta fase concentrou-se na luta, na organização, a partir deste momento é
convocado para exercitar e desenvolver suas capacidades físicas e mentais, no espaço de um
lote de terra. Vai conferir sua capacidade de planejar sua propriedade, plantar, cuidar da
planta, escolher o melhor lugar para a construção da casa e galpões, horta e arvoredo.
Com o trabalho, a energia humana, vai formatando as coisas, organizando os
espaços, cuidando da natureza, enfim, aperfeiçoando suas habilidades, gerindo satisfação
interior pelo bem criado, alterando as relações com a natureza, entre os humanos e o trato com
o seu próprio corpo, que se empenha e desgasta no trabalho. O trabalho junto à terra,
qualificando a propriedade, gera beleza na terra, esta beleza também nas plantas e a boa
colheita influenciam e produzem, no humano, efeitos e construções subjetivas que se
assemelham ao cuidado com as plantações. O agricultor é a planta viçosa e a planta é sua
felicidade, registro de seu talento desenvolvido, resultado de sua ação qualificada.
É isso que Abdalla (2004) diz que “a história dos humanos é a história dos modos de
produção e esses últimos por sua vez forjam modos de subjetivação. O trabalho nos produz e
transforma” (idem, p.95). O mesmo autor afirma que “o operar do trabalhador se confunde
com o próprio processo de criação de si” (p.99). Ainda considerando a relação trabalho e
subjetividade humana, Abdalla (2004, p. 101) citando Dejours (1997) diz que “a
engenhosidade é a compensação parcial do revés que implica subjetividade, ou seja, processos
imprescritíveis, heterônomos à ordem dos mecanismos que decorrem de uma produção
psíquica e cultural e procede por experiência e não da experimentação regrada”.
94
A dedicação ao trabalho faz com que o agricultor e a agricultora organizem o tempo,
aproveitem a geografia de sua propriedade, qualifiquem sua produção. Tudo isso vai interferir
nos hábitos e costumes dos demais membros da família, criando uma sincronia nos
movimentos e na intensidade do tempo, para que se alcance unidade, harmonia e prazer pelo
trabalho. Eles vão levantar-se em tal hora, tirar leite em determinado horário, considerando a
conexão que suas atividades têm com a de outros trabalhadores. Na vivência, o ser humano
vai entendendo o quanto a sua atividade está inter-relacionada com tantos outros setores,
gestando realização em cadeia pelos benefícios concedidos à energia produtiva, que cada um
deve investir para alcançar alguma meta produtiva.
A vida do agricultor é, basicamente, o seu contato com a natureza, organizando-a.
Isto o constitui. O agricultor desenha e edifica sua identidade no trato com a terra, a semente e
a planta germinada. No entendimento de Abdalla
a vida, na sua complexidade, precisa ser entendida... No curso das relações de
trabalho que é uma trama, um campo instável, uma rede de conexões que não pára
de produzir (Athayde, 1999:25) configurando a espécie humana. Múltiplas formas
de subjetividades são geridas quando trabalhamos (ABDALLA, 2004, p. 94).
Recebe o assentado uma ajuda do governo, nos primeiros meses, para a sua
manutenção até que seja possível a primeira safra. Começa sua circulação na sociedade local,
onde está o seu assentamento. No preconceito, rejeição, desprezo, a mentalidade opressora
começa a ser minada, porque o pobre chega ao comércio com dinheiro vivo e desperta nos
comerciantes o interesse econômico pelos recursos, que estão disponíveis nas mãos dos
assentados. O assentado, inicialmente, incute medo, mas como portador de recursos, cidadão
comprador, fonte de lucro ao comércio local, estimula a cobiça sobre a sua pessoa para que
entre em toda loja. Em cada lugar tem os que simpatizam com os assentados e os opositores.
Mas todos querem ter acesso ao dinheiro deles.
95
De forma lenta vai estruturando sua horta, pomar, planta eucalipto para lenha. Nos
assentamentos notam-se os pequenos matos de eucaliptos, próximos às casas para facilitar o
corte, picar e transportar para dentro de casa ou no galpão ou ainda como quebra-vento. A
família vai concretizando coisas básicas para sua vida. A saída do barraco, com seu aperto,
fragilidade e insegurança, decorrentes de todas as marchas, confrontos, caminhadas,
combates, desmontes e reconstruções, chuva, frio, tempestade, enfim, aquele lugar tão
esperado, tão desesperadamente buscado, em certas circunstâncias, agora está ao seu alcance:
a terra, a casa, a cama, o fogão, geladeira, chuveiro e principalmente a TV. As roupas
encardidas, com cheiro de fumaça, pelo motivo de morar sob a lona e dificuldade para lavá-
las, vão sendo substituídas por novas.
Agora está ciente de que não precisa caminhar tanto contra a sua vontade. Sabe que
precisa fazer parte de certas mobilizações. Na lavoura planta o seu milho, soja, feijão, trigo e
aveia, etc. Quanto às sementes, o assentado também quer plantar o milho com potencial mais
produtivo, a soja que o precisa capinar, devido ao uso do secante, ele também gosta de
conforto e descanso, mesmo que o lucro seja menor. No leite, ele também quer a vaca mais
produtiva, mesmo que nem sempre consiga ter as instruções que facilitem os cuidados
necessários. No setor de suínos, alguns criam o porco comum, mais resistente, outros
preferem o de raça. No pátio criam galinhas.
Na vida comunitária, tem as reuniões para discutir encaminhamentos do interesse de
todo o assentamento, reuniões com as mulheres para discutir a questão de gênero, filhos de
assentados em idade de acampar, reproduzem as reuniões para organizar novos
acampamentos. E nestas reuniões vão analisando a situação regional, nacional e até
internacional.
Fomos descobrindo aos poucos que os acontecimentos, os conflitos políticos, as
crises sociais que acontecem perto de nós são comandados por acontecimentos
longínquos. As circunstâncias locais não traduzem realmente o sentido dos
96
acontecimentos que ali sucedem, embora a situação local acrescente um sentido
secundário a acontecimentos que se explicam, sobretudo a nível mundial
(TOURAINE, 2006, p. 39).
No que diz respeito à religião e ao lazer, reproduzem as celebrações, os encontros de
catequese, as festas dos padroeiros, seguidas de bailes e reuniões dançantes prolongadas,
chegando eles a comentar que “hoje nossas vacas vão ter que esperar para tirar o leite”. Neste
dia de festa para entender que os sonhos de embelezamento, as roupas e calçados novos
estão muito vivos em suas vidas. O pobre também gosta de beleza, moda, alegria, comer carne
gorda, tomar cachaça, vinho e cerveja, contar piada e dançar em comunidade.
A terra, para eles, é ventre afetuoso que assegura a gestação do sonho, que ganha
formato de casa, de horta, pomar, chiqueiro, estimulando a fixação daquele homem e sua
família naquele lugar onde se manifesta o desejo de sossego, privacidade e proteção. A
esperança no verde da mata, a fertilidade da terra e o documento que separa tal pedacinho do
universo, dos demais, tornam-se fonte de felicidade para milhares.
Segundo os números oficiais até o final de 1996, tinham sido assentadas em todo o
país, 117 mil famílias, mas apenas entre janeiro de 1997 e junho do ano seguinte,
outros 114 mil famílias receberam seus lotes de terra e os programas de reforma
agrária federais, estimam que será possível oferecer acesso a terra entre 1992 e 2002,
outras 400 mil famílias (SANTOS, 2002, p. 202).
A quinta experiência, diz respeito à Educação.
A escola constitui-se historicamente como uma instituição social, estruturada por
ordenamentos, regras e valores que, embora social e historicamente condicionados,
se apresentam como sendo próprios dela mesma, e então se apresentam como
imutáveis porque considerados a razão do seu reconhecimento social e a marca de
sua autonomia em relação a outras instituições e à sociedade como um todo. Parece,
nesta lógica, que a identidade da escola depende de sua oposição cotidiana à idéia de
processo, de transformação, de vida acontecendo em sua imprevisibilidade e
plenitude, o que contradiz a sua própria tarefa social de fazer educação, que é
necessariamente inacabamento, descontinuidade, movimento [...] (CALDART,
2000, p. 23)
97
O encontro entre a instituição escola e o Movimento e sua organização dentro das
especificidades de cada um é possível havendo pré-disposições adaptativas por parte dos
integrantes de ambos. Mesmo assim, existirão aspectos que se degladiarão, gerando
necessariamente conflito. Somente vai ser processado o encontro através da produção de
sínteses educativas à medida que ambos aceitarem a existência de duas realidades portadoras
de riqueza pedagógica incontestável e conteúdo próprio, ou mediante a reconstrução da
escola, como passou a ocorrer nos assentamentos e também nos acampamentos, nesses
últimos sendo criadas as escolas itinerantes. assim, contextualizando a forma e os
conteúdos escolares a partir do que é próprio da luta e tendo sua acentuação maior, quanto ao
conteúdo, no mundo rural, os conflitos foram abrandados.
