Download PDF
ads:
Museu Nacional.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Universidade Federal do Rio de Janeiro
“A luta pelo direito”
Engajamento militante e profissionalização dos advogados
na causa pelos direitos humanos na Argentina
Virginia Vecchioli
Tese de doutorado
Orientador: Pfr. Federico Neiburg
Rio de Janeiro
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
Virginia Vecchioli
‘A luta pelo direito’
Engajamento militante
e profissionalização
dos advogados na
causa pelos direitos
humanos na Argentina
Museu Nacional / PPGAS
2006
ads:
iii
“ ‘A luta pelo direito’. Engajamento militante e profissionalização
dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina”
Virginia Vecchioli
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários a obtenção do
título de Doutor
em Antropologia Social.
Orientador: Pfr. Federico Neiburg
Rio de Janeiro
Dezembro de 2006
iv
Vecchioli, Virginia
“ ‘A luta pelo direito’ Engajamento militante e
profissionalização dos advogados na causa pelos
direitos humanos na Argentina” /Virginia Vecchioli
Rio de Janeiro: UFRJ / Museu Nacional / PPGAS / 2006.
xi, 370 pág.
Tese de doutorado – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Museu Nacional, PPGAS.
1. direitos humanos. 2. antropologia do direito. 3. profissões.
4. engajamento militante. 5.Argentina. 6. Tese (doct. – UFRJ.
Museu Nacional). I. Título
v
vi
Agradecimentos
Este trabalho se fez possível graças à contribuição de muitas pessoas e instituições.
Para a realização desta tese contei com o auxilio financeiro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), do programa de subsídios a pesquisadores da
Universidade de Buenos Aires (UBACyT) e de uma bolsa do Centro de Investigaciones
Etnográficas da Universidade Nacional de San Martín outorgada especialmente no último ano
para apoiar a escrita da tese. Aos responsáveis destas agências e instituições, meu eterno
agradecimento.
A minha principal dívida intelectual é com os professores do Museu Nacional com os
quais me formei nestes anos de doutorado: Moacir Palmeira, Luis de Castro Faria, Carlos
Fausto, João Pacheco de Oliveira, Giralda Seyferth, Otávio Velho, Marcio Goldman, Antonio
Carlos de Souza Lima. Devo agradecer a todos eles, especialmente a meu diretor de tese
Federico Neiburg que tem sido um verdadeiro apoio por seu compromisso permanente para
com meu trabalho. Em cada uma das instâncias de revisão dos rascunhos originais de este
texto colocou-se de manifesto as suas extraordinárias qualidades de leitor crítico e de mestre.
Devo a sua valiosa generosidade intelectual posta em jogo ao longo destes anos de orientação,
o fato de ter aprendido uma maneira de fazer e conceber a antropologia social. Não menos
importante é o fato de ter me brindado contatos chaves com o universo dos meus nativos.
Estou em dívida também como os professores Lygia Sigaud e Fernando Diaz Duarte pelos
comentários e sugestões colocadas a meu trabalho em diferentes momentos da sua elaboração,
a procura sempre de sofisticar a formulação dos problemas e as apropriações da literatura. O
tempo passado junto aos meus colegas da turma também foi uma contribuição importante a
minha formação. Entre eles quero salientar a Renata Menezes de Castro, Elisa Guaraná de
Castro e Roberta Ceva. A disposição dos funcionários do PPGAS também tem sido uma
contribuição importante na hora de resolver questões chaves para o avanço do trabalho.
Ofereço também a eles o meu agradecimento, especialmente a Tania Lúcia Ferreira da Silva.
Esta tese foi possível também graças ao estágio realizado no Laboratoire de Sciences
Sociales da École Normale Superieure. A contribuição que vários de seus integrantes
realizaram ao meu trabalho foi muito significativa. Entre eles preciso destacar o professor
vii
Michel Offerlé quem, como o meu diretor de estudos, abriu meus horizontes intelectuais
apresentando linhas de pesquisas que seriam chaves na articulação dos problemas
desenvolvidos neste trabalho. O seu entusiasmo por me introduzir na literatura e por me fazer
participar da comunidade local de pesquisadores ligados a questão do engajamento jurídico
tem sido uma enorme fonte de inspiração. O seu compromisso com a minha tese fez deste
período de formação uma instância verdadeiramente privilegiada.
Durante este estágio me beneficiei especialmente do contato com Yves Dezalay, Eric
Agrikoliansky, Liora Israel, Daniela Cuadros Garland, Marina Franco, Carlos Herrera e
Antoine Willemez. Todos eles contribuíram fazendo sugestões significativas ao projeto mas
também me facilitando conhecimentos práticos sobre os arquivos locais e contatos chaves
com os profissionais do direito franceses engajados na causa dos direitos humanos na
Argentina. Estas dicas resultaram extremadamente valiosas na hora de tirar o máximo
proveito dos quatro meses de um estágio que combinou a participação em seminários e
encontros acadêmicos com a pesquisa em arquivos e a realização de entrevistas.
Na Argentina recebi também o estimulo de vários grupos de pesquisa localizados
principalmente no Instituto de Desarrollo Econômico y Social (IDES). Em primeiro lugar,
devo agradecer a Elizabeth Jelin, diretora do Núcleo de Estúdios sobre Memória, a
possibilidade de compartilhar as reuniões de trabalho no período 2004-2006. Neste espaço me
beneficiei de importantes sugestões formuladas às versões preliminares dos capítulos. Estas
reuniões foram um incentivo permanente pela diversidade de pesquisas e pesquisadores
congregados neste espaço. O que faz do Núcleo um verdadeiro foro de debate amplo e
democrático sobre o passado recente na Argentina. Sinto-me especialmente em dívida com
Vera Carnovale, Claudia Feld e com Emilio Crenzel. Emilio sempre foi um suporte intelectual
muito importante e com quem compartilhei algumas das emoções envolvidas na produção de
nossas respectivas tese de doutorado.
Aos colegas reunidos no Centro de Antropologia Social (IDES), Rosana Guber, Sergio
Visacovsky e Mauricio Boivin devo-lhes agradecer pelo seu enorme e permanente apoio.
Havendo iniciado com eles a minha formação de grado e compartilhando diversas instâncias
de encontro tanto acadêmico como pessoal resulta-me difícil resumir a importância das
contribuições de todos eles. Na fase final da escrita da tese me sinto especialmente em dívida
viii
com Rosana Guber quem, além da sua permanente disposição para estimular o avanço da tese,
colocou a minha disposição a infra-estrutura chave para faze-la possível.
Em terceiro lugar, devo agradecer aos integrantes do Grupo de Estúdios sobre
Procesos de Politización en el Cono Sur (IDES) a discussão das versões preliminares dos
capítulos: Laura Zapata, Mariana Paladino, Horacio Sívori, Laura Masson e Rolando Silla.
Desde 2004, o grupo constituiu-se num espaço privilegiado de reflexão sobre os assuntos
colocados nesta tese, fato que me permitiu amadurecer as hipóteses colocadas inicialmente
nesta pesquisa. Agradeço a todos eles pela amizade e pelo entusiasmo demonstrado ao longo
destes anos compartilhados de formação. Pela continua presença no IDES quero agradecer
também a colaboração de todo o seu plantel de funcionários, especialmente a Getúlio
Steinbach, Miguel, Irene, Carolina e René que com uma enorme disposição fazem que as
atividades desenvolvidas no IDES sejam especialmente gratas.
Versões preliminares dos capítulos desta tese foram debatidas também no seminário
de pesquisa do Centro de Investigaciones Etnográficas da Uiversidad Nacional de San Martín.
Devo agradecer especialmente a seu diretor, Pablo Semán, pela sensibilidade com que
acolheu os meus interesses de pesquisa, pela confiança depositada no valor dela e pela enorme
disposição para tentar resolver as suas dificuldades, fatos todos que facilitaram enormemente
a realização desta tarefa e fizeram mais prazeroso o retorno à Argentina.
Dentro do próprio universo dos profissionais do direito o meu agradecimento maior é
para os defensores de presos políticos. Agradeço a eles pelo fato de ter dedicado tempo e
esforço para que eu pudesse me adentrar nas complexidades do exercício da defesa e do
próprio período em que ela se desenvolveu, os agitados anos setenta. Com disposição
extrema, na maior parte dos casos, estes profissionais compartilharam comigo lembranças
emotivas e dolorosas. Mas também a paixão pela sua vocação militante, que ainda hoje os
convoca. Uma face compartilhada também pelos juristas e magistrados contatados na França,
que cederam o valiosíssimo tempo que meia entre uma missão internacional e outra para que
eu lhes pudesse entrevistar. Entre os advogados argentinos quero destacar especialmente a
Haydée Birgin, quem oficiou de chave de ingresso a este espaço de relações. Este
agradecimento é extensivo também para os parentes dos advogados desaparecidos que
colaboraram com a pesquisa, especialmente à família Martins. Estas páginas encontraram
ix
motivação em minha estima pela coragem e resolução colocadas no exercício da profissão e
são um reconhecimento a este esforço militante.
No mundo mais amplo do direito, o Seminário Permanente sobre la História de la
Facultad de Derecho do Instituto de Investigaciones Jurídicas y Sociales Ambrosio Gioja da
Facultad de Derecho da Universidade de Buenos Aires foi outro espaço significativo de
encontro com os especialistas. Sou especialmente grata pelo apoio recebido especialmente do
coordenador do Seminário, Dr. Túlio Ortiz. Freqüentar este espaço me permitiu entrar em
contato com nomes consagrados na historia do direito na Argentina, como o Dr. Abelardo
Levaggi quem me permitiu compartilhar as inquietações da minha tese. Agradeço também a
ele pelo interesse pessoal em debater comigo versões preliminares dos capítulos. Os
advogados integrantes da Fundação Carlos Sánchez Viamonte contribuíram também a esta
tese facilitando material documental e, sobretudo, importantes dicas a respeito de como achar
o material jurídico importante e como trabalhar-lho. Entre eles, agradeço especialmente a
Aldo Galloti.
Entre os profissionais do direito que merecem um lugar de destaque se encontra Laura
Saldivia. Com imensa generosidade intelectual, ela colocou a minha disposição o corpus de
entrevistas que ela fez aos defensores de presos políticos ativos nos anos sessenta e setenta.
Este ato, por certo pouco comum entre pesquisadores, significou uma contribuição muito
grande para o avanço da minha pesquisa. Estas páginas são um reconhecimento a toda a
dívida intelectual que tenho com ela. A Silvina Segundo, do arquivo oral da Asociación
Memória Abierta e a Damian do CEDINCI também meu agradecimento pela ajuda na procura
dos materiais e pela enorme paciência e cordialidade no atendimento aos pesquisadores.
Todos estes esforços resultariam pesados demais sem a valiosa companhia das
amizades. Na Argentina, as amigas de tantos anos, Sabina Frederic, Íris Flichman, Gabriela
Botello e Andréa Roca, quem mesmo a distancia tem me sabido acompanhar com tanto afeto
no dia a dia. No Brasil, as amigas com as quais compartilho tantas saudades, entre as quais
destaco especialmente a Bianca Xavier. Os meus pais também tem sido uma base importante
de apoio, especialmente durante o meu período na França. Gostaria muito poder compartilhar
esta tese com o primeiro Doutor que conheci na minha vida, meu pai. Devo a ele o gosto pela
vida acadêmica. Por último, as minhas palavras finais de agradecimento são para os três
homens que integram a minha família: Nicolás, Julián e Gustavo. Os primeiros, com a sua
x
imensa compreensão para com os requerimentos da escrita, especialmente comovedora pela
pequena trajetória de suas vidas. Sempre a espreita de qualquer oportunidade para ‘jogar no
computador’ (um elemento imprevisivelmente excluído da suas vidas), eles tem me
estimulado de várias formas, entre elas, a ‘tranqüilizadora’ contagem regressiva dos dias
faltantes para a entrega do trabalho. O meu agradecimento imenso também para a
generosidade sempre presente de Gustavo del Gobbo. Seu apoio e seu amor tem sido de um
valor crítico nesta tarefa. Vão estas páginas dedicadas a eles três.
xi
RESUMO
‘A luta pelo direito’. Engajamento militante e profissionalização dos advogados na
causa pelos direitos humanos na Argentina”.
VECCHIOLI, Virginia.
Orientador: Federico Neiburg. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006.
Tese.
Esta tese trata sobre a formação de um segmento da profissão jurídica diretamente associado à
promoção e defesa dos direitos humanos na Argentina. Os advogados aqui descritos evocam a
figura do profissional do direito engajado e dedicado ao serviço desta causa pública. Trata-se
de advogados que se constituem como tais por referencia a dos espaços simultâneos de
atuação: o engajamento militante e o exercício profissional. Os capítulos tracejam o itinerário
que vai da invenção da causa nas primeiras décadas do século XX até a profissionalização dos
seus militantes na atualidade. Se os advogados descritos no primeiro capítulo evocam a figura
heróica do profissional que se entrega desinteressadamente à causa, o último os apresenta na
sua condição de ‘peritos’ a partir da sua incorporação a um campo profissional transnacional
ligado à causa pelos direitos humanos.
As ações descritas nesta tese expõem a complexa e densa rede que liga os advogados de
prisioneiros políticos às vítimas, aos parentes das vítimas e aos peritos nacionais e
internacionais em direitos humanos. O propósito deste percurso é fazer um retrato dos
especialistas engajados na causa pelos direitos humanos, assim como descrever a própria
causa que faz com que eles existam.
Interessa -me compreender os processos que conduziram a estes profissionais a um tipo
específico de engajamento, de maneira tal que cada fase do engajamento fazia possível a
seguinte. O ativismo não deriva então, nem do acaso, nem de simples identificações
ideológicas, mas sim da existência de espaços de interação social comuns, a partir dos quais
as afinidades ideológicas, as redes e os princípios de distinção são estruturados dentro do
universo mais amplo da política e do direito. Nesse sentido, vale a pena salientar a polissemia
do termo ‘compromisso’, envolvendo tanto o fato de se engajar na ação pública, como
vincular outros sujeitos através de uma rie de obrigações inerentes a posição social que se
ocupa (ou pretende-se ocupar). Assim, o compromisso prévio com a causa dos trabalhadores e
suas organizações sindicais orientou, mais tarde, a defesa desses mesmos indivíduos na
condição de prisioneiros políticos.
Ao longo de todo o trabalho o que pretendo mostrar toda a força do direito’ na configuração
da causa pelos direitos humanos na Argentina e, ao mesmo tempo, apresentar toda a ‘eficácia
do engajamento militante’ na transformação do próprio ativismo profissional. Neste sentido, a
tese coloca questões relativas à forma em que este ativismo jurídico produz transformações
tanto nas formas de fazer e pensar a política quanto nas formas de fazer e pensar o direito.
xii
Palavras-chave: direitos humanos, antropologia do direito, profissões, engajamento militante.
Argentina.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2006
xiii
ABSTRACT
‘The struggle for law’. Militant engagement and the professionalization of lawyers in
the cause of human rights in Argentina”. VECCHIOLI, Virginia. Oriented by Federico
Neiburg. Rio de Janeiro. UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006. tese.
This thesis deals with the creation of a segment among the juridical profession, directly
associated to promotion and defense of human rights in Argentina. Attorneys of law depicted
here evoke the figure of a lawyer engaged and dedicated to this public cause. It concerns to
lawyers that create themselves regarding to two simultaneous spaces of intervention: militant
engagement and professional practice. Chapters travel across an itinerary that goes from
human rights’ cause invention during the first decades of XX century till the
professionalization of its militants in present days. If defenders described in the first chapter
evoke the professional heroic figure that devotes himself to the cause, the last one present
them as ‘experts’, based on their incorporation to a transnational professional field related to
the human rights cause. Actions described in this thesis reveals the deep and complex
network that link defenders lawyers of political prisoners to victims, victims’ relatives and
national and international human rights experts.
The purpose of this research is to make a portrait of attorneys of law engaged in human rights
cause as well as to describe the very cause that allowed them to exists. I’m interested in
understanding the process that leads this professionals to this specific type of engagement.
Activism is not the result of chance not even the result of purely ideological identification, but
the result of the existence of common spaces of social interaction, in a way that each phase of
engagement makes possible the next one. From this standpoint I show how ideological
affinities, networks and principles of distinction are structured within the broader universe of
politics and law. Throughout this work, I intend to show all ‘the power of law’ in the
configuration of the human rights cause in Argentina. At the same time, I try to illustrate all
‘the efficiency of militant engagement’ in the transformation of professional activism itself. In
this sense, this thesis catch the attention to problems related to the way juridical activism
transforms the manner of making and thinking about politics as well the manner of making
and thinking about law.
Key words: human rights, anthropology of law, professions, activism, Argentina.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2006
xiv
Listagem de Associações
Amnistía Internacional. 1961.
Asociación de Abogados de Buenos Aires. 1934.
Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires, 1971.
Agrupación de Abogados de Córdoba (años 70s).
Asamblea Permanente por los Derechos Humanos. 1975.
Asociación Gremial de Abogados de Mar del Plata (años 70s)
Asociación Gremial de Abogados de Bahía Blanca (años 70s)
Asociación Jurídica Argentina (primeras décadas siglo XX)
Asociación Internacional de Juristas Democráticos
Centro de Estudios Legales y Sociales. 1979.
Comité de Défense des Prisionniers Politiques Argentines. 1972.
Comité de Ayuda Antifascista (años 30s)
Comité Pro-Amnistía por los Exiliados y Presos Políticos de América (años 30s)
Comité Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo (años 30s).
Comisión Argentina de Derechos Humanos (1976)
Commission Argentine des Droits de l’Homme
Comisión Pro-Abolición de las Torturas (años 30s)
Comisión de Familiares de Desaparecidos y Detenidos por razones políticas
Comisión de Familiares de Presos Políticos y Gremiales. 1961.
Comisión de Familiares de Presos Políticos, Estudiantiles y Gremiales (años 70s)
Comisión de Familiares de Patriotas Fusilados en Trelew. 1972.
Comisión Interamericana de Derechos Humanos. 1960.
xv
Comisión Internacional de Juristas
Comisión Nacional de Desaparición de Personas
Comisión por la Vida y la Libertad de Martins y Centeno. 1971.
Federación Internacional de Derechos Humanos
Frente Antiimperialista por el Socialismo (años 70s)
Foro de Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos. 1971.
Groupe d’Abocats Argentins Exilés en France (1977 aprox.)
Liga Argentina por los Derechos del Hombre. 1937.
Movimiento Nacional contra la Represión y la Tortura (años 60s)
Nuevos Derechos del Hombre (1990)
Organización de Solidaridad con los Presos Políticos, Estudiantiles y Gremiales (años 70s).
Socorro Rojo Internacional (años 30s)
xvi
Listagem de Siglas
AABA: Asociación de Abogados de Buenos Aires
AGA: la Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires.
APDH: Asamblea Permanente por los Derechos Humanos
AIJD: Asociación Internacional de Juristas Democráticos
CELS: Centro de Estudios Legales y Sociales
CGT: Confederación General del Trabajo
CGT A: Confederación General del Trabajo de los Argentinos
CADHU: Comisión Argentina de Derechos Humanos
CIDH: Comisión Interamericana de Derechos Humanos
CIJ: Comisión Internacional de Juristas
COFADE: Comisión de Familiares de Presos Políticos y Gremiales
COFAPEG: Comisión de Familiares de Presos Políticos, Estudiantiles y Gremiales
CONADEP: Comisión Nacional de Desaparición de Personas
CSJ: Corte Suprema de Justicia
ERP: Ejército Revolucionario del Pueblo.
FAS. Frente Antiimperialista por el Socialismo
FIDH: Federación Internacional de Derechos Humanos
FUA: Federación Universitaria Argentina
GAAEF: Groupe d’Avocats Argentins Exilés en France
LADH: Liga Argentina por los Derechos del Hombre.
xvii
OIT: Organización Internacional del Trabajo
OEA: Organización de Estados Americanos
ONU: Organización de Naciones Unidas
OSPPEG: Organización de Solidaridad con los Presos Políticos, Estudiantiles y Gremiales
PCA: Partido Comunista Argentino
PEN: Poder Ejecutivo Nacional
PS: Partido Socialista
PRT: Partido Revolucionario de los Trabajadores
UBA: Universidad de Buenos Aires
UCR: Partido Unión Cívica Radical
xviii
Listagem de Documentos Anexos
Anexo 1: Convocatória da LADH promovendo à adesão a associação....... 111
Anexo 2: Reprodução da convocatória a um comício .................................. 112
Anexo 3: Reprodução de uma listagem de presos políticos ............................ 113
Anexo 4: Cartaz de Rua do Comitê contra o Racismo e o Anti-semitismo........ 114
Anexo 5: Reprodução da capa do periódico Socorro Rojo ............................. 117
Anexo 6: Anúncios dos serviços jurídicos oferecidos pelos
advogados integrantes da LADH....................................................... 118
Anexo 7: Mobilização dos advogados perante o seqüestro de colega............... 211
Anexo 8: Reprodução do abaixo-assinado denunciando os procedimentos
Judiciais no caso Sanchez .................................................................... 212
Anexo 9: Reprodução dos conselhos dos advogados de presos políticos aos
Militantes ............................................................................................. 213
Anexo 10: Reprodução do abaixo-assinado realizado pela
Comissão de Familiares ....................................................................... 214
Anexo 11: Convocatória de familiares a uma greve de fome ............................... 215
Anexo 12: Ocupação da Praça de Maio pelos familiares de advogado
desaparecido....................................................................................... 216
Anexo 13: Reprodução da convocatória à Terceira Reunião Nacional de
Advogados ......................................................................................... 217
Anexo 14: Instituição do Prêmio Nestor Martins da Faculdade de Direito
Da Universidade de Buenos Aires aos melhores trabalhos
Acadêmicos.......................................................................................... 218
Anexo 15: Reprodução de um capítulo do Manual do Oprimido ........................ 219
Anexo 16: Advogados ameaçados ....................................................................... 220
xix
Sumário de Tabelas
Tabela 1: Número de integrantes da LADH segundo filiação partidária ................ 40
Tabela 2: Simultaneidade de compromissos associativos ....................................... 80
Tabela 3: Listagem dos integrantes da APDH correspondente ao
Primeiro ano de funcionamento ............................................................... 229
Tablea 4: Listagem dos advogados integrantes do servico jurídico da APDH ........ 231
Tabela 5: Perfil das associações internacionais de juristas ...................................... 268
Tabela 6: Detalhe das missões internacionais de juristas .......................................... 270
xx
SUMÁRIO
Agradecimentos ................................................................................................. vi
Resumo ............................................................................................................... xi
Abstract .............................................................................................................. xiii
Listagem de Associações .................................................................................. xvii
Listagem de siglas utilizadas ........................................................................... xix
Listagem de anexos ........................................................................................... xviii
Sumário de Tabelas .......................................................................................... xix
Sumário .............................................................................................................. xx
Introdução ........................................................................................................... 1
1. Capítulo 1: A invenção de uma causa. Um encontro entre notáveis
e recém chegados do direito e da política.......................................................... 28
1.1. Introdução ......................................................................................... 29
1. 2. A ameaça ........................................................................................... 32
1. 3. O imperativo a atuar ....................................................................... 36
1. 4. Defender a causa através do direito ................................................ 44
1. 4. 1. Os serviços de assistência jurídica ...................................... 45
1. 4. 2. A imprensa dos direitos do homem ..................................... 57
1. 5. Militantes do direito .......................................................................... 61
1. 5. 1. Formar-se em direito ........................................................... 61
1. 5. 2. Exercer o direito .................................................................. 74
1. 6. Uma causa internacional .................................................................. 82
1. 7. Ser um advogado defensor de presos políticos ............................... 86
1. 7. 1. A inteligência e a ilustração como armas de luta ................ 88
1.7. 2. O culto ao desinteresse ......................................................... 91
xxi
1.7. 3. O sacrifício pela causa ......................................................... 94
1. 7. 4. A qualidade heróica ............................................................ 97
1. 8. Pensar o direito ............................................................................... 98
1. 9. Conclusão ......................................................................................... 104
1. 10. Epílogo ........................................................................................... 107
1. 11. Anexos ............................................................................................ 110
2. Capítulo 2: O ativismo jurídico. Um mundo feito de rotinas e heroísmo
2. 1. Introdução ........................................................................................ 122
2. 2. ‘A repressão judicial’........................................................................ 127
2. 3. ‘As frentes de massas contra a repressão’...................................... 133
2. 3. 1. Um mundo feito de rotinas ................................................. 141
2. 3. 2. O tribunal da opinião pública .............................................. 149
2. 3. 2. 1. ‘A defesa política’................................................ 150
2. 3. 2. 2. A imprensa anti-ditatorial .................................... 157
2. 4. As associações de parentes de presos políticos e sociais............... 162
2. 5. A profissão de advogado e o compromisso militante ................... 164
2. 5. 1. A opção pela qualificação profissional .............................. 164
2. 5. 2. O exercício da profissão ...................................................... 172
2. 5. 3. ‘Militar na Gremial’ ............................................................ 182
2. 6. Ser um defensor de presos políticos .............................................. 188
2. 6. 1. A qualidade heróica ............................................................ 191
2. 7. “O mais alto militante era o guerrillero” ..................................... 199
xxii
2. 8. “Advogados do caos e a delinqüência” ......................................... 204
2. 9. “A luta pelo direito” ....................................................................... 207
2. 10. Uma causa internacional ............................................................. 211
2. 11. Conclusão ....................................................................................... 215
2. 12. Epílogo ........................................................................................... 216
2. 13. Anexos ........................................................................................... 217
3. Capítulo 3: A organização transnacional da denuncia e a profissionalização do
compromisso militante
3. 1. Introdução ........................................................................................ 243
3. 2. O engajamento com a causa na Argentina .................................. 247
3. 2. 1. Uma ‘Assembléia’ pelos Direitos Humanos ...................... 248
3. 2. 1. 1. O serviço jurídico ................................................ 250
3. 3. 1. 2. Os direitos humanos como vocação ................... 256
3. 2. 2. Um ‘Centro de Estudos’ Legais e Sociais .......................... 259
3. 2. 2. 1. A trajetória de um fundador ............................... 265
3. 2. 2. 2. Os direitos humanos como profissão ................. 273
3. 3. A organização transnacional da denuncia .................................. 283
3. 3. 1. O engajamento com a causa no exílio ................................ 283
xxiii
3. 3. 2. As missões internacionais de juristas ................................ 287
3. 3. 3. As redes internacionais ....................................................... 294
3. 3. 4. Peritos do internacional .................................................... 302
3. 3. 5. Os advogados como ‘vítimas do terrorismo do Estado’ ....
3. 4. O exílio como uma ‘grande escola política’ .................................. 312
3. 4. 1. Os que ‘jetonean’ no exílio ................................................ 317
3. 4. 2. Os defensores como ‘peritos em direitos humanos’ .......... 319
3. 5. Conclusão ..................................................................................... 325
3. 6. Epílogo .......................................................................................... 332
3. 7. Anexos ........................................................................................... 333
4. Conclusões ...................................................................................................... 343
5. Referências Bibliográficas ............................................................................ 349
xxiv
VECCHIOLI, Virginia. “ ‘A luta pelo direito’. Engajamento militante e
profissionalização dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina”
Orientador: Federico Neiburg. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006.
Tese.
xxv
VECCHIOLI, Virginia. ‘A luta pelo direito’. Engajamento militante e
profissionalização dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina”
Orientador: Federico Neiburg. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006.
Tese.
Introdução
“Talvez atribui-se um demasiado valor à memória
mas não o suficiente à reflexão”
1
Esta tese trata da formação de um segmento da profissão jurídica diretamente
associado à promoção e defesa dos direitos humanos na Argentina. Todos os advogados
tratados aqui evocam a figura do profissional do direito comprometido com o serviço desta
causa pública. Trata-se de profissionais que se constituem como tais por terem como
referencia dois espaços simultâneos de atuação: o engajamento militante e o exercício
profissional do direito. Como apresentarei, as particularidades desta configuração ressaltarão
princípios distintivos de recrutamento, de adesão e de representação deste ativismo que
supõem, por sua vez, formas específicas de fazer e pensar o direito e a política na Argentina
contemporânea.
Através de um percurso por distintos momentos da história da construção desta causa
e de seus peritos, proponho mostrar as transformações que ocorreram no perfil dos advogados
que assumem publicamente um compromisso com a defesa dos direitos humanos. Os
diferentes capítulos da tese traçam um itinerário: desde a invenção da causa dos direitos do
homem, em meados dos anos trinta, até a profissionalização dos seus militantes na atualidade.
Este itinerário percorre algumas das instâncias chaves de um trajeto que conduziu a uma
profunda reconfiguração deste perfil profissional. Se os advogados descritos nos capítulos
iniciais evocam a figura heróica do profissional que se entrega desinteressadamente à causa, o
último apresenta-os na condição de ‘peritos’, a partir da sua incorporação a um campo
profissional transnacional ligado à causa dos direitos humanos.
Esta transformação envolve reconfigurações significativas, tanto do espaço da
militância como do próprio campo profissional. Se a intervenção destes profissionais incide
na forma em que se processam e interpretam certos conflitos políticos, oferecendo um
repertório de práticas e valores e fazendo deste ativismo um assunto de competência
especializada, não é menos verdadeiro que este engajamento militante também traz
conseqüências profundas dentro do próprio universo do direito. A recente incorporação com
1
Susan Sontang. Ante el dolor de los demás. Buenos Aires. Ed. Alfaguara. 2003. pág. 134.
2
status constitucional do ‘direito internacional dos direitos humanos’, a existência de
associações civis especificamente voltadas para o tratamento judicial destas causas, a criação
de cursos de pós-graduação, de estudos jurídicos privados dedicados a gerir a demanda de
reparações econômicas para as vítimas e seus parentes e a apresentar casos perante os
tribunais internacionais, a aparição de revistas e editoriais especializadas, a participação de
advogados argentinos em missões e tribunais internacionais de direitos humanos e a
multiplicação de agências estatais dedicadas a delinear políticas relativas ao tema, todos eles
são fatos que dão conta tanto das mudanças ocorridas no espaço do militantismo, quanto das
transformações ocorridas dentro do próprio campo do direito.
O foco neste processo de transformação do perfil do profissional do direito engajado
entre as primeiras décadas do século XX e a atualidade levou-me a realizar uma pesquisa que
combina dados que provêem de fontes históricas com o uso de material etnográfico. Sobre a
base desta singularidade, esta tese poderia ser definida como de antropologia histórica. Se a
institucionalização desta causa é o resultado de um longo e complexo processo, este trabalho
pretende realçar apenas alguns momentos chaves deste percurso, a fim de identificar certas
configurações constitutivas daquilo que na Argentina foi chamado de ‘movimento pelos
direitos humanos’
2
A descrição de cada capítulo apresenta com clareza que o propósito deste itinerário
histórico não é o de reconstruir as inúmeras situações de violência política ocorridas durante o
século XX na Argentina. A perspectiva temporal adotada neste trabalho tem um outro
propósito: ao invés de reconstruir busca compreender as condições que possibilitaram que a
tumultuada história política recente seja inscrita dentro de uma narrativa jurídica que supõe,
entre outras coisas, uma forma de nomear a quem foram os protagonistas desta história (‘as
vítimas’), uma maneira de intervir no espaço público (‘denunciar’, ‘demandar’, ‘litigar’,
2
Mesmo correndo o risco de esencializar, vale a pena salientar para o leitor não familiarizado com a história
argentina recente que, por ‘movimento pelos direitos humanos’ entende-se o heterogêneo conjunto de
associações que se formaram entre os anos 1975 e 1979 para exigir o reconhecimento da violência exercida pelo
Estado. Este movimento envolve dirigentes de distintas congregações religiosas, como é o caso do Movimento
Ecumênico pelos Direitos Humanos, diversas organizações de parentes das vítimas, como as Mães de Praça de
Maio, e de profissionais do direito como o Centro de Estudos Legais e Sociais.
Antes de avançar ainda mais neste texto introdutório, é conveniente explicitar alguns dos critérios utilizados para
dar-lhe forma. A reprodução de fragmentos de relatos nativos é indicada no texto pelo uso de aspas, já a inclusão
de uma única categoria nativa dentro de um parágrafo de minha autoria é indicada pelo uso de apóstrofos. Nos
dois casos procura-se distinguir as categorias nativas das utilizadas pelo pesquisador. Utilizo palavras em cursiva
para dar ênfase a estas últimas. A respeito destas categorias de análise vale a pena salientar, também, que
‘profissional do direito’ ou ‘especialista’ são utilizadas como categorias teóricas, em quanto ‘advogado’,
‘defensor’ ou ‘perito’ referem-se a formas nativas de classificação.
3
‘investigar’), de definir aos sujeitos dotados da capacidade para fazê-lo (‘os advogados’), de
delimitar os espaços de compromisso militante (‘a causa pelos direitos humanos’) e, em
ultima instância, uma forma de narrar a história nacional (‘o Terrorismo de Estado’).
O que me interessa deste percurso histórico é colocar em evidencia a configuração de
matrizes de atuação pública e profissional criadas em torno a esta causa. Por este motivo, a
cronologia proposta deve ser entendida de maneira flexível. Ao invés de se referirem a
períodos históricos empiricamente diferenciados, os capítulos desta tese devem ser
compreendidos como referências a horizontes temporais mais ou menos gerais dentro dos
quais proponho identificar a permanência e transformação de certas relações significativas na
institucionalização desta causa. Os capítulos não equivalem, então, a períodos temporais fixos
nem supõem que os processos descritos em cada um deles têm seu início e fim dentro de
marcos temporais exclusivos e absolutos. A intenção em salientar certas configurações chaves
faz com que a opção de deixar deliberadamente de lado vários períodos da história recente
não prejudique o propósito central que é apresentar a participação do ativismo jurídico na
conformação da causa pelos direitos humanos na Argentina.
Para compreender a particular configuração de pessoas, relações e representações
criadas em torno a esta causa e ao compromisso profissional e militante dos advogados,
propõe-se focar em cada capítulo uma temática específica, uma vez que a intensidade
dedicada aos diferentes assuntos varia ao longo da tese. Por exemplo, a articulação entre o
universo local de profissionais do direito e a esfera internacional receberá uma atenção
privilegiada no último capítulo, ao tratar a participação dos advogados exilados em
associações internacionais de juristas nos anos setenta, sem que isto signifique que esta
dimensão também não tenha sido constitutiva do campo nas primeiras cadas do século XX.
Como veremos no desenvolvimento do capítulo 1, as associações locais que se constituíram
em torno a esta causa são filiais de organizações internacionais de luta contra o fascismo, e os
que participam na construção do incipiente direito internacional dos direitos humanos são,
principalmente, diplomatas. Apesar de todo o peso desta esfera transnacional, esta dimensão
será analisada em detalhe no capítulo 3 pois é justamente no marco das relações criadas entre
profissionais do direito argentinos e estrangeiros que se produz uma novidade: institui-se a
categoria ‘perito’ em direitos humanos.
4
Com a intenção de apresentar as distintas configurações que possibilitaram à
construção da causa pelos direitos humanos na Argentina, compreender as dimensões
significativas deste processo e suas diferentes modulações ao longo do tempo, esta tese foi
dividida em três capítulos:
No capítulo 1 proponho pôr em evidencia as condições que tornaram possível a
invenção desta causa focando nas propriedades sociais de seus militantes. Para isso centrarei
o capítulo no momento germinal em que se criaram uma série de associações civis que
reivindicaram a defesa das ‘vítimas’ da ‘ditadura’ logo após do golpe de Estado de 1930,
entre elas, a Liga Argentina por los Derechos del Hombre, a única das associações fundadas
em aquela época que continua ativa até hoje.
Um dos argumentos centrais deste capítulo relaciona-se com o processo que
possibilitou o encontro entre notáveis e recém-chegados ao direito e à política na complexa
rede de associações dedicadas à defesa desta causa. No desenvolvimento do capítulo
enfatizarei o processo que coloca à disposição deste engajamento militante um conjunto de
jovens profissionais desprovidos de um capital de relações sociais herdadas num momento de
forte incremento da matrícula universitária que tem como conseqüência a existência de
‘advogados sem causa’. Estes jovens bacharéis incorporar-se-aõ ao mundo profissional
através da assessoria jurídica a grêmios e sindicatos que então começam a se multiplicar à luz
das experiências anteriores trazidas para o país pelos imigrantes europeus. Ao mesmo tempo,
produz- se uma aproximação de alguns notáveis a este universo habitado por trabalhadores e
imigrantes. Proponho entender estes movimentos no contexto do mutável espaço político de
inícios do século XX, uma vez que, com a sanção da lei de voto masculino secreto e
obrigatório, foram transformadas as condições de competição pela representação e as
estratégias de acumulação de notoriedade pública deixaram de estar vinculadas diretamente à
posse de riqueza. Contra este pano de fundo, introduzo algumas das qualidades que vão
distinguir estes profissionais do direito na esfera pública: o culto ao heroísmo, ao desinteresse,
ao sacrifício, e examino as implicações que isto produiz nas formas de fazer e pensar a
política e o direito. Este ponto será desenvolvido detalhadamente no seguinte capítulo.
No capítulo 2 proponho dar conta do trabalho de definição e delimitação da categoria
‘defensor de presos políticos’ através da criação de uma representação coletiva deste
engajamento jurídico associada ao culto do heroísmo e do desinteresse, qualidades estas que
5
os aproximam de seus defendidos. A ênfase estará colocada em apresentar o valor destes
critérios na hora de criar homogeneidade entre indivíduos que têm origens e trajetórias
profissionais heterogêneas. Estes princípios de representação importam porque são eles os que
fundam a legitimidade da sua posição dentro do mundo do direito e da política, em especial
numa conjuntura na qual a sua clientela é recrutada principalmente entre a militância armada
das organizações da esquerda surgidas no país no início dos anos 60. Também porque foi
através deles que adquiriram existência como grupo de advogados defensores de presos
políticos. Como veremos, as desqualificações dos seus adversários também contribuíram para
produzir essa homogeneidade, fazendo desta constelação de pessoas, um grupo.
Este capítulo pretende apresentar parte de todo o trabalho de re-agrupamento de
sujeitos com trajetórias e propriedades objetivas diferentes em torno a esta forma de exercer o
direito e a política. O sucesso relativo obtido na tarefa de unificação traduziu-se num nome
coletivo (advogado defensor de presos políticos), em instâncias de representação (associações,
publicações), em emblemas (o desaparecimento do advogado Nestor Martins, o assassinato do
advogado Rodolfo Ortega Peña) e em taxonomias (advogados do povo / advogados a serviço
do imperialismo). Todas estas instâncias serão chaves na hora de dotar este grupo de agência.
Paradoxalmente, a legitimidade adquirida através do fato de colocar em risco a própria vida
foi construindo, ao mesmo tempo, a necessidade de organizar, planejar e conceber novas
formas de trabalho em comum. Mostrar a rotinização da tarefa do advogado defensor é um
dos objetivos deste capítulo, uma vez que a formação de rotinas constitui uma instância chave
na homogeneização dessa categoria social e na objetivação do grupo como tal.Como veremos,
elas se organizavam em torno à busca do detento nas delegacias policiais, à apresentação de
hábeas corpus, às visitas aos presos, aos pedidos de perícias médicas, ao acompanhamento
dos processos nos tribunais, à divisão do trabalho entres os advogados, à partilha de
processos, à procura de antecedentes na jurisprudência comparada, à elaboração do alegado, à
publicação das denúncias na imprensa, à realização de conferências de imprensa, etc.
No capítulo 3 proponho descrever e analisar o processo de profissionalização em
direitos humanos, salientando especialmente a participação dos especialistas argentinos em
redes internacionais de juristas e em instituições interestatais, como a Comissão de Direitos
Humanos da ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA em meados
dos anos setenta. Embora a importância dessa dimensão internacional tenha sido
reconhecida para os ano trinta e sessenta, foi nesse momento quando se produziu uma
6
confluência de interesses entre profissionais do direito norte-americanos, europeus e
argentinos que resultará crítica o reconhecimento público de uns e outros como ‘peritos em
direitos humanos’.
Esta confluência, que não exclui a existência de interesses, valores e origens sociais e
profissionais profundamente heterogêneos, foi significativa na transformação do próprio
campo associativo e estatal. Através da análise das missões internacionais de juristas (1975-
1979), da criação de associações de denúncia das violações aos direitos humanos no exílio
(1976) e da criação de novas associações especializadas no litígio de causas vinculadas ao
terrorismo de Estado como o Centro de Estúdios Legales y Sociales (CELS), procuro mostrar
que essa profissionalização envolveu tanto a definição do lugar do profissional do direito em
função da posição de um conhecimento especializado quanto a transformação do universo de
representações associadas a este novo perfil profissional. Como veremos, essa
profissionalização trouxe consigo, também, uma inovação critica: a possibilidade de ocupar
espaços de importância dentro da própria esfera do Estado, não como resultante do ativismo
partidário mas como ‘perito’.
É também nesse momento que irrompem no cenário público as associações de
parentes exigindo o reconhecimento do que ocorreu com seus filhos em tanto ‘vítimas do
terrorismo de Estado’. Ao mesmo tempo, são os mesmos parentes os que criarão associações
que se definem por fazer apelo ao direito como princípio de distinção, como é o caso do
Centro de Estudios Legales y Sociales. A confluência entre dois princípios de adesão: o
sangue e o direito, também é um dos temas tratados neste capítulo.
A atenção desigual dedicada aos diferentes temas em torno dos quais se articulam os
capítulos explica-se também pela maneira heterogênea em que foi se configurando o corpus
de dados que informam esta pesquisa. Os materiais selecionados e produzidos são de
qualidades muito diversas. Para o capítulo 1, por exemplo, tive a oportunidade de fazer
uma única entrevista a uma ex-militante do Socorro Rojo Internacional nascida em 1911 e que
ainda vive na Argentina, em quanto o capítulo 2 está articulado principalmente a partir de um
corpus importante de entrevistas realizadas a ex-integrantes da Asociación Gremial de
Abogados de Buenos Aires. Estas entrevistas permitiram que identificasse não a dimensão
heróica do engajamento militante destes profissionais do direito, mas também a dimensão
rotineira do seu trabalho, um elemento que não tinha conseguido capturar na leitura dos
7
documentos utilizados para o primeiro capítulo. A oportunidade de realizar um período dos
meus estudos de doutorado em Paris
3
permitiu-me ter acesso a um grande arquivo sobre as
missões internacionais de peritos nos anos sessenta e as associações de advogados criadas no
exílio naquela época, documentos que não poderia ter acesso na Argentina. A impossibilidade
de consultar os arquivos da Federação Internacional de Ligas dos Direitos do Homem em
Paris, junto com a ausência de arquivos equivalentes na Argentina, impossibilitou-me de
registrar essas mesmas atividades para os períodos anteriores trabalhados nos capítulos 1 e 2.
Estas variações da ênfase falam também a respeito das transformações acontecidas ao
longo deste processo. Se, nos anos trinta, as mulheres dos dirigentes operários deportados
para a Europa se aglutinavam para protestar publicamente contra o Estado, a partir de sua
condição de ‘mulher’, o centro da cena pública estava ocupado por figuras do direito como
Alfredo Palácios, Carlos Sánchez Viamonte e Deodoro Roca nomes que ganharam
notoriedade pública como parlamentares e advogados engajados ‘na defesa de presos políticos
e sociais’. Inversamente, nos anos oitenta, a defesa das vítimas do terrorismo de Estado será
protagonizada, de modo notável, por seus parentes, especialmente por aqueles que, desde
1977, se reuniram semanalmente na Praça de Maio, na frente da própria sede do governo
nacional. Estas diferenças na visibilidade pública entre os que protagonizam a causa o
supõem que ambos os princípios de recrutamento (o sangue e o direito) não estivessem
presentes ao longo de toda esta história nem que os dois não tenham a mesma importância
crítica. Em síntese, as diferentes dimensões ressaltadas em cada um dos capítulos devem-se,
também, às mudanças ocorridas ao longo de todo o processo que vai desde a invenção da
causa até sua atual institucionalização.
A adoção de uma perspectiva temporal que excede os marcos delimitados pelo golpe
de Estado de 1976, para me referir à constituição da causa pelos direitos humanos, é parte de
uma estratégia deliberada que visa desnaturalizar algumas perspectivas nativas sobre a
configuração deste campo militante. Quando se fala na Argentina sobre ‘o problema dos
direitos humanos’ pressupõe-se que se está referindo ao período que se estende de 1976 a
1983. A primazia desta construção temporal se registra tanto nas declarações públicas dos
dirigentes das associações que integram o movimento como nas formas em que o Estado
3
‘Bolsa Sanduíche’ do CNPq. Entre os meses de março e junho de 2004 realizei um estágio no Laboratoire de
Sciences Sociales de la Ecole Normale Superieure em Paris. Nesse período contei com a orientação do professor
Michel Offerlé.
8
delimita as políticas públicas destinadas a julgar os responsáveis do terrorismo de Estado,
reparar as vítimas e preservar a memória do passado, e também, na maneira em que os
próprios intelectuais constroem campos disciplinares recortados sobre essas mesmas
fronteiras temporais. Estas marcas temporais produzem e naturalizam, por sua vez, divisões
temáticas e disciplinares, de forma que aquelas pesquisas centradas na militância armada e
nas mobilizações públicas contra os governos de fato anteriores a 1976 não integram o campo
de estudos sobre ‘os direitos humanos’ e são identificadas com outros temas, como os estudos
sobre ‘o peronismo’ ou ‘a história política’ em geral. A criação de associações civis que
recorrem à linguagem dos direitos do homem anteriores a 1976 também costumam ser
excluída do horizonte destes estudos.
No entanto, categorias como ‘vítimas’, ‘ditadura e ‘direitos humanos’ não são
criações dos anos setenta ou oitenta. Tampouco, a conformação de associações civis
articuladas sobre esta retórica, o uso de estratégias de defesa judicial e pública das vítimas, ou
a participação dos advogados locais em redes transnacionais de denúncia. Como veremos no
capítulo 1, a retórica e as práticas correspondentes ao discurso dos direitos humanos já
estavam disponíveis nas primeiras décadas do século XX. Este reconhecimento permite-me
sugerir que o fato de proclamar a invenção dessa causa a partir do golpe de Estado de 1976
pressupõe a adoção de um ponto de vista interessado dentro do universo militante. Identificar
esta perspectiva como própria de um ponto de vista nativo traz o desafio de compreender o
sentido da proclamação desta novidade sobre o pano de fundo histórico delineado nesta tese,
aonde ela deixa de ser auto-evidente.
Montar este complexo retrato dos especialistas engajados na causa dos direitos
humanos e da própria causa que os faz existirem socialmente envolve, também, compreender
as formas nativas de periodização. Para atender à importância dessa dimensão, a tese não se
inicia em 1976, ano em que ocorre o golpe de Estado que inaugura ‘a última ditadura militar’
e que serve de divisor de águas para narrar a história política recente, segundo a perspectiva
consagrada pelas associações de parentes das vítimas e, fundamentalmente, pelo Estado, mas
se inicia nas primeiras décadas do século XX. O capítulo 1 trata, principalmente, da Liga
Argentina por los Derechos del Hombre, criada em 1937 e reconhecida hoje como ‘a
primeira’ associação de defesa dos direitos humanos no país. Os dois capítulos que se seguem
não supõem uma divisão dicotômica entre um antes e um depois do retorno à democracia em
1973, nem um antes e um depois do golpe de Estado de 1976, visto que essas não são marcas
9
decisivas na forma de construir a temporalidade pelos profissionais do direito entrevistados
para esse trabalho. Esses dois capítulos estão organizados, ao contrário, em base às
experiências que tornam possível esse tipo de militantismo perito e suas transformações.
Do ponto de vista dos profissionais do direito, o relato do seu engajamento militante
funda-se em torno a marcas temporais que não são necessariamente as que organizam a
experiência histórica tal como ela é concebida pelas associações de parentes das vítimas, o
Estado e, inclusive, por alguns intelectuais para quem o golpe de Estado instaura uma
divisão temporal crítica. Ao contrário, no relato dos expertos em direito aparecem outras
referências temporais significativas como a detenção massiva de dirigentes sindicais e de
advogados nos dias que seguintes ao Cordobazo (1969), a criação de um fórum penal ad-hoc
anti-subversivo (1971), o desaparecimento do defensor de presos políticos Nestor Martins
(1971) durante o governo de fato de Lanusse, a anistia dos presos políticos outorgada após o
triunfo do peronismo nas eleições de 1973, o assassinato do advogado defensor Ortega Peña
nas mãos de organizações parapoliciais depois da declaração do Estado de tio em 1974 e,
finalmente, sua participação no desenho e implementação de políticas de Estado relativas às
conseqüências do terrorismo de Estado a partir do retorno à democracia em 1983. A
importância de manter esta distinção nas formas de construir a temporalidade fica evidente
nos rituais comemorativos dedicados à memória dos advogados desaparecidos. Enquanto o
Estado lembra dos profissionais do direito desaparecidos a partir de 1976, os mesmos
funcionários públicos, mas na sua condição de integrantes de associações profissionais,
lembram de seus colegas e amigos desaparecidos e das experiências associativas em defesa
dos presos políticos a partir de 1971. A organização dos capítulos tenta considerar a lógica
destas formas nativas de periodização.
Visto que o objetivo último da tese é compreender alguns dos princípios constitutivos
da causa dos direitos humanos através da análise dos agentes sociais que lhe outorgam
existência, este trabalho funda-se sobre outro deslocamento crítico que tem como finalidade
produzir uma segunda ruptura com o encantamento de alguns relatos nativos que se tornaram
senso comum: ao invés de observar exclusivamente as associações de vítimas e de seus
parentes, busca examinar a atuação dos profissionais do direito. A literatura especializada em
direitos humanos apresenta, invariavelmente, uma característica comum: sua atenção está
dirigida quase exclusivamente para o ativismo daquelas associações com maior visibilidade
pública, como as constituídas por parentes das vítimas, tais como Abuelas e Madres de Plaza
10
de Mayo e Hijos por la Justicia, contra el Olvido y el Silencio (HIJOS). São muito escassos
ou simplesmente inexistentes os trabalhos interessados em apresentar a atuação daquelas
associações que fazem do direito um princípio de reconhecimento público. No caso da Liga
Argentina por los Derechos del Hombre (1973), apesar da extensa história da entidade, o
único livro que trata da mesma é de caráter testemunhal
4
. Sobre associações como a Asamblea
Permanente por los Derechos Humanos (1975) ou o Centro de Estudios Legales y Sociales
(1979) se encontram referências secundárias em diversos trabalhos dedicados às
organizações de parentes das vítimas
5
.
A lógica com que se configura este corpus de trabalhos coincide com a que organiza
os relatos nativos sobre esse ativismo. Os próprios parentes se apresentam a si mesmos e são
reconhecidos, por sua vez, como os protagonistas desta militância. Essa representação
relaciona-se com o fato de que, dentro dessa comunidade moral, o compromisso dos parentes
com a causa não precisa ser demonstrado, pois aparece como inerente ao vínculo de sangue
com as vítimas. A inquestionabilidade dessa relação pretende ser a base à inquestionabilidade
de suas demandas e do lugar hierárquico que ocupam dentro deste movimento pelos direitos
humanos. Mas, apesar de que ser portador desse tipo de vínculo é uma propriedade construída
e objetivada através do engajamento com a causa, a produção acadêmica parece acompanhar
o ponto de vista naturalizado dos próprios parentes ao identificar exclusivamente esse
ativismo com as associações que fazem do sangue um princípio de adesão pública. De modo
que essa literatura acaba se constituindo numa ferramenta central na objetivação desse relato e
na naturalização de uma maneira essencialista de narrar a história nacional
6
.
Meu interesse pelo universo dos profissionais do direito surge exatamente da surpresa
que me provocou este reconhecimento durante a realização da minha dissertação de mestrado.
Nesse trabalho, propus apresentar a maneira com que é consagrada a categoria ‘vítima do
terrorismo de Estado’ no contexto de uma série de disputas para impor uma forma legítima de
4
Alfredo Villalba Welsh, 1984.
5
Uma exceção constituem os trabalhos de Elizabeth Jelin, especialmente 1995, Ian Guest, 1990, Dezalay e
Garth, 1998 e Saldivia, 2002. Existem apenas três publicações que consideram especificamente o universo
jurídico. Duas delas abordam o mesmo fato: o julgamento contra os comandantes em chefe da Junta Militar de
Governo que governou a Argentina entre 1976-1983. Ver Kaufman, Esther, 1991 e Landi, Oscar e Inês
González Bombal, 1995. A terceira reconstrói o funcionamento do necrotério judicial durante a última ditadura
militar. Ver Maria José Sarrabayrouse, 2003.
6
Uma análise do valor do sangue como princípio de adesão, distinção e hierarquização dentro do universo da
militância pelos direitos humanos foi objeto de minha atenção na dissertação de mestrado. Ver Vecchioli,
2000.
11
nomear os que foram assassinados ou estão desaparecidos no contexto dos violentos conflitos
políticos dos anos 70s. A despeito de que esta categoria adquiriu, recentemente, um status
jurídico pleno, persistem as disputas sobre as formas de regulamentar as leis que a instituem e
para conseguir a sanção de novas leis que permitam expandir ou reduzir as suas fronteiras e,
com isso, conseguir instituir novos agentes sociais como ‘vítimas do terrorismo de Estado’.
Foi esse trabalho que deixou evidente para mim a importância que tinha não o esforço
militante das vítimas e de seus parentes, mas o dos profissionais do direito que intervinham
decisivamente ao longo de todo este processo, ora patrocinando ações legais a favor de seus
próprios parentes desaparecidos ou de seus colegas desaparecidos, ora patrocinando outros
parentes; ou ainda, como parlamentares integrantes do poder judicial ou como funcionários de
agências estatais dedicadas a implementar políticas públicas na área dos direitos humanos.
Ao colocar o foco nestes profissionais, procuro apresentar toda a força do direito na
configuração desta causa. Como assinala Pierre Bourdieu, o campo jurídico atua como
princípio de construção da realidade, uma vez que as situações ordinárias são redefinidas
segundo sua definição jurídica
7
. Por sua vez, a mobilização dos profissionais do direito
alimenta os processo de conversão destes conflitos particulares, localizados e inscritos na
ordem do privado, em causas públicas e coletivas. Estas duas propriedades fazem com que o
direito se institua como um dos espaços centrais na criação do repertório de valores e práticas
que instituem à causa pelos direitos humanos. Este é o campo que fornece as categorias
sociais apropriadas, os cenários onde se interpretam e julgam os fatos e os meios através dos
quais se aspira solucionar os conflitos. Seus profissionais aparecem como atores chaves na
consagração de uma maneira de intervir e interpretar o mundo social, e que supõe o
reconhecimento da legitimidade do direito como meio de interpretar os conflitos políticos, não
por seus especialistas, mas também pelas chamadas ‘vitimas’ e, fundamentalmente, do
Estado.
O ponto de partida desse trabalho consiste em considerar que a mobilização dos
profissionais do direito não pode ser vista como um dado derivado direta e exclusivamente do
fato objetivo e dramático da repressão de Estado. Práticas e conflitos formalmente
semelhantes não são reivindicados como formando parte da agenda dos direitos humanos. Isto
sugere que a sua reivindicação não depende exclusivamente do exercício da violência por
7
Bourdieu, 1998.
12
parte do Estado, tampouco de razões voluntaristas baseadas na coragem de seus militantes ou
nos vínculos de sangue com as vítimas. Uma ligação deste tipo parece depender da presença
de outras forças e relações sem as quais tal reivindicação não ganha reconhecimento público.
Na sua análise, Bourdieu aponta diretamente essa questão partindo do reconhecimento que:
“Nada é menos natural do que a ‘necessidade jurídica’ ou (...) o sentimento de
injustiça que pode levar a recorrer aos serviços de um profissional (...) a passagem
do agravo despercebido ao agravo percebido e nomeado, e sobretudo imputado,
supõe um trabalho de construção da realidade social que incumbe, em grande
parte, aos profissionais (...) o poder específico dos profissionais consiste na
capacidade de revelar os direitos (...) são também os profissionais quem produz a
necessidade dos seus próprios serviços ao constituírem em problemas jurídicos,
traduzindo-os na linguagem do direito, problemas que se exprimem na linguagem
vulgar...”
8
.
É com o propósito de demonstrar este trabalho de construção da realidade social que
focalizarei a pesquisa no segmento dos profissionais do direito engajados nesta enorme tarefa
de construção da causa pelos direitos humanos. Proponho explorar em detalhe este fragmento
do universo profissional com a intenção de compreender as condições que tornaram possível
que alguns projetos militantes se articulassem com um tipo específico de competência
especializada. O que supõe considerar que estes usos militantes do direito também não se
explicam por disposições essenciais presentes nos advogados dispostos a atuar na esfera
pública em beneficio dos outros, nem que o interesse pela causa pré-exista à própria ação
reivindicativa. É com o propósito de eludir essa armadilha que vou dar conta dessas
disposições no contexto de configurações sócio-históricas específicas. São elas as que o
sentido ao engajamento, pois existem potencialmente outras alternativas de adesão e outras
formas de exercer a profissão.
Como veremos, as ações desenvolvidas pelos militantes da causa ganham sentido não
ao serem consideradas por sua relação com o Estado, mas pela relação com outros
profissionais da política e do direito que se colocam em uma posição de maior proximidade
com essa militância. É neste marco mais específico de relações onde o engajamento com este
militantismo jurídico ganha sentido uma vez que supõe tanto um posicionamento a respeito
8
Bourdieu, 1988: 231-232. Grifos meus.
13
das formas apropriadas de exercer o direito, como dos interesses que devem ser reivindicados
no espaço público
9
.
Para abordar as condições sociais, profissionais e políticas que possibilitam a
vinculação entre o tratamento de um caso e a defesa militante de uma causa proponho colocar
especial atenção em:
a) o perfil profissional destes advogados, suas diferentes origens sociais, seus capitais
culturais e familiares, a formação profissional, os modos de ingresso na profissão,
o repertório de estratégias judiciais e extra-judiciais utilizadas, as diferentes
definições do trabalho jurídico, as competências privilegiadas dentro deste
universo, os significados desta opção profissional, suas diversas instâncias de
consagração, os critérios que fundam sua credibilidade, os valores comprometidos
nesta tarefa e as representações que instituem este perfil profissional e militante.
b) A conformação de associações de defesa dos direitos humanos e a participação
destes profissionais nas redes nacionais e transnacionais de peritos, a
multiplicidade de espaços através dos quais se articula este militantismo (a
universidade, o parlamento, os sindicatos, etc.), o repertório de recursos
mobilizados para converter um processo judicial numa causa pública e coletiva (a
imprensa, as manifestações públicas, etc.). Para esses profissionais do direito,
advogar perante os tribunais era apenas uma parte de sua atuação profissional.
c) As condições sociais e políticas mais abrangentes dentro das quais se situa esta
forma de militantismo e que tornam possível a adesão a esta causa, entre outras
alternativas possíveis. Estas condições não se limitam a assinalar a existência
objetiva do exercício da violência pelo Estado, mas supõem considerar também os
processos de mobilidade social, de imigração ou de ampliação da base eleitoral.
9
Esse é, precisamente, o sentido do trabalho de Eric Agrikoliansky, quem, ao tentar dar conta das flutuações na
adesão à Liga Francesa pelos Direitos do Homem e do Cidadão depois do pós-guerra, inscreve este engajamento
em relação às oportunidades abertas ao exercício profissional da política para os militantes comunistas e
socialistas, uma vez finalizada a luta contra o nazismo e contra o colonialismo, respectivamente. Agrikoliansky,
Eric. 2002.
14
Este ativismo jurídico não tem nada de evidente ou natural se consideramos que a
profissão de advogado está estruturada em torno à reivindicação da independência e de um
modelo de excelência que consagra o valor da neutralidade e da técnica acima da adesão e da
convicção. Esse princípio ético de atuação profissional funda-se em analogia com o dos
médicos: o profissional do direito tem o dever de aceitar todos os casos, mesmo quando eles
contradizem suas próprias convicções pessoais. Ainda mais, fazê-lo é motivo de orgulho e
demonstração de responsabilidade profissional
10
. Os profissionais do direito engajados com a
causa dos direitos humanos contrastam com este ideal que aparecem como disponíveis para
a denúncia do caso, não apenas na esfera judicial senão, e principalmente, na esfera pública.
Neste sentido, trata-se de um advogado que está situado nas antípodas da neutralidade.
Os profissionais do direito descritos neste trabalho tampouco se encaixam exatamente
na figura do especialista dedicado profissionalmente à política e que abandona a prática
profissional. Essa esfera de atuação tem sido intensamente estudada na literatura especializada
ao analisar o ingresso desses profissionais liberais na política no contexto da marginalização
das antigas classes dirigentes, após o triunfo da república em países como a França. Também
tem recebido atenção as faculdades de direito como instâncias chaves no recrutamento dos
políticos profissionais e na formação de redes de profissionais da política
11
. Para o caso de
América latina, os trabalhos destacam a relevância dos advogados e juristas no processo de
‘nation-building’ ao longo do século XIX: os juristas têm elaborado as cartas constitucionais,
os códigos, a legislação, a criação de novas instituições jurídicas e a carreira de advocacia tem
sido a via de recrutamento das elites políticas. Neste sentido, os advogados têm sido muito
importantes no surgimento das formas embrionárias da esfera pública
12
.
Vale a pena começar a introduzir a perspectiva adotada neste trabalho, destacando o
sentido com o qual utilizo o termo ‘causa’. Esse conceito remete tanto ao processo judicial,
que se tramita nos tribunais, quanto ao conjunto de interesses a serem sustentado e a fazerem
valer na esfera pública
13
. Os profissionais do direito analisados neste trabalho se distinguem
porque, ao mesmo tempo que assumem a defesa de um caso perante os tribunais,
desenvolvem um trabalho extra destinado a transformar o caso particular em uma causa
10
Em: Scheingold e Sarat, 2004.
11
Esses são os casos, notoriamente, dos estudos de Pilles Le Béguec e Lucien Karpik. Béguec, G. 2003.
Karpik, Lucien, 1995.
12
Em: Zimmermann, E. 1998.
13
Esta definição foi tomada do trabalho de Liora Israël e Brigitte Gaïtti. 2003.
15
pública e coletiva. Neste sentido, as próprias associações foram pensadas como tribunas de
onde defender a causa pelos direitos humanos. O trabalho de Luc Boltanski a respeito das
denúncias publicadas na seção de cartas dos leitores dos jornais é ilustrativo no que se refere
às condições que permitiriam que um caso particular tornasse um assunto de interesse
coletivo
14
. Segundo este autor, para transformar um caso em ‘exemplar’ se requer que grupos
autorizados estabeleçam uma equivalência entre o caso e outros considerados semelhantes.
Neste sentido, os profissionais do direito que se reivindicam pela adesão à uma causa parecem
ser especialmente aptos para realizar esta transformação.
A análise do processo específico através do qual um processo judicial sai deste espaço
profissional para se introduzir na esfera pública tem sido objeto de exame no trabalho de
Elisabeth Claverie a respeito da figura de Voltaire
15
. Este modelo da análise, que coloca
ênfase no exame das distintas etapas na criação de affaires publiques, tem sido desenvolvido
nos inúmeros estudos dedicados especialmente em França ao célebre ‘affaire Dreyfus’. Sua
importância para a formulação dos problemas desta pesquisa tem sido mostrar que o vínculo
entre ‘a causa’ no sentido judicial e ‘a causa’ no sentido político é historicamente construído e
deve ser explicado. Na constituição deste vínculo entre o político e o jurídico, os profissionais
do direito que participam destes processos desempenham um papel principal.
A atenção a este tipo de advogado militante coloca a minha pesquisa na confluência de
várias linhas da análise desenvolvidas tanto nos EUA quanto na Europa. Entre os primeiros,
encontram-se os trabalhos de Sarat Austin e Stuart Scheingold que têm recebido o nome de
cause lawyering em razão do seu interesse em examinar os vínculos entre a prática do direito
e o engajamento militante. Suas análises invertem a ênfase sobre a publicitação dos processos
judiciais, outorgando prioridade não tanto à forma em que o direito condiciona a ação política,
mas à forma em que esta mobilização muda o próprio campo do direito, isto é, os modelos de
organização da profissão e suas formas de representação. Estes autores destacam o contraste
entre o ‘advogado convencional’ e o ‘cause lawyers’ como uma oposição entre o exercício do
direito como uso de uma competência cnica à disposição dos fins definidos pelo cliente e o
14
Boltanski, 2000.
15
Claverie, 1994.
16
exercício da profissão em função de um compromisso moral e político à disposição de uma
causa pública
16
.
Segundo a perspectiva destes autores, o ativismo jurídico é um fenômeno recente. Nos
EUA, em particular, desenvolveu-se a partir dos anos 60. Esta delimitação temporal revela os
supostos dos autores, pois se contrapõe ao advogado engajado, o advogado dedicado
profissionalmente à política. Neste modelo, enquanto o primeiro aparece associado ao
reconhecimento da existência de ‘novos direitos’ e causas (feminismo, minorias sexuais, etc.),
o segundo estaria ligado à defesa dos direitos civis e políticos. Esta mesma diferenciação está
presente no trabalho de Lucien Karpik e Terence Halliday, para quem a reconquista da
cidadania em países de América latina que vivenciaram o terrorismo de Estado provocou o
‘retorno do advogado político’
17
.
O ideal típico do advogado engajado numa causa constrói-se tendo como referência as
seguintes propriedades: trata-se de um especialista que adere plenamente à causa de seus
clientes, que se encontra disponível para sustentar a denúncia pública de uma injustiça, que
ocupa uma posição marginal dentro da sua profissão, que corresponde à marginalidade de sua
clientela (excluídos, imigrantes, etc.) e que é marginal também em relação às formas
dominantes da política partidária, dedicado às causas nobres e guiado por seus valores mesmo
quando contra seu próprio interesse. O interesse destes autores reside em compreender os
vínculos entre este tipo de prática profissional e as possibilidades de reforçar a democracia.
De uma perspectiva menos normativa, Liora Israël e Brigitte Gaïtti colocam as
condições ideais deste tipo de ativismo jurídico assinalando o fato de estar baseado em
relações de representação fortemente assimétricas com seus defendidos, de irromper em
situações de crise políticas e de convocar a grupos de recém chegados tanto à política quanto
ao direito
18
. Segundo estes autores, os estudos da ‘cause lawyering’ tendem a cair em
explicações tautológicas pelas quais a disposição dos advogados à ação pública reside nos
valores e disposições que eles carregam como profissionais do direito.
16
Segundo estes autores, “cause lawyering is about using legal skills to pursue ende and ideals that trascend
client service”. Em: Scheingold and Sarat, 2004.
17
Halliday e Karpik, 1997.
18
Gaïtti e Israel. Op.cit.
17
Neste trabalho, explorarei empiricamente estes modelos (o norte-americano,
representado pelos trabalhos de Austin e Scheingold, e o francês, representado pelos trabalhos
de Israël e Gaïtti) e sua produtividade através da comparação de diferentes momentos na
história deste compromisso militante na Argentina. Esta dimensão temporal permite registrar
a presença desta figura do advogado engajado nas primeiras décadas do culo XX. Assim, o
compromisso dos especialistas com a causa dos deportados, exilados e asilados políticos nos
anos trinta permite relativizar a novidade desta forma de exercício militante e profissional do
direito.
Se inicialmente estes profissionais do direito fizeram sua entrada na profissão através
da representação da causa dos operários ao se inserirem em grêmios e sindicatos, esta
distância social vai se modificar quando são os próprios companheiros de militância e seus
próprios colegas que se tornaram seus defendidos. Como veremos, as transformações recentes
no campo internacional do ativismo jurídico têm conduzido a uma profunda mudança neste
perfil ideal do advogado engajado. As trajetórias aqui estudadas ilustram a maneira em que a
entrega à causa das vítimas do terrorismo de Estado torna-se uma forma bem sucedida de
exercício da profissão e de intervenção dentro da própria esfera do Estado e das grandes
instituições internacionais.
Uma perspectiva deste tipo tem sido desenvolvida nos trabalhos de Bryan Garth e
Yves Dezalay para os casos de Brasil, Chile e México
19
. Seus estudos sobre a rede
transnacional de ativistas destacam a participação dos profissionais do direito com perfis
muito heterogêneos, o que inclui desde notáveis do direito e da política até recém chegados.
Um outro estímulo importante para as formulações apresentadas nesta tese deriva da
sociologia do engajamento militante. Particularmente, do estudo de Emmanuele Reynaud que
propõe caracterizar um tipo de compromisso que se desenvolve fora dos espaços clássicos de
representação do interesse coletivo (os partidos políticos, os sindicatos), como é o caso das
associações de defesa dos presos políticos e das vítimas da ditadura analisadas na presente
tese. Reynaud caracteriza os movimentos sociais que surgiram nos anos setenta como formas
de sociabilidade que se constituem no próprio processo de dar forma à ação coletiva e que não
supõem uma adesão exclusiva
20
. Sua análise torna-se particularmente relevante visto que
19
Dezalay e Garth. 2002.
20
Reynaud, E. 1980.
18
reconhece que os participantes destes movimentos se definem pela multiplicidade dos seus
engajamentos militantes, entre os quais se encontram, evidentemente, os partidos políticos.
Trata-se de formas de ativismo que não se excluem, pois é possível registrar nas trajetórias
destes militantes um movimento de entrada e saída entre uma esfera e a outra (as associações
e os partidos). Na perspectiva deste autor, a participação simultânea ou sucessiva nestas
distintas esferas de ação alimenta o engajamento em ambas, de tal maneira que os vínculos
criados em cada uma delas continuam, verificando-se um processo acumulativo de
fortalecimento da vocação militante. Este processo resulta na configuração de redes de
atuação que integram indivíduos dispostos ao trabalho comum. Entre os princípios de
agregação destas formas de engajamento, o autor destaca exatamente o exercício de uma
profissão liberal (advogado, médico, professor). Sua ênfase está orientada a sublinhar os
valores que sustentam este tipo de engajamento e que garantem a sua perdurabilidade. Tais
valores possibilitam nomear estas formas de ativismo como militantismo moral, porquanto
estas cruzadas pela reforma dos valores estariam dirigidas por militantes que não são os
beneficiários diretos das lutas nas quais estão comprometidos. A qualidade desinteressada da
ação e a vocação ao universal deste compromisso jurídico receberão especial atenção no
desenvolvimento desta pesquisa.
Um dos princípios de agregação destes profissionais do direito é o fato de se
reconhecerem e serem reconhecidos como ‘intelectuais’. Trata-se de figuras que combinam
tanto o perfil profissional do especialista como o do intelectual engajado. Ao fazê-lo
transpõem os marcos da profissão para fazer da escrita sobre os problemas públicos uma parte
central de sua atividade. Através deste engajamento militante adquirem uma grande
visibilidade pública, o que se torna um recurso crítico na hora de realizarem as defesas e de
somarem adesões à causa de seus defendido. Para situar estas figuras no espaço público,
contei com a contribuição da literatura especializada sobre este universo específico,
especialmente, com os trabalhos de Louis Pinto e Gerard Leclerc dedicados à análise da figura
do intelectual no espaço europeu, principalmente francês
21
. Particularmente útil na hora de
pensar o lugar do intelectual e do perito foi o livro compilado por Federico Neiburg e Mariano
Plotkin. Como veremos, a dimensão temporal adotada nesta tese permite identificar com
clareza os deslocamentos e a circulação dos mesmos indivíduos que se identificam segundo o
contexto baseados em uma ou outra condição. Os que se reconhecem hoje como peritos em
21
Pinto, 1984 e Leclerc, 2003.
19
direitos humanos são os mesmos que se identificaram com a figura do intelectual da esquerda
nos anos sessenta. Sua incorporação à esfera do Estado não exclui o fato de reivindicar, para
eles próprios, uma posição de intervenção pública baseada no uso crítico da razão. Isto é
possível porque ambas as figuras não constituem pontos extremos de uma linha, mas um
espaço de interseção
22
. A literatura específica sobre a configuração do espaço intelectual na
Argentina também foi importante na hora de pensar as mediações entre a inserção profissional
e o compromisso político, especialmente os trabalhos que exploram esta vinculação entre os
intelectuais da esquerda entre os anos 40 e 70
23
.
O livro de Luc Boltanski sobre o processo de formação da categoria ‘cadre’
(executivo) tem sido uma referência fundamental, tanto na hora de formular as perguntas
desta pesquisa quanto ao pensar as estratégias possíveis para resolvê-las
24
. Suas indicações a
respeito das falácias contidas na sociologia dos grupos sócio-profissionais têm sido
especialmente produtivas na hora de pesquisar a respeito de um grupo profissional, tentando
evitar a armadilha do essencialismo contido neste tipo de perspectiva teórica. A ênfase que o
autor coloca na necessidade de examinar todo o trabalho social de definição e delimitação que
acompanha a formação de um grupo tem sido uma referência muito importante ao se fazer a
análise dos especialistas do direito. Nesta tese proponho uma primeira aproximação à “...
análise dos mecanismos através dos quais, no jogo da vida social, os agentes se reagrupam, se
identificam com representações coletivas, se dotam de instituições e de porta-vozes
autorizados a personificá-los e engendram, desta forma, corpos sociais que têm toda a
aparência de pessoas coletivas
25
.
Como veremos, e seguindo as indicações de Boltanski, ao reconstruir alguns traços da
história da categoria ‘defensor de presos políticos’ proponho apresentar todo o trabalho
simbólico de definição que acompanha a formação deste grupo. Desta perspectiva é possível
compreender que a atual categoria ‘perito’ em direitos humanos não é mais do que o produto
reificado de uma série de lutas pela definição e redefinição de um grupo social.
22
Neiburg e Plotking, 2004.
23
Entre a abundante literatura sobre os intelectuais da esquerda destaco o trabalho de Sigal, 1991, Sarlo 2001,
Altamirano, 2001 e Terán, 1991.
24
Boltanski, Luc. 1982.
25
Boltanski, L. op.cit.
20
Se os interesses formulados em minha dissertação de mestrado a respeito do sentido
do apelo aos vínculos de sangue com as vítimas na constituição do movimento pelos direitos
humanos e na formação da categoria ‘vítima do terrorismo de Estado’ possibilitaram que me
mantivesse próxima à tradição antropológica relativa aos estudos sobre parentesco, família e
formas de classificação social, o deslocamento para o universo dos advogados defensores
colocou-me de vez perante um campo disciplinar completamente alheio: o direito. Ao tentar
me familiarizar com este universo por meio da leitura de trabalhos acadêmicos sobre a sua
história na Argentina, pude constatar, nos inícios desta pesquisa, a escassíssima produção
científica sobre este universo profissional. Para nenhum dos períodos examinados pude contar
com literatura que abordasse grupos, relações, tradições, exceto alguns ensaios e relatos
testemunhais dos próprios advogados, professores de direito e juízes. A atenção da sociologia
e da antropologia tem se concentrado quase exclusivamente no tratamento do delito e dos
presídios como dispositivos de poder
26
. Mais próximos à minha área de interesse são as
publicações do historiador Mauricio Chama sobre a participação dos defensores de presos
políticos nas mobilizações da esquerda revolucionária dos anos setenta
27
e os de Laura
Saldivia e Roberto Sabba, ambos advogados interessados em compreender as condições de
possibilidade de um direito de interesse público na Argentina
28
. A história da formação em
direito também tem sido monopolizada pelos relatos produzidos pelos próprios juristas
29
.
Mesmo assim, ela apresenta vazios notáveis visto que os autores começam, invariavelmente,
pelo direito indiano e finalizam em 1910, quando culmina o período de codificação do direito
(sanção do Código Civil, Penal, etc.). No máximo, alguns destes trabalhos chegam até o
chamado Movimento pela Reforma Universitária (1918). Estas histórias tão destacam de
maneira abstrata a sucessão de correntes jurídicas e filosóficas que orientaram a formação dos
profissionais do direito no século XIX
30
. Em nenhum caso oferecem uma história social da
especialidade.
26
Uma valiosa exceção a esta linha de pesquisa é o trabalho do historiador Juan Manuel Palácio, orientado a
reconstruir as práticas dos juizes de paz no interior do estado de Buenos Aires. Em: Palácio, 2004. Sobre as
questões ligadas à administração da justiça, as demandas sobre a necessidade de controlar o funcionamento da
policia ou reformar o poder judicial podem ser consultados os valiosos trabalhos de Sofia Tiscornia e Maria
Vitória Pita. Ver especialmente Tiscornia, 2004 e 2006.
27
Chama, Mauricio. s/d. inédito e 2000.
28
Saldivia, 2002. Sabba, 2000.
29
Uma exceção a constitui os valiosos trabalhos do historiador Eduardo Zimmermann sobre o ensino do direito a
fines do século XIX. Zimmermann, 1999, 1998 e 1999ª.
30
Uma importante exceção constitui o livro do jurista Alberto Leiva a respeito do fórum de Buenos Aires, ainda
que das mais de 400 páginas, só 11 estão dedicadas à primeira metade do século XX. Em: Leiva, 2005.
21
Neste contexto, é importante salientar que esta tese visa a examinar tão um
segmento da profissão jurídica. Não pretende converter-se numa reconstrução da totalidade do
campo do direito na Argentina e das suas transformações. Apenas a intenção de concentrar
neste fragmento profissional significou uma árdua e trabalhosa tarefa de reconstrução de
fontes documentais primárias sumamente diversas e dispersas
31
. Neste sentido, vale a pena
salientar que vários dos aspectos significativos deste campo não receberam minha atenção.
Um deles refere-se às associações profissionais, seus momentos de criação, os grupos que as
fundaram e controlaram e as relações entre eles e os profissionais do direito aqui examinados.
Um outro refere-se às demais opções profissionais disponíveis para quem possui um diploma
de advogado, como poderia ser o fato de ingressar a grandes estudos profissionais dedicados
ao direito de negócios ou, especialmente, ao ingresso à carreira judicial.
Tampouco coloquei no centro da minha pesquisa os escritórios jurídicos aos quais
pertenciam estes advogados, o que, sem dúvida, constituiria uma estratégia particularmente
produtiva na hora de identificar a formação de sociedades ou alianças aparentemente
impensáveis (como, por exemplo, o escritório formado por Genaro Carrió, reconhecido
especialista em direitos humanos com uma importante trajetória internacional, sócio de
Laureano Landaburu, Ministro de Justiça de um governo militar) e as possíveis redes de
sociabilidade constitutivas destes escritórios (relações de parentesco, estudantis, etc.). Outra
dimensão que não recebeu atenção são os profissionais do direito engajados com a criação dos
fundamentos jurídicos das respectivas leis repressivas e as diferentes políticas de Estado
relativas à repressão do ‘comunismo’, ‘da subversão’, ‘da guerrilha’. Este é um universo
também formado por advogados, juristas e professores de direito que, em alguns casos,
participam destas ações na sua condição dupla de profissional liberal e integrantes das forças
armadas
32
. Neste sentido, o exame das trajetórias destes indivíduos seria extremamente
importante na hora de situar melhor aqueles que se engajaram na causa dos direitos humanos.
Outra dimensão que não consegui tratar devidamente e que mereceria ser desenvolvida
em futuras pesquisas refere-se aos vínculos entre os advogados defensores e seus defendidos.
31
Mesmo que sejam muitos os estudos dedicados às biografias dos dirigentes políticos mencionados nos
diferentes capítulos da tese (especialmente os que foram ativos durante os anos trinta), são escassas as
referências ao trabalho que estes profissionais da política desenvolviam como advogados e juristas.
32
Neste sentido, um material documental de grande interesse identificado durante a pesquisa é o livro publicado
pelo advogado e tenente-coronel do exército Carlos Horacio Dominguez intitulado La Nueva Guerra y el Nuevo
Derecho. Ensayo para uma estratégia jurídica contra-subversiva publicado durante a última ditadura militar pelo
círculo naval. Em: Dominguez, 1980.
22
As relações ressaltadas nesta tese concentram-se principalmente naquelas que levam à
formação de rede de profissionais do direito tanto na esfera local quanto na internacional.
Minha atenção foi dirigida, quase exclusivamente, à perspectiva dos especialistas que formam
este universo profissional. As percepções dos defendidos a respeito do trabalho dos peritos em
direito, suas expectativas, o valor atribuído por eles ao direito e as diversas formas em que se
vinculam com estes profissionais receberam uma atenção secundária, ainda que possam ser
encontradas referências a estes assuntos nos diferentes capítulos, especialmente no 2.
Também não foi explorada em detalhe a percepção que os profissionais do direito não
engajados neste tipo de ativismo jurídico têm a respeito da maneira de exercer a profissão,
embora também se encontrem considerações a esse respeito no capítulo 2. Considero que a
tarefa de inscrever a atuação dos advogados defensores dentro deste quadro mais abrangente
de relações sociais que inclui dirigentes operários, militantes armados e parentes das vítimas,
permitiria compreender melhor como a prática jurídica define-se na relação entre os
profissionais e leigos, e na disputa entre a universalidade das normas jurídicas e a
particularidade das demandas de quem procura a intervenção dos especialistas
33
.
Em termos destas relações mais abrangentes, outras dimensões importantes na
compreensão dos processos de formação deste segmento dos profissionais do direito
engajados com a causa dos direitos humanos, e que mereceria uma atenção maior no futuro, é
o desenvolvimento do direito trabalhista, considerando que muitos destes profissionais se
iniciaram na defesa de presos políticos a partir da sua incorporação a grêmios e sindicatos.
Que implicações teve o processo de industrialização da Argentina na formação desta
especialização profissional? De que modo se relaciona o engajamento militante nos grêmios e
sindicatos com o surgimento de novas opções profissionais? Como incide a própria prática
destes profissionais engajados com a defesa dos direitos dos operários nas formas de
articulação da causa coletiva dos direitos dos trabalhadores? Para responder a estas perguntas
será necessário aguardar novas pesquisas.
Por último, a compreensão dos complexos vínculos entre os partidos políticos e as
possibilidades de articulação de um militantismo jurídico em defesa dos direitos humanos
exigirá também um exame mais detalhado das organizações partidárias as quais estes
33
Bourdieu, op.cit. A análise realizada por Lygia Sigaud do recurso à justiça do trabalho pelos trabalhadores das
plantações de cana de açúcar em Pernambuco constitui um estudo exemplar onde se percebe com clareza a
produtividade de uma pesquisa interessada em inscrever a atuação dos especialistas no conjunto de coerções
morais que são constitutivas das relações entre trabalhadores, patrões e sindicatos. Em: Sigaud, 1996 e 1999.
23
profissionais do direito pertenciam, ora para inscrever o engajamento com esta causa coletiva
no quadro dos interesses mais gerais que estes partidos estavam dispostos a assumir, ora para
compreender a marca desta forma de militantismo no repertório das ações que estavam
disponíveis para os profissionais. Em particular, seria interessante continuar explorando este
repertório de ações dentro do Partido Comunista, incluindo a formação de suas equipes
jurídicas, as estratégias utilizadas, os valores associados ao direito e a importância da
dimensão internacionalista na transmissão de saberes e na configuração de redes
transacionais.
Para a realização desta pesquisa foram implementadas diversas estratégias. Fiz um
levantamento dos arquivos documentais existentes em bibliotecas particulares, públicas e de
associações de defesa dos direitos humanos. Também revisei coleções de revistas e
publicações periódicas. Durante minha estadia de quatro meses em Paris realizei um
levantamento do material documental existente no Centre de Documentation pour le
dévélopement et la liberation des Peuples (CEDETIM/CEDIDELP) concernentes à atuação
dos profissionais do direito argentinos no exílio e à intervenção de juristas europeus nas
missões humanitárias na Argentina. Na hemeroteca de Sciences Po (Fondation Nationale des
Sciences Politiques) revisei as coleções de artigos publicados, principalmente pela imprensa
francesa, sobre os casos de denúncias de violações aos direitos humanos na Argentina desde
início dos anos sessenta até os oitenta. Na Argentina, examinei o arquivo documental da
Asamblea Permanente por los Derechos Humanos e várias coleções de publicações periódicas
e revistas que se encontram no Centro de Investigaciones de la Cultura de Izquierda
(CeDInCI). A Biblioteca del Partido Comunista foi especialmente útil para levantar material
documental sobre as diversas associações de defesa dos direitos do homem criadas nos anos
30 na Argentina. O Arquivo Oral da Associação Memória Abierta permitiu-me ter acesso a
várias entrevistas realizadas a defensores de presos políticos dos anos setenta. De um valor
inestimável foram as entrevistas que Laura Saldivia colocou à minha disposição e que
pertencem a seu arquivo pessoal.
A principal dificuldade encontrada na realização deste trabalho com arquivos foi a
impossibilidade de levar adiante a estratégia de pesquisa inicialmente desenhada, que
consistia em fazer a reconstrução do engajamento militante dos profissionais do direito
baseada nos processos judiciais de alguns casos exemplares. Para a minha surpresa, esta
pretensão chocou com uma disposição administrativa que determina a incineração de todos os
24
processos judiciais quando eles ultrapassam os dez anos. Enquanto uma recente resolução do
Tribunal Superior de Justiça obriga preservar os casos ligados às violações dos direitos
humanos que ocorreram durante a última ditadura militar, a possibilidade de encontrar casos
equivalentes para os períodos anteriores a 1976 se tornou praticamente nula como
conseqüência desta política de destruição sistemática dos processos.
Na justiça do Estado de Buenos Aires existe um departamento jurídico que preserva
alguns destes processos após serem submetidos a uma seleção. Mesmo assim, depois de fazer
a consulta de um arquivo judicial de uma cidade periférica (San Nicolas, distante a mais de
100km da cidade de Buenos Aires), percebi que os processos conservados não estão
catalogados nem indexados. São arquivados só pelo número da causa. Não existem guias nem
inventários analíticos. Fato que obrigaria ao pesquisador revisar, uma por uma, as extensas
prateleiras que cobrem boa parte do subsolo do prédio dos tribunais sem poder antecipar o
sucesso da tarefa. A intenção de percorrer o caminho inverso, isto é, procurar primeiro o
número da causa nas publicações especializadas que compilam sentenças judiciais, como a
Revista Jurídica La Ley, também não foi possível. As causas desenvolvidas na cidade capital
do Estado, por exemplo, não foram preservadas da destruição e é nima a possibilidade de
que estas publicações reproduzam sentenças de julgamentos realizados nos tribunais
periféricos do Estado.
A segunda dificuldade foi a impossibilidade de ter acesso aos arquivos privados. Os
defensores de presos políticos entrevistados reiteraram incansavelmente que as condições
impostas pela necessidade de se exilarem (ora nas regiões marginais do país, ora no exterior)
impediram-lhes de preservar os documentos dos seus escritórios que, além do mais, foram
freqüentemente destruídos por bombas. tive acesso ao arquivo privado dos parentes do
defensor de presos políticos Nestor Martins, mas este reúne tudo relativo ao seu
desaparecimento e não inclui material sobre seu próprio trabalho profissional. Também não
tive acesso aos arquivos da Liga Argentina por los Derechos del Hombre. Conforme
salientaram seus diretores, o arquivo não existe mais, depois de que seu escritório foi objeto
de sucessivos atentados com bombas.
Junto com a busca de materiais documentais, realizei entrevistas a advogados e
magistrados franceses que participaram de missões humanitárias entre 1975 e 1979: Louis
Joinet, Nuri Albalá e Philippe Texier. Na Argentina, entrevistei cerca de 12 profissionais do
25
direito ligados à defesa de presos políticos e à causa pelos direitos humanos. Todas estas
entrevistas foram realizadas nos seus lugares atuais de trabalho, com exceção de Susana
Aguad, Carlos Zamorano e dos parentes de Nestor Martins que entrevistei nas suas casas, e de
Pedro Galin que entrevistei num café. Dependências judiciais, escritórios da administração
pública nacional e gabinetes parlamentares foram os espaços pelos quais transitei ao longo
destas entrevistas. Significativamente, nenhuma delas foi realizada em escritórios
profissionais privados, o que confirma também o caráter das transformações operadas no
perfil destes advogados. Se, no início de suas trajetórias profissionais, eles se definiam por
sua oposição ao Estado, ao se tornarem hoje profissionais da política e/ou do direito dos
direitos humanos, tem ingressado no espaço estatal e são parte constitutiva do mesmo.
Se um dos meus propósitos é apresentar a participação destes defensores de presos
políticos dentro de redes de profissionais e ativistas, o modo em que foram se desenvolvendo
as entrevistas confirma a importância desta rede de pertencimento, que ela continua ativa
até hoje. Foi a primeira entrevistada, Haydée Birgin, quem, com muita generosidade,
proporcionou-me as vias de acesso aos demais integrantes da rede. Sua atual agenda contém
os dados completos dos trabalhos e telefones de contato dos advogados com os quais
compartilhou a defesa de presos políticos em meados dos anos sessenta, isto é, uns 40
anos. No início da pesquisa foi ela mesma quem se comunicou com os seus colegas para
pedir-lhes que me recebessem. A boa disposição da maior parte deles encontrava seus limites
na urgência e importância das tarefas por eles desenvolvidas. Aqueles que atualmente ocupam
os altos escalões da Secretaria de Derechos Humanos de la Nación não consegui entrevistar,
embora tenha mantido algumas conversas informais com Rodolfo Mattarollo, entre viagens ao
exterior e uma infinidade de outros compromissos públicos. Dificuldades de tempo se fizeram
sentir particularmente nos casos dos advogados com uma importante inserção na esfera
internacional, como Hipólito Solari Yrigoyen e Leandro Despouy. As condições impostas
pelo pertencimento à rede transnacional de peritos em direitos humanos constituíram
obstáculos importantes e, ao mesmo tempo, tornaram-se dados significativos a respeito das
rotinas impostas por este ativismo internacional. Esta mesma situação se repetiu em Paris com
os advogados e magistrados que tinham participado das missões de especialistas na
Argentina, a quem tive que insistir, ininterruptamente, até conseguir as entrevistas
pessoalmente nos breves espaços intersticiais entre uma missão e outra. Evidentemente, esta
dificuldade se relativiza na medida em que possibilita a compreensão das condições impostas
pela posição que ocupam estes peritos na esfera pública.
26
Junto a estas dificuldades agrega-se a minha posição de máxima exterioridade a todo
este universo. As possibilidades e limitações no acesso estiveram também definidas pelo fato
de não pertencer a uma família de advogados, de não ter um nome, não provir de uma família
reconhecida dentro do universo da militância, tampouco ser portadora de um laço de máxima
proximidade com as vítimas do terrorismo de Estado, como é o caso ‘dos parentes’. Esta
conjunção de exclusões, sem dúvida, estava na base de alguns dos argumentos em torno às
limitações de tempo dos potenciais entrevistados.
Os gabinetes de vários destes profissionais do direito exibem as marcas de seu
compromisso militante e de sua especialização. O escritório de Mario Landaburu, por
exemplo, continha os retratos de vários dos seus colegas desaparecidos após o golpe de
Estado de 1976. No gabinete de Rodolfo Mattarollo encontra-se uma foto na qual ele próprio
aparece retratado na sua condição de perito internacional, no centro de várias filas de soldados
que pertencem a grupos opositores e colocados à sua esquerda e à sua direita. A foto, que
retrata um momento no desenvolvimento da missão encarregada a Mattarollo, transmite o que
parece uma situação de máxima tensão, conflito e risco pessoal extremo, retratando a
fragilidade de um acordo de paz fundado nas armas e no tremendo esforço destes especialistas
por transformar em aliados grupos até então inimigos. Esta imagem sugere várias das
disposições que estão presentes neste perfil de advogado no início dos anos setenta: a
coragem, a valentia, o sacrifício e o heroísmo, qualidades que os inscrevem, como veremos,
numa sorte de aristocracia do risco.
Para finalizar, uma breve menção aos estudos sobre o movimento pelos direitos
humanos. Estes têm sido dominados na Argentina por duas principais linhas de pesquisa:
aqueles que aspiram reconstruir o horror da repressão de Estado e aqueles que, colocando em
dúvida a possibilidade de apreender, compreender e transmitir a experiência da violência,
buscam compreender os modos em que este trauma coletivo é atualmente lembrado e
transmitido às futuras gerações. Os primeiros surgiram imediatamente depois do fim da
última ditadura militar. Os segundos começaram a ser desenvolvidos no país no início dos
anos noventa. Ambas as perspectivas reconhecem um elemento em comum: sua extrema
afinidade com as próprias demandas do movimento de direitos humanos que,
coincidentemente, reivindica a memória, a verdade e a justiça. Reconhecendo a enorme
importância que todos estes estudos anteriores têm na compreensão do movimento pelos
direitos humanos na Argentina, o trabalho que aqui apresento visa a complementar este
27
valioso corpus de conhecimento e, talvez, contribuir para abrir novas linhas de pesquisa sobre
esta temática.
28
Capítulo 1
A invenção de uma causa
Um encontro entre notáveis e recém chegados ao direito e a política
29
1. 1 Introdução
Na esquina das ruas Paraná e Sarmiento da cidade de Buenos Aires, Antonio Cantor,
operário metalúrgico, foi detido pela policia e “... entregue à Sección Especial de Lucha
contra el Comunismo onde foi submetido a verdadeiras sessões de torturas (...)
presumivelmente numa delegacia da policia de San Martin [estado de Buenos Aires] (...)
perfeitamente equipada para a aplicação do tormento. Amarrado sobre uma mesa, desnudo e
cobertos os pés e as mãos de polainas e ataduras, sofreu durante horas a tortura da ‘picana’
elétrica em quanto pretendia-se arrancar delações de nomes e endereços de militantes
obreiros...”
34
.
O 30 de outubro de 1936 interveio seu advogado defensor, Samuel Shmerkin,
interpondo um recurso de hábeas corpus “…em favor de Antonio Cantor ou Kantor,
manifestando que este último encontra-se detido sem ordem escrita de autoridade competente
(...) desde o 22 de agosto próximo passado na Delegacia Central da Policia (...) por disposição
do Poder Executivo em virtude de um decreto de expulsão do país ditado em contra sua com
data 14 de julho de 1933, em conformidade com o artigo 2° da lei 4144”. Perante esta
apresentação, a Câmara Federal Criminal e Correcional da Capital rejeitou o hábeas corpus
entendendo que “não pode prosperar o recurso (...) em favor de um estrangeiro a disposição
do Poder Executivo si se encontra compreendido num decreto de expulsão do país (...) O
Poder Executivo, pela faculdade da lei 4144, pode proceder à expulsão do país dos
estrangeiros indesejáveis, quer dizer, dos que atentam contra a segurança nacional ou
perturbam a ordem pública” (Fallo N° 1509. Cámara Criminal e Correccional da Capital)
35
.
A nota publicada pelo periódico Defensa Popular reproduz a dramática denuncia
sobre o uso de torturas contra os opositores à ditadura e descreve o procedimento pelo qual,
34
Em: Defensa Popular. Ano 1. N° 8. 19.11.1936. Também se inclui seu nome numa listagem de ‘presos por ser
inimigos do fascismo’ publicada pelo mesmo periódico. A esquina onde se produziu a detenção fica numa zona
muito central da cidade, a poucos metros de onde se situa o Palácio dos Tribunais. ‘Picana’ é um termo nativo
que refere à ferramenta tipicamente utilizada nas fazendas argentinas para movimentar o gado. Por meio de um
implemento que é colocado no corpo e que conduz eletricidade, o animal obedece as ordens. Este instrumento foi
utilizado na tortura dos presos políticos aplicando-se no corpo descargas elétricas, especialmente nas zonas
genitais e na boca.
35
Em: Revista Jurídica Argentina La Ley. Bs. As. Tomo 4:380, 1936.
30
sob a acusação de ‘professar idéias comunistas’ Cantor tinha sido detido em 1933
36
. A
partir desta detenção, o Estado tinha iniciado sub-repticiamente as tramitações de
cancelamento da sua carta de cidadania, de tal modo que, quando ele foi novamente detido em
1936, foi considerado um ‘estrangeiro indesejável’ mesmo com mais de trinta anos de
residência no país.
Seu advogado defensor impugnou tanto a legitimidade desta atribuição quanto os
procedimentos referidos a sua detenção. Para Shmerkin, a detenção e aplicação da lei 4144
constituía uma violação aberta da lei enquanto Cantor era ‘um cidadão argentino’. “Um tal
decreto é evidentemente nulo. A lei, em tudo caso, não pode se aplicar mas que a estrangeiros.
O cidadão naturalizado, enquanto não seja despojado da sua cidadania, é equiparado ao
argentino nativo. Ao decretar a expulsão de Cantor no ano 1933, o Poder Executivo tem
incorrido num ato nulo”. Esta argüição foi contestada pelo Shmerkin reclamando um inquérito
judicial visando a identificar e castigar aos responsáveis da aplicação das torturas.
Os fatos relatados pela imprensa e definidos na sentença colocam em relação as ações
de três agentes sociais chaves da época: o Estado, os dirigentes sindicais anarquistas ou
comunistas e seus advogados defensores, e evocam um conjunto de categorias que, depois,
vão servir como referencia chave para denunciar os acontecimento de meados dos anos
setenta na Argentina: ‘ditadura’, ‘presos políticos’, ‘vítimas’ e ‘direitos do homem’. Esta foi a
retórica utilizada por quem assumiam publicamente a defesa desta causa. Um conjunto
heterogêneo de intelectuais, homens políticos e profissionais do direito conformaram espaços
associativos desde os quais estas situações foram traduzidas na linguagem pública como
violações aos ‘direitos do homem’. Nesta retórica, os ‘estrangeiros indesejáveis’ se
transformavam em ‘vitimas da ditadura’ ou ‘vitimas da reação’ e as ações do poder executivo
em resguardo da ‘seguridade nacional’ se converteram, então, em manifestações locais do
‘fascismo’. Em suas defesas diante os tribunais, os advogados faziam referencia as
sistemáticas violações ao ‘direito de asilo’, a rejeição sistemática dos recursos de ‘hábeas
corpus’ e a nulidade dos processos por incompetência da autoridade judicial que
36
Cantor era, então, dirigente do Partido Comunista argentino. Desde 1925 tinha integrado o Comitê Executivo
Ampliado. Suas atividades se desenvolviam numa semi-legalidade que desde o golpe de Estado de 1930, o
PCA tinha sido declarado ilegal na Província de Buenos Aires. Em: Comisión del Comitê Central del Partido
Comunista (1948).
31
caracterizavam à ‘ditadura’ surgida do golpe de Estado do 6 de setembro de 1930 contra o
presidente constitucional Hipólito Yrigoyen
37
.
Com o compromisso de denunciar esta situação e de exercer publicamente a defesa
dos ‘direitos do homem’, estes intelectuais, políticos e advogados se nuclearam e constituíram
diferenes espaços associativos como a Liga Argentina por los Derechos del Hombre (LADH),
o Comité Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo, a Organización Popular contra el
Antisemitismo, o Comité Pro Amnistia a los Presos y Exiliados Políticos de América, a filial
local do Socorro Rojo Internacional, o Comitê de Ayuda Antifascista e a Associación Jurídica
Argentina.
Partindo deste momento de fundação destas associações, neste capítulo me proponho
realizar uma descrição do universo de agentes sociais engajados com a defesa dos ‘direitos do
homem’ na Argentina dos anos 30. Para isso, vou delinear o perfil político e social dos
quadros dirigentes, as estratégias utilizadas na denuncia pública das violações aos direitos do
homem e o conteúdo dessas noções sob o que constituem estes direitos. Isso todo para dar
conta das condições que fizeram possível a invenção desta causa, colocando o foco na análise
das propriedades sociais dos seus militantes. Vou-me centrar no momento germinal no qual
foram criadas uma serie de associações civis que reivindicavam a defesa das ‘vítimas’ da
‘ditadura’ pouco tempo depois do golpe de Estado de 1930, entre elas, a Liga Argentina por
los Derechos del Hombre, a única que continua em atividade até hoje.
Um dos argumentos centrais deste capítulo gira em volta ao processo que possibilitou
o encontro entre notáveis e recém chegados ao direito e à política na complexa trama de
associações que simultaneamente se criaram à luz deste movimento. Vou colocar a ênfase no
processo que colocou a disposição desta causa a um conjunto de jovens profissionais carentes
de um capital de relações sociais herdadas num momento de forte incremento da matrícula
37
Hipólito Yrigoyen foi um dirigente pertencente ao Partido Unión Cívica Radical (UCR) que tinha chegado à
presidência da nação em 1916 como resultado da aplicação, pela primeira vez, da chamada ‘lei Sáenz Peña’ que
outorgava o voto universal e segredo aos varões adultos e punha fim a uma sucessão de governos conservadores.
Desde a aplicação desta lei, a UCR tinha presidido continuadamente o país até o golpe do ano 30. (Yrigoyen:
1916 a 1922, Alvear: 1922 a 1928 e Yrigoyen 1928 a 1930). Vale a pena salientar, no primeiro lugar que, os
limites da categoria ‘ditadura’ variam segundo quem a utiliza. No contexto deste capítulo, vou adotar o ponto de
vista da oposição incluindo também dentro da ‘ditadura’ ao governo do General Agustín P. Justo (1932 a 1938)
surgido do voto popular. No segundo lugar, mesmo que Uriburu levou a seu gabinete importantes dirigentes
conservadores e nacionalistas, num primeiro momento, teve o apoio dos dirigentes do socialismo assim como
algumas linhas internas dentro do próprio partido radical.
32
universitária que resultou na existência de ‘advogados sem causa’. Estes jovens graduados
irão se incorporar ao mundo profissional através do assessoramento legal a grêmios e
sindicatos que então, começavam a se multiplicar, como resultado das experiências prévias
trazidas pelos imigrantes europeus. Pela sua vez, se produziu uma aproximação paradoxal de
alguns notáveis a este universo habitado por trabalhadores e imigrantes. Proponho
compreender esta aproximação no contexto do tumultuado espaço político de princípios do
século XX quando, depois da sanção da lei de voto masculino segredo e obrigatório, se
transformaram as condições de competência pela representação e, as estratégias de
acumulação de notoriedade pública, deixaram de estar vinculadas diretamente à posse de
riquezas. Contra este pano de fundo, vou introduzir algumas das qualidades que irão
distinguir a estes profissionais do direito na esfera pública: o culto ao heroísmo, ao
desinteresse e ao sacrifício. Vou examinar também as implicâncias que isto teve nas formas
de fazer e pensar a política e o direito.
1. 2 A ameaça
A meados da cada de 30, um conjunto diverso de intelectuais, homens da política e
profissionais do direito consideraram a necessidade de atuar publicamente em contra de um
perigo que se estendia não sobre a Europa e América mas também sobre a Argentina: o
‘fascismo’. Diferentes setores da oposição coincidiram na denuncia pública da existência de
associações locais de inspiração nazi que tinham-se consolidado a partir do golpe de Estado
de Uriburu (1930).
33
Assim, o deputado nacional e futuro dirigente da Liga Argentina por los Derechos del
Hombre (LADH), Lisandro de La Torre, alertava desde o Congresso Nacional sobre “… o
perigo evidente que surge da organização ostensível destes núcleos nacionais, pequenos em
numero mas armados e militantes, que proclamam doutrinas autoritárias e guerreiras, de
origem estrangeiro, cuja implementação no país vai destruir as instituições da República…”
38
.
O paralelo traçado entre Europa e América era motivo para a ação imediata. No
primeiro número do periódico da LADH, o liguista Santiago Monserrat completava o
diagnóstico da situação assinalando: “América está em perigo. O Brasil tem caído nas pretas
fauces do fascismo. Benavides esta-se aproximando ao caminho de Getúlio Vargas. O
fascismo está à espreita. Esta estendendo a sua sangrenta garra a Chile. E nós, pode-mos
olhar impassíveis o que acontece perante as nossas próprias portas? Pode-mos olhar
indiferentes como a besta devora aos nossos vizinhos?”
39
Nesta retórica, a ameaça fascista provem não dos núcleos de prédica anti-semita
integrados por estrangeiros mas da própria encarnação do mal representada pelos grupos
dirigentes da época que tinham sido responsáveis do primeiro golpe de Estado contra um
governo democrático. Os periódicos escritos e dirigidos pelos advogados defensores e
dirigentes destas associações criadas ao calor desta luta contra o fascismo denunciavam
repetidamente: “... a violação sistemática da Carta Magna, da lei, dos princípios democráticos
e republicanos...”
40
.
Em consonância com esta prédica, um abaixo-assinado integrado por muitos daqueles
que logo iriam a se integrar à LADH um ano depois afirmava:
38
Em: Crítica. 22.12.1936. De La Torre foi advogado, dirigente político e parlamentar. Nesta intervenção no
senado se refere a Legión Cívica, uma sorte de milícia cívico-militar que cresceu graças a proteção do próprio
exército. Outro integrante da LADH vai descreve-la na sua proximidade com o Estado ao denunciar que seus
legionários eram instruídos militarmente nos quartéis do exército. De inspiração nazi, se dedicou a perseguir a
militantes sindicais e políticos opositores por meio de atentados nas sedes partidárias ou sindicais e o seqüestro e
assassinato de seus militantes. Nos seus regulamentos pode-se ler: “…a finalidade da LC é estar sempre pronta
para acudir em defesa da ordem pública ameaçada ou alterada quando assim o requer a autoridade nacional”.
Em: Cattaneo, 1939: 44.
39
Em: Derechos del Hombre. Año 1, número 1. 1938. Grifos meus. Vale a pena salientar que esta nota aparece
acompanhada da reprodução de um planisfério onde se destacam as zonas de influencia nazi no mundo
consignando as cifras de aderentes por país.
40
Em: Amnistía. Año 1. Nro. 1. Marzo 1936.
34
“El país vive uno de los momentos más peligrosos de su vida institucional
organizada. Un profundo desprecio por los principios de humanidad y una burla
permanente de los derechos del hombre consagrados en nuestras leyes
fundamentales, señalan la existencia de una corriente de ideas y principios
reaccionarios y fascistas que, de imponerse, colocarían al margen de la vida del
país a la inmensa mayoría de los habitantes y destruirían las expresiones más serias
de nuestra cultura”
41
.
Pela sua vez, o deputado e dirigente da LADH, Leônidas Anastasi definia a situação
posterior ao golpe de Uriburu como:
“una violación descarada de las libertades públicas. Hubo momentos (…)
en que conocimos verdaderos delirios constitucionales. De la inteligencia limitada
del dictador ‘de facto’ surgió la ley marcial (…) Sufrimos después estados de sitio
indefinidos, en que el ejecutivo ejercitaba facultades omnímodas. Atenuada la
persecución política continuó la persecución social. Los sindicatos obreros
vivieron y viven todavía en Estado de sitio permanente (…). La prensa vive
también su régimen de excepción (…) la libertad de opinión ha sido abolida. Los
procesos de desacato se han multiplicado y el régimen imperante quiere ahogar
toda censura”
42
.
A analogia com a Alemanha nazi era utilizada então pelo senador e dirigente da
LADH Mario Bravo quem, ao denunciar a ‘falta total de garantias constitucionais’ afirmava:
“Nós somos uma Alemanha nazi em pequeno (...) Aqui existe um pequeno campo de
concentração, menor, é lógico, que os da Alemanha. São os calabouços da Sección Especial
contra el Comunismo”
43
.
A importância de adscrever a esta luta contra o fascismo se revela, por exemplo, na
quantidade de notas publicadas no numero inaugural do periódico Derechos del Hombre:
41
Em: Defensa Popular. Año 1, N° 8. 1936.Grifos meus.
42
Em: Derechos del Hombre. Año 1, Número 1, 1938.
43
Citado em Andrés Bisso, 2001. Esta Sección Especial tinha sido criada por Uriburu em 1931. Era um
organismo policial em cujas dependências se seqüestrava, torturava e editava uma propaganda favorável ao
regime de fato. Vale a pena salientar que a analogia entre a situação Argentina posterior ao golpe de Estado de
1976 e o nazismo vai se constituir numa das estratégias retóricas chaves utilizadas pelos defensores da causa dos
direitos humanos para fazer a denuncia da ‘ditadurados anos setenta. Ao ponto de chegar a se consagrar a
categoria ‘campos de concentración’ para nomear os lugares onde se mantinha ilegalmente detidos aos presos
políticos na Argentina.
35
tanto a própria capa do periódico quanto o 35% das matérias estão dedicadas a testemunhar a
situação européia, especialmente a Guerra Civil Espanhola. Nos restantes artigos dedicados à
situação de América latina e da Argentina, é permanente o uso da retórica antifascista, como
se evidencia em algumas das citas anteriores. Retórica utilizada, em geral, pelos oponentes ao
golpe para denunciar a proscrição do Partido Comunista, a detenção de mais de cem
dirigentes do partido Unión Cívica Radical e os sucessivos fraudes e anulações de processos
eleitorais
44
. As eleições presidenciais de 1937, ano em que foi criada a LADH, tinham sido
classificadas pela imprensa nacional como ‘as mais fraudulentas da história’. Quem triunfou
para o governo do estado de Buenos Aires foi Manuel Fresco, quem ostentava no seu gaviente
retratos de Mussolini e Hitler.
Na perspectiva destes profissionais do direito, o perigo que representava ‘o fascismo’
punha-se em evidencia no dia a dia, em tanto mediante o eufemismo de promover o
‘saneamento social’ tinha-se implementado no país a prática regular da: “...prisão, a tortura e
a deportação que alcançou por igual a um ex presidente, ex ministros, senadores, deputados,
generais, militares, bombeiros, agentes de policia, médicos, advogados, estudantes e
trabalhadores”
45
. As repetidas detenções a dirigentes políticos e sindicais tinham alcançado
também aos advogados e futuros dirigentes da Liga Carlos Sánchez Viamonte, Alfredo
Palacios, Lisandro de la Torre, Mario Bravo, Gregorio Aráoz Alfaro, Arturo Frondizi y Lydia
Lamarque, entre outros
46
.
44
Como resultado dos contínuos fraudes, a UCR tinha adotado a abstenção eleitoral e alguns de seus dirigentes
se colocaram a frente de algumas tentativas de insurreição armada, entre eles, o futuro dirigente da LADH, Atílio
Cattáneo.
45
Em: Alerta contra el Fascismo y el Antisemitismo. Bs. As. 1. 21.09.1935. A denuncia da perseguição
política tinha, sem dúvidas, um substrato objetivo. Os dois máximos dirigentes da UCR estavam então excluídos
da política. Yrigoyen estava preso e M. T. de Alvear se encontrava no exílio. Os efeitos desta violência foram
extremos em muitos dos casos, como o de Hipólito Yrigoyen, quem sobreviveu três anos ao golpe de Estado,
como conseqüência das duras condições de detenção as que foi submetido na cadeia da ilha Martin Garcia.
46
En: Amnistía, Año 1, Nro. 1. Marzo 1936. Grifos meus. É preciso lembrar que esta ‘partição de águas’ não se
conformou tão claramente desde o inicio. Como assinalei no inicio do capítulo, dirigentes da LADH e do Partido
Socialista como Alfredo Palácios, enfrentado com o radicalismo, apoiaram o golpe de Uriburu. Inclusive secções
do PS e do próprio partido UCR integraram a coalizão de partidos conhecida como ‘Concordancia’ que levou o
General Justo a ganhar as eleições em 1932.
36
1. 3 O imperativo a atuar
Sobre a base deste diagnóstico sobre a situação nacional, intelectuais e dirigentes
políticos se aglutinaram em distintos espaços associativos com o propósito de acrescentar
forças de oposição ao ‘regime’. Durante eses anos, e sob as palabras de orden ‘pelo direito à
vida’ e ‘em contra da guerra’, se constituíram associações civis como a Liga Argentina por los
Derechos del Hombre, o Comitê de Ayuda Antifascista, orientada ao trabalho em favor do
‘direito de asilo em América e contra a lei de Residencia’, o Comitê Pro-Amnistía por los
Exiliados e Presos Políticos de América, dedicado a denunciar ‘todo procedimiento violatorio
das leis e dos direitos do homem’ e integrado por ‘figuras de destaque da vida política sem
distinção de credo nem de cor político’, o Comitê Argentino contra el Racismo y el
Antisemitismo, integrado por “homem livres, de idéias filosóficas e políticas muito diversas
[reunidos] para afirmar o respeito que essa coletividade [judia] tem direito como integrante da
nossa nacionalidade e com o propósito de denunciar publicamente a ‘infiltração nazi-fascista’
e evitar que o ‘anti-semitismo’ adquira a “…mesma monstruosa significação que nos países
totalitários”
47
, a filial local do Socorro Rojo Internacional que tinha por objetivo “…
organizar a luta contra a reação e o fascismo…”
48
e a Asociación Jurídica
Argentina que definia-se como uma associação orientada à realização de ações contra o
fascismo
49
e contra a guerra, e a Comisión Pro Abolición de las Torturas, criada para
‘proteger y atuar em casos de asilo político às vitimas do fascismo internacional”.
O relato sobre a detenção do dirigente Antonio Cantor, desenvolvido ao inicio do
capítulo, ilustra o fato de que exercer a defesa judicial dos presos políticos e sociais perante os
tribunais era uma das atividades centrais destes profissionais do direito engajados na luta
contra o fascismo.
Contudo, esta defesa requeria da ação comum no entanto a atuação diante os tribunais
tinha serias limitações: “... o corpo constitucional e legal democrático escrito se conserva
47
Actas del Primer Congreso Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo. Consejo Deliberante de la Ciudad
de Buenos Aires. Agosto de 1938.
48
Em: Socorro Rojo. Buenos Aires. 04.10.1932.
49
Em: Crítica. 22.12.1936. Identificados especificamente com a luta contra o anti-semitismo e o anti-fascismo,
se constituíram também na Argentina outras associações como a Organización Popular contra el Antisemitismo,
a Federación Sionista Argentina e a Solidaridad Internacional Antifascista.
37
formalmente intacto (...) mas, de fato, e para a maioria da população, as liberdades e garantias
democráticas já tem tempo que tem deixado de existir”
50
.
Desde a perspectiva de quem integravam as associações engajadas com a defesa da
causa anti-fascista, a conformação destas rede de profissionais do direito era uma questão
chave para levar a frente o processo. Para o integrante do Comitê Pro Amnistía de Presos y
Exiliados Políticos de América e futuro presidente da LADH Mario Bravo:
“... los abogados socialistas estamos en la tarea de organizarnos para actuar en la
justicia por la defensa legal de los centenares de presos obreros (...) nos
empeñamos en hacer cesar la atribución que la justicia ha reconocido al gobierno
de poder mantener privado de su libertad a un habitante de la nación tanto tiempo
como el que la policía necesita para arreglar los trámites de deportación”.
Assumir publicamente a causa dos seus defendidos era percebido como condição do
trabalho de defesa perante os tribunais entretanto os processos se originavam em motivos
‘políticos’:
“La adopción de típicas medidas de carácter fascista – registros de vecindad,
sindicatos ‘dirigidos’, hogueras de libros, secuestro de personas, decretos
colocando fuera de la ley al Partido Comunista (...) son la prueba concluyente de
que la reacción no ha de detenerse en escrúpulos legales si no se le opone por
parte de los partidos y agrupaciones obreras afectadas la firme decisión de luchar
contra el fascismo con todas sus fuerzas en un frente solidario
51
.
A proposta de criar um ‘único frente de oposição e de ajuda às vítimas da reação’
começou a ser ativada a finais de 1936 por quem formavam parte desta nebulosa de
associações engajadas com a derrogação das leis repressivas, com a causa anti-fascista, etc.
Dirigentes de várias destas associações convocaram a um Congreso de Unificación de las
50
Em: Amnistía. Año 1. Nro. 1. 1936. Nestes termos se referiram os advogados ao fato de que o país vivera em
condições de exceção e, em forma alternativa, baixo o império da lei marcial e do Estado de sitio (09.1930 a 06.
1931 e 06.1931 a 1932, respectivamente) A lei marcial é um estatuto de exceção por meio do qual outorgam-se
faculdades extraordinárias as forças armadas ou a policia na administração da justiça. Para justificar sua
aplicação, é costumeiro apelar à urgência de re-instaurar uma ordem perdida e a lentidão dos procedimentos
judiciais ordinários. Sob o império deste regime, normalmente exercem a lei tribunais militares ou se aplicam
processos sumários em julgamentos civis.
51
Em: Defensa Popular. Año 1. Nro. 8. 1936.Grifos meus.
38
Fuerzas de Ayuda y Defensa de los Perseguidos por la Reacción que fundava a sua
convocatória no fato de estar:
Convencidos de que una de las armas esgrimidas con mayor ímpetu por la
reacción es la detención y deportación de militantes políticos y sindicales de
oposición y comprendiendo la necesidad de impedir que por este medio se consiga
crear un estado de terror propicio al establecimiento de una dictadura sangrienta,
desembozada, los hombres abajo firmantes, pertenecientes a las distintas corrientes
ideológicas en que se divide la opinión pública independiente de la República, nos
constituimos en comisión provisoria para la convocatoria de un congreso nacional
a los efectos de la constitución de una única y gran organización que deberá
encargarse de la coordinación para la ayuda a las víctimas de la reacción (...)
Estamos convencidos que con la colaboración de todos estaremos en condiciones
de dotar a las fuerzas democráticas de un instrumento de defensa indispensable
ante el avance de las fuerzas regresivas que pretenden adueñarse del país”
52
.
Pela sua vez, o Comité Antifascista Argentino também convocou em 1936 a uma
‘grande concentração anti-fascista’ para ‘unificar a ação das entidades análogas na Argentina
num Congresso Antifascista Argentino’. A convocatória se fez extensiva a todas as ‘entidades
de ajuda, defesa, anistia e anti-fascistas’. Levando em conta este diagnóstico a respeito do
caráter universal do fascismo e suas vítimas, os integrantes do Comitê se consideraram
autorizados “... a formar um amplio frente comum contra o fascismo: da amplitude deste
surgiu a necessidade da nossa amplitude”
53
. Estes esforços por unificar os distintos frentes de
atuação não tiveram o resultado esperado. Contudo, pouco tempo depois, estes dirigentes que
advogavam por um frente comum se encontraram numa das instituições que protagonizariam
a defesa dos direitos do homem, a Liga.
A criação da LADH a fines de 1937, uma associação que continua ativa até hoje,
revela esta mesma intenção de aglutinar as forças progressistas’ num ‘frente comum’. A
imprensa de princípios de 1937 dava conta dos avances desta estratégia que suponha reuniões
entre os principais representantes dos principais partidos da oposição, o Dr. Eduardo Araújo
52
Em: Defensa Popular. Año 1. N°. 8. 1936. Grifos meus. Na Europa, já tinham-se formado vários destes frentes
anti-fascistas. No caso da Itália, por exemplo, se encontrava o Comitê Italiano Unitário para a defesa das vítimas
políticas do fascismo e o Comitê Nacional del Frente Único. Em Paris estava a sede central do Comitê
Antifascista Internacional.
53
Em: Contra-Fascismo. Año 1. N°. 2. 1936.
39
(UCR) e o Dr. Mario Bravo (PS), reuniões que se convocavam com o propósito de “... levar à
prática a organização da defesa dos direitos consagrados pela Constituição Nacional que,
nestes tempos tem sido menosprezados, tanto no que se refere aos movimentos sociais quanto
a atuação dos partidos políticos…”
54
. Este ‘frente comum’ que, em termos de seus
fundadores, não devia ter nenhum propósito eleitoral, resultou ser a Liga Argentina por los
Derechos del Hombre, criada o 20 de dezembro de 1937 e inspirada sobre o modelo de seu
par francês e em consonância com os propósitos que guiavam a esta associação: a luta contra
o fascismo e o anti-semitismo. No seu discurso como principal orador da assembléia de
criação da Liga, seu presidente, Mario Bravo, fazia referencia à urgência da situação e aos
propósitos da instituição assinalando que: “… a Liga se deve pôr em funcionamento com o
propósito de garantir o império da legalidade e deter o avance da reação...”
55
.
Vale a pena salientar o ênfase na falta de intenções eleitorais justamente num ano
marcado pela convocatória a eleições presidenciais e pelos esforços em conseguir alianças
partidárias. A despeito destes empenhos, os partidos Unión Cívica Radical e Socialista
competiram desde listas eleitorais opostas. Chegado ao fim a estratégia de abstenção eleitoral
praticada pelo radicalismo até 1935, eles obtiveram importantes triunfos eleitorais que
produziram uma drástica redução da representação socialista que, até então, tinha-se
beneficiado do abstencionismo radical
56
.
54
“El Dr. E. Araujo habló hoy con el Dr. Bravo”. Jornal Crítica. 24.02.1937.Grifos meus. Criada a Liga, o
Comité Pro Amnistia a los Presos y Exiliados Políticos de América se dissolveu.
55
Em: Jornal Crítica. 21.12.1937. Grifos meus. Ver em anexo 1, g. 111, a reprodução de um ofício da
LADH convocando a se afiliar à associação. Em: Clarinada. 1939.
56
Sobre as características deste período eleitoral, ver Romero 1994.
40
Na conformação da Liga se verifica esta aglutinação das lideranças dos principais partidos da
oposição num frente comum, sendo que o partido Unión Cívica Radical foi o que teve a maior
representação
57
.
TABELA N˚1: Número de integrantes da LADH por partido
LADH
N°
°°
° Integrantes x Partido
%
58
16 Unión Cívica Radical
47 %
11 Socialistas y Soc. Obreros
32%
4 Comunistas
12 %
2 Demócratas Progresistas
6%
1 Independiente
3%
TOTAL: 34 dirigentes
100%
Mesmo que qualquer afirmação sobre uma possível vinculação entre este período
eleitoral e a conformação de frentes de luta em defesa dos direitos humanos requeresse de um
maior apoio empírico, me interessa formular, a modo de sugestão, a proposição seguinte
referida à necessidade de explorar numa futura pesquisa as relações específicas entre as
57
A dificuldade para ter acesso aos arquivos documentais da própria LADH, já mencionada na introdução da
tese, tem me impedido, até hoje, conferir o grão de participação do Partido Comunista argentino na sua criação,
apesar dos inúmeras testemunhas que afirmam que a Liga foi criada pelo PCA. Dado que as testemunhas orais de
intelectuais, dirigentes políticos e de organizações de direitos humanos contemporâneos tendem a identificar em
forma automática a LADH com o Partido Comunista, de forma pejorativa geralmente, considero importante
situar estas afirmações como parte de uma perspectiva interessada por definir uma posição legítima dentro deste
campo de relações. Este ponto vai ser desenvolvido mais em detalhe quando, no capítulo 3, se descrevam as lutas
pela hegemonia dentro da APDH (1975) entre militantes que provem do comunismo e do catolicismo. Tanto
para A. Bisso quanto para S. Schenkolewski-Kroll, o Socorro Rojo e o Comitê para el Racismo y el
Antisemitismo também foram organizações colaterais do Partido Comunista Argentino. Pelo momento,
considero suficiente inserir a própria perspectiva dos integrantes da LADH de então a respeito da acusação de
serem comunistas: “Hay un grupo de personas que ante toda manifestación antifascista opinan de este modo: se
trata de una maniobra comunista (...) a este grupo pertenece la policía”.Periódico Contra Fascismo. Año 1. N°. 1.
Abril de 1936. Como tentarei mostrar neste capítulo, com independência do grão de participação do PC na
criação da LADH, a enorme quantidade de espaços associativos descritos é um indicador da necessária
participação de figuras não necessariamente restritas à militância comunista ou de origem estrangeiro.
58
Esta tabela responde à composição por partido das lideranças da LADH no momento da sua criação. Foi feito
sobre os dados de filiação partidária de 34 liguistas integrantes da Junta Ejecutiva Nacional e do Consejo
Consultivo sobre um total de 40. Não disponho de dados sobre seus militantes nem aderentes.
41
lideranças engajadas numa associação como a LADH e as posições ocupadas por estas
lideranças ao interior de seus respectivos partidos políticos de pertença, como também as
posições ocupadas pelos distintos partidos que conformaram esta coalizão dentro do espaço
público. Trata-se de identificar neste contexto o sentido da adesão a uma forma militante de
exercer o direito no contexto das oportunidades abertas ao exercício da política profissional.
Segundo Andrés Bisso e Silvia Schenkolewski-Kroll, a participação de dirigentes do
Partido Comunista neste tipo de frentes tinha como propósito seguir as diretivas emanadas
desde Moscou a respeito da necessidade de realizar ações coordenadas “… ao margem dos
partidos ... e que aglutinassem sob um mesmo teto aos partidos proletários e burgueses de
modo de alcançar uma influencia muito maior que a alcançada pelos partidos e organizações
sindicais existentes”
59
. No contexto de proscrição no qual funcionava o PCA desde 1930, a
integração destes frentes respondia também à possibilidade de dotar de respeitabilidade ao
partido e de oferecer a suas lideranças um espaço para a atuação pública. Isto verifica-se
especialmente no caso do Socorro Rojo que, a partir do golpe de 1930, modificou
radicalmente sua estratégia de atuação, dedicando-se completamente ao auxilio jurídico e
material aos militantes comunistas argentinos e suas famílias
60
.
Os principais quadros dirigentes que se integraram à LADH provinham da UCR e do
PS. Ambos os partidos tinham sofrido fortes lutas internas durante este período, originadas na
maior ou menor disposição de suas lideranças a colaborar com o governo do General Justo.
Algumas destas disputas conduziram à excisão do PS, a partir da participação de alguns dos
seus dirigentes no governo de Justo. A participação da UCR na competição eleitoral tinha
significado uma míngua significativas nas bancadas parlamentares para o PS. Segundo com
Juan Godio:
“El PS se había beneficiado coyunturalmente con su postura de avalar la exclusión
de la UCR del sistema político. En las elecciones legislativas de 1931, el PS gana
la mayoría en la Capital Federal y la primera minoría en la provincia de Bs. As.,
transformándose en la primer fuerza opositora. También logra un rápido
aumento de adherentes, pasando de 12.011 en 1930 a 23.030 en 1932”
61
.
59
Estes eram os lineamentos adotados pelo PC e expostos por J. Dimitrov em: “El frente único de la clase obrera
contra el fascismo”. Biblioteca del Partido Comunista Argentino.
60
Em: Bisso, 2001 e Schenkolewski-Kroll, 1999.
61
Em: Godio, 1989: 42.
42
Outras lideranças que também tinham participado da LADH migraram em seguida a
outras opções oferecidas pelo exercício da política profissional quando o peronismo chegou
ao poder (notoriamente foi o caso de Bramuglia). Dentro da UCR, enquanto algumas das
lideranças integravam a Concordancia, que permitiria ao general Justo ganhar as eleições
nacionais, outras, como o liguista Catáneo, confabulavam através de uma revolta armada que
dera fim ao ‘poder usurpador’. Um percurso rápido pelas lideranças radicais incorporadas à
LADH evidencia que elas não tinham então uma posição de dominância dentro do partido.
Sugiro que a participação de dirigentes e profissionais do direito que pertenciam a
estes partidos, notoriamente o Partido Socialista e a Unión Cívica Radicao, estava diretamente
ligada à possibilidade de criar espaços de atuação pública e profissional que não
necessariamente tinham consenso dentro dos seus partidos de pertença nem tinham muita
afinidade com as linhas de ação que estes definiam para seus militantes. Para lá dos partidos e
no interior destes frentes, estes profissionais do direito podiam levar à frente, com maior
facilidade, um tipo de engajamento público a partir do qual se fazer de um nome e ganhar
notoriedade pública, iludindo as limitações impostas pela subordinação à política partidária. A
focalização nestes espaços associativos permite identificar também os vínculos entre
impensáveis, como são os casos de advogados que pertencem à UCR que atuaram em defesa
de militantes do PCA, um partido que tinha qualificado ao governo de Yrigoyen como um
aliado do imperialismo britânico. Eludir as diretivas dos partidos fez do fato de pertencer a
estas associações, um ato de indisciplina que mereceu a aplicação de sanções, como se coloca
em evidencia no ‘chamado de atenção’ que receberam ‘os advogados filiados ao Partido
Socialista por prestar seus serviços profissionais ao assim chamado Socorro Rojo
Internacional’ (XXI Congreso ordinário: 932).
Estas sanções que verificam-se também para os demais períodos históricos
trabalhados nesta tese estariam dizendo alguma coisa a respeito do modo em que estas
associações intervinham na competência com os partidos políticos e com os sindicatos pela
representação dos interesses dos cidadãos. Neste contexto, pode-se entender a reação da
Confederación General del Trabajo (CGT) quando em 1933 criou-se, no interior do PS, um
‘Comité de Defensa Obrera’ integrado por deputados socialistas e advogados que assumiriam
a defesa legal dos operários detidos pela sua militância sindical. Segundo Godio “a CGT não
43
viu com boa cara a formação deste Comitê no entanto existia um comitê similar dentro da
organização sindical”
62
.
Estas sugestões não minimizam a importância de considerar as implicâncias desta
opção por um militantismo experto. Si, desde a perspectiva de Andrés Bisso, estes frentes
constituíam essencialmente alianças transitórias que se propunham substituir aos governos
reacionários e anti-democráticos entronizados no poder, não é menos verdadeiro que esta
explicação instrumental sobre os princípios de movimentação associativa, nada diz sobre as
particularidades desta atividade militante baseada no direito, cuja aparição não tem nada de
natural. As conseqüências da intervenção do direito como principio de adesão e representação
da atuação pública, tanto no campo da política quanto do direito, precisam ser explicitadas.
A conformação destes espaços supõe a participação de dirigentes políticos e
profissionais do direito nucleados ao redor de uma causa comum, a defesa dos direitos do
homem e que faziam uso de um saber experto, o direito, como ferramenta de intervenção no
espaço público. Estes espaços não são uma convocatória às forças da oposição por parte de
políticos profissionais, mas supõem, especificamente, a formação de um segmento da
profissão jurídica diretamente ligado à promoção e defesa de uma causa comum e coletiva, os
direitos do homem. Uma conjuntura histórica como a descrita nestas páginas possibilitou a
articulação entre um conjunto de projetos militantes associados à recuperação da
institucionalidade democrática com o valor outorgado por estes advogados e dirigentes
políticos a um saber profissional que lhes permitiu intervir na defesa das vítimas do Estado de
sitio e da lei marcial. Vou apresentar a continuação, as implicâncias que tem esta forma de
ativismo político.
62
Em: Godio, op.cit. Vale a pena fazer um breve resumo do modo em que os anarquistas perceberam este
engajamento dos parlamentares e profissionais do direito socialistas engajados com a causa dos trabalhadores.
Enrique Del Valle Iberlucea, por exemplo, era qualificado como “… inexperto de las realidades de la vida,
recién salido de la facultad, sin haber conocido del trabajo manual otra cosa que la faz referente a la ocupación
de las mucamas y cocineras cuyas manos habrá admirado a través de las persianas de su gabinete de hombre
estudioso” Em: La Protesta, 1094 cit. Em Suriano, 2000.
44
1. 4 Defender a causa através do direito
Enquanto a causa anti-fascista reunia aos setores da oposição ao ‘regime’, o que
distinguiu às organizações como o Comitê contra el Racismo y el Antisemitismo, o Comitê
por la Amnistía, o Socorro Rojo ou a própria LADH foi a reivindicação explícita da causa
pelos direitos do homem. Ao igual que seu par francês, a LADH teve, desde a sua criação, um
serviço de assessoria jurídica, o que a diferencia dos outros frentes da oposição, justamente
pelo fato de fazer uso de um saber profissional e experto como ferramenta de intervenção na
esfera pública.
O ativismo jurídico assumido pelos integrantes das associações civis mencionadas
anteriormente supõe a articulação de uma multiplicidade de espaços e ações. Advogar perante
aos tribunais era uma parte do trabalho que estes profissionais desenvolviam na defesa dos
casos judiciais. A conformação de serviços de assistência jurídica, a realização de comícios e
manifestações públicas e a organização de uma imprensa específica relativa aos processo
judiciais são peças chaves na conversão de um processo judicial numa causa pública. Estas
ações supõem a disponibilidade de um repertorio de recursos específicos para a defesa e para
o exercício da representação do caso perante o Estado.
Nos estatutos destas associações se encontram as lideranças nucleadas em torno a
propósitos comuns e recorrentes: alcançar a) a “coordenação para a ajuda moral, material e
jurídica dos militantes políticos e sindicais perseguidos”, b) a “anistia amplia de todos os
processados e condenados por delitos políticos ou sindicais ou por delitos comuns produzidos
em defesa de direitos essenciais”, c) a derrogação da lei 4144”, d) a ‘libertação imediata
de todos os presos sociais sem processo’ e f) ‘um tratamento adequado para os presos
políticos e sociais’
63
. O Comité Pro Amnistía de Presos y Exiliados Políticos de América
também se propunha os mesmos objetivos:
“a) obtener de los organismos legales la más amplia amnistía de los desterrados y
presos políticos, b) reivindicar el legítimo derecho de asilo garantizado por nuestra
Constitución y anulado por la policía, c) repudiar todo procedimiento violatorio de
las leyes y de los derechos del hombre, d) promover una corriente de opinión
63
Em: Defensa Popular, Año 1, 1936.
45
contra las prisiones ilegales, la Ley de Residencia, los confinamientos en las
cárceles, los prontuarios simulados, los actos de terror y tortura (...), e) propender a
un trato humano para los detenidos en movimientos de agitación, que los presos
políticos no sean considerados delincuentes del orden común y f). organizar la
ayuda jurídica y financiera a los exiliados y presos políticos y sus familias”
64
.
Se esta posição no espaço público permite compreender a recorrência de fines e
propósitos nos estatutos das diferentes organizações, o fato da sua enorme multiplicação e
segmentação é todo um paradoxo. As convocatórias à formação de um único frente não
tiveram o resultado esperado. O Comitê Antifascista, por exemplo, rejeitou o convite do
Comitê organizador do Congreso de Unificación de las Fuerzas de Ayuda y Defensa de los
Perseguidos por la Reacción sobre a base que: “... o comitê Antifascista Argentino tende a ser
um órgão especializado nos assuntos estritamente ligados com o fascismo, não se restringindo
à denuncia das repressões anti-populares mas estabelecendo na Argentina um centro de
estudos sobre o assunto”. Estas lutas, apresentadas na linguajem da causa anti-fascista,
supõem, na verdade, um posicionamento dentro deste espaço associativo e partidário. As
declarações públicas, as ações empreendidas contra o Estado, tem atuado também como
signos que instituem critérios de distinção ao interior do universo mais próximo de pares.
Esta listagem de programas de ação exprime com clareza o fato que a estratégia
reivindicada por estes profissionais da política para intervir no espaço público foi o direito. A
partir deste recurso, as demandas se colocam diretamente em relação ao Estado. Adverte-se ao
Estado sobre a necessidade de sancionar e derrogar leis, dispor a liberdade dos detidos e
garantir os direitos dos mesmos. Ao articular este tipo de ação pública, estes profissionais do
direito estão fazendo do direito uma modalidade de aceso militante ao Estado.
1. 4. 1 Os serviços de assistência jurídica
Uma leitura das noticias dos jornais da época vai me permitir reconstruir a
intervenção dos integrantes da Liga e dos integrantes do seus serviço jurídico nos conflitos
sindicais da época, como foi o caso da greve dos trabalhadores da construção iniciada no mês
64
Estatutos do Comité pro Amnistía de Presos y Exiliados Políticos de América. Em: Amnistía. Año 1. N°. 1.
Março 1936. Grifos meus.
46
de outubro de 1937. O sindicato reclamava melhoras salariais no entanto obteve como
resultado imediato a detenção de vários de seus líderes e a clausura da sede do Sindicato
Obrero de Albañiles (pedreiros). A Federación Obrera de la Construcción reclamou então o
fim da ‘repressão policial’, a libertação dos ‘companheiros detidos’ e denunciou a intenção do
presidente de deportar as lideranças estrangeirais a seus países de origem “pretendendo
entregar às ditaduras de Mussolini e Hitler aos mais abnegados dirigentes da construção (...) e
colocando um precedente perigoso contra as liberdades garantidas pela Constituição
Nacional”
65
.
Os trabalhadores – definidos pelo sindicato não por referencia a sua militância sindical
mas pela sua condição mais neutra de serem ‘homens de trabalho’ e ‘pais de filhos Argentinos
que contribuíram com o seu esforço ao engrandecimento do país’ – receberam o 19 de
outubro a aplicação da Lei de Residência pelo fato de considera-los uma ameaça às
instituições da República
66
. Guido Fioravanti, Secretário General de la Federación, Pedro
Fabretti, Pro-Secretário General del Sindicato de Albañiles, Emilio Fabretti, integrante da
Comisión Administrativa do Sindicato, José Pieruccioni, Pró-Secretário da Federación, Pablo
Mailing, Mario Pino e Felipe Beli foram submetidos às disposições do decreto 116.854,
assinado pelo então presidente da nação, o general Agustín P. Justo e pelo seu ministro do
interior, Dr. Alvarado. Uma vez que o decreto ganhou publicidade, as diferentes repartições
do sindicato entraram em greve convocando a toda a sociedade à luta pela ‘defesa dos direitos
lesionados nas pessoas dos trabalhadores detidos’. Os dirigentes da Federación consideraram
a aplicação da lei 4144 como uma arma de extorsão nas mãos da ‘reação’ para não negociar
suas demandas.
Pela causa da liberdade dos detidos se movimentaram diversos agentes e grupos. Uma
comissão de ‘mulheres dos prisioneiros’ foi criada para reclamar a igualdade no tratamento a
nativos e estrangeiros, uma igualdade baseada na condição de ‘pais’ dos deportados. Estas
65
Estes sucessos foram reconstruídos sobre a base das notas dos jornais publicadas pelo jornal Crítica durante os
meses de outubro, novembro e dezembro de 1937. Esta greve foi precedida por uma outra de mais de 90 dias em
1935. Então, se constituiu a Federación Obrera de la Construcción, um dos sindicatos mais importantes do país
(em 1940 tinha uns 50.000 afiliados). Em 1937, a Confederación General del Trabajo (CGT) se tinha
reconstruído com predomínio de socialistas e comunistas. A celebração do 1ero. de Maio de 1937, se constituiu
num verdadeiro ato de oposição ao governo de Justo com a participação de radicais, democratas progressistas,
socialistas e comunistas Em: L. A. Romero. 1994.
66
A lei 4144 chamada ‘de residência’ foi criada em 1902 e se manteve vigente no país até 1958 quando foi
derrogada por uma disposição presidencial de Arturo Frondizi, justamente um dos criadores da LADH. Para uma
análise desta lei, ver Oviedo, I. 1976 e Giorlandini, 1986.
47
comissões de parentes se constituíram no interior de associações como a LADH com o
propósito de contribuir a organizar a ajuda material aos presos. O Socorro Rojo teve uma
Comisión de Ayuda y Atención de los presos y sus familias
67
. A presença destas mulheres na
imprensa nacional fazendo apelo ao vínculo do sangue com os detidos é um elemento chave
na constituição do atual movimento pelos direitos humanos e que já pode ser identificado
nestes anos trinta, e também nos sessenta (capítulo 2) mesmo que ocupando um lugar de
menor destaque que na atualidade.
Delegações de partidos opositores e parlamentares nacionais reclamaram publicamente
“… pelo fim das perseguições, o respeito aos direitos do trabalhador estrangeiro, contra as
deportações, pela vida e pela independência da organização sindical’. A própria Federación de
la Construcción levou a frente ações tendentes a convocar o apoio à causa da opinião pública
internacional enviando pedidos de intervenção ao presidente dos EEUU, Franklin Roosveelt e
a seu ministro de relações exteriores Cordel Hull, entre outros.
Em todos os comunicados ligados ao conflito sindical é notório como este aparece
colocado, não como um assunto que envolve a um grupo particular mas a toda a sociedade no
seu conjunto porém, aquilo que se coloca em jogo é o valor da democracia e a existência
mesma da República. Quem se assumem como lideranças do conflito, articulam uma retórica
que enfatiza os ‘direitos elementares da classe trabalhadora’ com outra que faz apelo aos
‘direitos e garantias elementares consagradas pela Constituição Nacional a todos os habitantes
do país’. Na data em que os dirigentes foram embarcados a Itália (31. 10. 37), a Federación de
la Construcción divulgou um comunicado reclamando pelo ‘direito de viver como homens
livres num país que se diz livre mas que na prática o desmente com vergonhosas deportações
de trabalhadores contra os quais não existe nenhuma imputação concreta”. A greve finalizou
nos inícios de novembro. O sindicato obteve o aumento salarial que demandara junto com o
compromisso de libertar aos detentos, mas eles foram desembarcados no porto de Nápoles e
conduzidos diretamente a prisão dois meses depois.
Em seguida da deportação, o 20 de dezembro de 1937, se constituiu em Buenos Aires
a LADH. Entre aqueles que iriam integrar a sua comissão jurídica se encontravam os
advogados de defesa que tinham assumido a defesa dos trabalhadores deportados. Samuel
67
Em Socorro Rojo. Año 1, 2da época. Número 6. 10.06.1932.
48
Shmerkin, também defensor de Cantor, o líder sindical cuja detenção detalhei no inicio do
capítulo, junto com o advogado e integrante da LADH Faustino Jorge, apresentaram inúmeros
recursos de hábeas corpus em favor dos detentos assinalando que suas detenções importavam
uma violação ao ‘direito de greve’ e ao ‘direito de asilo’. A apresentação de recursos de
hábeas corpus se explica porque os dirigentes sindicais se encontravam ‘detidos a disposição
do Poder Ejecutivo Nacional’ ao invés de estar submetidos a processo
68
. Esta situação fazia
parte das disposições da lei 4144 que dispunha que a deportação era uma faculdade
presidencial que não requeria, então, de intervenção judicial. Segundo denunciavam os
advogados, os hábeas corpus eram sistematicamente rejeitados pelos tribunais ‘com
argumentos fútis’ já que se argüia que os acusados carregavam armas no momento da
detenção ou que eram residentes estrangeiros aos quais lhes correspondia a aplicação da lei
4144. Os defensores denunciavam ‘a burla que se faz aos acordos internacionais que
estabelecem o direito de asilo’.
Todos estes conflitos foram incluídos entre as matérias que fizeram parte do primeiro
número do periódico da LADH. Desde as páginas deste periódico, os profissionais do direito
assumiram a defesa pública dos deportados, denunciando a aplicação sistemática de decretos
de deportação de ‘estrangeiros indesejáveis’ assinados pelo general Justo ao longo de seus
seis anos de governo. Estas deportações foram consideradas atos que violentavam o direito:
comprometia-se o direito de greve, a defesa em juízo, o asilo e o direito internacional. Nestas
mesmas páginas iniciais exigia-se ao poder executivo o cancelamento dos decretos de
expulsão impostos contra os trabalhadores do Sindicato. O periódico reproduz uma carta
enviada pela LADH ao então ministro do Interior do governo de Ortiz, Dr. Diógenes Taboada,
expondo o ponto de vista da instituição sobre a lei de Residência:
“La Constitución Nacional garantiza la libertad de asociación e, implícitamente, el
derecho de reunión. Así, las actividades sindicales no pueden caer bajo ninguna
inculpación de delito ni cualificar como ‘no deseables’ a las personas que lo ejercen. En
consecuencia, no es posible justificar la aplicación de la Ley 4144 a personas que
68
Este recurso costumava ser a primeira ferramenta utilizada pelos advogados defensores para localizar ao detido
e ganhar algum controle sobre suas condições de detenção, especialmente pela prática das torturas que
realizavam-se nas próprias delegacias da policia.
49
desarrollan actividades sindicales porque esto implicaría vulnerar los principios
sustanciales de nuestra Carta Magna”
69
.
Os advogados que militavam nestas associações denunciavam publicamente tanto as
ações repressivas do regime quanto as dificuldades as quais estavam submetidos no exercício
do seu próprio trabalho. Segundo o enunciam em Defensa Popular, “... é tão grande a
arbitrariedade que reina nas esferas policiais e judiciais que não é possível ter uma listagem
completa e acurada dos libertados e dos que ainda continuam nas cadeias”
70
. Também
denunciaram as argúcias implementadas pelo Estado para dificultar a defesa: com o propósito
de ‘desorientar’ ao defensor, eram freqüentes os traslados de presos ou o fato de ser tirados de
sua jurisdição: “Não existem fronteiras para o regime, os presos sociais são tirados da sua
jurisdição com o deliberado propósito de colocar obstáculos à atuação dos juristas do Socorro
Rojo Internacional”
71
. Nestas denuncias se apresentavam também os casos em que os mesmos
advogados eram submetidos a perseguições e detenções como aconteceu com Carlos Sánchez
Viamonte, Alfredo Palácios, Lisandro de la Torre, Mario Bravo, Gregório Aráoz Alfaro,
Arturo Frondizi e Lydia Lamarque, entre outros.
Conforme se desprende das denuncias publicadas na imprensa destas associações
civis, as lideranças políticas ou sindicais normalmente eram detidas por simples
contravenções ou chegavam a ser acusadas judicialmente por delitos de ‘instigar à rebelião’
por causa da manifestação pública de suas opiniões, por ‘atentar contra a liberdade de
trabalho’ nos casos em que tivessem participado de uma greve ou por ‘associação ilícita’ pelo
fato de pertencer a um partido político ou sindicato. No andamento dos processos, os
advogados denunciavam a detenção arbitraria, a falta de comunicação, a invenção de
sumários por parte da policia, os seqüestros, as invasões ilegais de residências, os roubos
produzidos durante as invasões, os traslados de presos fazendo uso de meios privados de
transporte (caminhões do frigorífico Anglo), a situação vivida pelas pessoas que
‘desaparecem sem deixar sinais e aparecem meses depois torturadas’, as condições inumanas
de detenção, os simulacros de fuzilamento, a obrigação de assinar declarações de suicídio, ou
o uso da ‘picana electrica’, etc. Nesta enumeração chama a atenção a similitude das ações
69
Una iniciativa de la Liga” Em: Derechos del Hombre. Año 1, N°. 1. Junio 1938. pág. 2. Nas páginas do
periódico Amnistía se denunciava a Uriburu pelas ‘deportações massivas ’ de trabalhadores e por fazer da Lei de
Residência uma sorte de “Estado de Sitio permanente contra os estrangeiros” Amnistía. Año 1. N°. 1. 1936.
70
Em: Defensa Popular. Año 1, N°. 8, 1936.
71
Socorro Rojo. Segunda Época, Año 1. 10.06.1932.
50
denunciadas por estes advogados e as ações denunciadas pelos advogados que atuaram na
defesa dos direitos humanos nos anos 80. Inclusive, o chamado ‘pilhagem de guerra’, quer
dizer, o saqueio das residências dos detido-desaparecidos pelas forças armadas também era
denunciado pelos advogados dos anos 30: “Sabia o senhor Ministro do Interior que os agentes
da Sección Especial se levam mais objetos dos ‘necessários’ quando fazem uma invasão de
domicilio (...) que são grossos, insultam e batem a trabalhadores, mulheres e filhos (...)?”
72
.
Nestas ações todas, os advogados engajados com a causa dos direitos do homem
reivindicavam a condição de ‘presos sociais’ ou ‘sindicais’ para os seus defendidos. Esta
categoria ‘presos sociais’ distinguia a seus defendidos dos simples ‘delinqüentes comuns’.
Nesta perspectiva, os integrantes do Comitê pro Amnistía de Presos y Exiliados Políticos de
América asseveravam: “... o detento é um preso em guerra de idéias mas jamais um
delinqüente e não pode ser tratado como tal”. Este universo classificatório compreendia
também a distinção entre a categoria ‘preso social’ e ‘preso político’. Esta última inclui a
quem, sem formar parte da classe operária, eram perseguidos ‘por expor suas idéias sociais e
políticas’. Todo eles, os ‘presos políticos’ e os ‘presos sociais’ quedavam incluídos sob a
categoria ‘vítimas da reação’. Desde o ponto de vista do Estado, as lideranças políticas e
sindicais detidas eram classificadas como criminais’. O reconhecimento destas categorias
fazia parte de uma luta mais abrangente por definir as formas legítimas de fazer a política na
Argentina dos anos trinta. Nestes combates, os profissionais do direito aparecem dotados de
uma competência técnica específica que os coloca no centro destas lutas de classificação.
Entre as ferramentas as quais faziam apelo os advogados de defesa se encontra a
possibilidade de transformar a instancia de julgamento oral num tribunal público a partir do
qual expor diante de um auditório às provas que demonstram a ilegitimidade do ‘regime’. Esta
estratégia foi utilizada no caso de um grupo de militantes acusados de professar ‘idéias
comunistas’. Neste julgamento, a equipe de advogados defensores realizou, em primeiro
lugar, a defesa política da causa dos acusados. Num segundo momento, se procedeu a sua
defesa técnica.
Estas duas instancias foram levadas a frente por distintos profissionais. Os advogados
que intervieram, no primeiro lugar, o fizeram explicitando a validade da causa pela qual
72
Em: Contra-fascismo. Año 1. Nro. 2. Agosto-septiembre de 1936.
51
militavam os acusados mediante um discurso inflamado em defesa do comunismo e de
denuncia do regime opressor. Esta denuncia incluiu a impugnação do próprio julgamento e do
tribunal acusatório por se tratar de: “…um simples ato de violência ordenado pelo Poder
Executivo e obedecido pelo juiz...”. Um destes advogados era Lydia Lamarque, uma das
primeiras advogadas do pais e integrante do serviço jurídico do Socorro Rojo. Finalizada esta
primeira fase, um advogado e jurista de prestigio, neste caso o jurista especializado em direito
penal e quadro da UCR e da LADH, José Peco, realizou a ‘defesa técnica’ dos imputados por
associação ilícita. Nesta segunda instancia da defesa, não se fizeram presentes elementos do
debate político. Pelo contrario, a neutralidade necessária ao exercício desta segunda função
foi salientada, o que se adverte nas palavras finais do alegado de Peco: ao se referir aos
imputados, ele destacava: “… trata-se de pessoas cuja grande honra admiro a despeito das
diferencias teóricas
73
. No caso de um companheiro de partido e integrante da LADH, o
mesmo Peco optou por utilizar esta estratégia de defesa política. Foi no processo ao Tenente
Coronel Atílio Cattáneo, imputado e preso por conspirar contra o governo de Justo. Neste
caso, a argumentação da defesa não foi técnica senão que esteve baseada na denuncia da
inconstitucionalidade do governo de Uriburu, surgido de um golpe de Estado, e na
ilegalidade do governo de Justo, nascido de comícios fraudulentos
74
.
A distinção entre estes tipos de defesa não é uma invenção nativa. Reconhece como
antecedente principal as recomendações formuladas por Lênin a um grupo de ‘camaradas’
presos em Moscou
75
. A defesa ‘política’, que consiste em impugnar o tribunal acusador e
defender a causa dos militantes é uma estratégia de uso recorrente entre os advogados que
pertencem ao partido comunista local e internacional. Um caso considerado modelar deste
tipo de defesa foi a que realizou o próprio Dimitrov perante os tribunais alemães pelo suposto
incêndio do Reichstag. A importância que os dirigentes locais do PCA e do Socorro Rojo lhe
atribuíram a este processo se evidencia no fato de ter sido reproduzido na integra nas ginas
do seu periódico. A difusão da própria atuação de Dimitrov evidencia que esta imprensa não
tinha como único propósito ‘informar’ e ‘denunciar’ mas também o de apresentar modelos
73
Em analogia com o caso exemplar de defesa política de Dimitrov, o periódico do Socorro Rojo reproduziu
também os alegados dos advogados defensores que intervieram nesta causa. Em: Socorro Rojo Internacional.
Octubre de 1932.
74
Uma reprodução do seu alegado pode-se encontrar em Atilio Cattáneo, 1939.
75
Em: Lenin “A letter to Y.D. Stasova and to the other cofrades in prison in Moscow”. 19. 01. 1905. Em:
‘Marxists Internet Archive’:
www.marxists.org/archive/lenin. O uso desta ferramenta na defesa é um indicador
da participação destes advogados defensores locais em redes internacionais. Como vai se ver no capítulo 2, este
recurso também estava disponível para os defensores de presos políticos dos anos sessenta e setenta,
evidenciando não só a importação desta estratégia mas também sua transmissão geracional.
52
exemplares de conduta. Consciente do valor do próprio alegado, no qual Dimitrov impugnou
o tribunal com dispensa de todo tipo de advogado, sobretudo do advogado de oficio do Estado
alemão, o incriminado afirmava: “Admito que a minha conduta perante o tribunal possa
servir de exemplo para todo acusado comunista”.
O engajamento com a causa antifascista não se restringia à atuação do advogado de
defesa nos estrados judiciais. A causa do seu defendido se integrava a uma causa maior que
supunha levar a frente uma série complexa de tarefas extra-judiciais que requeriam de tempo
e de organização, como se fez evidente no caso de José Persicoff, dirigente comunista a quem
tinha-se aplicado a lei 4144 em 1938: nas cartas entre o deportado e seu pai se coloca em
evidencia como, ao ser consultado por este, seu advogado defensor lhe indica as melhores
estratégias (estradas, etc.) de retornar à Argentina desde o seu exílio em Montevidéu e de
trabalhar sem ser incomodado (local de residência, atividade, redes de contato, de proteção)
76
.
O engajamento na defesa de presos políticos tinha a marca da urgência que obrigava muitas
vezes a ações que excediam completamente a disposição ao trabalho de um profissional do
direito que não estivesse comprometido ativamente com a causa do seu defendido: no caso da
deportação do intelectual boliviano Tristán Maroff, ao ser rejeitado o recurso de hábeas
corpus apresentado pelo seu advogado defensor, o liguista Rodolfo Aráoz Alfaro enviou as 12
horas da noite, e como último recurso desesperado, um telegrama ao endereço particular do
próprio ministro do interior. Em seguida, quando o trem transportando a Maroff a Bolívia
andava os últimos quilômetros dentro do território argentino, Aráoz Alfaro apresentou um
novo recurso de hábeas corpus no estado de Jujuy, a mais de 1500 km de distancia de Buenos
Aires. Esta disponibilidade para assumir a causa dos defendidos diante situações de
emergência que requerem de ações rápidas e decididas (a metáfora médica forma parte do
repertório retórico dos advogados) vai ser especialmente destacada também pelos
profissionais do direito nativos e estrangeiros que vão ser analisados nos seguintes capítulos.
Na tarefa de assumir este tipo de defesas se convocava a importantes figuras da
política nacional e internacional, integrantes alguns das próprias associações de defesa dos
direitos do homem, para assinar ‘documentos’, ‘abaixo-assinados’ ou telegramas solicitando e
apresentado pedidos de audiências a integrantes do poder executivo ou embaixadores
estrangeiros, com o propósito de lhes informar da situação dos detentos e exigir a sua
76
Em: Periódico Defensa Popular. Año 1, N°. 1. 1936.
53
libertação. Os abaixo-assinados, que convocavam a ‘lutar pela liberdade dos processados’ e a
organizar ‘comitês’ e frentes solidários’, estavam assinados por ‘doutores’ integrantes dos
comitês, comissões, organizações e ligas. Alguns destes também estavam assinados por
dirigentes de partidos opositores, representantes de centros de estudantes universitários,
escritores e intelectuais
77
. Estes manifestos e abaixo-assinados incluíam, ora os nomes de
consagrados, ora outros menos celebres. Para dar maior poder as assinaturas, costumava-se
colocar ao lado informações sobre os diplomas, por exemplo: “Dr. Carlos Sánchez Viamonte,
advogado” ou “Dr. Alfredo Palácios, professor universitário”. Uma revisão dos inúmeros
documentos deste tipo reproduzidos pela imprensa evidencia com muita força que trata-se de
um grupo relativamente restrito de pessoas que tem uma estreita proximidade. Quem assinam
são recorrentemente as mesmas pessoas.
No interior destes serviços jurídicos, se compilavam também minuciosos relatórios
sobre os distintos métodos de repressão implementados pela policia. Estes documentos
reproduziam também listagens com os nomes das ‘vítimas da reação’, todos eles qualificados
como ‘incompletos’ ou defeituosos’, dada a falta de informação oficial sobre a identidade de
cada uma das vítimas. A tarefa de completar, aperfeiçoar e ampliar as listagens se converteu a
procura de novos dados e a confecção de novos listagens, num trabalho constitutivo destas
mesmas associações: esta informação era imprescindível na hora de apresentar provas à
justiça, denunciar aos perpetradores da violência, demandar ao Estado e convocar a comícios
públicos em homenagem aos presos políticos.
78
Elaboravam-se também listagens com os
nomes de juizes, diretores de prisões e torturadores implicados nas causas dos seus
defendidos. Estes relatórios eram publicados pela imprensa das associações ou apresentados,
inclusive, perante ao parlamento nacional, como o fez o Socorro Rojo através da
representação da bancada socialista na ocasião na qual o Ministro do Interior Melo se
apresentou pessoalmente perante os parlamentares para fazer a defesa da continuidade do
77
Ver em anexo N˚ 2, pág. 112, uma reprodução da convocatória a um comício ‘contra a invasão nazi’ realizado
pelo Comitê contra o Racismo e o Anti-semitismo da Argentina, onde pode-se apreciar as formas de
apresentação destes profissionais do direito. Em: Periódico: Alerta! Contra el Fascismo y el Antisemitismo. Bs.
As. N° 1. 21.09.1935.
78
Ver no Anexo 3, pág. 113, a reprodução de um destes listagens aparecido no periódico Defensa Popular.
Entre os nomes incluídos encontra-se o de Antonio Cantor, o dirigente comunista detido que fora descrito no
inicio deste capítulo. Fazer listagens, completar-los, ampliar-los e depurar-los vai ser uma das tarefas chaves das
associações de direitos humanos que vão se constituir nos anos 80s e que vão ser analisadas no capítulo 3. A
participação de associações locais e internacionais de juristas nos anos 80 derivou num esforço enorme por
receber as denuncias, localizar casos não denunciados, compilar dados, unificar distintas listagens, distribuí-las
tanto dentro quanto fora do território, etc. Uma análise do processo social envolvido na tarefa de montagem das
listagens de vítimas do terrorismo de Estado pode-se ver em Vecchioli, 2001.
54
Estado de sitio (1936). A retórica utilizada nestes documentos coloca a ênfase na
‘objetividade’ das denuncias apresentadas diante da opinião pública através de ‘casos’ e de
‘cifras’ de detidos e perseguidos pelo regime. Trata-se de documentos baseados em
‘observadores imparciais’ e em ‘fontes’ pessoais, diretas e autorizadas.
79
Significativamente,
esta mesma retórica vai definir também o tom dos ‘relatórios’ elaborados por advogados
engajados com a causa dos direitos humanos que vão ser examinados nos restantes capítulos.
Melo é apresentado alternativamente, nesta matéria do jornal, alternativamente como
‘manhoso’, como ‘advogado de grandes empresas de navegação’ e como ‘professor da
Faculdade de Direito’: “...esta prática lhe facilita a adoção de uma mascara de ‘homem
decente’, de professor de ‘firmes convicções democráticas e liberais’”
80
. Outros profissionais
do direito e acadêmicos que ocupavam postos chaves no governo de Justo também eram
objeto de acusação, como no caso de Castillo, ministro e professor da faculdade de Direito
que “... desde a sua cadeira atacava aquilo que ele chamava ‘uma amplitude demais dos
benefícios das leis vigentes, pondo como exemplo de regulamentação [das leis trabalhistas]
nada menos do que as leis da Itália fascista”.
81
A resposta de Melo ao relatório apresentado pelos parlamentares socialistas foi
amplamente difundido pelo Socorro Rojo, acusado de ser uma associação de ‘proteção aos
delinqüentes’. Diante dos questionamentos sobre o uso de práticas ilegais na repressão, teria
declarado: “Sobe a tirania de Rosas, aos presos políticos se lhes tirava fatias das costas e hoje
não fazemos isso”.
82
Na sua apresentação diante ao parlamento, Melo tinha afirmado que o
direito de reunião tinha sido amplamente respeitado, que os instrumentos de tortura eram
coisa do museu, que os detentos estavam nas mãos de juizes e que o Estado de sitio não tinha
suprimido nenhuma liberdade nem nenhum direito, só o de atentar contra a Constituição.
Num perfeito contraponto com a atuação de seus oponentes, Melo fazia referencia às
leis de EEUU e acompanhou sua apresentação com uma listagem de vítimas de ‘atentados
comunistas’ junto com uma listagem dos responsáveis. Feita esta acusação, os advogados
79
Em: Socorro Rojo. 1936.
80
Em: Defensa Popular. Año 1. N° 8, 1936.
81
Em: Defensa Popular, Año 1, N°. 8, 1936.
82
Segundo se reproduz no discurso que pronunciara o liguista e senador pelo socialismo Mario Bravo. Em:
Amnistía. Año 1, N° 1. Marzo 1936.
55
integrantes das associações de defesa dos presos políticos apresentaram uma “… resposta
pública em salva-guarda de nosso prestigio pessoal e profissional...”:
“Nosotros abogados de las más diversas ideologías no podemos dejar de protestar
(…) mientras a nosotros se nos coarta el libre ejercicio de la profesión, hecho que
vulnera las más elementales garantías de nuestra Constitución (…). Mientras a
nosotros se nos coarta ese derecho hasta con el encarcelamiento de varios de los
suscriptos, los defensores de tratantes, expendedores de drogas y fabricantes de
sucesiones gozan de toda clase de consideraciones y hasta de privilegios” (ibidem)
Assinaram esta resposta Rodolfo Aráoz Alfaro, Faustino Jorge, José Peco y Samuel
Shmerkin. Todos eles se reencontrariam poucos meses depois na assembléia de criação da
LADH.
Estas intervenções indicam que o parlamento constituía para estes advogados um outro
espaço possível de luta. Assim, o deputado e liguista Leônidas Anastasi apresentou no
parlamento nacional um projeto de modificação da lei de Residência que propunha ‘mitigar o
poder absoluto do poder executivo’ propondo a intervenção da justiça federal e criando a
possibilidade de recusar os decretos presidenciais de deportação por parte dos afetados junto
com a obrigação de pôr a disposição do juiz às pessoas detidas pela aplicação da lei. Este
projeto, no seu artigo 4°, dispunha a impossibilidade de decretar a expulsão de estrangeiros
pelo simples exercício de atividades sindicais ou por manifestação de opinião nos casos em
que os trabalhadores estivessem casados com mulheres argentinas ou fossem pais de filhos
nascidos no território nacional. A ocupação deste espaço evidencia as aspirações destes
advogados de participar da política profissional junto com o valor atribuído por eles a uma
estratégia reformista de mudança social, na sua dupla condição de profissionais do direito e da
política.
83
Um outro espaço chave na difusão dos detalhes destes casos eram os comícios. A
ocupação das ruas se constituiu num espaço aonde exercer a defesa da causa dos presos
políticos. Parafraseando a Hilda Sábato, foi ali “…onde se levantou o tribunal da opinião
pública”. A importância deste tribunal foi destacada pelo advogado e liguista Carlos Sánchez
83
Como vai se ver no capítulo seguinte, esse caminho de ingresso à política profissional estava fechado para os
advogados defensores de presos políticos.
56
Viamonte durante o desenvolvimento de um processo contra um grupo de mulheres operarias.
Sánchez Viamonte, o advogado defensor, convocou na sua cidade natal, La Plata, a um
meeting com o propósito de “… exercer pressão na decisão judicial”.
84
A participação nestes
comícios, meeting e reuniões populares e palestras era uma atividade central do exercício
militante que estes advogados faziam do direito. Como pode-se observar na reprodução de um
cartaz de rua do Comitê contra el Racismo y el Anti-semitismo, se reuniam nestas ocasiões
advogados e dirigentes de distintas associações civis: os liguistas Aráoz Alfaro, Mario Bravo,
Arturo Frondizi participavam em meeting junto com dirigentes do Comitê Argentino contra el
Racismo y el Anti-semitismo, como Emilio Troise ou com integrantes da Organización
Popular contra el Antisemitismo, como Marcos Meeroff.
85
Estas ações supunham uma redefinição do perfil do advogado clássico, restringido a
advogar perante aos tribunais. E supõem, também, uma concepção mais abrangente da
participação política que não está restrita à atuação dentro dos espaços costumeiros da política
como os partidos e os sindicatos. A retórica centrada na vida republicana, os direitos
constitucionais e liberdades cívicas apontam a se colocar por cima dos diferentes interesses
que dividiam aos partidos e sindicatos. Aspirando a fazer de alguns processos uma causa de
interesse geral, as convocatórias a diversas manifestações e comícios destacavam a
pluralidade de oradores e a comunhão de todos numa mesma causa. Os profissionais do
direito ocupavam o centro destas tribunas, em tanto dispunham dos recursos apropriados para
fazer-lo (conhecimento profundo dos processos, capacidade de fazer uso público da palavra,
etc.). Como assinala Hila Sábato, esta ocupação das ruas da cidade está ligada à importância
da massiva imigração européia. Muitos imigrantes traziam uma experiência associativa
previa
86
. Os termos utilizados por esta autora para se referir à constituição da esfera pública a
finais do século XIX podem ser útil também para o caso apresentado neste capítulo:
“… se trataba de una forma de acción que pretendía representar el interés colectivo,
expresar a la opinión pública y colocarse, por tanto, fuera de las diferencias
partidarias que potencialmente dividían a la población de la ciudad. Se buscaba
84
Em: Carlos Sánchez Viamonte, 1971.
85
Ver Anexo N° 4, pág. 115. Em: Contra-Fascismo.
86
Este ponto vai receber um tratamento mais em detalhe na seção “uma causa internacional”.
57
materializar así al público: heterogéneo en su composición social, étnica, cultural
pero coherente y unificado en su actuación frente a determinadas causas”.
87
A capa do Socorro Rojo do mês de outubro de 1934 condensa muito bem o modo de
representar a causa anti-fascista, tal como ela foi descrita nesta seção: uma caricatura no
centro da capa reproduz a imagem do Ministro do Interior Melo ilustrando o propósito central
destas associações: fazer apelo ao Estado. Melo aparece situado diante à Seção Especial de
Luta contra o Comunismo, considerada pelos advogados defensores uma verdadeira ‘câmara
do terror’, principalmente pela aplicação de torturas aos detentos. A capa reproduz, também,
uma das palavras de ordem da época referida à aspiração de conseguir a condena aos
‘torturadores’. Ela aparece significativamente enunciada num cartaz levado pelos braços do
‘povo’ reunidos nas ruas. Todas estas cenas se desenvolvem no marco de um meeting em
defesa ‘dos direitos dos trabalhadores’.
88
1. 4. 2 A Imprensa dos direitos do homem
A organização destes periódicos e boletins, que reproduziam as denuncias sobre o
exercício da repressão do Estado, era uma parte central do trabalho destes profissionais do
direito que também definam-se a se mesmos como ‘jornalistas’ e ‘intelectuais’. Como pode-se
observar na enumeração das publicações que seguem, estes advogados consagraram boa parte
de seus esforços militantes a organizar, financiar e manter uma imprensa desde a qual difundir
as suas denuncias e opiniões. Entre as publicações que pude identificar no meu trabalho
dirigidas pelos advogados defensores de presos políticos se encontram: o Boletín del Comité
Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo (1938), Alerta! Contra el Fascismo y el
Antisemitismo (1935-1940), da Organización Popular contra el Antisemitismo, Derechos del
Hombre, da Liga, Contra-Fascismo, do Comité de Ayuda Antifascista (1936), Amnistía, do
Comité Pro Amnistía de Presos y Exiliados Políticos de América e Defensa Popular por las
víctimas de la reacción (1936), do Comité do mesmo nome
89
.
87
Em: Hilda Sábato. 1998: 275.
88
Ver Anexo N° 5, pág. 116. Em: Socorro Rojo. Octubre 1934.
89
Esta imprensa era financiada, em muitos casos, pelos próprios advogados defensores. Este é o caso dos 3000
exemplares de Amnistía que deram luz graças a doações pessoais de Mario Bravo, Leônidas Anastasi, Faustino
Jorge y Juan Goldstraj, entre outros. Em alguns casos, se publicavam em outras nguas, como o Socorro Rojo
que tinha uma versão em espanhol e uma outra em idish. Uma das formas ‘legais’ de perseguição a este tipo de
publicações era a de submeter-las a processos por ‘desacato às autoridades’. A proscrição ao Partido Comunista
58
Esta imprensa se ocupava caracteristicamente de reproduzir documentos relativos à
ações repressivas a escala nacional e internacional. Nas suas páginas se transcrevem e
recolhem listagens de presos e denuncias sobre os casos de civis ‘fuzilados sem processo’,
‘condenados pelos conselhos de guerra’, ‘confinados’ em cadeias sob condições inumanas
como as de Ushuaia (Tierra del Fuego), ‘deportados’, ‘expulsos’ da universidade, tanto na sua
condição de estudantes quanto de professores e suspensos nas suas funções pelo encerramento
de sindicatos, universidades e periódicos por causa das suas ‘idéias políticas e sociais’. Em
volta a estas figuras se definia a categoria ‘vítima da ditadura’, o que incluía também os casos
de ‘advogados defensores confinados em Ushuaia pelo fato de exercer o direito à defesa’.
90
Estas publicações contribuíam ao processo de reconhecimento da condição de ‘vítimas’ de
seus defendidos e da legitimidade das suas causas junto com a legitimidade dos seus
advogados e das associações civis que eles integravam. Também se reproduziam nas suas
páginas desde passagens eruditos de livros publicados por ‘eminentes’ advogados penais
como José Peco e sentenças do Superior Tribunal de Justiça até breves descrições dos
detentos, de suas condições de detenção, detalhes sobre o desenvolvimento dos processos
judiciais (antecedentes, tipos de acusação, procedimentos, sentencias) documentos, abaixo-
assinados e listagens de assinaturas de adesão a diferentes convocatórias. As tentativas de
reforma do Código Penal inspiradas no fascismo europeu ou as anulações de leis de proteção
ao trabalho eram explicadas e detalhadas nestes periódicos. Publicavam-se, também, breves
ensaios sobre o fascismo, cartas dos detidos, cartas das sedes centrais das organizações de
direitos humanos as quais estavam afiliados e anúncios informando da realização de meeting,
palestras e comícios.
Em outras oportunidades, os detalhes das ‘penas suportadas como conseqüência das
terríveis perseguições pessoais, judiciais e policiais’ eram relatadas pelos próprios detentos,
como é o caso do livro nomeado significativamente “Entre Rejas (grades)”, publicado pelo
Teniente Coronel do Estado Mayor de las Fuerzas Armadas e integrante da LADH, Atílio
Cattáneo, quem fora acusado de associação ilícita como conseqüência de ter organizado
seja, provavelmente, o motivo que explique a ausência de assinaturas na maior parte das matérias publicadas
pelo Socorro Rojo. A única assinatura que aparece é a de seu mais importante dirigente, um quadro do PC
exilado na URSS.
90
Este foi o caso, entre outros, do Teniente Franco, advogado de oficio do dirigente anarquista Severino Di
Giovanni, fuzilado junto com um outro importante dirigente anarquista, Pedro Scarfó. O advogado foi demitido
do exército e deixado em prisão em Ushuaia. Em: Alerta! Contra el Fascismo y el Anti-semitismo. N° 1, 1935.
59
levantamentos armados contra o regime de facto
91
. Estes relatos se ofereciam não como
‘prova’ ou ‘testemunho’ da probidade do acusado mas também como escritos acusatórios
contra os próprios tribunais acusadores. A probidade do defendido se continuava na probidade
do defensor, José Peco. O livro ocupa-se também de reproduzir na íntegra o alegado político
realizado por este advogado defensor.
Desde as páginas do livro, Cattáneo reclamava a realização de um processo contra os
responsáveis civis e militares do governo instituído em 1930 ou que não tivessem resistido
devidamente à rebelião, segundo dispõem ‘esquecidos’ artigos do Código Penal. “O
levantamento de setembro de 1930 e a atitude de todos os funcionários que tiveram ingerência
nele deve ser pesquisada para que as gerações presentes e futuras conheçam a verdade
histórica (ibidem). Até que isso seja feito, a imprensa escrita vai se ocupar desta missão’.
A constituição de uma comissão de imprensa dentro do Socorro Rojo dedicada
especificamente à “...missão de confeccionar e fazer chegar aos jornais grandes e pequenos,
agencias noticiosas, periódicos dos trabalhadores e jornais estrangeiros, toda classe de noticias
relacionadas com os presos sociais” é um indicador da importância que tinha a imprensa para
estas associações. Os organizadores desta iniciativa definiam uma série de estratégias para
‘conseguir que os jornais que tem interesses criados’ publiquem as noticias e comunicados
enviados pela comissão do Socorro Rojo. Aconselhava-se que as matérias foram relatadas
‘segundo a mentalidade ou orientação do periódico ao qual vai se solicitar a publicação da
mesma’. As matérias deviam ‘variar de estilo e tom’, cuidando de ‘não sacrificar a publicação
por alguns termos’ e, no possível, deviam-se acompanhar de fotos e entrevistas a pessoas ‘de
arraigo ou conhecidas’.
92
Desde a tribuna que era a imprensa se cumpria também com a tarefa de identificar e
denunciar aos opositores: outros advogados que, na sua condição de juizes, professores de
direito, ministros ou, inclusive, assessores letrados de empresas privadas, eram considerados
responsáveis da crítica situação que vivia o país. Acusava-se a advogados ‘100% argentinos’
de atuar em defesa de empresas estrangeiras. Eles, pela sua vez, manifestavam ironicamente a
sua ‘surpresa’ de que advogados ‘argentinos’ assumissem a defesa de comunistas.
93
91
Em: Cattáneo, 1939.
92
Em: “Cómo debemos desarrollar nuestra agitación en la prensa del país”. Socorro Rojo. Grifos meus.
93
Em: Socorro Rojo. “Bilbao, víctima de la ‘justicia’”. 1936.
60
O engajamento militante destes advogados com a causa de seus defendidos incluía,
então, a realização de um conjunto diverso de ações extra-judiciais como a redação de
manifestos, a publicação de abaixo-assinados, a elaboração de listagens de vítimas, a
convocatória a figuras de prestigio internacional, a elaboração de projetos parlamentares, a
participação em comícios e a organização de periódicos e boletins. Como se evidencia nesta
citação reproduzida do Socorro Rojo, estas ações eram críticas em quanto: “… nos tribunais
não existe nenhuma garantia de justiça para Agosti e os demais processados (...) [Por isso] sua
causa está nas mãos do povo trabalhador e oprimido. Somente o grande júri da população (...)
pode garantir um veredicto de liberdade... “
94
.
Sugiro que a ação desenvolvida através destes serviços jurídicos e da publicidade dos
casos através da imprensa eram o ponto chave na hora de interpelar à opinião pública. Através
desta atividade toda, estes militantes e profissionais do direito, ao tempo que instituíam um
processo judicial mediante a apresentação de diversos recursos perante os tribunais,
procuravam transformar a causa individual numa causa pública e coletiva mediante a
realização de ‘comícios públicos’ ou ‘campanhas cívicas’ que visavam procurar o apoio da
opinião pública. Neste sentido, as próprias associações foram pensadas como ‘tribunais’ desde
os quais levar a frente a defesa da causa dos direitos do homem.
95
Compreender desde um ponto de vista sociológico este engajamento militante
significa tentar vincular a compreensão desta conjuntura com a análise das propriedades
sociais dos agentes que se interessaram nesta causa, suas trajetórias sociais e políticas e os
espaços sociais pelos quais se deslocaram e que possibilitaram que, indivíduos com interesses
comuns cristalizaram suas demandas de novos princípios cívicos e morais em volta a um
conjunto de organizações civis. Sem esta analise, o surgimento deste tipo de associações
quedaria explicado como um resultado direto da repressão do Estado posterior ao golpe de
1930. Para dar conta das condições de possibilidade de um compromisso deste tipo vou
apresentar a continuação uma descrição de quem foram sociologicamente este conjunto
heterogêneo de agentes sociais que se reuniu para reivindicar a causa pelos ‘direitos do
homem’.
94
Em: Socorro Rojo. Grifos meus.
95
Esta ação toda instituía a estes profissionais do direito como ‘jornalistas’, ‘palestrantese ‘intelectuais’. Estes
eram os atributos que também compunham a figura do advogado engajado com a causa. Este ponto vai ser
desenvolvido em detalhe numa outra seção deste capítulo: “a inteligência e a ilustração como armas de luta”.
61
1. 5 Militantes do direito
Um percurso pelas biografias dos integrantes da LADH revela, em primeiro lugar, que
seus quadros dirigentes se recrutavam essencialmente do mundo profissional. Entre as
lideranças não se encontram nem comerciantes nem operários, a despeito que muitos deles se
identificavam com as suas causas e atuassem política e profissionalmente muito próximos de
eles. Trata-se de um universo dominado pelos profissionais e, mais especificamente, pelos
profissionais do direito (82% dos seus membros).
96
. O 50% dos seus integrantes exercia a
profissão de advogados atuando como assessores letrados de sindicatos de trabalhadores e
adquiriram notoriedade pública como defensores de presos políticos e sindicais, entre eles, se
destacam Alfredo Palacios y Carlos Sánchez Viamonte. Um 40% eram professores
universitários, entre os que se encontravam A. Orzábal Quintana, José Peco, Leônidas
Anastasi, Alfredo Palácios y Mario Bravo, na faculdade de Direito de Buenos Aires e Carlos
Sánchez Viamonte, José Peco e Juan Atílio Bramuglia na Faculdade de Direto de La Plata. O
75% dirigiam revistas ou publicações periódicas em direito como Leônidas Anastasi, criador
da Revista Jurídica Argentina La Ley (1936) e de José Peco, criador da Revista Penal
Argentina. A primeira delas continua existindo até hoje e se transformou na publicação
especializada mais importante do país.
1. 5. 1 Diplomar-se em direito
Os quadros dirigentes da Liga se formaram principalmente na Faculdade de Direito de
Buenos Aires e de La Plata entre 1890 e 1910, numa época em que se começavam a introduzir
importantes reformas na vida universitária. A mudança mais importante tinha-se produzido
apenas um quarto de século antes, ao se criar em 1874 a Faculdade de Direito da Universidade
de Buenos Aires em substituição do Departamento de Jurisprudência. Em 1906 se produziu,
também, uma importante reforma nos estatutos da Faculdade que outorgou o governo desta ao
96
Entre os não advogados encontram-se um médico, dos engenheiros civis, um escritor e um tenente coronel
(Atílio Cattáneo).
62
corpo de professores. Esta ultima reforma surgiu, em parte, das demandas do incipiente
movimento estudantil que, em 1905 tinha-se criado no Grêmio de Estudantes de Direito.
Foi também nesse ano quando se criou a Universidade de La Plata.
97
Foi também nesse período quando se modificaram os planos de estudos da carreira
com o propósito de introduzir as ciências sociais na formação do profissional em direito. Uma
concepção ‘científica’ do direito promoveu a introdução de cursos de sociologia (1908),
história do direito (1906), história do direito comparado (1906) e direito político (1910).
Nessa época se criaram novas especializações jurídicas, se criou o doutorado como título
superior e as carreiras de notariado e diplomacia.
98
. A carreira de direito compreendia, então,
seis anos de estudo mais um sétimo ano para optar pela titulação de Doutor em
Jurisprudência.
99
Um dos traços distintivos deste período foi a expansão da matricula universitária: por
volta de 1910 se tinha quase uns 6.000 alunos matriculados nas universidades argentinas,
quase o dobro que em 1900.
100
Esta expansão esteve impulsionada por várias reformas
educativas levadas a frente pela chamada ‘geração de 1880’, fundamentalmente pela sanção
da lei de Ensino comum, laico e gratuito de 1884 e pela reforma dos estatutos universitários
que restituíram o ensino gratuito na universidade.
101
O que tem a ver com os profissionais do
direito, segundo os dados fornecidos por Leiva, em 1935 figuravam inscritos na matrícula
97
Até 1872, os estudos em direito se realizavam no Departamento de Jurisprudência da Universidade (1821-
1874) que outorgava o diploma de ‘bacharel’ ou de ‘doutor em jurisprudência. A habilitação profissional
requeria de um período extra de formação teórica e prática que culminava num rigoroso exame final, ambos sob
a responsabilidade da Academia Teórico Prática de Jurisprudência (1814-1872), dependente da Câmara de
Apelações. Antes da criação do Departamento de Jurisprudência (1821) os estudantes deviam financiar os seus
estudos nas Universidades de Lima, Charcas ou Santiago de Chile, que o diploma de bacharel era o requisito
para o ingresso na Academia. Esta mesma reforma de 1872 também deu origem à Faculdade de Filosofia e
Letras, o que possibilitou separar o ensino da jurisprudência do ensino da literatura e da filosofia, todas matérias
até então ministradas na Faculdade de Direito. Entre 1903 e 1906 se criaram, também, o Grêmio de Estudantes
de Medicina e de Engenharia. Na atualidade, o diploma de ‘bacharel’ outorgado pela faculdade habilita
diretamente para a prática profissional. Para um desenvolvimento sintético destas reformas ver: Ortiz, 2004.
98
Em: Seoane, 1981.
99
Vale a pena salientar que os enfrentamentos entre distintas facções ao interior das faculdades de direito
acostumam, até o dia de hoje, se expressar em termos antinômicos: quem advogam por uma concepção
‘científica’ do direito se opõem a uma concepção ‘técnica’ da formação profissional e vice-versa. Estes últimos
aspiram a outorgar aos estudantes de direito as ferramentas técnicas necessárias para saber-se desempenhar na
prática profissional, sem carregar aos estudantes com matérias como historia do direito e sociologia que não se
consideram relevantes na hora de levar a frente um processo judicial. Pela sua vez, os primeiros, aspiram a
consagrar um perfil acadêmico ao formado em direito, concentrando seus esforços em dar aos estudantes de
todas as ferramentas indispensáveis para fazer do recém-formado um jurista, quer dizer, alguém com
competência no trabalho de pesquisa. Sem vidas, seria imprescindível aprofundar sobre estes princípios de
distinção numa futura pesquisa.
100
Em: Chiroleu, 2000.
101
Em. Cutolo, 1951:20.
63
portenha 5.997 advogados. Em 1936 os matriculados eram 6.232 e, ao final da década do 30,
eram 7.041 os advogados do foro portenho (op.cit).
102
Estas reformas, que foram simultâneas
ao processo de imigração massiva, envolveram “... a incorporação à profissão de novos
elementos sociais de extração meia e baixa...” e a transformação do perfil dos estudantes e
recém-formados
103
. Esta distinção aparece enunciada nas palavras de Julio V. González, filho
do fundador da Universidade de La Plata, e amigo pessoal do liguista Carlos Sánchez
Viamonte: “… desde 1880 até 1905, a universidade foi um reduto aristocrático (...) a
população escolar esteve formada na sua totalidade por uma grande burguesia (...) a classe
meia tinha uma representação mínima. A universidade era mais uma aspiração, um trampolim
para fazer o salto a classe superior”
104
.
Esta apreciação a respeito da identidade entre perfil profissional e pertença de classe
tinha um substrato objetivo: entre 1936 e 1941, a classe dirigente tinha como denominador
comum o fato de combinar a profissão jurídica com a pertença a ‘famílias tradicionais’ da
sociedade argentina. Os dados coletados pelo José Luís de Imaz indicam que em 1941, o 92%
de quem ocupavam as principais posições institucionais do país eram advogados. Segundo os
dados de Darío Cantón citados nesse trabalho, em 1916 o 74% dos deputados nacionais eram
advogados e para 1946 se mantinham no 67%, a despeito das transformações acontecidas no
país como resultado da chegada ao poder do peronismo.
105
No seu trabalho, Imaz salienta que uma das primeiras qualidades exigidas para ter
aceso as posições mais importantes dentro do restrito grupo dos dirigentes nativos era o
reconhecimento de sua ‘capacidade jurídica’ derivada do fato de se desempenhar, entre outros
assuntos, como assessores letrados em empresas estrangeiras importadoras e exportadoras de
produção primaria (carnes, grãos) Eram estas as qualidades reunidas pela maior parte dos
ministros da época. A respeito da importância da presencia de advogados no corpo do Estado,
Imaz fornece os seguintes dados: entre 1936 e 1946 todos os Ministros de Educação, de
Fazenda, de Obras Públicas e de Relações Exteriores foram advogados. Segundo Imaz, isto
ilustra “ a influencia prevalecente que teve a Faculdade de Direito, especialmente a de Buenos
102
Segundo os dados fornecidos por Sergio Bagú, em 1914, os profissionais do direito constituíam o 45% dos
recém-formados nas universidades Argentinas. Bagu, Evolución histórica de la estratificación social en la
Argentina. Citado em Imaz, 1964:194.
103
Em: Leiva, 2005: 287.
104
Em: J.V. González, 1945. La Universidad, Teoría y Acción de la Reforma. Bs.As. Ed. Claridad. 1945. Cit.
em: Gómez, A. 1994: 13.
105
Darío Cantom.
Parlamentarios Argentinos en 1889, 1916 e 1946. Trabalho citado em Imaz, 1964.
64
Aires, na formação dos quadros dirigentes (op.cit.) Significativamente, estes advogados
pertenciam também ao corpo de professores da Faculdade de Direito de Buenos Aires.
106
Segundo este mesmo autor, estas lideranças se formaram quando, a geração dos 80, abria suas
portas ao país aos imigrantes europeus e sancionava a lei do voto masculino universal: “… a
grande mudança política resultante da lei Sáenz Peña os surpreendeu em plena
maturidade”
107
.
A expansão do sufrágio, da matricula universitária e o surgimento de novos critérios
de recrutamento dentro da classe política (como o ‘sucesso eleitoral’) podiam ser percebidos,
sem dúvidas, como uma ameaça séria. De fato, perante a expansão de um saber
tradicionalmente monopolizado por um pequeno setor social, quem ocupavam o centro do
cenário profissional e universitário, isto é, os juristas e professores da Faculdade de Direito de
Buenos Aires, começaram a exprimir a sua preocupação por uma situação que qualificaram
como de catastrófica: a existência de ‘advogados sem causa’. Um destes professores, A.
Colmo, escrevia em 1936: “a atual sobre-saturação profissional evidencia a existência
indubitável de um proletariado forense que é todo um descrédito para a profissão e redunda
em seu prejuízo (...) Temos mais de cinqüenta advogados por cada cem mil habitantes,
quando na Itália não chegam a trinta, apenas alcançam a dúzia na Inglaterra e chegam a
dezoito em Áustria e Alemanha...”
108
. O próprio reitor da Universidade de Buenos Aires, o
advogado Vicente Gallo manifestava: “O problema de aquilo que se conhece como
proletariado profissional é, sem dúvidas, uma das maiores questões que devem preocupar não
a sociedade mas também ao governo da nação. Todo dia egressa das aulas universitárias
(...) um número de jovens superior as possibilidades de trabalho profissional (...) À
universidade devem ingressar aqueles que tenham a vocação e a inteligência
suficientes”.
109
Num contexto aonde o incremento da matrícula foi percebido como uma ameaca para
a profissão, os integrantes das associações estudadas neste capítulo se distinguiam justamente
pelo fato de integrar majoritariamente este grupo de recém chegados. A utilização desta
categoria funda-se, entre outras coisas, no seguinte indicador: revisando a guia de
106
Em 1936 eram três os ministros de governo que, ao mesmo tempo eram professores dessa faculdade. Um
deles era Melo, Ministro do Interior mencionado numa seção anterior deste capítulo. Em 1941, este número se
elevou a 6. Em: Imaz, op. Cit. Pág. 12,26 e 33.
107
Em: Imaz. op.cit.pág. 21. Para uma descrição global deste processo ver Halperín Donghi, 1999.
108
Como, Alfredo. La Justicia
. Bs. As. 1936. Em: Leiva, A. 2005:288. Grifos meus.
109
Gallo, Vicente. Cultura y Ética Profesional. 1936. Em: Leiva, A. Op.cit. Grifos meus.
65
profissionais do direito portenhos correspondente a 1881, não se encontra nenhuma
correspondência entre os sobrenomes das lideranças das associações civis analisadas neste
capítulo e os sobrenomes incluídos nesta guia.
110
A condição de estudantes que chegam desde o interior do país é recorrente na maior
parte dos advogados engajados na causa dos direitos do homem. Dos 18 dirigentes da LADH
sobre os que possuo dados sobre seu local de nascimento, 3 teriam nascido na Capital
Federal. Esta distinção entre ‘provincianos’ (interioranos) e ‘portenhos’ formava parte das
formas de reconhecimento público deste grupo de estudantes. A vida deles é retratada por um
reconhecido jurista contemporâneo nascido na província de Santa Fé: Rafael Bielsa. Segundo
ele: “… se colocava um problema inicial, o dos recursos, em tanto o salário paterno poucas
vezes era suficiente (...) Por isso, o estudante provinciano (pobre em geral) fazia apelo ao
emprego público. O deputado nacional ou senador pela província [estado] ou o colega de
província que tinha feito sucesso constituíam uma espécie de padroeiro [que lhe permitia
continuar com a sua carreira]…”
111
.
Neste contexto, “Se a propriedade territorial – máximo signo de distinção – era
inaccessível, o diploma universitário parecia más próximo e, desta forma, eram mais
accessível tanto uma legitimação simbólica quanto um maior progresso econômico. Neste
sentido, Florentino Sanguinetti [contemporâneo dos juristas mencionados neste trabalho, ele
mesmo um estudante de direito originário do interior do país] afirmava resolutamente que
nesse anos “os doutores constituem o patriciado da segunda república…”
112
.
O reconhecimento deste novo perfil social entre os estudantes levou a que um dos
propósitos centrais do Grêmio de Estudantes fosse o de: “… facilitar aos alunos de todos os
cursos o estudo (…) oferecendo livros, rascunhos e memórias a um preço muito
reduzido...…”
113
. Em profunda contraposição, também estavam os ‘estudantes ricos’ que,
diante a obrigatoriedade de concorrer às aulas contratavam “… ‘empreiteiros’ que lhes faziam
esse serviço (…) e assim, enquanto o empreiteiro formava parte do auditório da universidade,
110
Guia Judicial de Guerino Fiorini, Bs. As. 1881. Reproduzida em Leiva, 2005: 361 a 376. também não
aparecem os sobrenomes dos seus pais no Diccionário Biográfico Quién es Quién.
111
Em Bielsa, 1945.Grifos meus.
112
Em: Chiroleu, op.cit. pág. 364.
113
Reproduzido no jornal La Nación, 20.07.1905, cit. Em: Gómez, A. 1994: 22.
66
o jovem estudante endinheirado cumpria o requisito de assistência dormindo durante o dia
pela falta de sono da noite anterior” (Bielsa, op.cit.:30).
A existência de perseguidos políticos e sindicais é condição necessária para a
formação desta rede de profissionais do direitos consagrados à tarefa de defender-lhos pública
e judicialmente. Mas não é, contudo, a razão exclusiva que explica o surgimento da vocação
pela causa. Com o propósito de dar conta desta vocação é necessário apreender as condições
sociais que fizeram possível a formação deste segmento profissional dedicado ao ativismo na
causa pelos direitos do homem. Proponho que esta conjunção entre o arribo de um grupo de
recém chegados ao direito e a existência de ‘advogados sem causa’ é uma das condições
sociais chaves na formação deste segmento profissional. É este o processo que coloca a um
conjunto de jovens profissionais recém-formados a disposição de um engajamento público
que, como vai se ver, lhes vai permitir adquirir progressivamente notoriedade, tanto no mundo
do direito quanto da política. Este vínculo parece ser, então, uma das condições necessárias
para a produção e reprodução desta relação específica entre direito e política. E isso foi
possível porque no contexto das diversas reformas ao ensino superior, a universidade tinha
deixado de ser uma espaço exclusivo dos setores privilegiados da sociedade Argentina e se
perfilava então, como uma via de ascensão social para os filhos de imigrantes que provinham,
muitos deles, do interior do país.
114
A pesar disso, entre as lideranças destas associações é possível reconhecer também os
sobrenomes de algumas famílias notáveis da Argentina como os Roca, os Viamonte, os
Quintana, os Bunge e os Noble. Carlos Sánchez Viamonte pertenceu a uma família patrícia:
os Viamonte, reconhecida na historiografia nacional como protagonistas chaves nas lutas pela
independência e na Revolução de Maio. Seu bisavô materno, o general Viamonte, foi chefe
dos exércitos da Independência, governador do estado de Buenos Aires ao longo de mais de
seis anos, governador do estado de Entre Rios e deputado estadual durante 14 anos
consecutivos. Do lado paterno, vários integrantes da família Sánchez tinham-se destacado
como ‘heróis’ da independência. Modesto Antonio Sánchez, bisavô de Carlos, obteve
medalhas de ouro e prata pela sua intervenção em distintas batalhas contra os espanhóis. Seu
nome figura entre quem apoiaram a criação da Primeira Junta de Governo em 1810
115
. É
possível reconhecer inumeráveis traços que salientam a pertença ‘dos Viamonte’ a boa
sociedade portenha: desde a dedicação dos seus varões à equitação e de suas mulheres à
114
Em: Bucito, 2000.
115
Atas do Ajuntamento. Em: Alonso Piñeiro, 1959.
67
beneficência até a aparição de crônicas nas revistas da época que recreavam os
acontecimentos da vida familiar (desde aniversários até minuciosas descrições da cerimônia
do penteado feminino). Uma das ruas centrais da cidade de Buenos Aires leva o sobrenome
Viamonte. A través de uma densa rede de alianças matrimonias, os Viamonte se vincularam
com outras famílias de fazendeiros e homens de Estado, como os Rosas, os Mansilla e os
Martinez de Hoz.
116
Vale a pena salientar que no retrato que o próprio Carlos Sánchez Viamonte realizara
do seu bisavô, o General, os atributos que lhe interessam realçar são justamente aqueles que,
de uma certa maneira, o aproximam da sua própria definição como pessoa pública. Assim, o
General Viamonte, militar de profissão, aparece definido como um homem ‘preocupado pelos
interesses populares’, um precursor do ‘anti-clericalismo’ e do ‘anti-militarismo’, um
‘estadista’, um ‘jurista ao serviço da ética’, ‘um exemplo de conduta vica’. Em resumo,
como “… um prócer argentino cujo patriotismo não pode ser superado porque consistiu em
aceitar todos os sacrifícios que lhe impuseram os interesses do povo”.
117
O próprio Carlos Sánchez Viamonte se reconhecia como um herdeiro desta tradição.
Desde a sua perspectiva, sua trajetória está intimamente ligada a esta herança familiar:
“No es extraño, pues, que yo continuase por el camino que había trazado mi padre,
quien a su vez, seguía el ejemplo cívico de su abuelo, el prócer Juan José
Viamonte. Había cierto espíritu de continuidad familiar que llegó hasta mí, como
se muestra en la circunstancia (…) de que mi bisabuelo, mi padre y yo hemos
desempeñado funciones legislativas y constituyentes en la provincia de Buenos
Aires y en la Nación”
118
O pai de Carlos, Julio Sánchez Viamonte, ele também advogado, praticou a profissão
desde o seu escritório privado e também desde o Estado, como assessor jurídico no prefeitura
116
Ao longo do segundo governo de Juan Manuel de Rosas, o filho mais novo do general Viamonte foi degolado
pela ‘mazorca’ (milícia irregular que perseguia aos inimigos políticos de Rosas) e o general Viamonte teve que
partir para o exílio. Contudo, os descendentes destas famílias terminaram ligados através de vínculos de aliança e
descendência. Este breve episodio exibe as condições pelas quais se perpetuava então a elite portenha. Existia
entre estas famílias uma comunidade de interesses baseada nas suas respectivas condições de fazendeiros,
militares e homens do governo. Ao ponto que era possível para Carlos Sánchez Viamonte afirmar: “… no me
mueve ningún rencor personal contra Rosas (…) alianzas matrimoniales han creado sentimientos que lo hacen
imposible” Em: Alonso Piñeiro, op. Cit.
117
Em: Alonso Piñeiro, op.cit. : 13.
118
En: Sánchez Viamonte, 1971: 63.
68
da recentemente criada cidade de La Plata. Ele também foi professor universitário (direito
internacional público e de história institucional argentina) na universidade dessa cidade. Foi
parlamentar estadual e nacional. Para Carlos Sánchez Viamonte, seu pai integrava um grupo
de portenhos amigos entre sim, que aderiram aos princípios do liberalismo político dos quais
faziam incendiada defesa desde o Clube Liberal. Carlos Sánchez Viamonte fez seu ingresso
ao mundo profissional no escritório jurídico do seu pai quando entrou como escrevente com
15 anos de idade. Ao se referir a seu pai Carlos se reconhece decididamente como seu
herdeiro, tanto em termos de uma vocação profissional compartilhada quanto na maneira de
exercer a profissão: : “… foi na casa paterna onde absorvi essa mania de encarar o direito
como um problema ético (...) adquiri um sentido quase religioso das minhas convicções civis
(...) e o desinteresse por toda vantagem material…”
119
. Carlos Sánchez Viamonte herdou do
seu pai uma profissão, uma vocação e um sobrenome ilustre. Ele herdou também um capital
enorme de relações significativas tanto dentro do universo do direito quanto da política e da
universidade.
Na morfologia que constituiu a este segmento profissional é possível identificar
advogados que pertencem à elite dirigente e econômica. Proponho que este encontro entre
notáveis e recém chegados ao direito e a política é a segunda condição de inteligibilidade da
formação deste fragmento profissional. Um caso paradigmático desta situação, pela
notoriedade pública alcançada posteriormente, foi a do futuro liguista Alfredo Palácios, quem
costumeiramente se apresenta como ‘filho natural’ de um exilado uruguaio, formado na escola
pública e obrigado a trabalhar para financiar seus estudos na universidade. Mesmo assim,
Palácios fez seus estudos secundários no Colégio Nacional de Buenos Aires, uma escola
pública freqüentada quase com exclusividade pela elite dirigente de então. Seu pai foi
professor da faculdade de direito da Universidade de Buenos Aires e interveio na política
argentina participando nas filas do ‘antimitrismo’. Seu escritório se converteu, alias, no centro
de reunião do exílio oriental, o que evidencia que Alfredo Palácios não era nem um recém
chegado à política nem ao direito.
120
Fazendo parte deste ‘proletariado profissional’ ou pertencendo às famílias notáveis do
país, os futuros integrantes das associações estudadas neste capítulo desenvolveram uma
119
Em: Sánchez Viamonte, 1971: 56 y 108. numa outra seção do capítulo, os valores do sacrifício, do
desinteresse e da entrega à causa vão ser objeto de analise.
120
Em: García Costa, 1997. pág. 28 e 29.
69
intensa militância universitária. Desde o recentemente criado Grêmio de Estudantes da
Faculdade de Direito de Buenos Aires (1905), eles participaram ativamente na política
universitária, na sua condição de conselheiros estudantis, como Sánchez Viamonte, entre
outros.
121
Esta experiência de formação profissional esteve atravessada pelo chamado
‘movimento de Reforma Universitária’ (1918) ao qual aderiram e deram impulso, como no
caso do futuro liguista Deodoro Roca, redator do próprio manifesto original do movimento,
José Peco e Rodolfo Aráoz Alfaro.
122
Segundo Gómez, o movimento reformista “… coloca
as bases de uma nova forma de militantismo estudantil, evoluindo de precárias organizações à
constituição de grupos políticos universitários com marcado sentido ideológico”
123
. A reforma
deu passo, entre outras coisas, à gratuidade no ensino, à ampliação dos conteúdos e dos
critérios de governo da universidade em quanto se permitiu a criação de cátedras paralelas, a
seleção de professores por concurso de oposição e o reconhecimento da participação dos
estudantes no governo da Universidade. Segundo Fuccito, o objetivo manifesto da Reforma
foi o de abrir a universidade as novas classes sociais introduzidas no país como resultado da
imigração.
124
Segundo mez, “Em 1921, o Presidente do Grêmio de Estudantes não era
mais um jovem de ressonante sobrenome mas um que representa ao ultimo estrato da classe
meia…”
125
. Segundo Silvia Sigal, a reivindicação central da Reforma foi a autonomia
universitária. Mesmo que ela nunca se estabeleceu em forma duradoura e, justamente por isso,
esta reivindicação foi essencial na estruturação do corpo universitário entre 1918 e 1966.
126
Este ativismo estudantil se conformou não só como uma primeira forma de
socialização na política mas também como uma instancia central na conformação de uma
comunidade de pares que vai se reconhecer como pertencente a uma ‘nova geração dis-
conformista’. Conceito que da conta não tanto de uma coorte geracional mas da existência de
um conjunto de profissionais do direito identificados com uma ‘nova’ forma de conceber e
exercer a profissão. Esta ‘nova geração’, por oposição à anterior, questionava os princípios do
‘direito liberal individualista’ e propugnava pela consolidação de um ‘novo direito’ orientado
pelo interes e pela vontade social. Nas publicações daqueles que ainda eram estudantes, se
121
Os conselheiros estudantis fazem parte do governo tripartite da universidade a partir da chamada ‘Reforma
Universitária’ de 1918. A partir desta reforma, as faculdades são governadas através de um decano e um
conselho integrado por representantes dos professores, os graduados e os estudantes.
122
Para uma descrição do projeto universitário sustentado por este grupo reformista ver: Ciria y Sanguinetti,
1983, Chiroleu, 2000 e Graciano, 2003.
123
Em: Gómez, op.cit.:41.
124
Em: Fuccito, 2000: 73.
125
Em: Gómez. op.cit.:41.
126
Em: Sigal, 1991.
70
repetem invariavelmente as referencias ao ‘problema das gerações’: com a Reforma
Universitária de 1918 ‘fez sua aparição no cenário histórico uma nova geração’:
“… comenzó negándose a los maestros, proclamando su desvinculación con el
pasado inmediato, desconociendo el sistema de ideas y de valores generales por
que se rigiera la generación anterior (…) Impuso el Estatuto reformista de 1918
con el cual conquistaba el derecho de sentarse en los sillones académicos al lado de
los que hasta ayer reconociera como maestros indiscutibles (…) De claustro
escolar, la Universidad se transformó en comunidad de hombres libres (…) la
nueva generación había pronunciado el desahucio de aquél remanente de la ‘elite’
del 80 (…) [En la Facultad de Derecho] hallábanse refugiados los restos de la clase
dirigente, desalojada de las esferas del gobierno por una fuerza popular nueva [en
ref. al gobierno de Yrigoyen] y por ello deben renunciar”
127
.
Este ponto de vista a respeito do direito é consagrado com a publicação da célebre
obra “El Nuevo Derecho”, um trabalho que compila as palestras que dera o professor Alfredo
Palácios na Universidade de Buenos Aires e que iria se converter em referencia de sua
geração e em emblema das que a sucederam.
128
No seu livro, Palácio proclamava a
necessidade de novas regras para as relações de trabalho que deveriam estar sob a tutela do
Estado com o propósito de limitar os abusos dos patrões e proteger aos trabalhadores. Esta
legislação se considerava imprescindível em tanto “... os juizes argentinos tem mostrado (...)
marcada hostilidade para as classes trabalhadoras”
129
.
Esta oposição entre concepções distintas do direito era exprimida como uma oposição
entre ‘gerações’ e, mais especificamente, como uma oposição entre ‘mestres e discípulos’,
como se evidencia no caso que o próprio Sánchez Viamonte relata no prólogo ao livro El
Nuevo Derecho, de A. Palácios. Sánchez Viamonte conta o caso de um trabalhador de um
frigorífico que reclama a indenização pelo fato de ter sido demitido sem justa causa. Quando
Sánchez Viamonte assume a defesa deste caso, ele deve se confrontar com um dos seus
professores de direito civil que intervinha pela parte da patronal (tem que ser lembrado que a
empresa pertencia a capitais estrangeiros, justamente o perfil do profissional do direito ao que
se opunham os integrantes destas associações, como descrevi no caso do Ministro do
127
En: Memorial presentado por los consejeros estudiantiles de la Facultad de Derecho al Rector de la
Universidad. Enero 1930.
128
O agrupamento que no ano 2004 e 2005 tinha o controle do Grêmio de Estudantes da Faculdade de Direito da
Universidade de Buenos Aires chamava-se significativamente “Nuevo Derecho”.
129
Em: Palacios. 1928.
71
Interior, Melo). As posições assumidas por cada um deles foram qualificadas por Sánchez
Viamonte em termos de ‘velho’ e ‘novo’ direito. Esta oposição aparece enunciada como uma
oposição entre ‘duas gerações diferentes’: “… os atuais professores universitários sobre-
colhidos de temor e de angustia diante de uma realidade temerária cheia de supresas... e
Palácios, cuja obra foi uma ‘obra de impulso’, ‘de juventude’, da ‘juventude reformista’. A
defesa sucedida de Sánchez Viamonte foi qualificada por ele mesmo como ‘um ato de
desafio’ as hierarquias e a uma concepção do direito que contesta ‘a tradição liberal’.
Enquanto o ‘velho direito’ supõe a ‘defesa do direito individual-individualista do século XIX,
o segundo:
“… consiste en sustituir el concepto del Derecho Romano que hace del contrato la
ley de las partes, por el principio del interés y de la voluntad sociales (…) haciendo
de la ley el contrato de las partes (…) En vano se arguirá con las viejas razones del
derecho liberal que, sin tener en cuenta la desigualdad de condiciones creada
artificiosamente entre el patrón y el obrero por el abuso de la fuerza consolidado a
través del tiempo, pretende hacer ley de la voluntad de las partes manifiesta en el
contrato. Voluntad de las partes, dicen ingenuamente los optimistas del derecho
liberal, olvidando que en el contrato de trabajo la ley ha sido hoy la voluntad de
una de las partes, la voluntad del patrón (…) el nuevo derecho significa, en síntesis,
reemplazar el concepto tradicional no intervencionista del Estado, que caracteriza a
la locación de servicios, por el moderno concepto del contrato de trabajo, cuyas
cláusulas, determinadas por la ley, son de orden público y se imponen a las partes
como el triunfo del interés social sobre el interés individual de los fuertes que
abusan de su fuerza”.
130
Esta mesma oposição pode-se reconhecer também na rejeição dos professores da
Faculdade de Direito de Buenos Aires a tese de doutorado que Palácios nomeara La Miséria
en la República Argentina”.
131
Este título exibe a maneira em que os integrantes das
associações em defesa dos presos políticos e sociais se percebiam como profissionais
próximos a defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo. A exibição de uma relação de
130
Em: Sánchez Viamonte. Prólogo a la 2da. Edición de El Nuevo Derecho. Palacios, 1928.
131
A categoria ‘geração’ supõe uma forma de representação dentro do espaço social que não envolve
necessariamente uma oposição simples entre professores e estudantes, como o demonstra o fato que ao longo
desses anos de formação dos advogados integrantes destas associações civis, Julio González Iramain, deputado
nacional pelo socialismo e integrante da LADH, foi professor na própria faculdade de Direito da Universidade de
Buenos Aires (1909-1912). Sobre este ponto, Fuccito adverte que alguns professores da chamada geração de
1880 eram uma minoria ilustrada e pertenciam a famílias distinguidas mas não necessariamente ricas (op.cit.:62).
72
proximidade com os setores operários é certamente um dos traços desta oposição ‘geracional’
no interior da universidade: “… [esta] não tem exclusivamente um propósito cientifico,
profissional e de preparação da classe dirigente e sim, fundamentalmente, uma função
social”
132
. Os traços desta distinção se expressam com clareza nas atividades desenvolvidas
pelo Grêmio de Estudantes de Direito quando, em 1917, criou uma Assessoria Jurídica
Gratuito através da qual levar a frente a ‘missão social’ do estudante de direito que envolve o
oferecimento de assistência de graça a: “... pessoas que, ainda não sejam pobres de
solenidade, sejam notoriamente desvalidas.” Dois anos depois, o Grêmio assumiu o
compromisso de dar aulas de extensão aos operários.
133
Nesta luta jurídica e política, uma das armas esgrimidas pela geração dos professores
de direito foi a desqualificação dos estudantes e recém-formados sobre a base de sua condição
de ‘recém-chegados’. Esta situação é muito bem ilustrada pelo então conselheiro estudantil
Carlos Sánchez Viamonte quando, numa reunião do Conselho Acadêmico da Faculdade de
Direito de Buenos Aires, os professores questionaram as demandas de participação dos
conselheiros estudantis Sánchez Viamonte e Florentino Sanguinetti sobre a base desta
argumentação. O próprio Sánchez Viamonte relata na sua autobiografia o momento no qual
contestou a esta acusação de ‘recém-chegado’ exibindo sobre a mesa do Conselho as
medalhas de ouro e prata que ganhara seu bisavô nas lutas pelas independência argentina.
Neste contexto, a desqualificação constitui a ferramenta utilizada por quem se apresentavam
como detentores de um capital social e econômico que se opunha à desvalorização do seu
saber e competência profissional.
As estratégias de desqualificação que este mesmo grupo coloca em jogo em relação a
introdução de novos setores sócias à profissão (‘à universidade tem que ingressar quem
tenha a vocação e a inteligência suficiente’) são equivalentes às estratégias de desqualificação
praticadas sintomaticamente em relação a lei de ‘sufrágio universalsancionada em 1912 e
que possibilitou, na sua primeira aplicação, o triunfo do candidato da UCR, Hipólito Solari
Yrigoyen nas eleições nacionais de 1916, justamente quem fora deposto durante seu segundo
período presidencial pelo golpe de Estado de Uriburu. Isto porque o processo de incremento
da matrícula universitária e profissional aconteceu simultaneamente à incorporação de
importantes setores da população à condição de cidadãos graças a promulgação da lei que
132
Em: Memorial de los consejeros estudiantiles. Enero 1930.
133
Reglamento. Em: Gómez, A. 1994:26.
73
possibilitou o acesso ao voto de toda a população masculina adulta. Em termos de De
Privitellio, “Esta reforma assumiu a forma de uma aposta em favor da constituição de um
corpo político renovado pelo ingresso de novos votantes. Aspirava-se à transformação destes
novos votantes em cidadãos, como resultado da educação e modernização da sociedade civil e
da prática do voto e da ação educadora dos partidos”
134
. Coincidentemente com estas
aspirações, o propósito declarado do General Uriburu foi a necessidade de interromper esse
processo por meio da modificação da lei Sáenz Peña sob a argüição da existência de um
elevado número de analfabetos no país.
135
A democratização das instituições políticas e a democratização das instituições de
ensino foram percebidas pela elite local como uma ameaça, ao mesmo tempo profissional e
política. Coincidentemente, logo depois do golpe de Estado de Uriburu, os estatutos
reformistas vigentes na universidade foram substituídos, as universidades foram intervindas e
se procedeu à expulsão das suas cátedras a vários destes novos profissionais (notoriamente A.
Palácios, quem tinha sido nomeado decano da Faculdade de Direito da UBA assim como José
Pecó, Orzábal Quintana e Arturo Orgaz). No campo da política, foi colocada em prática a
proscrição eleitoral, o fraude e se anularam eleições cujos resultados eram contrários aos
interesses do regime.
O espaço internacional constituiu uma instancia crítica na formação destes
profissionais. Um dos traços marcantes na formação destes estudantes de direito era a
significativa importação de conteúdos e do modelo francês de formação, fato que permite
compreender as estreitas ligações criadas entre intelectuais e profissionais do direito locais
com a comunidade profissional e política internacional. A partir do ingresso na faculdade, os
estudantes entravam em contato com uma estrutura curricular transplantada do modelo
europeu, principalmente francês.
136
Um percurso pelas emendas dos cursos me permitiu
identificar que o estudo do direito francês dominava o ensino do direito. A bibliografia era
principalmente nesse idioma como assim também em inglês e italiano. A circulação de
pessoas e livros era importante em ambos os sentidos. Assim como a UBA e a Universidade
134
Luciano De Privitellio analisa as conseqüências destas reformas sobre o voto no seu estimulante livro sobre a
conformação da cidade de Buenos Aires numa comunidade política. Em: De Privitellio. 2003.
135
Segundo A. Cattáneo, Uriburu pronunciou um discurso na Escola Superior de Guerra em defesa da idéia de
uma democracia restringida aos ‘melhores’, o que excluía as maiorias em quanto um 60% da população do país
era analfabeta e eles não deviam ter direitos civis. Em: Cattáneo, 1939: 39.
136
Enquanto a influencia francesa era evidente em relação com o direito civil, a influencia dos EEUU se fazia
sentir na área do direito político. Em: Cutolo, 1951:21.
74
de La Plata convidavam a professores estrangeiros para ministrar cursos de especialização, os
juristas argentinos eram convidados a participar da vida acadêmica européia e seus livros
eram traduzidos ao francês, inglês e italiano.
137
Alem disso, professores argentinos
participavam de instituições acadêmicas no exterior assim como também no sentido inverso.
Em 1909 chegou à Argentina o primeiro professor estrangeiro que fez parte de um programa
de intercambio com uma universidade local: tratava-se de Rafael de Altamira y Crevea quem
fora convidado pela Universidade Nacional de La Plata. O primeiro professor de direito
marítimo e de direito criminal na UBA tinha sido o francês Guret de Bellemare (1827), entre
outros exemplos. Pela sua vez, o professor de direito civil Florêncio Varela, integrou o
Instituto Histórico de França, Estanislao Zebalos foi fundador da linha local da International
Law Association e pertenceu também ao Institut du Droit International, por citar alguns
exemplos.
Segundo refere o historiador do ensino em direito, Abelardo Levaggi, entre os anos
1908-1910 se produziu um apogeu de visitas de intelectuais e profissionais do direito na
Argentina no contexto das celebrações do Centenário da Revolução de Maio. Segundo
Levaggi, estas visitas indicam o alto nível alcançado pelos estudos de direito na Argentina.
Entre essas visitas se destaca a do Enrico Ferri, discípulo de Lombroso e uma figura
consagrada tanto no campo jurídico quanto político (era penalista e senador da república
italiana pelo partido socialista). Nas suas palestras na Faculdade de Direito desenvolveu
assuntos chaves do direito e da política de então: o conceito de justiça social, a legislação
social e trabalhista, a justiça penal e o pan-americanismo
138
.
1. 5. 2 Exercer o direito
Como assinala Leiva no seu importante estudo sobre a evolução da prática profissional
do direito desde os tempos da colônia, além de todo ensino formal, os estágios profissionais e
137
Em: Rafael Bielsa, op.cit. Alguns dos trabalhos de professores da Faculdade de Direito da UBA publicados
no exterior são: Bunge. Le droit c´est la force. Paris. 1909, Estanislao Zeballos quien publicó La nátionalité du
point de vue de la législation comparée et du droit prive humain. Paris, 1919, Inviolability of correspondece in
War Time, London, 1923,
Juridical reorganization of humanity e The rights and duties of the states and
internationalists of the New World, London, 1923, entre outros.
138
Levaggi, Abelardo. Palestra ministrada no Seminário de História da Faculdade de Direito da UBA no dia
31.03.2005.
75
a intervenção de ‘padrinhos’ foram, desde seus inícios, as verdadeiras instancias de formação
prática do advogado. A partir delas chegavam-se a conformar ‘verdadeiras genealogias
profissionais’
139
. Em coincidência, isto se verifica em quem, integrando associações como a
Liga, carregava com um sobrenome ‘notável’: Carlos Sánchez Viamonte se iniciou na
profissão aos 15 anos trabalhando como estagiário no escritório do seu pai. O mesmo fez o
seu irmão, quem depois ingressou na Justiça, embora que por um curto prazo
140
. Sendo seu
próprio pai professor do direito na Universidade de La Plata, Carlos Sánchez Viamonte
ingressou também ao ensino universitário. Estas condições que possibilitam a ascensão
profissional são indicativas de toda a distancia que existe entre a obtenção de um diploma e o
exercício da profissão, que supõe a detenção de atributos que vão para alem daqueles obtidos
pelo aprendizado e que envolvem a detenção de uma capital social herdado ou a posse de
um capital econômico tão significativo que permita ao advogado viver dignamente sem
depender dos seus honorários profissionais.
141
Para o número crescente de ‘recém chegados’ ao mundo do direito, estas condições
não estavam garantidas. A ausência de vínculos com os sobrenomes tradicionais do foro
portenho e estadual os deixou a um lado tanto destes escritórios quanto do judiciário, uma
condição que vai se repetir entre os advogados que vão ser analisados no capítulo 2
142
. Neste
contexto de exclusão política e profissional, estes ‘outsiders’ começaram a explorar outros
espaços de inserção, como pode-se reconhecer no exame de algumas das suas trajetórias
profissionais: Juan Atílio Bramuglia, integrou o conselho honorário da Confederación Obrera
Argentina e da CGT. Foi assessor letrado da Unión Telefônica, da União Tranviarios e da
União Ferroviária entre 1929 e 1949. Outro dirigente da Liga, Nicolas Solito, foi integrante
da Comissão Diretiva da União Ferroviária e vogal da Câmara Gremial do Instituto Nacional
de Previsión Social. Roberto Testa foi dirigente ferroviário. Sánchez Viamonte esteve ligado
a grêmios e sindicatos desde o inicio do seu exercício profissional, representando e
139
Em: Leiva, op.cit. Vale a pena destacar que o sobrenome do autor do livro se inscreve dentro de uma
linhagem de advogados que inclui a Julián Leiva, “... considerado por muitos como o primeiro dos advogados de
Buenos Aires” (1810).
140
Vale a pena salientar que o ingresso ao judiciário começou a se regulamentar pelo concurso público a partir
da reforma da Carta Magna de 1994. Antes disso, o ingresso à justiça dependia da pertença do candidato a
famílias notáveis do direito ou dos contínuos processos de remoção dos juizes resultantes das diversas
interrupções de governos democráticos e das próprias reformas do judiciário realizadas durante os períodos de
governos democráticos. Para uma analise destes processos centrados no caso da Corte Suprema de Justiça, olhar:
Pellet Lastra, 2001.
141
Em: Pinto, 1984.
142
Numa futura pesquisa, seria muito importante poder reconstruir os escritórios jurídicos da época, para
conferir se existia efetivamente uma divisão dada pela filiação política, quer dizer, se existiam escritórios
integramente compostos por procuradores, estagiários e funcionários anti-fascistas e vice-versa.
76
organizando vários grêmios de ‘operários e funcionários’. Uma de suas defesas de maior
repercussão pública foram os chamados ‘presos de Bragado’, por pedido da Federação Obrera
Regional Argentina (FORA). Nesse processo, três militantes anarquistas foram acusados de
assassinato
143
.
O trabalho de assessoria legal nos incipientes e cada vez mais numerosos sindicatos e
associações de trabalhadores, a participação ativa e militante na causa do anti-fascismo,
parecem constituir para este ‘proletariado profissional’ uma nova fonte de formação,
profissionalização e legitimação
144
. Como assinala Suriano, o começo do século XX se
caracterizam pelo aumento das demandas trabalhistas e o incremento na taxa de
sindicalização, assim como dos índices de politização dos trabalhadores. Foi nesse momento
quando a questão social se fez plenamente visível e se transformou numa questão de
Estado”
145
. Foi nesses anos quando se criou o Departamento Nacional do Trabalho, onde
participaram alguns dos defensores descritos nestes capítulo e os Tribunais de Conciliação e
Arbitragem especificamente dedicados a dirimir as controvérsias resultantes dos contratos de
trabalho.
A importância destes espaços profissionais se evidencia nos obituários que seus
colegas da faculdade fizeram de Leônidas Anastasi, professor da Universidade Nacional de La
Plata no curso “Direito do Trabalho”. Seus colegas lembram como o rigor do jurista e seu
compromisso com a causa dos trabalhadores não se excluíam, pelo contrário, a primeira era a
continuação da segunda: “... em mais de uma oportunidade, suspendia seus estudos para se
deslocar até uma prisão e assumir a defesa de operários detidos injustamente pela perseguição
143
Para um detalhe desta defesa ver Sánchez Viamonte, 1971, pág. 77 a 83 e o livro do próprio acusado, Pascual
Vuotto, que leva como título “Yo acuso” em clara referencia ao célebre affaire Dreyfuss.
144
Como já fora antecipado na introdução da tese, seria muito importante, num futuro trabalho, explorar mais em
detalhe a relação entre este engajamento jurídico junto com o desenvolvimento do movimento dos trabalhadores
na Argentina daqueles anos e as políticas de Estado orientadas a este setor. vou delinear, por enquanto, as
principais linhas do seu desenvolvimento: em 1918, quando assume Hipólito Yrigoyen existia uma classe
operária pouco desenvolvida como resultado da ausência de centros industriais e do predomínio dos
trabalhadores artesanais. Ainda em 1914, o conjunto de pessoas empregadas na industria era de 410.000 sobre
aproximadamente 8 milhões de habitantes. A maioria deles estavam distribuídos em pequenas oficinas 48.000
estabelecimentos – que tinham em meia de 8 a 12 trabalhadores, sendo a exceção os que superavam os 100. Mais
do 38% do pessoal empregado nas industrias trabalhava na alimentação. Para 1916 começaram a se desenvolver
as indústrias ligeiras (tecido, calcado, metalurgia, química, etc). A organização dos trabalhadores era ainda
incipiente. em 1931 foi criada a CGT, que se definiu pelo seu apoio a Uriburu e Justo. Em 1931-32 se abriu
um período de grandes lutas operárias que chegou a seu ponto máximo no ano 1936, favorecido pelo fato de que
a classe operária tinha crescido quantitativamente e que já começava a se concentrar em grandes fábricas e
oficinas. Entre as greves se destacam a dos operários dos frigoríficos, a dos trabalhadores do petróleo e da
construção (a qual já fiz referencia numa secção anterior do capítulo aonde se relata a deportação dos dirigentes).
145
Em: Suriano, 2004:5. Sobre a questão social ver Suriano, op.cit. e Zimmermann, 1995.
77
que se fazia a seus dirigentes. Os trabalhadores do país choraram sua morte. Como não
houvesse ocorrido se o mestre viveu amando seu povo!”
146
.
O conjunto de transformações descritas modificaram o universo dos profissionais do
direito, instituindo novos espaços de formação prática, de inserção profissional e novos
critérios de legitimação entre o conjunto de pares. A posição adotada por os advogados
descritos se relaciona a uma maneira de perceber o exercício profissional em tanto ato de
militância, como se evidencia na prática gratuita destas defesas. Alfredo Palácios, muito antes
de fazer seu ingresso à LADH, tinha colocado uma Assessoria Jurídica Gratuita no Centro
Socialista do bairro de La Boca (1902) e tempo depois na Unión General de Trabajadores
(1905). O mesmo acontece com Carlos Sánchez Viamonte e com os restantes advogados
mencionados até aqui.
Porque o exercício da profissão os aproximava dos grêmios e sindicatos, as defesas
que eles levantavam não se restringiam aos casos que supunham uma aberta violação às
liberdades públicas. Seu compromisso com a causa dos ‘proletários’ os conduzia a denunciar
as transformações produzidas ao longo desses anos na legislação trabalhista e a maneira em
que ela afetava a vida dos trabalhadores, seus defendidos. O periódico Defensor Popular, por
exemplo, publica um detalhado analise das conseqüências da sentença do Tribunal Superior
de Justiça que declara ilegal a lei 11.729. Esta sentença significou que as empresas poderiam
demitir trabalhadores “... sem outra indenização que um ou dos meses de salário, mesmo que
tivessem trabalhado nesses estabelecimentos ao longo de vinte anos e mesmo que tivessem
deixado as energias dos seus melhores anos...”
147
.
A prática, tanto acadêmica quanto legislativa ocupou um lugar central em tanto espaço
de luta política e ideológica mas também em quanto instancia chave na aquisição de um
nome. Os integrantes das associações descritas nestas páginas atuaram como conselheiros
acadêmicos e, inclusive, como decanos das faculdades de direito de Buenos Aires e La Plata
ou como reitores destas universidades, como foi o caso de Palácios. Ambas as tarefas
estiveram dominadas pelo interesse em divulgar e traduzir ao direito positivo o ‘novo direito’.
Assim como Alfredo Palácios foi o criador da primeira cadeira de direito trabalhista no país,
146
Em: Anales de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad Nacional de La Plata, La
Plata. Tomo XI. Año 1940, pág. 910.
147
Em: Defensor Popular, año 1. N° 8. 1936.
78
José Peco criou a primeira cadeira de direito penal. Como juristas desenvolveram uma
volumosa obra, entre a qual se destacam os trabalhos de quem ganharia uma reputação de
‘reconhecido constitucionalista’: Carlos Sánchez Viamonte. Vale a pena salientar brevemente
os títulos de alguns dos livros de Sánchez Viamonte com o propósito de registrar a relação
entre seu engajamento jurídico e a prática acadêmica: El Habeas Corpus: la libertad y sus
garantías (1927), Hacia un nuevo derecho constitucional (1938) e Los Derechos del Hombre
en la Revolución Francesa (1956).
Entre os dirigentes destas associações civis se destaca também a importância dos seus
engajamentos partidários. Esta forma de militantismo cívico não constituía um compromisso
exclusivo. Os profissionais do direito descritos neste capítulo participavam da política
nacional. Entre eles podem-se reconhecer figuras notórias dos principais partidos políticos do
país como Alfredo Palácios (OS), Lisandro de la Torre (Partido Democrata Progressista),
Arturo Frondizi e Juan Atílio Bramuglia. Revisando os dados biográficos de 20 das
lideranças da Liga, pude identificar que 15 deles (75%) dedicavam-se profissionalmente à
política, como parlamentares, funcionários públicos ou cumprindo funções de representação
nas instancias nacionais de direção dos partidos políticos
148
. Assim, os liguistas Leônidas
Anastasi, Lisandro de la Torre, Ernesto Boatti e Mario Bravo compartilharam os espaços da
Câmara de Deputados e de Senadores da Nação. Estes dados parecem indicar que o
engajamento com a Liga não esteve fundado exclusivamente em fatores ideológicos e que
constituía uma atividade secundaria a outras múltiplas tarefas. Mas, como vai se ver, uma
tarefa que resultaria crítica na incorporação a esta militância cívica.
Através da sua atuação parlamentar, estes profissionais do direito criaram uma
importante legislação trabalhista, formulando e sancionando leis que regravam o jornal de
8hs. de trabalho, o salário mínimo, as férias pagas, o trabalho infantil, a licença maternidade,
o descanso do dia domingo, a indenização por demissão, a criação dos tribunais trabalhistas e
a indenização por acidente, entre outras. O engajamento com a causa anti-fascista os levou a
criar no Congresso Nacional uma Comissão de Inquérito sobre as Atividades Anti-Argentinas.
Esta comissão esteve integrada pelos deputados e liguistas Leônidas Anastasi e Eduardo
Araújo.
148
Estes dados forma elaborados para o grupo de lideranças com maior notoriedade pública (50%). Sobre o
restante, ainda não consegui completar o levantamento da informação, pela dificuldade em obter dados devido a
sua menor importância pública.
79
A intensidade de seus engajamentos públicos se verifica também a partir da sua
participação em outras associações civis como o Comitê Argentino contra el Racismo y el
Antisemitismo, o Comitê Pro-Amnistía a los Presos y Exiliados Políticos de América y la
Unión Latinoamericana. Verifica-se a pertença comum a uma nebulosa de organizações
opositoras ao regime, tanto partidárias quanto reivindicativas. A pertença sucessiva ou
simultânea a distintas esferas de ação é uma característica recorrente nas trajetórias destes
liguistas. A política, a atividade legislativa, o ensino universitário, o jornalismo e a literatura
os convocava por igual, como é o caso de Alfredo Palácios, primeiro deputado nacional eleito
pelo Partido Socialista, logo senador, embaixador e, simultaneamente, professor universitário
e reitor da Universidade Nacional de La Plata.
Pode-se capturar a complexidade com que se articulam todos estes espaços de atuação
pública, a maneira com que se vinculam as propriedades sociais de alguns de seus
protagonistas com os princípios de distinção que são próprios deste ativismo jurídico na
figura de uma defensora de presos políticos e sociais integrante do Socorro Rojo
Internacional: Nydia Lamarque (1906-1982). Neste universo predominantemente masculino,
Lamarque se distingue pelo fato de ser uma das primeiras mulheres advogadas da Argentina.
Segundo Delfina Muschietti, Lamarque fez possível esta ‘façanha’ devido a que ela era: “...
uma mulher de posse e de classe meia alta” que residia num prédio de uns dos bairros nobres
da cidade de Buenos Aires: Belgrano
149
. Desde finais do século XX, o bairro de Belgrano era
o local de residência das autoridade da Nação. Ali tiveram a sua residência vários presidentes
argentinos como Manuel Quintana, Marcelo Torcuato de Alvear e Agustín P. Justo. O bairro
se caracteriza também pela proliferação de clubes e colégios privados de comunidades
européias (principalmente inglesas, alemãs e francesas).
149
Em: Muschietti, 2003: pág. 21-44. Segundo Leiva, a presença de mulheres na Faculdade de Direito data de
1910 quando “… começam muito devagar a se incorporar à vida forense que a mentalidade dominante na
época não concebia a presença feminina na Casa dos Pleitos”. Em 1936 eram 36 as mulheres matriculadas no
foro portenho. Em: Leiva, 2005: 25 e 287. Vale a pena frisar a observação deste autor relativa ao lugar que hoje
tem as mulheres no setor privado da atividade: não existe nenhum grande escritório dirigido por uma advogada
(ibidem).
80
Tabela N˚ 2: Simultaneidade de compromissos associativos dos defensores de presos
politicos.
Nombre
Comité Pro
Aminstía
Comité
contra el
Racismo
LADH
Comité de
Ayuda
Antifascista
Socorro Rojo
Defensa
Popular
Ardigó, Héctor X
Anastasi, Leónidas X X X
Araoz Alfaro, Rodolfo X X X
Araujo, Eduardo X X
Bagu, Saúl X X
Berman, Gregorio X
Bravo, Mario X X X
Barros, Enrique X
Boatti, Ernesto X X
Bunge, Augusto X X X X
Cattáneo, Atilio X X
Cerda Delgado, Carlos X
Damonte Taborda, Raúl X X
Dang, Alfredo X
De la Torre X X
Dickmann, Enrique X
Eichelbaum, Samuel (inge X
Frondizi, Arturo X X X X X
Giudice, Ernesto X X
Gomez Masia, Roman X
Goldstraj, Juan X
Guibourg, Edmundo X X
Guillet Muñoz, Gervasio X
Guillet Muñoz, Alvaro X
Guillot, Víctor X
Jorge, Faustino X X X
Iturburu, Córdoba X
Icaza, Jorge X
Latella Frias X
Laurencena, Eduardo X
Mathus Hoyos, Arturo X X
Marianetti, Benito X X
Mariani, Mario X X
Marof, Tristán X
Martínez del Castillo, E. X
Mello, Barbosa X
Moog, Carlos X
Molina y Vedia, Mario X X
Molinari, Diego Luis X
Monserrat, Santiago X X
Moreau de Justo, Alicia X
Noble, Julio A. X X X X
Orzabal Quintana, Arturo X X X
Orgaz, Jorge X
Peco, José X X X
Ponce, Aníbal X
Portugal, Enrique X
Ramiconi, Luis X X X
Ravignani, Emilio X X X
Roca, Deodoro X X
Rojas Paz, Pablo X
Sánchez Viamonte, Carlos X X X
Sanmartino, Ernesto X
Stemberg, D. X
Tamborín, José X
Taborda, Saúl X
Torrasa, Atilio X
Troise, Emilio X
Tuntar, José X
Vaamonde, L.
Warschaver, Fina X
TOTAL 31 31 18 12 6 4
81
A figura de Nydia Lamarque e seu engajamento com a defesa de presos políticos
interessa em quanto condensa uma série de desafios ao que poderia aparecer como um destino
traçado de antemão: originaria de uma família da elite portenha, ingressa ao mundo
universitário pouco tempo depois do movimento da Reforma Universitária, ao que apóia.
formada como advogada, dedica seus esforços profissionais à defesa dos operários e
militantes anarquistas e comunistas. Filia-se ao Partido Comunista e se transforma num
quadro dirigente do mesmo ao tempo que milita pela causa da união latino-americana. Junto
com toda esta atividade profissional e política, participa simultaneamente do movimento de
vanguarda literária local e mantém uma estreita proximidade com uma ‘jovem promessa
literária do momento, o escritor Jorge Luis Borges, também originário de uma acomodada
família portenha e integrante do ComiArgentino contra el Racismo y el Antisemitismo
150
.
Junto com estas propriedades que a aproximam ao mundo dos intelectuais da época,
Lamarque foi também perseguida e detida como resultado de sua atuação como defensora.
Numa publicação da época ela aparece definida como “... corajosa escritora argentina, detida
e processada pelo governo do General Justo como produto de suas atividades como presidenta
do Comitê Nacional contra la Guerra”.
151
A imagem que aparece dela no periódico Socorro
Rojo a apresenta justamente numa posição desafiante, reconhecível no cigarro que leva na sua
boca.
152
Para quem aparecem como ‘recém chegados’ ao mundo do direito, o engajamento com
a causa anti-fascista e com a causa dos trabalhadores supõe uma ampliação do exercício do
direito por fora dos marcos em que ele se tinha praticado tradicionalmente. A elaboração de
uma legislação trabalhista, o patrocínio de trabalhadores e sindicatos, a criação de cadeiras de
direito trabalhista, de revistas jurídicas especializadas, o sustento de uma imprensa anti-
fascista, são todos espaços que vão ser ocupados pelos profissionais do direito examinados
neste capítulo e que se vinculam com esta maneira de exercer o direito em quanto prática
militante. Nestes espaços, estes ‘outsiders’ participavam em tanto ‘peritos’ em direito do
trabalho, direito penal e direito de asilo, reivindicando ao mesmo tempo, uma identidade
militante e distinguindo-se de quem possuíam um capital de relações ao interior do direito e
da política pela possessão de outros atributos, talvez mais intangíveis como o heroísmo, o
150
Como parte de esta atividade artística, Nydia Lamarque traduziu ao espanhol a obra completa de Baudelaire,
participou de várias revistas literárias como Nosotros, aonde também publicava Alfredo Palácios. Um dos seus
livros de poesia, Telarañas (1924) foi resenhado favoravelmente pelo próprio Borges.
151
Em: Boletín del Congreso Antiguerrero Latinoamericano. N° 1. 1932.
152
Lamarque foi quem levou a frente a estratégia de defesa política já descrita nas páginas anteriores do capítulo.
82
sacrifício e o desinteresse mas não por isso menos eficazes na hora de se fazer de um nome e
de uma posição ao interior deste espaço de relações.
A adoção deste engajamento público com a causa dos ‘proletários’, os ‘perseguidos’ e
os ‘pobres’ de parte dos ‘notáveis’ do direito e da política dotados de um nome e de um
significativo capital herdado de relações parece um fato difícil de compreender a simples
vista. O paradoxo parece se localizar no fato de que esta proximidade com os ‘outsiders’ lhes
tenha permitido fazer seu ingresso ao centro da vida política. No entanto, no mutante espaço
político de princípios do século XX, as estratégias de acumulação de notoriedade pública
deixaram de estar ligadas diretamente a posse de riqueza (principalmente fiduciária) como era
o caso das elites tradicionais. A decadência de algumas destas famílias como a irrupção na
política dos setores meios, fomentada pela mesma geração do 80 sobre a base da lei de voto
masculino segredo e obrigatório, transformou as condições de competição pela representação.
De forma tal que o uso experto do direito em defesa das injustiças e dos excluídos se
converteu num recurso crítico de distinção perante potenciais competidores, como o
anarquismo e o comunismo, ou ao interior dos próprios partidos de pertença, ao permitir a
acumulação de um capital extremadamente valioso como é o capital moral.
Parlamentares, advogados, professores universitários, juristas, assessores de sindicatos
e grêmios, jornalistas, poetas, escritores e dirigentes políticos são todos os atributos que
compõem a figura do advogado engajado com a causa dos direitos do homem. Longe de se
excluir uns com os outros, todas estas múltiplas formas de representar a sua posição pública
adquirem sentido dependendo do contexto de interação. Nas figuras estudadas neste capítulo
se encontra esta multiplicidade de funções e de espaços de pertença. A possibilidade de
combinar com sucesso todos estes âmbitos de atuação parece derivar das próprias condições
do exercício profissional do direito e da política profissional, caracterizados ambos dois pelo
fato de possibilitar uma relativa independência econômica e disponibilidade de tempo.
Segundo assinala Laurent Willemez, “A profissão de advogado constitui uma condição de
possibilidade de um engajamento público pela liberdade de organização que oferece e pela
possibilidade de uma independência econômica”
153
153
Em: Willemez, 2003. Minha tradução.
83
Nestes espaços múltiplos e através destas múltiplas pertenças, estes professores,
juristas, vítimas da ditadura e predicadores da causa pelos direitos do homem se reconhecem e
são reconhecidos pelos pares a partir da possessão de um conjunto de atributos ou qualidades
próprias do perfil de advogado defensor de presos sociais e políticos.
1. 6 Uma causa internacional
A criação destes espaços associativos assim como a adoção de uma retórica específica
ligada aos ‘direitos do homem’ revelam o importante grão de internacionalização da disputa
‘fascismo / anti-fascismo’ a escala mundial e particularmente na Argentina. A importância
que para esta militância tinha o fato de adscrever à luta contra o fascismo coincide, sem
dúvidas, com o caráter massivo da imigração de cidadãos originários da Europa.
154
Dentro
deste contexto, desde fines do século XIX, a Argentina tinha começado a receber refugiados
políticos que, havendo tido uma ativa participação na vida política européia, tiveram que fazer
abandono dela pelo fato de serem perseguidos logo da derrota da Comuna, da Primeira
República Espanhola ou da promulgação das leis de Bismark na Alemanha. A partir de 1930,
ano do golpe de Estado de Uriburu, se juntaram os espanhóis republicanos que procuravam
asilo na Argentina, uma população integrada maiormente por intelectuais e setores
privilegiados (calculam-se uns 40.000). Procuraram refugio também no país inumeráveis
intelectuais de países limítrofes como Chile, Peru, Paraguai e Brasil, países aonde imperava a
lei marcial, o Estado de sitio e os governos de facto. Entre estes imigrantes se encontravam
numerosos advogados como Jiménez de Azúa, reconhecido penalista espanhol, militante do
anti-franquismo e professor da faculdade de direito de Buenos Aires que se constituiria numa
referencia obrigada da geração dos advogados militantes na causa dos direitos do homem
estudados neste capítulo
155
Estes refugiados participaram ativamente na consolidação do movimento sindical e
político local tentando replicar a experiência européia. Em aqueles anos, muitos estrangeiros
se encontravam ao frente dos principais partidos políticos, como o socialista (1896) e dos
154
Alguns breves dados estatísticos revelam a importância deste fenômeno: entre 1880 e 1914, o 70% da
população da cidade de Buenos Aires estava integrada por imigrantes europeus e este porcentual chegava ao
30% nas principais cidades do interior do país (Córdoba, Santa Fé). Segundo dados do CELMA, a Argentina foi
o país de América latina que recebeu maior quantidade de imigrantes europeus. Em:
www.cemla.com.
155
Segundo dados do Handbook of the River Plate (1892), em 1887, ao início do processo imigratório, exerciam
em Buenos Aires 249 advogados estrangeiros. Em: Leiva, 2005: 239.
84
nascentes grêmios da época, ao frente das primeiras greves operárias do país (1878). É
evidente que tanto a LADH quanto o Socorro Rojo não foram invenções nacionais mas
herdeiras desta mesma tradição e respondiam a modelos criados previamente na Europa: a
Ligue Française des Droits de l’Homme et du Citoyen (1898), la Fédération Internationale de
Droits de l´homme (1922) y la Ligue Internationale contre le Racisme et l´Antisémitisme
(1927), associações todas que no período de entre - guerras viviam uma sorte de ‘idade de
ouro’ deste tipo de vocação militante.
156
A participação das associações civis de defesa dos direitos do homem na causa
internacional contra o fascismo levava a marca das ligações criadas entre a Argentina e os
distintos países da Europa e de América latina a partir do fato de que as próprias vítimas
locais do fascismo eram apressadas no exterior e na Argentina se encontravam presentes
refugiados destes mesmos países. As denuncias formuladas publicamente por estes advogados
referem diretamente a este espaço internacional. A capa do primeiro número do periódico
Amnistía, por exemplo, reproduz os telegramas enviados por vários liguistas e dirigentes
políticos nacionais solicitando a Vargas o indulto de ‘jovens revolucionários’ argentinos
detidos no Rio de Janeiro como assim também ao presidente de Bolívia ‘clemência’ para o
escritor boliviano Tristán Maroff que, ‘foi deportado pelo governo argentino, pisoteando o
sagrado direito de asilo da nossa pátria’. Como assinala e denuncia o liguista Mario Bravo nas
páginas de Amnistía, é tarefa dos integrantes destas associações procurar os meios de garantir
o direito de asilo para estes exilados porque: “... assim como as polícias se intercambiam
reportes e se entregam presos, os governantes se permitem oferecer ajuda ao tirano que está
envolvido em problemas com a policia interna do seu país, se criando, deste modo, entre as
classes governantes, uma nova forma de solidariedade que vai se chamar ‘aliança ofensiva e
defensiva contra o socialismo, o comunismo, o extremismo”.
157
156
No momento em que a LADH foi criada, já existiam seus equivalentes na Franca, Bélgica (1901), Espanha
(1913), Alemanha (1914) e Áustria (1925). Em América latina, se tinham criado filiais em Chile e Uruguai
(Comitê para la Defensa de los derechos individuales). No Brasil, a Aliança Nacional Libertadora, dirigida por
Álvaro Guillot Muñoz, também tinha esse perfil. Para uma história da Liga Francesa pode-se consultar o
trabalho de Agrikoliansky, 2002.
157
Em: Amnistia. Año 1, 1, Março de 1936. Grifos meus. Isto aconteceu com o intelectual boliviano Tristán
Maroff a quem, por pedido do próprio governo de Bolívia, o Estado argentino lhe tinha outorgado a condição de
asilado político. Logo foi deportado a Bolívia aonde tinha uma condena a morte. O advogado e integrante do
Comitê pro Amnistia a los Presos y Exiliados de América, Rodolfo Araoz Alfaro foi quem assumiu a defesa de
Maroff. Outros exilados, como Alfaro Sequeiros eram detidos na Argentina violando o direito de asilo outorgado
pelo país. Neste caso, foi Mario Bravo quem assumiu a defesa dele. Numerosos dirigentes argentinos do Partido
Comunista (Ghioldi), socialista e radical (Luzuriaga) tinham sofrido detenções e torturas no Rio de Janeiro e
Montevideo. A denuncia da colaboração entre as forças de seguridade dos países limítrofes na repressão aos
85
Como sugerem as expressões de Bravo, esta internacionalização do movimento anti-
fascista ia a par da internacionalização do próprio movimento fascista que também formava
núcleos de prédica a favor do regime fora do espaço europeu. Na América latina, as práticas
repressivas dos países vizinho também tinham fortes semelhanças, especialmente no que se
refere à aplicação da lei de Residência. Isto porque, como se assinala no periódico Amnistia,
“Na maioria dos países de a nossa América do Sul imperam regime legais de exceção.
158
No
entanto, as relações entre os governos da época ‘ameaçados pelo perigo do comunismo
internacional’ também não eram fáceis e pareciam requerer o estabelecimento de acordos
internacionais, como parece sugerir a proposta de chegar a um acordo formal a respeito dos
detidos por motivos políticos: logo de sua reunião com representantes do governo brasileiro, o
chefe da policia da cidade de Buenos Aires declarou: “... que o governo está disposto a
colocar um fim a costume dos países limítrofes de colocar na fronteira aos opositores”
mediante a deportação dos exilados” (ibidem).
Testemunho da participação destes profissionais do direito no espaço internacional é a
participação de integrantes da LADH na Conferencia Internacional sobre Asilo em Paris, a
organização de comícios locais em comemoração do Dia da Fraternidade das Raças instituído
na Franca e a conformação de filiais da LADH no Chile e do Comitê Pro Amnistía de los
Presos y Exiliados Políticos de América no Uruguai, presidido pelo advogado, deputado e
dirigente do PS e exilado, Emilio Furgoni. Participavam também na criação destes espaços
delegações de exilados de Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Peru e Chile, como aconteceu
no caso da LADH. Alguns anos depois, em 1948, Raúl Bustos Fierro, presidente da LADH
participou na redação da Carta Universal dos Direitos Humanos.
Estes vínculos internacionais faziam parte das relações criadas com outras agencias
internacionais com as quais os dirigentes destas associações locais também mantinham uma
estreita proximidade, especialmente com aquelas ligadas ao mundo do trabalho e do
sindicalismo. Entre elas se destaca a Oficina Internacional del Trabajo (OIT) a qual pertencia
um dos fundadores da Liga, Leônidas Anastasi. Os assessores jurídicos da OIT também
estavam engajados na denuncia de detenções de delegados e dirigentes trabalhistas e no
oponentes vai ser uma das peças chaves do trabalho de denuncia mobilizado em volta à causa dos direitos
humanos nos anos 80 (capítulo 3).
158
Em: Amnistia. Año 1, N° 1, Março de 1936.
86
reclamo da ‘liberdade de todos os presos sociais dos países do continente americano’.
Dispunham eles também de um serviço jurídico cujos profissionais se apresentavam como
‘observadores’ in situ das ações de perseguição ao movimento sindical e produziam reportes
sobre o respeito aos direitos de sindicalização e de greve. Faustino Jorge, integrante da Liga,
participou como ‘assessor jurídico’ da delegação de observadores destacada no Chile pela
Confederação Sindical Latino-americana. Como se vai ver no capítulo 3, a maior importância
que estas instituições internacionais e seus peritos adquiriram a partir dos anos setenta, vai ser
um das chaves no processo de profissionalização dos advogados na causa pelos direitos
humanos.
Estas vinculações se verificam também nas próprias trajetórias dos integrantes de
associações como a LADH. O dirigente liguista Orzábal Quintana tinha se formado em
ciências políticas na Sorbone, Paris. Leônidas Anastasi foi presidente da delegação argentina
à Primeira Conferencia Internacional do Trabalho celebrada em 1919 em Washington. No seu
obituário se destaca: “Conhecido na Europa através de seus escritos, ele era conhecido na
Itália por Carnelutti, Greco e Barassi e na Franca por Jacques Lambert, quem destaca em uma
de suas últimas publicações o trabalho do doutor Anastasi”
159
Outros mantinham estreitos
vínculos com especialistas europeus, como foi o caso de Alfredo Palácios, quem desde seu
cargo de reitor da Universidade Nacional de La Plata convidou a nomeados professores e
juristas europeus e traduziu quase em simultaneidade com Europa importantes obras jurídicas.
A importância destes vínculos se colocou de manifesto quando, em 1943, logo de um
novo golpe de Estado militar, Palácios, como reitor daquela universidade, rejeitou um decreto
de expulsão de professores, se demitiu da função e partiu ao exilo em Montevidéu. Perante a
estes fatos, um grupo de professores de EEUU, encabeçado por Albert Einstein se solidarizou
publicamente com o renunciante a quem qualificaram de ‘herói da democracia mundial’ e
‘vítima do governo de facto’
160
. Recebeu também a solidariedade de Romain Rolland e de
professores europeus aos que tinha conhecido durante as suas ‘missões’ universitárias em
EEUU, Europa e América latina realizadas com o propósito de ‘predicar’ a Reforma
Universitária. Em Uruguai, Brasil, Bolívia, Peru, Paraguai e México tinha atuado também
como professor convidado, coincidindo com situações prévias de exílio na Argentina vividas
159
Em: Anales de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad de La Plata. La Plata. Tomo
XI. Ano 1940.
160
Em: Palacios, 1946:23.
87
pelos advogados e professores de direito que, uma vez voltados a seus países de origem,
faziam, pela sua vez, de anfitriões de Palácios, Sánchez Viamonte e muitos outros. Estes
convites sugerem a proximidade que existia nesta esfera internacional entre este conjunto de
profissionais do direito, intelectuais e figuras da política dos países de América latina. Os
advogados das associações de defesa dos direitos do homem tinham atuado como defensores
destes acadêmicos estrangeiros ou os integraram aos comitês executivos de organizações
locais como o Comitê Pro Ayuda a los Presos y Exiliados de América.
A adoção do engajamento com a causa anti-fascista, com os ideais democráticos e com
a defesa dos ‘direitos do homem’ não era então uma conseqüência exclusiva dos tempos
que corriam mas também resultado das estreitas relações preexistentes, incluindo as
estabelecidas entre as comunidades acadêmicas de Europa e Argentina. Relações
possibilitadas pela disponibilidade de recursos para participar deste universo
internacionalizado por parte dos dirigentes descritos acima (recursos que incluíam tanto a
competência lingüística quanto um importante capital de relações sociais). Esta
internacionalização esteve possibilitada, pela sua vez, pela prematura internacionalização das
elites dirigentes locais que, em termos de idéias e instituições, sempre tiveram uma forte
influencia internacional e, inclusive, se tem apoiado em distintas estratégias de
internacionalização como uma forma de ganhar poder político local. Fato que se correlata,
segundo com Dezalay e Garth, com a significativa debilidade das instituições do Estado e a
importância do capital e da legitimidade estrangeiras – incluindo o direito - nas lutas políticas
locais.
161
1. 7 Ser um advogado defensor de presos políticos
Na procura de uma posição dentro do universo do direito e da política, estes
profissionais engajados com a defesa de presos políticos e sociais foram vistos como
potenciais concorrentes na representação do interes público. se viu nas páginas anteriores
como os dirigentes anarquistas e os dirigentes sindicais desqualificavam o engajamento destes
advogados apresentando-os como ‘homem de estudo’ sem conhecimento do mundo dos
161
Em: Dezalay e Garth, 2002.
88
trabalhadores. Os partidos políticos aos que estavam afiliados também os sancionavam por
transpassar as fronteiras partidárias e assumir defesas das lideranças de outros partidos que o
de pertença.
89
Desde o extremo oposto do espectro ideológico, estas associações eram
desqualificadas também com o argumento de constituir simples camuflagem dos interesses do
comunismo e eram acusadas de utilizar a ‘táctica’ de se apresentar como ‘vítimas de
perseguições’ de entidades nacionalistas. Num folheto publicado na revista Clarinada
intitulado “A verdade sobre a LADH” se desqualificava aos ‘advogados’ e ‘intelectuais’
integrantes da Organização Popular contra o Racismo e o Anti-semitismo, ao Socorro Rojo,
do Comitê Pro Amnistia de Presos y Exiliados Políticos de América e da Liga por contribuir
ao engano da opinião blica nacional em quanto aos verdadeiros fins destas associações. A
defesa dos direitos do homem era um camuflagem detrás do qual se escondiam quem
estavam interessados em levar a frente a estratégia do Frente Único ou Frente Popular
proclamada pelo comunismo internacional. Esta revista, cujo propósito declarado era o de
combatir abertamente ao judaísmo, ao comunismo e ao socialismo, se propunha ‘tirar a
máscara’ da Liga apresentando como ela contribuía a ‘engrandecer’ as filas do PC. Através
deste tipo de associações, o PC “... pode levar à ação no Frente Popular a muitos elementos e
setores que, sem ser comunistas, simpatizam com a ação político-social a desenvolver neste
novo organismo”. Desde o ponto de vista de Clarinada, este seria o caso do senador do PS e
presidente da LADH, Alfredo Bravo que, sem ser publicamente comunista, pode atrair, pelas
suas vinculações sociais, políticas e pessoais, a muitos elementos necessários para esse
movimento democrático-liberal só em aparência, mas que no fundo, é disciplinadamente
dirigido pelo PC”.
162
A apresentação no Senado de um projeto dispondo o fechamento da
Liga pelo senador Sánchez Sorondo esteve motivada na suposta ação política ‘encoberta’.
Esta proposta testemunha também as tensões envolvidas no reconhecimento desta causa.
No contexto destas desqualificações, os integrantes destas associações construíram
princípios de representação do seu engajamento jurídico a partir de um conjunto de qualidades
valiosas como o sacrifício, o desinteresse e o heroísmo, que lhes permitiram aspirar a uma
certa legitimidade dentro deste jogo complexo de competências acadêmicas, políticas e
profissionais. Estas acusações todas evidenciam, paradoxalmente, o reconhecimento de algum
tipo de autoridade aos acusados, em quanto se lhes reconhece como adversários legítimos.
163
162
Em: Clarinada. Bs. As. Ed. Patria. S/d. Esta revista foi publicada entre 1937 e 1945. Segundo os fatos que
são descritos, poderia-se pensar que o folheto descrito foi publicado em 1938.
163
No seu trabalho sobre ‘a invenção do peronismo’, Federico Neiburg ilustra, para o caso dos embates ao
interior do mundo intelectual sobre a natureza do peronismo, os princípios que governam as lutas pela honra.
Neiburg, 1988.
90
Em volta destas qualidades e no processo de impugnar ao Estado, é que este segmento
da profissão jurídica se constitui como uma comunidade moral. Estas qualidades organizam a
vocação pela causa, um compromisso que assumem como uma consagração a valores
fundamentais e transcendentes.
1. 7. 1 A ‘inteligência’ e a ‘ilustração’ como armas de luta
Entre os princípios de representação do advogado engajado com a defesa dos presos
políticos é possível achar que, ao tempo que se definiam como profissionais próximos ao
‘povo’ ou a ‘classe operária’, simultaneamente se posicionavam por fora destes grupos ao se
identificar publicamente como ‘intelectuais’ preocupados por desenvolver um ‘trabalho que
levasse ao esclarecimento popular como único caminho prévio a ação’.
164
Nesta luta em
defesa dos direitos do homem suas armas são ‘a inteligência’ e sua ‘ilustração’:
“El Dr. Carlos Sánchez Viamonte, que incurriera en el delito de no poder soportar
en silencio la subversión actual de las instituciones en la provincia, se encuentra
preso (…) Bienvenido una vez más este joven (…) que ha decidido dedicar toda la
fuerza de su inteligencia y de su ilustración para levantar su clamor de protesta por
los vicios que corrompen la dignidad de las instituciones”
165
Num universo habitado por setores meios intelectuais e profissionais, as qualidades
valoradas são aquelas que se caracterizam por estar ligadas às competências culturais e, mais
especificamente, a capacidade reconhecida de fazer uso da palavra em representação dos
outros. Assim, o presidente da Liga, Mario Bravo, é definido como “... uma das
personalidades de maior destaque da política Argentina. Poeta, jornalista, escritor, orador,
ele reúne as condições essenciais para atuar com eficácia em defesa de uma grande causa: a
causa da libertação humana”.
166
Nestas mesmas qualidades são destacadas na figura do
liguista Alfredo Palácios pelo fato que seu ‘ataque à ditadura’ constitui ‘uma exposição
164
Esta breve análise da representação do profissional do direito como intelectual pretende servir de
complemente ao exame das redes de sociabilidade que forjam a este segmento da profissão jurídica. Pretendo
aqui seguir a sugestão de Gerard Leclerc de dar prioridade ao exame destas redes ao invés da análise das
ideologias. Em: Leclerc, 2003.
165
El Argentino. Em: Sánchez Viamonte, 1971: 44.
166
Derechos del Hombre. Grifos meus.
91
orgânica, erudita, fundamentada e militante’ e do fato que sua prédica fosse definida como
um ‘Breviário prático de civismo’.
167
Estas descrições põem de manifesto que, os combates aos que estavam dedicados não
se desenvolveram no judiciário mas que também supõem o uso público da razão e se
baseiam nas armas fornecidas pela cultura: organização de debates, exposições, palestras, etc.
As inúmeras intervenções públicas nas quais participavam, discursos no parlamento, palestras
na universidade, defesas perante os tribunais, comícios nas ruas, evidenciam a importância
adjudicada a estas armas. O mesmo acontece com a escrita, exercitada em livros e artigos
especializados em direito, relatórios técnicos, projetos parlamentares, ensaios políticos, cartas,
alegados, demandas e literatura dirigida a um público de não especialistas como abaixo-
assinados, documentos e artigos de divulgação publicados pela imprensa. Neste contexto se
explica a linguagem bélica recorrentemente utilizada por estes defensores: no seu
engajamento com a causa, se ‘luta’, se ‘ataca’ e se ‘está em alerta contra todas as ousadias da
direita’. Em 1943, logo de outro golpe de Estado, Alfredo Palácios exprimia desde seu exílio
uruguaio, “Faço abandono do país com uma dor imensa, procurando um posto de luta contra a
ditadura”.
168
Nas suas publicações podem-se reconhecer algumas das disposições que configuram a
estas figuras do direito em tanto intelectuais públicos: o tipo de retórica utilizada em seus
escritos é caracteristicamente panfletária. Trata-se de ‘programas de ação’ e ‘declarações de
princípios’ escritos num tono incendiário, polemico (em quanto a ‘polemica é o único
caminho do esclarecimento’
169
) e acusatório. Através desta escrita se ‘tira o camuflagem’ dos
‘verdadeiros’ propósitos do regime e, inclusive, se acusa a quem são percebidos como
pertencendo à mesma causa e ao mesmo universo de relações, como acontece, por exemplo,
com os parlamentares do PS que são acusados nas páginas do Socorro Rojo de ‘cobardes’,
‘tímidos’ e ‘colaboradores da reação’ por rejeitar a denunciar, na interpelação ao Ministro
Melo, a aplicação de torturas aos perseguidos políticos.
170
Estas qualidades da escrita
colocam de manifesto a importação de competências e de recursos entre o campo profissional
e militante.
167
Em: Herrero, 1946.
168
Palacios, 1946:25.
169
Em: Contra-fascismo. 1936:1.
170
Os integrantes do Socorro Rojo reproduzem o diário de sessões para deixar em evidencia a fraqueza do
deputado Iribarne (PS) quando no parlamento falou: “Não diz que eu tenho casos concretos de torturas aplicadas
a detidos políticos” quando fora pressionado pelo ministro a apresentar provas das acusações. Em: Socorro Rojo.
92
93
Todo este desdobramento de recursos, tempo e esforço dedicados à escrita e ao
exercício da palavra colocam em evidencia o fato de que estes advogados vivem para as
idéias, mesmo que seja à custa de seu próprio patrimônio, como nos casos em que eles
mesmos financiam os periódicos das associações. Trata-se de figuras que, misturam tanto o
perfil de especialista com o de intelectual engajado. Ao fazer-lo traspassam os marcos de sua
profissão para fazer da escrita sobre os problemas públicos uma parte central de sua atividade.
Através deste engajamento militante eles se vem dotados de uma grande visibilidade pública,
o que torna-se num recurso crítico na hora de exercer as defesas e somar adesões à causa de
seus defendidos, como fica claro nas repetidas referencias à necessidade de ‘pressionar aos
tribunais’ mediante a ocupação das ruas, comícios e manifestações públicas.
A participação neste conjunto de associações civis se compreende então como parte de
uma movimentação de indivíduos dotados de uma grande autoridade intelectual reunidos em
volta a uma causa ‘superior’: a luta contra ‘a ditadura’, a defesa da ‘liberdade’ e as ‘garantias
individuais’, luta na qual as disposições próprias da figura do intelectual resultavam críticas
na ocupação de uma tribuna das ruas, na organização de periódicos, boletins, manifestos,
documentos, abaixo-assinados, etc.
Levando em conta a sugestão formulada por Louis Pinto referida à figura do
intelectual na Franca de começos do século XX, seria possível para o caso Argentino
relacionar o processo de reforma universitária e o aumento do número de recém formados e
estudantes na universidade com o surgimento de um principio de legitimidade propriamente
intelectual, baseado na competência acadêmica e dotado de garantias institucionais
171
.
Investidos destes poderes, a expressão do desconforto vai estar mediada por estes
profissionais do direito que tem com os seus defendidos uma relação profundamente
assimétrica desde o ponto de vista social. Trata-se de intelectuais e profissionais que
defendem os processos dos presos sociais, juristas e acadêmicos que defendem as causas dos
deportados. Esta distancia diminui quando os defendidos são seus próprios pares, quer dizer,
quando os advogados e políticos profissionais que provem dos países limítrofes se encontram
exilados na Argentina.
171
Em: Pinto, 1984.
94
1. 7. 2 O culto ao desinteresse
Neste contexto de distancia social e proximidade ideológica com os interesses dos
defendidos, as referencias ao patrimônio ou a riqueza estão praticamente ausentes nas
trajetórias destas figuras. Inclusive aqueles filhos de famílias de renome procuravam
deliberadamente construir uma imagem pública de austeridade e privação, como são os casos
exemplares de Carlos Sánchez Viamonte e Deodoro Roca.
172
Quem representa o paradigma
desta vida austera é outra vez Alfredo Palácios quem, tendo sido eleito deputado e senador vai
doar o 50% da sua dieta ao PS de modo que “... vai morrer em digna pobreza, sem outros bens
materiais que seus livros, um velho Chevrolet (...) e seus objetos pessoais”
173
.
Uma qualidade crítica ligada a este perfil de setores meios profissionais e intelectuais
aos que pertenciam os integrantes destas associações é o culto ao ‘desinteresse’ no
engajamento com as timas e o triunfo da verdade. Os liguistas e demais advogados
consagravam o essencial de suas atividades militantes a lutar pelos direitos nos quais eles
mesmos não eram os beneficiários. Os affaire por eles assumidos são normalmente aqueles
que envolvem, por um lado, a um individuo vitima de uma injustiça cometida pelo Estado, o
Estado e aos militantes e dirigentes de associações como a Liga como defensores de causas
contra as arbitrariedades do Estado: fechamento de sedes sindicais, deportações, censura, etc.
No discurso dos advogados, o exercício da atividade profissional (remunerada)
aparece diferenciado da ação em defesa dos perseguidos políticos e sindicais, a qual
qualificam como ‘um engajamento ineludível para com o imperativo republicano’. No
cumprimento deste ‘saber cívico’, seus estudos se converteram em “escritórios profissionais
dedicados à defesa gratuita dos trabalhadores...”
174
Este é o perfil que aparece esboçado com
clareza na seguinte descrição do liguista Carlos Sánchez Viamonte na ocasião de ter sido
detido por exercer a defesa pública de um grupo de sindicalistas:
172
Para uma resenha da vida de Deodoro Roca se pode ler o trabalho de Sanguinetti, 2003. Para uma resenha da
vida de Sánchez Viamonte se pode ler a autobiografia, 1971.
173
Em: García Costa, op.cit. :358.
174
Estas qualidades foram reconhecidas pelos pares como Alfredo Palácios quem definiu a Sánchez Viamonte
como “...um paradigma na defesa dos trabalhadores”. Carlos Sánchez Viamonte, op.cit.: 138
95
“El sacrificio del Dr. Sánchez Viamonte es el de un ciudadano patriota, recto y
justo, que defiende el interés público, que lucha por la causa del pueblo, que
anhela el reestablecimiento de la libertad y de la justicia, que persigue a los
ladrones del sufragio y a los de los caudales públicos. Su causa es una causa
colectiva en la que él no lucra ni moral ni materialmente…Es menester colocarlo
bien alto, hacer resaltar nítidamente su dignidad como justa compensación a su
condena…”
175
A entrega à causa por sobre a consideração do próprio interes constitui um emblema
para este conjunto de profissionais militantes. A acumulação deste capital moral se revela nas
resenhas de todas estas figuras comprometidas com esta forma de exercer o direito. A
nobreza, os ideais e o compromisso moral com os outros se destacam como qualidades
supremas e se verificam, inclusive, nos traços da vestimenta ou da aparência física, como se
evidencia na seguinte descrição:
“Palacios ostentaba la jerarquía de algo más noble, de algo más trascendente que la
de un simple representante de la política. (...) no se contemplaban sus bigotes
mosqueteriles o su aludo chambergo bohemio sin que uno se dejara dominar por la
evocación de los tiempos antiguos y románticos, es decir, nobles y puros. Alfredo
Palacios, más que un hombre, era un mbolo del idealismo, de la vocación, de los
sueños...”
176
A exaltação da ética do compromisso total com as vítimas aparece dentro deste
universo político e profissional como o recurso privilegiado utilizado por estes atores para
afirmar a autonomia do seu compromisso militante respeito dos interesses temporais da
política. A causa pretende se construir como uma causa cívica e não como uma causa política.
Por isso, a participação deve ser nobre e desinteressada. Ao interior desta comunidade moral,
a atribuição de um interes partidário oculto se torna uma ferramenta chave de desqualificação:
são repetidas as acusações mutuas de utilizar o assessoramento jurídico como ‘fachada’ de
interesses políticos. A resposta que da o Socorro Rojo perante a acusação dos próprios pares
do PS é indicativa do universo moral constituído em volta a esta causa e das estratégias de
impugnação pública de seus integrantes: “... os operários socialistas sabem bem,
175
Palavras do diretor do jornal El Argentino, Dr. Tomás R. García. En: Sánchez Viamonte, 1971.
176
Editorial do jornal La Capital publicada el 05.10.1943 con motivo do exilio de Palacios. En: Palacios, 1946.
op.cit. pág. 27.
96
especialmente aqueles que caíram nas garras de Uriburu (...) que o Socorro Rojo não faz
ideologia para fornecer de ajuda e socorro à uma vítima da reação
177
. A suspeita de
parcialidade e de interes no engajamento militante atua como um princípio de desqualificação
pública. A partir dos anos 80, com o proeminência alcançada pelas associações de parentes
das vítimas, quem possam exibir um vínculo do sangue com as vítimas vão ser quem se
coloquem na cúspide deste engajamento com a causa, como um fato que parece se derivar da
natureza do vínculo.
178
Podem-se compreender as denuncias publicas apresentadas pelos advogados
defensoresde presos políticos e sociais sobre o comportamento profissional de seus pares no
contexto deste universo de valores. Nestas denuncias é possível identificar, pelo contraste, o
compendio de virtudes morais que caracterizam aos advogados militantes na causa pela
defesa dos direitos do homem e os recursos contrastantes que os autorizam. No periódico do
Socorro Rojo se reproduz a seguinte acusação:
“El Sr. Eduardo Newton, abogado y ex camarista, aceptó, previo pago adelantado
de unos cuantos miles de pesos, la defensa de unos obreros procesados. Su
‘muñeca’ y sus ‘influencias’ garantizaban la libertad de sus defendidos. En toda la
secuela del juicio no presentó un solo escrito y cuando sus patrocinados fueron
condenados, arguyó en su descargo que ‘él trabajaba de otra manera’
179
Este caso apresenta a contraposição entre o advogado engajado com a causa dos seus
defendidos, em quanto parte de uma causa maior e o advogado que utiliza simplesmente seu
saber experto e profissional no trabalho de defesa. Enquanto uns trabalhariam de graça, no
outro caso, o valor material do trabalho é colocado como condição para a prestação do
serviço. Enquanto uns contam com recursos simbólicos (honestidade, compromisso,
inteligência) os outros contam com um capital de relações sociais que os fazem atraentes para
o sucesso de uma defesa. Muito mais grave é o caso do advogado cujo compromisso
profissional não lhe impede assumir a representação de causas cujos implicados pertencem a
bandos opostos. Assim, em Defesa Popular se qualifica o seguinte caso como um fato ’limite’
e que ‘merece ser pesquisado’: o Dr. José C. Castells, mantendo uma ‘estreita amizade com
177
Em: Socorro Rojo. Año 1. 2da. Época. N° 6. 10. 06. 1932.
178
Para um análise dos princípios constitutivos do atual movimento pelos direitos humanos ver: Vecchioli, 2005.
179
En: Socorro Rojo, grifos no original.
97
os chefes do nazismo’ e assumindo ‘a defesa de todos os alemães que são levados à justiça’
defendeu também a vários presos comunistas.
180
A expulsão de Antonio De Tomaso do PS em 1927 aparece fundada neste mesmo
universo de representações. De Tomaso era um jovem advogado que provinha de uma família
pobre que se desempenhava como mecanografo na faculdade de direito da UBA. Foi expulso
do partido ao assumir a defesa jurídica de um ‘patrão’. Nesta situação interessa colocar em
destaque tanto a razão verdadeira da sua expulsão do partido, seu apoio à candidatura de Justo
como a intervenção deste princípio ético referido ao exercício da profissão como um
instrumento de disciplina partidária. Referendo-se as lideranças que, tendo defendido a
mesma causa anti-fascista, se somaram logo ao governo de Uriburu e Justo, o periódico
Amnistía assinalava a importância de alcançar “... a retificação dos desvios dos homens que
esquecem seu passado de luta na hora do sucesso político, a maior parte das vezes transitório
ou circunstancial”
181
1. 7. 3. O sacrifício pela causa
Esta custodia sobre a conduta ética do defensor de presos políticos se compreende si se
levam em conta que estes profissionais do direito se percebem a sim mesmo, não como
detentores de um simples saber experto mais como indivíduos dotados de uma ‘vocação ao
compromisso cívico’ e consagrados a uma ‘missão’ transcendente orientada ao ‘bem-estar
comum da humanidade. Seu estatuto profissional leva o atributo de uma imersão completa do
individuo na defesa da causa e de seus defendidos. ão que é enunciada em termos de
‘sacrifico’. São recorrentes as menções a respeito do ‘sacrifício’ do advogado que se ‘entrega
por inteiro’ a defesa dos direitos do homem. Segundo estes princípios de identificação, estes
advogados se percebem como os garantes dos valores considerados ‘sagrados’ ou
‘transcendentes’: a liberdade, a democracia, o direito de asilo, os direitos do homem. As
publicações periódicas, a tribuna da rua, são os espaços adequados para revelar a ‘verdade’
sobre os propósitos ‘ocultos’ do fascismo, das reformas parlamentares, dos discursos oficiais
e ‘predicar’ esta religião cívica.
180
Em: Socorro Rojo. 1936.
181
Em: Amnistía, 1936. N° 1.
98
Neste contexto de representações, a defesa dos direitos do homem devem em utopia de
redenção coletiva. Ao assumir esta causa, é tarefa destes profissionais ir apresentando as
sinais do iminente futuro promissório. Caracteristicamente, os artigos aparecidos na imprensa
destas associações finalizam com a promessa imediata da redenção:
“... La ola del espíritu militarista que envuelve el mundo va perdiendo poco a
poco su vigor. Ya se notan los resplandores de la reacción popular que iluminará
las mentes de los hombres sanos (...) Ya está próximo el día en que todos los seres
humanos de este continente podrán estrecharse las manos sin la prevención
jurídica que ahora establecen las fronteras custodiadas por bayonetas (...) Ojalá
llegue prestamente esa luz
182
.
Todos estes atributos que fazem à representação pública do advogado defensor de
presos políticos parecem se condensar na resenha biográfica que a própria LADH publicara
sobre o seu presidente Mario Bravo:
Surgido de la entraña misma del pueblo, ha entregado al pueblo los mejores
esfuerzos de su interesante vida. En plena juventud lo encontramos (…)
reclamando justicia. Su prédica, su acción, su verbo y su vida son un perenne canto
por el mejoramiento colectivo. Y una permanente protesta contra lo que significa la
usurpación de un derecho o la insinuación de una injusticia. Todo un hombre
moderno. Y un político de aguda sensibilidad que sabe interpretar fielmente los
sentimientos de la clase oprimida (…) Y es un artista que pone su arte, su talento,
su visión de conductor y su afán apostólico al servicio de la redención
planetaria
183
.
Vale a pena frisar a marca da linguagem religioso nesta militância fortemente anti-
clerical, reformista e liberal. Em tanto profissionais do direito, intelectuais e profissionais da
política, estes advogados combinam o exercício técnico do direito com uma consagração ao
sagrado que os aproxima a figura do profeta. Nesta linha, na imprensa destas associações
recorrentemente se utilizam termos como ‘sacrifício’, ‘redenção’, ‘destino heróico’ e
expressões do tipo ‘o sacrifício é nosso melhor estímulo’, ‘a redenção espiritual é a nossa
única recompensa’. Ao se referir a sua participação no movimento da Reforma Universitária,
182
Em: Amnistía, 1936: N°1, grifos meus.
183
Em: Derechos del Hombre. Grifos meus.
99
por exemplo, destacam: ‘Fizemos uma santa revolução’. Neste plano transcendente, quem
participam deste universo profissional e político se definem por oposições antitéticas: as
‘velhas gerações’, a ‘reação’ como equivalentes da ‘obscuridade’ versus as ‘novas gerações’,
‘a juventude’ como equivalentes da ‘luz’. Neste mondo antitético, os advogados defensores
aparecem como os custódios privilegiados dos valores sagrados.
1. 7. 4 A qualidade heróica
Ao desinteresse, a modéstia e o compromisso com o defendido, se soma a qualidade
heróica da figura do advogado ao serviço de uma causa. As detenções e perseguições
chegavam também aos advogados, não aos defendidos. O risco implicado no exercício
militante da profissão é salientado em todos os relatos nativos. Como no caso de Deodoro
Roca, quem se define nestes termos:
“Los que me conocen (…) saben que más de la mitad de mi tiempo profesional, con
abandono casi culpable de mis interese personales (…) se consume en defensas
gratuitas, muchas veces ingratas, de proletarios, perseguidos y pobres de toda laya. Y
en campañas desinteresadas por la justicia y la verdad. Hay más (…) hay momentos
en esta ciudad, cuando las luchas y los conflictos sociales se agudizan, en que resulto
casi el único abogado que se atreve a defender obreros y perseguidos políticos y
sociales”
184
A publicidade das ocasiões em que os próprios advogados foram objeto de
perseguição ou detenção ocupava um lugar importante na imprensa destas associações,
chegando inclusive a ocupar espaços na imprensa local ou nacional. Este foi o caso do
advogado Carlos Sánchez Viamonte quem, em 1915, foi multado pelas suas críticas ao Poder
Judicial da Província de Buenos Aires. Os detalhes de sua detenção foram amplamente
cobertas pelos jornais da capital estadual, O Dia e O Argentino. O primeiro, dirigido pelo
deputado nacional Atencio, iniciou, inclusive, uma campanha com o propósito de reunir
184
Citado em Sanguinetti, op.cit. pág. 83. Numa futura continuação desta pesquisa seria imprescindível situar o
lugar heróico destes profissionais do direito no contexto de outras profissões, como o jornalismo ou a medicina
que também faziam apelo a esta qualidade moral (especialmente é o caso dos ‘Médicos sem Fronteiraso dos
correspondente de guerra. Agradeço especialmente ao professor Luis Fernando Diaz Duarte pelas observações
sobre este ponto.
100
recursos para pagar as multas. A despeito que se alcançou a soma que se precisava, Sánchez
Viamonte opto pela alternativa de cumprir os dias de detenção no Departamento de Polícia de
La Plata e doar os fundos coletados a instituições de beneficência que, nas palavras do
advogado detido, tratava-se de cumprir: (...) um mandato da minha consciência cívica ao
assumir toda a responsabilidade dos meus atos sem me subtrair à pena maior que neste caso
era a detenção”
185
. Paradoxalmente, através deste movimento, o acusado se transformou numa
vítima do regime.
A publicidade destes casos confirma a posição dos atributos exigidos para a
representação dos detidos e perseguidos pelo regime e contribuía a definir seu lugar no
universo dos profissionais do direito. Uma vez finalizada a detenção, Sánchez Viamonte
pronunciou um discurso na praça central da cidade. Nas intervenções dos oradores do ato se
destacou justamente a sua condição de advogado ‘defensor dos trabalhadores’ e de ‘lutador
pela causa do povo’. A publicidade destas situações contribuía a dar publicidade ao trabalho
militante destes advogados e com isso, favorecia a aquisição de notoriedade pública.
Inclusive, os próprios escritórios profissionais dos advogados engajados com a causa eram
publicados nas páginas da imprensa das associações civis as quais pertenciam
186
A enunciação dos riscos envolvidos no exercício profissional torna mais relevante
ainda a pergunta sobre as condições que fizeram possível que indivíduos pertencentes, como
no caso de Deodoro Roca, a famílias ‘notáveis’ da Argentina, houveram optado por se
aproximar a ‘defender a operários e perseguidos políticos e sociais’. Sugiro que esta vocação
pelo desinteresse pode se constituir, no tumultuado contexto político da época, numa instancia
chave na acumulação de prestigio e notoriedade, um capital moral que logo poderia ser
transposto ao campo da política e da competência eleitoral. De fato, um dos defensores que
encarnava o paradigma do engajamento com a causa, que sintetiza a máxima posse das
qualidades morais apropriadas a este perfil profissional, Alfredo
Palácios, foi eleito o primeiro deputado socialista da Argentina justamente no distrito de La
Boca, um distrito caracterizado pela grande proporção de imigrantes europeus que estão
situados junto ao porto de Buenos Aires e que era habitado por famílias pobres acomodadas
185
Em: Sánchez Viamonte, 1971.
186
Ver em anexo N° 6, pág. 118 os anuncios dos escritórios jurídicos dos integrantes da LADH publicados no
periódico Defesa Popular.
101
em prédios precários chamados de conventillos’
187
. Neste bairro, Palácios tinha estabelecido
um serviço de assistência jurídica gratuita
188
. Esta caso sugere a importância de considerar o
ativismo jurídico e não simplesmente a sua posição ideológica ou pertença partidária. Neste
sentido, se o direito é um meio para fazer política, a política pode ser um meio de exercer o
direito.
189
Como se vai ver no capítulo 2, esta vocação pelo desinteresse, o heroísmo e o
sacrifício pela causa também vão estar presentes nas seguintes gerações de advogados
engajados na defesa dos presos políticos.
1. 8 Pensar o direito
Nos estatutos de criação da Liga pode-se ler: “A Liga considera que os direitos
individuais obtidos pelo movimento liberal de 1789 assim como os princípios conquistados
progressivamente ao longo da sua evolução social, se encontram neste momento ameaçados
pelo fascismo, força regressiva que procura elimina-los, fechando violentamente a etapa
democrática da humanidade com grave risco para a civilização”
190
É por isso que, entre os
seus propósitos se contam o de ‘defender por todos os meios a seu alcance a todos os homens
que estivessem privados do goze dos mencionados direitos por um abuso de autoridade (...) e
exigir o respeito ao direito de asilo para os asilados políticos y sociais”
191
Na carta que o liguista e colega Deodoro Roca lhe enviara a Sánchez Viamonte, se
reivindicam os direitos do homem sobre este pano de fundo universal que é o direito:
“Ya Kant (…) enseñaba en los albores de la Revolución que ni el más miserable de
los individuos podía ser atropellado injustamente en nombre de la razón de
Estado… Pasados cien años desde que esas libertades fueron proclamadas en
187
Entre os muitos projetos de lei apresentados por Palacios, o que fora aprovado em 1905 se referia
especificamente ao propósito de regulamentar as condições de vida neste tipo de moradias de aluguel dispondo a
proibição de estabelecer medidores de água para o cobro de impostos como uma medida para prevenir as
doenças infecto-contagiosas. Em: Suriano, 1983.
188
Como adverte Bourdieu, esta vocação pelo desinteresse e a modéstia provem, pela sua vez, da propensão das
categorias meias intelectuais de se pensar por fora das relações de força entre as classes sociais. Bourdieu, 1994.
189
Agradeço a professora Lygia Sigaud pelas suas importantes colocações sobre este ponto.
190
Estatutos. Artigo 4°. Em: Derechos del Hombre. Op.cit.
191
Em: Derechos del Hombre. Op. Cit.
102
Francia, más de doscientos años desde que fueron votadas en Inglaterra, todavía
nosotros hemos de suspirar por esos dichosos ‘derechos del hombre’. Derechos que
debían haber pasado al fondo vital del hombre social, derechos que no deberían
invocarse para que se los reconozca, derechos de deberíamos poseer (…) como un
bien natural, un bien común, patrimonio de los pueblos civilizados (…)
192
.
Como se evidencia nesta citação, entre os integrantes destas associações se encontra
uma vocação ao ‘universal’ própria do discurso dos direitos do homem na tradição
republicana francesa. Mesmo que estes princípios tem sido formulados em 1789,
começaram a ser efetivos no período de entre-guerras. Segundo Sacristie e Vauchez, foi então
quando começa a se gerar um lento trabalho de invenção e fixação de princípios de
procedimentos e de regras susceptíveis de fazer existir uma ‘sociedade política’ internacional
independente dos Estados. A criação da Corte Internacional da Haya ou a própria Sociedade
das Nações supõem o convencimento a respeito da capacidade do direito para oficiar de
ciência realista e eficaz de governo internacional.
193
Com o propósito de limitar o poder do
Estado, estes juristas sustentavam o ideal de garantir a vida e a integridade das pessoas através
da instituição de um direito internacional. O conceito de tutela jurídica internacional dos
direitos do homem proposto pela Sociedade das Nações pretende ser uma das possíveis
realizações deste ideal.
Esta mesma linguagem universalista esteve presente nas lideranças tanto da LADH
como do Comité Argentino contra el Racismo y el Anti-semitismo. A declaração dos direitos
do homem e do cidadão de 1789 aparece reproduzida no primeiro periódico da Liga. E os
juristas internacionalistas que participavam do Comitê reclamavam pela necessidade de
reconhecer ao homem na sua qualidade de sujeito de direito com a dispensa do organismo
político ao qual pertence pelo vínculo de nacionalidade. Em termos de um dos integrantes “O
reconhecimento da subjetividade jurídica do homem no jogo das relações extra-nacionais
exige, como complemento, declarar e tutelar universalmente os direitos essenciais de sua
personalidade”.
Esta mesma perspectiva universalista é o que os inclui em tanto que advogados
engajados com a causa universal nas lutas políticas chaves da época em quanto “... a luta
192
Carta de D. Roca a C. Sánchez Viamonte reproducida en Villalba Welsh. 1984..
193
Em: Sacriste e Vauchez, 2004.
103
contra o anti-semitismo [por exemplo] não é privativa dos judeus mas é um dever de todo
homem livre porque trás o palhaçada anti-semita se oculta o propósito de suprimir os mais
elementares direitos cidadãos...”
194
. Foi sobre a base desta representação que reclamaram pela
criação de instancias internacionais aonde eles ocupariam um lugar chave, como poderia ser
uma corte penal internacional cuja importância residiria na possibilidade de estabelecer:
“… una instancia internacional para dotar a esos derechos salvaguardados hasta
ahora por el orden constitucional de los distintos países, de la ‘máxima protección’
que puede existir sobre la tierra, la protección del derecho internacional. (…).[se
trata de] una instancia internacional ante quien pueda recurrirse con carácter de
acción en los casos de violación por parte de los gobiernos de los derechos
esenciales del hombre por razones de raza, de religión o nacionalidad (…) un
tribunal cuyas resoluciones sean obligatorias para todos los Estados”
195
.
Ao longo do congresso convocado pelo Comitê Argentino contra el Racismo y el
Anti-semitismo, os juristas que participaram reclamaram de pôr em prática das disposições
contidas na Declaração dos Direitos do Homem, denunciaram os casos de violação destes
direitos apresentados à Sociedade das Nações e à Corte Permanente Internacional de Justiça
da Haya e se reclamou a criação de uma Corte Penal Internacional.
Como testemunha a criação destas associações e de outras de caráter internacional,
como a Liga das Nações, este período se apresenta como um momento ‘germinal’ na
legitimação e consolidação da questão dos direitos do homem e do próprio direito
internacional. Até então, o espaço das relações entre os Estados tinha sido regulamentado
exclusivamente pelos diplomáticos, nesses anos começa a se conformar uma pequena
comunidade de ‘peritos’ em direito internacional que se posicionam tanto como ‘exteriores’
ao jogo da política internacional quanto disponíveis para se somar a ela. Neste processo de
relativa autonomização do direito internacional incide o descrédito no qual se encontrava a
diplomacia logo do seu fracasso ao impedir o conflito armado
196
.
194
Boletín del Comité Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo. N° 5. 1938. Grifos meus.
195
Dr. Rudesindo Martinez em: Actas del Congreso Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo. Bs. As.
1938, pág. 127 y 140.
196
Em: Sacriste e Vauchez, op.cit.
104
Trata-se de uma comunidade de ‘peritos’ que se constituiu em volta de um núcleo
restrito de professores de direito que exerciam simultaneamente os papeis de jurisconsultos do
governo, ‘peritos’ internacionais na Sociedade das Nações, a Corte de Justiça Internacional,
integrantes de organizações pacifistas como a Liga para la Promoción de la Paz, e
distinguidos como prêmios novéis da Paz como Aristide Briand, por exemplo. Destes espaços
surgiram os juristas que dariam impulso a criação de um ordem político internacional
regulamentado pelo direito e que se iria a incorporar aos novos espaços institucionais ao
longo do período de entre - guerras.
197
As redes internacionais as quais pertenciam estes profissionais do direito favoreciam a
circulação de informação sobre a situação política em distintos lugares do planeta. Na maneira
em que é apresentada esta informação se destaca precisamente a possibilidade de assimilar
distintas situações locais por demais diversas e diferentes entre sim, a uma única condição
definida pela presença da ‘reação’ e ‘o fascismo’ em todo o mundo, como pode se ver no
seguinte exemplo referido a um caso próximo como o de Brasil: “centenas de presos no
Brasil, milhares de operários, soldados, oficiais do Exército e da Armada, intelectuais de
reputação, jornalistas, médicos, advogados, engenheiros, estudantes, revolucionários e anti-
fascistas, sofrem todos os horrores das cadeias e da brutalidade dos carcereiros...”.
198
Mas
também se encontra esta mesma retórica aplicada a situações empíricas tão dissimiles como as
que se encontravam nas colônias africanas: “... a repressão posterior à conquista de Etiópia é
cada vez maior (...) os juizes parecem mais verdugos incondicionais que magistrados. Os
tribunais de guerra, tribunais militares e especiais intensificam suas ações repressivas e
multiplicam as leis do terror anti-fascista”
199
. Trata-se em todos os casos de descrições
abstratas e gerais que possibilitam a identificação de ‘campos de concentração’ espalhados
pelo mundo todo (não na Alemanha mas também em contextos tão dissimiles como Líbia,
Peru e Argentina) e de ‘vítimas do fascismo’ consideradas exclusivamente desde uma
perspectiva universal, como são os casos dos ‘prisioneiros, perseguidos, exilados e
deportados’.
Esta mesma concepção universalista foi a que fez possível o lançamento de
‘campanhas mundiais’ contra o fascismo com palavras de ordem a serem seguidas em todo o
197
Em: Sacriste e Vauchez, op.cit.
198
Em: Amnistía. Año 1. N° 1, 1936.
199
Fragmento de uma carta enviada pelo Comitê Anti-fascista Internacional, com sede em Paris, a sua filial
argentina. Em: Contra-Fascismo. Año 1. N° 2. Agosto – setembro de 1936.
105
mundo e com diversas propostas internacionais como as de realizar campanhas para juntar
assinaturas em todo o mundo a favor da anistia para ‘todos os condenados e deportados
políticos’, realizar comícios simultâneos em Nova York, Paris, Londres, Buenos Aires,
Madrid. Assim como também a intenção de criar documentos de identidade mundial
expedidos pelos comitês de ajuda e solidariedade “... que permitam ao exilado político
permanecer em qualquer localidade do país de asilo ou em outro país de sua eleição (...) aos
fins de consagrar em todo o mundo o sagrado direito de asilo” (op.cit. minhas cursivas). É a
mesma concepção a que impulsiona convocatórias ‘universais’ como se evidencia na carta
que Faustino Jorge, advogado liguista, lhe enviara a um colega tentando o levar a ‘lutar sem
divisão de fronteiras’:
“A todos los pueblos de América, a todos los hombres libres, de aspiraciones
democráticas, de sentimientos humanitarios, a los hombres de todos los sectores
políticos, a los explotados y a los oprimidos, a los anti-reaccionarios de
pensamiento y acción de todos los credos hacemos un vigoroso llamado para
luchar bajo una sola bandera de solidaridad y ayuda....”
200
.
Esta referência ao universal os constituiu em tanto grupo
201
. Trata-se de uma rede de
intelectuais, políticos e advogados que se representam a sim mesmos a partir desta lógica
universalizante e de uma vocação ao universal (Pinto, op.cit.). Através do uso deste tipo de
retórica, as diferencias de origem, religião e política podiam ficar subsumidas detrás do apelo
a uma comunidade moral universal unida por sentimentos ‘sagrados’ de solidaridade,
humanitarismo e fraternidade universal. Trata-se de uma retórica que faz apelo a um princípio
de fusão com o universal: o homem, a humanidade. O direito, pela sua vez, supõe um
princípio de universalização do saber. De modo que, a combinação entre o papel do
profissional do direito e do intelectual faz destes advogados engajados com a causa de seus
defendidos, agentes universalizadores por excelência.
200
Em: Amnistía, 1936: 1
201
Vale a pena salientar que existem várias referências ao universal, entre elas se encontra o internacionalismo
derivado do partido comunista e das formas de representação dos interesses da classe operária. Este é um outro
universo de valores ‘universais’ aos quais estes profissionais do direito também faziam apelo. Para uma
interessante reflexão a respeito de como o movimento anti-fascista na Argentina misturava a retórica liberal com
o marxismo, ver Pasolini, 2006.
106
1. 9 Conclusão
A importação desta retórica universalizante ligada à luta contra o fascismo e a defesa
dos ‘direitos do homem’ pode-se pensar como respondendo tanto ao fato massivo da
imigração como as estratégias utilizadas pelos dirigentes políticos da oposição para intervir na
política nacional a partir de uma linguagem legítima que permitisse unir à oposição baixo um
denominador comum e, na mesma operação, denunciar o caráter fraudulento e autoritário dos
governos surgidos a partir do golpe de Estado de 1930. Segundo Andrés Bisso (2001), esta
era a intenção que motivava a criação de frentes populares como o Socorro Rojo Internacional
ou o Comitê contra el Racismo e o Anti-semitismo, que foram espaços que juntaram aos
dirigentes da oposição pensados mais para fustigar às ditaduras ou regime fraudulentos
nacionais que para resistir o avance do ‘fascismo’. Através desta prédica, a luta pela liberdade
e pela democracia na Europa se volvia uma luta pela liberdade e pela democracia em América
latina e na Argentina. Continuando com esta linha de pensamento, o mesmo autor assinala
que estes frentes constituíam essencialmente ‘alianças transitórias’ que se propunham
substituir aos governos ‘reacionários’ e ‘anti-democráticos’ entronizados no poder. Vale a
pena salientar que esta ‘transitoriedade’ o se aplica ao caso da LADH que,
surpreendentemente, tem permanecido ativa até hoje.
No desenvolvimento deste capítulo teve a intenção de apresentar alguns elementos que
permitam compreender as condições de possibilidade de uma militância engajada com a
defesa dos ‘direitos do homem’. Sem dúvidas é muito importante o processo da imigração
européia na compreensão, não do surgimento de novas classes e novas formas de pensar o
direito como assim também nas reconversões da própria prática do direito e das formas de
pensar o direito (o ‘novo’ direito), como se verifica com a criação de disciplinas
especializadas em direito trabalhista, a participação destes dirigentes em grêmios e sindicatos
em qualidade de ‘peritos’ ou a criação de instituições e políticas legislativas orientadas a dar
conta desta nova realidade.
Tentei traçar as trajetórias destes dirigentes engajados com a causa pelos ‘direitos do
homem’ e de seus múltiplos espaços de interação e socialização, como uma maneira de me
aproximar ao complexo trabalho de construção social e política desta vocação, entendendo
que a ação coletiva não é nem um resultado direto e automático de condições objetivas dadas,
107
como seria a repressão exercida pelo Estado a partir de 1930. Identifiquei inúmeros índices da
proximidade social que existia entre os indivíduos engajados com a causa: sua pertença ao
mesmo universo profissional, a colaboração nos mesmos periódicos, os vínculos criados ao
longo da vida de estudante, as opções políticas, o exercício da função pública, sua
identificação com a figura do intelectual, etc. Isto permite sugerir que a participação num
engajamento militante deste tipo não deriva nem de causas casuais nem de simples
identificações ideológicas mas da existência de espaços de interação social a partir dos quais
vão se estruturando as afinidades ideológicas, as redes e seus princípios de distinção dentro do
universo mais abrangente da política e do direito. Mesmo quando o defensor de presos
políticos se perceba a sim mesmo como um solitário herói jurídico, tenho tentado mostrar
todo o peso social de suas redes de pertença e filiação.
A adesão à causa dos ‘direitos do homem’ não preexistiu à própria ação reivindicativa
mas, pelo contrario, se foi criando no próprio processo, convertendo-se numa instancia mais
na consolidação e continuação de relações sociais, profissionais e de amizade prévias. Neste
sentido, é interessante frisar a polissemia do termo ‘engajamento’ com a causa: significa tanto
o engajamento com a ação quanto o fato de se vincular aos outros por uma série de obrigações
inerentes à posição que se ocupa ou se pretende ocupar ao interior destes múltiplos espaços
militantes e profissionais. Esta pertença múltipla é um dos fatores críticos que permitem
compreender a incorporação destes indivíduos à causa pelos direitos do homem. Seus
dirigentes foram conduzidos a este tipo de ação cívica como resultado dos compromissos e
obrigações recíprocas derivadas da sua participação neste tecido composto por espaços sociais
comuns aos quais estavam filiados previamente. Neste sentido, trata-se de uma rede de
profissionais do direito e da política que integram uma comunidade moral relativamente
reduzida que inclui tanto nomes consagrados como Palácios, Bravo e Sánchez Viamonte
quanto a outros menos célebres e, por último, também, a desconhecidos.
A través desta descrição se pode compreender como o engajamento anterior com a
causa ‘dos trabalhadores’ e suas organizações sindicais orientou a transformação da defesa do
direito operário e sindical na defesa dos ‘direitos do homem’. A repressão das organizações
sindicais mediante a confiscação de seus periódicos e boletins, o fechamento das suas sedes,
a perseguição e detenção arbitrária de suas lideranças até a deportação delas, fizeram com que
este conjunto de juristas, advogados e dirigentes políticos interessados nos ‘novos’ direitos
dos trabalhadores, fossem levados à defesa dos seus interesses fazendo apelo a linguagem dos
108
‘direitos do homem’, ação que se compreende como uma continuidade com os compromissos
adquiridos previamente
202
. Foi este trabalho dos advogados engajados com a denuncia da
repressão do Estado contra militantes políticos e dirigentes sindicais o que transformou as
reivindicações e palavras de ordem dos trabalhadores e militantes partidários em questões
relativas à causa pelos direitos do homem.
Neste sentido, trata-se de um militantismo de conversão que se inscreve tanto na
história dos compromissos passados quanto no interes por se aproximar a um engajamento
distanciado das restrições da luta eleitoral como fundamento para defender uma causa pública
na qual o que está em jogo são os princípios constitutivos da ordem política. Para eles, o
direito aparece como uma ferramenta de crítica e de intervenção na política. A denuncia das
arbitrariedades cometidas pelo Estado transforma ao espaço público em algo que aparenta um
tribunal, aonde eles monopolizam a condição de ‘peritos’, não só porque eles portam o
conhecimento jurídico mas também porque estão familiarizados com esse próprio Estado, do
qual participam como parlamentares, funcionários públicos ou professores universitários.
Tanto a denuncia pública como a demanda jurídica exercida perante aos tribunais supõem um
uso experto do direito como uma modalidade militante do aceso ao Estado. Este uso militante
do direito supõe, não só defender um acusado como também defender uma injustiça de caráter
mais abrangente. Esta dimensão política do trabalho experto do profissional do direito
consiste justamente em ligar a história singular a uma irregularidade general no
funcionamento do Estado, o que se viu em relação as demandas de modificação ou derrogação
da lei de Residência ou a demanda de criar uma corte penal Internacional.
203
Sem dúvidas, a saída da situação política nacional através da utilização do direito
como estratégia de reivindicação se corresponde com um tipo de visão sobre a vida política,
neste caso, ligada intimamente à crença no valor dos preceitos liberais e republicanos de
organização da vida em comum. Valores que, sem dúvidas, outorgam um lugar central ao
direito e que estes dirigentes tinham interiorizado ao longo de seus anos de formação
profissional e militante. Estes valores eram defendidos e legitimados por oposição ao ‘espírito
202
Para uma perspectiva de análise que outorga uma importância crítica à tarefa de reconstruir a gênesis deste
interes ver o trabalho de Michel Offerlé, 1998.
203
As colocações deste parágrafo se inspiram no trabalho de Agrikolianski, 2002 e Boltanski, 2000.
109
militarista’ que promovia a conquista do poder público pelas forças armadas e resultava num
fato ilegítimo: a força substitui ao direito.
204
1. 10 Epílogo
Logo depois do golpe de Estado de 1943 e depois da Segunda Guerra Mundial, as
associações civis mencionadas começaram a desaparecer, a exceção da Liga. Esta
continuidade, com tudo, não vai estar isenta de mudanças: quem fazem parte dela não se
identificam como os garantes e defensores das instituições da democracia mas como os
militantes pela causa da ‘solidariedade’. A inícios dos anos 50 as importantes figuras políticas
que integravam o frente opositor tinham sumido. Predominavam na Liga dirigentes de menor
notoriedade pública e que provinham, principalmente, do PC. Não seriam exclusivamente
advogados como os casos dos sucessivos presidentes Ezequiel Martinez Estrada, escritor,
Emilio Troise, médico ou Antonio Sofía, um não profissional. Este perfil se conserva até hoje.
A Liga vai se definir como uma associação de assistência solidária e humanitária com os
presos políticos, como ... uma instituição popular para a solidariedade com os operários e
democratas que desenvolve uma nobre e humanitária tarefa lutando pela liberdade dos presos
e tomando conta deles nas prisões, levando-lhes roupas, comida, cobertores, medicinas e
livros”.
205
Ao longo dos governos do General Juan Perón (1946-1955), os advogados integrantes
da Comissão Jurídica da LADH “... que cumprem com honra a sua tarefa de defender as
liberdades republicanas e a vigência das garantias constitucionais” denunciaram ‘o conjunto
de leis repressivas que começaram a se aplicar em forma massiva contra os trabalhadores”.
206
Perante o seqüestro e posterior desaparição do dirigente comunista Juan Ingalinella nos
primeiros meses de 1955, a Liga emitiu um comunicado no qual destacava-se o caráter
‘sistemático’ da repressão: “seria um erro pensar que o regime de torturas organizado e
sistematizado em todo o país, é produto de alguns funcionários policiais...”.
207
A Liga
fomentou então o engajamento de advogados de ‘todos os setores’ para obter uma maior
204
Cattáneo, “El espíritu militarista’. Em: Amnistia. Año 1. N° 1. Março 1936.
205
Folheto da LADH. “El proceso contra los obreros ferroviários”. 1951.
206
Em referencia aos decretos de Seguridade do Estado (N° 536)
207
Comunicado reproduzido em Veiga, 1985.
110
efetividade nas defesas.
208
Denunciaram também a detenção a disposição do Poder Executivo
Nacional de inúmeros advogados defensores de presos políticos, entre os quais se
encontravam Alfredo Palácios, Carlos Sánchez Viamonte e Samuel Schmerkin,
mencionado no início do capítulo como advogado de Antonio Cantor. Nas suas denuncias, a
Liga frisava o fato que estas detenções constituíam uma transgressão ao direito de defesa em
juízo em quanto elas supõem a inviolabilidade da figura do defensor. Neste período, sua sede
foi incendiada intencionalmente (1949) e logo fechada. Voltou a abrir depois do golpe de
Estado que derrubou a Perón em 1955, mesmo que por alguns meses. Quando em 1958
assumiu a presidência da República um dos seus fundadores, Arturo Frondizi, esta foi re-
aberta mas voltou a ser fechada em 1962 logo de um novo golpe de Estado. Desta forma,
entre os anos 50 e 60, só funcionou abertamente durante os quatro anos de presidência de
Frondizi.
Em 1971, vários integrantes da Liga, nucleados em volta da figura de outro dos seus
fundadores, o advogado Carlos Sánchez Viamonte, participaram da criação de um novo
espaço associativo: a Asamblea Nacional, desde o qual se propunham ‘lutar contra as leis
repressivas anti-constitucionais’ e conseguir ‘a vigência dos Direitos do Homem’ num país
quebrado de novo por um outro golpe de Estado, agora contra o governo constitucional de
Arturo Illia (1966). Numa declaração pública, estes profissionais do direito e da política
expressaram conjuntamente a condena:
“... a la política represiva caracterizada por torturas, vejámenes, secuestros y
crímenes cometidos impunemente contra hombres y mujeres argentinos, el
mantenimiento del Estado de Sitio como instrumento permanente de gobierno, la
detención de ciudadanos a disposición indefinida del Poder Ejecutivo por causas
políticas y sociales, la creación y desmesurado crecimiento de organismos de
represión política e ideológica (...) la sanción y subsistencia de una legislación
represiva, caracterizada principalmente por el establecimiento de la pena de
muerte, por la sujeción de civiles a tribunales militares, por la expulsión de
extranjeros, por la creación del delito de opinión (...) y por la creación de un fuero
especial para el juzgamiento de delitos políticos con el consiguiente
avasallamiento de los derechos de las Provincias y de sus habitantes”
209
.
208
LADH “El proceso contra los obreros ferroviarios”. 1955.
209
“Congreso de la Libertad” Em: Propósitos. 21.10.1971.
111
Dirigentes socialistas, comunistas, radicais, peronistas, sindicalistas, intelectuais e de
associações de defesa dos direitos humanos (como a LADH) se nuclearam na Asamblea
Nacional em volta a palavra de ordem ‘liberdade aos presos políticos e sociais’ e
reivindicando a figura emblemática de Agustín Tosco, dirigente máximo do sindicato de Luz
y Fuerza de Córdoba e integrante da LADH quem, desde o seu lugar de detenção participava
da criação da Asamblea através de cartas de adesão pública.
Na perspectiva dos seus fundadores, a Asamblea Nacional era necessária em tanto
restituir ‘o Estado de direito’ suponha “... a ação programática e organizada das forças
populares...”.
210
Entre os oradores do ato se encontravam advogados defensores de presos
políticos como Fernando Murua, defensor de Tosco, Guillermo Furgoni Rey e Ricardo
Molinas, dirigentes da Liga, como Antonio Sofía e Bustos Fierro e do Comitê Permanente
contr el Macartismo y la Ley 17.401, como Isaina de Weis. Quem se juntaram em volta desta
Asamblea tinham como elemento distintivo o fato de pertencer a uma geração que tinha feito
seu ingresso à política nos anos imediatamente anteriores ao golpe de Estado de Uriburu
(1930) como era o caso de Sánchez Viamonte, Fernando Nadra, Ricardo Molinas e Antonio
Sofia. Este último, presidente da Liga desde 1952, tinha sido ele mesmo um preso político sob
a ditadura de Uriburu. Fernando Nadra era dirigente da Juventude Comunista quando foi feito
o decreto de proscrição do partido em 1930 e Ricardo Molinas, quem se viu obrigado a deixar
a sua banca de deputado nacional pelo Partido Democrata Progresista por causa do golpe de
1966, tinha vivido a experiência do golpe de Uriburu em seu próprio pai, quem naquela época
deveu pôr fim a sua banca no parlamento nacional pela mesma causa. No que parecia uma
antecipo dos tempos que iriam vir e uma repetição dos tempos idos, se fizeram presentes no
ato ‘parentes’ de militantes políticos ‘desaparecidos’ e ‘parentes de estrangeiros’ que tinham
sofrido a deportação por causa das leis recentemente restituídas
211
.
Mesmo que tinham passado mais de 30 anos dos acontecimentos narrados neste
capítulo, nos discursos, nas cartas e declarações públicas dos integrantes da Asamblea pode-se
advertir o apelo a uma retórica conhecida: a equiparação da situação local posterior ao
golpe de Estado de 1966 ao ‘fascismo’. Assim, o dirigente do PC, Fernando Nadra, foi
210
“Congreso de la Libertad” Em: Propósitos. 21.10.1971.
211
Ao utilizar os termos ‘desaparecido’ e ‘estrangeiro deportado’, o cronista fazia referencia aos casos do
estudante de direito Luis Enrique Pujals e do operário químico Salankiewicz, respectivamente. Ibidem.
112
aclamado no palco quando afirmou: “É necessário que se de ao povo plena liberdade para sair
as ruas a esmagar ao fascismo e ao golpismo”.
212
A reivindicação pública da causa pelos
‘direitos humanos’, a conformação de espaços associativos, o uso de uma retórica que abunda
em referencias ao fascismo e a presença de figuras públicas identificadas com a geração do
golpe de Estado de 1930 e com os conflitos vinculados às duas guerras mundiais
testemunham a continuidade de práticas, agentes e estratégias entre os anos 30 e 70.
No entanto, desde finais dos anos 60, uma nova geração de advogados e profissionais
da política começou a se incorporar à defesa pública e jurídica dos presos políticos fazendo
uso de uma outra linguagem, outras estratégias de atuação e de organização política e
profissional. O exame de suas trajetórias e do mundo social, profissional e político do qual
fizeram parte é o objeto de próximo capítulo.
212
Ibidem.
113
Anexo N° 1
Convocatória da LADH promovendo a adesão à associação
Fonte: Clarinada. Bs. As. 1939.
114
Anexo N° 2
Rreprodução da convocatória a um comício ‘contra a invasão nazi’ realizado pelo
Comitê contra o Racismo e o Anti-semitismo da Argentina.
Fonte: Periódico: Alerta! Contra el Fascismo y el Antisemitismo. Bs. As. N° 1. 21.09.1935.
115
Anexo N° 3
Reprodução de uma listagem de presos políticos
aparecido no periódico Defensa Popular
116
Anexo N° 4
Reprodução de cartaz de rua do Comitê contra el Racismo y el Antisemitismo
Fonte: Periódico Contra-Fascismo.
117
Anexo N° 5
Reprodução da capa do periódico Socorro Rojo de outubro 1934
Fonte: Periódico Socorro Rojo. Outubro 1934.
118
Anexo N° 6
Reprodução dos anúncios dos serviços jurídicos
oferecidos pelos integrantes da LADH
Fonte: periódico Defensa Popular.
119
Capítulo 2
O ativismo jurídico
Um mundo feito de rotinas e heroísmo
120
2. 1 Introdução
Em junho de 1971, o advogado Hipólito Solari Yrigoyen interpôs um recurso de
hábeas corpus a favor de Agustín Tosco, manifestando que a detenção deste último, por
disposição do Poder Executivo nacional e em virtude do decreto lei No. 715, contra ele,
supunha um “... excesso das faculdades reguladas no artigo 23 da Constituição Nacional”. Na
sua apresentação, Solari Yrigoyen negava que seu cliente “... tivesse desenvolvido atividades
lesivas à tranqüilidade pública ou que pudessem implicar um perigo a esse respeito”. Diante
desta apresentação, a Câmara Nacional Federal negou o hábeas corpus por entender que sob a
atual situação imperante de Estado de sítio: “... as atividades de Tosco, de acordo com
informação reservada, poderiam configurar uma alteração da tranqüilidade pública (...)
[considerando] a notória influência de Agustín J. Tosco em meios associativistas do estado de
Córdoba e dos fatos de inaceitável violência que ali ocorreram, ao ponto de erigir-se a um
deles, o assim chamado ‘Cordobazo’ em bandeira de luta para outros que o seguiram”
(Sentença No. 67639. Câmara Nacional Federal, sala criminal e correcional, 25 de junho de
1971)
213
.
Hipólito Solari Yrigoyen assumiu ativamente a defesa de Agustín Tosco: “Eu
coordenei, de Buenos Aires, a tarefa de vários advogados para reclamar a nulidade dessas
sentenças diante dos tribunais militares”
214
. Sobrinho neto do presidente derrocado Hipólito
Yrigoyen (Uriburu, 1930), Solari Yrigoyen havia estado presente no escritório do presidente
Arturo Illia (UCR) no momento de sua detenção pelas Forças Armadas dirigidas pelo general
Onganía, no dia 28 de junho de 1966
215
. Para Solari Yrigoyen, o ‘Cordobazo’ foi “uma
verdadeira façanha de todos os setores políticos (....) um movimento autenticamente popular
de um povo cansado da opressão do governo oligárquico dos militares e dos interesses que
estes representavam...”
216
. Invertendo os termos da acusação, no diagnóstico deste advogado,
‘o Cordobazo’, isto é, a mobilização surgida no estado de Córdoba em maio de 1969 durante
o governo de Onganía, era resultado da violência inaceitável exercida pelo Estado. A
213
Em: Revista Jurídica Argentina La Ley, Buenos Aires. Tomo 146: 420, 1971.
214
Em: Gabbeta, op.cit.
215
Este golpe de Estado inaugurou um período conhecido como ‘Revolução Argentina” durante o qual se
sucederam na Argentina, de fato, três presidentes: os generais Onganía (1966-1970), Levingston (1970-1971) e
Lanusse (1971-1973). Para uma resenha do momento do golpe de Estado contra Arturo Illia ver: Carlos Fayt,
1971.
216
Entrevista com Hipólito Solari Yrigoyen em 1978 durante seu exílio em Paris realizada por Carlos Gabbeta.
Em: Gabetta, 1983: 227.
121
militância sindical, estudantil e partidária sofria contínuas detenções, que se realizavam sem a
intervenção da autoridade judicial e tornavam-se efetivas pela aplicação de julgamentos
sumários instituídos pelos Conselhos Especiais de Guerra ou decretos emitidos pelo Poder
Executivo Nacional. Estas detenções atingiam também diversos advogados patrocinadores de
grêmios e sindicatos.
Tosco, principal dirigente do sindicato de Luz e Energia de Córdoba e membro da
Liga Argentina por los Derechos del Hombre, referia-se às inúmeras detenções de líderes
sindicais e políticos apelando para a linguagem dos direitos humanos. Do Presídio de Rawson
denunciava “... a dramática realidade de uma constante e comprovada violação aos mais
elementares direitos humanos na Argentina, até o grau da barbárie organizada para a tortura
de muitos prisioneiros políticos e sociais...”
217
.
Se sua emblemática figura era reivindicada por personalidades que tinham
protagonizado a defesa dos ‘direitos do homem’ nas primeiras décadas do século XX, como
Carlos Sánchez Viamonte, e por associações como a LADH, quem assumiram judicial e
publicamente sua defesa, no início dos anos 70, foram advogados como Hipólito Solari
Yrigoyen, que se reconhecem como parte de uma nova geração que irrompe na vida política e
profissional justamente a partir dos acontecimentos aos quais a sentença se refere: o
‘Cordobazo’.
Com o compromisso de assumir a defesa jurídica dos chamados ‘presos políticos e
sociais’ e denunciar publicamente a inconstitucionalidade dos procedimentos repressivos da
‘ditadura’, um conjunto de profissionais do direito formaram uma série de espaços
associativos entre os quais estavam a Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires
(AGA), a Asociación Gremial de Abogados de Mar del Plata, a Asociación Gremial de
Abogados de Bahía Blanca, a Agrupación de Abogados de Córdoba, o Movimiento Nacional
contra la Represión y la Tortura, o Foro de Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos
Humanos, e a Organización de Solidaridad con los Presos Políticos, Estudiantiles y Gremiales
(OSPPEG). Entre estas associações aparece uma que faz apelo ao vínculo de sangue como
princípio de representação pública. Trata-se da Comisión de Familiares de Presos Políticos y
Gremiales (CoFaDe). No exterior, associações internacionais de juristas, como a Comissão
217
“Agustín Tosco: El cautiverio de un guerrero” Em: Revista Primera Plana. 20. 06.72.
122
Internacional de Juristas (CIJ), defensores dos direitos humanos como Anistia Internacional,
demandaram o governo o respeito às ‘garantias fundamentais estabelecidas pela lei’ e
enviaram ao país missões de especialistas para verificar a veracidade das denúncias
formuladas pelos seus colegas argentinos. Surgiram também diversos comitês que se
somaram à denúncia internacional da ‘situação de repressão na Argentina’ como o Comité de
Defense des Prisionniers Politiques Argentines (CODEPPA), criado em 1972 por um
conjunto de profissionais do direito e intelectuais franceses e argentinos que moravam na
França.
Neste capítulo procuro definir e delimitar a categoria ‘defensor de presos políticos’
através da criação de uma representação coletiva deste compromisso jurídico associada ao
culto ao heroísmo, à coragem, ao valor, ao sacrifício e à entrega desinteressada à causa,
qualidades estas que os identificam com aquelas pessoas que defendem. A ênfase estará em
mostrar o valor destes critérios na hora de criar homogeneidade entre indivíduos que têm
origens e trajetórias profissionais heterogêneas. Estes princípios de representação são os que
fundam a legitimidade da sua posição dentro do mundo do direito e da política, especialmente
em uma conjuntura na qual sua clientela é recrutada principalmente entre a militância armada
das organizações de esquerda surgidas no país no início dos anos 60. Através desta
representação, passam a existir como grupo.
Este capítulo pretende mostrar parte de todo o trabalho de reagrupamento de sujeitos
com trajetórias e propriedades objetivas diferentes em torno a esta forma de exercer o direito e
a política. Como veremos, o relativo êxito alcançado na tarefa de unificação traduziu-se sob a
forma de um nome coletivo (defensor de presos políticos), de instâncias de representação
(associações, publicações), emblemas (o desaparecimento do advogado Néstor Martins, o
assassinato do advogado Rodolfo Ortega Peña), taxonomias (advogados do povo / advogados
ao serviço do imperialismo, militar na Gremial / exercer o direito), categorias (repressão
judicial) e teorias (o imperialismo / a ausência de um Estado de direito). Todas estas
instâncias resultarão chaves para dotar este grupo de agência. Paradoxalmente, a legitimidade
alcançada através do fato de colocar em risco a própria vida foi construindo, ao mesmo
tempo, a necessidade de organizar, planejar e conceber novas formas de trabalho em comum.
Mostrar a rotinização da tarefa do advogado defensor é outro dos objetivos deste capítulo,
uma vez que a formação de rotinas constitui uma instância chave na homogeneização desta
categoria social e na objetivação do grupo como tal. Como veremos, elas se organizavam em
123
torno da busca do detido pelas delegacias, as apresentações de hábeas corpus, as visitas aos
presos, os pedidos de perícias médicas, a assistência aos tribunais para seguir os processos, a
divisão do trabalho entre os advogados, a partilha das causas, a busca de antecedência na
jurisprudência comparada, a elaboração da alegação, a publicação das denúncias na imprensa,
a realização de conferências de imprensa etc.
Nesta descrição, tenho interesse em mostrar como este engajamento jurídico (‘militar’
em associações de defesa de presos políticos), que se diferencia hierarquicamente do exercício
tradicional ou ‘liberal’ da profissão (‘exercer a profissão’) não excluía o fato de continuar
atuando como advogados. Ao contrário, ‘exercer a profissão’ foi uma das condições de
possibilidade deste ativismo. Como veremos, esta atividade permitia que eles dispusessem de
recursos chaves para sustentar e dar continuidade à vocação pela defesa dos presos políticos.
Outro ponto que receberá atenção são as trajetórias dos integrantes destas associações.
Interessa-me mostrar que a participação nelas, longe de se tratar de uma decisão racional
fundada em critérios ideológicos ou convicções políticas, supõe a incorporação progressiva a
uma rede de relações que vão comprometendo-os (primeiro, como advogados trabalhistas,
logo, como defensores de presos políticos) de tal maneira que, chegados a um ponto, assumir
esse compromisso torna-se um fato ‘irrevogável’. As propriedades sociológicas dos
profissionais do direito que assumem este tipo de compromisso foram trabalhadas
detalhadamente no capítulo anterior. Neste capítulo, será mostrado apenas como permanece
um substrato morfológico semelhante em termos de um encontro entre estabelecidos e
outsiders.
Por último, proponho mostrar neste cenário a presença de dois atores que,
reconhecidos no capítulo anterior, começam agora a ter maior protagonismo: as associações
de parentes de presos políticos e as associações internacionais de juristas. Embora estes tipos
de associação receberão uma atenção especial no próximo capítulo quando, em meados dos
anos setenta e início dos anos oitenta, adquirem extrema visibilidade, interessa-me destacar
que a reivindicação do sangue e do direito internacional são princípios que se encontram
disponíveis no período examinado neste capítulo.
124
2. 2 ‘A repressão judicial’
“Na República Argentina não existem sequer vestígios do denominado ‘Estado de
direito’. Os direitos humanos são violados e ignorados pela legislação,
a jurisprudência e a prática repressiva”.
218
Com este diagnóstico começava a declaração final da Reunião Nacional de Advogados
‘Néstor Martins’ que convocou, na cidade de Buenos Aires, mais de trezentos advogados
defensores de presos políticos de todo o país em meados de agosto de 1973, poucos meses
depois do triunfo do peronismo nas urnas e do general Perón assumir a presidência da nação.
Esta reunião tinha sido convocada pelas associações de advogados de presos políticos
mencionadas na introdução deste trabalho.
Na caracterização da situação vigente nesses anos, as representações sobre o ‘Estado
de direito’ intervinham como elemento de impugnação a Estado: “... lhe direi o que
corresponde em Estado de direito e o que acontece atualmente: ao invés de acusação fiscal
temos o delato, a suspeita. Ao invés de detenção, temos seqüestro. No lugar do processo
judicial temos o sumário misterioso que ninguém controla (...) No lugar de notificação para
prestar declaração (...) temos as torturas para conhecer a ‘verdade’...”
219
. Da perspectiva dos
advogados defensores, a Revolução Argentina (1966-1973) era ‘intrinsecamente
repressiva’
220
. A partir desse momento, havia-se inaugurado no país uma situação
caracterizada pela detenção recorrente de pessoas na qualidade de incomunicáveis e os
espancamentos, ‘picana elétrica’, simulacros de fuzilamento e violações em dependências
oficiais ou ‘casas’ clandestinas. Os presídios estavam cheios de ‘presos políticos’ e aqueles
militantes que não resistiam à tortura eram enterrados clandestinamente em cemitérios como
NN ou seus corpos desapareciam. A detenção de um advogado defensor de presos políticos
sem ordem judicial foi interpretada como a máxima mostra de ‘aberração’ e ‘desvio’ do
Estado de direito no país. Constituía:
218
“Declaración final de la Reunión Nacional de Abogados ‘Néstor Martins’” Em: Periódico Peronismo y
Socialismo. N° 1. 1973.Grifos meus.
219
Declarações do advogado defensor Héctor Sandler. Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1. N°. 6. 1971
220
Expressão utilizada pelos advogados Eduardo Luis Duhalde e Rodolfo Ortega Peña. “Lo que saben los
prisioneros del sistema”. Em: jornal Nuevo Hombre. Ano 1. N°. 14. Outubro 1971.
125
“... la prueba acabada de que (...) la detención de personas en nuestro país ha
dejado de ser asunto que compete a los jueces (nadie puede ser arrestado sino en
virtud de orden escrita de autoridad competente, dice el art. 18 de la Constitución)
para ser un instrumento de ‘caza de hombres’ en manos de la Policía. Para guardar
las apariencias la detención se hace clandestinamente por vía del secuestro”
221
.
Para os advogados, a repressão não era: “… uma atividade policial, exercida
obscuramente por agentes ignotos (...) mas que fazia parte de uma política repressiva mais
ampla” na qual intervinham diferentes poderes do Estado, inclusive a própria justiça, já que
muitas vezes os juízes interrogavam os detidos nos lugares onde eram submetidos a torturas,
como se adverte no dramático relato de um deles: “Ao ser levada à Câmara Federal no Penal,
o secretário do juiz me ameaçou [advertindo-me sobre] as conseqüências que meu filho ia
sofrer se adiava a declaração”
222
.
Para se referir a este tipo de situações como às modificações legislativas por ordem do
Poder Executivo, estes advogados recorreram à expressão ‘repressão judicial’ para demonstrar
a execução de uma ‘política sistemática de repressão’ implementada através de um conjunto
de instrumentos jurídicos, entre os quais se encontravam a pena de morte, a transformação em
delito ‘penal’ de associação ilícita aos delitos ‘políticos’ de sublevação previstos pela
Constituição Nacional para aqueles que se levantaram contra um poder instituído pela força,
as prolongadas incomunicabilidades dos detidos, a negação em reconhecer o direito de opção
a sair do país e a existência de processados sem sentencia por períodos de vários anos.
Na descrição destas políticas repressivas, ocupa um lugar de especial destaque a
criação de fóruns ad hoc para o tratamento das causas originadas em delitos considerados
agora como ‘subversivos’ como a Câmara Federal no Fórum Penal Anti-subversivo,
conhecida no jargão dos advogados defensores como ‘el Camarón’ porque seus juízes tinham
jurisdição em todo o território nacional ou ‘Câmara Gestapo’ uma vez que estava “... feita à
imagem e semelhança das que estabeleceram os Tribunais Especiais de 1933, característica
distintiva da administração alemã de justiça no estado de emergência civil”
223
.
221
No Jornal Nuevo Hombre, Ano 1. N°. 3. 1971
222
Em: Foro de Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos. Bs. As. 1973. Grifos meus.
223
Em: reportagem a Susana Aguad. Periódico Desacuerdo.
126
A partir da criação desta câmara, enquanto eram respeitadas as formas do ‘devido
processo’ já que existia um tribunal, um juiz e advogados defensores, em termos concretos foi
um dispositivo utilizado diretamente para a repressão, pois foram poucos os casos de
sobreseimiento e libertação dos detidos; por essa razão também era conhecida também como
‘câmara do terror’. Mesmo nos casos excepcionais em que era outorgada a liberdade ao
acusado, este era detido novamente poucas horas depois de sair da prisão sob o decreto do
Poder Executivo Nacional, sem necessidade de intervenção judicial, situação que levava a o
que os advogados chamavam de uma ‘cadeia de processamentos - sobreseimientos’ que podia
chegar a incluir a condenação a simples militantes ou simpatizantes que, por fatos simples
como uma pichação na rua, chegavam a ser processados no âmbito do fórum penal anti-
subversivo
224
. Declarar a inconstitucionalidade deste tribunal foi uma das estratégias
utilizadas na defesa de presos políticos: “... o Poder Executivo não deve condenar nem aplicar
penas. A Câmara Federal é inconstitucional e incompatível com a existência da justiça
institucional”.
Enquanto os defensores de presos políticos apelavam para o valor da democracia
liberal, da constituição nacional e do Estado de direito para impugnar o Estado, os
magistrados que participavam desta câmara assumiram o compromisso com a luta contra ‘a
subversão’, apelando a uma retórica que desqualifica a neutralidade e o respeito aos direitos
civis e políticos. No editorial de um jornal nacional da época, reproduz-se o ponto de vista
oficial sobre este tribunal: seu objetivo é o de “superar o purismo de muitos juízes com ranço
de formação liberal que foram benévolos em suas condenações aos terroristas”. Em
contraposição, a câmara estava integrada por juízes designados pelo presidente caracterizados
por “... integrar um tribunal ideológico com uma forte vocação para o desempenho destas
funções repressivas”
225
. Do ponto de vista do ministro da Justiça, Jaime Perriaux (junho 1970-
outubro 1971), os juízes de então estavam complicados por questões de competência e por
isso nenhum responsável de atentados subversivos tinha recebido sentença. As jurisdições se
misturavam, mas os autores se repetiam e o ritmo da justiça era necessariamente lento.
Tratou-se de criar uma estrutura ágil e eficaz para inferir nos delitos da subversão. E diante da
224
Este caso é citado pelo advogado integrante da Gremial, Raúl Aragón. Em: Arangón, 2001. Este recurso à
repressão judicial não foi o único utilizado como provam os inúmeros casos de ‘desaparecidos’, assassinados ou
fuzilados durante estes anos. A partir de 1974, o surgimento da organização paramilitar e parapolicial Triple A
colocaria em evidência o progressivo predomínio dos assassinatos e desaparecimentos em relação às detenções e
outros processos judiciais.
225
Em: Jornal La Opinión. 3.6.1971. Grifos meus. Os nove juízes que interrogaram a câmara foram: Ernesto
Ure, Juan Carlos Díaz Reynolds, Carlos Enrique Malbrán, Cesar Black, Eduardo Munilla Lacasa, Jaime Smart,
Tomás Barrera Aguirre, Jorge Quiroga e Mario Fenández Badesich.
127
alternativa de julgar estes delitos por tribunais militares, Perrioux concebeu a possibilidade de
julgar os ‘guerrilheiros’ dentro do ‘Estado de direito’
226
.
Ainda que a retórica da defesa da constituição e dos direitos humanos não fosse
necessariamente a que então ocupava o centro da cena pública, dominada pelas referências a
grandes esquemas ideológicos (marxismo, imperialismo etc.), é importante destacar que esta
existia, que era uma das formas privilegiadas de denúncia e que era um elemento importante
na representação do próprio papel do advogado e dos princípios que os instituem como grupo.
Nestes termos, o advogado Hipólito Solari Yrigoyen se define:
“…Yo creo en el imperio de la justicia y el derecho. Si un ciudadano es acusado de
algo, son los jueces, en las condiciones que determina la Constitución y las leyes,
los que deben determinar la culpabilidad y la pena. Pero ¿qué jueces y qué leyes
durante un gobierno militar? Las dictaduras establecen su propia ley y sus propias
modalidades como los tribunales de excepción instaurados por la dictadura de
Onganía, totalmente arbitrarios y expresamente prohibidos por la Constitución”.
227
Ao explicar a surpreendente continuidade da repressão, que era possível de se verificar
ainda durante a democracia iniciada em 1973, os advogados defensores de presos políticos
apelaram a marcos imperativos heterogêneos. Simultânea ou alternativamente, a ‘violência
política’ e ‘as sistemáticas violações aos direitos humanos’ obedeciam a causas culturais (o
autoritarismo vigente no país a partir do golpe de Estado de 1930) ou históricas (a
implantação do fascismo, a existência de um sistema neocolonial). Para alguns deles,
inclusive, o país vivia um estado de incipiente guerra civil; diagnóstico que coincidia com a
própria percepção que as Forças Armadas tinham da situação
228
. A atribuição de caracteres
fascistas ao regime político continuava sendo uma retórica dominante em boa parte da
literatura então produzida pelos advogados defensores dos presos políticos. Esta equiparação,
que não tem nada de evidente, tornava possível reconhecer a existência de ‘campos de
226
Declarações reproduzidas na página web: www.ladecadadel70.com.ar.
227
Em: Gabetta, op.cit. pág. 229, grifo meu.
228
Nos termos dos representantes das Forças Armadas, a Argentina estava em ‘guerra aberta contra a subversão’:
“... hoje como 159 anos, estamos em luta porque hoje também afrontam os Argentinos. Com a diferença que
hoje o invasor é também traidor, porque é argentino”. Declarações do Coronel Luciano B. Menéndez ao Jornal
Clarín. 27.09.1971. Grifos meus. Vale a pena destacar que a partir do golpe de Estado de 1973 contra Allende no
Chile, volta a se instalar na cena pública a estratégia da ‘frente única’ dentro do PC. Na Argentina foram criadas
várias dessas frentes, entre as quais se destaca a Frente Anti-imperialista por el Socialismo (FAS).
128
concentração’ nos lugares de detenção. No tom desta retórica, a advogada Susana Aguad
descrevia os últimos seis anos de governos militares nestes termos:
“… Hemos llegado a un punto en nuestro país en que, como en la Alemania de
Hitler (...) puede hablarse de nazificación de la judicatura (jueces especiales) y de
la creación de un aparto represivo que nada tiene que envidiar al Estado alemán
(...) Los nazis usaban, por ejemplo, el estado de Emergencia Civil para acabar con
las huelgas (...) Nosotros conocemos desde hace tiempo lo que es un país en estado
de ocupación por su propio ejército.(...) Todos los días una nueva ley, un nuevo
decreto intenta hundirnos en aquél régimen nazi
229
.
O ‘nazismo’ e o ‘fascismo’ instalados na Argentina se vinculavam ao ‘sistema de
exploração’. Desta perspectiva:
“Entre el niño que muere por falta de material de asistencia (…) y el secuestrado o
asesinado (…) que es eliminado oscuramente de la faz de la tierra, no hay más que
una diferencia de grado: lo que permite la muerte de ese niño (…) en otro nivel
engendra la matanza de Trelew (…) Hay pues una relación entre la opresión
corriente propia del sistema y la represión extraordinaria que se expandió en los
últimos años”
230
.
“La cárcel, la tortura, los secuestros y asesinatos no son meramente contingentes y
excepcionales sino parte esencial y necesaria en la relación opresor-oprimido”
231
.
É justamente esta relação entre repressão e exploração que aparece em destaque na
análise dos profissionais do direito. Para Silvio Frondizi:
“El golpe de Estado de 1966 no es un golpe más de las fuerzas armadas, sino que
es la primera tentativa en la historia de nuestro país tendiente a que estas fuerzas se
229
“Las leyes de la dictadura no impidieron el avance de la lucha”. Em: Jornal Desacuerdo, grifos meus.
230
Em: Foro de Buenos Aires por la vigencia de los derechos humanos, 1973. Grifos meus. ‘La Matanza de
Trelew’ é o nome com que se conhece nesta militância o episódio que aconteceu no dia 22 de agosto de 1972,
quando foram fuzilados 16 presos políticos alojados em uma base naval da cidade de Trelew, a uns 1400 km de
Buenos Aires.
231
Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1. N° 18. Novembro 1971.
129
hagan cargo del control total de la República Argentina para aherrojar por medio
de la violencia a los sectores obreros y populares...”
232
.
Diante desta situação, Alfredo Curuchet, integrante da Agrupación de Abogados
de Córdoba, ele mesmo detido depois do Cordobazo na porta dos Tribunais quando
interpunha um recurso de amparo a favor dos trabalhadores do sindicado que
representava, convocava seus colegas a formar uma ‘frente de massas contra a
repressão’ advertindo sobre a urgência de:
“... encarar la denuncia enérgica de todas las brutalidades de la represión,
detenciones arbitrarias, represalias laborales, disolución e intervención de
sindicatos, rastrillajes, creación de tribunales especiales “antisubversivos”, torturas,
secuestros y asesinatos perpetrados a diario por las “fuerzas de seguridad” o por las
fuerzas terroristas para-policiales y paramilitares del régimen”
233
.
Como foi identificado no capítulo 1, ao convocar ao trabalho coletivo de denúncia
da repressão, os profissionais do direito inscreviam a defesa dos militantes sindicais e
partidários em uma ação que devia transcender o mero exercício técnico. Convocava-se a
denunciar publicamente ‘o sistema de opressão’, pretendendo contribuir, como especialistas, à
sua transformação. A partir e através do exercício do direito, um segmento da profissão
jurídica se mobilizou em torno ao que se chamou a ‘causa antiditatorial’, incluindo nela tanto
os que aspiravam por uma ‘revolução socialista’, por uma ‘pátria peronista’, como por
alcançar a ansiada ‘libertação nacional’. Ao mostrar a eficácia deste trabalho de agrupamento,
o integrante da ‘Gremial’ Mario Kestelboim expressava diante de seus colegas reunidos no
congresso de advogados defensores de presos políticos: “A coincidência essencial do conjunto
de profissionais que se nucleou em torno da Gremial foi que, para além das dissidências
políticas e ideológicas, [temos uma] caracterização comum de nossa Pátria como Nação
semicolonial com desenvolvimento capitalista e o julgamento da ditadura como produto
necessário de um sistema que se derruba pelo desenvolvimento das lutas populares”
234
.
232
“Tratan de impedir con la violencia que continuemos la lucha” Em: Jornal Desacuerdo.
233
Em: Jornal Desacuerdo.
234
“Una experiencia de militancia: la Asociación Gremial de Abogados” Em: Jornal Peronismo y Socialismo. N°
1. 1973.
130
2. 3 ‘As frentes de massa contra a repressão’
Se do amplo espectro opositor haviam sido criados diferentes espaços de protesto e
denúncia, o que caracteriza as associações que serão descritas neste capítulo é o fato de
estarem formadas por profissionais do direito que se mobilizaram a favor da causa
antiditatorial a partir das ferramentas providas pelo próprio direito. Tratava-se
especificamente de “... assumir a defesa das liberdades públicas, a defesa das reivindicações
populares democráticas (...) prestar assistência jurídica integral a milhares de trabalhadores e
exercer a solidariedade material e política com os presos sociais, reféns da ditadura, ajudando
as famílias financiando viagens de parentes e de advogados a presídios distantes...”
235
. Entre
suas palavras de ordem estavam: ‘pela imediata liberdade de todos os presos políticos’, ‘pela
revogação do Estado de sítio, da pena de morte, dos tribunais especiais, das torturas e das leis
repressivas’. Entre suas reivindicações ocupavam um lugar de destaque aquelas que atendiam
seus próprios interesses como profissionais do direito.
Entre as várias associações que então foram criadas estavam a Agrupación de
Abogados de Córdoba, a Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires (‘la Gremial’), a
Asociación Gremial de Abogados de Mar del Plata, a Asociación Gremial de Abogados de
Bahía Blanca, o Movimiento Nacional contra la Represión y la Tortura, o Foro de Buenos
Aires por la Defensa de los Derechos Humanos, a Organización de Solidaridad con los Presos
Políticos, Estudiantiles y Gremiales (OSPPEG) e a Comisión de Familiares de Presos
Políticos y Gremiales (CoFaDe).
Junto com elas, foram criadas outras de vida mais efêmera e que aglutinaram
profissionais de direito pertencentes a diferentes gerações como foi o caso da “Comisión por
la Libertad de Agutín Tosco, Raimundo Ongaro y demás presos políticos y sociales”, a
Comisión por la Vida y la Libertad de Martins y Centeno, a Mesa Nacional de Abogados
(incorporada ao FAS), onde atuaram Curutchet, Frondizi e Gaggero entre outros, a Comisión
de Apoyo a Chile (COMACHI) que, atuando em apoio dos exilados e refugiados chilenos, “...
montávamos guarda em Ezeiza e quando chegava um exilado no país, apresentávamos
235
Declarações de A. Curuchet no Jornal Desacuerdo, N°. 3 Junho 1972, pág. 2.
131
imediatamente um recurso de hábeas corpus a seu favor para impedir que fossem detidos”
236
.
Os integrantes do serviço jurídico da LADH, com Julio Viaggio, Amilcar Santucho e Roberto
Guevara, também propunha a formação de um coletivo de advogados de diferentes filiações
políticas e ideológicas que atuasse na defesa de presos políticos.
Tratava-se de defesas que “dificilmente as associações pegavam”
237
, uma forma de
representar a atividade profissional que distinguia os advogados defensores analisados no
capítulo anterior. Embora o secretário da ‘Gremial’ lembra que entre os casos defendidos: “...
tinha de tudo, desde uma namorada que tinha sido detida porque algum rapaz tinha alguma
causa desagradável até quem realmente tinha um compromisso militante, passando por
aqueles que eram contrários à luta armada, mas que também caiam presos...”
238
, é importante
destacar uma mudança crítica nas formas de fazer política: o surgimento, no início dos anos
sessenta, de grupos dentro do peronismo e da esquerda que buscaram fazer da ão armada
uma forma legítima de política. O que supôs, por sua vez, mudanças nas formas de conceber e
exercer este compromisso jurídico
239
. Neste contexto, compreendem-se as palavras de dois
integrantes da ‘Gremial’:
“...En aquella época [1969] éramos un puñado de abogados los que asumíamos las
defensas de presos políticos, hoy día, como consecuencia del brutal agigantamiento
de la represión y de la propia desaparición de Martins, es cada vez mayor el
número de abogados que interviene y se suma en la defensa de estos casos. Al
punto tal que, incluso ha dado surgimiento a la Asociación Gremial de Abogados,
en defensa del ejercicio de la profesión
240
.
Como foi possível que um grupo relativamente disperso de profissionais do direito
fosse se aglutinando neste tipo de associação? Os grêmios e sindicatos foram uma das vias de
recrutamento dos integrantes da Gremial. Desde 1968, vários jovens formados e com
diferentes filiações partidárias haviam-se incorporado ao corpo de advogados da recentemente
criada Confederación General del Trabajo de los Argentinos (CGT A), um espaço que surge
236
Em: Entrevista realizada por mim a Silvia Dvovich (nome apócrifo). 22.07.2002.
237
Em: Entrevista realizada por L. Saldivia a Marta Grande (nome apócrifo).
238
Em: Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
239
Vale a pena lembrar que os advogados defensores analisados no capítulo anterior compartilhavam todos,
inclusive o PC, uma definição comum: o parlamentarismo como meio de transformação social. As posições de
estes advogados são dissímeis neste sentido.
240
Reportagem aos Advogados Rafael Lombardi e César Calcagno no Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. N°. 12,
1971, grifos meus.
132
na cena sindical com um marcado signo opositor à ditadura. Foi deste lugar que os advogados
começaram a ‘pegar’ as defesas não de dirigentes sindicais detidos e perseguidos, mas
também dos integrantes das primeiras organizações armadas. “Com o tempo, este grupo se
tornou conhecido e chegou um momento em que tínhamos a maioria dos presos políticos sob
nossa responsabilidade, inclusive tínhamos mais que as organizações de direitos humanos que
trabalhavam nesse momento”
241
. O fato de assumir o compromisso de atender os casos de
militantes armadas deu-lhes notoriedade e situou-os dentro do universo da política e do direito
em uma posição de máxima proximidade com aqueles que defendiam:
“Tuvimos muchas defensas: Taco Ralo, la calle Paraguay, muchos Tupamaros que
caían acá, algunos grupos que se habían escindido del Partido Comunista, como las
Fuerzas Armadas de Liberación (FAL) que estaban empezando a organizarse para
la lucha armada (…) Cuando cae esta gente no recurren a los viejos organismos de
defensa de derechos humanos del Partido Comunista como la Liga (…) pues
estaban en contra de la lucha armada (…). Entonces se acercaban a la CGT A
donde ellos podían tener lugar
242
.
Esta mesma trajetória em grêmios e sindicatos é a que distingue também aos
profissionais do direito que adquiriram uma enorme notoriedade pública como advogados de
defesa de presos políticos: Rodolfo Ortega Peña e Eduardo Luis Duhalde. Eles chegam à
Gremial a partir de outros espaços de pertencimento: eram assessores legais da Unión Obrera
Metalúrgica, um grêmio afiliado à oficialista Confederación General del Trabajo, dirigida por
Augusto Vandor, e tinham feito sua inserção no mundo profissional nas mãos do advogado
trabalhista Fernando Torres, e entrando dentro do estudo jurídico de Isidoro Ventura Mayoral,
advogado do presidente Perón, então no exílio. Também se somarão à Gremial colegas que
integravam a equipe jurídica do Partido Revolucionario de los Trabajadores (como Vicente
241
Em: Entrevista com Mario Landaburo realizada por Vera Camovale. Arquivo oral Memoria Aberta.
Landaburo refere-se à LADH que, criada em 1937, continuava ativa naquele momento. Entre os que
participavam da CGT A estavam: Rafael Lombardi, César Calcagno, Mario Landaburu, Néstor Martins, Raúl
Aragón, Hipólito Solari Yrigoyen, Hugo Chumbita, Hugo Anzorregui, Cayetano Póvolo, Antonio Deleroni, Juan
Carlos Giradles, Rubén Bergel, Laura Rabey, Rubén Gomez e Conrado Ortigosa Antón. A participação de
Ortigosa Antón no ‘corpode advogados desta central sindical chama a atenção que ele era um espanhol que
havia militado originalmente no falangismo, embora tivesse se exilado na Argentina logo depois que Franco o
condenara à morte.
242
César Calcagno. Entrevista realizada por Mauricio Chama no dia 12.11.1998 e reproduzida em M. Chama,
s/d. Os episódios mencionados referem-se às primeiras ações organizadas por agrupações como as Fuerzas
Armadas Peronistas e as Fuerzas Armadas de Liberación.
133
Zito Lema e Rodolfo Mattarollo) junto com outros advogados que se identificavam como
‘não enquadrados’ ou ‘independentes’ (como foi Gerardo Taratuto, entre outros)
243
.
No relato destes especialistas, a defesa dos dirigentes sindicais aparece como o
elemento que os congrega, principalmente depois do assassinato de Augusto Timoteo Vandor
(CGT) e do ‘Cordobazo’, quando foi instaurado o Estado de sítio e os dirigentes máximos das
centrais sindicais opositoras foram encarcerados, entre eles Agustín Tosco e Raimundo
Ongaro. Ao se aproximarem das delegações policiais para apresentar recursos de hábeas
corpus, os próprios advogados dos dirigentes operários começaram a ser, eles próprios,
detidos e conduzidos à Penitenciária de Devoto. Como resultado desta ação, uns 40
advogados assessores de grêmios e sindicatos estavam reunidos na penitenciária, entre eles,
Néstor Martins. Este episódio foi recorrentemente mencionado nas entrevistas como um
momento chave na organização futura deste grupo de profissionais
244
.
A criação deste espaço também está ligada à participação destes jovens na militância
universitária. Uma entrevistada descreve a importância destas relações para compreender a
maneira que um conjunto de profissionais do direito se integra à Gremial: “... vieram me
procurar, fui às primeiras reuniões e volto a encontrar com um monte de colegas que nos
conhecíamos da época do MUR”, referindo-se à agrupação estudantil Movimiento
Universitario Reformista que assume a condução do Centro de Estudantes da Faculdade de
Direito em 1964
245
. É o próprio exercício da profissão que possibilita sua agregação. São
inúmeros os relatos de entrevistados que mencionam amizades surgidas durante as visitas aos
clientes que defendiam ou, inclusive, durante os períodos nos quais os próprios advogados
sofreram detenção. Os processos judiciais nos quais intervinham atuavam como espaços de
relação e de aproximação, como fica evidente no relato de um entrevistado: “... vieram me ver
alguns parentes, em um caso, (...) e então estabeleci uma relação fluída [com os outros
243
É interessante destacar que esta categoria nativa ‘não enquadrados’ ou ‘independentes’ não significa que estes
advogados não tivessem uma identidade partidária ou não estivessem integrando um partido ou organização
política. Ao contrário, parece que quer dizer que não seguiam em seu trabalho profissional as diretrizes de
nenhum partido e, neste sentido, que se articulavam com um critério próprio nas defesas. Também sugere que,
em função desta posição, não disputavam o controle político da Gremial.
244
Nas páginas do jornal da LADH El Defensor se reproduze uma listagem dos presos políticos e também os
nomes dos advogados que assumem as defesas destes casos entre os anos de 1964 e 1965: Eduardo L. Duhalde,
Rodolfo Ortega Peña, Fernando Torres, I. Ventura Mayoral, Gustavo Roca, Atilio Librando, Pedro Kesselman,
Alejandro Teitelbaum,, todos eles futuros integrantes da Gremial. Estas defesas ocorrem antes do Cordobazo
(1969), o que reforça a necessidade de tomar a periodização proposta nesta tese de forma flexível e, por outro
lado, confirma o valor que esse episódio tem para os nativos como um ato fundador deste ativismo jurídico. Em:
El Defensor, abril de 1965, N° 9.
245
Marta Grande (nome apócrifo), entrevista realizada por Laura Saldivia.
134
advogados defensores] porque naturalmente tínhamos que decidir que tática empregar em
cada caso particular”
246
.
As próprias associações profissionais são espaços que os convocam e as lógicas de
inclusão e exclusão que estas empregam também incidem na formação de associações como a
Gremial. É importante estar atento a este processo para perceber como, entre o exercício da
repressão do Estado e a formação de uma associação em defesa da militância sujeita a
violência, mediam processos que são próprios do campo profissional ao qual estes advogados
pertencem. Ao narrar a criação da Gremial os entrevistados, recorrentemente, apelam ao
mesmo mito fundador: o desaparecimento de um colega. Os acontecimentos deste episódio
aparecem organizados no relato de maneira tal que fundam uma cisão dentro deste universo
profissional: a Gremial constituiu-se como um espaço separado e distinto das associações
profissionais existentes até esse momento, como a Asociación de Abogados de Buenos Aires
qual muitos pertenciam, inclusive Martins), a Asociación de Abogados Laboralistas, dos
sindicatos nos que atuavam, como a CGTA, e das associações defensoras de direitos humanos
como a Liga, todos espaços aos quais Martins estava integrado. Como assinalava então um de
seus integrantes “A Gremial veio cobrir um vazio político jamais coberto anteriormente (...)
veio cobrir um território tradicionalmente coberto pela ‘oligarquia’ (Colegio de Abogados) e
‘os liberais’ (Asociación de Abogados de Buenos Aires)
247
.
“A Martins o desaparecem em pleno Tribunal e a Asociación de Abogados de Buenos
Aires [AABA] não dá resposta a isso. E aí é quando dizemos ‘aqui tem que se organizar outro
tipo de coisa porque evidentemente a Asociación de Abogados não cumpre o papel
profissional que nos cabe viver”
248
. No relato de outro entrevistado: “... diante de seu
desaparecimento não me senti representado porque não se fez tudo o que se poderia ter feito
por considerações absolutamente ideológicas (...). A Asociación de Abogados simplesmente
246
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
247
Mario Kestelboim: “Una experiencia de militancia: la Asociación Gremial de Abogados”. Em: Jornal
Peronismo y Socialismo. Buenos Aires, N° 1, 1973.
248
Marta Grande (nome apócrifo), entrevista realizada por L. Saldivia, grifos meus. Martins foi seqüestrado por
forças parapoliciais no dia 16 de dezembro de 1970, quando saía de seu escritório jurídico da rua Paraná, a
poucos metros do Congresso Nacional e do Palácio dos Tribunais. Desapareceu junto com o cliente que se
encontrava com ele, um dirigente do chamado movimiento villero (de favelas).
135
fez uma declaração. Este foi o salto para que se formasse a Asociación Gremial de Abogados
na Capital Federal”
249
.
Desde o golpe de Estado de 1966, a AABA havia repudiado publicamente as
sucessivas intervenções do poder militar na vida política nacional. Reclamava contra a
subordinação da Constituição às disposições dos governos de fato, contra a remoção dos
juízes da Suprema Corte de Justiça, contra as detenções que se seguiram ao Cordobazo e
contra as condições nas quais deviam trabalhar os advogados defensores de presos políticos.
Logo depois da detenção de advogados que se segue ao Cordobazo, a AABA manifestou-se
publicamente denunciando que esses procedimentos ‘depreciam os profissionais’ e significam
uma ‘clara violação ao livre exercício da prática profissional’. As manifestações públicas e
greves para exigir o aparecimento de um de seus sócios, Néstor Martins, foram convocadas
também pela AABA.
A valoração negativa sobre esta associação enuncia um ponto de vista interessado
relativo aos que estavam situados em uma relação de maior proximidade com os que
confluíram na Gremial, eles mesmos, sócios da AABA. O que revela que para estes militantes
‘a luta’ se desenvolvia não apenas no contexto da relação com os partidos aos que pertenciam,
mas também em relação ao seu próprio universo profissional. Estas instâncias de
representação, como a AABA, eram espaços valorizados, o que explica que os defensores de
presos políticos competiram eleitoralmente por controlá-los ou, no caso de não poder fazê-lo,
se segmentaram dando origem a outras associações.
Em 1971, houve eleições na AABA. A lista Azul triunfou. A lista do Movimiento de
Acción Renovadora saiu derrotada, uma aliança entre a Frente de Advogados, cujos
integrantes depois formariam a Gremial e outros profissionais que vinham do PC. Sua derrota
significou que a AABA declinou em representar pública e juridicamente a militância
comprometida em ações armadas ou próximas a elas, ao entender que se tratava de ‘casos
publicamente controvertidos’
250
. Esta expressão sugere tudo o que estava em risco ao assumir
essas defesas: o capital social e simbólico da instituição.
249
Raúl Piedrabuena, entrevista realizada por L. Saldivia. Arquivo privado. Grifos meus. A AABA foi criada em
1934. Em seu estatuto destacam-se como objetivos da instituição defender as instituições democráticas do país e
‘representar os associados na defesa de seus legítimos interesses profissionais’. Em: www.aaba.org.ar.
250
Revista Primera Plana. 12.07.1966.
136
Quem integrava a lista derrotada, Beinuz Szmukler, mas não integrava a Frente de
Advogados (grupo aliado ao Movimiento de Acción Renovadora) relatava a situação colocada
então da seguinte maneira:
“La concepción que nosotros teníamos entonces era que no había que apartarse, los
abogados que tenían una posición militante (…) no tenían que sectorizarse en una
organización propia sino que debían participar e impulsar el trabajo en la
Asociación de Abogados de Buenos Aires (…) [esto] lo fundamos en la necesidad
de no debilitar a la Asociación y en la necesidad de que los abogados que estaban
allí debían ir a la Asociación para modificar las cosas de manera de pelearla desde
adentro”
251
.
A importância que teve o desaparecimento de Martins em termos de cristalizar o
conjunto de profissionais de direito que integraram a Gremial depois de serem excluídos da
condução da AABA pode ser observado com a nota que se encontra no anexo e que mostram
o grau de mobilização destes advogados que, nos 15 dias posteriores ao seu desaparecimento,
organizaram três atos blicos na sede do Palácio de Tribunais, uma greve de advogados e
publicaram uma abaixo-assinado em um dos jornais nacionais de maior circulação. As fotos
destes atos mostram os advogados reunidos nas escadas do Palácio da Justiça
252
. Nos
discursos e declarações pronunciadas naquele momento reconhecia-se que haviam se
dedicado, desde sua formatura, à defesa de presos por motivos políticos e gremiais”
253
.
A referência ao colega Néstor Martins indica que, junto com a necessidade de
defender o crescente mero de militantes políticos e sindicais perseguidos e detidos, estas
associações foram pensadas também como uma instância que devia servir para garantir uma
maior proteção aos próprios advogados defensores. À medida que assumiam a defesa de
presos políticos, os advogados passaram a ser identificados crescentemente com as
organizações armadas às quais pertenciam os clientes que defendiam e foram, eles mesmos,
objeto de perseguição, seqüestro, assassinato e desaparecimento.
251
Entrevista com Beinuz Szmukler, integrante da LADH realizada por M. Chama (2000) e reproduzida em
Chama. op.cit.
252
Ver anexo N° 7 (La Prensa, 24.12.1970) na página 213.
253
Declarações do sócio de Martins, Atilio Libriandi. Em: Jornal La Prensa. 24.12.1970.
137
Neste contexto, os que impulsionaram a criação da Gremial destacaram nas entrevistas
que o fizeram como uma forma de ‘neutralizar’ o exercício da defesa de prisioneiros políticos,
aglutinando profissionais provenientes de diferentes filiações ideológicas e partidárias, e
estabelecendo critérios de racionalidade ‘profissional’. Através da formação de uma
associação especificamente profissional que funcionasse por fora das organizações sindicais e
políticas, e que incluísse profissionais do direito não vinculados necessariamente à direção em
organizações identificadas com a luta armada, a Gremial se propunha a oferecer a seus
integrantes um maior respaldo no exercício da profissão. Neste sentido, e mesmo que seus
integrantes destaquem suas diferenças em relação à Liga, a Gremial também se constituiu
sobre um modelo baseado na aglutinação de advogados provenientes de diferentes orientações
políticas e partidárias, e que faziam do pluralismo um emblema. Como relata uma de suas
integrantes: “... na Gremial de Advogados todos nós, advogados, trabalhávamos juntos, com
independência de pertencer a um ou outro setor político ou ser independentes”
254
.
Assim, como foi assinalado para os anos trinta, a participação destes profissionais
do direito pertencentes a diferentes filiações partidárias também estava vinculada à
possibilidade de criar espaços de ação pública e profissional que não necessariamente
gozavam de consenso dentro de seus partidos de origem, nem se correspondiam totalmente
com as linhas de ação que estes tinham traçado. Fora dos partidos e dentro destas frentes,
estes profissionais do direito podiam levar adiante com maior facilidade seu engajamento
público com a causa de seus clientes e evitar as limitações impostas pela subordinação à
política partidária. As sanções diante da indisciplina que estas frentes podiam supor faziam-se
sentir, como expressa o testemunho da integrante da Gremial Cristina González, vinculada à
organização armada Montoneros:
“… en general, en el partido nos miraban de reojo (…) en un momento me
llamaron la atención porque yo había tomado un par de defensas por presión de
Ortega y Duhalde y me llama Galimberti [uno de los máximos dirigentes de
Montoneros] y me dice: renunciá a las defensas del ERP porque creer que somos
todos lo mismo es un criterio policial, nosotros no somos lo mismo, somos
peronistas, ellos son marxistas, no tenemos nada que ver…”
255
254
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo) realizada por Laura Saldivia.
255
Entrevista com Cristina González (nome apócrifo) realizada por Laura Saldívia. 2002.
138
Esta heterogeneidade ideológica é destacada pelos entrevistados como um valor
positivo: “havia alguns [advogados] que ao mesmo tempo eram membros de organizações
armadas, muitos não eram membros das organizações e se tornaram membros depois de
serem membros da Gremial (...) também havia advogados que faziam parte da Gremial e o
faziam parte de nenhuma organização”
256
.
No relato objetivo da trajetória desta associação, o porta-voz da Gremial silenciava as
diferenças para exaltar o compromisso comum para com os outros: “A AGA nasceu como
uma resposta a uma necessidade impostergável, diante da ausência de uma entidade que
represente os advogados que querem se agrupar para lutar contra uma sociedade
caracterizada por conservar estruturas a serviço das minorias, instituições (...) caducas pela
constante violação dos direitos fundamentais
257
.
2. 3. 1 Um mundo feito de rotinas
Nas entrevistas realizadas a ex-integrantes da Gremial, os advogados destacaram a
importância do trabalho conjunto como uma forma de garantir, de maneira permanente e em
todo o território nacional, a defesa do crescente número de militantes políticos e sindicais
detidos. Este era um atributo exibido por seus integrantes também naqueles anos: “Nossa
associação Gremial oferece a todos os movimentos ou grupos, políticos gremiais ou
estudantis, a representação e o patrocínio gratuito por intermédio de seus associados”
258
. Não
se tratava de intervir em um ou outro processo ‘emblemático’, mas de assumir ‘a totalidade’
das defesas dos militantes, especialmente daqueles que pertenciam às primeiras organizações
armadas surgidas no início dos anos 60.
As causas deviam ser distribuídas por turnos entre os associados, privilegiando
critérios ‘técnicos’ de trabalho, de forma a garantir sempre a disponibilidade de um advogado
ante o requerimento imediato, que podia significar o seqüestro ou detenção de uma pessoa:
256
Entrevista com Raúl Piedrabuena realizada por Laura Saldivia.
257
“La Asociación Gremial de Abogados y los Presos Políticos” Reportagem com o secretário de imprensa da
Gremial, Hugo Vega no Jornal Nuevo Hombre. N° 20. 01 a 06 de dezembro de 1971. Grifos meus
258
“La Asociación Gremial de Abogados y los Presos Políticos” Reportagem com o secretário de imprensa da
Gremial, Hugo Vega, no Jornal Nuevo Hombre. N° 20. 01 a 06 de dezembro de 1971.
139
“Então, o dia em que estava de turno, esse dia tinha que ficar em seu escritório para atender
qualquer caso de emergência. Ou seja, era um plantão médico e podia aparecer o caso mais
simples (...) ou um companheiro que tinha caído depois de realizar uma cristã atividade de
enviar para o céu cinco militares”
259
. Nos termos de outro entrevistado: “... uma das palavras
de ordem da Gremial era não fazer nenhum tipo de distinção para defender os militantes
políticos (...) sempre se dizia que não havia diferenças políticas (...) com quem defendi mais
companheiros foi com Lombardi, Solari Yrigoyen e Smolianvsky, que não tinham a mesma
origem que eu, mas tínhamos uma maneira idêntica de pensar no jurídico”
260
.
A divisão de trabalho no acompanhamento das causas foi proposta também como uma
estratégia que tentava resolver o problema do número crescente de processos e suas dispersão
geográfica. A crescente necessidade de se deslocar fisicamente para garantir as defesas e
minimizar o risco de que militantes ficassem sem assessoria profissional devia não apenas ao
incremento do número de militantes políticos detidos, mas também à criação da Cámara
Federal en lo Penal, fórum ‘anti-subversivo’, a partir da qual as causas podiam ser tramitadas
em qualquer lugar do território nacional. Estas associações pretendiam garantir, através desta
estratégia, prestar ajuda jurídica nos casos de militantes do interior julgados na Capital
Federal ou, inversamente, nos casos tramitados em lugares distantes do interior onde,
provavelmente, não havia advogados dispostos a assumi-los.
Nas entrevistas, os profissionais de direito destacavam as rotinas que formavam parte
do trabalho na Gremial:
“Nos reuníamos puntualmente todos los lunes, discutíamos política y estrategias
como abogados porque como abogados nos planteábamos los problemas de la
profesión, la seguridad [personal] de los abogados (…) y nos planteábamos las
estrategias en cuanto a las reivindicaciones del gremio, cosas como el
funcionamiento de los ascensores en el Palacio de Tribunales (…) o la requisa a los
abogados para ir a la cárcel”
261
.
Malena Bordenave enfatiza a compatibilidade entre levar adiante seu estudo
profissional e militar em defesa dos presos políticos e sindicais: “Todas as manhãs ia aos
259
Entrevista comRaúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia. Grifos meus.
260
Entrevista com Mario Landaburu no arquivo oral Memoria Abierta.
261
Entrevista realizada por Laura Saldívia a Cristina González (nome apócrifo) Grifos meus.
140
Tribunais fazer as demandas [trabalhistas]. E depois, também advogados e amigos nos
reuníamos para determinar as linhas de ação, cada vez que as pessoas caíam presas”
262
.
Ao se apresentar um caso, também relatam suas ações em termos de uma seqüência
típica: diante da detenção de um militante, o advogado que está de turno inicia as primeiras
ações legais, começando por tentar rastrear o lugar de detenção do militante, que sua
detenção pode ser ilegal e seu ingresso não esteja registrado em nenhuma dependência oficial.
Para dar com seu paradeiro, o advogado apresenta um hábeas corpus ao juiz de plantão, em
algumas ocasiões indo ao próprio domicílio do magistrado, ao mesmo tempo em que começa,
pessoalmente, a percorrer as delegacias até encontrar a pessoa que foi detida. Com uma ponta
de humor negro, Duhalde e Ortega Peña pontuavam: “Começa-se então a busca em diferentes
dependências oficiais, onde a pessoa detida é sistematicamente negada, em uma espécie de
Antón Pirulero repressivo”
263
.
Uma vez identificado o lugar de detenção, o integrante da Gremial se apresentava e,
enquanto advogado assessor do detento, podia vê-lo para se informar de seu estado físico e
informar-lhe sobre sua situação processual. Neste momento, o advogado defensor prestava os
primeiros conselhos ao detido. A solicitação de perícias médicas fazia parte destas rotinas de
trabalho, assim, utilizavam-nas logo no início processo para demonstrar a aplicação de
torturas. Os próprios advogados se tornavam, muitas vezes, em parte requerentes da causa ao
exigir a investigação das responsabilidades nas torturas e ou na ‘privação ilegítima da
liberdade’ nos casos em que eram seqüestrados clandestinamente em lugar de serem detidos
com ordem judicial ou por decreto do poder executivo nacional (PEN). Em diversas
oportunidades, prevendo possíveis detenções, os próprios advogados costumavam estar
presentes nas manifestações públicas a fim de obter informação imediata e de primeira mão a
respeito das forças policiais a cargo da operação e do possível lugar de detenção do militante.