Não é possível construir algo usando o confronto entre certo e errado. Mas sim
buscando provocações mútuas que conduzem ao essencial para a vida e também para os
embates na história, que exigem não da escola, mas de toda a sociedade, novas sínteses,
capazes de promover a inclusão desde a educação e demais setores da vida social. Ações
coordenadas com o propósito de favorecer aprendizagens, a socialização e a transformação
dos sujeitos que reúne e do meio onde atuam.
O tempero do Movimento pode garantir à escola uma atuação social que lhe tire da
condição de estar sempre a reboque das transformações que ela nem percebe já
estarem alterando seu rumo e sua pedagogia. Pode também lhe ensinar a lidar com
as pedagogias na perspectiva de processo e não de modelo rígido (nossa escola
segue a pedagogia x) que ignora a presença viva de seus sujeitos e do movimento
pedagógico que produzem. Por outro lado, a gica institucional própria da escola
pode ajudar na emergência e no fortalecimento de preocupações mais perenes, mais
universais, exigindo do Movimento um olhar para além do imediato, o que acaba
sendo fundamental na consolidação da identidade de lutadores do povo, assim como
no trabalho específico das questões relacionadas à formação humana (CALDART,
2000, p. 23-24).
O MST, tendo conhecimento que a educação dada na escola tradicional reproduz
idéias das classes dominantes dos mais diferentes setores, concentrou sua ação para que a
98
educação respondesse às suas inquietações, interesses e necessidades. Elevou a educação
escolar a uma de suas prioridades e passou a lutar para que ela fosse contextualizada na vida
das famílias acampadas e assentadas e na vida do Movimento
11
. Por sua vez, reconheceu a
dimensão universal do conhecimento e passou a tecer as mais diversas relações para que suas
iniciativas no âmbito da educação se tornassem cada vez mais qualificadas.
Nos assentamentos, em julho de 2000, havia 1800 escolas de ensino fundamental (1ª
e séries) com 3800 educadores e 150 mil estudantes; havia 1200 educadores de
jovens e adultos e 25 mil educandos jovens e adultos. 250 cirandas infantis (nome
dado pelo MST, às creches) e 25 trabalhadores rurais sem-terra cursando medicina
em Cuba, além da dezena de outros cursando escola de nível superior no Brasil. O
MST, por intermédio do setor de educação, mantém seis cursos de formação de
educadores e técnicos, três escolas de ensino médio nas áreas de gestão de
cooperativas e organização e um curso de supletivo de 1º e 2º graus. O MST
estabeleceu convênios e acordos com 25 Universidades, entre públicas e privadas,
para a realização de diferentes tipos de curso (SANTOS, 2002, p. 255).
O MST, além de lutar para que a escola atenda os seus interesses como classe,
estendeu o conceito de educação para outro campo de atividades, sua própria luta.
Os cursos são necessários para a formação dos militantes, eles não são suficientes.
Todos os coletivos de formação devem levar em conta as dez lições apreendidas na
prática das lutas sociais: que militância faz-se pela prática, pela experiência, pela
ciência, pela cultura, pela disciplina, pelo exemplo, pela convivência e partilha pelo
espírito de sacrifício, pelo trabalho produtivo e pela crítica e autocrítica (SANTOS,
2002, p.254).
O MST investiu, ainda, na experiência da formação da opinião pública como
contraponto aos tradicionais meios de comunicação que defendem a posição, os interesses dos
proprietários dos meios de produção.
Desde 1987, o MST mantém programa de rádio de alcance nacional, com versões
semanais. Em função da importância do rádio no processo de comunicação rural, o
MST adquiriu horários em várias rádios particulares ou vinculadas à Igreja nos
diversos estados do País e passou a criação de rádios comunitárias. Desde 2000
11
A proposta de educação do campo, hoje oficializada, teve nesses confrontos e reflexões muitos elementos para
a sua constituição .
99
produz programa de rádio Vozes da Terra, que é distribuído mensalmente a todas as
rádios do MST, e as católicas, as universitárias e a algumas rádios comerciais.
Aproximadamente 2000 rádios recebem programas. Além disso, ao mesmo tempo
em que amplia a penetração dos programas radiofônicos, desenvolve ações através
de outros meios de comunicação, sendo a maioria do próprio MST, entre os quais: o
Jornal Sem-Terra (JST), a Revista Sem-Terra (RST), cartazes, exposições, palestras,
concursos de música, de dança, exposição de fotografia e artesanato, feiras,
concursos de poesia, de sicas e de canção, produção e execução de filmes,
encontros, venda de produtos com a marca dos sem terra e da Reforma Agrária. Tem
avançado a comunicação interna do MST e desse com outros organismos da
sociedade (SANTOS, 2002, p. 256).
É importante ter presente que esta prática, com seis formas diferentes de organizar a
ação e a luta, atua de maneira muito forte na constituição dos sujeitos subjetividades e
identidade Sem-Terra - onde cada indivíduo ingressa no movimento com o interesse de
conquistar a terra, mas também com o desejo de “ser gente”. De se tornarem trabalhadores e
trabalhadoras rurais identificados com as ações e propósitos de um Movimento que se
mantém em luta contra as diferentes formas de dominação vigentes na sociedade hoje.
Nestes anos todos de luta, o que ficou intocável daquele cidadão que entrou no
movimento? Se no ser humano, tudo é mutável, passível de amadurecimento, o que em cada
sujeito, mais firmou raízes? Nas relações interpessoais, será que o sofrimento sensibilizou
para um cuidado maior com o outro (humano, animal, vegetal, mineral)? Para o então cidadão
cumpridor de decisões dos outros, em que nível este foi estimulado em seu dinamismo para a
participação e intervenção na estrutura de sociedade?
Depois do visto, podemos afirmar que é difícil traçar generalizando os contornos das
marcas, das evoluções, conservação ou dos retrocessos, que cada pessoa foi experimentando
em todas as participações na luta. Acredito que aspectos que preservam a singularidade de
cada ser humano, mesmo que agredida pela brutalidade de alguns fatos pode ter sido mantida.
Quanto ao amadurecimento, à maneira como cada um foi aprendendo a trabalhar consigo
mesmo, nas situações limites com seus dramas, marcas, limitações e medos, a variedade de
estágios alcançados, a intensidade está registrada no secreto de cada um, mas com certeza,
100
tem havido respeitável amadurecimento. Os depoimentos de Bárbara e sar, no capítulo que
segue, nos demonstram algo sobre isto.
Os conflitos que podem ter acontecido entre os lutadores, serão em número
inexpressivo tendo em consideração o contexto tão amplo e prolongado de variadas e fortes
dificuldades enfrentadas? O ser humano na sua história é uma variedade de esforços de
cultivo de si mesmo, luta pelo respeito aos seus direitos fundamentais e acima de tudo,
sustentado pelos elementos anteriormente apontados. Para ser sujeito de decisão e
participação precisa lutar contra todas as forças que exercem ou queiram exercer domínio
sobre ele. Para Touraine (2006, p. 112),
o sujeito é mais forte, é mais consciente de si mesmo quando se defende contra
ataques que ameaçam sua autonomia e sua capacidade de perceber-se como sujeito
integrado, ou pelo menos lutando para sê-lo, para reconhecer-se e ser reconhecido
como tal [...] não há sujeito senão rebelde, dividido entre a raiva contra o que ele sofre
e a esperança da existência livre, da construção de si mesmo que é sua preocupação
constante.
101
CAPÍTULO 4
RELATO DA HISTÓRIA DE VIDA: OS HOMENS LUTANDO POR UMA NOVA
FORMA DE INCLUSÃO – A REFORMA AGRÁRIA
As experiências e vivências que constituem a biografia de cada sujeito podem ser
expressas em narrativas biográficas, variação da história oral da vida, recuperação do vivido
conforme concebido por quem o viveu” (ALBERTI, 1989, p. 5). No caso, trabalhamos com a
história de vida dos dois assentados, Bárbara e César.
É importante acrescentar que na narrativa biográfica de cada sujeito, a memória é
fator fundamental” e, no entendimento de Halbawachs, citada por Bosi (2003, p. 54),
“depende de seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a
Igreja, com a profissão”. A memória não está isolada, ela está sim penetrada pelas tramas do
coletivo, pelos acontecimentos e, por isso, ela é social e cultural. Isso o significa dizer que
não memória individual. Para Pereira (2004) “[...] a história oral devolve a história às
pessoas em suas próprias palavras. E, ao lhe dar um passado, ajuda-as também a caminhar
para um futuro, construído por elas mesmas”(p. 79).
É esclarecedor lembrar que o ato de escolha de quais elementos estão presentes e
constituem a memória e, especificamente, quais vão ser narrados, é individual. Um mesmo
102
fato pode ter o envolvimento de várias pessoas para se realizar, estar presente na memória
coletiva, nas relações familiares ou até de trabalho, mas na hora da fala, é um ser humano que
desenha e narra o visto, recorda particularidades que destaca como sendo de importância e
omite outros que julgam insignificantes. Mesmo que mais pessoas possam recordar e narrar, a
descrição obedece a opções de quem está falando.