As visitas aos presos em seus lugares de detenção era outra destas rotinas. Dadas as
condições de violência e exceção imperantes nestes anos, podiam significar para o advogado
de defesa ter que se trasladar por diferentes presídios do país, seguindo os traslados contínuos
de seus clientes, até o fato de sofrer ameaças de morte por parte do pessoal penitenciário ou a
262
Entrevista realizada por mim a Malena Bordenave. Buenos Aires. 2002.
263
Nuevo Hombre, Ano 1. N°. 6, 1971. ‘Antón pirulero’ é uma brincadeira de roda entre crianças que repete,
invariavelmente, a mesma seqüência de ação.
141
própria detenção. Apesar destas circunstâncias, as visitas aos presos tinham uma importância
crítica ao situá-los em estreita proximidade com seus clientes e com as ações que definem sua
militância. A valorização destas visitas por parte de uma detida demonstra o lugar ao que
aspiravam dentro do universo da militância: “As pessoas que mais vejo são os meus
advogados, Lombardi, Landaburu e Sinigaglia. Eles vêm me ver e falam comigo muito. (...)
não são mais meus advogados, são meus amigos
264
. Diante da detenção de rios
dirigentes sindicais, um advogado defensor de presos políticos destacava o valor das visitas
como uma forma de: “... fazer de veículo através do qual estes dirigentes poderão seguir
exercendo sua condição de dirigentes, nós os vemos três vezes por semana de tal maneira a
consultá-los, levar suas opiniões [à rua] ...”
265
.
Diferentemente do que acontecia no espaço do direito trabalhista, onde as relações de
representação entre o advogado e seus clientes eram profundamente assimétricas do ponto de
vista social, no mundo de relações constituído pela militância ‘progressista’ ou de ‘esquerda’
existia uma enorme proximidade social entre quem detém o saber profissional e quem é a
pessoa defendida. Esta proximidade era chave na consolidação de uma relação de confiança,
relação que atua como uma condição necessária para se responsabilizar por defesas tão
comprometidas.
Os entrevistados destacaram também a dimensão formativa ou pedagógica desta
prática. Em geral, os advogados mais jovens e com menor experiência profissional
acompanhavam os advogados com maior trajetória, como uma forma de aprender o ofício. Os
entrevistados assinalaram, diversas vezes, que os casos ‘mais difíceis’ eram outorgados aos
advogados ‘com mais prestígio’ da Gremial, enquanto os advogados recém formados ou com
menor experiência se encarregavam de acompanhar os casos, realizar as visitas nos presídios
ou apresentar os hábeas corpus. Nas palavras de Cristina González: “... nesse momento
advogados que são referências, Ortega Peña, o próprio Duhalde, Mario Hernández. Na
realidade, nós éramos algo assim como mais juniores, éramos um pouco mais jovens, não
tanto, mas éramos, sobretudo, menos treinados e realmente éramos auxiliares deles na maioria
dos temas. Quase todas as vezes eu estava como auxiliar”
266
. As responsabilidades no
264
Testemunho de Luisa Veloso “A todos digo que hay que luchar”. Nuevo Hombre. Ano 1. N°. 16. Novembro
1971. Grifos meus.
265
Entrevista com Carlos Cárcova realizada por Mauricio Chama. 19.11.1998. Reproduzida em Chama.
“Movilización y politización: los abogados de Buenos Aires. 1968-1973” s/d. mimeo. 22 págs.
266
Entrevista com Cristina González (nome apócrifo) realizada por Laura Saldívia. 2002.
142
atendimento do processo estavam divididas segundo critérios cnicos. Era responsabilidade
dos advogados mais jovens visitar periodicamente os detidos e estar em contato estreito com
eles: “Dividíamos as visitas aos presos entre nós, de forma que todos tivessem visitas e que
nenhum advogado ficasse muito sobrecarregado. Alguns dos advogados com mais experiência
conduzíamos os processos, os outros, como eu, eram os que acompanhavam nas visitas”
267
.
As condições de detenção dos presos políticos tinham incidência direta nas condições
de trabalho dos próprios advogados que exerciam sua profissão sob as condições impostas
pelo Estado de sítio desde 1969. Suas demandas tinham a ver não apenas com as condições
insalubres em que se encontravam seus clientes detidos, mas também com o fato de que:
“… las visitas del abogado han sido reducidas a cuatro horas diarias y se realizan
(...) bajo permanente control de personal de vigilancia (...) que impiden la reserva
necesaria que debe existir entre procesados y defensores. Además está prohibido
para los prisioneros la redacción de escritos para el abogado durante su visita y
hasta la firma de todo tipo de presentaciones legales”
268
.
Recorrer aos tribunais para seguir a tramitação dos expedientes judiciais era uma
tarefa também cotidiana, embora revestida de circunstâncias excepcionais que podiam levar à
própria detenção do advogado, como foi mencionado no caso de Curuchet. Novamente,
Eduardo Luis Duhalde e Rodolfo Ortega Peña nos oferecem uma ilustração desta rotina de
trabalho carregada de humor negro, intitulada El jardín de los senderos que se bifurcan’, na
qual descrevem a seqüência de passos que devem ser realizados para se ter acesso a um
processo, destacando-se no texto tanto a sordidez dos procedimentos judiciais, como a
abnegação do profissional engajado com a defesa de presos políticos:
“El abogado que llega a ver su expediente es atendido (...) por un jefe de mesa de
entradas que por teléfono se comunica con la vocalía donde está radicada la causa.
(...) A raíz del llamado baja de los pisos superiores un empleado de la vocalía. Si
los argumentos son buenos y la razón suficiente como diría Schopenhauer el
letrado puede subir, acompañado del empleado y, gicamente, previa
identificación mediante exhibición del carnet. Se ha logrado superar la primera
barrera. Cumplido el trámite debe descender a la planta baja (...) [y si quiere
267
Entrevista com Cristina González (nome apócrifo) realizada por Laura Saldívia.
268
Em: Jornal Desacuerdo. “Los detenidos en el buque Granaderos informan las condiciones en que viven.”
143
consultar un nuevo expediente debe] allí realizar el mismo trámite de sube y baja
con la otra vocalía (...) El abogado que para ese entonces no ha abandonado la
defensa de su procesado tiene que... [se siguen describiendo los trámites que
continúan]”
269
.
A gratuidade das defesas, a disponibilidade para assumir o sistema de plantões, que
incluía a eventualidade de trabalhar as 24 horas qualquer dia da semana, ou mesmo de se
deslocar com urgência a diferentes pontos do território nacional, somado aos riscos pessoais a
que se expõem estes profissionais demonstram o caráter heróico de toda esta atividade. Isto
era possível, em parte, porque as gratificações simbólicas desta forma de exercício
profissional eram muito importantes, sobretudo para aqueles advogados que tinham sob sua
responsabilidade a defesa de dirigentes políticos ou sindicais reconhecidos. De alguma
maneira, o ‘nome’ do cliente defendido enaltece o ‘nome’ do advogado defensor. Assim,
Solari Yrigoyen refere-se à defesa de Agustín Tosco nos seguintes termos: “Sinto-me
duplamente honrado, como jurista e como amigo, de ter levado à Câmara Federal e à
Suprema Corte de Justiça a defesa deste sindicalista exemplar
270
.
Esta relação entre a notoriedade do defendido e a do defensor colocava em tensão o
critério técnico definido para a distribuição das causas. O princípio ‘técnico’ convivia com os
princípios através dos quais os advogados defensores ganhavam um nome: o prestígio do
advogado se ampliava à medida que assumiam maior número de defesas e de militantes de
maior prestígio. Como assinala um entrevistado ao se referir à posição de seus colegas
Eduardo Duhalde e Rodolfo Ortega Peña: “dentro da Gremial faziam uma ‘indústria de
defesa’, não no sentido comercial, mas pela promoção massiva (....) Eles pegavam todas e
queriam somar mais porque seu desenvolvimento político dentro da organização
[Montoneros] dependia disso...”
271
. Esta avaliação negativa sobre a tentativa de monopolizar
as causas ou realizar conferência de imprensa de forma permanente expressa os valores do
269
“El jardín de los senderos que se bifurcan”. Em: Nuevo Hombre. Ano 1. 1971. O título faz referência ao conto
homônimo de Borges e com esta referência pretendem equiparar o Palácio de Tribunais com um labirinto
burocrático. As duas referências literárias no texto colocam em evidência também o fato de que estes
profissionais do direito estavam dotados de um importante capital cultural (este ponto será examinado em
detalhe mais adiante).
270
Em Gabetta (1983), pág. 226.
271
Entrevista realizada por mim a Jorge Podetti (nome apócrifo). Grifos meus. Esta citação coloca em evidência
a existência de tensões dentro da Gremial e de limitações na colocação em prática da regra da adjudicação dos
casos segundo o sistema de plantão. Porque o exercício da defesa de presos políticos era uma estratégia de
crescimento dentro dos partidos e organizações políticas com as quais o advogado se identificava, alguns deles
tratavam de monopolizar os processos judiciais fazendo caso omisso dos plantões.
144
desinteresse sobre os quais se funda esta posição. Neste universo particular de valores, a
suspeita de interesse desqualifica o profissional, pelo menos dentro do grupo de pares, embora
não necessariamente dentro das organizações políticas das quais fazem parte. Expressões
deste tipo sugerem a existência de tensões entre formas diferenciadas de legitimação (o
mundo profissional do direito versus o mundo da militância) e formas diferenciadas de
participação nestes espaços associativos dedicados à defesa de presos políticos (como
advogados ‘enquadrados’ em organizações armadas ou como ‘independentes’).
Ao assumir a defesa perante os estratos judiciais, os advogados tentavam tirar proveito
das inúmeras falhas ou ambigüidades contidas no próprio sistema jurídico. O mesmo sistema
jurídico orientado para a repressão da militância política tentava ser utilizado pelos advogados
a seu favor: apelava-se a questões de competência para evitar que a causa caísse em juizados
especialmente desfavoráveis ou, então, se requeria a intervenção de instâncias superiores
como a Corte Suprema de Justiça com o propósito de adiar ou dilatar a processamento da
sentença. Outra estratégia era explicitar as ‘circunstâncias atenuantes’ do caso, com o
propósito de minimizar as penas ou diretamente solicitar a anulação de toda a atuação por
apresentar vícios no processamento da prova (como, por exemplo, a realização de invasão de
domicílio sem autorização judicial ou a aplicação de torturas como meio para obtenção de
uma ‘declaração espontânea’) etc. Este repertório de ações incluía também a possibilidade de:
“... impugnar as declarações dos policiais [contra a pessoa defendida], obrigá-los a que
declarem e tratar de que cometam erros e entrem em contradição...”
272
. Ou promover a
impugnação das tentativas de processar os detidos na Cámara Federal en lo Penal quando
tinham cometido supostos delitos antes da criação da mesma. Diante dos casos de militantes
de organizações armadas, os advogados defensores enquadram seus casos sob a forma de
‘conspiração para a rebelião’, figura contemplada pelo direito constitucional e que tinha a
‘vantagem’ de não criar antecedentes nem reincidência. Em outros casos, apelou-se à
jurisprudência comparada, invocando a ‘regra de exclusão’ tomada da jurisprudência da Corte
Suprema de Justiça dos Estados Unidos, pela qual não podem ser admitidas provas obtidas
ilegalmente no processo, o advogado assinala:
“... a mi me tocó invocar esta jurisprudencia para hacer caer las declaraciones
inculpatorias que x había realizado y que habían sido arrancadas bajo tortura.
Nosotros pedíamos que se realizara una biopsia de los tejidos de nuestros
272
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por Laura Saldivia.
145
defendidos ya que cuando una persona ha sido sometida al paso de la corriente
eléctrica se produce una necrosis de los tejidos, entonces se puede hacer una
biopsia, analizarse y, con muchas posibilidades, ese peritaje médico puede indicar
que esa persona probablemente ha sido sometida al paso de la corriente eléctrica.
Hacíamos este tipo de pedidos y obtuvimos una sentencia en que se lo absolvió a x
por el asesinato de Sallustro ...”
273
.
Sobre a base do mesmo sistema judicial que reprimia a atividade política e sindical, os
advogados responsáveis por essas defesas utilizaram todos os recursos providos por esse
mesmo direito e que foram ‘convenientes’ para o defendido do ponto de vista técnico. Nos
termos de Marta Grande“... a gente ia ao estrito direito pedindo que se cumpram as regras do
jogo que o sistema estabelece”.
274
O uso eficaz destas estratégias supôs uma ameaça ao propósito de reprimir
juridicamente a militância política, particularmente, a armada. Isto derivou em importantes
reformas do sistema judiciário como a inclusão da pena de morte ou a criação dos tribunais
‘anti-subversivos’ mencionados anteriormente e conhecidos como el Camarón’. Através de
uma reforma do código penal, a ‘conspiração para a rebelião’ foi transformada em um delito
penal: de ‘associação ilícita’. Da perspectiva de um integrante da Gremial esta modificação
significou a “... tentativa de politizar a associação ilícita com a intenção de transformar em
um delito comum o que era um delito político, como delito cria antecedente e reincidência (...)
produz-se uma ampliação da figura de associação ilícita”
275
. Estas modificações demonstram
que o recurso ao direito como uma estratégia de ação política não era exclusivo dos
advogados defensores identificados com as agrupações da esquerda ou com o peronismo. Este
era um recurso utilizado também por aqueles que então exerciam o controle do Estado.
273
Entrevista com Mattarollo no Arquivo Memoria Abierta. Salustro era, então, o diretor máximo da empresa
Fiat na Argentina. Foi seqüestrado e assassinado pelo Ejército Revolucionario del Pueblo em 1972. Esta
jurisprudência estava disponível nas revistas especializadas. A revista jurídica La Ley reproduz um artigo
publicado em uma revista norte-americana sobre um caso de aplicação da exclusionary rule no qual o juiz exclui
do processo as provas obtidas pela política através de meios inapropriados. Revista Jurídica La Ley. XXIII,
457. Janeiro-Março 1966.
274
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
275
Entrevista com Mario Landaburu realizada por Vera Camovale para o arquivo oral de Memoria Abierta.
Grifos meus.
146
2. 3. 2 O tribunal da opinião pública
Todas estas reformas obrigaram, por sua vez, a elaboração de novas estratégias de
parte dos advogados comprometidos com a defesa de presos políticos. Uma dimensão crítica
destas estratégias foi a mobilização coletiva e o apelo à opinião pública. Em ambas as
instâncias o que se fazia era invocar a inconstitucionalidade de todas estas reformas. Este foi
exatamente o recurso utilizado por Carlos Sánchez Viamonte durante o processo de
julgamento contra Ana Villareal, mulher do líder do Ejército Revolucionario del Pueblo,
Mario Roberto Santucho e cuja causa tramitava na Cámara Federal en lo Penal de la Nación
conhecida como ‘el camarón’
276
.
2. 3. 2. 1 ‘A defesa política’
A introdução de modificações no Código Penal, especialmente aquela que dispunha a
criação de uma etapa de instrução oral ao acompanhamento das causas chamadas
‘subversivas’, possibilitou que o próprio tribunal se transformasse em uma tribuna pública
onde o advogado podia, além de exercer a defesa particular da causa de seu cliente, dedicar-se
a denunciar a repressão e as arbitrariedades do sistema em geral. A defesa era assumida como
uma defesa política, uma vez que aspirava impugnar a legitimidade da instância acusatória, de
modo que o acusado se tornasse acusador e o tribunal de justiça um objeto de acusação. Na
defesa política, “... o que o advogado faz é defender o acusado a partir da postura do próprio
mandante, defender a concepção do mandante denunciando o que estava acontecendo”
277
. O
uso deste tipo de estratégia de defesa já havia sido identificado entre os advogados de defesa
de presos políticos nos anos 30, como vimos no caso dos militantes comunistas defendidos
primeiro por Lydia Lamarque e, depois, por José Peco.
Mattarollo argumenta o sentido deste tipo de defesa:
276
Ana Villareal foi condenada, naquele momento, a três anos de prisão. Causa 37/72. Em: Maria Seoane, 1991,
pág. 169. Logo depois seria fuzilada, em 1972, durante o episódio conhecido como ‘o Massacre de Trelew’.
277
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia.
147
“El juicio de ruptura es la estrategia de utilizar el juicio como una tribuna para
denunciar la injusticia estructural, la situación de opresión de un régimen
dictatorial (...) como una manera de mostrar las características del régimen en una
situación de escaso éxito de cualquier otra estrategia. Nosotros pensamos que,
cuando había la posibilidad de obtener la liberación o una condena leve para un
prisionero o un procesado, teníamos que tratar de agotar todas las posibilidades de
lograrlo. Pero había situaciones en que esto no era posible (...) lo único posible era
patear el tablero, por decirlo así”
278
.
Segundo os advogados entrevistados, esta ‘defesa política’ foi utilizada no chamado
‘caso Sánchez’, no qual foram julgados e sentenciados um grupo de militantes acusados de
assassinar o general do exército Juan Carlos Sánchez.
“Entonces en el juicio de Sánchez los prisioneros habían sido brutalmente
torturados y no tenía sentido tratar de jugar con las distintas posibilidades tácticas
que puede dar una defensa técnica. Lo único que tenía sentido era retirarnos del
juicio por considerar que no estaban dadas las garantías judiciales para la defensa
(...) y abandonamos el lugar, lo cual colocaba en una crisis bastante seria al tribunal
(...) El tribunal les designa defensor de oficio porque no puede haber juicio sin
defensor. Pero nosotros ya habíamos repudiado el juicio como una mascarada
279
.
Em um abaixo assinado publicado pelos advogados defensores, eles descrevem a
forma como levaram o caso adiante:
“El 19 de diciembre [de 1972] comenzó el debate oral y público ante la Cámara
Federal en lo Penal contra (…) para todos los cuales el fiscal pidiera la pena de
reclusión perpetua, acusándolos por la muerte del General Juan Carlos Sánchez. En
nuestro carácter de defensores de los mismos sostuvimos su inocencia (…) A tal
fin ofrecimos en conjunto más de CINCUENTA MEDIDAS DE PRUEBA (…) La
sala II de la Cámara Federal en lo Penal (…) negó a la defensa la totalidad de la
prueba ofrecida a tal efecto, quedando los cinco procesados sin posibilidad alguna
de ejercer el derecho constitucional de defensa en juicio (art. 18 de la Constitución
Nacional). Por esta razón, ante un proceso insanablemente nulo y a fin de no
278
Entrevista com Rodolfo Mattarollo, realizada por Vera Carnovale para o arquivo Memoria Abierta.
279
Entrevista com Mattarollo no arquivo oral Memoria Abierta.
148
convalidar con nuestra participación un juicio sin las menores garantías del
DEBIDO PROCESO LEGAL presentamos nuestras renuncias al cargo de
defensores, actitud ratificada también por nuestros defendidos, quienes también se
niegan a participar voluntariamente en las distintas instancias del debate. Como
ciudadanos, como hombres de derechos, como defensores de presos políticos
hemos cumplido con lo que nos dictaba nuestra conciencia”
280
.
As tensões contidas neste tipo de defesa permitem explorar bem as implicações de
uma prática profissional dirigida à defesa de uma causa pública. A tensão entre privilegiar a
pessoa defendida ou privilegiar a causa aparecem bem expressas no ‘testemunho’ apresentado
no jornal Nuevo Hombre por Roberto Sinigaglia, qualificado por seus próprios pares como
‘um dos advogados que mais se destacou na defesa de presos políticos’:
“Toda defensa política padece de una dolorosa ambivalencia. Por una parte, el
defensor debe aliviar en lo posible la situación de su defendido y procurar – contra
toda esperanza remediar su trance. Por otra parte, su intervención ‘consagra’,
convalida y formaliza la pretendida legitimidad del juicio. Un defensor de presos
políticos debe aceptar lo que tenga de inevitable y necesario esa ambigua
circunstancia, pero no debe perder jamás de vista que el aspecto más importante y
superior de su ministerio es salvar el honor de la conducta de su patrocinado.
Puede y debe dar a su desempeño el perfil de una clara y pública denuncia contra
los excesos y las maniobras del régimen. Cercada e impotente, la defensa tiene, sin
embargo, en sus manos un terrible poder. El poder de desmitificar, desenmascarar
y ridiculizar a la mascarada jurídica del régimen, proyectar su alegato hacia el
juez verdadero e inminente: el pueblo
281
.
É possível reconhecer neste texto que, como advogados, eles se percebem como peças
chaves na ‘consagração’ do acionar do Estado ao que, paradoxalmente, estão combatendo.
Posição que é vista como inerente ao fato de combater o Estado a partir do direito, isto é, com
as próprias armas providas por esse mesmo Estado. O advogado defensor, apenas por sua
280
Em: Revista Primera Plana. Buenos Aires. 26 de dezembro de 1972. Grifos meus. Maiúsculas no original.
Segundo Mattarollo, esta estratégia de defesa foi assumida no contexto da possibilidade imediata de um retorno à
vida democrática logo depois das eleições que se realizariam em março de 1973. Como veremos mais adiante, os
presos políticos foram liberados no mesmo dia em que o presidente constitucional Héctor Cámpora assumiu o
poder, em 25 de maio de 1973. Ver no Anexo N° 8 na página N° 214 uma reprodução deste abaixo-assinado.
281
“Testimonio de Sinigaglia. La significación de defender” em Nuevo Hombre. Ano 1. N° 16.
Novembro de 1971, grifos meus.
149
presença no tribunal, convalidaria a ilegitimidade de todo o procedimento judicial. Ao exercer
uma ‘defesa técnica’ o profissional ‘alivia’ o detido, mas sacrifica sua luta contra o Estado.
Da perspectiva destes advogados, através da ‘defesa política’, eles conseguem apropriar-se de
um ‘poder’ através do qual subverter essa pretensão de legitimidade. Por meio desta ação, o
advogado pode revelar a verdade oculta atrás da ‘máscara jurídica’ do caso e,
conseqüentemente, expor todo o ‘sistema de opressão’, transformando-se, ele próprio, em um
instrumento de luta contra o Estado repressor. Sugiro que esta representação em torno à
qualidade ‘subversiva’ da ação do advogado constitui um elemento crítico na formação do
perfil profissional deste segmento de advogados
282
.
A referência no texto à primazia de defender a honra do detido acima de outras razões
de conveniência processual sugere tudo o que estava em jogo na detenção de um militante. Do
seu ponto de vista, a detenção compromete sua honra, tanto pela suspeita de delação durante
as sessões de tortura como no momento de enfrentar um processo judicial. Nesta última
situação, sua honra está comprometida, tanto em termos de quem é seu advogado defensor,
como pelo tipo de defesa utilizada e através de quais caminhos se obtém a anulação do
processo ou libertação, como fica evidente na seguinte afirmação de Agustín Tosco: diante da
possível intermediação de Rucci, secretário da CGT oposta a CGTA à qual pertence Tosco,
este rejeitou publicamente a intervenção de Rucci afirmando: “Prefiro continuar preso que
sair através da intervenção de um traidor da classe operária”
283
. No momento de levar adiante
sua própria causa, o militante coloca em jogo sua honra e sua coragem dentro de um universo
fortemente hierarquizado como eram as organizações armadas da esquerda revolucionária.
Alguns profissionais de direito que entrevistei se referiram ao uso de uma defesa de tipo
‘política’ nos casos em que, dado ‘o [grande] nome’ da pessoa defendida, os advogados, no
lugar de minimizar a gravidade do caso ou apelar às circunstâncias atenuantes, buscam, ao
contrário, amplificar essas circunstâncias como forma de preservar a honra do defendido. A
percepção de que o próprio militante armado tinha do julgamento como uma trincheira de luta
contra o Estado e a posição que este ocupava dentro de sua organização incidia, então, na
maneira em que o caso era levado adiante pelo advogado defensor.
282
Com a independência do fato de se este tipo de defesa foi utilizado em um número mínimo de casou ou não
tenha sido assumida por todos os integrantes da Gremial. Este ponto será desenvolvido mais adiantes no item
‘Ser um advogado defensor de presos políticos’.
283
Jornal El Defensor, novembro 1971.
150
A diferenciação entre ‘defesa técnica’ e ‘política’ distingue, por sua vez, os próprios
integrantes destas associações de defesa de presos políticos e é produto das diferentes
posições que ocupavam neste espaço. Para Mario Landaburu, por exemplo, o objetivo central
da assistência jurídica era:
“... proteger la integridad física de los detenidos y tratar de que salieran en liberad.
Y no hacer del detenido ninguna víctima’ ejemplificadora, tratar de sacarlo en
libertad poniendo el conocimiento técnico a disposición de esos objetivos, hay que
sacarlo en libertad utilizando argumentos jurídicos (...) La posibilidad de plantear
un juicio de ruptura no pasó de una discusión de café. No se plasmó, que yo sepa,
en ningún caso (...) lo que se hacía era introducir el alegato político en el
expediente”
284
.
As palavras do porta-voz da Gremial pronunciadas naquele momento confirmam essa
tomada de posição:
“Los juicios llamados ‘de ruptura’ suponen la aceptación de los cargos (…) La
defensa cuestiona generalmente la imputación, el tribunal y las leyes vigentes y
puede hacerlo sin necesidad, en la mayoría de los casos, de aceptar la
responsabilidad de los hechos que se imputan (…). ¿Qué debe cuestionar un
abogado? Ello depende de las características particulares de las causas,
particularidades políticas del defendido, condiciones y posibilidades de publicidad
del proceso, condiciones políticas generales y particulares contemporáneas al
proceso, etc. La estrategia procesal debe analizarse en cada caso. La inexistencia de
procesos ‘de ruptura’ indica que el planteo teórico excede en la actualidad las
posibilidades de su aplicación generalizada”.
285
Ainda quando em sua abrumadora maioria estes advogados optaram por uma defesa
do tipo ‘técnica’, era necessário contar com profissionais que estiveram dispostos a assumir
publicamente a causa em outro cenário: o da esfera pública. Como assinalava Hipólito Solari
Yirgoyen, “Tem que ver que se tratava de uma defesa ativa, que ia muito além dos trâmites
284
Entrevista realizada com Mario Landaburu para o arquivo oral Memoria Abierta. É interessante observar
como, para este entrevistado, o julgamento de ruptura ‘não foi realizado em nenhum caso’, enquanto para
Mattarollo o caso Sanchez foi um caso de defesa política.
285
“La Asociación Gremial de Abogados y los Presos Políticos” Reportagem ao secretário de imprensa da
Gremial, Hugo Vega, no Jornal Nuevo Hombre.
Número 20. 01 a 06 de dezembro de 1971.
151
‘normais’ em um país onde imperam o direito, a soberania, a imobilidade dos juízes etc.”
286
.
A ocupação do espaço público tinha sido identificada entre as características distintivas
deste tipo de militância jurídica nos anos trinta.
Transformarem-se, eles mesmos, em parte litigante de um processo podia fazer parte
desta ‘defesa ativa’. O repertório de ações destinadas a dar publicidade à causa incluía
também participar junto com os detidos de uma greve de fome em demanda de melhorias nas
condições de detenção, permanecer junto com os dirigentes sindicais nas ocupações das
fábricas, atuar como oradores em manifestações públicas ou transladar-se de forma urgente a
lugares distantes para visitar os presos políticos. Um caso extremo foi a mobilização dos
integrantes da Gremial no episódio conhecido como ‘o massacre de Trelew’: quando os
militantes que tinham fracassado na fuga da penitenciária de Rawson foram transladados a
uma base naval, os advogados defensores viajaram até o local a fim de: ... arbitrar os meios
para salvaguardar a vida dos que ficavam feridos e tentar obter informação sobre a situação
do resto dos detidos na Penitenciária de Rawson”
287
. Durante uma assembléia da Gremial,
seus associados resolveram responder à urgência da situação contratando um táxi aéreo. Esta
ação foi financiada pelos próprios advogados defensores. Em relação aos presos que tinham
conseguido fugir para o Chile, os integrantes da Gremial, Eduardo Luis Duhalde, Mario
Amaya e Gustavo Roca viajaram a Santiago para ter uma entrevista com o presidente Allende
e negociar com ele a saída dos fugitivos para Cuba e evitar que Allende respondesse ao
pedido de extradição solicitado pelo governo argentino.
O exercício da defesa de presos políticos como um ato de vocação é expresso ao
considerar a gratuidade com que essas defesas eram levadas adiante. Uma integrante da
Gremial afirma: “Cada um se sustentava a si mesmo (...) as defesas políticas eram cobradas
quando a família podia, mas, em geral, muitas não eram cobradas. E todos contribuíam par o
aluguel que pagávamos do escritório. Isso sim era trabalho comunitário...
288
. Esta afirmação
supõe um certo jogo de importação de recursos entre o mundo profissional e o da militância.
O exercício tradicional da profissão era uma condição necessária para ‘militar’ em
associações como a Gremial, pelo menos para aqueles advogados não ‘orgânicos’. O
286
Entrevista realizada com Hipólito Solari Yirgoyen em 1978 por Carlos Gabbeta. “Un Senador de la Nación”.
Em: Gabbeta (1983). Grifo meu.
287
Entrevista com Rafael Lombardi, publicada no: Jornal Desacuerdo. Grifos meus. Trelew encontra-se a uns
1.400 km da cidade de Buenos Aires.
288
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo) realizada por Laura Saldívar.
152
exercício da profissão entendida como aquela atividade realizada nos escritórios privados e
pela qual recebiam honorários profissionais, outorgava-lhes uma disponibilidade relativa no
que se refere ao uso do tempo e ao uso dos recursos econômicos.
O trabalho de dar publicidade aos casos judiciais compreendia a participação ativa na
formação de diferentes espaços criados especificamente para amplificar as denúncias sobre a
repressão de Estado e, com isso, o próprio ativismo dos advogados. Com este propósito
organizaram conferências de imprensa, manifestações públicas, redigiram notas para os meios
de comunicação, estabeleceram contatos com personalidades do exterior com o objetivo de
que intercedessem ante o governo nacional e, em diferentes cidades do país, criaram fóruns,
assembléias e tribunais populares. Os Tribunais Populares Anti-repressivos foram concebidos
como um tipo de assembléia pública na qual se convocava a participar como jurado não
especialistas em direito, mas também ‘homens e mulheres pertencentes a diferentes classes e
camadas do povo argentino empenhado na luta antiditatorial’. A presidência honorária destes
tribunais recaía, simbolicamente, nas ‘vítimas e mártires da ditadura’. Estes Tribunais
propunham ‘julgar as políticas repressivas’, publicar as denúncias e mobilizar-se em memória
das ‘vítimas da ditadura’. Para isso, realizavam atos públicos que simulavam o
desenvolvimento de um julgamento e, depois, comunicavam seus veredictos em conferências
de imprensa
289
. Os integrantes da LADH impulsionavam também os Tribunais contra o
Macartismo
290
.
Na cidade de Buenos Aires, no final dos anos sessenta, foi criado um espaço
especificamente dedicado a amplificar as denúncias dos advogados: o Foro de Buenos Aires
por la Vigencia de los Derechos Humanos. O termo escolhido para designar esta associação
apela justamente a esta dupla dimensão do trabalho profissional de quem havia assumido o
compromisso de defender presos políticos: exercer a advocacia e a prática dos tribunais e
promover as denúncias na esfera pública. Nas entrevistas, os advogados destacaram que o
Fórum atuava ampliando as denúncias judiciais levadas adiante pelos integrantes da Gremial,
289
Nas notas publicadas pelo Jornal Desacuerdo podem ser acompanhadas as alternativas de estes tribunais.
“Sesionó en Córdoba el Tribunal Popular Antirrepresivo”.
290
Estes tribunais não eram uma invenção nativa. Parecem estar inspirados em modelos internacionais como os
Tribunais contra o Macartismo nos EUA e o Tribunal Russel na Europa. O Tribunal Russel foi criado por
inspiração do filósofo inglês Bertrand Russel que, em 1966, convocou diversas personalidades de diferentes
países para investigar os crimes cometidos pelas tropas norte-americanas no Vietnam. Este tribunal definia-se
como um tribunal de opinião’, cuja autoridade, embora não estivesse investida do poder do Estado, estava
fundada na qualidade ética de seus integrantes. Este ponto será desenvolvido mais adiante.
153
que estas dificilmente eram publicadas pela imprensa nacional
291
. A atividade principal do
Fórum era informar o público sobre a situação dos presos políticos, suas condições de
detenção, a aplicação de torturas, os nomes de seus responsáveis etc. Esteve integrado por um
grupo heterogêneo de sindicalistas como Raimundo Ongaro e Agustín Tosco, artistas,
intelectuais, jornalistas, editores e, evidentemente, advogados
292
. Esta experiência é lembrada
hoje como uma ‘novidade total’ para a época, que se fazia a denúncia pública baseada no
testemunho direto das vítimas. Depois eram enviadas a importantes dirigentes políticos do
exterior, legisladores e até ao presidente dos EUA. A intenção era que, ao recebê-las, estas
personalidades pressionassem o governo nacional produzindo um efeito ‘de rebote’ das
denúncias. Para Silvia Dvovich, “... isto que agora se como uma novidade, nós já o
fazíamos” (ibidem).
2. 3. 2. 2 A imprensa ‘antiditatorial’
Outro espaço chave na enunciação pública da ilegitimidade do Estado repressor foi a
imprensa. Para que as denúncias pudessem ter acesso à imprensa foram levadas adiante várias
estratégias. Uma delas consistia em utilizar as salas de imprensa dos próprios tribunais. Ao se
referir a esta tática, Matarrollo assinala: “É tão importante quando se apresenta um hábeas
corpus deixá-lo no juizado como na sala de imprensa dos tribunais para que os jornais o
publiquem, porque se alguma garantia existia, parecia maior a que a opinião pública podia dar
através dos meios de comunicação”
293
.
Outra das estratégias empregadas foi a de criar, eles próprios, uma imprensa onde
pudessem ser publicadas as denúncias e mostrar também o trabalho dos advogados defensores
de presos políticos. Entre as publicações que pude identificar no transcurso desta pesquisa,
criadas e dirigidas pelos próprios advogados defensores ou onde o trabalho que estes
realizavam tinha ampla cobertura, encontram-se: Desacuerdo, Nuevo Hombre, Militancia
Peronista para la Liberación, No Transar e Liberación. No primeiro caso, seu nome refere-se
à rejeição ao governo do General Agustín Lanusse de ‘abertura’ à atividade política chamada
291
Entrevista com Silvia Dvovich (nome apócrifo) realizada por mim. 22.07.2002.
292
Entre eles encontravam-se Raúl Aragón, Haydeé Birgin, Mario Landaburu, Héctor Sandler, Hipólito Solari
Irigoyen, Roque Bellomo e Alejandro Teitelbaum.
293
Entrevista no arquivo oral de Memoria Abierta.
154
Grande Acordo Nacional (GAN), que estes advogados impugnaram, batizando-a ironicamente
como ‘Grande Assassinato Nacional’. Nela publicam principalmente advogados que atuavam
profissionalmente na província de Córdoba, como Alfredo Curuchet, Eduardo Gabino Guerra
e Susana Aguad. Nuevo Hombre (junho 1971 março 1976) foi uma publicação dirigida em
um primeiro momento por Enrique Walter, depois pelo advogado defensores de presos
políticos Silvio Frondizi (1972), logo por seu colega Rodolfo Mattarollo (1973-1975) e
finalmente por outro advogado, Manuel Gaggero (1975-1976), todo integrantes da Gremial.
No transar foi o jornal da agrupação Vanguarda Comunista. Esteve dirigido pelo advogado
defensor de presos políticos Elias Seman e em suas notas eram cobertas as denúncias dos
advogados. Liberación foi uma publicação lançada especificamente para promover a
‘libertação de presos políticos e sociais’ uma vez assumido o governo democrático de Héctor
Campora em 1973
294
.
Nas páginas destas publicações conviviam notas de índole muito diversa: desde
reproduções de comunicados de imprensa das organizações armadas, atribuindo-se a
responsabilidade de um atentado, informando do ‘justiçamento’ de um ‘repressor’ ou de uma
‘operação de expropriação’ à burguesia, até cartas, entrevistas e testemunhos das ‘esposas’,
das ‘mães’ e dos‘filhos’ dos ‘presos, torturados e assassinados pela ‘ditadura’, incluindo
cartas redigidas pelos próprios advogados defensores na prisão. Conviviam também resumos
de assembléias gremiais, reproduções de seus ‘planos de luta’, análises sobre as possibilidades
de êxito da luta armada, estudos sobre as diferentes organizações ‘político-militares’, e
reportagens (anônimas) aos principais dirigentes das mesmas, junto com notas nas quais os
advogados defensores de presos políticos reivindicavam a necessidade de ‘implantar o Estado
de direito’ e ‘garantir o cumprimento dos direitos humanos’. Em relação ao trabalho destes
últimos, reproduziam-se seus ‘escritos’ perante os tribunais, suas ‘declarações’, ‘comunicados
de imprensa’, ‘relatórios’ sobre as condições de detenção, sobre o estado dos processos,
descrições das condições nas quais os advogados exerciam seu trabalho, listas de ‘prisioneiros
de guerra’ segundo seus lugares de detenção, pronunciamentos coletivos e palavras de
homenagem a colegas assassinados ou desaparecidos.
294
Dela participaram Carlos González Garland, Gustavo Roca, Rodolfo Ortega Peña, Eduardo Luis Duhalde,
Alfredo Curuchet, Martín Federico, Miguel Angel Radrizzani Goñi, Roberto Sinigaglia, Mario Landaburu e Raúl
Aragón junto com figuras do mundo intelectual, artístico e sindical como Julio Cortázar, León Ferrari e Agustín
Tosco.
155
As notas, cartas e comunicados, caracteristicamente, continham extensas transcrições
do dramático relato das próprias ‘vítimas’ e descrições de casos que mostravam como “... dia
a dia os direitos humanos mais elementares são violados em nosso país”
295
. Nestes
comunicados faz-se uso profuso de categorias como ‘vítimas e mártires da ditadura’ e de
noções como ‘direitos humanos’, ‘constitucionalidade’ e ‘garantias da pessoa humana’. Dado
que todas elas apresentam um formato e uma retórica semelhante, vou centrar-me na
publicação realizada pelo Fórum, uma vez finalizada ‘a ditadura’ em 1973: Proceso contra la
Represión y la Tortura. Considerado por seus autores um verdadeiro ‘livro negro’ da
repressão, esta publicação compilava os testemunhos das ‘vítimas da ditadura’ e ‘as denúncias
de violações dos direitos humanos’ cometidas durante a autodenominada Revolução
Argentina (1966-1973). Os testemunhos provinham seja de cartas escritas pelos próprios
detentos, de testemunhos realizados diante dos advogados defensores ou da reprodução das
declarações indagatórias feitas ante o juizado pelo detido, quando este passava a uma
condição de detenção legal. Graças ao privilégio profissional que lhes possibilitava ter um
contato direto com os detidos e um acesso exclusivo ao testemunho, os advogados se
colocavam, eles próprios, na posição de poder oferecer um testemunho privilegiado da
repressão perante a opinião pública.
As denúncias publicadas neste volume tinham a pretensão de se constituírem em
verdadeiras ‘atas de acusação’ dos ‘crimes do regime’ e, nesta lógica, reuniam todas as
‘provas’ relativas ao caso denunciado, uma vez que na esfera oficial estas denúncias eram
impugnadas como simples casos de ‘auto-seqüestro com fins publicitários’
296
. Nas suas
páginas reivindicava-se a necessidade de justiça e de memória: buscava-se impulsionar tanto
uma ‘exaustiva investigação que individualizasse e condenasse os responsáveis diretos, a seus
instigadores e encobridores, como conseguir, ao mesmo tempo, que ‘ninguém esqueça o que
aconteceu para que não aconteça mais
297
.
Vale a pena destacar que as duas palavras de ordem principais cunhadas pelo
movimento dos direitos humanos surgido nos anos 80 são justamente: pela justiça e contra o
esquecimento. De maneira muito similar à forma em que são incluídos os depoimentos das
295
Comunicado da Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires elaborado por ocasião do
desaparecimento de Luis Pujals e reproduzido no Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. Número 12. 1971.
296
Estas foram as declarações do presidente Agustín Lanusse diante da denúncia de desaparecimento de Luis
Pujals. Nuevo Hombre
. Ano 1. Número 12. 1971
297
op. cit.: 7 e 8.
156
vítimas no Nunca Más, volume que compila as denúncias oficiais de violações aos direitos
humanos cometidas durante a última ‘ditadura’ (1976-1983), estes relatos se organizam sob o
mesmo formado: estão narrados em primeira pessoa e começam no momento de detenção da
vítima, identificada exclusivamente a partir de seu nome (familiar) e o por sua identidade
política que, em geral, se mantém reservada. Oferecem um detalhado relatório das diferentes
técnicas aplicadas na tortura dos detidos junto com um relatório das conseqüências físicas e
psicológicas das mesmas. Em alguns casos, os testemunhos são acompanhados de relatórios
forenses confirmando a prática da ‘picana elétrica’ ou outras formas de tortura aos presos e,
por conseguinte, a veracidade das denúncias. Este volume parece mostrar o aparecimento de
formas de narrar o passado imediato que logo depois ocuparão um lugar protagonista nos anos
oitenta: as vítimas, os repressores, os testemunhos, as demandas de justiça e de memória.
Em contraste com o dramatismo deste tipo de nota, os advogados Eduardo Luis
Duhalde e Rodolfo Ortega Peña publicaram em Nuevo Hombre uma extensa série de vinhetas
sobre o funcionamento do sistema judicial e o trabalho do advogado defensor.
Caracteristicamente, o tom delas é irônico e sarcástico no que se refere à atuação dos
diferentes poderes do Estado. Na forma de pequenas anedotas aparentemente triviais,
descrevem processos judiciais a partir dos quais podem ridicularizar os diferentes agentes do
Estado, como quando fazem pública a detenção de ’46 trabalhadores’ considerados cúmplices
e encobridores de uma ação armada executada pelo Ejército Revolucionário del Pueblo
(ERP). Na nota intitulada “Proceso al Chacinado”
298
narram como se tentou processar a estes
‘criollos’ no âmbito do ‘camarón’ por ter consumido chacinados distribuídos pelo ERP entre
os moradores de ‘uma favela’ na cidade de Rosario. A fracassada tentativa de processá-los se
fundava na aplicação da lei 19081 de procedimento contra ‘terroristas’ segundo a qual: ‘Ficou
demonstrado que (...) as organizações extremistas [pretendem] destruir as próprias bases das
nossas instituições sociais e políticas...’
299
. A nota, que faz um contraponto entre os
fundamentos dramáticos da lei e a anedota grotesca dos moradores acusados de comer
morcelas e lingüiças, culmina com um toque de sarcasmo: “O Juiz voltou a Buenos Aires. No
domingo foi ao estádio de futebol. Quando o vendedor ofereceu uma lingüiça, não teve como
não se lembrar” (op. cit.).
298
Chacinado equivale a ‘porco’ em português. O título tem um forte caráter irônico e não se refere à palavra
‘chacina’ tal como ela é entendida no português.
299
Em: Nuevo Hombre, Ano 1, No. 3, 1971.
157
Nas outras vinhetas, a descrição pretende ser neutra, como um recurso que permite,
por um lado, apresentar um fato extraordinário como algo normal, destacando assim o
absurdo que isto significa (por exemplo, o interrogatório de um juiz a um detido depois de ter
sido torturado) ao mesmo tempo em que, ao apresentar um relato dos fatos ‘tal qual são’, os
autores aspiram deixar em mãos do leitor a moral da história que se desprende da anedota,
apelando assim a uma certa cumplicidade interpretativa entre leitor e autor (neste caso, não se
explicita, por exemplo, a idéia de uma cumplicidade entre o poder judicial e policial, mas
se sugere).
As notas nos meios de comunicação podiam ter também um sentido pedagógico. Nas
páginas desta imprensa se publicavam “... cartilhas dirigidas aos trabalhadores onde se
explicava como defender seus direitos, cartilhas dirigidas aos militantes políticos sobre como
defender seus direitos (...), tudo assinado com nome e sobrenome, motivo pelo qual muita
gente que nós não sabíamos quem era dizia: mencionei o advogado defensor porque o vi em
um folheto da Gremial”
300
.
No exercício de defesa dos presos políticos, a exposição pública dos casos tramitados
na justiça era uma parte central das atividades destas associações e dos profissionais do direito
que as integravam. Neste sentido, o trabalho do profissional consistia tanto na assistência
jurídica como na representação do defendido e sua causa perante os poderes públicos. Através
deste trabalho de enunciação pública, os casos particulares eram transformados em casos
emblemáticos que simbolizavam o cotidiano da violência de Estado e os advogados se
sentiam obrigados a cumprir, neste contexto, um papel central na impugnação do próprio
Estado.
300
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por Laura Saldivia. Ver no Anexo N° 9, pág 215
a reprodução de uma destas notas publicadas em um jornal da LADH. “Cómo Defenderse en caso de ser
detenido…”. Em: El Defensor. Novembro de 1971.
158
2. 4 As associações de ‘parentes de presos políticos e sociais’
Os advogados comprometidos com a defesa de presos políticos e sociais participavam,
por sua vez, na constituição de diversas comissões e organizações de solidariedade com os
parentes dos presos, como a Organización de Solidaridad con los Presos Políticos,
Estudiantiles y Gremiales (OSPPEG) e a Comisión de Familiares de Presos Políticos,
Estudiantiles y Gremiales (COFAPEG)
301
. Depois do ‘massacre de Trelew’ constituiu-se
também uma Comisión de Familiares de Patriotas Fusilados en Trelew, integrada por ‘pais,
irmãos, esposas e esposos dos 16 fuzilados...’
302
, especificamente dedicada a ‘reivindicar
justiça’ e ‘render homenagem’ aos ‘mártires’, definidos como ‘os melhores filhos da Pátria’.
Entre as reivindicações desta Comissão encontram-se as de ‘exigir uma comissão
investigadora’ e exigir um monumento’ aos ‘caídos’. Os fuzilamentos são qualificados como
crimes contra os ‘tratados de direitos humanos’.
Poucos dias depois do desaparecimento de Néstor Martins, um grupo de parentes se
concentrou na Plaza de Mayo exigindo por ‘Vida e Justiça’ para Martins e Centeno. A
intenção da concentração era que fossem recebidos pelo presidente da Nação para entregar-
lhe uma carta. A foto da concentração mostra as consignas. A ocupação deste espaço seria,
poucos anos depois, o ato fundacional da Asociación Madres de Plaza de Mayo (1977)
303
.
Dentro da categoria ‘familiar’ estavam incluídos as ‘companheiras, mães, avós e
filhos’ dos detidos. As associações integravam parentes com ‘diferentes procedências sociais
e orientações ideológicas’, destacando-se o trabalho de homogeneização da categoria de
parente, como se percebe no seguinte relato: “Eu falei em nome das esposas e mães dos
trabalhadores e outros presos sem fazer diferenças
304
.
301
Em 1961 foi criada a Comisión de Familiares de Detenidos (CoFaDe) como resposta à repressão do chamado
Plan Conintes pelo qual, durante o governo de Arturo Frondizi (fundador da Liga) o partido comunista foi
proscrito, as greves foram declaradas ilegais e foram presos milhares de militares peronistas e comunistas. A
COFADE integrava parentes e advogados que depois formariam a Gremial como Kestelboim e Galin. Em
dezembro de 1962 publicou uma solicitação onde demandava uma anistia aos presos ‘conintes’ e o fim do
Estado de sítio. Em: Mauricio Chama, s/d.
302
Ver o Anexo 10, na g. 215 a reprodução de uma solicitação desta comissão de parentes. Em: Revista
Militancia Peronista para la Liberación. No Anexo 11, na pág. 216 está reproduzida a solicitação da
COFAPEG convocando para uma greve de fome em apoio à melhoria nas condições dos presos políticos. Esta
greve foi seguida também pelos próprios advogados defensores em apoio à medida. Em: Revista Nueva Plana.
Ano 1. Número 12. 09.01.1973.
303
Anexo Número 12, pág. 217. Revista Así.
09.01.1971.
304
Em: Jornal Desacuerdo, No. 2, 1972, grifos meus.
159
No dia internacional da mulher celebrado em 1973, homenageava-se com um ato no
Luna Park as ‘mães peronistas’ e, especialmente, ‘as mães de filhos e companheiros caídos
em combate’
305
. No ato e no palco, uma rosa vermelha identificava essas ‘Mães dos Mártires
Peronistas’ e as diferenciava do resto da audiência. A oradora do ato, ao apresentar
publicamente estas Mães disse: “... aqui no palco um grupo de mulheres que têm em suas
mãos uma rosa vermelha, essa flor (...) significa o filho que demos e que entregaram suas
vidas para tornar possível a realidade que hoje vivemos”. Estas mulheres colocaram a
necessidade de continuar a ‘luta’ iniciada por seus filhos, que: “... quando o inimigo nos
atacou no que mais queríamos, nesse filho que tínhamos educado com amor (...) e os vimos
cair assassinado, fuzilado, ensangüentado (...) ninguém nos viu tremer nem chorar porque o
lugar vazio que eles deixaram, nós o preenchemos”
306
.
Nos jornais desta militância eram reproduzidas cartas privadas enviadas pelos filhos já
mortos a suas mães: “...Quando se sinta triste, pense que, apesar de tudo, estamos felizes de
podermos ser úteis a nossa Pátria (...). E não estamos sós, mamãe (...), Pais e Mães que
lutam por resgatar seus filhos da tortura, da prisão ou da morte acabam compreendendo que
que resgatar delas todos os filhos de todas as mães e pais que hoje sofrem a exploração, o
desprezo e o desamparo”
307
.
No relato sobre suas atividades, estas são equiparadas às ações dos próprios parentes
detidos. Assim, as visitas aos presos, as solicitações de audiências com autoridades públicas e
a realização de processos contra o Estado tornam-se verdadeiros ‘atos de combate à
ditadura’
308
.
Embora estas associações requeressem uma descrição mais detalhada, o que interessa
mostrar aqui é o surgimento neste momento de associações que apelam ao vínculo de sangue
com os presos políticos, os assassinados e os desaparecidos como princípio de representação,
algo que já estava insinuado nas ‘esposas e mães’ dos dirigentes deportados para a Europa em
1936 e que ganhará um protagonismo excepcional nos anos oitenta, quando são estas
associações as que vão ocupar o centro da cena pública. Outro elemento para destacar é a
conjunção que começa a agir nestes anos entre associações fundadas em dois princípios de
305
Em: Jornal El Descamisado. Ano 1, No. 25. 06.11.1973, pág. 16.
306
Trecho do discurso de Lidia Mazzaferro, reproduzido no Jornal El Descamisado. 20.03.1973.
307
Jornal El Descamisado. Ano 1, No. 25. 06.11.1973, pág. 16.
308
Em: Jornal Desacuerdo. No. 2, junho 1972.
160
recrutamento: o sangue e o direito. Vale a pena observar na publicação da LADH a
reivindicação da categoria ‘vítima da ditadura’ para se referir a Néstor Martins e ao uso de
uma retórica que alcançaria sua consagração a partir dos anos oitenta: “o seqüestro de Martins
e Centeno é o símbolo mais eloqüente da violenta perseguição contra os que lutam pelo
cumprimento dos direitos humanos”.
2. 5 A profissão de advogado e o compromisso militante
Quem eram socialmente estes advogados que estavam dispostos a dar sua vida em
defesa de seus ‘companheiros’? Como compreender, de um ponto de vista sociológico, a
formação de segmentos da profissão jurídica diretamente associados à promoção e defesa dos
presos políticos e suas causas?
2. 5. 1 A opção pela qualificação profissional
Dentro do universo de advogados destacados para este trabalho, pode-se reconhecer
como denominador comum o fato de se tratar de jovens profissionais recém graduados cujas
famílias não pertenciam ao mundo do direito nem ao mundo profissional, na maioria dos
casos. De acordo com os dados biográficos que pude identificar nas entrevistas e outras fontes
documentais, os que se somaram à defesa de presos políticos tinham entre 25 e 35 anos
309
.
Se entre a geração de profissionais do direito analisada no capítulo anterior
predominam os filhos de imigrantes europeus, os profissionais estudados neste capítulo, ainda
que encontremos casos de argentinos de primeira geração, predominam os argentinos de
segunda geração. Ao fazer um levantamento das atividades dos pais, pude identificar que se
trata de comerciantes, donos de oficinas dedicadas a atividade manual e, no caso das
mulheres, professoras ou donas de casa que ficam viúvas precocemente. A escolha do curso
de direito aparece enunciada, dentro deste contexto, como o apelo a um recurso ‘prudente’
pois significava optar por obter um diploma que habilitava para inserção profissional
imediata. O relato deste entrevistado aplica-se a muitos outros: “... no meu caso particular, a
309
Interessa destacar que a categoria ‘advogado mais especialista’, neste contexto, refere-se a alguns poucos
profissionais que tinham, então, 40 anos como Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) ou Mario Landaburu.
161
vocação para o direito surge exclusivamente na circunstância que, por um problema familiar,
tive que cooperar na manutenção de minha casa”
310
.
Mesmo quando, no horizonte de expectativas aparecem enunciados outros interesses,
como sociologia, ciências políticas ou filosofia, estas não são opções consideradas como
disponíveis para quem necessita de um sustento econômico. Aqui, aplica-se o caso
paradigmático de Rodolfo Matarollo que, formado no Colégio Nacional de Buenos Aires e
possuidor de um alto capital cultural e uma vocação para as letras, opta pelo curso de direito
com a intenção de poder financiar, através deste trabalho, sua participação no mundo literário
nos fins dos anos 60. No relato do próprio Mattarollo:
“Yo provengo de una familia modesta desde el punto de vista económico, pero que
me dio una buena educación (...) En mi hogar, si bien la cultura estaba colocada
por las nubes, con los pies en la tierra decidí estudiar una profesión liberal que me
permitiera defenderme en la vida (...) la literatura no podía ser vista como un medio
de trabajo en esa época”
311
.
Os relatos dos entrevistados sobre a vida estudantil acompanham as referências ligadas
à maneira como as famílias que moravam em localidades distantes dos centros universitários
conseguiam financiar estes estudos, recorrendo a parentes residentes em Buenos Aires,
Córdoba ou La Plata, ou procurando um lugar de residência, como La Plata, que oferece
muitas alternativas de serviços a baixo custo para os estudantes. Trabalhar durante o curso era
uma opção comum para os que vinham do interior como para os que residiam em Buenos
Aires.
Ao ingressar na vida estudantil, os entrevistados se distinguem da ‘maioria’ dos
estudantes da faculdade: “Naquela época [1958] a faculdade estava cheia de almofadinhas
vestidos de terno e gravata, quando não estavam com colete. Parecia o Jockey Club. Muito
disso era aparência, porque muitos eram de classe média”
312
. Esta apreciação de Mattarollo
310
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por Laura Saldívar. Ano 2000. Grifos meus.
311
Entrevista com Rodolfo Mattarollo para o arquivo oral de Memoria Abierta. A advogada defensora de presos
políticos Malena Bordenava (nome apócrifo) expressa sua opção pelo direito nos mesmos termos: “Eu, desde
sempre, quis escrever (…), mas tinha a idéia de que não podia viver da literatura. Meus pais não podiam me
manter porque não eram pessoas ricas nem poderosas. Meu pai vivia como um médico honesto, às vezes sequer
cobrava a consulta…” Entrevista realizada por mim. Buenos Aires Ano 2002.
312
Entrevista com Rodolfo Mattarollo, realizada por Vera Camovale para o Arquivo Memoria Abierta. Ano
2003. Grifos meus.
162
parece estar baseada em dados objetivos a respeito das transformações ocorridas na classe
dirigente argentina. Segundo o estudo já mencionado de José Luís de Imaz, observa-se neste
período o predomínio de setores médios na constituição das elites dirigentes. Trata-se de
profissionais e filhos de não profissionais cujo ingresso aos quadros dirigentes tipificam
situações de ascensão social
313
. De acordo com Dezalay e Garth, em 1958 estudavam na
Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires uns 11.000 estudantes
314
. Neste
período voltam a surgir as críticas que a ampliação da matrícula supunha em termos de
‘desvalorização’ do título universitário. Neste sentido, vale a pena destacar que uma das
consignas centrais da agrupação de estudantes de direito que ganhou o Centro em 1964 foi
‘Estudante, hierarquize seu título’
315
, uma reivindicação que foi extensamente tratada no
capítulo 1.
A modalidade em que cursavam os estudos de direito também facilitava a
incorporação de jovens que deviam trabalhar, a par de se formar na profissão. Além disso, os
que cursavam direito podiam ter acesso a um título intermediário antes de terminar o curso.
Como assinala um entrevistado, o curso oferecia várias vantagens:
“En el año 1949 estudiar cualquier otra carrera, como ingeniería o medicina,
implicaba no poder trabajar simultáneamente (...) En el caso de la carrera de
abogacía, durante toda mi carrera yo asistí a dos clases en total (...) Esto era una
facilidad para poder incorporarme a la carrera, con el agregado que en esa época,
nosotros podíamos cursar simultáneamente procuración, escribanía y abogacía
porque el contenido de las materias era el mismo”
316
.
Dentro deste perfil, existem algumas figuras que se destacam por possuir
características nitidamente diferenciadas. Entre elas, distinguem-se, por pertencer a famílias
de tradição no mundo do direito ou da política, os advogados Hipólito Solari Yrigoyen,
Gustavo Roca, Silvio Frondizi, Mario Landaburu, Martín Federico e Rodolfo Ortega Peña. O
primeiro é bisneto da irmã do fundador do partido Unión Cívica Radical, Leandro N. Alem e,
por sua vez, sobrinho neto de Hipólito Yrigoyen, advogado que foi por duas vezes presidente
313
Imaz, op.cit. pág. 29.
314
Em: Dezelay e Garth, 1998.
315
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia.
316
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por Laura Saldívia.
163
da Argentina (1916-1922 / 1928-1930)
317
. Gustavo Roca era filho de Deodoro Roca, o
advogado e dirigente reformista cordobês ao que se fez menção no capítulo 1 e que vinha de
uma família da boa sociedade cordobesa. Silvio Frondizi era irmão do ex-integrante do
Socorro Rojo e fundador da LADH e ex-presidente da nação, Arturo Frondizi (1952-1962).
Mario Landaburu, em contraste com os outros casos, pertencia a uma família que se
situava ideologicamente no extremo oposto ao dos advogados defensores de presos políticos,
já que vários de seus membros, também advogados, tinham participado em governos surgidos
de golpes de Estado e tinham integrado partidos conservadores no interior do país. Landaburu
tinha, no momento de entrar na Faculdade de Direito de Buenos Aires, um irmão brigadeiro,
Jorge Landaburu, então Secretário de Estado do Departamento de Aeronáutica (1958) e um
primo, Laureano Landaburu, advogado, professor da UBA e sócio de um prestigioso
escritório jurídico; tendo sido senador nacional nos anos 30, havia sido designado Ministro do
Interior da Nação durante a chamada Revolución Libertadora que derrocara o presidente Juan
D. Perón em 1955. Seu irmão Jerônimo tinha sido governador na província de San Luís, todos
pertencentes a famílias tradicionais do interior, advogados e importantes proprietários rurais,
por sua vez, afiliados e militantes de partidos ‘conservadores’.
Martín Federico era filho de um importante dirigente da Unión Cívica Radical da
província de Córdoba, eleito prefeito da mesma cidade e deposto pelo golpe de Estado de
1955. Rodolfo Ortega Peña era neto de advogados e seu avô, David Peña, foi um renomado
intelectual e dirigente político proveniente da cidade de Rosario, província de Santa Fe.
Destacou-se como diretor do Diario Nuevo, como professor da Faculdade de Filosofia e
Letras, onde depois estudaria Ortega Peña, e como escritor e historiador. Rodolfo Ortega Peña
fez seus estudos secundários no Colegio Nacional Buenos Aires, justamente o espaço onde
tradicionalmente se formou a elite intelectual e dirigente argentina. Nas trajetórias de alguns
advogados defensores de presos políticos pode-se reconhecer uma formação militar. Se
Landaburu vinha de uma família de militares, Mario Hernández e Héctor Sandler eram, eles
mesmos, formados pelo Liceu Militar e pela Escola Naval Militar. Da mesma forma que o
perfil da maioria dos advogados estudados neste capítulo, seus pais não era profissionais, mas
comerciantes. O irmão de Mario Hernández também pertenceu à Marinha. Esta morfologia
317
Hipólito Yrigoyen vinha de uma família modesta, embora vinculada por laços de parentesco a importantes
figuras da política nacional como Leandro N. Alem, seu tio avô. Trabalhou, como advogado, no escritório
jurídico que este último compartilhava com Aristóbulo del Valle.
164
havia sido identificada como propriedade do conjunto de profissionais do direito consagrados
à defesas públicas da causa contra o fascismo analisados no capítulo 1.
Na enunciação de seu período de formação profissional, os advogados entrevistados
recorrentemente mencionaram o fato de estudar direito como uma opção que percebem quase
como exclusiva, dada a existência na época de outras opções profissionais vinculadas mais
diretamente com as ciências sociais, como a sociologia, as ciências políticas ou a psicologia,
cursos que começariam a se institucionalizar no final dos anos 50. A expressão de estes
‘outros’ interesses são importantes na medida em que enunciam uma ‘sensibilidade’, desde
então, pelo social e pelo político, como nos casos de duas entrevistadas que estudaram de
forma simultânea o curso de Serviço Social e de Direito.
A escolha do curso de direito também aparece em destaque nas trajetórias de alguns
destes advogados como uma opção diretamente ligada à expectativa de fazer da política uma
profissão. Esta expectativa está diretamente associada aos que tinham uma militância
estudantil anterior ao ingresso na universidade. Raúl Piedrabuena detalha: “... desde os 14
anos eu tinha uma militância política que apontava para a defesa dos direitos da classe
trabalhadora (...) tomar contato com o direito era seguir a vocação política de servir aos
interesses da classe trabalhadora”
318
.
Neste sentido, entrar na faculdade de direito supunha tanto ganhar uma qualificação
significativa para exercer a função pública, como ingressar em um mundo de relações sociais
que tornariam possível viver ‘de’ e ‘para’ a política: “Eu me interessava por política, mas não
existia o curso de ciências políticas... faço finalmente o que faziam a maioria dos políticos,
para ser político tinha que ser advogado, para fazer leis, tem de ser advogado, manejar
reformas, tinha que saber escrevê-las...”
319
. No testemunho de outra entrevistada: “... na
minha época, para fazer política tinha que estar no direito. Depois me dei conta, teria feito
psicologia, possivelmente, nessa época não tinha curso de psicologia... E, além disso, o direito
era como o curso compatível com a política... Ao entrar em Direito, eu entrei no mundo da
militância política”
320
.
318
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia, grifo meu.
319
Entrevista com Jorge Podetti (nome apócrifo), realizada por mim. 2002. Grifo meu.
320
Entrevista com Silvia Dvovich (nome apócrifo), realizada por mim. Setembro 2002. Grifos meus.
165
Embora esta associação entre a formação em direito e o ingresso na política havia
sido identificada no capítulo anterior, sugiro que ‘fazer política’ supõe sentidos diferentes
para os profissionais do direito examinados nestes dois capítulos. Nos anos trinta confluem
homens do direito provenientes de famílias notáveis que aspiram tornar-se políticos
profissionais. Os recém chegados se aproximam, por sua vez, ao mundo trabalhador buscando
o caminho da revolução. Como foi mencionado no capítulo 1, este encontro entre
especialistas e militantes com propriedades e aspirações tão diversas gerou, no contexto
descrito anteriormente, o compromisso jurídico com a defesa de presos políticos e sociais. Os
notáveis do direito e da política aproximaram-se ao mundo dos sindicatos, os recém chegados
tornaram-se profissionais da política. Nos anos setenta, embora estivéssemos na presença de
uma conjunção semelhante (notáveis / recém chegados), fazer política a serviço do povo, da
classe trabalhadora e da revolução aparece como uma opção contraposta com fazer política na
alta função pública
321
.
É interessante destacar o contraste entre a opção pelo direito como parte de uma
estratégia ‘prudente’, seguida por filhos de famílias desprovidos, na maioria dos casos, de um
importante capital econômico, e a percepção que eles posteriormente vão forjando de sua
identidade profissional como assimilável à do combatente heróico que ‘arrisca e coloca em
jogo a própria vida’ como condição de seu compromisso profissional, como será visto mais
adiante neste capítulo.
Seria importante verificar em um estudo posterior se a opção pelo perfil heróico está
relacionada com as transformações operadas nos quadros dirigentes argentinos entre os anos
quarenta e sessenta. Se no capítulo 1 havíamos indicado que a condição para ter acesso ao
poder político era pertencer a um número restrito de famílias tradicionais e possuir um certo
prestígio jurídico como advogado de empresas, de acordo com Imaz, para os anos estudados
nestes capítulo verifica-se a incorporação de setores médios à política através dos partidos
políticos. No entanto, esta última via se abre fugazmente nos anos sessenta pelos
sucessivos golpes de Estado. Talvez, seja a posição de marginalidade na qual se encontram
estes profissionais do direito, desprovidos tanto de um nome como de uma alternativa
eleitoral, o que permite compreender a adoção de um perfil heróico. Trata-se de um contexto
321
Esta última afirmação necessita ser matizada, que vários advogados defensores se incorporaram ao Estado
ou ao parlamento quando finalizou a Revolução Argentina e Campora assumiu o poder em 1973.
166
no qual suas possibilidades encontrar-se-iam muito limitadas, tanto de ascensão social como
profissional
322
.
A formação em direito realizava-se também fora do âmbito da faculdade. Assim, quem
tinha interesse em se formar em direito penal recorria aos ensinamentos de Jiménez de Azúa
que, depois de ser expulso da faculdade pelo peronismo, continuou dando aulas no Colegio
Libre de Estudios Superiores, um espaço que, de acordo com Sigal, foi uma das instituições
político-culturais mais importantes dos grupos opositores ao peronismo
323
. Ali, encontrava-se
também José Peco, fundador da LADH e reconhecido advogado penal. Azúa tinha sido
também uma referência para os profissionais do direito comprometidos com a causa
antifascista. Depois da derrota de Perón, Azúa voltou à faculdade de direito da UBA e dirigiu
uma pós-graduação em direito penal e criminologia. Entre seus alunos encontravam-se vários
integrantes da Gremial.
Nas entrevistas, ao interrogá-los sobre outras instâncias de formação, alguns
mencionaram trabalhar em escritórios jurídicos privados ‘importantes’, em termos das
vinculações de seus sócios com o mundo da política. Este foi o caso dos que pertenciam ao
peronismo e que reconhecem como uma instância central em sua formação haver trabalhado
no escritório de Ventura Mayoral. Entre estes advogados estavam Mario Kestelboim, Pedro
Galín, Rodolfo Ortega Peña e Eduardo Luis Duhalde. Ventura Mayoral era uma referência
para certa militância peronista, pois era representante legal do ex-presidente Juan D. Perón e
em seu escritório começou-se a investigar ‘o desaparecimento’ de um militante peronista,
Felipe Vallese, emblema da Resistência à ditadura e ícone da repressão sobre a militância
peronista dos anos sessenta. Na mitologia da agrupação Montoneros, agrupação à qual
pertencem muitos dos detidos políticos, Vallese é considerado o ‘primeiro’ desaparecido na
Argentina.
As agrupações estudantis dentro da universidade foram os grupos políticos aos quais
se integraram inicialmente, antes de se formarem como profissionais e se dedicarem à defesa
322
Estas indicações estão inspiradas no trabalho de Elias. Em Los Alemanes expõe magistralmente a relação
entre a posição marginal de um setor da juventude, os sentimentos de proscrição e traição e a necessidade de
restituir um sentido a um mundo que não corresponde com as expectativas. A afirmação do sentido da existência
através da realização de uma tarefa ‘superior’ à própria existência degradada é apresentada como uma das vias
de inteligibilidade do surgimento tanto do nazismo como do terrorismo nos anos 60 na Alemanha. Em: Elias.
1997.
323
Sigal, 1991. Para um exame detalhado desta instituição, ver Neiburg, 1998.
167
de presos políticos. Inclusive, algumas agrupações políticas surgiram de associações
estudantis, como foi o caso do Partido Comunista Revolucionário e da Vanguarda Comunista,
ambas cisões do Partido Comunista Argentino:
“... Yo militaba en el reformismo y en el Centro de Estudiantes, que estaba
prohibido desde 1943 (...) En ese momento [1949] no existía ningún tipo de
autonomía universitaria y las autoridades universitarias eran designadas por el
Poder Ejecutivo Nacional. No existían los consejos (...) Y nosotros luchábamos
sistemáticamente por los principios reformistas del gobierno de la facultad” (...)
Las primera experiencias de detención se refieren a ese período: ... cuando fue la
huelga de 1954, entre el 29 de octubre de 1954 y el 1ero. de abril de 1955,
estuvimos cómodamente alojados en la Cárcel de Villa Devoto a raíz de una huelga
que decretó la Federación Universitaria de Buenos Aires”
324
.
Raúl Piedrabuena refere-se, neste parágrafo, ao período do governo do General Perón,
quando se proibiu a atuação da Federación Universitária Argentina (FUA). Suspendido seu
impedimento com a derrota daquele em 1955, Piedrabuena foi eleito delegado e depois
secretário geral da FUA. Durante o período da presidência de Arturo Frondizi (1958-1962), os
futuros advogados defensores de presos políticos participaram dos enfrentamentos entre os
que defendiam a educação ‘laica’ e os que defendiam a possibilidade de criar universidades
privadas sob a influência da Igreja, a ‘livre’. Posteriormente, “Já por 1962-1963, na faculdade
de direito estava o Movimiento Reformista Universitario (MUR). Ganhamos as eleições (...)
estávamos muito contentes com consignas onde falávamos da função da universidade, a
aproximação do povo, se falava das classes trabalhadoras...”
325
. A militância universitária era,
em muitos casos, a continuação de uma militância estudantil iniciada durante a escola
secundária.
A militância partidária aparece também como uma herança familiar. No caso
mencionado antes de Landaburu, seus parentes diretos participavam do Partido Demócrata
Liberal, enquanto seus parentes maternos radicados na cidade de Buenos Aires, onde chegou
para estudar direito, eram ativos militantes radicais, como Urbano Rodríguez, seu tio, que,
em 1912, impulsionou a primeira greve de professores no país. Esta figura foi chave, que
324
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia.
325
Marta Grande (nome apócrifo), entrevista de L. Saldivia.
168
através de Rodríguez, Landaburu entrou em contato com os dirigentes e intelectuais do
radicalismo e do socialismo que se reuniam freqüentemente em sua própria casa.
Como será visto mais adiante, esta militância universitária resultará crítica na
configuração das relações dentro deste segmento profissional e na definição do perfil destes
advogados de presos políticos.
2. 5. 2 O exercício da ‘profissão’
Como vimos na seção anterior, estes advogados não vêm de famílias tradicionais no
mundo do direito. Trata-se de profissionais jovens que ocupam um espaço mais marginal
dentro da profissão. O início da vida profissional costuma ser difuso ou desprovido nos
relatos atuais dos entrevistados. Normalmente, o relato se limita a enunciar a abertura de um
escritório jurídico junto com outros sócios (também referidos de forma evasiva ou superficial
como ‘amigos’, ‘colegas’ ou ‘companheiros da faculdade’ ou ‘de partido’). Quando este
início profissional ganha destaque é justamente quando o advogado entrou na profissão
através do exercício do direito trabalhista, representando não o ‘patronal’, mas os
trabalhadores. Isso aparece especialmente destacado entre aqueles que integraram a comissão
jurídica da Confederación General del Trabajo de los Argentinos (CGT A). Nesta linha, Solari
Yrigoyen reconstrói sua própria trajetória, enfatizando esta dupla dimensão do trabalho
técnico e político como advogado de sindicatos:
“Yo era un simple militante de la juventud de la Unión Cívica Radical cuando el
golpe de 1966 (…) Mi principal actividad política, no obstante, estaba orientada
hacia el terreno sindical. Estuve desde el primer hasta el último día en la CGT A
(…) Era abogado de la CGTA, de la Federación Gráfica Bonaerense, de la
Federación Argentina de los Trabajadores de Imprenta, …
326
.
Para os que haviam ingressado no mundo profissional através dos sindicatos, esta
experiência é valorizada por possibilitar a ‘convivência’ com os setores operários: “...
permitiu-nos uma experiência inigualável (...), ocupamos muitas fábricas acompanhando os
operários e convivemos com eles nessas ocupações. Fazíamos uma assistência jurídica a essas
326
Entrevista com Solari Yrigoyen em: Gabbeta, Carlos (1983), pág. 222. Grifos meus.
169
comissões internas, a esses delegados que ocupavam as fábricas...”
327
. A advogada Malena
Bordenave relata seu trabalho como letrada do sindicato Smata nos mesmos termos: quando
se interveio no sindicato “... nos munimos e pernoitávamos no sindicato. Vivíamos ali para
defender Salamanca”
328
. O advogado Jorge Vargas também se definia, então, em função de
seu trabalho como assessor de sindicatos: “Profissionalmente tenho uma atividade muito
definida como advogado dos grêmios pertencentes à CGT A, Gráficos, Químicos, Padeiros,
Smata de San Juan. Também colaborei em defesas políticas nos casos de estudantes
detidos”
329
.
Ocorre o mesmo com os advogados provenientes da província de Córdoba como
Alfredo Curuchet, que foi assessor letrado de Sitrac-Sitram, e Malena Bordenave, advogada
dos despedidos da FIAT Córdoba e do sindicato Smata (ambos pertencentes à indústria
automotriz). Esta última destaca de sua experiência profissional o fato de ter se especializado
em direito trabalhista uma vez obtido seu diploma de advogada (1966-1970), justo no
momento em que “... começa a defesa dos grêmios (...). Em Córdoba, cria-se um movimento
particular que se chama ‘Clasista’ que era um movimento de democracia direta nos
grêmios”
330
. Mario Landaburu narra o início na profissão também como advogado trabalhista.
Destaca sua participação em uma experiência de autogestão de uma empresa de transporte
público e seu trabalho como assessor da Unión del Transporte Automotor. Nesta função,
interveio na negociação dos convênios coletivos de trabalho. Em 1967 começou a trabalhar na
Federación Gráfica Bonaerense que, sob a condução de Ongaro, daria impulso à formação da
CGTA.
Neste universo de representações, o saber profissional aparece como uma ferramenta
‘prática’ de participação política no marco dos diferentes espaços de luta sindical e partidária:
assim ‘como os médicos’ formavam equipes para o atendimento clínico de trabalhadores, ‘os
engenheiros e contadores’ colaboravam com as direções sindicais na análise dos ritmos de
produção em fábricas, salários e categorias trabalhistas, ajudando a averiguar a
327
Entrevista com Eduardo Luis Duhalde, realizada por M. Chama e reproduzida em seu paper “Politización y
radicalización” op. cit. Grifos meus.
328
Entrevista com Malena Bordenave (nome apócrifo), realizada por mim. Buenos Aires. 2002. O dirigente
sindical René Salamanca foi detido e desaparecido depois do golpe de Estado de 1976.
329
Em: Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. Número 18. Novembro 1971.
330
Entrevista com Malena Bordenave (nome apócrifo), realizada por mim. Buenos Aires. 2002.
170
superexploração, ‘os advogados’ colaboravam na assessoria jurídica dos detidos e dos
sindicatos
331
.
Para os jovens profissionais de setores médios dotados de um diploma e de um
conjunto de propriedades sociais associadas ao exercício da profissão de advogado (regras de
etiqueta, uso de um jargão especializado etc.), a realização de um trabalho próximo aos
símbolos e aos espaços relacionados com o mundo operário permitia-lhes uma aproximação a
este mundo socialmente distante dos sindicados e das fábricas. Ao fazê-lo, aproximavam-se
também a suas primeiras ‘sensibilidades’ profissionais relativas ao social e ao político. De
modo que, ainda que vestindo terno e gravata, a opção pelo direito trabalhista aproximou-os
do mundo dos conflitos trabalhistas de forma tal que, perante a taxativa oposição entre patrões
e empregados, estes profissionais ficaram situados do lado dos que têm menos, isto é, um
lugar deslocado em relação ao seu pertencimento de classe, mas próximo dos grupos cujos
interessem procuram defender.
O exercício da profissão como advogados trabalhistas era uma maneira de conciliar a
competência profissional com a sensibilidade política. Como assinala uma entrevistada, esta
opção permitia-lhe manter uma coerência entre ‘a profissão’ e ‘a militância’, à diferença de
outros colegas que faziam direito trabalhista, mas integrando estudos que trabalhavam para o
‘patronal’
332
. É interessante considerar a maneira em que era possível combinar o
pertencimento a todas estas esferas de sociabilidade contrapostas no relato de uma das
entrevistadas: “... como advogada defensora ia até os canteiros onde estavam os trabalhadores
de greve; à noite, como membro da ‘alta’ sociedade de Mendoza, participava de reuniões
sociais onde os maridos de minhas amigas muitas vezes eram os mesmos empresários contra
os quais estava litigando
333
.
Para estes jovens profissionais desprovidos de um nome no mundo do direito, a
atividade como advogados trabalhistas aparecia também como uma importante fonte de renda:
“:.. en aquella época, no te olvides que era una época de relativo auge de la economía,
llovían las demandas laborales. Vos ibas a las audiencias, seguías los pleitos y los
pleitos se cobraban. No es que los empresarios no le pagaran a los obreros. Fijate vos
331
Curuchet. Em: Jornal Desacuerdo.
332
Entrevista com Graciela Recalde (nome apócrifo), realizada por mim. Rosario. Agosto 2005.
333
Entrevista com Graciela Recalde (nome apócrifo), realizada por mim. Rosario. Agosto 2005.
171
que solamente mecánicos, es decir, Renault, tenía 4000 operarios! (…) Entonces cada
vez que había un despido injustificado o que no se había pagado la licencia, era una
denuncia que tenías que hacer vos como abogado ante el fuero laboral. Y ahí vos
cobrabas. Se subsistía de eso”
334
.
Vale a pena destacar que, quando estes estudantes entraram no mundo profissional, a
mera posse do título de advogado ou o fato de dispor de capital de relações herdadas não
garantia o acesso à política. Segundo Imaz, em 1961 apenas 52% da elite dirigente passou
pela faculdade de direito
335
(contrastar esta porcentagem com o que foi apresentado no
capítulo 1, relativo a 1941: 92%). A chegada ao poder do peronismo possibilitou o ingresso
na política de figuras que vinham da direção sindical, como foi o caso do advogado e lingüista
mencionado no capítulo 1, Juan Atilio Bramuglia, nomeado Ministro das Relações Exteriores.
Outras figuras de menor prestígio, mas vinculadas também ao mundo operário e sindical
formaram os quadros médios do governo. Talvez, a aproximação destes dois mundos, o do
direito e o do sindicalismo, constituiu não apenas uma fonte de trabalho, mas correspondia a
certas expectativas a respeito das possibilidade de ingressar na carreira política. Para Imaz, o
peronismo modificou a constituição da elite dirigente.
Como profissionais que se definem por sua vocação de exercer o direito e a política a
partir de uma tarefa de impugnação ao Estado, os que tinham entrado na carreira jurídica
destacam a ‘crise’ que atravessaram em meados dos anos 60. Da perspectiva de um dos
entrevistados, que era secretário de juizado em uma sala criminal:
“... la tarea en el ámbito judicial implicaba servir determinados intereses
antagónicos a los que yo sostenía. Según mi concepción, el Estado es un aparato de
dominación de una clase o un conjunto de clases contra la clase dominada (...) y
resultaba que sin proponérmelo yo estaba sirviendo a los intereses de esa clase...
esto fue lo que me provocó realmente una crisis (...) después de lo cual decidí
pasar al ejercicio profesional
336
.
334
Entrevista com Malena Bordenave (nome apócrifo), realizada por mim. Buenos Aires. 2002.
335
Em Imaz, op.cit.
336
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia. Vale a pena destacar a descrição
que faz José Luis de Imaz sobre a formação do poder judiciário nesses anos: “Exceto os juizados trabalhistas, os
juízes tendem a ser recrutados das classes altas de Buenos Aires. Outros foram membros das altas classes
provinciais, especialmente de Córdoba…”. Em: 1970: 126.
172
No exercício da profissão, seus estudos privados, as sedes das associações e seus
outros espaços de atuação profissional estavam localizados caracteristicamente ao redor do
bairro ‘Tribunales’, nome com o qual se denominam os arredores do Palacio de Tribunales na
Capital Federal. Estes advogados compartilhavam escritórios e bares situados na zona de
maior concentração de advogados do fórum portenho. A identificação de alguns destes
escritórios e bares com os advogados defensores de presos políticos era tal que um destes
bares, chamado ‘El Barrilito’, foi destruído por uma bomba da Triple A, a mesma que
bombardeou duas vezes a própria sede da Gremial
337
. Os advogados defensores
compartilhavam os escritórios jurídicos e, em muitos casos, integravam uma sociedade
profissional em comum
338
.
À diferença dos profissionais do direito dos anos 30, que fizeram da política uma
profissão (ocuparam sucessivamente assentos no parlamento ou exerceram uma função
pública), os advogados examinados neste capítulo não eram políticos profissionais. A partir
do golpe de Estado de 1955, época que corresponde ao ingresso destes jovens à vida
universitária, toda atividade político-partidária tinha sido suprimida, o que fez que entre os 25
e 35 anos não puderam exercer uma função eleitoral (durante os interregnos de governos
democráticos correspondentes aos períodos 58-62 e 64-66 ainda eram muito jovens)
339
. Foi
em 1973 quando isto mudou radicalmente. Na conjuntura colocada pelo fim da ditadura
militar, muitos dos advogados defensores de presos políticos entraram totalmente na política
profissional, sendo eleitos deputados ou senadores nacionais
340
ou exercendo uma função
pública
341
. Este ingresso na política profissional produz, simultaneamente, a saída da Gremial.
O compromisso na defesa de presos políticos diminui. Nas palavras de Solari Yrigoyen:
337
A Triple A foi uma organização parapolicial criada durante o último governo peronista (1973-1976) sob a
cobertura de seu ministro de Bem-estar Social, J. López Rega.
338
Este era o caso do escritório de advogados de Gustavo Roca e Lucio Garzón Maceda, localizado em Córdoba,
parte de um escritório maior junto com Mario Hernández, onde, por sua vez, trabalhavam outros advogados
defensores de presos políticos como Carlos Altamira e Eduardo Sanjurjo. Outros casos são os de Alfredo
Curuchet e Martín Federico, Radrizani Goñi e Mattarollo, depois Mattarollo e Roberto Sinigaglia, Néstor
Martins e Atilio Librandi.
339
Hipólito Solari Yrigoyen tinha uma breve experiência como Secretário Geral do Instituto Nacional de las Islas
Malvinas y Adyacencias, do Ministério de Relações Exteriores e Culto, entre 1965 e 1966.
340
Como os deputados Héctor Sandler e Rodolfo Ortega Peña e o senador Hipólito Solari Yrigoyen.
341
Como o novo ministro do Interior, Esteban Righi, que tinha integrado a Gremial e a Asociación de Abogados
Peronistas.
173
“A partir de la liberación de Agustín Tosco, en 1972, dejé de ocuparme de mi
estudio de abogado y de la defensa de presos sindicales y políticos. Se había
abierto una alternativa democrática, íbamos hacia las elecciones y la política pasó a
ser el centro de mi actividad. Un grupo de correligionarios propuso mi candidatura
a senador nacional que fue ratificada en las elecciones internas del radicalismo. El
11 de marzo de 1973 resulté elegido, representando a la provincia de Chubut”
342
.
Como profissionais da política, estes advogados apelaram ao mesmo corpus de valores
heróicos que os definia ao exercer o direito. Em uma reportagem da época, Hipólito Solari
Yirgoyen afirmava: “Estou servindo à causa da libertação nacional no Congresso. Se algum
dia ocupar esse assento fosse incompatível com esta luta, não hesitaria em queimá-lo, pois
prefiro ser militante do povo que senador de uma democracia desonrada
343
. A atividade
parlamentar continuou ligada a suas trajetórias políticas e profissionais anteriores. Solari
Yrigoyen, por exemplo, foi vice-presidente da Comissão do Trabalho no senado, intervindo
‘em todos os debates que afetavam a condição dos assalariados’ e, no final de 1975, tentou
criar uma Comissão de Direitos Humanos para investigar os casos de violação dos direitos
humanos.
Mesmo os que não se profissionalizaram na política intervieram na elaboração de
projetos de modificação da legislação repressiva imposta pela Revolução Argentina. Como
relata um integrante da Gremial: “... nós, advogados da Gremial, tivemos muita influência na
redação do artigo 20.508 de anistia, na lei do artigo 20.509 de derrogação da legislação
repressiva e na lei do artigo 20.510 de dissolução da Cámara Federal en lo Penal, fórum
antisubversivo”
344
. Todas estas leis foram sancionadas pelo Congreso de la Nación, o mesmo
espaço onde se encontravam vários integrantes da Gremial, agora na condição de senadores e
deputados nacionais. Para Marta Grande “... bastou entrar Cámpora [1973] e foram
organizadas diferentes comissões, alguns começam a trabalhar em projetos políticos
vinculados à reforma e legislação trabalhista, outro grupo de profissionais passa a trabalhar na
faculdade de direito...”
345
que aparece agora como uma alternativa profissional:
342
Em Gabetta, pág. 234.
343
Em: Jornal Nuevo Hombre. No. 47, 1ª. Quinzena. Setembro, 1973. Em 1974, como parte de sua atividade
parlamentar, participou como observador internacional dos julgamentos militares realizados no Chile em 1974
por Pinochet, junto com o deputado Adolfo Gass e o advogado do PCA e integrante da Liga, Mauricio Birgin.
344
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia. Pode-se consultar estas leis no
Boletín Oficial de 28.05.1973.
345
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia.
174
“Yo a partir de 1973 no defendí ningún preso político. Seguía siendo socio de la
Gremial pero, a ver, vamos a utilizar una figura propia de los masones, socio mudo, es
decir, el hermano que no aparece pero sigue perteneciendo (...) A partir del 73 seguí
ejercitando mis conocimientos a través de la enseñanza, fundamentalmente en la
facultad, en la dirección del departamento de derecho penal, trabajando para
vivir...”
346
.
Para outros, a opção foi o jornalismo: “Como já, em um dado momento, as defesas não
eram o mais importante, com Cámpora saem os presos do PRT, dedico-me ao jornalismo. O
PRT propõe que eu assuma a direção do jornal Nuevo Hombre
347
.
Em 1972, diante das tentativas oficiais de constituir um Fórum de Advogados da
Cidade de Buenos Aires, de filiação obrigatória (Lei 19.649), os advogados da Gremial
intervieram formando uma lista eleitoral própria. Pertenceram à lista Número 3 “Liberación y
Justicia” Solari Yrigoyen, Roberto Sinigaglia, Raúl Aragón representando a Gremial e Mario
Kestelboim como seu procurador. Integravam a ela, também, advogados afiliados à Liga,
como David Baigun, Benoit Schmuckler e Eduardo Barcesat. Deste lugar, uma lista eleitoral,
procuraram se diferenciar de seus pares, demandando tanto medidas relacionadas com o
exercício da profissão (filiação obrigatória e aposentadoria), como outras vinculadas
especificamente à defesa de presos políticos (como a libertação dos presos políticos, gremiais
e estudantis e a eliminação do Estado de sítio)
348
. Ao aspirar constituir um espaço próprio no
âmbito nacional, os advogados de defesa de presos políticos convocaram esse mesmo ano
uma Reunião Nacional de Advogados que se realizou em uma sede da universidade de
Buenos Aires. Para designá-la, utilizou-se o nome de Néston Martins, que passou a ser um
emblema dos que assumiam estes casos. Esta primeira reunião, realizada em Buenos Aires,
convocou ‘mais de duzentos e cinqüenta advogados’ representantes de diferentes províncias
do território argentino. No diagnóstico da situação do país, colocava-se ênfase em destacar
que ‘estamos vivendo em plena crise do direito’. As comissões de trabalho revelam os
sentidos desta ‘crise’: a) as restrições ao exercício profissional, b) a legislação repressiva, c) o
cumprimento dos direitos humanos, civis e políticos, d) estado atual da legislação e
346
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) , realizada por Laura Saldivia.
347
Em: Entrevista com Matarollo realizada por Vera Camovale para o Arquivo Memoria Abierta. PRT: Partido
Revolucionario de los Trabajadores.
348
Palavras pronunciadas por Roque Bellomo em homenagem à Asociación Gremial de Abogados de Buenos
Aires. Setembro 2006. Segundo relatou Bellomo, o Fórum finalmente não foi instituído, já que se previa o
triunfo da lista 3.
175
jurisprudência em matéria trabalhista e, e) coordenação de atividades no nível nacional
349
. A
convocatória à Terceira Reunião, realizada depois do fim da ‘ditadura’, mostra um giro nas
temáticas consideradas prioritárias. Esta reunião dedica-se ao exame dos ‘monopólios’.
Interessa destacar a busca de legitimidade acadêmica para esta atividade: o encontro tem sua
sede em uma universidade, convoca-se à apresentação de papers e destaca-se que foram
convocados para participar ‘especialistas’ na matéria
350
.
Entre 1973 e 1974 vários integrantes da Asociación Gremial de Buenos Aires se
incorporaram à vida acadêmica na rebatizada Universidad Nacional y Popular de Buenos
Aires. Mario Kestelboim, primeiro Secretário Geral da Asociación Gremial de Abogados de
Buenos Aires foi designado decano da Faculdade de Direito. Carlos González Garland
assumiu como Diretor do Departamento de Direito Penal, Mario Hernández teve sob sua
responsabilidade a disciplina “Elementos de Ciência Política”, onde também tinha um cargo
docente Alicia Pierini. Eduardo Luis Duahalde e Rodolfo Ortega Peña também fizeram parte
deste fugaz compromisso com a vida acadêmica, hoje todos eles (com exceção do advogado
assassinado Ortega Peña), reconhecidos como ‘especialistas’ em direitos humanos.
A ocupação deste espaço era concebida como parte do mesmo compromisso militante.
Com a volta do peronismo ao poder, as faculdades de direito conseguiram ser recuperadas’
para a causa. Nos termos de Cristina González, quando se termina ‘a ditadura’ de Lanusse e
se produz a libertação da totalidade de presos políticos, um grupo de advogados defensores de
presos políticos decide continuar ‘a luta’ na Faculdade de Direito: “... toda esta briga se
traslada para a faculdade, ali se cria um espaço no qual estamos todos”
351
. Considerada ‘um
reduto da oligarquia’ cujo “... destino [é] prover técnicos para o aparato de dominação,
profissionais da entrega...”
352
, a intervenção tinha conseguido colocá-la em mãos
revolucionárias’. A finalidade de modificar o perfil do profissional do direito através de
mudanças na formação do estudante provocou fortes enfrentamentos que chegaram à renúncia
de vários professores a seus cargos, desqualificados para a nova etapa que se abria com o
triunfo eleitoral de Perón, por sua condição de ‘funcionários da ditadura’, de ‘advogados de
empresas multinacionais’ e de ‘antiperonistas’. Afinados com uma resolução da reitoria que
349
Em: “Abogados. Entender las cosas como son”. Revista Primera Plana. Buenos Aires. Número 499. 22 de
agosto de 1972.
350
Ver no anexo N˚ 13, pág. 219, a reprodução da convocatória à Terceira Reunião Nacional. Revista Militancia
Peronista para la Liberación. 18. 10. 1973.
351
Entrevista com Cristina González (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia. 2002.
352
Revista Nuevo Hombre. Ano 1. Número 18. Novembro 1971, grifos meus.
176
tinha declarado a ‘incompatibilidade’ entre o cargo de docente na universidade e ser
funcionário hierárquico ou assessor de empresas estrangeiras ou multinacionais, publicaram
uma ‘lista’ de professores da Faculdade de Direito da UBA que participam em diretorias de
grandes empresas. Todas estas ações ocuparam importantes espaços na imprensa nacional.
Jornais como La Nación e La Prensa dedicaram inúmeros editoriais em questionar ‘a tirania
da renúncia’ e em mostrar como na Faculdade de Direito tinha se instalado ‘o terror’
353
.
A criação de novas revistas, de prêmios acadêmicos, a imposição de nomes nas salas
da faculdade, a reincorporação de professores despedidos por golpes de Estado anteriores,
eram algumas das marcas da decidida intervenção dos advogados de presos políticos dentro
do espaço da Faculdade de Direito. Todas elas aspiravam modificar o perfil do graduado.
Com este fim criaram também um serviço de assistência jurídica gratuita: “Trata-se de uma
medida de importância especial, visto que, por um lado, presta-se um real serviço ao povo e,
por outro, permite-se a capacitação prática dos estudantes, inserindo-os na problemática
concreta de nossa sociedade”
354
. Cristina González resume a atividade realizada nesses
breves meses, antes que se produzisse a intervenção na Faculdade e o fechamento deste
projeto acadêmico: “... no programa de saída aos bairros, a mim coube a comunidade de Bajo
Belgrano, eu tinha o escritório jurídico ali. Também me deram o Departamento de Extensão
Universitária onde fizemos o primeiro curso de capacitação para dirigentes sindicais dentro da
Faculdade”
355
.
A partir de agosto de 1973, introduziu-se uma nova matéria na parte introdutória do
curso direito: ‘Prática Social do Advogado’. Distinguia-se tanto por formar teoricamente o
estudante que ingressa, proporcionando-lhe ‘uma consciência crítica’, como pelo fato de
incluir uma instância de ‘trabalho de campo’ nos bairros operários, clínicas gremiais,
tribunais, etc. Esta prática permitiria o estudante: “... fazer contato com a realidade de maneira
tal que este possa perceber as estruturas de opressão e domínio em funcionamento e observar
assim, em cada situação concreta, qual é o papel tradicionalmente assumido pelo advogado e
qual é o papel necessário a ser assumir...”
356
.
353
Em: “La Prensa y La Nación ante la Universidad”. Revista Militancia Peronista para la liberación. 1973.
354
Em: “Universidad. Fin de la Dependencia”. Revista Militancia Peronista para la liberación. 21 junho 1973.
355
Entrevista com Cristina González (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia. 2002. Ver no Anexo 14,
na pág. 219 a instituição do Prêmio Néstor Marins aos melhores trabalhos acadêmicos. Em: Revista Militancia
Peronista para la liberación. Número 1. 18.11.1973.
356
Em: “Trabajos universitarios con el pueblo” Em: Revista Militancia Peronista para la Liberación. 1973.
177
Como havíamos identificado no caso dos advogados defensores de presos políticos
dos anos 30, uma vez que se abre a possibilidade de participar na vida pública, os
profissionais estudados neste capítulo multiplicam seus compromissos atuando,
simultaneamente, na função pública, na imprensa, na universidade e nos partidos políticos.
Em suas trajetórias pode-se reconhecer como, ingressando no exercício da profissão através
da prática do direito trabalhista ou penal, o se deslocando progressivamente a um
compromisso com a defesa de presos políticos.
A criação de ‘novas’ associações profissionais, de ‘novos’ espaços de denúncia, de
‘novas’ publicações, de ‘novas’ cátedras de direito, de uma ‘nova’ justiça, a aspiração a
fundar um ‘novo direito’ e uma ‘nova sociedade’ integrando ‘novos’ partidos e organizações
políticas são fatos que indicam tanto a posição periférica ou marginal que estes profissionais
tinham dentro do campo do direito e da política, como a aspiração de ocupar o próprio centro
da política e do direito. No breve interregno entre o triunfo do peronismo em 1973 e a
declaração do Estado de sítio no final de 1974, estes excluídos ocuparam uma parte desta cena
central, integrando o parlamento, a função pública, a universidade e o poder judicial.
A participação neste universo outorga a seus protagonistas tanto oportunidades de
exercer a profissão, como um lugar dentro de um espaço de referência em relação ao qual
podem situar-se e se fazer de uma posição. Uma posição que se define pelo compromisso
público e coletivo com uma causa, mas que, ao mesmo tempo, supõe colocar em jogo uma
série de condições próprias do exercício tradicional do direito. Como vimos, o compromisso
militante destes profissionais do direito não excluía o exercício tradicional da advocacia. Ao
contrário, o que parece acontecer é um jogo de importação de competências e recursos entre
uma e outra esfera. De modo que ‘exercer a profissão’ torna-se condição de possibilidade
deste ativismo, visto que é uma atividade que lhes permite investir tempo e recursos
econômicos no compromisso militante
357
. Uma marca crítica da posição que estes advogados
aspiravam ocupar no espaço profissional está dada pela contraposição entre o ‘compromisso’
e o mero exercício ‘profissional’ do direito.
357
Esta propriedade da profissão jurídica, em especial, foi analisada em detalhe em Willemez, 2003.
178
2. 5. 3 ‘Militar na Gremial’
Neste universo de relações, a política e o direito, longe de constituírem esferas
separadas por fronteiras estritamente delimitadas, formam um espaço de relações recíprocas
onde os limites entre uma e outra são porosos, ambíguos e móveis. Como expressa Hipólito
Solari Yrigoyen, a política é exercida e atua-se nela através do direito: “Em meu caso pessoal,
a atividade política estava íntima e diretamente ligada ao exercício de minha profissão de
advogado. Me converti, por força das circunstâncias, no advogado dos radicais perseguidos
(...)”
358
.
‘Militar’ na Gremial é o termo nativo que se utiliza para se referir à defesa de presos
políticos e conjuga a dupla condição deste ativismo. Supõe assumir o compromisso de ‘atuar
muito além do expediente judicial’, ação que se transforma para alguns deles ‘no que justifica
de ter conseguido o título’
359
. É uma categoria que conjuga a dupla condição deste ativismo.
‘Militar’ na Gremial é também a expressão nativa com a qual se distinguem os que
simplesmente ‘exercem’ ou ‘trabalham na profissão’
360
. ‘Militar’ e ‘exercer expressam
também uma ordem de hierarquias. Ao se referir a sua atividade profissional, é freqüente que
os entrevistados utilizem a expressão ‘trabalhava como advogado’ ou ‘trabalhava na
profissão’ de forma pejorativa. Esta desqualificação fala de profissionais que aspiravam algo
mais que montar um escritório e viver da rotina de divórcios e heranças. Mas se o tulo lhes
confere uma qualificação profissional que os habilita a ter outras expectativas, a ausência de
um capital de relações sociais importantes dentro do mundo do direito, desqualifica-os na
competência profissional. Ao se integrar ao universo da militância e exercer a partir dali sua
profissão e seu compromisso com a causa antiditatorial, possuir um conjunto de qualidades
extra profissionais (a entrega, o sacrifício, o valor, a coragem, a abnegação, a solidariedade) é
que irá permitir-lhes diferenciar-se de seus pares, assim como fundar uma posição legítima.
A vocação pela defesa de presos políticos está vinculada ao fato de circular,
simultaneamente, entre estes dois espaços: a política partidária e a profissão. O próprio Néstor
358
Opo.cit. (pág. 227). Grifo meu.
359
Entrevista com Mattarllo para o Arquivo Oral de Memoria Abierta.
360
Para o caso francês, Lucien Karpik definiu o perfil do advogado ‘clássico’ em termos de uma afinidade com a
representação liberal da política (individualista, defensor das liberdades públicas, da igualdade de direitos).
Karpik, 1995.
179
Martins condensa significativamente o pertencimento a uma rede de relações chaves que
incluem o fato de ser membro da Liga Argentina por los Derechos del Hombre, sócio da
Asociación de Abogados de Buenos Aires, dirigente universitário, integrante da equipe de
advogados da Confederación General del Trabajo de los Argentinos e assessor do
Movimiento Villero.
Nos termos em que um entrevistado descreve sua trajetória profissional e seu posterior
ingresso na Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires, podemos reconhecer a
importância de várias das instâncias chaves antecipadas nas seções anteriores: a militância
universitária anterior, a experiência prévia no exercício privado da profissão, o conhecimento
técnico e a referência temporal ao movimento social conhecido como Cordobazo:
“... con gran rapidez comencé a ejercer muy activamente en el fuero criminal (...)
porque en esa época los abogados civilistas, los abogados comercialistas, los abogados
administrativistas no ejercían el derecho penal ni por casualidad y entonces me
convertí en una especie de consultor de muchos estudios que me derivaban sus
asuntos. Así se explica que yo empecé a activar muchísimo en el área de defensa de la
libertad de prensa, porque el estudio que llevaba los asuntos del Diario La Razón me
pasaba a mí todas esas defensas (...). Para el año 1966, cuando se produce el golpe de
Estado, empieza a hacerse verdaderamente útil el ejercicio del derecho penal (...)
Cuando se produce la intervención a la universidad, meten presos a todos los
estudiantes y les aplican un edicto policial (...) y allí, los viejos militantes de la
facultad, que ya me conocían del movimiento universitario, me traen la defensa de los
chicos. Y todos los que defendí salieron absueltos (...) Pero además, y dado que era
una represión contra las autoridades, decidimos querellar al Jefe de la Policía Federal
en representación de Rolando García [Decano de la Facultad de Ciencias Exactas y
Vicerrector de la Universidad] (...) durante la dictadura de 1966 a 1973 (...)
empezaron a aparecer una cantidad de tareas de defensa de tipo criminal con relación
a los perseguidos políticos y a partir de ese momento fue incrementándose mi
compromiso en la defensa de los derechos de los perseguidos (...) y este compromiso
iba desde la ley anticomunista, como los problemas de delito de opinión, pasando por
aquellos que eran acusados de actos violentos y siguiendo por quienes repartían
volantes (...) cuando ya estaba generalizada la represión orgánica, en 1969, con el
Cordobazo, yo empiezo a incorporarme a defensas vinculadas con acciones violentas
de organizaciones armadas, sin por ello coincidir con todos sus principios ni siquiera
tener una relación orgánica (...) Y la cuestión, digamos así, exigió mayor compromiso,
180
entre otras cosas porque la cantidad de perseguidos políticos en ese momento era
inmensa”
361
.
Um elemento crítico que pode ser reconhecido no relato deste advogado é a maneira
progressiva em que foi assumindo seu compromisso com a defesa de presos políticos. Longe
de se tratar de uma decisão racional, pode-se reconhecer em seu relato como vai se
produzindo sua incorporação paulatina a uma rede de relações que vão aproximando-o da
defesa de militantes armados, através de diferentes situações históricas e distintas redes de
relações criadas tanto na militância estudantil, como em relação a outros colegas e estudos
profissionais.
Este relato também sugere como se representam aqueles profissionais que não têm
uma relação ‘orgânica’ com as agrupações armadas da esquerda, mas que dispunham de outro
capital importante: o ‘conhecimento técnico’, um valor crítico especialmente na área do
direito penal. A defesa de uma causa requer, junto com o compromisso militante, a
disponibilidade de um conhecimento especializado. Reivindicar-se possuidor deste
conhecimento importa uma vez que o direito penal supõe uma preparação ou um saber
técnico, ainda mais sofisticado que outros ramos do direito. Segundo outra entrevistada, esta
distinção é crítica a ponto que: “... eu [como advogada] não sei fazer uma defesa penal. Posso
contribuir para fazer uma denúncia, mas não tenho o conhecimento jurídico suficiente para
sustentar uma defesa”
362
. Como diz Raúl Piedrabuena, os outros ‘não exerciam o direito penal
nem por acaso’: “Me chamaram para intervir porque havia se esgotado o repertório de
advogados que pudessem ter algum tipo de manejo no âmbito do direito penal”. Isto fez com
que, ao integrar a Asociación Gremial de Abogados de la Capital Federal:
361
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia, grifos meus.
362
Entrevista com Silvia Dvovich (nome apócrifo), realizada por mim.
181
“... yo era puntualmente el único penalista que se dedicaba en ese momento
con exclusividad al derecho penal (...) el resultado es que los que estaban de turno
me consultaban a mí. Con lo cual empecé un régimen de vida que consistió en
levantarme a las 6 de la mañana y acostarme a las 2 de la madrugada todos los días
(...) en determinado momento los compañeros decidieron que yo formara parte de
la dirección. En el año 1972 yo era Secretario General de la Gremial”
363
.
Integrar estas associações supunha não apenas ‘estar’, mas também dispor de um
conjunto de atributos: a experiência derivada da prática profissional, o conhecimento técnico,
a militância política, o nome, o prestígio ganho no fato de ‘pegar’ defesas comprometidas: “...
designou-me como advogado defensor, me conhecia por aparecer alguma vez em algum
noticiário”
364
.
A ocupação deste lugar dentro do universo profissional e militante implicava, apesar
de tudo o que se colocava em jogo ao assumir a defesa de presos políticos, o desenvolvimento
de um conjunto de atividades que não eram excludentes com o mero ‘exercício da profissão’,
expressão nativa utilizada para dar conta da prática tradicional da advocacia. Ao contrário,
uma parece apoiar-se na outra, como sugere Piedrabuena ao relatar como eram financiadas as
defesas gratuitas dos militantes. Para aqueles advogados não ‘enquadrados’, continuar o
exercício tradicional da profissão era um recurso chave: “... a partir desse momento começo a
subir minha cota de honorários com os clientes, de forma tal que eles pagassem as defesas de
presos políticos”
365
. Marta Grande sugere a mesma coisa ao assinalar: cada um bancava a si
mesmo (...). Por outro lado, era muito mais fácil cobrar o exercício profissional nesse
momento que agora”
366
.
Da mesma maneira, a defesa de presos políticos não impedia continuar o exercício
privado da profissão: “... eu continuei fazendo minhas defesas privadas, como um advogado
privado, apesar de que os juízes sabiam que também defendia presos políticos. Bem, nas
jurisdições ordinárias isto não implicava uma rejeição ou uma repulsa. Continuava sendo o
363
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia. Este mesmo advogado afirma
que: “Na época que eu fazia direito penal da cidade de Buenos Aires havia 5 ou 6 escritórios especialmente de
direito penal, de direito penal de importância, não para tirar presos, mas um direito penal sério. Criminalistas de
hierarquia eram Genero Carrió, Laureano Landaburo, que tinha um grande escritório de atendimento a empresas
(...) e dentro desses 5 ou 6 escritórios, o quinto ou sexto era o meu” (GG).
364
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo). L. Saldívia.
365
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
366
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
182
tratamento de antes”
367
. Esta afirmação interessa na medida em que sugere como, ao assumir
estas defesas, arriscavam o capital simbólico acumulado em seus anos ‘exercendo o direito’.
Ao mesmo tempo, sugerem que as regras do jogo da profissão podem se manter vigentes uma
vez se mantenham as condições de ‘neutralidade’ próprias da ética profissional nas defesas
ordinárias.
Nas trajetórias de outros advogados, o compromisso com a defesa de presos políticos é
um resultado direto e imediato de sua inserção na militância partidária, mesmo quando estes
fatos impliquem um processo de conversão em si mesmo, como vimos no relato de Mattarollo
sobre sua viagem iniciática pela América Latina. Entrar em um partido ou organização
política supõe, ao mesmo tempo, entrar nas equipes jurídicas destas organizações e, vincular-
se com os outros advogados defensores e com as associações que assumem coletivamente
esse mesmo compromisso. Isto pode ser reconhecido na descrição que faz Mattarollo sobre
sua própria trajetória profissional, quando afirma: “ao entrar no PRT assumo plenamente o
militantismo como advogado vinculado organicamente ao PRT (...). Ao mesmo tempo fico
vinculado a outros advogados da Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires...”
368
.
A maneira em que cruzam trajetórias militantes e familiares também interessa para a
compreensão das condições de surgimento deste compromisso, do ponto de vista da biografia
pessoal. Este é o caso do advogado Eugenio Cabrera que, depois do Cordobazo, instala-se
com sua mulher e filhos em uma favela da cidade de Rosario seguindo a estratégia de
proletarização dos quadros militantes, impulsionada pelo partido ao que pertencia. Neste
contexto, trata-se de um profissional do direito dedicado exclusivamente ao ativismo
partidário. Alguns anos depois, o abandono desta linha de ação por parte do partido o
conduzem novamente à profissão. Esta história de militância partidária se entrecruza com a
história familiar: o episódio limite em que um de seus filhos encontra-se em risco de perder
sua vida. O abandono da favela e a instalação de um escritório jurídico em outra cidade
reintegram-no ao exercício profissional. Neste contexto, que entrecruza vínculos partidários e
familiares, Eugenio Cabrera se incorpora às associações de defesa de presos políticos
369
.
367
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
368
Entrevista com Mattarollo realizada por Vera Camovale para o arquivo oral de Memoria Abierta.
369
Entrevista com um familiar de Eugenio Cabrera (nome apócrifo), realizada por mim. 2006.
183
Compreender as condições de possibilidade deste tipo de militantismo jurídico supõe
identificar todos estes espaços comuns de formação e pertencimento. Os integrantes da
Gremial pertencem a uma mesma geração e se identificam com ela a partir de um conjunto de
atributos: reconhecem-se como ‘companheiros’ de faculdade que foram iniciados juntos na
militância estudantil, como pertencentes a uma geração que ingressa na vida política em uma
época de proscrição e que, por sua vez, fazem juntos sua entrada no mundo profissional.
Trata-se de indivíduos que compartilharam espaços comuns de sociabilidade: a faculdade, as
agrupações estudantis, os partidos políticos, os sindicatos, os tribunais, as visitas às prisões. É
a participação progressiva nestes espaços o que vai construindo o compromisso com a defesa
dos presos políticos. Abraçar a causa do direito supunha definir-se dentro deste mundo
profissional a partir de um conjunto de critérios chaves de distinção a respeito de seus
próprios pares: como representar estes advogados militantes seu lugar dentro do universo
profissional? Quais são os elementos a partir dos quais se reconhecem como iguais?
2. 6 Ser um defensor de presos políticos
Uma marca crítica na definição deste segmento da profissão jurídica é o fato de se
reconhecerem como ‘vanguarda’. Na expressão da advogada Susana Delgado: nós somos a
vanguarda da nossas profissão, por termos dedicado sustentada e permanentemente a defesa
dos direitos humanos
370
.
Esta definição supõe várias operações críticas na formulação de um ponto de vista
dentro do universo profissional. Representar a si mesmos como vanguarda coloca-os em uma
relação de estreita proximidade com seus defendidos que, da condução de grêmios e
sindicatos, ou da direção de organizações políticas ou político-militares, coincidentemente
também se definem por ocupar um lugar de vanguarda: em contraste com os grêmios
‘tradicionais’, os que confluem na CGT A se definem como ‘a vanguarda do movimento
operário’. E a mesma coisa acontece com as organizações políticas que, por oposição aos
partidos ‘burgueses’, definiam-se como ‘a vanguarda da revolução’.
370
Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1, No. 11, 1971, grifos meus.
184
Tacitamente, esta afirmação coloca aqueles advogados que patrocinavam,
assessoravam ou representavam sindicatos, grêmios e partidos ‘tradicionais’ no extremo
oposto de um universo profissional concebido em termos dicotômicos. Se a sociedade
argentina se dividia em bandos antagônicos (o povo versus o regime, a burguesia versus o
proletariado, a criação versus as massas, a oligarquia versus os oprimidos), os profissionais de
direito também: ou se estava ‘com o povo’ e contra o Estado, ou se estava a favor do ‘sistema’
e do Estado. Esta oposição expressava-se com o uso de categorias como: ‘Advogados do
povo’ versus ‘advogados da oligarquia’. Nas palavras inaugurais da Primeira Reunião
Nacional de Advogados, Mario Landaburu exaltava esta diferenciação: “Estamos presentes
aqui para dizer a nosso povo que existem advogados que assumiram humildemente sua
mesma condição e suas lutas, diferenciando-nos de todos aqueles a quem serve seu título
profissional para colocá-lo a serviço do imperialismo colonizador e da exploração degradante
do homem”
371
.
Nesta visão antagônica da sociedade nacional, os advogados reclamavam um lugar
legítimo a partir da detenção de uma qualidade decisiva: sua condição de intelectuais. Como
já vimos no capítulo 1, os que assumem um ativismo deste tipo, definiram seu lugar no espaço
público como ‘intelectuais’. Esta é a categoria com a qual se identificam e se reconhecem:
Los intelectuales debemos preguntarnos seriamente cuál es nuestro verdadero rol
(...) Los intelectuales honestos no pueden clamar para sí un campo propio de
actividad separado de las miserias concretas que agobian a las masas populares
(...) Han caducado definitivamente los antiguos hábitos y valores que marcaban
para los intelectuales un estatus de comodidad y privilegio. La realidad del
capitalismo en crisis ha derrumbado el idílico mundo pequeño burgués con sus
sueños de prestigio y ascensión social (...) ha llegado la hora de la militancia
activa de los intelectuales
372
.
371
“Abogados. Entender las cosas como son”. Em: Revista Primera Plana. Buenos Aires. Número 499. 22 de
dezembro de 1972. Grifos meus. A identificação dos advogados de empresas como opositores no campo
profissional e político pode ser entendida considerando a composição do staff do Estado. Segundo Imaz,
“Quando caiu o peronismo, os interesses excluídos reaparecem (...) No gabinete de 1956 atuam muitos
advogados de empresas...” (op. cit.: 35).
372
Alfredo Curuchet Em: Jornal Desacuerdo, No. 3. Junho 1972, grifos meus.
185
Desta posição tratava-se de conseguir: “a incorporação de profissionais do direito no
seio do movimento de massas, pondo suas ferramentas culturais a serviço do povo”
373
.
Encarnando este perfil de intelectual e de advogado, destaca-se a figura de Alfredo Curuchet,
que era conhecido por seus pares nos termos que destacam esta dupla posição como advogado
e como intelectual:
“En dos oportunidades fue preso por haber denunciado el asesinato de Santiago
Pampillón, por haberse lanzado a compartir con los obreros y el pueblo de
Córdoba las barricadas antidictatoriales. Esta vez está encarcelado por haber
puesto su profesión de abogado al servicio de los obreros de Fiat, como asesor del
SITRAC y el SITRAM. En el penal de Rawson comparte su celda con otros
abogados. Martín Federico, asesor del Sindicato de Obras Sanitarias, entre ellos.
Estos son ejemplos prácticos de la actividad de intelectuales revolucionarios
374
.
A participação nestas lutas, o acesso do povo ao poder e a transformação das
estruturas econômico-sociais seria a ferramenta que permitiria o surgimento de um ‘novo
direito’: “... o novo direito que emoldurará as relações socioeconômicas, culturais e políticas
do homem novo, em uma sociedade sem exploradores nem explorados, na qual os advogados
não servirão como instrumento da opressão interna nem da dependência internacional”
375
.
Esta categoria ‘novo direito’ era parte do repertório de noções cunhadas pelos jovens
profissionais do direito, comprometidos com a causa antifascista e com a defesa dos
dirigentes sindicais perseguidos e expulsos do país, examinados no capítulo 1.
A linguagem especializada e as formas próprias do direito são alheias ao mundo
operário. E vice-versa. Como era possível aproximar estes dois mundos? Como era possível
se incorporarem, como intelectuais, às lutas operárias e populares? E como era possível
incorporar os operários e explorados à vanguarda do movimento revolucionário? Para estes
dilemas, os que reivindicam a defesa jurídica e militante da causa anti-ditatorial e a favor da
revolução socialista tinham uma resposta fundada em sua própria competência profissional.
‘Aproximar o direito às pessoas’ era a expressão nativa que se utilizava par dar conta, na
verdade, de um duplo movimento: a aspiração destes jovens intelectuais portadores de um
373
Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1. Número 18, novembro 1971, grifos meus.
374
Jornal Desacuerdo. “Hay 1.200 presos políticos, gremiales y estudiantiles” No. 3. Junho 1972. Grifos meus.
375
Declaración Final da Primeira Reunião Nacional de Advogados ‘Néstor Martins’. 1972. Reproduzida no
Jornal Peronismo y Socialismo. Buenos Aires. Número 1. 1973.
186
título universitário de se aproximarem dos ‘trabalhadores’ e a pretensão de aproximar os
trabalhadores ao direito. Na perspectiva destes advogados, ocupar simultaneamente este duplo
espaço (o direito e a política) permitia que representassem a si mesmos como articuladores
entre dois mundos: um, povoado por intelectuais e outro, habitado por operários.
Uma das vias para produzir a ‘aproximação’ dos advogados ao povo era ‘conviver
com eles e falar sua linguagem’. E isto era possível para aqueles intelectuais que, trabalhando
em grêmios e sindicatos como advogados, mantinham com os operários uma relação de
proximidade, não apenas porque os representavam perante os tribunais, mas porque
participavam do desenvolvimento dos conflitos sindicais, estavam presentes nas ocupação de
fábricas, nas negociações salariais e, inclusive, chegavam a morar nos mesmos bairros
operários com suas famílias, como vimos no caso de Cabrera.
Este trabalho de ‘aproximar o direito às pessoas’ realizava-se através da participação
dos advogados na assessoria aos moradores de bairros pobres e favelas. “O que fazíamos era
tratar de organizar as pessoas, que as pessoas conhecessem seus direitos e que fossem eles que
resolvessem seus conflitos e dissessem aos advogados o que queriam que o advogado faça ou
deixe de fazer, mas tendo em conta sempre que o titular da ação eram eles e nós simplesmente
os procuradores”
376
.
Aproximar as pessoas ao direito era um esforço que supunha, desde abrir serviços de
assessoria jurídica gratuitos, dar cursos de capacitação para dirigentes sindicais na faculdade
de direito até publicar na imprensa notas advertindo o ‘oprimido’ sobre seus direitos segundo
diferentes casos hipotéticos: o que fazer quando se é vítima de um delito (como apresentar
uma denúncia em uma delegacia, frente a um juizado, qual é percurso burocráticos da
denúncia, as vantagens de uma denúncia judicial, para que contar com a assessoria de um
advogado etc.), como fazer para que um estrangeiro possa aderir à legislação trabalhista
vigente, entre outros
377
. Nesta estratégia, que incluía também intervir na própria formação do
estudante de direito com a criação de práticas profissionais em fábricas e favelas, pode
conseguir-se também a abertura de ‘novos’ espaços de atuação profissional para estes jovens
recém chegados à vida profissional.
376
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia.
377
Ver no anexo 15 na pág. 220, uma reprodução de 1 capítulo deste Manual del Oprimido publicado pela
Revista Militancia Peronista para la Liberación. 1973.
187
2. 6. 1 A qualidade heróica
A imagem pública destes advogados corresponde à do heróico combatente que expõe
sua vida pela causa, que estes profissionais são valorizados não apenas por suas qualidades
técnicas, mas também por outros atributos como a ‘coragem’ e a ‘valentia’ para assumir esse
tipo de defesa. Equiparando-se a um grupo de combatentes, um integrante da Gremial
afirmava então a necessidade de ‘criar constantemente novas equipes de advogados’ para
enfrentar os atentados e assassinatos: “Atrás de cada advogado detido, seqüestrado ou
assassinado haverá centenas de colegas para substituí-lo”
378
.
Esta imagem do advogado heróico explica que nas entrevistas realizadas com os
integrantes da Gremial, invariavelmente, começassem seus relatos expondo as situações de
extremo perigo nas que estiveram envolvidos por causa de seu compromisso profissional e
público. Estes relatos são abundantes em detalhes sobre as ameaças, perseguições, atentados e
diversas situações de extremo perigo pessoal enfrentadas pelos defensores de presos políticos.
Ao se referir à intervenção da Gremial no caso de Trelew, quando foram fuzilados 14
dirigentes de organizações armadas detidos em uma base militar, o entrevistado destaca esta
situação limite para a segurança dos próprios advogados defensores através do seguinte relato:
“... um jornalista [do jornal] La Nación perguntou-nos quando viajávamos [de volta a Buenos
Aires] e nos disse que (...) a informação que eles tinham é que uma vez que os jornalistas
fossem embora, se nós estávamos em Trelew nos matavam”
379
.
Embora estes relatos fosse produzidos no contexto de entrevistas realizadas
atualmente, este tipo de enunciação é verificado nos documentos da época. O então presidente
da Liga Argentina por los Derechos del Hombre definia estes advogados como ‘heróis’ que
“... sacrificam seus trabalhos e inclusive sua liberdade e até sua própria vida”
380
. Esta imagem
corresponde ao que os próprios militantes, seus defendidos, que ao enfrentarem a ‘ditadura’
eram qualificados então como verdadeiros ‘heróis’ ou ‘mártires’. Esta linguagem estava
presente entre os advogados defensores de presos políticos descritos no capítulo 1, assim
como as associações encarregadas de sua denúncia como a LADH, vale a pena destacar que
378
La Asociación Gremial de Abogados y los Presos Políticos” Reportagem ao secretári de imprensa da
Gremial, Hugo Vega, no Jornal Nuevo Hombre. Número 20. 01 a 06 de dezembro de 1971.
379
Entrevista com Mario Landaburu realizada por Vera Carnovale para o Arquivo Archivo Memoria Abierta.
2003.
380
Antonio Sofía. Em: El Liguista. Boletim informativo da LADH. 1971.
188
se trata, neste caso, de outra forma de heroicidade, associada à figura do combatente e
fundada no fato objetivo de um incremento nos riscos, que chegavam ao extremo de colocar
em jogo a própria vida
381
.
Neste trabalho de enunciação que estes advogados realizam sobre seu compromisso
público destaca-se a estruturação de um relato sobre sua vida profissional, construído
justamente sobre o modelo da novela heróica. Os entrevistados relatam situações limites nas
quais sua própria vida é colocada em jogo, como fica evidente no testemunho de um
entrevistado:
“…soy muy hostigado antes del golpe del 76. Primero viene una patota a
secuestrarme... tienen tanta mala suerte que no estoy. Cuando se produce la fuga de
Trelew (…) tuve varias complicaciones (…) las Tres A me ‘revientan’ el estudio…
Yo no estaba…. Mi padre sufrió algunas represalias también por mi actividad, fue
allanado su estudio, fue perseguido un tiempo. [Esta actividad] me costó dos
estudios. Y del último me tuve que ir, no pude ejercer más…”
382
.
Nas publicações periódicas destacam-se, justamente, as condições limites em que
desenvolvem seu trabalho. Os advogados são, eles próprios, detidos e colocados à disposição
do Poder Executivo. Podemos identificar uma condensação de vários destes atributos no caso
de Susana Aguad: “Duas vezes presa e à disposição do Poder Executivo por defender presos
políticos, faz pouco tempo foi vítima de um atentado contra sua residência particular”
383
.
Repetidamente são reproduzidos nas páginas dos jornais retratos deste tipo: “... em oito
escritórios e residências particulares de advogados defensores de presos políticos detonam
artefatos explosivos (...) Todos estes fatos demonstram que a ação dos advogados está se
tornando cada vez mais uma abnegada, sacrificada militância para a defesa concreta de dois
valores: a liberdade e a dignidade do homem”
384
.
A vivência deste tipo de acontecimento ilustra a forma em que, sucessivamente,
coloca-se à prova o valor, a integridade e a fidelidade destes profissionais do direito para com
381
Estes relatos têm, evidentemente, um substrato objeto muito dramático: o desaparecimento de Martins, o
assassinato de Ortega Peña, Silvio Frondizi, Antonio Delleroni, entre outros. Nos relatos dos integrantes da
Gremial, o próprio início e fim da Gremial parecem estar marcados pela mortes destes colegas: o
desaparecimento de Martins, em 1970, e o assassinato de Ortega Peña, em 1974.
382
Entrevista com Jorge Podetti, realizada por mim. Julho de 2002.
383
Em: “Las leyes de la dictadura no impidieron el avance de la lucha”. Jornal Desacuerdo
.
384
Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1, No.3, 1971, grifos meus.
189
a defesa dos militantes detidos. Qualidades que, nestas situações extremas, alcançam uma
dimensão excepcional e que permitem transformar homens ‘comuns’ em heróis, conforme a
detenção de atributos como a ‘dignidade’, a ‘coragem’, a ‘lealdade’, a ‘bondade’ e o
‘compromisso’.
Porque este trabalho de enunciação está centrado em exaltar a figura heróica do
advogado, os acontecimentos narrados pelos entrevistados são selecionados de acordo com
sua intensidade dramática, criando uma aventura perigosa na qual o protagonista vai saindo,
no melhor dos casos, sucessivamente sucedido. A sucessão de aventuras profissionais
associadas à figura deste tipo de profissional constituiu um tipo de inventário das
propriedades sociais esperadas naqueles advogados que integravam estas associações. O
exercício cotidiano da profissão é mencionado tangencialmente, e fica muito difícil
capturar nas entrevistas realizadas atualmente, referências às tarefas profissionais alheias às
defesas comprometidas’. Estes silêncios restituem uma dimensão fundamental da existência
social e profissional destes atores: a de representarem a si mesmos como heróis
385
.
O tempo também é percebido pela dimensão extraordinária ou fantástica de modo que
é possível que muitos acontecimentos possam ser vividos em um lapso muito curto de tempo,
como ocorre tipicamente nos relatos heróicos. A vida cotidiana é descrita como uma vida de
entrega à profissão (e, com isso, à causa). Assim, Rodolfo Ortega Peña, assassinado pela
Triple A em 1974, é rememorado por um de seus colegas nos seguintes termos: “... foi muito
mais que um advogado (...), caracterizou-se por ter sido por inteiro um homem desse tempo
vertiginoso e ter vivido muitas vidas no apertado lapso de 36 anos (...) [uma vida feita de]
longas noites arrebatadas do sono, depois de um dia de audiências judiciais, longos
parlamentos no locutório das prisões ou de assembléias tumultuosas na Gremial de Abogados
ou em um sindicato”
386
. Estas mesmas palavras são utilizadas por seu colega e amigo Eduardo
Luis Duhalde: “... quem o conheceu, sabe bem com que urgência viveu (...) com que
vertiginosidade (...), formado como advogado aos 20 anos, fazendo ao mesmo tempo o curso
de Filosofia e depois Ciências Econômicas (...), obsessivo leitor em castelhano, inglês,
francês, alemão, italiano, português, latim e grego. Urgência em saber, em fazer...”
387
.
385
Esta mesma impressão é a que percebe o próprio jornalista Carlos Gabetta que, ao resenhar sua entrevista
com Solari Yrigoyen assinala exatamente “Fala gravemente, como quem narra as seqüências fundamentais de
um filme, sem se deter nos detalhes”. Em: Gabetta, 1984, Pág. 210. Grifos meus.
386
Rodolfo Matarollo. Palavras em homenagem a Ortega Peña.
387
Palavras de Eduardo Luis Duahalde quando fizeram 20 anos de assassinato de Ortega Peña, 1994.
190
Nesta retórica, o mundo é representado como um espaço de luta e enfrentamento que
coloca desafios extremos a seus protagonistas. A narração destas sucessivas situações limites
é apresentada nas entrevistas como um tipo de juízo sobre o caráter heróico do protagonista.
Nesta gica, os acontecimentos do mundo se transformam em provas sobre a culpabilidade
ou inocência do acusado. Isto fica evidente nas palavras de homenagem em memória do
advogado Arnaldo Murua, defensor de Agustín Tosco e de muitos outros militantes sindicais:
“Advogado, transcendeu o profissionalismo [já que este foi] colocado à prova por múltiplos
sacrifícios, perseguições, renúncias, dissensos, amarguras... Perseguido, clandestinizado
primeiro e exilado depois, pagou um preço alto o compromisso com o ideário redentor (...)
sem diminuir o essencial de sua estela”
388
. A maneira de vincular os atos com acontecimentos
compreende-se a partir da intenção do entrevistado em exercer sua própria defesa, justificação
ou glorificação. É através deste modelo, que a experiência prática devém reconhecível e
legítima. O que este relato enuncia é que, apesar destas situações limites, os advogados não se
distanciam de sua missão. Mais ainda, são estas situações limites as que os validavam e as que
confirmavam o destino ‘heróico’ de seus protagonistas.
Este conjunto de relatos pretende mostrar a maneira em que a vida destes profissionais
do direito se desenvolve por fora do modelo prototípico ou tradicional do advogado. Nas
entrevistas é possível reconhecer o uso de uma retórica que exibe como suas trajetórias
profissionais foram distanciando-se do curso ‘normal’ da vida de um advogado. A descrição
que Juan Carlos Rossi compõe de seu próprio itinerário leva esta qualidade modelar, ao
descrever o extremo contraste entre suas rotinas ‘burocráticas’ como advogado do Estado, sua
dedicação ao ‘sonho esteticista’ que era a literatura, a prática do remo no Tigre, a freqüência
assídua ao Teatro Colón para escutar ópera e as aventuras que deparará em uma viagem
iniciática que realiza pela América Latina, viagem que o conduziu justamente ao
‘descobrimento do sentido da profissão’:
“...yo era docente auxiliar en alguna cátedra de la facultad de derecho (...) había
comenzado un doctorado en derecho administrativo (...) porque era abogado del
Estado y me pareció que lo que nos enseñaban en la facultad no nos preparaba [lo
suficiente] (...) yo no militaba en absoluto (...) mis intereses estaban más bien en la
388
Palavras do advogado Lucio Garzón Maceda. “Blues del Negro Murua. En memoria de Arnaldo ‘el negro’
Murua que se reencontró con Agustín Tosco” 23. 02.2003. Documento na página Web:
http//archives.econ.utah.edu/archives/reconquista-popular/2003.
191
literatura (...) y en el derecho secundariamente (...) Publico literatura con mi
apellido materno. Pero en algún momento dado entré en crisis. Entonces resolví
dejar lo que estaba haciendo (...) y salí por el continente, fui desde Argentina hasta
México pasando por Bolivia, Perú, Colombia, Ecuador (...)” (nome apócrifo,
Entrevista Laura Saldivar).
“... yo era un joven profesional entonces que tenía un citroen, dos caballos, que no
tenía problema para pagar el alquiler, que ya había tenido varias parejas y entonces
resuelvo renunciar a mi cargo del Ministerio de Justicia y Educación y me largo a
recorrer Latinoamérica durante dos años. Fue un viaje de aventuras, un viaje
iniciático (...)
En las ferias de enero me iba todo el mes a algún lado. En el 69 voy a Bolivia y me
instalo en Catavi y Siglo XXI que eran las minas de estaño (...) Allí vivo 15 días
con los mineros, voy todos los días a las minas, trato de hacer algunos trabajos de
minería y bueno... ahí empiezan a pasar cosas (...) Ahí completo mi formación. (...).
Por razones personales vuelvo a la Argentina en 1971 y, de inmediato, dos amigos
que habían sido compañeros del Nacional Buenos Aires me proponen tomar
defensas del PRT. Y ahí yo acepto e ingreso a un equipo de abogados donde estaba
Vicente Zito Lema y Alberto Cavilla. Al poco tiempo me proponen no sólo ser
abogado del PRT sino participar en una fuga en que se va a fugar Santucho de la
cárcel (...) Entonces salí de ese mundo de las ideas platónicas y descubro la
utilidad que tenía ser abogado y haber estudiado esa carrera árida (...) que me
había permitido ser un burócrata durante casi 10 años y que me permitía ahora
dedicarme a lo que me interesaba. De repente descubría que existían los ingenios
azucareros en Tucumán (...) y que no tenía que ir hasta México y Bolivia para
encontrar desposeídos (...) Entonces asumo de lleno el militantismo como abogado
vinculado orgánicamente al PRT que se definía como la dirección política del
ERP. Al mismo tiempo me vinculo a otros abogados de la Asociación Gremial de
Abogados de Buenos Aires...”
389
O relato que Rossi faz de sua própria trajetória é particularmente interessante na
medida em que este, a diferencia da maioria de seus pares, apresenta-se como não havendo
tido uma militância estudantil anterior à sua atuação como defensor. Seu itinerário mostra
389
Entrevista com Juan Carlos Rossi (nome apócrifo) para o arquivo de Memoria Abierta. Grifos meus.
192
todas as transformações ocorridas desde o ‘exercer a profissão’ até ‘militar’ na Gremial. Neste
relato, cujo início parece prefigurar a trajetória de um advogado exclusivamente interessado
na profissão do ponto de vista técnico, revela-se o movimento, a transformação que aconteceu
no entrevistado e que resulta no abandono total de sua posição de ‘burocrata’ para se
converter em um advogado ‘militante’ dentro de uma organização política e dentro de uma
associação dedicada à defesa de presos políticos. Como veremos no capítulo 3, Rossi é hoje
um reconhecido ‘especialista’ internacional em direitos humanos e ocupa um dos cargos mais
altos na Secretaria de Direitos Humanos da Nação.
A transformação ocorrida entre os anos 60 e 70 aparece mediada por uma crise pessoal
a partir da qual a viagem pela América Latina opera como um tipo de ritual de iniciação
através do qual se produz a passagem entre um mundo (o sonho esteticista, as idéias
platônicas) e o outro regida pelo perigo e a intensidade dos compromissos públicos e
profissionais. Curiosamente, são seus companheiros da escola secundária que atuam como
guias nas etapas finais desta conversão. Este relato de iniciação situa o jovem formado,
desprovido de capitais sociais, familiares e econômicos significativos, dentro de uma
‘fraternidade viril’ que exalta a disposição ao perigo, ao risco, à aventura. Tal como sugere o
próprio Rossi, ao assumir a defesa dos presos políticos, a ‘aventurapodia ser vivida dentro
das fronteiras do próprio país. Seu relato ilustra sua incorporação a este tipo de ‘aristocracia
do risco’ formada pelos advogados defensores de presos políticos
390
.
A caracterização do mundo como um ‘estado de emergência’ explica também os
paralelismo traçados pelos entrevistados entre o exercício da profissão jurídica e médica.
Independentemente do valor que a organização político-militar sustentasse sobre a
intervenção do advogado e o fato de exercer sua defesa judicial, do ponto de vista dos
advogados defensores, sua intervenção é reivindicada em todos os casos como um ato crucial
na hora de salvar a vida do detido que, graças a esta, era possível em muitos casos deter a
tortura. Como assinala um entrevistado, a Gremial podia ser equiparada com a ‘Cruz
Vermelha’ e com um acionar tipicamente definido pela situação de emergência. A intervenção
do advogado está marcada, então, por uma situação que se define como limite. Semelhante ao
390
A expressão ‘aristocracia do risco’ foi tirada do trabalho de Johanna Siméant sobre a vocação humanitária dos
profissionais da medicina integrantes de Médicos sem Fronteiras. Siméant. 2001.
193
que ocorre em uma emergência médica, nas mãos destes profissionais do direito está o mais
valioso que um ser humano pode preservar: a própria vida
391
.
Trata-se, então, de trajetórias profissionais excepcionais que ilustram as qualidades,
igualmente excepcionais, de seus protagonistas situados por sua vez em um mundo
caracterizado pela excepcionalidade dos acontecimentos. As palavras de homenagem a
Arnaldo Murua, definido como ‘um grande dos tempos difíceis’, iniciam-se com a seguinte
epígrafe de Maquiavel: “O verdadeiro mérito busca-se nos tempos difíceis, porque nos fáceis
não são os homens meritórios os favorecidos, mas os ricos ou os melhores aparentados”
392
.
Da perspectiva destes advogados, uma vez que se coloca em jogo o compromisso na defesa de
presos políticos, simultaneamente produz-se toda uma transformação na vida pessoal. Como o
próprio Rossi dirá em outro momento da entrevista: “...a gente entrava em mundo, por um
lado, de perigo e de decisões que se compreendia rapidamente que tinham um caráter (...)
irrevogável...”
393
.
Como vimos anteriormente, através de sua atuação profissional na defesa de presos
políticos, os advogados podiam fazer uso de um ‘terrível poder’: o de subverter a pretendida
legitimidade do Estado. As palavras em homenagem a Néstor Martins pronunciadas após um
ano de seu desaparecimento explicitam bem tanto as qualidades reconhecidas como legítimas
dentro deste universo de profissionais do direito como a maneira com que, do ponto de visto
destes advogados, a política era exercida através do direito: “O desaparecimento de Néstor
Martins dignificou a profissão de advogado (...) na medida em que exercer a defesa de presos
políticos e sindicais foi interpretada como um desafio aberto ao sistema, como um ato de
militância (...). A profissão de advogado, tradicionalmente a serviço da consolidação do
sistema, converte-se em ‘subversiva’ e seu exercício torna-se perigoso”
394
.
391
Do ponto de vista do detido, a apresentação de um advogado defensor nos lugares de detenção era também
imperiosa, pois significava a possibilidade de colocar fim ao drama pessoal da tortura, como fica evidente em
inúmeros testemunhos divulgados pelo Fórum. Na transcrição do relato de um defendido n o juizado, reproduz-
se o seguinte relato testemunhal: “... quando chegaram os advogados começo a se sentir alívio, pois eles
pediram uma revista médica (...) um médico da Polícia Federal pôde comprovar as diversas torturas” (Foro, pág.
156).
392
Em: Garzón Maceda. 2003 (op.cit.). Grifos meus.
393
Entrevista com Juan Carlos Rossi realizada por Laura Saldivia.
394
Rodolfo Ortega Peña e Eduardo Luis Duhalde. “Néstor Martins y el Ejercicio de la Abogacía”. Em: Jornal
Nuevo Hombre
. Ano 1. No. 22. 15 a 21 de dezembro de 1971.
194
Entre as características selecionadas pelos entrevistados para compor o perfil do
advogado heróico com o qual se identificam destaca-se o sacrifício econômico de seus
honorários profissionais e a realização de defesas gratuitas. Na resenha das atividades
desenvolvidas pela Agrupação de Abogados de Córdoba, Curuchet enfatiza o fato de que
“Todas estas tarefas foram cumpridas de forma absolutamente gratuita...”. A ação em defesa
dos presos políticos devia ser desinteressada, visto que: “O compromisso com as massas
[exige] a renúncia e o despojamento”
395
. No ideal do advogado comprometido, a renúncia à
cobrança de honorários é um ingrediente crítico na configuração de suas qualidades. Esta
mesma qualidade havia sido identificada dentro do universo de advogados que fundaram a
LADH nos anos 30. ‘A renúncia’ e ‘o despojamento’, ao serem transformados em princípios
éticos, permitiam expor as qualidades dos que integravam associações de defesa de presos
políticos, permitindo sua integração a uma mesma comunidade moral onde se reconhecem e
são reconhecidos, justamente, por esta qualidade do desinteresse.
Em seus relatos, os entrevistados destacam as ações empreendidas em detrimento do
próprio interesse profissional e econômico, ao ter que deixar de atender os casos
acompanhados nos escritórios privados em função do compromisso assumido. Os riscos aos
quais os advogados defensores se expunham e a renúncia ao interesses próprio em benefício
do compromisso moral ficam claramente revelados no testemunho de Solari Yrigoyen: “... eu
perdi, por exemplo, meu trabalho no Banco Província de Buenos Aires, onde fui advogado
durante dez anos. Era meu meio de vida já que, evidentemente, não cobrava um centavo na
defesa de presos sindicais e políticos. Considerava que era meu dever de advogado para com a
sociedade”
396
. Como vemos, neste universo de ação, estes advogados tendem a fazer do
‘desinteresse’ uma característica associada a sua prática profissional e militante.
2. 7 “O mais alto militante era o guerrilheiro”
Como assinalamos ao iniciar este capítulo, as defesas podiam incluir “... desde uma
namorada que tinha sido detida porque algum rapaz tinha alguma causa desagradável, até
quem realmente tinha um compromisso militante, passando por aqueles que eram contrários à
395
Em: Jornal Desacuerdo, 1972.
396
Entrevista com Solari Yrigoyen em: Gabbeta, Carlos (1983), pág. 225.
195
luta armada, mas que também caiam presos...”
397
. No entanto, o surgimento de organizações
armadas dentro do peronismo e da esquerda fizeram de seus militantes os principais sujeitos
das defesas destes advogados. Eram estas defesas, assumidas pelos advogados de maior
prestígio, que confirmavam as qualidades excepcionais dos advogados: a coragem, o
sacrifício, a entrega à causa.
As organizações armadas da esquerda não tinham uma visão necessariamente positiva
sobre o trabalho do defensor de presos políticos. Na estrutura hierárquica da militância, os
advogados ocupavam lugares de pouco prestígio. Esta escala aprece claramente expressada no
testemunho de um militante: “O mais alto militante era o guerrilheiro (...), sabia-se que o
companheiro mais forte, mais decidido era o que ia para o combate”
398
. Esta desigualdade está
expressa graficamente no relato de Mattarollo, integrante da equipe de advogados do PRT:
“Se eu tivesse que dizer, de uma maneira um pouco rápida e caricatural [o lugar do advogado
nas organizações da esquerda revolucionária], não era muito distinto do papel que se dava aos
que sabiam escrever a máquina quando entravas na colimba argentina (risos). É
provavelmente um exagero, mas nunca tivemos um papel muito determinante”
399
.
Este papel secundário compreende-se em termos do universo de representações que
organizavam as práticas das organizações político-militares da esquerda, particularmente, suas
concepções sobre o Estado e a justiça. Em relação aos responsáveis da repressão,
organizações como Montoneros ou o Ejército Revolucionario del Pueblo propiciavam sua
execução e a realização de juízos sumários integrados por um tribunal formado pelos próprios
quadros militantes. É justamente um ato de julgamento ‘popular’ o que marca o nascimento
público da organização político-militar Montoneros que, no primeiro aniversário do
Cordobazo, no dia 29 de maio de 1970, executou o ex-presidente de fato Pedro Eugenio
397
Em: Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia.
398
Entrevista com ‘Eduardo’, militante do Ejército Revolucionario del Pueblo, realizada por Vera Camovale para
o Arquivo Memoria Abierta. Em: Camovale, 2006. Um trabalho de referência iniludível para compreender a
visão da polícia sustentada por esta militância é o livro de Hugo Vezzetti. Ao explorar a combinação ‘letal’ entre
ideais absolutos e meios violentos, o autor situa aqui uma das condições da derrubada do Estado de direito a
partir de meados dos anos setenta. Vezzetti, 2002. Interessa destacar aqui o contraste entre o que esta militância
consagrava ‘o poder redencionista da violência’ com a complexa posição dos advogados defensores de presos
políticos examinados nestes capítulo que, ao mesmo tempo que se identificavam com a causa da revolução e de
seus defendidos, reivindicavam a vigência do Estado de direito.
399
Em: Entrevista com Mattarollo realizada para o arquivo oral de Memoria Abierta. ‘Colimba’ é uma ‘gíria’
que se utiliza para designar o jovem que entra nas forças armadas para cumprir o serviço militar obrigatório. Sem
aspirar seguir a carreira militar e recém incorporado à mesma, ocupa o mais baixo escalão na hierarquia da força.
Entre estes ‘colimbas’ destacavam quem, por ser oriundo de setores médios, dispunham de um capital cultural
que lhes permitia cumprir tarefas relativamente mais prestigiosas como trabalhar de secretário ou auxiliar dos
militares hierarquicamente superiores.
196
Aramburu que, em 1955, tinha destituído o general Juan Perón. Expressões como a detalhada
a seguir falam da legitimidade que tinha para estas organizações uma justiça não
monopolizada pelo Estado: “Estes assassinos covardes (...), não vamos perdoá-los nunca. A
justiça do povo, a justiça revolucionária se encarregará de pedir contas aos responsáveis de
tais crimes e não haverá piedade possível”
400
. A consigna: “o sangue derramado não será
jamais negociado” ou a promessa de vingança assinalam com clareza a concepção de uma
‘justiça pelas próprias mãos’ alternativa aos tribunais e aos instrumentos legais disponíveis,
como se explicita nesta afirmação: “A organização Montoneros (...) fará todo o possível para
que cedo ou tarde este crime seja pago” e que os ‘torturadores’, ‘gorilas’ e ‘traidores’ sejam
‘justiçados’ pelas torturas, assassinatos e fuzilamentos de militantes.” Em declarações
formuladas depois de sua libertação após 190 dias de cativeiro, o coronel Crespo descrevia o
procedimento nestes julgamentos:
“Crespo: Me hicieron un juicio para que yo pudiera defenderme de acuerdo con las
leyes para prisioneros de guerra de Ginebra. Y yo lo hice. Lo hice por escrito y lo
firmé.
Periodista: ¿De qué lo acusaban?
Crespo: De haber hecho cursos especiales en los EEUU y Panamá. Por supuesto yo
demostré que el hecho era falso
401
.
Diante da ‘repressão’, detenção e tortura de seus militantes, a direção das organizações
armadas sustentava ‘o desconhecimento absoluta da justiça do regime’ e a necessidade de
desenvolver vias alternativas ao direito, possibilitando o ‘resgate’ de seus militantes presos ou
promovendo sua ‘fuga’ das prisões através de operações do tipo comando. Assim expressam
alguns de seus dirigentes em um comunicado: “Diante da falta total de garantias, de burlarem
constantemente as leis e das manobras dilatórias dos juízes atuantes, ao ser requerida nossa
absolvição pelo Fiscal de Câmara e adiar nossa liberdade, é que a obtivemos por nossos meios
e determinação”
402
. Na reprodução de uma nota publicada no jornal El Combatiente, ‘órgão’
do PRT, define-se um episódio de fuga de presos políticos como um ‘... combate mais dos
soldados do povo contra os soldados dos exploradores, que permitiu ‘liberar’ das mãos da
400
Documento das Unidades Básicas Armadas do Movimiento Peronista de 11.71 reproduzido em El
Descamisado. 1971.
401
Em: Revista Gente. 23.05.1974. Entre as figuras ‘justiçadas’ pelas organizações político-militares da esquerda
encontravam-se vários dos juizes que integraram a própria mara Federal no Penal fórum anti-subversivo e o
próprio Ministro de Justicia Perriaux que criou a reforma do Código Penal e o ‘Camarón’.
402
Comunicado de ex-presos políticos da Prisão Las Heras, reproduzido em Nuevo Hombre. Ano 1. Número 18.
Novembro 1971.
197
ditadura doze combatentes, demonstrando nesta ação (...) o amor pelo povo oprimido, a
convicção de que nesta luta se triunfa ou morre e a irrenunciável de que a justa causa do
povo vencerá...”
403
.
Se as consignas relativas a uma idéia de ‘justiça revolucionaria’ empunhadas pelas
organizações armadas expressam os ideais a serem seguidos na luta pela causa da revolução
popular, é certo que, por diferentes razões, as organizações políticas de então,
fundamentalmente armadas e que atuavam na clandestinidade, necessitavam contar com a
intervenção de advogados defensores que levassem adiante a defesa das causas de seus
militantes pela via judicial e pelo sistema de justiça imperante.
Do ponto de vista destas organizações, se a função específica do advogado consistia
em ‘advogar’ por seus defendidos perante um tribunal, o compromisso assumido na defesa
dos prisioneiros políticos supunha o exercício de outras funções de extrema importância. Por
questões relativas a seus foros profissionais, o advogado era o único que podia ter contato
com o detido, de maneira que se transformava na única ligação possível entre este e sua
organização. Os advogados podiam ser vistos pelas organizações como fontes de informação
relacionadas com o comportamento do militante durante a detenção, especialmente durante a
tortura.
Para as organizações na clandestinidade, era particularmente importante manter o
segredo a respeito de suas ações, integrantes e recursos. Os testemunhos reproduzidos pelo
Foro expõem justamente o comportamento esperado do militante que não fala na tortura e
está disposto a entregar sua vida pela causa, um comportamento exemplar que: “... só pode ser
sobrelevado por alguém que assuma sua condição de militante... diante de quem busca
quebrá-lo física e moralmente” (Foro, 144). A importância designada a esta forma modelar de
comportamento aparece exaltada uma e outra vez nos testemunhos reproduzidos pelo Foro
como fica evidente nestes exemplos: “Embora seja uma experiência difícil, se está convencido
de que lutas por teu povo peronistas, agüentarás até a morte” ou “Aprendi que um cara nas
mãos do policial pode-se defender (...) que é possível enganar o inimigo, brigar com ele,
combatê-lo inclusive em sua mesa de tortura. Descobri que calando tinha tudo por ganhar e se
falava perdia tudo” (Foro, 145). Diante de tamanha exigência de compromisso com a causa, o
403
Em: Nuevo Hombre. Ano 1. Número 22. Dezembro 1971. Grifos meus.
198
advogado aparecia como a figura que, tendo contato com o militante detido e torturado, podia
prestar testemunho do grau de acatamento à disciplina imposta pelas organizações.
Devido à possibilidade deste contato, se a organização armada à qual pertencia o
detido tinha decidido proceder ao ‘resgate’ do preso, o advogado transformava-se em uma
peça chave na transmissão de informação sobre os detalhes da operação militar. Neste sentido,
os advogados podiam ser considerados como recursos críticos de informação dada a
clandestinidade em que funcionava esta militância e as condições de detenção de seus quadros
políticos. Através do advogado, podia circular informação relativa a futuras operações
armadas, de fuga, novos contatos, ações etc.
A porosidade das fronteiras entre estas formas de militância fica evidente, de forma
dramática, na seguinte história relatada por Jorge Podetti: em uma ocasião, um advogado
defensor de presos políticos, fazendo uso do privilégio profissional de manter contato pessoal
com o detido, entrou em um presídio com o intuito aparente de visitar seu cliente. Mas a visita
profissional foi, na verdade, uma desculpa para pegar a arma do carcereiro, torná-lo refém e
libertar o militante
404
. Na posição oposta à deste profissional, Mario Landaburu, integrante da
Gremial, relata a ocasião em que recusou uma defesa: “Um dia recusei a defesa de alguém
que havia matado um monte de celadores [pessoal que trabalha na prisão]. Pediu-me pelo
expediente [que assumisse a causa] e disse-lhe: mas está cheio de sangue! Sim, mas são de
celadores... E lhe respondi: sim, mas são seres humanos, você é um filho da puta”
405
. O
resgate do preso, a avaliação negativa de Podetti a respeito de uma intervenção que segue a
lógica das organizações armadas, no lugar da gica profissional, e a recusa de um processo
por parte de Landaburu, evidenciam a existência de formas diferentes de se situar em relação
às organização político-militares da esquerda e de perceber a relação entre direito e política.
Esta proximidade entre o advogado e seus clientes podia conduzir a uma opção pela
política com total abandona da profissão. Entre os advogados defensores, alguns entraram
para os próprios quadros das organizações armadas da esquerda revolucionária. Esta
porosidade foi observada também, evidentemente, pelos que levavam adiante a repressão
sobre os próprios advogados, como testemunha a extensa lista de advogados detidos,
seqüestrados, assassinados ou desaparecidos.
404
Entrevista com Jorge Podetti (nome apócrifo), realizada por mim. 2002.
405
Entrevista com Landaburu realizada para o arquivo oral de Memoria Abierta.
199
2. 8 “Advogados do caos e da delinqüência”
Depois do assassinato do dirigente sindical Augusto T. Vandor, o Subsecretário do
Ministério do Interior da Nação, Dario Sarachaga manifestou publicamente a respeito da
detenção de mais de quarenta advogados na prisão de Villa Devoto: “não pudemos comprovar
se são inocentes, ao que parece, tem assessorado à subversão”
406
. Em relação aos advogados
detidos à disposição do Poder Executivo Nacional ou assassinados, o Ministério da Justiça
expressou, no início de 1975, que: “... os advogados que defendem presos políticos têm uma
ativa militância política e é por causa dessa militância que alguns deles foram mortos e outros
estão presos (...), muitos recebem verdadeiras fortunas das organizações guerrilheiras...”
407
.
A qualificação negativa de que eram objeto ficou dramaticamente evidente por ocasião
de uma campanha de cartazes públicos que, em outubro de 1971, cobriu os arredores do
Palacio de Tribunales da Cidade de Buenos Aires. Estes cartazes reproduziam o rosto de sete
advogados defensores de presos políticos, que eram qualificados como ‘advogados de
delinqüentes’ e ‘advogados do caos e da violência’. As imagens do cartaz podem ser
identificadas, claramente, com imagens de condenados públicos e o próprio cartaz com uma
sentença, mais que com uma denúncia, como pode ser visto na foto que o reproduz e que é
utilizada como capa do número 11 do jornal Nuevo Hombre de setembro de 1971
408
.
Em 1974, depois do assassinato do Ministro da Justiça que criara o chamado
‘Camarón’ foram distribuídos nos arredores de Tribunales dois panfletos difamatórios que
diziam o seguinte:
“Los abogados del caos y la delincuencia: son pocos pero existen. Son siempre los
mismos. Sus nombres siempre aparecen en la prensa. Son los defensores
permanentes de la delincuencia organizada.
Cuando un extremista mata a un modesto servidor de la ley, cuando un delincuente
cae en manos de la justicia, cuando un terrorista es detenido y sometido a juicio,
ellos aparecen para asumir la defensa.
406
Revista Primera Plana. 22.07.1969. Reproduzida em M. Chama. Op.cit.
407
Em: Relatório Fragoso. “La situación de los abogados defensores…” op.cit. 1975.
408
Ver no Anexo 16, pág. 221 a reprodução destes cartazes. Em: Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. Numero 11.
Setembro de 1971.
200
Sus oficinas se han convertido en escenario para conferencias de prensa, agitan a la
acción política y tratan de elevar su voz de protesta lo más alto posible: ellos
calumnian, perjuran, acusan.
La delincuencia y el extremismo les pagan generosamente y mantienen sus
oficinas. Por esta causa, personas inocentes son asesinadas y millones de pesos son
robados todos los días.
Ellos son los abogados del caos y la delincuencia, que se callan cuando ellos
mismos violan la ley, cuando un sirviente de la ley, el protector de la sociedad a la
cual todos pertenecemos, es asesinado” Firmado: M.R.N. Movimiento de
Recuperación Nacional.
409
O outro panfleto tinha, definitivamente, um tom irônico:
“Invitación especial: La Gremial de Abogados tienen el placer de invitar a aquellos
miembros de las organizaciones terroristas y criminales que todavía no lo han
hecho, a visitar nuestras oficinas centrales, Suipacha 612, “B”, donde serán
convenientemente instruidos, en vista de los modestos honorarios que hemos
establecido como contribución al abaratamiento de la VIOLENCIA-ASESINATO-
SECUESTRO-ROBO y toda otra suerte de crímenes contra la POBLACION
ARGENTINA.
Para los criminales políticos y para aquellos que DEFIENDEN EL ASESINATO
EN GRAN ESCALA de SERVIDORES DE LA LEY, existe un descuento
especial.
Señores DELINCUENTES: confíen en nuestra gran experiencia en el
asesoramiento y defensa de los miembros más conspicuos del ERP-FAL-
MONTONEROS y MAFIOSOS.
409
Panfleto reproduzido em inglês no relatório da Comissão Internacional de Juristas. “Attacks on the
independence of judges and lawyers in Argentina”. Bulletin of the Centre for the Independence of Judges and
Lawyers. Vol. 1. No. 1. Fevereiro 1978. Tradução minha. O Movimiento de Recuperación Nacional surgiu em
1956 e estava integrado principalmente por militares. Naqueles anos, opuseram-se à derrubado do governo
constitucional do General Perón e realizaram uma tentativa de sublevação que foi reprimida com o fuzilamento
de suas figuras principais.
201
Los esperamos como siempre con afecto: Dr. Eduardo Luis Duhalde, Dr. Silvio
Frondizi, Dr. Rodolfo Ortega Peña, Dr. Mario A. Hernández, Dr. Raúl Aragón, Dr.
Gustavo Roca, Dr. R. Sinigaglia, Dr. Cavilla Fernandez, Dra. Susana Delgado”
Firma Comando “Puma”
410
.
Advertidos do lugar de desqualificação por parte do Estado, estes advogados
respondiam às acusações: “conforme o critério da ditadura militar, o exercício da profissão de
advogado é lícito quando refere-se à defesa dos monopólios ou dos torturadores,
seqüestradores ou assassinos institucionalizados, mas não quando a assistência jurídica é
prestada à serviço da classe operária e do povo”
411
.
O que o cartaz e os panfletos mostram com clareza é a percepção que se tinha do
trabalho destes profissionais do direito comprometidos com a defesa dos militantes e
dirigentes sindicais e políticos: nas esferas próximas ao governo, foram percebidos como
inimigos e como uma ameaça. De fato, a ameaça anunciada nestes cartazes e panfletos se
concretizou ao longo dos anos, que dos sete acusados, um deles sobreviveu. Os demais
estão desaparecidos ou foram assassinados entre 1974 e início dos anos 80. No próximo
capítulo desenvolverei as implicações desta conjunção entre a condição de vítima e de
especialista na profissionalização dos direitos humanos na Argentina.
2. 9 “A Luta pelo Direito”
Os profissionais do direito descritos neste capítulo, ao mesmo tempo que assumiram a
defesa da causa coletiva pelo socialismo e a revolução, definiram seu compromisso público
como parte de um ativismo jurídico. Estes advogados, que se percebiam como combatentes de
uma causa, estavam dispostos a empunhar efetivamente as armas: ‘as armas do direito’. O
próprio serviço jurídico da LADH exaltava este aspecto bélico do exercício da profissão,
destacando a importância de “... fazer de cada processo uma trincheira de luta para impor o
410
Ibidem. Não tenho dados até o momento sobre este comando puma. Puma é um tipo de avião pilotado pelos
membros das Forças Aéreas na Argentina e no Chile.
411
Em: Nuevo Hombre, Ano 1, No. 16, nov. 1971.
202
direito e a justiça”
412
. Um entrevistado utilizava esta linguagem para se referir à criação da
Gremial: “... a finalidade era uma frente comum contra a ditadura, pegá-la da nossa
trincheira...”
413
. Na defesa deste compromisso com os presos políticos, estes profissionais do
direito percebiam a si mesmos no centro de um combate: ‘a luta pelo direito’
414
.
Enunciada nestes termos, ‘a luta pelo direito’ supunha separar a defesa de presos
políticos da adesão a uma posição ideológica ou partidária, sustentando que o que estava em
jogo era o Estado de direito. O ‘direito à legítima defesa’ era uma garantia constitucional
dentro deste marco jurídico ideal. E era este marco que definia o lugar do especialista: “Nós
estamos exercendo um ministério reconhecido por nossa própria constituição; a defesa de
presos políticos”
415
, “... os militares que nos governavam pretendiam assimilar o advogado
defensor com o acusado, o que implica desconhecer a própria natureza da missão do
advogado”
416
. Nestes mesmos termos ctor Sandler proclamava: “Se os advogados e os
políticos têm alguma missão é que o povo argentino tome consciência da necessidade de
implantar o Estado de direito, onde a liberdade, a vida e a dignidade humana sejam a base da
sociedade
417
.
A retórica vinculada aos direitos humanos era uma das formas de expressar seu
compromisso público com a causa de seus clientes, especialmente ao impugnar o Estado
autoritário. Para Solari Yrigoyen, muitos advogados argentinos (...) acreditavam não apenas
nas leis (...) mas, fundamentalmente, no respeito à pessoa humana, nos direitos fundamentais
do homem...”
418
, “... os direitos humanos são sagrados e inalienáveis e nenhuma comunidade
pode se autojustificar se os coloca em risco’
419
. Perante a detenção de vários dos principais
dirigentes de associações armadas, após a tentativa de fuga da penitenciária Rawson, os
412
El Linguista. Boletim informativo da LADH. 1971. Grifos meus. O livro editado pela LADH de Viaggio
Macartismo versus Democracia. Buenos Aires, 1970 era apresentado como “... uma formidável arma contra as
iniqüidades da lei para defender as vítimas desse corpo repressivo”. Op. cit. pag. 5.
413
Entrevista com Gerardo Taraturo, realizada por Mauricio Chama. 12.12.1998. Reproduzida em Chama. Op.
cit.
414
Expressão utilizada pelo advogado Hipólito Solari Yrigoyen. Em: Gabbeta, Carlos (1983), parafraseando o
título do livro de Rudulf Von Iething, jurista alemão que em 1872 publicou La lucha por el derecho. Neste
trabalho, Von Ierthing define o direito como aquilo que garante a paz social e, ao mesmo tempo, luta contra as
injustiças. Para este autor, ‘primeiro é a luta e depois o direito’. Tudo no mundo do direito teve que ser adquirido
através da luta. A luta não é uma condição objetiva na criação do direito, mas também tem uma dimensão
moral que compromete o indivíduo à ação. É esta expressão de Solari Yrigoyen, “A luta pelo direito” a que
nome a esta tese.
415
Entrevista com Rafael Lombardi e César Calcagno em Nuevo Hombre. Ano 1. Número 12. 1971.
416
Entrevista com Hipólito Solari Yrigoyen, realizada por Gabbeta. Em: Gabbeta (1983), pág. 228.
417
Em: Nuevo Hombre, Ano 1, No. 3: 1971, grifos meus.
418
Op.cit. (pág. 227).
419
Em: Foro, 1973.
203
integrantes da Gremial enviaram um telegrama ao Ministro do Interior, Arturo Mon Roig,
reivindicando sua intervenção nestes termos: “Reivindicamos direitos humanos presos
políticos unidade carcerária Rawson responsabilizando por sua integridade física...”
420
.
Ao interpelar o Estado, os defendidos são qualificados em termos neutros e sem fazer
referência à sua identidade política ou partidária. Quando, efetivamente, faz-se referência à
identidade política do defendido destaca-se, justamente, a independência do advogado em
relação à política partidária, isto é, à possibilidade de representar um interesse particular.
Assim, Solari Yrigoyen ressalta:
Defendí a muchos presos sindicales y políticos. (…) representantes de diversas
tendencias políticas (…) radicales, socialistas, peronistas, etc. (…) Jamás pregunté
a un preso político cuál era su pensamiento o su divisa partidaria. Si alguno de mis
defendidos derivó luego hacia la actividad guerrillera, pienso que se equivocó
gravemente. Pero en aquél momento, todos eran para conciudadanos
perseguidos por un régimen injusto y arbitrario… ”
421
.
Este tipo de definição ganha sentido na medida em que permite mostrar que no
cumprimento de sua ‘missão’, estes profissionais do direito se situavam acima dos interesses
partidários. Transcendem as diferenças ideológicas ao colocar a ênfase em instâncias
superiores como ‘a democracia’ ou ‘a justiça social’: “Tosco e eu pensávamos igual? Não.
Divergíamos em muitas coisas. Ele era um marxista independente, eu um radical não
marxista. Coincidíamos globalmente na luta pela democracia, contra o imperalismo e por uma
maior justiça social”
422
. O compromisso do advogado é apresentado como um compromisso
‘universal’ relativo à defesa da constituição e da liberdade.
Ao se referir ao caso do seqüestro e desaparecimento de Luis Pujals, dirigente de
Montoneros, seus advogados defensores afirmavam em uma entrevista:
420
Em: Jornal La Opinión. 18.8.1972. O fuzilamento dos detidos é o episódio conhecido dentro desta militância
como ‘Masacre de Trelew’, os advogados da Gremial.
421
Entrevista com Solari Yrigoyen. Em: Gabbeta, Carlos (1983), pág. 228. Nos testemunhos das organizações
de direitos humanos dos anos 80, especialmente daquelas integradas por parentes de desaparecidos, encontra-se
o mesmo tipo de retórica.
422
Solari Yrigoyen, Em: Gabetta, op.cit. pág. 226.
204
“NH: ¿A qué se debe que diversos abogados de prestigio político en el orden nacional
y que representan corrientes políticas e ideológicas muy diferentes (como Emma Illia,
Soler, Héctor Sandler, Ventura Mayoral, Rafael Lombardi y César Calcagno) se hayan
unido en el patrocinio la señora de Pujals?
Abogados: los colegas mencionados se caracterizan por una clara conducta en defensa
de los derechos de la dignidad humana y esto por encima de las diferencias políticas e
ideológicas entre ellos (...) Lanusse está logrando el tal mentado acuerdo nacional,
pero en su contra, ante estos brutales atropellos de los derechos humanos
423
.
A defesa dos direitos humanos era reivindicada publicamente. Héctor Sandler, ao ser
interrogado sobre sua condição de advogado defensor, respondeu:
“... aún si (nombre del imputado) fuera un terrorista, de igual modo hubiese
asumido su defensa (...) Sepa, señor periodista, que los hombres que luchamos por
la efectiva libertad y la vigencia del real Estado de derecho, debemos estar
dispuestos a defender los derechos humanos de cualquier hombre, así sea un
delincuente. Porque la categoría de delincuente surge de la ley positiva, siempre
mutable, mientras que los derechos humanos surgen de la misma condición
humana. De manera que ninguna contradicción existe entre mi actividad política,
públicamente conocida y la de defensa asumida en este caso (...) Los derechos
humanos como enseña Alfredo Orgaz hay que defenderlos en los adversarios,
en los enemigos, especialmente en los adversarios que quizá no consideren válidos
los derechos humanos. Si no, ¿en qué nos diferenciaríamos los hombres libres de
los déspotas?”
424
.
Sandler refere-se ao livro publicado por Alfredo Orgaz, Reflexiones sobre los Derechos
Humanos. Orgaz (1900-1984) era doutor em jurisprudência, professor da universidade
nacional de Córdoba. Foi senador da província e candidato à presidência pelo Partido
Socialista em 1937 e entre 1955 e 1960 foi juiz e presidente da Corte Suprema de Justiça. Ao
questionar a legislação sobre terrorismo (detenções à disposição do PEN, incomunicações,
substituição de tribunais civis por militares etc.), Orgaz afirmava em seu livro:
“Espero que nadie pensará que estoy defendiendo a los terroristas. No, estoy
defendiendo los derechos humanos que pertenecen también a los terroristas, como
423
Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1. No. 12, 1971, grifos meus.
424
Entrevista com Sandler no Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. Número 6. 1971. Grifos meus.
205
a todos los demás hombres. Es bastante fácil, sin duda, respetar los derechos
humanos en nuestros amigos y aún en quienes no son indiferentes, más difícil es
respetarlos en nuestros enemigos. Pero es esta última actitud la que permite
distinguir, precisamente, el régimen democrático del totalitario”
425
.
A defesa de presos políticos fazia parte de uma ‘missão’ fundada sobre princípios
universais: os direitos humanos. Como veremos no capítulo seguinte, este discurso se reforça
e torna-se exclusivo e excludente quando os advogados defensores de presos políticos entram
nas redes transnacionais de juristas em meados dos anos setenta.
2. 10 Uma causa internacional
No exercício da defesa, os profissionais do direito apelaram a diversos tratados que
regem o tratamento dos combatentes no poder do inimigo e aos quais a Argentina aderiu. Se,
se estava, efetivamente, em ‘guerra aberta contra a subversão’, como sustentavam os que
lideravam a chamada ‘Revolução Argentina’, então ‘as organizações armadas revolucionárias
argentinas’ deviam ser amparadas pela legislação internacional sobre prisioneiros de guerra: a
Convenção de Haia de 1907, a Convenção de Genebra de 1919 e os quatro convênios de
Genebra de 1949 nos quais se reivindicam os direitos dos prisioneiros em mãos inimigas.
Deste ponto de vista, para os defensores de presos políticos, a violação destas convenções,
isto é “As torturas e execuções dos combatentes populares na Argentina em 1971 (...)
constituem (...) violações às leis e usos da guerra [o que termina] tornando seus autores
criminosos de guerra
426
.
Em agosto de 1972, os integrantes da Gremial criaram uma delegação para solicitar a
Robert Gaillard-Moret (delegado do Comitê Internacional da Cruz Vermelha que se
encontrava na Argentina para verificar as denúncias de maus-tratos aos prisioneiros políticos),
para visitar os presos que tinham tentado fugir da presídio de Rawson. Esta gestão ficou
425
Orgaz, 1961. op.cit. pág 45-46. Este jurista também é considerado como referência por advogados da Liga,
como Eduardo Warschaver que, em 1968, cita-o em seu trabalho “Juzgamiento de civiles por tribunales
militares” s/d.
426
Eduardo Luís Duhalde e Rodolfo Ortega Peña. “¿Nos gobiernan criminales de guerra?”. Em: Jornal Nuevo
Hombre. 1971. Ênfase no original.
206
interrompida quando, no dia seguinte deste pedido, os detidos foram assassinados na base
aeronaval de Trelew
427
.
Junto com a reivindicação do direito internacional humanitário dentro das próprias
fronteiras do país, estes profissionais do direito colocavam as denúncias sobre seqüestros,
desaparecimentos e assassinatos na esfera pública internacional, através de diversas
associações internacionais: desde a OIT e o Tribunal Russel, até a Comissão Internacional de
Juristas (CIJ) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) vinculada à OEA
428
.
Todas estas instâncias foram convocadas a partir do desaparecimento do advogado Néstor
Martins.
A CIJ assumiu a defesa destes casos demandando o governo argentino desde 1972
pela ‘situação de insegurança jurídica’, exigindo especialmente que sejam garantidas as
condições para o exercício da defesa. Estas denúncias levaram à realização de uma primeira
missão de especialistas internacionais comandada pela CIJ, especificamente dedicada a
examinar a situação dos advogados defensores de presos políticos (1974). O responsável por
esta missão, Heleno Fragoso, apresentou uma lista de advogados ‘vítimas’ da violência do
Estado e em seu relatório podemos encontrar todos os atributos da retórica dos direitos
humanos: independência da filiação partidária ou ideológica, objetividade e neutralidade na
apresentação da informação e o interesse por sensibilizar à opinião mundial sobre as
condições de repressão no país. A respeito da acusação que pesava sobre os advogados
defensores de presos políticos devido a sua ativa militância política, Fragoso afirmava:
“Muitos advogados tinham, efetivamente, militância política (...). Não consta, no entanto, que
nenhum dos advogados se dedicasse a uma atividade política ilegal ou que estivesse vinculado
a grupos subversivos”
429
.
Entre os documentos relacionados com o caso Martins encontram-se os pedidos que o
Secretário Geral da Confederação Mundial do Trabalho, Jean Brück, realiza no transcurso do
427
Vale a pena destacar que este tipo de demanda de intervenção de associações internacionais representa uma
posição dentro da Gremial, entre outras possíveis. Duhalde e Ortega Peña, por exemplo, referiam-se à OEA
como ‘uma assembléia de lacaios’ ou como uma instituição que ‘foi criada para afiançar aão do imperialismo
na América”. Como vermos no capítulo 3, poucos anos depois, Duhalde seria uma das principais figuras a
intervir nestes espaços transnacionais, denunciando as violações aos direitos humanos cometidas na Argentina.
428
O Tribunal Russel tinha sido criado originalmente para investigar e denunciar os crimes cometidos durante a
Guerra do Vietnã, em 1967. O Tribunal Russell II havia se dedicado, desde 1974, a denunciar a situação vigente
na América Latina. No próximo capítulo será feita uma descrição de todas estas instituições.
429
Relatório “La situación de los abogados defensores en la República Argentina”. CIJ. 1975.
207
ano de 1971 para que outras associações internacionais se comprometam com o caso, como a
Anistia Internacional e a própria CIDH. Em todos os casos, estes pedidos apelam ao “... uso
de sua influência e sua autoridade moral [dos membros da associação] para que se faça uma
investigação a fundo do seqüestro...”. Também se encontram os telegramas dirigidos às
máximas autoridades argentinas exigindo o aparecimento do advogado defensor, colocando
em prática a chamada ‘estratégia de rebote’ descrita por uma integrante do Foro de Buenos
Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos e mencionada no início deste capítulo. O
telegrama, datado em janeiro de 1971 e dirigido ao Presidente General Levington, denuncia:
“Caso escandaloso secuestro Néstor Martins y Nildo Centeno [su cliente] implica
violación derechos humanos orden garantías jurídicas. Confederación mundial del
Trabajo elevando enérgica protesta exige investigación con libertad indemnes
esperando urgente intervención Presidente Nación”
430
.
A intervenção da CIDH foi solicitada poucos dias depois do desaparecimento de
Néstor Martins. Diante da denúncia, a CIDH expediu-se um ano depois e resolveu que “...
sem prova da participação direta ou indireta dos representantes do governo argentino e da sua
inação para reprimir o delito, não se podia invocar a proteção internacional”, recomendando
que o caso ficasse arquivado (Caso 1701, maio de 1972)
431
. O ponto de vista da CIDH era
que, tendo um processo judicial aberto no país, não se podia considerar que os recursos legais
estavam esgotados no presente caso. Outros casos de denúncias apresentados também em
1971 e 1972 foram rejeitados por não ‘atribuir-se violações dos direitos humanos’. A rejeição
destes casos no início dos anos setenta contrasta, abertamente, com as resoluções da CIDH de
confirmar as denúncias recebidas a partir do golpe de Estado de 1976, compromisso que
chegou, como veremos no próximo capítulo, a que se enviasse uma missão internacional ao
país.
Ao apelar à ‘influência’ e ‘autoridade moral’ de diversas figuras da política e da
cultura, havia se constituído, fora da Argentina, comitês e agrupações de apoio à causa dos
presos políticos. Na França, por exemplo, desde 1972 funcionava o Comité de Défense des
Prisionniers Politiques Argentines (CODEPPA), liderado pelos escritores franceses como
430
Telegrama. Arquivo pessoal da família Martins. Ver no Anexo mero 35, na pág. 255 e 256 um desses
pedidos dirigidos à Anistia Internacional. Todos têm o mesmo texto.
431
Relatório Anudal da CIDH. 1972. Seção Argentina. A CIDH intervém apenas quando se esgotaram todos os
recursos legais providos pelo sistema jurídico do país de onde procede a denúncia.
208
Margarita Duras, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre (integrantes também do Tribunal
Russel), junto com intelectuais argentinos residentes em Paris como Julio Cortázar e
integrado por profissionais do direito franceses. Entre seus objetivos figuravam o de “obter a
assistência internacional dos juristas para a defesa dos prisioneiros políticos”
432
. Apelar à
autoridade dos denunciantes era uma condição crítica para legitimar as denúncias. No Boletim
do Comitê destaca-se que: “... considerou-se, unicamente, os testemunhos [sobre torturas a
prisioneiros políticos] que provêm de instituições de juristas, de órgãos de imprensa e de
pessoas que o Comitê julga dignas de confiança (...). A fonte mais importante é o Foro de
Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos”
433
. Um número especial deste
Boletim esteve dedicado ao dramático episódio conhecido como ‘Massacre de Trelew’. Este
acontecimento mobilizou os integrantes deste comitê que, apenas 5 dias depois dos
fuzilamentos, se apresentaram à embaixada chilena em Paris para interceder com o
reconhecimento ao direito de asilo dos cidadãos argentinos que tinham conseguido fugir e
que, naquele momento, estavam no Chile
434
. Foram advogados franceses, integrantes do
CODEPPA, que estiveram responsáveis por esta intermediação. Eles também convocavam
periodicamente conferências de imprensa para denunciar os procedimentos ilegais do Estado
argentino.
Para concluir esta seção só me resta destacar a importância da intervenção desta esfera
internacional na objetivação de associações de defensores de presos políticos como
associações de defesa dos ‘direitos humanos’ na Argentina. Embora este ponto receba uma
atenção privilegiada no próximo capítulo, basta assinalar aqui brevemente o episódio que dá
origem à criação do Foro por la Vigencia de los Derechos Humanos en la Argentina: Em
setembro de 1971, durante uma reunião organizada em Montevidéu pela Universidad de la
República, com a participação da Convención Nacional de Trabajadores e a Confederación
Sindical Cristiana Latinoamericana, decidiu-se criar o Foro por la Vigencia de los Derechos
Humanos” com o objetivo exclusivo de amplificar as denúncias dos advogados defensores de
presos políticos. O fato de que os integrantes da Gremial tenham tido que se constituir
também como Foro por la Vigencia de los Derechos Humanos como condição para que suas
denúncias fossem reconhecidas nesta esfera transnacional, mostra que a existência social
432
“Argentine 1972” Bulletin d’Information. Paris. 15.05.1972. Tradução minha.
433
“Testimonios sobre las torturas a prisioneros políticos en Argentina”. Em: Boletín del CODEPPA. Janeiro
1972. Tradução minha.
434
Em: Comunique de Presse. Comité de Defense des Prisonniers Politiques Argentins. Paris. 21. 08.1972.
Tradução minha. O governo argentino de Lanusse exigia a extradição dos mesmos.
209
destes advogados comprometidos teve como condição indispensável sua constituição em
associação de defesa dos direitos humanos.
Como veremos no capítulo seguinte, estas redes transnacionais de advogados,
intelectuais e figuras da política ocuparão um espaço cada vez mais importante no
reconhecimento das denúncias e, com isso, na institucionalização das novas associações de
defesa dos direitos humanos criadas em meados dos anos setenta na Argentina.
2. 11 Conclusão
As associações de advogados descritas neste capítulo constituíram espaços
heterogêneos formados por sujeitos com trajetórias e concepções distintas sobre o
compromisso militante e o exercício da profissão. Ao longo deste capítulo demonstrei quais
são os princípios de agregação desta militância e sobre que tipo de representação se funda este
tipo de ativismo. A categoria ‘militar’ na defesa de presos políticos refere-se ao pertencimento
simultâneo a dois campos considerados usualmente como excludentes: o da militância política
e o do exercício da profissão. Esta expressão nativa ‘militar’ tem, justamente, a qualidade de
expressar este duplo sentido inscrito em sua atividade profissional: dar conta da militância
política através do uso do direito e do pertencimento a um grupo social que mantém uma
relação de extrema proximidade com a causa com a qual se identificam as pessoas que
defendem.
A enunciação desta condição supõe que a prática de defesa se funda o apenas no
conhecimento especializado (‘expertise’), mas também em um conjunto de valores como o
heroísmo, o sacrifício e o desinteresse no compromisso com a causa. Alem disso, esta prática
supõe e requer, por sua vez, o exercício da profissão em seu sentido mais tradicional.
Na configuração deste universo social, a valorização do direito liberal e a concepção
da política como um processo revolucionário não constituem, necessariamente, alternativas
excludentes. Ao impugnar o exercício da violência por parte do Estado, estes advogados
defensores de presos políticos apelaram à linguagem dos direitos humanos e fizeram uso das
instâncias internacionais dedicadas à sua proteção.
210
2. 13 Epílogo
Com o fim da chamada Revolução Argentina e a volta à democracia em março de
1973, os advogados defensores de presos políticos continuaram sendo alvo da repressão e
testemunhos diretos da mesma. A sede da Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires
foi bombardeada várias vezes e vários de seus integrantes estavam detidos, tiveram que se
exilar, estavam desaparecidos ou tinham sido assassinados.
Assumir estas causas supunha enfrentar situações reais de ameaça, mesmo quando ‘a
ditadura’ já havia terminado. Uma integrante da Gremial detalha algumas delas:
“antes, vos estabas en un café, aparecían [las fuerzas de seguridad], mostrabas tu
credencial de abogado y te respetaban. En cambio, a mi me tocó ir a ver presos
políticos a fines de 1974 a Río Gallegos y me tuvieron con la mecha ahí,
apuntándome [con la pistola] durante media hora antes de dejarme entrar a la cárcel
por más que yo mostré mi credencial (...) A Curuchet, cuando viaja a Río Gallegos
para atender a un grupo de presos, le imputaron ir en un plan para organizar una
fuga (...) En 1974 nosotros dijimos: no se viaja más, no hay garantías, no tenemos
garantías como abogados (...) En esa misma causa estaba Silvio Frondizi (...) pocos
días después lo mataron”
435
.
Nessa época, a Associação já havia deixado de funcionar. A partir de agora, os
próprios advogados defensores tinham se tornado vítimas da repressão e do terrorismo de
Estado. Entre eles, destaca-se o caso de Hipólito Solari Yrigoyen que, por defender dirigentes
gremiais como Agustín Tosco, sofreu vários atentados, foi seqüestrado por forças
parapoliciais e permaneceu durante um tempo sob a condição de desaparecido. Diante desta
situação, foi decisiva a intervenção de figuras e associações internacionais que possibilitaram
sua saída do país. A conjunção da condição de especialista e de vítima, junto com a
participação destes profissionais do direito em redes transnacional de especialistas, é o objeto
do próximo capítulo.
435
Entrevista com Marta Grande, realizada por Laura Saldivia.
211
Anexo 7
Mobilização dos advogados perante o seqüestro do colega Nestor Martins
Fonte: journal La Prensa. 24.12.1970
212
Anexo 8
Reprodução do abaixo-assinado denunciando os procedimentos judiciais
no caso Sánchez
Fonte: Revista Primera Plana. 26.12.1972.
213
Anexo N˚ 9
Reprodução dos conselhos dos advogados dos presos políticos para os militantes
Fonte: Jornal da LADH El Defensor. Novembro de 1971
214
Anexo N° 10
Reprodução do abaixo assinado realizado pela
Comisión de Familiares de Patriotas fusilados em Trelew
Fonte: Revista Militância para la Liberación.
215
Anexo N˚ 11
Reprodução da convocatória dos familiares dos presos políticos a uma greve de fome
Fonte: Revista Primera Plana. Ano 1. Número 12. 09.01.1973
216
Anexo N˚ 12
Matéria no jornal dedicada a ocupação da praça de Maio pelos
familiares do advogado desaparecido Nestor Martins
Fonte: Revista Así. 09.01.1971.
217
Anexo N° 13
Reprodução da convocatória à Terceira Reunião Nacional.
Fonte: Revista Militancia Peronista para la Liberación. 18. 10. 1973.
218
Anexo N° 14
instituição do Prêmio Néstor Marins da Faculdade de Direito de Bs. As.
aos melhores trabalhos acadêmicos.
Fonte: Revista Militancia Peronista para la liberación. Número 1. 18.11.1973.
219
Anexo N° 15
Reprodução de um capítulo do Manual do Oprimido
Fonte: Revista Militancia Peronista para la Liberación. 1973
220
Anexo n˚ 16
Advogados ameaçados
Fonte: Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. Numero 11. Setembro de 1971.
221
Capítulo 3
A organização transnacional da denuncia
e a profissionalização do engajamento militante
222
3. 1 Introdução
Na terça feira 17 de agosto de 1976, cinco meses depois do golpe de Estado, Hipólito
Solari Yrigoyen, defensor do dirigente sindical Agustín Tosco, integrante da Asociación
Gremial de Abogados de Buenos Aires e senador nacional, foi ele mesmo seqüestrado pelas
Fuerzas Armadas e permaneceu em condição de desaparecido durante alguns dias, junto com
outro advogado, também integrante da Gremial e parlamentar, Mario Abel Amaya.
Nas primeiras declarações públicas realizadas pelo governo das Forças Armadas, estas
assinalaram que ambos os dois tinham sido “... seqüestrados por [um] grupo não
identificado...” e que logo da sua “... libertação por autoridades policiais o 30 de agosto de
1976...” forma detidos a disposição do Poder Executivo Nacional por decreto 1831/76 “... em
razão de estar vinculados a atividades subversivas...”. Solari Yrigoyen “... oportunamente vai
ser chamado a comparecer perante os tribunais da Nação”.
436
Enquanto Ricardo Balbín, advogado e máximo dirigente do partido Unión Cívica
Radical ao que pertenciam ambos os detidos, assinalava publicamente que a apresentação de
hábeas corpus em casos como estes não era de muita ajuda, outros agentes sociais iniciaram
uma serie de ações para tentar localizar-lo, em primeiro lugar e logo, conseguir a sua saída do
país fazendo apelo justamente aos recursos do direito nacional e internacional.
Imediatamente de produzida, sua desaparição foi denunciada diante a Embaixada dos
Estados Unidos na Argentina e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A
primeira comunicou a denuncia, por meio de telegrama, ao Secretario de Estado em
Washington. Nesta denuncia pode-se advertir que Solari Yrigoyen aparece definido pela sua
condição de advogado, jornalista, senador e por “... toda uma vida dedicada à defesa dos
direitos humanos e da democracia”.
437
A CIDH interveio rapidamente solicitando informação
ao Estado argentino sobre o paradeiro de Solari Yrigoyen e suas condições de detenção.
Como resultado destas atuações se obteve dos tribunais locais um certificado do Juizado
Federal da Primeira Instancia no qual se colocava de manifesto a arbitrariedade da detenção:
“... o Dr. Solari Yrigoyen não se encontra processado em nenhuma causa em trâmite neste
tribunal, que este tribunal não tem requerido nem tem interesse na sua detenção e que não
436
Em: Resolução N° 18/78 Caso 2088 A. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 1978.
437
Em: Documentos desclassificados do Departamento de Estado dos EEUU. Junho 1977. Minha tradução.
223
existe impedimento nenhum para que ele saia do país (...) se faz constar que o nomeado
profissional foi indagado em (...) na causa N° (...) na qual se ditou o descumprimento
provisional no dia 2 de dezembro de 1976”.
438
Como resultado da ativa intervenção da CIDH, do próprio governo dos EEUU e
também do governo de Venezuela, cujo presidente Carlos Andrés Perez interveio
pessoalmente neste assunto, a junta militar do governo aceito finalmente por um fim à
detenção de Solari Yrigoyen e reconheceu seu direito a sair do país, fato que se produziu no
dia 17 de maio de 1977. Solari Yrigoyen saiu inicialmente como destino a Caracas e em
seguida se reuniu com a sua família em Paris, onde transcorreu o seu exílio. A permissão de
residência na Franca tinha sido gerido perante o governo francês em 1976 por Robert
Fabre, presidente do Mouvement de Radicaux de Gauche (MRG) e integrante da Comision
Nationale Consultative des Droit de l’Homme.
439
.
A complexa rede de relações internacionais que interveio no caso deste advogado
defensor de presos políticos é colocada em destaque por ele mesmo:
“Países como Francia, Finlandia, Gran Bretaña, Venezuela y Estados Unidos se
interesaron oficialmente por mi libertad. También lo hicieron la Internacional
Socialista presidida por Willy Brandt, la Unión Interparlamentaria Mundial,
Amnistía Internacional. Jimmy Carter envió a la Argentina a Patricia Derian, activa
funcionaria encargada de los derechos humanos (…) Edward Kennedy condenó mi
arbitraria prisión desde el senado norteamericano. Pero el hecho determinante fue
la acción del presidente de Venezuela, Carlos Andrés Pérez (…) quien llamó
personalmente por teléfono al general Videla”
440
.
A despeito dos esforços realizados, que incluíram a visita do advogado integrante da
Asamblea Permanente por los Derechos Humanos e dirigente do partido UCR, Raúl Alfonsín
ao penal onde foram trasladados Solari Yrigoyen e Mario Abel Amaya, este último faleceu
antes da sua liberação como conseqüência das torturas aplicadas durante a sua detenção.
438
Ibídem.
439
Em: Le Monde. 11 Mayo 1977. Paris.
440
Reportagem a Solari Yirgoyen. Em: Gabetta, 1983: 216. À Internacional Socialista pertenciam tanto a UCR
quanto o PS francês. O MRG era uma cisão deste ultimo. A Comissão tinha sido criada em 1947 sob a
presidência de René Cassin (presidente também da Liga Francesa pelos Direitos do Homem e do Cidadão) com o
propósito de criar uma organismo consultivo que permitisse avançar numa declaração universal dos direitos do
homem. Esta declaração foi finalmente aprovada em 1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
224
Este dramático episodio nos introduz na rede de relações que vão ser objeto da analise
neste capítulo: advogados argentinos integrantes de novas associações locais de defesa dos
direitos humanos, como a Asamblea Permanente por los Derechos Humanos (APDH, 1975),
advogados argentinos que participaram de associações de direitos humanos criadas no exilo,
como o Groupe d’Avocats Argentins Exiles en France (GAAEF), associações internacionais
de juristas, como a Comissão Internacional de Juristas (CIJ) e organismos interestatais de
defesa dos direitos humanos, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Se estas instancias todas estão envolvidas na denuncia da desaparição de Solari Yrigoyen, o
universo de agentes vinculados ao direito e engajados com a denuncia da repressão na
Argentina inclui também a Comisión Argentina de Derechos Humanos (CADHU, 1976), suas
diferentes filiais em Europa, EEUU e América latina, como a Commission Argentine des
Droits de l’Homme de Francia (CADHU, 1977), o Centro de Estudios Legales y Sociales
(CELS, 1979) e a associação civil Nuevos Derechos del Hombre (1990), criadas ambas na
Argentina a partir de modelos e relações norte-americanos e franceses respectivamente
Neste capítulo vou examinar o universo de agentes e de valores que se constituíram
em volta a causa dos direitos humanos a partir de meados dos anos setenta na Argentina
fazendo um percurso pelas associações civis criadas então e integradas principalmente por
profissionais do direito. Colocarei uma ênfase especial nas vinculações entre estas
associações com a esfera internacional, como uma estratégia chave para iluminar as condições
de possibilidade de um conhecimento experto: a defesa dos direitos humanos. Nesta
conjuntura histórica destaca-se o processo de profissionalização dos militantes pela causa dos
direitos humanos. Produto desta mudança, os advogados defensores de presos políticos vão se
reconhecer e vão ser reconhecidos pelos outros como ‘advogados defensores dos direitos
humanos’ ou ‘peritos em direitos humanos’, categoria utilizada pelas associações
internacionais de juristas para nomear a, até então, defensor de presos políticos Hipólito Solari
Yrigoyen.
Proponho-me apresentar este processo de profissionalização como vinculado a três
processos: a) a inscrição dos advogados locais em redes internacionais de juristas, b) a
confluência da sua condição de profissionais do direito e de vítimas ou parentes das vítimas
da repressão e c) a redefinição do seu engajamento público em quanto ‘peritos’. O mesmo
tipo de práticas de denuncia e de intervenção jurídica já identificadas nos capítulos anteriores
225
vão ser concebidas agora exclusivamente a partir de uma retórica de compromisso com a
defesa do Estado de direito, a democracia e os direitos humanos.
Interessa-me mostrar que esta mudança envolve tanto a definição do lugar do
profissional do direito em vista da posse de um conhecimento experto quanto a transformação
do universo de representações associadas a este novo perfil. Como vai se ver, esta
profissionalização traz consigo uma inovação crítica: a possibilidade de ocupar espaços de
importância dentro da esfera do próprio Estado, já não como fruto do ativismo partidário mas
em função do exercício de um saber específico. Tanto quem se incorporaram recentemente à
causa quanto quem tem sido defensores de presos políticos, são reconhecidos e se reconhecem
em todas estas instancias de atuação pública como ‘advogados defensores dos direitos
humanos’. Estes advogados fazem parte de instituições especializadas na formulação de
políticas públicas a respeito dos direitos humanos como a Comisión Nacional de Desaparición
de Personas (CoNaDeP) ou a Secretaria de Derechos Humanos de la Nación, ambos os
espaços integrados notoriamente por advogados dedicados à defesa de presos políticos no
período anterior.
Esta convergência entre associações de profissionais do direito (locais e
internacionais) e associações de parentes das vítimas é a matriz sobre a qual se constitui o
atual movimento pelos direitos humanos e se consolida esta causa na Argentina. Ela se
fundamenta sobre dos princípios de recrutamento: um principio universal, que é o direito, e
um outro principio particular que é o vinculo do sangue com as vítimas.
A contraposição entre a APDH e o CELS vai me permitir mostrar a significação que
teve esta ultima instituição em todo este processo de profissionalização ao nível local, e a
atuação dos advogados no exílio e sua integração em redes internacionais de juristas vão fazer
o próprio no plano internacional. Mesmo que a sua importância tenha sido reconhecida para
os anos trinta e sessenta, foi neste momento quando se produz uma convergência de interesses
entre profissionais do direito norte-americanos, europeus e argentinos que vai resultar crítica
para o reconhecimento público de uns e de outros e para a transformação do próprio campo
associativo e estatal. Para ilustrar esta dimensão, neste capítulo dedicarei especial atenção a
descrição das missões enviadas à Argentina por diferentes associações internacionais de
juristas, especialmente a realizada pela CIDH. A descrição das trajetórias dos juristas
internacionais engajados nelas e das trajetórias dos defensores de presos políticos
226
transformados em peritos vai me permitir revelar a maneira em que confluem todas estas
dimensões: o capital social e simbólico derivado da condição profissional, a exibição de um
vínculo do sangue com as vítimas e a circulação no espaço internacional.
3. 2 O compromisso com a causa na Argentina
Nesta primeira seção do capítulo, explicitarei as condições que fizeram possível a
conformação de três novas associações de direitos humanos fundamentadas tanto no
conhecimento experto do direito quanto na condição de se reconhecerem seus integrantes,
como vítimas e como parentes das vítimas do terrorismo de Estado. Estas associações foram a
Comisión Argentina de Derechos Humanos (CADHU), a Asamblea Permanente por los
Derechos Humanos (APDH) e o Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS). O propósito
é traçar o itinerário que vinculou aos profissionais do direito argentinos com a comunidade
jurídica internacional e identificar as conseqüências que tiveram estes vínculos nas
transformações do engajamento militante no espaço local.
Poucos meses depois do golpe de Estado de 1976, uma nova convocatória ao
compromisso dos advogados foi formulada pela Asociación Peronista Auténtica de
Abogados. Num comunicado titulado “Os advogados perante a nova ditadura” podem-se
identificar as aspirações dos defensores de presos políticos alinhados dentro deste
agrupamento: “... os advogados não podemos manter uma atitude cúmplice: ou colocamos a
nossa profissão ao serviço dos interesses do povo ou vamos sucumbir ficando ao margem da
gloriosa história de luta de nosso povo”. Para alcançar estes fins propuseram:
“Convocar a un Movimiento Nacional de Abogados en Defensa de los Derechos
Humanos junto con los demás sectores populares, asumir la defensa de la clase
trabajadora y del conjunto del Pueblo denunciando los atropellos de la dictadura,
denunciar la represión y la tortura, reafirmar la vigencia de la Constitución
Nacional, luchar por el libre ejercicio de la profesión y solidarizarse con los
innumerables abogados perseguidos, secuestrados y torturados por el régimen”
441
.
441
Documento. Junio 1976. S/d. Grifos meus.
227
A CADHU (1976-1983) reuniu principalmente aos advogados da Asociación
Peronista e a integrantes da Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires. Na
convocatória, se evidencia a presença de uma linguagem que vincula ‘direitos humanos’ às
‘lutas de nosso povo’. Como vai se ver mais na frente, a linguagem destas associações será
progressivamente depurado da retórica própria da esquerda revolucionaria e inclusive vários
dos seus integrantes abandonarão depois a associação por considerar-la ‘politizada’ demais.
A revista Nuevo Hombre, que servia de tribuna pública para a atividade dos advogados
defensores de presos políticos, havia difundido poucos meses antes do golpe de Estado, uma
outra convocatória pública.
442
. Teve como resultado a formação de uma nova associação civil
que, seguindo o modelo das associações defensoras de presos políticos examinadas nos
capítulos anteriores, aspirou a reunir a um espectro abrangente de profissionais do direito, de
intelectuais e de parentes das vítimas. Trata-se da Asamblea Permanente por los Derechos
Humanos (APDH). Pouco tempo depois, irrompeu no cenário local o Centro de Estudios
Legales y Sociales (1979). Estas duas últimas associações, junto com a Liga, continuam ativas
até hoje e, junto com outras associações integradas por parentes das vítimas, formam o atual
‘movimento pelos direitos humanos’.
443
3. 2. 1 Uma ‘Assembléia’ pelos Direitos Humanos
Em seguida do golpe de Estado de março de 1976 que derrubara à então presidenta
Isabel Perón, um conjunto heterogêneo de ‘dirigentes políticos’, ‘líderes religiosos’,
‘intelectuais’ e ‘juristas de prestigio’ se reuniram no bairro portenho de Flores para integrar a
Asamblea Permanente por los Derechos Humanos (APDH). Nos seus estatutos pode-se
identificar o espírito da convocatória:
“Formular la más amplia y ferviente convocatoria para alcanzar la suma de
todas las voluntades posibles en torno [a la defensa de los derechos humanos] y
ofrecer la APDH como ámbito de encuentro y de dialogo para: a) informar y
alertar a todos los niveles de opinión y decisión (poderes públicos, fuerzas
armadas, medios masivos de comunicación) (...) y a la opinión publica en general
442
Em: Nuevo Hombre. Año 1. N° 4. 18. 12. 1975.
443
Sobre os princípios de constituição deste ‘movimento’ ver: Vecchioli, 2000.
228
sobre los ataques a los derechos humanos y b) promover el cese inmediato de esas
violaciones, su investigación y enjuiciamiento de los culpables”
444
.
A APDH esteve organizada nos seus inícios por um Conselho de Presidência e uma
Mesa Executiva. Seu funcionamento pode-se equiparar ao de um parlamento, quer dizer, um
corpo político e deliberativo. Ao igual que num parlamento, o trabalho dentro da APDH
estava organizado em comissões que cumpriam tarefas específicas como: ‘Vigência dos
Direitos Humanos’, dedicada ao tema das pessoas desaparecidas; ‘Direito a Opção’, orientada
aos casos de presos detidos a disposição do PEN sem processo judicial; ‘Trato carcerário’,
dedicada a tentar melhorar as condições de vida dos presos; ‘Direitos Humanos nas áreas de
cultura, religião, artes, ciências e profissões’, que atendia as situações de censura, perseguição
e desaparição de pessoas ligadas a todas estas áreas; ‘Relações Públicas’; ‘Relações
Internacionais’; ‘Publicidade’ e ‘Finanças’. Os integrantes destas comissões deviam escrever
despachos, relatórios e pareceres. Para isso contavam com a assistência de assessores e
peritos. As propostas de comissão eram logo debatidas em reuniões plenárias e, finalmente,
submetidas a votação por todos os integrantes da Mesa Executiva. Uma vez aprovadas,
estabeleciam a política da associação.
A amplitude da convocatória se propunha como uma estratégia para constituir um
espaço politicamente neutro mas moralmente significativo. Ao se definir publicamente, os
integrantes da associação colocavam em destaque justamente esta propriedade: trata-se de “...
uma Assembléia constituída por pessoas de convicções religiosas, filosóficas, políticas e
ideológicas muito diversas...” mas providas todas de um mesmo atributo: a ‘autoridade
moral’.
445
No contexto de proscrição da vida político-partidaria e de perseguição aos
opositores, a APDH pretendeu fundamentar a sua legitimidade convocando ao espetro mais
abrangente possível de ‘dirigentes políticos’, ‘lideranças religiosas’ de diferentes
congregações (católicas, judaicas e protestantes), figuras acadêmicas e ‘juristas’.
444
APDH. Acta fundacional, diciembre 1975, Grifos meus. Arquivo Memoria Abierta
445
APDH. Carta ao presidente General Jorge Rafael Videla, dezembro de 1976.
229
Tabela 3: listagem dos integrantes da APDH correspondente a seu primeiro ano de
funcionamento
Miembros Fundadores: Alende, Oscar, Alfonsín, Raúl, Bravo, Alfredo, de Nevares, Jaime,
Gattinoni, Carlos, Meyer, Marshall, Moreau de Justo, Alicia, Pantaleón, Rosa
Pérez Esquivel, Adolfo, Perez Gallart, Susana
Mesa Ejecutiva (1976) Aceyedo de Literas, Maria, Bonino, José, de Nevares, Jaime
Etchegoyen, Aldo, Gattinoni, Carlos, Giustozzi, Enzo, Mignone, Emilio, Perez Gallart,
Susana, Perez Esquivel, Adolfo, Pimentel, Eduardo, Westerkamp, José Federico
Na convocatória se convidava a participar em qualidade de cios a “todos aquelas
pessoas que compartilham os princípios enunciados na [Declaração Universal dos Direitos
Humanos] qualquer sejam as suas convicções religiosas e filosóficas, filiação política,
profissão e nacionalidade”.
446
Dentro desta mesma perspectiva ecumênica se delineava a
formação de um Tribunal dos Direitos Humanos em quanto devia se integrar “... por pessoas
de reconhecida trajetória ética e investidas da autoridade moral que emana de uma tal
condição”.
447
Ainda que este Tribunal nunca chegou a se integrar, interessa destacar que foi
justamente esta mesma propriedade a que se reclamou como postulado crítico para recrutar
aos membros da Comisión Nacional de Desaparición de Personas (CoNaDeP, 1983) destinada
a investigar as violações aos direitos humanos produzidas durante a ultima ditadura militar e
criada pelo presidente constitucional Raúl Alfonsín, coincidentemente, um integrante da
APDH e do seu serviço jurídico.
448
O apelo a linguagem dos direitos humanos aparecia, nesse contexto, como uma
estratégia que deslocava o eixo da atenção do ativismo militante as ações executadas pelo
Estado e orientadas a suprimir a oposição. Nos documentos dos primeiros anos, a APDH
excluiu qualquer referencia à atividade política das pessoas às quais se pretendia representar,
procurando com isso transcender as divisões dos dirigentes políticos, assim como também
446
APDH. Estatutos. Artigo 5to. Arquivo Memoria Abierta.
447
Op. Cit. Grifos meus.
448
Nesta primeira política de Estado se somaram vários dos integrantes da APDH, além do próprio Alfonsín
como Raúl Aragon e Graciela Frenández Meijide, entre outros.
230
fazer uso de uma linguagem que, ao se fundar no direito, estabelecesse princípios de adesão
universal.
3. 2. 1. 1 O Serviço Jurídico
Desde a sua criação, a APDH se propus oferecer assessoramento jurídico a quem se
aproximava à instituição para denunciar a prisão ou desaparecimento de um parente. O
trabalho de recepção das denuncias implicava sempre o de orientação e assessoramento aos
parentes.
449
Os integrantes do serviço jurídico da APDH elaboraram um ‘modelo’ de ‘habeas
corpus’ que colocaram a disposição de todos aqueles que necessitaram apresentar esse recurso
dado que os advogados dificilmente aceitavam a assinar-los “devido a que sabiam que os
fiscais tinham instruções de transmitir os nomes dos advogados que faziam os hábeas corpus
aos serviços de inteligência”. “Diante esta situação, a APDH, a LADH e a Comissão de
Familiares de Desaparecidos e Detidos por Razoes Políticas difundiram um modelo de hábeas
corpus que facilitava a tarefa das famílias”.
450
Em estas ações todas, os advogados integrantes
da APDH, ao tempo que ofereciam assistência jurídica, procuravam movimentar a estes
parentes a favor da causa pelos direitos humanos.
449
Mignone, 1991:105.
450
Op. Cit.
231
Tabela N˚ 4: Advogados integrantes do serviço jurídico da APDH
1977 1978 1979
Raúl Alfonsín Raúl Alfonsín Raúl Alfonsín
Augusto Conte Augusto Conte Augusto Conte
Alberto Pedroncini Alberto Pedroncini Alberto Pedroncini
Emilio Mignone Emilio Mignone Emilio Mignone
Roberto González Berges Roberto González Berges Roberto González Berges
Oscar Mancebo Oscar Mancebo Oscar Mancebo
Luis Caeiro
Genaro Carrió
Carlos Fayt Carlos Fayt
Alfredo Galetti Alfredo Galetti
Boris Pasik Boris Pasik
C. Alconada Aramburu
Luís Casiro
Ricardo Cogorno
Laureano Landaburu
G. Furgoni Rey
M.F. Gómez Miranda
Rafael Marino
Ricardo Molinas
J.M. Moners Sans (p)
Carlos Ramirez Abella
Domingo Romano
Fernando E. Torres
232
Para fazer possível a complexa tarefa de assessoria jurídica, os dirigentes da APDH
encarregaram a ‘comissões de nomeados juristas’ a redação de distintos relatórios sobre o
‘estado da situação’ e a elaboração de pareceres sobre as linhas possíveis a seguir ‘desde um
ponto de vista jurídico’.
451
Estes relatórios, que se solicitavam com o objetivo de: “... facilitar
o assessoramento das pessoas que se aproximam à APDH contribuindo com indicações
concretas e práticas”, fixavam políticas dentro da Assembléia. Por exemplo, em relação ao
direito a opção, um destes informes recomendava: “... do inquérito praticado surge que as
autoridades dos estabelecimento carcerários dispõem de formulários que os detidos a
disposição do PEN podem preencher, exprimindo a sua vontade de sair do país...”
452
Estes
relatórios supunham tanto o processamento da informação obtida através do atendimento
direto aos parentes, dos testemunhos recebidos pelo correio, das novidades aparecidas nos
jornais, das ‘trocas de opinião com instituições e personalidades diversas’ quanto do
levantamento de informação por averiguação pessoal em gabinetes oficiais, consulados e
embaixadas. Com referencia ao direito de asilo, por exemplo, se consideravam as alternativas
de possíveis países de asilo. No relatório se recomendava: “... a reação das embaixadas e
consulados é muito cautelosa (...) em alguns países se tem iniciado um processo interno de
caráter legislativo e administrativo destinado a autorizar uma cota de imigrantes argentinos
(...) Mas, uma tal tramitação vai demandar, segundo parece, de bastante tempo (...) Por esta
razão, seria perigoso criar excessivas expectativas” (ibidem). O relatório conclui assinalando:
“Em algumas esferas oficiais se tem sugerido que a Comisión Asesora criada por lei 21.650
tenderia, ao invés, a permitir a liberdade vigiada dos detentos (...) Se sugere, então, que se
formulem petições nesse sentido” (ibidem).
453
Uma das recomendações principais destes informes consistia em: “... tratar de utilizar
as normas ditadas se com elas podia-se conseguir, mesmo que seja indiretamente, alguma
vantagem” (ibidem). Em função deste princípio, as apresentações e demandas à Justiça foram
451
APDH. “Crónica de la Sesión Segunda del Consejo de Presidencia”. Noviembre 1977. Em: Arquivo APDH /
Memoria Abierta.
452
APDH. Despacho de la Comisión 1 sobre el Derecho de Opción. Noviembre 1977. Em: Arquivo APDH /
Memoria Abierta. Grifos meus. O direito a opção aplica-se aos presos políticos a quem se oferece a possibilidade
de sair do país ao invés de permanecer detidos na Argentina.
453
Coincidentemente com esta sugestão, as recomendações feitas por Nuri Albalá no reporte solicitado pela
AIJD estavam dirigidas aos governos estrangeiros e assinalavam a necessidade de conceder em forma urgente os
vistos de ingresso a seus países e que já tinham sido solicitadas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados e que permitiam lhe outorgar ao detido a condição de refugiado e, com isso, sair do país. Vale a
pena salientar que na seleção dos advogados que foram consultados pela APDH importava não o
conhecimento técnico quanto a possibilidade de estabelecer contatos com a esfera governamental ou
internacional.
233
uma das tarefas centrais levada a frente pela APDH. Diante da rejeição sistemática dos
recursos de hábeas corpus de parte dos tribunais, os advogados da APDH começaram a
utilizar estratégias inéditas de aceso à justiça, como foi a de patrocinar apresentações
conjuntas de parentes e amigos das vítimas ante o Tribunal Superior solicitando informações
sobre o paradeiro dos seus parentes. Desde um ponto de vista jurídico, estas apresentações
não tinham valor, no entanto, nas normas processais não estava incluída a possibilidade de um
recurso coletivo e, além disso, estes recursos, mesmo que fossem apresentados em forma
individual, eram rotineiramente denegados pelos tribunais em quanto deviam ser os próprios
envolvidos no caso os que deviam apresentar o reclamo por ‘privação de justiça’, o que de
fato, era justamente um impossível em vista as condições de desaparecidos desta vítimas.
Desde o ponto de vista da APDH, estas apresentações se justificavam porque os
desaparecidos estavam impossibilitados de exercer seu direito em juízo.
Em abril de 1977 se realizou a primeira destas ações coletivas, consistentes na
apresentação de um escrito no qual vários advogados patrocinaram a “parentes e amigos de
pessoas que, trás haver sido detidas por grupos armados que prima facie atuavam em
exercício de uma autoridade, tem desaparecido”. O primeiro destas ‘petições’ foi encabeçado
pela senhora Pérez de Smith, esposa de um dirigente sindical detido-desaparecido, e foi
acompanhado por uma listagem de mais de 400 casos de pessoas desaparecidas. Nele se
solicitou a intervenção do Tribunal Superior de Justiça em quanto estas situações “implicam
um estado de privação de justiça” para quem se encontram aparentemente detidos na
clandestinidade e sem processo judicial. A apresentação se acompanhava também de
referencia de sentenças anteriores do Tribunal e de citações de juristas argentinos de prestigio
como Martín Goicoa e Germán Bidart Campos.
Este primeiro escrito foi respondido pelo Tribunal que se declarou incompetente sobre
a base que: “... não está ao alcance dos juizes resolver a situação que lhe foi solicitada”. A
despeito desta negativa, a APDH considerou este parecer como um triunfo afirmando que
‘esta sentença abre jurisprudência’. Isto porque o tribunal reconheceu, pela primeira vez, que
a situação que era denunciada, “... equivalia a uma efetiva privação de justiça e isso por
causas totalmente alheias às funciones e competências específicas dos magistrados a cujo
alcance não está pôr um fim a aquela situação”. Diante este reconhecimento, o Tribunal livrou
234
oficio ao Poder Executivo com o propósito de pesquisar o paradeiro e a situação das pessoas
envolvidas.
454
A seguinte ação da APDH consistiu em interpor um recurso administrativo também
‘sui géneris’ equivalente ao do hábeas corpus, mas não perante a justiça senão perante o Poder
Executivo Nacional. Neste se solicitava que se removessem todos os ‘obstáculos’ que
impediam a atuação dos juizes ‘com a necessária efetividade que o Direito requer’. Um ano
depois da sentença do Supremo Tribunal de Justiça e da negativa a responder a solicitação de
parte do Poder Executivo, a APDH apresentou uma segunda ‘petição’ coletiva por meio da
qual solicitou à TSJ a sua direta intervenção ‘... para pôr fim a uma situação de privação total
do direito à jurisdição’ que “... outorgue aos beneficiários desta apresentação a tutela
elementar que preserve as suas vidas gravemente ameaçadas e os submeta efetivamente a uma
forma de jurisdição do Estado”.
455
A apresentação não fez eixo na ‘privação de justiça’
como quanto na ‘privação do direito à jurisdição’ como uma forma ‘extrema’ da efetiva
privação de justiça.
456
Nesta apresentação, realizada em maio de 1978, se argüia que:
“... la desprotección de la vida y la prolongada y efectiva privación del derecho a la
jurisdicción en sus formas más elementales deben ser explicadas por el Estado (...)
Ante la situación que denunciamos (...) no existen poderes incompetentes. Todos
ellos, además, están sujetos (...) a la obligación de actuar conforme a los Objetivos
Básicos para el Proceso de Reorganización Nacional, entre los cuales figura en
lugar eminente, la ‘vigencia del orden jurídico’. ¿Puede concebirse acaso tal orden
si los jueces quedan colocados de hecho ante situaciones que ‘no pueden remediar
o, si los poderes políticos no pueden dar una respuesta pública y precisa sobre las
razones de la frustración de sus propios esfuerzos (...) para resolver el gravísimo
problema suscitado? (...) Se trata, en síntesis, de un conflicto entre el Derecho y la
454
Esta apresentação é mencionada no reporte da CIJ de 1978. Em: “Attacks on the independence of judges and
lawyers in Argentina” En: Bulletin of the Centre for the independence of Judges and Lawyers. Vol. 1. 1.
February 1978, pág. 7. Também foi mencionada no relatório que apresentara a CIDH em 1979.
455
APDH. “Petición a la Corte Suprema de Justicia sobre el derecho a la jurisdicción y la protección de la vida”
Em: Arquivo APDH / Memoria Abierta.
456
Estas expressões ‘privação de justiça’ e ‘privação do direito à jurisdição’ supõem, neste contexto, que os
desaparecidos não podiam exercer seus direitos de reclamar pela sua própria situação condição mas tampouco o
podiam fazer seus parentes. Por esta razão se argüia que estavam ‘privados de justiça’. A segunda noção refere
ao fato que os tribunais se declaravam incompetentes sobre a base que a demanda ou denuncia apresentada
perante o caso de um desaparecido não correspondia a sua jurisdição de competência, fato que colocava um freio
ao avance das causas.
235
fuerza alzada contra aquel, entre el Estado y la negación impune del Estado”
(ibídem).
Na reunião plenária do Conselho de Presidência, realizada em setembro de 1978, os
advogados e dirigentes da APDH, Alfredo Galetti e Alberto Pedroncini, sugeriram fazer uma
nova apresentação à Corte Superior de Justiça (CSJ ou STJ em português) que tivesse a
‘adesão de um número maior de danificados’. O Dr. Cherniavsky propus então “... que o
patrocínio letrado alcance a uma quantidade destacável de advogados com o propósito de lhe
outorgar um maior apoio”
457
. Esta iniciativa da APDH foi realizada em forma conjunta com
os advogados integrantes da LADH. Esta nova ‘petição’ conseguiu o apoio de 1221
demandantes relativos a 1542 processos de ‘seres humanos desaparecidos’. Nela se solicitou a
intervenção direta do TSJ para pôr um fim à situação de total ‘privação do direito à jurisdição
das pessoas desaparecidas. Foi nesta última apresentação quando pela primeira vez se
explicitou a responsabilidade de ‘alguma autoridade pública’ no seqüestro e posterior
desaparecimento das vítimas. Perante à sistemática negação dos recursos de hábeas corpus por
parte dos tribunais, a insistência em voltar a apresentar-los era parte de uma política decidida
da APDH: “... repetíamos as apresentações incansavelmente como forma de luta e pressão.
Formou-se uma imensa montanha inútil de papel escrito que cobria os gabinetes dos juizes
para serem inexoravelmente arquivados”.
458
Fazendo parte das tarefas destinadas a convocar a adesão dos parentes das vítimas da
repressão, a APDH escreveu uma carta convocando a se somar à iniciativa das apresentações
coletivas de hábeas corpus. Como se desprende do texto, a carta põe a ênfase na importância
da ação judicial e da convocatória a parentes e advogados:
“Estimado familiar:
La Asamblea Permanente por los Derechos Humanos ha resuelto promover una
nueva presentación directa ante la Corte Suprema de Justicia de la Nación a favor
de los llamados ‘desaparecidos’ (...) Con este propósito se aspira que la
presentación sea firmada por el mayor numero posible de familiares o amigos de
‘desaparecidos’ y de letrados patrocinantes. El escrito será acompañado con
fotocopia de la iniciación del recurso de habeas corpus con indicación del juzgado
y secretaria donde tramitó y de su resultado (...) Mientras que el grupo de
457
APDH. “Reseña de la Reunión del Consejo de Presidencia”. En: Arquivo APDH / Memoria Abierta.
458
Mignone, 1991: 91. Grifos meus.
236
abogados de la APDH elabora el documento, se ha iniciado, por razones de
urgencia la firma de la presentación (...) Si usted esta de acuerdo con esta
iniciativa, le rogamos pase por la Asamblea Permanente cuanto antes...”
459
.
Outra das linhas de atuação desenvolvidas pela APDH foi a de manter entrevistas com
autoridades militares e eclesiásticas com o propósito de obter informação e apóio nas
denuncias. Todas as lideranças entrevistadas receberam uma pasta contendo a informação
sobre as denuncias. Na hora de fazer um balanço dos primeiros dos anos da APDH colocou-se
em destaque justamente o fato de haver mantido “... relações e contatos com as autoridades
governamentais, com as Forças Armadas e de Seguridade, com autoridades religiosas e
culturais, com personalidades políticas e sindicais e com órgãos de opinião pública”.
460
Desde agosto de 1976, todos os anos se realizaram na APDH uns Encontros de
Direitos Humanos. Desde a perspectiva da associação, “... estes seminários constituem um
marco decisivo na luta (...) pela efetiva vigência dos direitos humanos na República
Argentina”. O primeiro destes encontros funcionou a modo de apresentação em sociedade da
APDH e, se convidou a participar do mesmo ao próprio General Videla, presidente da nação.
3. 3. 1. 2 Os direitos humanos como vocação
A participação na APDH era um compromisso público entre muitos outros. Toda a
atividade orientada ao assessoramento jurídico aos parentes das vítimas, ao trabalho com
juristas e peritos, as apresentações judiciais perante os tribunais e gabinetes oficiais, os
seminários, as visitas às autoridade e a redação de comunicados de imprensa era
desenvolvida, principalmente, sobre a base do engajamento voluntário de quem integrava o
serviço jurídico, da mesma forma que fora identificada para os casos da LADH ou da
Gremial examinados nos capítulos anteriores.
Se a primeira vista, o contexto repressivo parecia dispor aos indivíduos à imobilidade
e ao isolamento, agentes sociais com recursos diversos criaram esta ‘oportunidade’ de
459
APDH. Carta a familiares de desaparecidos. Septiembre 1978. Em: Arquivo APDH / Memoria Abierta.
460
APDH. “Dos años de lucha por los derechos humanos”. Diciembre 1977. En: Arquivo APDH / Memoria
Abierta
237
movimentação pública através de relações pessoais previamente constituídas. A APDH foi
montada sobre a base de relações pré-existentes entre dirigentes de distintos partidos políticos,
de distintas congregações religiosas e advogados integrantes da LADH o que tinham
intervindo na defesa de presos políticos. A importância destas relações pessoais parece
sugerida por um dos seus integrantes Emilio Mignone, quando expressou que a APDH foi
integrada por indivíduos “sem representar e pelo geral contra os desejos das organizações
às quais pertenciam”.
461
Se, como afirmava Mignone (1991) quem se juntaram na APDH “...
o fizeram muitas das vezes em contra do mandato dos partidos ou das respectivas ordens
religiosas...” é evidente a importância que tiveram as relações pessoais constituídas por fora
destas fronteiras institucionais.
Este tipo de relações pré-existentes podem se reconhecer entre as lideranças religiosas
que foram ativas na formação da APDH. O vínculo entre o rabino Marshall Meyer e o pastor
metodista José Miguel Bonino, por exemplo, remonta-se aos anos 60 quando o primeiro deles
convocou a representantes do judaísmo, do catolicismo e do protestantismo a participar num
conjunto de atividades ecumênicas no marco do Seminário Rabínico Latino-americano. Este
espaço se institucionalizou logo em 1968 quando juntos criaram o Instituto Superior de
Estudios Religosos (ISER) que se manteve em funções até 1989. Estas relações supunham um
dinâmico ativismo no espaço, tanto local quanto internacional. Bonino, por exemplo, havia
participado em 1961 da II Conferencia Evangélica Latino-americana em Lima, onde foi
detido e também, no encontro de fundação do movimento Teologia de la Liberación em
Colômbia em 1968. Mantinha vínculos com a corrente de católicos nomeada Cristianos por el
Socialismo. Em 1946, era, ademais de vice-presidente da Mesa Executiva da APDH,
presidente do Conselho Mundial de Igrejas de Genebra (1973-1985).
462
Marshall Meyer era
um rabino nascido em Brookling em 1930 e proveniente da poderosa comunidade judaica
norte-americana. Havia chegado à Argentina em 1959, em seguida da sua ordenação. Uma
vez no país criou a Comunidade Bet El, que se transformou na congregação mais importante
de Buenos Aires. Em 1962 criou o Seminário Rabínico Latino-americano, então a única
escola rabínica da América latina. Na Argentina, além de se converter em dirigente da APDH,
criou posteriormente o Movimiento Judio por los Derechos Humanos, junto com o jornalista
Hermann Schiller.
461
Mignone, 1991. cit. En Loverman, 1998: 510.
462
O Conselho Mundial de Igrejas de Genebra é uma instituição criada em Amsterdã em 1948. Reúne
aproximadamente umas 300 congregações protestantes e cismáticas.
238
Quem provinham do mundo do direito o faziam segundo diferentes trajetórias. Alguns
dos advogados que se integraram à APDH pertenciam ao equipe jurídico da LADH, como
Alberto Pedroncini e Jaime Schmirgeld. Outros eram dirigentes políticos importantes como
Raúl Alfonsín (UCR) e deputado nacional, Oscar Alende, (Partido Intransigente), Fernando
Nadra (PC). Emilio Mignone tinha sido funcionário e uma figura reconhecida dentro do
Partido Justicialista, Augusto Conte foi um dirigente da Democracia Cristiana enquanto Boris
Pasik e Alfredo Galetti o foram do PS. Para todos estes profissionais do direito com vários
anos de ativismo partidário, verdadeiros profissionais da política, se somar a um ativismo em
defesa dos direitos humanos era uma motivação importante. Trata-se de indivíduos para os
quais fazer ativismo por uma causa era o que dava sentido a suas vidas e que encontraram na
APDH um espaço a partir do qual seguir militando numa conjuntura de restrição à atividade
político-partidaria, que tinha a marca da implantação do governo militar. A importância que
tinha esta situação como motivação para aderir à APDH se fez evidente quando, finalizada a
ditadura em 1983, a maior parte dos seus integrantes voltaram a atividade política
profissional, chegando a exercer funções de importância no Estado. Entre eles se destaca o
advogado Raúl Alfonsín, quem foi eleito presidente da nação em 1983. Outros, como Simon
Lazara e Augusto Conte, foram eleitos deputados nacionais. Horacio Ravena ocuparia funções
na chancelaria, Norberto Liwski seria designado como Secretario de Desenvolvimento
Humano e Famílio. Outros voltaram a carreira judicial como Héctor Negri, quem seria
nomeado integrante da Corte Suprema de Justicia do estado de Buenos Aires ou José Maria
Sarrabayrouse Varangot, integrante da CSJ do estado de Catamarca.
A vocação de compromisso com a causa pelos direitos humanos requer ser localizada
dentro deste conjunto de outras opções de ativismo partidário. As possibilidades abertas ao
exercício profissional da política conduziram a um deslocamento deste engajamento
vocacional para o mundo dos partidos políticos e o Estado. Neste contexto, poderia se sugerir
que para este tipo de indivíduos, associações como a APDH constituíram uma forma de fazer
política sem necessariamente atuar dentro dos espaços tradicionais de representação (partidos
ou sindicatos). O capital moral acumulado através desta forma de engajamento foi investido
depois na política profissional. Um processo semelhante foi descrito no capítulo anterior
quando no final da ditadura de Lanusse, muitos dos defensores de presos políticos
abandonaram esta atividade para fazer o seu ingresso à política.
463
463
De fato, num comunicado da Gremial, adverte-se sobre a ‘crise da associação’ e da necessidade de definir de
novo os seus objetivos diante desta ‘nova’ fase.
239
A este núcleo inicial de dirigentes partidários e religiosos se somaram, pouco tempo
depois, parentes das próprias vítimas da repressão como Emílio Mignone e Augusto Conte,
Carlos Ramirez Abella, Boris Pasik e Alfredo Galetti, que também reunia a condição de
serem ativistas partidários e advogados de profissão. Enquanto estes parentes e profissionais
do direito tinham uma trajetória construída em volta à política e a função pública, outros
como Graciela Fenández Meijide, mãe de um jovem desaparecido, se apresentava a sim
mesma como alguém que: “... não tinha nenhuma militância política nem vivia num ambiente
politizado. Trabalhava como professora de francês e de espanhol para estrangeiros (...)
comecei a ‘trabalhar’ [na APDH] com muitas dificuldades para compreender de qual partido
era cada quem, decifrar as siglas...”.
464
Para estes parentes, ‘trabalhar’ na APDH foi o que
marcou a sua profissionalização na política. Em seguida da chegada da democracia, vários
foram eleitos para funções parlamentares ou ocuparam importantes funções dentro do Estado,
reivindicando justamente a dupla condição de parente de ativista pelos direitos humanos. Este
foi o caso de Augusto Conte, eleito deputado nacional em 1983 e de Graciela Fernández
Meijide, quem entre 1993 e 2000 viveu de e para a política integrando o parlamento nacional
e ocupando a função de Ministra de Desenvolvimento Social e Meio Ambiente.
Colocando em perspectiva as trajetórias dos diversos integrantes da APDH é possível
reconhecer que as identidades de parente, tima, advogado, dirigentes político ou religioso
não implicavam categorias excludentes. Como se destaca para o caso de Mignone, entre os
dirigentes políticos e advogados que participaram na APDH, muitos mantinham relações de
extrema proximidade com as vítimas e com seus parentes. Inclusive, eles mesmos eram
parentes das próprias vítimas ou haviam sido vítimas diretas da repressão, como foram os
casos de Alfredo Bravo e Adolfo rez Esquivel. A condição de religioso e profissional do
direito também não eram excludentes, como foi o caso dos nomeados Meyer e Bonino e do
bispo católico Jaime de Nevares, integrante de uma família com uma longa tradição de
profissionais do direito e da política, ele mesmo era advogado antes de se consagrara à vida
religiosa.
Como vai se ver nas páginas seguintes, a conjunção destas diferentes propriedades
sociais (como o nculo do sangue com as vítimas, a formação em direito e o compromisso
partidário ou associativo) vão ser chaves na consolidação da causa pelos direitos humanos na
464
Testemunho reproducido em Veiga, 1985: 118.
240
Argentina. Estas condições locais vão se somar às transformações acontecidas na própria
esfera do ativismo jurídico internacional, criando as condições para a transformação dos
defensores de presos políticos em profissionais dos direitos humanos.
3. 2. 2 Um ‘Centro de Estudos’ Legais e Sociais
Quem no final do ano 1978 se reuniram no Centro de Estúdios Legales y Sociales
(CELS) foram inicialmente ‘parentes de desaparecidos’. No contexto do conjunto de
associações defensoras dos direitos humanos que faziam do vínculo do sangue com as vítimas
um elemento crítico da sua identidade pública, os integrantes do CELS, todos eles parentes e
provenientes de associações já existentes de defesa dos direitos humanos, tanto a APDH como
Madres de Plaza de Mayo (1977), vão se identificar no espaço público a partir da referencia
ao direito e a intenção de executar ‘ações rápidas e decisivas’ no âmbito judicial. A definição
deste âmbito como espaço chave para o ativismo se compreende em tanto estes parentes
participavam de outra qualidade comum: sua condição de profissionais do direito. Entre o
reduzido número de fundadores do CELS se encontravam os advogados Emilio Mignone,
Alfredo Galetti, Boris Paski e Augusto Conte.
Na atualidade, este Centro é uma das organizações civis com maior prestigio da
Argentina e é amplamente reconhecida no espaço internacional como o revelam, entre outras
cosas, as distinções que esta instituição tem recebido, sua capacidade crescente para
concentrar o apoio financeiro e a inserção dos seus dirigentes em organizações internacionais
de direitos humanos. Se distingue notoriamente da APDH, um espaço que continuava
recrutando integrantes segundo disposições vocacionais e que tem uma menor presencia
pública, por assumir um perfil claramente profissional. Justamente, o tempo que meia entre o
momento da sua criação e da atualidade vai estar marcado por um processo de crescente
profissionalização dos seus integrantes, como vai se ver, uma propriedade que está
diretamente associada ao lugar dos vínculos internacionais na sua gênesis.
É por esta qualidade que o CELS é reconhecido hoje entre o conjunto de associações
de defesa dos direitos humanos. Entre quem integram este universo, se encontram referencias
ao Centro como uma instituição que surgiu num contexto no qual “... a participação no
movimento de direitos humanos [era até então] militante, voluntarista e até desesperada (...)
241
Os quatro advogados [fundadores do CELS] aportariam a essa militância o profissionalismo,
a eficiência e a destreza para levar essa luta no plano dos tribunais, da eficiência e a destreza
para levar essa luta ao plano dos tribunais, da documentação sistemática e da denuncia nos
foros internacionais”.
465
Seus estatutos definem como uns dos propósitos centrais da
associação o de: “... executar ações administrativas e judiciais destinadas a procurar a
vigência dos princípios de defesa da dignidade da pessoa humana, da soberania do povo, do
bem-estar da comunidade (...) e do meio ambiente” (...) “Assumir a representação de pessoas
ou grupos afetados em causas cuja solução suponha a defesa de aqueles...” e “prestar
assessoramento nestas matérias”.
466
É precisamente neste ponto onde Mignone destaca as diferencias entre o CELS e a
APDH: “A diferencia das [outras organizações de direitos humanos], o CELS não é uma
instituição dedicada ao ativismo nem de tipo representativo sino, também, de prestação de
serviços e de inter-relação”.
467
A experiência da APDH baseada num modelo ‘parlamentar’
de ação foi avaliada como negativa pelos fundadores do CELS, em quanto a existência de
posições encontradas e as dificuldades para chegar a um consenso dificultavam, segundo eles,
o avanço das ações. A adequada prestação de serviços exigia uma resposta rápida, eficiente e
direita desde o plano jurídico. Desde o ponto de vista de Mignone, a forma ‘consensuada’ em
que devia funcionar a APDH obstaculizava a rápida e efetiva toma de decisões:
“Discrepé durante la época de la dictadura con muchas de sus opciones, alcanzadas
por transacción y consenso y ello me condujo a promover en 1979 la creación del
CELS (...) para realizar actividades que la APDH, por las limitaciones de su
heterogénea composición no se decidía a realizar (...) “La fuerza y la debilidad de
la APDH derivaba de su pluralismo. Le otorgaba representatividad social pero
disminuía la rapidez y la energía de su acción, imponiendo transacciones y
consensos” (...). Además, la ambigua actitud de los partidos políticos y, en
particular, del partido Comunista, obligaba a continuas batallas internas contra la
decisión de no responsabilizar directamente a la dictadura castrense”
468
.
465
Luis Brunschtein. Historia de los derechos humanos. Puentes. Dossier 5. Grifos meus. Tanto o autor da
nota, um jornalista parente de uma vítima do terrorismo de Estado, como a revista onde é publicada esta breve
história do CELS, produzida pela Comisión Provincial por la Memória do governo da província de Buenos
Aires, presidida por dirigentes vinculado à associação Abuelas de Plaza de Mayo são figuras e espaços
amplamente reconhecidos dentro do universo da luta pelos direitos humanos.
466
Estatutos del Centro de Estudios Legales y Sociales. 1980. Grifos meus.
467
Mignone: 1991: 106. Grifos meus.
468
Mignone, 1991: 105.
242
O CELS se dedicou especificamente a trabalhar na preparação de casos a serem
apresentados à Justiça segundo uma complexa taxonomia que distinguia entre
‘desaparecidos’, ‘detidos sem processo’ e ‘detidos por delitos políticos’, para lograr a revisão
de condenas ou mortes em prisão ou em situações duvidosas e a desaparição de crianças
entregados na adoção ao pessoal militar logo do seqüestro dos seus pais. A diferencia da
estratégia da APDH que consistia na apresentação de demandas coletivas, para este trabalho o
CELS levou a frente a defesa de casos particulares selecionando-os segundo as condições que
ofereciam para a determinação de responsabilidades, obtenção de sentenças que
estabeleceram jurisprudência e a possibilidade de produzir efeitos gerais em relação à
vigência do Estado de direito.
469
A seleção de casos segundo o modelo do ‘leading cases’ se
fazia levando em conta a existência de provas da participação de agentes das Fuerzas
Armadas e do Estado no desaparecimento a ser denunciado.
470
“Fomos muito seletivos na
convicção que se um caso avançava judicialmente, podia dar lugar a outros”.
471
De fato,
algumas das causas não foram ‘bloqueadas’ pelos juizes e chegaram a Corte Suprema de
Justiça produziram mudanças na jurisprudência. Entre eles, uma nova interpretação sobre o
Código de Processamentos:
“Hasta las primeras presentaciones del CELS, los familiares de desaparecidos no se
podían presentar ante la justicia como querellantes porque según establecía dicho
Código sólo pueden ser querellantes los hijos, padres o cónyuges sólo en caso de
muerte del damnificado. Pero en estos casos, si bien el desaparecido no estaba
muerto tampoco podía presentarse ante los fueros judiciales. El CELS plantea
entonces que la Justicia debe subsanar esta omisión del Código. Con esta
estrategia, el CELS logró que la Cámara de Apelaciones aceptara esa nueva
interpretación. Otra presentación del CELS obtuvo un fallo favorable de la Corte
Suprema de Justicia que admitió como válido la presentación de habeas corpus
acompañados de pruebas. Cuando se presentaba un habeas corpus, habitualmente el
juez peguntaba a los organismos de seguridad si mantenían detenido a la persona
cuya aparición se requería. Como estas dependencias negaban la detención, los
recursos eran rechazados sistemáticamente. Al acompañarse el recurso de pruebas
que testimoniaban quién, cómo y dónde había sido detenido, la Corte resolvió a
favor de varios habeas corpus y ordenó a los jueces investigar paraderos de
469
Veiga, op.cit.:88.
470
Mignone, 1991:107.
471
Mignone, cit. En Veiga, op.cit.:96.
243
desaparecidos. Mediante la intervención del CELS se obtuvo la anulación de varias
sentencias de tribunales militares y la libertad de algunos detenidos”.
472
Segundo a advogada Lucila Larrandart, no caso dos presos condenados pelos tribunais
militares ou detidos a disposição do Poder Executivo, os recursos extraordinários
apresentados pelo CELS à STJ permitiram que esta admitira que o prazo para sua interposição
começara a andar a partir de que se fizera efetiva a defesa, quer dizer, a partir da apresentação
patrocinada pelo Centro. A partir da criação do CELS, começou também uma tarefa de
‘pesquisa’ nos tribunais, tendente a coletar todo indicio ou elemento que pudesse resultar de
interesse para formular as denuncias:
“La estrategia jurídica de llevar a última instancia los planteos y debatir
jurídicamente el andamiaje ilegal construido por la dictadura (...) tuvo como
consecuencia que, lenta pero sostenidamente, se fuera avanzando. En principio,
consiguiendo que el Poder Judicial tuviera que rendir cuentas de las soluciones y,
luego, que tuviera que admitir y pronunciarse sobre planteos que hasta entonces
habían sido rechazados (...) El paradigma de esto fue la denuncia que hicimos de la
complicidad de la Morgue Judicial (...) por donde habían pasado cadáveres de
detenidos desaparecidos. Esto trajo como consecuencia (...) la identificación de
algunos de los inhumados como NN y la devolución a sus familiares”
473
Para esta advogada, especializada em direito penal, a criação do CEL significou a “...
possibilidade de assumir uma ação jurídica como parte do espaço de resistência e de luta
conta a ditadura (...) [então] se dão as condições para começar a usar entre todos os defensores
dos direitos humanos uma estratégia jurídica que complementara a simples denuncia...”.
474
No testemunho de Larrandart, foi então quando:
“… los abogados revalorizamos el plano jurídico (…) desde el CELS se comienza
a trabajar con casos paradigmáticos, se pleitean casos y se siguen hasta las últimas
instancias jurídicas (…) comenzamos a ver que lo importante es enfocar la
denuncia en el plano de lo jurídico y no hacer solo la denuncia pública sino tomar
casos paradigmáticos y seguir la tramitación ante la justicia (…) desde el programa
jurídico trabajábamos sobre varios ejes: los desaparecidos, los presos a disposición
472
Veiga, op.cit.: 95.
473
Lucila Larrandhart. Exposición presentada en el Seminario CELS 20 años de historia. Diciembre de 1999
474
Palestra no Seminario CELS 20 anos de história. Dezembro de 1999. Grifos Meus.
244
del Poder Ejecutivo Nacional y los civiles condenados por consejos de guerra (…)
trabajábamos con beas corpus transformándolos un poco en una causa, o sea,
pedíamos que se abriera prueba, se abría prueba, y así seguíamos. Y si terminaba
bien, muchas veces el juez cerraba el habeas corpus y formaba la causa por
privación ilegítima de la libertad (…) Entonces ahí se empieza a adelantar
mucho”
475
.
Na atual apresentação institucional do CELS pode-se encontrar um detalhe das suas
atividades prioritárias:
“… el litigio de causas judiciales ante instancias locales e internacionales, la
investigación, la construcción de herramientas para el control y monitoreo de la
sociedad civil sobre las instituciones públicas y la capacitación de organizaciones
sociales, operadores jurídicos, miembros de la comunidad judicial e instituciones
estatales. El CELS desarrolla algunas de estas actividades y estrategias en
coordinación con otras organizaciones nacionales y del exterior”
476
.
Estas estratégias revelam o peso que tinham ao interior desta associação as estratégias
de ação mais propriamente jurídicas (são estas as que definem aos indivíduos como os únicos
sujeitos de direito e é o direito quem define como único sujeito possível ao indivíduo) por
contraste com as ações coletivas propostas pela APDH que, desde o ponto de vista do direito,
eram uma ficção, ‘não tinham valor’ como eles mesmos as qualificaram. Neste contexto,
devem-se entender as referencias ao ‘descobrimento do direito’. Trata-se de profissionais que,
é obvio, conheciam o direito, mas que a partir do CELS privilegiam e aprofundam uma via
de intervenção propriamente jurídica de impugnação ao Estado. Se os integrantes do CELS
participam ativamente do trabalho de amplificação das denuncias tanto no país quanto no
exterior de fato, é esta ação a que os constitui como tais a especialização na intervenção
judicial diferencia a esta associação da APDH e das associações trabalhadas no capítulo
anterior, mas dedicadas a dar visibilidade à causa coletiva. Os esforços de quem integram o
CELS vão na direção oposta: procurar entre os casos que adquiriram uma grande notoriedade,
aqueles que pudessem ser levados a frente na justiça, tentando intervir e produzir mudanças
475
Entrevista realizada por Laura Saldivia a Lucila Larrandhart. Dadas as condições de internacionalização que
marcam o surgimento de uma associação como o CELS, não é simples coincidência que esta definição reproduz
a linha de atuação proposta pelas associações internacionais de juristas que, ao tratar sobre a situação argentina,
colocavam a ênfase na necessidade de aproveitar ao máximo ‘a linha jurídico-legalna denuncia das violações
aos direitos humanos.
476
En: documento en página web:
www.cels.org.ar..
245
nesse campo. Esta perspectiva supõe uma definição do compromisso militante que privilegia a
competência profissional por sobre as qualidades ligadas à notoriedade de quem as enuncia ou
ao coragem e ao heroísmo necessário para assumir os casos. Estas transformações vao ser
descritas em maior detalhe a partir do exame da trajetória de Emilio Mignone.
3. 2. 2. 1 A trajetória de um fundador
Para compreender este deslocamento a estratégias de profissionalização do trabalho na
causa pelos direitos humanos e de internacionalização dos seus ativistas no plano local, vou
realizar uma descrição detalhada da trajetória de um dos fundadores do CELS: Emilio Fermín
Mignone.
477
Quem freqüentaram a Migone nesse anos lembram: “... na sala da sua casa foi
criado o CELS (...) foi ali que se fez a coleta de dinheiro e de assinaturas para financiar a
publicação de um abaixo-assinado”.
478
Um percurso pela trajetória de Mignone permitirá reconhecer as propriedades sociais
reunidas numa figura que, com anterioridade ao golpe de Estado de 1976, mantinha vínculos
com altos círculos militares, eclesiásticos, políticos e acadêmicos locais e internacionais. Pai
de cinco filhos, o golpe de Estado de 1976 vai significar um momento de dramática inflexão
na sua trajetória pessoal e profissional:
“El 14 de mayo de 1976 (...) cinco hombres fuertemente armados con granadas y
ametralladoras irrumpieron a las cinco de la madrugada en el departamento donde
todavía vivo en pleno centro de Buenos Aires. Varios automóviles y varios otros
efectivos, igualmente armados, esperaban en la puerta (...) Los intrusos
manifestaron pertenecer al ejercito argentino (...) Permanecieron cuarenta minutos
dentro de mi casa (...) En un primer momento pensé que me buscaban a por
haber ejercido hasta el 24 de marzo de 1976 el rectorado de la Universidad
Nacional de Luján y encontrarse detenidos en ese momento varios colegas.
Preguntaron, en cambio, por mi hija Mónica, que dormía, y se la llevaron en
presencia de su madre, sus hermanos y mía. (...) Le dimos un beso y nunca más la
vimos. Pasó a ser uno de los millares de ‘desaparecidos’ que las Fuerzas Armadas
477
Emilio Mignone faleceu no ano 1998, razão pela qual a sua trajetória foi reconstruída, principalmente, a partir
dos testemunhos que ele mesmo deixou no seus livros.
478
Em: Ripa, 1999: 217.
246
dicen haber eliminado en arduos combates de una guerra terrible (...) A partir [de
la desaparición de mi hija] mi departamento en Buenos Aires se constituyo en un
centro constante de contactos y reuniones, pues las organizaciones de derechos
humanos, excepto la LADH, carecían de oficinas”.
479
Emilio Femín Mignone nasceu em 1922 na localidade de Luján, no estado de Buenos
Aires, uma cidade localizada a 70 km. da Capital Federal e sede de uma importante basílica e
centro de peregrinação espiritual mais importante da Argentina.
480
Seu pai, Emilio Mignone,
foi um homem de negócios e sua mãe, Candelária Mujica, era professora na escola. Como já
reconheci nos capítulos anteriores, muitos dos profissionais do direito que assume
publicamente o compromisso na defesa de presos políticos estão desprovidos de um capital de
relações importantes dentro do mundo do direito. Trata-se, ao igual que Mignone, de
indivíduos que não pertenciam ao establishment de famílias e de escritórios tradicionalmente
ligados ao direito.
Um outro traço que marca a fogo a posição de Mignone no mundo dos direitos
humanos na Argentina e que permite compreender os vínculos deste com associações
internacionais de juristas, como a CIJ criada logo depois da Segunda Guerra Mondial com o
propósito de denunciar a infiltração comunista no contexto da chamada Guerra Fria, foi a sua
formação e importante ativismo católico. Esta referencia a sua trajetória é chave para
compreender as possibilidades abertas a uma figura como Mignone e a um espaço como o
CELS. Mignone egresso em 1940 com o melhor promédio de um colégio dirigido por pais
maristas, o Instituto Nuestra Señora de Luján. Entre 1944 e 1947, durante seus anos como
estudante universitário, participou ativamente na associação Juventud de Acción Católica,
integrando seu Conselho Superior. Mesmo que estas relações tiveram a sua origem na
juventude, eles foram continuados e atualizado ao longo de toda a sua trajetória profissional e
acadêmica, ao ponto que, quando se produz o golpe de Estado, ele se encontrava participando
dos encontros promovidos pelo Consejo Episcopal Latinoamericano (CELAM), como
reitor da Universidad de Luján. Foram estas relações em volta ao espaço da igreja católica as
que possibilitaram que, durante a ditadura militar, fosse recebido três vezes pelo núncio
479
Mignone, 1991: 92 y 94. Vale la pena salientar que Mónica Mignone continúa desaparecida.
480
A importância da Basílica de Nuestra Señora de Luján se evidencia no fato de que foi visitada pelo Papa Juan
Pablo II durante a sua visita a Argentina em 1982.
247
apostólico Pio Laghi e foram essas mesmas relações as que o orientaram no inicio à APDH e
ao ativismo na causa pelos direitos humanos.
481
Definindo-se como um “típico produto da Asociación de los Jóvenes Acción Católica,
o próprio Mignone destacava a importância destes vínculos prévios:
“Una de las primeras personas con quien procuramos establecer contacto fue con
Monseñor Tortolo (…) había sido Vicario General de la diócesis de Mercedes (...)
era en aquel momento Arzobispo de Paraná, Vicario de las Fuerzas Armadas y
Presidente de la Conferencia Episcopal Argentina (...) era amigo y consejero de
Videla y Agosti (...) La relación de mi esposa y mía con Monseñor Tortolo venía
de la década de 1940, cuando ambos militábamos en la Juventud de Acción
Católica en la ciudad de Lujan, en jurisdicción de la diócesis de Mercedes (...) Al
regresar de América del Norte, en un viaje a Entre Ríos en 1968, lo visite con mi
familia (...) [volví a encontrarme con él ] pocos días después de la detención y
desaparición de mi hija, en el local de la Conferencia Episcopal junto con un grupo
de padres y madres de otros ‘desaparecidos”.
482
Estas convicções distanciavam a Mignone da LADH e da própria APDH, onde
também participavam integrantes do PC. Tanto Mignone quanto Galetti e Conte, todos
integrantes da APDH, tinham um forte ativismo católico. Mignone expressa em uma das suas
publicações quais eram as suas expectativas a respeito do papel da Igreja Católica durante a
ditadura: “Se a hierarquia católica se houvesse decidido a defender a dignidade da pessoa
humana com métodos efetivos e não com inócuas declarações abstratas, sua participação na
APDH não houvesse sido questionada ou se houvesse criado uma instituição diretamente
dependente da Igreja como a Vicaría de la Solidaridad em Chile”.
483
Estas expressões sugerem, como o mesmo Mignone o explicita no seu livro, que as
relações entre alguns setores da APDH, especialmente os dirigentes ligados ao PC e os
representantes da igreja católica não sempre foram harmônicas e que os representantes da
igreja não tinham capacidade suficiente para impor seus pontos de vista. Segundo Mignone, o
481
Ele mesmo frisava que: “… a mediados de 1976, para entrar em contato com [a APDH] escrevi ao obispo
Gattinoni”. Em: Mignone, 1991: 104.
482
Mignone, 1999, Pág. 20, 21 y 22, Grifos meus.
483
Mignone, 1991: 102. Grifos meus. Segundo Mignone, De Nevares, presidente de honra da APDH, tinha
proposto a criação de uma vicaria da solidariedade sobre o modelo de Chile mas a iniciativa foi rejeitada pelo
voto da maioria dos prelados da nunciatura portenha. Em: Mignone: 1999: 146.
248
PC procurou sempre o controle da APDH, fato que se fez efetivo na incorporação ao seu
Comitê Executivo do advogado e dirigente do PC e da LADH, Jaime Schmirgeld. As tensões
chegaram inclusive a separação de uma das suas militantes, Eugenia Manzanelli: “... esta
militante foi destinada pelo partido a outras tarefas devido a suas dificuldades com outros
setores políticos e ideológicos” (op.cit.).
Desde o ponto de vista de Mignone, a LADH constituía uma associação satélite do PC
e, por isso, “... viu sempre diminuída a sua autoridade e objetividade por se negar a
reconhecer as violações aos direitos humanos cometidas na União das Repúblicas Soviéticas
Socialistas e em outros países do denominado socialismo real e do Terceiro Mundo”.
484
Na
perspectiva de Mignone, mesmo que a “... presencia comunista foi sempre minoritária e
discreta, foi influente, o qual dava lugar a permanentes discussões em razão da atitude
ambígua a ditadura militar que, as vezes, chegava ao colaboracionismo.
485
Segundo o ponto de vista do fundador do CELS, os compromissos entre o PC e as
Forças Armadas fizeram que, durante muito tempo, dentro da APDH, se pensara que as
desaparições respondiam a ‘excessos’ de alguns integrantes das forças repressivas. “Por isso
se solicitava ‘respeitosamente’ às autoridades que pesquisaram o paradeiro dos detenidos-
desaparecidos (...) e se sancionara aos ‘terroristas de ambos os signos’. Os documentos
emitidos pela APDH eram, em termos de Migonen, extraordinariamente cautelosos. Se “...
atuava como si a ditadura militar não fosse a responsável da situação que se vivia, colocando
a responsabilidade no terrorismo da ultra-esquerda e da ultra-direita, acreditando na
intervenção retificadora da junta militar...” (op.cit.). A posição assumida por Mignone, Conte,
Galotti e Pasik se distanciava da estratégia de um setor da APDH:
Nunca dudé de la responsabilidad del gobierno de las Fuerzas Armadas en las
denominadas desapariciones y tempranamente llegué a la conclusión que formaba
parte de una planificación cuidadosamente elaborada. Como todo los familiares de
detenidos-desaparecidos guardaba en el fondo de mi corazón la esperanza de un
484
Mignone, 1991: 101. Esta ação de denuncia está na origem de várias das associações internacionais de juristas
e de direitos humanos como a CIJ e Anistia Internacional que, ao longo dos seus primeiros anos, receberam com
este propósitos fundos da CIA. Em: Dezalay y Garth, 2002.
485
Mignone, 1991: 102. Por meio deste termo acusatório Mignone se refere à posição do PC ao longo da
ditadura. Por causa de fortes interesses econômicos que se criaram entre Argentina e a então URSS, o PC tendeu
a obstaculizar as denuncias internacionais contra a junta militar. Na Comissão de Direitos Humanos da ONU,
por exemplo, os representantes de Cuba votaram sempre em contra de aplicar sanções ao governo argentino
como conseqüência das graves denuncias de violações aos direitos humanos.
249
reencuentro, pero al poco tiempo llegué a la conclusión que no existían los
ansiados campos de concentración (...) Esto [hizo] que me formara muy pronto una
interpretación correcta de los mismos, conduciendo a la elaboración, junto con
otros compañeros, de la teoría que más adelante, ante la imposibilidad de
impulsarla en otras organizaciones, nos impulsó a crear el CELS y a exponerla
públicamente”.
486
Mignone fez seus estudos de direito na Universidade de Buenos Aires entre 1944 e
1947. Começou sua atividade como professor desta universidade recém-formado. Naquela
época se desempenhou como professor de política educacional, filosofia e religião católica
num colégio secundário. Nos anos cinqüenta, quando o golpe de Estado de 1955 derrubou ao
governo de Perón, Mignone se viu obrigado a deixar a função pública (era Director General
de Educación) e voltou a atividade acadêmica. Foi professor de História Argentina
Contemporânea no Instituto Autônomo del Profesorado Secundário del Consejo Superior de
Educación Católica e professor de direito político na Universidade Católica de Buenos Aires
desde 1960. Depois de um outro período dedicado à função pública, entre 1971 e 1973 voltou
à atividade acadêmica e interveio como pesquisador e diretor do Instituto de Estúdio de la
Ciência Latino-americana, que pertencia a Universidad del Salvador, uma entidade
dependente então da Compañia de Jesús. Quando finalizou a ditadura do General Lanusse em
1973, Mignone participou da criação da Universidad de Luján, onde assumiu como reitor, até
que foi deixado cessante logo depois do golpe de Estado de 1976. Nesses anos de exercício
profissional, a atividade acadêmica ocupou um espaço importante, mesmo que esteve ligada
especialmente aos períodos de proscrição política. Outro elemento que se deriva da sua
trajetória é que na maturidade do seu desempenho acadêmico, Mignone continuou fortemente
ligado ao circuito da igreja católica.
487
486
Mignone, 1991: 95.
487
Esta qualidade a respeito da relação entre a política e o campo intelectual na Argentina já foi identificada e
examinada em detalhe por F. Neiburg: nos períodos de proscrição, o seja quando alguns indivíduos perdem
espaço na política, então se deslocam ao mundo acadêmico. Na realidade, se dedicar a academia (se preparar
para voltar depois à política em condições mais favoráveis) é uma forma de fazer política por outros meios. Em:
Neiburg, 1998. Estes deslocamentos parecem seguir a mesma lógica se examina-se a relação entre a política e o
ativismo na causa pelos direitos humanos, como mencionei antes a respeito dos integrantes da APDH a partir
de 1983 ou das associações como a Gremial em 1973 (duas datas que marcam o fim de governos ditatoriais). O
declino no compromisso com os direitos humanos se insere neste contexto maior de oportunidades. Isto não
parece acontecer, não obstante, em relação ao CELS que, em democracia, tem logrado não manter seu nível
de ativismo mas também incrementar-lo exponencialmente. A profissionalização do trabalho de defesa é uma
das chaves que da conta desta diferencia.
250
Emilio Mignone exerceu em forma privada a profissão de advogado durante breves
intervalos tanto na cidade de Buenos Aires quanto em Mercedes, localidade do estado de
Buenos Aires, atuando como síndico da Sociedad de Electricidad de Luján (1949-1952).
Contudo, foi o exercício da função pública o que constituiu um dos elementos centrais da sua
trajetória. Sendo estudante universitário e, a despeito do fato que nesses anos, uma parte
significativa dos estudantes havia assumido uma forte oposição ao governo de Perón,
Mignone afiliou-se ao partido peronista e começou a se desempenhar nos Tribunais de
Trabalho. Em seguida, em 1948, assumiu como Diretor Geral de Educação do estado de
Buenos Aires, onde permaneceu até 1952. Logo, entre junho de 1969 e maio de 1971,
acompanhou desde a gestão pública ao governo da Revolução Argentina, iniciado pelo
General Onganía. Neste período foi Subsecretario de Educação da Nação. Produzido o golpe
de Estado de 1976, e poucos dias antes da desaparição de sua própria filha (14.05.1976),
mantinha uma relação de estreita proximidade com o novo governo. Como ele mesmo
descreve:
“En los primeros días de abril de 1976 fui invitado a una recepción organizada por
la representación del Banco Interamericano de Desarrollo (BID) con motivo de la
llegada de una misión financiera. Predominaban en el encuentro los funcionarios de
la nueva administración (...) Al encontrar a un amigo, el economista Carlos
Brignone me acerque a él. Me presentó a su interlocutor. Era Walter Klein, padre
del segundo hombre en el Ministerio de Economía”
488
.
Esta experiência na função pública lhe permitiu acumular um importantíssimo capital
de relações. Como adverte um jornalista e parente de desaparecidos: “... como funcionário,
havia conhecido os labirintos do poder e seus personagens. As duas coisas lhe serviram na
488
Mignone, 1999, Pág. 20. Carlos Brignone, identificado por Mignone como o seu amigo pessoal, havia sido
asesor no Ministerio de Economia durante a Revolução Libertadora que derrubou a Perón em 1955. Compartia
com Mignone uma trajetória internacional. Tinha feito estudos de pós-graduação em Harvard. Em 1971 tinha
assesorado ao General Lanusse na elaboração do seu programa econômico e, a partir do golpe de Estado de
1976, atuou como assessor do ministro de economia Adalberto Krieger Vasena, a quem conhecia desde os
anos 50 quando ambos foram parte do governo que liderou o general Aramburu trás o derrubamento de Perón.
Estas observações permitem relativizar as oposições taxativas na maneira em que se representam os diferentes
bandos na política nacional. No lugar de uma incisão, deveríamos reconhecer que existem lugares mais cinzas.
Mignone, que era peronista, tinha vínculos de amizade com integrantes da Revolución Libertradora que derrubou
a esse mesmo governo em 1955. Isto mesmo havia sido identificado entre os advogados e profissionais da
política descritos no capítulo 1. O golpe de Uriburu não dividiu à sociedade em dos bandos opostos, já que
existiram várias incorporações de quadros do PS ao governo de Justo e conservadores junto com radicais e
socialistas formaram até uma aliança eleitoral.
251
procura da sua filha Mônica para chegar a generais, almirantes e bispos”
489
. De fato, pouco
tempo depois de produzida a desaparição da sua filha, Mignone conseguiu se entrevistar com
figuras chaves das Forças Armadas como o próprio almirante Eduardo Massera, integrante da
Junta Militar de governo e comandante em chefe da Marinha de Guerra. Reuniou-se também
com o almirante Oscar Montes, chefe de operações navais e posteriormente Ministro de
Relações Exteriores, e com o almirante Bouhier, com o general José Antonio Vaquero,
subchefe do Estado Maior do Exército, com o general Jorge Olivera Rovere e com o coronel
Roberto Roualdes, respectivamente segundo comandante e chefe de operações do Ier. Corpo
do Exército. Participou também de uma recepção em Washington na embaixada argentina
onde se entrevistou informalmente com o capitão de navio Fracassi, ajudante direto de
Massera.
A proximidade com este universo de relações vai além da sua atuação pública. Elas
também faziam parte do seu mundo privado de relações: entre as amizades da sua filha
Mônica se encontrava a filha de um capitão de navio, ao mesmo tempo, cunhada de um
almirante. “Sendo estudante secundária, participava em missões de promoção humana, social
e religiosa na Patagônia”. Ali “... compartiam tarefas de conscientização e promoção social,
religiosa e política na Parroquia Santa Maria del Pueblo, situada numa favela de Flores
Sur”.
490
Estas missões na Patagônia estavam dirigidas justamente pelo advogado, dirigente da
Igreja Católica e futuro integrante da Asamblea Permanente por los Derechos Humanos, o
bispo Jaime de Nevares.
O último elemento decisivo na sua trajetória e na compreensão das possibilidades
abertas a uma associação como o CELS foi a inserção de Mignone no espaço internacional.
Entre os anos 1962 e 1967 iniciou a sua carreira neste espaço, atuando no marco da chamada
‘Alianza para el Progreso’ como chefe da Divisão de Projetos do Departamento de
Cooperação Técnica da Organização de Estados Americanos (OEA), motivo pelo qual residiu
em Washington durante esses quatro anos. Ao retornar à Argentina, os vínculos criados
489
Em: Luis Bruschtein “Para recordar a um luchador”. Página/12. 27 de dezembro de 1998. Todos estes
contactos não foram suficientes, contudo, para salvar a vida da sua filha.
490
Mignone, 1999. Sua filha parecia continuar participando dos interesses e da esfera de relações do seu pai.
Mantinha vínculos com a igreja, onde tinha uma participação ativa como missioneira laica. Se havia formado
como psico-pedagoga na Universidade do Salvador, onde seu pai era professor e seu círculo de amizades incluía
a filhas de militares e pessoas ligadas a igreja. Pela sua vez, trabalhava como professora na Universidade
Nacional de Luján, onde seu pai era reitor. Também militava na Juventud Peronista. Ao se referir a sua filha,
Mignone detalha que ambos “... colaborávamos com a cooperativa de vivendas Madre del Pueblo, que levava
construído já três bairros” na favela do Baixo Flores (ibidem 152).
252
durante a sua permanência em Washington se prolongaram que Mignone integrou o
Conselho de Administração do Latin American Scholarship Program (LASPAU)
491
e, a partir
do golpe de Estado de 1976, atuou como pesquisador e diretor da sede de FLACSO em
Buenos Aires.
A intervenção de Mignone nesta esfera internacional ligada à educação parece
corresponder-se com o processo mais general identificado por Dezaley e Garth de decidida
inversão dos EEUU orientada a alcançar reformas educativas em América latina. Elas se
concentraram em melhorar a qualidade das disciplinas científicas locais em nome da
modernização e do desenvolvimento econômico. Nos EEUU, estes espaços foram
preenchidos por uma nova geração não necessariamente recrutada da elite dirigente
tradicional dos grandes advogados de empresas de Nova York. Tratava-se de um segmento da
profissão jurídica que não dispunha de um capital herdado no mundo do direito, fato pelo qual
privilegiou a sua competência profissional.
492
Na América latina, aqueles indivíduos que
estavam desprovidos de um capital social e familiar que lhe permitira se deslocar nos círculos
tradicionais do poder eram potencialmente quem podiam tirar maior proveito destas novas
oportunidades de carreira. Desde a perspectiva dos EEUU, estes programas procuravam
combater o comunismo por meio da introdução de idéias e tecnologias que conduziriam ao
desenvolvimento econômico, evitando o crescimento da esquerda. A trajetória de Mignone
parece se corresponder inclusive com o paradoxo que destacam estes autores referido a que
muitos destes promotores da Alianza para el Progreso nos países do Cono Sur terminariam
sendo rotulados de comunistas pelos regime militares que assaltaram o poder nos anos
setenta.
493
A criação de uma organização como o CELS deve ser compreendida como resultado
da extraordinária conjunção de propriedades sociais reunidas nas trajetórias dos seus
fundadores, principalmente de Emilio Mignone, e uma conjuntura internacional definida pela
transformação das associações vinculadas à defesa dos direitos humanos. A trajetória de
Mignone combina experiência em gestão, pertença ao mundo acadêmico, ativismo político e
fortes convicções católicas e anti-comunistas. Esta conjunção fez possível combinar as
estratégias de internacionalização dos profissionais do direito locais com as estratégias de
491
LASPAU é uma organização não governamental filiada à Universidade de Harvard e orientada ao desenho e
desenvolvimento de programas acadêmicos e profissionais para residentes do continente americano.
492
Dezalay y Garth, 1998a.:29
493
Dezalay y Garth, 2002: 35 y 48.
253
profissionalização das associações internacionais de juristas. Emilio Mignone seria uma figura
chave na articulação deste grupo de profissionais do direito com as redes internacionais de
denuncia e na consolidação de um perfil profissional para o CELS. Segundo Dezalay e Garth,
o movimento internacional de direitos humanos é o produto direto da vinculação entre
profissionais do direito com um perfil semelhante ao de Mignone e um grupo de recém-
chegados ao campo do ativismo internacional, engajados inicialmente com o desenvolvimento
do Terceiro Mundo e a luta contra o comunismo.
494
3. 2. 2. 2 Os direitos humanos como profissão
Segundo Nicolas Guilhot, “... nada testemunha melhor este fenômeno da
profissionalização do ativismo na causa pelos direitos humanos que os esforços das
associações civis dos paises centrais por criar associações equivalentes no exterior”.
495
Foi este o fenômeno que esteve presente na gênesis desta instituição, o CELS, cujo
nome imita a uma associação dedicada ao direito de interes público nos EEUU, o Center of
Legal and Social Policy, criado por Leonard Meeker em Washington. O engajamento destes
juristas americanos deve-se compreender como parte dos princípios de legitimação dos
profissionais do direito nos EEUU, que combina a dedicação ao direito corporativo com o
direito em favor dos mais necessitados. Segundo Dezalay e Garth, “... se aspira a que um
advogado de empresas, que pretenda seguir uma carreira ao interior da elite, invista em
promover serviços jurídicos para os mais necessitados...”.
496
Este é justamente o perfil de
Meeker, quem combina uma posição dentro do mundo jurídico, da academia e da política.
Meeker era um advogado que tinha sido diretor de um importante estudo jurídico orientado ao
direito de interes público nos EEUU, ex embaixador em România e, justamente na época que
entrou em contato com Mignone, era assessor legal do Departamento de Estado, função que
desempenhou até mediados dos anos oitenta.
494
Op. Cit. : 48.
495
Em: Guilhot, 2001. op.cit.
496
Dezalay e Garth, 2002, op.cit.
254
A despeito das diferenças entre os perfil profissionais de ambos os juristas, a retórica
dos direitos humanos os vinculou de maneira perfeita. Esta associação internacional incidiu na
definição do perfil do CELS como na sua orientação e estrutura.
497
A participação nestas
redes esta entre as condições que deram origem ao CELS. A sua criação já foi anunciada no
relatório de novidades que a embaixada de EEUU enviava semanalmente ao Secretario de
Estado dos EEUU. Neste relatório pode-se ler:
“Un grupo de abogados, liderados por Augusto Conte McDonald y Emilio
Mignone, han abierto el 4 de julio [de 1979] un estudio jurídico llamado Centro de
Estudios Sociales y Legales, CELS. Una oficina ha sido alquilada y amueblada en
las proximidades de los tribunales en el centro de la ciudad de Buenos Aires. Doce
abogados y paralegales han comprometido su trabajo voluntario en acciones
relacionadas con derechos humanos y otro tipo de casos como cuestiones
ambientales y procedimientos criminales, para los cuales es difícil obtener
representación legal dado la escasa popularidad de los casos. Los fondos para el
Centro han sido facilitados por la visita del embajador Leonard Meeker en los
primeros días de mayo del presente año, con fondos obtenidos por su propia
fundación para la ayuda de asociaciones de derechos humanos”
498
.
O termo ‘centro de estudos’ para nomear a esta associação defensora dos direitos
humanos aparece como uma novidade e está ligada à intenção de qualificar sob a categoria
‘conhecimento experto’ ou ‘atividade acadêmica’ o ativismo militante. Este investimento na
credibilidade acadêmica vai fazer parte também das estratégias seguidas por vários dos
defensores de presos políticos que, como vai se ver na análise de suas trajetórias no exílio,
realizaram estudos de pós-graduação em direito internacional. A condição de acadêmicos era
compartilhada por dois dos membros do reduzido número de criadores do CELS: Mignone e
Westerkamp.
Assim como o sugere Nicolas Guilhot para outros casos semelhantes surgidos nos
EEUU, a atribuição desta condição de ‘Centro de Estudos’ pretende conferir um título de
497
Vale a pena Salientar que este mesmo fenômeno foi identificado por Fernando Rojas Hurtado (1992) no seu
estudo sobre a criação de serviços jurídico alternativos em Chile, Peru, Colômbia e Equador.
498
Relatório da situação dos direitos humanos enviado pela embaixada americana em Buenos Aires ao Secretário
de Estado de EEUU. Julho 6, 1979. Minha tradução. Em: documentos desclassificados pelo Departamento de
Estado dos EEUU. Em:
www.desclasificados.com.ar
255
nobreza a uma entidade cuja lógica de funcionamento está por fora da ordem da ciência.
499
A
criação de um ‘centro de estudos’ como o CELS supõe o intento por impor a categoria
‘perito’ num campo até então relativamente alheio do mundo acadêmico, fazendo apelo,
justamente, ao aval das disciplinas científicas conhecidas e reconhecidas: trata-se de um
centro dedicado aos estudos legais e não a uma causa extremadamente politizada, como era
então, a causa pelos direitos humanos. Vale a pena lembrar que nos anos sessenta e começos
dos setenta, as associações internacionais de defesa dos direitos humanos ainda eram
consideradas no espaço público como extremadamente politizadas. Se desde o ponto de vista
da Comissão Internacional de Juristas, a AIJD era pró-soviética, desde o ponto de vista desta
última, a CIJ era a expressão do imperialismo norte-americano. Neste contexto, se inscreve o
surgimento de Anistia Internacional e outras associações do mesmo tipo que tiveram um
crescimento muito importante, embandeiradas na defesa ‘técnica’ e ‘apolítica’ dos direitos
humanos.
O capital de relações internacionais que Mignone havia acumulado ao longo do seu
desempenho acadêmico, profissional e político, constituiu uma condição de possibilidade para
uma associação como o CELS. A experiência de gestão de um programa internacional lhe
permitiu a Mignone reconhecer a importância desta dimensão para o avanço do ativismo
jurídico na causa pelos direitos humanos. Nos anos da sua residência em Washington, havia
estabelecido contatos e amizades pessoais com muitos juristas e homens da política, tanto
local como internacional.
A fins de 1976, havia entrado em contato com a primeira missão de Anistia
Internacional que veio à Argentina. Um dos seus integrantes era justamente um sacerdote
jesuíta norte-americano, Robert Drinan, então deputado nacional pelo partido democrata.
Reiteradas vezes Mignone viajou a Washington, Londres e Genebra. Em Londres foi recebido
por Anistia Internacional e em Genebra pelos integrantes da Comissão de Direitos Humanos
da ONU. Destes vínculos com funcionários do Estado americano resultaram vários encontros
com Patrícia Derian, a responsável de direitos humanos do governo dos EEUU e com o
próprio secretário de Estado, Cyrus Vance. Desde os inícios do governo militar, manteve
freqüentes contatos com funcionários da embaixada dos EEUU perante os quais havia
denunciado o caso da sua filha e com quem mantinha encontros periódicos para lhes informar
499
Ghilhot, 2001.
256
da situação. Mignone era rotulado nos documentos que a embaixada enviava ao Departamento
de Estado como ‘um muito bem qualificado acadêmico que trabalhou para a OEA em
Washington entre 1962 e 1967. Foi o mesmo embaixador que fez o contato com Leonard
Meeker, diretor do Center of Legal and Social Policy, do qual o CELS obteve financiamento e
inspiração:
Este contato resultaria crítico na criação do CELS:
“En abril de 1979, la Association of the Bar of the City of New York
(Colegio de Abogados de la Ciudad de Nueva York) envió a la Argentina una
misión (…). El impulso para el envío de la delegación provenía del entonces
naciente Lawyers Committee for Human Rights, bajo la animación de su director
ejecutivo Michael H. Posner. Tenia por objeto averiguar la veracidad de las
denuncias sobre violaciones a los derechos humanos y las trabas al ejercicio de la
profesión de abogado en la Argentina. Se trataba de un conjunto de distinguidos
letrados del foro neoyorkino, algunos de ellos miembros de prominentes estudios y
vinculados a empresas multinacionales. Por esa circunstancia el embajador de la
dictadura militar Argentina ante la Casa Blanca, Jorge Aja Espil, aceptó la
propuesta de la visita considerando, equivocadamente, que dicha condición
garantizaba el apoyo a un régimen vinculado con los grandes intereses económicos
y con la oligarquía financiera y forense local. No contaba con la probidad y
adhesión a los valores de la dignidad humana de los integrantes de la misión. En
siete días la delegación cumplió una labor excepcional. (...)
Me tocó acompañar y orientar, junto con otros abogados con quienes
estábamos formando el CELS, a los integrantes de la misión. A lo largo de esas
conversaciones se fue gestando la idea de lo que seria nuestra institución. (...).
Poco después arribó a Buenos Aires el abogado estadounidense Leonard Meeker.
Retirado como director de la asesoría jurídica del Departamento de Estado y ex
embajador en Rumania, Meeker concentraba su actividad en el Center for Legal
and Social Policy, ubicado en Washington D.C. y dirigido a promover causas
judiciales para evitar abusos contra personas y el medio ambiente. Nos sirvió de
inspiración para la labor proyectada y para nuestro nombre y como su institución
contaba con algunos fondos para proyectos en el Tercer Mundo, nos proporcionó
los primeros y valiosos recursos para iniciar nuestra tarea (…) Finalmente la
iniciación del CELS se encuentra íntimamente ligada con la CIDH de la OEA (...)
257
su secretario ejecutivo era un antiguo amigo mío, el diplomático y profesor
universitario chileno Edmundo Vargas Carreño”
500
.
Neste relato, Mignone faz referencia a rios dos pais fundadores das associações de
direitos humanos norte-americanas. Estes pertenciam a pequena elite de advogados de
negócios que, pela sua vez, eram parte do establishment da política exterior de fines da
Segunda Guerra Mundial. Segundo Dezalay e Garth, estavam todos orientados ao mesmo
objetivo: a luta contra o comunismo. Este mesmo perfil se continuou durante a administração
Kennedy e chegou a seu fim nos anos sessenta. Neste momento fizeram sua chegada um
segmento de recém-chegados ao mundo do direito, desprovestes de uma herança de relações
sociais e familiares dentro desta elite de juristas e que fizeram apelo a sua competência
profissional como principio de legitimidade. Estes juristas deslocaram aos notáveis do direito
da CIJ e criaram associações novas como a mencionada por Mignone, o Lawyers Comitê for
Human Rights. Foi nesse momento quando se originou o processo de profissionalização do
engajamento militante em estas associações internacionais.
501
Estas fortes ligações com a esfera internacional se traduziram na afiliação do CELS à
Comissão Internacional de Juristas e à Liga Internacional pelos Direitos Humanos de Nova
York e na sua atuação como correspondente da Federação Internacional de Direitos Humanos
de Paris (FIDH). Também no apoio financeiro de inúmeras fundações, governos e instituições
acadêmicas como a Fundação Ford, a National Endondowment for Democracy, o Center for
Justice and International Law e as embaixadas de Holanda e Inglaterra, entre muitos outros.
A esfera internacional também foi crítica na possibilidade de financiar todas as
atuações judiciais levadas adiante pelo CELS. O pagamento de honorários profissionais foi
uma condição que distinguiu ao CELS desde os seus inícios, em tanto as outras se baseavam
num engajamento puramente vocacional. Mesmo que os integrantes da APDH também
participaram nos cenários internacionais de denuncia, como foram as sessões na ONU da
Comissão de Direitos Humanos e de outras atividades promovidas pelas associações
internacionais de juristas, e inclusive obtiveram fundos das agencias internacionais, como o
Conselho Mundial de Igrejas entre outras, estes fundos se utilizaram principalmente para
financiar as despesas operativas da APDH, para financiar a publicidade das denuncias e para
500
Mignone, 1991: 109 y 111.
501
Dezalay e Garth, op.cit. : 62 e 66 ao 68.
258
adquirir uma sede própria: “... com os fundos aportados por eles, se adquiriu um escritório na
rua Viamonte e finalmente, se conseguiu comprar o esplendido apartamento da avenida
Callao, todo graças à generosidade do Conselho Mundial de Igrejas e das fundações que
cooperavam com elas.
502
Atualmente, o 99% das pessoas que ‘militam’ na APDH o faz sobre
a base de trabalho voluntário
503
. Enquanto para a sua atual secretaria, isso é um resultado do
fato que os fundos internacionais se orientaram a outros países uma vez que a Argentina
voltou a democracia, o caso do CELS, que continua recebendo importantes fundos
internacionais, mostra que instituições com o perfil associativo que tem a APDH, por
exemplo, perderam capacidade de concorrer no mercado transnacional de fundos
filantrópicos. Estes vão ser capturados por associações como o CELS, surgida diretamente da
participação do seu fundador nas redes internacionais de juristas e baseada num perfil
‘técnico’ e ‘profissional’. Logo depois do triunfo de Reagan, o CELS recebeu o apoio
financeiro da Fundação Ford
504
. O êxito progressivo que obteve o CELS no mercado
internacional de recursos filantrópicos pode-se perceber na listagem de associações que o
financiam.
Os recursos financeiros internacionais que dispunha o CELS foram utilizados para
criar uma equipe de advogados dedicados profissionalmente ao litígio de causas judiciais.
Esta possibilidade esteve presente na APDH, e foi avaliada positivamente pelo próprio
Mignone: “A vantagem do PC provinha do fato que estava em condições de financiar a
presencia na instituição de militantes com dedicação exclusiva (...) contava com funcionários
permanentes e com advogados, embora, fossem muito seletivos na sua assistência”.
505
Independentemente da veracidade desta afirmação, interessa ver como o fato de perceber
honorários profissionais aparece investido de uma qualidade positiva por quem criara as
condições para a profissionalização na defesa dos direitos humanos. Os advogados fundadores
do CELS pertenciam a mesma geração (em meia, tinham 50 anos em 1976, o que os coloca
502
Mignone, 1991: 104.
503
Entrevista a Alicia Herbon realizada por mim. Buenos Aires. Junho 2002.
504
Em: Guest, 1990: 213. Segundo este autor, Meeker aportou uma contribuição inicial de U$S 40.000. Dezalay
e Garth qualificam a Fundação Ford como uma ‘campeã da profissionalização do ativismo’ no campo dos
direitos humanos na América latina. Sobre o paradoxo de que uma instituição como esta tenha começado a
intervir neste campo das mãos da CIA e do projeto do Departamento de Estado dos EEUU no contexto da guerra
fria e logo tenha protegido a toda uma nova geração de associações civis dedicadas à defesa dos direitos
humanos, ver Dezalay e Garth, 1998 a.
505
Mignone: 1991: 101 e 102. Grifos meus. Pela sua vez, o próprio Mignone, uma vez produzido o golpe de
Estado, abandonou as suas tarefas profissionais, o que lhe permitiu se dedicar com exclusividade à causa: “...
reduzi drasticamente meu nível de vida para dedicar todas as minhas energias à luta contra a ditadura militar”.
Mignone, 1991:94.
259
numa geração anterior a dos integrantes das associações examinadas no capítulo 2) e
compartilhavam, também, o fato de serem parentes de desaparecidos (os que pertenciam a
mesma geração dos defensores de presos políticos). Os fundadores do CELS compartilhavam
também outros atributos, entre eles, a condição de acadêmicos. Enquanto Mignone tinha
trabalhado como professor na universidade, chegando a ser nomeado reitor em Luján, Galleti
foi professor de direito na Universidade de La Plata. Federico Westerkamp, outro integrante
do CELS, embora ele não era advogado, era um importante pesquisador argentino muito
ligado à esfera acadêmica internacional. Outra condição comum era o seu ativismo partidário.
Emilio Mignone havia sido dirigente do Partido Justicialista, Augusto Conte da Democracia
Cristiana, Boris Pasik e Alfredo Galetti do Partido Socialista. Vários dentre eles tinham
também experiência na função pública como eram os casos de Mignone e Conte.
O CELS esteve integrado também por profissionais do direito da geração seguinte à
dos fundadores. Num contexto onde vários dentre eles haviam sido deixados cessantes ou não
tinham possibilidades de continuar com o assessoramento legislativo ou sindical, a
incorporação ao CELS significou a possibilidade de obter um trabalho remunerado. De uma
parte, se incorporaram advogados que tinham intervindo na defesa de alguns presos
políticos antes do golpe de 1976 e que tinham sido expulsos da universidade e da atividade
parlamentar, assim como também da justiça, como foi o caso da advogada penalista Lucila
Larrandart.
506
Quando se produziu o golpe de Estado, Larrandart era professora adjunta do
direito penal na Universidade de Buenos Aires e secretaria de um juizado nacional. Em ambos
os postos, foi declarada cessante por resolução das autoridades da ditadura.
Da mesma geração era Alicia Oliveira, cuja irmã compartilhava com a filha
desaparecida de Emilio Mignone a tarefa missioneira numa favela de Bajo Flores. Oliveira
também estava especializada em direito penal e com Larrandart se conheciam da época do
secundário, quando assistiram juntas ao Normal de San Fernando. Oliveira também tinha sido
deixada cessante da Justiça, atividade que realizava desde 1973 quando, aos 29 anos foi
nomeada juíza penal da Capital Federal, um tribunal ao qual “chegavam trabalhadores todos
os dias”. Previamente a esta experiência profissional, havia ‘trabalhado’ como advogada no
Sindicato de Imprensa.
507
Perante a interrupção das atividades militantes e profissionais
506
Entrevista realizada por mim a Lucila Larrandart, setembro 2002.
507
A trajetória de Alicia Oliveira foi reconstruída utilizando a entrevista realizada por Armando Doria e
Fernando Ritacco “Soy muy indisciplinada”. Em: Revista Exactamente. Bs. As. N° 14. Junio 1999.
260
ocasionada pela ditadura, o CELS ofereceu uma oportunidade de trabalho remunerado a este
tipo de profissionais. De uma outra parte, incorporou também a jovens recém-formados
desprovidos de um capital social como foram os casos de Marcelo Parrilli, filho do porteiro
do prédio onde vivia Mignone, e de Luis Zamora, quem tinha militado na APDH como
integrante do ‘Seminário Juvenil’. Outros integrantes do CELS intervinham como para-legais
tomando em conta as tramitações nos tribunais e o registro das denuncias. Enquanto os recém-
formados se ocupavam dos ‘casos menores’ os advogados com maior experiência na profissão
assumiam os ‘casos mais pesados’.
508
Hoje, todos eles são reconhecidos pela sua trajetória em
‘direitos humanos’. A partir deste capital moral, tem voltado à política e à função pública,
como Zamora, Parrilli e Oliveira, ou se incorporaram à vida acadêmica e dos tribunais como é
o caso de Larrandart, hoje juíza federal. Vários de entre eles participaram da Comisión
Nacional de Desaparición de Personas (CoNaDeP).
A marca desta profissionalização se faz evidente, não na disponibilidade de
recursos como também na orientação que seguiu o CELS uma vez finalizada a ditadura em
1983. Neste novo contexto, Mignone advertia que: “... mesmo que as organizações de direitos
humanos não deviam fazer abandono do seu trabalho de denuncia, não deviam se limitar a
estas funções (...) devendo enfatizar a participação cidadã em todas as esferas,
governamentais e não governamentais” para incluir assuntos como a independência do poder
judicial, corrupção, seguridade, educação e direitos sociais.
509
Progressivamente, este
organismo foi incorporando uma nova agenda de problemas, como a discriminação contra as
mulheres, os homossexuais, os deficientes, as minorias religiosas, os direitos dos
consumidores, a violência institucional e a segurança pública.
O perfil profissional dos advogados que integram o Centro se continua e aprofunda na
atualidade: “uma nova geração de advogados e estagiários em direito percorre os corredores
do CELS. um deles, Martin Abregú, recebeu uma bolsa de estudos para se aperfeiçoar em
Washington em Direito Internacional dos Direitos Humanos. Dos anos depois, foi seleto
Diretor Executivo do CELS.
510
Na trajetória de Abregú, ele mesmo parente de uma vítima do
terrorismo de Estado mas pertencente a geração que sucede a seus fundadores, destacam-se
exclusivamente as condições acadêmicas e profissionais que o instituem como ‘perito’ em
508
Esta classificação dos casos foi utilizada por Silvia Dvovich (nome apócrifo). Entrevista realizada por mim.
Juno de 2002.
509
Mignone “Argentina, los desafíos de fin de siglo”. 1996. Reproducido em Roberto Saba, 2000.
510
Em: Brunschtein, L. op.cit.
261
direitos humanos: pós-graduação em leis na American Univeristy del Washington College of
Law (WCL) e intervenção na Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (CIDH) como
assistente de Cláudio Grossmann, seu professor em Washington. Esta pratica dupla lhe
permitiu somar conhecimento e experiência na gestão internacional em organizações
dedicadas à defesa dos direitos humanos.
Em seguida de ter assumido funções no CELS, Abregú acrescentou seu perfil de
‘perito’ com a tarefa de ensino na universidade (professor adjunto em Direitos Humanos e
Garantias da Universidade de Buenos Aires) e como fundador de várias revistas jurídicas. Sua
atividade se completou com a sua atuação como oficial do Programa de Derechos Humanos y
Ciudadania, da Fundação Ford e como representante do Centro por la Justicia y el Derecho
Internacional (CEJIL). Todos estes estabelecimentos mostram que as vias que levam da
academia à carreira internacional na área dos direitos humanos estão incorporadas ao
repertorio de ações seguidas por esta segunda geração de ativistas.
Esta via aberta à profissionalização indica também que os direitos humanos tem
deixado de ser considerados exclusivamente como uma causa política para se constituir num
assunto relativo ao direito, fato que se evidencia na proliferação de programas universitários
especializados em direitos humanos, tanto na Argentina quanto no exterior. Neste sentido, o
CELS também faz parte deste processo em tanto que, ainda que contribui a expandir a agenda
de problemas, assume a tarefa de formar novas gerações de profissionais preparados para
trabalhar em casos de direitos humanos.
A criação de uma ‘clínica jurídica’ incorporada ao currículo da carreira de direito da
UBA e o fato de ter integrantes e ex integrantes do CELS ligados à vida acadêmica desta
unidade de estudos (Abregú e Larrandart, entre outros) são indicativos da importância que
tem para o CELS o fato de participar na formação dos futuros juristas ao tempo que mostra a
sua capacidade para se legitimar como profissionais e peritos diante da instituição que fornece
de titulações em direito mais importante do país. Esta ‘clínica jurídica’ mostra que o CELS é
reconhecido pela sua intervenção na definição do que é o direito e não simplesmente como
uma fachada da atuação política. As políticas desenvolvidas a partir da democracia, como o
Juicio a las Juntas ou as leis de reparação as vítimas, fizeram também que a competência
262
técnica ganhada através da passagem pelo mundo acadêmico fosse ainda mais relevante que
no passado.
511
O CELS formulou também uma nova maneira de trabalhar na defesa pelos direitos
humanos em democracia. Abregú coloca nestes termos a transformação de “... uma luta
radical contra os desaparecimentos, as torturas e os crimes militares ao uso deliberado dos
meios, do lobby, de ferramentas de mediação, o litígio de causas, a difusão e a educação”.
512
Na sua perspectiva, o litígio de causas aspira, no atual contexto, a reformular o Estado:
“El Estado es el único que viola los derechos humanos pero también es el único
que los puede proteger. Y sin ser amigo del Estado, sabes que solamente el Estado
puede darte la situación a la que queres llegar (…) Por un lado, sabes que el litigio
tiene que exponer y detener una situación de abuso, sin embargo también sabes que
para ser realmente exitoso ese litigio te tiene que permitir lograr un cambio en ese
Estado, ese litigio se tienen que transformar en políticas”.
No contexto das associações analisadas neste capítulo e nos capítulos anteriores, pode-
se ver que o apelo ou a exaltação da dimensão ‘técnica’ do trabalho destes profissionais do
direito por sobre o ‘engajamento militante’, a distinção entre a ‘prestação de serviços’ e o
‘ativismo’ ou ‘denuncia’ que faz parte constitutiva do perfil do CELS, longe de se considerar
atributos inerentes a esta associação, devem serem entendidos como parte constitutiva do
processo de construção de um ponto de vista interessado no interior de uma contenda mais
abrangente pela representação da causa pelos direitos humanos e por definir as relações entre
direito e política.
511
Esta mesma competência é altamente reconhecida na esfera internacional como se evidencia no caso de Luis
Moreno Ocampo que, depois da sua atuação como fiscal no Juizo às Juntas Militares, sua participação na criação
de uma associação civil com fortes vínculos com as associações internacionais do direito como Poder Ciudadano
(filial de Transparência Internacional) e sua atuação em universidades nacionais e do exterior, foi selecionado
como Primeiro Fiscal da Corte Penal Internacional. Seu escritório jurídico na Argentina combina a
especialização na apresentação na apresentação de casos perante tribunais internacionais com a recuperação de
ativos e lavagem de dinheiro. Este caso mostra como a institucionalização do direito internacional dos direitos
humanos criou novas oportunidades de carreira internacional.
512
Em: Bruschtein, op.cit.
263
3. 3 A organização transnacional da denuncia
Nesta segunda seção do capítulo me proponho mostrar a criação de diversas
associações de advogados argentinos no exílio, o engajamento com a causa argentina de um
conjunto de juristas integrantes de associações internacionais e de associações de defesa dos
direitos humanos e a forma em que os primeiros vão se incorporar progressivamente a estas
redes transnacionais. Para dar conta do primeiro propósito, me centrarei especialmente na
experiência do exílio francês. Francia constituiu uma das cidades que concentraram uma
proporção importante dos exilados. Segundo dados aportados por Marina Franco, entre 1974 e
1983 ter-se-iam exilado em Franca uns 3000 argentinos.
513
Descreverei depois as distintas
missões internacionais que chegaram ao país com o propósito de conferir as denuncias
recebidas sobre violações aos direitos humanos. Como vai se ver, foram uma instancia crítica
na articulação desta rede. Por último, me proponho mostrar a criação de redes de profissionais
do direito integradas tanto por advogados exilados ou residentes na Argentina (como
Mignone) e juristas estrangeiros que pertenciam a associações internacionais. Esta descrição
tenta sugerir a interpenetração destas redes de profissionais do direito.
3. 3. 1 O engajamento com a causa no exilo
Os defensores de presos políticos se apresentavam ante o cenário francês segundo uma
dupla condição sintetizada em definições como: ‘advogados argentinos exilados na Franca’,
como se evidencia nas muitas matérias de jornais publicadas pela imprensa francesa e que
reproduziam as denuncias sobre a situação argentina, denuncias nas quais os protagonistas
eram advogados. Foram estes mesmos advogados os que se constituíram na porta de entrada
de toda a rede de relações internacionais, ao ponto que, a primeira missão consagrada a
verificar ‘in loco’ as violações aos direitos humanos esteve dedicada exclusivamente à
situação dos advogados defensores de presos políticos.
513
Franco, 2004. Outros países que receberam argentinos foram xico, Espanha, Suécia e Venezuela. A
escolha por descrever este exílio se justifica não num critério quantitativo mas também no fato de ter tido
aceso aos arquivos existentes na Franca e de ter feito entrevistas a alguns destes peritos internacionais que se
engajaram com a denuncia das violações aos direitos humanos na Argentina durante o meu estagio na Ecole
Normale Superieure, Paris.
264
Com anterioridade ao golpe de Estado de março de 1976, Paris tinha-se conformado
como um ponto de encontro para vários dos advogados argentinos defensores de presos
políticos. Foi onde morou Hipólito Solari Yrigoyen em seguida da sua liberação e foi
onde chegaram vários advogados defensores de presos políticos integrantes das associações
analisadas no capítulo anterior, como Gustavo Roca, Raúl Aragon, Rodolfo Mattarollo, Rafael
Lombardi, Alejandro Teitelbaum, Martin Federico, Lucio Garzón Maceda, Susana Aguad e
Omar Moreno, entre outros. Outros se radicariam na Espanha e no México, como Eduardo
Luis Duhalde, Haydée Birgin, Esteban Righi, Mario Kestelbaum, Mario Gaggero, Carlos
González Garland, Oscar Correas Vázques e Nestor Sandler.
Todos eles chegaram ao exilo na dupla condição de profissionais do direito e vítimas
diretas do terrorismo do Estado. No exilo, aderiram à ‘causa anti-ditatorial’ através de
inúmeras atividades e espaços de participação. Os contrastes entre ‘a imagem dourada’ de
uma vida em Paris e o ‘engajamento’ com esta causa são recorrentemente enunciados por
eles. González Garland, por exemplo, coloca a ênfase na sua disponibilidade para visitar
juristas ao invés que ir ao Museu do Louvre. Rodolfo Mattarollo, pela sua vez, sublinha o
contraste com os intelectuais que tinham chegado anteriormente a Paris como parte de um
projeto cultural:
“… desde el comienzo, mi actividad principal fue la solidaridad y la denuncia (…)
la Francia idealizada por todo intelectual rioplatense ya no existía (…) En vez de
conocer literatos, me dediqué a tratar a los juristas y si bien no frecuenté a Sastre ni
a Simone de Beauvoir conocí a algunos maestros del derecho internacional que me
enseñaron cosas esenciales en las que luego encontraría algunas de las claves del
futuro de Argentina (…) como intelectual latinoamericano que soy, el exilio es una
experiencia totalmente distinta a lo que había imaginado. La metáfora del viaje se
daba pero no como viaje estético sin como experiencia política”
514
.
Na França se formaram duas associações integradas por profissionais do direito: o
Groupe d’Avocats Argentins Exiles en France (GAAEF) e a filial francesa da Commission
Argentine des Droits de l’Homme (CADHU) que, como já se viu na seção anterior, havia sido
criada poucos meses depois do golpe de 1976. Seguindo o modelo das associações descritas
514
Entrevista a Mattarollo en Revista Humor. Op.cit. Grifos meus.
265
nos capítulos anteriores, estas convocaram a profissionais do direito que provinham de
distintas filiações políticas e partidárias.
O GAAEF se criou a instancias do advogado francês Nuri Albalá, membro da
Association Internationale des Juristas Démocrates (AIJD) quem, apenas dois meses depois
do golpe de Estado de março de 1976, havia viajado a Buenos Aires participando de uma
missão desta entidade: “Cada vez que acontecia alguma coisa, vinha-me ver um ou outro
advogado argentino exilado aqui, me perguntado como publicar comunicados de imprensa,
como fazer pública declarações sobre seqüestros ou chacinas”.
515
No seu escritório da Rue de
Rivoli se reuniram no inicio Gustavo Roca, Raúl Aragon, Leandro Despoy, Hipólito Solari
Yrigoyen, Rodolfo Mattarollo, Susana Aguad, Martín Federico, Lucio Garzón Maceda e
Omar Moreno, entre outros.
A CADHU definiu-se publicamente como uma ‘organização humanitária’ integrada
por homens e mulheres de todas as tendências, congregações e ideologias’ reunidos com o
propósito de alcançar o ‘restabelecimento da democracia na Argentina e o pleno respeito da
vontade popular’. Num dos seus boletins se expõem seus objetivos: “É necessário que o
movimento da solidariedade se concentre em tarefas precisas: de uma parte, continuar com o
trabalho dirigido a obter a liberação dos prisioneiros e seqüestrados e, de outra, realizar
medidas eficazes que isolem à Junta no plano internacional”.
516
Como vai se ver, se repete a
proposta identificada nos capítulos anteriores de criar associações desde as quais intervir
tanto desde o plano jurídico quanto na denuncia pública. Com esta intenção define como um
dos seus propósitos o de adquirir visibilidade diante a opinião pública internacional: “...
conscientes da necessidade de uma ação unitária, fazemos apelo ao povo francês, as
personalidades francesas, aos partidos políticos e aos sindicatos, as instituições confessionais
e de defesa dos direitos do homem que tantas vezes tem expressado seu apoio a o nosso
povo...”.
517
Sob a palavra de ordem ‘cada voz que se levanta pode salvar uma vida’, se levaram a
frente desde a CADHU diversas iniciativas como a publicação de abaixo-assinados na
imprensa nacional, principalmente no Le Monde, a edição de livros, folhetos, cartão postais e
515
Entrevista realizada por mim a Nuri Albalá no seu escritório profissional. Paris. 09. 06. 2004.
516
Em: Bulletin CADHU. N° 4. Junho-julho 1978. Paris. Minha tradução.
517
Em: Bulletin CADHU. N° 1. Paris. 1977. Grifos meus, minha tradução.
266
a publicação de boletins periódicos de informação. A publicação na Franca do livro
Argentina, proceso al genocídio, que foi divulgado então pela Europa graças ao trabalho dos
integrantes da CADHU, interessa porque exprime uma inovação na linguagem utilizada para
formular as denuncias: a atividade de defesa de presos políticos foi traduzida agora a
linguagem técnica do direito dos direitos humanos. Publicado originariamente em Espanha,
este livro foi traduzido ao francês em abril de 1977 e logo depois ao alemão e apresentado na
Feria Internacional do Livro em Frankfurt. O uso de uma linguagem técnica e politicamente
neutra está acompanhado de um deslocamento no centro da atenção: da narração das ações
heróicas da militância à descrição detalhada da responsabilidade do Estado na repressão. Das
duas partes que o compõem (a primeira explica o regime jurídico que fundamenta a ordem
repressiva) é a segunda, intitulada ‘Terrorismo de Estado’ a que expõe com maior clareza o
repertorio de novas categorias do direito internacional aplicadas ao caso argentino. Centra-se
na descrição de como o Estado viola seus próprios princípios legais. Sua apresentação teve
importantes repercussão na imprensa francesa. O jornal Le Monde, por exemplo, reproduziu a
conferencia de imprensa na qual participaram os advogados integrantes da CADHU Eduardo
Luis Duhalde, Gustavo Roca e Roberto Guervara Lynch
518
.
Os boletins destas associações continham denuncias de casos, detalhes dos métodos
empregados na repressão, listagens de vitimas, informação sobre a situação nas cárceres e
centros clandestinos de detenção e testemunhos diretos de vítimas e parntes. Segundo o
Programa de Ação elaborado pela CADHU:
“… la información es un elemento prioritario para luchar contra la violación
sistemática de los derechos humanos (…) consideramos que la tarea de denuncia
está íntimamente ligada a la tarea humanitaria de asistencia moral y material a las
víctimas de la represión. La denuncia que alerta a la opinión pública es la que
permite que la presión internacional se ejerza para corregir las flagrantes
violaciones a los derechos humanos…”
519
.
Entre as ações de alerta dirigidas à opinião pública internacional que merecem
destaque se encontra a entrega de uma listagem de vítimas elaborada pela CADHU e entregue
518
“La commission des droits de l’Homme fait le procès d’un génocide » Em ; Le Monde. 22.04.1977.
519
CADHU, Programa. ,Grifos meus.
267
a Cyrus Vance, então secretario de Estado norte-americano. Esta listagem foi logo entregue
por Vance ao general Videla na ocasião de sua visita à Argentina.
A denuncia da situação em que se encontravam os profissionais do direito ocupava um
lugar de destaque nestas organizações. Os integrantes da Agrupación de Abogados de
Córdoba, Martín Federico, Omar Moreno e Lucio Garzón Maceda publicaram uma nota
(intitulada “Les Atientes aux Droits de la Défense”) no mensário Le Monde Diplomatique
onde advertem sobre o impacto da repressão sobre ‘os juristas, os magistrados e os
advogados’ e instavam à mobilização da comunidade de pares, identificada agora com a
‘comunidade jurídica internacional’:
“esta represión específica a los juristas es, en realidad, una pieza esencial del sistema
represivo que apunta a hacer impracticable el derecho a la defensa (…) Es suficiente
que los abogados aseguren el derecho a la defensa de los presos políticos para que
les sean imputadas las mismas presunciones que aquellas atribuidas a sus
clientes”
520
.
Foram estas e outras denuncias deste tipo realizadas diante a opinião pública européia
as que ativaram o engajamento das associações internacionais de juristas.
3. 3. 2 As missões internacionais de juristas
Um conjunto heterogêneo de profissionais do direito de Europa e de EEUU se
mobilizaram pela causa dos direitos humanos na Argentina. Esta movimentação significou,
entre outras cosas, o deslocamento dos seus integrantes para conferir ‘in loco’ a autenticidade
das denuncias. Esta movimentação toda foi ativada por associações com origens e propósitos
diversos.
Exemplos destas associações foram: a Federation Internationale des Droits de
‘Homme (FIDH), a Association Internationale des Juristes Démocrates (AIJD), a Commission
Internationale des Juristes (CIJ), com sede em Genebra, o Secretariat Internationale des
Juristse Catoliques (SIJC), Amnisty International e a Association of the Bar of the City of
520
Le Monde Diplomatique. 22.05.1979. Grifos meus, minha traducao.
268
New York, entre outras. A despeito de suas diferencias, todas elas tinham um propósito
comum: fazer dos direitos humanos um verdadeiro direito internacional
521
Tabela N˚ 5: Perfil das associações internacionais de Juristas
La Asociación Internacional de Juristas Democráticos (AIJD), fue creada en 1946
por un grupo de juristas y abogados franceses que habían participado de la Resistencia entre
quienes se encontraban René Cassin, profesor de derecho, diplomático, consejero del general
de Gaulle en Londres, juez del Consejo de Estado y dirigente de la Ligue Française des Droits
de l’Homme y Joë Nordmann, fundador de la sección jurídica del Front Nacional des Juristas
de la Resístanse (presidente y secretario, respectivamente). De acuerdo con Madsen, la idea
de crear una organización trasnacional de juristas de este tipo reuniendo delegados de 16
países, incluyendo los EEUU y la URSS, se elaboró durante el proceso de Nuremberg. El
universalismo que le dio origen se fundaba en el propósito de erradicar el fascismo mediante
la intervención en procesos judiciales específicos de profesionales del derecho de mucho
prestigio. Pese a estas intenciones, la AIJD congregó a abogados en su mayor parte franceses
o italianos pertenecientes al Partido Comunista que concentraron su acción en la denuncia del
macartismo
522
. Por su parte la Comisión Internacional de Juristas (CIJ) se creó a principios
de los años 50 con el propósito de afirmar los valores del ‘mundo libre’ sobre el terreno de los
grandes principios jurídicos: el Estado de derecho, los derechos del hombre. Esta iniciativa se
formuló como una manera de contraatacar a su rival, la AIJD. Integró a verdaderos notables
del derecho dentro de una estructura que se proponía como equivalente a una alta corte
internacional. Sus primeros cuadros dirigentes provenían del Council of Foreing Relations de
fuertes convicciones anticomunistas, eran exitosos abogados de negocios y habían adquirido
notoriedad a través del servicio jurídico prestado en distintas asociaciones civiles. Reclutaron
en el exterior al resto de sus integrantes, siempre teniendo en cuenta su notoriedad. Amnistía
Internacional (AI) fue creada en 1961 en Inglaterra con el propósito de conformar una
organización masiva, financiada exclusivamente por sus activistas e identificada por su
neutralidad. En lugar de basar sus acciones en discretas relaciones personales, AI procuró
centrar su acción en la difusión mediática de sus campañas y actividades. La Fédération
Internationale des Ligues des Droits de l’Homme (FIDH), a pesar de su proclamado
internacionalismo, permaneció como una asociación principalmente franco-francesa bajo la
influencia de un pequeño grupo de jóvenes abogados como Henri Leclerc, Daniel Jacoby,
Michel Blum y Etienne Jaudel, todos ellos integrantes, a su vez de la Ligue Française des
Droits de l’Homme. Leclerc, junto con Blum, son los abogados más activos en la defensa de
los estudiantes procesados por los sucesos del Mayo del 68 francés. Anteriormente habían
participado activamente de la creación de un colectivo de abogados que interviene durante el
conflicto de Algeria.
O leque total das atividades promovidas por estas associações era muito amplio e
incluía:
521
Em: Madsen, M. 2004.
522
Dezalay y Garth, 2002: 62 a 72. Madsen, M. 2004.
269
“… la publicación de la Revista, la organización de congresos, conferencias y
seminarios, la realización de investigaciones de situaciones particulares o de temas
que involucran el Imperio del Derecho y la publicación de informes, el envío de
observadores internacionales a los juicios de mayor importancia, intervenciones
ante gobiernos y difusión de comunicados de prensa referidos a violaciones del
Imperio del Derecho, el patrocinio de propuestas dentro de las Naciones Unidas y
de otras organizaciones internacionales para promover la aprobación de
procedimientos y convenciones tendientes a la protección de los derechos
humanos”
523
.
A primeira missão internacional que chegou à Argentina sentou as bases das seguintes
e, em forma encadeada,umas recomendavam as outras o continuar com este tipo de atividades
no país. Três destas missões tiveram lugar antes do golpe de Estado de março de 1976 e se
sucederam no breve lapso de três meses. Uma quarta teve lugar três meses depois do golpe de
Estado, motivada pelo inquérito sobre a situação dos exilados uruguaios na Argentina,
especialmente logo depois do assassinato dos parlamentares uruguaios Zelmar Michelini e
Héctor Gutiérrez Ruiz. Em novembro desse mesmo ano chegou uma missão de Anistia
Internacional. O reporte, apresentado em março de 1977, continha uma listagem de 489
desaparições e, entre suas recomendações solicitava-se o envio de uma missão oficial da
ONU, reclamava a publicação de uma listagem oficial de prisioneiros e um inquérito sobre a
situação dos desaparecidos. Uma sexta missão foi realizada em janeiro de 1978, a pedido da
FIDH e o Movimento de Juristas Católicos. Por último, uma sétima teve lugar em abril de
1979 a pedido da Association of the Bar of the City of New York. Estes esforços todos
resultaram na chegada de uma missão a pedido da própria Comissão Inter-americana dos
Direitos Humanos (CIDH) em setembro de 1979.
A visita da CIDH teve uma importância singular. No dia 6 de setembro de 1979
circulou na imprensa argentina o seguinte comunicado: “No dia de hoje tem iniciado suas
atividades em território argentino a Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (...) o
propósito da visita é o de fazer uma observação relativa ao respeito dos direitos humanos, as
denuncias a respeito de violações a tais direitos e estudar e analisar a situação neste
assunto...”.
524
Definida como “... uma instancia ao qual pode-se recorrer quando os direitos
523
En: Revista de la CIJ. Número 16. Junio 1976. Mis cursivas.
524
Em: Informa sobre la situación de los Derechos Humanos en Argentina. OEA. Washington DC. 1980: 2 e 3.
270
humanos tem sido violados por agentes ou órgãos do Estado”
525
, a necessidade de observar
‘in loco’ a situação argentina fundamentava-se pelo fato de ser este “... o meio mais idôneo
para estabelecer com a maior precisão e objetividade a situação dos direitos humanos num
determinado país e momento histórico”.
526
A visita da CIDH se destaca pelo forte impacto das
suas denuncias em quanto a CIDH é uma organização inter-guvernamental com sede em
Washington, integrada oficialmente pelos Estados membros da OEA.
527
Tabela N˚ 6 Detalhe das missões internacionais de juristas
Data Associação Internacional Peritos
03 – 12 Marzo 1975 Comisión Internacional de
Juristas
Heleno Claudio Fragoso
24 – 30 Abril 1975 Fédération Internationale des
Droits de l’Homme, Mouvement
Internationale des Juristes
Catholiques.
Jean Luis Weil
18 – 24 Mayo 1975 Fédération Internationale des
Droits de l’Homme, Mouvement
Internationale des Juristes
Catholiques.
Léopold Aisenstein, Daniel
Jacoby, Etienne Jaudel, Louis
Joinet
02 – 08 Junio 1976 Asssociation Internationale des
Juristes Démocrates
Nuri Albalá
06 – 15 Noviem. 1976 Amnistía Internacional Lord Averbury, Robert Drinan,
Patricia Feeney
18 – 25 Enero 1978 Fédération Internationale des
Droits de l’ Homme,
Mouvement Internationale des
Juristes Catholiques.
Antoine Sanguinetti, Franceline
Lepany, Herbert Semmel y Juan
Carro
Abril 1979 Association of the Bar of the
City of New York
Orvuille H. Schell, Marvin E.
Frankel, Harold H. Healy, Stephen
L. Kass y R. Scott Greathed
525
Em: Informe, op.cit.:29. A CIDH começou oficialmente a funcionar em 1960 embora começou a ter
importância nos anos 70, como se confere dos seguintes dados: em 1973 tinha apenas uns 50 casos. A inícios
dos anos 80 os casos superavam os 7000. Para uma história da CIDH ver: Farer: 1997.
526
Ibídem.
527
Entre os propósitos da CIDH se encontra o de: a) receber, analisar e investigar petições individuais que
alegam violações aos direitos humanos, segundo o dispõem os artigos 44 ao 51da Convenção. b) observar a
vigência geral dos direitos humanos nos Estados membros e, quando o considere conveniente, publica informes
especiais sobre a situação num Estado particular, c) realizar visitas in loco aos países para aprofundar a
observação geral y/o para pesquisar uma situação particular. Geralmente essas visitas resultaram na preparação
de um informe respectivo que se publica e é enviado aos governos e à Assembléia Geral. En.
www.cidh.org
271
No diagnóstico elaborado pelos peritos internacionais, a situação vigente no país
durante o governo anterior ao golpe de Estado de março de 1976 foi avaliada nestes termos:
“… un Estado de derecho profundamente degradado por la sanción de numerosas
leyes de excepción’ (…) una ‘coyuntura de severa represión gubernamental y de un
terrorismo de extrema derecha que actúa con total impunidad (…) la Delegación ha
podido constatar que la fase de represión clandestina e ilegítima ha alcanzado el
estado de institucional. Esta violencia generalizada resulta en una violación
permanente de los derechos fundamentales…
528
.
O tribunal Russell II tinha-se expedido em 1975 sobre o caso argentino. Ao longo das
audiências presididas por Lélio Basso, o tribunal escuto informes e testemunhas diretos da
repressão e conferiu documentação escrita e audiovisual sobre o caso concluindo que:
“… atentados políticos que llegan hasta el asesinato son cometidos por o con la
complicidad de las autoridades de la República Argentina y que el Tribunal se ha
alarmado particularmente por la situación creada a los refugiados políticos de ese
país (…) El Tribunal expresa su profunda inquietud por los arrestos, persecuciones,
torturas y asesinatos de militantes, de obreros y profesionales como también de
refugiados políticos sudamericanos. En vista de esto, decide abrir inmediatamente
una encuesta para establecer la amplitud de la responsabilidad del gobierno
argentino a este respecto”.
529
Estas ‘missões humanitárias’ tinham como propósito: “... coletar todos os elementos
de informação concernentes à sorte e à situação dos prisioneiros políticos na Argentina e do
estado dos direitos humanos nesse país”.
530
Para isso, e no percurso de uma semana ou dez
dias, desenvolviam a um ritmo febril ‘reuniões’, ‘entrevistas’, ‘encontros’ com timas,
parentes das vítimas, altos funcionários públicos, representantes da oposição, jornalistas,
sindicalistas, dirigentes estudantis, professores universitários, representantes de associações
profissionais e de instituições internacionais como o Alto Comissariado das Nações Unidas
528
En: “Rapport a la Fédération Internationale des droits de l’homme…” op.cit. Mayo 1975. Mis cursivas.
529
Sentença do Tribunal. O Tribunal foi criado pela inspiração do filósofo inglês Bertand Russelll quem, em
1966, convocou a diversas personalidades de distintos países para pesquisar os crimes cometidos pelas tropas
americanas em Vietnam.
530
Em: “Rapport a la Fédération Internationale des droits de l’Homme et au Mouvement International des
Juristes Catoliques sur la situation des droits de l’homme em Argentine”. Maio 1975. Minha traducao.
272
para os Refugiados. Progressivamente, estas missões foram adquirindo maior importância,
participando das mesmas um maior número de peritos internacionais.
Os resultados destas ‘missões’ eram desenvolvidos em ‘relatórios’ nos quais se
procedia a compilar a documentação utilizada para fundamentar as denuncias sobre as
violações aos direitos humanos, colocando em destaque a possibilidade de “... restituir a
verdadeira dimensão da repressão que, contrariando a opinião geralmente admitida, abrange a
grandes setores da população e não somente aos setores radicalizados”.
531
Para conseguir dar
a publicidade esta situação ‘pouco conhecida internacionalmente’, os profissionais do direito
encarregados destas missões escolhiam casos exemplares que, deliberadamente, não incluíam
a militantes armados mas a jornalistas, parlamentares, advogados, dirigentes e militantes
sindicais assassinados, desaparecidos, destituídos, detidos ou clandestinos’ como foi,
notoriamente, o caso de Hipólito Solari Yrigoyen descrito anteriormente.
Como se identificou nos capítulos anteriores, a reprodução dos depoimentos
‘diretos’ das ‘vítimas’ ocupava um lugar de destaque nestas denuncias. Estes eram coletados
em entrevistas diretas com pessoas que tinham sido seqüestradas e liberadas depois de ter sido
torturadas e ameaçadas de morte em diversos ‘centros de interrogação’ e com os próprios
presos políticos nos seus lugares de detenção, entre eles ‘eminentes’ advogados detidos a
disposição do PEN devido a sua ‘especialização na defesa de detidos políticos’. A linguagem
utilizado nestes reportes caracteristicamente evita qualquer tipo de identificação da tima
com a ideologia ou com posições políticas.
A transcendência destas missões se evidencia em tanto, desde o ponto de vista dos
profissionais do direito, existe uma relação direta entre a presencia do advogado francês e o
fato pontual de um dirigentes sindical que estava desaparecido, salvasse a sua vida ao passar
da condição de seqüestrado e detido clandestinamente a detido a disposição do PEN num
presídio oficial. Na divulgação dos resultados da missão destaca-se justamente como esta
situação de emergência foi resolvida favoravelmente. Aos poços minutos de chegada a
missão, Weil se entrevistou com a mãe do dirigente sindical e no dia seguinte com
‘autoridades oficiais’. O resultado direto e imediato foi descobrir o paradeiro e entrevista-lo
531
Em: “Rapport a la Fédération Internationale des droits de l’Homme et au Mouvement International des
Juristes Catoliques sur la situation des droits de l’homme em Argentine”. Maio 1975. Minha traducao
273
no seu lugar de detenção: “Graças à mobilização internacional, Hugo Cores ainda esta
vivo”.
532
Esta ‘missões’ faziam parte, pela sua vez, de ‘campanhas’ mas amplias que incluíam a
realização de conferencias de imprensa, a divulgação de comunicados, a tradução de
declarações de associações de direitos humanos de Argentina, a publicação dos próprios
reportes e solicitadas em meios europeus, a confecção de listagens de vitimas, a entrega dos
reportes e o envio de telegramas e cartas às autoridades argentinas, todo com a intenção de
que os casos ‘não caiam no olvido’.
Os reportes destas missões sobre a situação dos direitos humanos eram apresentado
diante as autoridades públicas européias e de América latina e perante outras associações civis
européias semelhantes com o propósito de que contribuíam difundido as denuncias e
colaborando com o financiamento das mesmas. Estas ultimas eram estimuladas a “...
manifestar sua solidariedade com as lutas [das associações argentinas] e a intensificar suas
ações em defesa dos direitos humanos”.
533
Todos estes reportes serviram como base para a
formulação de denuncias envidas à comissão de direitos humanos da OEA e à CIDH.
A participação destes juristas internacionais não se reduzia à realização de missões
humanitárias. Estes advogados realizavam todo um conjunto de outras atividades tendentes a
manter ativa a denuncia sobre os casos de violações aos direitos humanos. Antes e depois das
missões, eles estabeleciam contatos com os parentes das vítimas, com os advogados
encarregados do caso na Argentina, com as autoridades francesas na Franca e na Argentina e
com as autoridades argentinas em ambos os paises. Até a própria vida pessoal se colocava ao
serviço da causa. Como se viu, o escritório profissional de Nuri Albalá serveu de sede para
as reuniões do GAAEF. Sua própria casa foi onde se hospedaram alguns dos advogados
recém chegados a Paris.
534
532
Carta da CIMADE a seus afiliados informando-lhes do caso. 05. 05. 1975. Minha tradução. A CIMADE se
define como uma associação ecumênica criada em 1939 para dar ajuda as pessoas deslocadas do sur da Francia.
Durante a Segunda Guerra Mundial, participou ativamente da resistência e logo se comprometeu a favor da
causa da independência de Algeria. Tem desde então um serviço de solidariedade internacional.
533
Relatorio “La Repression en Argentine et plus particulièrement la situation des réfugies politiques uruguayens
dans ce pays ». 1976. Nuri Albalá.
534
Entrevista a Nuri Albalá realizada por mim. Maio 2004. Paris.
274
Uma outra instancia de participação foi a convocatória a reuniões semanais perante a
embaixada argentina em Paris. Desde finais de 1979, os profissionais do direito reunidos no
Club des Droits Socialistas de l’Homme, sob a iniciativa de Pierre Bercis, convocaram todas
as quintas feiras ao meio-dia a se manifestar em solidariedade com as voltas em torno a praça
de Maio que nesse mesmo dia realizavam em Buenos Aires os parentes congregados na
associação Madres de Plaza de Mayo. Segundo Bercis:
“El sistema era simple: apelábamos a todas las organizaciones y personalidades
democráticas a que todos los jueves se reunieran con nosotros ante la embajada
para atraer así, primero a la prensa y la opinión pública, luego a las autoridades,
hacia la causa de los derechos del hombre (…) Muchísimas personalidades como el
actual presidente de la república, François Mitterrand, intelectuales y religiosos se
alternaban frente a la embajada garantizando así la repercusión en la prensa”
535
.
Este relato evoca os vínculos construídos entre os exilados argentinos, as associações
de parentes das vítimas e os juristas integrantes de associações internacionais. Qual foram as
condições que permitiram juntar a este conjunto de indivíduos numa ação comum?
3. 3. 3 As redes transnacionais
Relatar os inícios da Comisión Argentina por los Derechos Humanos (CADHU)
permite reconhecer quais foram os traços que possibilitaram a incorporação dos advogados
argentinos nesta comunidade internacional de juristas e sua conversão em especialistas em
direitos humanos. Como se viu antes neste mesmo capítulo, a CADHU havia sido criada
nos seus inícios em Buenos Aires em seguida do golpe de Estado de 1976 por alguns
advogados integrantes da Gremial como Carlos González Garland, Eduardo Luis Duhalde e
Manuel Gaggero, a partir da experiência prévia de denuncia que eles mesmos realizaram em
distintos foros internacionais:
535
“Se gauna batalla pero no la guerra” Reportajem a Pierre Bercis. Revista Humor. N° 132. Bs. As. Julio
1984. Mitterrand era então Primeiro Secretario do Partido Socialista Francês.
275
“[a inicios de 1975] me fui a Europa a declarar en el Tribunal Russell (…)
lamentablemente por desajustes propios de mi propia ignorancia mezclados con el
retraso del avión, llegué al Tribunal el día en que cerró (…) Y me encontré en
Europa con 300 dólares y sin pasaje de vuelta (…) Y entonces me quedé con las
otras organizaciones de exiliados que ya existían (…) Entonces aproveché para
denunciar la situación de la Argentina en la Asociación Internacional de Juristas
Demócratas, la Federación Internacional de los Derechos Humanos, la Comisión
Internacional de Juristas, Amnistía Internacional, el Consejo Mundial de Iglesias,
la Organización Internacional del Trabajo, todos organismos internacionales y de
abogados internacionales (…) cuando volví a la Argentina, participé de la
fundación de la CADHU a fines de 1975.”
536
A importância destes contatos começados na Europa se traduz no chegada ao país das missões
internacionais. Estes contatos se continuaram logo na Argentina com o arribo das ‘missões’
de forma tal que, diante a desaparição de dois advogados integrante da Gremial, Mario
Hernandez e Roberto Sinigaglia, Raúl Piedrabuena destacou:
“Ese mismo día [de la desaparición] teníamos una reunión plenaria de la CADHU
en Buenos Aires (…) nos reunimos y fuimos al Hotel Claridge donde estaba
alojado el primer delegado de la Comisión Internacional de Juristas que vino a
hacer una investigación a la Argentina. Yo lo había conocido en París (…)
Entonces el secuestro de Mario y Rorberto Sinigaglia se conocía al día siguiente en
Europa”
537
.
A formação destas redes pode se seguir com detalhe nos próprios relatórios das missões
internacionais:
“... establecí contacto con numerosos abogados de las más diversas tendencias
políticas, entre los cuales se incluyen las figuras más respetadas de nuestra
profesión. Mantuve entrevistas con los presidentes y miembros de las instituciones
representativas de la clase profesional, el Colegio de Abogados de Buenos Aires, la
Asociación de Abogados de Buenos Aires y la Federación de Colegios de
Abogados. Estuve igualmente en contacto con periodistas, profesores universitarios
536
Entrevista realizada a Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) por Laura Saldívia.
537
Entrevista realizada por Laura Saldivia a Raúl Piedrabuena (nome apócrifo).
276
y magistrados de diversas categorías (…) también pude entrevistarme con
ministros de Estado y líderes del parlamento nacional”
538
.
O contato com as associações locais era uma peça chave para o trabalho destes peritos
internacionais. As associações locais ofereciam um capital indispensável para o sucesso das
missões: documentos contendo listagens de detentos, desaparecidos, denuncias e contatos
com advogados dispostos a assumir o compromisso com as defesas das vítimas. Obter esse
compromisso era um fato crítico, tanto pela necessidade de as apresentar perante o detido
contando com o auxilio de um advogado local quanto pelo fato de se garantir o compromisso
de continuar o caso depois do retorno da missão internacional.
Os peritos internacionais que chegaram à Argentina em nome da Federación
Internacional de los Derechos del Hombre (FIDH) entraram em contato com os profissionais
do direito que pertenciam à Liga, associação filiada à FIDH, assim que chegaram ao pais. No
seu relatório, Weil colocava em destaque a dificuldade de obter o compromisso de assumir a
defesa de Hugo Cores, o sindicalista uruguaio exilado em Argentina e desaparecido até o
arribo da missão. Foi quando entrou em contato com o advogado da Liga, Julio Viaggio,
quando conseguiu resolver o problema. Sobre este advogado se destaca no relatório: “...
aceitou sem reticências e com uma enorme coragem físico, ainda que ele mesmo já tinha sido
vítima de dois atentados com bombas como conseqüência de assumir a defesa de prisioneiros
políticos”.
539
A visita da CIDH constituiu um caso particularmente produtivo para mostrar a enorme
rede de relações locais e internacionais que se cristalizaram e fizeram possível esta particular
missão que, em tanto proveio de uma organização inter-guvernamental, foi a que teve maior
repercussão pública. A realização desta missão é parte do processo mesmo de conformação
desta rede transnacional de peritos.
Em primeiro lugar, o arribo da missão pressupõe relações prévias entre associações
internacionais de juristas e a CIDH.
540
Estes vínculos eram possíveis em tanto a participação
538
Reporte “La situación de los abogados defensores en la República Argentina”. CIJ. 1975.
539
Op,cit. Minha tradução, grifos meus.
540
Estes nculos foram identificados também em outros casos, como o chileno. Em: Sikkink, 1996. Foram
registradas, também, as denuncias que realizara a CIJ diante a CIDH em 1972, referidas aos riscos assumidos
pelos advogados defensores de presos políticos.
277
destas associações internacionais de juristas era parte das próprias trajetórias internacionais de
vários dos integrantes da CIDH, como era o caso de Andrés Aguilar Mawskey, integrante da
missão que visitou a Argentina e, ao mesmo tempo, membro da CIJ.
Como assinalara no capítulo anterior, os vínculos entre o caso argentino, as
associações internacionais de juristas e a CIDH preexistiam ao golpe de Estado de 1976. A
CIDH foi contatada por profissionais do direito argentinos e europeus em 1971 em relação à
desaparição do advogado Nestor Martins e a detenção de vários dirigentes sindicais, entre os
quais se encontrava o líder da CGT A, Raimundo Ongaro. Depois do assassinato dos
advogados Rodolfo Ortega Pena e Silvio Frondizi em 1974, a CIDH foi contatada novamente
pela CIJ para que investigue as denuncias apresentadas por Fragoso sobre as condições para o
exercício da defesa de presos políticos na Argentina.
Um ano depois, em setembro de 1976, a CIJ enviou um novo relatório atualizado à
CIDH fazendo um detalhe da situação argentina, como uma maneira de influir ante a CIDH
para que interviera. Uma terceira comunicação foi realizada em abril de 1977. Nela se
apresentaram ‘novos e alarmantes fatos’ ligados à situação dos advogados defensores, e seis
meses depois, em outubro de 1977, a CIJ fez um novo pedido de tratamento do caso argentino
diante a CIDH. Como assinala um dos integrantes desta missão, estas associações e suas
próprias missões in loco tem uma importância crítica para o trabalho da CIDH em tanto “...
uma considerável proporção dos casos da Comissão e, certamente, os mais importantes, vem
destas associações”.
541
No próprio relatório elaborado pela CIDH se destacam estes vínculos:
“La CIDH, desde el mes de octubre de 1975, (…) ha venido estudiando con
preocupación las denuncias e informaciones recibidas relativas a la situación de los
abogados defensores (…) Es así como la CIDH, sobre la base del informe
presentado por la Comisión Internacional de Juristas, trasmitió al gobierno
argentino, denuncias sobre violaciones a derechos humanos en las cuales se
alegaba la muerte, desaparición, detención o malos tratos de abogados
defensores”
542
.
541
Em: Farer, 1977: 516.
542
En: Informe CIDH: 255, Grifos meus. Esta parte do informe dedicado à situação dos advogados defensores
esta acompanhada de uma listagem de advogados defensores detidos sem processo.
278
Os vínculos com os profissionais do direito locais engajados com a causa pelos
direitos humanos também foram críticos para que a CIDH reconhecera positivamente o caso
Argentino e enviasse uma missão ao país. Os documentos elaborados pela APDH e os escritos
apresentados pelos integrantes da sua comissão jurídica constituíram uma parte importante
dos insumos utilizados pelos peritos da CIDH.
Esta proximidade era possível para uma instituição como o CELS a partir das
possibilidades abertas a uma figura como Emilio Mignone, fortemente ligado aos EEUU.
Trata-se de relações profissionais e de amizade que Mignone havia criado previamente. Como
assinalara o próprio Mignone: “... o secretario executivo da CIDH era um antigo amigo meu, o
diplomata e professor universitário chileno Edmundo Vargas Carreño”.
543
A amizade com
vários destes diplomatas que moraram em Washington durante os anos em que Mignone
cumpria funções para a OEA fez possível que o próprio Mignone se reunisse seis meses antes
em Washington com os funcionários da CIDH para contribuir a preparar a visita à Argentina.
Focalizando na atuação dos exilados, os contatos com os peritos internacionais foram
um elemento chave, decisivo no sucesso de suas atividades. A comissão de direitos humanos
da OEA, com sede em Genebra, constituiu um espaço muito importante ocupado pelos
profissionais do direito exilados na Europa. Esta participação esteve mediada pelos contatos
prévios com outras associações internacionais de juristas e pelo compromisso destas em
outorgar a palavra aos defensores argentinos. Estes vínculos foram a condição necessária para
a atuação deste advogados exilados. Segundo Rodolfo Mattarollo:
“La mecánica por la que un particular podía hablar en las sesiones de las Naciones
Unidas era precisamente ocupar el espacio de palabra concedido a organizaciones
no gubernamentales con estatuto consultivo en Naciones Unidas. La organización
no gubernamental que me cedió la tribuna en el 76 fue nada menos que la
Comisión Internacional de Juristas, un organismo muy respetado, de larga tradición
y que consideró inadmisible lo que estaba ocurriendo en la Argentina y necesaria
su denuncia. Entonces, a través de una gestión que hicimos varios abogados
argentinos exiliados en Europa, nos entrevistamos con las autoridades de estas
543
Em: Mignone, 1991: 190 e 111. Grifos meus.
279
ONG. Yo llego [a la ONU] con mandato de esta ONG y hago una descripción
breve, que queda registrada, de esta metodología de las desapariciones forzadas”
544
.
Estas intervenções tiveram como resultado a formação de um grupo de trabalho sobre
desaparições e um outro sobre torturas: “A gente começou a trabalhar os primeiros projetos de
declaração e de convenção internacional sobre desaparições”.
545
Em apoio a todas estas
atuações, cada vez que seccionava a comissão, os advogados realizavam simultaneamente em
Genevra uma serie de conferencias de imprensa acompanhados dos próprios representantes
das associações de parentes das vítimas. Estas intervenções diante a ONU, mediadas pelas
associações internacionais de juristas, permitiam também vincular às associações locais de
direitos humanos com a comunidade internacional.
“Nosotros presentamos denuncias e hicimos lobby (…) continuamos esa tarea
preparando, ampliando el espacio para que los organismos de la Argentina salgan
al exterior (…) y encuentren preparado el terreno, encuentren que ya había lobby,
que tienen identificados a los interlocutores, que se les explican cómo son los
procedimientos (…) ya a mediados de 1976 hicimos la primer denuncia en la
Subcomisión …
546
.
Estas ações todas empreendidas pelos defensores de presos políticos supõem o
reconhecimento por parte dos profissionais do direito argentino do valor destas associações
internacionais. Em reconhecimento à ação dos advogados que trabalhavam a favor da ‘causa
anti-ditatorial’, a CADHU instituiu um premio “Fundadores de la CADHU: Mario
Hernández, Roberto Sinigaglia, Mario Amaya, Miguel Zavala Rodríguez e Daniel
Antolokez”. Desde o ponto de vista dos organizadores, tratou-se de uma “... homenagem às
personalidades e instituições que, ao nível internacional, tem demonstrado a maior
preocupação pelo restabelecimento dos direitos fundamentais do nosso país” (ibidem, minha
tradução).
Na eleição do nome, todos colegas assassinados e desaparecidos na Argentina, se
reivindicava a figura do advogado defensor de presos políticos. O ato de lhes homenagear foi
a oportunidade de traçar um perfil destes advogados. Nele se destacam qualidades como o
544
Entrevista a Mattarollo realizada por Vera Carnovale para el archivo de Memoria Abierta.
545
Entrevista a Rodolfo Mattarollo realizada por Vera Carnovale para o arquivo de Memoria Abierta.
546
Entrevista a Juan Carlos Rossi (nome apócrifo) realizada por Laura Saldivia.
280
valor e a coragem. Trata-se de “brilhantes defensores de presos políticos que levaram a frente
com valor, dignidade e coragem, sua atividade profissional” e que por isso “... tem oferecido
as suas vidas pela defesa dos direitos humanos, da liberdade, da democracia e da dignidade do
povo argentino”.
547
Contudo, o valor deste premio reside no fato de estar dedicado ao reconhecimento dos
juristas internacionais. O que simboliza a aspiração destes profissionais argentinos de se
inscrever dentro deste espaço moral conformado pela ‘comunidade jurídica internacional’. Em
1977 o premio foi outorgado a Lelio Basso e a Pierre Bercis.
Neste contexto, a figura de Hipólito Solari Yrigoyen foi lembrada por uma das
entrevistadas como a figura ‘aglutinante do exílio dos advogados’, atributo que deriva da
posse de um amplio capital de relações sociais constituídas como resultado da sua atuação
como dirigente da UCR, como senador da nação e como advogado defensor de presos
políticos. Como lembra uma entrevistada: “Ele era um pouco a figura aglutinante porque
ajudava a organizar, ajudava com os contatos aqui na Argentina, tinha uma rede de relações
mais abrangente que a nossa e tinha uma maior repercussão a sua presencia e a sua
intervenção diante dos organismos internacionais e diante dos países”.
548
Seu caso era também especialmente destacado na imprensa nacional francesa em tanto
permitia mostrar com clareza que a repressão do Estado não estava dirigida aos chamados
‘subversivos’ que atuavam clandestinamente em ações armadas mas que chegava a homens
públicos que desenvolviam sua atividade na legalidade. Uma noticia publicada na Franca
caracterizava seu caso nos mesmos termos, “Seu caso não é banal: é um senador, não um
guerrilheiro. Ele esta longe de qualquer vinculação com os grupos armados da ultra esquerda,
ele pertence a UCR, velho partido moderado e de tradição democrática, alérgico a toda
ditadura e aos golpes de Estado...”.
549
A descrição de Hipólito Solari Yrigoyen que aparece
nos documentos oficiais do Departamento dos EEUU a quem se lhe define como “.... um
homem de grande coragem e princípios, de uma certa forma quixotesca, um progressista
moderado e convencido constitucionalista, advogado dos direitos civis e de profundas
547
Em: Bulletin CADHU, junio-julio 1978. Minha tradução.
548
Entrevista realizada por mim a Malena Bordenave (nome apócrifo). Bs. As. 2002.
549
Em: Le Point. 16 de Janeiro de 1978. Minha tradução.
281
convicções democráticas” ilustra quais eram as propriedades sociais que lhes permitiam a
estes profissionais do direito argentino participar desta esfera internacional.
550
A importância desta rede internacional criada em volta à causa argentina pode-se
sintetizar ao considerar um evento especialmente destacado pelos profissionais do direito
entrevistados: o ‘Colóquio sobre a desaparição forçada de pessoas’ que teve lugar no próprio
senado nacional o dia 31 de janeiro de 1981. Na convocatória ao colóquio figuram tanto o
GAAEF quanto a Association Internationale des Juristes Démocrates (AIJD), o Centre pour
l’Indépendance des Juges et des Avocats, a Commission Internationale des Juristes (CIJ), a
Fédération Internationale des Droits de l’Homme (FIDH), o Mouvement International des
Juristes Catholiques (MIJC) e a Union Internationale des Avocats (UIA). Ao longo das
sessoes, se apresentaram tanto advogados argentinos exilados, como Solari Yrigoyen, quanto
advogados argentinos que participavam de associações de direitos humanos criadas
recentemente no país, como Raúl Alfonsín, Augusto Conte e Alberto Pedroncini, integrantes
da APDH e Emilio Mignone, fundador do CELS. Participaram também figuras do direito
francês como o advogado Nuri Albalá, o magistrado Louis Joinet e outros juristas
reconhecidos internacionalmente, como o premio novel da Paz, o advogado irlandês Sean Mc
Bride, fundador de Anistia Internacional, Neal Mc Dermott, secretário da CIJ, Joe Nordman,
presidente da AIJD ou Louis Pettiti, presidente do Movimento Internacional de Juristas
Católicos e juiz da Corte Européia de Direitos do Homem. Participaram também dirigentes
políticos dos principais partidos da oposição, como o ex presidente Arturo Illia, representando
à UCR e Leônidas Saadi, pelo PJ assim como figuras de destaque da política francesa como
Lionel Jospin e François Mitterand. Um lugar de destaque tiveram as vítimas diretas da
repressão e seus parentes, convocados na Associação Mães de Praça de Maio. As
apresentações foram logo publicadas em forma de livro sob o título: “Le refus a l’oublie’
prologado pelo escritor argentino residente em Paris, Julio Cortazar.
A convocatória a este colóquio foi a expressão acabada da participação dos advogados
exilados na comunidade jurídica internacional. Sua organização ilustra adequadamente a
cristalização de redes de relações, princípios de recrutamento e valores morais em volta à
causa dos direitos humanos. Esta reunião condensa as relações criadas entre o universo dos
550
Vale a pena salientar o contraste entre estes casos aceitados pela CIDH como violações aos direitos humanos
com os casos formalmente similares de advogados desaparecidos ou detidos sem processo denunciados diante a
CIDH em 1971 que forma rejeitados, notoriamente o caso de Nestor Martins desenvolvido no capítulo 2.
282
profissionais do direito exilados, os parentes de detidos desaparecidos, os advogados
residentes na Argentina e os participantes da comunidade jurídica internacional.
3. 3. 4 Peritos do internacional
Para compreender a complexidade de circunstancias que criaram a oportunidade de um
reconhecimento mutuo entre profissionais do direito argentinos no exílio e integrantes da
comunidade internacional de juristas, vale a pena salientar alguns traços das trajetórias
biográficas e profissionais dos juristas internacionais que integraram as missões descritas
anteriormente ou que foram reconhecidos pelos exilados pelo engajamento com a causa
argentina.
O advogado chileno Vargas Carreño integrou o staff da CIDH na sua condição de alto
funcionário público e professor universitário, notável do direito e dedicado à política
profissional que, junto com muitos outros integrantes da CIDH, estavam então condenados ao
exílio pelos regime militares que dominavam América latina ao longo dos anos 70.
551
Este
perfil, que combinava o exercício do direito e da função pública, a atividade acadêmica e a
diplomacia era compartilhado com outros dos integrantes da CIDH que integraram a missão à
Argentina como Andrés Aguilar Mawdsley, de Venezuela, Luis Demetrio Tinoco Castro, de
Costa Rica ou Marco Gerardo Monroy Cabra de Colômbia, entre outros. Chegados de
diferentes países de América latina e Central, estes juristas haviam iniciado sua carreira
internacional com a realização de estudos de pós-graduação nos EEUU. Antes de ingressar à
CIDH haviam exercido funções como embaixadores perante os EEUU ou a OEA.
O representante da CIDH, Tom Farer, tinha entre as suas credencias o exercício da
função pública na estratégia Council of Foreing Relations norte-americana, a atividade
acadêmica na Universidade de Columbia e Harvard e seu passo pela Carnegie Endowment for
International Peace. Alguns deles, inclusive, mantinham também uma importante atividade
como sócios de estudos profissionais internacionais. Atualmente, todos eles são reconhecidos
como ‘peritos’ em direitos humanos. Pierre Bercis era em 1977 o presidente do Club des
551
Dezalay e Garth, 1998 a.
283
Droits Socialistes de l’Homme e integrante do parlamento francês. O grupo de parlamentares
europeus que pertenciam ao socialismo haviam impulsionado esse ano uma sessão pública
especialmente dedicada a atender a situação da Argentina e contou com os depoimentos das
próprias vítimas da repressão, dos juristas integrantes da CIJ, de Anistia Internacional e da
CADHU.
Lélio Basso, o outro jurista premiado pela CADHU, foi ele mesmo vítima dos campos
de concentração durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1940). Uma vez em liberdade,
participou do movimento conhecido como Resistência. Finalizada a guerra, foi eleito
deputado e senador pelo PS a começos dos anos 70. Seu primeiro ‘contato’ com América
latina remonta-se a 1965, quando um grupo de exilados venezuelanos na Itália e integrantes
do ‘Comité para la Amnistía y la libertad de los prisioneros políticos de Venezuela” pediram a
Basso que fosse o relator principal da ‘Conferencia Européia para a anistia dos detentos
políticos e para as liberdades democráticas de Venezuela” convocada o 8 de junho de 1965
em Roma. Entre as adesões a esta iniciativa se destacam os nomes de figuras que participaram
da denuncia da situação argentina a inícios dos anos setenta como Jean-Paul Sartre, Bertrand
Russell, Ernesto Sábato e Julio Cortázar.
552
A mediados dos anos setenta, Basso continuou
ligado a América latina através da sua atuação como presidente do Tribunal Russell II e da
recentemente criada Ligue des Droits et la Liberation des Peuples
553
A primeira missão dirigida a pedido da CIJ foi realizada por Heleno Cláudio Fragoso.
De nacionalidade brasileira, era então professor de direito penal no Rio de Janeiro. Entre os
traços destacados da sua trajetória, se encontram seus fortes vínculos com a comunidade
internacional de juristas, em tanto atuava como professor visitante da Faculdade de Direito da
Universidade de Nova York. Era também secretario general adjunto da Associação
Internacional de Direito Penal e Vice-presidente da Ordem de Advogados do Brasil (AOB).
Apenas dois anos depois desta missão, foi eleito integrante do Comitê Executivo da CIJ.
Jean Louis Weil, advogado francês, veio à Argentina a pedido da FIDH. Ele tinha feito
várias missões relacionadas com o desaparecimento de cidadãos uruguaios em países de
América do Sul em representação da FIDH e/ou de Anistia de Franca, da qual era o seu vice-
552
Em: MULAS, 2005.
553
Para uma breve resenha historica desta Liga, ver: www.grisnet.it/FILB
284
presidente. Também integrou o Secretariado Internacional de Juristas pela Anistia em Uruguai
(SIJAU), associação criada na Franca em 1976 por um conjunto de advogados. Seus relatórios
sobre as visitas in loco a Uruguai a fines de 1977 e a Porto Alegre em 1978 seriam utilizados
logo pela CIDH. Daniel Jacoby chegou à Argentina pelo mandato da FIDH e do Mouvement
Internationale des Juristas Catholiques. Havia participado 3 anos antes de uma missão
equivalente em Iran. Lorde Averbury veio na missão enviada por Anistia Internacional. Foi
chefe do comitê de direitos humanos do parlamento inglês.
As trajetórias destes ‘peritos’ revelam a acumulação dos atributos de ‘nobreza’ que os
legitimam dentro deste universo como é o caso de Sean Mc Bride: advogado e jornalista, filho
de revolucionários irlandeses, nascido na Franca e prisioneiro do governo inglês antes de ser
eleito deputado e ministro de assuntos exteriores e signatário da convenção européia de
direitos humanos. Seu ativismo no seno da CIJ o levou a criar na ONU, a figura do Alto
Comissionado dos Direitos Humanos e a própria Anistia Internacional.
554
Um olhar mais em detalhe da trajetória do magistrado francês Pierre Larroquette vai-
nos permitir perceber a complexidade do processo através do qual vai se conformando esta
rede internacional de peritos. No relato de Larroquette, vão se entretecendo as trajetórias de
várias das figuras mencionadas neste trabalho, notoriamente as de Lélio Basso e Rodolfo
Mattarollo. Através das suas palavras se destacam também os itinerários que fazem com que
estes ‘peritos’ internacionais vão se deslocando tanto dentro de distintas organizações que
pertencem a este campo associativo como dentro do Estado:
“Pertenezco a la generación de la guerra de Vietnam (..) cuando tenía 17 años vine
a París para estudiar derecho (…) mis padres no tenían dinero de manera que me
convertí en educador para costear mis estudios. Este trabajo me apasionó (…) y
abandoné mis estudios para dedicarme a ser un ‘educador de la calle’
555
(…)
Después vino la guerra de Algeria donde intervine como instructor militar. Estuve
en Algeria 6 meses pero la guerra abarcó un período de 3 años de mi vida. La
experiencia de la guerra cambió mi vida. Después volví a Francia y en 1963 pasé el
concurso para entrar a la Escuela de la Magistratura (…) cuando entré a la Escuela
estaba muy presente toda la conmoción producida por la guerra de Algeria y por el
surgimiento del derecho de la guerra de descolonización. Pero en la escuela uno
554
A trajetória deste jurista pode-se encontrar desenvolvida em Dezalay e Garth, 1998 a: 25.
555
‘educateur de rue’ es la expresión original utilizada por Joinet. Entrevista realizada por mi. 2004.
285
estudiaba sobre la justicia, Montesquieu, cosas que no tenían nada que ver con los
tribunales militares franceses que juzgaron a los militantes del FLN (risas). Y
entonces, un grupo de nosotros comenzó a organizar cursos de noche, alternativos
(…) Entonces, cuando nos reunimos para crear una asociación, yo propuse crear un
sindicato de magistrados. Yo ya había creado un sindicato de educadores, por eso
tenía más experiencia que mis colegas que, además, eran 5 años más jóvenes. Fui
elegido entonces presidente del Sindicato (…)
Mi primer contacto con América latina data de la época del gobierno del Frente
Popular de Salvador Allende. Entonces había en Chile un debate muy fuerte sobre
la sanción de la ley de nacionalización del cobre. Un cargamento de cobre había
sido confiscado en Francia y la corte de casación francesa había confirmado la
confiscación diciendo que el cargamento no pertenecía a Chile sino a una sociedad
norteamericana. Entonces, en tanto que presidente del Sindicato de la Magistratura,
fui contactado por el sociólogo Manuel Antonio Garretón, que dirigía un centro de
investigación y que yo había conocido en Francia cuando hacía sus estudios de
postgrado. Era el año 1973 y yo partí a Chile para mostrar que no todos los
magistrados franceses teníamos el mismo punto de vista sobre la ley de
nacionalización (…) Esta experiencia fue una toma de conciencia (…) Al en
Chile conocí a Lelio Basso, senador italiano antifascista, que es mi padre espiritual
(…) Cenamos juntos con otros juristas chilenos y con juristas que integraban el
Tribunal Russell (…) y ahí se tomó la decisión de convertir el Tribunal Russell en
un Tribunal Permanente por el Derecho de los Pueblos contra todos los
imperialismos. Yo fui un pequeño militante de este Tribunal, fui relator sobre la
situación en Chile y luego sobre la Argentina (…)
Mi primer misión en América latina fue en la Argentina (…) la FIDH me convocó
para esta misión en 1975 (…) En la Argentina, entré en contacto con los abogados
de la Liga, con los ideólogos del ERP como Rodolfo Mattarollo y con el
movimiento Montoneros (…) Los Montoneros me contactaron para que los
auxiliara a demostrar que eran un movimiento de liberación nacional que debía
beneficiarse de la protección de la Convención de Ginebra (…) estudié
técnicamente la cuestión y mi conclusión fue negativa (…) También trabajé mucho
para la Asociación Internacional de Juristas Democráticos (…) Cuando volví
durante la dictadura para otra misión, conocí a Raúl Alfonsín [de la APDH] (…)
Cuando terminó la dictadura, me ocupé de solicitar las extradiciones de los
militares argentinos acusados de la desaparición de ciudadanos franceses (…) la
286
gran revolución de los derechos del hombre se da a partir de la situación de
denuncia de América latina…”
556
.
A trajetória de Pierre Larroquette permite iluminar algumas das condições que fizeram
possível este engajamento militante e das propriedades sociais de quem vão protagonizar uma
mudança substantiva nas formas do ativismo internacional ligado aos direitos humanos.
Enquanto os ativistas ligados à criação do CELS ou aos juristas que integravam a
CIDH compartilhavam um perfil elitista, eram verdadeiros ‘notáveis do direito’, a geração
que se incorporou depois ao engajamento com a causa dos direitos do homem inclui, ao invés,
profissionais com o perfil de Larroquette. Trata-se de recém-chegados ao direito e
desprovestes de um capital herdado de relações sociais e familiares significativo. Larroquette
é um homem que vem do interior da Franca (Nevers, 250km de Paris) que deve financiar os
seus estudos com trabalho. Impregnado de inquietações sociais que aplicou no seu trabalho
como educador de rua e também através de um forte ativismo estudantil, foi a experiência da
guerra de Vietnam e de Algeria – e não a luta contra o fascismo - o que marca a sua trajetória
profissional. Seu engajamento com a América latina lhe permite prolongar o seu ativismo a
favor do direito dos povos à liberação nacional e a luta contra o imperialismo norte-
americano. Esta foi a porta de ingresso a este universo do internacional. Larroquette finalizou
a sua carreira como ‘perito independente’ da ONU na área dos direitos humanos, logo de mais
de vinte anos presidindo a Comissão de Direitos Humanos desta organização e logo de se
consagrar também como especialista na sua condição de conselheiro jurídico em direitos
humanos de cinco primeiros ministros franceses, entre os quais se encontra Lionel Jospin e o
presidente François Mitterrand. Em 1999 recebeu o Human Rights Awards outorgado pelo
International Service for Human Rights a quem realizam uma contribuição significativa na
área dos direitos humanos, especificamente dentro da ONU.
Esta trajetória permite entrever que o engajamento com a causa Argentina e latino-
americana em geral, lhes garantiu a estes profissionais do direito a sua própria reprodução
além do evento inicial da luta contra o fascismo (no caso dos europeus) ou da luta contra o
comunismo (no caso dos americanos). Como assinala Nicolas Guilhot, entre os principais
beneficiários dos programas internacionais de promoção dos direitos humanos se encontram
não só as vítimas, mas fundamentalmente, os próprios consultores, peritos e especialistas.
556
Entrevista realizada por mim a Pierre Larroquette (nome apócrifo). Junio de 2004. Paris. Minha tradução.
287
3. 3. 5 Os advogados como ‘vítimas do terrorismo de Estado’
A pesquisa das condições existentes para o exercício profissional do direito foi um dos
eixos centrais da movimentação destas associações internacionais, ao ponto que a primeira
missão levada a frente na Argentina esteve dedicada exclusivamente a fazer um registro da
situação dos advogados ‘especializados na defesa de presos políticos’. Entre os elementos
decisivos que permitiram legitimar as demandas dos profissionais do direito argentinos na
esfera internacional se encontram o fato de reunir a condição de ´vítima e de profissional do
direito’.
O reporte elaborado em março de 1975 por Fragoso se intitulava justamente “A
situação dos advogados defensores na República Argentina” e tinha por objetivo conhecer a
situação de aqueles profissionais que exerciam a defesa de presos políticos.
557
Esta mesma
preocupação se repete em Anistia Internacional que, em setembro de 1975 deu a conhecer um
informe dedicado especificamente à situação dos advogados que assumiram a defesa legal dos
‘dissidentes políticos’ na Argentina. Este informe assinalava que “... devido à natureza
especial dos seus deveres, os advogados são particularmente vulneráveis a sofrer as
conseqüências de suas corajosas ações...” colocando-se em destaque o caso do integrante da
Gremial assassinado por forças para-policiais em 1974, Silvio Frondizi, irmão do ex
presidente e fundador da Liga, Arturo Frondizi.
558
No primeiro reporte, Fragoso descreve a situação ‘extremadamente seria’ enfrentada
pelos advogados que defendem a pessoas ‘acusadas de ter cometido crimes políticos ou de
haver envolvido em atividades políticas’ da seguinte maneira:
los abogados son víctimas de amenazas de muerte, atentados contra sus vidas con
explosivos arrojados en sus oficinas y sus casas, han sido expulsados de sus cargos
en la universidad, han sido buscados ilegalmente a cualquier hora del día y de la
noche, han sido víctimas de detención, se han visto obligados a dejar el país o a
557
Relatório “A situação dos advogados defensores na República Argentina” CIJ. 1975.
558
Em: “Os advogados perante a tortura”. Relatório de Anistia Internacional reproduzido na Revista da CIJ.
N°16, junho 1976. Vale a pena salientar que esta revista, que recomendava a organização dos profissionais na
denuncia das violações aos direitos humanos era recebida pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos
Aires e integrava o acervo de sua biblioteca nesses anos.
288
llevar una vida clandestina suspendiendo sus actividades profesionales, han sido
víctimas de secuestros, torturas y asesinatos”
559
.
O reporte apresenta uma listagem de trinta e dois advogados detidos a disposição do
Poder Executivo Nacional, uma outra listagem de advogados ameaçados de morte e uma outra
listagem dos advogados assassinados. Este relatório se ocupa especificamente da situação da
Associação Gremial de Advogados que tem tomado “... uma posição enérgica e corajosa na
defesa dos seus integrantes e colegas” e que “... como resultante da repressão exercida contra
seus membros, tem deixado de existir” (ibidem).
O engajamento com a defesa dos presos políticos tinha-se convertido numa atividade
de risco para a vida destes profissionais. Fragoso assinalava no seu relatório de março de
1975: “... os advogados que trabalham em processos políticos sistematicamente rejeitam este
tipo de casos, alegando uma completa ausência de garantias. A defesa dos presos políticos
passou a ser feita por defensores de oficio, limitada a uma defesa ritual, sem eficácia”
560
,
problema que se incrementou depois do golpe de Estado.
Na missão Weil, este advogado destacava as ‘grandes dificuldades’ para achar um
profissional interessado em defender a dirigentes sindicais detidos “num contexto no qual se
faz impossível qualquer defesa política já que inúmeros advogados argentinos tem sido
assassinados ou deveram sair do pais para o exílio”.
561
O primeiro advogado procurado
assim que chegara Weil, rejeitou o oferecimento ‘por motivos principalmente de segurança’.
No terceiro reporte, a comitiva expõe as dificuldades para encontrar advogados com
disposição para assumir as defesas dos prisioneiros políticos: o testemunho de um prisioneiro
político reproduzido no reporte indica justamente esta dificuldade: “... o primeiro defensor
que havia escolhido foi assassinado, o segundo foi vítima de ameaças e deixou a Argentina e
agora vive em Paris e o terceiro não tem a coragem de me entrevistar na cadeia, fato que
compreendo bem, levando em conta a sorte dos que o precederam”.
Um outro depoimento reproduzido neste relatório corresponde a um advogado cujo
escritório havia sido objeto de um atentado com bombas: “... se aproximar até uma prisão,
559
En : « La situación de los abogados defensores en la República Argentina » ICJ. 1975. Mina tradução. Grifos
meus.
560
Relatório Fragoso, op.cit. 1975. Minha tradução.
561
Relatório Weil, op.cit. minha tradução, grifos meus.
289
assim como as delegacias ou, inclusive, perante os tribunais por um affaire político supõe uma
atitude heróica ou suicida. São poucos os advogados que tem essa coragem...”.
562
O relatório
continua com este diagnóstico: neste contexto, “... os advogados não especializados neste
assunto [a defesa dos presos políticos] desistiram de aceitar as defesas sobre a base do risco
envolvido nesta tarefa, qualquer que fossem os honorários oferecidos...”(ibidem).
Em 1978, a CIJ voltou a destacar o problema dos profissionais do direito na
Argentina:
“la situación posterior al golpe de Estado que depone al gobierno de Estela
Martínez de Perón se ha deteriorado aún más. Aunque la violencia es generalizada
y tiene por objetivo muchos sectores de la vida nacional, la situación de los
abogados defensores y miembros del poder judicial es particularmente crítica.
Muchos de los abogados mencionados en el reporte de Fragoso como habiendo
recibido amenazas o atentados contra sus vidas, así como muchos otros, han sido
asesinados o simplemente han desaparecido...”
563
.
Este novo relatório foi acompanhado por uma serie de anexos nos quais se detalhavam
casos ‘típicos’ de advogados ou juizes. Os dados são apresentados segundo uma classificação.
Exemplo: “Caso A: Detenção de Carlos Mariano Zamorano, advogado, desde o 5 de
dezembro de 1974. Habeas corpous apresentados no seu favor”. Também se apresentavam
listagens de advogados assassinados (incluindo dados do assassinato e uma curta história da
sua atuação profissional e política) e listagens de advogados desaparecidos ou detidos a
disposição do PEN.
No relatório da missão Sanguinetti (1978) se enuncia como prioridade a necessidade
de resolver a situação dos advogados detidos e sugere “... que delegações de associações
profissionais dos países ocidentais cheguem até a Argentina para apreciar diretamente a
situação dos advogados detidos. Devem fazer-lo com o apoio de suas respectivas embaixadas
na medida que o apoio dos seus governos lhes será indispensável para poder ver aos
562
Op.cit. Grifos meus.
563
“Attacks on the independence of Judges and Lawyers in Argentina”. Bulletin of the Centre for The
Independence of Judges and Lawyers. Vol. 1. Nro. 1. February 1978. Mi traducción
290
detidos”.
564
Nestes relatórios se reivindicava a figura do defensor para denunciar ao governo
militar porque é o seu dever proteger o Estado de direito, quer dizer, garantir “... a completa
liberdade do advogado defensor para lhe permitir cumprir a missão que lhe é confiada, com
independência da natureza do caso” (ibidem).
O relatório elaborado por Anistia Internacional em 1975 continha uma serie de
recomendações destinadas aos ‘profissionais do direito’ e as ‘organizações profissionais’, lhes
incitando a que levaram a frente ações de apoio a seus colegas. Estas recomendações incluíam
distintas formas de organização e cooperação e estavam dirigidas às associações profissionais
nacionais e internacionais, aos advogados defensores e aos professores em direito, “... quem
deveriam incluir o ensino dos direitos humanos nos programas de estudo de direito penal e de
direito internacional”.
565
Associações como Anistia Internacional ou a AIJC geriram a saída do país dos
defensores argentinos ameaçados. No apêndice destes relatórios se reproduz um ‘Projeto de
Princípios para um Código de Ética para os Advogados” cuja aspiração era conseguir que “...
as associações profissionais de advogados adotem e divulguem um código de ética
[universal?] que especifique as obrigações dos advogados em relação com a tortura ou outra
pena ou tratamento cruel, inumano ou degradante dos detidos”. Neste projeto se detalham as
responsabilidades dos advogados defensores, dos fiscais, juizes e demais autoridades judiciais
que exercem funções de responsabilidade perante estas situações.
Um outro exemplo do tratamento que davam as associações internacionais a este
assunto foi um dos primeiros casos reconhecidos pela CIDH, justamente o de Hipólito Solari
Yrigoyen. Entre a data de recepção da denuncia sobre o seu desaparecimento, o 24 de agosto
de 1976 e o 18 de novembro de 1978, a CIDH continuou decorrendo o caso. Resolveu,
finalmente, que os fatos denunciados: “... constituem gravíssimas violações ao Direito, a
liberdade, a segurança e integridade da pessoa (art.I), ao direito à residência (art. VIII), ao
direito a justiça (Art. XVIII) ao direito de proteção contra a detenção arbitraria (art.XXV) da
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem”. Ao mesmo tempo, ‘recomendou
ao Estado nacional que: “a) disponha um inquérito completo e imparcial para determinar a
564
Conclusão do reporte da missão Sanguinetti reproduzido no Bulletin CADHU. Abril-maio 1978. Minha
tradução.
565
Em: Revista da CIJ, op.cit.
291
autoria dos fatos denunciados, b) (...) sancione aos responsáveis de tais fatos e c) informe à
comissão, dentro de um prazo máximo de 30 dias, sobre as medidas tomadas para pôr em
prática as recomendações indicadas na presente Resolução” (Resolução 18/78. CIDH.
OEA).
Nesta mesma data, a CIDH se pronunciou sobre o caso de Mônica Maria Candelária
Mignone assinalando que os fatos denunciados constituem graves violações aos direitos
humanos e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. A CIDH recomendou
ao governo argentino a libertação de Mônica Mignone ou seu submetimento ao devido
processo (Resolução N° 21/78. CIDH. OEA).
Repetidamente se menciona nos relatórios o fato de ser líderes de partidos políticos,
assessores legais de sindicatos, parlamentares, funcionários públicos ou professores
universitários. Particularmente se coloca a ênfase nos casos em que estes profissionais foram
seqüestrados em situações nas quais cumpriam com o exercício profissional: entrando ou
saindo dos tribunais, entrando ou saindo dos seus escritórios privados. Mario Hernández e
Roberto Sinigaglia foram definidos como advogados ‘de grande prestigio na sua profissão e
que atuaram como defensores numa quantidade de juízos importantes”.
Como vai se ver, as trajetórias dos defensores de presos políticos exilados acaba se
assemelhando a trajetória destes peritos internacionais. Isto porque a sua ‘conversão’ à
condição de ‘peritos’ vai ser uma das possibilidades também abertas aos próprios defensores
de presos políticos que atuaram no exílio e que vão a integrar este universo transnacional de
‘peritos’ em direitos humanos.
3. 4 O exílio como uma ‘grande escola política’
As decisões assumidas pelas conduções partidárias as que pertenciam alguns destes
advogados, o risco sobre a própria vida e questões ligadas ao ciclo de vida do grupo familiar,
são elementos que confluem nos relatos dos profissionais do direito que foram para o exílio.
Assim, para Mattarollo, a conjuntura política aparece associada a elementos da sua biografia:
292
“Era difícil [permanecer en la Argentina] porque en ese momento ya teníamos dos
hijos muy pequeños y muy pocos medios económicos, más que alguna renta muy
reducida del partido (…) Pero si hay un hecho que marca una divisoria de aguas es
el asesinato de Rodolfo Ortega Peña el 31 de julio de 1974 (…) ahí empecé a
pensar en que debía preservar a mi familia”
566
.
Se o risco sobre a própria vida deixava de ser um problema a partir da saída do país, as
dificuldades profissionais se continuavam no exílio. Existia a possibilidade de trabalhar
legalmente, mas se precisava para isso ter o estatuto oficial de refugiado político ou ter a
cidadania francesa. Fora destas condições, a apertura de um escritório próprio, a carreira
política ou o ingresso na Justiça eram instancias profissionais que estavam vedadas para os
advogados argentinos residentes na Franca e carentes de uma titulação outorgada por esse
país. Diante destas impossibilidades, alguns advogados viviam do ensino do espanhol em
academias privadas ou públicas enquanto que outros se integravam a associações civis onde o
seu conhecimento experto era valorado. Este foi o caso dos advogados de presos políticos que
se integraram ao Mouvement contre le Racisme et pour l’Amitié entre les Peuples (MRAP),
associação inicialmente criada para combater o anti-semitismo (1949) e cuja área chave de
intervenção era justamente a defesa dos ‘direitos dos estrangeiros’. Dentro desta associação,
os exilados podiam fazer apelo a sua ‘expertise’ profissional formulando demandas e fazendo
todo o trabalho jurídico que logo era assinado por seus colegas franceses.
Mas, em outros casos, a experiência do exílio os colocou de cheio no cenário do
direito internacional. Este foi o caso, entre outros, de Rodolfo Mattarollo. A distancia
percorrida nos oito anos do exílio ilustra a maneira em que a atividade de denuncia do
Terrorismo de Estado vai conformando novas oportunidades profissionais que vão modelando
a sua trajetória como ‘perito’. Ao fazer uma resenha dos inícios da sua vida de trabalho na
Franca, Mattarollo assinala: “Eu, o primeiro trabalho que tive foi o de distribuir bulas nas
caixas de correio de apartamentos”.
567
Estes inícios se reverteram de maneira extraordinária
poucos anos mais tarde ao ponto que ao final do seu exílio se encontra ocupando um posto
numa dependência oficial como responsável de uma das seções da Oficina de Refugiados de
Franca, dependente do Ministério de Relações Exteriores. Mattarollo se converte, então, em:
“... o encarregado da proteção jurídica e administrativa dos 150.000 asilados de todo o mundo
566
Entrevista a Rodolfo Mattarollo realizada por Vera Carnovale para el archivo Memoria Abierta.
567
Entrevista a Mattarollo em Revista Humor. Op.cit.
293
que vivem neste país”.
568
foi responsável da divisão da África sub-sahariana que, para
Franca, é uma área geográfica extremadamente importante em assuntos de asilo e refugio,
pelos vínculos com as ex colônias dessa área de África.
569
Quando Mattarollo voltou à Argentina, a partir da volta à democracia, quem tinha
saído do país como defensor de presos políticos voltou como um profissional reconhecido
pela sua competência experta na área dos direitos humanos. Tinha somado a esta experiência
na função pública, uma experiência de atuação na ONU e uma especialização em direito
internacional na Sorbone. Este investimento na credibilidade científica seguida por vários dos
advogados entrevistados, aparece como uma maneira de compensar a origem altamente
política da ‘luta pelo direito’, tal como esta tinha sido levada a frente na Argentina dos anos
sessenta e princípios dos anos setenta.
570
Rofolfo Mattarollo enuncia como um momento chave na sua trajetória profissional a
sua ‘incursão’ nos organismos internacionais:
“… a mi me tocó intervenir en forma muy notoria en las primeras presentaciones
ante las Naciones Unidas en Ginebra. En agosto de 1976 hablé ante la Subcomisión
y en marzo de 1977 ante la Comisión de Derechos Humanos junto con el senador
uruguayo Enrique Erro que acababa de ser liberado de las cárceles argentinas”
571
.
“…personalmente, la especialización que yo pude hacer en derecho internacional
de los derechos humanos la hice a partir de esta experiencia, yendo como miembro
del concejo directivo de la CADHU a Ginebra …”
572
.
Esta atuação foi definida em termos de ‘descobrimento’, de ‘aprendizado’ e de perdida
das referencias conhecidas. Para quem se havia iniciado na defesa de presos políticos logo de
um viaje iniciatico pela América latina, a experiência profissional do exílio aparece revestida
do mesmo signo:
568
Ibídem.
569
Entrevista a Mattarollo realizada para o archivo Memoria Abierta.