A história de vida do jovem casal descreve uma opção que virou pelo avesso uma
rotina vivencial. Ambos viviam no anonimato, na função de executores de atividades que
vinham de encontro às preferências de cada um, tanto no aspecto doméstico, como também na
execução de toda e qualquer atividade produtiva na propriedade e/ou fora dela. Os dois
assumiam os trabalhos mais pesados, que os pais, com mais idade, viviam uma lenta e
gradual diminuição de suas atividades.
Enquanto desfrutavam de toda esta rede de bem estar familiar, dentro deles também
fervilhavam sonhos maiores, geradores de inquietações que eram difíceis ou impossíveis de
serem realizados na estrutura da unidade de produção que possuíam. Os sonhos
movimentaram energias e geraram inquietações; as inquietações os levaram a vislumbrar a
viabilidade da realização de seus sonhos. Sendo inviáveis os caminhos previstos, de
conseguirem alcançar seus objetivos por conta própria e individualmente, decidiram por
outro, buscar no MST esta possibilidade.
Neste trabalho está, pois, o esforço de registrar a fala deste casal narrada na riqueza
de sua linguagem, acumulada pelos anos, por busca própria ou estimulada por situações e
instituições. Conforme Gramsci (2001) “[...] pode-se dizer que todo ser falante tem uma
linguagem pessoal e própria, isto é, um modo de pensar e sentir” (p. 398). Em cada resposta
está a particularidade, o efeito, o custo, o peso que os fatos vão tendo na história da pessoa. A
intensidade do vivido vai deixando marcas, transformando e alterando toda a história vivida
até então, destacando detalhes mais decisivos em cada momento.
103
A escolha pela entrevista com o casal foi assumida porque o mesmo exerce função
de liderança e traz presente em sua vida também a luta cotidiana de todo o participante do
MST. Optei pela história oral, de forma a possibilitar, versões da história enfocadas por mais
de um narrador. Segundo Thompsom (1992, p. 18) “o método da história oral possibilita o
registro de reminiscências das memórias individuais, enfim a reinterpretação do passado”.
César Juchem provém de família oriunda do Município de Selbach, pertencente à
Região do Alto Jacuí, Rio Grande do Sul. O Município foi povoado por uma população
predominantemente de descendentes de alemães, possui propriedades bem organizadas, com
alta produtividade e capacidade de trabalho. A participação religiosa dos munícipes é intensa,
a cidade é organizada e as localidades do interior
12
têm comunidades que reúnem igrejas,
salões comunitários (bem estruturados e acolhedores) e equipamentos de lazer. Estas agregam
reduzido número de famílias, mas o convívio é rico, pois valorizam o lazer, a vida
comunitária e espírito de colaboração. Na localidade em referência, houve a doação de
grandes valores para a construção de um núcleo comunitário.
A família Juchem, participante deste contexto, onde a valorização da terra é muito
alta devido a sua excelente produtividade, não teve possibilidade de adquirir mais terras no
município. Em razão disso, juntou suas economias e adquiriu um lote de terra em Boa Vista
do Incra, Município de Cruz Alta, por ser esta adquirida por um valor inferior ao valor da
terra em Selbach. Por que estas terras podiam ser consideradas baratas em relação às do
município de Selbach? Porque para esta área foram enviadas as famílias desalojadas pela
construção da barragem do Passo Real. Enquanto as Comunidades de Colorados, Fortaleza
dos Valos, e Itaíba, município de Santa Bárbara do Sul, eram ocupadas por famílias de
descendentes de imigrantes, pequenos agricultores tradicionais, Boa Vista do Incra teve seus
12
Interior: expressão regional utilizada para designar meio rural
104
lotes ocupados por famílias na sua maioria pobres e negros, que viveram como meeiros e
empregados antes de residir nestes lotes. Mas nem todas permaneceram nos lotes ocupados.
Conforme Fronchetti (1998),
das 317 famílias que foram colocadas nos lotes da fazenda Boa Vista, apenas
27,80% eram proprietárias nas terras alagadas, 53,05% parceiros, 8,30 posseiros,
6,70% eram assalariados rurais, 1% arrendatários e 3,l5 filhos de pequenos
agricultores que retornaram de estágio em granjas da Alemanha (idem, p. 61).
No início da década de 70, os moradores da área que não eram proprietários de terra
(parceiros, posseiros, assalariados rurais, arrendatários) se tornaram, por circunstância,
pequenos agricultores com terra, maquinário e financiamentos em situação de igualdade com
os demais agricultores tradicionais, os 27,80%, que eram proprietários nas terras alagadas.
Não tendo experiência gerencial, para investir abundantes recursos, mesmo recebendo
financiamento e ajuda do governo, não conseguiram produzir o sustento e o progresso
desejados. O fato de terem apenas a experiência de obedecer ou serem mandados,
administrando poucos recursos, resultado do trabalho semanal, com o lote de terra
conquistado junto ao Incra; e também pelo fato de serem moradores da área atingida pelas
águas, optaram por vender a terra por preços abaixo do Mercado Regional da Terra,
facilitando a aquisição destes lotes por pessoas ou famílias de fora.
De acordo com Plínio Juchem a entrada para a aquisição da terra era de 30% (trinta
por cento) do total da área. Entravam no negócio carro usado, caminhão, casa na cidade, sem
contar que o restante da dívida tinha um longo prazo para pagamento. Entre os municípios
que tiveram agricultores que adquiriram lotes em Boa Vista do Incra estão Tapera e Selbach.
As facilidades na aquisição da terra e a modernização da agricultura favoreceram
para que a família mantivesse uma base de conforto e garantisse a vida dos filhos até
encaminhá-los para o casamento. No instante em que os filhos precisaram de um respaldo
105
econômico para aquisição de área de terra, a família não tinha recursos para bancar o volume
de dinheiro necessário para garantir a colocação dos mesmos.
Bárbara Belini Juchem, nasceu em Cruz Alta, mas cresceu no interior de Fortaleza
dos Valos, na localidade de Colorados, um dos distritos deste município. Esta localidade
surgiu a partir da construção da Barragem do Passo Real e seus familiares receberam lotes
neste lugar. A escolha das famílias para ocuparem estes lotes foi feita de uma forma bastante
rigorosa. Entre os próprios agricultores pensou-se em organizar um assentamento modelar,
para juntar numa lista os melhores, considerando os seguintes critérios: aqueles que tinham
terra e que fossem descendentes de imigrantes italianos e alemães. Juntamente com
Colorados, outra comunidade que teve o mesmo espírito, na escolha das famílias, foi a
localidade de Itaíba em Santa Bárbara do Sul. Estas duas comunidades, desde a fundação,
sustentaram-se por uma distinção baseada no fato de que viviam na região das barragens
aqueles que eram proprietários e não os peões, negros ou pobres. Isto dificultou a presença e
participação dos membros das famílias descendentes de imigrantes junto às comunidades mais
simples, formadas por ex-peões e empregados, especialmente em eventos sociais.
Os pais de Bárbara fazem parte das famílias Belini e Taietti. Os mesmos são
proprietários de uma pequena área de terra de 12,5 hectares, desde o ano de 1970. Produzem
milho, soja, trigo, leite, são apicultores e têm uma forte atividade de pesca vendendo o peixe
nas localidades próximas. Não utilizam mão-de-obra externa. É o casal que trabalha na
propriedade, sustentando a mesma com mão-de-obra própria. Além do desempenho na
propriedade, que é de alta produtividade, o casal, na comunidade, no que diz respeito às
funções de liderança, tanto na escola - Círculo de Pais e Mestres - como também na Igreja -
quer na coordenação econômica como também nas diferentes funções litúrgicas, catequéticas
e grupos de reflexão na base - são presença que traz qualificação e profundidade.
106
Neste contexto suas três filhas cresceram, foram educadas, conviveram e
estabeleceram relações. Bárbara é a primogênita da família. Mesmo a família sendo modesta,
as filhas foram criadas num ambiente de bastante exigência. Bárbara cursou o ensino
fundamental na Escola Estadual de Colorados e o ensino médio na Escola da cidade de
Fortaleza dos Valos. Venceram todas estas etapas, não abrindo mão de seus sonhos e desejos.
Namorou o jovem César Juchem, com o qual celebrou o sacramento do matrimônio na
Comunidade Cristo Rei de Colorados, em Fortaleza dos Valos. Moraram por um tempo junto
à família de Plínio e Maria Juchem. Como a propriedade é insuficiente para o sustento e
progresso de duas famílias, o jovem casal decidiu deixar a segurança, conforto e status de
suas famílias e foram acampar.
Neste ponto da história, o jovem casal começa a “saborear” o amargo e humilhante
gosto do processo da exclusão. Não importa, porém, a origem alemã ou italiana, o que conta e
vale nesta hora é que eles, juntamente com outros pobres de outras etnias, vão formar uma
força, tornando-se parte de um movimento social capaz de alimentar uma esperança
“fundante” para a realização de seus sonhos e superar a exclusão.