570
Outros advogados como Alejandro Teitelbaum e Hipólito Solari Yrigoyen, também realizaram na Franca
estudos de pós-graduação na área do direito ou da economia internacional.
571
Entrevista a Mattarollo en Revista Humor. Op.cit. Mis cursivas. Mientras que la Subcomisión es un
organismo de ‘expertos’ la Comisión es un organismo de expertos pero que representan a gobiernos
572
Entrevista a Mattarollo realizada por Laura Saldívia.
294
“Ahí nosotros, en el exterior, empezamos a descubrir el sistema internacional de
protección de los derechos humanos (…) Tuvimos que aprender los códigos: no se
podían nombrar países, entonces yo tenía que hablar refiriéndome a la Argentina
como a un país del Cono Sur donde se había producido el último golpe de Estado
(…)
573
“Yo creo que esa fue una gran escuela política (…) además de esos 2 años o 3
vertiginosos de la Argentina (…) Pero la experiencia de refinamiento, de
decantación en mi caso se hizo fundamentalmente en el exilio. Y allí hubo una
escuela política importante que fue la de tener que actuar en un campo que tenía
una configuración distinta de lo que habíamos esperado (…) encontrábamos
interlocutores en el gobierno norteamericano cuando el soviético nos cerraba las
puertas. Entonces esto nos obligaba a despabilarnos (..) Uno descubría en Europa
occidental la legalidad de la izquierda, no? Esa legalidad que no descubrimos en
Argentina (…). Con Eduardo Luis Duhalde (…) hemos reflexionado muchas veces
sobre la paradoja de haber tenido que pagarle en Ginebra un almuerzo al
representante del gobierno del presidente Carter, cosa que no hubiéramos
imaginado que podía ocurrir jamás”.
574
A participação nestas redes internacionais de ativistas dos direitos humanos é
enunciada, desde a perspectiva nativa, como um processo de aprendizado nas maneiras
próprias deste ativismo do internacional e da atuação política em geral. As condições desta
participação aparecem enunciadas pelo advogado francês, integrante da AJD, Nuri Albalá,
quem reclamava a seus pares argentinos que: “... por motivos de eficácia se trata-se de manter
as atuações num plano estritamente jurídico”:
575
“… como encargado del Cono Sur, de la Argentina, en la Asociación de Juristas
Democráticos, el problema que encontré fue que, cuando yo hacía una gestión
cualquiera, digamos, para un comunista, un radical o un peronista, me venían a ver
los demás a reclamarme: ¿por qué hiciste algo por ellos y no para nuestro
compañero fulano? Y entonces yo les dije: bueno compañeros, no podemos seguir
así. Ustedes pueden pedirme lo que quieran pero de parte de todos. Tienen que
armar un grupo de juristas exiliados que trabaje de manera unitaria, por lo menos
573
Entrevista a Mattarollo realizada por Laura Saldívia.
574
Entrevista a Mattarollo realizada por Vera Carnovale para Memoria Abierta. Grifos meus. Vale a pena
salientar que Mattarollo se referia a esta atuação na esfera internacional como correspondendo à ‘alta’ política.
575
Reportajem a Nuri Albalá realizado pela revista Humor. Abril 1984. Grifos meus.
295
en derechos humanos. Y por fin aceptaron. Y la condición que pusieron para
constituirlo fue que la sede fuese en mi estudio para que no fuera en la casa de
ninguno de ellos, para no darle una posición de dominación sobre los otros. Y este
grupo tenía sede aquí, en este estudio, 120 rue de Rivoli”
576
A existência de posições diferenciadas entre os exilados se revela diante de casos
concretos, como foi o desaparecimento de Roberto Quieto, um importante dirigente da
agrupação armada Montoneros. No relato de Juan Carlos Rossi, diante a suspeita de uma
possível delação durante a tortura, “... as organizações peronistas que haviam começado uma
grande campanha internacional de denuncia do seqüestro, tratam de pôr um freio no exterior
porque o consideram um traidor (...) Os advogados que estávamos no exterior consideramos
que isto era algo absolutamente inaceitável que se tratava de uma vitima do terrorismo de
Estado”.
577
Esta posição ser replicou, logo, em vários dos advogados exilados, como se
evidencia no abandono da CADHU de parte de figuras como Mattarollo e a qualificação
negativa que este iria realizar sobre a mesma, ao assinalar que estava ‘politizada’ demais.
Desde o ponto de vista de Rossi, num momento dado “... vemos que a relação com as
organizações [político-militares da esquerda representadas na Franca] é inconveniente. Já não
representam referencias nem sequer limitadas... Por isso, alguns de nós nos vamos da
CADHU porque estava muito ligada as organizações...”.
578
Nesta cisão pode-se identificar toda a marca do contato com o universo internacional
do direito. Segundo Mattarollo, “... deixei a CADHU porque considerei que seu ciclo estava
cumprido, que representava um espectro político muito radicalizado e que era necessário,
nesse momento, atuar em círculos mas amplos”.
579
Estas ações todas vão distanciando progressivamente aos profissionais do direito
argentino da retórica própria das associações de defesa dos presos políticos analisadas no
576
Entrevista realizada por mim a Nuri Albalá. Paris. 09.06.2004. Já numa entrevista realizada por meio
argentino, Albalá reconheceu que uma das principias dificuldades que teve foi a de “… limar as diferencias
políticas entre os argentinos que dificultavam a tarefa sobre a base de um objetivo comum: a defesa dos direitos
humanos”. Em: “Que los dictadores no hagan su antojo”. Reportajem a Nuri Albalá publicado en la Revista
Humor. Bs. As. Abril. 1984.
577
Entrevista a Juan Carlos Rossi (nome apócrifo) realizada por Laura Saldivia. Bs. As. Grifos meus.
578
Ibídem. Grifos meus.
579
Entrevista realizada a Mattarollo por Vera Carnovale para o arquivo Memoria Abierta. Esta mesma estratégia
tendente a preservar o capital de prestigio acumulado era utilizada pelos juristas das associações internacionais.
Segundo Pierre Larroquette, eles evitavam aparecer em público junto a altos dirigentes das organizações armadas
da Argentina ou oficializar o seu trabalho de assessoramento jurídico, mesmo que tivessem estreitos contatos
pessoais. Entrevista a Pierre Larroquette (nome apócrifo) realizada por mim. Paris. 2004.
296
capítulo anterior. Desde a perspectiva de Malena Bordenave, as ações das organizações
guerrilheiras no exterior e as dos profissionais do direito exilados, progressivamente
começaram a seguir caminhos diferentes, que não se coincidia nos propósitos da ação.
580
É
possível identificar nos reportagens, homenagens e apresentações em palestras e colóquios
que estes advogados se reivindicam no cenário francês como ‘defensores da liberdade e da
democracia’, quer dizer, como partícipes de uma comunidade internacional baseada em
valores que se pretendem universais. Neste cenário, esta atividade de defesa de valores
universais diferencia e distingue a estes profissionais de outros colegas e compatriotas
exilados para quem a categoria ‘direitos humanos’ se contrapõe à defesa dos ‘direitos da
classe trabalhadora’.
3. 4. 1 Os que ‘jetonean’ no exílio
Junto as associações integradas por advogados exilados na Franca, como a CADHU e
o GAAEF, existiam também em Paris outras associações como o Centre Argentin
d’Information et Solidarité (CAIS), o Centre d’Information sur l’Argentine en Lutte (CISAL),
a Comission de Solidarité des Parents des Prisioners, Disparus et Tues en Argentine
(CO.SO.FAM), integrado exclusivamente pelas vítimas diretas ou parentes de presos políticos
e desaparecidos.
Outras associações reivindicavam publicamente a identidade profissional dos seus
integrantes como era o caso dos médicos ou jornalistas agrupados na Unión de Periodistas
Argentinos Residentes en Francia (UPARF). Outras reivindicavam a pertença sindical como
o Grupo de Trabajadores y Sindicalistas Argentinos en el Exilio (TYSAE), em tanto outras se
conformaram em volta à adscrição político-partidaria dos seus integrantes como era o caso da
Oficina Internacional de los Exiliados del Radicalismo Argentino (OIERA) o do Círculo de
Argentinos para el Socialismo (CAS). Também estavam os que reclamavam uma identidade
confessional como a Comunidad Cristiana Argentina no Exílio. Existiam também outros
espaços associativos integrados por figuras representativas da vida pública francesa como o
Groupe de Solidarité avec le Peuple Argentine.
581
580
Entrevista realizada por mim a Malena Bordenave (nome apócrifo). Bs. AS. 2002.
581
Entre os trabalhos dedicados a analise do exílio argentino na Franca, encontram-se os de Marina Franco, 2005
e Maria Oliveira-Cézar, 2000.
297
A referencia a estas associações importa em tanto permite compreender, pelo contraste
entre as posições de algumas de elas e as adotadas pelas associações integradas por advogados
descritas anteriormente, que o apelo à retórica dos direitos humanos e o fato de acudir as
instancias internacionais especializadas em vigiar pela sua defesa, não constituem fatos
‘naturais’ nem necessariamente derivados da brutal repressão do Estado. O CISAL, por
exemplo, se define como ‘uma associação de apoio às forças populares e revolucionarias na
Argentina’ que se propõe desenvolver ‘uma solidariedade de classe entre a classe operária
argentina e a classe operária européia’. Desde esta perspectiva, os integrantes do CISAL se
propunham “... denunciar o rol da Franca, através de suas empresas Renault, Peugeot e
Citroën (...) em tanto parte ativa na exploração do povo argentino e cúmplices do aparato do
Estado e da repressão, cumplicidade que conduz a Franca a colaborar com as Forças Armadas
Argentinas”.
582
Desde esta perspectiva desqualificavam aos argentinos que ‘jetonean no exilio’,
referindo-se implicitamente aos advogados argentinos.
583
Por oposição a eles, os integrantes
do CISAL e do CAIS se reconhecem como aqueles que:
“No llegamos a Europa con saco y corbata, respetuosos de la respetabilidad liberal
burguesa a legitimar la socialdemocracia (…) por encima de la condición
circunstancial de expatriados [nuestra] condición permanente y trascendente es la
de militantes de nuestra clase en la guerra por su liberación (…) intentamos
recuperar esta etapa de ostracismo también como otro puesto de resistencia desde
el cual contribuir a la derrota del poder que sustenta la opresión de nuestra
gente”
584
.
Como se desprende destas afirmações, o apelo a retórica dos direitos humanos supõe
uma posição dentro de um campo maior de posições em disputa pelo poder de representar a
situação dos argentinos exilados na Franca e por se constituir como a voz autorizada para falar
582
Bulletin du CISAL. N° 3, Abril 1975: Paris.
583
O termo ‘jetón’ me foi repetidas vezes mencionado nas entrevistas com os advogados defensores de presos
políticos para fazer referencia à percepção que os integrantes das associações armadas da esquerda tinham dos
advogados defensores. Este termo, que pertence ao lunfardo portenho (gíria), significa literalmente ‘que tem o
rosto grande’. “Jetonear” se utiliza como sinônimo de ‘metido’ ou ‘convencido’. Em termos de Mattarollo, “ao
advogado se o considerava um ‘jetón’, alguém que estava ‘na superfície’ (não era clandestino), que gostava de
‘falar’ e ‘ter imprensa’. Em: entrevista realizada por Vera Carnovale para o arquivo de Memória Abierta.
584
“En el exilio también con los trabajadores y no junto a patrones ni traidores”. Folleto de los Equipos por la
Victoria Independiente de los Trabajadores Argentinos. Paris. s/d.
298
em nome dos argentinos em geral. Entre as estratégias de desqualificação utilizadas contra os
advogados se encontra as de os apresentar como ‘traidores e inimigos instalados no exílio a
espera de uma oportunidade’. Para quem integravam o CISAL, os advogados defensores dos
direitos humanos “são oportunistas (...) sem perdida de tempo aproveitam o exílio para se
dedicar, com tambores e pratos, a rastejar a solidariedade pelos parlamentos e as sedes
partidárias dos burgueses que administram a exploração dos trabalhadores europeus”
(ibidem).
Como veremos, estas formas de desqualificação tem a ver com o fato de que a atuação
dos advogados no exílio em quanto profissionais e em quanto vítimas criou novos espaços de
oportunidades profissionais derivados da sua conversão à condição de ‘peritos’. Se, como
assinala Vânia Markarian ao se referir ao exílio uruguaio, os exilados desse país
incorporaram: “... uma linguagem política em todo alheia à retórica revolucionaria que havia
definido sua militância até os anos sessenta” é preciso reconhecer que esta distancia se estreita
se observa-se a experiência do exílio desde o ponto de vista dos profissionais do direito quem,
junto com a retórica que exalta o seu compromisso com ‘a causa dos trabalhadores’ ou ‘a
causa pela liberação nacional’ utilizam também a linguagem internacional dos direitos
humanos e o apelo aos mecanismos internacionais de denuncia.
585
O fato de focalizar sobre este segmento dos militantes da esquerda que são os
profissionais do direito, permite identificar que a linguagem da revolução socialista e a defesa
do direito não eram necessariamente excludentes. O que sugere que provavelmente se possa
encontrar nesta condição uma das chaves para compreender o sucesso da conversão destes
advogados defensores de presos políticos à condição de ‘peritos’ e na consolidação da causa
pelos direitos humanos, tanto no plano local como internacional.
585
Ainda que a reconstrução da experiência do exílio não esteja feita desde o ponto de vista dos profissionais do
direito, vale a pena salientar o excelente trabalho de Vânia Markarian quem, desde uma perspectiva distanciada,
reconstrói a conformação de uma rede internacional de denuncia envolvendo aos exilados uruguaios. Markarian,
V. 2006.
299
3. 4. 2 Os defensores como ‘peritos em direitos humanos’
Os profissionais do direito exilados sintetizam toda a ‘incansável luta pelo
restabelecimento dos direitos confiscados’ destacando agora não tanto, o heroísmo e o
sacrifício pela causa, como foi reconhecido nos capítulos anteriores, quanto o ‘trabalho
tenaz e do dia-a-dia’, as estratégias de negociação e de lobby. As mesmas tarefas identificadas
como parte da defesa de presos políticos no capítulo anterior eram as que se realizavam
também desde o exílio: “... apresentar petições a favor da libertação dos prisioneiros e
desaparecidos, a publicação na imprensa nacional de listagens de vítimas da repressão (...) a
difusão de declarações públicas de dirigentes políticos e sindicais e o fato de garantir a
presencia na Argentina de missões de organizações internacionais”.
586
Mas a retórica que
imprime as mesmas, exalta agora o valor supremo da democracia e da defesa dos direitos
humanos.
A passagem do engajamento na defesa dos direitos humanos vai supor o deslocamento
para a ‘alta política’: “Alguns companheiros do exílio diziam que se podia discutir de política
ou que se podia discutir de solidariedade e direitos humanos [como questões excludentes]. Eu
estava entres os que pensavam que discutir e trabalhar pela solidariedade em direitos humanos
era a forma mais alta da política”.
587
Estes profissionais do direito se converteram no exílio em ‘peritos’ em direitos
humanos a partir da sua inserção em associações internacionais, como foi o caso
mencionado de Mattarollo. Trajetórias equivalentes foram as que seguiram os integrantes da
Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires e o Groupe d’Avocats Argentins Exiles
em France (GAAEF): Leandro Despouy, Alejandro Teitelbaum, Hipólito Solari Yrigoyen e
Horacio Menéndez Carrera, quem se reconhecem e são reconhecidos no espaço internacional
como ‘peritos em direitos humanos’. Na trajetória profissional destes advogados pode-se
reconhecer um padrão comum: a alternância entre os cargos na alta função pública e nos
postos na esfera internacional.
588
586
Em: Le Monde Diplomatique. Minha tradução.
587
Entrevista a Mattarollo. Archivo Memoria Abierta. Grifos meus.
588
Vale a pena salientar que a gestão de programas internacionais de promoção dos direitos humanos se
converteu numa industria florescente em tanto, segundo estimações recentes, estes programas envolvem uns 700
milhões de dólares anuais. T. Carothers, 2000. cit. Em Guilhot, 2001.
300
Horacio Menéndez Carrera, integrante da APDH, se somou no exílio em Paris à
Asociación de Franceses Desaparecidos na Argentina. Sua intervenção como ‘perito’ recebeu
o reconhecimento de figuras notáveis da Franca. Premiado pelo presidente François Mitterand
com a Ordem Nacional ao Mérito, atuou como consultor das embaixadas de Suécia, Franca,
Suíça e participou, também, como advogado da parte civil no juízo realizado em Franca
contra Alfredo Astiz, o responsável do assassinato das freiras de nacionalidade francesa
Leonie Duquet e Alice Domon. Sobre a sua intervenção no juízo destacava: “Tive a honra de
haver sido um dos advogados que advogou nessa solene audiência [a Chambre d’Accusation]
que ditou sentença condenatória em março de 1990”.
589
A intervenção nestes plano
internacional reverte logo em importantes postos na função pública ao retorno à Argentina.
Menéndez Carrera, por exemplo, se desempenha atualmente como Subsecretario de Direitos
Humanos da Cancelaria
Leandro Despouy, quem se define por ter “... feito do assunto dos direitos humanos
uma causa, um motivo de ser, o motivo da minha vida e uma trajetória...”,
590
logo do seu
exílio em Paris voltou à Argentina e contribuiu na montagem do juízo civil aos integrantes
das juntas militares de governo que foi levado a cabo sob a presidência de Raúl Alfonsín,
dirigente da UCR e advogado da APDH. Despouy esteve encarregado dos contatos com as
personalidades internacionais que iriam ser convocadas pela promotoria. Entre outros,
contatou à ex diretora de direitos humanos de James Carter, Patrícia Derian, a Louis Joinet,
magistrado francês integrante da comissão de direitos humanos da ONU e ao perito holandês
Theo van Boven.
Chegado o juízo a seu fim, foi nomeado primeiro diretor da Cancelaria e logo
embaixador durante o governo de Alfonsín. Ao finalizar este governo (1989), Despouy foi
designado como ‘perito’ da Subcomissão de Direitos Humanos da ONU. No ano 2001 chegou
a ocupar o cargo de Presidente dessa comissão. De volta no país, se desempenhou como
Auditor General da Nação, um órgão de assistência técnica ao parlamento. No ano 2003,
voltou a ONU como relator especial da comissão de direitos humanos sobre a independência
do poder judicial, magistrados e advogados criada especificamente para: “... fazer a defesa dos
advogados e do livre exercício de suas funções quando são vítimas de pressões, atentados ou
589
Horacio Menéndez Carrera. “El Código Penal Francés y el caso Astiz” Em: La Protección de los Derechos
Humanos en el Sistema Inter-americano. Bs. As. Ed. Gobierno de la Ciudad de Bs. As. 1999.
590
Leandro Despouy. “Evolución y sentido de los derechos humanos”. Em: La Protección de los Derechos
Humanos en el Sistema Inter-americano. Bs. As. Ed. Gobierno de la Ciudad de Bs. As. 1999.
301
outro tipo de violações”.
591
Desde esta função elaborou o relatório sobre as prisões de
Guantánamo dos EEUU e realizou missões a Brasil, Equador e Kazajstán, entre outras.
Despouy define a sua tarefa da seguinte maneira: “Consiste essencialmente na
apresentação de um relatório anual perante a Comissão de Direitos Humanos [da ONU] e
perante a Assembléia General e algumas missões de terreno, conseguindo leva-las a frente
sim abandonar minhas atividades acadêmicas e da função pública” (op.cit.). Alejandro
Teitelbaum, advogado defensor de presos políticos e diplomado em Relações Econômicas
Internacionais em Paris, é atualmente assessor internacional em assuntos de direitos humanos
e representante da Associação Americana de Juristas diante as Nações Unidas.
Hipólito Solari Yrigoyen, quem fosse designado assessor pelo presidente Alfonsín e
embaixador extraordinário e ministro plenipotenciário entre 1983 e 1987, voltou ao país e foi
senador entre 1987 e 1995. É reconhecido como autor de livros em direito internacional e por
ter participado em missões humanitárias a pedido de Anistia Internacional, a União Inter-
parlamentar e a CIJ. Entre 1988 e 1993 foi presidente do Comitê de Direitos Humanos desta
ultima instituição com sede em Genebra e em 1994 foi presidente da União Inter-parlamentar
para a paz Bósnia-Herzegovina. Atualmente é vice-presidente do comitê de direitos humanos
da ONU, integrante da CIJ e presidente do comitê executivo da associação civil Novos
Direitos do Homem, uma organização não governamental que tem caráter consultivo na ONU
e cuja sede é compartilhada entre a Franca e a Argentina.
Sob o qualificativo de ‘distinguidos advogados argentinos’ se fazia referencia a Raúl
Alfonsín e Genaro Carrió, ambos os dois integrantes da APDH. De Alfonsín se mencionava
entao a sua condição de ex parlamentar nacional e reconhecido dirigente político da UCR. De
Carrió se destacava, justamente, a sua condição de ex integrante da própria CIDH e o fato de
ter sido um especialista em direito internacional com estudos de pós-graduação nos EEUU. A
trajetória do jurista argentino Genaro Carrió esteve marcada por estes diversos atributos que o
colocam como uma figura notável dentro deste universo. Carrio iniciou a sua carreira
internacional a partir da sua pós-graduação nos EEUU. Até o golpe de Estado de 1966 havia
atuado como professor da faculdade de Direito de Buenos Aires. Em 1972, aparece
novamente ligado à esfera internacional a partir da sua incorporação à CIDH. Em seguida do
591
Em: “El argentino Leandro Despouy nombrado relator de la ONU para jueces y abogados”. France Press.
11.08.2003.
302
golpe de Estado de 1976, interveio no serviço jurídico da APDH e, com o retorno a
democracia em 1983, ocupou a presidência do Supremo Tribunal de Justiça.
Hipólito Solari Yrigoyen era descrito como “... uma das personalidades políticas mais
conhecidas do país. Professor universitário, atuou como advogado defensor em casos de
presos políticos e tem levado a frente uma campanha de apoio aos direitos humanos”.
592
A
sede em Paris de Nouveaux Droits de l’Homme é presidida por Pierre Bercis, justamente o
dirigente socialista que integrava a associação Club des Droits Socialistas de l’Homme, que
fora premiada pela CADHU. Novos Direitos do Homem é o nome atual do Direitos
Socialistas do Homem. Os advogados Despouy e Alfonsín, ambos os dois dirigentes da
APDH, integram também o comitê executivo de Novos Direitos do Homem. Trata-se de uma
associação civil que se define pela promoção e plena vigência dos direitos humanos no
mundo.
593
Rodolfo Mattarollo, que havia começado a sua carreira profissional como advogado do
Estado, logo da sua atuação na Gremial e no espaço internacional, se desempenha atualmente
como subsecretario da Secretaria de Direitos Humanos da Nação, espaço crítico na
formulação de políticas relativas a esta área. Ele é reconhecido principalmente pela sua
condição de ‘jurista’ e ‘perito internacional’ em direitos humanos. Integrante da seção
francesa da Liga Internacional dos Direitos e da Libertação dos Povos, criada em 1976 por
Lélio Basso, é autor do artigo com que a célebre Encyclopeadia Universales inaugurou o
assunto ‘desaparecidos’. Publica regularmente desde os anos setenta até hoje em Le Monde
Diplomatique sobre ‘o direito internacional dos direitos humanos’ e em revistas da
especialidade dotadas de todos os atributos da respeitabilidade acadêmica como a Revista da
Comissão Internacional de Juristas. Logo do seu passo pela oficina de refugiados do
ministério de relações exteriores de Franca, a princípios dos anos 90 se incorporou à ONU em
qualidade de perito em direitos humanos. Vale a pena salientar este processo de incorporação
à ONU e a maneira em que alterna sua atuação na gestão de programas locais e internacionais
ligados aos direitos humanos:
592
Em: documentos desclassificados do Departamento de Estado dos EEUU. Junho 1977. Minha tradução.
593
Em: www.ndh.org.ar
303
“[En 1990]…me llaman de la Universidad Católica de El salvador, que es la s
prestigiosa del Salvador y, quizás de Centro América, para asesorar a la dirección
de la UCA sobre el juicio que los jesuitas de la universidad centroamericana
intentaban llevar adelante por el asesinato del padre Ignacio Yacuría, otros cinco o
seis sacerdotes y sus dos empleadas que fue uno de los crímenes más atroces del
gobierno salvadoreño durante la lucha contra el FLNM (…)los padres jesuitas
buscaron asesoramiento internacional. Me llamaron. Yo comencé a viajar a El
Salvador regularmente durante un año y medio para contribuir a construir la
ingeniería jurídica de este juicio (…)
[A raíz de esta intervención] Naciones Unidas me llama cuando se establece la
misión en El Salvador. Esa misión (...) fue la primera en la historia de la ONU en
verificar la observancia de los derechos humanos en un país independiente durante
un conflicto armado interno y antes de que terminara el conflicto (…). Fue el
comienzo de mi tarea orgánica, esta vez dentro de las Naciones unidas, ya no
desde afuera como ONG sino desde adentro como funcionario, lo que completó la
visión y la experiencia de la actividad internacional de los derechos humanos. A
esto siguieron múltiples experiencias.
El siguiente destino no fue dentro de Naciones Unidas pero sí como asesor jurídico
internacional fui a Etiopía. (...) estando en Etiopía me llaman nuevamente de las
Naciones Unidas para ir a Haití (...) dirigí esa misión durante 5 años. Vuelvo a la
Argentina en el año 2000. Colaboro con el senador Eduardo Sigal (…) en el senado
de la provincia de Bs. As. Siempre en temas de derechos humanos y vuelvo a salir
al exterior llamado x las Naciones Unidas para encabezar el contingente de
derechos humanos en Sierra Leona (...) dirigí ese contingente durante dos años.
Estando en Sierra Leona un día después del 25 de mayo de 2004 suena el teléfono
[fecha de la asunción del actual presidente Kirchner]. Era Eduardo Luis Duhalde
(…) quien me dice (…) Te ofrezco que seas el número dos de la Secretaría [de
Derechos Humanos de la Nación], que seas mi jefe de gabinete. Y aquí estoy”
594
.
A trajetória íntegra de Mattarollo, tal como ela começou a ser relatada desde o capítulo
anterior, condensa a enorme transformação operada nas formas de assumir o compromisso
público entre finais dos anos sessenta e noventa e sugere a importância de compreender a
594
Entrevista a Rodolfo Mattarollo realizada por Vera Carnovale para Memoria Abierta.Grifos meus. Dois anos
depois, esta missão em Haiti vai estar ao frente de Louis Joinet.
304
relação entre conjunturas políticas e sociais e condições de emergência e de transformação
destas vocações militantes. Sua trajetória revela como o investimento no ativismo
internacional se relaciona com situações que revelam a falta de oportunidades profissionais na
Argentina como quando voltou ao país no ano 2000 e se dedicou à vida acadêmica numa
faculdade da periferia do estado de Buenos Aires, uma tarefa que qualificou de negativa.
Neste contexto, Mattarollo voltou a sair do país como ‘perito’ da ONU.
595
Se no primeiro capítulo, se havia destacado o perfil heróico deste tipo de militantismo
jurídico, no segundo podia-se identificar também a dimensão rutinizada desta atividade, foi a
partir da volta a democracia em 1983 quando o ativismo em direitos humanos ingressou,
progressivamente, no espaço do Estado. E os quadros políticos dotados do capital moral
acumulado na defesa dos direitos humanos, legitimados internacionalmente, vão fazer parte
das agencias estatais e internacionais dedicadas à formulação de políticas sobre direitos
humanos sob a condição de ‘perito’. Condição que se institui, não pela sua oposição à
política, mas por se tratar de trajetórias baseadas no exercício militante da profissão. É este
tipo de militantismo experto o que lhes permitiu re-converter as suas competências
profissionais e políticas em diferentes esferas locais e internacionais.
3. 5 Conclusão
As ações até aqui descritas expõem a complexa e densa rede que vincula aos
advogados defensores de presos políticos, vitimas, parentes das vítimas do terrorismo de
Estado e peritos em direitos humanos nacionais e estrangeiros. Nas trajetórias destes
profissionais do direito pode-se reconhecer a importância do jogo de pertenças múltiplas que
coloca a estes advogados engajados tanto no mundo da diplomacia, do mundo associativo,
acadêmico, quanto da política profissional o do Estado. Trata-se de indivíduos que baseiam a
sua posição num jogo de afiliações múltiplas ligadas tanto ao ativismo político, ao exercício
da profissão jurídica quanto a seu passo pelas esferas estatais.
595
Trajetórias semelhantes tem sido identificadas para o caso chileno por Daniela Cuadros Garland, mesmo que
seu análise começa em 1973 com o golpe de Estado contra Pinochet. Em Cuadros Garland, 2003.
305
Esta ação toda entre profissionais do direito nativos e estrangeiros (ou orientados
nacional ou internacionalmente) resulta numa sorte de jogo de duplo reconhecimento: a través
da inclusão das denuncias de países como a Argentina na agenda das agencias internacionais,
elas adquirem a capacidade de representar, através do direito, os interesses dos oprimidos, dos
perseguidos, e se posicionar, com isso, dentro das lutas existentes no próprio campo das
associações internacionais. A participação dos profissionais do direito em tanto vítimas ou
parentes das timas contribui a legitimar as associações internacionais de juristas a partir de
um capital moral e experto que aportam os advogado nativos. De fato, o premio Nobel da Paz
de 1977 foi entregue a Anistia Internacional fundamentalmente pelo relatório e pela missão
que realizara em 1976 à Argentina.
Ao mesmo tempo, através de todo o trabalho de assessoramento, financiamento e
difusão das denuncias e das atividades realizadas pelos profissionais do direito argentinos em
forma conjunta com as associações internacionais de juristas, as associações nativas se
institucionalizam e profissionalizam, se transformando os seus militantes em ‘peritos em
direitos humanos.
Esta profissionalização coincide com o auge do direito internacional dos direitos
humanos e com as transformações na esfera internacional onde a autonomização e
profissionalização dos seus ativistas faz parte das estratégias dos quadros dirigentes de
associações como a CIJ e a AIJD. Estes peritos recém-chegados a este tipo de militantismo do
internacional, vão ocupar, a partir de meados dos anos setenta, cargos chaves dentro do
universo dos direitos humanos fazendo apelo a seu conhecimento experto, por oposição aos
notáveis do direito que haviam hegemonizado até então este ativismo. A primeria geração de
juizes integrantes da CIDH, por exemplo, se recrutava entre os ex-ministros, embaixadores,
altos funcionários públicos ou acadêmicos distinguidos, dedicados profissionalmente à
política.
596
A compreensão das transformações deste tipo de militantismo baseado no direito na
Argentina requer levar em conta as condições existentes ao interior do universo das
associações internacionais de juristas. A conversão da militância em defesa dos presos
políticos e das causas populares, numa militância baseada na condição de peritos
596
Dezalay e Garth, 1998 a.
306
(independentes) na causa dos direitos humanos acontece em forma simultânea com profundas
mudanças nas próprias ‘multinacionais’ dos direitos humanos, fazendo uso de uma expressão
de Mikael Madsen.
597
A meados dos anos sessenta e princípios dos anos setenta, os notáveis do direito que se
haviam somado ao ativismo em direitos humanos, vão ser substituídos por uma nova geração
de peritos que provem, nos EEUU, de uma esquerda radicalizada pela sua oposição à guerra
de Vietnam e pela sua crítica à política exterior norte-americana de apoio aos golpes de
Estado que violavam os direitos humanos. Num clima de crescente desconformidade, não é
difícil perceber o atrativo de um discurso crítico de fundamento moral. Este processo
coincidiu com a expansão de associações como a CIJ, a criação de outras como Anistia
Internacional e a grave situação vivida por vários países de América latina. Na Europa, se a
luta contra o fascismo havia aglutinado aos juristas numa causa comum, foi a partir dos anos
sessenta quando foram criados novos princípios de recrutamento, entre os quais se encontram
a crítica ao colonialismo e o apóio as lutas de liberação nacional. Trata-se, então, de uma nova
geração de quadros políticos que fazem o seu ingresso ao campo da política e do ativismo
profissional da mão do capital moral acumulado pela sua participação em estes eventos,
capital que é renovado a partir de assumir um compromisso com a causa dos direitos humanos
fora das fronteiras do primeiro mundo. É nesta renovação da classe dirigente européia e norte-
americana onde está uma das chaves do sucesso deste tipo de militantismo experto e das
condições que fizeram possível a sua exportação a América latina.
598
Estas trajetórias baseadas neste tipo de militantismo experto assegura a promoção
destes juristas nas primeiras filas do Estado e das agencias internacionais como a ONU. Se,
como assinalava uma das advogadas argentinas entrevistadas, os profissionais do direito
estrangeiros engajados com a causa dos direitos humanos eram ‘advogados mas bem
marginais, que não se destacavam na atividade pública’,
599
esta situação se transformou já que
a partir da representação da causa pelos direitos humanos na América latina ganharam
notoriedade pública, como se viu nos casos de Carreño ou de Joinet, hoje uma das figuras
597
Madsen, op,.cit.
598
Este parágrafo reconhece a sua inspiração nos trabalhos citados de Guilhot, Agrikoliansy e Dezalay e
Garth. Uma analise sobre como as estratégias de exportação do ‘rule of law’ se relaciona com a especificidade
dos contextos nacionais nos quais ela é importada pode-se encontrar no trabalho de Dezalay e Garth. 2000.
Segundo estes autores “... o sucesso das estratégias de importação esta inevitavelmente unido as lutas do palácio
domésticas e a concorrência internacional para exportar expertos do Estado”. Op.cit.
599
Entrevista realizada por mim a Malena Bordenave (nome apócrifo).
307
de maior destaque na esfera internacional dos direitos humanos. Esta mesma situação se
verifica no análise de Dezalay e Garth que mostram como, graças à experiência adquirida
como responsáveis do serviço jurídico da CIJ, seus integrantes acederam a postos
importantes, tanto nos países centrais quanto em aqueles nos quais intervieram como
consultores.
600
As condições que estão na origem destas primeiras missões, os propósitos e seu
desenvolvimento importam em tanto exprimem, não a significação que esta tarefa tem
perante os colegas da Argentina e da Europa, mas também pela maneira em que a intervenção
destes advogados e magistrados europeus e norte-americanos transforma o espaço local da
profissão jurídica e da militância pela causa dos direitos humanos, tanto pelo fato de
introduzir aos profissionais nativos numa rede de relações internacionais quanto pelo fato de
incidir na constituição de novos espaços associativos, como o Comitê Argentino por los
Derechos Humanos (CADHU) e o Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS) e na
configuração do próprio Estado nacional.
Esta movimentação internacional promoveu a ação dos seus pares argentinos no exílio
constituindo-se as associações de juristas em novos espaços de recrutamento militante e
profissional para muitos dos defensores que haviam saído da Argentina e que encontraram
nestas associações não a possibilidade de amplificar suas denuncias como também de
ganhar experiência profissional. As práticas associativas dos advogados argentinos no exílio
são impossíveis de dissociar da participação neste universo mas abrangente das associações
internacionais de juristas. Esta participação possibilitou a integração dos advogados a estas
redes em qualidade de peritos, lhes outorgando uma linguagem, uma comunidade de pertença,
um repertorio de ação e novas possibilidades de inserção profissional.
Neste contexto, a ‘democracia burguesa’, o ‘Estado de direito’ vão ser objeto de uma
reavaliação positiva, fato que os aproxima ao movimento internacional dos direitos humanos e
que vai produzir profundas transformações nas formas de pensar e atuar na política. Como
decorrente destes relatos, a retórica dos direitos humanos vai permitir articular um conjunto
de práticas comuns e coletivas ao situar-las muito além da política, quer dizer, num espaço
que as transcende: o dos direitos humanos. A adscrição a este principio universal de
600
Ver Dezalay e Garth, 1998 a.
308
recrutamento vai permitir, também, aos advogados defensores de presos políticos argentinos
se somar a uma ampla comunidade internacional de pares.
Esta inovação está diretamente ligada ao fato que os profissionais analisados somaram
a sua condição de advogados, o atributo de vítima direta da repressão, como no caso de Solari
Yrigoyen, fundador do GAAEF e de Novos Direitos do Homem, ou de parentes das vítimas,
como é o caso de Emilio Mignone, fundador do CELS. Desprovestes na maioria dos casos de
disposições herdadas que lhes vão permitir tirar vantagem das oportunidades internacionais, o
ativismo pela causa dos direitos humanos os envolve nesta esfera de relações como exilados,
como parentes e como profissionais do direito. Em tanto tais, integram e produzem uma rede
de relações locais e internacionais que vai resultar chave na consolidação da causa pelos
direitos humanos na Argentina e na profissionalização dos seus militantes.
É importante salientar a importância dos atributos derivados do sangue, da profissão e
da posse de uma rede de relações internacionais na configuração de este processo tudo e na
conformação do movimento pelos direitos humanos na Argentina. Junto às associações
mencionadas acima, surgiram na Argentina um conjunto de outras associações civis que
fizeram do apelo ao sangue um principio de distinção pública. Surgidas a finais dos anos
setenta, as Abuelas de Plaza de Mayo (1977), Madres de Plaza de Mayo (1977), Familiares de
Desaparecidos y Detenidos por Razones Políticas (1976) irromperam no espaço público
baseando a legitimidade das suas demandas na inquestionabilidade do nculo biológico com
as vítimas. Este princípio de adesão lhes outorgou a seus integrantes uma posição de máxima
notoriedade e legitimidade no interior do movimento pelos direitos humanos.
601
A
centralidade destas associações se evidencia, entre outras coisas, quando quem exerceram a
defesa de presos políticos entre mediados dos anos sessenta e setenta costumava-se a
identificar como havendo sido parte da ‘pré-história’ do atual movimento pelos direitos
humanos na Argentina, reconhecendo desta maneira, a hegemonia que possuem na atualidade.
Apesar disso, a consolidação destas associações não pode se compreender sem sua relação
com as ações baseadas no engajamento com a justiça e com o direito, impulsionado e
sustentado pelos profissionais do direito aqui examinados.
601
Alguns dos princípios centrais na constituição do movimento pelos direitos humanos na Argentina tem sido
analisados por mim na minha dissertação de mestrado. Vecchioli 200.
309
O capital de recursos internacionais contatos, diplomas acadêmicos, legitimidade e
‘expertise’ foi utilizado pelos profissionais do direito argentinos para construir uma carreira
em tanto ‘peritos’ em direitos humanos e ir ganhando controle sobre esferas do campo estatal.
No primeiro lugar, o uso do direito internacional dos direitos humanos aparece como uma
estratégia para impugnar o regime militar. De volta a democracia, este recurso interveio na
legitimação da conquista do Estado diante outros possíveis adversários políticos. O
investimento nos direitos humanos forneceu de uma base muito importante para a atividade
política na democracia. É neste contexto de disputas internas pelo poder que adquire sentido o
apelo à retórica e ao capital moral acumulado nas lutas pela defesa dos direitos humanos,
como é notoriamente o caso de Raúl Alfonsín, Genaro Carrió, Leandro Despouy, Hipólito
Solari Yrigoyen, Emilio Mignone, Augusto Conte, Eduardo Luis Duhalde e Rodolfo
Mattarollo quem ocupam altos cargos na função pública logo de ter adquirido notoriedade
como defensores dos direitos humanos. Para este segmento marginal dos profissionais da
política e do direito na Argentina, a incorporação a esta esfera internacional ofereceu uma
oportunidade de fazer o seu ingresso ao centro da política através da reivindicação de
princípios universais como os direitos humanos e a democracia.
A descrição das trajetórias de quem integram o CELS ou as agencias públicas
orientadas a formular políticas relativas aos direitos humanos na Argentina, ilustram a
modalidade específica em que se desenvolve esta forma de ativismo experto no entanto ele se
desenvolve além das divisões entre o governamental e o no governamental. Tanto as
trajetórias de Mattarollo como de Despouy e outros mostram que uma das condições para
compreender a constituição deste ativismo experto é justamente o fato de reconhecer a
interpenetração de redes e a mobilidade entre elas. A experiência do exílio da geração dos
defensores de presos políticos e a formação em direito nos EEUU da geração que os sucedeu,
lhes deu, não credenciais morais e uma experiência em gestão, mas também uma rede
internacional de contatos que fortaleceu o conhecimento experto adquirido nestas instancias
internacionais.
É neste contexto nacional e internacional quando os advogados defensores dos direitos
humanos começaram a viver de e para a causa. A diferencia dos especialistas integrantes da
Liga ou da Associação Gremial estudados nos capítulos anteriores, o engajamento dos
advogados na criação de uma associação como o CELS evidencia um processo gradual de
profissionalização ao recrutar seu staff de profissionais segundo critérios meritocráticos.
310
A importância que lhe atribuem os advogados do CELS à tarefa de formar
profissionais que possam se incorporar ao trabalho neste tipo de associações se evidencia no
ditado, na própria sede do CELS de uma ‘clínica jurídica’ que faz parte da currículo
acadêmico dos estudantes de direito da Universidade de Buenos Aires. A importância da
formação em direito e em direito dos direitos humanos é reconhecida até pelas próprias
associações integradas pelos parentes das vítimas, como é o caso da Asociación Madres de
Plaza de Mayo, em cuja sede se tem criado uma carreira própria em direito (2006) na qual
participam profissionais do direito que integraram a Gremial, a APDH ou o CELS. A
reivindicação deste ativismo profissional tem dado origem, no atual contexto, a novas
associações de direitos humanos que se reivindicam pelo seu compromisso com o direito,
como são os casos do Centro de Profissionais em Direitos Humanos (CeProDH, 1977) e
Novos Direitos do Homem (NDH, 1990).
Esta profissionalização se expande, pela sua vez, a outros espaços que não estão
referidos exclusivamente as associações de direitos humanos. Na própria UBA, na mesma
carreira na qual se formaram a maior parte dos advogados defensores de presos políticos, os
atuais estudantes de direito podem cursar disciplinas específicas sobre direitos humanos sob a
responsabilidade de especialistas em assuntos tais como “Direitos humanos e Garantias”.
Como recém-formados podem-se especializar em seminários de pós-graduação tais como
“Procedimentos diante a Comissão Inter-americana de Diretos Humanos” e inclusive obter
diplomas de pós-graduação ligados a este novo conhecimento experto. Imbuídos de uma tal
condição, tem a possibilidade de publicar os seus trabalhos em revistas da especialidade como
a que publica a recentemente criada editora Ad Hoc, entre outras.
Esta profissionalização envolve, por um outro lado, o reconhecimento progressivo do
direito dos direitos humanos de parte do Estado, o que conduz a associações como o CELS ou
Novos Direitos do Homem a uma sorte de competência pelo monopólio da representação
desta causa. E por um outro lado, faz possível ‘viver de e para’ a causa, uma fórmula que
não remete exclusivamente ao exercício da profissão política mas que denota a possibilidade
desta profissionalização de um campo militante conformado em torno a uma competência
profissional, como é a atual conformação da causa pelos direitos humanos na Argentina.
311
Epílogo
“Hoy un abogado de derechos humanos tiene que empezar por estudiar
derecho internacional (…) cuando vos vas con la interpretación de las
convenciones del derecho internacional a un juez federal de Jujuy te mira con los
ojos así [de grandes] y te dice: ‘¿Y por qué tengo que estudiar la jurisprudencia del
tribunal de La Haya o de Costa Rica, por qué tengo que estudiar eso y no la
autonomía provincial?’ No señor, la autonomía provincial pasó de moda”
602
.
“Si hablamos de cultura jurídica, el derecho internacional que yo había
estudiado en la Facultad de Derecho de la UBA era el derecho internacional
clásico, se podría decir, hasta la segunda guerra mundial, era un derecho donde los
sujetos eran los Estados. A nadie se le hubiera ocurrido que el individuo podía ser
un sujeto del derecho internacional y donde el derecho internacional de los
derechos humanos ni siquiera se enseñaba porque prácticamente no existía o no era
conocido en la Argentina. Digamos que yo intenté por la vía de la opinión pública,
del periodismo, de innumerables charlas, debates y seminarios en los que intervine
en aquellos años de alguna manera trasvasar un poco estas experiencias. Nosotros
empezamos a hablar de crímenes de lesa humanidad, de crímenes del derecho
internacional en un momento en que los jueces argentinos no lo hacían. Hoy parece
un sueño ver en los fallos de la jueza María Romilda Servini de Cubría categorías
como crímenes de lesa humanidad que ya son usados corrientemente por la
jurisprudencia argentina cuando en aquellos años eran cosas que escribíamos
algunos en columnas de opinión en los años 80. De modo que creo que se ha
caminado un cierto camino en ese aspecto, que tal vez alguna contribución se ha
llegado a hacer”
603
.
602
Entrevista realizada por Laura Saldívia a Cristina González (nome apócrifo). Jujuy é um estado argentino
localizado no norte do país, a uns 1500 km. de Buenos Aires. Grifos meus.
603
Entrevista a Mattarollo para Memoria Abierta.
312
Conclusões
Esta tese se propus mostrar a formação de um segmento da profissão jurídica
diretamente associado à promoção e defesa dos direitos humanos na Argentina. Ao longo
deste trabalho se deu ênfase a um itinerário: o que vai da invenção da causa dos direitos do
homem nas primeiras décadas do século XX até a profissionalização dos seus militantes na
atualidade. Na descrição deste percurso se privilegiaram algumas das instancias chaves na re-
configuração deste perfil profissional. Se os advogados descritos nos capítulos iniciais
evocam a figura heróica do profissional que se entrega desinteressadamente à causa, o último
nos apresentou aos profissionais do direito na sua condição de peritos a partir da organização
de um campo transnacional do ativismo profissional em direitos humanos.
Para compor o complexo retrato dos especialistas engajados com a causa e da causa
que os faz existirem socialmente realizei um levantamento das suas propriedades sociais.
Tenho identificado inúmeros índices da proximidade social que existia entre os indivíduos
comprometidos com a causa: sua pertença ao mesmo universo profissional, a colaboração nos
mesmos periódicos, os nculos criados ao longo da vida de estudantes, as opções políticas, o
exercício de funções públicas, sua identificação com a figura do intelectual, etc. Isto permite
sugerir que a participação num engajamento militante deste tipo não deriva nem do acaso nem
de simples identificações ideológicas mas da existência de espaços de interação social a partir
dos quais foram-se estruturando as afinidades ideológicas, as redes e seus princípios de
distinção no interior do universo mais abrangente da política o do direito. Mesmo que o
defensor de presos políticos se perceba a sim mesmo como um solitário herói jurídico, tenho
tentado apresentar todo o peso social das suas redes de pertença e filiação.
A adesão à causa pelos ‘direitos humanos’ não preexistiu à ação reivindicativa mas
foi-se criando no próprio processo, convertido-se numa instancia mais na consolidação de
relações sociais, profissionais e de amizade previas. Neste sentido é interessante destacar a
polissemia do termo ‘engajamento’, significando tanto o fato de se comprometer com uma
ação quanto o fato de se vincular aos outros por uma serie de obrigações inerentes à posição
social que se ocupa ou se pretende ocupar ao interior destes múltiplas espaços militantes e
profissionais.
313
Esta pertença múltipla é um dos fatores críticos que permitem compreender a
incorporação destes indivíduos à causa pelos direitos humanos. Seus dirigentes o
conduzidos a este tipo de ação cívica como resultado dos compromissos e obrigações
recíprocas derivadas da participação nesta rede de espaços sociais comuns aos quais
estavam filiados previamente. Em este sentido, trata-se da conformação de redes de
profissionais do direito e da política que integram uma comunidade moral relativamente
reduzida que inclui tanto aos nomes consagrados quanto aos outros menos célebres e, por
último, também, a desconhecidos.
Através desta descrição, pode-se compreender como o compromisso prévio com a
causa dos ‘trabalhadores’ e suas organizações sindicais orientou a transformação da defesa do
direito trabalhista na defesa dos ‘presos políticos’. A repressão as organizações sindicais por
meio da confiscação dos seus periódicos e boletins, o fechamento das suas sedes, a
perseguição e detenção arbitrária dos seus dirigentes até a deportação dos mesmos fizeram
que este conjunto de juristas, advogados e dirigentes políticos interessados nos direitos dos
trabalhadores fossem levados à defesa dos seus interesses fazendo apelo a linguagem dos
‘direitos do homem’ ou direitos humanos’, ação que se compreende como uma continuidade
com os compromissos existentes adquiridos por estes ‘peritos’ e militantes ao interior deste
universo.
Para quem aparecem como recém-chegados ao mundo do direito, o engajamento com
a causa anti-fascista ou com a revolução, o engajamento profissional e militante com os
grêmios e sindicatos supus uma amplificação do exercício do direito por fora dos marcos em
que tradicionalmente este se havia praticado. A formulação de uma legislação trabalhista, o
patrocínio de trabalhadores e de sindicatos, a criação de cadeiras sobre direito do trabalho, de
revistas jurídicas especializadas, o fato de sustentar uma imprensa anti-fascista y/o anti-
ditatorial, são todos espaços ocupados pelos profissionais do direito e que se associam a esta
maneira de exercer o direito em quanto prática militante. Em estes espaços, estes ‘outsiders
participavam em quanto ‘peritos’ em direito do trabalho, direito penal e direito do asilo,
reivindicando ao mesmo tempo uma identidade militante e se distinguindo de quem possui
um capital de relações ao interior do direito e da política, pela possessão de outros atributos,
tal vez mais intangíveis como o heroísmo, o sacrifício e o desinteresse, mais não por isso
menos eficazes na hora de se fazer de um nome e de uma posição no interior deste espaço de
314
relações. Este processo se tem desenvolvido em contextos de forte incremento da matrícula
universitária que resultaram na existência de ‘advogados sem causa’.
Ao mesmo tempo, se produz uma aproximação de alguns notáveis a este universo
habitado por trabalhadores e imigrantes. Sugeri compreender estes movimentos no contexto
do complexo espaço político de princípios do culo XX quando, trás a sanção da lei de voto
masculino segredo e obrigatório, se transformaram as condições de competência pela
representação e as estratégias de acumulação de notoriedade pública deixaram de estar ligadas
diretamente à posse de riqueza. O paradoxo parece residir no fato de que esta proximidade
com os outsiders’ lhes permitiu o ingresso ao centro da vida política. O uso experto do
direito na defesa das injustiças e dos excluídos posso se converter num recurso crítico de
distinção diante potenciais concorrentes ao permitir a acumulação de um capital
extremadamente valioso com é o capital moral.
Um dos argumentos centrais de esta tese é que este encontro entre notáveis e recém-
chegados ao direito e à política foi uma das condições de possibilidade da constituição da
causa pelos direitos humanos na Argentina, uma morfologia que foi analisada com maior
detalhe no primeiro capítulo mas que também foi identificada nos capítulos seguintes.
Uma outra estratégia proposta para apresentar o processo de ‘construção social e
política da vocação por esta forma de militantismo foi a de levar em conta o enorme trabalho
de definição e delimitação da categoria ‘defensor de presos políticos’. Esta noção aparece
ligada a uma representação do trabalho profissional associada ao culto ao heroísmo, ao
coragem, ao sacrifício e a entrega desinteressada à causa, qualidades todas que os identificam
com os seus defendidos. Estes critérios tem uma importância crítica na hora de criar
homogeneidade entre indivíduos que tem origens e trajetórias profissionais heterogêneas.
Estes princípios de representação são os que fundamentam a legitimidade da sua posição no
interior do mundo do direito e da política, especialmente numa conjuntura como a de
princípios dos anos sessentas, quando a sua clientela se recrutava principalmente entre a
militância armada das organizações da esquerda surgidas então no país. Através desta
representação, este segmento de profissionais do direito adquiriu existência como grupo.
O sucesso relativo alcançado nesta tarefa de unificação se traduziu sob a forma de um
nome coletivo (defensor de presos políticos), de instancias de representação (associações,
315
publicações) emblemas (o desaparecimento do advogado Nestor Martins, o assassinato do
advogado Rodolfo Ortega Peña), taxonomias (advogados do povo / advogados ao serviço do
imperialismo, ‘militar’ na Gremial / exercer o direito), categorias (repressão judicial), teorias
(o imperialismo / a ausência de um Estado de direito), e formas de conceber a profissão: o
engajamento jurídico (‘militar’ em associações de defesa de presos políticos) como
diferenciado hierarquicamente do exercício tradicional ou ‘liberal’ da profissão (‘exercer o
direito’).
Ainda que dotados de valores diferentes, ‘militar’ e ‘exercer a profissão’ não
constituem alternativas opostas ou excludentes. Pelo contrário, ‘exercer a profissão’ foi uma
das condições de possibilidade deste ativismo em quanto permitiu dispor de recursos chaves
para sustentar e dar continuidade à vocação militante. Se a categoria ‘defensor de presos
políticos’ aparece associada ao culto ao heroísmo, paradoxalmente, a legitimidade alcançada
através do fato de pôr em perigo a própria vida foi constituindo ao mesmo tempo a
necessidade de organizar, planejar e conceber novas formas de trabalho em comum. Um dos
argumentos centrais de esta tese é que a rutinizacao do trabalho de defesa constituiu uma
instancia chave na homogeneização da categoria ‘defensor de presos políticos’ e na
objetivação do grupo como tal.
Um outro objetivo da tese foi o de apresentar a construção da causa pelos direitos
humanos e a constituição dos próprios agentes que militam nela e como todo isso leva a re-
configurações significativas, não do campo da militância quanto do próprio campo
profissional. Em este processo é possível identificar um duplo movimento pelo qual ‘a causa’
transforma ao ‘direito’ e vice-versa.
A descrição das distintas redes e espaços de circulação dos militantes permitiu
apresentar como este engajamento incide profundamente dentro do próprio universo do
direito, convertendo uma ‘causa’ em uma questão ligada ao ‘direito’, quer dizer, a um saber
especializado. Um dos efeitos centrais deste processo foi a profissionalização do ativismo
jurídico. Ele envolve tanto a definição do lugar do profissional do direito em função da posse
de um conhecimento experto quanto a transformação do universo de representações
associadas a este novo perfil profissional. Este processo traz consigo uma inovação crítica: a
possibilidade de ocupar espaços de importância dentro da esfera do próprio Estado, não
como resultado do ativismo partidário mas sob a base da sua condição de ‘peritos.
316
Se no inicio da tese tinha-se destacado o perfil heróico de este tipo de militantismo
jurídico e também da dimensão rutinizada da sua atividade, foi a partir do retorno a
democracia em 1983, quando o ativismo em direitos humanos ingressou, progressivamente na
órbita do Estado. Os quadros políticos dotados do capital moral acumulado na defesa dos
direitos humanos, legitimados internacionalmente, vão se integrar às agencias do Estado e das
agencias internacionais dedicadas a formulação de políticas sobre direitos humanos sob o
estatuto de ‘perito’. A perspectiva temporal aqui adotada nos permitiu ver que a condição de
‘perito’ se institui não pela sua oposição à política mas também como uma continuidade
nas trajetórias dos profissionais do direito que haviam assumido um engajamento militante.
Foi este tipo de militantismo experto, mediado pela sua participação em redes internacionais
de juristas, o que permitiu converter as suas competências profissionais e políticas em
distintas esferas nacionais e internacionais.
Esta inovação está diretamente ligada ao fato de que a condição de advogados se
somou, a partir de mediados dos anos setenta, o atributo de vítima direta da repressão ou de
familiar das vítimas. Em este contexto, o ativismo pela causa dos direitos humanos os envolve
nesta esfera de relações como exilados, como familiares e como profissionais do direito. Em
tanto tais integram e produzem uma rede de relações locais e internacionais que resultou
chave na consolidação da causa pelos direitos humanos na Argentina e na profissionalização
dos seus militantes.
A descrição do repertorio de ações e noções utilizados permitiu também dar conta da
maneira em que a intervenção destes profissionais incide no modo em que se processam e
interpretam certos conflitos políticos em clave de ‘direitos humanos’. Sua inscrição dentro de
uma narrativa jurídica supõe, entre outras cosas, um modo de nomear a quem foram os
protagonistas desta história (as vítimas), um modo de intervir no espaço público (‘denunciar’,
‘demandar’, ‘litigar’, inquirir’), de definir aos sujeitos dotados da capacidade para fazer-lo
(‘os advogados’), de demarcar um espaço de engajamento militante (‘a causa pelos direitos
humanos’) e, em última instancia, uma maneira de narrar a história nacional (por exemplo,
com referencia ao ‘terrorismo de Estado).
Esta narrativa é homóloga a que sustentam os familiares das vítimas que se
constituíram como militantes do movimento pelos direitos humanos consagrando as suas
317
vidas à causa. Junto às associações integradas por profissionais, surgiram na Argentina um
conjunto de outras associações civis que fizeram do apelo ao sangue um principio de distinção
pública. Surgidas a finais dos anos setenta, as Abuelas de Plaza de Mayo (1977), Madres de
Plaza de Mayo (1977) e Familiares de Desaparecidos y Detenidos por Razones Políticas
(1976) irromperam no espaço público reclamando pelo reconhecimento das ‘vítimas do
terrorismo de Estado’ e do lugar central das ‘maes’ e ‘avós para reclamar por elas. Estas
associações e seus ativistas tem fundado a legitimidade das suas demandas na
inquestionabilidade do vínculo biológico com elas. Este princípio de adesão outorga a seus
integrantes uma posição de máxima notoriedade e legitimidade por relação à causa dos
direitos humanos.
Quem fazem do sangue um principio de distinção pública organizam seu discurso em
torno a uma propriedade principal: a de situar os tumultuados fatos dos anos setenta como um
problema que se coloca ‘por fora’ e ‘além’ do campo da política. O desenho de esta fronteira
é crucial à pretensão destes nativos de construir um discurso ‘objetivo’ e ‘verdadeiro’ a
respeito do passado político recente. Baseadas na autoridade moral que da ser portadoras de
um laço de máxima proximidade com as vítimas, esta militância resulta crítica na objetivação
das ‘vítimas’ e, com isso, da causa pelos direitos humanos.
Expertos em direito e familiares das vítimas contribuem a criar um conjunto de
princípios classificatórios comuns, que convertem ao problema dos direitos humanos numa
questão que ‘transcende’ as diferencias político-partidarias e os confrontos ideológicos. A
criação de uma correlação entre ‘vítimas’ e ‘terrorismo de Estado’ coloca às mortes e
desaparecimentos por fora do campo da política, em quanto esta categoria não remete à
identidade militante do assassinado ou desaparecido mas a sua inscrição no campo jurídico,
ao interior do qual recebem uma identidade politicamente neutra mas moralmente poderosa.
A causa pelos direitos humanos na Argentina se tem constituído sobre dois princípios
de recrutamento: um princípio universal, ligado com o direito, e um outro principio particular,
marcado pelo vínculo do sangue com as vítimas. Afirmo que é esta convergência entre
associações de profissionais do direito (nacionais e internacionais) e associações de familiares
das vítimas a matriz sobre a qual se tem conformado o atual movimento pelos direitos
humanos e se tem consolidado a causa pelos direitos humanos na Argentina.
318
Referências Bibliográficas
Agrikoliansky, Eric. 2002. La Ligue Française des Droits de L’Homme et du Citoyen depuis
1945. Sociologie d’un engagement civique. Paris. L’Harmattan.
Aragón, Raúl. 2001. Glorias y Tragedias en el Colegio Nacional de Buenos Aires. Bs. As. Ed.
Leviatán.
Alonso Piñeiro, Armando. 1959. Historia del General Viamonte y su época. Bs. As.
Altamirano, Carlos. 2001. Bajo el signo de las masas (1943-1973). Bs. As. Ariel.
Bielsa, Rafael. 1945. La facultad de Derecho y Ciencias Sociales de Buenos Aires hace treinta
años. Profesores y Estudiantes. Bs. As.
Bisso, Andrés. 2001. “La recepción de la tradición liberal por parte del antifascismo
argentino” En: Estudios interdisciplinarios de América latina y el Caribe. Vol. 12, Nro. 2,
julio-diciembre.
Boltanski, Luc. 2000. El amor y la justicia como competencias. Tres ensayos de sociología de
la acción. Bs.As. Amorrortu. 2000.
Boltanski, Luc. 1982. Les cadres. La formation d’um groupe social. Paris. Ed. De Minuit.
Bonafini, Hebe. 1996. Historia de Vida. Bs. As. Ed. Fraterna.
Bourdieu, Pierre. 1998 (1989). “A força do direito. Elementos para uma sociologia do campo
jurídico”. Em: O poder simbólico. Brasil. Ed. Bertrand Brasil. Pág. 209-254.
Bourdieu, Pierre. 1994. Raisons Pratiques: sur la théorie de l’action. Paris. Editions de Minuit.
Carnovale, Vera. 2006. “Jugarse al Cristo: mandatos y construcción identitaria en el Partido
Revolucionario de los Trabajadores Ejército Revolucionario del Pueblo (PRT-ERP). En:
Revista Entrepasados. Año XVI. Número 28. Dossier: los años setenta. Memoria y militancia
Cattáneo, Atilio. 1939.Entre Rejas (Memorias). Buenos Aires.
Chama, Mauricio. 2005. Los nuevos rasgos en la defensa de presos políticos a principios de
los ’70. Los abogados y su relación con el ejercicio profesional, el derecho y la política”. X
Jornadas Interescuelas. Departamentos de Historia. Rosario. Mimeo.
319
Chama, Mauricio. “Movilización y politización: los abogados de Buenos Aires. 1968-1973”
s/d. Mimeo. 22 págs.
Chama, Mauricio. “Politización y radicalización de grupos de abogados. Defensa de presos
políticos y peronismo de izquierda, 1955-1973”. Mimeo. 18 páginas
Chiroleu, Adriana. 2000. “La reforma universitaria” en: Ricardo Falcon. Democracia,
Conflicto social y renovación de ideas (1916-1930). Buenos Aires. Ed. Sudamericana.
Ciria, Alberto y Horacio Sanguinetti. 1983. La Reforma Universitaria. Buenos Aires. CEAL.
Claverie, Elisabeth. 1994. “Procès, affaire, cause. Voltaire et l’innovation critique” En :
Politix. Paris. Vol. 26.
Comité Central del Partido Comunista. 1948. Esbozo de Historia del Partido Comunista de la
Argentina. Origen y desarrollo del Partido Comunista y del movimiento obrero y popular
argentino. 1918 – 1948. Bs. As. Ed. Anteo. 150 pág.
Cuadros Garland, Daniela. 2003. “Formation et reformulation d’une cause. Le cas des droits
de l’homme au Chili, de la dictature a la politique de réconciliation nationale” En : Politix.
Paris. Vol. 16. Nro. 62. pág. 165-190.
Cutolo, Vicente Osvaldo. 1951. La facultad de Derecho después de Caseros. Bs. As. Ed.
Elche.
De Privitellio, Luciano. 2003. Vecinos y ciudadanos. Política y sociedad en la Buenos Aires
de entreguerras. Bs. As. Siglo XXI.
Dezalay, Yves y Bryant Garth. 2002. The internationalization of Palace Wars. Lawyers,
Economists and the Contest to Transform Latin American States. Chicago. The University of
Chicago Press.
Dezalay, Yves y Bryant Garth. 1998 a. “Droits de l’Homme et Philanthropie gémonique”.
En : Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Nro. 21 – 22. Mars.
Dezalay, Yves y Bryant Garth. 1998. “Argentine: law at the pheriphery and law in
dependencies: political and economic crisis and the instrumentalization and fragmentation of
law”. En: American Bar Foundation. Working Papers. Nro. 9708.
Domínguez, Carlos Horacio. 1980. La Nueva Guerra y el Nuevo Derecho. Ensayo para una
estrategia jurídica contra- subversiva. Buenos Aires. Círculo Militar.
Elbaz, Sharon. ‘Les avocats métropolitains dans les procès du Rassemblement démocratique
africain (1949-1952) : un banc d’essai pour les collectifs d’avocats en guerre d’Algérie ?
320
Bulletin de l’institut d’histoire du temps présent. 2002. 2do. Sem. Dossier. Usages politiques
du droit et de la justice.
Elias, Norbert. 1997 (1989) Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos
séculos XIX e XX. Brasil. Jorge Zahar Ed.
Farer, Tom, 1997. “The Rise of the Inter-American Human Rights Regime: No longer a
unicorn, not yet an ox” En: Human Rights Quarterly 19. 510-546. The Johns Hopkins
University Press.
Fayt, Carlos. El político armado. Dinámica del proceso político argentino (1960 / 1971). Bs.
As. Ed. Pannedille.
Foro de Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos. 1973. Proceso a la
Explotación y a la represión en la Argentina. Bs. As.
Franco, Marina. 2004. “Testimoniar e informar: exiliados argentinos en París (1976-1983)”.
En: Cahiers. ALM.. Nro. 8, janvier. Université de Paris 8. Paris, Francia.
Fucito, Felipe. 2000. “La educación en la Argentina, una visión histórica” En: El profesor de
derecho en las universidades de Buenos Aires y Nacional de La Plata. Un estudio
comparativo. La Plata. Ed. UNLP.
Gabbeta, Carlos. 1983 (1979) Todos somos subversivos. Bs. As. Ed. Bruguera.
Gaïti, Brigitte y Liora Israel. 2003. “Sur l’engagement du droit dans la construction des
causes” En: Revista Politix. Paris. Vol. 16. Nro. 62. pág. 17 a 30.
García Costa, Víctor. 1997. Alfredo Palacios. Entre el Clavel y la Espada. Bs. As. Planeta.
Giorlandini, Eduardo. 1986. “Una Historia negra: la Ley de Residencia”. En: Revista Todo es
Historia. Bs. As. Número 226.
Godio, Julio. 1989. El movimiento obrero argentino (1930-1943). Socialismo, comunismo y
nacionalismo obrero. Bs. As. Legasa.
Gómez, Alejandra. 1994. No nos han vencido. Historia del Centro de Estudiantes de Derecho.
UBA. Bs. As. Ed. Centro de Estudiantes de Derecho y Ciencias Sociales.
Graciano, Osvaldo. 2003. “Intelectuales, ciencia y política en la Argentina neoconservadora.
La experiencia de los universitarios socialistas” En: Estudios Interdisciplinarios de América
latina y el Caribe. Vol. 14, nro. 2, julio-diciembre.
321
Guest, Iain. 1990. Behind the disappearances : Argentina’s dirty war against human rights and
the United Nations. Philadephia. University of Pennsylvania Press.
Guilhot, Nicolas. 2001. “Les professionnels de la démocratie. Logiques militants et logiques
savantes dans le nouvel internationalisme américain”. En : Actes de la Recherche en Sciences
Sociales. Nro. 139. Septiembre. Paris.
Cutolo, Vicente Osvaldo. 1951. La Facultad de Derecho después de Caseros. Bs. As. Ed.
Elche.
Halliday, Terence y Lucien Karpik (ed). 1997. Lawyers and the Rise of Western Political
Liberalism: Europe and North America from the Eighteenth to Twentieth Centurias. New
York. Clarendon Press.
Halperín Donghi. 1999. Vida y muerte de la República Verdadera. (1910-1930). Bs. As. Ed.
Ariel.
Herrero, Antonio. 1946. “Prólogo”. En: Alfredo Palacios. En Defensa de la Libertad. Bs. As.
Ed. Ponfilia.
Imaz, José Luís. 1964. Los que mandan. Bs. As. Eudeba.
Jelin, Elizabeth. 1995. “La política de la memoria: el movimiento de derechos humanos y la
construcción democrática de la Argentina” En: Acuña, Carlos y Catalina Smulovitz. Juicio,
Castigo y Memorias. Derechos Humanos y Justicia en la política argentina. Bs. As. Nueva
Visión.
Karpik, Lucien. 1995. Les avocats. Entre l’Etat, le public, le marché. XIII-XX siècle. Paris.
Gallimard.
Kaufman, Esther. 1991. “El ritual jurídico en el Juicio a los Ex Comandantes. La
desnaturalización del cotidiano” En: Rosana Guber. El salvaje metropolitano. Bs. As. Legasa.
Landi, Oscar e Inés González Bombal. 1995. “Los derechos en la cultura política”. En:
Acuna. Et.al. Juicio, Castigo y Memórias. Derechos Humanos y Justicia en la política
Argentina. Bs. As. Nueva Visión. 1995
Le Béguec, Gilles. 2003. La République des avocats. Paris. Armand Colin.
Lecler, Gerard. 2003. Sociologie des intellectuelles. Paris. PUF.
Leiva, Alberto David. 2005. Historia del Foro de Buenos Aires. La tarea de pedir justicia
durante los siglos XVIII a XX. Bs. As. Ed. Ad-Hoc.
322
Loveman, Mara. 1998. “High-risk collective action. Defending Human Rights in Chile,
Uruguay and Argentina”. En; American Journal of Sociology. Vol. 104 (2) September .
Madsen, Mikael. 2004. “Make law, not war” Les “sociétés impériales” confrontées a
l’institutionnalisation internationale des droits de l’homme. En : Actes de la Recherche en
Sciences Sociales. Número 151. p. 96-106.
Markarian, V. 2006. Idos y recién llegados. La izquierda uruguaya en el exilio y las redes
transnacionales de derechos humanos, 1967-1984. Montevideo: Correo del
Maestro/Ediciones La Vasija-Centro de Estudios Interdisciplinarios Uruguayo, Universidad
de la República, 2006
Mendras, Emmanuele. 1980. “Le militantisme moral” En: Henri Mendras (dir) La Sagesse et
le Désordre. Paris. Gallimard.
Mignone, Emilio. 1996. “Argentina : los desafíos de fin de siglo”. En : Saba, Roberto. “The
Human Rights Movements, citizen participation organizations and the process of building
civil society and the rule of law in Argentina” (copiao).
Mignone, Emilio. 1991. Derechos Humanos y Sociedad. El caso argentino. Bs. As. Centro de
Estudios Legales y Sociales.
Mignone, Emilio. 1999. Iglesia y Dictadura. Bs. As. Universidad Nacional de Quilmes.
Mulas, Andrea. 2005. “Las relaciones político-jurídicas entre Lelio Basso y el Ceren en los
años de gobierno de la Unidad Popular”. Revista Universum, 2005, vol..20, no.1.
Muschietti, Delfina. 2003. L.a Vanguardia en Disputa” En: Hispamérica. Revista de
Literatura. Nro. 95. pág. 21-44.
Neiburg, Federico. 1998. Los intelectuales y la invención del peronismo. Madrid / Bs. As. Ed.
Alianza.
Neiburg, Federico y Mariano Plotkin (comp.) 2004. Intelectuales y Expertos. La constitución
del conocimiento social en la Argentina. Bs. As. Ed. Paidós.
Offerlé, Michel. 1998 (1994). Sociologie des groupes d'intérêt , Paris , Montchrestien.
Oliveira-Cézar, María, 2000. “El exilio argentino en Francia”. Les Cahiers ALHIM. Numero
1, 2000.
Orgaz, Alfredo. 1961.Reflexiones sobre los Derechos Humanos
. Colección Monografías
Jurídicas. Bs. As. Ed. Abeledo Perrot.
323
Ortiz, Tulio. 2004. Historia de la Facultad de Derecho. Bs. As. Facultad de Derecho,
Universidad de Buenos Aires.
Oviedo, I. 1976. “El trasfondo histórico de la ley 4144 de residencia”. En: Desarrollo
Económico. Revista de Ciencias Sociales. Nro. 61, vol. 16. Abril-junio.
Palacio, Juan Manuel. 2004. “Aves negras”: Abogados rurales y la experiencia de la ley en la
región pampeana, 1890-1945. En: Desarrollo Económico. Número 174.
Palacios, Alfredo. 1946. En defensa de la libertad. Bs. As. Ed. Ponfilia.
Palacios, Alfredo. 1928. El Nuevo Derecho. Buenos Aires. El Ateneo.
Pasolini, Ricardo. 2006. “Intelectuales antifascistas y comunismo durante la década de 1930.
Un recorrido posible: entre Buenos Aires y Tandil” (mimeo)
Pellet Lastra, Arturo. 2001. Historia Política de la Corte (1930-1990). Bs. As. Ad-Hoc.
Pinto, Louis. 1984. “La vocation de l’universel. La formation de la representation de
l’intellectuel vers 1900”. En: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Nro. 55.
Ricardo Rodríguez Molas, 1985. Historia de la Tortura y el Orden Represivo en la Argentina.
Bs. As. Ed. Eudeba.
Rojas Hurtado, Fernando. 1992. “Les services juridiques alternatifs en Amérique latine.
Réflexions a propos des résultats d’une recherche”. En : Droit et Société. 22. pág. 409- 431.
Romero, Luis Alberto. 1994. La Restauración conservadora. 1930-1943” En: Breve Historia
Contemporánea de la Argentina. Bs. As. Fondo de Cultura Económica.
Romero, Luis Alberto. 2000. Argentina. Crónica Total del Siglo XX. Bs. As. Siglo XXI.
Sábato, Hilda. 1998. La política en las calles. Entre el voto y la movilización. Buenos Aires
1860-1880. Buenos Aires. Ed. Sudamericana.
Sabba, Roberto. 2000. The human rights movement. Citizen participation organizations and
the process of building civil society and rule of law in Argentina” s/d. mimeo.
Sacriste, G. y A. Vauchez, 2004 “La ´guerre hors-la loi. 1910-1930. En : Actes de la
Recherche en Sciences Sociales. Nro. 150. Pág. 91-95
324
Saldívia, Laura. 2002. “Derechos Humanos y Derecho de interés público en Argentina:
¿Quiebre o continuidad?”. Documentos de Trabajo sobre Derecho de Interés Público. Bs. As.
Universidad de Palermo.
Sánchez Viamonte, Carlos. 1971. Crónicas de Ayer y de Hoy. Sesenta años del vivir
Argentino. México. Ed. José M. Cajica.
Sánchez Viamonte, Carlos. 1928. “Prólogo de la 2da. Edición” En: Palacios, Alfredo. El
Nuevo Derecho. Bs. As. El Ateneo.
Sanguinetti, Horacio. 2003. La trayectoria de una flecha. Las obras y los as de Deodoro
Roca. Ed. Histórica.
Sarrabayrouse, María José. 2003. Poder judicial y dictadura. Relaciones patrimonialistas e
intercambio de favores: el caso de las excusaciones en la causa de la morgue judicial.
Sarlo, Beatriz. 2001. La Batalla de las ideas (1943 -1973). Bs. As. Ed. Ariel.
Scheingold, Stuart y Austin Sarat. 2004. Something to Belive In. Politics, Professionalism and
Cause Lawyering. California. Stanford University Press.
Schenkolewski-Kroll, Silvia. 1999. “El partido comunista en la Argentina ante Moscú:
deberes y realidades, 1930-1941” En: Estudios Interdisciplinarios de América latina y el
Caribe. Vol. 10. Nro. 2, julio-diciembre
Seoane, María Isabel. 1981. La enseñanza del derecho en la Argentina desde sus orígenes
hasta la primera década del siglo XX. Bs. As. Perrot.
Seoane, María. 1991. Todo o Nada. La historia secreta y la historia publica del jefe guerrillero
Mario Roberto Santucho. Ed. Planeta. Espejo de la Argentina
Sigal, Silvia. 1991. Intelectuales y poder en la década del sesenta. Bs. As. Puntosur.
Sikkink, Kathryn, 1996. “La red internacional de derechos humanos en América latina:
surgimiento, evolución y efectividad”. En: Jelin, E. y E. Hershberg (coord). Construir la
democracia: derechos humanos, ciudadanía y sociedad en América latina. Caracas. Ed. Nueva
Sociedad. Págs. 71 a 96.
Siméant, Johanna. 2001. “Entrer, rester en humanitaire. Des fondateurs de Médecins sans
Frontières aux membres actuels des ONG médicales françaises”. En : Revue Française de
Science Politique. Volume 51. Número 1-2. pág. 47- 72.
325
Sigaud, Lygia. “Direito e Coerção Moral no Mundo dos Engenhos”. Em: Estudos Históricos.
Rio de Janeiro. Vol. 9, Nro. 18, 1996. p. 257-424.
Sigaud, Lygia. “Les paysans et le droit: le mode juridique de glement des conflits”. En:
Information sur les Sciences Sociales. 1999. New Delhi, 38 (1) pp. 113-147
Suriano, Juan. 2004 (2002). “La oposición anarquista a la intervención estatal en las
relaciones laborales” En: La Cuestión social en la Argentina. 1870-1943. Bs. As. La Colmena.
Suriano, Juan. 2004 (2002) “Una aproximación a la definición de la cuestión social en
Argentina”. En: La Cuestión social en la Argentina. 1870-1943. Bs. As. La Colmena.
Suriano, Juan. 1983. La huelga de inquilinos de 1907. Bs. As. Centro Editor de América
Latina.
Terán, Oscar. 1991. Nuestros Años Sesenta. La formación de la nueva izquierda intelectual en
la Argentina. 1956-1966. Buenos Aires. Ed. Puntosur.
Tiscornia, Sofía (comp). 2004 Burocracias y violencia. Estudios de antropología jurídica Bs
A, Ed. Antropofagia y Facultad de Filosofía y Letras, Colección de Antropología Social.
Tiscornia, Sofía y Maria Victoria Pita (comp). 2006. Derechos Humanos, Tribunales y
Policías en Argentina y en Brasil. Estudios de Antropología Jurídica. Bs. As. Ed.
Antropofagia.
Vecchioli, Virginia. 2000. “Os trabalhos pela memória” Um esboço do campo dos direitos
humanos na Argentina através da construção social da categoria de tima do terrorismo de
Estado. Dissertação de mestrado. PPGAS.
Vecchioli, Virginia. 2001, “Políticas de la Memoria y Formas de Clasificación Social.
¿Quiénes son las ‘Víctimas del Terrorismo de Estado’ en la Argentina?” En: Bruno Groppo y
Patricia Flier (comp). La Imposibilidad del Olvido. Recorridos de la Memoria en Argentina,
Chile y Uruguay. Ed. Al Margen. Argentina. La Plata. Pág. 83 a 102.
Vecchioli, Virginia. 2005. ““La Nación como familia” Metáforas políticas en el movimiento
argentino por los derechos humanos” En: Frederic, S. y G. Soprano (comp). Cultura y política
en etnografías sobre la Argentina. Bs. As. Universidad Nacional de Quilmes.
Veiga, 1985. Las organizaciones de derechos humanos. Bs. As. CEAL.
Vezzetti, Hugo. 2002. Pasado y Presente. Guerra, dictadura y sociedad en la Argentina
. Bs.
As. Siglo XXI.
326
Viaggio, Julio. 1970. Macartismo versus Democracia. Análisis doctrinario y juridisprudencial
de la ‘ley’ 17.401 de represión del comunismo. Bs. As. Ed. Derechos Humanos.
Villalba Welsh, Alfredo. 1984 . Tiempo de ira, tiempo de esperanza. 50 años de vida
política a través de la Liga Argentina por los Derechos del Hombre. R. Centeno Editor.
Vuotto, Pascual. 1991. Yo Acuso. El proceso de Bragado. Bs. As. Ed. Reconstruir.
Willemez, Laurent, 2003. “Engagement professionnel et fidelités militantes. Les avocats
travaillistes dans la defense judiciaire des salariés” En: Revue Politix. Vol. 16. Nro. 62.
Zanatta, Loris. 1998. “Religión, nación y derechos humanos. El caso argentino en perspectiva
histórica” En: Revista de Ciencias Sociales. Bs. As. UnQ. Abril. 7-8.
Zimmermann, Eduardo. 1995. Los liberales reformistas. La cuestión social en la Argentina.
1890-1916. Bs. As. Universidad de San Andrés / Editorial Sudamericana.
Zimmermann, Eduardo. 1999. “The Education of lawyers and judges in Argentina’s
Organización Nacional (1860-1880). En: Eduardo Zimmermann (ed). Judicial Institutions in
Ninetheenth Century latin America. Londres. Institute of latin American Studies.
Zimmermann, Eduardo. 1998. “El poder judicial, la construcción del Estado y el federalismo:
Argentina, 1860-1880” En: Eduardo Posada (ed). In search of a New Order: Essays on the
Politics and Society of Nineteenth Century Latin America. London. Institute of latin
American Studies.
FONTES DOCUMENTAIS
Jornais
Crítica. Buenos Aires.
Periódicos
Derechos Humanos.
El Defensor.
327
El Liguista.
El Boletín de la LADH
Derechos del Hombre
Periódico del Comité pro Amnistía a los Exiliados y Presos Políticos de América.
Socorro Rojo
Amnistía
Defensa Popular
Alerta! Contra el Fascismo y el Antisemitismo
Contra-Fascismo
Boletín del Congreso Antiguerrero Latinoamericano
Nuevo Hombre.
Peronismo y Socialismo
Liberación
No Transar
Desacuerdo
Propósitos
Dossier de Press . ‘Droit et justice. Argentine. 1974-1976. Paris.
Dossier de Press ‘Droit et Justice. Argentine. 1976-1978’. Tome 1 et 2. Paris.
Dossier de Press ‘Vie politique en Argentine. 1976-2004’ Tome 3. Paris.
Bulletin. Commission Argentine de Droits de l’homme (CADHU).
Bulletin CISAL. ‘Argentine’. Nro. 3. Paris. Fevreiro 1975.
Bulletin d’information. Comite de Défense des Prisonniers Politiques Argentines.
Revistas
Revista Jurídica Argentina La Ley.
328
Anales de la Academia Nacional de Ciencias Morales y Políticas.
Anales de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad Nacional de La
Plata.
Historia del Derecho.
Nueva Doctrina Penal
Humor.
Primera Plana
Militancia Peronista para la Liberación
Clarinada
Documentos
Actas del Primer Congreso contra el Racismo y el Antisemitismo. Comité contra el Racismo
y el Antisemitismo de la Argentina. Bs. As. 1938.
Comisión Internacional de Juristas. 1978. “Attacks on the independence of judges and
lawyers in Argentina” En: Bulletin of the Centre for The Independence of Judges and
Lawyers. Vol. 1. Nro. 1. February.
Association Internationale des Juristas Democrates. “La repression en Argentine ». Rapport
de Mission. Nuri Albala. Junio 1976.
Comisión Argentina de Derechos Humanos. “Argentine. Proces d’ un genocide. Le
Terrorisme d’Etat”. (s/d) aprox. 1976.
International Commisssion of Jurists. “Informe. La Situación de los Abogados Defensores en
la República Argentina” Ginebra. 1976.
Internacional Commission of Jurists. 1978. “Attacks on the independence of judges and
lawyers in Argentina”. Bulletin of the Centre for the Independence of Judges and Lawyers.
CIDH: Informe sobre la situación de los Derechos Humanos en Argentina. OEA. Washington
DC. 1980
APDH. Cartas institucionales, actas de reunión, normas de organización, documentos
internos, declaraciones públicas, listas de integrantes de las sucesivas comisiones directivas,
crónicas de eventos, informes, escritos presentados a los tribunales, denuncias, proyectos de
ley, folletos, libros. Catálogo Colectivo de Memória Abierta.
329
Memorial presentado por los consejeros estudiantiles al Rector de la Universidad de Buenos
Aires. Bs. As. 1930.
Varios
Diccionario Biográfico Quien es Quien en la Argentina. Biografías Contemporáneas. Bs. As.
Ed. Kraft. 1947, 1952 y 1963, 1972.
Estatutos de la Liga Argentina por los Derechos del Hombre.
Comunicado de prensa. Agrupación Peronista Autentica de Abogados. Los abogados ante la
nueva dictadura’. Argentina. 1976.
Comunicado de prensa. Association syndicale des juristes de Buenos Aires. Comunicado de
prensa. S/d. Paris.
Comunicados de prensa. Comite de Défense des Prisonniers Politiques Argentines. Paris.
1972.
Comunicados de prensa de la Federación Internacional de Ligas de los Derechos del Hombre.
Paris. 1975 y 1976.
Carta de Andrés Cultelli dirigida al presidente de Amnesty International de Suecia solicitando
su intervención en el caso de los detenidos en la cárcel de Sierra Chica, Córdoba. Octubre
1975.
Carta de Norma Espindola dirigida al abogado Aisenstein denunciando al desaparición de su
hijo. Paris. 1978.
Folleto de los Equipos por la Victoria Independiente de los Trabajadores. Paris. s/d.
Solicitada des Familles des prisonniers et disparus en l’Argentine. Le Monde. Paris.
Diciembre 1977.
Arquivos e bibliotecas consultadas:
Fondation Nationale des Sciences Politiques. Centre de Documentation Contemporaine. Paris.
Francia.
Hemeroteca de la Bilioteca Nacional. Argentina.
Hemeroteca de la Facultad de Filosofía y Letras. Argentina.
Biblioteca y Hemeroteca de la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires.
Biblioteca y Hemeroteca de la Facultad de Derecho de la Universidad de La Plata
330
Biblioteca y Hemeroteca del Congreso Nacional. Buenos Aires.
Biblioteca de la Academia Nacional de Historia. Buenos Aires.
Biblioteca de la Academia Nacional de Ciencias Morales y Políticas. Buenos Aires.
Biblioteca de la Corte Suprema de Justicia. Buenos Aires.
Biblioteca de la Asociación de Abogados de Buenos Aires.
Biblioteca de la Fundación Alfredo Palacios. Buenos Aires.
Biblioteca de la Universidad Popular Alejandro Korn. La Plata.
Biblioteca del Partido Comunista Argentino. Buenos Aires.
Biblioteca del Consulado Argentino en Río de Janeiro.
Centro de Investigación de la Cultura de Izquierda en la Argentina (CeDInCI).
Archivo del Departamento Histórico-Judicial de la Suprema Corte de Justicia de la Provincia
de Buenos Aires. La Plata.
Archivo Oral. Colección Abogados y Política. Memória Abierta Asociación Civil
Archivo privado de la familia de Néstor Martins.
Documentos em páginas web
Documentos desclasificados por el Departamento de Estado Norteamericano.
“Marxists Internet Archive”: www.marxists.org./archive/lenin
Entrevistas
1. 21 entrevistas realizadas por mim a advogados, parentes de advogados desaparecidos
na Argentina, lideranças de associações de direitos humanos e magistrados e
advogados na França.
2. 6 entrevistas realizadas por Laura Saldivia a advogados defensores de presos políticos
(arquivo pessoal)
3. 1 Entrevista realizada por Emilio Crenzel a um advogado defensor de presos políticos
(arquivo pessoal)
331
4. Entrevistas realizadas por Vera Carnovale para Archivo de Memoria Abierta
disponiveis para sua consulta na instituição. Integran a colección “Abogados, Derecho
y Política”
Héctor Sandler
Mario Landaburu
Rodolfo Mattarollo
Museu Nacional.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Universidade Federal do Rio de Janeiro
“A luta pelo direito”
Engajamento militante e profissionalização dos advogados
na causa pelos direitos humanos na Argentina
Virginia Vecchioli
Tese de doutorado
Orientador: Pfr. Federico Neiburg
Rio de Janeiro
2006
ii
Virginia Vecchioli
‘A luta pelo direito’
Engajamento militante
e profissionalização
dos advogados na
causa pelos direitos
humanos na Argentina
Museu Nacional / PPGAS
2006
iii
“ ‘A luta pelo direito’. Engajamento militante e profissionalização
dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina”
Virginia Vecchioli
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários a obtenção do
título de Doutor
em Antropologia Social.
Orientador: Pfr. Federico Neiburg
Rio de Janeiro
Dezembro de 2006
iv
Vecchioli, Virginia
“ ‘A luta pelo direito’ Engajamento militante e
profissionalização dos advogados na causa pelos
direitos humanos na Argentina” /Virginia Vecchioli
Rio de Janeiro: UFRJ / Museu Nacional / PPGAS / 2006.
xi, 370 pág.
Tese de doutorado – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Museu Nacional, PPGAS.
1. direitos humanos. 2. antropologia do direito. 3. profissões.
4. engajamento militante. 5.Argentina. 6. Tese (doct. – UFRJ.
Museu Nacional). I. Título
v
vi
Agradecimentos
Este trabalho se fez possível graças à contribuição de muitas pessoas e instituições.
Para a realização desta tese contei com o auxilio financeiro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), do programa de subsídios a pesquisadores da
Universidade de Buenos Aires (UBACyT) e de uma bolsa do Centro de Investigaciones
Etnográficas da Universidade Nacional de San Martín outorgada especialmente no último ano
para apoiar a escrita da tese. Aos responsáveis destas agências e instituições, meu eterno
agradecimento.
A minha principal dívida intelectual é com os professores do Museu Nacional com os
quais me formei nestes anos de doutorado: Moacir Palmeira, Luis de Castro Faria, Carlos
Fausto, João Pacheco de Oliveira, Giralda Seyferth, Otávio Velho, Marcio Goldman, Antonio
Carlos de Souza Lima. Devo agradecer a todos eles, especialmente a meu diretor de tese
Federico Neiburg que tem sido um verdadeiro apoio por seu compromisso permanente para
com meu trabalho. Em cada uma das instâncias de revisão dos rascunhos originais de este
texto colocou-se de manifesto as suas extraordinárias qualidades de leitor crítico e de mestre.
Devo a sua valiosa generosidade intelectual posta em jogo ao longo destes anos de orientação,
o fato de ter aprendido uma maneira de fazer e conceber a antropologia social. Não menos
importante é o fato de ter me brindado contatos chaves com o universo dos meus nativos.
Estou em dívida também como os professores Lygia Sigaud e Fernando Diaz Duarte pelos
comentários e sugestões colocadas a meu trabalho em diferentes momentos da sua elaboração,
a procura sempre de sofisticar a formulação dos problemas e as apropriações da literatura. O
tempo passado junto aos meus colegas da turma também foi uma contribuição importante a
minha formação. Entre eles quero salientar a Renata Menezes de Castro, Elisa Guaraná de
Castro e Roberta Ceva. A disposição dos funcionários do PPGAS também tem sido uma
contribuição importante na hora de resolver questões chaves para o avanço do trabalho.
Ofereço também a eles o meu agradecimento, especialmente a Tania Lúcia Ferreira da Silva.
Esta tese foi possível também graças ao estágio realizado no Laboratoire de Sciences
Sociales da École Normale Superieure. A contribuição que vários de seus integrantes
realizaram ao meu trabalho foi muito significativa. Entre eles preciso destacar o professor
vii
Michel Offerlé quem, como o meu diretor de estudos, abriu meus horizontes intelectuais
apresentando linhas de pesquisas que seriam chaves na articulação dos problemas
desenvolvidos neste trabalho. O seu entusiasmo por me introduzir na literatura e por me fazer
participar da comunidade local de pesquisadores ligados a questão do engajamento jurídico
tem sido uma enorme fonte de inspiração. O seu compromisso com a minha tese fez deste
período de formação uma instância verdadeiramente privilegiada.
Durante este estágio me beneficiei especialmente do contato com Yves Dezalay, Eric
Agrikoliansky, Liora Israel, Daniela Cuadros Garland, Marina Franco, Carlos Herrera e
Antoine Willemez. Todos eles contribuíram fazendo sugestões significativas ao projeto mas
também me facilitando conhecimentos práticos sobre os arquivos locais e contatos chaves
com os profissionais do direito franceses engajados na causa dos direitos humanos na
Argentina. Estas dicas resultaram extremadamente valiosas na hora de tirar o máximo
proveito dos quatro meses de um estágio que combinou a participação em seminários e
encontros acadêmicos com a pesquisa em arquivos e a realização de entrevistas.
Na Argentina recebi também o estimulo de vários grupos de pesquisa localizados
principalmente no Instituto de Desarrollo Econômico y Social (IDES). Em primeiro lugar,
devo agradecer a Elizabeth Jelin, diretora do Núcleo de Estúdios sobre Memória, a
possibilidade de compartilhar as reuniões de trabalho no período 2004-2006. Neste espaço me
beneficiei de importantes sugestões formuladas às versões preliminares dos capítulos. Estas
reuniões foram um incentivo permanente pela diversidade de pesquisas e pesquisadores
congregados neste espaço. O que faz do Núcleo um verdadeiro foro de debate amplo e
democrático sobre o passado recente na Argentina. Sinto-me especialmente em dívida com
Vera Carnovale, Claudia Feld e com Emilio Crenzel. Emilio sempre foi um suporte intelectual
muito importante e com quem compartilhei algumas das emoções envolvidas na produção de
nossas respectivas tese de doutorado.
Aos colegas reunidos no Centro de Antropologia Social (IDES), Rosana Guber, Sergio
Visacovsky e Mauricio Boivin devo-lhes agradecer pelo seu enorme e permanente apoio.
Havendo iniciado com eles a minha formação de grado e compartilhando diversas instâncias
de encontro tanto acadêmico como pessoal resulta-me difícil resumir a importância das
contribuições de todos eles. Na fase final da escrita da tese me sinto especialmente em dívida
viii
com Rosana Guber quem, além da sua permanente disposição para estimular o avanço da tese,
colocou a minha disposição a infra-estrutura chave para faze-la possível.
Em terceiro lugar, devo agradecer aos integrantes do Grupo de Estúdios sobre
Procesos de Politización en el Cono Sur (IDES) a discussão das versões preliminares dos
capítulos: Laura Zapata, Mariana Paladino, Horacio Sívori, Laura Masson e Rolando Silla.
Desde 2004, o grupo constituiu-se num espaço privilegiado de reflexão sobre os assuntos
colocados nesta tese, fato que me permitiu amadurecer as hipóteses colocadas inicialmente
nesta pesquisa. Agradeço a todos eles pela amizade e pelo entusiasmo demonstrado ao longo
destes anos compartilhados de formação. Pela continua presença no IDES quero agradecer
também a colaboração de todo o seu plantel de funcionários, especialmente a Getúlio
Steinbach, Miguel, Irene, Carolina e René que com uma enorme disposição fazem que as
atividades desenvolvidas no IDES sejam especialmente gratas.
Versões preliminares dos capítulos desta tese foram debatidas também no seminário
de pesquisa do Centro de Investigaciones Etnográficas da Uiversidad Nacional de San Martín.
Devo agradecer especialmente a seu diretor, Pablo Semán, pela sensibilidade com que
acolheu os meus interesses de pesquisa, pela confiança depositada no valor dela e pela enorme
disposição para tentar resolver as suas dificuldades, fatos todos que facilitaram enormemente
a realização desta tarefa e fizeram mais prazeroso o retorno à Argentina.
Dentro do próprio universo dos profissionais do direito o meu agradecimento maior é
para os defensores de presos políticos. Agradeço a eles pelo fato de ter dedicado tempo e
esforço para que eu pudesse me adentrar nas complexidades do exercício da defesa e do
próprio período em que ela se desenvolveu, os agitados anos setenta. Com disposição
extrema, na maior parte dos casos, estes profissionais compartilharam comigo lembranças
emotivas e dolorosas. Mas também a paixão pela sua vocação militante, que ainda hoje os
convoca. Uma face compartilhada também pelos juristas e magistrados contatados na França,
que cederam o valiosíssimo tempo que meia entre uma missão internacional e outra para que
eu lhes pudesse entrevistar. Entre os advogados argentinos quero destacar especialmente a
Haydée Birgin, quem oficiou de chave de ingresso a este espaço de relações. Este
agradecimento é extensivo também para os parentes dos advogados desaparecidos que
colaboraram com a pesquisa, especialmente à família Martins. Estas páginas encontraram
ix
motivação em minha estima pela coragem e resolução colocadas no exercício da profissão e
são um reconhecimento a este esforço militante.
No mundo mais amplo do direito, o Seminário Permanente sobre la História de la
Facultad de Derecho do Instituto de Investigaciones Jurídicas y Sociales Ambrosio Gioja da
Facultad de Derecho da Universidade de Buenos Aires foi outro espaço significativo de
encontro com os especialistas. Sou especialmente grata pelo apoio recebido especialmente do
coordenador do Seminário, Dr. Túlio Ortiz. Freqüentar este espaço me permitiu entrar em
contato com nomes consagrados na historia do direito na Argentina, como o Dr. Abelardo
Levaggi quem me permitiu compartilhar as inquietações da minha tese. Agradeço também a
ele pelo interesse pessoal em debater comigo versões preliminares dos capítulos. Os
advogados integrantes da Fundação Carlos Sánchez Viamonte contribuíram também a esta
tese facilitando material documental e, sobretudo, importantes dicas a respeito de como achar
o material jurídico importante e como trabalhar-lho. Entre eles, agradeço especialmente a
Aldo Galloti.
Entre os profissionais do direito que merecem um lugar de destaque se encontra Laura
Saldivia. Com imensa generosidade intelectual, ela colocou a minha disposição o corpus de
entrevistas que ela fez aos defensores de presos políticos ativos nos anos sessenta e setenta.
Este ato, por certo pouco comum entre pesquisadores, significou uma contribuição muito
grande para o avanço da minha pesquisa. Estas páginas são um reconhecimento a toda a
dívida intelectual que tenho com ela. A Silvina Segundo, do arquivo oral da Asociación
Memória Abierta e a Damian do CEDINCI também meu agradecimento pela ajuda na procura
dos materiais e pela enorme paciência e cordialidade no atendimento aos pesquisadores.
Todos estes esforços resultariam pesados demais sem a valiosa companhia das
amizades. Na Argentina, as amigas de tantos anos, Sabina Frederic, Íris Flichman, Gabriela
Botello e Andréa Roca, quem mesmo a distancia tem me sabido acompanhar com tanto afeto
no dia a dia. No Brasil, as amigas com as quais compartilho tantas saudades, entre as quais
destaco especialmente a Bianca Xavier. Os meus pais também tem sido uma base importante
de apoio, especialmente durante o meu período na França. Gostaria muito poder compartilhar
esta tese com o primeiro Doutor que conheci na minha vida, meu pai. Devo a ele o gosto pela
vida acadêmica. Por último, as minhas palavras finais de agradecimento são para os três
homens que integram a minha família: Nicolás, Julián e Gustavo. Os primeiros, com a sua
x
imensa compreensão para com os requerimentos da escrita, especialmente comovedora pela
pequena trajetória de suas vidas. Sempre a espreita de qualquer oportunidade para ‘jogar no
computador’ (um elemento imprevisivelmente excluído da suas vidas), eles tem me
estimulado de várias formas, entre elas, a ‘tranqüilizadora’ contagem regressiva dos dias
faltantes para a entrega do trabalho. O meu agradecimento imenso também para a
generosidade sempre presente de Gustavo del Gobbo. Seu apoio e seu amor tem sido de um
valor crítico nesta tarefa. Vão estas páginas dedicadas a eles três.
xi
RESUMO
‘A luta pelo direito’. Engajamento militante e profissionalização dos advogados na
causa pelos direitos humanos na Argentina”.
VECCHIOLI, Virginia.
Orientador: Federico Neiburg. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006.
Tese.
Esta tese trata sobre a formação de um segmento da profissão jurídica diretamente associado à
promoção e defesa dos direitos humanos na Argentina. Os advogados aqui descritos evocam a
figura do profissional do direito engajado e dedicado ao serviço desta causa pública. Trata-se
de advogados que se constituem como tais por referencia a dos espaços simultâneos de
atuação: o engajamento militante e o exercício profissional. Os capítulos tracejam o itinerário
que vai da invenção da causa nas primeiras décadas do século XX até a profissionalização dos
seus militantes na atualidade. Se os advogados descritos no primeiro capítulo evocam a figura
heróica do profissional que se entrega desinteressadamente à causa, o último os apresenta na
sua condição de ‘peritos’ a partir da sua incorporação a um campo profissional transnacional
ligado à causa pelos direitos humanos.
As ações descritas nesta tese expõem a complexa e densa rede que liga os advogados de
prisioneiros políticos às vítimas, aos parentes das vítimas e aos peritos nacionais e
internacionais em direitos humanos. O propósito deste percurso é fazer um retrato dos
especialistas engajados na causa pelos direitos humanos, assim como descrever a própria
causa que faz com que eles existam.
Interessa -me compreender os processos que conduziram a estes profissionais a um tipo
específico de engajamento, de maneira tal que cada fase do engajamento fazia possível a
seguinte. O ativismo não deriva então, nem do acaso, nem de simples identificações
ideológicas, mas sim da existência de espaços de interação social comuns, a partir dos quais
as afinidades ideológicas, as redes e os princípios de distinção são estruturados dentro do
universo mais amplo da política e do direito. Nesse sentido, vale a pena salientar a polissemia
do termo ‘compromisso’, envolvendo tanto o fato de se engajar na ação pública, como
vincular outros sujeitos através de uma rie de obrigações inerentes a posição social que se
ocupa (ou pretende-se ocupar). Assim, o compromisso prévio com a causa dos trabalhadores e
suas organizações sindicais orientou, mais tarde, a defesa desses mesmos indivíduos na
condição de prisioneiros políticos.
Ao longo de todo o trabalho o que pretendo mostrar toda a força do direito’ na configuração
da causa pelos direitos humanos na Argentina e, ao mesmo tempo, apresentar toda a ‘eficácia
do engajamento militante’ na transformação do próprio ativismo profissional. Neste sentido, a
tese coloca questões relativas à forma em que este ativismo jurídico produz transformações
tanto nas formas de fazer e pensar a política quanto nas formas de fazer e pensar o direito.
xii
Palavras-chave: direitos humanos, antropologia do direito, profissões, engajamento militante.
Argentina.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2006
xiii
ABSTRACT
‘The struggle for law’. Militant engagement and the professionalization of lawyers in
the cause of human rights in Argentina”. VECCHIOLI, Virginia. Oriented by Federico
Neiburg. Rio de Janeiro. UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006. tese.
This thesis deals with the creation of a segment among the juridical profession, directly
associated to promotion and defense of human rights in Argentina. Attorneys of law depicted
here evoke the figure of a lawyer engaged and dedicated to this public cause. It concerns to
lawyers that create themselves regarding to two simultaneous spaces of intervention: militant
engagement and professional practice. Chapters travel across an itinerary that goes from
human rights’ cause invention during the first decades of XX century till the
professionalization of its militants in present days. If defenders described in the first chapter
evoke the professional heroic figure that devotes himself to the cause, the last one present
them as ‘experts’, based on their incorporation to a transnational professional field related to
the human rights cause. Actions described in this thesis reveals the deep and complex
network that link defenders lawyers of political prisoners to victims, victims’ relatives and
national and international human rights experts.
The purpose of this research is to make a portrait of attorneys of law engaged in human rights
cause as well as to describe the very cause that allowed them to exists. I’m interested in
understanding the process that leads this professionals to this specific type of engagement.
Activism is not the result of chance not even the result of purely ideological identification, but
the result of the existence of common spaces of social interaction, in a way that each phase of
engagement makes possible the next one. From this standpoint I show how ideological
affinities, networks and principles of distinction are structured within the broader universe of
politics and law. Throughout this work, I intend to show all ‘the power of law’ in the
configuration of the human rights cause in Argentina. At the same time, I try to illustrate all
‘the efficiency of militant engagement’ in the transformation of professional activism itself. In
this sense, this thesis catch the attention to problems related to the way juridical activism
transforms the manner of making and thinking about politics as well the manner of making
and thinking about law.
Key words: human rights, anthropology of law, professions, activism, Argentina.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2006
xiv
Listagem de Associações
Amnistía Internacional. 1961.
Asociación de Abogados de Buenos Aires. 1934.
Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires, 1971.
Agrupación de Abogados de Córdoba (años 70s).
Asamblea Permanente por los Derechos Humanos. 1975.
Asociación Gremial de Abogados de Mar del Plata (años 70s)
Asociación Gremial de Abogados de Bahía Blanca (años 70s)
Asociación Jurídica Argentina (primeras décadas siglo XX)
Asociación Internacional de Juristas Democráticos
Centro de Estudios Legales y Sociales. 1979.
Comité de Défense des Prisionniers Politiques Argentines. 1972.
Comité de Ayuda Antifascista (años 30s)
Comité Pro-Amnistía por los Exiliados y Presos Políticos de América (años 30s)
Comité Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo (años 30s).
Comisión Argentina de Derechos Humanos (1976)
Commission Argentine des Droits de l’Homme
Comisión Pro-Abolición de las Torturas (años 30s)
Comisión de Familiares de Desaparecidos y Detenidos por razones políticas
Comisión de Familiares de Presos Políticos y Gremiales. 1961.
Comisión de Familiares de Presos Políticos, Estudiantiles y Gremiales (años 70s)
Comisión de Familiares de Patriotas Fusilados en Trelew. 1972.
Comisión Interamericana de Derechos Humanos. 1960.
xv
Comisión Internacional de Juristas
Comisión Nacional de Desaparición de Personas
Comisión por la Vida y la Libertad de Martins y Centeno. 1971.
Federación Internacional de Derechos Humanos
Frente Antiimperialista por el Socialismo (años 70s)
Foro de Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos. 1971.
Groupe d’Abocats Argentins Exilés en France (1977 aprox.)
Liga Argentina por los Derechos del Hombre. 1937.
Movimiento Nacional contra la Represión y la Tortura (años 60s)
Nuevos Derechos del Hombre (1990)
Organización de Solidaridad con los Presos Políticos, Estudiantiles y Gremiales (años 70s).
Socorro Rojo Internacional (años 30s)
xvi
Listagem de Siglas
AABA: Asociación de Abogados de Buenos Aires
AGA: la Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires.
APDH: Asamblea Permanente por los Derechos Humanos
AIJD: Asociación Internacional de Juristas Democráticos
CELS: Centro de Estudios Legales y Sociales
CGT: Confederación General del Trabajo
CGT A: Confederación General del Trabajo de los Argentinos
CADHU: Comisión Argentina de Derechos Humanos
CIDH: Comisión Interamericana de Derechos Humanos
CIJ: Comisión Internacional de Juristas
COFADE: Comisión de Familiares de Presos Políticos y Gremiales
COFAPEG: Comisión de Familiares de Presos Políticos, Estudiantiles y Gremiales
CONADEP: Comisión Nacional de Desaparición de Personas
CSJ: Corte Suprema de Justicia
ERP: Ejército Revolucionario del Pueblo.
FAS. Frente Antiimperialista por el Socialismo
FIDH: Federación Internacional de Derechos Humanos
FUA: Federación Universitaria Argentina
GAAEF: Groupe d’Avocats Argentins Exilés en France
LADH: Liga Argentina por los Derechos del Hombre.
xvii
OIT: Organización Internacional del Trabajo
OEA: Organización de Estados Americanos
ONU: Organización de Naciones Unidas
OSPPEG: Organización de Solidaridad con los Presos Políticos, Estudiantiles y Gremiales
PCA: Partido Comunista Argentino
PEN: Poder Ejecutivo Nacional
PS: Partido Socialista
PRT: Partido Revolucionario de los Trabajadores
UBA: Universidad de Buenos Aires
UCR: Partido Unión Cívica Radical
xviii
Listagem de Documentos Anexos
Anexo 1: Convocatória da LADH promovendo à adesão a associação....... 111
Anexo 2: Reprodução da convocatória a um comício .................................. 112
Anexo 3: Reprodução de uma listagem de presos políticos ............................ 113
Anexo 4: Cartaz de Rua do Comitê contra o Racismo e o Anti-semitismo........ 114
Anexo 5: Reprodução da capa do periódico Socorro Rojo ............................. 117
Anexo 6: Anúncios dos serviços jurídicos oferecidos pelos
advogados integrantes da LADH....................................................... 118
Anexo 7: Mobilização dos advogados perante o seqüestro de colega............... 211
Anexo 8: Reprodução do abaixo-assinado denunciando os procedimentos
Judiciais no caso Sanchez .................................................................... 212
Anexo 9: Reprodução dos conselhos dos advogados de presos políticos aos
Militantes ............................................................................................. 213
Anexo 10: Reprodução do abaixo-assinado realizado pela
Comissão de Familiares ....................................................................... 214
Anexo 11: Convocatória de familiares a uma greve de fome ............................... 215
Anexo 12: Ocupação da Praça de Maio pelos familiares de advogado
desaparecido....................................................................................... 216
Anexo 13: Reprodução da convocatória à Terceira Reunião Nacional de
Advogados ......................................................................................... 217
Anexo 14: Instituição do Prêmio Nestor Martins da Faculdade de Direito
Da Universidade de Buenos Aires aos melhores trabalhos
Acadêmicos.......................................................................................... 218
Anexo 15: Reprodução de um capítulo do Manual do Oprimido ........................ 219
Anexo 16: Advogados ameaçados ....................................................................... 220
xix
Sumário de Tabelas
Tabela 1: Número de integrantes da LADH segundo filiação partidária ................ 40
Tabela 2: Simultaneidade de compromissos associativos ....................................... 80
Tabela 3: Listagem dos integrantes da APDH correspondente ao
Primeiro ano de funcionamento ............................................................... 229
Tablea 4: Listagem dos advogados integrantes do servico jurídico da APDH ........ 231
Tabela 5: Perfil das associações internacionais de juristas ...................................... 268
Tabela 6: Detalhe das missões internacionais de juristas .......................................... 270
xx
SUMÁRIO
Agradecimentos ................................................................................................. vi
Resumo ............................................................................................................... xi
Abstract .............................................................................................................. xiii
Listagem de Associações .................................................................................. xvii
Listagem de siglas utilizadas ........................................................................... xix
Listagem de anexos ........................................................................................... xviii
Sumário de Tabelas .......................................................................................... xix
Sumário .............................................................................................................. xx
Introdução ........................................................................................................... 1
1. Capítulo 1: A invenção de uma causa. Um encontro entre notáveis
e recém chegados do direito e da política.......................................................... 28
1.1. Introdução ......................................................................................... 29
1. 2. A ameaça ........................................................................................... 32
1. 3. O imperativo a atuar ....................................................................... 36
1. 4. Defender a causa através do direito ................................................ 44
1. 4. 1. Os serviços de assistência jurídica ...................................... 45
1. 4. 2. A imprensa dos direitos do homem ..................................... 57
1. 5. Militantes do direito .......................................................................... 61
1. 5. 1. Formar-se em direito ........................................................... 61
1. 5. 2. Exercer o direito .................................................................. 74
1. 6. Uma causa internacional .................................................................. 82
1. 7. Ser um advogado defensor de presos políticos ............................... 86
1. 7. 1. A inteligência e a ilustração como armas de luta ................ 88
1.7. 2. O culto ao desinteresse ......................................................... 91
xxi
1.7. 3. O sacrifício pela causa ......................................................... 94
1. 7. 4. A qualidade heróica ............................................................ 97
1. 8. Pensar o direito ............................................................................... 98
1. 9. Conclusão ......................................................................................... 104
1. 10. Epílogo ........................................................................................... 107
1. 11. Anexos ............................................................................................ 110
2. Capítulo 2: O ativismo jurídico. Um mundo feito de rotinas e heroísmo
2. 1. Introdução ........................................................................................ 122
2. 2. ‘A repressão judicial’........................................................................ 127
2. 3. ‘As frentes de massas contra a repressão’...................................... 133
2. 3. 1. Um mundo feito de rotinas ................................................. 141
2. 3. 2. O tribunal da opinião pública .............................................. 149
2. 3. 2. 1. ‘A defesa política’................................................ 150
2. 3. 2. 2. A imprensa anti-ditatorial .................................... 157
2. 4. As associações de parentes de presos políticos e sociais............... 162
2. 5. A profissão de advogado e o compromisso militante ................... 164
2. 5. 1. A opção pela qualificação profissional .............................. 164
2. 5. 2. O exercício da profissão ...................................................... 172
2. 5. 3. ‘Militar na Gremial’ ............................................................ 182
2. 6. Ser um defensor de presos políticos .............................................. 188
2. 6. 1. A qualidade heróica ............................................................ 191
2. 7. “O mais alto militante era o guerrillero” ..................................... 199
xxii
2. 8. “Advogados do caos e a delinqüência” ......................................... 204
2. 9. “A luta pelo direito” ....................................................................... 207
2. 10. Uma causa internacional ............................................................. 211
2. 11. Conclusão ....................................................................................... 215
2. 12. Epílogo ........................................................................................... 216
2. 13. Anexos ........................................................................................... 217
3. Capítulo 3: A organização transnacional da denuncia e a profissionalização do
compromisso militante
3. 1. Introdução ........................................................................................ 243
3. 2. O engajamento com a causa na Argentina .................................. 247
3. 2. 1. Uma ‘Assembléia’ pelos Direitos Humanos ...................... 248
3. 2. 1. 1. O serviço jurídico ................................................ 250
3. 3. 1. 2. Os direitos humanos como vocação ................... 256
3. 2. 2. Um ‘Centro de Estudos’ Legais e Sociais .......................... 259
3. 2. 2. 1. A trajetória de um fundador ............................... 265
3. 2. 2. 2. Os direitos humanos como profissão ................. 273
3. 3. A organização transnacional da denuncia .................................. 283
3. 3. 1. O engajamento com a causa no exílio ................................ 283
xxiii
3. 3. 2. As missões internacionais de juristas ................................ 287
3. 3. 3. As redes internacionais ....................................................... 294
3. 3. 4. Peritos do internacional .................................................... 302
3. 3. 5. Os advogados como ‘vítimas do terrorismo do Estado’ ....
3. 4. O exílio como uma ‘grande escola política’ .................................. 312
3. 4. 1. Os que ‘jetonean’ no exílio ................................................ 317
3. 4. 2. Os defensores como ‘peritos em direitos humanos’ .......... 319
3. 5. Conclusão ..................................................................................... 325
3. 6. Epílogo .......................................................................................... 332
3. 7. Anexos ........................................................................................... 333
4. Conclusões ...................................................................................................... 343
5. Referências Bibliográficas ............................................................................ 349
xxiv
VECCHIOLI, Virginia. “ ‘A luta pelo direito’. Engajamento militante e
profissionalização dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina”
Orientador: Federico Neiburg. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006.
Tese.
xxv
VECCHIOLI, Virginia. ‘A luta pelo direito’. Engajamento militante e
profissionalização dos advogados na causa pelos direitos humanos na Argentina”
Orientador: Federico Neiburg. Rio de Janeiro: UFRJ / PPGAS / Museu Nacional. 2006.
Tese.
Introdução
“Talvez atribui-se um demasiado valor à memória
mas não o suficiente à reflexão”
1
Esta tese trata da formação de um segmento da profissão jurídica diretamente
associado à promoção e defesa dos direitos humanos na Argentina. Todos os advogados
tratados aqui evocam a figura do profissional do direito comprometido com o serviço desta
causa pública. Trata-se de profissionais que se constituem como tais por terem como
referencia dois espaços simultâneos de atuação: o engajamento militante e o exercício
profissional do direito. Como apresentarei, as particularidades desta configuração ressaltarão
princípios distintivos de recrutamento, de adesão e de representação deste ativismo que
supõem, por sua vez, formas específicas de fazer e pensar o direito e a política na Argentina
contemporânea.
Através de um percurso por distintos momentos da história da construção desta causa
e de seus peritos, proponho mostrar as transformações que ocorreram no perfil dos advogados
que assumem publicamente um compromisso com a defesa dos direitos humanos. Os
diferentes capítulos da tese traçam um itinerário: desde a invenção da causa dos direitos do
homem, em meados dos anos trinta, até a profissionalização dos seus militantes na atualidade.
Este itinerário percorre algumas das instâncias chaves de um trajeto que conduziu a uma
profunda reconfiguração deste perfil profissional. Se os advogados descritos nos capítulos
iniciais evocam a figura heróica do profissional que se entrega desinteressadamente à causa, o
último apresenta-os na condição de ‘peritos’, a partir da sua incorporação a um campo
profissional transnacional ligado à causa dos direitos humanos.
Esta transformação envolve reconfigurações significativas, tanto do espaço da
militância como do próprio campo profissional. Se a intervenção destes profissionais incide
na forma em que se processam e interpretam certos conflitos políticos, oferecendo um
repertório de práticas e valores e fazendo deste ativismo um assunto de competência
especializada, não é menos verdadeiro que este engajamento militante também traz
conseqüências profundas dentro do próprio universo do direito. A recente incorporação com
1
Susan Sontang. Ante el dolor de los demás. Buenos Aires. Ed. Alfaguara. 2003. pág. 134.
2
status constitucional do ‘direito internacional dos direitos humanos’, a existência de
associações civis especificamente voltadas para o tratamento judicial destas causas, a criação
de cursos de pós-graduação, de estudos jurídicos privados dedicados a gerir a demanda de
reparações econômicas para as vítimas e seus parentes e a apresentar casos perante os
tribunais internacionais, a aparição de revistas e editoriais especializadas, a participação de
advogados argentinos em missões e tribunais internacionais de direitos humanos e a
multiplicação de agências estatais dedicadas a delinear políticas relativas ao tema, todos eles
são fatos que dão conta tanto das mudanças ocorridas no espaço do militantismo, quanto das
transformações ocorridas dentro do próprio campo do direito.
O foco neste processo de transformação do perfil do profissional do direito engajado
entre as primeiras décadas do século XX e a atualidade levou-me a realizar uma pesquisa que
combina dados que provêem de fontes históricas com o uso de material etnográfico. Sobre a
base desta singularidade, esta tese poderia ser definida como de antropologia histórica. Se a
institucionalização desta causa é o resultado de um longo e complexo processo, este trabalho
pretende realçar apenas alguns momentos chaves deste percurso, a fim de identificar certas
configurações constitutivas daquilo que na Argentina foi chamado de ‘movimento pelos
direitos humanos’
2
A descrição de cada capítulo apresenta com clareza que o propósito deste itinerário
histórico não é o de reconstruir as inúmeras situações de violência política ocorridas durante o
século XX na Argentina. A perspectiva temporal adotada neste trabalho tem um outro
propósito: ao invés de reconstruir busca compreender as condições que possibilitaram que a
tumultuada história política recente seja inscrita dentro de uma narrativa jurídica que supõe,
entre outras coisas, uma forma de nomear a quem foram os protagonistas desta história (‘as
vítimas’), uma maneira de intervir no espaço público (‘denunciar’, ‘demandar’, ‘litigar’,
2
Mesmo correndo o risco de esencializar, vale a pena salientar para o leitor não familiarizado com a história
argentina recente que, por ‘movimento pelos direitos humanos’ entende-se o heterogêneo conjunto de
associações que se formaram entre os anos 1975 e 1979 para exigir o reconhecimento da violência exercida pelo
Estado. Este movimento envolve dirigentes de distintas congregações religiosas, como é o caso do Movimento
Ecumênico pelos Direitos Humanos, diversas organizações de parentes das vítimas, como as Mães de Praça de
Maio, e de profissionais do direito como o Centro de Estudos Legais e Sociais.
Antes de avançar ainda mais neste texto introdutório, é conveniente explicitar alguns dos critérios utilizados para
dar-lhe forma. A reprodução de fragmentos de relatos nativos é indicada no texto pelo uso de aspas, já a inclusão
de uma única categoria nativa dentro de um parágrafo de minha autoria é indicada pelo uso de apóstrofos. Nos
dois casos procura-se distinguir as categorias nativas das utilizadas pelo pesquisador. Utilizo palavras em cursiva
para dar ênfase a estas últimas. A respeito destas categorias de análise vale a pena salientar, também, que
‘profissional do direito’ ou ‘especialista’ são utilizadas como categorias teóricas, em quanto ‘advogado’,
‘defensor’ ou ‘perito’ referem-se a formas nativas de classificação.
3
‘investigar’), de definir aos sujeitos dotados da capacidade para fazê-lo (‘os advogados’), de
delimitar os espaços de compromisso militante (‘a causa pelos direitos humanos’) e, em
ultima instância, uma forma de narrar a história nacional (‘o Terrorismo de Estado’).
O que me interessa deste percurso histórico é colocar em evidencia a configuração de
matrizes de atuação pública e profissional criadas em torno a esta causa. Por este motivo, a
cronologia proposta deve ser entendida de maneira flexível. Ao invés de se referirem a
períodos históricos empiricamente diferenciados, os capítulos desta tese devem ser
compreendidos como referências a horizontes temporais mais ou menos gerais dentro dos
quais proponho identificar a permanência e transformação de certas relações significativas na
institucionalização desta causa. Os capítulos não equivalem, então, a períodos temporais fixos
nem supõem que os processos descritos em cada um deles têm seu início e fim dentro de
marcos temporais exclusivos e absolutos. A intenção em salientar certas configurações chaves
faz com que a opção de deixar deliberadamente de lado vários períodos da história recente
não prejudique o propósito central que é apresentar a participação do ativismo jurídico na
conformação da causa pelos direitos humanos na Argentina.
Para compreender a particular configuração de pessoas, relações e representações
criadas em torno a esta causa e ao compromisso profissional e militante dos advogados,
propõe-se focar em cada capítulo uma temática específica, uma vez que a intensidade
dedicada aos diferentes assuntos varia ao longo da tese. Por exemplo, a articulação entre o
universo local de profissionais do direito e a esfera internacional receberá uma atenção
privilegiada no último capítulo, ao tratar a participação dos advogados exilados em
associações internacionais de juristas nos anos setenta, sem que isto signifique que esta
dimensão também não tenha sido constitutiva do campo nas primeiras cadas do século XX.
Como veremos no desenvolvimento do capítulo 1, as associações locais que se constituíram
em torno a esta causa são filiais de organizações internacionais de luta contra o fascismo, e os
que participam na construção do incipiente direito internacional dos direitos humanos são,
principalmente, diplomatas. Apesar de todo o peso desta esfera transnacional, esta dimensão
será analisada em detalhe no capítulo 3 pois é justamente no marco das relações criadas entre
profissionais do direito argentinos e estrangeiros que se produz uma novidade: institui-se a
categoria ‘perito’ em direitos humanos.
4
Com a intenção de apresentar as distintas configurações que possibilitaram à
construção da causa pelos direitos humanos na Argentina, compreender as dimensões
significativas deste processo e suas diferentes modulações ao longo do tempo, esta tese foi
dividida em três capítulos:
No capítulo 1 proponho pôr em evidencia as condições que tornaram possível a
invenção desta causa focando nas propriedades sociais de seus militantes. Para isso centrarei
o capítulo no momento germinal em que se criaram uma série de associações civis que
reivindicaram a defesa das ‘vítimas’ da ‘ditadura’ logo após do golpe de Estado de 1930,
entre elas, a Liga Argentina por los Derechos del Hombre, a única das associações fundadas
em aquela época que continua ativa até hoje.
Um dos argumentos centrais deste capítulo relaciona-se com o processo que
possibilitou o encontro entre notáveis e recém-chegados ao direito e à política na complexa
rede de associações dedicadas à defesa desta causa. No desenvolvimento do capítulo
enfatizarei o processo que coloca à disposição deste engajamento militante um conjunto de
jovens profissionais desprovidos de um capital de relações sociais herdadas num momento de
forte incremento da matrícula universitária que tem como conseqüência a existência de
‘advogados sem causa’. Estes jovens bacharéis incorporar-se-aõ ao mundo profissional
através da assessoria jurídica a grêmios e sindicatos que então começam a se multiplicar à luz
das experiências anteriores trazidas para o país pelos imigrantes europeus. Ao mesmo tempo,
produz- se uma aproximação de alguns notáveis a este universo habitado por trabalhadores e
imigrantes. Proponho entender estes movimentos no contexto do mutável espaço político de
inícios do século XX, uma vez que, com a sanção da lei de voto masculino secreto e
obrigatório, foram transformadas as condições de competição pela representação e as
estratégias de acumulação de notoriedade pública deixaram de estar vinculadas diretamente à
posse de riqueza. Contra este pano de fundo, introduzo algumas das qualidades que vão
distinguir estes profissionais do direito na esfera pública: o culto ao heroísmo, ao desinteresse,
ao sacrifício, e examino as implicações que isto produiz nas formas de fazer e pensar a
política e o direito. Este ponto será desenvolvido detalhadamente no seguinte capítulo.
No capítulo 2 proponho dar conta do trabalho de definição e delimitação da categoria
‘defensor de presos políticos’ através da criação de uma representação coletiva deste
engajamento jurídico associada ao culto do heroísmo e do desinteresse, qualidades estas que
5
os aproximam de seus defendidos. A ênfase estará colocada em apresentar o valor destes
critérios na hora de criar homogeneidade entre indivíduos que têm origens e trajetórias
profissionais heterogêneas. Estes princípios de representação importam porque são eles os que
fundam a legitimidade da sua posição dentro do mundo do direito e da política, em especial
numa conjuntura na qual a sua clientela é recrutada principalmente entre a militância armada
das organizações da esquerda surgidas no país no início dos anos 60. Também porque foi
através deles que adquiriram existência como grupo de advogados defensores de presos
políticos. Como veremos, as desqualificações dos seus adversários também contribuíram para
produzir essa homogeneidade, fazendo desta constelação de pessoas, um grupo.
Este capítulo pretende apresentar parte de todo o trabalho de re-agrupamento de
sujeitos com trajetórias e propriedades objetivas diferentes em torno a esta forma de exercer o
direito e a política. O sucesso relativo obtido na tarefa de unificação traduziu-se num nome
coletivo (advogado defensor de presos políticos), em instâncias de representação (associações,
publicações), em emblemas (o desaparecimento do advogado Nestor Martins, o assassinato do
advogado Rodolfo Ortega Peña) e em taxonomias (advogados do povo / advogados a serviço
do imperialismo). Todas estas instâncias serão chaves na hora de dotar este grupo de agência.
Paradoxalmente, a legitimidade adquirida através do fato de colocar em risco a própria vida
foi construindo, ao mesmo tempo, a necessidade de organizar, planejar e conceber novas
formas de trabalho em comum. Mostrar a rotinização da tarefa do advogado defensor é um
dos objetivos deste capítulo, uma vez que a formação de rotinas constitui uma instância chave
na homogeneização dessa categoria social e na objetivação do grupo como tal.Como veremos,
elas se organizavam em torno à busca do detento nas delegacias policiais, à apresentação de
hábeas corpus, às visitas aos presos, aos pedidos de perícias médicas, ao acompanhamento
dos processos nos tribunais, à divisão do trabalho entres os advogados, à partilha de
processos, à procura de antecedentes na jurisprudência comparada, à elaboração do alegado, à
publicação das denúncias na imprensa, à realização de conferências de imprensa, etc.
No capítulo 3 proponho descrever e analisar o processo de profissionalização em
direitos humanos, salientando especialmente a participação dos especialistas argentinos em
redes internacionais de juristas e em instituições interestatais, como a Comissão de Direitos
Humanos da ONU e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA em meados
dos anos setenta. Embora a importância dessa dimensão internacional tenha sido
reconhecida para os ano trinta e sessenta, foi nesse momento quando se produziu uma
6
confluência de interesses entre profissionais do direito norte-americanos, europeus e
argentinos que resultará crítica o reconhecimento público de uns e outros como ‘peritos em
direitos humanos’.
Esta confluência, que não exclui a existência de interesses, valores e origens sociais e
profissionais profundamente heterogêneos, foi significativa na transformação do próprio
campo associativo e estatal. Através da análise das missões internacionais de juristas (1975-
1979), da criação de associações de denúncia das violações aos direitos humanos no exílio
(1976) e da criação de novas associações especializadas no litígio de causas vinculadas ao
terrorismo de Estado como o Centro de Estúdios Legales y Sociales (CELS), procuro mostrar
que essa profissionalização envolveu tanto a definição do lugar do profissional do direito em
função da posição de um conhecimento especializado quanto a transformação do universo de
representações associadas a este novo perfil profissional. Como veremos, essa
profissionalização trouxe consigo, também, uma inovação critica: a possibilidade de ocupar
espaços de importância dentro da própria esfera do Estado, não como resultante do ativismo
partidário mas como ‘perito’.
É também nesse momento que irrompem no cenário público as associações de
parentes exigindo o reconhecimento do que ocorreu com seus filhos em tanto ‘vítimas do
terrorismo de Estado’. Ao mesmo tempo, são os mesmos parentes os que criarão associações
que se definem por fazer apelo ao direito como princípio de distinção, como é o caso do
Centro de Estudios Legales y Sociales. A confluência entre dois princípios de adesão: o
sangue e o direito, também é um dos temas tratados neste capítulo.
A atenção desigual dedicada aos diferentes temas em torno dos quais se articulam os
capítulos explica-se também pela maneira heterogênea em que foi se configurando o corpus
de dados que informam esta pesquisa. Os materiais selecionados e produzidos são de
qualidades muito diversas. Para o capítulo 1, por exemplo, tive a oportunidade de fazer
uma única entrevista a uma ex-militante do Socorro Rojo Internacional nascida em 1911 e que
ainda vive na Argentina, em quanto o capítulo 2 está articulado principalmente a partir de um
corpus importante de entrevistas realizadas a ex-integrantes da Asociación Gremial de
Abogados de Buenos Aires. Estas entrevistas permitiram que identificasse não a dimensão
heróica do engajamento militante destes profissionais do direito, mas também a dimensão
rotineira do seu trabalho, um elemento que não tinha conseguido capturar na leitura dos
7
documentos utilizados para o primeiro capítulo. A oportunidade de realizar um período dos
meus estudos de doutorado em Paris
3
permitiu-me ter acesso a um grande arquivo sobre as
missões internacionais de peritos nos anos sessenta e as associações de advogados criadas no
exílio naquela época, documentos que não poderia ter acesso na Argentina. A impossibilidade
de consultar os arquivos da Federação Internacional de Ligas dos Direitos do Homem em
Paris, junto com a ausência de arquivos equivalentes na Argentina, impossibilitou-me de
registrar essas mesmas atividades para os períodos anteriores trabalhados nos capítulos 1 e 2.
Estas variações da ênfase falam também a respeito das transformações acontecidas ao
longo deste processo. Se, nos anos trinta, as mulheres dos dirigentes operários deportados
para a Europa se aglutinavam para protestar publicamente contra o Estado, a partir de sua
condição de ‘mulher’, o centro da cena pública estava ocupado por figuras do direito como
Alfredo Palácios, Carlos Sánchez Viamonte e Deodoro Roca nomes que ganharam
notoriedade pública como parlamentares e advogados engajados ‘na defesa de presos políticos
e sociais’. Inversamente, nos anos oitenta, a defesa das vítimas do terrorismo de Estado será
protagonizada, de modo notável, por seus parentes, especialmente por aqueles que, desde
1977, se reuniram semanalmente na Praça de Maio, na frente da própria sede do governo
nacional. Estas diferenças na visibilidade pública entre os que protagonizam a causa o
supõem que ambos os princípios de recrutamento (o sangue e o direito) não estivessem
presentes ao longo de toda esta história nem que os dois não tenham a mesma importância
crítica. Em síntese, as diferentes dimensões ressaltadas em cada um dos capítulos devem-se,
também, às mudanças ocorridas ao longo de todo o processo que vai desde a invenção da
causa até sua atual institucionalização.
A adoção de uma perspectiva temporal que excede os marcos delimitados pelo golpe
de Estado de 1976, para me referir à constituição da causa pelos direitos humanos, é parte de
uma estratégia deliberada que visa desnaturalizar algumas perspectivas nativas sobre a
configuração deste campo militante. Quando se fala na Argentina sobre ‘o problema dos
direitos humanos’ pressupõe-se que se está referindo ao período que se estende de 1976 a
1983. A primazia desta construção temporal se registra tanto nas declarações públicas dos
dirigentes das associações que integram o movimento como nas formas em que o Estado
3
‘Bolsa Sanduíche’ do CNPq. Entre os meses de março e junho de 2004 realizei um estágio no Laboratoire de
Sciences Sociales de la Ecole Normale Superieure em Paris. Nesse período contei com a orientação do professor
Michel Offerlé.
8
delimita as políticas públicas destinadas a julgar os responsáveis do terrorismo de Estado,
reparar as vítimas e preservar a memória do passado, e também, na maneira em que os
próprios intelectuais constroem campos disciplinares recortados sobre essas mesmas
fronteiras temporais. Estas marcas temporais produzem e naturalizam, por sua vez, divisões
temáticas e disciplinares, de forma que aquelas pesquisas centradas na militância armada e
nas mobilizações públicas contra os governos de fato anteriores a 1976 não integram o campo
de estudos sobre ‘os direitos humanos’ e são identificadas com outros temas, como os estudos
sobre ‘o peronismo’ ou ‘a história política’ em geral. A criação de associações civis que
recorrem à linguagem dos direitos do homem anteriores a 1976 também costumam ser
excluída do horizonte destes estudos.
No entanto, categorias como ‘vítimas’, ‘ditadura e ‘direitos humanos’ não são
criações dos anos setenta ou oitenta. Tampouco, a conformação de associações civis
articuladas sobre esta retórica, o uso de estratégias de defesa judicial e pública das vítimas, ou
a participação dos advogados locais em redes transnacionais de denúncia. Como veremos no
capítulo 1, a retórica e as práticas correspondentes ao discurso dos direitos humanos já
estavam disponíveis nas primeiras décadas do século XX. Este reconhecimento permite-me
sugerir que o fato de proclamar a invenção dessa causa a partir do golpe de Estado de 1976
pressupõe a adoção de um ponto de vista interessado dentro do universo militante. Identificar
esta perspectiva como própria de um ponto de vista nativo traz o desafio de compreender o
sentido da proclamação desta novidade sobre o pano de fundo histórico delineado nesta tese,
aonde ela deixa de ser auto-evidente.
Montar este complexo retrato dos especialistas engajados na causa dos direitos
humanos e da própria causa que os faz existirem socialmente envolve, também, compreender
as formas nativas de periodização. Para atender à importância dessa dimensão, a tese não se
inicia em 1976, ano em que ocorre o golpe de Estado que inaugura ‘a última ditadura militar’
e que serve de divisor de águas para narrar a história política recente, segundo a perspectiva
consagrada pelas associações de parentes das vítimas e, fundamentalmente, pelo Estado, mas
se inicia nas primeiras décadas do século XX. O capítulo 1 trata, principalmente, da Liga
Argentina por los Derechos del Hombre, criada em 1937 e reconhecida hoje como ‘a
primeira’ associação de defesa dos direitos humanos no país. Os dois capítulos que se seguem
não supõem uma divisão dicotômica entre um antes e um depois do retorno à democracia em
1973, nem um antes e um depois do golpe de Estado de 1976, visto que essas não são marcas
9
decisivas na forma de construir a temporalidade pelos profissionais do direito entrevistados
para esse trabalho. Esses dois capítulos estão organizados, ao contrário, em base às
experiências que tornam possível esse tipo de militantismo perito e suas transformações.
Do ponto de vista dos profissionais do direito, o relato do seu engajamento militante
funda-se em torno a marcas temporais que não são necessariamente as que organizam a
experiência histórica tal como ela é concebida pelas associações de parentes das vítimas, o
Estado e, inclusive, por alguns intelectuais para quem o golpe de Estado instaura uma
divisão temporal crítica. Ao contrário, no relato dos expertos em direito aparecem outras
referências temporais significativas como a detenção massiva de dirigentes sindicais e de
advogados nos dias que seguintes ao Cordobazo (1969), a criação de um fórum penal ad-hoc
anti-subversivo (1971), o desaparecimento do defensor de presos políticos Nestor Martins
(1971) durante o governo de fato de Lanusse, a anistia dos presos políticos outorgada após o
triunfo do peronismo nas eleições de 1973, o assassinato do advogado defensor Ortega Peña
nas mãos de organizações parapoliciais depois da declaração do Estado de tio em 1974 e,
finalmente, sua participação no desenho e implementação de políticas de Estado relativas às
conseqüências do terrorismo de Estado a partir do retorno à democracia em 1983. A
importância de manter esta distinção nas formas de construir a temporalidade fica evidente
nos rituais comemorativos dedicados à memória dos advogados desaparecidos. Enquanto o
Estado lembra dos profissionais do direito desaparecidos a partir de 1976, os mesmos
funcionários públicos, mas na sua condição de integrantes de associações profissionais,
lembram de seus colegas e amigos desaparecidos e das experiências associativas em defesa
dos presos políticos a partir de 1971. A organização dos capítulos tenta considerar a lógica
destas formas nativas de periodização.
Visto que o objetivo último da tese é compreender alguns dos princípios constitutivos
da causa dos direitos humanos através da análise dos agentes sociais que lhe outorgam
existência, este trabalho funda-se sobre outro deslocamento crítico que tem como finalidade
produzir uma segunda ruptura com o encantamento de alguns relatos nativos que se tornaram
senso comum: ao invés de observar exclusivamente as associações de vítimas e de seus
parentes, busca examinar a atuação dos profissionais do direito. A literatura especializada em
direitos humanos apresenta, invariavelmente, uma característica comum: sua atenção está
dirigida quase exclusivamente para o ativismo daquelas associações com maior visibilidade
pública, como as constituídas por parentes das vítimas, tais como Abuelas e Madres de Plaza
10
de Mayo e Hijos por la Justicia, contra el Olvido y el Silencio (HIJOS). São muito escassos
ou simplesmente inexistentes os trabalhos interessados em apresentar a atuação daquelas
associações que fazem do direito um princípio de reconhecimento público. No caso da Liga
Argentina por los Derechos del Hombre (1973), apesar da extensa história da entidade, o
único livro que trata da mesma é de caráter testemunhal
4
. Sobre associações como a Asamblea
Permanente por los Derechos Humanos (1975) ou o Centro de Estudios Legales y Sociales
(1979) se encontram referências secundárias em diversos trabalhos dedicados às
organizações de parentes das vítimas
5
.
A lógica com que se configura este corpus de trabalhos coincide com a que organiza
os relatos nativos sobre esse ativismo. Os próprios parentes se apresentam a si mesmos e são
reconhecidos, por sua vez, como os protagonistas desta militância. Essa representação
relaciona-se com o fato de que, dentro dessa comunidade moral, o compromisso dos parentes
com a causa não precisa ser demonstrado, pois aparece como inerente ao vínculo de sangue
com as vítimas. A inquestionabilidade dessa relação pretende ser a base à inquestionabilidade
de suas demandas e do lugar hierárquico que ocupam dentro deste movimento pelos direitos
humanos. Mas, apesar de que ser portador desse tipo de vínculo é uma propriedade construída
e objetivada através do engajamento com a causa, a produção acadêmica parece acompanhar
o ponto de vista naturalizado dos próprios parentes ao identificar exclusivamente esse
ativismo com as associações que fazem do sangue um princípio de adesão pública. De modo
que essa literatura acaba se constituindo numa ferramenta central na objetivação desse relato e
na naturalização de uma maneira essencialista de narrar a história nacional
6
.
Meu interesse pelo universo dos profissionais do direito surge exatamente da surpresa
que me provocou este reconhecimento durante a realização da minha dissertação de mestrado.
Nesse trabalho, propus apresentar a maneira com que é consagrada a categoria ‘vítima do
terrorismo de Estado’ no contexto de uma série de disputas para impor uma forma legítima de
4
Alfredo Villalba Welsh, 1984.
5
Uma exceção constituem os trabalhos de Elizabeth Jelin, especialmente 1995, Ian Guest, 1990, Dezalay e
Garth, 1998 e Saldivia, 2002. Existem apenas três publicações que consideram especificamente o universo
jurídico. Duas delas abordam o mesmo fato: o julgamento contra os comandantes em chefe da Junta Militar de
Governo que governou a Argentina entre 1976-1983. Ver Kaufman, Esther, 1991 e Landi, Oscar e Inês
González Bombal, 1995. A terceira reconstrói o funcionamento do necrotério judicial durante a última ditadura
militar. Ver Maria José Sarrabayrouse, 2003.
6
Uma análise do valor do sangue como princípio de adesão, distinção e hierarquização dentro do universo da
militância pelos direitos humanos foi objeto de minha atenção na dissertação de mestrado. Ver Vecchioli,
2000.
11
nomear os que foram assassinados ou estão desaparecidos no contexto dos violentos conflitos
políticos dos anos 70s. A despeito de que esta categoria adquiriu, recentemente, um status
jurídico pleno, persistem as disputas sobre as formas de regulamentar as leis que a instituem e
para conseguir a sanção de novas leis que permitam expandir ou reduzir as suas fronteiras e,
com isso, conseguir instituir novos agentes sociais como ‘vítimas do terrorismo de Estado’.
Foi esse trabalho que deixou evidente para mim a importância que tinha não o esforço
militante das vítimas e de seus parentes, mas o dos profissionais do direito que intervinham
decisivamente ao longo de todo este processo, ora patrocinando ações legais a favor de seus
próprios parentes desaparecidos ou de seus colegas desaparecidos, ora patrocinando outros
parentes; ou ainda, como parlamentares integrantes do poder judicial ou como funcionários de
agências estatais dedicadas a implementar políticas públicas na área dos direitos humanos.
Ao colocar o foco nestes profissionais, procuro apresentar toda a força do direito na
configuração desta causa. Como assinala Pierre Bourdieu, o campo jurídico atua como
princípio de construção da realidade, uma vez que as situações ordinárias são redefinidas
segundo sua definição jurídica
7
. Por sua vez, a mobilização dos profissionais do direito
alimenta os processo de conversão destes conflitos particulares, localizados e inscritos na
ordem do privado, em causas públicas e coletivas. Estas duas propriedades fazem com que o
direito se institua como um dos espaços centrais na criação do repertório de valores e práticas
que instituem à causa pelos direitos humanos. Este é o campo que fornece as categorias
sociais apropriadas, os cenários onde se interpretam e julgam os fatos e os meios através dos
quais se aspira solucionar os conflitos. Seus profissionais aparecem como atores chaves na
consagração de uma maneira de intervir e interpretar o mundo social, e que supõe o
reconhecimento da legitimidade do direito como meio de interpretar os conflitos políticos, não
por seus especialistas, mas também pelas chamadas ‘vitimas’ e, fundamentalmente, do
Estado.
O ponto de partida desse trabalho consiste em considerar que a mobilização dos
profissionais do direito não pode ser vista como um dado derivado direta e exclusivamente do
fato objetivo e dramático da repressão de Estado. Práticas e conflitos formalmente
semelhantes não são reivindicados como formando parte da agenda dos direitos humanos. Isto
sugere que a sua reivindicação não depende exclusivamente do exercício da violência por
7
Bourdieu, 1998.
12
parte do Estado, tampouco de razões voluntaristas baseadas na coragem de seus militantes ou
nos vínculos de sangue com as vítimas. Uma ligação deste tipo parece depender da presença
de outras forças e relações sem as quais tal reivindicação não ganha reconhecimento público.
Na sua análise, Bourdieu aponta diretamente essa questão partindo do reconhecimento que:
“Nada é menos natural do que a ‘necessidade jurídica’ ou (...) o sentimento de
injustiça que pode levar a recorrer aos serviços de um profissional (...) a passagem
do agravo despercebido ao agravo percebido e nomeado, e sobretudo imputado,
supõe um trabalho de construção da realidade social que incumbe, em grande
parte, aos profissionais (...) o poder específico dos profissionais consiste na
capacidade de revelar os direitos (...) são também os profissionais quem produz a
necessidade dos seus próprios serviços ao constituírem em problemas jurídicos,
traduzindo-os na linguagem do direito, problemas que se exprimem na linguagem
vulgar...”
8
.
É com o propósito de demonstrar este trabalho de construção da realidade social que
focalizarei a pesquisa no segmento dos profissionais do direito engajados nesta enorme tarefa
de construção da causa pelos direitos humanos. Proponho explorar em detalhe este fragmento
do universo profissional com a intenção de compreender as condições que tornaram possível
que alguns projetos militantes se articulassem com um tipo específico de competência
especializada. O que supõe considerar que estes usos militantes do direito também não se
explicam por disposições essenciais presentes nos advogados dispostos a atuar na esfera
pública em beneficio dos outros, nem que o interesse pela causa pré-exista à própria ação
reivindicativa. É com o propósito de eludir essa armadilha que vou dar conta dessas
disposições no contexto de configurações sócio-históricas específicas. São elas as que o
sentido ao engajamento, pois existem potencialmente outras alternativas de adesão e outras
formas de exercer a profissão.
Como veremos, as ações desenvolvidas pelos militantes da causa ganham sentido não
ao serem consideradas por sua relação com o Estado, mas pela relação com outros
profissionais da política e do direito que se colocam em uma posição de maior proximidade
com essa militância. É neste marco mais específico de relações onde o engajamento com este
militantismo jurídico ganha sentido uma vez que supõe tanto um posicionamento a respeito
8
Bourdieu, 1988: 231-232. Grifos meus.
13
das formas apropriadas de exercer o direito, como dos interesses que devem ser reivindicados
no espaço público
9
.
Para abordar as condições sociais, profissionais e políticas que possibilitam a
vinculação entre o tratamento de um caso e a defesa militante de uma causa proponho colocar
especial atenção em:
a) o perfil profissional destes advogados, suas diferentes origens sociais, seus capitais
culturais e familiares, a formação profissional, os modos de ingresso na profissão,
o repertório de estratégias judiciais e extra-judiciais utilizadas, as diferentes
definições do trabalho jurídico, as competências privilegiadas dentro deste
universo, os significados desta opção profissional, suas diversas instâncias de
consagração, os critérios que fundam sua credibilidade, os valores comprometidos
nesta tarefa e as representações que instituem este perfil profissional e militante.
b) A conformação de associações de defesa dos direitos humanos e a participação
destes profissionais nas redes nacionais e transnacionais de peritos, a
multiplicidade de espaços através dos quais se articula este militantismo (a
universidade, o parlamento, os sindicatos, etc.), o repertório de recursos
mobilizados para converter um processo judicial numa causa pública e coletiva (a
imprensa, as manifestações públicas, etc.). Para esses profissionais do direito,
advogar perante os tribunais era apenas uma parte de sua atuação profissional.
c) As condições sociais e políticas mais abrangentes dentro das quais se situa esta
forma de militantismo e que tornam possível a adesão a esta causa, entre outras
alternativas possíveis. Estas condições não se limitam a assinalar a existência
objetiva do exercício da violência pelo Estado, mas supõem considerar também os
processos de mobilidade social, de imigração ou de ampliação da base eleitoral.
9
Esse é, precisamente, o sentido do trabalho de Eric Agrikoliansky, quem, ao tentar dar conta das flutuações na
adesão à Liga Francesa pelos Direitos do Homem e do Cidadão depois do pós-guerra, inscreve este engajamento
em relação às oportunidades abertas ao exercício profissional da política para os militantes comunistas e
socialistas, uma vez finalizada a luta contra o nazismo e contra o colonialismo, respectivamente. Agrikoliansky,
Eric. 2002.
14
Este ativismo jurídico não tem nada de evidente ou natural se consideramos que a
profissão de advogado está estruturada em torno à reivindicação da independência e de um
modelo de excelência que consagra o valor da neutralidade e da técnica acima da adesão e da
convicção. Esse princípio ético de atuação profissional funda-se em analogia com o dos
médicos: o profissional do direito tem o dever de aceitar todos os casos, mesmo quando eles
contradizem suas próprias convicções pessoais. Ainda mais, fazê-lo é motivo de orgulho e
demonstração de responsabilidade profissional
10
. Os profissionais do direito engajados com a
causa dos direitos humanos contrastam com este ideal que aparecem como disponíveis para
a denúncia do caso, não apenas na esfera judicial senão, e principalmente, na esfera pública.
Neste sentido, trata-se de um advogado que está situado nas antípodas da neutralidade.
Os profissionais do direito descritos neste trabalho tampouco se encaixam exatamente
na figura do especialista dedicado profissionalmente à política e que abandona a prática
profissional. Essa esfera de atuação tem sido intensamente estudada na literatura especializada
ao analisar o ingresso desses profissionais liberais na política no contexto da marginalização
das antigas classes dirigentes, após o triunfo da república em países como a França. Também
tem recebido atenção as faculdades de direito como instâncias chaves no recrutamento dos
políticos profissionais e na formação de redes de profissionais da política
11
. Para o caso de
América latina, os trabalhos destacam a relevância dos advogados e juristas no processo de
‘nation-building’ ao longo do século XIX: os juristas têm elaborado as cartas constitucionais,
os códigos, a legislação, a criação de novas instituições jurídicas e a carreira de advocacia tem
sido a via de recrutamento das elites políticas. Neste sentido, os advogados têm sido muito
importantes no surgimento das formas embrionárias da esfera pública
12
.
Vale a pena começar a introduzir a perspectiva adotada neste trabalho, destacando o
sentido com o qual utilizo o termo ‘causa’. Esse conceito remete tanto ao processo judicial,
que se tramita nos tribunais, quanto ao conjunto de interesses a serem sustentado e a fazerem
valer na esfera pública
13
. Os profissionais do direito analisados neste trabalho se distinguem
porque, ao mesmo tempo que assumem a defesa de um caso perante os tribunais,
desenvolvem um trabalho extra destinado a transformar o caso particular em uma causa
10
Em: Scheingold e Sarat, 2004.
11
Esses são os casos, notoriamente, dos estudos de Pilles Le Béguec e Lucien Karpik. Béguec, G. 2003.
Karpik, Lucien, 1995.
12
Em: Zimmermann, E. 1998.
13
Esta definição foi tomada do trabalho de Liora Israël e Brigitte Gaïtti. 2003.
15
pública e coletiva. Neste sentido, as próprias associações foram pensadas como tribunas de
onde defender a causa pelos direitos humanos. O trabalho de Luc Boltanski a respeito das
denúncias publicadas na seção de cartas dos leitores dos jornais é ilustrativo no que se refere
às condições que permitiriam que um caso particular tornasse um assunto de interesse
coletivo
14
. Segundo este autor, para transformar um caso em ‘exemplar’ se requer que grupos
autorizados estabeleçam uma equivalência entre o caso e outros considerados semelhantes.
Neste sentido, os profissionais do direito que se reivindicam pela adesão à uma causa parecem
ser especialmente aptos para realizar esta transformação.
A análise do processo específico através do qual um processo judicial sai deste espaço
profissional para se introduzir na esfera pública tem sido objeto de exame no trabalho de
Elisabeth Claverie a respeito da figura de Voltaire
15
. Este modelo da análise, que coloca
ênfase no exame das distintas etapas na criação de affaires publiques, tem sido desenvolvido
nos inúmeros estudos dedicados especialmente em França ao célebre ‘affaire Dreyfus’. Sua
importância para a formulação dos problemas desta pesquisa tem sido mostrar que o vínculo
entre ‘a causa’ no sentido judicial e ‘a causa’ no sentido político é historicamente construído e
deve ser explicado. Na constituição deste vínculo entre o político e o jurídico, os profissionais
do direito que participam destes processos desempenham um papel principal.
A atenção a este tipo de advogado militante coloca a minha pesquisa na confluência de
várias linhas da análise desenvolvidas tanto nos EUA quanto na Europa. Entre os primeiros,
encontram-se os trabalhos de Sarat Austin e Stuart Scheingold que têm recebido o nome de
cause lawyering em razão do seu interesse em examinar os vínculos entre a prática do direito
e o engajamento militante. Suas análises invertem a ênfase sobre a publicitação dos processos
judiciais, outorgando prioridade não tanto à forma em que o direito condiciona a ação política,
mas à forma em que esta mobilização muda o próprio campo do direito, isto é, os modelos de
organização da profissão e suas formas de representação. Estes autores destacam o contraste
entre o ‘advogado convencional’ e o ‘cause lawyers’ como uma oposição entre o exercício do
direito como uso de uma competência cnica à disposição dos fins definidos pelo cliente e o
14
Boltanski, 2000.
15
Claverie, 1994.
16
exercício da profissão em função de um compromisso moral e político à disposição de uma
causa pública
16
.
Segundo a perspectiva destes autores, o ativismo jurídico é um fenômeno recente. Nos
EUA, em particular, desenvolveu-se a partir dos anos 60. Esta delimitação temporal revela os
supostos dos autores, pois se contrapõe ao advogado engajado, o advogado dedicado
profissionalmente à política. Neste modelo, enquanto o primeiro aparece associado ao
reconhecimento da existência de ‘novos direitos’ e causas (feminismo, minorias sexuais, etc.),
o segundo estaria ligado à defesa dos direitos civis e políticos. Esta mesma diferenciação está
presente no trabalho de Lucien Karpik e Terence Halliday, para quem a reconquista da
cidadania em países de América latina que vivenciaram o terrorismo de Estado provocou o
‘retorno do advogado político’
17
.
O ideal típico do advogado engajado numa causa constrói-se tendo como referência as
seguintes propriedades: trata-se de um especialista que adere plenamente à causa de seus
clientes, que se encontra disponível para sustentar a denúncia pública de uma injustiça, que
ocupa uma posição marginal dentro da sua profissão, que corresponde à marginalidade de sua
clientela (excluídos, imigrantes, etc.) e que é marginal também em relação às formas
dominantes da política partidária, dedicado às causas nobres e guiado por seus valores mesmo
quando contra seu próprio interesse. O interesse destes autores reside em compreender os
vínculos entre este tipo de prática profissional e as possibilidades de reforçar a democracia.
De uma perspectiva menos normativa, Liora Israël e Brigitte Gaïtti colocam as
condições ideais deste tipo de ativismo jurídico assinalando o fato de estar baseado em
relações de representação fortemente assimétricas com seus defendidos, de irromper em
situações de crise políticas e de convocar a grupos de recém chegados tanto à política quanto
ao direito
18
. Segundo estes autores, os estudos da ‘cause lawyering’ tendem a cair em
explicações tautológicas pelas quais a disposição dos advogados à ação pública reside nos
valores e disposições que eles carregam como profissionais do direito.
16
Segundo estes autores, “cause lawyering is about using legal skills to pursue ende and ideals that trascend
client service”. Em: Scheingold and Sarat, 2004.
17
Halliday e Karpik, 1997.
18
Gaïtti e Israel. Op.cit.
17
Neste trabalho, explorarei empiricamente estes modelos (o norte-americano,
representado pelos trabalhos de Austin e Scheingold, e o francês, representado pelos trabalhos
de Israël e Gaïtti) e sua produtividade através da comparação de diferentes momentos na
história deste compromisso militante na Argentina. Esta dimensão temporal permite registrar
a presença desta figura do advogado engajado nas primeiras décadas do culo XX. Assim, o
compromisso dos especialistas com a causa dos deportados, exilados e asilados políticos nos
anos trinta permite relativizar a novidade desta forma de exercício militante e profissional do
direito.
Se inicialmente estes profissionais do direito fizeram sua entrada na profissão através
da representação da causa dos operários ao se inserirem em grêmios e sindicatos, esta
distância social vai se modificar quando são os próprios companheiros de militância e seus
próprios colegas que se tornaram seus defendidos. Como veremos, as transformações recentes
no campo internacional do ativismo jurídico têm conduzido a uma profunda mudança neste
perfil ideal do advogado engajado. As trajetórias aqui estudadas ilustram a maneira em que a
entrega à causa das vítimas do terrorismo de Estado torna-se uma forma bem sucedida de
exercício da profissão e de intervenção dentro da própria esfera do Estado e das grandes
instituições internacionais.
Uma perspectiva deste tipo tem sido desenvolvida nos trabalhos de Bryan Garth e
Yves Dezalay para os casos de Brasil, Chile e México
19
. Seus estudos sobre a rede
transnacional de ativistas destacam a participação dos profissionais do direito com perfis
muito heterogêneos, o que inclui desde notáveis do direito e da política até recém chegados.
Um outro estímulo importante para as formulações apresentadas nesta tese deriva da
sociologia do engajamento militante. Particularmente, do estudo de Emmanuele Reynaud que
propõe caracterizar um tipo de compromisso que se desenvolve fora dos espaços clássicos de
representação do interesse coletivo (os partidos políticos, os sindicatos), como é o caso das
associações de defesa dos presos políticos e das vítimas da ditadura analisadas na presente
tese. Reynaud caracteriza os movimentos sociais que surgiram nos anos setenta como formas
de sociabilidade que se constituem no próprio processo de dar forma à ação coletiva e que não
supõem uma adesão exclusiva
20
. Sua análise torna-se particularmente relevante visto que
19
Dezalay e Garth. 2002.
20
Reynaud, E. 1980.
18
reconhece que os participantes destes movimentos se definem pela multiplicidade dos seus
engajamentos militantes, entre os quais se encontram, evidentemente, os partidos políticos.
Trata-se de formas de ativismo que não se excluem, pois é possível registrar nas trajetórias
destes militantes um movimento de entrada e saída entre uma esfera e a outra (as associações
e os partidos). Na perspectiva deste autor, a participação simultânea ou sucessiva nestas
distintas esferas de ação alimenta o engajamento em ambas, de tal maneira que os vínculos
criados em cada uma delas continuam, verificando-se um processo acumulativo de
fortalecimento da vocação militante. Este processo resulta na configuração de redes de
atuação que integram indivíduos dispostos ao trabalho comum. Entre os princípios de
agregação destas formas de engajamento, o autor destaca exatamente o exercício de uma
profissão liberal (advogado, médico, professor). Sua ênfase está orientada a sublinhar os
valores que sustentam este tipo de engajamento e que garantem a sua perdurabilidade. Tais
valores possibilitam nomear estas formas de ativismo como militantismo moral, porquanto
estas cruzadas pela reforma dos valores estariam dirigidas por militantes que não são os
beneficiários diretos das lutas nas quais estão comprometidos. A qualidade desinteressada da
ação e a vocação ao universal deste compromisso jurídico receberão especial atenção no
desenvolvimento desta pesquisa.
Um dos princípios de agregação destes profissionais do direito é o fato de se
reconhecerem e serem reconhecidos como ‘intelectuais’. Trata-se de figuras que combinam
tanto o perfil profissional do especialista como o do intelectual engajado. Ao fazê-lo
transpõem os marcos da profissão para fazer da escrita sobre os problemas públicos uma parte
central de sua atividade. Através deste engajamento militante adquirem uma grande
visibilidade pública, o que se torna um recurso crítico na hora de realizarem as defesas e de
somarem adesões à causa de seus defendido. Para situar estas figuras no espaço público,
contei com a contribuição da literatura especializada sobre este universo específico,
especialmente, com os trabalhos de Louis Pinto e Gerard Leclerc dedicados à análise da figura
do intelectual no espaço europeu, principalmente francês
21
. Particularmente útil na hora de
pensar o lugar do intelectual e do perito foi o livro compilado por Federico Neiburg e Mariano
Plotkin. Como veremos, a dimensão temporal adotada nesta tese permite identificar com
clareza os deslocamentos e a circulação dos mesmos indivíduos que se identificam segundo o
contexto baseados em uma ou outra condição. Os que se reconhecem hoje como peritos em
21
Pinto, 1984 e Leclerc, 2003.
19
direitos humanos são os mesmos que se identificaram com a figura do intelectual da esquerda
nos anos sessenta. Sua incorporação à esfera do Estado não exclui o fato de reivindicar, para
eles próprios, uma posição de intervenção pública baseada no uso crítico da razão. Isto é
possível porque ambas as figuras não constituem pontos extremos de uma linha, mas um
espaço de interseção
22
. A literatura específica sobre a configuração do espaço intelectual na
Argentina também foi importante na hora de pensar as mediações entre a inserção profissional
e o compromisso político, especialmente os trabalhos que exploram esta vinculação entre os
intelectuais da esquerda entre os anos 40 e 70
23
.
O livro de Luc Boltanski sobre o processo de formação da categoria ‘cadre’
(executivo) tem sido uma referência fundamental, tanto na hora de formular as perguntas
desta pesquisa quanto ao pensar as estratégias possíveis para resolvê-las
24
. Suas indicações a
respeito das falácias contidas na sociologia dos grupos sócio-profissionais têm sido
especialmente produtivas na hora de pesquisar a respeito de um grupo profissional, tentando
evitar a armadilha do essencialismo contido neste tipo de perspectiva teórica. A ênfase que o
autor coloca na necessidade de examinar todo o trabalho social de definição e delimitação que
acompanha a formação de um grupo tem sido uma referência muito importante ao se fazer a
análise dos especialistas do direito. Nesta tese proponho uma primeira aproximação à “...
análise dos mecanismos através dos quais, no jogo da vida social, os agentes se reagrupam, se
identificam com representações coletivas, se dotam de instituições e de porta-vozes
autorizados a personificá-los e engendram, desta forma, corpos sociais que têm toda a
aparência de pessoas coletivas
25
.
Como veremos, e seguindo as indicações de Boltanski, ao reconstruir alguns traços da
história da categoria ‘defensor de presos políticos’ proponho apresentar todo o trabalho
simbólico de definição que acompanha a formação deste grupo. Desta perspectiva é possível
compreender que a atual categoria ‘perito’ em direitos humanos não é mais do que o produto
reificado de uma série de lutas pela definição e redefinição de um grupo social.
22
Neiburg e Plotking, 2004.
23
Entre a abundante literatura sobre os intelectuais da esquerda destaco o trabalho de Sigal, 1991, Sarlo 2001,
Altamirano, 2001 e Terán, 1991.
24
Boltanski, Luc. 1982.
25
Boltanski, L. op.cit.
20
Se os interesses formulados em minha dissertação de mestrado a respeito do sentido
do apelo aos vínculos de sangue com as vítimas na constituição do movimento pelos direitos
humanos e na formação da categoria ‘vítima do terrorismo de Estado’ possibilitaram que me
mantivesse próxima à tradição antropológica relativa aos estudos sobre parentesco, família e
formas de classificação social, o deslocamento para o universo dos advogados defensores
colocou-me de vez perante um campo disciplinar completamente alheio: o direito. Ao tentar
me familiarizar com este universo por meio da leitura de trabalhos acadêmicos sobre a sua
história na Argentina, pude constatar, nos inícios desta pesquisa, a escassíssima produção
científica sobre este universo profissional. Para nenhum dos períodos examinados pude contar
com literatura que abordasse grupos, relações, tradições, exceto alguns ensaios e relatos
testemunhais dos próprios advogados, professores de direito e juízes. A atenção da sociologia
e da antropologia tem se concentrado quase exclusivamente no tratamento do delito e dos
presídios como dispositivos de poder
26
. Mais próximos à minha área de interesse são as
publicações do historiador Mauricio Chama sobre a participação dos defensores de presos
políticos nas mobilizações da esquerda revolucionária dos anos setenta
27
e os de Laura
Saldivia e Roberto Sabba, ambos advogados interessados em compreender as condições de
possibilidade de um direito de interesse público na Argentina
28
. A história da formação em
direito também tem sido monopolizada pelos relatos produzidos pelos próprios juristas
29
.
Mesmo assim, ela apresenta vazios notáveis visto que os autores começam, invariavelmente,
pelo direito indiano e finalizam em 1910, quando culmina o período de codificação do direito
(sanção do Código Civil, Penal, etc.). No máximo, alguns destes trabalhos chegam até o
chamado Movimento pela Reforma Universitária (1918). Estas histórias tão destacam de
maneira abstrata a sucessão de correntes jurídicas e filosóficas que orientaram a formação dos
profissionais do direito no século XIX
30
. Em nenhum caso oferecem uma história social da
especialidade.
26
Uma valiosa exceção a esta linha de pesquisa é o trabalho do historiador Juan Manuel Palácio, orientado a
reconstruir as práticas dos juizes de paz no interior do estado de Buenos Aires. Em: Palácio, 2004. Sobre as
questões ligadas à administração da justiça, as demandas sobre a necessidade de controlar o funcionamento da
policia ou reformar o poder judicial podem ser consultados os valiosos trabalhos de Sofia Tiscornia e Maria
Vitória Pita. Ver especialmente Tiscornia, 2004 e 2006.
27
Chama, Mauricio. s/d. inédito e 2000.
28
Saldivia, 2002. Sabba, 2000.
29
Uma exceção a constitui os valiosos trabalhos do historiador Eduardo Zimmermann sobre o ensino do direito a
fines do século XIX. Zimmermann, 1999, 1998 e 1999ª.
30
Uma importante exceção constitui o livro do jurista Alberto Leiva a respeito do fórum de Buenos Aires, ainda
que das mais de 400 páginas, só 11 estão dedicadas à primeira metade do século XX. Em: Leiva, 2005.
21
Neste contexto, é importante salientar que esta tese visa a examinar tão um
segmento da profissão jurídica. Não pretende converter-se numa reconstrução da totalidade do
campo do direito na Argentina e das suas transformações. Apenas a intenção de concentrar
neste fragmento profissional significou uma árdua e trabalhosa tarefa de reconstrução de
fontes documentais primárias sumamente diversas e dispersas
31
. Neste sentido, vale a pena
salientar que vários dos aspectos significativos deste campo não receberam minha atenção.
Um deles refere-se às associações profissionais, seus momentos de criação, os grupos que as
fundaram e controlaram e as relações entre eles e os profissionais do direito aqui examinados.
Um outro refere-se às demais opções profissionais disponíveis para quem possui um diploma
de advogado, como poderia ser o fato de ingressar a grandes estudos profissionais dedicados
ao direito de negócios ou, especialmente, ao ingresso à carreira judicial.
Tampouco coloquei no centro da minha pesquisa os escritórios jurídicos aos quais
pertenciam estes advogados, o que, sem dúvida, constituiria uma estratégia particularmente
produtiva na hora de identificar a formação de sociedades ou alianças aparentemente
impensáveis (como, por exemplo, o escritório formado por Genaro Carrió, reconhecido
especialista em direitos humanos com uma importante trajetória internacional, sócio de
Laureano Landaburu, Ministro de Justiça de um governo militar) e as possíveis redes de
sociabilidade constitutivas destes escritórios (relações de parentesco, estudantis, etc.). Outra
dimensão que não recebeu atenção são os profissionais do direito engajados com a criação dos
fundamentos jurídicos das respectivas leis repressivas e as diferentes políticas de Estado
relativas à repressão do ‘comunismo’, ‘da subversão’, ‘da guerrilha’. Este é um universo
também formado por advogados, juristas e professores de direito que, em alguns casos,
participam destas ações na sua condição dupla de profissional liberal e integrantes das forças
armadas
32
. Neste sentido, o exame das trajetórias destes indivíduos seria extremamente
importante na hora de situar melhor aqueles que se engajaram na causa dos direitos humanos.
Outra dimensão que não consegui tratar devidamente e que mereceria ser desenvolvida
em futuras pesquisas refere-se aos vínculos entre os advogados defensores e seus defendidos.
31
Mesmo que sejam muitos os estudos dedicados às biografias dos dirigentes políticos mencionados nos
diferentes capítulos da tese (especialmente os que foram ativos durante os anos trinta), são escassas as
referências ao trabalho que estes profissionais da política desenvolviam como advogados e juristas.
32
Neste sentido, um material documental de grande interesse identificado durante a pesquisa é o livro publicado
pelo advogado e tenente-coronel do exército Carlos Horacio Dominguez intitulado La Nueva Guerra y el Nuevo
Derecho. Ensayo para uma estratégia jurídica contra-subversiva publicado durante a última ditadura militar pelo
círculo naval. Em: Dominguez, 1980.
22
As relações ressaltadas nesta tese concentram-se principalmente naquelas que levam à
formação de rede de profissionais do direito tanto na esfera local quanto na internacional.
Minha atenção foi dirigida, quase exclusivamente, à perspectiva dos especialistas que formam
este universo profissional. As percepções dos defendidos a respeito do trabalho dos peritos em
direito, suas expectativas, o valor atribuído por eles ao direito e as diversas formas em que se
vinculam com estes profissionais receberam uma atenção secundária, ainda que possam ser
encontradas referências a estes assuntos nos diferentes capítulos, especialmente no 2.
Também não foi explorada em detalhe a percepção que os profissionais do direito não
engajados neste tipo de ativismo jurídico têm a respeito da maneira de exercer a profissão,
embora também se encontrem considerações a esse respeito no capítulo 2. Considero que a
tarefa de inscrever a atuação dos advogados defensores dentro deste quadro mais abrangente
de relações sociais que inclui dirigentes operários, militantes armados e parentes das vítimas,
permitiria compreender melhor como a prática jurídica define-se na relação entre os
profissionais e leigos, e na disputa entre a universalidade das normas jurídicas e a
particularidade das demandas de quem procura a intervenção dos especialistas
33
.
Em termos destas relações mais abrangentes, outras dimensões importantes na
compreensão dos processos de formação deste segmento dos profissionais do direito
engajados com a causa dos direitos humanos, e que mereceria uma atenção maior no futuro, é
o desenvolvimento do direito trabalhista, considerando que muitos destes profissionais se
iniciaram na defesa de presos políticos a partir da sua incorporação a grêmios e sindicatos.
Que implicações teve o processo de industrialização da Argentina na formação desta
especialização profissional? De que modo se relaciona o engajamento militante nos grêmios e
sindicatos com o surgimento de novas opções profissionais? Como incide a própria prática
destes profissionais engajados com a defesa dos direitos dos operários nas formas de
articulação da causa coletiva dos direitos dos trabalhadores? Para responder a estas perguntas
será necessário aguardar novas pesquisas.
Por último, a compreensão dos complexos vínculos entre os partidos políticos e as
possibilidades de articulação de um militantismo jurídico em defesa dos direitos humanos
exigirá também um exame mais detalhado das organizações partidárias as quais estes
33
Bourdieu, op.cit. A análise realizada por Lygia Sigaud do recurso à justiça do trabalho pelos trabalhadores das
plantações de cana de açúcar em Pernambuco constitui um estudo exemplar onde se percebe com clareza a
produtividade de uma pesquisa interessada em inscrever a atuação dos especialistas no conjunto de coerções
morais que são constitutivas das relações entre trabalhadores, patrões e sindicatos. Em: Sigaud, 1996 e 1999.
23
profissionais do direito pertenciam, ora para inscrever o engajamento com esta causa coletiva
no quadro dos interesses mais gerais que estes partidos estavam dispostos a assumir, ora para
compreender a marca desta forma de militantismo no repertório das ações que estavam
disponíveis para os profissionais. Em particular, seria interessante continuar explorando este
repertório de ações dentro do Partido Comunista, incluindo a formação de suas equipes
jurídicas, as estratégias utilizadas, os valores associados ao direito e a importância da
dimensão internacionalista na transmissão de saberes e na configuração de redes
transacionais.
Para a realização desta pesquisa foram implementadas diversas estratégias. Fiz um
levantamento dos arquivos documentais existentes em bibliotecas particulares, públicas e de
associações de defesa dos direitos humanos. Também revisei coleções de revistas e
publicações periódicas. Durante minha estadia de quatro meses em Paris realizei um
levantamento do material documental existente no Centre de Documentation pour le
dévélopement et la liberation des Peuples (CEDETIM/CEDIDELP) concernentes à atuação
dos profissionais do direito argentinos no exílio e à intervenção de juristas europeus nas
missões humanitárias na Argentina. Na hemeroteca de Sciences Po (Fondation Nationale des
Sciences Politiques) revisei as coleções de artigos publicados, principalmente pela imprensa
francesa, sobre os casos de denúncias de violações aos direitos humanos na Argentina desde
início dos anos sessenta até os oitenta. Na Argentina, examinei o arquivo documental da
Asamblea Permanente por los Derechos Humanos e várias coleções de publicações periódicas
e revistas que se encontram no Centro de Investigaciones de la Cultura de Izquierda
(CeDInCI). A Biblioteca del Partido Comunista foi especialmente útil para levantar material
documental sobre as diversas associações de defesa dos direitos do homem criadas nos anos
30 na Argentina. O Arquivo Oral da Associação Memória Abierta permitiu-me ter acesso a
várias entrevistas realizadas a defensores de presos políticos dos anos setenta. De um valor
inestimável foram as entrevistas que Laura Saldivia colocou à minha disposição e que
pertencem a seu arquivo pessoal.
A principal dificuldade encontrada na realização deste trabalho com arquivos foi a
impossibilidade de levar adiante a estratégia de pesquisa inicialmente desenhada, que
consistia em fazer a reconstrução do engajamento militante dos profissionais do direito
baseada nos processos judiciais de alguns casos exemplares. Para a minha surpresa, esta
pretensão chocou com uma disposição administrativa que determina a incineração de todos os
24
processos judiciais quando eles ultrapassam os dez anos. Enquanto uma recente resolução do
Tribunal Superior de Justiça obriga preservar os casos ligados às violações dos direitos
humanos que ocorreram durante a última ditadura militar, a possibilidade de encontrar casos
equivalentes para os períodos anteriores a 1976 se tornou praticamente nula como
conseqüência desta política de destruição sistemática dos processos.
Na justiça do Estado de Buenos Aires existe um departamento jurídico que preserva
alguns destes processos após serem submetidos a uma seleção. Mesmo assim, depois de fazer
a consulta de um arquivo judicial de uma cidade periférica (San Nicolas, distante a mais de
100km da cidade de Buenos Aires), percebi que os processos conservados não estão
catalogados nem indexados. São arquivados só pelo número da causa. Não existem guias nem
inventários analíticos. Fato que obrigaria ao pesquisador revisar, uma por uma, as extensas
prateleiras que cobrem boa parte do subsolo do prédio dos tribunais sem poder antecipar o
sucesso da tarefa. A intenção de percorrer o caminho inverso, isto é, procurar primeiro o
número da causa nas publicações especializadas que compilam sentenças judiciais, como a
Revista Jurídica La Ley, também não foi possível. As causas desenvolvidas na cidade capital
do Estado, por exemplo, não foram preservadas da destruição e é nima a possibilidade de
que estas publicações reproduzam sentenças de julgamentos realizados nos tribunais
periféricos do Estado.
A segunda dificuldade foi a impossibilidade de ter acesso aos arquivos privados. Os
defensores de presos políticos entrevistados reiteraram incansavelmente que as condições
impostas pela necessidade de se exilarem (ora nas regiões marginais do país, ora no exterior)
impediram-lhes de preservar os documentos dos seus escritórios que, além do mais, foram
freqüentemente destruídos por bombas. tive acesso ao arquivo privado dos parentes do
defensor de presos políticos Nestor Martins, mas este reúne tudo relativo ao seu
desaparecimento e não inclui material sobre seu próprio trabalho profissional. Também não
tive acesso aos arquivos da Liga Argentina por los Derechos del Hombre. Conforme
salientaram seus diretores, o arquivo não existe mais, depois de que seu escritório foi objeto
de sucessivos atentados com bombas.
Junto com a busca de materiais documentais, realizei entrevistas a advogados e
magistrados franceses que participaram de missões humanitárias entre 1975 e 1979: Louis
Joinet, Nuri Albalá e Philippe Texier. Na Argentina, entrevistei cerca de 12 profissionais do
25
direito ligados à defesa de presos políticos e à causa pelos direitos humanos. Todas estas
entrevistas foram realizadas nos seus lugares atuais de trabalho, com exceção de Susana
Aguad, Carlos Zamorano e dos parentes de Nestor Martins que entrevistei nas suas casas, e de
Pedro Galin que entrevistei num café. Dependências judiciais, escritórios da administração
pública nacional e gabinetes parlamentares foram os espaços pelos quais transitei ao longo
destas entrevistas. Significativamente, nenhuma delas foi realizada em escritórios
profissionais privados, o que confirma também o caráter das transformações operadas no
perfil destes advogados. Se, no início de suas trajetórias profissionais, eles se definiam por
sua oposição ao Estado, ao se tornarem hoje profissionais da política e/ou do direito dos
direitos humanos, tem ingressado no espaço estatal e são parte constitutiva do mesmo.
Se um dos meus propósitos é apresentar a participação destes defensores de presos
políticos dentro de redes de profissionais e ativistas, o modo em que foram se desenvolvendo
as entrevistas confirma a importância desta rede de pertencimento, que ela continua ativa
até hoje. Foi a primeira entrevistada, Haydée Birgin, quem, com muita generosidade,
proporcionou-me as vias de acesso aos demais integrantes da rede. Sua atual agenda contém
os dados completos dos trabalhos e telefones de contato dos advogados com os quais
compartilhou a defesa de presos políticos em meados dos anos sessenta, isto é, uns 40
anos. No início da pesquisa foi ela mesma quem se comunicou com os seus colegas para
pedir-lhes que me recebessem. A boa disposição da maior parte deles encontrava seus limites
na urgência e importância das tarefas por eles desenvolvidas. Aqueles que atualmente ocupam
os altos escalões da Secretaria de Derechos Humanos de la Nación não consegui entrevistar,
embora tenha mantido algumas conversas informais com Rodolfo Mattarollo, entre viagens ao
exterior e uma infinidade de outros compromissos públicos. Dificuldades de tempo se fizeram
sentir particularmente nos casos dos advogados com uma importante inserção na esfera
internacional, como Hipólito Solari Yrigoyen e Leandro Despouy. As condições impostas
pelo pertencimento à rede transnacional de peritos em direitos humanos constituíram
obstáculos importantes e, ao mesmo tempo, tornaram-se dados significativos a respeito das
rotinas impostas por este ativismo internacional. Esta mesma situação se repetiu em Paris com
os advogados e magistrados que tinham participado das missões de especialistas na
Argentina, a quem tive que insistir, ininterruptamente, até conseguir as entrevistas
pessoalmente nos breves espaços intersticiais entre uma missão e outra. Evidentemente, esta
dificuldade se relativiza na medida em que possibilita a compreensão das condições impostas
pela posição que ocupam estes peritos na esfera pública.
26
Junto a estas dificuldades agrega-se a minha posição de máxima exterioridade a todo
este universo. As possibilidades e limitações no acesso estiveram também definidas pelo fato
de não pertencer a uma família de advogados, de não ter um nome, não provir de uma família
reconhecida dentro do universo da militância, tampouco ser portadora de um laço de máxima
proximidade com as vítimas do terrorismo de Estado, como é o caso ‘dos parentes’. Esta
conjunção de exclusões, sem dúvida, estava na base de alguns dos argumentos em torno às
limitações de tempo dos potenciais entrevistados.
Os gabinetes de vários destes profissionais do direito exibem as marcas de seu
compromisso militante e de sua especialização. O escritório de Mario Landaburu, por
exemplo, continha os retratos de vários dos seus colegas desaparecidos após o golpe de
Estado de 1976. No gabinete de Rodolfo Mattarollo encontra-se uma foto na qual ele próprio
aparece retratado na sua condição de perito internacional, no centro de várias filas de soldados
que pertencem a grupos opositores e colocados à sua esquerda e à sua direita. A foto, que
retrata um momento no desenvolvimento da missão encarregada a Mattarollo, transmite o que
parece uma situação de máxima tensão, conflito e risco pessoal extremo, retratando a
fragilidade de um acordo de paz fundado nas armas e no tremendo esforço destes especialistas
por transformar em aliados grupos até então inimigos. Esta imagem sugere várias das
disposições que estão presentes neste perfil de advogado no início dos anos setenta: a
coragem, a valentia, o sacrifício e o heroísmo, qualidades que os inscrevem, como veremos,
numa sorte de aristocracia do risco.
Para finalizar, uma breve menção aos estudos sobre o movimento pelos direitos
humanos. Estes têm sido dominados na Argentina por duas principais linhas de pesquisa:
aqueles que aspiram reconstruir o horror da repressão de Estado e aqueles que, colocando em
dúvida a possibilidade de apreender, compreender e transmitir a experiência da violência,
buscam compreender os modos em que este trauma coletivo é atualmente lembrado e
transmitido às futuras gerações. Os primeiros surgiram imediatamente depois do fim da
última ditadura militar. Os segundos começaram a ser desenvolvidos no país no início dos
anos noventa. Ambas as perspectivas reconhecem um elemento em comum: sua extrema
afinidade com as próprias demandas do movimento de direitos humanos que,
coincidentemente, reivindica a memória, a verdade e a justiça. Reconhecendo a enorme
importância que todos estes estudos anteriores têm na compreensão do movimento pelos
direitos humanos na Argentina, o trabalho que aqui apresento visa a complementar este
27
valioso corpus de conhecimento e, talvez, contribuir para abrir novas linhas de pesquisa sobre
esta temática.