O sistema neoliberal não escolhe somente negros e lusos para excluir. Ele dispensa,
não importando a etnia, de forma a possibilitar a acumulação e concentração de inteligência,
tecnologia e capital. No caso do César, Filho de Plínio e Maria Juchem e Bárbara filha de José
e Marisa Belini, não havia uma situação desesperadora de necessidade para acampar. Mas
predominando sobre eles o espírito de autonomia, independência e pautados pela necessidade
imediata de fazer vida própria, os recém casados decidem fazer parte de um acampamento do
Movimento Sem-Terra. Participam de todas as situações que vivem os acampados - lona,
banheiros improvisados, condições precárias da água, comida escassa - não se alimentando de
privilégios.
107
Na comunidade de origem, eram cidadãos que desfrutavam dos fatos,
acontecimentos, mas não se destacavam como líderes; não assumiam posições de
coordenação ou direção na Igreja, Sindicato ou Partido Político. Acompanhavam apenas os
pais que, por sua vez, exerciam liderança na comunidade, solucionando as dificuldades da
mesma. Na família, eram colaboradores dos pais, porque os mesmos determinam as ações a
serem realizadas pelos filhos, que vão aprendendo, com o jeito dos pais, a conduzir seus
trabalhos. Não passavam necessidades que afetassem a sobrevivência, mas também não
divisavam futuro próspero e promissor, para continuarem a viver naquela localidade.
A partir da experiência de ajudante de pequeno agricultor, César assume a condição
de acampado dentro de um núcleo que reúne os demais acampados de sua região. Em
condição de igualdade com os acampados do núcleo, é submetido a um teste de confiança
pelos companheiros, no momento que ocorre a eleição para a função de líder. O acampado
assume o primeiro papel de coordenação como líder do núcleo. Ao exercitar a função de líder,
na responsabilidade de coordenação do acampamento, foi revelando capacidade destacada de
coordenação e síntese facilitando a tramitação do exercício de liderança, vital para a
organização interna. Da função de líder de núcleo foi apontado para o exercício de
coordenação do acampamento.
No acampamento, que é uma cidade exclusivamente constituída de pobres, a relação
de importância e de poder, a qual o cidadão é lançado inesperada e inexperientemente na
atividade de líder, numa situação de emergência, o cidadão adormece acampado comum, da
base, ligado a um núcleo, e acorda membro da coordenação de milhares. Exercita-se uma
liderança não do consenso, da comodidade e da facilidade de recursos, mas em meio a
situações constantemente conflitivas e tensas.
Além das pressões externas, convive-se com pessoas que viveram ainda mais
isoladas, sem contato com pais líderes, tornando, assim, ainda mais difícil o exercício da
108
participação. Somadas ao ambiente tão desgastante e desumanizante, a precariedade e
provisoridade de tudo, no barraco o acampado tem um espaço tão diminuto para movimentar
vidas com suas preferências, gostos e desgastes, que se torna ainda mais difícil a compreensão
da vida do outro que compõe o acampamento.
Foram anos de acampamento, ocupações, caminhadas, cursos, faculdade, exercício
de liderança, no núcleo ou no acampamento. Também no exercício da Educação, por Bárbara,
como ideal de vida, como retribuição à formação recebida e o desenvolvimento do seu
potencial de formadora na ótica de uma luta pela terra, na sua trajetória de acúmulo de
conhecimento, de experiência mesclando intuições da ciência, da luta, da feminilidade, dos
sonhos de uma nova sociedade, com terra para quem nela trabalha, vive e progride.
Neste ambiente de luta contra o latifúndio e contra o Estado, que defende o interesse
dos mesmos, os pobres esforçam-se para viver em harmonia, apesar da desarmonia do
ambiente onde vivem com pouco conforto e muita precariedade. Um novo modo de ser e estar
começa a delinear-se baseado em toda mudança e instabilidade que se instalam em suas vidas,
que não usufruem de uma morada fixa e estável, mas esta se torna instável e móvel dentro
da dinâmica da luta, onde se instala e desinstala o barraco, conforme vão se desenvolvendo a
luta e a caminhada de construção da história do movimento. Em cada ocupação, a construção
de um barraco, em cada saída, uma desconstrução, na certeza da reconstrução, logo adiante,
onde será definido outro acampamento.
Na formação de novos acampamentos é sempre necessário o trabalho de base,
visitando famílias, reunindo-as em comunidades, apresentando a organização do MST, os
desafios da luta e as tarefas que todos precisam desempenhar no acampamento para o bom
funcionamento do mesmo.
Em seus relatos, César e à Bárbara esclarecem: “Nós não tivemos nenhuma
influência, assim de fora. A gente foi por motivos próprios, entrou na luta pra conquistar o
109
nosso espaço, ter um pedaço de chão, que é direito de todo brasileiro”. Seguem relatando:
“Acampamos na Encruzilhada Natalino em 19 de agosto de 2001, participamos da ocupação
da Fazenda Rio Bonito no dia 17 de outubro de 2001”.
Nesta ocasião aconteceu algo inédito. O juiz de Passo Fundo declarou que a
propriedade fosse desapropriada por não cumprir função social. Em trinta dias ganharam a
causa em três instâncias. Formaram novo acampamento dentro da Anoni, município de
Pontão, no final de novembro de 200l, permanecendo até dezembro de 2002, quando
mudaram todo o acampamento para Júlio de Castilho e ficaram até 1 de abril de 2004.
Realizaram a primeira ocupação da Fazenda Guerra. Não voltaram mais para Júlio de
Castilho. Foi pesada a ocupação e a saída após uma negociação com o governo federal.
“Ficamos dentro da área 9 da Anoni, Sarandi, RS, permanecendo mais 90 dias, até deslocar a
mudança de Júlio de Castilho”, afirma o casal. Ficaram sem as coisas do acampamento.
“Vieram as coisas de Júlio de Castilho, as tralhas e acampamos na 386, próximo a Sarandi.
Permanecemos aí de 2003 até dezembro de 2006”, destacam Bárbara e César.
E como a vida é constante aprendizado, foi uma surpresa muito grande o fato destes
jovens se apresentarem para acampar junto ao Movimento. Com certeza, tanto a família de
um, como do outro, mesmo existindo tradição de participação em partidos de esquerda, foi
surpreendida: como pensar na possibilidade de serem participantes de um movimento social
desta natureza? Foi algo inesperado para todos os que os conheciam.
A tomada desta decisão foi feita com muita maturidade e firmeza, mas também
sacrifício e sofrimento, mesmo estando dispostos a encarar as dificuldades que esta opção
poderia trazer. E exigiu aprendizado, como revela o depoimento de Bárbara:
Porque no inicio a gente não tinha muito conhecimento de como era o Movimento
Sem-Terra e a gente foi aprendendo no cotidiano como se organizar. Então a primeira
experiência bem importante foi a barraca que a gente construiu. A gente nem sabia
como fazer a barraca. Fizemos tão baixinha que a gente mesmo batia a cabeça sempre
110
ali. E assim a gente foi aprendendo como se organizar, como se movimentar, como
lutar [...]
Para César,
a gente se envolveu em várias tarefas, atividades e ações dentro da organização.
Dentro do acampamento a gente participava diretamente de várias tarefas, tanto
organizativas internas, como organizações das lutas, das pressões que o movimento
fazia e faz até hoje pra avançar o processo de reforma agrária no Brasil. É, na
verdade, a gente assumiu desde o início a coordenação e direção do Movimento,
dando as linhas mais políticas, né?! Dar organicidade. Então a gente teve um choque
assim.
Tudo no Movimento é novo e se faz necessário ousar para resistir e enfrentar as
tarefas com coragem e manter um nível de motivação sustentador, dada a variação de funções
necessárias, básicas e decisivas que ocorrem no Movimento. Para quem vivia na propriedade
dos pais com toda a proteção imaginável, de casa, alimentação, recursos, calor humano,
intimidade e confiança, diálogo profundo e conforto, é um deslocamento impactante para o
corpo, uma vez que ocorre o desaparecimento do conforto.
para as subjetividades apresentava-se uma situação estranha, instável, insegura,
hostil, constantemente mutante. Pois as pessoas eram sustentadas não por uma área geográfica
própria e fixa de sua propriedade, mas por um colocar-se sobre o que é do outro, do Estado,
propriedade privada de outro, com toda a freqüência de pressão, ameaça, rejeição e mudança.
Isso por que todo o acampamento é construído em área pouco conhecida, com um relevo
diferenciado aos anteriores, com troca de vizinhos de barracos, com outro nivelamento de solo
para fazer barraco, com uma outra conjuntura. O momento e a disposição dos núcleos passam
por situações variadas de assimilação de conteúdo e conjuntura. As famílias também
enfrentam conflitos internos, desgastes que deixam as pessoas mais nervosas nos
encaminhamentos, menos acolhedoras frente ao proposto pela coordenação do acampamento,
para e pela luta. É por isso que, na entrevista, perguntados sobre que elementos chamaram a
atenção, foi forte e difícil a resposta, abaixo transcrita.