28
Capítulo 1
A invenção de uma causa
Um encontro entre notáveis e recém chegados ao direito e a política
29
1. 1 Introdução
Na esquina das ruas Paraná e Sarmiento da cidade de Buenos Aires, Antonio Cantor,
operário metalúrgico, foi detido pela policia e “... entregue à Sección Especial de Lucha
contra el Comunismo onde foi submetido a verdadeiras sessões de torturas (...)
presumivelmente numa delegacia da policia de San Martin [estado de Buenos Aires] (...)
perfeitamente equipada para a aplicação do tormento. Amarrado sobre uma mesa, desnudo e
cobertos os pés e as mãos de polainas e ataduras, sofreu durante horas a tortura da ‘picana’
elétrica em quanto pretendia-se arrancar delações de nomes e endereços de militantes
obreiros...”
34
.
O 30 de outubro de 1936 interveio seu advogado defensor, Samuel Shmerkin,
interpondo um recurso de hábeas corpus “…em favor de Antonio Cantor ou Kantor,
manifestando que este último encontra-se detido sem ordem escrita de autoridade competente
(...) desde o 22 de agosto próximo passado na Delegacia Central da Policia (...) por disposição
do Poder Executivo em virtude de um decreto de expulsão do país ditado em contra sua com
data 14 de julho de 1933, em conformidade com o artigo 2° da lei 4144”. Perante esta
apresentação, a Câmara Federal Criminal e Correcional da Capital rejeitou o hábeas corpus
entendendo que “não pode prosperar o recurso (...) em favor de um estrangeiro a disposição
do Poder Executivo si se encontra compreendido num decreto de expulsão do país (...) O
Poder Executivo, pela faculdade da lei 4144, pode proceder à expulsão do país dos
estrangeiros indesejáveis, quer dizer, dos que atentam contra a segurança nacional ou
perturbam a ordem pública” (Fallo N° 1509. Cámara Criminal e Correccional da Capital)
35
.
A nota publicada pelo periódico Defensa Popular reproduz a dramática denuncia
sobre o uso de torturas contra os opositores à ditadura e descreve o procedimento pelo qual,
34
Em: Defensa Popular. Ano 1. N° 8. 19.11.1936. Também se inclui seu nome numa listagem de ‘presos por ser
inimigos do fascismo’ publicada pelo mesmo periódico. A esquina onde se produziu a detenção fica numa zona
muito central da cidade, a poucos metros de onde se situa o Palácio dos Tribunais. ‘Picana’ é um termo nativo
que refere à ferramenta tipicamente utilizada nas fazendas argentinas para movimentar o gado. Por meio de um
implemento que é colocado no corpo e que conduz eletricidade, o animal obedece as ordens. Este instrumento foi
utilizado na tortura dos presos políticos aplicando-se no corpo descargas elétricas, especialmente nas zonas
genitais e na boca.
35
Em: Revista Jurídica Argentina La Ley. Bs. As. Tomo 4:380, 1936.
30
sob a acusação de ‘professar idéias comunistas’ Cantor tinha sido detido em 1933
36
. A
partir desta detenção, o Estado tinha iniciado sub-repticiamente as tramitações de
cancelamento da sua carta de cidadania, de tal modo que, quando ele foi novamente detido em
1936, foi considerado um ‘estrangeiro indesejável’ mesmo com mais de trinta anos de
residência no país.
Seu advogado defensor impugnou tanto a legitimidade desta atribuição quanto os
procedimentos referidos a sua detenção. Para Shmerkin, a detenção e aplicação da lei 4144
constituía uma violação aberta da lei enquanto Cantor era ‘um cidadão argentino’. “Um tal
decreto é evidentemente nulo. A lei, em tudo caso, não pode se aplicar mas que a estrangeiros.
O cidadão naturalizado, enquanto não seja despojado da sua cidadania, é equiparado ao
argentino nativo. Ao decretar a expulsão de Cantor no ano 1933, o Poder Executivo tem
incorrido num ato nulo”. Esta argüição foi contestada pelo Shmerkin reclamando um inquérito
judicial visando a identificar e castigar aos responsáveis da aplicação das torturas.
Os fatos relatados pela imprensa e definidos na sentença colocam em relação as ações
de três agentes sociais chaves da época: o Estado, os dirigentes sindicais anarquistas ou
comunistas e seus advogados defensores, e evocam um conjunto de categorias que, depois,
vão servir como referencia chave para denunciar os acontecimento de meados dos anos
setenta na Argentina: ‘ditadura’, ‘presos políticos’, ‘vítimas’ e ‘direitos do homem’. Esta foi a
retórica utilizada por quem assumiam publicamente a defesa desta causa. Um conjunto
heterogêneo de intelectuais, homens políticos e profissionais do direito conformaram espaços
associativos desde os quais estas situações foram traduzidas na linguagem pública como
violações aos ‘direitos do homem’. Nesta retórica, os ‘estrangeiros indesejáveis’ se
transformavam em ‘vitimas da ditadura’ ou ‘vitimas da reação’ e as ações do poder executivo
em resguardo da ‘seguridade nacional’ se converteram, então, em manifestações locais do
‘fascismo’. Em suas defesas diante os tribunais, os advogados faziam referencia as
sistemáticas violações ao ‘direito de asilo’, a rejeição sistemática dos recursos de ‘hábeas
corpus’ e a nulidade dos processos por incompetência da autoridade judicial que
36
Cantor era, então, dirigente do Partido Comunista argentino. Desde 1925 tinha integrado o Comitê Executivo
Ampliado. Suas atividades se desenvolviam numa semi-legalidade que desde o golpe de Estado de 1930, o
PCA tinha sido declarado ilegal na Província de Buenos Aires. Em: Comisión del Comitê Central del Partido
Comunista (1948).
31
caracterizavam à ‘ditadura’ surgida do golpe de Estado do 6 de setembro de 1930 contra o
presidente constitucional Hipólito Yrigoyen
37
.
Com o compromisso de denunciar esta situação e de exercer publicamente a defesa
dos ‘direitos do homem’, estes intelectuais, políticos e advogados se nuclearam e constituíram
diferenes espaços associativos como a Liga Argentina por los Derechos del Hombre (LADH),
o Comité Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo, a Organización Popular contra el
Antisemitismo, o Comité Pro Amnistia a los Presos y Exiliados Políticos de América, a filial
local do Socorro Rojo Internacional, o Comitê de Ayuda Antifascista e a Associación Jurídica
Argentina.
Partindo deste momento de fundação destas associações, neste capítulo me proponho
realizar uma descrição do universo de agentes sociais engajados com a defesa dos ‘direitos do
homem’ na Argentina dos anos 30. Para isso, vou delinear o perfil político e social dos
quadros dirigentes, as estratégias utilizadas na denuncia pública das violações aos direitos do
homem e o conteúdo dessas noções sob o que constituem estes direitos. Isso todo para dar
conta das condições que fizeram possível a invenção desta causa, colocando o foco na análise
das propriedades sociais dos seus militantes. Vou-me centrar no momento germinal no qual
foram criadas uma serie de associações civis que reivindicavam a defesa das ‘vítimas’ da
‘ditadura’ pouco tempo depois do golpe de Estado de 1930, entre elas, a Liga Argentina por
los Derechos del Hombre, a única que continua em atividade até hoje.
Um dos argumentos centrais deste capítulo gira em volta ao processo que possibilitou
o encontro entre notáveis e recém chegados ao direito e à política na complexa trama de
associações que simultaneamente se criaram à luz deste movimento. Vou colocar a ênfase no
processo que colocou a disposição desta causa a um conjunto de jovens profissionais carentes
de um capital de relações sociais herdadas num momento de forte incremento da matrícula
37
Hipólito Yrigoyen foi um dirigente pertencente ao Partido Unión Cívica Radical (UCR) que tinha chegado à
presidência da nação em 1916 como resultado da aplicação, pela primeira vez, da chamada ‘lei Sáenz Peña’ que
outorgava o voto universal e segredo aos varões adultos e punha fim a uma sucessão de governos conservadores.
Desde a aplicação desta lei, a UCR tinha presidido continuadamente o país até o golpe do ano 30. (Yrigoyen:
1916 a 1922, Alvear: 1922 a 1928 e Yrigoyen 1928 a 1930). Vale a pena salientar, no primeiro lugar que, os
limites da categoria ‘ditadura’ variam segundo quem a utiliza. No contexto deste capítulo, vou adotar o ponto de
vista da oposição incluindo também dentro da ‘ditadura’ ao governo do General Agustín P. Justo (1932 a 1938)
surgido do voto popular. No segundo lugar, mesmo que Uriburu levou a seu gabinete importantes dirigentes
conservadores e nacionalistas, num primeiro momento, teve o apoio dos dirigentes do socialismo assim como
algumas linhas internas dentro do próprio partido radical.
32
universitária que resultou na existência de ‘advogados sem causa’. Estes jovens graduados
irão se incorporar ao mundo profissional através do assessoramento legal a grêmios e
sindicatos que então, começavam a se multiplicar, como resultado das experiências prévias
trazidas pelos imigrantes europeus. Pela sua vez, se produziu uma aproximação paradoxal de
alguns notáveis a este universo habitado por trabalhadores e imigrantes. Proponho
compreender esta aproximação no contexto do tumultuado espaço político de princípios do
século XX quando, depois da sanção da lei de voto masculino segredo e obrigatório, se
transformaram as condições de competência pela representação e, as estratégias de
acumulação de notoriedade pública, deixaram de estar vinculadas diretamente à posse de
riquezas. Contra este pano de fundo, vou introduzir algumas das qualidades que irão
distinguir a estes profissionais do direito na esfera pública: o culto ao heroísmo, ao
desinteresse e ao sacrifício. Vou examinar também as implicâncias que isto teve nas formas
de fazer e pensar a política e o direito.
1. 2 A ameaça
A meados da cada de 30, um conjunto diverso de intelectuais, homens da política e
profissionais do direito consideraram a necessidade de atuar publicamente em contra de um
perigo que se estendia não sobre a Europa e América mas também sobre a Argentina: o
‘fascismo’. Diferentes setores da oposição coincidiram na denuncia pública da existência de
associações locais de inspiração nazi que tinham-se consolidado a partir do golpe de Estado
de Uriburu (1930).
33
Assim, o deputado nacional e futuro dirigente da Liga Argentina por los Derechos del
Hombre (LADH), Lisandro de La Torre, alertava desde o Congresso Nacional sobre “… o
perigo evidente que surge da organização ostensível destes núcleos nacionais, pequenos em
numero mas armados e militantes, que proclamam doutrinas autoritárias e guerreiras, de
origem estrangeiro, cuja implementação no país vai destruir as instituições da República…”
38
.
O paralelo traçado entre Europa e América era motivo para a ação imediata. No
primeiro número do periódico da LADH, o liguista Santiago Monserrat completava o
diagnóstico da situação assinalando: “América está em perigo. O Brasil tem caído nas pretas
fauces do fascismo. Benavides esta-se aproximando ao caminho de Getúlio Vargas. O
fascismo está à espreita. Esta estendendo a sua sangrenta garra a Chile. E nós, pode-mos
olhar impassíveis o que acontece perante as nossas próprias portas? Pode-mos olhar
indiferentes como a besta devora aos nossos vizinhos?”
39
Nesta retórica, a ameaça fascista provem não dos núcleos de prédica anti-semita
integrados por estrangeiros mas da própria encarnação do mal representada pelos grupos
dirigentes da época que tinham sido responsáveis do primeiro golpe de Estado contra um
governo democrático. Os periódicos escritos e dirigidos pelos advogados defensores e
dirigentes destas associações criadas ao calor desta luta contra o fascismo denunciavam
repetidamente: “... a violação sistemática da Carta Magna, da lei, dos princípios democráticos
e republicanos...”
40
.
Em consonância com esta prédica, um abaixo-assinado integrado por muitos daqueles
que logo iriam a se integrar à LADH um ano depois afirmava:
38
Em: Crítica. 22.12.1936. De La Torre foi advogado, dirigente político e parlamentar. Nesta intervenção no
senado se refere a Legión Cívica, uma sorte de milícia cívico-militar que cresceu graças a proteção do próprio
exército. Outro integrante da LADH vai descreve-la na sua proximidade com o Estado ao denunciar que seus
legionários eram instruídos militarmente nos quartéis do exército. De inspiração nazi, se dedicou a perseguir a
militantes sindicais e políticos opositores por meio de atentados nas sedes partidárias ou sindicais e o seqüestro e
assassinato de seus militantes. Nos seus regulamentos pode-se ler: “…a finalidade da LC é estar sempre pronta
para acudir em defesa da ordem pública ameaçada ou alterada quando assim o requer a autoridade nacional”.
Em: Cattaneo, 1939: 44.
39
Em: Derechos del Hombre. Año 1, número 1. 1938. Grifos meus. Vale a pena salientar que esta nota aparece
acompanhada da reprodução de um planisfério onde se destacam as zonas de influencia nazi no mundo
consignando as cifras de aderentes por país.
40
Em: Amnistía. Año 1. Nro. 1. Marzo 1936.
34
“El país vive uno de los momentos más peligrosos de su vida institucional
organizada. Un profundo desprecio por los principios de humanidad y una burla
permanente de los derechos del hombre consagrados en nuestras leyes
fundamentales, señalan la existencia de una corriente de ideas y principios
reaccionarios y fascistas que, de imponerse, colocarían al margen de la vida del
país a la inmensa mayoría de los habitantes y destruirían las expresiones más serias
de nuestra cultura”
41
.
Pela sua vez, o deputado e dirigente da LADH, Leônidas Anastasi definia a situação
posterior ao golpe de Uriburu como:
“una violación descarada de las libertades públicas. Hubo momentos (…)
en que conocimos verdaderos delirios constitucionales. De la inteligencia limitada
del dictador ‘de facto’ surgió la ley marcial (…) Sufrimos después estados de sitio
indefinidos, en que el ejecutivo ejercitaba facultades ommodas. Atenuada la
persecución política continuó la persecución social. Los sindicatos obreros
vivieron y viven todavía en Estado de sitio permanente (…). La prensa vive
también su régimen de excepción (…) la libertad de opinión ha sido abolida. Los
procesos de desacato se han multiplicado y el régimen imperante quiere ahogar
toda censura”
42
.
A analogia com a Alemanha nazi era utilizada então pelo senador e dirigente da
LADH Mario Bravo quem, ao denunciar a ‘falta total de garantias constitucionais’ afirmava:
“Nós somos uma Alemanha nazi em pequeno (...) Aqui existe um pequeno campo de
concentração, menor, é lógico, que os da Alemanha. São os calabouços da Sección Especial
contra el Comunismo”
43
.
A importância de adscrever a esta luta contra o fascismo se revela, por exemplo, na
quantidade de notas publicadas no numero inaugural do periódico Derechos del Hombre:
41
Em: Defensa Popular. Año 1, N° 8. 1936.Grifos meus.
42
Em: Derechos del Hombre. Año 1, Número 1, 1938.
43
Citado em Andrés Bisso, 2001. Esta Sección Especial tinha sido criada por Uriburu em 1931. Era um
organismo policial em cujas dependências se seqüestrava, torturava e editava uma propaganda favorável ao
regime de fato. Vale a pena salientar que a analogia entre a situação Argentina posterior ao golpe de Estado de
1976 e o nazismo vai se constituir numa das estratégias retóricas chaves utilizadas pelos defensores da causa dos
direitos humanos para fazer a denuncia da ‘ditadurados anos setenta. Ao ponto de chegar a se consagrar a
categoria ‘campos de concentración’ para nomear os lugares onde se mantinha ilegalmente detidos aos presos
políticos na Argentina.
35
tanto a própria capa do periódico quanto o 35% das matérias estão dedicadas a testemunhar a
situação européia, especialmente a Guerra Civil Espanhola. Nos restantes artigos dedicados à
situação de América latina e da Argentina, é permanente o uso da retórica antifascista, como
se evidencia em algumas das citas anteriores. Retórica utilizada, em geral, pelos oponentes ao
golpe para denunciar a proscrição do Partido Comunista, a detenção de mais de cem
dirigentes do partido Unión Cívica Radical e os sucessivos fraudes e anulações de processos
eleitorais
44
. As eleições presidenciais de 1937, ano em que foi criada a LADH, tinham sido
classificadas pela imprensa nacional como ‘as mais fraudulentas da história’. Quem triunfou
para o governo do estado de Buenos Aires foi Manuel Fresco, quem ostentava no seu gaviente
retratos de Mussolini e Hitler.
Na perspectiva destes profissionais do direito, o perigo que representava ‘o fascismo’
punha-se em evidencia no dia a dia, em tanto mediante o eufemismo de promover o
‘saneamento social’ tinha-se implementado no país a prática regular da: “...prisão, a tortura e
a deportação que alcançou por igual a um ex presidente, ex ministros, senadores, deputados,
generais, militares, bombeiros, agentes de policia, médicos, advogados, estudantes e
trabalhadores”
45
. As repetidas detenções a dirigentes políticos e sindicais tinham alcançado
também aos advogados e futuros dirigentes da Liga Carlos Sánchez Viamonte, Alfredo
Palacios, Lisandro de la Torre, Mario Bravo, Gregorio Aráoz Alfaro, Arturo Frondizi y Lydia
Lamarque, entre outros
46
.
44
Como resultado dos contínuos fraudes, a UCR tinha adotado a abstenção eleitoral e alguns de seus dirigentes
se colocaram a frente de algumas tentativas de insurreição armada, entre eles, o futuro dirigente da LADH, Atílio
Cattáneo.
45
Em: Alerta contra el Fascismo y el Antisemitismo. Bs. As. 1. 21.09.1935. A denuncia da perseguição
política tinha, sem dúvidas, um substrato objetivo. Os dois máximos dirigentes da UCR estavam então excluídos
da política. Yrigoyen estava preso e M. T. de Alvear se encontrava no exílio. Os efeitos desta violência foram
extremos em muitos dos casos, como o de Hipólito Yrigoyen, quem sobreviveu três anos ao golpe de Estado,
como conseqüência das duras condições de detenção as que foi submetido na cadeia da ilha Martin Garcia.
46
En: Amnistía, Año 1, Nro. 1. Marzo 1936. Grifos meus. É preciso lembrar que esta ‘partição de águas’ não se
conformou tão claramente desde o inicio. Como assinalei no inicio do capítulo, dirigentes da LADH e do Partido
Socialista como Alfredo Palácios, enfrentado com o radicalismo, apoiaram o golpe de Uriburu. Inclusive secções
do PS e do próprio partido UCR integraram a coalizão de partidos conhecida como ‘Concordancia’ que levou o
General Justo a ganhar as eleições em 1932.
36
1. 3 O imperativo a atuar
Sobre a base deste diagnóstico sobre a situação nacional, intelectuais e dirigentes
políticos se aglutinaram em distintos espaços associativos com o propósito de acrescentar
forças de oposição ao ‘regime’. Durante eses anos, e sob as palabras de orden ‘pelo direito à
vida’ e ‘em contra da guerra’, se constituíram associações civis como a Liga Argentina por los
Derechos del Hombre, o Comitê de Ayuda Antifascista, orientada ao trabalho em favor do
‘direito de asilo em América e contra a lei de Residencia’, o Comitê Pro-Amnistía por los
Exiliados e Presos Políticos de América, dedicado a denunciar ‘todo procedimiento violatorio
das leis e dos direitos do homem’ e integrado por ‘figuras de destaque da vida política sem
distinção de credo nem de cor político’, o Comitê Argentino contra el Racismo y el
Antisemitismo, integrado por “homem livres, de idéias filosóficas e políticas muito diversas
[reunidos] para afirmar o respeito que essa coletividade [judia] tem direito como integrante da
nossa nacionalidade e com o propósito de denunciar publicamente a ‘infiltração nazi-fascista’
e evitar que o ‘anti-semitismo’ adquira a “…mesma monstruosa significação que nos países
totalitários”
47
, a filial local do Socorro Rojo Internacional que tinha por objetivo “…
organizar a luta contra a reação e o fascismo…”
48
e a Asociación Jurídica
Argentina que definia-se como uma associação orientada à realização de ações contra o
fascismo
49
e contra a guerra, e a Comisión Pro Abolición de las Torturas, criada para
‘proteger y atuar em casos de asilo político às vitimas do fascismo internacional”.
O relato sobre a detenção do dirigente Antonio Cantor, desenvolvido ao inicio do
capítulo, ilustra o fato de que exercer a defesa judicial dos presos políticos e sociais perante os
tribunais era uma das atividades centrais destes profissionais do direito engajados na luta
contra o fascismo.
Contudo, esta defesa requeria da ação comum no entanto a atuação diante os tribunais
tinha serias limitações: “... o corpo constitucional e legal democrático escrito se conserva
47
Actas del Primer Congreso Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo. Consejo Deliberante de la Ciudad
de Buenos Aires. Agosto de 1938.
48
Em: Socorro Rojo. Buenos Aires. 04.10.1932.
49
Em: Crítica. 22.12.1936. Identificados especificamente com a luta contra o anti-semitismo e o anti-fascismo,
se constituíram também na Argentina outras associações como a Organización Popular contra el Antisemitismo,
a Federación Sionista Argentina e a Solidaridad Internacional Antifascista.
37
formalmente intacto (...) mas, de fato, e para a maioria da população, as liberdades e garantias
democráticas já tem tempo que tem deixado de existir”
50
.
Desde a perspectiva de quem integravam as associações engajadas com a defesa da
causa anti-fascista, a conformação destas rede de profissionais do direito era uma questão
chave para levar a frente o processo. Para o integrante do Comitê Pro Amnistía de Presos y
Exiliados Políticos de América e futuro presidente da LADH Mario Bravo:
“... los abogados socialistas estamos en la tarea de organizarnos para actuar en la
justicia por la defensa legal de los centenares de presos obreros (...) nos
empeñamos en hacer cesar la atribución que la justicia ha reconocido al gobierno
de poder mantener privado de su libertad a un habitante de la nación tanto tiempo
como el que la policía necesita para arreglar los trámites de deportación”.
Assumir publicamente a causa dos seus defendidos era percebido como condição do
trabalho de defesa perante os tribunais entretanto os processos se originavam em motivos
‘políticos’:
“La adopción de típicas medidas de carácter fascista – registros de vecindad,
sindicatos ‘dirigidos’, hogueras de libros, secuestro de personas, decretos
colocando fuera de la ley al Partido Comunista (...) son la prueba concluyente de
que la reacción no ha de detenerse en escrúpulos legales si no se le opone por
parte de los partidos y agrupaciones obreras afectadas la firme decisión de luchar
contra el fascismo con todas sus fuerzas en un frente solidario
51
.
A proposta de criar um ‘único frente de oposição e de ajuda às vítimas da reação’
começou a ser ativada a finais de 1936 por quem formavam parte desta nebulosa de
associações engajadas com a derrogação das leis repressivas, com a causa anti-fascista, etc.
Dirigentes de várias destas associações convocaram a um Congreso de Unificación de las
50
Em: Amnistía. Año 1. Nro. 1. 1936. Nestes termos se referiram os advogados ao fato de que o país vivera em
condições de exceção e, em forma alternativa, baixo o império da lei marcial e do Estado de sitio (09.1930 a 06.
1931 e 06.1931 a 1932, respectivamente) A lei marcial é um estatuto de exceção por meio do qual outorgam-se
faculdades extraordinárias as forças armadas ou a policia na administração da justiça. Para justificar sua
aplicação, é costumeiro apelar à urgência de re-instaurar uma ordem perdida e a lentidão dos procedimentos
judiciais ordinários. Sob o império deste regime, normalmente exercem a lei tribunais militares ou se aplicam
processos sumários em julgamentos civis.
51
Em: Defensa Popular. Año 1. Nro. 8. 1936.Grifos meus.
38
Fuerzas de Ayuda y Defensa de los Perseguidos por la Reacción que fundava a sua
convocatória no fato de estar:
Convencidos de que una de las armas esgrimidas con mayor ímpetu por la
reacción es la detención y deportación de militantes políticos y sindicales de
oposición y comprendiendo la necesidad de impedir que por este medio se consiga
crear un estado de terror propicio al establecimiento de una dictadura sangrienta,
desembozada, los hombres abajo firmantes, pertenecientes a las distintas corrientes
ideológicas en que se divide la opinión pública independiente de la República, nos
constituimos en comisión provisoria para la convocatoria de un congreso nacional
a los efectos de la constitución de una única y gran organización que deberá
encargarse de la coordinación para la ayuda a las ctimas de la reacción (...)
Estamos convencidos que con la colaboración de todos estaremos en condiciones
de dotar a las fuerzas democráticas de un instrumento de defensa indispensable
ante el avance de las fuerzas regresivas que pretenden adueñarse del país”
52
.
Pela sua vez, o Comité Antifascista Argentino também convocou em 1936 a uma
‘grande concentração anti-fascista’ para ‘unificar a ação das entidades análogas na Argentina
num Congresso Antifascista Argentino’. A convocatória se fez extensiva a todas as ‘entidades
de ajuda, defesa, anistia e anti-fascistas’. Levando em conta este diagnóstico a respeito do
caráter universal do fascismo e suas vítimas, os integrantes do Comitê se consideraram
autorizados “... a formar um amplio frente comum contra o fascismo: da amplitude deste
surgiu a necessidade da nossa amplitude”
53
. Estes esforços por unificar os distintos frentes de
atuação não tiveram o resultado esperado. Contudo, pouco tempo depois, estes dirigentes que
advogavam por um frente comum se encontraram numa das instituições que protagonizariam
a defesa dos direitos do homem, a Liga.
A criação da LADH a fines de 1937, uma associação que continua ativa até hoje,
revela esta mesma intenção de aglutinar as forças progressistas’ num ‘frente comum’. A
imprensa de princípios de 1937 dava conta dos avances desta estratégia que suponha reuniões
entre os principais representantes dos principais partidos da oposição, o Dr. Eduardo Araújo
52
Em: Defensa Popular. Año 1. N°. 8. 1936. Grifos meus. Na Europa, já tinham-se formado vários destes frentes
anti-fascistas. No caso da Itália, por exemplo, se encontrava o Comitê Italiano Unitário para a defesa das vítimas
políticas do fascismo e o Comitê Nacional del Frente Único. Em Paris estava a sede central do Comitê
Antifascista Internacional.
53
Em: Contra-Fascismo. Año 1. N°. 2. 1936.
39
(UCR) e o Dr. Mario Bravo (PS), reuniões que se convocavam com o propósito de “... levar à
prática a organização da defesa dos direitos consagrados pela Constituição Nacional que,
nestes tempos tem sido menosprezados, tanto no que se refere aos movimentos sociais quanto
a atuação dos partidos políticos…”
54
. Este ‘frente comum’ que, em termos de seus
fundadores, não devia ter nenhum propósito eleitoral, resultou ser a Liga Argentina por los
Derechos del Hombre, criada o 20 de dezembro de 1937 e inspirada sobre o modelo de seu
par francês e em consonância com os propósitos que guiavam a esta associação: a luta contra
o fascismo e o anti-semitismo. No seu discurso como principal orador da assembléia de
criação da Liga, seu presidente, Mario Bravo, fazia referencia à urgência da situação e aos
propósitos da instituição assinalando que: “… a Liga se deve pôr em funcionamento com o
propósito de garantir o império da legalidade e deter o avance da reação...”
55
.
Vale a pena salientar o ênfase na falta de intenções eleitorais justamente num ano
marcado pela convocatória a eleições presidenciais e pelos esforços em conseguir alianças
partidárias. A despeito destes empenhos, os partidos Unión Cívica Radical e Socialista
competiram desde listas eleitorais opostas. Chegado ao fim a estratégia de abstenção eleitoral
praticada pelo radicalismo até 1935, eles obtiveram importantes triunfos eleitorais que
produziram uma drástica redução da representação socialista que, até então, tinha-se
beneficiado do abstencionismo radical
56
.
54
“El Dr. E. Araujo habló hoy con el Dr. Bravo”. Jornal Crítica. 24.02.1937.Grifos meus. Criada a Liga, o
Comité Pro Amnistia a los Presos y Exiliados Políticos de América se dissolveu.
55
Em: Jornal Crítica. 21.12.1937. Grifos meus. Ver em anexo 1, g. 111, a reprodução de um ofício da
LADH convocando a se afiliar à associação. Em: Clarinada. 1939.
56
Sobre as características deste período eleitoral, ver Romero 1994.
40
Na conformação da Liga se verifica esta aglutinação das lideranças dos principais partidos da
oposição num frente comum, sendo que o partido Unión Cívica Radical foi o que teve a maior
representação
57
.
TABELA N˚1: Número de integrantes da LADH por partido
LADH
N°
°°
° Integrantes x Partido
%
58
16 Unión Cívica Radical
47 %
11 Socialistas y Soc. Obreros
32%
4 Comunistas
12 %
2 Demócratas Progresistas
6%
1 Independiente
3%
TOTAL: 34 dirigentes
100%
Mesmo que qualquer afirmação sobre uma possível vinculação entre este período
eleitoral e a conformação de frentes de luta em defesa dos direitos humanos requeresse de um
maior apoio empírico, me interessa formular, a modo de sugestão, a proposição seguinte
referida à necessidade de explorar numa futura pesquisa as relações específicas entre as
57
A dificuldade para ter acesso aos arquivos documentais da própria LADH, mencionada na introdução da
tese, tem me impedido, até hoje, conferir o grão de participação do Partido Comunista argentino na sua criação,
apesar dos inúmeras testemunhas que afirmam que a Liga foi criada pelo PCA. Dado que as testemunhas orais de
intelectuais, dirigentes políticos e de organizações de direitos humanos contemporâneos tendem a identificar em
forma automática a LADH com o Partido Comunista, de forma pejorativa geralmente, considero importante
situar estas afirmações como parte de uma perspectiva interessada por definir uma posição legítima dentro deste
campo de relações. Este ponto vai ser desenvolvido mais em detalhe quando, no capítulo 3, se descrevam as lutas
pela hegemonia dentro da APDH (1975) entre militantes que provem do comunismo e do catolicismo. Tanto
para A. Bisso quanto para S. Schenkolewski-Kroll, o Socorro Rojo e o Comitê para el Racismo y el
Antisemitismo também foram organizações colaterais do Partido Comunista Argentino. Pelo momento,
considero suficiente inserir a própria perspectiva dos integrantes da LADH de então a respeito da acusação de
serem comunistas: “Hay un grupo de personas que ante toda manifestación antifascista opinan de este modo: se
trata de una maniobra comunista (...) a este grupo pertenece la policía”.Periódico Contra Fascismo. Año 1. N°. 1.
Abril de 1936. Como tentarei mostrar neste capítulo, com independência do grão de participação do PC na
criação da LADH, a enorme quantidade de espaços associativos descritos é um indicador da necessária
participação de figuras não necessariamente restritas à militância comunista ou de origem estrangeiro.
58
Esta tabela responde à composição por partido das lideranças da LADH no momento da sua criação. Foi feito
sobre os dados de filiação partidária de 34 liguistas integrantes da Junta Ejecutiva Nacional e do Consejo
Consultivo sobre um total de 40. Não disponho de dados sobre seus militantes nem aderentes.
41
lideranças engajadas numa associação como a LADH e as posições ocupadas por estas
lideranças ao interior de seus respectivos partidos políticos de pertença, como também as
posições ocupadas pelos distintos partidos que conformaram esta coalizão dentro do espaço
público. Trata-se de identificar neste contexto o sentido da adesão a uma forma militante de
exercer o direito no contexto das oportunidades abertas ao exercício da política profissional.
Segundo Andrés Bisso e Silvia Schenkolewski-Kroll, a participação de dirigentes do
Partido Comunista neste tipo de frentes tinha como propósito seguir as diretivas emanadas
desde Moscou a respeito da necessidade de realizar ações coordenadas “… ao margem dos
partidos ... e que aglutinassem sob um mesmo teto aos partidos proletários e burgueses de
modo de alcançar uma influencia muito maior que a alcançada pelos partidos e organizações
sindicais existentes”
59
. No contexto de proscrição no qual funcionava o PCA desde 1930, a
integração destes frentes respondia também à possibilidade de dotar de respeitabilidade ao
partido e de oferecer a suas lideranças um espaço para a atuação pública. Isto verifica-se
especialmente no caso do Socorro Rojo que, a partir do golpe de 1930, modificou
radicalmente sua estratégia de atuação, dedicando-se completamente ao auxilio jurídico e
material aos militantes comunistas argentinos e suas famílias
60
.
Os principais quadros dirigentes que se integraram à LADH provinham da UCR e do
PS. Ambos os partidos tinham sofrido fortes lutas internas durante este período, originadas na
maior ou menor disposição de suas lideranças a colaborar com o governo do General Justo.
Algumas destas disputas conduziram à excisão do PS, a partir da participação de alguns dos
seus dirigentes no governo de Justo. A participação da UCR na competição eleitoral tinha
significado uma míngua significativas nas bancadas parlamentares para o PS. Segundo com
Juan Godio:
“El PS se había beneficiado coyunturalmente con su postura de avalar la exclusión
de la UCR del sistema político. En las elecciones legislativas de 1931, el PS gana
la mayoría en la Capital Federal y la primera minoría en la provincia de Bs. As.,
transformándose en la primer fuerza opositora. También logra un rápido
aumento de adherentes, pasando de 12.011 en 1930 a 23.030 en 1932”
61
.
59
Estes eram os lineamentos adotados pelo PC e expostos por J. Dimitrov em: “El frente único de la clase obrera
contra el fascismo”. Biblioteca del Partido Comunista Argentino.
60
Em: Bisso, 2001 e Schenkolewski-Kroll, 1999.
61
Em: Godio, 1989: 42.
42
Outras lideranças que também tinham participado da LADH migraram em seguida a
outras opções oferecidas pelo exercício da política profissional quando o peronismo chegou
ao poder (notoriamente foi o caso de Bramuglia). Dentro da UCR, enquanto algumas das
lideranças integravam a Concordancia, que permitiria ao general Justo ganhar as eleições
nacionais, outras, como o liguista Catáneo, confabulavam através de uma revolta armada que
dera fim ao ‘poder usurpador’. Um percurso rápido pelas lideranças radicais incorporadas à
LADH evidencia que elas não tinham então uma posição de dominância dentro do partido.
Sugiro que a participação de dirigentes e profissionais do direito que pertenciam a
estes partidos, notoriamente o Partido Socialista e a Unión Cívica Radicao, estava diretamente
ligada à possibilidade de criar espaços de atuação pública e profissional que não
necessariamente tinham consenso dentro dos seus partidos de pertença nem tinham muita
afinidade com as linhas de ação que estes definiam para seus militantes. Para lá dos partidos e
no interior destes frentes, estes profissionais do direito podiam levar à frente, com maior
facilidade, um tipo de engajamento público a partir do qual se fazer de um nome e ganhar
notoriedade pública, iludindo as limitações impostas pela subordinação à política partidária. A
focalização nestes espaços associativos permite identificar também os vínculos entre
impensáveis, como são os casos de advogados que pertencem à UCR que atuaram em defesa
de militantes do PCA, um partido que tinha qualificado ao governo de Yrigoyen como um
aliado do imperialismo britânico. Eludir as diretivas dos partidos fez do fato de pertencer a
estas associações, um ato de indisciplina que mereceu a aplicação de sanções, como se coloca
em evidencia no ‘chamado de atenção’ que receberam ‘os advogados filiados ao Partido
Socialista por prestar seus serviços profissionais ao assim chamado Socorro Rojo
Internacional’ (XXI Congreso ordinário: 932).
Estas sanções que verificam-se também para os demais períodos históricos
trabalhados nesta tese estariam dizendo alguma coisa a respeito do modo em que estas
associações intervinham na competência com os partidos políticos e com os sindicatos pela
representação dos interesses dos cidadãos. Neste contexto, pode-se entender a reação da
Confederación General del Trabajo (CGT) quando em 1933 criou-se, no interior do PS, um
‘Comité de Defensa Obrera’ integrado por deputados socialistas e advogados que assumiriam
a defesa legal dos operários detidos pela sua militância sindical. Segundo Godio “a CGT não
43
viu com boa cara a formação deste Comitê no entanto existia um comitê similar dentro da
organização sindical”
62
.
Estas sugestões não minimizam a importância de considerar as implicâncias desta
opção por um militantismo experto. Si, desde a perspectiva de Andrés Bisso, estes frentes
constituíam essencialmente alianças transitórias que se propunham substituir aos governos
reacionários e anti-democráticos entronizados no poder, não é menos verdadeiro que esta
explicação instrumental sobre os princípios de movimentação associativa, nada diz sobre as
particularidades desta atividade militante baseada no direito, cuja aparição não tem nada de
natural. As conseqüências da intervenção do direito como principio de adesão e representação
da atuação pública, tanto no campo da política quanto do direito, precisam ser explicitadas.
A conformação destes espaços supõe a participação de dirigentes políticos e
profissionais do direito nucleados ao redor de uma causa comum, a defesa dos direitos do
homem e que faziam uso de um saber experto, o direito, como ferramenta de intervenção no
espaço público. Estes espaços não são uma convocatória às forças da oposição por parte de
políticos profissionais, mas supõem, especificamente, a formação de um segmento da
profissão jurídica diretamente ligado à promoção e defesa de uma causa comum e coletiva, os
direitos do homem. Uma conjuntura histórica como a descrita nestas páginas possibilitou a
articulação entre um conjunto de projetos militantes associados à recuperação da
institucionalidade democrática com o valor outorgado por estes advogados e dirigentes
políticos a um saber profissional que lhes permitiu intervir na defesa das vítimas do Estado de
sitio e da lei marcial. Vou apresentar a continuação, as implicâncias que tem esta forma de
ativismo político.
62
Em: Godio, op.cit. Vale a pena fazer um breve resumo do modo em que os anarquistas perceberam este
engajamento dos parlamentares e profissionais do direito socialistas engajados com a causa dos trabalhadores.
Enrique Del Valle Iberlucea, por exemplo, era qualificado como “… inexperto de las realidades de la vida,
recién salido de la facultad, sin haber conocido del trabajo manual otra cosa que la faz referente a la ocupación
de las mucamas y cocineras cuyas manos habrá admirado a través de las persianas de su gabinete de hombre
estudioso” Em: La Protesta, 1094 cit. Em Suriano, 2000.
44
1. 4 Defender a causa através do direito
Enquanto a causa anti-fascista reunia aos setores da oposição ao ‘regime’, o que
distinguiu às organizações como o Comitê contra el Racismo y el Antisemitismo, o Comitê
por la Amnistía, o Socorro Rojo ou a própria LADH foi a reivindicação explícita da causa
pelos direitos do homem. Ao igual que seu par francês, a LADH teve, desde a sua criação, um
serviço de assessoria jurídica, o que a diferencia dos outros frentes da oposição, justamente
pelo fato de fazer uso de um saber profissional e experto como ferramenta de intervenção na
esfera pública.
O ativismo jurídico assumido pelos integrantes das associações civis mencionadas
anteriormente supõe a articulação de uma multiplicidade de espaços e ações. Advogar perante
aos tribunais era uma parte do trabalho que estes profissionais desenvolviam na defesa dos
casos judiciais. A conformação de serviços de assistência jurídica, a realização de comícios e
manifestações públicas e a organização de uma imprensa específica relativa aos processo
judiciais são peças chaves na conversão de um processo judicial numa causa pública. Estas
ações supõem a disponibilidade de um repertorio de recursos específicos para a defesa e para
o exercício da representação do caso perante o Estado.
Nos estatutos destas associações se encontram as lideranças nucleadas em torno a
propósitos comuns e recorrentes: alcançar a) a “coordenação para a ajuda moral, material e
jurídica dos militantes políticos e sindicais perseguidos”, b) a “anistia amplia de todos os
processados e condenados por delitos políticos ou sindicais ou por delitos comuns produzidos
em defesa de direitos essenciais”, c) a derrogação da lei 4144”, d) a ‘libertação imediata
de todos os presos sociais sem processo’ e f) ‘um tratamento adequado para os presos
políticos e sociais’
63
. O Comité Pro Amnistía de Presos y Exiliados Políticos de América
também se propunha os mesmos objetivos:
“a) obtener de los organismos legales la más amplia amnistía de los desterrados y
presos políticos, b) reivindicar el legítimo derecho de asilo garantizado por nuestra
Constitución y anulado por la policía, c) repudiar todo procedimiento violatorio de
las leyes y de los derechos del hombre, d) promover una corriente de opinión
63
Em: Defensa Popular, Año 1, 1936.
45
contra las prisiones ilegales, la Ley de Residencia, los confinamientos en las
cárceles, los prontuarios simulados, los actos de terror y tortura (...), e) propender a
un trato humano para los detenidos en movimientos de agitación, que los presos
políticos no sean considerados delincuentes del orden común y f). organizar la
ayuda jurídica y financiera a los exiliados y presos políticos y sus familias”
64
.
Se esta posição no espaço público permite compreender a recorrência de fines e
propósitos nos estatutos das diferentes organizações, o fato da sua enorme multiplicação e
segmentação é todo um paradoxo. As convocatórias à formação de um único frente não
tiveram o resultado esperado. O Comitê Antifascista, por exemplo, rejeitou o convite do
Comitê organizador do Congreso de Unificación de las Fuerzas de Ayuda y Defensa de los
Perseguidos por la Reacción sobre a base que: “... o comitê Antifascista Argentino tende a ser
um órgão especializado nos assuntos estritamente ligados com o fascismo, não se restringindo
à denuncia das repressões anti-populares mas estabelecendo na Argentina um centro de
estudos sobre o assunto”. Estas lutas, apresentadas na linguajem da causa anti-fascista,
supõem, na verdade, um posicionamento dentro deste espaço associativo e partidário. As
declarações públicas, as ações empreendidas contra o Estado, tem atuado também como
signos que instituem critérios de distinção ao interior do universo mais próximo de pares.
Esta listagem de programas de ação exprime com clareza o fato que a estratégia
reivindicada por estes profissionais da política para intervir no espaço público foi o direito. A
partir deste recurso, as demandas se colocam diretamente em relação ao Estado. Adverte-se ao
Estado sobre a necessidade de sancionar e derrogar leis, dispor a liberdade dos detidos e
garantir os direitos dos mesmos. Ao articular este tipo de ação pública, estes profissionais do
direito estão fazendo do direito uma modalidade de aceso militante ao Estado.
1. 4. 1 Os serviços de assistência jurídica
Uma leitura das noticias dos jornais da época vai me permitir reconstruir a
intervenção dos integrantes da Liga e dos integrantes do seus serviço jurídico nos conflitos
sindicais da época, como foi o caso da greve dos trabalhadores da construção iniciada no mês
64
Estatutos do Comité pro Amnistía de Presos y Exiliados Políticos de América. Em: Amnistía. Año 1. N°. 1.
Março 1936. Grifos meus.
46
de outubro de 1937. O sindicato reclamava melhoras salariais no entanto obteve como
resultado imediato a detenção de vários de seus líderes e a clausura da sede do Sindicato
Obrero de Albañiles (pedreiros). A Federación Obrera de la Construcción reclamou então o
fim da ‘repressão policial’, a libertação dos ‘companheiros detidos’ e denunciou a intenção do
presidente de deportar as lideranças estrangeirais a seus países de origem “pretendendo
entregar às ditaduras de Mussolini e Hitler aos mais abnegados dirigentes da construção (...) e
colocando um precedente perigoso contra as liberdades garantidas pela Constituição
Nacional”
65
.
Os trabalhadores – definidos pelo sindicato não por referencia a sua militância sindical
mas pela sua condição mais neutra de serem ‘homens de trabalho’ e ‘pais de filhos Argentinos
que contribuíram com o seu esforço ao engrandecimento do país’ – receberam o 19 de
outubro a aplicação da Lei de Residência pelo fato de considera-los uma ameaça às
instituições da República
66
. Guido Fioravanti, Secretário General de la Federación, Pedro
Fabretti, Pro-Secretário General del Sindicato de Albañiles, Emilio Fabretti, integrante da
Comisión Administrativa do Sindicato, José Pieruccioni, Pró-Secretário da Federación, Pablo
Mailing, Mario Pino e Felipe Beli foram submetidos às disposições do decreto 116.854,
assinado pelo então presidente da nação, o general Agustín P. Justo e pelo seu ministro do
interior, Dr. Alvarado. Uma vez que o decreto ganhou publicidade, as diferentes repartições
do sindicato entraram em greve convocando a toda a sociedade à luta pela ‘defesa dos direitos
lesionados nas pessoas dos trabalhadores detidos’. Os dirigentes da Federación consideraram
a aplicação da lei 4144 como uma arma de extorsão nas mãos da ‘reação’ para não negociar
suas demandas.
Pela causa da liberdade dos detidos se movimentaram diversos agentes e grupos. Uma
comissão de ‘mulheres dos prisioneiros’ foi criada para reclamar a igualdade no tratamento a
nativos e estrangeiros, uma igualdade baseada na condição de ‘pais’ dos deportados. Estas
65
Estes sucessos foram reconstruídos sobre a base das notas dos jornais publicadas pelo jornal Crítica durante os
meses de outubro, novembro e dezembro de 1937. Esta greve foi precedida por uma outra de mais de 90 dias em
1935. Então, se constituiu a Federación Obrera de la Construcción, um dos sindicatos mais importantes do país
(em 1940 tinha uns 50.000 afiliados). Em 1937, a Confederación General del Trabajo (CGT) se tinha
reconstruído com predomínio de socialistas e comunistas. A celebração do 1ero. de Maio de 1937, se constituiu
num verdadeiro ato de oposição ao governo de Justo com a participação de radicais, democratas progressistas,
socialistas e comunistas Em: L. A. Romero. 1994.
66
A lei 4144 chamada ‘de residência’ foi criada em 1902 e se manteve vigente no país até 1958 quando foi
derrogada por uma disposição presidencial de Arturo Frondizi, justamente um dos criadores da LADH. Para uma
análise desta lei, ver Oviedo, I. 1976 e Giorlandini, 1986.
47
comissões de parentes se constituíram no interior de associações como a LADH com o
propósito de contribuir a organizar a ajuda material aos presos. O Socorro Rojo teve uma
Comisión de Ayuda y Atención de los presos y sus familias
67
. A presença destas mulheres na
imprensa nacional fazendo apelo ao vínculo do sangue com os detidos é um elemento chave
na constituição do atual movimento pelos direitos humanos e que já pode ser identificado
nestes anos trinta, e também nos sessenta (capítulo 2) mesmo que ocupando um lugar de
menor destaque que na atualidade.
Delegações de partidos opositores e parlamentares nacionais reclamaram publicamente
“… pelo fim das perseguições, o respeito aos direitos do trabalhador estrangeiro, contra as
deportações, pela vida e pela independência da organização sindical’. A própria Federación de
la Construcción levou a frente ações tendentes a convocar o apoio à causa da opinião pública
internacional enviando pedidos de intervenção ao presidente dos EEUU, Franklin Roosveelt e
a seu ministro de relações exteriores Cordel Hull, entre outros.
Em todos os comunicados ligados ao conflito sindical é notório como este aparece
colocado, não como um assunto que envolve a um grupo particular mas a toda a sociedade no
seu conjunto porém, aquilo que se coloca em jogo é o valor da democracia e a existência
mesma da República. Quem se assumem como lideranças do conflito, articulam uma retórica
que enfatiza os ‘direitos elementares da classe trabalhadora’ com outra que faz apelo aos
‘direitos e garantias elementares consagradas pela Constituição Nacional a todos os habitantes
do país’. Na data em que os dirigentes foram embarcados a Itália (31. 10. 37), a Federación de
la Construcción divulgou um comunicado reclamando pelo ‘direito de viver como homens
livres num país que se diz livre mas que na prática o desmente com vergonhosas deportações
de trabalhadores contra os quais não existe nenhuma imputação concreta”. A greve finalizou
nos inícios de novembro. O sindicato obteve o aumento salarial que demandara junto com o
compromisso de libertar aos detentos, mas eles foram desembarcados no porto de Nápoles e
conduzidos diretamente a prisão dois meses depois.
Em seguida da deportação, o 20 de dezembro de 1937, se constituiu em Buenos Aires
a LADH. Entre aqueles que iriam integrar a sua comissão jurídica se encontravam os
advogados de defesa que tinham assumido a defesa dos trabalhadores deportados. Samuel
67
Em Socorro Rojo. Año 1, 2da época. Número 6. 10.06.1932.
48
Shmerkin, também defensor de Cantor, o líder sindical cuja detenção detalhei no inicio do
capítulo, junto com o advogado e integrante da LADH Faustino Jorge, apresentaram inúmeros
recursos de hábeas corpus em favor dos detentos assinalando que suas detenções importavam
uma violação ao ‘direito de greve’ e ao ‘direito de asilo’. A apresentação de recursos de
hábeas corpus se explica porque os dirigentes sindicais se encontravam ‘detidos a disposição
do Poder Ejecutivo Nacional’ ao invés de estar submetidos a processo
68
. Esta situação fazia
parte das disposições da lei 4144 que dispunha que a deportação era uma faculdade
presidencial que não requeria, então, de intervenção judicial. Segundo denunciavam os
advogados, os hábeas corpus eram sistematicamente rejeitados pelos tribunais ‘com
argumentos fútis’ já que se argüia que os acusados carregavam armas no momento da
detenção ou que eram residentes estrangeiros aos quais lhes correspondia a aplicação da lei
4144. Os defensores denunciavam ‘a burla que se faz aos acordos internacionais que
estabelecem o direito de asilo’.
Todos estes conflitos foram incluídos entre as matérias que fizeram parte do primeiro
número do periódico da LADH. Desde as páginas deste periódico, os profissionais do direito
assumiram a defesa pública dos deportados, denunciando a aplicação sistemática de decretos
de deportação de ‘estrangeiros indesejáveis’ assinados pelo general Justo ao longo de seus
seis anos de governo. Estas deportações foram consideradas atos que violentavam o direito:
comprometia-se o direito de greve, a defesa em juízo, o asilo e o direito internacional. Nestas
mesmas páginas iniciais exigia-se ao poder executivo o cancelamento dos decretos de
expulsão impostos contra os trabalhadores do Sindicato. O periódico reproduz uma carta
enviada pela LADH ao então ministro do Interior do governo de Ortiz, Dr. Diógenes Taboada,
expondo o ponto de vista da instituição sobre a lei de Residência:
“La Constitución Nacional garantiza la libertad de asociación e, implícitamente, el
derecho de reunión. Así, las actividades sindicales no pueden caer bajo ninguna
inculpación de delito ni cualificar como ‘no deseables’ a las personas que lo ejercen. En
consecuencia, no es posible justificar la aplicación de la Ley 4144 a personas que
68
Este recurso costumava ser a primeira ferramenta utilizada pelos advogados defensores para localizar ao detido
e ganhar algum controle sobre suas condições de detenção, especialmente pela prática das torturas que
realizavam-se nas próprias delegacias da policia.
49
desarrollan actividades sindicales porque esto implicaría vulnerar los principios
sustanciales de nuestra Carta Magna”
69
.
Os advogados que militavam nestas associações denunciavam publicamente tanto as
ações repressivas do regime quanto as dificuldades as quais estavam submetidos no exercício
do seu próprio trabalho. Segundo o enunciam em Defensa Popular, “... é tão grande a
arbitrariedade que reina nas esferas policiais e judiciais que não é possível ter uma listagem
completa e acurada dos libertados e dos que ainda continuam nas cadeias”
70
. Também
denunciaram as argúcias implementadas pelo Estado para dificultar a defesa: com o propósito
de ‘desorientar’ ao defensor, eram freqüentes os traslados de presos ou o fato de ser tirados de
sua jurisdição: “Não existem fronteiras para o regime, os presos sociais são tirados da sua
jurisdição com o deliberado propósito de colocar obstáculos à atuação dos juristas do Socorro
Rojo Internacional”
71
. Nestas denuncias se apresentavam também os casos em que os mesmos
advogados eram submetidos a perseguições e detenções como aconteceu com Carlos Sánchez
Viamonte, Alfredo Palácios, Lisandro de la Torre, Mario Bravo, Gregório Aráoz Alfaro,
Arturo Frondizi e Lydia Lamarque, entre outros.
Conforme se desprende das denuncias publicadas na imprensa destas associações
civis, as lideranças políticas ou sindicais normalmente eram detidas por simples
contravenções ou chegavam a ser acusadas judicialmente por delitos de ‘instigar à rebelião’
por causa da manifestação pública de suas opiniões, por ‘atentar contra a liberdade de
trabalho’ nos casos em que tivessem participado de uma greve ou por ‘associação ilícita’ pelo
fato de pertencer a um partido político ou sindicato. No andamento dos processos, os
advogados denunciavam a detenção arbitraria, a falta de comunicação, a invenção de
sumários por parte da policia, os seqüestros, as invasões ilegais de residências, os roubos
produzidos durante as invasões, os traslados de presos fazendo uso de meios privados de
transporte (caminhões do frigorífico Anglo), a situação vivida pelas pessoas que
‘desaparecem sem deixar sinais e aparecem meses depois torturadas’, as condições inumanas
de detenção, os simulacros de fuzilamento, a obrigação de assinar declarações de suicídio, ou
o uso da ‘picana electrica’, etc. Nesta enumeração chama a atenção a similitude das ações
69
Una iniciativa de la Liga” Em: Derechos del Hombre. Año 1, N°. 1. Junio 1938. pág. 2. Nas páginas do
periódico Amnistía se denunciava a Uriburu pelas ‘deportações massivas ’ de trabalhadores e por fazer da Lei de
Residência uma sorte de “Estado de Sitio permanente contra os estrangeiros” Amnistía. Año 1. N°. 1. 1936.
70
Em: Defensa Popular. Año 1, N°. 8, 1936.
71
Socorro Rojo. Segunda Época, Año 1. 10.06.1932.
50
denunciadas por estes advogados e as ações denunciadas pelos advogados que atuaram na
defesa dos direitos humanos nos anos 80. Inclusive, o chamado ‘pilhagem de guerra’, quer
dizer, o saqueio das residências dos detido-desaparecidos pelas forças armadas também era
denunciado pelos advogados dos anos 30: “Sabia o senhor Ministro do Interior que os agentes
da Sección Especial se levam mais objetos dos ‘necessários’ quando fazem uma invasão de
domicilio (...) que são grossos, insultam e batem a trabalhadores, mulheres e filhos (...)?”
72
.
Nestas ações todas, os advogados engajados com a causa dos direitos do homem
reivindicavam a condição de ‘presos sociais’ ou ‘sindicais’ para os seus defendidos. Esta
categoria ‘presos sociais’ distinguia a seus defendidos dos simples ‘delinqüentes comuns’.
Nesta perspectiva, os integrantes do Comitê pro Amnistía de Presos y Exiliados Políticos de
América asseveravam: “... o detento é um preso em guerra de idéias mas jamais um
delinqüente e não pode ser tratado como tal”. Este universo classificatório compreendia
também a distinção entre a categoria ‘preso social’ e ‘preso político’. Esta última inclui a
quem, sem formar parte da classe operária, eram perseguidos ‘por expor suas idéias sociais e
políticas’. Todo eles, os ‘presos políticos’ e os ‘presos sociais’ quedavam incluídos sob a
categoria ‘vítimas da reação’. Desde o ponto de vista do Estado, as lideranças políticas e
sindicais detidas eram classificadas como criminais’. O reconhecimento destas categorias
fazia parte de uma luta mais abrangente por definir as formas legítimas de fazer a política na
Argentina dos anos trinta. Nestes combates, os profissionais do direito aparecem dotados de
uma competência técnica específica que os coloca no centro destas lutas de classificação.
Entre as ferramentas as quais faziam apelo os advogados de defesa se encontra a
possibilidade de transformar a instancia de julgamento oral num tribunal público a partir do
qual expor diante de um auditório às provas que demonstram a ilegitimidade do ‘regime’. Esta
estratégia foi utilizada no caso de um grupo de militantes acusados de professar ‘idéias
comunistas’. Neste julgamento, a equipe de advogados defensores realizou, em primeiro
lugar, a defesa política da causa dos acusados. Num segundo momento, se procedeu a sua
defesa técnica.
Estas duas instancias foram levadas a frente por distintos profissionais. Os advogados
que intervieram, no primeiro lugar, o fizeram explicitando a validade da causa pela qual
72
Em: Contra-fascismo. Año 1. Nro. 2. Agosto-septiembre de 1936.
51
militavam os acusados mediante um discurso inflamado em defesa do comunismo e de
denuncia do regime opressor. Esta denuncia incluiu a impugnação do próprio julgamento e do
tribunal acusatório por se tratar de: “…um simples ato de violência ordenado pelo Poder
Executivo e obedecido pelo juiz...”. Um destes advogados era Lydia Lamarque, uma das
primeiras advogadas do pais e integrante do serviço jurídico do Socorro Rojo. Finalizada esta
primeira fase, um advogado e jurista de prestigio, neste caso o jurista especializado em direito
penal e quadro da UCR e da LADH, José Peco, realizou a ‘defesa técnica’ dos imputados por
associação ilícita. Nesta segunda instancia da defesa, não se fizeram presentes elementos do
debate político. Pelo contrario, a neutralidade necessária ao exercício desta segunda função
foi salientada, o que se adverte nas palavras finais do alegado de Peco: ao se referir aos
imputados, ele destacava: “… trata-se de pessoas cuja grande honra admiro a despeito das
diferencias teóricas
73
. No caso de um companheiro de partido e integrante da LADH, o
mesmo Peco optou por utilizar esta estratégia de defesa política. Foi no processo ao Tenente
Coronel Atílio Cattáneo, imputado e preso por conspirar contra o governo de Justo. Neste
caso, a argumentação da defesa não foi técnica senão que esteve baseada na denuncia da
inconstitucionalidade do governo de Uriburu, surgido de um golpe de Estado, e na
ilegalidade do governo de Justo, nascido de comícios fraudulentos
74
.
A distinção entre estes tipos de defesa não é uma invenção nativa. Reconhece como
antecedente principal as recomendações formuladas por Lênin a um grupo de ‘camaradas’
presos em Moscou
75
. A defesa ‘política’, que consiste em impugnar o tribunal acusador e
defender a causa dos militantes é uma estratégia de uso recorrente entre os advogados que
pertencem ao partido comunista local e internacional. Um caso considerado modelar deste
tipo de defesa foi a que realizou o próprio Dimitrov perante os tribunais alemães pelo suposto
incêndio do Reichstag. A importância que os dirigentes locais do PCA e do Socorro Rojo lhe
atribuíram a este processo se evidencia no fato de ter sido reproduzido na integra nas ginas
do seu periódico. A difusão da própria atuação de Dimitrov evidencia que esta imprensa não
tinha como único propósito ‘informar’ e ‘denunciar’ mas também o de apresentar modelos
73
Em analogia com o caso exemplar de defesa política de Dimitrov, o periódico do Socorro Rojo reproduziu
também os alegados dos advogados defensores que intervieram nesta causa. Em: Socorro Rojo Internacional.
Octubre de 1932.
74
Uma reprodução do seu alegado pode-se encontrar em Atilio Cattáneo, 1939.
75
Em: Lenin “A letter to Y.D. Stasova and to the other cofrades in prison in Moscow”. 19. 01. 1905. Em:
‘Marxists Internet Archive’:
www.marxists.org/archive/lenin. O uso desta ferramenta na defesa é um indicador
da participação destes advogados defensores locais em redes internacionais. Como vai se ver no capítulo 2, este
recurso também estava disponível para os defensores de presos políticos dos anos sessenta e setenta,
evidenciando não só a importação desta estratégia mas também sua transmissão geracional.
52
exemplares de conduta. Consciente do valor do próprio alegado, no qual Dimitrov impugnou
o tribunal com dispensa de todo tipo de advogado, sobretudo do advogado de oficio do Estado
alemão, o incriminado afirmava: “Admito que a minha conduta perante o tribunal possa
servir de exemplo para todo acusado comunista”.
O engajamento com a causa antifascista não se restringia à atuação do advogado de
defesa nos estrados judiciais. A causa do seu defendido se integrava a uma causa maior que
supunha levar a frente uma série complexa de tarefas extra-judiciais que requeriam de tempo
e de organização, como se fez evidente no caso de José Persicoff, dirigente comunista a quem
tinha-se aplicado a lei 4144 em 1938: nas cartas entre o deportado e seu pai se coloca em
evidencia como, ao ser consultado por este, seu advogado defensor lhe indica as melhores
estratégias (estradas, etc.) de retornar à Argentina desde o seu exílio em Montevidéu e de
trabalhar sem ser incomodado (local de residência, atividade, redes de contato, de proteção)
76
.
O engajamento na defesa de presos políticos tinha a marca da urgência que obrigava muitas
vezes a ações que excediam completamente a disposição ao trabalho de um profissional do
direito que não estivesse comprometido ativamente com a causa do seu defendido: no caso da
deportação do intelectual boliviano Tristán Maroff, ao ser rejeitado o recurso de hábeas
corpus apresentado pelo seu advogado defensor, o liguista Rodolfo Aráoz Alfaro enviou as 12
horas da noite, e como último recurso desesperado, um telegrama ao endereço particular do
próprio ministro do interior. Em seguida, quando o trem transportando a Maroff a Bolívia
andava os últimos quilômetros dentro do território argentino, Aráoz Alfaro apresentou um
novo recurso de hábeas corpus no estado de Jujuy, a mais de 1500 km de distancia de Buenos
Aires. Esta disponibilidade para assumir a causa dos defendidos diante situações de
emergência que requerem de ações rápidas e decididas (a metáfora médica forma parte do
repertório retórico dos advogados) vai ser especialmente destacada também pelos
profissionais do direito nativos e estrangeiros que vão ser analisados nos seguintes capítulos.
Na tarefa de assumir este tipo de defesas se convocava a importantes figuras da
política nacional e internacional, integrantes alguns das próprias associações de defesa dos
direitos do homem, para assinar ‘documentos’, ‘abaixo-assinados’ ou telegramas solicitando e
apresentado pedidos de audiências a integrantes do poder executivo ou embaixadores
estrangeiros, com o propósito de lhes informar da situação dos detentos e exigir a sua
76
Em: Periódico Defensa Popular. Año 1, N°. 1. 1936.
53
libertação. Os abaixo-assinados, que convocavam a ‘lutar pela liberdade dos processados’ e a
organizar ‘comitês’ e frentes solidários’, estavam assinados por ‘doutores’ integrantes dos
comitês, comissões, organizações e ligas. Alguns destes também estavam assinados por
dirigentes de partidos opositores, representantes de centros de estudantes universitários,
escritores e intelectuais
77
. Estes manifestos e abaixo-assinados incluíam, ora os nomes de
consagrados, ora outros menos celebres. Para dar maior poder as assinaturas, costumava-se
colocar ao lado informações sobre os diplomas, por exemplo: “Dr. Carlos Sánchez Viamonte,
advogado” ou “Dr. Alfredo Palácios, professor universitário”. Uma revisão dos inúmeros
documentos deste tipo reproduzidos pela imprensa evidencia com muita força que trata-se de
um grupo relativamente restrito de pessoas que tem uma estreita proximidade. Quem assinam
são recorrentemente as mesmas pessoas.
No interior destes serviços jurídicos, se compilavam também minuciosos relatórios
sobre os distintos métodos de repressão implementados pela policia. Estes documentos
reproduziam também listagens com os nomes das ‘vítimas da reação’, todos eles qualificados
como ‘incompletos’ ou defeituosos’, dada a falta de informação oficial sobre a identidade de
cada uma das vítimas. A tarefa de completar, aperfeiçoar e ampliar as listagens se converteu a
procura de novos dados e a confecção de novos listagens, num trabalho constitutivo destas
mesmas associações: esta informação era imprescindível na hora de apresentar provas à
justiça, denunciar aos perpetradores da violência, demandar ao Estado e convocar a comícios
públicos em homenagem aos presos políticos.
78
Elaboravam-se também listagens com os
nomes de juizes, diretores de prisões e torturadores implicados nas causas dos seus
defendidos. Estes relatórios eram publicados pela imprensa das associações ou apresentados,
inclusive, perante ao parlamento nacional, como o fez o Socorro Rojo através da
representação da bancada socialista na ocasião na qual o Ministro do Interior Melo se
apresentou pessoalmente perante os parlamentares para fazer a defesa da continuidade do
77
Ver em anexo N˚ 2, pág. 112, uma reprodução da convocatória a um comício ‘contra a invasão nazi’ realizado
pelo Comitê contra o Racismo e o Anti-semitismo da Argentina, onde pode-se apreciar as formas de
apresentação destes profissionais do direito. Em: Periódico: Alerta! Contra el Fascismo y el Antisemitismo. Bs.
As. N° 1. 21.09.1935.
78
Ver no Anexo 3, pág. 113, a reprodução de um destes listagens aparecido no periódico Defensa Popular.
Entre os nomes incluídos encontra-se o de Antonio Cantor, o dirigente comunista detido que fora descrito no
inicio deste capítulo. Fazer listagens, completar-los, ampliar-los e depurar-los vai ser uma das tarefas chaves das
associações de direitos humanos que vão se constituir nos anos 80s e que vão ser analisadas no capítulo 3. A
participação de associações locais e internacionais de juristas nos anos 80 derivou num esforço enorme por
receber as denuncias, localizar casos não denunciados, compilar dados, unificar distintas listagens, distribuí-las
tanto dentro quanto fora do território, etc. Uma análise do processo social envolvido na tarefa de montagem das
listagens de vítimas do terrorismo de Estado pode-se ver em Vecchioli, 2001.
54
Estado de sitio (1936). A retórica utilizada nestes documentos coloca a ênfase na
‘objetividade’ das denuncias apresentadas diante da opinião pública através de ‘casos’ e de
‘cifras’ de detidos e perseguidos pelo regime. Trata-se de documentos baseados em
‘observadores imparciais’ e em ‘fontes’ pessoais, diretas e autorizadas.
79
Significativamente,
esta mesma retórica vai definir também o tom dos ‘relatórios’ elaborados por advogados
engajados com a causa dos direitos humanos que vão ser examinados nos restantes capítulos.
Melo é apresentado alternativamente, nesta matéria do jornal, alternativamente como
‘manhoso’, como ‘advogado de grandes empresas de navegação’ e como ‘professor da
Faculdade de Direito’: “...esta prática lhe facilita a adoção de uma mascara de ‘homem
decente’, de professor de ‘firmes convicções democráticas e liberais’”
80
. Outros profissionais
do direito e acadêmicos que ocupavam postos chaves no governo de Justo também eram
objeto de acusação, como no caso de Castillo, ministro e professor da faculdade de Direito
que “... desde a sua cadeira atacava aquilo que ele chamava ‘uma amplitude demais dos
benefícios das leis vigentes, pondo como exemplo de regulamentação [das leis trabalhistas]
nada menos do que as leis da Itália fascista”.
81
A resposta de Melo ao relatório apresentado pelos parlamentares socialistas foi
amplamente difundido pelo Socorro Rojo, acusado de ser uma associação de ‘proteção aos
delinqüentes’. Diante dos questionamentos sobre o uso de práticas ilegais na repressão, teria
declarado: “Sobe a tirania de Rosas, aos presos políticos se lhes tirava fatias das costas e hoje
não fazemos isso”.
82
Na sua apresentação diante ao parlamento, Melo tinha afirmado que o
direito de reunião tinha sido amplamente respeitado, que os instrumentos de tortura eram
coisa do museu, que os detentos estavam nas mãos de juizes e que o Estado de sitio não tinha
suprimido nenhuma liberdade nem nenhum direito, só o de atentar contra a Constituição.
Num perfeito contraponto com a atuação de seus oponentes, Melo fazia referencia às
leis de EEUU e acompanhou sua apresentação com uma listagem de vítimas de ‘atentados
comunistas’ junto com uma listagem dos responsáveis. Feita esta acusação, os advogados
79
Em: Socorro Rojo. 1936.
80
Em: Defensa Popular. Año 1. N° 8, 1936.
81
Em: Defensa Popular, Año 1, N°. 8, 1936.
82
Segundo se reproduz no discurso que pronunciara o liguista e senador pelo socialismo Mario Bravo. Em:
Amnistía. Año 1, N° 1. Marzo 1936.
55
integrantes das associações de defesa dos presos políticos apresentaram uma “… resposta
pública em salva-guarda de nosso prestigio pessoal e profissional...”:
“Nosotros abogados de las más diversas ideologías no podemos dejar de protestar
(…) mientras a nosotros se nos coarta el libre ejercicio de la profesión, hecho que
vulnera las más elementales garantías de nuestra Constitución (…). Mientras a
nosotros se nos coarta ese derecho hasta con el encarcelamiento de varios de los
suscriptos, los defensores de tratantes, expendedores de drogas y fabricantes de
sucesiones gozan de toda clase de consideraciones y hasta de privilegios” (ibidem)
Assinaram esta resposta Rodolfo Aráoz Alfaro, Faustino Jorge, José Peco y Samuel
Shmerkin. Todos eles se reencontrariam poucos meses depois na assembléia de criação da
LADH.
Estas intervenções indicam que o parlamento constituía para estes advogados um outro
espaço possível de luta. Assim, o deputado e liguista Leônidas Anastasi apresentou no
parlamento nacional um projeto de modificação da lei de Residência que propunha ‘mitigar o
poder absoluto do poder executivo’ propondo a intervenção da justiça federal e criando a
possibilidade de recusar os decretos presidenciais de deportação por parte dos afetados junto
com a obrigação de pôr a disposição do juiz às pessoas detidas pela aplicação da lei. Este
projeto, no seu artigo 4°, dispunha a impossibilidade de decretar a expulsão de estrangeiros
pelo simples exercício de atividades sindicais ou por manifestação de opinião nos casos em
que os trabalhadores estivessem casados com mulheres argentinas ou fossem pais de filhos
nascidos no território nacional. A ocupação deste espaço evidencia as aspirações destes
advogados de participar da política profissional junto com o valor atribuído por eles a uma
estratégia reformista de mudança social, na sua dupla condição de profissionais do direito e da
política.
83
Um outro espaço chave na difusão dos detalhes destes casos eram os comícios. A
ocupação das ruas se constituiu num espaço aonde exercer a defesa da causa dos presos
políticos. Parafraseando a Hilda Sábato, foi ali “…onde se levantou o tribunal da opinião
pública”. A importância deste tribunal foi destacada pelo advogado e liguista Carlos Sánchez
83
Como vai se ver no capítulo seguinte, esse caminho de ingresso à política profissional estava fechado para os
advogados defensores de presos políticos.
56
Viamonte durante o desenvolvimento de um processo contra um grupo de mulheres operarias.
Sánchez Viamonte, o advogado defensor, convocou na sua cidade natal, La Plata, a um
meeting com o propósito de “… exercer pressão na decisão judicial”.
84
A participação nestes
comícios, meeting e reuniões populares e palestras era uma atividade central do exercício
militante que estes advogados faziam do direito. Como pode-se observar na reprodução de um
cartaz de rua do Comitê contra el Racismo y el Anti-semitismo, se reuniam nestas ocasiões
advogados e dirigentes de distintas associações civis: os liguistas Aráoz Alfaro, Mario Bravo,
Arturo Frondizi participavam em meeting junto com dirigentes do Comitê Argentino contra el
Racismo y el Anti-semitismo, como Emilio Troise ou com integrantes da Organización
Popular contra el Antisemitismo, como Marcos Meeroff.
85
Estas ações supunham uma redefinição do perfil do advogado clássico, restringido a
advogar perante aos tribunais. E supõem, também, uma concepção mais abrangente da
participação política que não está restrita à atuação dentro dos espaços costumeiros da política
como os partidos e os sindicatos. A retórica centrada na vida republicana, os direitos
constitucionais e liberdades cívicas apontam a se colocar por cima dos diferentes interesses
que dividiam aos partidos e sindicatos. Aspirando a fazer de alguns processos uma causa de
interesse geral, as convocatórias a diversas manifestações e comícios destacavam a
pluralidade de oradores e a comunhão de todos numa mesma causa. Os profissionais do
direito ocupavam o centro destas tribunas, em tanto dispunham dos recursos apropriados para
fazer-lo (conhecimento profundo dos processos, capacidade de fazer uso público da palavra,
etc.). Como assinala Hila Sábato, esta ocupação das ruas da cidade está ligada à importância
da massiva imigração européia. Muitos imigrantes traziam uma experiência associativa
previa
86
. Os termos utilizados por esta autora para se referir à constituição da esfera pública a
finais do século XIX podem ser útil também para o caso apresentado neste capítulo:
“… se trataba de una forma de acción que pretendía representar el interés colectivo,
expresar a la opinión pública y colocarse, por tanto, fuera de las diferencias
partidarias que potencialmente dividían a la población de la ciudad. Se buscaba
84
Em: Carlos Sánchez Viamonte, 1971.
85
Ver Anexo N° 4, pág. 115. Em: Contra-Fascismo.
86
Este ponto vai receber um tratamento mais em detalhe na seção “uma causa internacional”.
57
materializar así al público: heterogéneo en su composición social, étnica, cultural
pero coherente y unificado en su actuación frente a determinadas causas”.
87
A capa do Socorro Rojo do mês de outubro de 1934 condensa muito bem o modo de
representar a causa anti-fascista, tal como ela foi descrita nesta seção: uma caricatura no
centro da capa reproduz a imagem do Ministro do Interior Melo ilustrando o propósito central
destas associações: fazer apelo ao Estado. Melo aparece situado diante à Seção Especial de
Luta contra o Comunismo, considerada pelos advogados defensores uma verdadeira ‘câmara
do terror’, principalmente pela aplicação de torturas aos detentos. A capa reproduz, também,
uma das palavras de ordem da época referida à aspiração de conseguir a condena aos
‘torturadores’. Ela aparece significativamente enunciada num cartaz levado pelos braços do
‘povo’ reunidos nas ruas. Todas estas cenas se desenvolvem no marco de um meeting em
defesa ‘dos direitos dos trabalhadores’.
88
1. 4. 2 A Imprensa dos direitos do homem
A organização destes periódicos e boletins, que reproduziam as denuncias sobre o
exercício da repressão do Estado, era uma parte central do trabalho destes profissionais do
direito que também definam-se a se mesmos como ‘jornalistas’ e ‘intelectuais’. Como pode-se
observar na enumeração das publicações que seguem, estes advogados consagraram boa parte
de seus esforços militantes a organizar, financiar e manter uma imprensa desde a qual difundir
as suas denuncias e opiniões. Entre as publicações que pude identificar no meu trabalho
dirigidas pelos advogados defensores de presos políticos se encontram: o Boletín del Comité
Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo (1938), Alerta! Contra el Fascismo y el
Antisemitismo (1935-1940), da Organización Popular contra el Antisemitismo, Derechos del
Hombre, da Liga, Contra-Fascismo, do Comité de Ayuda Antifascista (1936), Amnistía, do
Comité Pro Amnistía de Presos y Exiliados Políticos de América e Defensa Popular por las
víctimas de la reacción (1936), do Comité do mesmo nome
89
.
87
Em: Hilda Sábato. 1998: 275.
88
Ver Anexo N° 5, pág. 116. Em: Socorro Rojo. Octubre 1934.
89
Esta imprensa era financiada, em muitos casos, pelos próprios advogados defensores. Este é o caso dos 3000
exemplares de Amnistía que deram luz graças a doações pessoais de Mario Bravo, Leônidas Anastasi, Faustino
Jorge y Juan Goldstraj, entre outros. Em alguns casos, se publicavam em outras nguas, como o Socorro Rojo
que tinha uma versão em espanhol e uma outra em idish. Uma das formas ‘legais’ de perseguição a este tipo de
publicações era a de submeter-las a processos por ‘desacato às autoridades’. A proscrição ao Partido Comunista
58
Esta imprensa se ocupava caracteristicamente de reproduzir documentos relativos à
ações repressivas a escala nacional e internacional. Nas suas páginas se transcrevem e
recolhem listagens de presos e denuncias sobre os casos de civis ‘fuzilados sem processo’,
‘condenados pelos conselhos de guerra’, ‘confinados’ em cadeias sob condições inumanas
como as de Ushuaia (Tierra del Fuego), ‘deportados’, ‘expulsos’ da universidade, tanto na sua
condição de estudantes quanto de professores e suspensos nas suas funções pelo encerramento
de sindicatos, universidades e periódicos por causa das suas ‘idéias políticas e sociais’. Em
volta a estas figuras se definia a categoria ‘vítima da ditadura’, o que incluía também os casos
de ‘advogados defensores confinados em Ushuaia pelo fato de exercer o direito à defesa’.
90
Estas publicações contribuíam ao processo de reconhecimento da condição de ‘vítimas’ de
seus defendidos e da legitimidade das suas causas junto com a legitimidade dos seus
advogados e das associações civis que eles integravam. Também se reproduziam nas suas
páginas desde passagens eruditos de livros publicados por ‘eminentes’ advogados penais
como José Peco e sentenças do Superior Tribunal de Justiça até breves descrições dos
detentos, de suas condições de detenção, detalhes sobre o desenvolvimento dos processos
judiciais (antecedentes, tipos de acusação, procedimentos, sentencias) documentos, abaixo-
assinados e listagens de assinaturas de adesão a diferentes convocatórias. As tentativas de
reforma do Código Penal inspiradas no fascismo europeu ou as anulações de leis de proteção
ao trabalho eram explicadas e detalhadas nestes periódicos. Publicavam-se, também, breves
ensaios sobre o fascismo, cartas dos detidos, cartas das sedes centrais das organizações de
direitos humanos as quais estavam afiliados e anúncios informando da realização de meeting,
palestras e comícios.
Em outras oportunidades, os detalhes das ‘penas suportadas como conseqüência das
terríveis perseguições pessoais, judiciais e policiais’ eram relatadas pelos próprios detentos,
como é o caso do livro nomeado significativamente “Entre Rejas (grades)”, publicado pelo
Teniente Coronel do Estado Mayor de las Fuerzas Armadas e integrante da LADH, Atílio
Cattáneo, quem fora acusado de associação ilícita como conseqüência de ter organizado
seja, provavelmente, o motivo que explique a ausência de assinaturas na maior parte das matérias publicadas
pelo Socorro Rojo. A única assinatura que aparece é a de seu mais importante dirigente, um quadro do PC
exilado na URSS.
90
Este foi o caso, entre outros, do Teniente Franco, advogado de oficio do dirigente anarquista Severino Di
Giovanni, fuzilado junto com um outro importante dirigente anarquista, Pedro Scarfó. O advogado foi demitido
do exército e deixado em prisão em Ushuaia. Em: Alerta! Contra el Fascismo y el Anti-semitismo. N° 1, 1935.
59
levantamentos armados contra o regime de facto
91
. Estes relatos se ofereciam não como
‘prova’ ou ‘testemunho’ da probidade do acusado mas também como escritos acusatórios
contra os próprios tribunais acusadores. A probidade do defendido se continuava na probidade
do defensor, José Peco. O livro ocupa-se também de reproduzir na íntegra o alegado político
realizado por este advogado defensor.
Desde as páginas do livro, Cattáneo reclamava a realização de um processo contra os
responsáveis civis e militares do governo instituído em 1930 ou que não tivessem resistido
devidamente à rebelião, segundo dispõem ‘esquecidos’ artigos do Código Penal. “O
levantamento de setembro de 1930 e a atitude de todos os funcionários que tiveram ingerência
nele deve ser pesquisada para que as gerações presentes e futuras conheçam a verdade
histórica (ibidem). Até que isso seja feito, a imprensa escrita vai se ocupar desta missão’.
A constituição de uma comissão de imprensa dentro do Socorro Rojo dedicada
especificamente à “...missão de confeccionar e fazer chegar aos jornais grandes e pequenos,
agencias noticiosas, periódicos dos trabalhadores e jornais estrangeiros, toda classe de noticias
relacionadas com os presos sociais” é um indicador da importância que tinha a imprensa para
estas associações. Os organizadores desta iniciativa definiam uma série de estratégias para
‘conseguir que os jornais que tem interesses criados’ publiquem as noticias e comunicados
enviados pela comissão do Socorro Rojo. Aconselhava-se que as matérias foram relatadas
‘segundo a mentalidade ou orientação do periódico ao qual vai se solicitar a publicação da
mesma’. As matérias deviam ‘variar de estilo e tom’, cuidando de ‘não sacrificar a publicação
por alguns termos’ e, no possível, deviam-se acompanhar de fotos e entrevistas a pessoas ‘de
arraigo ou conhecidas’.
92
Desde a tribuna que era a imprensa se cumpria também com a tarefa de identificar e
denunciar aos opositores: outros advogados que, na sua condição de juizes, professores de
direito, ministros ou, inclusive, assessores letrados de empresas privadas, eram considerados
responsáveis da crítica situação que vivia o país. Acusava-se a advogados ‘100% argentinos’
de atuar em defesa de empresas estrangeiras. Eles, pela sua vez, manifestavam ironicamente a
sua ‘surpresa’ de que advogados ‘argentinos’ assumissem a defesa de comunistas.
93
91
Em: Cattáneo, 1939.
92
Em: “Cómo debemos desarrollar nuestra agitación en la prensa del país”. Socorro Rojo. Grifos meus.
93
Em: Socorro Rojo. “Bilbao, víctima de la ‘justicia’”. 1936.
60
O engajamento militante destes advogados com a causa de seus defendidos incluía,
então, a realização de um conjunto diverso de ações extra-judiciais como a redação de
manifestos, a publicação de abaixo-assinados, a elaboração de listagens de vítimas, a
convocatória a figuras de prestigio internacional, a elaboração de projetos parlamentares, a
participação em comícios e a organização de periódicos e boletins. Como se evidencia nesta
citação reproduzida do Socorro Rojo, estas ações eram críticas em quanto: “… nos tribunais
não existe nenhuma garantia de justiça para Agosti e os demais processados (...) [Por isso] sua
causa está nas mãos do povo trabalhador e oprimido. Somente o grande júri da população (...)
pode garantir um veredicto de liberdade... “
94
.
Sugiro que a ação desenvolvida através destes serviços jurídicos e da publicidade dos
casos através da imprensa eram o ponto chave na hora de interpelar à opinião pública. Através
desta atividade toda, estes militantes e profissionais do direito, ao tempo que instituíam um
processo judicial mediante a apresentação de diversos recursos perante os tribunais,
procuravam transformar a causa individual numa causa pública e coletiva mediante a
realização de ‘comícios públicos’ ou ‘campanhas cívicas’ que visavam procurar o apoio da
opinião pública. Neste sentido, as próprias associações foram pensadas como ‘tribunais’ desde
os quais levar a frente a defesa da causa dos direitos do homem.
95
Compreender desde um ponto de vista sociológico este engajamento militante
significa tentar vincular a compreensão desta conjuntura com a análise das propriedades
sociais dos agentes que se interessaram nesta causa, suas trajetórias sociais e políticas e os
espaços sociais pelos quais se deslocaram e que possibilitaram que, indivíduos com interesses
comuns cristalizaram suas demandas de novos princípios cívicos e morais em volta a um
conjunto de organizações civis. Sem esta analise, o surgimento deste tipo de associações
quedaria explicado como um resultado direto da repressão do Estado posterior ao golpe de
1930. Para dar conta das condições de possibilidade de um compromisso deste tipo vou
apresentar a continuação uma descrição de quem foram sociologicamente este conjunto
heterogêneo de agentes sociais que se reuniu para reivindicar a causa pelos ‘direitos do
homem’.
94
Em: Socorro Rojo. Grifos meus.
95
Esta ação toda instituía a estes profissionais do direito como ‘jornalistas’, ‘palestrantese ‘intelectuais’. Estes
eram os atributos que também compunham a figura do advogado engajado com a causa. Este ponto vai ser
desenvolvido em detalhe numa outra seção deste capítulo: “a inteligência e a ilustração como armas de luta”.
61
1. 5 Militantes do direito
Um percurso pelas biografias dos integrantes da LADH revela, em primeiro lugar, que
seus quadros dirigentes se recrutavam essencialmente do mundo profissional. Entre as
lideranças não se encontram nem comerciantes nem operários, a despeito que muitos deles se
identificavam com as suas causas e atuassem política e profissionalmente muito próximos de
eles. Trata-se de um universo dominado pelos profissionais e, mais especificamente, pelos
profissionais do direito (82% dos seus membros).
96
. O 50% dos seus integrantes exercia a
profissão de advogados atuando como assessores letrados de sindicatos de trabalhadores e
adquiriram notoriedade pública como defensores de presos políticos e sindicais, entre eles, se
destacam Alfredo Palacios y Carlos Sánchez Viamonte. Um 40% eram professores
universitários, entre os que se encontravam A. Orzábal Quintana, José Peco, Leônidas
Anastasi, Alfredo Palácios y Mario Bravo, na faculdade de Direito de Buenos Aires e Carlos
Sánchez Viamonte, José Peco e Juan Atílio Bramuglia na Faculdade de Direto de La Plata. O
75% dirigiam revistas ou publicações periódicas em direito como Leônidas Anastasi, criador
da Revista Jurídica Argentina La Ley (1936) e de José Peco, criador da Revista Penal
Argentina. A primeira delas continua existindo até hoje e se transformou na publicação
especializada mais importante do país.
1. 5. 1 Diplomar-se em direito
Os quadros dirigentes da Liga se formaram principalmente na Faculdade de Direito de
Buenos Aires e de La Plata entre 1890 e 1910, numa época em que se começavam a introduzir
importantes reformas na vida universitária. A mudança mais importante tinha-se produzido
apenas um quarto de século antes, ao se criar em 1874 a Faculdade de Direito da Universidade
de Buenos Aires em substituição do Departamento de Jurisprudência. Em 1906 se produziu,
também, uma importante reforma nos estatutos da Faculdade que outorgou o governo desta ao
96
Entre os não advogados encontram-se um médico, dos engenheiros civis, um escritor e um tenente coronel
(Atílio Cattáneo).
62
corpo de professores. Esta ultima reforma surgiu, em parte, das demandas do incipiente
movimento estudantil que, em 1905 tinha-se criado no Grêmio de Estudantes de Direito.
Foi também nesse ano quando se criou a Universidade de La Plata.
97
Foi também nesse período quando se modificaram os planos de estudos da carreira
com o propósito de introduzir as ciências sociais na formação do profissional em direito. Uma
concepção ‘científica’ do direito promoveu a introdução de cursos de sociologia (1908),
história do direito (1906), história do direito comparado (1906) e direito político (1910).
Nessa época se criaram novas especializações jurídicas, se criou o doutorado como título
superior e as carreiras de notariado e diplomacia.
98
. A carreira de direito compreendia, então,
seis anos de estudo mais um sétimo ano para optar pela titulação de Doutor em
Jurisprudência.
99
Um dos traços distintivos deste período foi a expansão da matricula universitária: por
volta de 1910 se tinha quase uns 6.000 alunos matriculados nas universidades argentinas,
quase o dobro que em 1900.
100
Esta expansão esteve impulsionada por várias reformas
educativas levadas a frente pela chamada ‘geração de 1880’, fundamentalmente pela sanção
da lei de Ensino comum, laico e gratuito de 1884 e pela reforma dos estatutos universitários
que restituíram o ensino gratuito na universidade.
101
O que tem a ver com os profissionais do
direito, segundo os dados fornecidos por Leiva, em 1935 figuravam inscritos na matrícula
97
Até 1872, os estudos em direito se realizavam no Departamento de Jurisprudência da Universidade (1821-
1874) que outorgava o diploma de ‘bacharel’ ou de ‘doutor em jurisprudência. A habilitação profissional
requeria de um período extra de formação teórica e prática que culminava num rigoroso exame final, ambos sob
a responsabilidade da Academia Teórico Prática de Jurisprudência (1814-1872), dependente da Câmara de
Apelações. Antes da criação do Departamento de Jurisprudência (1821) os estudantes deviam financiar os seus
estudos nas Universidades de Lima, Charcas ou Santiago de Chile, que o diploma de bacharel era o requisito
para o ingresso na Academia. Esta mesma reforma de 1872 também deu origem à Faculdade de Filosofia e
Letras, o que possibilitou separar o ensino da jurisprudência do ensino da literatura e da filosofia, todas matérias
até então ministradas na Faculdade de Direito. Entre 1903 e 1906 se criaram, também, o Grêmio de Estudantes
de Medicina e de Engenharia. Na atualidade, o diploma de ‘bacharel’ outorgado pela faculdade habilita
diretamente para a prática profissional. Para um desenvolvimento sintético destas reformas ver: Ortiz, 2004.
98
Em: Seoane, 1981.
99
Vale a pena salientar que os enfrentamentos entre distintas facções ao interior das faculdades de direito
acostumam, até o dia de hoje, se expressar em termos antinômicos: quem advogam por uma concepção
‘científica’ do direito se opõem a uma concepção ‘técnica’ da formação profissional e vice-versa. Estes últimos
aspiram a outorgar aos estudantes de direito as ferramentas técnicas necessárias para saber-se desempenhar na
prática profissional, sem carregar aos estudantes com matérias como historia do direito e sociologia que não se
consideram relevantes na hora de levar a frente um processo judicial. Pela sua vez, os primeiros, aspiram a
consagrar um perfil acadêmico ao formado em direito, concentrando seus esforços em dar aos estudantes de
todas as ferramentas indispensáveis para fazer do recém-formado um jurista, quer dizer, alguém com
competência no trabalho de pesquisa. Sem vidas, seria imprescindível aprofundar sobre estes princípios de
distinção numa futura pesquisa.
100
Em: Chiroleu, 2000.
101
Em. Cutolo, 1951:20.
63
portenha 5.997 advogados. Em 1936 os matriculados eram 6.232 e, ao final da década do 30,
eram 7.041 os advogados do foro portenho (op.cit).
102
Estas reformas, que foram simultâneas
ao processo de imigração massiva, envolveram “... a incorporação à profissão de novos
elementos sociais de extração meia e baixa...” e a transformação do perfil dos estudantes e
recém-formados
103
. Esta distinção aparece enunciada nas palavras de Julio V. González, filho
do fundador da Universidade de La Plata, e amigo pessoal do liguista Carlos Sánchez
Viamonte: “… desde 1880 até 1905, a universidade foi um reduto aristocrático (...) a
população escolar esteve formada na sua totalidade por uma grande burguesia (...) a classe
meia tinha uma representação mínima. A universidade era mais uma aspiração, um trampolim
para fazer o salto a classe superior”
104
.
Esta apreciação a respeito da identidade entre perfil profissional e pertença de classe
tinha um substrato objetivo: entre 1936 e 1941, a classe dirigente tinha como denominador
comum o fato de combinar a profissão jurídica com a pertença a ‘famílias tradicionais’ da
sociedade argentina. Os dados coletados pelo José Luís de Imaz indicam que em 1941, o 92%
de quem ocupavam as principais posições institucionais do país eram advogados. Segundo os
dados de Darío Cantón citados nesse trabalho, em 1916 o 74% dos deputados nacionais eram
advogados e para 1946 se mantinham no 67%, a despeito das transformações acontecidas no
país como resultado da chegada ao poder do peronismo.
105
No seu trabalho, Imaz salienta que uma das primeiras qualidades exigidas para ter
aceso as posições mais importantes dentro do restrito grupo dos dirigentes nativos era o
reconhecimento de sua ‘capacidade jurídica’ derivada do fato de se desempenhar, entre outros
assuntos, como assessores letrados em empresas estrangeiras importadoras e exportadoras de
produção primaria (carnes, grãos) Eram estas as qualidades reunidas pela maior parte dos
ministros da época. A respeito da importância da presencia de advogados no corpo do Estado,
Imaz fornece os seguintes dados: entre 1936 e 1946 todos os Ministros de Educação, de
Fazenda, de Obras Públicas e de Relações Exteriores foram advogados. Segundo Imaz, isto
ilustra “ a influencia prevalecente que teve a Faculdade de Direito, especialmente a de Buenos
102
Segundo os dados fornecidos por Sergio Bagú, em 1914, os profissionais do direito constituíam o 45% dos
recém-formados nas universidades Argentinas. Bagu, Evolución histórica de la estratificación social en la
Argentina. Citado em Imaz, 1964:194.
103
Em: Leiva, 2005: 287.
104
Em: J.V. González, 1945. La Universidad, Teoría y Acción de la Reforma. Bs.As. Ed. Claridad. 1945. Cit.
em: Gómez, A. 1994: 13.
105
Darío Cantom.
Parlamentarios Argentinos en 1889, 1916 e 1946. Trabalho citado em Imaz, 1964.
64
Aires, na formação dos quadros dirigentes (op.cit.) Significativamente, estes advogados
pertenciam também ao corpo de professores da Faculdade de Direito de Buenos Aires.
106
Segundo este mesmo autor, estas lideranças se formaram quando, a geração dos 80, abria suas
portas ao país aos imigrantes europeus e sancionava a lei do voto masculino universal: “… a
grande mudança política resultante da lei Sáenz Peña os surpreendeu em plena
maturidade”
107
.
A expansão do sufrágio, da matricula universitária e o surgimento de novos critérios
de recrutamento dentro da classe política (como o ‘sucesso eleitoral’) podiam ser percebidos,
sem dúvidas, como uma ameaça séria. De fato, perante a expansão de um saber
tradicionalmente monopolizado por um pequeno setor social, quem ocupavam o centro do
cenário profissional e universitário, isto é, os juristas e professores da Faculdade de Direito de
Buenos Aires, começaram a exprimir a sua preocupação por uma situação que qualificaram
como de catastrófica: a existência de ‘advogados sem causa’. Um destes professores, A.
Colmo, escrevia em 1936: “a atual sobre-saturação profissional evidencia a existência
indubitável de um proletariado forense que é todo um descrédito para a profissão e redunda
em seu prejuízo (...) Temos mais de cinqüenta advogados por cada cem mil habitantes,
quando na Itália não chegam a trinta, apenas alcançam a dúzia na Inglaterra e chegam a
dezoito em Áustria e Alemanha...”
108
. O próprio reitor da Universidade de Buenos Aires, o
advogado Vicente Gallo manifestava: “O problema de aquilo que se conhece como
proletariado profissional é, sem dúvidas, uma das maiores questões que devem preocupar não
a sociedade mas também ao governo da nação. Todo dia egressa das aulas universitárias
(...) um número de jovens superior as possibilidades de trabalho profissional (...) À
universidade devem ingressar aqueles que tenham a vocação e a inteligência
suficientes”.
109
Num contexto aonde o incremento da matrícula foi percebido como uma ameaca para
a profissão, os integrantes das associações estudadas neste capítulo se distinguiam justamente
pelo fato de integrar majoritariamente este grupo de recém chegados. A utilização desta
categoria funda-se, entre outras coisas, no seguinte indicador: revisando a guia de
106
Em 1936 eram três os ministros de governo que, ao mesmo tempo eram professores dessa faculdade. Um
deles era Melo, Ministro do Interior mencionado numa seção anterior deste capítulo. Em 1941, este número se
elevou a 6. Em: Imaz, op. Cit. Pág. 12,26 e 33.
107
Em: Imaz. op.cit.pág. 21. Para uma descrição global deste processo ver Halperín Donghi, 1999.
108
Como, Alfredo. La Justicia
. Bs. As. 1936. Em: Leiva, A. 2005:288. Grifos meus.
109
Gallo, Vicente. Cultura y Ética Profesional. 1936. Em: Leiva, A. Op.cit. Grifos meus.
65
profissionais do direito portenhos correspondente a 1881, não se encontra nenhuma
correspondência entre os sobrenomes das lideranças das associações civis analisadas neste
capítulo e os sobrenomes incluídos nesta guia.
110
A condição de estudantes que chegam desde o interior do país é recorrente na maior
parte dos advogados engajados na causa dos direitos do homem. Dos 18 dirigentes da LADH
sobre os que possuo dados sobre seu local de nascimento, 3 teriam nascido na Capital
Federal. Esta distinção entre ‘provincianos’ (interioranos) e ‘portenhos’ formava parte das
formas de reconhecimento público deste grupo de estudantes. A vida deles é retratada por um
reconhecido jurista contemporâneo nascido na província de Santa Fé: Rafael Bielsa. Segundo
ele: “… se colocava um problema inicial, o dos recursos, em tanto o salário paterno poucas
vezes era suficiente (...) Por isso, o estudante provinciano (pobre em geral) fazia apelo ao
emprego público. O deputado nacional ou senador pela província [estado] ou o colega de
província que tinha feito sucesso constituíam uma espécie de padroeiro [que lhe permitia
continuar com a sua carreira]…”
111
.
Neste contexto, “Se a propriedade territorial – máximo signo de distinção – era
inaccessível, o diploma universitário parecia más próximo e, desta forma, eram mais
accessível tanto uma legitimação simbólica quanto um maior progresso econômico. Neste
sentido, Florentino Sanguinetti [contemporâneo dos juristas mencionados neste trabalho, ele
mesmo um estudante de direito originário do interior do país] afirmava resolutamente que
nesse anos “os doutores constituem o patriciado da segunda república…”
112
.
O reconhecimento deste novo perfil social entre os estudantes levou a que um dos
propósitos centrais do Grêmio de Estudantes fosse o de: “… facilitar aos alunos de todos os
cursos o estudo (…) oferecendo livros, rascunhos e memórias a um preço muito
reduzido...…”
113
. Em profunda contraposição, também estavam os ‘estudantes ricos’ que,
diante a obrigatoriedade de concorrer às aulas contratavam “… ‘empreiteiros’ que lhes faziam
esse serviço (…) e assim, enquanto o empreiteiro formava parte do auditório da universidade,
110
Guia Judicial de Guerino Fiorini, Bs. As. 1881. Reproduzida em Leiva, 2005: 361 a 376. também não
aparecem os sobrenomes dos seus pais no Diccionário Biográfico Quién es Quién.
111
Em Bielsa, 1945.Grifos meus.
112
Em: Chiroleu, op.cit. pág. 364.
113
Reproduzido no jornal La Nación, 20.07.1905, cit. Em: Gómez, A. 1994: 22.
66
o jovem estudante endinheirado cumpria o requisito de assistência dormindo durante o dia
pela falta de sono da noite anterior” (Bielsa, op.cit.:30).
A existência de perseguidos políticos e sindicais é condição necessária para a
formação desta rede de profissionais do direitos consagrados à tarefa de defender-lhos pública
e judicialmente. Mas não é, contudo, a razão exclusiva que explica o surgimento da vocação
pela causa. Com o propósito de dar conta desta vocação é necessário apreender as condições
sociais que fizeram possível a formação deste segmento profissional dedicado ao ativismo na
causa pelos direitos do homem. Proponho que esta conjunção entre o arribo de um grupo de
recém chegados ao direito e a existência de ‘advogados sem causa’ é uma das condições
sociais chaves na formação deste segmento profissional. É este o processo que coloca a um
conjunto de jovens profissionais recém-formados a disposição de um engajamento público
que, como vai se ver, lhes vai permitir adquirir progressivamente notoriedade, tanto no mundo
do direito quanto da política. Este vínculo parece ser, então, uma das condições necessárias
para a produção e reprodução desta relação específica entre direito e política. E isso foi
possível porque no contexto das diversas reformas ao ensino superior, a universidade tinha
deixado de ser uma espaço exclusivo dos setores privilegiados da sociedade Argentina e se
perfilava então, como uma via de ascensão social para os filhos de imigrantes que provinham,
muitos deles, do interior do país.
114
A pesar disso, entre as lideranças destas associações é possível reconhecer também os
sobrenomes de algumas famílias notáveis da Argentina como os Roca, os Viamonte, os
Quintana, os Bunge e os Noble. Carlos Sánchez Viamonte pertenceu a uma família patrícia:
os Viamonte, reconhecida na historiografia nacional como protagonistas chaves nas lutas pela
independência e na Revolução de Maio. Seu bisavô materno, o general Viamonte, foi chefe
dos exércitos da Independência, governador do estado de Buenos Aires ao longo de mais de
seis anos, governador do estado de Entre Rios e deputado estadual durante 14 anos
consecutivos. Do lado paterno, vários integrantes da família Sánchez tinham-se destacado
como ‘heróis’ da independência. Modesto Antonio Sánchez, bisavô de Carlos, obteve
medalhas de ouro e prata pela sua intervenção em distintas batalhas contra os espanhóis. Seu
nome figura entre quem apoiaram a criação da Primeira Junta de Governo em 1810
115
. É
possível reconhecer inumeráveis traços que salientam a pertença ‘dos Viamonte’ a boa
sociedade portenha: desde a dedicação dos seus varões à equitação e de suas mulheres à
114
Em: Bucito, 2000.
115
Atas do Ajuntamento. Em: Alonso Piñeiro, 1959.
67
beneficência até a aparição de crônicas nas revistas da época que recreavam os
acontecimentos da vida familiar (desde aniversários até minuciosas descrições da cerimônia
do penteado feminino). Uma das ruas centrais da cidade de Buenos Aires leva o sobrenome
Viamonte. A través de uma densa rede de alianças matrimonias, os Viamonte se vincularam
com outras famílias de fazendeiros e homens de Estado, como os Rosas, os Mansilla e os
Martinez de Hoz.
116
Vale a pena salientar que no retrato que o próprio Carlos Sánchez Viamonte realizara
do seu bisavô, o General, os atributos que lhe interessam realçar são justamente aqueles que,
de uma certa maneira, o aproximam da sua própria definição como pessoa pública. Assim, o
General Viamonte, militar de profissão, aparece definido como um homem ‘preocupado pelos
interesses populares’, um precursor do ‘anti-clericalismo’ e do ‘anti-militarismo’, um
‘estadista’, um ‘jurista ao serviço da ética’, ‘um exemplo de conduta vica’. Em resumo,
como “… um prócer argentino cujo patriotismo não pode ser superado porque consistiu em
aceitar todos os sacrifícios que lhe impuseram os interesses do povo”.
117
O próprio Carlos Sánchez Viamonte se reconhecia como um herdeiro desta tradição.
Desde a sua perspectiva, sua trajetória está intimamente ligada a esta herança familiar:
“No es extraño, pues, que yo continuase por el camino que había trazado mi padre,
quien a su vez, seguía el ejemplo cívico de su abuelo, el prócer Juan José
Viamonte. Había cierto espíritu de continuidad familiar que llegó hasta mí, como
se muestra en la circunstancia (…) de que mi bisabuelo, mi padre y yo hemos
desempeñado funciones legislativas y constituyentes en la provincia de Buenos
Aires y en la Nación”
118
O pai de Carlos, Julio Sánchez Viamonte, ele também advogado, praticou a profissão
desde o seu escritório privado e também desde o Estado, como assessor jurídico no prefeitura
116
Ao longo do segundo governo de Juan Manuel de Rosas, o filho mais novo do general Viamonte foi degolado
pela ‘mazorca’ (milícia irregular que perseguia aos inimigos políticos de Rosas) e o general Viamonte teve que
partir para o exílio. Contudo, os descendentes destas famílias terminaram ligados através de vínculos de aliança e
descendência. Este breve episodio exibe as condições pelas quais se perpetuava então a elite portenha. Existia
entre estas famílias uma comunidade de interesses baseada nas suas respectivas condições de fazendeiros,
militares e homens do governo. Ao ponto que era possível para Carlos Sánchez Viamonte afirmar: “… no me
mueve ningún rencor personal contra Rosas (…) alianzas matrimoniales han creado sentimientos que lo hacen
imposible” Em: Alonso Piñeiro, op. Cit.
117
Em: Alonso Piñeiro, op.cit. : 13.
118
En: Sánchez Viamonte, 1971: 63.
68
da recentemente criada cidade de La Plata. Ele também foi professor universitário (direito
internacional público e de história institucional argentina) na universidade dessa cidade. Foi
parlamentar estadual e nacional. Para Carlos Sánchez Viamonte, seu pai integrava um grupo
de portenhos amigos entre sim, que aderiram aos princípios do liberalismo político dos quais
faziam incendiada defesa desde o Clube Liberal. Carlos Sánchez Viamonte fez seu ingresso
ao mundo profissional no escritório jurídico do seu pai quando entrou como escrevente com
15 anos de idade. Ao se referir a seu pai Carlos se reconhece decididamente como seu
herdeiro, tanto em termos de uma vocação profissional compartilhada quanto na maneira de
exercer a profissão: : “… foi na casa paterna onde absorvi essa mania de encarar o direito
como um problema ético (...) adquiri um sentido quase religioso das minhas convicções civis
(...) e o desinteresse por toda vantagem material…”
119
. Carlos Sánchez Viamonte herdou do
seu pai uma profissão, uma vocação e um sobrenome ilustre. Ele herdou também um capital
enorme de relações significativas tanto dentro do universo do direito quanto da política e da
universidade.
Na morfologia que constituiu a este segmento profissional é possível identificar
advogados que pertencem à elite dirigente e econômica. Proponho que este encontro entre
notáveis e recém chegados ao direito e a política é a segunda condição de inteligibilidade da
formação deste fragmento profissional. Um caso paradigmático desta situação, pela
notoriedade pública alcançada posteriormente, foi a do futuro liguista Alfredo Palácios, quem
costumeiramente se apresenta como ‘filho natural’ de um exilado uruguaio, formado na escola
pública e obrigado a trabalhar para financiar seus estudos na universidade. Mesmo assim,
Palácios fez seus estudos secundários no Colégio Nacional de Buenos Aires, uma escola
pública freqüentada quase com exclusividade pela elite dirigente de então. Seu pai foi
professor da faculdade de direito da Universidade de Buenos Aires e interveio na política
argentina participando nas filas do ‘antimitrismo’. Seu escritório se converteu, alias, no centro
de reunião do exílio oriental, o que evidencia que Alfredo Palácios não era nem um recém
chegado à política nem ao direito.
120
Fazendo parte deste ‘proletariado profissional’ ou pertencendo às famílias notáveis do
país, os futuros integrantes das associações estudadas neste capítulo desenvolveram uma
119
Em: Sánchez Viamonte, 1971: 56 y 108. numa outra seção do capítulo, os valores do sacrifício, do
desinteresse e da entrega à causa vão ser objeto de analise.
120
Em: García Costa, 1997. pág. 28 e 29.
69
intensa militância universitária. Desde o recentemente criado Grêmio de Estudantes da
Faculdade de Direito de Buenos Aires (1905), eles participaram ativamente na política
universitária, na sua condição de conselheiros estudantis, como Sánchez Viamonte, entre
outros.
121
Esta experiência de formação profissional esteve atravessada pelo chamado
‘movimento de Reforma Universitária’ (1918) ao qual aderiram e deram impulso, como no
caso do futuro liguista Deodoro Roca, redator do próprio manifesto original do movimento,
José Peco e Rodolfo Aráoz Alfaro.
122
Segundo Gómez, o movimento reformista “… coloca
as bases de uma nova forma de militantismo estudantil, evoluindo de precárias organizações à
constituição de grupos políticos universitários com marcado sentido ideológico”
123
. A reforma
deu passo, entre outras coisas, à gratuidade no ensino, à ampliação dos conteúdos e dos
critérios de governo da universidade em quanto se permitiu a criação de cátedras paralelas, a
seleção de professores por concurso de oposição e o reconhecimento da participação dos
estudantes no governo da Universidade. Segundo Fuccito, o objetivo manifesto da Reforma
foi o de abrir a universidade as novas classes sociais introduzidas no país como resultado da
imigração.
124
Segundo Gómez, “Em 1921, o Presidente do Grêmio de Estudantes não era
mais um jovem de ressonante sobrenome mas um que representa ao ultimo estrato da classe
meia…”
125
. Segundo Silvia Sigal, a reivindicação central da Reforma foi a autonomia
universitária. Mesmo que ela nunca se estabeleceu em forma duradoura e, justamente por isso,
esta reivindicação foi essencial na estruturação do corpo universitário entre 1918 e 1966.
126
Este ativismo estudantil se conformou não só como uma primeira forma de
socialização na política mas também como uma instancia central na conformação de uma
comunidade de pares que vai se reconhecer como pertencente a uma ‘nova geração dis-
conformista’. Conceito que da conta não tanto de uma coorte geracional mas da existência de
um conjunto de profissionais do direito identificados com uma ‘nova’ forma de conceber e
exercer a profissão. Esta ‘nova geração’, por oposição à anterior, questionava os princípios do
‘direito liberal individualista’ e propugnava pela consolidação de um ‘novo direito’ orientado
pelo interes e pela vontade social. Nas publicações daqueles que ainda eram estudantes, se
121
Os conselheiros estudantis fazem parte do governo tripartite da universidade a partir da chamada ‘Reforma
Universitária’ de 1918. A partir desta reforma, as faculdades são governadas através de um decano e um
conselho integrado por representantes dos professores, os graduados e os estudantes.
122
Para uma descrição do projeto universitário sustentado por este grupo reformista ver: Ciria y Sanguinetti,
1983, Chiroleu, 2000 e Graciano, 2003.
123
Em: Gómez, op.cit.:41.
124
Em: Fuccito, 2000: 73.
125
Em: Gómez. op.cit.:41.
126
Em: Sigal, 1991.
70
repetem invariavelmente as referencias ao ‘problema das gerações’: com a Reforma
Universitária de 1918 ‘fez sua aparição no cenário histórico uma nova geração’:
“… comenzó negándose a los maestros, proclamando su desvinculación con el
pasado inmediato, desconociendo el sistema de ideas y de valores generales por
que se rigiera la generación anterior (…) Impuso el Estatuto reformista de 1918
con el cual conquistaba el derecho de sentarse en los sillones académicos al lado de
los que hasta ayer reconociera como maestros indiscutibles (…) De claustro
escolar, la Universidad se transformó en comunidad de hombres libres (…) la
nueva generación había pronunciado el desahucio de aquél remanente de la ‘elite’
del 80 (…) [En la Facultad de Derecho] hallábanse refugiados los restos de la clase
dirigente, desalojada de las esferas del gobierno por una fuerza popular nueva [en
ref. al gobierno de Yrigoyen] y por ello deben renunciar”
127
.
Este ponto de vista a respeito do direito é consagrado com a publicação da célebre
obra “El Nuevo Derecho”, um trabalho que compila as palestras que dera o professor Alfredo
Palácios na Universidade de Buenos Aires e que iria se converter em referencia de sua
geração e em emblema das que a sucederam.
128
No seu livro, Palácio proclamava a
necessidade de novas regras para as relações de trabalho que deveriam estar sob a tutela do
Estado com o propósito de limitar os abusos dos patrões e proteger aos trabalhadores. Esta
legislação se considerava imprescindível em tanto “... os juizes argentinos tem mostrado (...)
marcada hostilidade para as classes trabalhadoras”
129
.
Esta oposição entre concepções distintas do direito era exprimida como uma oposição
entre ‘gerações’ e, mais especificamente, como uma oposição entre ‘mestres e discípulos’,
como se evidencia no caso que o próprio Sánchez Viamonte relata no prólogo ao livro El
Nuevo Derecho, de A. Palácios. Sánchez Viamonte conta o caso de um trabalhador de um
frigorífico que reclama a indenização pelo fato de ter sido demitido sem justa causa. Quando
Sánchez Viamonte assume a defesa deste caso, ele deve se confrontar com um dos seus
professores de direito civil que intervinha pela parte da patronal (tem que ser lembrado que a
empresa pertencia a capitais estrangeiros, justamente o perfil do profissional do direito ao que
se opunham os integrantes destas associações, como descrevi no caso do Ministro do
127
En: Memorial presentado por los consejeros estudiantiles de la Facultad de Derecho al Rector de la
Universidad. Enero 1930.
128
O agrupamento que no ano 2004 e 2005 tinha o controle do Grêmio de Estudantes da Faculdade de Direito da
Universidade de Buenos Aires chamava-se significativamente “Nuevo Derecho”.
129
Em: Palacios. 1928.
71
Interior, Melo). As posições assumidas por cada um deles foram qualificadas por Sánchez
Viamonte em termos de ‘velho’ e ‘novo’ direito. Esta oposição aparece enunciada como uma
oposição entre ‘duas gerações diferentes’: “… os atuais professores universitários sobre-
colhidos de temor e de angustia diante de uma realidade temerária cheia de supresas... e
Palácios, cuja obra foi uma ‘obra de impulso’, ‘de juventude’, da ‘juventude reformista’. A
defesa sucedida de Sánchez Viamonte foi qualificada por ele mesmo como ‘um ato de
desafio’ as hierarquias e a uma concepção do direito que contesta ‘a tradição liberal’.
Enquanto o ‘velho direito’ supõe a ‘defesa do direito individual-individualista do século XIX,
o segundo:
“… consiste en sustituir el concepto del Derecho Romano que hace del contrato la
ley de las partes, por el principio del interés y de la voluntad sociales (…) haciendo
de la ley el contrato de las partes (…) En vano se arguirá con las viejas razones del
derecho liberal que, sin tener en cuenta la desigualdad de condiciones creada
artificiosamente entre el patrón y el obrero por el abuso de la fuerza consolidado a
través del tiempo, pretende hacer ley de la voluntad de las partes manifiesta en el
contrato. Voluntad de las partes, dicen ingenuamente los optimistas del derecho
liberal, olvidando que en el contrato de trabajo la ley ha sido hoy la voluntad de
una de las partes, la voluntad del patrón (…) el nuevo derecho significa, en síntesis,
reemplazar el concepto tradicional no intervencionista del Estado, que caracteriza a
la locación de servicios, por el moderno concepto del contrato de trabajo, cuyas
cláusulas, determinadas por la ley, son de orden público y se imponen a las partes
como el triunfo del interés social sobre el interés individual de los fuertes que
abusan de su fuerza”.
130
Esta mesma oposição pode-se reconhecer também na rejeição dos professores da
Faculdade de Direito de Buenos Aires a tese de doutorado que Palácios nomeara La Miséria
en la República Argentina”.
131
Este título exibe a maneira em que os integrantes das
associações em defesa dos presos políticos e sociais se percebiam como profissionais
próximos a defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo. A exibição de uma relação de
130
Em: Sánchez Viamonte. Prólogo a la 2da. Edición de El Nuevo Derecho. Palacios, 1928.
131
A categoria ‘geração’ supõe uma forma de representação dentro do espaço social que não envolve
necessariamente uma oposição simples entre professores e estudantes, como o demonstra o fato que ao longo
desses anos de formação dos advogados integrantes destas associações civis, Julio González Iramain, deputado
nacional pelo socialismo e integrante da LADH, foi professor na própria faculdade de Direito da Universidade de
Buenos Aires (1909-1912). Sobre este ponto, Fuccito adverte que alguns professores da chamada geração de
1880 eram uma minoria ilustrada e pertenciam a famílias distinguidas mas não necessariamente ricas (op.cit.:62).
72
proximidade com os setores operários é certamente um dos traços desta oposição ‘geracional’
no interior da universidade: “… [esta] não tem exclusivamente um propósito cientifico,
profissional e de preparação da classe dirigente e sim, fundamentalmente, uma função
social”
132
. Os traços desta distinção se expressam com clareza nas atividades desenvolvidas
pelo Grêmio de Estudantes de Direito quando, em 1917, criou uma Assessoria Jurídica
Gratuito através da qual levar a frente a ‘missão social’ do estudante de direito que envolve o
oferecimento de assistência de graça a: “... pessoas que, ainda não sejam pobres de
solenidade, sejam notoriamente desvalidas.” Dois anos depois, o Grêmio assumiu o
compromisso de dar aulas de extensão aos operários.
133
Nesta luta jurídica e política, uma das armas esgrimidas pela geração dos professores
de direito foi a desqualificação dos estudantes e recém-formados sobre a base de sua condição
de ‘recém-chegados’. Esta situação é muito bem ilustrada pelo então conselheiro estudantil
Carlos Sánchez Viamonte quando, numa reunião do Conselho Acadêmico da Faculdade de
Direito de Buenos Aires, os professores questionaram as demandas de participação dos
conselheiros estudantis Sánchez Viamonte e Florentino Sanguinetti sobre a base desta
argumentação. O próprio Sánchez Viamonte relata na sua autobiografia o momento no qual
contestou a esta acusação de ‘recém-chegado’ exibindo sobre a mesa do Conselho as
medalhas de ouro e prata que ganhara seu bisavô nas lutas pelas independência argentina.
Neste contexto, a desqualificação constitui a ferramenta utilizada por quem se apresentavam
como detentores de um capital social e econômico que se opunha à desvalorização do seu
saber e competência profissional.
As estratégias de desqualificação que este mesmo grupo coloca em jogo em relação a
introdução de novos setores sócias à profissão (‘à universidade tem que ingressar quem
tenha a vocação e a inteligência suficiente’) são equivalentes às estratégias de desqualificação
praticadas sintomaticamente em relação a lei de ‘sufrágio universalsancionada em 1912 e
que possibilitou, na sua primeira aplicação, o triunfo do candidato da UCR, Hipólito Solari
Yrigoyen nas eleições nacionais de 1916, justamente quem fora deposto durante seu segundo
período presidencial pelo golpe de Estado de Uriburu. Isto porque o processo de incremento
da matrícula universitária e profissional aconteceu simultaneamente à incorporação de
importantes setores da população à condição de cidadãos graças a promulgação da lei que
132
Em: Memorial de los consejeros estudiantiles. Enero 1930.
133
Reglamento. Em: Gómez, A. 1994:26.
73
possibilitou o acesso ao voto de toda a população masculina adulta. Em termos de De
Privitellio, “Esta reforma assumiu a forma de uma aposta em favor da constituição de um
corpo político renovado pelo ingresso de novos votantes. Aspirava-se à transformação destes
novos votantes em cidadãos, como resultado da educação e modernização da sociedade civil e
da prática do voto e da ação educadora dos partidos”
134
. Coincidentemente com estas
aspirações, o propósito declarado do General Uriburu foi a necessidade de interromper esse
processo por meio da modificação da lei Sáenz Peña sob a argüição da existência de um
elevado número de analfabetos no país.
135
A democratização das instituições políticas e a democratização das instituições de
ensino foram percebidas pela elite local como uma ameaça, ao mesmo tempo profissional e
política. Coincidentemente, logo depois do golpe de Estado de Uriburu, os estatutos
reformistas vigentes na universidade foram substituídos, as universidades foram intervindas e
se procedeu à expulsão das suas cátedras a vários destes novos profissionais (notoriamente A.
Palácios, quem tinha sido nomeado decano da Faculdade de Direito da UBA assim como José
Pecó, Orzábal Quintana e Arturo Orgaz). No campo da política, foi colocada em prática a
proscrição eleitoral, o fraude e se anularam eleições cujos resultados eram contrários aos
interesses do regime.
O espaço internacional constituiu uma instancia crítica na formação destes
profissionais. Um dos traços marcantes na formação destes estudantes de direito era a
significativa importação de conteúdos e do modelo francês de formação, fato que permite
compreender as estreitas ligações criadas entre intelectuais e profissionais do direito locais
com a comunidade profissional e política internacional. A partir do ingresso na faculdade, os
estudantes entravam em contato com uma estrutura curricular transplantada do modelo
europeu, principalmente francês.
136
Um percurso pelas emendas dos cursos me permitiu
identificar que o estudo do direito francês dominava o ensino do direito. A bibliografia era
principalmente nesse idioma como assim também em inglês e italiano. A circulação de
pessoas e livros era importante em ambos os sentidos. Assim como a UBA e a Universidade
134
Luciano De Privitellio analisa as conseqüências destas reformas sobre o voto no seu estimulante livro sobre a
conformação da cidade de Buenos Aires numa comunidade política. Em: De Privitellio. 2003.
135
Segundo A. Cattáneo, Uriburu pronunciou um discurso na Escola Superior de Guerra em defesa da idéia de
uma democracia restringida aos ‘melhores’, o que excluía as maiorias em quanto um 60% da população do país
era analfabeta e eles não deviam ter direitos civis. Em: Cattáneo, 1939: 39.
136
Enquanto a influencia francesa era evidente em relação com o direito civil, a influencia dos EEUU se fazia
sentir na área do direito político. Em: Cutolo, 1951:21.
74
de La Plata convidavam a professores estrangeiros para ministrar cursos de especialização, os
juristas argentinos eram convidados a participar da vida acadêmica européia e seus livros
eram traduzidos ao francês, inglês e italiano.
137
Alem disso, professores argentinos
participavam de instituições acadêmicas no exterior assim como também no sentido inverso.
Em 1909 chegou à Argentina o primeiro professor estrangeiro que fez parte de um programa
de intercambio com uma universidade local: tratava-se de Rafael de Altamira y Crevea quem
fora convidado pela Universidade Nacional de La Plata. O primeiro professor de direito
marítimo e de direito criminal na UBA tinha sido o francês Guret de Bellemare (1827), entre
outros exemplos. Pela sua vez, o professor de direito civil Florêncio Varela, integrou o
Instituto Histórico de França, Estanislao Zebalos foi fundador da linha local da International
Law Association e pertenceu também ao Institut du Droit International, por citar alguns
exemplos.
Segundo refere o historiador do ensino em direito, Abelardo Levaggi, entre os anos
1908-1910 se produziu um apogeu de visitas de intelectuais e profissionais do direito na
Argentina no contexto das celebrações do Centenário da Revolução de Maio. Segundo
Levaggi, estas visitas indicam o alto nível alcançado pelos estudos de direito na Argentina.
Entre essas visitas se destaca a do Enrico Ferri, discípulo de Lombroso e uma figura
consagrada tanto no campo jurídico quanto político (era penalista e senador da república
italiana pelo partido socialista). Nas suas palestras na Faculdade de Direito desenvolveu
assuntos chaves do direito e da política de então: o conceito de justiça social, a legislação
social e trabalhista, a justiça penal e o pan-americanismo
138
.
1. 5. 2 Exercer o direito
Como assinala Leiva no seu importante estudo sobre a evolução da prática profissional
do direito desde os tempos da colônia, além de todo ensino formal, os estágios profissionais e
137
Em: Rafael Bielsa, op.cit. Alguns dos trabalhos de professores da Faculdade de Direito da UBA publicados
no exterior são: Bunge. Le droit c´est la force. Paris. 1909, Estanislao Zeballos quien publicó La nátionalité du
point de vue de la législation comparée et du droit prive humain. Paris, 1919, Inviolability of correspondece in
War Time, London, 1923,
Juridical reorganization of humanity e The rights and duties of the states and
internationalists of the New World, London, 1923, entre outros.
138
Levaggi, Abelardo. Palestra ministrada no Seminário de História da Faculdade de Direito da UBA no dia
31.03.2005.
75
a intervenção de ‘padrinhos’ foram, desde seus inícios, as verdadeiras instancias de formação
prática do advogado. A partir delas chegavam-se a conformar ‘verdadeiras genealogias
profissionais’
139
. Em coincidência, isto se verifica em quem, integrando associações como a
Liga, carregava com um sobrenome ‘notável’: Carlos Sánchez Viamonte se iniciou na
profissão aos 15 anos trabalhando como estagiário no escritório do seu pai. O mesmo fez o
seu irmão, quem depois ingressou na Justiça, embora que por um curto prazo
140
. Sendo seu
próprio pai professor do direito na Universidade de La Plata, Carlos Sánchez Viamonte
ingressou também ao ensino universitário. Estas condições que possibilitam a ascensão
profissional são indicativas de toda a distancia que existe entre a obtenção de um diploma e o
exercício da profissão, que supõe a detenção de atributos que vão para alem daqueles obtidos
pelo aprendizado e que envolvem a detenção de uma capital social herdado ou a posse de
um capital econômico tão significativo que permita ao advogado viver dignamente sem
depender dos seus honorários profissionais.
141
Para o número crescente de ‘recém chegados’ ao mundo do direito, estas condições
não estavam garantidas. A ausência de vínculos com os sobrenomes tradicionais do foro
portenho e estadual os deixou a um lado tanto destes escritórios quanto do judiciário, uma
condição que vai se repetir entre os advogados que vão ser analisados no capítulo 2
142
. Neste
contexto de exclusão política e profissional, estes ‘outsiders’ começaram a explorar outros
espaços de inserção, como pode-se reconhecer no exame de algumas das suas trajetórias
profissionais: Juan Atílio Bramuglia, integrou o conselho honorário da Confederación Obrera
Argentina e da CGT. Foi assessor letrado da Unión Telefônica, da União Tranviarios e da
União Ferroviária entre 1929 e 1949. Outro dirigente da Liga, Nicolas Solito, foi integrante
da Comissão Diretiva da União Ferroviária e vogal da Câmara Gremial do Instituto Nacional
de Previsión Social. Roberto Testa foi dirigente ferroviário. Sánchez Viamonte esteve ligado
a grêmios e sindicatos desde o inicio do seu exercício profissional, representando e
139
Em: Leiva, op.cit. Vale a pena destacar que o sobrenome do autor do livro se inscreve dentro de uma
linhagem de advogados que inclui a Julián Leiva, “... considerado por muitos como o primeiro dos advogados de
Buenos Aires” (1810).
140
Vale a pena salientar que o ingresso ao judiciário começou a se regulamentar pelo concurso público a partir
da reforma da Carta Magna de 1994. Antes disso, o ingresso à justiça dependia da pertença do candidato a
famílias notáveis do direito ou dos contínuos processos de remoção dos juizes resultantes das diversas
interrupções de governos democráticos e das próprias reformas do judiciário realizadas durante os períodos de
governos democráticos. Para uma analise destes processos centrados no caso da Corte Suprema de Justiça, olhar:
Pellet Lastra, 2001.
141
Em: Pinto, 1984.
142
Numa futura pesquisa, seria muito importante poder reconstruir os escritórios jurídicos da época, para
conferir se existia efetivamente uma divisão dada pela filiação política, quer dizer, se existiam escritórios
integramente compostos por procuradores, estagiários e funcionários anti-fascistas e vice-versa.
76
organizando vários grêmios de ‘operários e funcionários’. Uma de suas defesas de maior
repercussão pública foram os chamados ‘presos de Bragado’, por pedido da Federação Obrera
Regional Argentina (FORA). Nesse processo, três militantes anarquistas foram acusados de
assassinato
143
.
O trabalho de assessoria legal nos incipientes e cada vez mais numerosos sindicatos e
associações de trabalhadores, a participação ativa e militante na causa do anti-fascismo,
parecem constituir para este ‘proletariado profissional’ uma nova fonte de formação,
profissionalização e legitimação
144
. Como assinala Suriano, o começo do século XX se
caracterizam pelo aumento das demandas trabalhistas e o incremento na taxa de
sindicalização, assim como dos índices de politização dos trabalhadores. Foi nesse momento
quando a questão social se fez plenamente visível e se transformou numa questão de
Estado”
145
. Foi nesses anos quando se criou o Departamento Nacional do Trabalho, onde
participaram alguns dos defensores descritos nestes capítulo e os Tribunais de Conciliação e
Arbitragem especificamente dedicados a dirimir as controvérsias resultantes dos contratos de
trabalho.
A importância destes espaços profissionais se evidencia nos obituários que seus
colegas da faculdade fizeram de Leônidas Anastasi, professor da Universidade Nacional de La
Plata no curso “Direito do Trabalho”. Seus colegas lembram como o rigor do jurista e seu
compromisso com a causa dos trabalhadores não se excluíam, pelo contrário, a primeira era a
continuação da segunda: “... em mais de uma oportunidade, suspendia seus estudos para se
deslocar até uma prisão e assumir a defesa de operários detidos injustamente pela perseguição
143
Para um detalhe desta defesa ver Sánchez Viamonte, 1971, pág. 77 a 83 e o livro do próprio acusado, Pascual
Vuotto, que leva como título “Yo acuso” em clara referencia ao célebre affaire Dreyfuss.
144
Como já fora antecipado na introdução da tese, seria muito importante, num futuro trabalho, explorar mais em
detalhe a relação entre este engajamento jurídico junto com o desenvolvimento do movimento dos trabalhadores
na Argentina daqueles anos e as políticas de Estado orientadas a este setor. vou delinear, por enquanto, as
principais linhas do seu desenvolvimento: em 1918, quando assume Hipólito Yrigoyen existia uma classe
operária pouco desenvolvida como resultado da ausência de centros industriais e do predomínio dos
trabalhadores artesanais. Ainda em 1914, o conjunto de pessoas empregadas na industria era de 410.000 sobre
aproximadamente 8 milhões de habitantes. A maioria deles estavam distribuídos em pequenas oficinas 48.000
estabelecimentos – que tinham em meia de 8 a 12 trabalhadores, sendo a exceção os que superavam os 100. Mais
do 38% do pessoal empregado nas industrias trabalhava na alimentação. Para 1916 começaram a se desenvolver
as indústrias ligeiras (tecido, calcado, metalurgia, química, etc). A organização dos trabalhadores era ainda
incipiente. em 1931 foi criada a CGT, que se definiu pelo seu apoio a Uriburu e Justo. Em 1931-32 se abriu
um período de grandes lutas operárias que chegou a seu ponto máximo no ano 1936, favorecido pelo fato de que
a classe operária tinha crescido quantitativamente e que já começava a se concentrar em grandes fábricas e
oficinas. Entre as greves se destacam a dos operários dos frigoríficos, a dos trabalhadores do petróleo e da
construção (a qual já fiz referencia numa secção anterior do capítulo aonde se relata a deportação dos dirigentes).
145
Em: Suriano, 2004:5. Sobre a questão social ver Suriano, op.cit. e Zimmermann, 1995.
77
que se fazia a seus dirigentes. Os trabalhadores do país choraram sua morte. Como não
houvesse ocorrido se o mestre viveu amando seu povo!”
146
.
O conjunto de transformações descritas modificaram o universo dos profissionais do
direito, instituindo novos espaços de formação prática, de inserção profissional e novos
critérios de legitimação entre o conjunto de pares. A posição adotada por os advogados
descritos se relaciona a uma maneira de perceber o exercício profissional em tanto ato de
militância, como se evidencia na prática gratuita destas defesas. Alfredo Palácios, muito antes
de fazer seu ingresso à LADH, tinha colocado uma Assessoria Jurídica Gratuita no Centro
Socialista do bairro de La Boca (1902) e tempo depois na Unión General de Trabajadores
(1905). O mesmo acontece com Carlos Sánchez Viamonte e com os restantes advogados
mencionados até aqui.
Porque o exercício da profissão os aproximava dos grêmios e sindicatos, as defesas
que eles levantavam não se restringiam aos casos que supunham uma aberta violação às
liberdades públicas. Seu compromisso com a causa dos ‘proletários’ os conduzia a denunciar
as transformações produzidas ao longo desses anos na legislação trabalhista e a maneira em
que ela afetava a vida dos trabalhadores, seus defendidos. O periódico Defensor Popular, por
exemplo, publica um detalhado analise das conseqüências da sentença do Tribunal Superior
de Justiça que declara ilegal a lei 11.729. Esta sentença significou que as empresas poderiam
demitir trabalhadores “... sem outra indenização que um ou dos meses de salário, mesmo que
tivessem trabalhado nesses estabelecimentos ao longo de vinte anos e mesmo que tivessem
deixado as energias dos seus melhores anos...”
147
.
A prática, tanto acadêmica quanto legislativa ocupou um lugar central em tanto espaço
de luta política e ideológica mas também em quanto instancia chave na aquisição de um
nome. Os integrantes das associações descritas nestas páginas atuaram como conselheiros
acadêmicos e, inclusive, como decanos das faculdades de direito de Buenos Aires e La Plata
ou como reitores destas universidades, como foi o caso de Palácios. Ambas as tarefas
estiveram dominadas pelo interesse em divulgar e traduzir ao direito positivo o ‘novo direito’.
Assim como Alfredo Palácios foi o criador da primeira cadeira de direito trabalhista no país,
146
Em: Anales de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad Nacional de La Plata, La
Plata. Tomo XI. Año 1940, pág. 910.
147
Em: Defensor Popular, año 1. N° 8. 1936.
78
José Peco criou a primeira cadeira de direito penal. Como juristas desenvolveram uma
volumosa obra, entre a qual se destacam os trabalhos de quem ganharia uma reputação de
‘reconhecido constitucionalista’: Carlos Sánchez Viamonte. Vale a pena salientar brevemente
os títulos de alguns dos livros de Sánchez Viamonte com o propósito de registrar a relação
entre seu engajamento jurídico e a prática acadêmica: El Habeas Corpus: la libertad y sus
garantías (1927), Hacia un nuevo derecho constitucional (1938) e Los Derechos del Hombre
en la Revolución Francesa (1956).
Entre os dirigentes destas associações civis se destaca também a importância dos seus
engajamentos partidários. Esta forma de militantismo cívico não constituía um compromisso
exclusivo. Os profissionais do direito descritos neste capítulo participavam da política
nacional. Entre eles podem-se reconhecer figuras notórias dos principais partidos políticos do
país como Alfredo Palácios (OS), Lisandro de la Torre (Partido Democrata Progressista),
Arturo Frondizi e Juan Atílio Bramuglia. Revisando os dados biográficos de 20 das
lideranças da Liga, pude identificar que 15 deles (75%) dedicavam-se profissionalmente à
política, como parlamentares, funcionários públicos ou cumprindo funções de representação
nas instancias nacionais de direção dos partidos políticos
148
. Assim, os liguistas Leônidas
Anastasi, Lisandro de la Torre, Ernesto Boatti e Mario Bravo compartilharam os espaços da
Câmara de Deputados e de Senadores da Nação. Estes dados parecem indicar que o
engajamento com a Liga não esteve fundado exclusivamente em fatores ideológicos e que
constituía uma atividade secundaria a outras múltiplas tarefas. Mas, como vai se ver, uma
tarefa que resultaria crítica na incorporação a esta militância cívica.
Através da sua atuação parlamentar, estes profissionais do direito criaram uma
importante legislação trabalhista, formulando e sancionando leis que regravam o jornal de
8hs. de trabalho, o salário mínimo, as férias pagas, o trabalho infantil, a licença maternidade,
o descanso do dia domingo, a indenização por demissão, a criação dos tribunais trabalhistas e
a indenização por acidente, entre outras. O engajamento com a causa anti-fascista os levou a
criar no Congresso Nacional uma Comissão de Inquérito sobre as Atividades Anti-Argentinas.
Esta comissão esteve integrada pelos deputados e liguistas Leônidas Anastasi e Eduardo
Araújo.
148
Estes dados forma elaborados para o grupo de lideranças com maior notoriedade pública (50%). Sobre o
restante, ainda não consegui completar o levantamento da informação, pela dificuldade em obter dados devido a
sua menor importância pública.
79
A intensidade de seus engajamentos públicos se verifica também a partir da sua
participação em outras associações civis como o Comitê Argentino contra el Racismo y el
Antisemitismo, o Comitê Pro-Amnistía a los Presos y Exiliados Políticos de América y la
Unión Latinoamericana. Verifica-se a pertença comum a uma nebulosa de organizações
opositoras ao regime, tanto partidárias quanto reivindicativas. A pertença sucessiva ou
simultânea a distintas esferas de ação é uma característica recorrente nas trajetórias destes
liguistas. A política, a atividade legislativa, o ensino universitário, o jornalismo e a literatura
os convocava por igual, como é o caso de Alfredo Palácios, primeiro deputado nacional eleito
pelo Partido Socialista, logo senador, embaixador e, simultaneamente, professor universitário
e reitor da Universidade Nacional de La Plata.
Pode-se capturar a complexidade com que se articulam todos estes espaços de atuação
pública, a maneira com que se vinculam as propriedades sociais de alguns de seus
protagonistas com os princípios de distinção que são próprios deste ativismo jurídico na
figura de uma defensora de presos políticos e sociais integrante do Socorro Rojo
Internacional: Nydia Lamarque (1906-1982). Neste universo predominantemente masculino,
Lamarque se distingue pelo fato de ser uma das primeiras mulheres advogadas da Argentina.
Segundo Delfina Muschietti, Lamarque fez possível esta ‘façanha’ devido a que ela era: “...
uma mulher de posse e de classe meia alta” que residia num prédio de uns dos bairros nobres
da cidade de Buenos Aires: Belgrano
149
. Desde finais do século XX, o bairro de Belgrano era
o local de residência das autoridade da Nação. Ali tiveram a sua residência vários presidentes
argentinos como Manuel Quintana, Marcelo Torcuato de Alvear e Agustín P. Justo. O bairro
se caracteriza também pela proliferação de clubes e colégios privados de comunidades
européias (principalmente inglesas, alemãs e francesas).
149
Em: Muschietti, 2003: pág. 21-44. Segundo Leiva, a presença de mulheres na Faculdade de Direito data de
1910 quando “… começam muito devagar a se incorporar à vida forense que a mentalidade dominante na
época não concebia a presença feminina na Casa dos Pleitos”. Em 1936 eram 36 as mulheres matriculadas no
foro portenho. Em: Leiva, 2005: 25 e 287. Vale a pena frisar a observação deste autor relativa ao lugar que hoje
tem as mulheres no setor privado da atividade: não existe nenhum grande escritório dirigido por uma advogada
(ibidem).
80
Tabela N˚ 2: Simultaneidade de compromissos associativos dos defensores de presos
politicos.
Nombre
Comité Pro
Aminstía
Comité
contra el
Racismo
LADH
Comité de
Ayuda
Antifascista
Socorro Rojo
Defensa
Popular
Ardigó, Héctor X
Anastasi, Leónidas X X X
Araoz Alfaro, Rodolfo X X X
Araujo, Eduardo X X
Bagu, Saúl X X
Berman, Gregorio X
Bravo, Mario X X X
Barros, Enrique X
Boatti, Ernesto X X
Bunge, Augusto X X X X
Cattáneo, Atilio X X
Cerda Delgado, Carlos X
Damonte Taborda, Raúl X X
Dang, Alfredo X
De la Torre X X
Dickmann, Enrique X
Eichelbaum, Samuel (inge X
Frondizi, Arturo X X X X X
Giudice, Ernesto X X
Gomez Masia, Roman X
Goldstraj, Juan X
Guibourg, Edmundo X X
Guillet Muñoz, Gervasio X
Guillet Muñoz, Alvaro X
Guillot, Víctor X
Jorge, Faustino X X X
Iturburu, Córdoba X
Icaza, Jorge X
Latella Frias X
Laurencena, Eduardo X
Mathus Hoyos, Arturo X X
Marianetti, Benito X X
Mariani, Mario X X
Marof, Tristán X
Martínez del Castillo, E. X
Mello, Barbosa X
Moog, Carlos X
Molina y Vedia, Mario X X
Molinari, Diego Luis X
Monserrat, Santiago X X
Moreau de Justo, Alicia X
Noble, Julio A. X X X X
Orzabal Quintana, Arturo X X X
Orgaz, Jorge X
Peco, José X X X
Ponce, Aníbal X
Portugal, Enrique X
Ramiconi, Luis X X X
Ravignani, Emilio X X X
Roca, Deodoro X X
Rojas Paz, Pablo X
Sánchez Viamonte, Carlos X X X
Sanmartino, Ernesto X
Stemberg, D. X
Tamborín, José X
Taborda, Saúl X
Torrasa, Atilio X
Troise, Emilio X
Tuntar, José X
Vaamonde, L.
Warschaver, Fina X
TOTAL 31 31 18 12 6 4
81
A figura de Nydia Lamarque e seu engajamento com a defesa de presos políticos
interessa em quanto condensa uma série de desafios ao que poderia aparecer como um destino
traçado de antemão: originaria de uma família da elite portenha, ingressa ao mundo
universitário pouco tempo depois do movimento da Reforma Universitária, ao que apóia.
formada como advogada, dedica seus esforços profissionais à defesa dos operários e
militantes anarquistas e comunistas. Filia-se ao Partido Comunista e se transforma num
quadro dirigente do mesmo ao tempo que milita pela causa da união latino-americana. Junto
com toda esta atividade profissional e política, participa simultaneamente do movimento de
vanguarda literária local e mantém uma estreita proximidade com uma ‘jovem promessa
literária do momento, o escritor Jorge Luis Borges, também originário de uma acomodada
família portenha e integrante do ComiArgentino contra el Racismo y el Antisemitismo
150
.
Junto com estas propriedades que a aproximam ao mundo dos intelectuais da época,
Lamarque foi também perseguida e detida como resultado de sua atuação como defensora.
Numa publicação da época ela aparece definida como “... corajosa escritora argentina, detida
e processada pelo governo do General Justo como produto de suas atividades como presidenta
do Comitê Nacional contra la Guerra”.
151
A imagem que aparece dela no periódico Socorro
Rojo a apresenta justamente numa posição desafiante, reconhecível no cigarro que leva na sua
boca.
152
Para quem aparecem como ‘recém chegados’ ao mundo do direito, o engajamento com
a causa anti-fascista e com a causa dos trabalhadores supõe uma ampliação do exercício do
direito por fora dos marcos em que ele se tinha praticado tradicionalmente. A elaboração de
uma legislação trabalhista, o patrocínio de trabalhadores e sindicatos, a criação de cadeiras de
direito trabalhista, de revistas jurídicas especializadas, o sustento de uma imprensa anti-
fascista, são todos espaços que vão ser ocupados pelos profissionais do direito examinados
neste capítulo e que se vinculam com esta maneira de exercer o direito em quanto prática
militante. Nestes espaços, estes ‘outsiders’ participavam em tanto ‘peritos’ em direito do
trabalho, direito penal e direito de asilo, reivindicando ao mesmo tempo, uma identidade
militante e distinguindo-se de quem possuíam um capital de relações ao interior do direito e
da política pela possessão de outros atributos, talvez mais intangíveis como o heroísmo, o
150
Como parte de esta atividade artística, Nydia Lamarque traduziu ao espanhol a obra completa de Baudelaire,
participou de várias revistas literárias como Nosotros, aonde também publicava Alfredo Palácios. Um dos seus
livros de poesia, Telarañas (1924) foi resenhado favoravelmente pelo próprio Borges.
151
Em: Boletín del Congreso Antiguerrero Latinoamericano. N° 1. 1932.
152
Lamarque foi quem levou a frente a estratégia de defesa política já descrita nas páginas anteriores do capítulo.
82
sacrifício e o desinteresse mas não por isso menos eficazes na hora de se fazer de um nome e
de uma posição ao interior deste espaço de relações.
A adoção deste engajamento público com a causa dos ‘proletários’, os ‘perseguidos’ e
os ‘pobres’ de parte dos ‘notáveis’ do direito e da política dotados de um nome e de um
significativo capital herdado de relações parece um fato difícil de compreender a simples
vista. O paradoxo parece se localizar no fato de que esta proximidade com os ‘outsiders’ lhes
tenha permitido fazer seu ingresso ao centro da vida política. No entanto, no mutante espaço
político de princípios do século XX, as estratégias de acumulação de notoriedade pública
deixaram de estar ligadas diretamente a posse de riqueza (principalmente fiduciária) como era
o caso das elites tradicionais. A decadência de algumas destas famílias como a irrupção na
política dos setores meios, fomentada pela mesma geração do 80 sobre a base da lei de voto
masculino segredo e obrigatório, transformou as condições de competição pela representação.
De forma tal que o uso experto do direito em defesa das injustiças e dos excluídos se
converteu num recurso crítico de distinção perante potenciais competidores, como o
anarquismo e o comunismo, ou ao interior dos próprios partidos de pertença, ao permitir a
acumulação de um capital extremadamente valioso como é o capital moral.
Parlamentares, advogados, professores universitários, juristas, assessores de sindicatos
e grêmios, jornalistas, poetas, escritores e dirigentes políticos são todos os atributos que
compõem a figura do advogado engajado com a causa dos direitos do homem. Longe de se
excluir uns com os outros, todas estas múltiplas formas de representar a sua posição pública
adquirem sentido dependendo do contexto de interação. Nas figuras estudadas neste capítulo
se encontra esta multiplicidade de funções e de espaços de pertença. A possibilidade de
combinar com sucesso todos estes âmbitos de atuação parece derivar das próprias condições
do exercício profissional do direito e da política profissional, caracterizados ambos dois pelo
fato de possibilitar uma relativa independência econômica e disponibilidade de tempo.
Segundo assinala Laurent Willemez, “A profissão de advogado constitui uma condição de
possibilidade de um engajamento público pela liberdade de organização que oferece e pela
possibilidade de uma independência econômica”
153
153
Em: Willemez, 2003. Minha tradução.
83
Nestes espaços múltiplos e através destas múltiplas pertenças, estes professores,
juristas, vítimas da ditadura e predicadores da causa pelos direitos do homem se reconhecem e
são reconhecidos pelos pares a partir da possessão de um conjunto de atributos ou qualidades
próprias do perfil de advogado defensor de presos sociais e políticos.
1. 6 Uma causa internacional
A criação destes espaços associativos assim como a adoção de uma retórica específica
ligada aos ‘direitos do homem’ revelam o importante grão de internacionalização da disputa
‘fascismo / anti-fascismo’ a escala mundial e particularmente na Argentina. A importância
que para esta militância tinha o fato de adscrever à luta contra o fascismo coincide, sem
dúvidas, com o caráter massivo da imigração de cidadãos originários da Europa.
154
Dentro
deste contexto, desde fines do século XIX, a Argentina tinha começado a receber refugiados
políticos que, havendo tido uma ativa participação na vida política européia, tiveram que fazer
abandono dela pelo fato de serem perseguidos logo da derrota da Comuna, da Primeira
República Espanhola ou da promulgação das leis de Bismark na Alemanha. A partir de 1930,
ano do golpe de Estado de Uriburu, se juntaram os espanhóis republicanos que procuravam
asilo na Argentina, uma população integrada maiormente por intelectuais e setores
privilegiados (calculam-se uns 40.000). Procuraram refugio também no país inumeráveis
intelectuais de países limítrofes como Chile, Peru, Paraguai e Brasil, países aonde imperava a
lei marcial, o Estado de sitio e os governos de facto. Entre estes imigrantes se encontravam
numerosos advogados como Jiménez de Azúa, reconhecido penalista espanhol, militante do
anti-franquismo e professor da faculdade de direito de Buenos Aires que se constituiria numa
referencia obrigada da geração dos advogados militantes na causa dos direitos do homem
estudados neste capítulo
155
Estes refugiados participaram ativamente na consolidação do movimento sindical e
político local tentando replicar a experiência européia. Em aqueles anos, muitos estrangeiros
se encontravam ao frente dos principais partidos políticos, como o socialista (1896) e dos
154
Alguns breves dados estatísticos revelam a importância deste fenômeno: entre 1880 e 1914, o 70% da
população da cidade de Buenos Aires estava integrada por imigrantes europeus e este porcentual chegava ao
30% nas principais cidades do interior do país (Córdoba, Santa Fé). Segundo dados do CELMA, a Argentina foi
o país de América latina que recebeu maior quantidade de imigrantes europeus. Em:
www.cemla.com.
155
Segundo dados do Handbook of the River Plate (1892), em 1887, ao início do processo imigratório, exerciam
em Buenos Aires 249 advogados estrangeiros. Em: Leiva, 2005: 239.
84
nascentes grêmios da época, ao frente das primeiras greves operárias do país (1878). É
evidente que tanto a LADH quanto o Socorro Rojo não foram invenções nacionais mas
herdeiras desta mesma tradição e respondiam a modelos criados previamente na Europa: a
Ligue Française des Droits de l’Homme et du Citoyen (1898), la Fédération Internationale de
Droits de l´homme (1922) y la Ligue Internationale contre le Racisme et l´Antisémitisme
(1927), associações todas que no período de entre - guerras viviam uma sorte de ‘idade de
ouro’ deste tipo de vocação militante.
156
A participação das associações civis de defesa dos direitos do homem na causa
internacional contra o fascismo levava a marca das ligações criadas entre a Argentina e os
distintos países da Europa e de América latina a partir do fato de que as próprias vítimas
locais do fascismo eram apressadas no exterior e na Argentina se encontravam presentes
refugiados destes mesmos países. As denuncias formuladas publicamente por estes advogados
referem diretamente a este espaço internacional. A capa do primeiro número do periódico
Amnistía, por exemplo, reproduz os telegramas enviados por vários liguistas e dirigentes
políticos nacionais solicitando a Vargas o indulto de ‘jovens revolucionários’ argentinos
detidos no Rio de Janeiro como assim também ao presidente de Bolívia ‘clemência’ para o
escritor boliviano Tristán Maroff que, ‘foi deportado pelo governo argentino, pisoteando o
sagrado direito de asilo da nossa pátria’. Como assinala e denuncia o liguista Mario Bravo nas
páginas de Amnistía, é tarefa dos integrantes destas associações procurar os meios de garantir
o direito de asilo para estes exilados porque: “... assim como as polícias se intercambiam
reportes e se entregam presos, os governantes se permitem oferecer ajuda ao tirano que está
envolvido em problemas com a policia interna do seu país, se criando, deste modo, entre as
classes governantes, uma nova forma de solidariedade que vai se chamar ‘aliança ofensiva e
defensiva contra o socialismo, o comunismo, o extremismo”.
157
156
No momento em que a LADH foi criada, já existiam seus equivalentes na Franca, Bélgica (1901), Espanha
(1913), Alemanha (1914) e Áustria (1925). Em América latina, se tinham criado filiais em Chile e Uruguai
(Comitê para la Defensa de los derechos individuales). No Brasil, a Aliança Nacional Libertadora, dirigida por
Álvaro Guillot Muñoz, também tinha esse perfil. Para uma história da Liga Francesa pode-se consultar o
trabalho de Agrikoliansky, 2002.
157
Em: Amnistia. Año 1, 1, Março de 1936. Grifos meus. Isto aconteceu com o intelectual boliviano Tristán
Maroff a quem, por pedido do próprio governo de Bolívia, o Estado argentino lhe tinha outorgado a condição de
asilado político. Logo foi deportado a Bolívia aonde tinha uma condena a morte. O advogado e integrante do
Comitê pro Amnistia a los Presos y Exiliados de América, Rodolfo Araoz Alfaro foi quem assumiu a defesa de
Maroff. Outros exilados, como Alfaro Sequeiros eram detidos na Argentina violando o direito de asilo outorgado
pelo país. Neste caso, foi Mario Bravo quem assumiu a defesa dele. Numerosos dirigentes argentinos do Partido
Comunista (Ghioldi), socialista e radical (Luzuriaga) tinham sofrido detenções e torturas no Rio de Janeiro e
Montevideo. A denuncia da colaboração entre as forças de seguridade dos países limítrofes na repressão aos
85
Como sugerem as expressões de Bravo, esta internacionalização do movimento anti-
fascista ia a par da internacionalização do próprio movimento fascista que também formava
núcleos de prédica a favor do regime fora do espaço europeu. Na América latina, as práticas
repressivas dos países vizinho também tinham fortes semelhanças, especialmente no que se
refere à aplicação da lei de Residência. Isto porque, como se assinala no periódico Amnistia,
“Na maioria dos países de a nossa América do Sul imperam regime legais de exceção.
158
No
entanto, as relações entre os governos da época ‘ameaçados pelo perigo do comunismo
internacional’ também não eram fáceis e pareciam requerer o estabelecimento de acordos
internacionais, como parece sugerir a proposta de chegar a um acordo formal a respeito dos
detidos por motivos políticos: logo de sua reunião com representantes do governo brasileiro, o
chefe da policia da cidade de Buenos Aires declarou: “... que o governo está disposto a
colocar um fim a costume dos países limítrofes de colocar na fronteira aos opositores”
mediante a deportação dos exilados” (ibidem).
Testemunho da participação destes profissionais do direito no espaço internacional é a
participação de integrantes da LADH na Conferencia Internacional sobre Asilo em Paris, a
organização de comícios locais em comemoração do Dia da Fraternidade das Raças instituído
na Franca e a conformação de filiais da LADH no Chile e do Comitê Pro Amnistía de los
Presos y Exiliados Políticos de América no Uruguai, presidido pelo advogado, deputado e
dirigente do PS e exilado, Emilio Furgoni. Participavam também na criação destes espaços
delegações de exilados de Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Peru e Chile, como aconteceu
no caso da LADH. Alguns anos depois, em 1948, Raúl Bustos Fierro, presidente da LADH
participou na redação da Carta Universal dos Direitos Humanos.
Estes vínculos internacionais faziam parte das relações criadas com outras agencias
internacionais com as quais os dirigentes destas associações locais também mantinham uma
estreita proximidade, especialmente com aquelas ligadas ao mundo do trabalho e do
sindicalismo. Entre elas se destaca a Oficina Internacional del Trabajo (OIT) a qual pertencia
um dos fundadores da Liga, Leônidas Anastasi. Os assessores jurídicos da OIT também
estavam engajados na denuncia de detenções de delegados e dirigentes trabalhistas e no
oponentes vai ser uma das peças chaves do trabalho de denuncia mobilizado em volta à causa dos direitos
humanos nos anos 80 (capítulo 3).
158
Em: Amnistia. Año 1, N° 1, Março de 1936.
86
reclamo da ‘liberdade de todos os presos sociais dos países do continente americano’.
Dispunham eles também de um serviço jurídico cujos profissionais se apresentavam como
‘observadores’ in situ das ações de perseguição ao movimento sindical e produziam reportes
sobre o respeito aos direitos de sindicalização e de greve. Faustino Jorge, integrante da Liga,
participou como ‘assessor jurídico’ da delegação de observadores destacada no Chile pela
Confederação Sindical Latino-americana. Como se vai ver no capítulo 3, a maior importância
que estas instituições internacionais e seus peritos adquiriram a partir dos anos setenta, vai ser
um das chaves no processo de profissionalização dos advogados na causa pelos direitos
humanos.
Estas vinculações se verificam também nas próprias trajetórias dos integrantes de
associações como a LADH. O dirigente liguista Orzábal Quintana tinha se formado em
ciências políticas na Sorbone, Paris. Leônidas Anastasi foi presidente da delegação argentina
à Primeira Conferencia Internacional do Trabalho celebrada em 1919 em Washington. No seu
obituário se destaca: “Conhecido na Europa através de seus escritos, ele era conhecido na
Itália por Carnelutti, Greco e Barassi e na Franca por Jacques Lambert, quem destaca em uma
de suas últimas publicações o trabalho do doutor Anastasi”
159
Outros mantinham estreitos
vínculos com especialistas europeus, como foi o caso de Alfredo Palácios, quem desde seu
cargo de reitor da Universidade Nacional de La Plata convidou a nomeados professores e
juristas europeus e traduziu quase em simultaneidade com Europa importantes obras jurídicas.
A importância destes vínculos se colocou de manifesto quando, em 1943, logo de um
novo golpe de Estado militar, Palácios, como reitor daquela universidade, rejeitou um decreto
de expulsão de professores, se demitiu da função e partiu ao exilo em Montevidéu. Perante a
estes fatos, um grupo de professores de EEUU, encabeçado por Albert Einstein se solidarizou
publicamente com o renunciante a quem qualificaram de ‘herói da democracia mundial’ e
‘vítima do governo de facto’
160
. Recebeu também a solidariedade de Romain Rolland e de
professores europeus aos que tinha conhecido durante as suas ‘missões’ universitárias em
EEUU, Europa e América latina realizadas com o propósito de ‘predicar’ a Reforma
Universitária. Em Uruguai, Brasil, Bolívia, Peru, Paraguai e México tinha atuado também
como professor convidado, coincidindo com situações prévias de exílio na Argentina vividas
159
Em: Anales de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad de La Plata. La Plata. Tomo
XI. Ano 1940.
160
Em: Palacios, 1946:23.
87
pelos advogados e professores de direito que, uma vez voltados a seus países de origem,
faziam, pela sua vez, de anfitriões de Palácios, Sánchez Viamonte e muitos outros. Estes
convites sugerem a proximidade que existia nesta esfera internacional entre este conjunto de
profissionais do direito, intelectuais e figuras da política dos países de América latina. Os
advogados das associações de defesa dos direitos do homem tinham atuado como defensores
destes acadêmicos estrangeiros ou os integraram aos comitês executivos de organizações
locais como o Comitê Pro Ayuda a los Presos y Exiliados de América.
A adoção do engajamento com a causa anti-fascista, com os ideais democráticos e com
a defesa dos ‘direitos do homem’ não era então uma conseqüência exclusiva dos tempos
que corriam mas também resultado das estreitas relações preexistentes, incluindo as
estabelecidas entre as comunidades acadêmicas de Europa e Argentina. Relações
possibilitadas pela disponibilidade de recursos para participar deste universo
internacionalizado por parte dos dirigentes descritos acima (recursos que incluíam tanto a
competência lingüística quanto um importante capital de relações sociais). Esta
internacionalização esteve possibilitada, pela sua vez, pela prematura internacionalização das
elites dirigentes locais que, em termos de idéias e instituições, sempre tiveram uma forte
influencia internacional e, inclusive, se tem apoiado em distintas estratégias de
internacionalização como uma forma de ganhar poder político local. Fato que se correlata,
segundo com Dezalay e Garth, com a significativa debilidade das instituições do Estado e a
importância do capital e da legitimidade estrangeiras – incluindo o direito - nas lutas políticas
locais.
161
1. 7 Ser um advogado defensor de presos políticos
Na procura de uma posição dentro do universo do direito e da política, estes
profissionais engajados com a defesa de presos políticos e sociais foram vistos como
potenciais concorrentes na representação do interes público. se viu nas páginas anteriores
como os dirigentes anarquistas e os dirigentes sindicais desqualificavam o engajamento destes
advogados apresentando-os como ‘homem de estudo’ sem conhecimento do mundo dos
161
Em: Dezalay e Garth, 2002.
88
trabalhadores. Os partidos políticos aos que estavam afiliados também os sancionavam por
transpassar as fronteiras partidárias e assumir defesas das lideranças de outros partidos que o
de pertença.
89
Desde o extremo oposto do espectro ideológico, estas associações eram
desqualificadas também com o argumento de constituir simples camuflagem dos interesses do
comunismo e eram acusadas de utilizar a ‘táctica’ de se apresentar como ‘vítimas de
perseguições’ de entidades nacionalistas. Num folheto publicado na revista Clarinada
intitulado “A verdade sobre a LADH” se desqualificava aos ‘advogados’ e ‘intelectuais’
integrantes da Organização Popular contra o Racismo e o Anti-semitismo, ao Socorro Rojo,
do Comitê Pro Amnistia de Presos y Exiliados Políticos de América e da Liga por contribuir
ao engano da opinião blica nacional em quanto aos verdadeiros fins destas associações. A
defesa dos direitos do homem era um camuflagem detrás do qual se escondiam quem
estavam interessados em levar a frente a estratégia do Frente Único ou Frente Popular
proclamada pelo comunismo internacional. Esta revista, cujo propósito declarado era o de
combatir abertamente ao judaísmo, ao comunismo e ao socialismo, se propunha ‘tirar a
máscara’ da Liga apresentando como ela contribuía a ‘engrandecer’ as filas do PC. Através
deste tipo de associações, o PC “... pode levar à ação no Frente Popular a muitos elementos e
setores que, sem ser comunistas, simpatizam com a ação político-social a desenvolver neste
novo organismo”. Desde o ponto de vista de Clarinada, este seria o caso do senador do PS e
presidente da LADH, Alfredo Bravo que, sem ser publicamente comunista, pode atrair, pelas
suas vinculações sociais, políticas e pessoais, a muitos elementos necessários para esse
movimento democrático-liberal só em aparência, mas que no fundo, é disciplinadamente
dirigido pelo PC”.
162
A apresentação no Senado de um projeto dispondo o fechamento da
Liga pelo senador Sánchez Sorondo esteve motivada na suposta ação política ‘encoberta’.
Esta proposta testemunha também as tensões envolvidas no reconhecimento desta causa.
No contexto destas desqualificações, os integrantes destas associações construíram
princípios de representação do seu engajamento jurídico a partir de um conjunto de qualidades
valiosas como o sacrifício, o desinteresse e o heroísmo, que lhes permitiram aspirar a uma
certa legitimidade dentro deste jogo complexo de competências acadêmicas, políticas e
profissionais. Estas acusações todas evidenciam, paradoxalmente, o reconhecimento de algum
tipo de autoridade aos acusados, em quanto se lhes reconhece como adversários legítimos.
163
162
Em: Clarinada. Bs. As. Ed. Patria. S/d. Esta revista foi publicada entre 1937 e 1945. Segundo os fatos que
são descritos, poderia-se pensar que o folheto descrito foi publicado em 1938.
163
No seu trabalho sobre ‘a invenção do peronismo’, Federico Neiburg ilustra, para o caso dos embates ao
interior do mundo intelectual sobre a natureza do peronismo, os princípios que governam as lutas pela honra.
Neiburg, 1988.
90
Em volta destas qualidades e no processo de impugnar ao Estado, é que este segmento
da profissão jurídica se constitui como uma comunidade moral. Estas qualidades organizam a
vocação pela causa, um compromisso que assumem como uma consagração a valores
fundamentais e transcendentes.
1. 7. 1 A ‘inteligência’ e a ‘ilustração’ como armas de luta
Entre os princípios de representação do advogado engajado com a defesa dos presos
políticos é possível achar que, ao tempo que se definiam como profissionais próximos ao
‘povo’ ou a ‘classe operária’, simultaneamente se posicionavam por fora destes grupos ao se
identificar publicamente como ‘intelectuais’ preocupados por desenvolver um ‘trabalho que
levasse ao esclarecimento popular como único caminho prévio a ação’.
164
Nesta luta em
defesa dos direitos do homem suas armas são ‘a inteligência’ e sua ‘ilustração’:
“El Dr. Carlos Sánchez Viamonte, que incurriera en el delito de no poder soportar
en silencio la subversión actual de las instituciones en la provincia, se encuentra
preso (…) Bienvenido una vez más este joven (…) que ha decidido dedicar toda la
fuerza de su inteligencia y de su ilustración para levantar su clamor de protesta por
los vicios que corrompen la dignidad de las instituciones”
165
Num universo habitado por setores meios intelectuais e profissionais, as qualidades
valoradas são aquelas que se caracterizam por estar ligadas às competências culturais e, mais
especificamente, a capacidade reconhecida de fazer uso da palavra em representação dos
outros. Assim, o presidente da Liga, Mario Bravo, é definido como “... uma das
personalidades de maior destaque da política Argentina. Poeta, jornalista, escritor, orador,
ele reúne as condições essenciais para atuar com eficácia em defesa de uma grande causa: a
causa da libertação humana”.
166
Nestas mesmas qualidades são destacadas na figura do
liguista Alfredo Palácios pelo fato que seu ‘ataque à ditadura’ constitui ‘uma exposição
164
Esta breve análise da representação do profissional do direito como intelectual pretende servir de
complemente ao exame das redes de sociabilidade que forjam a este segmento da profissão jurídica. Pretendo
aqui seguir a sugestão de Gerard Leclerc de dar prioridade ao exame destas redes ao invés da análise das
ideologias. Em: Leclerc, 2003.
165
El Argentino. Em: Sánchez Viamonte, 1971: 44.
166
Derechos del Hombre. Grifos meus.
91
orgânica, erudita, fundamentada e militante’ e do fato que sua prédica fosse definida como
um ‘Breviário prático de civismo’.
167
Estas descrições põem de manifesto que, os combates aos que estavam dedicados não
se desenvolveram no judiciário mas que também supõem o uso público da razão e se
baseiam nas armas fornecidas pela cultura: organização de debates, exposições, palestras, etc.
As inúmeras intervenções públicas nas quais participavam, discursos no parlamento, palestras
na universidade, defesas perante os tribunais, comícios nas ruas, evidenciam a importância
adjudicada a estas armas. O mesmo acontece com a escrita, exercitada em livros e artigos
especializados em direito, relatórios técnicos, projetos parlamentares, ensaios políticos, cartas,
alegados, demandas e literatura dirigida a um público de não especialistas como abaixo-
assinados, documentos e artigos de divulgação publicados pela imprensa. Neste contexto se
explica a linguagem bélica recorrentemente utilizada por estes defensores: no seu
engajamento com a causa, se ‘luta’, se ‘ataca’ e se ‘está em alerta contra todas as ousadias da
direita’. Em 1943, logo de outro golpe de Estado, Alfredo Palácios exprimia desde seu exílio
uruguaio, “Faço abandono do país com uma dor imensa, procurando um posto de luta contra a
ditadura”.
168
Nas suas publicações podem-se reconhecer algumas das disposições que configuram a
estas figuras do direito em tanto intelectuais públicos: o tipo de retórica utilizada em seus
escritos é caracteristicamente panfletária. Trata-se de ‘programas de ação’ e ‘declarações de
princípios’ escritos num tono incendiário, polemico (em quanto a ‘polemica é o único
caminho do esclarecimento’
169
) e acusatório. Através desta escrita se ‘tira o camuflagem’ dos
‘verdadeiros’ propósitos do regime e, inclusive, se acusa a quem são percebidos como
pertencendo à mesma causa e ao mesmo universo de relações, como acontece, por exemplo,
com os parlamentares do PS que são acusados nas páginas do Socorro Rojo de ‘cobardes’,
‘tímidos’ e ‘colaboradores da reação’ por rejeitar a denunciar, na interpelação ao Ministro
Melo, a aplicação de torturas aos perseguidos políticos.
170
Estas qualidades da escrita
colocam de manifesto a importação de competências e de recursos entre o campo profissional
e militante.
167
Em: Herrero, 1946.
168
Palacios, 1946:25.
169
Em: Contra-fascismo. 1936:1.
170
Os integrantes do Socorro Rojo reproduzem o diário de sessões para deixar em evidencia a fraqueza do
deputado Iribarne (PS) quando no parlamento falou: “Não diz que eu tenho casos concretos de torturas aplicadas
a detidos políticos” quando fora pressionado pelo ministro a apresentar provas das acusações. Em: Socorro Rojo.
92
93
Todo este desdobramento de recursos, tempo e esforço dedicados à escrita e ao
exercício da palavra colocam em evidencia o fato de que estes advogados vivem para as
idéias, mesmo que seja à custa de seu próprio patrimônio, como nos casos em que eles
mesmos financiam os periódicos das associações. Trata-se de figuras que, misturam tanto o
perfil de especialista com o de intelectual engajado. Ao fazer-lo traspassam os marcos de sua
profissão para fazer da escrita sobre os problemas públicos uma parte central de sua atividade.
Através deste engajamento militante eles se vem dotados de uma grande visibilidade pública,
o que torna-se num recurso crítico na hora de exercer as defesas e somar adesões à causa de
seus defendidos, como fica claro nas repetidas referencias à necessidade de ‘pressionar aos
tribunais’ mediante a ocupação das ruas, comícios e manifestações públicas.
A participação neste conjunto de associações civis se compreende então como parte de
uma movimentação de indivíduos dotados de uma grande autoridade intelectual reunidos em
volta a uma causa ‘superior’: a luta contra ‘a ditadura’, a defesa da ‘liberdade’ e as ‘garantias
individuais’, luta na qual as disposições próprias da figura do intelectual resultavam críticas
na ocupação de uma tribuna das ruas, na organização de periódicos, boletins, manifestos,
documentos, abaixo-assinados, etc.
Levando em conta a sugestão formulada por Louis Pinto referida à figura do
intelectual na Franca de começos do século XX, seria possível para o caso Argentino
relacionar o processo de reforma universitária e o aumento do número de recém formados e
estudantes na universidade com o surgimento de um principio de legitimidade propriamente
intelectual, baseado na competência acadêmica e dotado de garantias institucionais
171
.
Investidos destes poderes, a expressão do desconforto vai estar mediada por estes
profissionais do direito que tem com os seus defendidos uma relação profundamente
assimétrica desde o ponto de vista social. Trata-se de intelectuais e profissionais que
defendem os processos dos presos sociais, juristas e acadêmicos que defendem as causas dos
deportados. Esta distancia diminui quando os defendidos são seus próprios pares, quer dizer,
quando os advogados e políticos profissionais que provem dos países limítrofes se encontram
exilados na Argentina.
171
Em: Pinto, 1984.
94
1. 7. 2 O culto ao desinteresse
Neste contexto de distancia social e proximidade ideológica com os interesses dos
defendidos, as referencias ao patrimônio ou a riqueza estão praticamente ausentes nas
trajetórias destas figuras. Inclusive aqueles filhos de famílias de renome procuravam
deliberadamente construir uma imagem pública de austeridade e privação, como são os casos
exemplares de Carlos Sánchez Viamonte e Deodoro Roca.
172
Quem representa o paradigma
desta vida austera é outra vez Alfredo Palácios quem, tendo sido eleito deputado e senador vai
doar o 50% da sua dieta ao PS de modo que “... vai morrer em digna pobreza, sem outros bens
materiais que seus livros, um velho Chevrolet (...) e seus objetos pessoais”
173
.
Uma qualidade crítica ligada a este perfil de setores meios profissionais e intelectuais
aos que pertenciam os integrantes destas associações é o culto ao ‘desinteresse’ no
engajamento com as timas e o triunfo da verdade. Os liguistas e demais advogados
consagravam o essencial de suas atividades militantes a lutar pelos direitos nos quais eles
mesmos não eram os beneficiários. Os affaire por eles assumidos são normalmente aqueles
que envolvem, por um lado, a um individuo vitima de uma injustiça cometida pelo Estado, o
Estado e aos militantes e dirigentes de associações como a Liga como defensores de causas
contra as arbitrariedades do Estado: fechamento de sedes sindicais, deportações, censura, etc.
No discurso dos advogados, o exercício da atividade profissional (remunerada)
aparece diferenciado da ação em defesa dos perseguidos políticos e sindicais, a qual
qualificam como ‘um engajamento ineludível para com o imperativo republicano’. No
cumprimento deste ‘saber cívico’, seus estudos se converteram em “escritórios profissionais
dedicados à defesa gratuita dos trabalhadores...”
174
Este é o perfil que aparece esboçado com
clareza na seguinte descrição do liguista Carlos Sánchez Viamonte na ocasião de ter sido
detido por exercer a defesa pública de um grupo de sindicalistas:
172
Para uma resenha da vida de Deodoro Roca se pode ler o trabalho de Sanguinetti, 2003. Para uma resenha da
vida de Sánchez Viamonte se pode ler a autobiografia, 1971.
173
Em: García Costa, op.cit. :358.
174
Estas qualidades foram reconhecidas pelos pares como Alfredo Palácios quem definiu a Sánchez Viamonte
como “...um paradigma na defesa dos trabalhadores”. Carlos Sánchez Viamonte, op.cit.: 138
95
“El sacrificio del Dr. Sánchez Viamonte es el de un ciudadano patriota, recto y
justo, que defiende el interés público, que lucha por la causa del pueblo, que
anhela el reestablecimiento de la libertad y de la justicia, que persigue a los
ladrones del sufragio y a los de los caudales públicos. Su causa es una causa
colectiva en la que él no lucra ni moral ni materialmente…Es menester colocarlo
bien alto, hacer resaltar nítidamente su dignidad como justa compensación a su
condena…”
175
A entrega à causa por sobre a consideração do próprio interes constitui um emblema
para este conjunto de profissionais militantes. A acumulação deste capital moral se revela nas
resenhas de todas estas figuras comprometidas com esta forma de exercer o direito. A
nobreza, os ideais e o compromisso moral com os outros se destacam como qualidades
supremas e se verificam, inclusive, nos traços da vestimenta ou da aparência física, como se
evidencia na seguinte descrição:
“Palacios ostentaba la jerarquía de algo más noble, de algo más trascendente que la
de un simple representante de la política. (...) no se contemplaban sus bigotes
mosqueteriles o su aludo chambergo bohemio sin que uno se dejara dominar por la
evocación de los tiempos antiguos y románticos, es decir, nobles y puros. Alfredo
Palacios, más que un hombre, era un mbolo del idealismo, de la vocación, de los
sueños...”
176
A exaltação da ética do compromisso total com as vítimas aparece dentro deste
universo político e profissional como o recurso privilegiado utilizado por estes atores para
afirmar a autonomia do seu compromisso militante respeito dos interesses temporais da
política. A causa pretende se construir como uma causa cívica e não como uma causa política.
Por isso, a participação deve ser nobre e desinteressada. Ao interior desta comunidade moral,
a atribuição de um interes partidário oculto se torna uma ferramenta chave de desqualificação:
são repetidas as acusações mutuas de utilizar o assessoramento jurídico como ‘fachada’ de
interesses políticos. A resposta que da o Socorro Rojo perante a acusação dos próprios pares
do PS é indicativa do universo moral constituído em volta a esta causa e das estratégias de
impugnação pública de seus integrantes: “... os operários socialistas sabem bem,
175
Palavras do diretor do jornal El Argentino, Dr. Tomás R. García. En: Sánchez Viamonte, 1971.
176
Editorial do jornal La Capital publicada el 05.10.1943 con motivo do exilio de Palacios. En: Palacios, 1946.
op.cit. pág. 27.
96
especialmente aqueles que caíram nas garras de Uriburu (...) que o Socorro Rojo não faz
ideologia para fornecer de ajuda e socorro à uma vítima da reação
177
. A suspeita de
parcialidade e de interes no engajamento militante atua como um princípio de desqualificação
pública. A partir dos anos 80, com o proeminência alcançada pelas associações de parentes
das vítimas, quem possam exibir um vínculo do sangue com as vítimas vão ser quem se
coloquem na cúspide deste engajamento com a causa, como um fato que parece se derivar da
natureza do vínculo.
178
Podem-se compreender as denuncias publicas apresentadas pelos advogados
defensoresde presos políticos e sociais sobre o comportamento profissional de seus pares no
contexto deste universo de valores. Nestas denuncias é possível identificar, pelo contraste, o
compendio de virtudes morais que caracterizam aos advogados militantes na causa pela
defesa dos direitos do homem e os recursos contrastantes que os autorizam. No periódico do
Socorro Rojo se reproduz a seguinte acusação:
“El Sr. Eduardo Newton, abogado y ex camarista, aceptó, previo pago adelantado
de unos cuantos miles de pesos, la defensa de unos obreros procesados. Su
‘muñeca’ y sus ‘influencias’ garantizaban la libertad de sus defendidos. En toda la
secuela del juicio no presentó un solo escrito y cuando sus patrocinados fueron
condenados, arguyó en su descargo que ‘él trabajaba de otra manera’
179
Este caso apresenta a contraposição entre o advogado engajado com a causa dos seus
defendidos, em quanto parte de uma causa maior e o advogado que utiliza simplesmente seu
saber experto e profissional no trabalho de defesa. Enquanto uns trabalhariam de graça, no
outro caso, o valor material do trabalho é colocado como condição para a prestação do
serviço. Enquanto uns contam com recursos simbólicos (honestidade, compromisso,
inteligência) os outros contam com um capital de relações sociais que os fazem atraentes para
o sucesso de uma defesa. Muito mais grave é o caso do advogado cujo compromisso
profissional não lhe impede assumir a representação de causas cujos implicados pertencem a
bandos opostos. Assim, em Defesa Popular se qualifica o seguinte caso como um fato ’limite’
e que ‘merece ser pesquisado’: o Dr. José C. Castells, mantendo uma ‘estreita amizade com
177
Em: Socorro Rojo. Año 1. 2da. Época. N° 6. 10. 06. 1932.
178
Para um análise dos princípios constitutivos do atual movimento pelos direitos humanos ver: Vecchioli, 2005.
179
En: Socorro Rojo, grifos no original.
97
os chefes do nazismo’ e assumindo ‘a defesa de todos os alemães que são levados à justiça’
defendeu também a vários presos comunistas.
180
A expulsão de Antonio De Tomaso do PS em 1927 aparece fundada neste mesmo
universo de representações. De Tomaso era um jovem advogado que provinha de uma família
pobre que se desempenhava como mecanografo na faculdade de direito da UBA. Foi expulso
do partido ao assumir a defesa jurídica de um ‘patrão’. Nesta situação interessa colocar em
destaque tanto a razão verdadeira da sua expulsão do partido, seu apoio à candidatura de Justo
como a intervenção deste princípio ético referido ao exercício da profissão como um
instrumento de disciplina partidária. Referendo-se as lideranças que, tendo defendido a
mesma causa anti-fascista, se somaram logo ao governo de Uriburu e Justo, o periódico
Amnistía assinalava a importância de alcançar “... a retificação dos desvios dos homens que
esquecem seu passado de luta na hora do sucesso político, a maior parte das vezes transitório
ou circunstancial”
181
1. 7. 3. O sacrifício pela causa
Esta custodia sobre a conduta ética do defensor de presos políticos se compreende si se
levam em conta que estes profissionais do direito se percebem a sim mesmo, não como
detentores de um simples saber experto mais como indivíduos dotados de uma ‘vocação ao
compromisso cívico’ e consagrados a uma ‘missão’ transcendente orientada ao ‘bem-estar
comum da humanidade. Seu estatuto profissional leva o atributo de uma imersão completa do
individuo na defesa da causa e de seus defendidos. ão que é enunciada em termos de
‘sacrifico’. São recorrentes as menções a respeito do ‘sacrifício’ do advogado que se ‘entrega
por inteiro’ a defesa dos direitos do homem. Segundo estes princípios de identificação, estes
advogados se percebem como os garantes dos valores considerados ‘sagrados’ ou
‘transcendentes’: a liberdade, a democracia, o direito de asilo, os direitos do homem. As
publicações periódicas, a tribuna da rua, são os espaços adequados para revelar a ‘verdade’
sobre os propósitos ‘ocultos’ do fascismo, das reformas parlamentares, dos discursos oficiais
e ‘predicar’ esta religião cívica.
180
Em: Socorro Rojo. 1936.
181
Em: Amnistía, 1936. N° 1.
98
Neste contexto de representações, a defesa dos direitos do homem devem em utopia de
redenção coletiva. Ao assumir esta causa, é tarefa destes profissionais ir apresentando as
sinais do iminente futuro promissório. Caracteristicamente, os artigos aparecidos na imprensa
destas associações finalizam com a promessa imediata da redenção:
“... La ola del espíritu militarista que envuelve el mundo va perdiendo poco a
poco su vigor. Ya se notan los resplandores de la reacción popular que iluminará
las mentes de los hombres sanos (...) Ya está próximo el día en que todos los seres
humanos de este continente podrán estrecharse las manos sin la prevención
jurídica que ahora establecen las fronteras custodiadas por bayonetas (...) Ojalá
llegue prestamente esa luz
182
.
Todos estes atributos que fazem à representação pública do advogado defensor de
presos políticos parecem se condensar na resenha biográfica que a própria LADH publicara
sobre o seu presidente Mario Bravo:
Surgido de la entraña misma del pueblo, ha entregado al pueblo los mejores
esfuerzos de su interesante vida. En plena juventud lo encontramos (…)
reclamando justicia. Su prédica, su acción, su verbo y su vida son un perenne canto
por el mejoramiento colectivo. Y una permanente protesta contra lo que significa la
usurpación de un derecho o la insinuación de una injusticia. Todo un hombre
moderno. Y un político de aguda sensibilidad que sabe interpretar fielmente los
sentimientos de la clase oprimida (…) Y es un artista que pone su arte, su talento,
su visión de conductor y su afán apostólico al servicio de la redención
planetaria
183
.
Vale a pena frisar a marca da linguagem religioso nesta militância fortemente anti-
clerical, reformista e liberal. Em tanto profissionais do direito, intelectuais e profissionais da
política, estes advogados combinam o exercício técnico do direito com uma consagração ao
sagrado que os aproxima a figura do profeta. Nesta linha, na imprensa destas associações
recorrentemente se utilizam termos como ‘sacrifício’, ‘redenção’, ‘destino heróico’ e
expressões do tipo ‘o sacrifício é nosso melhor estímulo’, ‘a redenção espiritual é a nossa
única recompensa’. Ao se referir a sua participação no movimento da Reforma Universitária,
182
Em: Amnistía, 1936: N°1, grifos meus.
183
Em: Derechos del Hombre. Grifos meus.
99
por exemplo, destacam: ‘Fizemos uma santa revolução’. Neste plano transcendente, quem
participam deste universo profissional e político se definem por oposições antitéticas: as
‘velhas gerações’, a ‘reação’ como equivalentes da ‘obscuridade’ versus as ‘novas gerações’,
‘a juventude’ como equivalentes da ‘luz’. Neste mondo antitético, os advogados defensores
aparecem como os custódios privilegiados dos valores sagrados.
1. 7. 4 A qualidade heróica
Ao desinteresse, a modéstia e o compromisso com o defendido, se soma a qualidade
heróica da figura do advogado ao serviço de uma causa. As detenções e perseguições
chegavam também aos advogados, não aos defendidos. O risco implicado no exercício
militante da profissão é salientado em todos os relatos nativos. Como no caso de Deodoro
Roca, quem se define nestes termos:
“Los que me conocen (…) saben que más de la mitad de mi tiempo profesional, con
abandono casi culpable de mis interese personales (…) se consume en defensas
gratuitas, muchas veces ingratas, de proletarios, perseguidos y pobres de toda laya. Y
en campañas desinteresadas por la justicia y la verdad. Hay más (…) hay momentos
en esta ciudad, cuando las luchas y los conflictos sociales se agudizan, en que resulto
casi el único abogado que se atreve a defender obreros y perseguidos políticos y
sociales”
184
A publicidade das ocasiões em que os próprios advogados foram objeto de
perseguição ou detenção ocupava um lugar importante na imprensa destas associações,
chegando inclusive a ocupar espaços na imprensa local ou nacional. Este foi o caso do
advogado Carlos Sánchez Viamonte quem, em 1915, foi multado pelas suas críticas ao Poder
Judicial da Província de Buenos Aires. Os detalhes de sua detenção foram amplamente
cobertas pelos jornais da capital estadual, O Dia e O Argentino. O primeiro, dirigido pelo
deputado nacional Atencio, iniciou, inclusive, uma campanha com o propósito de reunir
184
Citado em Sanguinetti, op.cit. pág. 83. Numa futura continuação desta pesquisa seria imprescindível situar o
lugar heróico destes profissionais do direito no contexto de outras profissões, como o jornalismo ou a medicina
que também faziam apelo a esta qualidade moral (especialmente é o caso dos ‘Médicos sem Fronteiraso dos
correspondente de guerra. Agradeço especialmente ao professor Luis Fernando Diaz Duarte pelas observações
sobre este ponto.
100
recursos para pagar as multas. A despeito que se alcançou a soma que se precisava, Sánchez
Viamonte opto pela alternativa de cumprir os dias de detenção no Departamento de Polícia de
La Plata e doar os fundos coletados a instituições de beneficência que, nas palavras do
advogado detido, tratava-se de cumprir: (...) um mandato da minha consciência cívica ao
assumir toda a responsabilidade dos meus atos sem me subtrair à pena maior que neste caso
era a detenção”
185
. Paradoxalmente, através deste movimento, o acusado se transformou numa
vítima do regime.
A publicidade destes casos confirma a posição dos atributos exigidos para a
representação dos detidos e perseguidos pelo regime e contribuía a definir seu lugar no
universo dos profissionais do direito. Uma vez finalizada a detenção, Sánchez Viamonte
pronunciou um discurso na praça central da cidade. Nas intervenções dos oradores do ato se
destacou justamente a sua condição de advogado ‘defensor dos trabalhadores’ e de ‘lutador
pela causa do povo’. A publicidade destas situações contribuía a dar publicidade ao trabalho
militante destes advogados e com isso, favorecia a aquisição de notoriedade pública.
Inclusive, os próprios escritórios profissionais dos advogados engajados com a causa eram
publicados nas páginas da imprensa das associações civis as quais pertenciam
186
A enunciação dos riscos envolvidos no exercício profissional torna mais relevante
ainda a pergunta sobre as condições que fizeram possível que indivíduos pertencentes, como
no caso de Deodoro Roca, a famílias ‘notáveis’ da Argentina, houveram optado por se
aproximar a ‘defender a operários e perseguidos políticos e sociais’. Sugiro que esta vocação
pelo desinteresse pode se constituir, no tumultuado contexto político da época, numa instancia
chave na acumulação de prestigio e notoriedade, um capital moral que logo poderia ser
transposto ao campo da política e da competência eleitoral. De fato, um dos defensores que
encarnava o paradigma do engajamento com a causa, que sintetiza a máxima posse das
qualidades morais apropriadas a este perfil profissional, Alfredo
Palácios, foi eleito o primeiro deputado socialista da Argentina justamente no distrito de La
Boca, um distrito caracterizado pela grande proporção de imigrantes europeus que estão
situados junto ao porto de Buenos Aires e que era habitado por famílias pobres acomodadas
185
Em: Sánchez Viamonte, 1971.
186
Ver em anexo N° 6, pág. 118 os anuncios dos escritórios jurídicos dos integrantes da LADH publicados no
periódico Defesa Popular.
101
em prédios precários chamados de conventillos’
187
. Neste bairro, Palácios tinha estabelecido
um serviço de assistência jurídica gratuita
188
. Esta caso sugere a importância de considerar o
ativismo jurídico e não simplesmente a sua posição ideológica ou pertença partidária. Neste
sentido, se o direito é um meio para fazer política, a política pode ser um meio de exercer o
direito.
189
Como se vai ver no capítulo 2, esta vocação pelo desinteresse, o heroísmo e o
sacrifício pela causa também vão estar presentes nas seguintes gerações de advogados
engajados na defesa dos presos políticos.
1. 8 Pensar o direito
Nos estatutos de criação da Liga pode-se ler: “A Liga considera que os direitos
individuais obtidos pelo movimento liberal de 1789 assim como os princípios conquistados
progressivamente ao longo da sua evolução social, se encontram neste momento ameaçados
pelo fascismo, força regressiva que procura elimina-los, fechando violentamente a etapa
democrática da humanidade com grave risco para a civilização”
190
É por isso que, entre os
seus propósitos se contam o de ‘defender por todos os meios a seu alcance a todos os homens
que estivessem privados do goze dos mencionados direitos por um abuso de autoridade (...) e
exigir o respeito ao direito de asilo para os asilados políticos y sociais”
191
Na carta que o liguista e colega Deodoro Roca lhe enviara a Sánchez Viamonte, se
reivindicam os direitos do homem sobre este pano de fundo universal que é o direito:
“Ya Kant (…) enseñaba en los albores de la Revolución que ni el más miserable de
los individuos podía ser atropellado injustamente en nombre de la razón de
Estado… Pasados cien años desde que esas libertades fueron proclamadas en
187
Entre os muitos projetos de lei apresentados por Palacios, o que fora aprovado em 1905 se referia
especificamente ao propósito de regulamentar as condições de vida neste tipo de moradias de aluguel dispondo a
proibição de estabelecer medidores de água para o cobro de impostos como uma medida para prevenir as
doenças infecto-contagiosas. Em: Suriano, 1983.
188
Como adverte Bourdieu, esta vocação pelo desinteresse e a modéstia provem, pela sua vez, da propensão das
categorias meias intelectuais de se pensar por fora das relações de força entre as classes sociais. Bourdieu, 1994.
189
Agradeço a professora Lygia Sigaud pelas suas importantes colocações sobre este ponto.
190
Estatutos. Artigo 4°. Em: Derechos del Hombre. Op.cit.
191
Em: Derechos del Hombre. Op. Cit.
102
Francia, más de doscientos años desde que fueron votadas en Inglaterra, todavía
nosotros hemos de suspirar por esos dichosos ‘derechos del hombre’. Derechos que
debían haber pasado al fondo vital del hombre social, derechos que no deberían
invocarse para que se los reconozca, derechos de deberíamos poseer (…) como un
bien natural, un bien común, patrimonio de los pueblos civilizados (…)
192
.
Como se evidencia nesta citação, entre os integrantes destas associações se encontra
uma vocação ao ‘universal’ própria do discurso dos direitos do homem na tradição
republicana francesa. Mesmo que estes princípios tem sido formulados em 1789,
começaram a ser efetivos no período de entre-guerras. Segundo Sacristie e Vauchez, foi então
quando começa a se gerar um lento trabalho de invenção e fixação de princípios de
procedimentos e de regras susceptíveis de fazer existir uma ‘sociedade política’ internacional
independente dos Estados. A criação da Corte Internacional da Haya ou a própria Sociedade
das Nações supõem o convencimento a respeito da capacidade do direito para oficiar de
ciência realista e eficaz de governo internacional.
193
Com o propósito de limitar o poder do
Estado, estes juristas sustentavam o ideal de garantir a vida e a integridade das pessoas através
da instituição de um direito internacional. O conceito de tutela jurídica internacional dos
direitos do homem proposto pela Sociedade das Nações pretende ser uma das possíveis
realizações deste ideal.
Esta mesma linguagem universalista esteve presente nas lideranças tanto da LADH
como do Comité Argentino contra el Racismo y el Anti-semitismo. A declaração dos direitos
do homem e do cidadão de 1789 aparece reproduzida no primeiro periódico da Liga. E os
juristas internacionalistas que participavam do Comitê reclamavam pela necessidade de
reconhecer ao homem na sua qualidade de sujeito de direito com a dispensa do organismo
político ao qual pertence pelo vínculo de nacionalidade. Em termos de um dos integrantes “O
reconhecimento da subjetividade jurídica do homem no jogo das relações extra-nacionais
exige, como complemento, declarar e tutelar universalmente os direitos essenciais de sua
personalidade”.
Esta mesma perspectiva universalista é o que os inclui em tanto que advogados
engajados com a causa universal nas lutas políticas chaves da época em quanto “... a luta
192
Carta de D. Roca a C. Sánchez Viamonte reproducida en Villalba Welsh. 1984..
193
Em: Sacriste e Vauchez, 2004.
103
contra o anti-semitismo [por exemplo] não é privativa dos judeus mas é um dever de todo
homem livre porque trás o palhaçada anti-semita se oculta o propósito de suprimir os mais
elementares direitos cidadãos...”
194
. Foi sobre a base desta representação que reclamaram pela
criação de instancias internacionais aonde eles ocupariam um lugar chave, como poderia ser
uma corte penal internacional cuja importância residiria na possibilidade de estabelecer:
“… una instancia internacional para dotar a esos derechos salvaguardados hasta
ahora por el orden constitucional de los distintos países, de la ‘máxima protección’
que puede existir sobre la tierra, la protección del derecho internacional. (…).[se
trata de] una instancia internacional ante quien pueda recurrirse con carácter de
acción en los casos de violación por parte de los gobiernos de los derechos
esenciales del hombre por razones de raza, de religión o nacionalidad (…) un
tribunal cuyas resoluciones sean obligatorias para todos los Estados”
195
.
Ao longo do congresso convocado pelo Comitê Argentino contra el Racismo y el
Anti-semitismo, os juristas que participaram reclamaram de pôr em prática das disposições
contidas na Declaração dos Direitos do Homem, denunciaram os casos de violação destes
direitos apresentados à Sociedade das Nações e à Corte Permanente Internacional de Justiça
da Haya e se reclamou a criação de uma Corte Penal Internacional.
Como testemunha a criação destas associações e de outras de caráter internacional,
como a Liga das Nações, este período se apresenta como um momento ‘germinal’ na
legitimação e consolidação da questão dos direitos do homem e do próprio direito
internacional. Até então, o espaço das relações entre os Estados tinha sido regulamentado
exclusivamente pelos diplomáticos, nesses anos começa a se conformar uma pequena
comunidade de ‘peritos’ em direito internacional que se posicionam tanto como ‘exteriores’
ao jogo da política internacional quanto disponíveis para se somar a ela. Neste processo de
relativa autonomização do direito internacional incide o descrédito no qual se encontrava a
diplomacia logo do seu fracasso ao impedir o conflito armado
196
.
194
Boletín del Comité Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo. N° 5. 1938. Grifos meus.
195
Dr. Rudesindo Martinez em: Actas del Congreso Argentino contra el Racismo y el Antisemitismo. Bs. As.
1938, pág. 127 y 140.
196
Em: Sacriste e Vauchez, op.cit.
104
Trata-se de uma comunidade de ‘peritos’ que se constituiu em volta de um núcleo
restrito de professores de direito que exerciam simultaneamente os papeis de jurisconsultos do
governo, ‘peritos’ internacionais na Sociedade das Nações, a Corte de Justiça Internacional,
integrantes de organizações pacifistas como a Liga para la Promoción de la Paz, e
distinguidos como prêmios novéis da Paz como Aristide Briand, por exemplo. Destes espaços
surgiram os juristas que dariam impulso a criação de um ordem político internacional
regulamentado pelo direito e que se iria a incorporar aos novos espaços institucionais ao
longo do período de entre - guerras.
197
As redes internacionais as quais pertenciam estes profissionais do direito favoreciam a
circulação de informação sobre a situação política em distintos lugares do planeta. Na maneira
em que é apresentada esta informação se destaca precisamente a possibilidade de assimilar
distintas situações locais por demais diversas e diferentes entre sim, a uma única condição
definida pela presença da ‘reação’ e ‘o fascismo’ em todo o mundo, como pode se ver no
seguinte exemplo referido a um caso próximo como o de Brasil: “centenas de presos no
Brasil, milhares de operários, soldados, oficiais do Exército e da Armada, intelectuais de
reputação, jornalistas, médicos, advogados, engenheiros, estudantes, revolucionários e anti-
fascistas, sofrem todos os horrores das cadeias e da brutalidade dos carcereiros...”.
198
Mas
também se encontra esta mesma retórica aplicada a situações empíricas tão dissimiles como as
que se encontravam nas colônias africanas: “... a repressão posterior à conquista de Etiópia é
cada vez maior (...) os juizes parecem mais verdugos incondicionais que magistrados. Os
tribunais de guerra, tribunais militares e especiais intensificam suas ações repressivas e
multiplicam as leis do terror anti-fascista”
199
. Trata-se em todos os casos de descrições
abstratas e gerais que possibilitam a identificação de ‘campos de concentração’ espalhados
pelo mundo todo (não na Alemanha mas também em contextos tão dissimiles como Líbia,
Peru e Argentina) e de ‘vítimas do fascismo’ consideradas exclusivamente desde uma
perspectiva universal, como são os casos dos ‘prisioneiros, perseguidos, exilados e
deportados’.
Esta mesma concepção universalista foi a que fez possível o lançamento de
‘campanhas mundiais’ contra o fascismo com palavras de ordem a serem seguidas em todo o
197
Em: Sacriste e Vauchez, op.cit.
198
Em: Amnistía. Año 1. N° 1, 1936.
199
Fragmento de uma carta enviada pelo Comitê Anti-fascista Internacional, com sede em Paris, a sua filial
argentina. Em: Contra-Fascismo. Año 1. N° 2. Agosto – setembro de 1936.
105
mundo e com diversas propostas internacionais como as de realizar campanhas para juntar
assinaturas em todo o mundo a favor da anistia para ‘todos os condenados e deportados
políticos’, realizar comícios simultâneos em Nova York, Paris, Londres, Buenos Aires,
Madrid. Assim como também a intenção de criar documentos de identidade mundial
expedidos pelos comitês de ajuda e solidariedade “... que permitam ao exilado político
permanecer em qualquer localidade do país de asilo ou em outro país de sua eleição (...) aos
fins de consagrar em todo o mundo o sagrado direito de asilo” (op.cit. minhas cursivas). É a
mesma concepção a que impulsiona convocatórias ‘universais’ como se evidencia na carta
que Faustino Jorge, advogado liguista, lhe enviara a um colega tentando o levar a ‘lutar sem
divisão de fronteiras’:
“A todos los pueblos de América, a todos los hombres libres, de aspiraciones
democráticas, de sentimientos humanitarios, a los hombres de todos los sectores
políticos, a los explotados y a los oprimidos, a los anti-reaccionarios de
pensamiento y acción de todos los credos hacemos un vigoroso llamado para
luchar bajo una sola bandera de solidaridad y ayuda....”
200
.
Esta referência ao universal os constituiu em tanto grupo
201
. Trata-se de uma rede de
intelectuais, políticos e advogados que se representam a sim mesmos a partir desta lógica
universalizante e de uma vocação ao universal (Pinto, op.cit.). Através do uso deste tipo de
retórica, as diferencias de origem, religião e política podiam ficar subsumidas detrás do apelo
a uma comunidade moral universal unida por sentimentos ‘sagrados’ de solidaridade,
humanitarismo e fraternidade universal. Trata-se de uma retórica que faz apelo a um princípio
de fusão com o universal: o homem, a humanidade. O direito, pela sua vez, supõe um
princípio de universalização do saber. De modo que, a combinação entre o papel do
profissional do direito e do intelectual faz destes advogados engajados com a causa de seus
defendidos, agentes universalizadores por excelência.
200
Em: Amnistía, 1936: 1
201
Vale a pena salientar que existem várias referências ao universal, entre elas se encontra o internacionalismo
derivado do partido comunista e das formas de representação dos interesses da classe operária. Este é um outro
universo de valores ‘universais’ aos quais estes profissionais do direito também faziam apelo. Para uma
interessante reflexão a respeito de como o movimento anti-fascista na Argentina misturava a retórica liberal com
o marxismo, ver Pasolini, 2006.
106
1. 9 Conclusão
A importação desta retórica universalizante ligada à luta contra o fascismo e a defesa
dos ‘direitos do homem’ pode-se pensar como respondendo tanto ao fato massivo da
imigração como as estratégias utilizadas pelos dirigentes políticos da oposição para intervir na
política nacional a partir de uma linguagem legítima que permitisse unir à oposição baixo um
denominador comum e, na mesma operação, denunciar o caráter fraudulento e autoritário dos
governos surgidos a partir do golpe de Estado de 1930. Segundo Andrés Bisso (2001), esta
era a intenção que motivava a criação de frentes populares como o Socorro Rojo Internacional
ou o Comitê contra el Racismo e o Anti-semitismo, que foram espaços que juntaram aos
dirigentes da oposição pensados mais para fustigar às ditaduras ou regime fraudulentos
nacionais que para resistir o avance do ‘fascismo’. Através desta prédica, a luta pela liberdade
e pela democracia na Europa se volvia uma luta pela liberdade e pela democracia em América
latina e na Argentina. Continuando com esta linha de pensamento, o mesmo autor assinala
que estes frentes constituíam essencialmente ‘alianças transitórias’ que se propunham
substituir aos governos ‘reacionários’ e ‘anti-democráticos’ entronizados no poder. Vale a
pena salientar que esta ‘transitoriedade’ o se aplica ao caso da LADH que,
surpreendentemente, tem permanecido ativa até hoje.
No desenvolvimento deste capítulo teve a intenção de apresentar alguns elementos que
permitam compreender as condições de possibilidade de uma militância engajada com a
defesa dos ‘direitos do homem’. Sem dúvidas é muito importante o processo da imigração
européia na compreensão, não do surgimento de novas classes e novas formas de pensar o
direito como assim também nas reconversões da própria prática do direito e das formas de
pensar o direito (o ‘novo’ direito), como se verifica com a criação de disciplinas
especializadas em direito trabalhista, a participação destes dirigentes em grêmios e sindicatos
em qualidade de ‘peritos’ ou a criação de instituições e políticas legislativas orientadas a dar
conta desta nova realidade.
Tentei traçar as trajetórias destes dirigentes engajados com a causa pelos ‘direitos do
homem’ e de seus múltiplos espaços de interação e socialização, como uma maneira de me
aproximar ao complexo trabalho de construção social e política desta vocação, entendendo
que a ação coletiva não é nem um resultado direto e automático de condições objetivas dadas,
107
como seria a repressão exercida pelo Estado a partir de 1930. Identifiquei inúmeros índices da
proximidade social que existia entre os indivíduos engajados com a causa: sua pertença ao
mesmo universo profissional, a colaboração nos mesmos periódicos, os vínculos criados ao
longo da vida de estudante, as opções políticas, o exercício da função pública, sua
identificação com a figura do intelectual, etc. Isto permite sugerir que a participação num
engajamento militante deste tipo não deriva nem de causas casuais nem de simples
identificações ideológicas mas da existência de espaços de interação social a partir dos quais
vão se estruturando as afinidades ideológicas, as redes e seus princípios de distinção dentro do
universo mais abrangente da política e do direito. Mesmo quando o defensor de presos
políticos se perceba a sim mesmo como um solitário herói jurídico, tenho tentado mostrar
todo o peso social de suas redes de pertença e filiação.
A adesão à causa dos ‘direitos do homem’ não preexistiu à própria ação reivindicativa
mas, pelo contrario, se foi criando no próprio processo, convertendo-se numa instancia mais
na consolidação e continuação de relações sociais, profissionais e de amizade prévias. Neste
sentido, é interessante frisar a polissemia do termo ‘engajamento’ com a causa: significa tanto
o engajamento com a ação quanto o fato de se vincular aos outros por uma série de obrigações
inerentes à posição que se ocupa ou se pretende ocupar ao interior destes múltiplos espaços
militantes e profissionais. Esta pertença múltipla é um dos fatores críticos que permitem
compreender a incorporação destes indivíduos à causa pelos direitos do homem. Seus
dirigentes foram conduzidos a este tipo de ação cívica como resultado dos compromissos e
obrigações recíprocas derivadas da sua participação neste tecido composto por espaços sociais
comuns aos quais estavam filiados previamente. Neste sentido, trata-se de uma rede de
profissionais do direito e da política que integram uma comunidade moral relativamente
reduzida que inclui tanto nomes consagrados como Palácios, Bravo e Sánchez Viamonte
quanto a outros menos célebres e, por último, também, a desconhecidos.
A través desta descrição se pode compreender como o engajamento anterior com a
causa ‘dos trabalhadores’ e suas organizações sindicais orientou a transformação da defesa do
direito operário e sindical na defesa dos ‘direitos do homem’. A repressão das organizações
sindicais mediante a confiscação de seus periódicos e boletins, o fechamento das suas sedes,
a perseguição e detenção arbitrária de suas lideranças até a deportação delas, fizeram com que
este conjunto de juristas, advogados e dirigentes políticos interessados nos ‘novos’ direitos
dos trabalhadores, fossem levados à defesa dos seus interesses fazendo apelo a linguagem dos
108
‘direitos do homem’, ação que se compreende como uma continuidade com os compromissos
adquiridos previamente
202
. Foi este trabalho dos advogados engajados com a denuncia da
repressão do Estado contra militantes políticos e dirigentes sindicais o que transformou as
reivindicações e palavras de ordem dos trabalhadores e militantes partidários em questões
relativas à causa pelos direitos do homem.
Neste sentido, trata-se de um militantismo de conversão que se inscreve tanto na
história dos compromissos passados quanto no interes por se aproximar a um engajamento
distanciado das restrições da luta eleitoral como fundamento para defender uma causa pública
na qual o que está em jogo são os princípios constitutivos da ordem política. Para eles, o
direito aparece como uma ferramenta de crítica e de intervenção na política. A denuncia das
arbitrariedades cometidas pelo Estado transforma ao espaço público em algo que aparenta um
tribunal, aonde eles monopolizam a condição de ‘peritos’, não só porque eles portam o
conhecimento jurídico mas também porque estão familiarizados com esse próprio Estado, do
qual participam como parlamentares, funcionários públicos ou professores universitários.
Tanto a denuncia pública como a demanda jurídica exercida perante aos tribunais supõem um
uso experto do direito como uma modalidade militante do aceso ao Estado. Este uso militante
do direito supõe, não só defender um acusado como também defender uma injustiça de caráter
mais abrangente. Esta dimensão política do trabalho experto do profissional do direito
consiste justamente em ligar a história singular a uma irregularidade general no
funcionamento do Estado, o que se viu em relação as demandas de modificação ou derrogação
da lei de Residência ou a demanda de criar uma corte penal Internacional.
203
Sem dúvidas, a saída da situação política nacional através da utilização do direito
como estratégia de reivindicação se corresponde com um tipo de visão sobre a vida política,
neste caso, ligada intimamente à crença no valor dos preceitos liberais e republicanos de
organização da vida em comum. Valores que, sem dúvidas, outorgam um lugar central ao
direito e que estes dirigentes tinham interiorizado ao longo de seus anos de formação
profissional e militante. Estes valores eram defendidos e legitimados por oposição ao ‘espírito
202
Para uma perspectiva de análise que outorga uma importância crítica à tarefa de reconstruir a gênesis deste
interes ver o trabalho de Michel Offerlé, 1998.
203
As colocações deste parágrafo se inspiram no trabalho de Agrikolianski, 2002 e Boltanski, 2000.
109
militarista’ que promovia a conquista do poder público pelas forças armadas e resultava num
fato ilegítimo: a força substitui ao direito.
204
1. 10 Epílogo
Logo depois do golpe de Estado de 1943 e depois da Segunda Guerra Mundial, as
associações civis mencionadas começaram a desaparecer, a exceção da Liga. Esta
continuidade, com tudo, não vai estar isenta de mudanças: quem fazem parte dela não se
identificam como os garantes e defensores das instituições da democracia mas como os
militantes pela causa da ‘solidariedade’. A inícios dos anos 50 as importantes figuras políticas
que integravam o frente opositor tinham sumido. Predominavam na Liga dirigentes de menor
notoriedade pública e que provinham, principalmente, do PC. Não seriam exclusivamente
advogados como os casos dos sucessivos presidentes Ezequiel Martinez Estrada, escritor,
Emilio Troise, médico ou Antonio Sofía, um não profissional. Este perfil se conserva até hoje.
A Liga vai se definir como uma associação de assistência solidária e humanitária com os
presos políticos, como ... uma instituição popular para a solidariedade com os operários e
democratas que desenvolve uma nobre e humanitária tarefa lutando pela liberdade dos presos
e tomando conta deles nas prisões, levando-lhes roupas, comida, cobertores, medicinas e
livros”.
205
Ao longo dos governos do General Juan Perón (1946-1955), os advogados integrantes
da Comissão Jurídica da LADH “... que cumprem com honra a sua tarefa de defender as
liberdades republicanas e a vigência das garantias constitucionais” denunciaram ‘o conjunto
de leis repressivas que começaram a se aplicar em forma massiva contra os trabalhadores”.
206
Perante o seqüestro e posterior desaparição do dirigente comunista Juan Ingalinella nos
primeiros meses de 1955, a Liga emitiu um comunicado no qual destacava-se o caráter
‘sistemático’ da repressão: “seria um erro pensar que o regime de torturas organizado e
sistematizado em todo o país, é produto de alguns funcionários policiais...”.
207
A Liga
fomentou então o engajamento de advogados de ‘todos os setores’ para obter uma maior
204
Cattáneo, “El espíritu militarista’. Em: Amnistia. Año 1. N° 1. Março 1936.
205
Folheto da LADH. “El proceso contra los obreros ferroviários”. 1951.
206
Em referencia aos decretos de Seguridade do Estado (N° 536)
207
Comunicado reproduzido em Veiga, 1985.
110
efetividade nas defesas.
208
Denunciaram também a detenção a disposição do Poder Executivo
Nacional de inúmeros advogados defensores de presos políticos, entre os quais se
encontravam Alfredo Palácios, Carlos Sánchez Viamonte e Samuel Schmerkin,
mencionado no início do capítulo como advogado de Antonio Cantor. Nas suas denuncias, a
Liga frisava o fato que estas detenções constituíam uma transgressão ao direito de defesa em
juízo em quanto elas supõem a inviolabilidade da figura do defensor. Neste período, sua sede
foi incendiada intencionalmente (1949) e logo fechada. Voltou a abrir depois do golpe de
Estado que derrubou a Perón em 1955, mesmo que por alguns meses. Quando em 1958
assumiu a presidência da República um dos seus fundadores, Arturo Frondizi, esta foi re-
aberta mas voltou a ser fechada em 1962 logo de um novo golpe de Estado. Desta forma,
entre os anos 50 e 60, só funcionou abertamente durante os quatro anos de presidência de
Frondizi.
Em 1971, vários integrantes da Liga, nucleados em volta da figura de outro dos seus
fundadores, o advogado Carlos Sánchez Viamonte, participaram da criação de um novo
espaço associativo: a Asamblea Nacional, desde o qual se propunham ‘lutar contra as leis
repressivas anti-constitucionais’ e conseguir ‘a vigência dos Direitos do Homem’ num país
quebrado de novo por um outro golpe de Estado, agora contra o governo constitucional de
Arturo Illia (1966). Numa declaração pública, estes profissionais do direito e da política
expressaram conjuntamente a condena:
“... a la política represiva caracterizada por torturas, vejámenes, secuestros y
crímenes cometidos impunemente contra hombres y mujeres argentinos, el
mantenimiento del Estado de Sitio como instrumento permanente de gobierno, la
detención de ciudadanos a disposición indefinida del Poder Ejecutivo por causas
políticas y sociales, la creación y desmesurado crecimiento de organismos de
represión política e ideológica (...) la sanción y subsistencia de una legislación
represiva, caracterizada principalmente por el establecimiento de la pena de
muerte, por la sujeción de civiles a tribunales militares, por la expulsión de
extranjeros, por la creación del delito de opinión (...) y por la creación de un fuero
especial para el juzgamiento de delitos políticos con el consiguiente
avasallamiento de los derechos de las Provincias y de sus habitantes”
209
.
208
LADH “El proceso contra los obreros ferroviarios”. 1955.
209
“Congreso de la Libertad” Em: Propósitos. 21.10.1971.
111
Dirigentes socialistas, comunistas, radicais, peronistas, sindicalistas, intelectuais e de
associações de defesa dos direitos humanos (como a LADH) se nuclearam na Asamblea
Nacional em volta a palavra de ordem ‘liberdade aos presos políticos e sociais’ e
reivindicando a figura emblemática de Agustín Tosco, dirigente máximo do sindicato de Luz
y Fuerza de Córdoba e integrante da LADH quem, desde o seu lugar de detenção participava
da criação da Asamblea através de cartas de adesão pública.
Na perspectiva dos seus fundadores, a Asamblea Nacional era necessária em tanto
restituir ‘o Estado de direito’ suponha “... a ação programática e organizada das forças
populares...”.
210
Entre os oradores do ato se encontravam advogados defensores de presos
políticos como Fernando Murua, defensor de Tosco, Guillermo Furgoni Rey e Ricardo
Molinas, dirigentes da Liga, como Antonio Sofía e Bustos Fierro e do Comitê Permanente
contr el Macartismo y la Ley 17.401, como Isaina de Weis. Quem se juntaram em volta desta
Asamblea tinham como elemento distintivo o fato de pertencer a uma geração que tinha feito
seu ingresso à política nos anos imediatamente anteriores ao golpe de Estado de Uriburu
(1930) como era o caso de Sánchez Viamonte, Fernando Nadra, Ricardo Molinas e Antonio
Sofia. Este último, presidente da Liga desde 1952, tinha sido ele mesmo um preso político sob
a ditadura de Uriburu. Fernando Nadra era dirigente da Juventude Comunista quando foi feito
o decreto de proscrição do partido em 1930 e Ricardo Molinas, quem se viu obrigado a deixar
a sua banca de deputado nacional pelo Partido Democrata Progresista por causa do golpe de
1966, tinha vivido a experiência do golpe de Uriburu em seu próprio pai, quem naquela época
deveu pôr fim a sua banca no parlamento nacional pela mesma causa. No que parecia uma
antecipo dos tempos que iriam vir e uma repetição dos tempos idos, se fizeram presentes no
ato ‘parentes’ de militantes políticos ‘desaparecidos’ e ‘parentes de estrangeiros’ que tinham
sofrido a deportação por causa das leis recentemente restituídas
211
.
Mesmo que tinham passado mais de 30 anos dos acontecimentos narrados neste
capítulo, nos discursos, nas cartas e declarações públicas dos integrantes da Asamblea pode-se
advertir o apelo a uma retórica conhecida: a equiparação da situação local posterior ao
golpe de Estado de 1966 ao ‘fascismo’. Assim, o dirigente do PC, Fernando Nadra, foi
210
“Congreso de la Libertad” Em: Propósitos. 21.10.1971.
211
Ao utilizar os termos ‘desaparecido’ e ‘estrangeiro deportado’, o cronista fazia referencia aos casos do
estudante de direito Luis Enrique Pujals e do operário químico Salankiewicz, respectivamente. Ibidem.
112
aclamado no palco quando afirmou: “É necessário que se de ao povo plena liberdade para sair
as ruas a esmagar ao fascismo e ao golpismo”.
212
A reivindicação pública da causa pelos
‘direitos humanos’, a conformação de espaços associativos, o uso de uma retórica que abunda
em referencias ao fascismo e a presença de figuras públicas identificadas com a geração do
golpe de Estado de 1930 e com os conflitos vinculados às duas guerras mundiais
testemunham a continuidade de práticas, agentes e estratégias entre os anos 30 e 70.
No entanto, desde finais dos anos 60, uma nova geração de advogados e profissionais
da política começou a se incorporar à defesa pública e jurídica dos presos políticos fazendo
uso de uma outra linguagem, outras estratégias de atuação e de organização política e
profissional. O exame de suas trajetórias e do mundo social, profissional e político do qual
fizeram parte é o objeto de próximo capítulo.
212
Ibidem.
113
Anexo N° 1
Convocatória da LADH promovendo a adesão à associação
Fonte: Clarinada. Bs. As. 1939.
114
Anexo N° 2
Rreprodução da convocatória a um comício ‘contra a invasão nazi’ realizado pelo
Comitê contra o Racismo e o Anti-semitismo da Argentina.
Fonte: Periódico: Alerta! Contra el Fascismo y el Antisemitismo. Bs. As. N° 1. 21.09.1935.
115
Anexo N° 3
Reprodução de uma listagem de presos políticos
aparecido no periódico Defensa Popular
116
Anexo N° 4
Reprodução de cartaz de rua do Comitê contra el Racismo y el Antisemitismo
Fonte: Periódico Contra-Fascismo.
117
Anexo N° 5
Reprodução da capa do periódico Socorro Rojo de outubro 1934
Fonte: Periódico Socorro Rojo. Outubro 1934.
118
Anexo N° 6
Reprodução dos anúncios dos serviços jurídicos
oferecidos pelos integrantes da LADH
Fonte: periódico Defensa Popular.
119
Capítulo 2
O ativismo jurídico
Um mundo feito de rotinas e heroísmo
120
2. 1 Introdução
Em junho de 1971, o advogado Hipólito Solari Yrigoyen interpôs um recurso de
hábeas corpus a favor de Agustín Tosco, manifestando que a detenção deste último, por
disposição do Poder Executivo nacional e em virtude do decreto lei No. 715, contra ele,
supunha um “... excesso das faculdades reguladas no artigo 23 da Constituição Nacional”. Na
sua apresentação, Solari Yrigoyen negava que seu cliente “... tivesse desenvolvido atividades
lesivas à tranqüilidade pública ou que pudessem implicar um perigo a esse respeito”. Diante
desta apresentação, a Câmara Nacional Federal negou o hábeas corpus por entender que sob a
atual situação imperante de Estado de sítio: “... as atividades de Tosco, de acordo com
informação reservada, poderiam configurar uma alteração da tranqüilidade pública (...)
[considerando] a notória influência de Agustín J. Tosco em meios associativistas do estado de
Córdoba e dos fatos de inaceitável violência que ali ocorreram, ao ponto de erigir-se a um
deles, o assim chamado ‘Cordobazo’ em bandeira de luta para outros que o seguiram”
(Sentença No. 67639. Câmara Nacional Federal, sala criminal e correcional, 25 de junho de
1971)
213
.
Hipólito Solari Yrigoyen assumiu ativamente a defesa de Agustín Tosco: “Eu
coordenei, de Buenos Aires, a tarefa de vários advogados para reclamar a nulidade dessas
sentenças diante dos tribunais militares”
214
. Sobrinho neto do presidente derrocado Hipólito
Yrigoyen (Uriburu, 1930), Solari Yrigoyen havia estado presente no escritório do presidente
Arturo Illia (UCR) no momento de sua detenção pelas Forças Armadas dirigidas pelo general
Onganía, no dia 28 de junho de 1966
215
. Para Solari Yrigoyen, o ‘Cordobazo’ foi “uma
verdadeira façanha de todos os setores políticos (....) um movimento autenticamente popular
de um povo cansado da opressão do governo oligárquico dos militares e dos interesses que
estes representavam...”
216
. Invertendo os termos da acusação, no diagnóstico deste advogado,
‘o Cordobazo’, isto é, a mobilização surgida no estado de Córdoba em maio de 1969 durante
o governo de Onganía, era resultado da violência inaceitável exercida pelo Estado. A
213
Em: Revista Jurídica Argentina La Ley, Buenos Aires. Tomo 146: 420, 1971.
214
Em: Gabbeta, op.cit.
215
Este golpe de Estado inaugurou um período conhecido como ‘Revolução Argentina” durante o qual se
sucederam na Argentina, de fato, três presidentes: os generais Onganía (1966-1970), Levingston (1970-1971) e
Lanusse (1971-1973). Para uma resenha do momento do golpe de Estado contra Arturo Illia ver: Carlos Fayt,
1971.
216
Entrevista com Hipólito Solari Yrigoyen em 1978 durante seu exílio em Paris realizada por Carlos Gabbeta.
Em: Gabetta, 1983: 227.
121
militância sindical, estudantil e partidária sofria contínuas detenções, que se realizavam sem a
intervenção da autoridade judicial e tornavam-se efetivas pela aplicação de julgamentos
sumários instituídos pelos Conselhos Especiais de Guerra ou decretos emitidos pelo Poder
Executivo Nacional. Estas detenções atingiam também diversos advogados patrocinadores de
grêmios e sindicatos.
Tosco, principal dirigente do sindicato de Luz e Energia de Córdoba e membro da
Liga Argentina por los Derechos del Hombre, referia-se às inúmeras detenções de líderes
sindicais e políticos apelando para a linguagem dos direitos humanos. Do Presídio de Rawson
denunciava “... a dramática realidade de uma constante e comprovada violação aos mais
elementares direitos humanos na Argentina, até o grau da barbárie organizada para a tortura
de muitos prisioneiros políticos e sociais...”
217
.
Se sua emblemática figura era reivindicada por personalidades que tinham
protagonizado a defesa dos ‘direitos do homem’ nas primeiras décadas do século XX, como
Carlos Sánchez Viamonte, e por associações como a LADH, quem assumiram judicial e
publicamente sua defesa, no início dos anos 70, foram advogados como Hipólito Solari
Yrigoyen, que se reconhecem como parte de uma nova geração que irrompe na vida política e
profissional justamente a partir dos acontecimentos aos quais a sentença se refere: o
‘Cordobazo’.
Com o compromisso de assumir a defesa jurídica dos chamados ‘presos políticos e
sociais’ e denunciar publicamente a inconstitucionalidade dos procedimentos repressivos da
‘ditadura’, um conjunto de profissionais do direito formaram uma série de espaços
associativos entre os quais estavam a Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires
(AGA), a Asociación Gremial de Abogados de Mar del Plata, a Asociación Gremial de
Abogados de Bahía Blanca, a Agrupación de Abogados de Córdoba, o Movimiento Nacional
contra la Represión y la Tortura, o Foro de Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos
Humanos, e a Organización de Solidaridad con los Presos Políticos, Estudiantiles y Gremiales
(OSPPEG). Entre estas associações aparece uma que faz apelo ao vínculo de sangue como
princípio de representação pública. Trata-se da Comisión de Familiares de Presos Políticos y
Gremiales (CoFaDe). No exterior, associações internacionais de juristas, como a Comissão
217
“Agustín Tosco: El cautiverio de un guerrero” Em: Revista Primera Plana. 20. 06.72.
122
Internacional de Juristas (CIJ), defensores dos direitos humanos como Anistia Internacional,
demandaram o governo o respeito às ‘garantias fundamentais estabelecidas pela lei’ e
enviaram ao país missões de especialistas para verificar a veracidade das denúncias
formuladas pelos seus colegas argentinos. Surgiram também diversos comitês que se
somaram à denúncia internacional da ‘situação de repressão na Argentina’ como o Comité de
Defense des Prisionniers Politiques Argentines (CODEPPA), criado em 1972 por um
conjunto de profissionais do direito e intelectuais franceses e argentinos que moravam na
França.
Neste capítulo procuro definir e delimitar a categoria ‘defensor de presos políticos’
através da criação de uma representação coletiva deste compromisso jurídico associada ao
culto ao heroísmo, à coragem, ao valor, ao sacrifício e à entrega desinteressada à causa,
qualidades estas que os identificam com aquelas pessoas que defendem. A ênfase estará em
mostrar o valor destes critérios na hora de criar homogeneidade entre indivíduos que têm
origens e trajetórias profissionais heterogêneas. Estes princípios de representação são os que
fundam a legitimidade da sua posição dentro do mundo do direito e da política, especialmente
em uma conjuntura na qual sua clientela é recrutada principalmente entre a militância armada
das organizações de esquerda surgidas no país no início dos anos 60. Através desta
representação, passam a existir como grupo.
Este capítulo pretende mostrar parte de todo o trabalho de reagrupamento de sujeitos
com trajetórias e propriedades objetivas diferentes em torno a esta forma de exercer o direito e
a política. Como veremos, o relativo êxito alcançado na tarefa de unificação traduziu-se sob a
forma de um nome coletivo (defensor de presos políticos), de instâncias de representação
(associações, publicações), emblemas (o desaparecimento do advogado Néstor Martins, o
assassinato do advogado Rodolfo Ortega Peña), taxonomias (advogados do povo / advogados
ao serviço do imperialismo, militar na Gremial / exercer o direito), categorias (repressão
judicial) e teorias (o imperialismo / a ausência de um Estado de direito). Todas estas
instâncias resultarão chaves para dotar este grupo de agência. Paradoxalmente, a legitimidade
alcançada através do fato de colocar em risco a própria vida foi construindo, ao mesmo
tempo, a necessidade de organizar, planejar e conceber novas formas de trabalho em comum.
Mostrar a rotinização da tarefa do advogado defensor é outro dos objetivos deste capítulo,
uma vez que a formação de rotinas constitui uma instância chave na homogeneização desta
categoria social e na objetivação do grupo como tal. Como veremos, elas se organizavam em
123
torno da busca do detido pelas delegacias, as apresentações de hábeas corpus, as visitas aos
presos, os pedidos de perícias médicas, a assistência aos tribunais para seguir os processos, a
divisão do trabalho entre os advogados, a partilha das causas, a busca de antecedência na
jurisprudência comparada, a elaboração da alegação, a publicação das denúncias na imprensa,
a realização de conferências de imprensa etc.
Nesta descrição, tenho interesse em mostrar como este engajamento jurídico (‘militar’
em associações de defesa de presos políticos), que se diferencia hierarquicamente do exercício
tradicional ou ‘liberal’ da profissão (‘exercer a profissão’) não excluía o fato de continuar
atuando como advogados. Ao contrário, ‘exercer a profissão’ foi uma das condições de
possibilidade deste ativismo. Como veremos, esta atividade permitia que eles dispusessem de
recursos chaves para sustentar e dar continuidade à vocação pela defesa dos presos políticos.
Outro ponto que receberá atenção são as trajetórias dos integrantes destas associações.
Interessa-me mostrar que a participação nelas, longe de se tratar de uma decisão racional
fundada em critérios ideológicos ou convicções políticas, supõe a incorporação progressiva a
uma rede de relações que vão comprometendo-os (primeiro, como advogados trabalhistas,
logo, como defensores de presos políticos) de tal maneira que, chegados a um ponto, assumir
esse compromisso torna-se um fato ‘irrevogável’. As propriedades sociológicas dos
profissionais do direito que assumem este tipo de compromisso foram trabalhadas
detalhadamente no capítulo anterior. Neste capítulo, será mostrado apenas como permanece
um substrato morfológico semelhante em termos de um encontro entre estabelecidos e
outsiders.
Por último, proponho mostrar neste cenário a presença de dois atores que,
reconhecidos no capítulo anterior, começam agora a ter maior protagonismo: as associações
de parentes de presos políticos e as associações internacionais de juristas. Embora estes tipos
de associação receberão uma atenção especial no próximo capítulo quando, em meados dos
anos setenta e início dos anos oitenta, adquirem extrema visibilidade, interessa-me destacar
que a reivindicação do sangue e do direito internacional são princípios que se encontram
disponíveis no período examinado neste capítulo.
124
2. 2 ‘A repressão judicial’
“Na República Argentina não existem sequer vestígios do denominado ‘Estado de
direito’. Os direitos humanos são violados e ignorados pela legislação,
a jurisprudência e a prática repressiva”.
218
Com este diagnóstico começava a declaração final da Reunião Nacional de Advogados
‘Néstor Martins’ que convocou, na cidade de Buenos Aires, mais de trezentos advogados
defensores de presos políticos de todo o país em meados de agosto de 1973, poucos meses
depois do triunfo do peronismo nas urnas e do general Perón assumir a presidência da nação.
Esta reunião tinha sido convocada pelas associações de advogados de presos políticos
mencionadas na introdução deste trabalho.
Na caracterização da situação vigente nesses anos, as representações sobre o ‘Estado
de direito’ intervinham como elemento de impugnação a Estado: “... lhe direi o que
corresponde em Estado de direito e o que acontece atualmente: ao invés de acusação fiscal
temos o delato, a suspeita. Ao invés de detenção, temos seqüestro. No lugar do processo
judicial temos o sumário misterioso que ninguém controla (...) No lugar de notificação para
prestar declaração (...) temos as torturas para conhecer a ‘verdade’...”
219
. Da perspectiva dos
advogados defensores, a Revolução Argentina (1966-1973) era ‘intrinsecamente
repressiva’
220
. A partir desse momento, havia-se inaugurado no país uma situação
caracterizada pela detenção recorrente de pessoas na qualidade de incomunicáveis e os
espancamentos, ‘picana elétrica’, simulacros de fuzilamento e violações em dependências
oficiais ou ‘casas’ clandestinas. Os presídios estavam cheios de ‘presos políticos’ e aqueles
militantes que não resistiam à tortura eram enterrados clandestinamente em cemitérios como
NN ou seus corpos desapareciam. A detenção de um advogado defensor de presos políticos
sem ordem judicial foi interpretada como a máxima mostra de ‘aberração’ e ‘desvio’ do
Estado de direito no país. Constituía:
218
“Declaración final de la Reunión Nacional de Abogados ‘Néstor Martins’” Em: Periódico Peronismo y
Socialismo. N° 1. 1973.Grifos meus.
219
Declarações do advogado defensor Héctor Sandler. Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1. N°. 6. 1971
220
Expressão utilizada pelos advogados Eduardo Luis Duhalde e Rodolfo Ortega Peña. “Lo que saben los
prisioneros del sistema”. Em: jornal Nuevo Hombre. Ano 1. N°. 14. Outubro 1971.
125
“... la prueba acabada de que (...) la detención de personas en nuestro país ha
dejado de ser asunto que compete a los jueces (nadie puede ser arrestado sino en
virtud de orden escrita de autoridad competente, dice el art. 18 de la Constitución)
para ser un instrumento de ‘caza de hombres’ en manos de la Policía. Para guardar
las apariencias la detención se hace clandestinamente por vía del secuestro”
221
.
Para os advogados, a repressão não era: “… uma atividade policial, exercida
obscuramente por agentes ignotos (...) mas que fazia parte de uma política repressiva mais
ampla” na qual intervinham diferentes poderes do Estado, inclusive a própria justiça, já que
muitas vezes os juízes interrogavam os detidos nos lugares onde eram submetidos a torturas,
como se adverte no dramático relato de um deles: “Ao ser levada à Câmara Federal no Penal,
o secretário do juiz me ameaçou [advertindo-me sobre] as conseqüências que meu filho ia
sofrer se adiava a declaração”
222
.
Para se referir a este tipo de situações como às modificações legislativas por ordem do
Poder Executivo, estes advogados recorreram à expressão ‘repressão judicial’ para demonstrar
a execução de uma ‘política sistemática de repressão’ implementada através de um conjunto
de instrumentos jurídicos, entre os quais se encontravam a pena de morte, a transformação em
delito ‘penal’ de associação ilícita aos delitos ‘políticos’ de sublevação previstos pela
Constituição Nacional para aqueles que se levantaram contra um poder instituído pela força,
as prolongadas incomunicabilidades dos detidos, a negação em reconhecer o direito de opção
a sair do país e a existência de processados sem sentencia por períodos de vários anos.
Na descrição destas políticas repressivas, ocupa um lugar de especial destaque a
criação de fóruns ad hoc para o tratamento das causas originadas em delitos considerados
agora como ‘subversivos’ como a Câmara Federal no Fórum Penal Anti-subversivo,
conhecida no jargão dos advogados defensores como ‘el Camarón’ porque seus juízes tinham
jurisdição em todo o território nacional ou ‘Câmara Gestapo’ uma vez que estava “... feita à
imagem e semelhança das que estabeleceram os Tribunais Especiais de 1933, característica
distintiva da administração alemã de justiça no estado de emergência civil”
223
.
221
No Jornal Nuevo Hombre, Ano 1. N°. 3. 1971
222
Em: Foro de Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos. Bs. As. 1973. Grifos meus.
223
Em: reportagem a Susana Aguad. Periódico Desacuerdo.
126
A partir da criação desta câmara, enquanto eram respeitadas as formas do ‘devido
processo’ já que existia um tribunal, um juiz e advogados defensores, em termos concretos foi
um dispositivo utilizado diretamente para a repressão, pois foram poucos os casos de
sobreseimiento e libertação dos detidos; por essa razão também era conhecida também como
‘câmara do terror’. Mesmo nos casos excepcionais em que era outorgada a liberdade ao
acusado, este era detido novamente poucas horas depois de sair da prisão sob o decreto do
Poder Executivo Nacional, sem necessidade de intervenção judicial, situação que levava a o
que os advogados chamavam de uma ‘cadeia de processamentos - sobreseimientos’ que podia
chegar a incluir a condenação a simples militantes ou simpatizantes que, por fatos simples
como uma pichação na rua, chegavam a ser processados no âmbito do fórum penal anti-
subversivo
224
. Declarar a inconstitucionalidade deste tribunal foi uma das estratégias
utilizadas na defesa de presos políticos: “... o Poder Executivo não deve condenar nem aplicar
penas. A Câmara Federal é inconstitucional e incompatível com a existência da justiça
institucional”.
Enquanto os defensores de presos políticos apelavam para o valor da democracia
liberal, da constituição nacional e do Estado de direito para impugnar o Estado, os
magistrados que participavam desta câmara assumiram o compromisso com a luta contra ‘a
subversão’, apelando a uma retórica que desqualifica a neutralidade e o respeito aos direitos
civis e políticos. No editorial de um jornal nacional da época, reproduz-se o ponto de vista
oficial sobre este tribunal: seu objetivo é o de “superar o purismo de muitos juízes com ranço
de formação liberal que foram benévolos em suas condenações aos terroristas”. Em
contraposição, a câmara estava integrada por juízes designados pelo presidente caracterizados
por “... integrar um tribunal ideológico com uma forte vocação para o desempenho destas
funções repressivas”
225
. Do ponto de vista do ministro da Justiça, Jaime Perriaux (junho 1970-
outubro 1971), os juízes de então estavam complicados por questões de competência e por
isso nenhum responsável de atentados subversivos tinha recebido sentença. As jurisdições se
misturavam, mas os autores se repetiam e o ritmo da justiça era necessariamente lento.
Tratou-se de criar uma estrutura ágil e eficaz para inferir nos delitos da subversão. E diante da
224
Este caso é citado pelo advogado integrante da Gremial, Raúl Aragón. Em: Arangón, 2001. Este recurso à
repressão judicial não foi o único utilizado como provam os inúmeros casos de ‘desaparecidos’, assassinados ou
fuzilados durante estes anos. A partir de 1974, o surgimento da organização paramilitar e parapolicial Triple A
colocaria em evidência o progressivo predomínio dos assassinatos e desaparecimentos em relação às detenções e
outros processos judiciais.
225
Em: Jornal La Opinión. 3.6.1971. Grifos meus. Os nove juízes que interrogaram a câmara foram: Ernesto
Ure, Juan Carlos Díaz Reynolds, Carlos Enrique Malbrán, Cesar Black, Eduardo Munilla Lacasa, Jaime Smart,
Tomás Barrera Aguirre, Jorge Quiroga e Mario Fenández Badesich.
127
alternativa de julgar estes delitos por tribunais militares, Perrioux concebeu a possibilidade de
julgar os ‘guerrilheiros’ dentro do ‘Estado de direito’
226
.
Ainda que a retórica da defesa da constituição e dos direitos humanos não fosse
necessariamente a que então ocupava o centro da cena pública, dominada pelas referências a
grandes esquemas ideológicos (marxismo, imperialismo etc.), é importante destacar que esta
existia, que era uma das formas privilegiadas de denúncia e que era um elemento importante
na representação do próprio papel do advogado e dos princípios que os instituem como grupo.
Nestes termos, o advogado Hipólito Solari Yrigoyen se define:
“…Yo creo en el imperio de la justicia y el derecho. Si un ciudadano es acusado de
algo, son los jueces, en las condiciones que determina la Constitución y las leyes,
los que deben determinar la culpabilidad y la pena. Pero ¿qué jueces y qué leyes
durante un gobierno militar? Las dictaduras establecen su propia ley y sus propias
modalidades como los tribunales de excepción instaurados por la dictadura de
Onganía, totalmente arbitrarios y expresamente prohibidos por la Constitución”.
227
Ao explicar a surpreendente continuidade da repressão, que era possível de se verificar
ainda durante a democracia iniciada em 1973, os advogados defensores de presos políticos
apelaram a marcos imperativos heterogêneos. Simultânea ou alternativamente, a ‘violência
política’ e ‘as sistemáticas violações aos direitos humanos’ obedeciam a causas culturais (o
autoritarismo vigente no país a partir do golpe de Estado de 1930) ou históricas (a
implantação do fascismo, a existência de um sistema neocolonial). Para alguns deles,
inclusive, o país vivia um estado de incipiente guerra civil; diagnóstico que coincidia com a
própria percepção que as Forças Armadas tinham da situação
228
. A atribuição de caracteres
fascistas ao regime político continuava sendo uma retórica dominante em boa parte da
literatura então produzida pelos advogados defensores dos presos políticos. Esta equiparação,
que não tem nada de evidente, tornava possível reconhecer a existência de ‘campos de
226
Declarações reproduzidas na página web: www.ladecadadel70.com.ar.
227
Em: Gabetta, op.cit. pág. 229, grifo meu.
228
Nos termos dos representantes das Forças Armadas, a Argentina estava em ‘guerra aberta contra a subversão’:
“... hoje como 159 anos, estamos em luta porque hoje também afrontam os Argentinos. Com a diferença que
hoje o invasor é também traidor, porque é argentino”. Declarações do Coronel Luciano B. Menéndez ao Jornal
Clarín. 27.09.1971. Grifos meus. Vale a pena destacar que a partir do golpe de Estado de 1973 contra Allende no
Chile, volta a se instalar na cena pública a estratégia da ‘frente única’ dentro do PC. Na Argentina foram criadas
várias dessas frentes, entre as quais se destaca a Frente Anti-imperialista por el Socialismo (FAS).
128
concentração’ nos lugares de detenção. No tom desta retórica, a advogada Susana Aguad
descrevia os últimos seis anos de governos militares nestes termos:
“… Hemos llegado a un punto en nuestro país en que, como en la Alemania de
Hitler (...) puede hablarse de nazificación de la judicatura (jueces especiales) y de
la creación de un aparto represivo que nada tiene que envidiar al Estado alemán
(...) Los nazis usaban, por ejemplo, el estado de Emergencia Civil para acabar con
las huelgas (...) Nosotros conocemos desde hace tiempo lo que es un país en estado
de ocupación por su propio ejército.(...) Todos los días una nueva ley, un nuevo
decreto intenta hundirnos en aquél régimen nazi
229
.
O ‘nazismo’ e o ‘fascismo’ instalados na Argentina se vinculavam ao ‘sistema de
exploração’. Desta perspectiva:
“Entre el niño que muere por falta de material de asistencia (…) y el secuestrado o
asesinado (…) que es eliminado oscuramente de la faz de la tierra, no hay más que
una diferencia de grado: lo que permite la muerte de ese niño (…) en otro nivel
engendra la matanza de Trelew (…) Hay pues una relación entre la opresión
corriente propia del sistema y la represión extraordinaria que se expandió en los
últimos años”
230
.
“La cárcel, la tortura, los secuestros y asesinatos no son meramente contingentes y
excepcionales sino parte esencial y necesaria en la relación opresor-oprimido”
231
.
É justamente esta relação entre repressão e exploração que aparece em destaque na
análise dos profissionais do direito. Para Silvio Frondizi:
“El golpe de Estado de 1966 no es un golpe más de las fuerzas armadas, sino que
es la primera tentativa en la historia de nuestro país tendiente a que estas fuerzas se
229
“Las leyes de la dictadura no impidieron el avance de la lucha”. Em: Jornal Desacuerdo, grifos meus.
230
Em: Foro de Buenos Aires por la vigencia de los derechos humanos, 1973. Grifos meus. ‘La Matanza de
Trelew’ é o nome com que se conhece nesta militância o episódio que aconteceu no dia 22 de agosto de 1972,
quando foram fuzilados 16 presos políticos alojados em uma base naval da cidade de Trelew, a uns 1400 km de
Buenos Aires.
231
Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1. N° 18. Novembro 1971.
129
hagan cargo del control total de la República Argentina para aherrojar por medio
de la violencia a los sectores obreros y populares...”
232
.
Diante desta situação, Alfredo Curuchet, integrante da Agrupación de Abogados
de Córdoba, ele mesmo detido depois do Cordobazo na porta dos Tribunais quando
interpunha um recurso de amparo a favor dos trabalhadores do sindicado que
representava, convocava seus colegas a formar uma ‘frente de massas contra a
repressão’ advertindo sobre a urgência de:
“... encarar la denuncia enérgica de todas las brutalidades de la represión,
detenciones arbitrarias, represalias laborales, disolución e intervención de
sindicatos, rastrillajes, creación de tribunales especiales “antisubversivos”, torturas,
secuestros y asesinatos perpetrados a diario por las “fuerzas de seguridad” o por las
fuerzas terroristas para-policiales y paramilitares del régimen”
233
.
Como foi identificado no capítulo 1, ao convocar ao trabalho coletivo de denúncia
da repressão, os profissionais do direito inscreviam a defesa dos militantes sindicais e
partidários em uma ação que devia transcender o mero exercício técnico. Convocava-se a
denunciar publicamente ‘o sistema de opressão’, pretendendo contribuir, como especialistas, à
sua transformação. A partir e através do exercício do direito, um segmento da profissão
jurídica se mobilizou em torno ao que se chamou a ‘causa antiditatorial’, incluindo nela tanto
os que aspiravam por uma ‘revolução socialista’, por uma ‘pátria peronista’, como por
alcançar a ansiada ‘libertação nacional’. Ao mostrar a eficácia deste trabalho de agrupamento,
o integrante da ‘Gremial’ Mario Kestelboim expressava diante de seus colegas reunidos no
congresso de advogados defensores de presos políticos: “A coincidência essencial do conjunto
de profissionais que se nucleou em torno da Gremial foi que, para além das dissidências
políticas e ideológicas, [temos uma] caracterização comum de nossa Pátria como Nação
semicolonial com desenvolvimento capitalista e o julgamento da ditadura como produto
necessário de um sistema que se derruba pelo desenvolvimento das lutas populares”
234
.
232
“Tratan de impedir con la violencia que continuemos la lucha” Em: Jornal Desacuerdo.
233
Em: Jornal Desacuerdo.
234
“Una experiencia de militancia: la Asociación Gremial de Abogados” Em: Jornal Peronismo y Socialismo. N°
1. 1973.
130
2. 3 ‘As frentes de massa contra a repressão’
Se do amplo espectro opositor haviam sido criados diferentes espaços de protesto e
denúncia, o que caracteriza as associações que serão descritas neste capítulo é o fato de
estarem formadas por profissionais do direito que se mobilizaram a favor da causa
antiditatorial a partir das ferramentas providas pelo próprio direito. Tratava-se
especificamente de “... assumir a defesa das liberdades públicas, a defesa das reivindicações
populares democráticas (...) prestar assistência jurídica integral a milhares de trabalhadores e
exercer a solidariedade material e política com os presos sociais, reféns da ditadura, ajudando
as famílias financiando viagens de parentes e de advogados a presídios distantes...”
235
. Entre
suas palavras de ordem estavam: ‘pela imediata liberdade de todos os presos políticos’, ‘pela
revogação do Estado de sítio, da pena de morte, dos tribunais especiais, das torturas e das leis
repressivas’. Entre suas reivindicações ocupavam um lugar de destaque aquelas que atendiam
seus próprios interesses como profissionais do direito.
Entre as várias associações que então foram criadas estavam a Agrupación de
Abogados de Córdoba, a Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires (‘la Gremial’), a
Asociación Gremial de Abogados de Mar del Plata, a Asociación Gremial de Abogados de
Bahía Blanca, o Movimiento Nacional contra la Represión y la Tortura, o Foro de Buenos
Aires por la Defensa de los Derechos Humanos, a Organización de Solidaridad con los Presos
Políticos, Estudiantiles y Gremiales (OSPPEG) e a Comisión de Familiares de Presos
Políticos y Gremiales (CoFaDe).
Junto com elas, foram criadas outras de vida mais efêmera e que aglutinaram
profissionais de direito pertencentes a diferentes gerações como foi o caso da “Comisión por
la Libertad de Agutín Tosco, Raimundo Ongaro y demás presos políticos y sociales”, a
Comisión por la Vida y la Libertad de Martins y Centeno, a Mesa Nacional de Abogados
(incorporada ao FAS), onde atuaram Curutchet, Frondizi e Gaggero entre outros, a Comisión
de Apoyo a Chile (COMACHI) que, atuando em apoio dos exilados e refugiados chilenos, “...
montávamos guarda em Ezeiza e quando chegava um exilado no país, apresentávamos
235
Declarações de A. Curuchet no Jornal Desacuerdo, N°. 3 Junho 1972, pág. 2.
131
imediatamente um recurso de hábeas corpus a seu favor para impedir que fossem detidos”
236
.
Os integrantes do serviço jurídico da LADH, com Julio Viaggio, Amilcar Santucho e Roberto
Guevara, também propunha a formação de um coletivo de advogados de diferentes filiações
políticas e ideológicas que atuasse na defesa de presos políticos.
Tratava-se de defesas que “dificilmente as associações pegavam”
237
, uma forma de
representar a atividade profissional que distinguia os advogados defensores analisados no
capítulo anterior. Embora o secretário da ‘Gremial’ lembra que entre os casos defendidos: “...
tinha de tudo, desde uma namorada que tinha sido detida porque algum rapaz tinha alguma
causa desagradável até quem realmente tinha um compromisso militante, passando por
aqueles que eram contrários à luta armada, mas que também caiam presos...”
238
, é importante
destacar uma mudança crítica nas formas de fazer política: o surgimento, no início dos anos
sessenta, de grupos dentro do peronismo e da esquerda que buscaram fazer da ão armada
uma forma legítima de política. O que supôs, por sua vez, mudanças nas formas de conceber e
exercer este compromisso jurídico
239
. Neste contexto, compreendem-se as palavras de dois
integrantes da ‘Gremial’:
“...En aquella época [1969] éramos un puñado de abogados los que asumíamos las
defensas de presos políticos, hoy día, como consecuencia del brutal agigantamiento
de la represión y de la propia desaparición de Martins, es cada vez mayor el
número de abogados que interviene y se suma en la defensa de estos casos. Al
punto tal que, incluso ha dado surgimiento a la Asociación Gremial de Abogados,
en defensa del ejercicio de la profesión
240
.
Como foi possível que um grupo relativamente disperso de profissionais do direito
fosse se aglutinando neste tipo de associação? Os grêmios e sindicatos foram uma das vias de
recrutamento dos integrantes da Gremial. Desde 1968, vários jovens formados e com
diferentes filiações partidárias haviam-se incorporado ao corpo de advogados da recentemente
criada Confederación General del Trabajo de los Argentinos (CGT A), um espaço que surge
236
Em: Entrevista realizada por mim a Silvia Dvovich (nome apócrifo). 22.07.2002.
237
Em: Entrevista realizada por L. Saldivia a Marta Grande (nome apócrifo).
238
Em: Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
239
Vale a pena lembrar que os advogados defensores analisados no capítulo anterior compartilhavam todos,
inclusive o PC, uma definição comum: o parlamentarismo como meio de transformação social. As posições de
estes advogados são dissímeis neste sentido.
240
Reportagem aos Advogados Rafael Lombardi e César Calcagno no Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. N°. 12,
1971, grifos meus.
132
na cena sindical com um marcado signo opositor à ditadura. Foi deste lugar que os advogados
começaram a ‘pegar’ as defesas não de dirigentes sindicais detidos e perseguidos, mas
também dos integrantes das primeiras organizações armadas. “Com o tempo, este grupo se
tornou conhecido e chegou um momento em que tínhamos a maioria dos presos políticos sob
nossa responsabilidade, inclusive tínhamos mais que as organizações de direitos humanos que
trabalhavam nesse momento”
241
. O fato de assumir o compromisso de atender os casos de
militantes armadas deu-lhes notoriedade e situou-os dentro do universo da política e do direito
em uma posição de máxima proximidade com aqueles que defendiam:
“Tuvimos muchas defensas: Taco Ralo, la calle Paraguay, muchos Tupamaros que
caían acá, algunos grupos que se habían escindido del Partido Comunista, como las
Fuerzas Armadas de Liberación (FAL) que estaban empezando a organizarse para
la lucha armada (…) Cuando cae esta gente no recurren a los viejos organismos de
defensa de derechos humanos del Partido Comunista como la Liga (…) pues
estaban en contra de la lucha armada (…). Entonces se acercaban a la CGT A
donde ellos podían tener lugar
242
.
Esta mesma trajetória em grêmios e sindicatos é a que distingue também aos
profissionais do direito que adquiriram uma enorme notoriedade pública como advogados de
defesa de presos políticos: Rodolfo Ortega Peña e Eduardo Luis Duhalde. Eles chegam à
Gremial a partir de outros espaços de pertencimento: eram assessores legais da Unión Obrera
Metalúrgica, um grêmio afiliado à oficialista Confederación General del Trabajo, dirigida por
Augusto Vandor, e tinham feito sua inserção no mundo profissional nas mãos do advogado
trabalhista Fernando Torres, e entrando dentro do estudo jurídico de Isidoro Ventura Mayoral,
advogado do presidente Perón, então no exílio. Também se somarão à Gremial colegas que
integravam a equipe jurídica do Partido Revolucionario de los Trabajadores (como Vicente
241
Em: Entrevista com Mario Landaburo realizada por Vera Camovale. Arquivo oral Memoria Aberta.
Landaburo refere-se à LADH que, criada em 1937, continuava ativa naquele momento. Entre os que
participavam da CGT A estavam: Rafael Lombardi, César Calcagno, Mario Landaburu, Néstor Martins, Raúl
Aragón, Hipólito Solari Yrigoyen, Hugo Chumbita, Hugo Anzorregui, Cayetano Póvolo, Antonio Deleroni, Juan
Carlos Giradles, Rubén Bergel, Laura Rabey, Rubén Gomez e Conrado Ortigosa Antón. A participação de
Ortigosa Antón no ‘corpode advogados desta central sindical chama a atenção que ele era um espanhol que
havia militado originalmente no falangismo, embora tivesse se exilado na Argentina logo depois que Franco o
condenara à morte.
242
César Calcagno. Entrevista realizada por Mauricio Chama no dia 12.11.1998 e reproduzida em M. Chama,
s/d. Os episódios mencionados referem-se às primeiras ações organizadas por agrupações como as Fuerzas
Armadas Peronistas e as Fuerzas Armadas de Liberación.
133
Zito Lema e Rodolfo Mattarollo) junto com outros advogados que se identificavam como
‘não enquadrados’ ou ‘independentes’ (como foi Gerardo Taratuto, entre outros)
243
.
No relato destes especialistas, a defesa dos dirigentes sindicais aparece como o
elemento que os congrega, principalmente depois do assassinato de Augusto Timoteo Vandor
(CGT) e do ‘Cordobazo’, quando foi instaurado o Estado de sítio e os dirigentes máximos das
centrais sindicais opositoras foram encarcerados, entre eles Agustín Tosco e Raimundo
Ongaro. Ao se aproximarem das delegações policiais para apresentar recursos de hábeas
corpus, os próprios advogados dos dirigentes operários começaram a ser, eles próprios,
detidos e conduzidos à Penitenciária de Devoto. Como resultado desta ação, uns 40
advogados assessores de grêmios e sindicatos estavam reunidos na penitenciária, entre eles,
Néstor Martins. Este episódio foi recorrentemente mencionado nas entrevistas como um
momento chave na organização futura deste grupo de profissionais
244
.
A criação deste espaço também está ligada à participação destes jovens na militância
universitária. Uma entrevistada descreve a importância destas relações para compreender a
maneira que um conjunto de profissionais do direito se integra à Gremial: “... vieram me
procurar, fui às primeiras reuniões e volto a encontrar com um monte de colegas que nos
conhecíamos da época do MUR”, referindo-se à agrupação estudantil Movimiento
Universitario Reformista que assume a condução do Centro de Estudantes da Faculdade de
Direito em 1964
245
. É o próprio exercício da profissão que possibilita sua agregação. São
inúmeros os relatos de entrevistados que mencionam amizades surgidas durante as visitas aos
clientes que defendiam ou, inclusive, durante os períodos nos quais os próprios advogados
sofreram detenção. Os processos judiciais nos quais intervinham atuavam como espaços de
relação e de aproximação, como fica evidente no relato de um entrevistado: “... vieram me ver
alguns parentes, em um caso, (...) e então estabeleci uma relação fluída [com os outros
243
É interessante destacar que esta categoria nativa ‘não enquadrados’ ou ‘independentes’ não significa que estes
advogados não tivessem uma identidade partidária ou não estivessem integrando um partido ou organização
política. Ao contrário, parece que quer dizer que não seguiam em seu trabalho profissional as diretrizes de
nenhum partido e, neste sentido, que se articulavam com um critério próprio nas defesas. Também sugere que,
em função desta posição, não disputavam o controle político da Gremial.
244
Nas páginas do jornal da LADH El Defensor se reproduze uma listagem dos presos políticos e também os
nomes dos advogados que assumem as defesas destes casos entre os anos de 1964 e 1965: Eduardo L. Duhalde,
Rodolfo Ortega Peña, Fernando Torres, I. Ventura Mayoral, Gustavo Roca, Atilio Librando, Pedro Kesselman,
Alejandro Teitelbaum,, todos eles futuros integrantes da Gremial. Estas defesas ocorrem antes do Cordobazo
(1969), o que reforça a necessidade de tomar a periodização proposta nesta tese de forma flexível e, por outro
lado, confirma o valor que esse episódio tem para os nativos como um ato fundador deste ativismo jurídico. Em:
El Defensor, abril de 1965, N° 9.
245
Marta Grande (nome apócrifo), entrevista realizada por Laura Saldivia.
134
advogados defensores] porque naturalmente tínhamos que decidir que tática empregar em
cada caso particular”
246
.
As próprias associações profissionais são espaços que os convocam e as lógicas de
inclusão e exclusão que estas empregam também incidem na formação de associações como a
Gremial. É importante estar atento a este processo para perceber como, entre o exercício da
repressão do Estado e a formação de uma associação em defesa da militância sujeita a
violência, mediam processos que são próprios do campo profissional ao qual estes advogados
pertencem. Ao narrar a criação da Gremial os entrevistados, recorrentemente, apelam ao
mesmo mito fundador: o desaparecimento de um colega. Os acontecimentos deste episódio
aparecem organizados no relato de maneira tal que fundam uma cisão dentro deste universo
profissional: a Gremial constituiu-se como um espaço separado e distinto das associações
profissionais existentes até esse momento, como a Asociación de Abogados de Buenos Aires
qual muitos pertenciam, inclusive Martins), a Asociación de Abogados Laboralistas, dos
sindicatos nos que atuavam, como a CGTA, e das associações defensoras de direitos humanos
como a Liga, todos espaços aos quais Martins estava integrado. Como assinalava então um de
seus integrantes “A Gremial veio cobrir um vazio político jamais coberto anteriormente (...)
veio cobrir um território tradicionalmente coberto pela ‘oligarquia’ (Colegio de Abogados) e
‘os liberais’ (Asociación de Abogados de Buenos Aires)
247
.
“A Martins o desaparecem em pleno Tribunal e a Asociación de Abogados de Buenos
Aires [AABA] não dá resposta a isso. E aí é quando dizemos ‘aqui tem que se organizar outro
tipo de coisa porque evidentemente a Asociación de Abogados não cumpre o papel
profissional que nos cabe viver”
248
. No relato de outro entrevistado: “... diante de seu
desaparecimento não me senti representado porque não se fez tudo o que se poderia ter feito
por considerações absolutamente ideológicas (...). A Asociación de Abogados simplesmente
246
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
247
Mario Kestelboim: “Una experiencia de militancia: la Asociación Gremial de Abogados”. Em: Jornal
Peronismo y Socialismo. Buenos Aires, N° 1, 1973.
248
Marta Grande (nome apócrifo), entrevista realizada por L. Saldivia, grifos meus. Martins foi seqüestrado por
forças parapoliciais no dia 16 de dezembro de 1970, quando saía de seu escritório jurídico da rua Paraná, a
poucos metros do Congresso Nacional e do Palácio dos Tribunais. Desapareceu junto com o cliente que se
encontrava com ele, um dirigente do chamado movimiento villero (de favelas).
135
fez uma declaração. Este foi o salto para que se formasse a Asociación Gremial de Abogados
na Capital Federal”
249
.
Desde o golpe de Estado de 1966, a AABA havia repudiado publicamente as
sucessivas intervenções do poder militar na vida política nacional. Reclamava contra a
subordinação da Constituição às disposições dos governos de fato, contra a remoção dos
juízes da Suprema Corte de Justiça, contra as detenções que se seguiram ao Cordobazo e
contra as condições nas quais deviam trabalhar os advogados defensores de presos políticos.
Logo depois da detenção de advogados que se segue ao Cordobazo, a AABA manifestou-se
publicamente denunciando que esses procedimentos ‘depreciam os profissionais’ e significam
uma ‘clara violação ao livre exercício da prática profissional’. As manifestações públicas e
greves para exigir o aparecimento de um de seus sócios, Néstor Martins, foram convocadas
também pela AABA.
A valoração negativa sobre esta associação enuncia um ponto de vista interessado
relativo aos que estavam situados em uma relação de maior proximidade com os que
confluíram na Gremial, eles mesmos, sócios da AABA. O que revela que para estes militantes
‘a luta’ se desenvolvia não apenas no contexto da relação com os partidos aos que pertenciam,
mas também em relação ao seu próprio universo profissional. Estas instâncias de
representação, como a AABA, eram espaços valorizados, o que explica que os defensores de
presos políticos competiram eleitoralmente por controlá-los ou, no caso de não poder fazê-lo,
se segmentaram dando origem a outras associações.
Em 1971, houve eleições na AABA. A lista Azul triunfou. A lista do Movimiento de
Acción Renovadora saiu derrotada, uma aliança entre a Frente de Advogados, cujos
integrantes depois formariam a Gremial e outros profissionais que vinham do PC. Sua derrota
significou que a AABA declinou em representar pública e juridicamente a militância
comprometida em ações armadas ou próximas a elas, ao entender que se tratava de ‘casos
publicamente controvertidos’
250
. Esta expressão sugere tudo o que estava em risco ao assumir
essas defesas: o capital social e simbólico da instituição.
249
Raúl Piedrabuena, entrevista realizada por L. Saldivia. Arquivo privado. Grifos meus. A AABA foi criada em
1934. Em seu estatuto destacam-se como objetivos da instituição defender as instituições democráticas do país e
‘representar os associados na defesa de seus legítimos interesses profissionais’. Em: www.aaba.org.ar.
250
Revista Primera Plana. 12.07.1966.
136
Quem integrava a lista derrotada, Beinuz Szmukler, mas não integrava a Frente de
Advogados (grupo aliado ao Movimiento de Acción Renovadora) relatava a situação colocada
então da seguinte maneira:
“La concepción que nosotros teníamos entonces era que no había que apartarse, los
abogados que tenían una posición militante (…) no tenían que sectorizarse en una
organización propia sino que debían participar e impulsar el trabajo en la
Asociación de Abogados de Buenos Aires (…) [esto] lo fundamos en la necesidad
de no debilitar a la Asociación y en la necesidad de que los abogados que estaban
allí debían ir a la Asociación para modificar las cosas de manera de pelearla desde
adentro”
251
.
A importância que teve o desaparecimento de Martins em termos de cristalizar o
conjunto de profissionais de direito que integraram a Gremial depois de serem excluídos da
condução da AABA pode ser observado com a nota que se encontra no anexo e que mostram
o grau de mobilização destes advogados que, nos 15 dias posteriores ao seu desaparecimento,
organizaram três atos blicos na sede do Palácio de Tribunais, uma greve de advogados e
publicaram uma abaixo-assinado em um dos jornais nacionais de maior circulação. As fotos
destes atos mostram os advogados reunidos nas escadas do Palácio da Justiça
252
. Nos
discursos e declarações pronunciadas naquele momento reconhecia-se que haviam se
dedicado, desde sua formatura, à defesa de presos por motivos políticos e gremiais”
253
.
A referência ao colega Néstor Martins indica que, junto com a necessidade de
defender o crescente mero de militantes políticos e sindicais perseguidos e detidos, estas
associações foram pensadas também como uma instância que devia servir para garantir uma
maior proteção aos próprios advogados defensores. À medida que assumiam a defesa de
presos políticos, os advogados passaram a ser identificados crescentemente com as
organizações armadas às quais pertenciam os clientes que defendiam e foram, eles mesmos,
objeto de perseguição, seqüestro, assassinato e desaparecimento.
251
Entrevista com Beinuz Szmukler, integrante da LADH realizada por M. Chama (2000) e reproduzida em
Chama. op.cit.
252
Ver anexo N° 7 (La Prensa, 24.12.1970) na página 213.
253
Declarações do sócio de Martins, Atilio Libriandi. Em: Jornal La Prensa. 24.12.1970.
137
Neste contexto, os que impulsionaram a criação da Gremial destacaram nas entrevistas
que o fizeram como uma forma de ‘neutralizar’ o exercício da defesa de prisioneiros políticos,
aglutinando profissionais provenientes de diferentes filiações ideológicas e partidárias, e
estabelecendo critérios de racionalidade ‘profissional’. Através da formação de uma
associação especificamente profissional que funcionasse por fora das organizações sindicais e
políticas, e que incluísse profissionais do direito não vinculados necessariamente à direção em
organizações identificadas com a luta armada, a Gremial se propunha a oferecer a seus
integrantes um maior respaldo no exercício da profissão. Neste sentido, e mesmo que seus
integrantes destaquem suas diferenças em relação à Liga, a Gremial também se constituiu
sobre um modelo baseado na aglutinação de advogados provenientes de diferentes orientações
políticas e partidárias, e que faziam do pluralismo um emblema. Como relata uma de suas
integrantes: “... na Gremial de Advogados todos nós, advogados, trabalhávamos juntos, com
independência de pertencer a um ou outro setor político ou ser independentes”
254
.
Assim, como foi assinalado para os anos trinta, a participação destes profissionais
do direito pertencentes a diferentes filiações partidárias também estava vinculada à
possibilidade de criar espaços de ação pública e profissional que não necessariamente
gozavam de consenso dentro de seus partidos de origem, nem se correspondiam totalmente
com as linhas de ação que estes tinham traçado. Fora dos partidos e dentro destas frentes,
estes profissionais do direito podiam levar adiante com maior facilidade seu engajamento
público com a causa de seus clientes e evitar as limitações impostas pela subordinação à
política partidária. As sanções diante da indisciplina que estas frentes podiam supor faziam-se
sentir, como expressa o testemunho da integrante da Gremial Cristina González, vinculada à
organização armada Montoneros:
“… en general, en el partido nos miraban de reojo (…) en un momento me
llamaron la atención porque yo había tomado un par de defensas por presión de
Ortega y Duhalde y me llama Galimberti [uno de los máximos dirigentes de
Montoneros] y me dice: renunciá a las defensas del ERP porque creer que somos
todos lo mismo es un criterio policial, nosotros no somos lo mismo, somos
peronistas, ellos son marxistas, no tenemos nada que ver…”
255
254
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo) realizada por Laura Saldivia.
255
Entrevista com Cristina González (nome apócrifo) realizada por Laura Saldívia. 2002.
138
Esta heterogeneidade ideológica é destacada pelos entrevistados como um valor
positivo: “havia alguns [advogados] que ao mesmo tempo eram membros de organizações
armadas, muitos não eram membros das organizações e se tornaram membros depois de
serem membros da Gremial (...) também havia advogados que faziam parte da Gremial e o
faziam parte de nenhuma organização”
256
.
No relato objetivo da trajetória desta associação, o porta-voz da Gremial silenciava as
diferenças para exaltar o compromisso comum para com os outros: “A AGA nasceu como
uma resposta a uma necessidade impostergável, diante da ausência de uma entidade que
represente os advogados que querem se agrupar para lutar contra uma sociedade
caracterizada por conservar estruturas a serviço das minorias, instituições (...) caducas pela
constante violação dos direitos fundamentais
257
.
2. 3. 1 Um mundo feito de rotinas
Nas entrevistas realizadas a ex-integrantes da Gremial, os advogados destacaram a
importância do trabalho conjunto como uma forma de garantir, de maneira permanente e em
todo o território nacional, a defesa do crescente número de militantes políticos e sindicais
detidos. Este era um atributo exibido por seus integrantes também naqueles anos: “Nossa
associação Gremial oferece a todos os movimentos ou grupos, políticos gremiais ou
estudantis, a representação e o patrocínio gratuito por intermédio de seus associados”
258
. Não
se tratava de intervir em um ou outro processo ‘emblemático’, mas de assumir ‘a totalidade’
das defesas dos militantes, especialmente daqueles que pertenciam às primeiras organizações
armadas surgidas no início dos anos 60.
As causas deviam ser distribuídas por turnos entre os associados, privilegiando
critérios ‘técnicos’ de trabalho, de forma a garantir sempre a disponibilidade de um advogado
ante o requerimento imediato, que podia significar o seqüestro ou detenção de uma pessoa:
256
Entrevista com Raúl Piedrabuena realizada por Laura Saldivia.
257
“La Asociación Gremial de Abogados y los Presos Políticos” Reportagem com o secretário de imprensa da
Gremial, Hugo Vega no Jornal Nuevo Hombre. N° 20. 01 a 06 de dezembro de 1971. Grifos meus
258
“La Asociación Gremial de Abogados y los Presos Políticos” Reportagem com o secretário de imprensa da
Gremial, Hugo Vega, no Jornal Nuevo Hombre. N° 20. 01 a 06 de dezembro de 1971.
139
“Então, o dia em que estava de turno, esse dia tinha que ficar em seu escritório para atender
qualquer caso de emergência. Ou seja, era um plantão médico e podia aparecer o caso mais
simples (...) ou um companheiro que tinha caído depois de realizar uma cristã atividade de
enviar para o céu cinco militares”
259
. Nos termos de outro entrevistado: “... uma das palavras
de ordem da Gremial era não fazer nenhum tipo de distinção para defender os militantes
políticos (...) sempre se dizia que não havia diferenças políticas (...) com quem defendi mais
companheiros foi com Lombardi, Solari Yrigoyen e Smolianvsky, que não tinham a mesma
origem que eu, mas tínhamos uma maneira idêntica de pensar no jurídico”
260
.
A divisão de trabalho no acompanhamento das causas foi proposta também como uma
estratégia que tentava resolver o problema do número crescente de processos e suas dispersão
geográfica. A crescente necessidade de se deslocar fisicamente para garantir as defesas e
minimizar o risco de que militantes ficassem sem assessoria profissional devia não apenas ao
incremento do número de militantes políticos detidos, mas também à criação da Cámara
Federal en lo Penal, fórum ‘anti-subversivo’, a partir da qual as causas podiam ser tramitadas
em qualquer lugar do território nacional. Estas associações pretendiam garantir, através desta
estratégia, prestar ajuda jurídica nos casos de militantes do interior julgados na Capital
Federal ou, inversamente, nos casos tramitados em lugares distantes do interior onde,
provavelmente, não havia advogados dispostos a assumi-los.
Nas entrevistas, os profissionais de direito destacavam as rotinas que formavam parte
do trabalho na Gremial:
“Nos reuníamos puntualmente todos los lunes, discutíamos política y estrategias
como abogados porque como abogados nos planteábamos los problemas de la
profesión, la seguridad [personal] de los abogados (…) y nos planteábamos las
estrategias en cuanto a las reivindicaciones del gremio, cosas como el
funcionamiento de los ascensores en el Palacio de Tribunales (…) o la requisa a los
abogados para ir a la cárcel”
261
.
Malena Bordenave enfatiza a compatibilidade entre levar adiante seu estudo
profissional e militar em defesa dos presos políticos e sindicais: “Todas as manhãs ia aos
259
Entrevista comRaúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia. Grifos meus.
260
Entrevista com Mario Landaburu no arquivo oral Memoria Abierta.
261
Entrevista realizada por Laura Saldívia a Cristina González (nome apócrifo) Grifos meus.
140
Tribunais fazer as demandas [trabalhistas]. E depois, também advogados e amigos nos
reuníamos para determinar as linhas de ação, cada vez que as pessoas caíam presas”
262
.
Ao se apresentar um caso, também relatam suas ações em termos de uma seqüência
típica: diante da detenção de um militante, o advogado que está de turno inicia as primeiras
ações legais, começando por tentar rastrear o lugar de detenção do militante, que sua
detenção pode ser ilegal e seu ingresso não esteja registrado em nenhuma dependência oficial.
Para dar com seu paradeiro, o advogado apresenta um hábeas corpus ao juiz de plantão, em
algumas ocasiões indo ao próprio domicílio do magistrado, ao mesmo tempo em que começa,
pessoalmente, a percorrer as delegacias até encontrar a pessoa que foi detida. Com uma ponta
de humor negro, Duhalde e Ortega Peña pontuavam: “Começa-se então a busca em diferentes
dependências oficiais, onde a pessoa detida é sistematicamente negada, em uma espécie de
Antón Pirulero repressivo”
263
.
Uma vez identificado o lugar de detenção, o integrante da Gremial se apresentava e,
enquanto advogado assessor do detento, podia vê-lo para se informar de seu estado físico e
informar-lhe sobre sua situação processual. Neste momento, o advogado defensor prestava os
primeiros conselhos ao detido. A solicitação de perícias médicas fazia parte destas rotinas de
trabalho, assim, utilizavam-nas logo no início processo para demonstrar a aplicação de
torturas. Os próprios advogados se tornavam, muitas vezes, em parte requerentes da causa ao
exigir a investigação das responsabilidades nas torturas e ou na ‘privação ilegítima da
liberdade’ nos casos em que eram seqüestrados clandestinamente em lugar de serem detidos
com ordem judicial ou por decreto do poder executivo nacional (PEN). Em diversas
oportunidades, prevendo possíveis detenções, os próprios advogados costumavam estar
presentes nas manifestações públicas a fim de obter informação imediata e de primeira mão a
respeito das forças policiais a cargo da operação e do possível lugar de detenção do militante.
As visitas aos presos em seus lugares de detenção era outra destas rotinas. Dadas as
condições de violência e exceção imperantes nestes anos, podiam significar para o advogado
de defesa ter que se trasladar por diferentes presídios do país, seguindo os traslados contínuos
de seus clientes, até o fato de sofrer ameaças de morte por parte do pessoal penitenciário ou a
262
Entrevista realizada por mim a Malena Bordenave. Buenos Aires. 2002.
263
Nuevo Hombre, Ano 1. N°. 6, 1971. ‘Antón pirulero’ é uma brincadeira de roda entre crianças que repete,
invariavelmente, a mesma seqüência de ação.
141
própria detenção. Apesar destas circunstâncias, as visitas aos presos tinham uma importância
crítica ao situá-los em estreita proximidade com seus clientes e com as ações que definem sua
militância. A valorização destas visitas por parte de uma detida demonstra o lugar ao que
aspiravam dentro do universo da militância: “As pessoas que mais vejo são os meus
advogados, Lombardi, Landaburu e Sinigaglia. Eles vêm me ver e falam comigo muito. (...)
não são mais meus advogados, são meus amigos
264
. Diante da detenção de rios
dirigentes sindicais, um advogado defensor de presos políticos destacava o valor das visitas
como uma forma de: “... fazer de veículo através do qual estes dirigentes poderão seguir
exercendo sua condição de dirigentes, nós os vemos três vezes por semana de tal maneira a
consultá-los, levar suas opiniões [à rua] ...”
265
.
Diferentemente do que acontecia no espaço do direito trabalhista, onde as relações de
representação entre o advogado e seus clientes eram profundamente assimétricas do ponto de
vista social, no mundo de relações constituído pela militância ‘progressista’ ou de ‘esquerda’
existia uma enorme proximidade social entre quem detém o saber profissional e quem é a
pessoa defendida. Esta proximidade era chave na consolidação de uma relação de confiança,
relação que atua como uma condição necessária para se responsabilizar por defesas tão
comprometidas.
Os entrevistados destacaram também a dimensão formativa ou pedagógica desta
prática. Em geral, os advogados mais jovens e com menor experiência profissional
acompanhavam os advogados com maior trajetória, como uma forma de aprender o ofício. Os
entrevistados assinalaram, diversas vezes, que os casos ‘mais difíceis’ eram outorgados aos
advogados ‘com mais prestígio’ da Gremial, enquanto os advogados recém formados ou com
menor experiência se encarregavam de acompanhar os casos, realizar as visitas nos presídios
ou apresentar os hábeas corpus. Nas palavras de Cristina González: “... nesse momento
advogados que são referências, Ortega Peña, o próprio Duhalde, Mario Hernández. Na
realidade, nós éramos algo assim como mais juniores, éramos um pouco mais jovens, não
tanto, mas éramos, sobretudo, menos treinados e realmente éramos auxiliares deles na maioria
dos temas. Quase todas as vezes eu estava como auxiliar”
266
. As responsabilidades no
264
Testemunho de Luisa Veloso “A todos digo que hay que luchar”. Nuevo Hombre. Ano 1. N°. 16. Novembro
1971. Grifos meus.
265
Entrevista com Carlos Cárcova realizada por Mauricio Chama. 19.11.1998. Reproduzida em Chama.
“Movilización y politización: los abogados de Buenos Aires. 1968-1973” s/d. mimeo. 22 págs.
266
Entrevista com Cristina González (nome apócrifo) realizada por Laura Saldívia. 2002.
142
atendimento do processo estavam divididas segundo critérios cnicos. Era responsabilidade
dos advogados mais jovens visitar periodicamente os detidos e estar em contato estreito com
eles: “Dividíamos as visitas aos presos entre nós, de forma que todos tivessem visitas e que
nenhum advogado ficasse muito sobrecarregado. Alguns dos advogados com mais experiência
conduzíamos os processos, os outros, como eu, eram os que acompanhavam nas visitas”
267
.
As condições de detenção dos presos políticos tinham incidência direta nas condições
de trabalho dos próprios advogados que exerciam sua profissão sob as condições impostas
pelo Estado de sítio desde 1969. Suas demandas tinham a ver não apenas com as condições
insalubres em que se encontravam seus clientes detidos, mas também com o fato de que:
“… las visitas del abogado han sido reducidas a cuatro horas diarias y se realizan
(...) bajo permanente control de personal de vigilancia (...) que impiden la reserva
necesaria que debe existir entre procesados y defensores. Además está prohibido
para los prisioneros la redacción de escritos para el abogado durante su visita y
hasta la firma de todo tipo de presentaciones legales”
268
.
Recorrer aos tribunais para seguir a tramitação dos expedientes judiciais era uma
tarefa também cotidiana, embora revestida de circunstâncias excepcionais que podiam levar à
própria detenção do advogado, como foi mencionado no caso de Curuchet. Novamente,
Eduardo Luis Duhalde e Rodolfo Ortega Peña nos oferecem uma ilustração desta rotina de
trabalho carregada de humor negro, intitulada El jardín de los senderos que se bifurcan’, na
qual descrevem a seqüência de passos que devem ser realizados para se ter acesso a um
processo, destacando-se no texto tanto a sordidez dos procedimentos judiciais, como a
abnegação do profissional engajado com a defesa de presos políticos:
“El abogado que llega a ver su expediente es atendido (...) por un jefe de mesa de
entradas que por teléfono se comunica con la vocalía donde está radicada la causa.
(...) A raíz del llamado baja de los pisos superiores un empleado de la vocalía. Si
los argumentos son buenos y la razón suficiente como diría Schopenhauer el
letrado puede subir, acompañado del empleado y, gicamente, previa
identificación mediante exhibición del carnet. Se ha logrado superar la primera
barrera. Cumplido el trámite debe descender a la planta baja (...) [y si quiere
267
Entrevista com Cristina González (nome apócrifo) realizada por Laura Saldívia.
268
Em: Jornal Desacuerdo. “Los detenidos en el buque Granaderos informan las condiciones en que viven.”
143
consultar un nuevo expediente debe] allí realizar el mismo trámite de sube y baja
con la otra vocalía (...) El abogado que para ese entonces no ha abandonado la
defensa de su procesado tiene que... [se siguen describiendo los trámites que
continúan]”
269
.
A gratuidade das defesas, a disponibilidade para assumir o sistema de plantões, que
incluía a eventualidade de trabalhar as 24 horas qualquer dia da semana, ou mesmo de se
deslocar com urgência a diferentes pontos do território nacional, somado aos riscos pessoais a
que se expõem estes profissionais demonstram o caráter heróico de toda esta atividade. Isto
era possível, em parte, porque as gratificações simbólicas desta forma de exercício
profissional eram muito importantes, sobretudo para aqueles advogados que tinham sob sua
responsabilidade a defesa de dirigentes políticos ou sindicais reconhecidos. De alguma
maneira, o ‘nome’ do cliente defendido enaltece o ‘nome’ do advogado defensor. Assim,
Solari Yrigoyen refere-se à defesa de Agustín Tosco nos seguintes termos: “Sinto-me
duplamente honrado, como jurista e como amigo, de ter levado à Câmara Federal e à
Suprema Corte de Justiça a defesa deste sindicalista exemplar
270
.
Esta relação entre a notoriedade do defendido e a do defensor colocava em tensão o
critério técnico definido para a distribuição das causas. O princípio ‘técnico’ convivia com os
princípios através dos quais os advogados defensores ganhavam um nome: o prestígio do
advogado se ampliava à medida que assumiam maior número de defesas e de militantes de
maior prestígio. Como assinala um entrevistado ao se referir à posição de seus colegas
Eduardo Duhalde e Rodolfo Ortega Peña: “dentro da Gremial faziam uma ‘indústria de
defesa’, não no sentido comercial, mas pela promoção massiva (....) Eles pegavam todas e
queriam somar mais porque seu desenvolvimento político dentro da organização
[Montoneros] dependia disso...”
271
. Esta avaliação negativa sobre a tentativa de monopolizar
as causas ou realizar conferência de imprensa de forma permanente expressa os valores do
269
“El jardín de los senderos que se bifurcan”. Em: Nuevo Hombre. Ano 1. 1971. O título faz referência ao conto
homônimo de Borges e com esta referência pretendem equiparar o Palácio de Tribunais com um labirinto
burocrático. As duas referências literárias no texto colocam em evidência também o fato de que estes
profissionais do direito estavam dotados de um importante capital cultural (este ponto será examinado em
detalhe mais adiante).
270
Em Gabetta (1983), pág. 226.
271
Entrevista realizada por mim a Jorge Podetti (nome apócrifo). Grifos meus. Esta citação coloca em evidência
a existência de tensões dentro da Gremial e de limitações na colocação em prática da regra da adjudicação dos
casos segundo o sistema de plantão. Porque o exercício da defesa de presos políticos era uma estratégia de
crescimento dentro dos partidos e organizações políticas com as quais o advogado se identificava, alguns deles
tratavam de monopolizar os processos judiciais fazendo caso omisso dos plantões.
144
desinteresse sobre os quais se funda esta posição. Neste universo particular de valores, a
suspeita de interesse desqualifica o profissional, pelo menos dentro do grupo de pares, embora
não necessariamente dentro das organizações políticas das quais fazem parte. Expressões
deste tipo sugerem a existência de tensões entre formas diferenciadas de legitimação (o
mundo profissional do direito versus o mundo da militância) e formas diferenciadas de
participação nestes espaços associativos dedicados à defesa de presos políticos (como
advogados ‘enquadrados’ em organizações armadas ou como ‘independentes’).
Ao assumir a defesa perante os estratos judiciais, os advogados tentavam tirar proveito
das inúmeras falhas ou ambigüidades contidas no próprio sistema jurídico. O mesmo sistema
jurídico orientado para a repressão da militância política tentava ser utilizado pelos advogados
a seu favor: apelava-se a questões de competência para evitar que a causa caísse em juizados
especialmente desfavoráveis ou, então, se requeria a intervenção de instâncias superiores
como a Corte Suprema de Justiça com o propósito de adiar ou dilatar a processamento da
sentença. Outra estratégia era explicitar as ‘circunstâncias atenuantes’ do caso, com o
propósito de minimizar as penas ou diretamente solicitar a anulação de toda a atuação por
apresentar vícios no processamento da prova (como, por exemplo, a realização de invasão de
domicílio sem autorização judicial ou a aplicação de torturas como meio para obtenção de
uma ‘declaração espontânea’) etc. Este repertório de ações incluía também a possibilidade de:
“... impugnar as declarações dos policiais [contra a pessoa defendida], obrigá-los a que
declarem e tratar de que cometam erros e entrem em contradição...”
272
. Ou promover a
impugnação das tentativas de processar os detidos na Cámara Federal en lo Penal quando
tinham cometido supostos delitos antes da criação da mesma. Diante dos casos de militantes
de organizações armadas, os advogados defensores enquadram seus casos sob a forma de
‘conspiração para a rebelião’, figura contemplada pelo direito constitucional e que tinha a
‘vantagem’ de não criar antecedentes nem reincidência. Em outros casos, apelou-se à
jurisprudência comparada, invocando a ‘regra de exclusão’ tomada da jurisprudência da Corte
Suprema de Justiça dos Estados Unidos, pela qual não podem ser admitidas provas obtidas
ilegalmente no processo, o advogado assinala:
“... a mi me tocó invocar esta jurisprudencia para hacer caer las declaraciones
inculpatorias que x había realizado y que habían sido arrancadas bajo tortura.
Nosotros pedíamos que se realizara una biopsia de los tejidos de nuestros
272
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por Laura Saldivia.
145
defendidos ya que cuando una persona ha sido sometida al paso de la corriente
eléctrica se produce una necrosis de los tejidos, entonces se puede hacer una
biopsia, analizarse y, con muchas posibilidades, ese peritaje médico puede indicar
que esa persona probablemente ha sido sometida al paso de la corriente eléctrica.
Hacíamos este tipo de pedidos y obtuvimos una sentencia en que se lo absolvió a x
por el asesinato de Sallustro ...”
273
.
Sobre a base do mesmo sistema judicial que reprimia a atividade política e sindical, os
advogados responsáveis por essas defesas utilizaram todos os recursos providos por esse
mesmo direito e que foram ‘convenientes’ para o defendido do ponto de vista técnico. Nos
termos de Marta Grande“... a gente ia ao estrito direito pedindo que se cumpram as regras do
jogo que o sistema estabelece”.
274
O uso eficaz destas estratégias supôs uma ameaça ao propósito de reprimir
juridicamente a militância política, particularmente, a armada. Isto derivou em importantes
reformas do sistema judiciário como a inclusão da pena de morte ou a criação dos tribunais
‘anti-subversivos’ mencionados anteriormente e conhecidos como el Camarón’. Através de
uma reforma do código penal, a ‘conspiração para a rebelião’ foi transformada em um delito
penal: de ‘associação ilícita’. Da perspectiva de um integrante da Gremial esta modificação
significou a “... tentativa de politizar a associação ilícita com a intenção de transformar em
um delito comum o que era um delito político, como delito cria antecedente e reincidência (...)
produz-se uma ampliação da figura de associação ilícita”
275
. Estas modificações demonstram
que o recurso ao direito como uma estratégia de ação política não era exclusivo dos
advogados defensores identificados com as agrupações da esquerda ou com o peronismo. Este
era um recurso utilizado também por aqueles que então exerciam o controle do Estado.
273
Entrevista com Mattarollo no Arquivo Memoria Abierta. Salustro era, então, o diretor máximo da empresa
Fiat na Argentina. Foi seqüestrado e assassinado pelo Ejército Revolucionario del Pueblo em 1972. Esta
jurisprudência estava disponível nas revistas especializadas. A revista jurídica La Ley reproduz um artigo
publicado em uma revista norte-americana sobre um caso de aplicação da exclusionary rule no qual o juiz exclui
do processo as provas obtidas pela política através de meios inapropriados. Revista Jurídica La Ley. XXIII,
457. Janeiro-Março 1966.
274
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
275
Entrevista com Mario Landaburu realizada por Vera Camovale para o arquivo oral de Memoria Abierta.
Grifos meus.
146
2. 3. 2 O tribunal da opinião pública
Todas estas reformas obrigaram, por sua vez, a elaboração de novas estratégias de
parte dos advogados comprometidos com a defesa de presos políticos. Uma dimensão crítica
destas estratégias foi a mobilização coletiva e o apelo à opinião pública. Em ambas as
instâncias o que se fazia era invocar a inconstitucionalidade de todas estas reformas. Este foi
exatamente o recurso utilizado por Carlos Sánchez Viamonte durante o processo de
julgamento contra Ana Villareal, mulher do líder do Ejército Revolucionario del Pueblo,
Mario Roberto Santucho e cuja causa tramitava na Cámara Federal en lo Penal de la Nación
conhecida como ‘el camarón’
276
.
2. 3. 2. 1 ‘A defesa política’
A introdução de modificações no Código Penal, especialmente aquela que dispunha a
criação de uma etapa de instrução oral ao acompanhamento das causas chamadas
‘subversivas’, possibilitou que o próprio tribunal se transformasse em uma tribuna pública
onde o advogado podia, além de exercer a defesa particular da causa de seu cliente, dedicar-se
a denunciar a repressão e as arbitrariedades do sistema em geral. A defesa era assumida como
uma defesa política, uma vez que aspirava impugnar a legitimidade da instância acusatória, de
modo que o acusado se tornasse acusador e o tribunal de justiça um objeto de acusação. Na
defesa política, “... o que o advogado faz é defender o acusado a partir da postura do próprio
mandante, defender a concepção do mandante denunciando o que estava acontecendo”
277
. O
uso deste tipo de estratégia de defesa já havia sido identificado entre os advogados de defesa
de presos políticos nos anos 30, como vimos no caso dos militantes comunistas defendidos
primeiro por Lydia Lamarque e, depois, por José Peco.
Mattarollo argumenta o sentido deste tipo de defesa:
276
Ana Villareal foi condenada, naquele momento, a três anos de prisão. Causa 37/72. Em: Maria Seoane, 1991,
pág. 169. Logo depois seria fuzilada, em 1972, durante o episódio conhecido como ‘o Massacre de Trelew’.
277
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia.
147
“El juicio de ruptura es la estrategia de utilizar el juicio como una tribuna para
denunciar la injusticia estructural, la situación de opresión de un régimen
dictatorial (...) como una manera de mostrar las características del régimen en una
situación de escaso éxito de cualquier otra estrategia. Nosotros pensamos que,
cuando había la posibilidad de obtener la liberación o una condena leve para un
prisionero o un procesado, teníamos que tratar de agotar todas las posibilidades de
lograrlo. Pero había situaciones en que esto no era posible (...) lo único posible era
patear el tablero, por decirlo así
278
.
Segundo os advogados entrevistados, esta ‘defesa política’ foi utilizada no chamado
‘caso Sánchez’, no qual foram julgados e sentenciados um grupo de militantes acusados de
assassinar o general do exército Juan Carlos Sánchez.
“Entonces en el juicio de Sánchez los prisioneros habían sido brutalmente
torturados y no tenía sentido tratar de jugar con las distintas posibilidades tácticas
que puede dar una defensa técnica. Lo único que tenía sentido era retirarnos del
juicio por considerar que no estaban dadas las garantías judiciales para la defensa
(...) y abandonamos el lugar, lo cual colocaba en una crisis bastante seria al tribunal
(...) El tribunal les designa defensor de oficio porque no puede haber juicio sin
defensor. Pero nosotros ya habíamos repudiado el juicio como una mascarada
279
.
Em um abaixo assinado publicado pelos advogados defensores, eles descrevem a
forma como levaram o caso adiante:
“El 19 de diciembre [de 1972] comenzó el debate oral y público ante la Cámara
Federal en lo Penal contra (…) para todos los cuales el fiscal pidiera la pena de
reclusión perpetua, acusándolos por la muerte del General Juan Carlos Sánchez. En
nuestro carácter de defensores de los mismos sostuvimos su inocencia (…) A tal
fin ofrecimos en conjunto más de CINCUENTA MEDIDAS DE PRUEBA (…) La
sala II de la Cámara Federal en lo Penal (…) negó a la defensa la totalidad de la
prueba ofrecida a tal efecto, quedando los cinco procesados sin posibilidad alguna
de ejercer el derecho constitucional de defensa en juicio (art. 18 de la Constitución
Nacional). Por esta razón, ante un proceso insanablemente nulo y a fin de no
278
Entrevista com Rodolfo Mattarollo, realizada por Vera Carnovale para o arquivo Memoria Abierta.
279
Entrevista com Mattarollo no arquivo oral Memoria Abierta.
148
convalidar con nuestra participación un juicio sin las menores garantías del
DEBIDO PROCESO LEGAL presentamos nuestras renuncias al cargo de
defensores, actitud ratificada también por nuestros defendidos, quienes también se
niegan a participar voluntariamente en las distintas instancias del debate. Como
ciudadanos, como hombres de derechos, como defensores de presos políticos
hemos cumplido con lo que nos dictaba nuestra conciencia”
280
.
As tensões contidas neste tipo de defesa permitem explorar bem as implicações de
uma prática profissional dirigida à defesa de uma causa pública. A tensão entre privilegiar a
pessoa defendida ou privilegiar a causa aparecem bem expressas no ‘testemunho’ apresentado
no jornal Nuevo Hombre por Roberto Sinigaglia, qualificado por seus próprios pares como
‘um dos advogados que mais se destacou na defesa de presos políticos’:
“Toda defensa política padece de una dolorosa ambivalencia. Por una parte, el
defensor debe aliviar en lo posible la situación de su defendido y procurar – contra
toda esperanza remediar su trance. Por otra parte, su intervención ‘consagra’,
convalida y formaliza la pretendida legitimidad del juicio. Un defensor de presos
políticos debe aceptar lo que tenga de inevitable y necesario esa ambigua
circunstancia, pero no debe perder jamás de vista que el aspecto más importante y
superior de su ministerio es salvar el honor de la conducta de su patrocinado.
Puede y debe dar a su desempeño el perfil de una clara y pública denuncia contra
los excesos y las maniobras del régimen. Cercada e impotente, la defensa tiene, sin
embargo, en sus manos un terrible poder. El poder de desmitificar, desenmascarar
y ridiculizar a la mascarada jurídica del régimen, proyectar su alegato hacia el
juez verdadero e inminente: el pueblo
281
.
É possível reconhecer neste texto que, como advogados, eles se percebem como peças
chaves na ‘consagração’ do acionar do Estado ao que, paradoxalmente, estão combatendo.
Posição que é vista como inerente ao fato de combater o Estado a partir do direito, isto é, com
as próprias armas providas por esse mesmo Estado. O advogado defensor, apenas por sua
280
Em: Revista Primera Plana. Buenos Aires. 26 de dezembro de 1972. Grifos meus. Maiúsculas no original.
Segundo Mattarollo, esta estratégia de defesa foi assumida no contexto da possibilidade imediata de um retorno à
vida democrática logo depois das eleições que se realizariam em março de 1973. Como veremos mais adiante, os
presos políticos foram liberados no mesmo dia em que o presidente constitucional Héctor Cámpora assumiu o
poder, em 25 de maio de 1973. Ver no Anexo N° 8 na página N° 214 uma reprodução deste abaixo-assinado.
281
“Testimonio de Sinigaglia. La significación de defender” em Nuevo Hombre. Ano 1. N° 16.
Novembro de 1971, grifos meus.
149
presença no tribunal, convalidaria a ilegitimidade de todo o procedimento judicial. Ao exercer
uma ‘defesa técnica’ o profissional ‘alivia’ o detido, mas sacrifica sua luta contra o Estado.
Da perspectiva destes advogados, através da ‘defesa política’, eles conseguem apropriar-se de
um ‘poder’ através do qual subverter essa pretensão de legitimidade. Por meio desta ação, o
advogado pode revelar a verdade oculta atrás da ‘máscara jurídica’ do caso e,
conseqüentemente, expor todo o ‘sistema de opressão’, transformando-se, ele próprio, em um
instrumento de luta contra o Estado repressor. Sugiro que esta representação em torno à
qualidade ‘subversiva’ da ação do advogado constitui um elemento crítico na formação do
perfil profissional deste segmento de advogados
282
.
A referência no texto à primazia de defender a honra do detido acima de outras razões
de conveniência processual sugere tudo o que estava em jogo na detenção de um militante. Do
seu ponto de vista, a detenção compromete sua honra, tanto pela suspeita de delação durante
as sessões de tortura como no momento de enfrentar um processo judicial. Nesta última
situação, sua honra está comprometida, tanto em termos de quem é seu advogado defensor,
como pelo tipo de defesa utilizada e através de quais caminhos se obtém a anulação do
processo ou libertação, como fica evidente na seguinte afirmação de Agustín Tosco: diante da
possível intermediação de Rucci, secretário da CGT oposta a CGTA à qual pertence Tosco,
este rejeitou publicamente a intervenção de Rucci afirmando: “Prefiro continuar preso que
sair através da intervenção de um traidor da classe operária”
283
. No momento de levar adiante
sua própria causa, o militante coloca em jogo sua honra e sua coragem dentro de um universo
fortemente hierarquizado como eram as organizações armadas da esquerda revolucionária.
Alguns profissionais de direito que entrevistei se referiram ao uso de uma defesa de tipo
‘política’ nos casos em que, dado ‘o [grande] nome’ da pessoa defendida, os advogados, no
lugar de minimizar a gravidade do caso ou apelar às circunstâncias atenuantes, buscam, ao
contrário, amplificar essas circunstâncias como forma de preservar a honra do defendido. A
percepção de que o próprio militante armado tinha do julgamento como uma trincheira de luta
contra o Estado e a posição que este ocupava dentro de sua organização incidia, então, na
maneira em que o caso era levado adiante pelo advogado defensor.
282
Com a independência do fato de se este tipo de defesa foi utilizado em um número mínimo de casou ou não
tenha sido assumida por todos os integrantes da Gremial. Este ponto será desenvolvido mais adiantes no item
‘Ser um advogado defensor de presos políticos’.
283
Jornal El Defensor, novembro 1971.
150
A diferenciação entre ‘defesa técnica’ e ‘política’ distingue, por sua vez, os próprios
integrantes destas associações de defesa de presos políticos e é produto das diferentes
posições que ocupavam neste espaço. Para Mario Landaburu, por exemplo, o objetivo central
da assistência jurídica era:
“... proteger la integridad física de los detenidos y tratar de que salieran en liberad.
Y no hacer del detenido ninguna víctima’ ejemplificadora, tratar de sacarlo en
libertad poniendo el conocimiento técnico a disposición de esos objetivos, hay que
sacarlo en libertad utilizando argumentos jurídicos (...) La posibilidad de plantear
un juicio de ruptura no pasó de una discusión de café. No se plasmó, que yo sepa,
en ningún caso (...) lo que sí se hacía era introducir el alegato político en el
expediente”
284
.
As palavras do porta-voz da Gremial pronunciadas naquele momento confirmam essa
tomada de posição:
“Los juicios llamados ‘de ruptura’ suponen la aceptación de los cargos (…) La
defensa cuestiona generalmente la imputación, el tribunal y las leyes vigentes y
puede hacerlo sin necesidad, en la mayoría de los casos, de aceptar la
responsabilidad de los hechos que se imputan (…). ¿Qué debe cuestionar un
abogado? Ello depende de las características particulares de las causas,
particularidades políticas del defendido, condiciones y posibilidades de publicidad
del proceso, condiciones políticas generales y particulares contemporáneas al
proceso, etc. La estrategia procesal debe analizarse en cada caso. La inexistencia de
procesos ‘de ruptura’ indica que el planteo teórico excede en la actualidad las
posibilidades de su aplicación generalizada”.
285
Ainda quando em sua abrumadora maioria estes advogados optaram por uma defesa
do tipo ‘técnica’, era necessário contar com profissionais que estiveram dispostos a assumir
publicamente a causa em outro cenário: o da esfera pública. Como assinalava Hipólito Solari
Yirgoyen, “Tem que ver que se tratava de uma defesa ativa, que ia muito além dos trâmites
284
Entrevista realizada com Mario Landaburu para o arquivo oral Memoria Abierta. É interessante observar
como, para este entrevistado, o julgamento de ruptura ‘não foi realizado em nenhum caso’, enquanto para
Mattarollo o caso Sanchez foi um caso de defesa política.
285
“La Asociación Gremial de Abogados y los Presos Políticos” Reportagem ao secretário de imprensa da
Gremial, Hugo Vega, no Jornal Nuevo Hombre.
Número 20. 01 a 06 de dezembro de 1971.
151
‘normais’ em um país onde imperam o direito, a soberania, a imobilidade dos juízes etc.”
286
.
A ocupação do espaço público tinha sido identificada entre as características distintivas
deste tipo de militância jurídica nos anos trinta.
Transformarem-se, eles mesmos, em parte litigante de um processo podia fazer parte
desta ‘defesa ativa’. O repertório de ações destinadas a dar publicidade à causa incluía
também participar junto com os detidos de uma greve de fome em demanda de melhorias nas
condições de detenção, permanecer junto com os dirigentes sindicais nas ocupações das
fábricas, atuar como oradores em manifestações públicas ou transladar-se de forma urgente a
lugares distantes para visitar os presos políticos. Um caso extremo foi a mobilização dos
integrantes da Gremial no episódio conhecido como ‘o massacre de Trelew’: quando os
militantes que tinham fracassado na fuga da penitenciária de Rawson foram transladados a
uma base naval, os advogados defensores viajaram até o local a fim de: ... arbitrar os meios
para salvaguardar a vida dos que ficavam feridos e tentar obter informação sobre a situação
do resto dos detidos na Penitenciária de Rawson”
287
. Durante uma assembléia da Gremial,
seus associados resolveram responder à urgência da situação contratando um táxi aéreo. Esta
ação foi financiada pelos próprios advogados defensores. Em relação aos presos que tinham
conseguido fugir para o Chile, os integrantes da Gremial, Eduardo Luis Duhalde, Mario
Amaya e Gustavo Roca viajaram a Santiago para ter uma entrevista com o presidente Allende
e negociar com ele a saída dos fugitivos para Cuba e evitar que Allende respondesse ao
pedido de extradição solicitado pelo governo argentino.
O exercício da defesa de presos políticos como um ato de vocação é expresso ao
considerar a gratuidade com que essas defesas eram levadas adiante. Uma integrante da
Gremial afirma: “Cada um se sustentava a si mesmo (...) as defesas políticas eram cobradas
quando a família podia, mas, em geral, muitas não eram cobradas. E todos contribuíam par o
aluguel que pagávamos do escritório. Isso sim era trabalho comunitário...
288
. Esta afirmação
supõe um certo jogo de importação de recursos entre o mundo profissional e o da militância.
O exercício tradicional da profissão era uma condição necessária para ‘militar’ em
associações como a Gremial, pelo menos para aqueles advogados não ‘orgânicos’. O
286
Entrevista realizada com Hipólito Solari Yirgoyen em 1978 por Carlos Gabbeta. “Un Senador de la Nación”.
Em: Gabbeta (1983). Grifo meu.
287
Entrevista com Rafael Lombardi, publicada no: Jornal Desacuerdo. Grifos meus. Trelew encontra-se a uns
1.400 km da cidade de Buenos Aires.
288
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo) realizada por Laura Saldívar.
152
exercício da profissão entendida como aquela atividade realizada nos escritórios privados e
pela qual recebiam honorários profissionais, outorgava-lhes uma disponibilidade relativa no
que se refere ao uso do tempo e ao uso dos recursos econômicos.
O trabalho de dar publicidade aos casos judiciais compreendia a participação ativa na
formação de diferentes espaços criados especificamente para amplificar as denúncias sobre a
repressão de Estado e, com isso, o próprio ativismo dos advogados. Com este propósito
organizaram conferências de imprensa, manifestações públicas, redigiram notas para os meios
de comunicação, estabeleceram contatos com personalidades do exterior com o objetivo de
que intercedessem ante o governo nacional e, em diferentes cidades do país, criaram fóruns,
assembléias e tribunais populares. Os Tribunais Populares Anti-repressivos foram concebidos
como um tipo de assembléia pública na qual se convocava a participar como jurado não
especialistas em direito, mas também ‘homens e mulheres pertencentes a diferentes classes e
camadas do povo argentino empenhado na luta antiditatorial’. A presidência honorária destes
tribunais recaía, simbolicamente, nas ‘vítimas e mártires da ditadura’. Estes Tribunais
propunham ‘julgar as políticas repressivas’, publicar as denúncias e mobilizar-se em memória
das ‘vítimas da ditadura’. Para isso, realizavam atos públicos que simulavam o
desenvolvimento de um julgamento e, depois, comunicavam seus veredictos em conferências
de imprensa
289
. Os integrantes da LADH impulsionavam também os Tribunais contra o
Macartismo
290
.
Na cidade de Buenos Aires, no final dos anos sessenta, foi criado um espaço
especificamente dedicado a amplificar as denúncias dos advogados: o Foro de Buenos Aires
por la Vigencia de los Derechos Humanos. O termo escolhido para designar esta associação
apela justamente a esta dupla dimensão do trabalho profissional de quem havia assumido o
compromisso de defender presos políticos: exercer a advocacia e a prática dos tribunais e
promover as denúncias na esfera pública. Nas entrevistas, os advogados destacaram que o
Fórum atuava ampliando as denúncias judiciais levadas adiante pelos integrantes da Gremial,
289
Nas notas publicadas pelo Jornal Desacuerdo podem ser acompanhadas as alternativas de estes tribunais.
“Sesionó en Córdoba el Tribunal Popular Antirrepresivo”.
290
Estes tribunais não eram uma invenção nativa. Parecem estar inspirados em modelos internacionais como os
Tribunais contra o Macartismo nos EUA e o Tribunal Russel na Europa. O Tribunal Russel foi criado por
inspiração do filósofo inglês Bertrand Russel que, em 1966, convocou diversas personalidades de diferentes
países para investigar os crimes cometidos pelas tropas norte-americanas no Vietnam. Este tribunal definia-se
como um tribunal de opinião’, cuja autoridade, embora não estivesse investida do poder do Estado, estava
fundada na qualidade ética de seus integrantes. Este ponto será desenvolvido mais adiante.
153
que estas dificilmente eram publicadas pela imprensa nacional
291
. A atividade principal do
Fórum era informar o público sobre a situação dos presos políticos, suas condições de
detenção, a aplicação de torturas, os nomes de seus responsáveis etc. Esteve integrado por um
grupo heterogêneo de sindicalistas como Raimundo Ongaro e Agustín Tosco, artistas,
intelectuais, jornalistas, editores e, evidentemente, advogados
292
. Esta experiência é lembrada
hoje como uma ‘novidade total’ para a época, que se fazia a denúncia pública baseada no
testemunho direto das vítimas. Depois eram enviadas a importantes dirigentes políticos do
exterior, legisladores e até ao presidente dos EUA. A intenção era que, ao recebê-las, estas
personalidades pressionassem o governo nacional produzindo um efeito ‘de rebote’ das
denúncias. Para Silvia Dvovich, “... isto que agora se vê como uma novidade, nós já o
fazíamos” (ibidem).
2. 3. 2. 2 A imprensa ‘antiditatorial’
Outro espaço chave na enunciação pública da ilegitimidade do Estado repressor foi a
imprensa. Para que as denúncias pudessem ter acesso à imprensa foram levadas adiante várias
estratégias. Uma delas consistia em utilizar as salas de imprensa dos próprios tribunais. Ao se
referir a esta tática, Matarrollo assinala: “É tão importante quando se apresenta um hábeas
corpus deixá-lo no juizado como na sala de imprensa dos tribunais para que os jornais o
publiquem, porque se alguma garantia existia, parecia maior a que a opinião pública podia dar
através dos meios de comunicação”
293
.
Outra das estratégias empregadas foi a de criar, eles próprios, uma imprensa onde
pudessem ser publicadas as denúncias e mostrar também o trabalho dos advogados defensores
de presos políticos. Entre as publicações que pude identificar no transcurso desta pesquisa,
criadas e dirigidas pelos próprios advogados defensores ou onde o trabalho que estes
realizavam tinha ampla cobertura, encontram-se: Desacuerdo, Nuevo Hombre, Militancia
Peronista para la Liberación, No Transar e Liberación. No primeiro caso, seu nome refere-se
à rejeição ao governo do General Agustín Lanusse de ‘abertura’ à atividade política chamada
291
Entrevista com Silvia Dvovich (nome apócrifo) realizada por mim. 22.07.2002.
292
Entre eles encontravam-se Raúl Aragón, Haydeé Birgin, Mario Landaburu, Héctor Sandler, Hipólito Solari
Irigoyen, Roque Bellomo e Alejandro Teitelbaum.
293
Entrevista no arquivo oral de Memoria Abierta.
154
Grande Acordo Nacional (GAN), que estes advogados impugnaram, batizando-a ironicamente
como ‘Grande Assassinato Nacional’. Nela publicam principalmente advogados que atuavam
profissionalmente na província de Córdoba, como Alfredo Curuchet, Eduardo Gabino Guerra
e Susana Aguad. Nuevo Hombre (junho 1971 março 1976) foi uma publicação dirigida em
um primeiro momento por Enrique Walter, depois pelo advogado defensores de presos
políticos Silvio Frondizi (1972), logo por seu colega Rodolfo Mattarollo (1973-1975) e
finalmente por outro advogado, Manuel Gaggero (1975-1976), todo integrantes da Gremial.
No transar foi o jornal da agrupação Vanguarda Comunista. Esteve dirigido pelo advogado
defensor de presos políticos Elias Seman e em suas notas eram cobertas as denúncias dos
advogados. Liberación foi uma publicação lançada especificamente para promover a
‘libertação de presos políticos e sociais’ uma vez assumido o governo democrático de Héctor
Campora em 1973
294
.
Nas páginas destas publicações conviviam notas de índole muito diversa: desde
reproduções de comunicados de imprensa das organizações armadas, atribuindo-se a
responsabilidade de um atentado, informando do ‘justiçamento’ de um ‘repressor’ ou de uma
‘operação de expropriação’ à burguesia, até cartas, entrevistas e testemunhos das ‘esposas’,
das ‘mães’ e dos‘filhos’ dos ‘presos, torturados e assassinados pela ‘ditadura’, incluindo
cartas redigidas pelos próprios advogados defensores na prisão. Conviviam também resumos
de assembléias gremiais, reproduções de seus ‘planos de luta’, análises sobre as possibilidades
de êxito da luta armada, estudos sobre as diferentes organizações ‘político-militares’, e
reportagens (anônimas) aos principais dirigentes das mesmas, junto com notas nas quais os
advogados defensores de presos políticos reivindicavam a necessidade de ‘implantar o Estado
de direito’ e ‘garantir o cumprimento dos direitos humanos’. Em relação ao trabalho destes
últimos, reproduziam-se seus ‘escritos’ perante os tribunais, suas ‘declarações’, ‘comunicados
de imprensa’, ‘relatórios’ sobre as condições de detenção, sobre o estado dos processos,
descrições das condições nas quais os advogados exerciam seu trabalho, listas de ‘prisioneiros
de guerra’ segundo seus lugares de detenção, pronunciamentos coletivos e palavras de
homenagem a colegas assassinados ou desaparecidos.
294
Dela participaram Carlos González Garland, Gustavo Roca, Rodolfo Ortega Peña, Eduardo Luis Duhalde,
Alfredo Curuchet, Martín Federico, Miguel Angel Radrizzani Goñi, Roberto Sinigaglia, Mario Landaburu e Raúl
Aragón junto com figuras do mundo intelectual, artístico e sindical como Julio Cortázar, León Ferrari e Agustín
Tosco.
155
As notas, cartas e comunicados, caracteristicamente, continham extensas transcrições
do dramático relato das próprias ‘vítimas’ e descrições de casos que mostravam como “... dia
a dia os direitos humanos mais elementares são violados em nosso país”
295
. Nestes
comunicados faz-se uso profuso de categorias como ‘vítimas e mártires da ditadura’ e de
noções como ‘direitos humanos’, ‘constitucionalidade’ e ‘garantias da pessoa humana’. Dado
que todas elas apresentam um formato e uma retórica semelhante, vou centrar-me na
publicação realizada pelo Fórum, uma vez finalizada ‘a ditadura’ em 1973: Proceso contra la
Represión y la Tortura. Considerado por seus autores um verdadeiro ‘livro negro’ da
repressão, esta publicação compilava os testemunhos das ‘vítimas da ditadura’ e ‘as denúncias
de violações dos direitos humanos’ cometidas durante a autodenominada Revolução
Argentina (1966-1973). Os testemunhos provinham seja de cartas escritas pelos próprios
detentos, de testemunhos realizados diante dos advogados defensores ou da reprodução das
declarações indagatórias feitas ante o juizado pelo detido, quando este passava a uma
condição de detenção legal. Graças ao privilégio profissional que lhes possibilitava ter um
contato direto com os detidos e um acesso exclusivo ao testemunho, os advogados se
colocavam, eles próprios, na posição de poder oferecer um testemunho privilegiado da
repressão perante a opinião pública.
As denúncias publicadas neste volume tinham a pretensão de se constituírem em
verdadeiras ‘atas de acusação’ dos ‘crimes do regime’ e, nesta lógica, reuniam todas as
‘provas’ relativas ao caso denunciado, uma vez que na esfera oficial estas denúncias eram
impugnadas como simples casos de ‘auto-seqüestro com fins publicitários’
296
. Nas suas
páginas reivindicava-se a necessidade de justiça e de memória: buscava-se impulsionar tanto
uma ‘exaustiva investigação que individualizasse e condenasse os responsáveis diretos, a seus
instigadores e encobridores, como conseguir, ao mesmo tempo, que ‘ninguém esqueça o que
aconteceu para que não aconteça mais
297
.
Vale a pena destacar que as duas palavras de ordem principais cunhadas pelo
movimento dos direitos humanos surgido nos anos 80 são justamente: pela justiça e contra o
esquecimento. De maneira muito similar à forma em que são incluídos os depoimentos das
295
Comunicado da Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires elaborado por ocasião do
desaparecimento de Luis Pujals e reproduzido no Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. Número 12. 1971.
296
Estas foram as declarações do presidente Agustín Lanusse diante da denúncia de desaparecimento de Luis
Pujals. Nuevo Hombre
. Ano 1. Número 12. 1971
297
op. cit.: 7 e 8.
156
vítimas no Nunca Más, volume que compila as denúncias oficiais de violações aos direitos
humanos cometidas durante a última ‘ditadura’ (1976-1983), estes relatos se organizam sob o
mesmo formado: estão narrados em primeira pessoa e começam no momento de detenção da
vítima, identificada exclusivamente a partir de seu nome (familiar) e o por sua identidade
política que, em geral, se mantém reservada. Oferecem um detalhado relatório das diferentes
técnicas aplicadas na tortura dos detidos junto com um relatório das conseqüências físicas e
psicológicas das mesmas. Em alguns casos, os testemunhos são acompanhados de relatórios
forenses confirmando a prática da ‘picana elétrica’ ou outras formas de tortura aos presos e,
por conseguinte, a veracidade das denúncias. Este volume parece mostrar o aparecimento de
formas de narrar o passado imediato que logo depois ocuparão um lugar protagonista nos anos
oitenta: as vítimas, os repressores, os testemunhos, as demandas de justiça e de memória.
Em contraste com o dramatismo deste tipo de nota, os advogados Eduardo Luis
Duhalde e Rodolfo Ortega Peña publicaram em Nuevo Hombre uma extensa série de vinhetas
sobre o funcionamento do sistema judicial e o trabalho do advogado defensor.
Caracteristicamente, o tom delas é irônico e sarcástico no que se refere à atuação dos
diferentes poderes do Estado. Na forma de pequenas anedotas aparentemente triviais,
descrevem processos judiciais a partir dos quais podem ridicularizar os diferentes agentes do
Estado, como quando fazem pública a detenção de ’46 trabalhadores’ considerados cúmplices
e encobridores de uma ação armada executada pelo Ejército Revolucionário del Pueblo
(ERP). Na nota intitulada “Proceso al Chacinado”
298
narram como se tentou processar a estes
‘criollos’ no âmbito do ‘camarón’ por ter consumido chacinados distribuídos pelo ERP entre
os moradores de ‘uma favela’ na cidade de Rosario. A fracassada tentativa de processá-los se
fundava na aplicação da lei 19081 de procedimento contra ‘terroristas’ segundo a qual: ‘Ficou
demonstrado que (...) as organizações extremistas [pretendem] destruir as próprias bases das
nossas instituições sociais e políticas...’
299
. A nota, que faz um contraponto entre os
fundamentos dramáticos da lei e a anedota grotesca dos moradores acusados de comer
morcelas e lingüiças, culmina com um toque de sarcasmo: “O Juiz voltou a Buenos Aires. No
domingo foi ao estádio de futebol. Quando o vendedor ofereceu uma lingüiça, não teve como
não se lembrar” (op. cit.).
298
Chacinado equivale a ‘porco’ em português. O título tem um forte caráter irônico e não se refere à palavra
‘chacina’ tal como ela é entendida no português.
299
Em: Nuevo Hombre, Ano 1, No. 3, 1971.
157
Nas outras vinhetas, a descrição pretende ser neutra, como um recurso que permite,
por um lado, apresentar um fato extraordinário como algo normal, destacando assim o
absurdo que isto significa (por exemplo, o interrogatório de um juiz a um detido depois de ter
sido torturado) ao mesmo tempo em que, ao apresentar um relato dos fatos ‘tal qual são’, os
autores aspiram deixar em mãos do leitor a moral da história que se desprende da anedota,
apelando assim a uma certa cumplicidade interpretativa entre leitor e autor (neste caso, não se
explicita, por exemplo, a idéia de uma cumplicidade entre o poder judicial e policial, mas
se sugere).
As notas nos meios de comunicação podiam ter também um sentido pedagógico. Nas
páginas desta imprensa se publicavam “... cartilhas dirigidas aos trabalhadores onde se
explicava como defender seus direitos, cartilhas dirigidas aos militantes políticos sobre como
defender seus direitos (...), tudo assinado com nome e sobrenome, motivo pelo qual muita
gente que nós não sabíamos quem era dizia: mencionei o advogado defensor porque o vi em
um folheto da Gremial”
300
.
No exercício de defesa dos presos políticos, a exposição pública dos casos tramitados
na justiça era uma parte central das atividades destas associações e dos profissionais do direito
que as integravam. Neste sentido, o trabalho do profissional consistia tanto na assistência
jurídica como na representação do defendido e sua causa perante os poderes públicos. Através
deste trabalho de enunciação pública, os casos particulares eram transformados em casos
emblemáticos que simbolizavam o cotidiano da violência de Estado e os advogados se
sentiam obrigados a cumprir, neste contexto, um papel central na impugnação do próprio
Estado.
300
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por Laura Saldivia. Ver no Anexo N° 9, pág 215
a reprodução de uma destas notas publicadas em um jornal da LADH. “Cómo Defenderse en caso de ser
detenido…”. Em: El Defensor. Novembro de 1971.
158
2. 4 As associações de ‘parentes de presos políticos e sociais’
Os advogados comprometidos com a defesa de presos políticos e sociais participavam,
por sua vez, na constituição de diversas comissões e organizações de solidariedade com os
parentes dos presos, como a Organización de Solidaridad con los Presos Políticos,
Estudiantiles y Gremiales (OSPPEG) e a Comisión de Familiares de Presos Políticos,
Estudiantiles y Gremiales (COFAPEG)
301
. Depois do ‘massacre de Trelew’ constituiu-se
também uma Comisión de Familiares de Patriotas Fusilados en Trelew, integrada por ‘pais,
irmãos, esposas e esposos dos 16 fuzilados...’
302
, especificamente dedicada a ‘reivindicar
justiça’ e ‘render homenagem’ aos ‘mártires’, definidos como ‘os melhores filhos da Pátria’.
Entre as reivindicações desta Comissão encontram-se as de ‘exigir uma comissão
investigadora’ e exigir um monumento’ aos ‘caídos’. Os fuzilamentos são qualificados como
crimes contra os ‘tratados de direitos humanos’.
Poucos dias depois do desaparecimento de Néstor Martins, um grupo de parentes se
concentrou na Plaza de Mayo exigindo por ‘Vida e Justiça’ para Martins e Centeno. A
intenção da concentração era que fossem recebidos pelo presidente da Nação para entregar-
lhe uma carta. A foto da concentração mostra as consignas. A ocupação deste espaço seria,
poucos anos depois, o ato fundacional da Asociación Madres de Plaza de Mayo (1977)
303
.
Dentro da categoria ‘familiar’ estavam incluídos as ‘companheiras, mães, avós e
filhos’ dos detidos. As associações integravam parentes com ‘diferentes procedências sociais
e orientações ideológicas’, destacando-se o trabalho de homogeneização da categoria de
parente, como se percebe no seguinte relato: “Eu falei em nome das esposas e mães dos
trabalhadores e outros presos sem fazer diferenças
304
.
301
Em 1961 foi criada a Comisión de Familiares de Detenidos (CoFaDe) como resposta à repressão do chamado
Plan Conintes pelo qual, durante o governo de Arturo Frondizi (fundador da Liga) o partido comunista foi
proscrito, as greves foram declaradas ilegais e foram presos milhares de militares peronistas e comunistas. A
COFADE integrava parentes e advogados que depois formariam a Gremial como Kestelboim e Galin. Em
dezembro de 1962 publicou uma solicitação onde demandava uma anistia aos presos ‘conintes’ e o fim do
Estado de sítio. Em: Mauricio Chama, s/d.
302
Ver o Anexo 10, na g. 215 a reprodução de uma solicitação desta comissão de parentes. Em: Revista
Militancia Peronista para la Liberación. No Anexo 11, na pág. 216 está reproduzida a solicitação da
COFAPEG convocando para uma greve de fome em apoio à melhoria nas condições dos presos políticos. Esta
greve foi seguida também pelos próprios advogados defensores em apoio à medida. Em: Revista Nueva Plana.
Ano 1. Número 12. 09.01.1973.
303
Anexo Número 12, pág. 217. Revista Así.
09.01.1971.
304
Em: Jornal Desacuerdo, No. 2, 1972, grifos meus.
159
No dia internacional da mulher celebrado em 1973, homenageava-se com um ato no
Luna Park as ‘mães peronistas’ e, especialmente, ‘as mães de filhos e companheiros caídos
em combate’
305
. No ato e no palco, uma rosa vermelha identificava essas ‘Mães dos Mártires
Peronistas’ e as diferenciava do resto da audiência. A oradora do ato, ao apresentar
publicamente estas Mães disse: “... aqui no palco um grupo de mulheres que têm em suas
mãos uma rosa vermelha, essa flor (...) significa o filho que demos e que entregaram suas
vidas para tornar possível a realidade que hoje vivemos”. Estas mulheres colocaram a
necessidade de continuar a ‘luta’ iniciada por seus filhos, que: “... quando o inimigo nos
atacou no que mais queríamos, nesse filho que tínhamos educado com amor (...) e os vimos
cair assassinado, fuzilado, ensangüentado (...) ninguém nos viu tremer nem chorar porque o
lugar vazio que eles deixaram, nós o preenchemos”
306
.
Nos jornais desta militância eram reproduzidas cartas privadas enviadas pelos filhos já
mortos a suas mães: “...Quando se sinta triste, pense que, apesar de tudo, estamos felizes de
podermos ser úteis a nossa Pátria (...). E não estamos sós, mamãe (...), Pais e Mães que
lutam por resgatar seus filhos da tortura, da prisão ou da morte acabam compreendendo que
que resgatar delas todos os filhos de todas as mães e pais que hoje sofrem a exploração, o
desprezo e o desamparo”
307
.
No relato sobre suas atividades, estas são equiparadas às ações dos próprios parentes
detidos. Assim, as visitas aos presos, as solicitações de audiências com autoridades públicas e
a realização de processos contra o Estado tornam-se verdadeiros ‘atos de combate à
ditadura’
308
.
Embora estas associações requeressem uma descrição mais detalhada, o que interessa
mostrar aqui é o surgimento neste momento de associações que apelam ao vínculo de sangue
com os presos políticos, os assassinados e os desaparecidos como princípio de representação,
algo que já estava insinuado nas ‘esposas e mães’ dos dirigentes deportados para a Europa em
1936 e que ganhará um protagonismo excepcional nos anos oitenta, quando são estas
associações as que vão ocupar o centro da cena pública. Outro elemento para destacar é a
conjunção que começa a agir nestes anos entre associações fundadas em dois princípios de
305
Em: Jornal El Descamisado. Ano 1, No. 25. 06.11.1973, pág. 16.
306
Trecho do discurso de Lidia Mazzaferro, reproduzido no Jornal El Descamisado. 20.03.1973.
307
Jornal El Descamisado. Ano 1, No. 25. 06.11.1973, pág. 16.
308
Em: Jornal Desacuerdo. No. 2, junho 1972.
160
recrutamento: o sangue e o direito. Vale a pena observar na publicação da LADH a
reivindicação da categoria ‘vítima da ditadura’ para se referir a Néstor Martins e ao uso de
uma retórica que alcançaria sua consagração a partir dos anos oitenta: “o seqüestro de Martins
e Centeno é o símbolo mais eloqüente da violenta perseguição contra os que lutam pelo
cumprimento dos direitos humanos”.
2. 5 A profissão de advogado e o compromisso militante
Quem eram socialmente estes advogados que estavam dispostos a dar sua vida em
defesa de seus ‘companheiros’? Como compreender, de um ponto de vista sociológico, a
formação de segmentos da profissão jurídica diretamente associados à promoção e defesa dos
presos políticos e suas causas?
2. 5. 1 A opção pela qualificação profissional
Dentro do universo de advogados destacados para este trabalho, pode-se reconhecer
como denominador comum o fato de se tratar de jovens profissionais recém graduados cujas
famílias não pertenciam ao mundo do direito nem ao mundo profissional, na maioria dos
casos. De acordo com os dados biográficos que pude identificar nas entrevistas e outras fontes
documentais, os que se somaram à defesa de presos políticos tinham entre 25 e 35 anos
309
.
Se entre a geração de profissionais do direito analisada no capítulo anterior
predominam os filhos de imigrantes europeus, os profissionais estudados neste capítulo, ainda
que encontremos casos de argentinos de primeira geração, predominam os argentinos de
segunda geração. Ao fazer um levantamento das atividades dos pais, pude identificar que se
trata de comerciantes, donos de oficinas dedicadas a atividade manual e, no caso das
mulheres, professoras ou donas de casa que ficam viúvas precocemente. A escolha do curso
de direito aparece enunciada, dentro deste contexto, como o apelo a um recurso ‘prudente’
pois significava optar por obter um diploma que habilitava para inserção profissional
imediata. O relato deste entrevistado aplica-se a muitos outros: “... no meu caso particular, a
309
Interessa destacar que a categoria ‘advogado mais especialista’, neste contexto, refere-se a alguns poucos
profissionais que tinham, então, 40 anos como Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) ou Mario Landaburu.
161
vocação para o direito surge exclusivamente na circunstância que, por um problema familiar,
tive que cooperar na manutenção de minha casa”
310
.
Mesmo quando, no horizonte de expectativas aparecem enunciados outros interesses,
como sociologia, ciências políticas ou filosofia, estas não são opções consideradas como
disponíveis para quem necessita de um sustento econômico. Aqui, aplica-se o caso
paradigmático de Rodolfo Matarollo que, formado no Colégio Nacional de Buenos Aires e
possuidor de um alto capital cultural e uma vocação para as letras, opta pelo curso de direito
com a intenção de poder financiar, através deste trabalho, sua participação no mundo literário
nos fins dos anos 60. No relato do próprio Mattarollo:
“Yo provengo de una familia modesta desde el punto de vista económico, pero que
me dio una buena educación (...) En mi hogar, si bien la cultura estaba colocada
por las nubes, con los pies en la tierra decidí estudiar una profesión liberal que me
permitiera defenderme en la vida (...) la literatura no podía ser vista como un medio
de trabajo en esa época
311
.
Os relatos dos entrevistados sobre a vida estudantil acompanham as referências ligadas
à maneira como as famílias que moravam em localidades distantes dos centros universitários
conseguiam financiar estes estudos, recorrendo a parentes residentes em Buenos Aires,
Córdoba ou La Plata, ou procurando um lugar de residência, como La Plata, que oferece
muitas alternativas de serviços a baixo custo para os estudantes. Trabalhar durante o curso era
uma opção comum para os que vinham do interior como para os que residiam em Buenos
Aires.
Ao ingressar na vida estudantil, os entrevistados se distinguem da ‘maioria’ dos
estudantes da faculdade: “Naquela época [1958] a faculdade estava cheia de almofadinhas
vestidos de terno e gravata, quando não estavam com colete. Parecia o Jockey Club. Muito
disso era aparência, porque muitos eram de classe média”
312
. Esta apreciação de Mattarollo
310
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por Laura Saldívar. Ano 2000. Grifos meus.
311
Entrevista com Rodolfo Mattarollo para o arquivo oral de Memoria Abierta. A advogada defensora de presos
políticos Malena Bordenava (nome apócrifo) expressa sua opção pelo direito nos mesmos termos: “Eu, desde
sempre, quis escrever (…), mas tinha a idéia de que não podia viver da literatura. Meus pais não podiam me
manter porque não eram pessoas ricas nem poderosas. Meu pai vivia como um médico honesto, às vezes sequer
cobrava a consulta…” Entrevista realizada por mim. Buenos Aires Ano 2002.
312
Entrevista com Rodolfo Mattarollo, realizada por Vera Camovale para o Arquivo Memoria Abierta. Ano
2003. Grifos meus.
162
parece estar baseada em dados objetivos a respeito das transformações ocorridas na classe
dirigente argentina. Segundo o estudo já mencionado de José Luís de Imaz, observa-se neste
período o predomínio de setores médios na constituição das elites dirigentes. Trata-se de
profissionais e filhos de não profissionais cujo ingresso aos quadros dirigentes tipificam
situações de ascensão social
313
. De acordo com Dezalay e Garth, em 1958 estudavam na
Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires uns 11.000 estudantes
314
. Neste
período voltam a surgir as críticas que a ampliação da matrícula supunha em termos de
‘desvalorização’ do título universitário. Neste sentido, vale a pena destacar que uma das
consignas centrais da agrupação de estudantes de direito que ganhou o Centro em 1964 foi
‘Estudante, hierarquize seu título’
315
, uma reivindicação que foi extensamente tratada no
capítulo 1.
A modalidade em que cursavam os estudos de direito também facilitava a
incorporação de jovens que deviam trabalhar, a par de se formar na profissão. Além disso, os
que cursavam direito podiam ter acesso a um título intermediário antes de terminar o curso.
Como assinala um entrevistado, o curso oferecia várias vantagens:
“En el año 1949 estudiar cualquier otra carrera, como ingeniería o medicina,
implicaba no poder trabajar simultáneamente (...) En el caso de la carrera de
abogacía, durante toda mi carrera yo asistí a dos clases en total (...) Esto era una
facilidad para poder incorporarme a la carrera, con el agregado que en esa época,
nosotros podíamos cursar simultáneamente procuración, escribanía y abogacía
porque el contenido de las materias era el mismo”
316
.
Dentro deste perfil, existem algumas figuras que se destacam por possuir
características nitidamente diferenciadas. Entre elas, distinguem-se, por pertencer a famílias
de tradição no mundo do direito ou da política, os advogados Hipólito Solari Yrigoyen,
Gustavo Roca, Silvio Frondizi, Mario Landaburu, Martín Federico e Rodolfo Ortega Peña. O
primeiro é bisneto da irmã do fundador do partido Unión Cívica Radical, Leandro N. Alem e,
por sua vez, sobrinho neto de Hipólito Yrigoyen, advogado que foi por duas vezes presidente
313
Imaz, op.cit. pág. 29.
314
Em: Dezelay e Garth, 1998.
315
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia.
316
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por Laura Saldívia.
163
da Argentina (1916-1922 / 1928-1930)
317
. Gustavo Roca era filho de Deodoro Roca, o
advogado e dirigente reformista cordobês ao que se fez menção no capítulo 1 e que vinha de
uma família da boa sociedade cordobesa. Silvio Frondizi era irmão do ex-integrante do
Socorro Rojo e fundador da LADH e ex-presidente da nação, Arturo Frondizi (1952-1962).
Mario Landaburu, em contraste com os outros casos, pertencia a uma família que se
situava ideologicamente no extremo oposto ao dos advogados defensores de presos políticos,
já que vários de seus membros, também advogados, tinham participado em governos surgidos
de golpes de Estado e tinham integrado partidos conservadores no interior do país. Landaburu
tinha, no momento de entrar na Faculdade de Direito de Buenos Aires, um irmão brigadeiro,
Jorge Landaburu, então Secretário de Estado do Departamento de Aeronáutica (1958) e um
primo, Laureano Landaburu, advogado, professor da UBA e sócio de um prestigioso
escritório jurídico; tendo sido senador nacional nos anos 30, havia sido designado Ministro do
Interior da Nação durante a chamada Revolución Libertadora que derrocara o presidente Juan
D. Perón em 1955. Seu irmão Jerônimo tinha sido governador na província de San Luís, todos
pertencentes a famílias tradicionais do interior, advogados e importantes proprietários rurais,
por sua vez, afiliados e militantes de partidos ‘conservadores’.
Martín Federico era filho de um importante dirigente da Unión Cívica Radical da
província de Córdoba, eleito prefeito da mesma cidade e deposto pelo golpe de Estado de
1955. Rodolfo Ortega Peña era neto de advogados e seu avô, David Peña, foi um renomado
intelectual e dirigente político proveniente da cidade de Rosario, província de Santa Fe.
Destacou-se como diretor do Diario Nuevo, como professor da Faculdade de Filosofia e
Letras, onde depois estudaria Ortega Peña, e como escritor e historiador. Rodolfo Ortega Peña
fez seus estudos secundários no Colegio Nacional Buenos Aires, justamente o espaço onde
tradicionalmente se formou a elite intelectual e dirigente argentina. Nas trajetórias de alguns
advogados defensores de presos políticos pode-se reconhecer uma formação militar. Se
Landaburu vinha de uma família de militares, Mario Hernández e Héctor Sandler eram, eles
mesmos, formados pelo Liceu Militar e pela Escola Naval Militar. Da mesma forma que o
perfil da maioria dos advogados estudados neste capítulo, seus pais não era profissionais, mas
comerciantes. O irmão de Mario Hernández também pertenceu à Marinha. Esta morfologia
317
Hipólito Yrigoyen vinha de uma família modesta, embora vinculada por laços de parentesco a importantes
figuras da política nacional como Leandro N. Alem, seu tio avô. Trabalhou, como advogado, no escritório
jurídico que este último compartilhava com Aristóbulo del Valle.
164
havia sido identificada como propriedade do conjunto de profissionais do direito consagrados
à defesas públicas da causa contra o fascismo analisados no capítulo 1.
Na enunciação de seu período de formação profissional, os advogados entrevistados
recorrentemente mencionaram o fato de estudar direito como uma opção que percebem quase
como exclusiva, dada a existência na época de outras opções profissionais vinculadas mais
diretamente com as ciências sociais, como a sociologia, as ciências políticas ou a psicologia,
cursos que começariam a se institucionalizar no final dos anos 50. A expressão de estes
‘outros’ interesses são importantes na medida em que enunciam uma ‘sensibilidade’, desde
então, pelo social e pelo político, como nos casos de duas entrevistadas que estudaram de
forma simultânea o curso de Serviço Social e de Direito.
A escolha do curso de direito também aparece em destaque nas trajetórias de alguns
destes advogados como uma opção diretamente ligada à expectativa de fazer da política uma
profissão. Esta expectativa está diretamente associada aos que tinham uma militância
estudantil anterior ao ingresso na universidade. Raúl Piedrabuena detalha: “... desde os 14
anos eu tinha uma militância política que apontava para a defesa dos direitos da classe
trabalhadora (...) tomar contato com o direito era seguir a vocação política de servir aos
interesses da classe trabalhadora”
318
.
Neste sentido, entrar na faculdade de direito supunha tanto ganhar uma qualificação
significativa para exercer a função pública, como ingressar em um mundo de relações sociais
que tornariam possível viver ‘de’ e ‘para’ a política: “Eu me interessava por política, mas não
existia o curso de ciências políticas... faço finalmente o que faziam a maioria dos políticos,
para ser político tinha que ser advogado, para fazer leis, tem de ser advogado, manejar
reformas, tinha que saber escrevê-las...”
319
. No testemunho de outra entrevistada: “... na
minha época, para fazer política tinha que estar no direito. Depois me dei conta, teria feito
psicologia, possivelmente, nessa época não tinha curso de psicologia... E, além disso, o direito
era como o curso compatível com a política... Ao entrar em Direito, eu entrei no mundo da
militância política”
320
.
318
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia, grifo meu.
319
Entrevista com Jorge Podetti (nome apócrifo), realizada por mim. 2002. Grifo meu.
320
Entrevista com Silvia Dvovich (nome apócrifo), realizada por mim. Setembro 2002. Grifos meus.
165
Embora esta associação entre a formação em direito e o ingresso na política havia
sido identificada no capítulo anterior, sugiro que ‘fazer política’ supõe sentidos diferentes
para os profissionais do direito examinados nestes dois capítulos. Nos anos trinta confluem
homens do direito provenientes de famílias notáveis que aspiram tornar-se políticos
profissionais. Os recém chegados se aproximam, por sua vez, ao mundo trabalhador buscando
o caminho da revolução. Como foi mencionado no capítulo 1, este encontro entre
especialistas e militantes com propriedades e aspirações tão diversas gerou, no contexto
descrito anteriormente, o compromisso jurídico com a defesa de presos políticos e sociais. Os
notáveis do direito e da política aproximaram-se ao mundo dos sindicatos, os recém chegados
tornaram-se profissionais da política. Nos anos setenta, embora estivéssemos na presença de
uma conjunção semelhante (notáveis / recém chegados), fazer política a serviço do povo, da
classe trabalhadora e da revolução aparece como uma opção contraposta com fazer política na
alta função pública
321
.
É interessante destacar o contraste entre a opção pelo direito como parte de uma
estratégia ‘prudente’, seguida por filhos de famílias desprovidos, na maioria dos casos, de um
importante capital econômico, e a percepção que eles posteriormente vão forjando de sua
identidade profissional como assimilável à do combatente heróico que ‘arrisca e coloca em
jogo a própria vida’ como condição de seu compromisso profissional, como será visto mais
adiante neste capítulo.
Seria importante verificar em um estudo posterior se a opção pelo perfil heróico está
relacionada com as transformações operadas nos quadros dirigentes argentinos entre os anos
quarenta e sessenta. Se no capítulo 1 havíamos indicado que a condição para ter acesso ao
poder político era pertencer a um número restrito de famílias tradicionais e possuir um certo
prestígio jurídico como advogado de empresas, de acordo com Imaz, para os anos estudados
nestes capítulo verifica-se a incorporação de setores médios à política através dos partidos
políticos. No entanto, esta última via se abre fugazmente nos anos sessenta pelos
sucessivos golpes de Estado. Talvez, seja a posição de marginalidade na qual se encontram
estes profissionais do direito, desprovidos tanto de um nome como de uma alternativa
eleitoral, o que permite compreender a adoção de um perfil heróico. Trata-se de um contexto
321
Esta última afirmação necessita ser matizada, que vários advogados defensores se incorporaram ao Estado
ou ao parlamento quando finalizou a Revolução Argentina e Campora assumiu o poder em 1973.
166
no qual suas possibilidades encontrar-se-iam muito limitadas, tanto de ascensão social como
profissional
322
.
A formação em direito realizava-se também fora do âmbito da faculdade. Assim, quem
tinha interesse em se formar em direito penal recorria aos ensinamentos de Jiménez de Azúa
que, depois de ser expulso da faculdade pelo peronismo, continuou dando aulas no Colegio
Libre de Estudios Superiores, um espaço que, de acordo com Sigal, foi uma das instituições
político-culturais mais importantes dos grupos opositores ao peronismo
323
. Ali, encontrava-se
também José Peco, fundador da LADH e reconhecido advogado penal. Azúa tinha sido
também uma referência para os profissionais do direito comprometidos com a causa
antifascista. Depois da derrota de Perón, Azúa voltou à faculdade de direito da UBA e dirigiu
uma pós-graduação em direito penal e criminologia. Entre seus alunos encontravam-se vários
integrantes da Gremial.
Nas entrevistas, ao interrogá-los sobre outras instâncias de formação, alguns
mencionaram trabalhar em escritórios jurídicos privados ‘importantes’, em termos das
vinculações de seus sócios com o mundo da política. Este foi o caso dos que pertenciam ao
peronismo e que reconhecem como uma instância central em sua formação haver trabalhado
no escritório de Ventura Mayoral. Entre estes advogados estavam Mario Kestelboim, Pedro
Galín, Rodolfo Ortega Peña e Eduardo Luis Duhalde. Ventura Mayoral era uma referência
para certa militância peronista, pois era representante legal do ex-presidente Juan D. Perón e
em seu escritório começou-se a investigar ‘o desaparecimento’ de um militante peronista,
Felipe Vallese, emblema da Resistência à ditadura e ícone da repressão sobre a militância
peronista dos anos sessenta. Na mitologia da agrupação Montoneros, agrupação à qual
pertencem muitos dos detidos políticos, Vallese é considerado o ‘primeiro’ desaparecido na
Argentina.
As agrupações estudantis dentro da universidade foram os grupos políticos aos quais
se integraram inicialmente, antes de se formarem como profissionais e se dedicarem à defesa
322
Estas indicações estão inspiradas no trabalho de Elias. Em Los Alemanes expõe magistralmente a relação
entre a posição marginal de um setor da juventude, os sentimentos de proscrição e traição e a necessidade de
restituir um sentido a um mundo que não corresponde com as expectativas. A afirmação do sentido da existência
através da realização de uma tarefa ‘superior’ à própria existência degradada é apresentada como uma das vias
de inteligibilidade do surgimento tanto do nazismo como do terrorismo nos anos 60 na Alemanha. Em: Elias.
1997.
323
Sigal, 1991. Para um exame detalhado desta instituição, ver Neiburg, 1998.
167
de presos políticos. Inclusive, algumas agrupações políticas surgiram de associações
estudantis, como foi o caso do Partido Comunista Revolucionário e da Vanguarda Comunista,
ambas cisões do Partido Comunista Argentino:
“... Yo militaba en el reformismo y en el Centro de Estudiantes, que estaba
prohibido desde 1943 (...) En ese momento [1949] no existía ningún tipo de
autonomía universitaria y las autoridades universitarias eran designadas por el
Poder Ejecutivo Nacional. No existían los consejos (...) Y nosotros luchábamos
sistemáticamente por los principios reformistas del gobierno de la facultad” (...)
Las primera experiencias de detención se refieren a ese período: ... cuando fue la
huelga de 1954, entre el 29 de octubre de 1954 y el 1ero. de abril de 1955,
estuvimos cómodamente alojados en la Cárcel de Villa Devoto a raíz de una huelga
que decretó la Federación Universitaria de Buenos Aires”
324
.
Raúl Piedrabuena refere-se, neste parágrafo, ao período do governo do General Perón,
quando se proibiu a atuação da Federación Universitária Argentina (FUA). Suspendido seu
impedimento com a derrota daquele em 1955, Piedrabuena foi eleito delegado e depois
secretário geral da FUA. Durante o período da presidência de Arturo Frondizi (1958-1962), os
futuros advogados defensores de presos políticos participaram dos enfrentamentos entre os
que defendiam a educação ‘laica’ e os que defendiam a possibilidade de criar universidades
privadas sob a influência da Igreja, a ‘livre’. Posteriormente, “Já por 1962-1963, na faculdade
de direito estava o Movimiento Reformista Universitario (MUR). Ganhamos as eleições (...)
estávamos muito contentes com consignas onde falávamos da função da universidade, a
aproximação do povo, se falava das classes trabalhadoras...”
325
. A militância universitária era,
em muitos casos, a continuação de uma militância estudantil iniciada durante a escola
secundária.
A militância partidária aparece também como uma herança familiar. No caso
mencionado antes de Landaburu, seus parentes diretos participavam do Partido Demócrata
Liberal, enquanto seus parentes maternos radicados na cidade de Buenos Aires, onde chegou
para estudar direito, eram ativos militantes radicais, como Urbano Rodríguez, seu tio, que,
em 1912, impulsionou a primeira greve de professores no país. Esta figura foi chave, que
324
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia.
325
Marta Grande (nome apócrifo), entrevista de L. Saldivia.
168
através de Rodríguez, Landaburu entrou em contato com os dirigentes e intelectuais do
radicalismo e do socialismo que se reuniam freqüentemente em sua própria casa.
Como será visto mais adiante, esta militância universitária resultará crítica na
configuração das relações dentro deste segmento profissional e na definição do perfil destes
advogados de presos políticos.
2. 5. 2 O exercício da ‘profissão’
Como vimos na seção anterior, estes advogados não vêm de famílias tradicionais no
mundo do direito. Trata-se de profissionais jovens que ocupam um espaço mais marginal
dentro da profissão. O início da vida profissional costuma ser difuso ou desprovido nos
relatos atuais dos entrevistados. Normalmente, o relato se limita a enunciar a abertura de um
escritório jurídico junto com outros sócios (também referidos de forma evasiva ou superficial
como ‘amigos’, ‘colegas’ ou ‘companheiros da faculdade’ ou ‘de partido’). Quando este
início profissional ganha destaque é justamente quando o advogado entrou na profissão
através do exercício do direito trabalhista, representando não o ‘patronal’, mas os
trabalhadores. Isso aparece especialmente destacado entre aqueles que integraram a comissão
jurídica da Confederación General del Trabajo de los Argentinos (CGT A). Nesta linha, Solari
Yrigoyen reconstrói sua própria trajetória, enfatizando esta dupla dimensão do trabalho
técnico e político como advogado de sindicatos:
“Yo era un simple militante de la juventud de la Unión Cívica Radical cuando el
golpe de 1966 (…) Mi principal actividad política, no obstante, estaba orientada
hacia el terreno sindical. Estuve desde el primer hasta el último a en la CGT A
(…) Era abogado de la CGTA, de la Federación Gráfica Bonaerense, de la
Federación Argentina de los Trabajadores de Imprenta, …
326
.
Para os que haviam ingressado no mundo profissional através dos sindicatos, esta
experiência é valorizada por possibilitar a ‘convivência’ com os setores operários: “...
permitiu-nos uma experiência inigualável (...), ocupamos muitas fábricas acompanhando os
operários e convivemos com eles nessas ocupações. Fazíamos uma assistência jurídica a essas
326
Entrevista com Solari Yrigoyen em: Gabbeta, Carlos (1983), pág. 222. Grifos meus.
169
comissões internas, a esses delegados que ocupavam as fábricas...”
327
. A advogada Malena
Bordenave relata seu trabalho como letrada do sindicato Smata nos mesmos termos: quando
se interveio no sindicato “... nos munimos e pernoitávamos no sindicato. Vivíamos ali para
defender Salamanca”
328
. O advogado Jorge Vargas também se definia, então, em função de
seu trabalho como assessor de sindicatos: “Profissionalmente tenho uma atividade muito
definida como advogado dos grêmios pertencentes à CGT A, Gráficos, Químicos, Padeiros,
Smata de San Juan. Também colaborei em defesas políticas nos casos de estudantes
detidos”
329
.
Ocorre o mesmo com os advogados provenientes da província de Córdoba como
Alfredo Curuchet, que foi assessor letrado de Sitrac-Sitram, e Malena Bordenave, advogada
dos despedidos da FIAT Córdoba e do sindicato Smata (ambos pertencentes à indústria
automotriz). Esta última destaca de sua experiência profissional o fato de ter se especializado
em direito trabalhista uma vez obtido seu diploma de advogada (1966-1970), justo no
momento em que “... começa a defesa dos grêmios (...). Em Córdoba, cria-se um movimento
particular que se chama ‘Clasista’ que era um movimento de democracia direta nos
grêmios”
330
. Mario Landaburu narra o início na profissão também como advogado trabalhista.
Destaca sua participação em uma experiência de autogestão de uma empresa de transporte
público e seu trabalho como assessor da Unión del Transporte Automotor. Nesta função,
interveio na negociação dos convênios coletivos de trabalho. Em 1967 começou a trabalhar na
Federación Gráfica Bonaerense que, sob a condução de Ongaro, daria impulso à formação da
CGTA.
Neste universo de representações, o saber profissional aparece como uma ferramenta
‘prática’ de participação política no marco dos diferentes espaços de luta sindical e partidária:
assim ‘como os médicos’ formavam equipes para o atendimento clínico de trabalhadores, ‘os
engenheiros e contadores’ colaboravam com as direções sindicais na análise dos ritmos de
produção em fábricas, salários e categorias trabalhistas, ajudando a averiguar a
327
Entrevista com Eduardo Luis Duhalde, realizada por M. Chama e reproduzida em seu paper “Politización y
radicalización” op. cit. Grifos meus.
328
Entrevista com Malena Bordenave (nome apócrifo), realizada por mim. Buenos Aires. 2002. O dirigente
sindical René Salamanca foi detido e desaparecido depois do golpe de Estado de 1976.
329
Em: Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. Número 18. Novembro 1971.
330
Entrevista com Malena Bordenave (nome apócrifo), realizada por mim. Buenos Aires. 2002.
170
superexploração, ‘os advogados’ colaboravam na assessoria jurídica dos detidos e dos
sindicatos
331
.
Para os jovens profissionais de setores médios dotados de um diploma e de um
conjunto de propriedades sociais associadas ao exercício da profissão de advogado (regras de
etiqueta, uso de um jargão especializado etc.), a realização de um trabalho próximo aos
símbolos e aos espaços relacionados com o mundo operário permitia-lhes uma aproximação a
este mundo socialmente distante dos sindicados e das fábricas. Ao fazê-lo, aproximavam-se
também a suas primeiras ‘sensibilidades’ profissionais relativas ao social e ao político. De
modo que, ainda que vestindo terno e gravata, a opção pelo direito trabalhista aproximou-os
do mundo dos conflitos trabalhistas de forma tal que, perante a taxativa oposição entre patrões
e empregados, estes profissionais ficaram situados do lado dos que têm menos, isto é, um
lugar deslocado em relação ao seu pertencimento de classe, mas próximo dos grupos cujos
interessem procuram defender.
O exercício da profissão como advogados trabalhistas era uma maneira de conciliar a
competência profissional com a sensibilidade política. Como assinala uma entrevistada, esta
opção permitia-lhe manter uma coerência entre ‘a profissão’ e ‘a militância’, à diferença de
outros colegas que faziam direito trabalhista, mas integrando estudos que trabalhavam para o
‘patronal’
332
. É interessante considerar a maneira em que era possível combinar o
pertencimento a todas estas esferas de sociabilidade contrapostas no relato de uma das
entrevistadas: “... como advogada defensora ia até os canteiros onde estavam os trabalhadores
de greve; à noite, como membro da ‘alta’ sociedade de Mendoza, participava de reuniões
sociais onde os maridos de minhas amigas muitas vezes eram os mesmos empresários contra
os quais estava litigando
333
.
Para estes jovens profissionais desprovidos de um nome no mundo do direito, a
atividade como advogados trabalhistas aparecia também como uma importante fonte de renda:
“:.. en aquella época, no te olvides que era una época de relativo auge de la economía,
llovían las demandas laborales. Vos ibas a las audiencias, seguías los pleitos y los
pleitos se cobraban. No es que los empresarios no le pagaran a los obreros. Fijate vos
331
Curuchet. Em: Jornal Desacuerdo.
332
Entrevista com Graciela Recalde (nome apócrifo), realizada por mim. Rosario. Agosto 2005.
333
Entrevista com Graciela Recalde (nome apócrifo), realizada por mim. Rosario. Agosto 2005.
171
que solamente mecánicos, es decir, Renault, tenía 4000 operarios! (…) Entonces cada
vez que había un despido injustificado o que no se había pagado la licencia, era una
denuncia que tenías que hacer vos como abogado ante el fuero laboral. Y ahí vos
cobrabas. Se subsistía de eso”
334
.
Vale a pena destacar que, quando estes estudantes entraram no mundo profissional, a
mera posse do título de advogado ou o fato de dispor de capital de relações herdadas não
garantia o acesso à política. Segundo Imaz, em 1961 apenas 52% da elite dirigente passou
pela faculdade de direito
335
(contrastar esta porcentagem com o que foi apresentado no
capítulo 1, relativo a 1941: 92%). A chegada ao poder do peronismo possibilitou o ingresso
na política de figuras que vinham da direção sindical, como foi o caso do advogado e lingüista
mencionado no capítulo 1, Juan Atilio Bramuglia, nomeado Ministro das Relações Exteriores.
Outras figuras de menor prestígio, mas vinculadas também ao mundo operário e sindical
formaram os quadros médios do governo. Talvez, a aproximação destes dois mundos, o do
direito e o do sindicalismo, constituiu não apenas uma fonte de trabalho, mas correspondia a
certas expectativas a respeito das possibilidade de ingressar na carreira política. Para Imaz, o
peronismo modificou a constituição da elite dirigente.
Como profissionais que se definem por sua vocação de exercer o direito e a política a
partir de uma tarefa de impugnação ao Estado, os que tinham entrado na carreira jurídica
destacam a ‘crise’ que atravessaram em meados dos anos 60. Da perspectiva de um dos
entrevistados, que era secretário de juizado em uma sala criminal:
“... la tarea en el ámbito judicial implicaba servir determinados intereses
antagónicos a los que yo sostenía. Según mi concepción, el Estado es un aparato de
dominación de una clase o un conjunto de clases contra la clase dominada (...) y
resultaba que sin proponérmelo yo estaba sirviendo a los intereses de esa clase...
esto fue lo que me provocó realmente una crisis (...) después de lo cual decidí
pasar al ejercicio profesional
336
.
334
Entrevista com Malena Bordenave (nome apócrifo), realizada por mim. Buenos Aires. 2002.
335
Em Imaz, op.cit.
336
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia. Vale a pena destacar a descrição
que faz José Luis de Imaz sobre a formação do poder judiciário nesses anos: “Exceto os juizados trabalhistas, os
juízes tendem a ser recrutados das classes altas de Buenos Aires. Outros foram membros das altas classes
provinciais, especialmente de Córdoba…”. Em: 1970: 126.
172
No exercício da profissão, seus estudos privados, as sedes das associações e seus
outros espaços de atuação profissional estavam localizados caracteristicamente ao redor do
bairro ‘Tribunales’, nome com o qual se denominam os arredores do Palacio de Tribunales na
Capital Federal. Estes advogados compartilhavam escritórios e bares situados na zona de
maior concentração de advogados do fórum portenho. A identificação de alguns destes
escritórios e bares com os advogados defensores de presos políticos era tal que um destes
bares, chamado ‘El Barrilito’, foi destruído por uma bomba da Triple A, a mesma que
bombardeou duas vezes a própria sede da Gremial
337
. Os advogados defensores
compartilhavam os escritórios jurídicos e, em muitos casos, integravam uma sociedade
profissional em comum
338
.
À diferença dos profissionais do direito dos anos 30, que fizeram da política uma
profissão (ocuparam sucessivamente assentos no parlamento ou exerceram uma função
pública), os advogados examinados neste capítulo não eram políticos profissionais. A partir
do golpe de Estado de 1955, época que corresponde ao ingresso destes jovens à vida
universitária, toda atividade político-partidária tinha sido suprimida, o que fez que entre os 25
e 35 anos não puderam exercer uma função eleitoral (durante os interregnos de governos
democráticos correspondentes aos períodos 58-62 e 64-66 ainda eram muito jovens)
339
. Foi
em 1973 quando isto mudou radicalmente. Na conjuntura colocada pelo fim da ditadura
militar, muitos dos advogados defensores de presos políticos entraram totalmente na política
profissional, sendo eleitos deputados ou senadores nacionais
340
ou exercendo uma função
pública
341
. Este ingresso na política profissional produz, simultaneamente, a saída da Gremial.
O compromisso na defesa de presos políticos diminui. Nas palavras de Solari Yrigoyen:
337
A Triple A foi uma organização parapolicial criada durante o último governo peronista (1973-1976) sob a
cobertura de seu ministro de Bem-estar Social, J. López Rega.
338
Este era o caso do escritório de advogados de Gustavo Roca e Lucio Garzón Maceda, localizado em Córdoba,
parte de um escritório maior junto com Mario Hernández, onde, por sua vez, trabalhavam outros advogados
defensores de presos políticos como Carlos Altamira e Eduardo Sanjurjo. Outros casos são os de Alfredo
Curuchet e Martín Federico, Radrizani Goñi e Mattarollo, depois Mattarollo e Roberto Sinigaglia, Néstor
Martins e Atilio Librandi.
339
Hipólito Solari Yrigoyen tinha uma breve experiência como Secretário Geral do Instituto Nacional de las Islas
Malvinas y Adyacencias, do Ministério de Relações Exteriores e Culto, entre 1965 e 1966.
340
Como os deputados Héctor Sandler e Rodolfo Ortega Peña e o senador Hipólito Solari Yrigoyen.
341
Como o novo ministro do Interior, Esteban Righi, que tinha integrado a Gremial e a Asociación de Abogados
Peronistas.
173
“A partir de la liberación de Agustín Tosco, en 1972, dejé de ocuparme de mi
estudio de abogado y de la defensa de presos sindicales y políticos. Se había
abierto una alternativa democrática, íbamos hacia las elecciones y la política pasó a
ser el centro de mi actividad. Un grupo de correligionarios propuso mi candidatura
a senador nacional que fue ratificada en las elecciones internas del radicalismo. El
11 de marzo de 1973 resulté elegido, representando a la provincia de Chubut
342
.
Como profissionais da política, estes advogados apelaram ao mesmo corpus de valores
heróicos que os definia ao exercer o direito. Em uma reportagem da época, Hipólito Solari
Yirgoyen afirmava: “Estou servindo à causa da libertação nacional no Congresso. Se algum
dia ocupar esse assento fosse incompatível com esta luta, não hesitaria em queimá-lo, pois
prefiro ser militante do povo que senador de uma democracia desonrada
343
. A atividade
parlamentar continuou ligada a suas trajetórias políticas e profissionais anteriores. Solari
Yrigoyen, por exemplo, foi vice-presidente da Comissão do Trabalho no senado, intervindo
‘em todos os debates que afetavam a condição dos assalariados’ e, no final de 1975, tentou
criar uma Comissão de Direitos Humanos para investigar os casos de violação dos direitos
humanos.
Mesmo os que não se profissionalizaram na política intervieram na elaboração de
projetos de modificação da legislação repressiva imposta pela Revolução Argentina. Como
relata um integrante da Gremial: “... nós, advogados da Gremial, tivemos muita influência na
redação do artigo 20.508 de anistia, na lei do artigo 20.509 de derrogação da legislação
repressiva e na lei do artigo 20.510 de dissolução da Cámara Federal en lo Penal, fórum
antisubversivo”
344
. Todas estas leis foram sancionadas pelo Congreso de la Nación, o mesmo
espaço onde se encontravam vários integrantes da Gremial, agora na condição de senadores e
deputados nacionais. Para Marta Grande “... bastou entrar Cámpora [1973] e foram
organizadas diferentes comissões, alguns começam a trabalhar em projetos políticos
vinculados à reforma e legislação trabalhista, outro grupo de profissionais passa a trabalhar na
faculdade de direito...”
345
que aparece agora como uma alternativa profissional:
342
Em Gabetta, pág. 234.
343
Em: Jornal Nuevo Hombre. No. 47, 1ª. Quinzena. Setembro, 1973. Em 1974, como parte de sua atividade
parlamentar, participou como observador internacional dos julgamentos militares realizados no Chile em 1974
por Pinochet, junto com o deputado Adolfo Gass e o advogado do PCA e integrante da Liga, Mauricio Birgin.
344
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia. Pode-se consultar estas leis no
Boletín Oficial de 28.05.1973.
345
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia.
174
“Yo a partir de 1973 no defendí ningún preso político. Seguía siendo socio de la
Gremial pero, a ver, vamos a utilizar una figura propia de los masones, socio mudo, es
decir, el hermano que no aparece pero sigue perteneciendo (...) A partir del 73 seguí
ejercitando mis conocimientos a través de la enseñanza, fundamentalmente en la
facultad, en la dirección del departamento de derecho penal, trabajando para
vivir...”
346
.
Para outros, a opção foi o jornalismo: “Como já, em um dado momento, as defesas não
eram o mais importante, com Cámpora saem os presos do PRT, dedico-me ao jornalismo. O
PRT propõe que eu assuma a direção do jornal Nuevo Hombre
347
.
Em 1972, diante das tentativas oficiais de constituir um Fórum de Advogados da
Cidade de Buenos Aires, de filiação obrigatória (Lei 19.649), os advogados da Gremial
intervieram formando uma lista eleitoral própria. Pertenceram à lista Número 3 “Liberación y
Justicia” Solari Yrigoyen, Roberto Sinigaglia, Raúl Aragón representando a Gremial e Mario
Kestelboim como seu procurador. Integravam a ela, também, advogados afiliados à Liga,
como David Baigun, Benoit Schmuckler e Eduardo Barcesat. Deste lugar, uma lista eleitoral,
procuraram se diferenciar de seus pares, demandando tanto medidas relacionadas com o
exercício da profissão (filiação obrigatória e aposentadoria), como outras vinculadas
especificamente à defesa de presos políticos (como a libertação dos presos políticos, gremiais
e estudantis e a eliminação do Estado de sítio)
348
. Ao aspirar constituir um espaço próprio no
âmbito nacional, os advogados de defesa de presos políticos convocaram esse mesmo ano
uma Reunião Nacional de Advogados que se realizou em uma sede da universidade de
Buenos Aires. Para designá-la, utilizou-se o nome de Néston Martins, que passou a ser um
emblema dos que assumiam estes casos. Esta primeira reunião, realizada em Buenos Aires,
convocou ‘mais de duzentos e cinqüenta advogados’ representantes de diferentes províncias
do território argentino. No diagnóstico da situação do país, colocava-se ênfase em destacar
que ‘estamos vivendo em plena crise do direito’. As comissões de trabalho revelam os
sentidos desta ‘crise’: a) as restrições ao exercício profissional, b) a legislação repressiva, c) o
cumprimento dos direitos humanos, civis e políticos, d) estado atual da legislação e
346
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) , realizada por Laura Saldivia.
347
Em: Entrevista com Matarollo realizada por Vera Camovale para o Arquivo Memoria Abierta. PRT: Partido
Revolucionario de los Trabajadores.
348
Palavras pronunciadas por Roque Bellomo em homenagem à Asociación Gremial de Abogados de Buenos
Aires. Setembro 2006. Segundo relatou Bellomo, o Fórum finalmente não foi instituído, já que se previa o
triunfo da lista 3.
175
jurisprudência em matéria trabalhista e, e) coordenação de atividades no nível nacional
349
. A
convocatória à Terceira Reunião, realizada depois do fim da ‘ditadura’, mostra um giro nas
temáticas consideradas prioritárias. Esta reunião dedica-se ao exame dos ‘monopólios’.
Interessa destacar a busca de legitimidade acadêmica para esta atividade: o encontro tem sua
sede em uma universidade, convoca-se à apresentação de papers e destaca-se que foram
convocados para participar ‘especialistas’ na matéria
350
.
Entre 1973 e 1974 vários integrantes da Asociación Gremial de Buenos Aires se
incorporaram à vida acadêmica na rebatizada Universidad Nacional y Popular de Buenos
Aires. Mario Kestelboim, primeiro Secretário Geral da Asociación Gremial de Abogados de
Buenos Aires foi designado decano da Faculdade de Direito. Carlos González Garland
assumiu como Diretor do Departamento de Direito Penal, Mario Hernández teve sob sua
responsabilidade a disciplina “Elementos de Ciência Política”, onde também tinha um cargo
docente Alicia Pierini. Eduardo Luis Duahalde e Rodolfo Ortega Peña também fizeram parte
deste fugaz compromisso com a vida acadêmica, hoje todos eles (com exceção do advogado
assassinado Ortega Peña), reconhecidos como ‘especialistas’ em direitos humanos.
A ocupação deste espaço era concebida como parte do mesmo compromisso militante.
Com a volta do peronismo ao poder, as faculdades de direito conseguiram ser recuperadas’
para a causa. Nos termos de Cristina González, quando se termina ‘a ditadura’ de Lanusse e
se produz a libertação da totalidade de presos políticos, um grupo de advogados defensores de
presos políticos decide continuar ‘a luta’ na Faculdade de Direito: “... toda esta briga se
traslada para a faculdade, ali se cria um espaço no qual estamos todos”
351
. Considerada ‘um
reduto da oligarquia’ cujo “... destino [é] prover técnicos para o aparato de dominação,
profissionais da entrega...”
352
, a intervenção tinha conseguido colocá-la em mãos
revolucionárias’. A finalidade de modificar o perfil do profissional do direito através de
mudanças na formação do estudante provocou fortes enfrentamentos que chegaram à renúncia
de vários professores a seus cargos, desqualificados para a nova etapa que se abria com o
triunfo eleitoral de Perón, por sua condição de ‘funcionários da ditadura’, de ‘advogados de
empresas multinacionais’ e de ‘antiperonistas’. Afinados com uma resolução da reitoria que
349
Em: “Abogados. Entender las cosas como son”. Revista Primera Plana. Buenos Aires. Número 499. 22 de
agosto de 1972.
350
Ver no anexo N˚ 13, pág. 219, a reprodução da convocatória à Terceira Reunião Nacional. Revista Militancia
Peronista para la Liberación. 18. 10. 1973.
351
Entrevista com Cristina González (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia. 2002.
352
Revista Nuevo Hombre. Ano 1. Número 18. Novembro 1971, grifos meus.
176
tinha declarado a ‘incompatibilidade’ entre o cargo de docente na universidade e ser
funcionário hierárquico ou assessor de empresas estrangeiras ou multinacionais, publicaram
uma ‘lista’ de professores da Faculdade de Direito da UBA que participam em diretorias de
grandes empresas. Todas estas ações ocuparam importantes espaços na imprensa nacional.
Jornais como La Nación e La Prensa dedicaram inúmeros editoriais em questionar ‘a tirania
da renúncia’ e em mostrar como na Faculdade de Direito tinha se instalado ‘o terror’
353
.
A criação de novas revistas, de prêmios acadêmicos, a imposição de nomes nas salas
da faculdade, a reincorporação de professores despedidos por golpes de Estado anteriores,
eram algumas das marcas da decidida intervenção dos advogados de presos políticos dentro
do espaço da Faculdade de Direito. Todas elas aspiravam modificar o perfil do graduado.