111
[...] É o próprio acampamento... As dificuldades são várias. Uma delas é a nossa
organização interna, a questão da segurança. Muitas vezes, no forte do inverno a
gente levantava de madrugada pra tirar duas horas de guarda, não é muito bom né?!
Não é muito agradável. Enfrentar o frio, uma geada pra tirar seu horário de fazer
segurança de toda a companheirada. Mas, de outra forma, nas ocupações também é
um momento de maior preocupação da gente, é nervosismo porque a gente nunca
sabe o que vai acontecer na hora seguinte. Porque a conjuntura praticamente muda
de instante em instante e também a pressão psicológica é muito grande, que é feita
em cima da ação que tá sendo realizada. Mas, com tudo isso, com todas essas peleias
que a gente fez e ainda vai fazer pra frente a gente vai... Tendo um grande
conhecimento em cima disso e consegue uma luta com mais calma. A gente já faz
uma luta um pouco mais tranqüila, a gente sabe como é que funciona, tem uma
noção como que é como acontece a luta.
Sendo tudo extremamente mutante e inesperado, na qualidade do acampamento, nos
seus participantes, mede-se na hora mais decisiva e crítica das ações do movimento. Acampar
é essencial, participar das marchas impressiona a sociedade, mas o que dá têmpera aos
acampados é o momento da ocupação. Neste momento ou nesta situação, o capital do
latifúndio e o capital dos acampados - que é a coragem, a convicção e a ousadia - precisam
assumir particularidades precisas e são abaladas de forma brutal e extrema.
Para Bárbara a ocupação mais forte foi a da Fazenda Três Pinheiros:
[...] Foi em dois mil e quatro ou cinco? [...] Mas assim que a gente teve a ordem de
despejo e então às cinco horas da tarde a gente teve que sair da área. Então tava todo
mundo apavorado porque a polícia começou a cerca nós e nós tava se organizando
pra sair e não sabia como ia sair. Começou a vim os policiais armados, com
cachorros e veio também os policiais da elite, né? Atirador de elite. E daí assim
bateu um pânico, porque nós não sabia como é que nós ia sair e já estava começando
a escurecer e nós não era num grande número. E o maior susto foi quando,
primeiro,os atiradores de elite atiraram, deram três tiros e arrebentou os três fios de
luz. A gente já viu que a coisa não ia ser boa, né? Eu sei que todo mundo tava se
preparando pro pior. Era criança chorando, era pais apavorados. Eu mesma pensei
que se nunca apanhei vai ser agora. Eu botei três calças e me enchi de casacos e já
enrolamos o colchão com as nossas coisas e sacolas e todo mundo apavorado achava
que não ia poder carregar as coisas e sacolas e todo mundo apavorado achava que
não ia poder carregar as coisas que tavam lá. Daí nós imaginávamos: vão botar
fogo em tudo e vamos perder tudo. Mas no final nos últimos minutos deu pra nós
reverter e a gente se organizou pra discutir com a Brigada e conseguimos sair em
paz, meio no escurão da noite mas daí... foi um... Deu um cagaço, deu um medão,
mas a gente conseguiu reverter a história e aprender bastante com isso. Mas foi um
momento bastante marcante.
112
E para o César, a ocupação que mais o marcou, que deixou impressões mais
profundas,
[...] foi a segunda grande ocupação na Fazenda Guerra, em Coqueiros do Sul, que
foi até assim um fato histórico porque vai ser difícil algum dia a gente, enquanto
movimento, reunir todos os acampamentos do Estado. Onde ali estavam presentes
todos os acampamentos do Estado, com duas mil pessoas. E ali naquele momento,
na reta final da ocupação a própria coordenação da ação da ocupação também estava
meio perdida, não sabia que rumo ia tomar. Porque nós tava, na verdade, num beco
sem-saída e eu tinha uma tarefa muito forte dentro daquela ação, porque envolvia
dinheiro. Eu era o responsável da bodega da ação e como tinha bastante gente
naquela ocupação, girava muito dinheiro diariamente e sempre. Então eu tava muito
nervoso aquele dia. A gente não sabia o que ia acontecer. A gente fez uma grande
compra de mercadoria e levado para aquela ação, que agente tinha um planejamento
de ficar vinte dias na ação e na verdade ficamos uns 10, 11 dias. Então ficou
muita mercadoria que depois, no fim da história a Brigada ficava comendo
bolachinha na nossa frente e tomando refri, na nossa frente, que ficaram com tudo.
Então foi um prejuízo que nós tivemos, grande, naquela ação, que naquele dia às
pressas a gente tirou o que podia, mas a maioria das mercadorias ficou. Não
pudemos tirar. E até depois... Deu uma repercussão muito grande em cima daquilo.
Até a merenda da escola ficou toda perdida, que tinha bastante, também. Então ficou
marcado, é uma coisa que a gente não vai esquecer por aquele motivo.
Bárbara ainda sobre esta ocupação, na função de educadora, acrescentou:
[...] E a escola foi um dos fatos que a polícia mais bateu, porque nós tinha construído
uma escola de 15 metros que a polícia mais bateu, porque nós tinha construído uma
escola de 15 metros, de madeira, bem feitinha, assim. E uma parte que era secretaria
e biblioteca e refeitório também, que dava mais uns sete metros. E ali a gente
trabalhava com as crianças de manhã e a parte da tarde. Então tinha umas cento e
poucas crianças do pré até a oitava série. E a polícia, foi um dos locais que mais ela
atacou, porque foi o primeiro local que ela botou fogo quando veio, além de levar a
merenda da escola. E a gente tinha feito um ato muito bonito, de inaugurar a escola.
Tinha feito uma placa grande, pintado, muito bonito e a comunidade toda participou
pra construção dessa escola. Então mexeu com todos. A revolta foi geral, não foi
das crianças e dos educadores, mas foi de toda a comunidade que tava ali. Doeu
muito ver a escola sendo queimada.
Muitas pessoas, na história, vão crescendo, nem sempre de forma notável e visível,
mas evoluindo política e eticamente, carregando dores, humilhações, sofrimentos, assumindo
decisões duras e incertas, mas buscando um degrau superior nas suas maneiras de estar no
mundo. No caso de integrantes do MST, a evolução está associada ao conhecimento das
113
condições da luta pela terra, compromisso com o coletivo que o Movimento reúne e com os
princípios que põe em prática. Reconhecendo opções importantes na conjuntura, animando os
companheiros, levantando a “moral” do grupo, reconhecendo ações frustradas ou limitadas
quanto aos seus resultados ou benefícios, atuar no MST é participar de atividades regulares,
do dia-a-dia, mas também conviver com a incerteza e colocar-se à disposição de uma luta
árdua, que se enfrenta uma classe poderosíssima (latifundiários/empresários) e um Estado
repressor. É por isso que dois seres humanos, como César e Bárbara, não notados em seu
valor para o exercício de liderança na comunidade de origem, podiam ser considerados
portadores, sob forma latente, de fibra, capacidade aglutinadora e de sustentação de uma luta.
Foram capazes de heroísmos e demonstraram coerência ao praticarem e sustentarem o
conjunto de valores do Movimento nas vivências cotidianas, nas mobilizações e
enfrentamentos que participaram. Com isto foram se constituindo sujeitos identificados com
as formas de vida, princípios e propósitos do MST; foram assumindo a identidade Sem-Terra.
Como revelam nossos entrevistados, é bom para qualquer cidadão, independente da
forma e do nível de qualidade com que conduz sua vida, olhar uma trajetória que não foi
simples, nem rotineira, nem dada à repetição, à acomodação ou à submissão aos exploradores
e concentradores de capital, mas cheia de lições para a vida. Lições ditadas pela experiência,
pelo convívio e formação propiciada pelo Movimento.
No esforço de construção de vida própria, como vêm fazendo Bárbara e César é
importante recordar palavras de Sawaia (1999, p. 88): “o ser humano é essencialmente social,
pois, ele está sempre participando de grupos, coletivo, associações e instituições. Estes
produzem ideais, desejos, sistemas de valores e de normas que atravessam os sujeitos e se
transformam, muitas vezes, em projetos a serem alcançados”. Gramsci (2001, p. 413) também
afirmava que as mudanças acontecem de forma concomitante, não existindo possibilidade de
mudar ou o sujeito ou somente o social cada um transforma a si mesmo, modifica-se na
114
medida em que transforma e modifica todo o conjunto de relações do qual ele é o centro
estruturante”. para Touraine (2006, p. 108) o sujeito assume posição acima das relações
estabelecidas e suas conseqüências, perscrutando a abrangência e profundidade, suas
precariedades e seguranças, insuficiências e riquezas, favorecendo e estimulando “a busca da
criação de si mesmo, para além de todas as situações, de todas as funções, de todas as
identidades”.
Emocionante é ver também o depoimento do César sobre em que aspecto ele mais
cresceu como ser humano, membro do Movimento Sem-Terra.
É. Enquanto pessoa, porque todos falam um acampamento é uma faculdade da vida.
Porque a gente aprende ali a realidade da vida, como a vida funciona, como a vida é.
Porque na escola a gente aprende uma coisa, agora a vida é bem diferente. É dentro
de um acampamento, dentro das peleias a gente vê que a realidade é bem outra. Não
é o que o dio diz, o que a TV diz, o que dizem. Ali a gente sente na pele como é
que funciona: quem tem poder manda. E isso não tem. Não é fácil de mudar. O
dinheiro faz tudo. Manda e desmanda e quem não tem condições é obrigado a
suportar tudo.
Para a Bárbara, o crescimento também aconteceu
[...] como ser humano. Mesmo. Porque a gente vivia num mundo isolado,
enxergava, olhava mas não enxergava o mundo. A gente via com outros olhos que
não via as injustiças que acontecia ao redor da gente. Achava tudo natural! E a partir
do momento em que a gente começou a fazer parte do Movimento Sem-Terra a
gente viu que isso não é natural. [...] Que isso a burguesia que coloca na nossa
cabeça que é natural, mas não é. [...] O capitalismo consegue implantar isso através
da televisão, do rádio, da mídia. Mas a gente consegue desmitificar isso depois,
dentro do acampamento... Conversa com as outras pessoas. Consegue ir aos cursos e
palestras, ir em outros estados, outras regiões. Consegue ler livros, também, que
abrem horizontes. Consegue fazer lutas, também, que motivam e que mostram a
realidade [...] mas a gente cresce enquanto ser humano e constrói outros valores, que
antes a gente não tinha. Como a solidariedade, o respeito, a justiça, a dignidade e
outros valores que fazem parte do nosso cotidiano, que a gente começa a aprender.
Os pobres mesmo afetados por diferentes ambientes e estruturas que sustentaram situações
de continuado e as vezes agravados sofrimento e precariedade, não permitiram que toda esta
115
agressão sofrida, quer pela violência policial ou pela demora do atendimento de suas
reinvidicações que suas vidas fossem movidas pelo endurecimento, frieza, violência,
desprezo e hostilidade, mas que marcados por todos estes fatos cultivam junto com as marcas
físicas e subjetivas em sua história, o respeito pelo outro, a solidariedade, a defesa do fraco, a
inclusão econômica ainda que precária que é mais nobre que o desemprego e a mendicância
urbana, ser morador debaixo de pontes e marquises. Os entrevistados nos ajudaram a entender
que mesmo enfrentando dificuldades tendo que suportar formas diversas de sofrimento
mesmo tendo pouco conhecimento dos mecanismos de dominação produzidos pelas relações
sociais de produção e outras relações de dominação e pelos discursos veiculados na mídia
participar do movimento possibilitou aprendizagens – viver,resistir, conviver, consumir,
sentir, pensar diferente, construir novos valores.
Como foi mencionado, a partir de Touraine (2006, p. 112), “não sujeito senão
rebelde”, aquele que se divide entre a raiva contra o que leva a sofrer e “a esperança da
existência livre”. A questão chave, hoje, o interesse despertador e estimulador de disputas está
no “conflito central que contrapõe a globalização às subjetividades e, no cerne destas, à
vontade de ser um sujeito, de propor-se como objetivo principal integrar experiências muito
diversas na unidade de uma consciência de si mesmo que resiste às pressões e às seduções
vindas do exterior”, lembra o autor (idem, 2006, p. 179).
Para o capitalismo importa o lucro e que todo o ser humano seja produtor ou
consumidor de riqueza. A masculinidade e a feminilidade ganham distinção e destaque se
multiplicadoras e circuladoras de interesses e atos agregadores e acumuladores de lucro. Caso
não desempenhem estes papéis, vão defrontar-se com toda a máquina destruidora da
estabilidade, da segurança, das oportunidades de trabalho e bem estar, das mínimas condições
de vida e trabalho, principalmente para os que viveram ou vivem no campo e lutam por
inclusão. Aí, homem e mulher precisam ir localizando novas tarefas, atitudes e posições que
116
vão dando variabilidade e eficiência a sua presença no mundo. Homem e mulher, na posição
de protagonistas de uma sociedade diferente, irão descobrir inovações nas iniciativas que
apresentam o papel da mulher com mais qualidade, podendo gerar amesmo novas formas
humanismo.
No caso em estudo, a partir do momento em que começa a fazer parte de
coordenações, o feminino alcança um preparo capaz de participar de encaminhamentos em
uma determinada situação complexa. Nessa, os elementos em sua multiplicidade,
instabilidade e mutabilidade como “correlação de forças”, estado de ânimo dos Sem-Terra,
recursos econômicos, barracos e alimentação à disposição, requerem clareza quanto às
probabilidades de alcance dos objetivos em cada ação e o cálculo dos riscos a enfrentar. Isto
leva a luta a ter resultados, a coragem do grupo não sofrer grandes golpes e a coordenação
manter a admiração e respeito por parte das famílias que participam do Movimento.
Além do “teste de fogo” na direção e coordenação, a assentada também contribuiu
para que a educação desenvolvesse uma pedagogia formadora de um ser humano consciente e
atuante. Esse ser humano deve ser capaz de surpreender pelo discernimento, localizando
grupos sociais e mecanismos que precisam ser combatidos no plano de acumulação e
exploração e o fortalecimento de estruturas capazes de diminuir a acumulação e multiplicar a
solidariedade. Devido à dedicação e fidelidade ao Movimento é que Bárbara descreve o papel
específico da mulher construindo a luta.
[...] a primeira coisa é mostrar que a mulher também tem o seu valor. o é na
cozinha, nas panelas, no tanque, mas que ela tem voz, tem vez, tem valor e ela pode,
sim, lutar pelos seus direitos. Ir pras marchas e ocupações, ir pra debaixo da barraca,
ficar acampada durante seis anos e conquistar o lote de terra que hoje pra nós é uma
vitória, porque foi muito sacrifício, mas que hoje ta valendo a pena a gente ta no
nosso lote e produzir pra gente se alimentar. Mas a maior contribuição, acho,
também, que eu pude dar pro Movimento foi trabalhar na área da Educação. Desde o
início... Depois de um tempo em que eu fiquei na direção, na coordenação, eu
assumi enquanto educadora no acampamento e depois fiquei até o final, até ser
assentada, enquanto educadora, trabalhando com crianças. Porque eu acho que a
gente tem que dar valor pras crianças, tem que construir uma nova geração e eu
busquei trabalhar o melhor possível com essas crianças, mesmo debaixo da lona,
117
com dificuldades, sem materiais, com o mínimo possível, que era o que a gente tinha
de materiais. Mas fazer as crianças felizes, né!? Construindo brinquedos com sucata,
brincando com poucos materiais que a gente tinha ali mas trabalhar de uma forma
criativa, lúdica e prazerosa para eles... Eu acho que é um trabalho muito bonito que
se faz e não pelo dinheiro, porque a gente tinha um salário. Não trabalhava por
dinheiro, tinha apenas uma ajudinha de custo que era simbólica, mas que tava
todo dia preocupada em fazer um bom trabalho e trabalhar da melhor forma possível
e com qualidade, com eles.
Sabendo do papel do chefe de família e do paternalismo em nossa cultura, relatam
como César, na condição de homem, foi descobrindo os contornos diferentes de sua
identidade, e como percebeu a abrangência de sua responsabilidade para garantir ao feminino
de todas as mulheres, participantes do movimento, a contribuição que o masculino pode dar
na sua especificidade para o todo.
Conflitos aparecem e são discutidos e resolvidos a partir das histórias pessoais,
orientação e formação nascida dos princípios, considerando o projeto do MST, precisa
combater a opressão e exploração econômica como também a de gênero, para ser possível a
evolução de homens e mulheres.
Este crescimento altera e qualifica as relações de gênero, gerando seres humanos
cujas relações levam ao reconhecimento de um para outro, ocorre e não a fuga do conflito
gerado pela diferença de gênero ou por qualquer outra diferença. Estimulam um padrão
superior de iniciativas que os colocam em posição de seres que têm satisfação com a
evolução, mesmo sendo esta difícil, dolorosa e demorada.
Para César, ainda, a contribuição específica,
[...] foi nas questões organizativas internas do acampamento. Tanto coordenação,
direção, instâncias e contribuir nas organizações das lutas e contribuir com a
discussão, durante a luta pra ver o caminho, o rumo que a gente ia tomar, o que ia
fazer. Porque durante uma peleia a gente tem que estar sempre discutindo o que
vamos fazer, discutindo sempre o que a gente fez, se deu resultado. E se não der
resultado nós temos que mudar de estratégia. Então, nesse sentido, a gente tentava
ajudar no que a gente podia, enquanto pensamento, propostas, as tarefas práticas
mais diversas que se tem dentro da organização.
118
Mas acampamento é mais do que conjuntura, discussão, encaminhamentos,
assembléias, reuniões, núcleo, ocupações e caminhadas. Faz parte dele também o futebol
como prática de competição, com sua utilidade de destilar a raiva contra o sistema, a Brigada
Militar, o Governo, os fazendeiros. Na partida com o colega, quanto sofrimento descarregado
no chute da bola! Quanta amizade melhorada no companheirismo cultivado, jogando no
mesmo time. O gol bonito, cheio de efeito, o drible dado no companheiro. Quanta semelhança
ao fato de conseguirem driblar, como acampamento, a estratégia da Brigada, a pressão dos
fazendeiros. E o futebol não é privilégio somente dos homens...
Para a Bárbara,
[...] o baralho, o futebol e o chimarrão são pontos fortes para se conhecer. Uma
forma de unir o pessoal e se conhecer. E também pra distrair, porque é um dos
únicos momentos que se tem distração dentro do acampamento. Porque não se tem
muitas oportunidades de distração. O chimarrão é uma forma de se planejar, usa
como estratégia, também pra fazer o planejamento pras lutas, pra fazer o
planejamento de como vai ser em cima do assentamento, nos lotes. Então se usa isso
também como estratégia. O Baralho vai desenvolvendo o raciocínio das famílias,
das pessoas que jogam.
César, por conseguinte, reforça:
Nas rodadas de chimarrão, além de ser uma tradição gaúcha, nelas se decidem
muitas coisas, que programa muitas coisas. Porque o chimarrão é uma coisa, é muito
usado e muito feito dentro do movimento. É praticamente impossível acontecer uma
reunião sem ter um chimarrão. Ele faz a gente distrair, tomar um mate e de repente
vem uma idéia nova, uma proposta nova do que fazer ou quando fazer ou como
fazer pra tentar mudar uma conjuntura que naquele momento. E a questão do
futebol e o baralho já é mais um esporte e um jogo pra, nos momentos de folga o
povo ter o que fazer para se distrair, passar o tempo. É mudar a rotina, esquecer um
pouco da conjuntura que não avança porque está emperrada. Ajuda a distrair o
povo... É um momento de lazer também, porque dentro do acampamento tem os
momentos ruins mas também tem os momentos bons que acontecem. É nessas
rodadas de baralho e futebol é uns momentos de distração, de alegria, que acontecem
dentro dos acampamentos.
119
Se o carro é movido a combustível, sem o qual não anda também a luta destes
companheiros teve suas razões para avançar: as convicções. Todos tinham interesse em um
pedaço de chão. Pedaço garantido pela luta coordenada pelo MST. Como Pai-Movimento e
Movimento-Pai, ele é lei, é orientação, é limite, é referência para o estabelecimento de uma
identidade. Como Movimento, também é Mãe-Movimento e Movimento-Mãe, é aquela que
acolhe, cultiva para dar frutos. O Movimento é “fermentador” de coragem, que não poupou
seus filhos e filhas dos riscos e perigos próprios de quem aceita participar da luta. É um
somatório de superações e crises. Pelos anos todos, de comprovada firmeza, sustentou
incansável solidariedade entre os “miúdos”. Perseverança testada a fogo no “caldeirão” das
ocupações. É por todos estes elementos que o César e a Bárbara querem nos dizer qual é o
significado e o valor da terra conquistada.
Para Bárbara, conseguir seu pedaço de chão foi uma conquista muito grande, e
onde eu me sinto bem agradecida pelo Movimento Sem-Terra e pela luta que a gente
teve pra conquistar essa terra. Então é um presente assim que a gente se deu. Porque
eu acho que não foi ganho de ninguém, foi conquistado com muito sacrifício. E a
gente agora tem uma esperança muito grande de ficar por muito tempo nessa terra,
produzindo, criando nossos filhos, se alimentando e também, acho que mostrando
aos filhos o valor dessa terra, que teve para nós... Foi com muito suor, muito
sacrifício e que a gente deve dar valor. E a terra não é patrimônio nosso. É da
humanidade e a gente tem que cuidar o máximo possível dela porque depois de nós
outros irão produzir, outros irão ocupar... Eu acho que é bem gratificante chegar
agora em cima do lote e planejar como vai ser a casa, como vai ser arvoredo, como
vai ser a horta e já botar a semente na terra, comer os frutos que a terra produz.
Então é muito bom e eu estou bastante feliz assim. bastante trabalho, mas
muita felicidade também. Essa recompensa é muito boa.
Já para César,
a terra, representa mais uma liberdade [...] A gente foi à luta pra conseguir o nosso
próprio espaço de chão, pra conseguir viver ali naquele lugar...foi muito gratificante
quando a gente conseguiu chegar aqui e conseguiu esse espaço de terra, que é
pequeno, não é grande. Mas é em cima desse espaço que a gente pretende, com
muito esforço, muito sacrifício, formar essa nova família, essa nova vida no novo
120
assentamento que a gente, depois de seis anos de muita batalha, conseguiu
finalmente chegar no assentamento pra ter a nossa vida e produzir o nosso alimento
e agora conseguir ter uma vida um pouco mais calma e mais tranqüila.
Depois de ouvir e registrar as falas de César e de Bárbara fui testemunha de como os
fatos vividos enchem de orgulho alguns participantes do Movimento ao passo que, para
outros, reaviva sofrimentos, mexe com o vivido que afetou o sujeito por inteiro, na
materialidade dos corpos e nas consciências empenhadas em escolhas. diferença na
evolução do acampado na luta, no seu confronto com toda a experiência tática da Brigada
Militar, com o serviço de inteligência e seu efetivo. No esforço de construção de identidade na
luta, é importante lembrar com Sawaia (1997, p. 123), que a “identidade esconde negociações
de sentido, choque de interesses, processos de diferenciação e hierarquização das diferenças”.
Mesmo em conjunturas de amplo movimento, configura-se como estratégia sutil de regulação
das relações de poder, quer como resistência à dominação, quer como seu reforço”.
Tudo isso vai sendo trabalhado, porém, de forma não explícita, nem homogênea,
entre os acampados. Alguns evoluem mais na consciência crítica, outros na consciência
organizativa, no amor ao Movimento e defesa do mesmo e de lutadores sociais por ele
“consagrados”. Entre alguns, a convicção quanto à “identidade Sem-Terra” não chega a ser
tão enraizada, em contraposição a outros, para os quais os de identificação são mais claros e
firmes. Todos, porém, na condição de excluídos, pobres acampados, parecem cheios de
esperança.
No contexto da presente reflexão, é
preciso olhar identidade pelo sentido ético em lugar do sentido do tipo cognitivo,
como um processo constante de configuração de significações, que age como
ordenador em relação aos valores, afetos e motivações do sujeito individual ou
coletivo. E, para ser mais preciso, é preciso falar da dialética identidade/alteridade
(SAWAIA,1997, p.126),
121
ou seja, do indivíduo tornar-se o que é na sua relação respeitosa e solidária com o outro: o
companheiro, o Movimento.
Esta inquietante busca de proteção de identidade, resistência frente às ameaças de
destruição e reconstrução da identidade na luta do MST influencia o pessoal. Mas também
modifica as relações sociais porque “esta identidade transforma espaços de segregação em
guetos de resistência e de aconchego, lugares com calor, antídoto ao desprezo da sociedade”
(SAWAIA, 1997, p. 125). É por este conjunto de influências, estímulos, fortalecimentos e
valorações que vão sendo construídos na inter-relação acampado-MST / MST- acampado, que
podemos afirmar que o Movimento contribui no atendimento de uma demanda “interior” de
cada acampado. Essa demanda dos acampados é atendida com tanta precisão e justeza aos
anseios e expectativas, que se pode afirmar que o Movimento é fonte de identificação para
o(s) Sem-Terra, mas também que o Movimento precisa dele o acampado - para manter sua
presença transformadora na estrutura agrária desse país, sendo significativa e intensa a
variação e profundidade do enriquecimento mútuo. Até onde e de que maneira o MST renova
e reforça a identidade do acampado e como o acampado renova, aprofunda e fortalece a
identidade do MST?
A riqueza da história humana é maior que a nossa capacidade de comunicar e
registrar pela escrita os fatos que acontecem. Mesmo assim é valioso assumir o risco de fazê-
lo.
Tomar em mãos um passado quase sempre escondido e embrutecido por um vai e
vem penoso é torná-lo MEMÓRIA VIVA é uma forma de fazer dele uma ferramenta
a mais, nessa organização para a construção conjunta de uma sociedade justa e
fraterna. Mas a história do povo é que nem a árvore: ela se projeta para o alto e
produz flores e frutos, na medida em que as raízes buscam alimentos na
profundidade da terra [...] (MENEZES, 1992, apud FRONCHETTI, 1998, p.36).
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema desta pesquisa contempla “A luta, organização e vida no MST como um
processo educativo na contramão da exclusão”. Possibilita uma reflexão sobre uma forma de
educar, “construir pessoas”, forjar novas formas de subjetividade.
A problemática que se procurou estudar está situada historicamente e centrada no
debate sobre a exclusão social. Esta é abordada a partir da modernização da agricultura e da
globalização, que vêm provocando a desconstrução e reconstrução de subjetividades. Trata do
desafio da Educação nessa reconstrução, tendo como objeto um movimento de resistência à
exclusão social no campo, que, recentemente, passa a fazer críticas à forma como o
desenvolvimento técnico e científico vem ocorrendo mundialmente e afetando a vida das
pessoas, das instituições e do planeta. Este movimento é protagonizado por trabalhadores e
trabalhadoras rurais que, no Brasil, reuniram-se e constituíram o MST Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
Do até então visto, podemos afirmar que quanto mais avançado se apresenta o
desenvolvimento tecnológico, e este tem sido crescente do período caracterizado como
modernização da agricultura à globalização desta, menos demanda de o-de-obra ocorre e
maior extensão de terra é necessária para dar ocupação a cada máquina introduzida no campo.
O processo de produção capitalista, sem dúvida, leva à acumulação de terra e dispensa
123
trabalhadores. Em decorrência deste fator de evolução tecnológica surgem dois movimentos,
contraditórios para o próprio sistema: o primeiro que é a dispensa de mão-de-obra, barateando
custos de produção; o segundo, levando em conta a mão-de-obra dispensada, o acréscimo do
contingente de excluídos que, perdendo poder aquisitivo, deixa também de ser consumidor.
Sem poder de compra, não tem acesso aos bens básicos, sendo por isso afetado pela miséria
que gera baixa auto-estima, adoecimento psíquico e físico, resultando no aprofundamento da
problemática social associada à exclusão. Isso, por sua vez, passa a requerer políticas sociais
compensatórias.
Este conjunto de fatores associados, estas situações provocam um aviltamento à
identidade humana, por vezes seguida de inquietação e revolta, mas podendo ser trabalhada
positivamente por meio da Educação Popular e também pela Educação Resiliente, ambas
subsidiando, hoje, a educação no MST. Enquanto a primeira apresenta contribuições de ordem
pedagógica, cultural e política, ao movimento popular em geral, entre eles os Sem-Terra, a
segunda contribui com o registro das reações subjetivas frente ao quadro desumanizador da
exclusão - como os indivíduos somatizam estas marcas e também como o geradas reações
de resistência mais fortes e profundas, com mais capacidade de enfrentamento da realidade
que produz crescentemente situações cada vez mais agudas de sofrimento. A educação no
MST se dirige à promoção de aprendizagens a partir da problemática dos excluídos
organizados do campo, na luta e na escola.
É importante frisar que, esta confluência de movimentos, no processo educativo
uma especificidade à Educação do MST: ela consegue associar, de forma mais objetiva,
embora precária, o ensino, a aprendizagem, a socialização e o acompanhamento, pela prática
social, à luta pela inclusão social dos excluídos do campo.
O conhecimento trabalhado pela Educação Popular faz compreender a conjuntura, a
Educação Resiliente descreve as subjetividades em confronto com as forças que geram a
124
exclusão e como elas sofrem perdas e se refazem dentro do clima coletivo de enfrentamento,
mas também de apoio e solidariedade entre os iguais. A educação do MST contribui para a
formação do coletivo da luta para romper a unidade monolítica da posse dos meios de
produção, e instaurar na desapropriação-ocupação o fato mais realizador da luta: o acesso a
um pedaço de chão e as sementes de uma nova sociedade.
Sabemos que o ser humano, de acordo com a sua inserção social, desenvolve um
conjunto de mecanismos interiores que projetam sonhos e constroem reações quando
afrontado em sua autonomia e liberdade. E o sujeito vai se constituindo quando se revolta
contra todos os que querem restringir seus projetos, aqueles que levam a ganhos em
autonomia e liberdade pelas concretizações que empreendem.
O exercício de ser sujeito, como os Sem-Terra, acontece mediante ações,
principalmente quando se assumem iniciativas como a realização de ocupações e caminhadas
exigindo alta resolutibilidade e mobilização.
Quando acampados, o exercício de crescimento pela educação dá-se, inicialmente, por
meio de atividades práticas decorrentes de necessidades, como a construção dos barracos,
aprendizado das lidas domésticas (especialmente pelo homem), pequenos exercícios nos
serviços de núcleo, plantões na função de segurança, coordenação de núcleos, participação em
coordenações em âmbitos mais amplos.
A educação escolar é também extremamente valorizada, no Movimento. Concorre,
sem dúvida, para a formação dos assentados e acontece através da participação em cursos de
curta duração, como também pelo acesso a cursos de alfabetização de jovens e adultos, cursos
técnicos e também de nível universitário. Com a formação de grau, mais sistemática e
específica, como a Pedagogia da Terra, os integrantes do Movimento são convocados a serem
professores dos filhos de acampados e assentados. Essa atitude visa dar continuidade ao
processo de formação com metodologia própria, que tem a preocupação central de associar
125
teoria e prática e situar culturalmente os conteúdos escolares, formando novos sujeitos
capazes de compreender e enfrentar as agruras do sistema, os desgastes da luta e viabilizar
resultados positivos para reafirmar a identidade do movimento em geral. Nos processos de
educação/formação, em todos os níveis, a preocupação de acompanhar a história, a
atualidade da luta dos excluídos do campo e de seus mecanismos. Toda esta contribuição
revigora “o humano” no grupo, pois convoca a solidariedade e cria processos identificatórios
com os companheiros e com o MST, dando a perceber e sentir que a luta vale a pena e o
acontece em vão. Ela informa e forma crianças, jovens e adultos. Para o casal entrevistado,
nesta pesquisa, a participação no Movimento corresponde uma verdadeira “faculdade”.
Com isso, podemos concluir que:
1 - Os processos desenvolvidos violentando a terra, pelo esgotamento decorrente do seu uso
intensivo, visando à acumulação, agride também o ser humano e o impede de usá-la como
meio de produção e “sustento” familiar;
2 - Mesmo que os Meios de Comunicação Social se dirijam a produzir subjetividades
consumistas e pautadas por valores capitalistas, reprodutoras do próprio sistema, os excluídos,
sustentados por práticas de resistência e reforço de mecanismos interiores, por meio do
cultivo de relações de amizade, pela mística e pela educação, produzem, resistem e protegem
uma identidade. Isso os ajuda a se manterem na luta e a manter a luta pelo “essencial” para a
sua vida: valores, relações, forma de vida, em si.
3 - Os Sem-Terra, que participam ativamente do Movimento, por meio da educação/formação
desenvolvida, estrutura do mesmo, ações, reações, questionamentos, reflexões formam um elo
de unidade, solidificada pelo vigor e perseverança que chamo de sinérgica, porque conserva
energias enquanto permanecem juntos como Sem-Terra. Isoladamente ela se desfaz.
126
Contudo, ainda existem algumas questões que permanecem e insistem em nos perturbar,
quais sejam:
a) Qual o limite do sofrimento suportável por um ser humano e a que tempo ele resiste ?
b) Pensava em elementos fixos da subjetividade humana. Estudando a subjetividade
humana com mais afinco, pude percebe que esta é mutação constante, vir-a-ser, e
propiciadora de singularidades, em cada homem e mulher.
c) A evolução tecnológica é irrefreável. Assim sendo, como formar para a inclusão,
acompanhando as novidades técnicas e ao mesmo tempo preparando os Sem-Terra,
ainda quando acampados, para produzir em faixas de mercado que admitem a mão-de-
obra familiar?
d) Na realidade urbana as conseqüências da exclusão são mais graves e prolongadas e
vêm acumulando problemas por décadas. Por que, no que se refere à realidade urbana,
ainda não se fortaleceram as organizações que procuram congregar sujeitos e articular
ações que possibilitem o enfrentamento do problema da propriedade privada e do
trabalho?
No que diz respeito ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, na condição de
movimento social, constrói-se de forma coletiva a educação, dando-lhe especificidade(s).
Educação exercitada e testada em sua consistência e eficácia no confronto com grupos
hegemônicos da sociedade. Articula subjetividades produtoras de princípios, relações e
objetivos que dão estrutura e identidade ao Movimento, enquanto, simultaneamente, fazem o
exercício prático da luta pela conquista da terra e pela produção na terra, procurando
estabelecer mudanças nas relações das forças na sociedade. Este é um exercício fortalecedor
de subjetividades. Raros acontecimentos podem ser mais desafiantes do que as resistências
desenvolvidas pelo MST no Brasil. Fatos transformados em situações-limite que exigiram, da
vida cotidiana e da luta, organização. A Educação exercita uma contribuição à luta no
127
Movimento e aos sujeitos que reúne, que torna rica, em resistência, a subjetividade humana
frente aos problemas, fornecendo elementos para o exercício responsável da consciência
crítica, organizativa, mobilizadora e preparam seres humanos para participarem de uma
sociedade mais inclusiva.
É por tudo isso que a dissertação tem como título: “A Luta, Organização e Vida no MST.
Processo Educativo na Contramão da Exclusão: Uma Forma de Educar e Construir Pessoas
e Viver Novas Formas de Subjetividade”.
128
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