Com este fim criaram também um serviço de assistência jurídica gratuita: “Trata-se de uma
medida de importância especial, visto que, por um lado, presta-se um real serviço ao povo e,
por outro, permite-se a capacitação prática dos estudantes, inserindo-os na problemática
concreta de nossa sociedade”
354
. Cristina González resume a atividade realizada nesses
breves meses, antes que se produzisse a intervenção na Faculdade e o fechamento deste
projeto acadêmico: “... no programa de saída aos bairros, a mim coube a comunidade de Bajo
Belgrano, eu tinha o escritório jurídico ali. Também me deram o Departamento de Extensão
Universitária onde fizemos o primeiro curso de capacitação para dirigentes sindicais dentro da
Faculdade”
355
.
A partir de agosto de 1973, introduziu-se uma nova matéria na parte introdutória do
curso direito: ‘Prática Social do Advogado’. Distinguia-se tanto por formar teoricamente o
estudante que ingressa, proporcionando-lhe ‘uma consciência crítica’, como pelo fato de
incluir uma instância de ‘trabalho de campo’ nos bairros operários, clínicas gremiais,
tribunais, etc. Esta prática permitiria o estudante: “... fazer contato com a realidade de maneira
tal que este possa perceber as estruturas de opressão e domínio em funcionamento e observar
assim, em cada situação concreta, qual é o papel tradicionalmente assumido pelo advogado e
qual é o papel necessário a ser assumir...”
356
.
353
Em: “La Prensa y La Nación ante la Universidad”. Revista Militancia Peronista para la liberación. 1973.
354
Em: “Universidad. Fin de la Dependencia”. Revista Militancia Peronista para la liberación. 21 junho 1973.
355
Entrevista com Cristina González (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia. 2002. Ver no Anexo 14,
na pág. 219 a instituição do Prêmio Néstor Marins aos melhores trabalhos acadêmicos. Em: Revista Militancia
Peronista para la liberación. Número 1. 18.11.1973.
356
Em: “Trabajos universitarios con el pueblo” Em: Revista Militancia Peronista para la Liberación. 1973.
177
Como havíamos identificado no caso dos advogados defensores de presos políticos
dos anos 30, uma vez que se abre a possibilidade de participar na vida pública, os
profissionais estudados neste capítulo multiplicam seus compromissos atuando,
simultaneamente, na função pública, na imprensa, na universidade e nos partidos políticos.
Em suas trajetórias pode-se reconhecer como, ingressando no exercício da profissão através
da prática do direito trabalhista ou penal, o se deslocando progressivamente a um
compromisso com a defesa de presos políticos.
A criação de ‘novas’ associações profissionais, de ‘novos’ espaços de denúncia, de
‘novas’ publicações, de ‘novas’ cátedras de direito, de uma ‘nova’ justiça, a aspiração a
fundar um ‘novo direito’ e uma ‘nova sociedade’ integrando ‘novos’ partidos e organizações
políticas são fatos que indicam tanto a posição periférica ou marginal que estes profissionais
tinham dentro do campo do direito e da política, como a aspiração de ocupar o próprio centro
da política e do direito. No breve interregno entre o triunfo do peronismo em 1973 e a
declaração do Estado de sítio no final de 1974, estes excluídos ocuparam uma parte desta cena
central, integrando o parlamento, a função pública, a universidade e o poder judicial.
A participação neste universo outorga a seus protagonistas tanto oportunidades de
exercer a profissão, como um lugar dentro de um espaço de referência em relação ao qual
podem situar-se e se fazer de uma posição. Uma posição que se define pelo compromisso
público e coletivo com uma causa, mas que, ao mesmo tempo, supõe colocar em jogo uma
série de condições próprias do exercício tradicional do direito. Como vimos, o compromisso
militante destes profissionais do direito não excluía o exercício tradicional da advocacia. Ao
contrário, o que parece acontecer é um jogo de importação de competências e recursos entre
uma e outra esfera. De modo que ‘exercer a profissão’ torna-se condição de possibilidade
deste ativismo, visto que é uma atividade que lhes permite investir tempo e recursos
econômicos no compromisso militante
357
. Uma marca crítica da posição que estes advogados
aspiravam ocupar no espaço profissional está dada pela contraposição entre o ‘compromisso’
e o mero exercício ‘profissional’ do direito.
357
Esta propriedade da profissão jurídica, em especial, foi analisada em detalhe em Willemez, 2003.
178
2. 5. 3 ‘Militar na Gremial’
Neste universo de relações, a política e o direito, longe de constituírem esferas
separadas por fronteiras estritamente delimitadas, formam um espaço de relações recíprocas
onde os limites entre uma e outra são porosos, ambíguos e móveis. Como expressa Hipólito
Solari Yrigoyen, a política é exercida e atua-se nela através do direito: “Em meu caso pessoal,
a atividade política estava íntima e diretamente ligada ao exercício de minha profissão de
advogado. Me converti, por força das circunstâncias, no advogado dos radicais perseguidos
(...)”
358
.
‘Militar’ na Gremial é o termo nativo que se utiliza para se referir à defesa de presos
políticos e conjuga a dupla condição deste ativismo. Supõe assumir o compromisso de ‘atuar
muito além do expediente judicial’, ação que se transforma para alguns deles ‘no que justifica
de ter conseguido o título’
359
. É uma categoria que conjuga a dupla condição deste ativismo.
‘Militar’ na Gremial é também a expressão nativa com a qual se distinguem os que
simplesmente ‘exercem’ ou ‘trabalham na profissão’
360
. ‘Militar’ e ‘exercer expressam
também uma ordem de hierarquias. Ao se referir a sua atividade profissional, é freqüente que
os entrevistados utilizem a expressão ‘trabalhava como advogado’ ou ‘trabalhava na
profissão’ de forma pejorativa. Esta desqualificação fala de profissionais que aspiravam algo
mais que montar um escritório e viver da rotina de divórcios e heranças. Mas se o tulo lhes
confere uma qualificação profissional que os habilita a ter outras expectativas, a ausência de
um capital de relações sociais importantes dentro do mundo do direito, desqualifica-os na
competência profissional. Ao se integrar ao universo da militância e exercer a partir dali sua
profissão e seu compromisso com a causa antiditatorial, possuir um conjunto de qualidades
extra profissionais (a entrega, o sacrifício, o valor, a coragem, a abnegação, a solidariedade) é
que irá permitir-lhes diferenciar-se de seus pares, assim como fundar uma posição legítima.
A vocação pela defesa de presos políticos está vinculada ao fato de circular,
simultaneamente, entre estes dois espaços: a política partidária e a profissão. O próprio Néstor
358
Opo.cit. (pág. 227). Grifo meu.
359
Entrevista com Mattarllo para o Arquivo Oral de Memoria Abierta.
360
Para o caso francês, Lucien Karpik definiu o perfil do advogado ‘clássico’ em termos de uma afinidade com a
representação liberal da política (individualista, defensor das liberdades públicas, da igualdade de direitos).
Karpik, 1995.
179
Martins condensa significativamente o pertencimento a uma rede de relações chaves que
incluem o fato de ser membro da Liga Argentina por los Derechos del Hombre, sócio da
Asociación de Abogados de Buenos Aires, dirigente universitário, integrante da equipe de
advogados da Confederación General del Trabajo de los Argentinos e assessor do
Movimiento Villero.
Nos termos em que um entrevistado descreve sua trajetória profissional e seu posterior
ingresso na Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires, podemos reconhecer a
importância de várias das instâncias chaves antecipadas nas seções anteriores: a militância
universitária anterior, a experiência prévia no exercício privado da profissão, o conhecimento
técnico e a referência temporal ao movimento social conhecido como Cordobazo:
“... con gran rapidez comencé a ejercer muy activamente en el fuero criminal (...)
porque en esa época los abogados civilistas, los abogados comercialistas, los abogados
administrativistas no ejercían el derecho penal ni por casualidad y entonces me
convertí en una especie de consultor de muchos estudios que me derivaban sus
asuntos. Así se explica que yo empecé a activar muchísimo en el área de defensa de la
libertad de prensa, porque el estudio que llevaba los asuntos del Diario La Razón me
pasaba a mí todas esas defensas (...). Para el año 1966, cuando se produce el golpe de
Estado, empieza a hacerse verdaderamente útil el ejercicio del derecho penal (...)
Cuando se produce la intervención a la universidad, meten presos a todos los
estudiantes y les aplican un edicto policial (...) y allí, los viejos militantes de la
facultad, que ya me conocían del movimiento universitario, me traen la defensa de los
chicos. Y todos los que defendí salieron absueltos (...) Pero además, y dado que era
una represión contra las autoridades, decidimos querellar al Jefe de la Policía Federal
en representación de Rolando García [Decano de la Facultad de Ciencias Exactas y
Vicerrector de la Universidad] (...) durante la dictadura de 1966 a 1973 (...)
empezaron a aparecer una cantidad de tareas de defensa de tipo criminal con relación
a los perseguidos políticos y a partir de ese momento fue incrementándose mi
compromiso en la defensa de los derechos de los perseguidos (...) y este compromiso
iba desde la ley anticomunista, como los problemas de delito de opinión, pasando por
aquellos que eran acusados de actos violentos y siguiendo por quienes repartían
volantes (...) cuando ya estaba generalizada la represión orgánica, en 1969, con el
Cordobazo, yo empiezo a incorporarme a defensas vinculadas con acciones violentas
de organizaciones armadas, sin por ello coincidir con todos sus principios ni siquiera
tener una relación orgánica (...) Y la cuestión, digamos así, exigió mayor compromiso,
180
entre otras cosas porque la cantidad de perseguidos políticos en ese momento era
inmensa”
361
.
Um elemento crítico que pode ser reconhecido no relato deste advogado é a maneira
progressiva em que foi assumindo seu compromisso com a defesa de presos políticos. Longe
de se tratar de uma decisão racional, pode-se reconhecer em seu relato como vai se
produzindo sua incorporação paulatina a uma rede de relações que vão aproximando-o da
defesa de militantes armados, através de diferentes situações históricas e distintas redes de
relações criadas tanto na militância estudantil, como em relação a outros colegas e estudos
profissionais.
Este relato também sugere como se representam aqueles profissionais que não têm
uma relação ‘orgânica’ com as agrupações armadas da esquerda, mas que dispunham de outro
capital importante: o ‘conhecimento técnico’, um valor crítico especialmente na área do
direito penal. A defesa de uma causa requer, junto com o compromisso militante, a
disponibilidade de um conhecimento especializado. Reivindicar-se possuidor deste
conhecimento importa uma vez que o direito penal supõe uma preparação ou um saber
técnico, ainda mais sofisticado que outros ramos do direito. Segundo outra entrevistada, esta
distinção é crítica a ponto que: “... eu [como advogada] não sei fazer uma defesa penal. Posso
contribuir para fazer uma denúncia, mas não tenho o conhecimento jurídico suficiente para
sustentar uma defesa”
362
. Como diz Raúl Piedrabuena, os outros ‘não exerciam o direito penal
nem por acaso’: “Me chamaram para intervir porque havia se esgotado o repertório de
advogados que pudessem ter algum tipo de manejo no âmbito do direito penal”. Isto fez com
que, ao integrar a Asociación Gremial de Abogados de la Capital Federal:
361
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia, grifos meus.
362
Entrevista com Silvia Dvovich (nome apócrifo), realizada por mim.
181
“... yo era puntualmente el único penalista que se dedicaba en ese momento
con exclusividad al derecho penal (...) el resultado es que los que estaban de turno
me consultaban a mí. Con lo cual empecé un régimen de vida que consistió en
levantarme a las 6 de la mañana y acostarme a las 2 de la madrugada todos los días
(...) en determinado momento los compañeros decidieron que yo formara parte de
la dirección. En el año 1972 yo era Secretario General de la Gremial”
363
.
Integrar estas associações supunha não apenas ‘estar’, mas também dispor de um
conjunto de atributos: a experiência derivada da prática profissional, o conhecimento técnico,
a militância política, o nome, o prestígio ganho no fato de ‘pegar’ defesas comprometidas: “...
designou-me como advogado defensor, me conhecia por aparecer alguma vez em algum
noticiário”
364
.
A ocupação deste lugar dentro do universo profissional e militante implicava, apesar
de tudo o que se colocava em jogo ao assumir a defesa de presos políticos, o desenvolvimento
de um conjunto de atividades que não eram excludentes com o mero ‘exercício da profissão’,
expressão nativa utilizada para dar conta da prática tradicional da advocacia. Ao contrário,
uma parece apoiar-se na outra, como sugere Piedrabuena ao relatar como eram financiadas as
defesas gratuitas dos militantes. Para aqueles advogados não ‘enquadrados’, continuar o
exercício tradicional da profissão era um recurso chave: “... a partir desse momento começo a
subir minha cota de honorários com os clientes, de forma tal que eles pagassem as defesas de
presos políticos”
365
. Marta Grande sugere a mesma coisa ao assinalar: cada um bancava a si
mesmo (...). Por outro lado, era muito mais fácil cobrar o exercício profissional nesse
momento que agora”
366
.
Da mesma maneira, a defesa de presos políticos não impedia continuar o exercício
privado da profissão: “... eu continuei fazendo minhas defesas privadas, como um advogado
privado, apesar de que os juízes sabiam que também defendia presos políticos. Bem, nas
jurisdições ordinárias isto não implicava uma rejeição ou uma repulsa. Continuava sendo o
363
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia. Este mesmo advogado afirma
que: “Na época que eu fazia direito penal da cidade de Buenos Aires havia 5 ou 6 escritórios especialmente de
direito penal, de direito penal de importância, não para tirar presos, mas um direito penal sério. Criminalistas de
hierarquia eram Genero Carrió, Laureano Landaburo, que tinha um grande escritório de atendimento a empresas
(...) e dentro desses 5 ou 6 escritórios, o quinto ou sexto era o meu” (GG).
364
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo). L. Saldívia.
365
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
366
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
182
tratamento de antes”
367
. Esta afirmação interessa na medida em que sugere como, ao assumir
estas defesas, arriscavam o capital simbólico acumulado em seus anos ‘exercendo o direito’.
Ao mesmo tempo, sugerem que as regras do jogo da profissão podem se manter vigentes uma
vez se mantenham as condições de ‘neutralidade’ próprias da ética profissional nas defesas
ordinárias.
Nas trajetórias de outros advogados, o compromisso com a defesa de presos políticos é
um resultado direto e imediato de sua inserção na militância partidária, mesmo quando estes
fatos impliquem um processo de conversão em si mesmo, como vimos no relato de Mattarollo
sobre sua viagem iniciática pela América Latina. Entrar em um partido ou organização
política supõe, ao mesmo tempo, entrar nas equipes jurídicas destas organizações e, vincular-
se com os outros advogados defensores e com as associações que assumem coletivamente
esse mesmo compromisso. Isto pode ser reconhecido na descrição que faz Mattarollo sobre
sua própria trajetória profissional, quando afirma: “ao entrar no PRT assumo plenamente o
militantismo como advogado vinculado organicamente ao PRT (...). Ao mesmo tempo fico
vinculado a outros advogados da Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires...”
368
.
A maneira em que cruzam trajetórias militantes e familiares também interessa para a
compreensão das condições de surgimento deste compromisso, do ponto de vista da biografia
pessoal. Este é o caso do advogado Eugenio Cabrera que, depois do Cordobazo, instala-se
com sua mulher e filhos em uma favela da cidade de Rosario seguindo a estratégia de
proletarização dos quadros militantes, impulsionada pelo partido ao que pertencia. Neste
contexto, trata-se de um profissional do direito dedicado exclusivamente ao ativismo
partidário. Alguns anos depois, o abandono desta linha de ação por parte do partido o
conduzem novamente à profissão. Esta história de militância partidária se entrecruza com a
história familiar: o episódio limite em que um de seus filhos encontra-se em risco de perder
sua vida. O abandono da favela e a instalação de um escritório jurídico em outra cidade
reintegram-no ao exercício profissional. Neste contexto, que entrecruza vínculos partidários e
familiares, Eugenio Cabrera se incorpora às associações de defesa de presos políticos
369
.
367
Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) realizada por L. Saldivia.
368
Entrevista com Mattarollo realizada por Vera Camovale para o arquivo oral de Memoria Abierta.
369
Entrevista com um familiar de Eugenio Cabrera (nome apócrifo), realizada por mim. 2006.
183
Compreender as condições de possibilidade deste tipo de militantismo jurídico supõe
identificar todos estes espaços comuns de formação e pertencimento. Os integrantes da
Gremial pertencem a uma mesma geração e se identificam com ela a partir de um conjunto de
atributos: reconhecem-se como ‘companheiros’ de faculdade que foram iniciados juntos na
militância estudantil, como pertencentes a uma geração que ingressa na vida política em uma
época de proscrição e que, por sua vez, fazem juntos sua entrada no mundo profissional.
Trata-se de indivíduos que compartilharam espaços comuns de sociabilidade: a faculdade, as
agrupações estudantis, os partidos políticos, os sindicatos, os tribunais, as visitas às prisões. É
a participação progressiva nestes espaços o que vai construindo o compromisso com a defesa
dos presos políticos. Abraçar a causa do direito supunha definir-se dentro deste mundo
profissional a partir de um conjunto de critérios chaves de distinção a respeito de seus
próprios pares: como representar estes advogados militantes seu lugar dentro do universo
profissional? Quais são os elementos a partir dos quais se reconhecem como iguais?
2. 6 Ser um defensor de presos políticos
Uma marca crítica na definição deste segmento da profissão jurídica é o fato de se
reconhecerem como ‘vanguarda’. Na expressão da advogada Susana Delgado: nós somos a
vanguarda da nossas profissão, por termos dedicado sustentada e permanentemente a defesa
dos direitos humanos
370
.
Esta definição supõe várias operações críticas na formulação de um ponto de vista
dentro do universo profissional. Representar a si mesmos como vanguarda coloca-os em uma
relação de estreita proximidade com seus defendidos que, da condução de grêmios e
sindicatos, ou da direção de organizações políticas ou político-militares, coincidentemente
também se definem por ocupar um lugar de vanguarda: em contraste com os grêmios
‘tradicionais’, os que confluem na CGT A se definem como ‘a vanguarda do movimento
operário’. E a mesma coisa acontece com as organizações políticas que, por oposição aos
partidos ‘burgueses’, definiam-se como ‘a vanguarda da revolução’.
370
Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1, No. 11, 1971, grifos meus.
184
Tacitamente, esta afirmação coloca aqueles advogados que patrocinavam,
assessoravam ou representavam sindicatos, grêmios e partidos ‘tradicionais’ no extremo
oposto de um universo profissional concebido em termos dicotômicos. Se a sociedade
argentina se dividia em bandos antagônicos (o povo versus o regime, a burguesia versus o
proletariado, a criação versus as massas, a oligarquia versus os oprimidos), os profissionais de
direito também: ou se estava ‘com o povo’ e contra o Estado, ou se estava a favor do ‘sistema’
e do Estado. Esta oposição expressava-se com o uso de categorias como: ‘Advogados do
povo’ versus ‘advogados da oligarquia’. Nas palavras inaugurais da Primeira Reunião
Nacional de Advogados, Mario Landaburu exaltava esta diferenciação: “Estamos presentes
aqui para dizer a nosso povo que existem advogados que assumiram humildemente sua
mesma condição e suas lutas, diferenciando-nos de todos aqueles a quem serve seu título
profissional para colocá-lo a serviço do imperialismo colonizador e da exploração degradante
do homem”
371
.
Nesta visão antagônica da sociedade nacional, os advogados reclamavam um lugar
legítimo a partir da detenção de uma qualidade decisiva: sua condição de intelectuais. Como
já vimos no capítulo 1, os que assumem um ativismo deste tipo, definiram seu lugar no espaço
público como ‘intelectuais’. Esta é a categoria com a qual se identificam e se reconhecem:
Los intelectuales debemos preguntarnos seriamente cuál es nuestro verdadero rol
(...) Los intelectuales honestos no pueden clamar para sí un campo propio de
actividad separado de las miserias concretas que agobian a las masas populares
(...) Han caducado definitivamente los antiguos hábitos y valores que marcaban
para los intelectuales un estatus de comodidad y privilegio. La realidad del
capitalismo en crisis ha derrumbado el idílico mundo pequeño burgués con sus
sueños de prestigio y ascensión social (...) ha llegado la hora de la militancia
activa de los intelectuales
372
.
371
“Abogados. Entender las cosas como son”. Em: Revista Primera Plana. Buenos Aires. Número 499. 22 de
dezembro de 1972. Grifos meus. A identificação dos advogados de empresas como opositores no campo
profissional e político pode ser entendida considerando a composição do staff do Estado. Segundo Imaz,
“Quando caiu o peronismo, os interesses excluídos reaparecem (...) No gabinete de 1956 atuam muitos
advogados de empresas...” (op. cit.: 35).
372
Alfredo Curuchet Em: Jornal Desacuerdo, No. 3. Junho 1972, grifos meus.
185
Desta posição tratava-se de conseguir: “a incorporação de profissionais do direito no
seio do movimento de massas, pondo suas ferramentas culturais a serviço do povo”
373
.
Encarnando este perfil de intelectual e de advogado, destaca-se a figura de Alfredo Curuchet,
que era conhecido por seus pares nos termos que destacam esta dupla posição como advogado
e como intelectual:
“En dos oportunidades fue preso por haber denunciado el asesinato de Santiago
Pampillón, por haberse lanzado a compartir con los obreros y el pueblo de
Córdoba las barricadas antidictatoriales. Esta vez está encarcelado por haber
puesto su profesión de abogado al servicio de los obreros de Fiat, como asesor del
SITRAC y el SITRAM. En el penal de Rawson comparte su celda con otros
abogados. Martín Federico, asesor del Sindicato de Obras Sanitarias, entre ellos.
Estos son ejemplos prácticos de la actividad de intelectuales revolucionarios
374
.
A participação nestas lutas, o acesso do povo ao poder e a transformação das
estruturas econômico-sociais seria a ferramenta que permitiria o surgimento de um ‘novo
direito’: “... o novo direito que emoldurará as relações socioeconômicas, culturais e políticas
do homem novo, em uma sociedade sem exploradores nem explorados, na qual os advogados
não servirão como instrumento da opressão interna nem da dependência internacional”
375
.
Esta categoria ‘novo direito’ era parte do repertório de noções cunhadas pelos jovens
profissionais do direito, comprometidos com a causa antifascista e com a defesa dos
dirigentes sindicais perseguidos e expulsos do país, examinados no capítulo 1.
A linguagem especializada e as formas próprias do direito são alheias ao mundo
operário. E vice-versa. Como era possível aproximar estes dois mundos? Como era possível
se incorporarem, como intelectuais, às lutas operárias e populares? E como era possível
incorporar os operários e explorados à vanguarda do movimento revolucionário? Para estes
dilemas, os que reivindicam a defesa jurídica e militante da causa anti-ditatorial e a favor da
revolução socialista tinham uma resposta fundada em sua própria competência profissional.
‘Aproximar o direito às pessoas’ era a expressão nativa que se utilizava par dar conta, na
verdade, de um duplo movimento: a aspiração destes jovens intelectuais portadores de um
373
Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1. Número 18, novembro 1971, grifos meus.
374
Jornal Desacuerdo. “Hay 1.200 presos políticos, gremiales y estudiantiles” No. 3. Junho 1972. Grifos meus.
375
Declaración Final da Primeira Reunião Nacional de Advogados ‘Néstor Martins’. 1972. Reproduzida no
Jornal Peronismo y Socialismo. Buenos Aires. Número 1. 1973.
186
título universitário de se aproximarem dos ‘trabalhadores’ e a pretensão de aproximar os
trabalhadores ao direito. Na perspectiva destes advogados, ocupar simultaneamente este duplo
espaço (o direito e a política) permitia que representassem a si mesmos como articuladores
entre dois mundos: um, povoado por intelectuais e outro, habitado por operários.
Uma das vias para produzir a ‘aproximação’ dos advogados ao povo era ‘conviver
com eles e falar sua linguagem’. E isto era possível para aqueles intelectuais que, trabalhando
em grêmios e sindicatos como advogados, mantinham com os operários uma relação de
proximidade, não apenas porque os representavam perante os tribunais, mas porque
participavam do desenvolvimento dos conflitos sindicais, estavam presentes nas ocupação de
fábricas, nas negociações salariais e, inclusive, chegavam a morar nos mesmos bairros
operários com suas famílias, como vimos no caso de Cabrera.
Este trabalho de ‘aproximar o direito às pessoas’ realizava-se através da participação
dos advogados na assessoria aos moradores de bairros pobres e favelas. “O que fazíamos era
tratar de organizar as pessoas, que as pessoas conhecessem seus direitos e que fossem eles que
resolvessem seus conflitos e dissessem aos advogados o que queriam que o advogado faça ou
deixe de fazer, mas tendo em conta sempre que o titular da ação eram eles e nós simplesmente
os procuradores”
376
.
Aproximar as pessoas ao direito era um esforço que supunha, desde abrir serviços de
assessoria jurídica gratuitos, dar cursos de capacitação para dirigentes sindicais na faculdade
de direito até publicar na imprensa notas advertindo o ‘oprimido’ sobre seus direitos segundo
diferentes casos hipotéticos: o que fazer quando se é vítima de um delito (como apresentar
uma denúncia em uma delegacia, frente a um juizado, qual é percurso burocráticos da
denúncia, as vantagens de uma denúncia judicial, para que contar com a assessoria de um
advogado etc.), como fazer para que um estrangeiro possa aderir à legislação trabalhista
vigente, entre outros
377
. Nesta estratégia, que incluía também intervir na própria formação do
estudante de direito com a criação de práticas profissionais em fábricas e favelas, pode
conseguir-se também a abertura de ‘novos’ espaços de atuação profissional para estes jovens
recém chegados à vida profissional.
376
Entrevista com Marta Grande (nome apócrifo), realizada por Laura Saldivia.
377
Ver no anexo 15 na pág. 220, uma reprodução de 1 capítulo deste Manual del Oprimido publicado pela
Revista Militancia Peronista para la Liberación. 1973.
187
2. 6. 1 A qualidade heróica
A imagem pública destes advogados corresponde à do heróico combatente que expõe
sua vida pela causa, que estes profissionais são valorizados não apenas por suas qualidades
técnicas, mas também por outros atributos como a ‘coragem’ e a ‘valentia’ para assumir esse
tipo de defesa. Equiparando-se a um grupo de combatentes, um integrante da Gremial
afirmava então a necessidade de ‘criar constantemente novas equipes de advogados’ para
enfrentar os atentados e assassinatos: “Atrás de cada advogado detido, seqüestrado ou
assassinado haverá centenas de colegas para substituí-lo”
378
.
Esta imagem do advogado heróico explica que nas entrevistas realizadas com os
integrantes da Gremial, invariavelmente, começassem seus relatos expondo as situações de
extremo perigo nas que estiveram envolvidos por causa de seu compromisso profissional e
público. Estes relatos são abundantes em detalhes sobre as ameaças, perseguições, atentados e
diversas situações de extremo perigo pessoal enfrentadas pelos defensores de presos políticos.
Ao se referir à intervenção da Gremial no caso de Trelew, quando foram fuzilados 14
dirigentes de organizações armadas detidos em uma base militar, o entrevistado destaca esta
situação limite para a segurança dos próprios advogados defensores através do seguinte relato:
“... um jornalista [do jornal] La Nación perguntou-nos quando viajávamos [de volta a Buenos
Aires] e nos disse que (...) a informação que eles tinham é que uma vez que os jornalistas
fossem embora, se nós estávamos em Trelew nos matavam”
379
.
Embora estes relatos fosse produzidos no contexto de entrevistas realizadas
atualmente, este tipo de enunciação é verificado nos documentos da época. O então presidente
da Liga Argentina por los Derechos del Hombre definia estes advogados como ‘heróis’ que
“... sacrificam seus trabalhos e inclusive sua liberdade e até sua própria vida”
380
. Esta imagem
corresponde ao que os próprios militantes, seus defendidos, que ao enfrentarem a ‘ditadura’
eram qualificados então como verdadeiros ‘heróis’ ou ‘mártires’. Esta linguagem estava
presente entre os advogados defensores de presos políticos descritos no capítulo 1, assim
como as associações encarregadas de sua denúncia como a LADH, vale a pena destacar que
378
La Asociación Gremial de Abogados y los Presos Políticos” Reportagem ao secretári de imprensa da
Gremial, Hugo Vega, no Jornal Nuevo Hombre. Número 20. 01 a 06 de dezembro de 1971.
379
Entrevista com Mario Landaburu realizada por Vera Carnovale para o Arquivo Archivo Memoria Abierta.
2003.
380
Antonio Sofía. Em: El Liguista. Boletim informativo da LADH. 1971.
188
se trata, neste caso, de outra forma de heroicidade, associada à figura do combatente e
fundada no fato objetivo de um incremento nos riscos, que chegavam ao extremo de colocar
em jogo a própria vida
381
.
Neste trabalho de enunciação que estes advogados realizam sobre seu compromisso
público destaca-se a estruturação de um relato sobre sua vida profissional, construído
justamente sobre o modelo da novela heróica. Os entrevistados relatam situações limites nas
quais sua própria vida é colocada em jogo, como fica evidente no testemunho de um
entrevistado:
“…soy muy hostigado antes del golpe del 76. Primero viene una patota a
secuestrarme... tienen tanta mala suerte que no estoy. Cuando se produce la fuga de
Trelew (…) tuve varias complicaciones (…) las Tres A me ‘revientan’ el estudio…
Yo no estaba…. Mi padre sufrió algunas represalias también por mi actividad, fue
allanado su estudio, fue perseguido un tiempo. [Esta actividad] me costó dos
estudios. Y del último me tuve que ir, no pude ejercer más…”
382
.
Nas publicações periódicas destacam-se, justamente, as condições limites em que
desenvolvem seu trabalho. Os advogados são, eles próprios, detidos e colocados à disposição
do Poder Executivo. Podemos identificar uma condensação de vários destes atributos no caso
de Susana Aguad: “Duas vezes presa e à disposição do Poder Executivo por defender presos
políticos, faz pouco tempo foi vítima de um atentado contra sua residência particular”
383
.
Repetidamente são reproduzidos nas páginas dos jornais retratos deste tipo: “... em oito
escritórios e residências particulares de advogados defensores de presos políticos detonam
artefatos explosivos (...) Todos estes fatos demonstram que a ação dos advogados está se
tornando cada vez mais uma abnegada, sacrificada militância para a defesa concreta de dois
valores: a liberdade e a dignidade do homem”
384
.
A vivência deste tipo de acontecimento ilustra a forma em que, sucessivamente,
coloca-se à prova o valor, a integridade e a fidelidade destes profissionais do direito para com
381
Estes relatos têm, evidentemente, um substrato objeto muito dramático: o desaparecimento de Martins, o
assassinato de Ortega Peña, Silvio Frondizi, Antonio Delleroni, entre outros. Nos relatos dos integrantes da
Gremial, o próprio início e fim da Gremial parecem estar marcados pela mortes destes colegas: o
desaparecimento de Martins, em 1970, e o assassinato de Ortega Peña, em 1974.
382
Entrevista com Jorge Podetti, realizada por mim. Julho de 2002.
383
Em: “Las leyes de la dictadura no impidieron el avance de la lucha”. Jornal Desacuerdo
.
384
Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1, No.3, 1971, grifos meus.
189
a defesa dos militantes detidos. Qualidades que, nestas situações extremas, alcançam uma
dimensão excepcional e que permitem transformar homens ‘comuns’ em heróis, conforme a
detenção de atributos como a ‘dignidade’, a ‘coragem’, a ‘lealdade’, a ‘bondade’ e o
‘compromisso’.
Porque este trabalho de enunciação está centrado em exaltar a figura heróica do
advogado, os acontecimentos narrados pelos entrevistados são selecionados de acordo com
sua intensidade dramática, criando uma aventura perigosa na qual o protagonista vai saindo,
no melhor dos casos, sucessivamente sucedido. A sucessão de aventuras profissionais
associadas à figura deste tipo de profissional constituiu um tipo de inventário das
propriedades sociais esperadas naqueles advogados que integravam estas associações. O
exercício cotidiano da profissão é mencionado tangencialmente, e fica muito difícil
capturar nas entrevistas realizadas atualmente, referências às tarefas profissionais alheias às
defesas comprometidas’. Estes silêncios restituem uma dimensão fundamental da existência
social e profissional destes atores: a de representarem a si mesmos como heróis
385
.
O tempo também é percebido pela dimensão extraordinária ou fantástica de modo que
é possível que muitos acontecimentos possam ser vividos em um lapso muito curto de tempo,
como ocorre tipicamente nos relatos heróicos. A vida cotidiana é descrita como uma vida de
entrega à profissão (e, com isso, à causa). Assim, Rodolfo Ortega Peña, assassinado pela
Triple A em 1974, é rememorado por um de seus colegas nos seguintes termos: “... foi muito
mais que um advogado (...), caracterizou-se por ter sido por inteiro um homem desse tempo
vertiginoso e ter vivido muitas vidas no apertado lapso de 36 anos (...) [uma vida feita de]
longas noites arrebatadas do sono, depois de um dia de audiências judiciais, longos
parlamentos no locutório das prisões ou de assembléias tumultuosas na Gremial de Abogados
ou em um sindicato”
386
. Estas mesmas palavras são utilizadas por seu colega e amigo Eduardo
Luis Duhalde: “... quem o conheceu, sabe bem com que urgência viveu (...) com que
vertiginosidade (...), formado como advogado aos 20 anos, fazendo ao mesmo tempo o curso
de Filosofia e depois Ciências Econômicas (...), obsessivo leitor em castelhano, inglês,
francês, alemão, italiano, português, latim e grego. Urgência em saber, em fazer...”
387
.
385
Esta mesma impressão é a que percebe o próprio jornalista Carlos Gabetta que, ao resenhar sua entrevista
com Solari Yrigoyen assinala exatamente “Fala gravemente, como quem narra as seqüências fundamentais de
um filme, sem se deter nos detalhes”. Em: Gabetta, 1984, Pág. 210. Grifos meus.
386
Rodolfo Matarollo. Palavras em homenagem a Ortega Peña.
387
Palavras de Eduardo Luis Duahalde quando fizeram 20 anos de assassinato de Ortega Peña, 1994.
190
Nesta retórica, o mundo é representado como um espaço de luta e enfrentamento que
coloca desafios extremos a seus protagonistas. A narração destas sucessivas situações limites
é apresentada nas entrevistas como um tipo de juízo sobre o caráter heróico do protagonista.
Nesta gica, os acontecimentos do mundo se transformam em provas sobre a culpabilidade
ou inocência do acusado. Isto fica evidente nas palavras de homenagem em memória do
advogado Arnaldo Murua, defensor de Agustín Tosco e de muitos outros militantes sindicais:
“Advogado, transcendeu o profissionalismo [já que este foi] colocado à prova por múltiplos
sacrifícios, perseguições, renúncias, dissensos, amarguras... Perseguido, clandestinizado
primeiro e exilado depois, pagou um preço alto o compromisso com o ideário redentor (...)
sem diminuir o essencial de sua estela”
388
. A maneira de vincular os atos com acontecimentos
compreende-se a partir da intenção do entrevistado em exercer sua própria defesa, justificação
ou glorificação. É através deste modelo, que a experiência prática devém reconhecível e
legítima. O que este relato enuncia é que, apesar destas situações limites, os advogados não se
distanciam de sua missão. Mais ainda, são estas situações limites as que os validavam e as que
confirmavam o destino ‘heróico’ de seus protagonistas.
Este conjunto de relatos pretende mostrar a maneira em que a vida destes profissionais
do direito se desenvolve por fora do modelo prototípico ou tradicional do advogado. Nas
entrevistas é possível reconhecer o uso de uma retórica que exibe como suas trajetórias
profissionais foram distanciando-se do curso ‘normal’ da vida de um advogado. A descrição
que Juan Carlos Rossi compõe de seu próprio itinerário leva esta qualidade modelar, ao
descrever o extremo contraste entre suas rotinas ‘burocráticas’ como advogado do Estado, sua
dedicação ao ‘sonho esteticista’ que era a literatura, a prática do remo no Tigre, a freqüência
assídua ao Teatro Colón para escutar ópera e as aventuras que deparará em uma viagem
iniciática que realiza pela América Latina, viagem que o conduziu justamente ao
‘descobrimento do sentido da profissão’:
“...yo era docente auxiliar en alguna cátedra de la facultad de derecho (...) había
comenzado un doctorado en derecho administrativo (...) porque era abogado del
Estado y me pareció que lo que nos enseñaban en la facultad no nos preparaba [lo
suficiente] (...) yo no militaba en absoluto (...) mis intereses estaban más bien en la
388
Palavras do advogado Lucio Garzón Maceda. “Blues del Negro Murua. En memoria de Arnaldo ‘el negro’
Murua que se reencontró con Agustín Tosco” 23. 02.2003. Documento na página Web:
http//archives.econ.utah.edu/archives/reconquista-popular/2003.
191
literatura (...) y en el derecho secundariamente (...) Publico literatura con mi
apellido materno. Pero en algún momento dado entré en crisis. Entonces resolví
dejar lo que estaba haciendo (...) y salí por el continente, fui desde Argentina hasta
México pasando por Bolivia, Perú, Colombia, Ecuador (...)” (nome apócrifo,
Entrevista Laura Saldivar).
“... yo era un joven profesional entonces que tenía un citroen, dos caballos, que no
tenía problema para pagar el alquiler, que ya había tenido varias parejas y entonces
resuelvo renunciar a mi cargo del Ministerio de Justicia y Educación y me largo a
recorrer Latinoamérica durante dos años. Fue un viaje de aventuras, un viaje
iniciático (...)
En las ferias de enero me iba todo el mes a algún lado. En el 69 voy a Bolivia y me
instalo en Catavi y Siglo XXI que eran las minas de estaño (...) Allí vivo 15 días
con los mineros, voy todos los días a las minas, trato de hacer algunos trabajos de
minería y bueno... ahí empiezan a pasar cosas (...) Ahí completo mi formación. (...).
Por razones personales vuelvo a la Argentina en 1971 y, de inmediato, dos amigos
que habían sido compañeros del Nacional Buenos Aires me proponen tomar
defensas del PRT. Y ahí yo acepto e ingreso a un equipo de abogados donde estaba
Vicente Zito Lema y Alberto Cavilla. Al poco tiempo me proponen no sólo ser
abogado del PRT sino participar en una fuga en que se va a fugar Santucho de la
cárcel (...) Entonces salí de ese mundo de las ideas platónicas y descubro la
utilidad que tenía ser abogado y haber estudiado esa carrera árida (...) que me
había permitido ser un burócrata durante casi 10 años y que me permitía ahora
dedicarme a lo que me interesaba. De repente descubría que existían los ingenios
azucareros en Tucumán (...) y que no tenía que ir hasta México y Bolivia para
encontrar desposeídos (...) Entonces asumo de lleno el militantismo como abogado
vinculado orgánicamente al PRT que se definía como la dirección política del
ERP. Al mismo tiempo me vinculo a otros abogados de la Asociación Gremial de
Abogados de Buenos Aires...”
389
O relato que Rossi faz de sua própria trajetória é particularmente interessante na
medida em que este, a diferencia da maioria de seus pares, apresenta-se como não havendo
tido uma militância estudantil anterior à sua atuação como defensor. Seu itinerário mostra
389
Entrevista com Juan Carlos Rossi (nome apócrifo) para o arquivo de Memoria Abierta. Grifos meus.
192
todas as transformações ocorridas desde o ‘exercer a profissão’ até ‘militar’ na Gremial. Neste
relato, cujo início parece prefigurar a trajetória de um advogado exclusivamente interessado
na profissão do ponto de vista técnico, revela-se o movimento, a transformação que aconteceu
no entrevistado e que resulta no abandono total de sua posição de ‘burocrata’ para se
converter em um advogado ‘militante’ dentro de uma organização política e dentro de uma
associação dedicada à defesa de presos políticos. Como veremos no capítulo 3, Rossi é hoje
um reconhecido ‘especialista’ internacional em direitos humanos e ocupa um dos cargos mais
altos na Secretaria de Direitos Humanos da Nação.
A transformação ocorrida entre os anos 60 e 70 aparece mediada por uma crise pessoal
a partir da qual a viagem pela América Latina opera como um tipo de ritual de iniciação
através do qual se produz a passagem entre um mundo (o sonho esteticista, as idéias
platônicas) e o outro regida pelo perigo e a intensidade dos compromissos públicos e
profissionais. Curiosamente, são seus companheiros da escola secundária que atuam como
guias nas etapas finais desta conversão. Este relato de iniciação situa o jovem formado,
desprovido de capitais sociais, familiares e econômicos significativos, dentro de uma
‘fraternidade viril’ que exalta a disposição ao perigo, ao risco, à aventura. Tal como sugere o
próprio Rossi, ao assumir a defesa dos presos políticos, a ‘aventurapodia ser vivida dentro
das fronteiras do próprio país. Seu relato ilustra sua incorporação a este tipo de ‘aristocracia
do risco’ formada pelos advogados defensores de presos políticos
390
.
A caracterização do mundo como um ‘estado de emergência’ explica também os
paralelismo traçados pelos entrevistados entre o exercício da profissão jurídica e médica.
Independentemente do valor que a organização político-militar sustentasse sobre a
intervenção do advogado e o fato de exercer sua defesa judicial, do ponto de vista dos
advogados defensores, sua intervenção é reivindicada em todos os casos como um ato crucial
na hora de salvar a vida do detido que, graças a esta, era possível em muitos casos deter a
tortura. Como assinala um entrevistado, a Gremial podia ser equiparada com a ‘Cruz
Vermelha’ e com um acionar tipicamente definido pela situação de emergência. A intervenção
do advogado está marcada, então, por uma situação que se define como limite. Semelhante ao
390
A expressão ‘aristocracia do risco’ foi tirada do trabalho de Johanna Siméant sobre a vocação humanitária dos
profissionais da medicina integrantes de Médicos sem Fronteiras. Siméant. 2001.
193
que ocorre em uma emergência médica, nas mãos destes profissionais do direito está o mais
valioso que um ser humano pode preservar: a própria vida
391
.
Trata-se, então, de trajetórias profissionais excepcionais que ilustram as qualidades,
igualmente excepcionais, de seus protagonistas situados por sua vez em um mundo
caracterizado pela excepcionalidade dos acontecimentos. As palavras de homenagem a
Arnaldo Murua, definido como ‘um grande dos tempos difíceis’, iniciam-se com a seguinte
epígrafe de Maquiavel: “O verdadeiro mérito busca-se nos tempos difíceis, porque nos fáceis
não são os homens meritórios os favorecidos, mas os ricos ou os melhores aparentados”
392
.
Da perspectiva destes advogados, uma vez que se coloca em jogo o compromisso na defesa de
presos políticos, simultaneamente produz-se toda uma transformação na vida pessoal. Como o
próprio Rossi dirá em outro momento da entrevista: “...a gente entrava em mundo, por um
lado, de perigo e de decisões que se compreendia rapidamente que tinham um caráter (...)
irrevogável...”
393
.
Como vimos anteriormente, através de sua atuação profissional na defesa de presos
políticos, os advogados podiam fazer uso de um ‘terrível poder’: o de subverter a pretendida
legitimidade do Estado. As palavras em homenagem a Néstor Martins pronunciadas após um
ano de seu desaparecimento explicitam bem tanto as qualidades reconhecidas como legítimas
dentro deste universo de profissionais do direito como a maneira com que, do ponto de visto
destes advogados, a política era exercida através do direito: “O desaparecimento de Néstor
Martins dignificou a profissão de advogado (...) na medida em que exercer a defesa de presos
políticos e sindicais foi interpretada como um desafio aberto ao sistema, como um ato de
militância (...). A profissão de advogado, tradicionalmente a serviço da consolidação do
sistema, converte-se em ‘subversiva’ e seu exercício torna-se perigoso”
394
.
391
Do ponto de vista do detido, a apresentação de um advogado defensor nos lugares de detenção era também
imperiosa, pois significava a possibilidade de colocar fim ao drama pessoal da tortura, como fica evidente em
inúmeros testemunhos divulgados pelo Fórum. Na transcrição do relato de um defendido n o juizado, reproduz-
se o seguinte relato testemunhal: “... quando chegaram os advogados começo a se sentir alívio, pois eles
pediram uma revista médica (...) um médico da Polícia Federal pôde comprovar as diversas torturas” (Foro, pág.
156).
392
Em: Garzón Maceda. 2003 (op.cit.). Grifos meus.
393
Entrevista com Juan Carlos Rossi realizada por Laura Saldivia.
394
Rodolfo Ortega Peña e Eduardo Luis Duhalde. “Néstor Martins y el Ejercicio de la Abogacía”. Em: Jornal
Nuevo Hombre
. Ano 1. No. 22. 15 a 21 de dezembro de 1971.
194
Entre as características selecionadas pelos entrevistados para compor o perfil do
advogado heróico com o qual se identificam destaca-se o sacrifício econômico de seus
honorários profissionais e a realização de defesas gratuitas. Na resenha das atividades
desenvolvidas pela Agrupação de Abogados de Córdoba, Curuchet enfatiza o fato de que
“Todas estas tarefas foram cumpridas de forma absolutamente gratuita...”. A ação em defesa
dos presos políticos devia ser desinteressada, visto que: “O compromisso com as massas
[exige] a renúncia e o despojamento”
395
. No ideal do advogado comprometido, a renúncia à
cobrança de honorários é um ingrediente crítico na configuração de suas qualidades. Esta
mesma qualidade havia sido identificada dentro do universo de advogados que fundaram a
LADH nos anos 30. ‘A renúncia’ e ‘o despojamento’, ao serem transformados em princípios
éticos, permitiam expor as qualidades dos que integravam associações de defesa de presos
políticos, permitindo sua integração a uma mesma comunidade moral onde se reconhecem e
são reconhecidos, justamente, por esta qualidade do desinteresse.
Em seus relatos, os entrevistados destacam as ações empreendidas em detrimento do
próprio interesse profissional e econômico, ao ter que deixar de atender os casos
acompanhados nos escritórios privados em função do compromisso assumido. Os riscos aos
quais os advogados defensores se expunham e a renúncia ao interesses próprio em benefício
do compromisso moral ficam claramente revelados no testemunho de Solari Yrigoyen: “... eu
perdi, por exemplo, meu trabalho no Banco Província de Buenos Aires, onde fui advogado
durante dez anos. Era meu meio de vida já que, evidentemente, não cobrava um centavo na
defesa de presos sindicais e políticos. Considerava que era meu dever de advogado para com a
sociedade”
396
. Como vemos, neste universo de ação, estes advogados tendem a fazer do
‘desinteresse’ uma característica associada a sua prática profissional e militante.
2. 7 “O mais alto militante era o guerrilheiro”
Como assinalamos ao iniciar este capítulo, as defesas podiam incluir “... desde uma
namorada que tinha sido detida porque algum rapaz tinha alguma causa desagradável, até
quem realmente tinha um compromisso militante, passando por aqueles que eram contrários à
395
Em: Jornal Desacuerdo, 1972.
396
Entrevista com Solari Yrigoyen em: Gabbeta, Carlos (1983), pág. 225.
195
luta armada, mas que também caiam presos...”
397
. No entanto, o surgimento de organizações
armadas dentro do peronismo e da esquerda fizeram de seus militantes os principais sujeitos
das defesas destes advogados. Eram estas defesas, assumidas pelos advogados de maior
prestígio, que confirmavam as qualidades excepcionais dos advogados: a coragem, o
sacrifício, a entrega à causa.
As organizações armadas da esquerda não tinham uma visão necessariamente positiva
sobre o trabalho do defensor de presos políticos. Na estrutura hierárquica da militância, os
advogados ocupavam lugares de pouco prestígio. Esta escala aprece claramente expressada no
testemunho de um militante: “O mais alto militante era o guerrilheiro (...), sabia-se que o
companheiro mais forte, mais decidido era o que ia para o combate”
398
. Esta desigualdade está
expressa graficamente no relato de Mattarollo, integrante da equipe de advogados do PRT:
“Se eu tivesse que dizer, de uma maneira um pouco rápida e caricatural [o lugar do advogado
nas organizações da esquerda revolucionária], não era muito distinto do papel que se dava aos
que sabiam escrever a máquina quando entravas na colimba argentina (risos). É
provavelmente um exagero, mas nunca tivemos um papel muito determinante”
399
.
Este papel secundário compreende-se em termos do universo de representações que
organizavam as práticas das organizações político-militares da esquerda, particularmente, suas
concepções sobre o Estado e a justiça. Em relação aos responsáveis da repressão,
organizações como Montoneros ou o Ejército Revolucionario del Pueblo propiciavam sua
execução e a realização de juízos sumários integrados por um tribunal formado pelos próprios
quadros militantes. É justamente um ato de julgamento ‘popular’ o que marca o nascimento
público da organização político-militar Montoneros que, no primeiro aniversário do
Cordobazo, no dia 29 de maio de 1970, executou o ex-presidente de fato Pedro Eugenio
397
Em: Entrevista com Raúl Piedrabuena (nome apócrifo), realizada por L. Saldivia.
398
Entrevista com ‘Eduardo’, militante do Ejército Revolucionario del Pueblo, realizada por Vera Camovale para
o Arquivo Memoria Abierta. Em: Camovale, 2006. Um trabalho de referência iniludível para compreender a
visão da polícia sustentada por esta militância é o livro de Hugo Vezzetti. Ao explorar a combinação ‘letal’ entre
ideais absolutos e meios violentos, o autor situa aqui uma das condições da derrubada do Estado de direito a
partir de meados dos anos setenta. Vezzetti, 2002. Interessa destacar aqui o contraste entre o que esta militância
consagrava ‘o poder redencionista da violência’ com a complexa posição dos advogados defensores de presos
políticos examinados nestes capítulo que, ao mesmo tempo que se identificavam com a causa da revolução e de
seus defendidos, reivindicavam a vigência do Estado de direito.
399
Em: Entrevista com Mattarollo realizada para o arquivo oral de Memoria Abierta. ‘Colimba’ é uma ‘gíria’
que se utiliza para designar o jovem que entra nas forças armadas para cumprir o serviço militar obrigatório. Sem
aspirar seguir a carreira militar e recém incorporado à mesma, ocupa o mais baixo escalão na hierarquia da força.
Entre estes ‘colimbas’ destacavam quem, por ser oriundo de setores médios, dispunham de um capital cultural
que lhes permitia cumprir tarefas relativamente mais prestigiosas como trabalhar de secretário ou auxiliar dos
militares hierarquicamente superiores.
196
Aramburu que, em 1955, tinha destituído o general Juan Perón. Expressões como a detalhada
a seguir falam da legitimidade que tinha para estas organizações uma justiça não
monopolizada pelo Estado: “Estes assassinos covardes (...), não vamos perdoá-los nunca. A
justiça do povo, a justiça revolucionária se encarregade pedir contas aos responsáveis de
tais crimes e não haverá piedade possível”
400
. A consigna: “o sangue derramado não será
jamais negociado” ou a promessa de vingança assinalam com clareza a concepção de uma
‘justiça pelas próprias mãos’ alternativa aos tribunais e aos instrumentos legais disponíveis,
como se explicita nesta afirmação: “A organização Montoneros (...) fará todo o possível para
que cedo ou tarde este crime seja pago” e que os ‘torturadores’, ‘gorilas’ e ‘traidores’ sejam
‘justiçados’ pelas torturas, assassinatos e fuzilamentos de militantes.” Em declarações
formuladas depois de sua libertação após 190 dias de cativeiro, o coronel Crespo descrevia o
procedimento nestes julgamentos:
“Crespo: Me hicieron un juicio para que yo pudiera defenderme de acuerdo con las
leyes para prisioneros de guerra de Ginebra. Y yo lo hice. Lo hice por escrito y lo
firmé.
Periodista: ¿De qué lo acusaban?
Crespo: De haber hecho cursos especiales en los EEUU y Panamá. Por supuesto yo
demostré que el hecho era falso
401
.
Diante da ‘repressão’, detenção e tortura de seus militantes, a direção das organizações
armadas sustentava ‘o desconhecimento absoluta da justiça do regime’ e a necessidade de
desenvolver vias alternativas ao direito, possibilitando o ‘resgate’ de seus militantes presos ou
promovendo sua ‘fuga’ das prisões através de operações do tipo comando. Assim expressam
alguns de seus dirigentes em um comunicado: “Diante da falta total de garantias, de burlarem
constantemente as leis e das manobras dilatórias dos juízes atuantes, ao ser requerida nossa
absolvição pelo Fiscal de Câmara e adiar nossa liberdade, é que a obtivemos por nossos meios
e determinação”
402
. Na reprodução de uma nota publicada no jornal El Combatiente, ‘órgão’
do PRT, define-se um episódio de fuga de presos políticos como um ‘... combate mais dos
soldados do povo contra os soldados dos exploradores, que permitiu ‘liberar’ das mãos da
400
Documento das Unidades Básicas Armadas do Movimiento Peronista de 11.71 reproduzido em El
Descamisado. 1971.
401
Em: Revista Gente. 23.05.1974. Entre as figuras ‘justiçadas’ pelas organizações político-militares da esquerda
encontravam-se vários dos juizes que integraram a própria mara Federal no Penal fórum anti-subversivo e o
próprio Ministro de Justicia Perriaux que criou a reforma do Código Penal e o ‘Camarón’.
402
Comunicado de ex-presos políticos da Prisão Las Heras, reproduzido em Nuevo Hombre. Ano 1. Número 18.
Novembro 1971.
197
ditadura doze combatentes, demonstrando nesta ação (...) o amor pelo povo oprimido, a
convicção de que nesta luta se triunfa ou morre e a irrenunciável de que a justa causa do
povo vencerá...”
403
.
Se as consignas relativas a uma idéia de ‘justiça revolucionaria’ empunhadas pelas
organizações armadas expressam os ideais a serem seguidos na luta pela causa da revolução
popular, é certo que, por diferentes razões, as organizações políticas de então,
fundamentalmente armadas e que atuavam na clandestinidade, necessitavam contar com a
intervenção de advogados defensores que levassem adiante a defesa das causas de seus
militantes pela via judicial e pelo sistema de justiça imperante.
Do ponto de vista destas organizações, se a função específica do advogado consistia
em ‘advogar’ por seus defendidos perante um tribunal, o compromisso assumido na defesa
dos prisioneiros políticos supunha o exercício de outras funções de extrema importância. Por
questões relativas a seus foros profissionais, o advogado era o único que podia ter contato
com o detido, de maneira que se transformava na única ligação possível entre este e sua
organização. Os advogados podiam ser vistos pelas organizações como fontes de informação
relacionadas com o comportamento do militante durante a detenção, especialmente durante a
tortura.
Para as organizações na clandestinidade, era particularmente importante manter o
segredo a respeito de suas ações, integrantes e recursos. Os testemunhos reproduzidos pelo
Foro expõem justamente o comportamento esperado do militante que não fala na tortura e
está disposto a entregar sua vida pela causa, um comportamento exemplar que: “... só pode ser
sobrelevado por alguém que assuma sua condição de militante... diante de quem busca
quebrá-lo física e moralmente” (Foro, 144). A importância designada a esta forma modelar de
comportamento aparece exaltada uma e outra vez nos testemunhos reproduzidos pelo Foro
como fica evidente nestes exemplos: “Embora seja uma experiência difícil, se está convencido
de que lutas por teu povo peronistas, agüentarás até a morte” ou “Aprendi que um cara nas
mãos do policial pode-se defender (...) que é possível enganar o inimigo, brigar com ele,
combatê-lo inclusive em sua mesa de tortura. Descobri que calando tinha tudo por ganhar e se
falava perdia tudo” (Foro, 145). Diante de tamanha exigência de compromisso com a causa, o
403
Em: Nuevo Hombre. Ano 1. Número 22. Dezembro 1971. Grifos meus.
198
advogado aparecia como a figura que, tendo contato com o militante detido e torturado, podia
prestar testemunho do grau de acatamento à disciplina imposta pelas organizações.
Devido à possibilidade deste contato, se a organização armada à qual pertencia o
detido tinha decidido proceder ao ‘resgate’ do preso, o advogado transformava-se em uma
peça chave na transmissão de informação sobre os detalhes da operação militar. Neste sentido,
os advogados podiam ser considerados como recursos críticos de informação dada a
clandestinidade em que funcionava esta militância e as condições de detenção de seus quadros
políticos. Através do advogado, podia circular informação relativa a futuras operações
armadas, de fuga, novos contatos, ações etc.
A porosidade das fronteiras entre estas formas de militância fica evidente, de forma
dramática, na seguinte história relatada por Jorge Podetti: em uma ocasião, um advogado
defensor de presos políticos, fazendo uso do privilégio profissional de manter contato pessoal
com o detido, entrou em um presídio com o intuito aparente de visitar seu cliente. Mas a visita
profissional foi, na verdade, uma desculpa para pegar a arma do carcereiro, torná-lo refém e
libertar o militante
404
. Na posição oposta à deste profissional, Mario Landaburu, integrante da
Gremial, relata a ocasião em que recusou uma defesa: “Um dia recusei a defesa de alguém
que havia matado um monte de celadores [pessoal que trabalha na prisão]. Pediu-me pelo
expediente [que assumisse a causa] e disse-lhe: mas está cheio de sangue! Sim, mas são de
celadores... E lhe respondi: sim, mas são seres humanos, você é um filho da puta”
405
. O
resgate do preso, a avaliação negativa de Podetti a respeito de uma intervenção que segue a
lógica das organizações armadas, no lugar da gica profissional, e a recusa de um processo
por parte de Landaburu, evidenciam a existência de formas diferentes de se situar em relação
às organização político-militares da esquerda e de perceber a relação entre direito e política.
Esta proximidade entre o advogado e seus clientes podia conduzir a uma opção pela
política com total abandona da profissão. Entre os advogados defensores, alguns entraram
para os próprios quadros das organizações armadas da esquerda revolucionária. Esta
porosidade foi observada também, evidentemente, pelos que levavam adiante a repressão
sobre os próprios advogados, como testemunha a extensa lista de advogados detidos,
seqüestrados, assassinados ou desaparecidos.
404
Entrevista com Jorge Podetti (nome apócrifo), realizada por mim. 2002.
405
Entrevista com Landaburu realizada para o arquivo oral de Memoria Abierta.
199
2. 8 “Advogados do caos e da delinqüência”
Depois do assassinato do dirigente sindical Augusto T. Vandor, o Subsecretário do
Ministério do Interior da Nação, Dario Sarachaga manifestou publicamente a respeito da
detenção de mais de quarenta advogados na prisão de Villa Devoto: “não pudemos comprovar
se são inocentes, ao que parece, tem assessorado à subversão”
406
. Em relação aos advogados
detidos à disposição do Poder Executivo Nacional ou assassinados, o Ministério da Justiça
expressou, no início de 1975, que: “... os advogados que defendem presos políticos têm uma
ativa militância política e é por causa dessa militância que alguns deles foram mortos e outros
estão presos (...), muitos recebem verdadeiras fortunas das organizações guerrilheiras...”
407
.
A qualificação negativa de que eram objeto ficou dramaticamente evidente por ocasião
de uma campanha de cartazes públicos que, em outubro de 1971, cobriu os arredores do
Palacio de Tribunales da Cidade de Buenos Aires. Estes cartazes reproduziam o rosto de sete
advogados defensores de presos políticos, que eram qualificados como ‘advogados de
delinqüentes’ e ‘advogados do caos e da violência’. As imagens do cartaz podem ser
identificadas, claramente, com imagens de condenados públicos e o próprio cartaz com uma
sentença, mais que com uma denúncia, como pode ser visto na foto que o reproduz e que é
utilizada como capa do número 11 do jornal Nuevo Hombre de setembro de 1971
408
.
Em 1974, depois do assassinato do Ministro da Justiça que criara o chamado
‘Camarón’ foram distribuídos nos arredores de Tribunales dois panfletos difamatórios que
diziam o seguinte:
“Los abogados del caos y la delincuencia: son pocos pero existen. Son siempre los
mismos. Sus nombres siempre aparecen en la prensa. Son los defensores
permanentes de la delincuencia organizada.
Cuando un extremista mata a un modesto servidor de la ley, cuando un delincuente
cae en manos de la justicia, cuando un terrorista es detenido y sometido a juicio,
ellos aparecen para asumir la defensa.
406
Revista Primera Plana. 22.07.1969. Reproduzida em M. Chama. Op.cit.
407
Em: Relatório Fragoso. “La situación de los abogados defensores…” op.cit. 1975.
408
Ver no Anexo 16, pág. 221 a reprodução destes cartazes. Em: Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. Numero 11.
Setembro de 1971.
200
Sus oficinas se han convertido en escenario para conferencias de prensa, agitan a la
acción política y tratan de elevar su voz de protesta lo más alto posible: ellos
calumnian, perjuran, acusan.
La delincuencia y el extremismo les pagan generosamente y mantienen sus
oficinas. Por esta causa, personas inocentes son asesinadas y millones de pesos son
robados todos los días.
Ellos son los abogados del caos y la delincuencia, que se callan cuando ellos
mismos violan la ley, cuando un sirviente de la ley, el protector de la sociedad a la
cual todos pertenecemos, es asesinado” Firmado: M.R.N. Movimiento de
Recuperación Nacional.
409
O outro panfleto tinha, definitivamente, um tom irônico:
“Invitación especial: La Gremial de Abogados tienen el placer de invitar a aquellos
miembros de las organizaciones terroristas y criminales que todavía no lo han
hecho, a visitar nuestras oficinas centrales, Suipacha 612, “B”, donde serán
convenientemente instruidos, en vista de los modestos honorarios que hemos
establecido como contribución al abaratamiento de la VIOLENCIA-ASESINATO-
SECUESTRO-ROBO y toda otra suerte de crímenes contra la POBLACION
ARGENTINA.
Para los criminales políticos y para aquellos que DEFIENDEN EL ASESINATO
EN GRAN ESCALA de SERVIDORES DE LA LEY, existe un descuento
especial.
Señores DELINCUENTES: confíen en nuestra gran experiencia en el
asesoramiento y defensa de los miembros más conspicuos del ERP-FAL-
MONTONEROS y MAFIOSOS.
409
Panfleto reproduzido em inglês no relatório da Comissão Internacional de Juristas. “Attacks on the
independence of judges and lawyers in Argentina”. Bulletin of the Centre for the Independence of Judges and
Lawyers. Vol. 1. No. 1. Fevereiro 1978. Tradução minha. O Movimiento de Recuperación Nacional surgiu em
1956 e estava integrado principalmente por militares. Naqueles anos, opuseram-se à derrubado do governo
constitucional do General Perón e realizaram uma tentativa de sublevação que foi reprimida com o fuzilamento
de suas figuras principais.
201
Los esperamos como siempre con afecto: Dr. Eduardo Luis Duhalde, Dr. Silvio
Frondizi, Dr. Rodolfo Ortega Peña, Dr. Mario A. Hernández, Dr. Raúl Aragón, Dr.
Gustavo Roca, Dr. R. Sinigaglia, Dr. Cavilla Fernandez, Dra. Susana Delgado”
Firma Comando “Puma”
410
.
Advertidos do lugar de desqualificação por parte do Estado, estes advogados
respondiam às acusações: “conforme o critério da ditadura militar, o exercício da profissão de
advogado é lícito quando refere-se à defesa dos monopólios ou dos torturadores,
seqüestradores ou assassinos institucionalizados, mas não quando a assistência jurídica é
prestada à serviço da classe operária e do povo”
411
.
O que o cartaz e os panfletos mostram com clareza é a percepção que se tinha do
trabalho destes profissionais do direito comprometidos com a defesa dos militantes e
dirigentes sindicais e políticos: nas esferas próximas ao governo, foram percebidos como
inimigos e como uma ameaça. De fato, a ameaça anunciada nestes cartazes e panfletos se
concretizou ao longo dos anos, que dos sete acusados, um deles sobreviveu. Os demais
estão desaparecidos ou foram assassinados entre 1974 e início dos anos 80. No próximo
capítulo desenvolverei as implicações desta conjunção entre a condição de vítima e de
especialista na profissionalização dos direitos humanos na Argentina.
2. 9 “A Luta pelo Direito”
Os profissionais do direito descritos neste capítulo, ao mesmo tempo que assumiram a
defesa da causa coletiva pelo socialismo e a revolução, definiram seu compromisso público
como parte de um ativismo jurídico. Estes advogados, que se percebiam como combatentes de
uma causa, estavam dispostos a empunhar efetivamente as armas: ‘as armas do direito’. O
próprio serviço jurídico da LADH exaltava este aspecto bélico do exercício da profissão,
destacando a importância de “... fazer de cada processo uma trincheira de luta para impor o
410
Ibidem. Não tenho dados até o momento sobre este comando puma. Puma é um tipo de avião pilotado pelos
membros das Forças Aéreas na Argentina e no Chile.
411
Em: Nuevo Hombre, Ano 1, No. 16, nov. 1971.
202
direito e a justiça”
412
. Um entrevistado utilizava esta linguagem para se referir à criação da
Gremial: “... a finalidade era uma frente comum contra a ditadura, pegá-la da nossa
trincheira...”
413
. Na defesa deste compromisso com os presos políticos, estes profissionais do
direito percebiam a si mesmos no centro de um combate: ‘a luta pelo direito’
414
.
Enunciada nestes termos, ‘a luta pelo direito’ supunha separar a defesa de presos
políticos da adesão a uma posição ideológica ou partidária, sustentando que o que estava em
jogo era o Estado de direito. O ‘direito à legítima defesa’ era uma garantia constitucional
dentro deste marco jurídico ideal. E era este marco que definia o lugar do especialista: “Nós
estamos exercendo um ministério reconhecido por nossa própria constituição; a defesa de
presos políticos”
415
, “... os militares que nos governavam pretendiam assimilar o advogado
defensor com o acusado, o que implica desconhecer a própria natureza da missão do
advogado”
416
. Nestes mesmos termos ctor Sandler proclamava: “Se os advogados e os
políticos têm alguma missão é que o povo argentino tome consciência da necessidade de
implantar o Estado de direito, onde a liberdade, a vida e a dignidade humana sejam a base da
sociedade
417
.
A retórica vinculada aos direitos humanos era uma das formas de expressar seu
compromisso público com a causa de seus clientes, especialmente ao impugnar o Estado
autoritário. Para Solari Yrigoyen, muitos advogados argentinos (...) acreditavam não apenas
nas leis (...) mas, fundamentalmente, no respeito à pessoa humana, nos direitos fundamentais
do homem...”
418
, “... os direitos humanos são sagrados e inalienáveis e nenhuma comunidade
pode se autojustificar se os coloca em risco’
419
. Perante a detenção de vários dos principais
dirigentes de associações armadas, após a tentativa de fuga da penitenciária Rawson, os
412
El Linguista. Boletim informativo da LADH. 1971. Grifos meus. O livro editado pela LADH de Viaggio
Macartismo versus Democracia. Buenos Aires, 1970 era apresentado como “... uma formidável arma contra as
iniqüidades da lei para defender as vítimas desse corpo repressivo”. Op. cit. pag. 5.
413
Entrevista com Gerardo Taraturo, realizada por Mauricio Chama. 12.12.1998. Reproduzida em Chama. Op.
cit.
414
Expressão utilizada pelo advogado Hipólito Solari Yrigoyen. Em: Gabbeta, Carlos (1983), parafraseando o
título do livro de Rudulf Von Iething, jurista alemão que em 1872 publicou La lucha por el derecho. Neste
trabalho, Von Ierthing define o direito como aquilo que garante a paz social e, ao mesmo tempo, luta contra as
injustiças. Para este autor, ‘primeiro é a luta e depois o direito’. Tudo no mundo do direito teve que ser adquirido
através da luta. A luta não é uma condição objetiva na criação do direito, mas também tem uma dimensão
moral que compromete o indivíduo à ação. É esta expressão de Solari Yrigoyen, “A luta pelo direito” a que
nome a esta tese.
415
Entrevista com Rafael Lombardi e César Calcagno em Nuevo Hombre. Ano 1. Número 12. 1971.
416
Entrevista com Hipólito Solari Yrigoyen, realizada por Gabbeta. Em: Gabbeta (1983), pág. 228.
417
Em: Nuevo Hombre, Ano 1, No. 3: 1971, grifos meus.
418
Op.cit. (pág. 227).
419
Em: Foro, 1973.
203
integrantes da Gremial enviaram um telegrama ao Ministro do Interior, Arturo Mon Roig,
reivindicando sua intervenção nestes termos: “Reivindicamos direitos humanos presos
políticos unidade carcerária Rawson responsabilizando por sua integridade física...”
420
.
Ao interpelar o Estado, os defendidos são qualificados em termos neutros e sem fazer
referência à sua identidade política ou partidária. Quando, efetivamente, faz-se referência à
identidade política do defendido destaca-se, justamente, a independência do advogado em
relação à política partidária, isto é, à possibilidade de representar um interesse particular.
Assim, Solari Yrigoyen ressalta:
Defendí a muchos presos sindicales y políticos. (…) representantes de diversas
tendencias políticas (…) radicales, socialistas, peronistas, etc. (…) Jamás pregunté
a un preso político cuál era su pensamiento o su divisa partidaria. Si alguno de mis
defendidos derivó luego hacia la actividad guerrillera, pienso que se equivocó
gravemente. Pero en aquél momento, todos eran para conciudadanos
perseguidos por un régimen injusto y arbitrario… ”
421
.
Este tipo de definição ganha sentido na medida em que permite mostrar que no
cumprimento de sua ‘missão’, estes profissionais do direito se situavam acima dos interesses
partidários. Transcendem as diferenças ideológicas ao colocar a ênfase em instâncias
superiores como ‘a democracia’ ou ‘a justiça social’: “Tosco e eu pensávamos igual? Não.
Divergíamos em muitas coisas. Ele era um marxista independente, eu um radical não
marxista. Coincidíamos globalmente na luta pela democracia, contra o imperalismo e por uma
maior justiça social”
422
. O compromisso do advogado é apresentado como um compromisso
‘universal’ relativo à defesa da constituição e da liberdade.
Ao se referir ao caso do seqüestro e desaparecimento de Luis Pujals, dirigente de
Montoneros, seus advogados defensores afirmavam em uma entrevista:
420
Em: Jornal La Opinión. 18.8.1972. O fuzilamento dos detidos é o episódio conhecido dentro desta militância
como ‘Masacre de Trelew’, os advogados da Gremial.
421
Entrevista com Solari Yrigoyen. Em: Gabbeta, Carlos (1983), pág. 228. Nos testemunhos das organizações
de direitos humanos dos anos 80, especialmente daquelas integradas por parentes de desaparecidos, encontra-se
o mesmo tipo de retórica.
422
Solari Yrigoyen, Em: Gabetta, op.cit. pág. 226.
204
“NH: ¿A qué se debe que diversos abogados de prestigio político en el orden nacional
y que representan corrientes políticas e ideológicas muy diferentes (como Emma Illia,
Soler, Héctor Sandler, Ventura Mayoral, Rafael Lombardi y César Calcagno) se hayan
unido en el patrocinio la señora de Pujals?
Abogados: los colegas mencionados se caracterizan por una clara conducta en defensa
de los derechos de la dignidad humana y esto por encima de las diferencias políticas e
ideológicas entre ellos (...) Lanusse está logrando el tal mentado acuerdo nacional,
pero en su contra, ante estos brutales atropellos de los derechos humanos
423
.
A defesa dos direitos humanos era reivindicada publicamente. Héctor Sandler, ao ser
interrogado sobre sua condição de advogado defensor, respondeu:
“... aún si (nombre del imputado) fuera un terrorista, de igual modo hubiese
asumido su defensa (...) Sepa, señor periodista, que los hombres que luchamos por
la efectiva libertad y la vigencia del real Estado de derecho, debemos estar
dispuestos a defender los derechos humanos de cualquier hombre, así sea un
delincuente. Porque la categoría de delincuente surge de la ley positiva, siempre
mutable, mientras que los derechos humanos surgen de la misma condición
humana. De manera que ninguna contradicción existe entre mi actividad política,
públicamente conocida y la de defensa asumida en este caso (...) Los derechos
humanos como enseña Alfredo Orgaz hay que defenderlos en los adversarios,
en los enemigos, especialmente en los adversarios que quizá no consideren válidos
los derechos humanos. Si no, ¿en qué nos diferenciaríamos los hombres libres de
los déspotas?”
424
.
Sandler refere-se ao livro publicado por Alfredo Orgaz, Reflexiones sobre los Derechos
Humanos. Orgaz (1900-1984) era doutor em jurisprudência, professor da universidade
nacional de Córdoba. Foi senador da província e candidato à presidência pelo Partido
Socialista em 1937 e entre 1955 e 1960 foi juiz e presidente da Corte Suprema de Justiça. Ao
questionar a legislação sobre terrorismo (detenções à disposição do PEN, incomunicações,
substituição de tribunais civis por militares etc.), Orgaz afirmava em seu livro:
“Espero que nadie pensará que estoy defendiendo a los terroristas. No, estoy
defendiendo los derechos humanos que pertenecen también a los terroristas, como
423
Em: Jornal Nuevo Hombre, Ano 1. No. 12, 1971, grifos meus.
424
Entrevista com Sandler no Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. Número 6. 1971. Grifos meus.
205
a todos los demás hombres. Es bastante fácil, sin duda, respetar los derechos
humanos en nuestros amigos y aún en quienes no son indiferentes, más difícil es
respetarlos en nuestros enemigos. Pero es esta última actitud la que permite
distinguir, precisamente, el régimen democrático del totalitario”
425
.
A defesa de presos políticos fazia parte de uma ‘missão’ fundada sobre princípios
universais: os direitos humanos. Como veremos no capítulo seguinte, este discurso se reforça
e torna-se exclusivo e excludente quando os advogados defensores de presos políticos entram
nas redes transnacionais de juristas em meados dos anos setenta.
2. 10 Uma causa internacional
No exercício da defesa, os profissionais do direito apelaram a diversos tratados que
regem o tratamento dos combatentes no poder do inimigo e aos quais a Argentina aderiu. Se,
se estava, efetivamente, em ‘guerra aberta contra a subversão’, como sustentavam os que
lideravam a chamada ‘Revolução Argentina’, então ‘as organizações armadas revolucionárias
argentinas’ deviam ser amparadas pela legislação internacional sobre prisioneiros de guerra: a
Convenção de Haia de 1907, a Convenção de Genebra de 1919 e os quatro convênios de
Genebra de 1949 nos quais se reivindicam os direitos dos prisioneiros em mãos inimigas.
Deste ponto de vista, para os defensores de presos políticos, a violação destas convenções,
isto é “As torturas e execuções dos combatentes populares na Argentina em 1971 (...)
constituem (...) violações às leis e usos da guerra [o que termina] tornando seus autores
criminosos de guerra
426
.
Em agosto de 1972, os integrantes da Gremial criaram uma delegação para solicitar a
Robert Gaillard-Moret (delegado do Comitê Internacional da Cruz Vermelha que se
encontrava na Argentina para verificar as denúncias de maus-tratos aos prisioneiros políticos),
para visitar os presos que tinham tentado fugir da presídio de Rawson. Esta gestão ficou
425
Orgaz, 1961. op.cit. pág 45-46. Este jurista também é considerado como referência por advogados da Liga,
como Eduardo Warschaver que, em 1968, cita-o em seu trabalho “Juzgamiento de civiles por tribunales
militares” s/d.
426
Eduardo Luís Duhalde e Rodolfo Ortega Peña. “¿Nos gobiernan criminales de guerra?”. Em: Jornal Nuevo
Hombre. 1971. Ênfase no original.
206
interrompida quando, no dia seguinte deste pedido, os detidos foram assassinados na base
aeronaval de Trelew
427
.
Junto com a reivindicação do direito internacional humanitário dentro das próprias
fronteiras do país, estes profissionais do direito colocavam as denúncias sobre seqüestros,
desaparecimentos e assassinatos na esfera pública internacional, através de diversas
associações internacionais: desde a OIT e o Tribunal Russel, até a Comissão Internacional de
Juristas (CIJ) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) vinculada à OEA
428
.
Todas estas instâncias foram convocadas a partir do desaparecimento do advogado Néstor
Martins.
A CIJ assumiu a defesa destes casos demandando o governo argentino desde 1972
pela ‘situação de insegurança jurídica’, exigindo especialmente que sejam garantidas as
condições para o exercício da defesa. Estas denúncias levaram à realização de uma primeira
missão de especialistas internacionais comandada pela CIJ, especificamente dedicada a
examinar a situação dos advogados defensores de presos políticos (1974). O responsável por
esta missão, Heleno Fragoso, apresentou uma lista de advogados ‘vítimas’ da violência do
Estado e em seu relatório podemos encontrar todos os atributos da retórica dos direitos
humanos: independência da filiação partidária ou ideológica, objetividade e neutralidade na
apresentação da informação e o interesse por sensibilizar à opinião mundial sobre as
condições de repressão no país. A respeito da acusação que pesava sobre os advogados
defensores de presos políticos devido a sua ativa militância política, Fragoso afirmava:
“Muitos advogados tinham, efetivamente, militância política (...). Não consta, no entanto, que
nenhum dos advogados se dedicasse a uma atividade política ilegal ou que estivesse vinculado
a grupos subversivos”
429
.
Entre os documentos relacionados com o caso Martins encontram-se os pedidos que o
Secretário Geral da Confederação Mundial do Trabalho, Jean Brück, realiza no transcurso do
427
Vale a pena destacar que este tipo de demanda de intervenção de associações internacionais representa uma
posição dentro da Gremial, entre outras possíveis. Duhalde e Ortega Peña, por exemplo, referiam-se à OEA
como ‘uma assembléia de lacaios’ ou como uma instituição que ‘foi criada para afiançar aão do imperialismo
na América”. Como vermos no capítulo 3, poucos anos depois, Duhalde seria uma das principais figuras a
intervir nestes espaços transnacionais, denunciando as violações aos direitos humanos cometidas na Argentina.
428
O Tribunal Russel tinha sido criado originalmente para investigar e denunciar os crimes cometidos durante a
Guerra do Vietnã, em 1967. O Tribunal Russell II havia se dedicado, desde 1974, a denunciar a situação vigente
na América Latina. No próximo capítulo será feita uma descrição de todas estas instituições.
429
Relatório “La situación de los abogados defensores en la República Argentina”. CIJ. 1975.
207
ano de 1971 para que outras associações internacionais se comprometam com o caso, como a
Anistia Internacional e a própria CIDH. Em todos os casos, estes pedidos apelam ao “... uso
de sua influência e sua autoridade moral [dos membros da associação] para que se faça uma
investigação a fundo do seqüestro...”. Também se encontram os telegramas dirigidos às
máximas autoridades argentinas exigindo o aparecimento do advogado defensor, colocando
em prática a chamada ‘estratégia de rebote’ descrita por uma integrante do Foro de Buenos
Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos e mencionada no início deste capítulo. O
telegrama, datado em janeiro de 1971 e dirigido ao Presidente General Levington, denuncia:
“Caso escandaloso secuestro Néstor Martins y Nildo Centeno [su cliente] implica
violación derechos humanos orden garantías jurídicas. Confederación mundial del
Trabajo elevando enérgica protesta exige investigación con libertad indemnes
esperando urgente intervención Presidente Nación”
430
.
A intervenção da CIDH foi solicitada poucos dias depois do desaparecimento de
Néstor Martins. Diante da denúncia, a CIDH expediu-se um ano depois e resolveu que “...
sem prova da participação direta ou indireta dos representantes do governo argentino e da sua
inação para reprimir o delito, não se podia invocar a proteção internacional”, recomendando
que o caso ficasse arquivado (Caso 1701, maio de 1972)
431
. O ponto de vista da CIDH era
que, tendo um processo judicial aberto no país, não se podia considerar que os recursos legais
estavam esgotados no presente caso. Outros casos de denúncias apresentados também em
1971 e 1972 foram rejeitados por não ‘atribuir-se violações dos direitos humanos’. A rejeição
destes casos no início dos anos setenta contrasta, abertamente, com as resoluções da CIDH de
confirmar as denúncias recebidas a partir do golpe de Estado de 1976, compromisso que
chegou, como veremos no próximo capítulo, a que se enviasse uma missão internacional ao
país.
Ao apelar à ‘influência’ e ‘autoridade moral’ de diversas figuras da política e da
cultura, havia se constituído, fora da Argentina, comitês e agrupações de apoio à causa dos
presos políticos. Na França, por exemplo, desde 1972 funcionava o Comité de Défense des
Prisionniers Politiques Argentines (CODEPPA), liderado pelos escritores franceses como
430
Telegrama. Arquivo pessoal da família Martins. Ver no Anexo mero 35, na pág. 255 e 256 um desses
pedidos dirigidos à Anistia Internacional. Todos têm o mesmo texto.
431
Relatório Anudal da CIDH. 1972. Seção Argentina. A CIDH intervém apenas quando se esgotaram todos os
recursos legais providos pelo sistema jurídico do país de onde procede a denúncia.
208
Margarita Duras, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre (integrantes também do Tribunal
Russel), junto com intelectuais argentinos residentes em Paris como Julio Cortázar e
integrado por profissionais do direito franceses. Entre seus objetivos figuravam o de “obter a
assistência internacional dos juristas para a defesa dos prisioneiros políticos”
432
. Apelar à
autoridade dos denunciantes era uma condição crítica para legitimar as denúncias. No Boletim
do Comitê destaca-se que: “... considerou-se, unicamente, os testemunhos [sobre torturas a
prisioneiros políticos] que provêm de instituições de juristas, de órgãos de imprensa e de
pessoas que o Comitê julga dignas de confiança (...). A fonte mais importante é o Foro de
Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos”
433
. Um número especial deste
Boletim esteve dedicado ao dramático episódio conhecido como ‘Massacre de Trelew’. Este
acontecimento mobilizou os integrantes deste comitê que, apenas 5 dias depois dos
fuzilamentos, se apresentaram à embaixada chilena em Paris para interceder com o
reconhecimento ao direito de asilo dos cidadãos argentinos que tinham conseguido fugir e
que, naquele momento, estavam no Chile
434
. Foram advogados franceses, integrantes do
CODEPPA, que estiveram responsáveis por esta intermediação. Eles também convocavam
periodicamente conferências de imprensa para denunciar os procedimentos ilegais do Estado
argentino.
Para concluir esta seção só me resta destacar a importância da intervenção desta esfera
internacional na objetivação de associações de defensores de presos políticos como
associações de defesa dos ‘direitos humanos’ na Argentina. Embora este ponto receba uma
atenção privilegiada no próximo capítulo, basta assinalar aqui brevemente o episódio que dá
origem à criação do Foro por la Vigencia de los Derechos Humanos en la Argentina: Em
setembro de 1971, durante uma reunião organizada em Montevidéu pela Universidad de la
República, com a participação da Convención Nacional de Trabajadores e a Confederación
Sindical Cristiana Latinoamericana, decidiu-se criar o Foro por la Vigencia de los Derechos
Humanos” com o objetivo exclusivo de amplificar as denúncias dos advogados defensores de
presos políticos. O fato de que os integrantes da Gremial tenham tido que se constituir
também como Foro por la Vigencia de los Derechos Humanos como condição para que suas
denúncias fossem reconhecidas nesta esfera transnacional, mostra que a existência social
432
“Argentine 1972” Bulletin d’Information. Paris. 15.05.1972. Tradução minha.
433
“Testimonios sobre las torturas a prisioneros políticos en Argentina”. Em: Boletín del CODEPPA. Janeiro
1972. Tradução minha.
434
Em: Comunique de Presse. Comité de Defense des Prisonniers Politiques Argentins. Paris. 21. 08.1972.
Tradução minha. O governo argentino de Lanusse exigia a extradição dos mesmos.
209
destes advogados comprometidos teve como condição indispensável sua constituição em
associação de defesa dos direitos humanos.
Como veremos no capítulo seguinte, estas redes transnacionais de advogados,
intelectuais e figuras da política ocuparão um espaço cada vez mais importante no
reconhecimento das denúncias e, com isso, na institucionalização das novas associações de
defesa dos direitos humanos criadas em meados dos anos setenta na Argentina.
2. 11 Conclusão
As associações de advogados descritas neste capítulo constituíram espaços
heterogêneos formados por sujeitos com trajetórias e concepções distintas sobre o
compromisso militante e o exercício da profissão. Ao longo deste capítulo demonstrei quais
são os princípios de agregação desta militância e sobre que tipo de representação se funda este
tipo de ativismo. A categoria ‘militar’ na defesa de presos políticos refere-se ao pertencimento
simultâneo a dois campos considerados usualmente como excludentes: o da militância política
e o do exercício da profissão. Esta expressão nativa ‘militar’ tem, justamente, a qualidade de
expressar este duplo sentido inscrito em sua atividade profissional: dar conta da militância
política através do uso do direito e do pertencimento a um grupo social que mantém uma
relação de extrema proximidade com a causa com a qual se identificam as pessoas que
defendem.
A enunciação desta condição supõe que a prática de defesa se funda o apenas no
conhecimento especializado (‘expertise’), mas também em um conjunto de valores como o
heroísmo, o sacrifício e o desinteresse no compromisso com a causa. Alem disso, esta prática
supõe e requer, por sua vez, o exercício da profissão em seu sentido mais tradicional.
Na configuração deste universo social, a valorização do direito liberal e a concepção
da política como um processo revolucionário não constituem, necessariamente, alternativas
excludentes. Ao impugnar o exercício da violência por parte do Estado, estes advogados
defensores de presos políticos apelaram à linguagem dos direitos humanos e fizeram uso das
instâncias internacionais dedicadas à sua proteção.
210
2. 13 Epílogo
Com o fim da chamada Revolução Argentina e a volta à democracia em março de
1973, os advogados defensores de presos políticos continuaram sendo alvo da repressão e
testemunhos diretos da mesma. A sede da Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires
foi bombardeada várias vezes e vários de seus integrantes estavam detidos, tiveram que se
exilar, estavam desaparecidos ou tinham sido assassinados.
Assumir estas causas supunha enfrentar situações reais de ameaça, mesmo quando ‘a
ditadura’ já havia terminado. Uma integrante da Gremial detalha algumas delas:
“antes, vos estabas en un café, aparecían [las fuerzas de seguridad], mostrabas tu
credencial de abogado y te respetaban. En cambio, a mi me tocó ir a ver presos
políticos a fines de 1974 a Río Gallegos y me tuvieron con la mecha ahí,
apuntándome [con la pistola] durante media hora antes de dejarme entrar a la cárcel
por más que yo mostré mi credencial (...) A Curuchet, cuando viaja a Río Gallegos
para atender a un grupo de presos, le imputaron ir en un plan para organizar una
fuga (...) En 1974 nosotros dijimos: no se viaja más, no hay garantías, no tenemos
garantías como abogados (...) En esa misma causa estaba Silvio Frondizi (...) pocos
días después lo mataron”
435
.
Nessa época, a Associação já havia deixado de funcionar. A partir de agora, os
próprios advogados defensores tinham se tornado vítimas da repressão e do terrorismo de
Estado. Entre eles, destaca-se o caso de Hipólito Solari Yrigoyen que, por defender dirigentes
gremiais como Agustín Tosco, sofreu vários atentados, foi seqüestrado por forças
parapoliciais e permaneceu durante um tempo sob a condição de desaparecido. Diante desta
situação, foi decisiva a intervenção de figuras e associações internacionais que possibilitaram
sua saída do país. A conjunção da condição de especialista e de vítima, junto com a
participação destes profissionais do direito em redes transnacional de especialistas, é o objeto
do próximo capítulo.
435
Entrevista com Marta Grande, realizada por Laura Saldivia.
211
Anexo 7
Mobilização dos advogados perante o seqüestro do colega Nestor Martins
Fonte: journal La Prensa. 24.12.1970
212
Anexo 8
Reprodução do abaixo-assinado denunciando os procedimentos judiciais
no caso Sánchez
Fonte: Revista Primera Plana. 26.12.1972.
213
Anexo N˚ 9
Reprodução dos conselhos dos advogados dos presos políticos para os militantes
Fonte: Jornal da LADH El Defensor. Novembro de 1971
214
Anexo N° 10
Reprodução do abaixo assinado realizado pela
Comisión de Familiares de Patriotas fusilados em Trelew
Fonte: Revista Militância para la Liberación.
215
Anexo N˚ 11
Reprodução da convocatória dos familiares dos presos políticos a uma greve de fome
Fonte: Revista Primera Plana. Ano 1. Número 12. 09.01.1973
216
Anexo N˚ 12
Matéria no jornal dedicada a ocupação da praça de Maio pelos
familiares do advogado desaparecido Nestor Martins
Fonte: Revista Así. 09.01.1971.
217
Anexo N° 13
Reprodução da convocatória à Terceira Reunião Nacional.
Fonte: Revista Militancia Peronista para la Liberación. 18. 10. 1973.
218
Anexo N° 14
instituição do Prêmio Néstor Marins da Faculdade de Direito de Bs. As.
aos melhores trabalhos acadêmicos.
Fonte: Revista Militancia Peronista para la liberación. Número 1. 18.11.1973.
219
Anexo N° 15
Reprodução de um capítulo do Manual do Oprimido
Fonte: Revista Militancia Peronista para la Liberación. 1973
220
Anexo n˚ 16
Advogados ameaçados
Fonte: Jornal Nuevo Hombre. Ano 1. Numero 11. Setembro de 1971.
221
Capítulo 3
A organização transnacional da denuncia
e a profissionalização do engajamento militante
222
3. 1 Introdução
Na terça feira 17 de agosto de 1976, cinco meses depois do golpe de Estado, Hipólito
Solari Yrigoyen, defensor do dirigente sindical Agustín Tosco, integrante da Asociación
Gremial de Abogados de Buenos Aires e senador nacional, foi ele mesmo seqüestrado pelas
Fuerzas Armadas e permaneceu em condição de desaparecido durante alguns dias, junto com
outro advogado, também integrante da Gremial e parlamentar, Mario Abel Amaya.
Nas primeiras declarações públicas realizadas pelo governo das Forças Armadas, estas
assinalaram que ambos os dois tinham sido “... seqüestrados por [um] grupo não
identificado...” e que logo da sua “... libertação por autoridades policiais o 30 de agosto de
1976...” forma detidos a disposição do Poder Executivo Nacional por decreto 1831/76 “... em
razão de estar vinculados a atividades subversivas...”. Solari Yrigoyen “... oportunamente vai
ser chamado a comparecer perante os tribunais da Nação”.
436
Enquanto Ricardo Balbín, advogado e máximo dirigente do partido Unión Cívica
Radical ao que pertenciam ambos os detidos, assinalava publicamente que a apresentação de
hábeas corpus em casos como estes não era de muita ajuda, outros agentes sociais iniciaram
uma serie de ações para tentar localizar-lo, em primeiro lugar e logo, conseguir a sua saída do
país fazendo apelo justamente aos recursos do direito nacional e internacional.
Imediatamente de produzida, sua desaparição foi denunciada diante a Embaixada dos
Estados Unidos na Argentina e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). A
primeira comunicou a denuncia, por meio de telegrama, ao Secretario de Estado em
Washington. Nesta denuncia pode-se advertir que Solari Yrigoyen aparece definido pela sua
condição de advogado, jornalista, senador e por “... toda uma vida dedicada à defesa dos
direitos humanos e da democracia”.
437
A CIDH interveio rapidamente solicitando informação
ao Estado argentino sobre o paradeiro de Solari Yrigoyen e suas condições de detenção.
Como resultado destas atuações se obteve dos tribunais locais um certificado do Juizado
Federal da Primeira Instancia no qual se colocava de manifesto a arbitrariedade da detenção:
“... o Dr. Solari Yrigoyen não se encontra processado em nenhuma causa em trâmite neste
tribunal, que este tribunal não tem requerido nem tem interesse na sua detenção e que não
436
Em: Resolução N° 18/78 Caso 2088 A. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 1978.
437
Em: Documentos desclassificados do Departamento de Estado dos EEUU. Junho 1977. Minha tradução.
223
existe impedimento nenhum para que ele saia do país (...) se faz constar que o nomeado
profissional foi indagado em (...) na causa N° (...) na qual se ditou o descumprimento
provisional no dia 2 de dezembro de 1976”.
438
Como resultado da ativa intervenção da CIDH, do próprio governo dos EEUU e
também do governo de Venezuela, cujo presidente Carlos Andrés Perez interveio
pessoalmente neste assunto, a junta militar do governo aceito finalmente por um fim à
detenção de Solari Yrigoyen e reconheceu seu direito a sair do país, fato que se produziu no
dia 17 de maio de 1977. Solari Yrigoyen saiu inicialmente como destino a Caracas e em
seguida se reuniu com a sua família em Paris, onde transcorreu o seu exílio. A permissão de
residência na Franca tinha sido gerido perante o governo francês em 1976 por Robert
Fabre, presidente do Mouvement de Radicaux de Gauche (MRG) e integrante da Comision
Nationale Consultative des Droit de l’Homme.
439
.
A complexa rede de relações internacionais que interveio no caso deste advogado
defensor de presos políticos é colocada em destaque por ele mesmo:
“Países como Francia, Finlandia, Gran Bretaña, Venezuela y Estados Unidos se
interesaron oficialmente por mi libertad. También lo hicieron la Internacional
Socialista presidida por Willy Brandt, la Unión Interparlamentaria Mundial,
Amnistía Internacional. Jimmy Carter envió a la Argentina a Patricia Derian, activa
funcionaria encargada de los derechos humanos (…) Edward Kennedy condenó mi
arbitraria prisión desde el senado norteamericano. Pero el hecho determinante fue
la acción del presidente de Venezuela, Carlos Andrés Pérez (…) quien llamó
personalmente por teléfono al general Videla”
440
.
A despeito dos esforços realizados, que incluíram a visita do advogado integrante da
Asamblea Permanente por los Derechos Humanos e dirigente do partido UCR, Raúl Alfonsín
ao penal onde foram trasladados Solari Yrigoyen e Mario Abel Amaya, este último faleceu
antes da sua liberação como conseqüência das torturas aplicadas durante a sua detenção.
438
Ibídem.
439
Em: Le Monde. 11 Mayo 1977. Paris.
440
Reportagem a Solari Yirgoyen. Em: Gabetta, 1983: 216. À Internacional Socialista pertenciam tanto a UCR
quanto o PS francês. O MRG era uma cisão deste ultimo. A Comissão tinha sido criada em 1947 sob a
presidência de René Cassin (presidente também da Liga Francesa pelos Direitos do Homem e do Cidadão) com o
propósito de criar uma organismo consultivo que permitisse avançar numa declaração universal dos direitos do
homem. Esta declaração foi finalmente aprovada em 1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
224
Este dramático episodio nos introduz na rede de relações que vão ser objeto da analise
neste capítulo: advogados argentinos integrantes de novas associações locais de defesa dos
direitos humanos, como a Asamblea Permanente por los Derechos Humanos (APDH, 1975),
advogados argentinos que participaram de associações de direitos humanos criadas no exilo,
como o Groupe d’Avocats Argentins Exiles en France (GAAEF), associações internacionais
de juristas, como a Comissão Internacional de Juristas (CIJ) e organismos interestatais de
defesa dos direitos humanos, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Se estas instancias todas estão envolvidas na denuncia da desaparição de Solari Yrigoyen, o
universo de agentes vinculados ao direito e engajados com a denuncia da repressão na
Argentina inclui também a Comisión Argentina de Derechos Humanos (CADHU, 1976), suas
diferentes filiais em Europa, EEUU e América latina, como a Commission Argentine des
Droits de l’Homme de Francia (CADHU, 1977), o Centro de Estudios Legales y Sociales
(CELS, 1979) e a associação civil Nuevos Derechos del Hombre (1990), criadas ambas na
Argentina a partir de modelos e relações norte-americanos e franceses respectivamente
Neste capítulo vou examinar o universo de agentes e de valores que se constituíram
em volta a causa dos direitos humanos a partir de meados dos anos setenta na Argentina
fazendo um percurso pelas associações civis criadas então e integradas principalmente por
profissionais do direito. Colocarei uma ênfase especial nas vinculações entre estas
associações com a esfera internacional, como uma estratégia chave para iluminar as condições
de possibilidade de um conhecimento experto: a defesa dos direitos humanos. Nesta
conjuntura histórica destaca-se o processo de profissionalização dos militantes pela causa dos
direitos humanos. Produto desta mudança, os advogados defensores de presos políticos vão se
reconhecer e vão ser reconhecidos pelos outros como ‘advogados defensores dos direitos
humanos’ ou ‘peritos em direitos humanos’, categoria utilizada pelas associações
internacionais de juristas para nomear a, até então, defensor de presos políticos Hipólito Solari
Yrigoyen.
Proponho-me apresentar este processo de profissionalização como vinculado a três
processos: a) a inscrição dos advogados locais em redes internacionais de juristas, b) a
confluência da sua condição de profissionais do direito e de vítimas ou parentes das vítimas
da repressão e c) a redefinição do seu engajamento público em quanto ‘peritos’. O mesmo
tipo de práticas de denuncia e de intervenção jurídica já identificadas nos capítulos anteriores
225
vão ser concebidas agora exclusivamente a partir de uma retórica de compromisso com a
defesa do Estado de direito, a democracia e os direitos humanos.
Interessa-me mostrar que esta mudança envolve tanto a definição do lugar do
profissional do direito em vista da posse de um conhecimento experto quanto a transformação
do universo de representações associadas a este novo perfil. Como vai se ver, esta
profissionalização traz consigo uma inovação crítica: a possibilidade de ocupar espaços de
importância dentro da esfera do próprio Estado, já não como fruto do ativismo partidário mas
em função do exercício de um saber específico. Tanto quem se incorporaram recentemente à
causa quanto quem tem sido defensores de presos políticos, são reconhecidos e se reconhecem
em todas estas instancias de atuação pública como ‘advogados defensores dos direitos
humanos’. Estes advogados fazem parte de instituições especializadas na formulação de
políticas públicas a respeito dos direitos humanos como a Comisión Nacional de Desaparición
de Personas (CoNaDeP) ou a Secretaria de Derechos Humanos de la Nación, ambos os
espaços integrados notoriamente por advogados dedicados à defesa de presos políticos no
período anterior.
Esta convergência entre associações de profissionais do direito (locais e
internacionais) e associações de parentes das vítimas é a matriz sobre a qual se constitui o
atual movimento pelos direitos humanos e se consolida esta causa na Argentina. Ela se
fundamenta sobre dos princípios de recrutamento: um principio universal, que é o direito, e
um outro principio particular que é o vinculo do sangue com as vítimas.
A contraposição entre a APDH e o CELS vai me permitir mostrar a significação que
teve esta ultima instituição em todo este processo de profissionalização ao nível local, e a
atuação dos advogados no exílio e sua integração em redes internacionais de juristas vão fazer
o próprio no plano internacional. Mesmo que a sua importância tenha sido reconhecida para
os anos trinta e sessenta, foi neste momento quando se produz uma convergência de interesses
entre profissionais do direito norte-americanos, europeus e argentinos que vai resultar crítica
para o reconhecimento público de uns e de outros e para a transformação do próprio campo
associativo e estatal. Para ilustrar esta dimensão, neste capítulo dedicarei especial atenção a
descrição das missões enviadas à Argentina por diferentes associações internacionais de
juristas, especialmente a realizada pela CIDH. A descrição das trajetórias dos juristas
internacionais engajados nelas e das trajetórias dos defensores de presos políticos
226
transformados em peritos vai me permitir revelar a maneira em que confluem todas estas
dimensões: o capital social e simbólico derivado da condição profissional, a exibição de um
vínculo do sangue com as vítimas e a circulação no espaço internacional.
3. 2 O compromisso com a causa na Argentina
Nesta primeira seção do capítulo, explicitarei as condições que fizeram possível a
conformação de três novas associações de direitos humanos fundamentadas tanto no
conhecimento experto do direito quanto na condição de se reconhecerem seus integrantes,
como vítimas e como parentes das vítimas do terrorismo de Estado. Estas associações foram a
Comisión Argentina de Derechos Humanos (CADHU), a Asamblea Permanente por los
Derechos Humanos (APDH) e o Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS). O propósito
é traçar o itinerário que vinculou aos profissionais do direito argentinos com a comunidade
jurídica internacional e identificar as conseqüências que tiveram estes vínculos nas
transformações do engajamento militante no espaço local.
Poucos meses depois do golpe de Estado de 1976, uma nova convocatória ao
compromisso dos advogados foi formulada pela Asociación Peronista Auténtica de
Abogados. Num comunicado titulado “Os advogados perante a nova ditadura” podem-se
identificar as aspirações dos defensores de presos políticos alinhados dentro deste
agrupamento: “... os advogados não podemos manter uma atitude cúmplice: ou colocamos a
nossa profissão ao serviço dos interesses do povo ou vamos sucumbir ficando ao margem da
gloriosa história de luta de nosso povo”. Para alcançar estes fins propuseram:
“Convocar a un Movimiento Nacional de Abogados en Defensa de los Derechos
Humanos junto con los demás sectores populares, asumir la defensa de la clase
trabajadora y del conjunto del Pueblo denunciando los atropellos de la dictadura,
denunciar la represión y la tortura, reafirmar la vigencia de la Constitución
Nacional, luchar por el libre ejercicio de la profesión y solidarizarse con los
innumerables abogados perseguidos, secuestrados y torturados por el régimen”
441
.
441
Documento. Junio 1976. S/d. Grifos meus.
227
A CADHU (1976-1983) reuniu principalmente aos advogados da Asociación
Peronista e a integrantes da Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires. Na
convocatória, se evidencia a presença de uma linguagem que vincula ‘direitos humanos’ às
‘lutas de nosso povo’. Como vai se ver mais na frente, a linguagem destas associações será
progressivamente depurado da retórica própria da esquerda revolucionaria e inclusive vários
dos seus integrantes abandonarão depois a associação por considerar-la ‘politizada’ demais.
A revista Nuevo Hombre, que servia de tribuna pública para a atividade dos advogados
defensores de presos políticos, havia difundido poucos meses antes do golpe de Estado, uma
outra convocatória pública.
442
. Teve como resultado a formação de uma nova associação civil
que, seguindo o modelo das associações defensoras de presos políticos examinadas nos
capítulos anteriores, aspirou a reunir a um espectro abrangente de profissionais do direito, de
intelectuais e de parentes das vítimas. Trata-se da Asamblea Permanente por los Derechos
Humanos (APDH). Pouco tempo depois, irrompeu no cenário local o Centro de Estudios
Legales y Sociales (1979). Estas duas últimas associações, junto com a Liga, continuam ativas
até hoje e, junto com outras associações integradas por parentes das vítimas, formam o atual
‘movimento pelos direitos humanos’.
443
3. 2. 1 Uma ‘Assembléia’ pelos Direitos Humanos
Em seguida do golpe de Estado de março de 1976 que derrubara à então presidenta
Isabel Perón, um conjunto heterogêneo de ‘dirigentes políticos’, ‘líderes religiosos’,
‘intelectuais’ e ‘juristas de prestigio’ se reuniram no bairro portenho de Flores para integrar a
Asamblea Permanente por los Derechos Humanos (APDH). Nos seus estatutos pode-se
identificar o espírito da convocatória:
“Formular la más amplia y ferviente convocatoria para alcanzar la suma de
todas las voluntades posibles en torno [a la defensa de los derechos humanos] y
ofrecer la APDH como ámbito de encuentro y de dialogo para: a) informar y
alertar a todos los niveles de opinión y decisión (poderes públicos, fuerzas
armadas, medios masivos de comunicación) (...) y a la opinión publica en general
442
Em: Nuevo Hombre. Año 1. N° 4. 18. 12. 1975.
443
Sobre os princípios de constituição deste ‘movimento’ ver: Vecchioli, 2000.
228
sobre los ataques a los derechos humanos y b) promover el cese inmediato de esas
violaciones, su investigación y enjuiciamiento de los culpables”
444
.
A APDH esteve organizada nos seus inícios por um Conselho de Presidência e uma
Mesa Executiva. Seu funcionamento pode-se equiparar ao de um parlamento, quer dizer, um
corpo político e deliberativo. Ao igual que num parlamento, o trabalho dentro da APDH
estava organizado em comissões que cumpriam tarefas específicas como: ‘Vigência dos
Direitos Humanos’, dedicada ao tema das pessoas desaparecidas; ‘Direito a Opção’, orientada
aos casos de presos detidos a disposição do PEN sem processo judicial; ‘Trato carcerário’,
dedicada a tentar melhorar as condições de vida dos presos; ‘Direitos Humanos nas áreas de
cultura, religião, artes, ciências e profissões’, que atendia as situações de censura, perseguição
e desaparição de pessoas ligadas a todas estas áreas; ‘Relações Públicas’; ‘Relações
Internacionais’; ‘Publicidade’ e ‘Finanças’. Os integrantes destas comissões deviam escrever
despachos, relatórios e pareceres. Para isso contavam com a assistência de assessores e
peritos. As propostas de comissão eram logo debatidas em reuniões plenárias e, finalmente,
submetidas a votação por todos os integrantes da Mesa Executiva. Uma vez aprovadas,
estabeleciam a política da associação.
A amplitude da convocatória se propunha como uma estratégia para constituir um
espaço politicamente neutro mas moralmente significativo. Ao se definir publicamente, os
integrantes da associação colocavam em destaque justamente esta propriedade: trata-se de “...
uma Assembléia constituída por pessoas de convicções religiosas, filosóficas, políticas e
ideológicas muito diversas...” mas providas todas de um mesmo atributo: a ‘autoridade
moral’.
445
No contexto de proscrição da vida político-partidaria e de perseguição aos
opositores, a APDH pretendeu fundamentar a sua legitimidade convocando ao espetro mais
abrangente possível de ‘dirigentes políticos’, ‘lideranças religiosas’ de diferentes
congregações (católicas, judaicas e protestantes), figuras acadêmicas e ‘juristas’.
444
APDH. Acta fundacional, diciembre 1975, Grifos meus. Arquivo Memoria Abierta
445
APDH. Carta ao presidente General Jorge Rafael Videla, dezembro de 1976.
229
Tabela 3: listagem dos integrantes da APDH correspondente a seu primeiro ano de
funcionamento
Miembros Fundadores: Alende, Oscar, Alfonsín, Raúl, Bravo, Alfredo, de Nevares, Jaime,
Gattinoni, Carlos, Meyer, Marshall, Moreau de Justo, Alicia, Pantaleón, Rosa
Pérez Esquivel, Adolfo, Perez Gallart, Susana
Mesa Ejecutiva (1976) Aceyedo de Literas, Maria, Bonino, José, de Nevares, Jaime
Etchegoyen, Aldo, Gattinoni, Carlos, Giustozzi, Enzo, Mignone, Emilio, Perez Gallart,
Susana, Perez Esquivel, Adolfo, Pimentel, Eduardo, Westerkamp, José Federico
Na convocatória se convidava a participar em qualidade de cios a “todos aquelas
pessoas que compartilham os princípios enunciados na [Declaração Universal dos Direitos
Humanos] qualquer sejam as suas convicções religiosas e filosóficas, filiação política,
profissão e nacionalidade”.
446
Dentro desta mesma perspectiva ecumênica se delineava a
formação de um Tribunal dos Direitos Humanos em quanto devia se integrar “... por pessoas
de reconhecida trajetória ética e investidas da autoridade moral que emana de uma tal
condição”.
447
Ainda que este Tribunal nunca chegou a se integrar, interessa destacar que foi
justamente esta mesma propriedade a que se reclamou como postulado crítico para recrutar
aos membros da Comisión Nacional de Desaparición de Personas (CoNaDeP, 1983) destinada
a investigar as violações aos direitos humanos produzidas durante a ultima ditadura militar e
criada pelo presidente constitucional Raúl Alfonsín, coincidentemente, um integrante da
APDH e do seu serviço jurídico.
448
O apelo a linguagem dos direitos humanos aparecia, nesse contexto, como uma
estratégia que deslocava o eixo da atenção do ativismo militante as ações executadas pelo
Estado e orientadas a suprimir a oposição. Nos documentos dos primeiros anos, a APDH
excluiu qualquer referencia à atividade política das pessoas às quais se pretendia representar,
procurando com isso transcender as divisões dos dirigentes políticos, assim como também
446
APDH. Estatutos. Artigo 5to. Arquivo Memoria Abierta.
447
Op. Cit. Grifos meus.
448
Nesta primeira política de Estado se somaram vários dos integrantes da APDH, além do próprio Alfonsín
como Raúl Aragon e Graciela Frenández Meijide, entre outros.
230
fazer uso de uma linguagem que, ao se fundar no direito, estabelecesse princípios de adesão
universal.
3. 2. 1. 1 O Serviço Jurídico
Desde a sua criação, a APDH se propus oferecer assessoramento jurídico a quem se
aproximava à instituição para denunciar a prisão ou desaparecimento de um parente. O
trabalho de recepção das denuncias implicava sempre o de orientação e assessoramento aos
parentes.
449
Os integrantes do serviço jurídico da APDH elaboraram um ‘modelo’ de ‘habeas
corpus’ que colocaram a disposição de todos aqueles que necessitaram apresentar esse recurso
dado que os advogados dificilmente aceitavam a assinar-los “devido a que sabiam que os
fiscais tinham instruções de transmitir os nomes dos advogados que faziam os hábeas corpus
aos serviços de inteligência”. “Diante esta situação, a APDH, a LADH e a Comissão de
Familiares de Desaparecidos e Detidos por Razoes Políticas difundiram um modelo de hábeas
corpus que facilitava a tarefa das famílias”.
450
Em estas ações todas, os advogados integrantes
da APDH, ao tempo que ofereciam assistência jurídica, procuravam movimentar a estes
parentes a favor da causa pelos direitos humanos.
449
Mignone, 1991:105.
450
Op. Cit.
231
Tabela N˚ 4: Advogados integrantes do serviço jurídico da APDH
1977 1978 1979
Raúl Alfonsín Raúl Alfonsín Raúl Alfonsín
Augusto Conte Augusto Conte Augusto Conte
Alberto Pedroncini Alberto Pedroncini Alberto Pedroncini
Emilio Mignone Emilio Mignone Emilio Mignone
Roberto González Berges Roberto González Berges Roberto González Berges
Oscar Mancebo Oscar Mancebo Oscar Mancebo
Luis Caeiro
Genaro Carrió
Carlos Fayt Carlos Fayt
Alfredo Galetti Alfredo Galetti
Boris Pasik Boris Pasik
C. Alconada Aramburu
Luís Casiro
Ricardo Cogorno
Laureano Landaburu
G. Furgoni Rey
M.F. Gómez Miranda
Rafael Marino
Ricardo Molinas
J.M. Moners Sans (p)
Carlos Ramirez Abella
Domingo Romano
Fernando E. Torres
232
Para fazer possível a complexa tarefa de assessoria jurídica, os dirigentes da APDH
encarregaram a ‘comissões de nomeados juristas’ a redação de distintos relatórios sobre o
‘estado da situação’ e a elaboração de pareceres sobre as linhas possíveis a seguir ‘desde um
ponto de vista jurídico’.
451
Estes relatórios, que se solicitavam com o objetivo de: “... facilitar
o assessoramento das pessoas que se aproximam à APDH contribuindo com indicações
concretas e práticas”, fixavam políticas dentro da Assembléia. Por exemplo, em relação ao
direito a opção, um destes informes recomendava: “... do inquérito praticado surge que as
autoridades dos estabelecimento carcerários dispõem de formulários que os detidos a
disposição do PEN podem preencher, exprimindo a sua vontade de sair do país...”
452
Estes
relatórios supunham tanto o processamento da informação obtida através do atendimento
direto aos parentes, dos testemunhos recebidos pelo correio, das novidades aparecidas nos
jornais, das ‘trocas de opinião com instituições e personalidades diversas’ quanto do
levantamento de informação por averiguação pessoal em gabinetes oficiais, consulados e
embaixadas. Com referencia ao direito de asilo, por exemplo, se consideravam as alternativas
de possíveis países de asilo. No relatório se recomendava: “... a reação das embaixadas e
consulados é muito cautelosa (...) em alguns países se tem iniciado um processo interno de
caráter legislativo e administrativo destinado a autorizar uma cota de imigrantes argentinos
(...) Mas, uma tal tramitação vai demandar, segundo parece, de bastante tempo (...) Por esta
razão, seria perigoso criar excessivas expectativas” (ibidem). O relatório conclui assinalando:
“Em algumas esferas oficiais se tem sugerido que a Comisión Asesora criada por lei 21.650
tenderia, ao invés, a permitir a liberdade vigiada dos detentos (...) Se sugere, então, que se
formulem petições nesse sentido” (ibidem).
453
Uma das recomendações principais destes informes consistia em: “... tratar de utilizar
as normas ditadas se com elas podia-se conseguir, mesmo que seja indiretamente, alguma
vantagem” (ibidem). Em função deste princípio, as apresentações e demandas à Justiça foram
451
APDH. “Crónica de la Sesión Segunda del Consejo de Presidencia”. Noviembre 1977. Em: Arquivo APDH /
Memoria Abierta.
452
APDH. Despacho de la Comisión 1 sobre el Derecho de Opción. Noviembre 1977. Em: Arquivo APDH /
Memoria Abierta. Grifos meus. O direito a opção aplica-se aos presos políticos a quem se oferece a possibilidade
de sair do país ao invés de permanecer detidos na Argentina.
453
Coincidentemente com esta sugestão, as recomendações feitas por Nuri Albalá no reporte solicitado pela
AIJD estavam dirigidas aos governos estrangeiros e assinalavam a necessidade de conceder em forma urgente os
vistos de ingresso a seus países e que já tinham sido solicitadas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados e que permitiam lhe outorgar ao detido a condição de refugiado e, com isso, sair do país. Vale a
pena salientar que na seleção dos advogados que foram consultados pela APDH importava não o
conhecimento técnico quanto a possibilidade de estabelecer contatos com a esfera governamental ou
internacional.
233
uma das tarefas centrais levada a frente pela APDH. Diante da rejeição sistemática dos
recursos de hábeas corpus de parte dos tribunais, os advogados da APDH começaram a
utilizar estratégias inéditas de aceso à justiça, como foi a de patrocinar apresentações
conjuntas de parentes e amigos das vítimas ante o Tribunal Superior solicitando informações
sobre o paradeiro dos seus parentes. Desde um ponto de vista jurídico, estas apresentações
não tinham valor, no entanto, nas normas processais não estava incluída a possibilidade de um
recurso coletivo e, além disso, estes recursos, mesmo que fossem apresentados em forma
individual, eram rotineiramente denegados pelos tribunais em quanto deviam ser os próprios
envolvidos no caso os que deviam apresentar o reclamo por ‘privação de justiça’, o que de
fato, era justamente um impossível em vista as condições de desaparecidos desta vítimas.
Desde o ponto de vista da APDH, estas apresentações se justificavam porque os
desaparecidos estavam impossibilitados de exercer seu direito em juízo.
Em abril de 1977 se realizou a primeira destas ações coletivas, consistentes na
apresentação de um escrito no qual vários advogados patrocinaram a “parentes e amigos de
pessoas que, trás haver sido detidas por grupos armados que prima facie atuavam em
exercício de uma autoridade, tem desaparecido”. O primeiro destas ‘petições’ foi encabeçado
pela senhora Pérez de Smith, esposa de um dirigente sindical detido-desaparecido, e foi
acompanhado por uma listagem de mais de 400 casos de pessoas desaparecidas. Nele se
solicitou a intervenção do Tribunal Superior de Justiça em quanto estas situações “implicam
um estado de privação de justiça” para quem se encontram aparentemente detidos na
clandestinidade e sem processo judicial. A apresentação se acompanhava também de
referencia de sentenças anteriores do Tribunal e de citações de juristas argentinos de prestigio
como Martín Goicoa e Germán Bidart Campos.
Este primeiro escrito foi respondido pelo Tribunal que se declarou incompetente sobre
a base que: “... não está ao alcance dos juizes resolver a situação que lhe foi solicitada”. A
despeito desta negativa, a APDH considerou este parecer como um triunfo afirmando que
‘esta sentença abre jurisprudência’. Isto porque o tribunal reconheceu, pela primeira vez, que
a situação que era denunciada, “... equivalia a uma efetiva privação de justiça e isso por
causas totalmente alheias às funciones e competências específicas dos magistrados a cujo
alcance não está pôr um fim a aquela situação”. Diante este reconhecimento, o Tribunal livrou
234
oficio ao Poder Executivo com o propósito de pesquisar o paradeiro e a situação das pessoas
envolvidas.
454
A seguinte ação da APDH consistiu em interpor um recurso administrativo também
‘sui géneris’ equivalente ao do hábeas corpus, mas não perante a justiça senão perante o Poder
Executivo Nacional. Neste se solicitava que se removessem todos os ‘obstáculos’ que
impediam a atuação dos juizes ‘com a necessária efetividade que o Direito requer’. Um ano
depois da sentença do Supremo Tribunal de Justiça e da negativa a responder a solicitação de
parte do Poder Executivo, a APDH apresentou uma segunda ‘petição’ coletiva por meio da
qual solicitou à TSJ a sua direta intervenção ‘... para pôr fim a uma situação de privação total
do direito à jurisdição’ que “... outorgue aos beneficiários desta apresentação a tutela
elementar que preserve as suas vidas gravemente ameaçadas e os submeta efetivamente a uma
forma de jurisdição do Estado”.
455
A apresentação não fez eixo na ‘privação de justiça’
como quanto na ‘privação do direito à jurisdição’ como uma forma ‘extrema’ da efetiva
privação de justiça.
456
Nesta apresentação, realizada em maio de 1978, se argüia que:
“... la desprotección de la vida y la prolongada y efectiva privación del derecho a la
jurisdicción en sus formas más elementales deben ser explicadas por el Estado (...)
Ante la situación que denunciamos (...) no existen poderes incompetentes. Todos
ellos, además, están sujetos (...) a la obligación de actuar conforme a los Objetivos
Básicos para el Proceso de Reorganización Nacional, entre los cuales figura en
lugar eminente, la ‘vigencia del orden jurídico’. ¿Puede concebirse acaso tal orden
si los jueces quedan colocados de hecho ante situaciones que ‘no pueden remediar
o, si los poderes políticos no pueden dar una respuesta pública y precisa sobre las
razones de la frustración de sus propios esfuerzos (...) para resolver el gravísimo
problema suscitado? (...) Se trata, en síntesis, de un conflicto entre el Derecho y la
454
Esta apresentação é mencionada no reporte da CIJ de 1978. Em: “Attacks on the independence of judges and
lawyers in Argentina” En: Bulletin of the Centre for the independence of Judges and Lawyers. Vol. 1. 1.
February 1978, pág. 7. Também foi mencionada no relatório que apresentara a CIDH em 1979.
455
APDH. “Petición a la Corte Suprema de Justicia sobre el derecho a la jurisdicción y la protección de la vida”
Em: Arquivo APDH / Memoria Abierta.
456
Estas expressões ‘privação de justiça’ e ‘privação do direito à jurisdição’ supõem, neste contexto, que os
desaparecidos não podiam exercer seus direitos de reclamar pela sua própria situação condição mas tampouco o
podiam fazer seus parentes. Por esta razão se argüia que estavam ‘privados de justiça’. A segunda noção refere
ao fato que os tribunais se declaravam incompetentes sobre a base que a demanda ou denuncia apresentada
perante o caso de um desaparecido não correspondia a sua jurisdição de competência, fato que colocava um freio
ao avance das causas.
235
fuerza alzada contra aquel, entre el Estado y la negación impune del Estado
(ibídem).
Na reunião plenária do Conselho de Presidência, realizada em setembro de 1978, os
advogados e dirigentes da APDH, Alfredo Galetti e Alberto Pedroncini, sugeriram fazer uma
nova apresentação à Corte Superior de Justiça (CSJ ou STJ em português) que tivesse a
‘adesão de um número maior de danificados’. O Dr. Cherniavsky propus então “... que o
patrocínio letrado alcance a uma quantidade destacável de advogados com o propósito de lhe
outorgar um maior apoio”
457
. Esta iniciativa da APDH foi realizada em forma conjunta com
os advogados integrantes da LADH. Esta nova ‘petição’ conseguiu o apoio de 1221
demandantes relativos a 1542 processos de ‘seres humanos desaparecidos’. Nela se solicitou a
intervenção direta do TSJ para pôr um fim à situação de total ‘privação do direito à jurisdição
das pessoas desaparecidas. Foi nesta última apresentação quando pela primeira vez se
explicitou a responsabilidade de ‘alguma autoridade pública’ no seqüestro e posterior
desaparecimento das vítimas. Perante à sistemática negação dos recursos de hábeas corpus por
parte dos tribunais, a insistência em voltar a apresentar-los era parte de uma política decidida
da APDH: “... repetíamos as apresentações incansavelmente como forma de luta e pressão.
Formou-se uma imensa montanha inútil de papel escrito que cobria os gabinetes dos juizes
para serem inexoravelmente arquivados”.
458
Fazendo parte das tarefas destinadas a convocar a adesão dos parentes das vítimas da
repressão, a APDH escreveu uma carta convocando a se somar à iniciativa das apresentações
coletivas de hábeas corpus. Como se desprende do texto, a carta põe a ênfase na importância
da ação judicial e da convocatória a parentes e advogados:
“Estimado familiar:
La Asamblea Permanente por los Derechos Humanos ha resuelto promover una
nueva presentación directa ante la Corte Suprema de Justicia de la Nación a favor
de los llamados ‘desaparecidos’ (...) Con este propósito se aspira que la
presentación sea firmada por el mayor numero posible de familiares o amigos de
‘desaparecidos’ y de letrados patrocinantes. El escrito será acompañado con
fotocopia de la iniciación del recurso de habeas corpus con indicación del juzgado
y secretaria donde tramitó y de su resultado (...) Mientras que el grupo de
457
APDH. “Reseña de la Reunión del Consejo de Presidencia”. En: Arquivo APDH / Memoria Abierta.
458
Mignone, 1991: 91. Grifos meus.
236
abogados de la APDH elabora el documento, se ha iniciado, por razones de
urgencia la firma de la presentación (...) Si usted esta de acuerdo con esta
iniciativa, le rogamos pase por la Asamblea Permanente cuanto antes...”
459
.
Outra das linhas de atuação desenvolvidas pela APDH foi a de manter entrevistas com
autoridades militares e eclesiásticas com o propósito de obter informação e apóio nas
denuncias. Todas as lideranças entrevistadas receberam uma pasta contendo a informação
sobre as denuncias. Na hora de fazer um balanço dos primeiros dos anos da APDH colocou-se
em destaque justamente o fato de haver mantido “... relações e contatos com as autoridades
governamentais, com as Forças Armadas e de Seguridade, com autoridades religiosas e
culturais, com personalidades políticas e sindicais e com órgãos de opinião pública”.
460
Desde agosto de 1976, todos os anos se realizaram na APDH uns Encontros de
Direitos Humanos. Desde a perspectiva da associação, “... estes seminários constituem um
marco decisivo na luta (...) pela efetiva vigência dos direitos humanos na República
Argentina”. O primeiro destes encontros funcionou a modo de apresentação em sociedade da
APDH e, se convidou a participar do mesmo ao próprio General Videla, presidente da nação.
3. 3. 1. 2 Os direitos humanos como vocação
A participação na APDH era um compromisso público entre muitos outros. Toda a
atividade orientada ao assessoramento jurídico aos parentes das vítimas, ao trabalho com
juristas e peritos, as apresentações judiciais perante os tribunais e gabinetes oficiais, os
seminários, as visitas às autoridade e a redação de comunicados de imprensa era
desenvolvida, principalmente, sobre a base do engajamento voluntário de quem integrava o
serviço jurídico, da mesma forma que fora identificada para os casos da LADH ou da
Gremial examinados nos capítulos anteriores.
Se a primeira vista, o contexto repressivo parecia dispor aos indivíduos à imobilidade
e ao isolamento, agentes sociais com recursos diversos criaram esta ‘oportunidade’ de
459
APDH. Carta a familiares de desaparecidos. Septiembre 1978. Em: Arquivo APDH / Memoria Abierta.
460
APDH. “Dos años de lucha por los derechos humanos”. Diciembre 1977. En: Arquivo APDH / Memoria
Abierta
237
movimentação pública através de relações pessoais previamente constituídas. A APDH foi
montada sobre a base de relações pré-existentes entre dirigentes de distintos partidos políticos,
de distintas congregações religiosas e advogados integrantes da LADH o que tinham
intervindo na defesa de presos políticos. A importância destas relações pessoais parece
sugerida por um dos seus integrantes Emilio Mignone, quando expressou que a APDH foi
integrada por indivíduos “sem representar e pelo geral contra os desejos das organizações
às quais pertenciam”.
461
Se, como afirmava Mignone (1991) quem se juntaram na APDH “...
o fizeram muitas das vezes em contra do mandato dos partidos ou das respectivas ordens
religiosas...” é evidente a importância que tiveram as relações pessoais constituídas por fora
destas fronteiras institucionais.
Este tipo de relações pré-existentes podem se reconhecer entre as lideranças religiosas
que foram ativas na formação da APDH. O vínculo entre o rabino Marshall Meyer e o pastor
metodista José Miguel Bonino, por exemplo, remonta-se aos anos 60 quando o primeiro deles
convocou a representantes do judaísmo, do catolicismo e do protestantismo a participar num
conjunto de atividades ecumênicas no marco do Seminário Rabínico Latino-americano. Este
espaço se institucionalizou logo em 1968 quando juntos criaram o Instituto Superior de
Estudios Religosos (ISER) que se manteve em funções até 1989. Estas relações supunham um
dinâmico ativismo no espaço, tanto local quanto internacional. Bonino, por exemplo, havia
participado em 1961 da II Conferencia Evangélica Latino-americana em Lima, onde foi
detido e também, no encontro de fundação do movimento Teologia de la Liberación em
Colômbia em 1968. Mantinha vínculos com a corrente de católicos nomeada Cristianos por el
Socialismo. Em 1946, era, ademais de vice-presidente da Mesa Executiva da APDH,
presidente do Conselho Mundial de Igrejas de Genebra (1973-1985).
462
Marshall Meyer era
um rabino nascido em Brookling em 1930 e proveniente da poderosa comunidade judaica
norte-americana. Havia chegado à Argentina em 1959, em seguida da sua ordenação. Uma
vez no país criou a Comunidade Bet El, que se transformou na congregação mais importante
de Buenos Aires. Em 1962 criou o Seminário Rabínico Latino-americano, então a única
escola rabínica da América latina. Na Argentina, além de se converter em dirigente da APDH,
criou posteriormente o Movimiento Judio por los Derechos Humanos, junto com o jornalista
Hermann Schiller.
461
Mignone, 1991. cit. En Loverman, 1998: 510.
462
O Conselho Mundial de Igrejas de Genebra é uma instituição criada em Amsterdã em 1948. Reúne
aproximadamente umas 300 congregações protestantes e cismáticas.
238
Quem provinham do mundo do direito o faziam segundo diferentes trajetórias. Alguns
dos advogados que se integraram à APDH pertenciam ao equipe jurídico da LADH, como
Alberto Pedroncini e Jaime Schmirgeld. Outros eram dirigentes políticos importantes como
Raúl Alfonsín (UCR) e deputado nacional, Oscar Alende, (Partido Intransigente), Fernando
Nadra (PC). Emilio Mignone tinha sido funcionário e uma figura reconhecida dentro do
Partido Justicialista, Augusto Conte foi um dirigente da Democracia Cristiana enquanto Boris
Pasik e Alfredo Galetti o foram do PS. Para todos estes profissionais do direito com vários
anos de ativismo partidário, verdadeiros profissionais da política, se somar a um ativismo em
defesa dos direitos humanos era uma motivação importante. Trata-se de indivíduos para os
quais fazer ativismo por uma causa era o que dava sentido a suas vidas e que encontraram na
APDH um espaço a partir do qual seguir militando numa conjuntura de restrição à atividade
político-partidaria, que tinha a marca da implantação do governo militar. A importância que
tinha esta situação como motivação para aderir à APDH se fez evidente quando, finalizada a
ditadura em 1983, a maior parte dos seus integrantes voltaram a atividade política
profissional, chegando a exercer funções de importância no Estado. Entre eles se destaca o
advogado Raúl Alfonsín, quem foi eleito presidente da nação em 1983. Outros, como Simon
Lazara e Augusto Conte, foram eleitos deputados nacionais. Horacio Ravena ocuparia funções
na chancelaria, Norberto Liwski seria designado como Secretario de Desenvolvimento
Humano e Famílio. Outros voltaram a carreira judicial como Héctor Negri, quem seria
nomeado integrante da Corte Suprema de Justicia do estado de Buenos Aires ou José Maria
Sarrabayrouse Varangot, integrante da CSJ do estado de Catamarca.
A vocação de compromisso com a causa pelos direitos humanos requer ser localizada
dentro deste conjunto de outras opções de ativismo partidário. As possibilidades abertas ao
exercício profissional da política conduziram a um deslocamento deste engajamento
vocacional para o mundo dos partidos políticos e o Estado. Neste contexto, poderia se sugerir
que para este tipo de indivíduos, associações como a APDH constituíram uma forma de fazer
política sem necessariamente atuar dentro dos espaços tradicionais de representação (partidos
ou sindicatos). O capital moral acumulado através desta forma de engajamento foi investido
depois na política profissional. Um processo semelhante foi descrito no capítulo anterior
quando no final da ditadura de Lanusse, muitos dos defensores de presos políticos
abandonaram esta atividade para fazer o seu ingresso à política.
463
463
De fato, num comunicado da Gremial, adverte-se sobre a ‘crise da associação’ e da necessidade de definir de
novo os seus objetivos diante desta ‘nova’ fase.
239
A este núcleo inicial de dirigentes partidários e religiosos se somaram, pouco tempo
depois, parentes das próprias vítimas da repressão como Emílio Mignone e Augusto Conte,
Carlos Ramirez Abella, Boris Pasik e Alfredo Galetti, que também reunia a condição de
serem ativistas partidários e advogados de profissão. Enquanto estes parentes e profissionais
do direito tinham uma trajetória construída em volta à política e a função pública, outros
como Graciela Fenández Meijide, mãe de um jovem desaparecido, se apresentava a sim
mesma como alguém que: “... não tinha nenhuma militância política nem vivia num ambiente
politizado. Trabalhava como professora de francês e de espanhol para estrangeiros (...)
comecei a ‘trabalhar’ [na APDH] com muitas dificuldades para compreender de qual partido
era cada quem, decifrar as siglas...”.
464
Para estes parentes, ‘trabalhar’ na APDH foi o que
marcou a sua profissionalização na política. Em seguida da chegada da democracia, vários
foram eleitos para funções parlamentares ou ocuparam importantes funções dentro do Estado,
reivindicando justamente a dupla condição de parente de ativista pelos direitos humanos. Este
foi o caso de Augusto Conte, eleito deputado nacional em 1983 e de Graciela Fernández
Meijide, quem entre 1993 e 2000 viveu de e para a política integrando o parlamento nacional
e ocupando a função de Ministra de Desenvolvimento Social e Meio Ambiente.
Colocando em perspectiva as trajetórias dos diversos integrantes da APDH é possível
reconhecer que as identidades de parente, tima, advogado, dirigentes político ou religioso
não implicavam categorias excludentes. Como se destaca para o caso de Mignone, entre os
dirigentes políticos e advogados que participaram na APDH, muitos mantinham relações de
extrema proximidade com as vítimas e com seus parentes. Inclusive, eles mesmos eram
parentes das próprias vítimas ou haviam sido vítimas diretas da repressão, como foram os
casos de Alfredo Bravo e Adolfo rez Esquivel. A condição de religioso e profissional do
direito também não eram excludentes, como foi o caso dos nomeados Meyer e Bonino e do
bispo católico Jaime de Nevares, integrante de uma família com uma longa tradição de
profissionais do direito e da política, ele mesmo era advogado antes de se consagrara à vida
religiosa.
Como vai se ver nas páginas seguintes, a conjunção destas diferentes propriedades
sociais (como o nculo do sangue com as vítimas, a formação em direito e o compromisso
partidário ou associativo) vão ser chaves na consolidação da causa pelos direitos humanos na
464
Testemunho reproducido em Veiga, 1985: 118.
240
Argentina. Estas condições locais vão se somar às transformações acontecidas na própria
esfera do ativismo jurídico internacional, criando as condições para a transformação dos
defensores de presos políticos em profissionais dos direitos humanos.
3. 2. 2 Um ‘Centro de Estudos’ Legais e Sociais
Quem no final do ano 1978 se reuniram no Centro de Estúdios Legales y Sociales
(CELS) foram inicialmente ‘parentes de desaparecidos’. No contexto do conjunto de
associações defensoras dos direitos humanos que faziam do vínculo do sangue com as vítimas
um elemento crítico da sua identidade pública, os integrantes do CELS, todos eles parentes e
provenientes de associações já existentes de defesa dos direitos humanos, tanto a APDH como
Madres de Plaza de Mayo (1977), vão se identificar no espaço público a partir da referencia
ao direito e a intenção de executar ‘ações rápidas e decisivas’ no âmbito judicial. A definição
deste âmbito como espaço chave para o ativismo se compreende em tanto estes parentes
participavam de outra qualidade comum: sua condição de profissionais do direito. Entre o
reduzido número de fundadores do CELS se encontravam os advogados Emilio Mignone,
Alfredo Galetti, Boris Paski e Augusto Conte.
Na atualidade, este Centro é uma das organizações civis com maior prestigio da
Argentina e é amplamente reconhecida no espaço internacional como o revelam, entre outras
cosas, as distinções que esta instituição tem recebido, sua capacidade crescente para
concentrar o apoio financeiro e a inserção dos seus dirigentes em organizações internacionais
de direitos humanos. Se distingue notoriamente da APDH, um espaço que continuava
recrutando integrantes segundo disposições vocacionais e que tem uma menor presencia
pública, por assumir um perfil claramente profissional. Justamente, o tempo que meia entre o
momento da sua criação e da atualidade vai estar marcado por um processo de crescente
profissionalização dos seus integrantes, como vai se ver, uma propriedade que está
diretamente associada ao lugar dos vínculos internacionais na sua gênesis.
É por esta qualidade que o CELS é reconhecido hoje entre o conjunto de associações
de defesa dos direitos humanos. Entre quem integram este universo, se encontram referencias
ao Centro como uma instituição que surgiu num contexto no qual “... a participação no
movimento de direitos humanos [era até então] militante, voluntarista e até desesperada (...)
241
Os quatro advogados [fundadores do CELS] aportariam a essa militância o profissionalismo,
a eficiência e a destreza para levar essa luta no plano dos tribunais, da eficiência e a destreza
para levar essa luta ao plano dos tribunais, da documentação sistemática e da denuncia nos
foros internacionais”.
465
Seus estatutos definem como uns dos propósitos centrais da
associação o de: “... executar ações administrativas e judiciais destinadas a procurar a
vigência dos princípios de defesa da dignidade da pessoa humana, da soberania do povo, do
bem-estar da comunidade (...) e do meio ambiente” (...) “Assumir a representação de pessoas
ou grupos afetados em causas cuja solução suponha a defesa de aqueles...” e “prestar
assessoramento nestas matérias”.
466
É precisamente neste ponto onde Mignone destaca as diferencias entre o CELS e a
APDH: “A diferencia das [outras organizações de direitos humanos], o CELS não é uma
instituição dedicada ao ativismo nem de tipo representativo sino, também, de prestação de
serviços e de inter-relação”.
467
A experiência da APDH baseada num modelo ‘parlamentar’
de ação foi avaliada como negativa pelos fundadores do CELS, em quanto a existência de
posições encontradas e as dificuldades para chegar a um consenso dificultavam, segundo eles,
o avanço das ações. A adequada prestação de serviços exigia uma resposta rápida, eficiente e
direita desde o plano jurídico. Desde o ponto de vista de Mignone, a forma ‘consensuada’ em
que devia funcionar a APDH obstaculizava a rápida e efetiva toma de decisões:
“Discrepé durante la época de la dictadura con muchas de sus opciones, alcanzadas
por transacción y consenso y ello me condujo a promover en 1979 la creación del
CELS (...) para realizar actividades que la APDH, por las limitaciones de su
heterogénea composición no se decidía a realizar (...) “La fuerza y la debilidad de
la APDH derivaba de su pluralismo. Le otorgaba representatividad social pero
disminuía la rapidez y la energía de su acción, imponiendo transacciones y
consensos” (...). Además, la ambigua actitud de los partidos políticos y, en
particular, del partido Comunista, obligaba a continuas batallas internas contra la
decisión de no responsabilizar directamente a la dictadura castrense”
468
.
465
Luis Brunschtein. Historia de los derechos humanos. Puentes. Dossier 5. Grifos meus. Tanto o autor da
nota, um jornalista parente de uma vítima do terrorismo de Estado, como a revista onde é publicada esta breve
história do CELS, produzida pela Comisión Provincial por la Memória do governo da província de Buenos
Aires, presidida por dirigentes vinculado à associação Abuelas de Plaza de Mayo são figuras e espaços
amplamente reconhecidos dentro do universo da luta pelos direitos humanos.
466
Estatutos del Centro de Estudios Legales y Sociales. 1980. Grifos meus.
467
Mignone: 1991: 106. Grifos meus.
468
Mignone, 1991: 105.
242
O CELS se dedicou especificamente a trabalhar na preparação de casos a serem
apresentados à Justiça segundo uma complexa taxonomia que distinguia entre
‘desaparecidos’, ‘detidos sem processo’ e ‘detidos por delitos políticos’, para lograr a revisão
de condenas ou mortes em prisão ou em situações duvidosas e a desaparição de crianças
entregados na adoção ao pessoal militar logo do seqüestro dos seus pais. A diferencia da
estratégia da APDH que consistia na apresentação de demandas coletivas, para este trabalho o
CELS levou a frente a defesa de casos particulares selecionando-os segundo as condições que
ofereciam para a determinação de responsabilidades, obtenção de sentenças que
estabeleceram jurisprudência e a possibilidade de produzir efeitos gerais em relação à
vigência do Estado de direito.
469
A seleção de casos segundo o modelo do ‘leading cases’ se
fazia levando em conta a existência de provas da participação de agentes das Fuerzas
Armadas e do Estado no desaparecimento a ser denunciado.
470
“Fomos muito seletivos na
convicção que se um caso avançava judicialmente, podia dar lugar a outros”.
471
De fato,
algumas das causas não foram ‘bloqueadas’ pelos juizes e chegaram a Corte Suprema de
Justiça produziram mudanças na jurisprudência. Entre eles, uma nova interpretação sobre o
Código de Processamentos:
“Hasta las primeras presentaciones del CELS, los familiares de desaparecidos no se
podían presentar ante la justicia como querellantes porque según establecía dicho
Código sólo pueden ser querellantes los hijos, padres o cónyuges sólo en caso de
muerte del damnificado. Pero en estos casos, si bien el desaparecido no estaba
muerto tampoco podía presentarse ante los fueros judiciales. El CELS plantea
entonces que la Justicia debe subsanar esta omisión del Código. Con esta
estrategia, el CELS logró que la Cámara de Apelaciones aceptara esa nueva
interpretación. Otra presentación del CELS obtuvo un fallo favorable de la Corte
Suprema de Justicia que admitió como válido la presentación de habeas corpus
acompañados de pruebas. Cuando se presentaba un habeas corpus, habitualmente el
juez peguntaba a los organismos de seguridad si mantenían detenido a la persona
cuya aparición se requería. Como estas dependencias negaban la detención, los
recursos eran rechazados sistemáticamente. Al acompañarse el recurso de pruebas
que testimoniaban quién, cómo y dónde había sido detenido, la Corte resolvió a
favor de varios habeas corpus y ordenó a los jueces investigar paraderos de
469
Veiga, op.cit.:88.
470
Mignone, 1991:107.
471
Mignone, cit. En Veiga, op.cit.:96.
243
desaparecidos. Mediante la intervención del CELS se obtuvo la anulación de varias
sentencias de tribunales militares y la libertad de algunos detenidos”.
472
Segundo a advogada Lucila Larrandart, no caso dos presos condenados pelos tribunais
militares ou detidos a disposição do Poder Executivo, os recursos extraordinários
apresentados pelo CELS à STJ permitiram que esta admitira que o prazo para sua interposição
começara a andar a partir de que se fizera efetiva a defesa, quer dizer, a partir da apresentação
patrocinada pelo Centro. A partir da criação do CELS, começou também uma tarefa de
‘pesquisa’ nos tribunais, tendente a coletar todo indicio ou elemento que pudesse resultar de
interesse para formular as denuncias:
“La estrategia jurídica de llevar a última instancia los planteos y debatir
jurídicamente el andamiaje ilegal construido por la dictadura (...) tuvo como
consecuencia que, lenta pero sostenidamente, se fuera avanzando. En principio,
consiguiendo que el Poder Judicial tuviera que rendir cuentas de las soluciones y,
luego, que tuviera que admitir y pronunciarse sobre planteos que hasta entonces
habían sido rechazados (...) El paradigma de esto fue la denuncia que hicimos de la
complicidad de la Morgue Judicial (...) por donde habían pasado cadáveres de
detenidos desaparecidos. Esto trajo como consecuencia (...) la identificación de
algunos de los inhumados como NN y la devolución a sus familiares”
473
Para esta advogada, especializada em direito penal, a criação do CEL significou a “...
possibilidade de assumir uma ação jurídica como parte do espaço de resistência e de luta
conta a ditadura (...) [então] se dão as condições para começar a usar entre todos os defensores
dos direitos humanos uma estratégia jurídica que complementara a simples denuncia...”.
474
No testemunho de Larrandart, foi então quando:
“… los abogados revalorizamos el plano jurídico (…) desde el CELS se comienza
a trabajar con casos paradigmáticos, se pleitean casos y se siguen hasta las últimas
instancias jurídicas (…) comenzamos a ver que lo importante es enfocar la
denuncia en el plano de lo jurídico y no hacer solo la denuncia pública sino tomar
casos paradigmáticos y seguir la tramitación ante la justicia (…) desde el programa
jurídico trabajábamos sobre varios ejes: los desaparecidos, los presos a disposición
472
Veiga, op.cit.: 95.
473
Lucila Larrandhart. Exposición presentada en el Seminario CELS 20 años de historia. Diciembre de 1999
474
Palestra no Seminario CELS 20 anos de história. Dezembro de 1999. Grifos Meus.
244
del Poder Ejecutivo Nacional y los civiles condenados por consejos de guerra (…)
trabajábamos con beas corpus transformándolos un poco en una causa, o sea,
pedíamos que se abriera prueba, se abría prueba, y así seguíamos. Y si terminaba
bien, muchas veces el juez cerraba el habeas corpus y formaba la causa por
privación ilegítima de la libertad (…) Entonces ahí se empieza a adelantar
mucho”
475
.
Na atual apresentação institucional do CELS pode-se encontrar um detalhe das suas
atividades prioritárias:
“… el litigio de causas judiciales ante instancias locales e internacionales, la
investigación, la construcción de herramientas para el control y monitoreo de la
sociedad civil sobre las instituciones públicas y la capacitación de organizaciones
sociales, operadores jurídicos, miembros de la comunidad judicial e instituciones
estatales. El CELS desarrolla algunas de estas actividades y estrategias en
coordinación con otras organizaciones nacionales y del exterior”
476
.
Estas estratégias revelam o peso que tinham ao interior desta associação as estratégias
de ação mais propriamente jurídicas (são estas as que definem aos indivíduos como os únicos
sujeitos de direito e é o direito quem define como único sujeito possível ao indivíduo) por
contraste com as ações coletivas propostas pela APDH que, desde o ponto de vista do direito,
eram uma ficção, ‘não tinham valor’ como eles mesmos as qualificaram. Neste contexto,
devem-se entender as referencias ao ‘descobrimento do direito’. Trata-se de profissionais que,
é obvio, conheciam o direito, mas que a partir do CELS privilegiam e aprofundam uma via
de intervenção propriamente jurídica de impugnação ao Estado. Se os integrantes do CELS
participam ativamente do trabalho de amplificação das denuncias tanto no país quanto no
exterior de fato, é esta ação a que os constitui como tais a especialização na intervenção
judicial diferencia a esta associação da APDH e das associações trabalhadas no capítulo
anterior, mas dedicadas a dar visibilidade à causa coletiva. Os esforços de quem integram o
CELS vão na direção oposta: procurar entre os casos que adquiriram uma grande notoriedade,
aqueles que pudessem ser levados a frente na justiça, tentando intervir e produzir mudanças
475
Entrevista realizada por Laura Saldivia a Lucila Larrandhart. Dadas as condições de internacionalização que
marcam o surgimento de uma associação como o CELS, não é simples coincidência que esta definição reproduz
a linha de atuação proposta pelas associações internacionais de juristas que, ao tratar sobre a situação argentina,
colocavam a ênfase na necessidade de aproveitar ao máximo ‘a linha jurídico-legal’ na denuncia das violações
aos direitos humanos.
476
En: documento en página web:
www.cels.org.ar..
245
nesse campo. Esta perspectiva supõe uma definição do compromisso militante que privilegia a
competência profissional por sobre as qualidades ligadas à notoriedade de quem as enuncia ou
ao coragem e ao heroísmo necessário para assumir os casos. Estas transformações vao ser
descritas em maior detalhe a partir do exame da trajetória de Emilio Mignone.
3. 2. 2. 1 A trajetória de um fundador
Para compreender este deslocamento a estratégias de profissionalização do trabalho na
causa pelos direitos humanos e de internacionalização dos seus ativistas no plano local, vou
realizar uma descrição detalhada da trajetória de um dos fundadores do CELS: Emilio Fermín
Mignone.
477
Quem freqüentaram a Migone nesse anos lembram: “... na sala da sua casa foi
criado o CELS (...) foi ali que se fez a coleta de dinheiro e de assinaturas para financiar a
publicação de um abaixo-assinado”.
478
Um percurso pela trajetória de Mignone permitirá reconhecer as propriedades sociais
reunidas numa figura que, com anterioridade ao golpe de Estado de 1976, mantinha vínculos
com altos círculos militares, eclesiásticos, políticos e acadêmicos locais e internacionais. Pai
de cinco filhos, o golpe de Estado de 1976 vai significar um momento de dramática inflexão
na sua trajetória pessoal e profissional:
“El 14 de mayo de 1976 (...) cinco hombres fuertemente armados con granadas y
ametralladoras irrumpieron a las cinco de la madrugada en el departamento donde
todavía vivo en pleno centro de Buenos Aires. Varios automóviles y varios otros
efectivos, igualmente armados, esperaban en la puerta (...) Los intrusos
manifestaron pertenecer al ejercito argentino (...) Permanecieron cuarenta minutos
dentro de mi casa (...) En un primer momento pensé que me buscaban a por
haber ejercido hasta el 24 de marzo de 1976 el rectorado de la Universidad
Nacional de Luján y encontrarse detenidos en ese momento varios colegas.
Preguntaron, en cambio, por mi hija Mónica, que dormía, y se la llevaron en
presencia de su madre, sus hermanos y mía. (...) Le dimos un beso y nunca más la
vimos. Pasó a ser uno de los millares de ‘desaparecidos’ que las Fuerzas Armadas
477
Emilio Mignone faleceu no ano 1998, razão pela qual a sua trajetória foi reconstruída, principalmente, a partir
dos testemunhos que ele mesmo deixou no seus livros.
478
Em: Ripa, 1999: 217.
246
dicen haber eliminado en arduos combates de una guerra terrible (...) A partir [de
la desaparición de mi hija] mi departamento en Buenos Aires se constituyo en un
centro constante de contactos y reuniones, pues las organizaciones de derechos
humanos, excepto la LADH, carecían de oficinas”.
479
Emilio Femín Mignone nasceu em 1922 na localidade de Luján, no estado de Buenos
Aires, uma cidade localizada a 70 km. da Capital Federal e sede de uma importante basílica e
centro de peregrinação espiritual mais importante da Argentina.
480
Seu pai, Emilio Mignone,
foi um homem de negócios e sua mãe, Candelária Mujica, era professora na escola. Como já
reconheci nos capítulos anteriores, muitos dos profissionais do direito que assume
publicamente o compromisso na defesa de presos políticos estão desprovidos de um capital de
relações importantes dentro do mundo do direito. Trata-se, ao igual que Mignone, de
indivíduos que não pertenciam ao establishment de famílias e de escritórios tradicionalmente
ligados ao direito.
Um outro traço que marca a fogo a posição de Mignone no mundo dos direitos
humanos na Argentina e que permite compreender os vínculos deste com associações
internacionais de juristas, como a CIJ criada logo depois da Segunda Guerra Mondial com o
propósito de denunciar a infiltração comunista no contexto da chamada Guerra Fria, foi a sua
formação e importante ativismo católico. Esta referencia a sua trajetória é chave para
compreender as possibilidades abertas a uma figura como Mignone e a um espaço como o
CELS. Mignone egresso em 1940 com o melhor promédio de um colégio dirigido por pais
maristas, o Instituto Nuestra Señora de Luján. Entre 1944 e 1947, durante seus anos como
estudante universitário, participou ativamente na associação Juventud de Acción Católica,
integrando seu Conselho Superior. Mesmo que estas relações tiveram a sua origem na
juventude, eles foram continuados e atualizado ao longo de toda a sua trajetória profissional e
acadêmica, ao ponto que, quando se produz o golpe de Estado, ele se encontrava participando
dos encontros promovidos pelo Consejo Episcopal Latinoamericano (CELAM), como
reitor da Universidad de Luján. Foram estas relações em volta ao espaço da igreja católica as
que possibilitaram que, durante a ditadura militar, fosse recebido três vezes pelo núncio
479
Mignone, 1991: 92 y 94. Vale la pena salientar que Mónica Mignone continúa desaparecida.
480
A importância da Basílica de Nuestra Señora de Luján se evidencia no fato de que foi visitada pelo Papa Juan
Pablo II durante a sua visita a Argentina em 1982.
247
apostólico Pio Laghi e foram essas mesmas relações as que o orientaram no inicio à APDH e
ao ativismo na causa pelos direitos humanos.
481
Definindo-se como um “típico produto da Asociación de los Jóvenes Acción Católica,
o próprio Mignone destacava a importância destes vínculos prévios:
“Una de las primeras personas con quien procuramos establecer contacto fue con
Monseñor Tortolo (…) había sido Vicario General de la diócesis de Mercedes (...)
era en aquel momento Arzobispo de Paraná, Vicario de las Fuerzas Armadas y
Presidente de la Conferencia Episcopal Argentina (...) era amigo y consejero de
Videla y Agosti (...) La relación de mi esposa y mía con Monseñor Tortolo venía
de la década de 1940, cuando ambos militábamos en la Juventud de Acción
Católica en la ciudad de Lujan, en jurisdicción de la diócesis de Mercedes (...) Al
regresar de América del Norte, en un viaje a Entre Ríos en 1968, lo visite con mi
familia (...) [volví a encontrarme con él ] pocos días después de la detención y
desaparición de mi hija, en el local de la Conferencia Episcopal junto con un grupo
de padres y madres de otros ‘desaparecidos”.
482
Estas convicções distanciavam a Mignone da LADH e da própria APDH, onde
também participavam integrantes do PC. Tanto Mignone quanto Galetti e Conte, todos
integrantes da APDH, tinham um forte ativismo católico. Mignone expressa em uma das suas
publicações quais eram as suas expectativas a respeito do papel da Igreja Católica durante a
ditadura: “Se a hierarquia católica se houvesse decidido a defender a dignidade da pessoa
humana com métodos efetivos e não com inócuas declarações abstratas, sua participação na
APDH não houvesse sido questionada ou se houvesse criado uma instituição diretamente
dependente da Igreja como a Vicaría de la Solidaridad em Chile”.
483
Estas expressões sugerem, como o mesmo Mignone o explicita no seu livro, que as
relações entre alguns setores da APDH, especialmente os dirigentes ligados ao PC e os
representantes da igreja católica não sempre foram harmônicas e que os representantes da
igreja não tinham capacidade suficiente para impor seus pontos de vista. Segundo Mignone, o
481
Ele mesmo frisava que: “… a mediados de 1976, para entrar em contato com [a APDH] escrevi ao obispo
Gattinoni”. Em: Mignone, 1991: 104.
482
Mignone, 1999, Pág. 20, 21 y 22, Grifos meus.
483
Mignone, 1991: 102. Grifos meus. Segundo Mignone, De Nevares, presidente de honra da APDH, tinha
proposto a criação de uma vicaria da solidariedade sobre o modelo de Chile mas a iniciativa foi rejeitada pelo
voto da maioria dos prelados da nunciatura portenha. Em: Mignone: 1999: 146.
248
PC procurou sempre o controle da APDH, fato que se fez efetivo na incorporação ao seu
Comitê Executivo do advogado e dirigente do PC e da LADH, Jaime Schmirgeld. As tensões
chegaram inclusive a separação de uma das suas militantes, Eugenia Manzanelli: “... esta
militante foi destinada pelo partido a outras tarefas devido a suas dificuldades com outros
setores políticos e ideológicos” (op.cit.).
Desde o ponto de vista de Mignone, a LADH constituía uma associação satélite do PC
e, por isso, “... viu sempre diminuída a sua autoridade e objetividade por se negar a
reconhecer as violações aos direitos humanos cometidas na União das Repúblicas Soviéticas
Socialistas e em outros países do denominado socialismo real e do Terceiro Mundo”.
484
Na
perspectiva de Mignone, mesmo que a “... presencia comunista foi sempre minoritária e
discreta, foi influente, o qual dava lugar a permanentes discussões em razão da atitude
ambígua a ditadura militar que, as vezes, chegava ao colaboracionismo.
485
Segundo o ponto de vista do fundador do CELS, os compromissos entre o PC e as
Forças Armadas fizeram que, durante muito tempo, dentro da APDH, se pensara que as
desaparições respondiam a ‘excessos’ de alguns integrantes das forças repressivas. “Por isso
se solicitava ‘respeitosamente’ às autoridades que pesquisaram o paradeiro dos detenidos-
desaparecidos (...) e se sancionara aos ‘terroristas de ambos os signos’. Os documentos
emitidos pela APDH eram, em termos de Migonen, extraordinariamente cautelosos. Se “...
atuava como si a ditadura militar não fosse a responsável da situação que se vivia, colocando
a responsabilidade no terrorismo da ultra-esquerda e da ultra-direita, acreditando na
intervenção retificadora da junta militar...” (op.cit.). A posição assumida por Mignone, Conte,
Galotti e Pasik se distanciava da estratégia de um setor da APDH:
Nunca dudé de la responsabilidad del gobierno de las Fuerzas Armadas en las
denominadas desapariciones y tempranamente llegué a la conclusión que formaba
parte de una planificación cuidadosamente elaborada. Como todo los familiares de
detenidos-desaparecidos guardaba en el fondo de mi corazón la esperanza de un
484
Mignone, 1991: 101. Esta ação de denuncia está na origem de várias das associações internacionais de juristas
e de direitos humanos como a CIJ e Anistia Internacional que, ao longo dos seus primeiros anos, receberam com
este propósitos fundos da CIA. Em: Dezalay y Garth, 2002.
485
Mignone, 1991: 102. Por meio deste termo acusatório Mignone se refere à posição do PC ao longo da
ditadura. Por causa de fortes interesses econômicos que se criaram entre Argentina e a então URSS, o PC tendeu
a obstaculizar as denuncias internacionais contra a junta militar. Na Comissão de Direitos Humanos da ONU,
por exemplo, os representantes de Cuba votaram sempre em contra de aplicar sanções ao governo argentino
como conseqüência das graves denuncias de violações aos direitos humanos.
249
reencuentro, pero al poco tiempo llegué a la conclusión que no existían los
ansiados campos de concentración (...) Esto [hizo] que me formara muy pronto una
interpretación correcta de los mismos, conduciendo a la elaboración, junto con
otros compañeros, de la teoría que más adelante, ante la imposibilidad de
impulsarla en otras organizaciones, nos impulsó a crear el CELS y a exponerla
públicamente”.
486
Mignone fez seus estudos de direito na Universidade de Buenos Aires entre 1944 e
1947. Começou sua atividade como professor desta universidade recém-formado. Naquela
época se desempenhou como professor de política educacional, filosofia e religião católica
num colégio secundário. Nos anos cinqüenta, quando o golpe de Estado de 1955 derrubou ao
governo de Perón, Mignone se viu obrigado a deixar a função pública (era Director General
de Educación) e voltou a atividade acadêmica. Foi professor de História Argentina
Contemporânea no Instituto Autônomo del Profesorado Secundário del Consejo Superior de
Educación Católica e professor de direito político na Universidade Católica de Buenos Aires
desde 1960. Depois de um outro período dedicado à função pública, entre 1971 e 1973 voltou
à atividade acadêmica e interveio como pesquisador e diretor do Instituto de Estúdio de la
Ciência Latino-americana, que pertencia a Universidad del Salvador, uma entidade
dependente então da Compañia de Jesús. Quando finalizou a ditadura do General Lanusse em
1973, Mignone participou da criação da Universidad de Luján, onde assumiu como reitor, até
que foi deixado cessante logo depois do golpe de Estado de 1976. Nesses anos de exercício
profissional, a atividade acadêmica ocupou um espaço importante, mesmo que esteve ligada
especialmente aos períodos de proscrição política. Outro elemento que se deriva da sua
trajetória é que na maturidade do seu desempenho acadêmico, Mignone continuou fortemente
ligado ao circuito da igreja católica.
487
486
Mignone, 1991: 95.
487
Esta qualidade a respeito da relação entre a política e o campo intelectual na Argentina já foi identificada e
examinada em detalhe por F. Neiburg: nos períodos de proscrição, o seja quando alguns indivíduos perdem
espaço na política, então se deslocam ao mundo acadêmico. Na realidade, se dedicar a academia (se preparar
para voltar depois à política em condições mais favoráveis) é uma forma de fazer política por outros meios. Em:
Neiburg, 1998. Estes deslocamentos parecem seguir a mesma lógica se examina-se a relação entre a política e o
ativismo na causa pelos direitos humanos, como mencionei antes a respeito dos integrantes da APDH a partir
de 1983 ou das associações como a Gremial em 1973 (duas datas que marcam o fim de governos ditatoriais). O
declino no compromisso com os direitos humanos se insere neste contexto maior de oportunidades. Isto não
parece acontecer, não obstante, em relação ao CELS que, em democracia, tem logrado não manter seu nível
de ativismo mas também incrementar-lo exponencialmente. A profissionalização do trabalho de defesa é uma
das chaves que da conta desta diferencia.
250
Emilio Mignone exerceu em forma privada a profissão de advogado durante breves
intervalos tanto na cidade de Buenos Aires quanto em Mercedes, localidade do estado de
Buenos Aires, atuando como síndico da Sociedad de Electricidad de Luján (1949-1952).
Contudo, foi o exercício da função pública o que constituiu um dos elementos centrais da sua
trajetória. Sendo estudante universitário e, a despeito do fato que nesses anos, uma parte
significativa dos estudantes havia assumido uma forte oposição ao governo de Perón,
Mignone afiliou-se ao partido peronista e começou a se desempenhar nos Tribunais de
Trabalho. Em seguida, em 1948, assumiu como Diretor Geral de Educação do estado de
Buenos Aires, onde permaneceu até 1952. Logo, entre junho de 1969 e maio de 1971,
acompanhou desde a gestão pública ao governo da Revolução Argentina, iniciado pelo
General Onganía. Neste período foi Subsecretario de Educação da Nação. Produzido o golpe
de Estado de 1976, e poucos dias antes da desaparição de sua própria filha (14.05.1976),
mantinha uma relação de estreita proximidade com o novo governo. Como ele mesmo
descreve:
“En los primeros días de abril de 1976 fui invitado a una recepción organizada por
la representación del Banco Interamericano de Desarrollo (BID) con motivo de la
llegada de una misión financiera. Predominaban en el encuentro los funcionarios de
la nueva administración (...) Al encontrar a un amigo, el economista Carlos
Brignone me acerque a él. Me presentó a su interlocutor. Era Walter Klein, padre
del segundo hombre en el Ministerio de Economía”
488
.
Esta experiência na função pública lhe permitiu acumular um importantíssimo capital
de relações. Como adverte um jornalista e parente de desaparecidos: “... como funcionário,
havia conhecido os labirintos do poder e seus personagens. As duas coisas lhe serviram na
488
Mignone, 1999, Pág. 20. Carlos Brignone, identificado por Mignone como o seu amigo pessoal, havia sido
asesor no Ministerio de Economia durante a Revolução Libertadora que derrubou a Perón em 1955. Compartia
com Mignone uma trajetória internacional. Tinha feito estudos de pós-graduação em Harvard. Em 1971 tinha
assesorado ao General Lanusse na elaboração do seu programa econômico e, a partir do golpe de Estado de
1976, atuou como assessor do ministro de economia Adalberto Krieger Vasena, a quem já conhecia desde os
anos 50 quando ambos foram parte do governo que liderou o general Aramburu trás o derrubamento de Perón.
Estas observações permitem relativizar as oposições taxativas na maneira em que se representam os diferentes
bandos na política nacional. No lugar de uma incisão, deveríamos reconhecer que existem lugares mais cinzas.
Mignone, que era peronista, tinha vínculos de amizade com integrantes da Revolución Libertradora que derrubou
a esse mesmo governo em 1955. Isto mesmo havia sido identificado entre os advogados e profissionais da
política descritos no capítulo 1. O golpe de Uriburu não dividiu à sociedade em dos bandos opostos, já que
existiram várias incorporações de quadros do PS ao governo de Justo e conservadores junto com radicais e
socialistas formaram até uma aliança eleitoral.
251
procura da sua filha Mônica para chegar a generais, almirantes e bispos”
489
. De fato, pouco
tempo depois de produzida a desaparição da sua filha, Mignone conseguiu se entrevistar com
figuras chaves das Forças Armadas como o próprio almirante Eduardo Massera, integrante da
Junta Militar de governo e comandante em chefe da Marinha de Guerra. Reuniou-se também
com o almirante Oscar Montes, chefe de operações navais e posteriormente Ministro de
Relações Exteriores, e com o almirante Bouhier, com o general José Antonio Vaquero,
subchefe do Estado Maior do Exército, com o general Jorge Olivera Rovere e com o coronel
Roberto Roualdes, respectivamente segundo comandante e chefe de operações do Ier. Corpo
do Exército. Participou também de uma recepção em Washington na embaixada argentina
onde se entrevistou informalmente com o capitão de navio Fracassi, ajudante direto de
Massera.
A proximidade com este universo de relações vai além da sua atuação pública. Elas
também faziam parte do seu mundo privado de relações: entre as amizades da sua filha
Mônica se encontrava a filha de um capitão de navio, ao mesmo tempo, cunhada de um
almirante. “Sendo estudante secundária, participava em missões de promoção humana, social
e religiosa na Patagônia”. Ali “... compartiam tarefas de conscientização e promoção social,
religiosa e política na Parroquia Santa Maria del Pueblo, situada numa favela de Flores
Sur”.
490
Estas missões na Patagônia estavam dirigidas justamente pelo advogado, dirigente da
Igreja Católica e futuro integrante da Asamblea Permanente por los Derechos Humanos, o
bispo Jaime de Nevares.
O último elemento decisivo na sua trajetória e na compreensão das possibilidades
abertas a uma associação como o CELS foi a inserção de Mignone no espaço internacional.
Entre os anos 1962 e 1967 iniciou a sua carreira neste espaço, atuando no marco da chamada
‘Alianza para el Progreso’ como chefe da Divisão de Projetos do Departamento de
Cooperação Técnica da Organização de Estados Americanos (OEA), motivo pelo qual residiu
em Washington durante esses quatro anos. Ao retornar à Argentina, os vínculos criados
489
Em: Luis Bruschtein “Para recordar a um luchador”. Página/12. 27 de dezembro de 1998. Todos estes
contactos não foram suficientes, contudo, para salvar a vida da sua filha.
490
Mignone, 1999. Sua filha parecia continuar participando dos interesses e da esfera de relações do seu pai.
Mantinha vínculos com a igreja, onde tinha uma participação ativa como missioneira laica. Se havia formado
como psico-pedagoga na Universidade do Salvador, onde seu pai era professor e seu círculo de amizades incluía
a filhas de militares e pessoas ligadas a igreja. Pela sua vez, trabalhava como professora na Universidade
Nacional de Luján, onde seu pai era reitor. Também militava na Juventud Peronista. Ao se referir a sua filha,
Mignone detalha que ambos “... colaborávamos com a cooperativa de vivendas Madre del Pueblo, que levava
construído já três bairros” na favela do Baixo Flores (ibidem 152).
252
durante a sua permanência em Washington se prolongaram que Mignone integrou o
Conselho de Administração do Latin American Scholarship Program (LASPAU)
491
e, a partir
do golpe de Estado de 1976, atuou como pesquisador e diretor da sede de FLACSO em
Buenos Aires.
A intervenção de Mignone nesta esfera internacional ligada à educação parece
corresponder-se com o processo mais general identificado por Dezaley e Garth de decidida
inversão dos EEUU orientada a alcançar reformas educativas em América latina. Elas se
concentraram em melhorar a qualidade das disciplinas científicas locais em nome da
modernização e do desenvolvimento econômico. Nos EEUU, estes espaços foram
preenchidos por uma nova geração não necessariamente recrutada da elite dirigente
tradicional dos grandes advogados de empresas de Nova York. Tratava-se de um segmento da
profissão jurídica que não dispunha de um capital herdado no mundo do direito, fato pelo qual
privilegiou a sua competência profissional.
492
Na América latina, aqueles indivíduos que
estavam desprovidos de um capital social e familiar que lhe permitira se deslocar nos círculos
tradicionais do poder eram potencialmente quem podiam tirar maior proveito destas novas
oportunidades de carreira. Desde a perspectiva dos EEUU, estes programas procuravam
combater o comunismo por meio da introdução de idéias e tecnologias que conduziriam ao
desenvolvimento econômico, evitando o crescimento da esquerda. A trajetória de Mignone
parece se corresponder inclusive com o paradoxo que destacam estes autores referido a que
muitos destes promotores da Alianza para el Progreso nos países do Cono Sur terminariam
sendo rotulados de comunistas pelos regime militares que assaltaram o poder nos anos
setenta.
493
A criação de uma organização como o CELS deve ser compreendida como resultado
da extraordinária conjunção de propriedades sociais reunidas nas trajetórias dos seus
fundadores, principalmente de Emilio Mignone, e uma conjuntura internacional definida pela
transformação das associações vinculadas à defesa dos direitos humanos. A trajetória de
Mignone combina experiência em gestão, pertença ao mundo acadêmico, ativismo político e
fortes convicções católicas e anti-comunistas. Esta conjunção fez possível combinar as
estratégias de internacionalização dos profissionais do direito locais com as estratégias de
491
LASPAU é uma organização não governamental filiada à Universidade de Harvard e orientada ao desenho e
desenvolvimento de programas acadêmicos e profissionais para residentes do continente americano.
492
Dezalay y Garth, 1998a.:29
493
Dezalay y Garth, 2002: 35 y 48.
253
profissionalização das associações internacionais de juristas. Emilio Mignone seria uma figura
chave na articulação deste grupo de profissionais do direito com as redes internacionais de
denuncia e na consolidação de um perfil profissional para o CELS. Segundo Dezalay e Garth,
o movimento internacional de direitos humanos é o produto direto da vinculação entre
profissionais do direito com um perfil semelhante ao de Mignone e um grupo de recém-
chegados ao campo do ativismo internacional, engajados inicialmente com o desenvolvimento
do Terceiro Mundo e a luta contra o comunismo.
494
3. 2. 2. 2 Os direitos humanos como profissão
Segundo Nicolas Guilhot, “... nada testemunha melhor este fenômeno da
profissionalização do ativismo na causa pelos direitos humanos que os esforços das
associações civis dos paises centrais por criar associações equivalentes no exterior”.
495
Foi este o fenômeno que esteve presente na gênesis desta instituição, o CELS, cujo
nome imita a uma associação dedicada ao direito de interes público nos EEUU, o Center of
Legal and Social Policy, criado por Leonard Meeker em Washington. O engajamento destes
juristas americanos deve-se compreender como parte dos princípios de legitimação dos
profissionais do direito nos EEUU, que combina a dedicação ao direito corporativo com o
direito em favor dos mais necessitados. Segundo Dezalay e Garth, “... se aspira a que um
advogado de empresas, que pretenda seguir uma carreira ao interior da elite, invista em
promover serviços jurídicos para os mais necessitados...”.
496
Este é justamente o perfil de
Meeker, quem combina uma posição dentro do mundo jurídico, da academia e da política.
Meeker era um advogado que tinha sido diretor de um importante estudo jurídico orientado ao
direito de interes público nos EEUU, ex embaixador em România e, justamente na época que
entrou em contato com Mignone, era assessor legal do Departamento de Estado, função que
desempenhou até mediados dos anos oitenta.
494
Op. Cit. : 48.
495
Em: Guilhot, 2001. op.cit.
496
Dezalay e Garth, 2002, op.cit.
254
A despeito das diferenças entre os perfil profissionais de ambos os juristas, a retórica
dos direitos humanos os vinculou de maneira perfeita. Esta associação internacional incidiu na
definição do perfil do CELS como na sua orientação e estrutura.
497
A participação nestas
redes esta entre as condições que deram origem ao CELS. A sua criação já foi anunciada no
relatório de novidades que a embaixada de EEUU enviava semanalmente ao Secretario de
Estado dos EEUU. Neste relatório pode-se ler:
“Un grupo de abogados, liderados por Augusto Conte McDonald y Emilio
Mignone, han abierto el 4 de julio [de 1979] un estudio jurídico llamado Centro de
Estudios Sociales y Legales, CELS. Una oficina ha sido alquilada y amueblada en
las proximidades de los tribunales en el centro de la ciudad de Buenos Aires. Doce
abogados y paralegales han comprometido su trabajo voluntario en acciones
relacionadas con derechos humanos y otro tipo de casos como cuestiones
ambientales y procedimientos criminales, para los cuales es difícil obtener
representación legal dado la escasa popularidad de los casos. Los fondos para el
Centro han sido facilitados por la visita del embajador Leonard Meeker en los
primeros días de mayo del presente año, con fondos obtenidos por su propia
fundación para la ayuda de asociaciones de derechos humanos”
498
.
O termo ‘centro de estudos’ para nomear a esta associação defensora dos direitos
humanos aparece como uma novidade e está ligada à intenção de qualificar sob a categoria
‘conhecimento experto’ ou ‘atividade acadêmica’ o ativismo militante. Este investimento na
credibilidade acadêmica vai fazer parte também das estratégias seguidas por vários dos
defensores de presos políticos que, como vai se ver na análise de suas trajetórias no exílio,
realizaram estudos de pós-graduação em direito internacional. A condição de acadêmicos era
compartilhada por dois dos membros do reduzido número de criadores do CELS: Mignone e
Westerkamp.
Assim como o sugere Nicolas Guilhot para outros casos semelhantes surgidos nos
EEUU, a atribuição desta condição de ‘Centro de Estudos’ pretende conferir um título de
497
Vale a pena Salientar que este mesmo fenômeno foi identificado por Fernando Rojas Hurtado (1992) no seu
estudo sobre a criação de serviços jurídico alternativos em Chile, Peru, Colômbia e Equador.
498
Relatório da situação dos direitos humanos enviado pela embaixada americana em Buenos Aires ao Secretário
de Estado de EEUU. Julho 6, 1979. Minha tradução. Em: documentos desclassificados pelo Departamento de
Estado dos EEUU. Em:
www.desclasificados.com.ar
255
nobreza a uma entidade cuja lógica de funcionamento está por fora da ordem da ciência.
499
A
criação de um ‘centro de estudos’ como o CELS supõe o intento por impor a categoria
‘perito’ num campo até então relativamente alheio do mundo acadêmico, fazendo apelo,
justamente, ao aval das disciplinas científicas conhecidas e reconhecidas: trata-se de um
centro dedicado aos estudos legais e não a uma causa extremadamente politizada, como era
então, a causa pelos direitos humanos. Vale a pena lembrar que nos anos sessenta e começos
dos setenta, as associações internacionais de defesa dos direitos humanos ainda eram
consideradas no espaço público como extremadamente politizadas. Se desde o ponto de vista
da Comissão Internacional de Juristas, a AIJD era pró-soviética, desde o ponto de vista desta
última, a CIJ era a expressão do imperialismo norte-americano. Neste contexto, se inscreve o
surgimento de Anistia Internacional e outras associações do mesmo tipo que tiveram um
crescimento muito importante, embandeiradas na defesa ‘técnica’ e ‘apolítica’ dos direitos
humanos.
O capital de relações internacionais que Mignone havia acumulado ao longo do seu
desempenho acadêmico, profissional e político, constituiu uma condição de possibilidade para
uma associação como o CELS. A experiência de gestão de um programa internacional lhe
permitiu a Mignone reconhecer a importância desta dimensão para o avanço do ativismo
jurídico na causa pelos direitos humanos. Nos anos da sua residência em Washington, havia
estabelecido contatos e amizades pessoais com muitos juristas e homens da política, tanto
local como internacional.
A fins de 1976, havia entrado em contato com a primeira missão de Anistia
Internacional que veio à Argentina. Um dos seus integrantes era justamente um sacerdote
jesuíta norte-americano, Robert Drinan, então deputado nacional pelo partido democrata.
Reiteradas vezes Mignone viajou a Washington, Londres e Genebra. Em Londres foi recebido
por Anistia Internacional e em Genebra pelos integrantes da Comissão de Direitos Humanos
da ONU. Destes vínculos com funcionários do Estado americano resultaram vários encontros
com Patrícia Derian, a responsável de direitos humanos do governo dos EEUU e com o
próprio secretário de Estado, Cyrus Vance. Desde os inícios do governo militar, manteve
freqüentes contatos com funcionários da embaixada dos EEUU perante os quais havia
denunciado o caso da sua filha e com quem mantinha encontros periódicos para lhes informar
499
Ghilhot, 2001.
256
da situação. Mignone era rotulado nos documentos que a embaixada enviava ao Departamento
de Estado como ‘um muito bem qualificado acadêmico que trabalhou para a OEA em
Washington entre 1962 e 1967. Foi o mesmo embaixador que fez o contato com Leonard
Meeker, diretor do Center of Legal and Social Policy, do qual o CELS obteve financiamento e
inspiração:
Este contato resultaria crítico na criação do CELS:
“En abril de 1979, la Association of the Bar of the City of New York
(Colegio de Abogados de la Ciudad de Nueva York) envió a la Argentina una
misión (…). El impulso para el envío de la delegación provenía del entonces
naciente Lawyers Committee for Human Rights, bajo la animación de su director
ejecutivo Michael H. Posner. Tenia por objeto averiguar la veracidad de las
denuncias sobre violaciones a los derechos humanos y las trabas al ejercicio de la
profesión de abogado en la Argentina. Se trataba de un conjunto de distinguidos
letrados del foro neoyorkino, algunos de ellos miembros de prominentes estudios y
vinculados a empresas multinacionales. Por esa circunstancia el embajador de la
dictadura militar Argentina ante la Casa Blanca, Jorge Aja Espil, aceptó la
propuesta de la visita considerando, equivocadamente, que dicha condición
garantizaba el apoyo a un régimen vinculado con los grandes intereses económicos
y con la oligarquía financiera y forense local. No contaba con la probidad y
adhesión a los valores de la dignidad humana de los integrantes de la misión. En
siete días la delegación cumplió una labor excepcional. (...)
Me tocó acompañar y orientar, junto con otros abogados con quienes
estábamos formando el CELS, a los integrantes de la misión. A lo largo de esas
conversaciones se fue gestando la idea de lo que seria nuestra institución. (...).
Poco después arribó a Buenos Aires el abogado estadounidense Leonard Meeker.
Retirado como director de la asesoría jurídica del Departamento de Estado y ex
embajador en Rumania, Meeker concentraba su actividad en el Center for Legal
and Social Policy, ubicado en Washington D.C. y dirigido a promover causas
judiciales para evitar abusos contra personas y el medio ambiente. Nos sirvió de
inspiración para la labor proyectada y para nuestro nombre y como su institución
contaba con algunos fondos para proyectos en el Tercer Mundo, nos proporcionó
los primeros y valiosos recursos para iniciar nuestra tarea (…) Finalmente la
iniciación del CELS se encuentra íntimamente ligada con la CIDH de la OEA (...)
257
su secretario ejecutivo era un antiguo amigo mío, el diplomático y profesor
universitario chileno Edmundo Vargas Carreño”
500
.
Neste relato, Mignone faz referencia a rios dos pais fundadores das associações de
direitos humanos norte-americanas. Estes pertenciam a pequena elite de advogados de
negócios que, pela sua vez, eram parte do establishment da política exterior de fines da
Segunda Guerra Mundial. Segundo Dezalay e Garth, estavam todos orientados ao mesmo
objetivo: a luta contra o comunismo. Este mesmo perfil se continuou durante a administração
Kennedy e chegou a seu fim nos anos sessenta. Neste momento fizeram sua chegada um
segmento de recém-chegados ao mundo do direito, desprovestes de uma herança de relações
sociais e familiares dentro desta elite de juristas e que fizeram apelo a sua competência
profissional como principio de legitimidade. Estes juristas deslocaram aos notáveis do direito
da CIJ e criaram associações novas como a mencionada por Mignone, o Lawyers Comitê for
Human Rights. Foi nesse momento quando se originou o processo de profissionalização do
engajamento militante em estas associações internacionais.
501
Estas fortes ligações com a esfera internacional se traduziram na afiliação do CELS à
Comissão Internacional de Juristas e à Liga Internacional pelos Direitos Humanos de Nova
York e na sua atuação como correspondente da Federação Internacional de Direitos Humanos
de Paris (FIDH). Também no apoio financeiro de inúmeras fundações, governos e instituições
acadêmicas como a Fundação Ford, a National Endondowment for Democracy, o Center for
Justice and International Law e as embaixadas de Holanda e Inglaterra, entre muitos outros.
A esfera internacional também foi crítica na possibilidade de financiar todas as
atuações judiciais levadas adiante pelo CELS. O pagamento de honorários profissionais foi
uma condição que distinguiu ao CELS desde os seus inícios, em tanto as outras se baseavam
num engajamento puramente vocacional. Mesmo que os integrantes da APDH também
participaram nos cenários internacionais de denuncia, como foram as sessões na ONU da
Comissão de Direitos Humanos e de outras atividades promovidas pelas associações
internacionais de juristas, e inclusive obtiveram fundos das agencias internacionais, como o
Conselho Mundial de Igrejas entre outras, estes fundos se utilizaram principalmente para
financiar as despesas operativas da APDH, para financiar a publicidade das denuncias e para
500
Mignone, 1991: 109 y 111.
501
Dezalay e Garth, op.cit. : 62 e 66 ao 68.
258
adquirir uma sede própria: “... com os fundos aportados por eles, se adquiriu um escritório na
rua Viamonte e finalmente, se conseguiu comprar o esplendido apartamento da avenida
Callao, todo graças à generosidade do Conselho Mundial de Igrejas e das fundações que
cooperavam com elas.
502
Atualmente, o 99% das pessoas que ‘militam’ na APDH o faz sobre
a base de trabalho voluntário
503
. Enquanto para a sua atual secretaria, isso é um resultado do
fato que os fundos internacionais se orientaram a outros países uma vez que a Argentina
voltou a democracia, o caso do CELS, que continua recebendo importantes fundos
internacionais, mostra que instituições com o perfil associativo que tem a APDH, por
exemplo, perderam capacidade de concorrer no mercado transnacional de fundos
filantrópicos. Estes vão ser capturados por associações como o CELS, surgida diretamente da
participação do seu fundador nas redes internacionais de juristas e baseada num perfil
‘técnico’ e ‘profissional’. Logo depois do triunfo de Reagan, o CELS recebeu o apoio
financeiro da Fundação Ford
504
. O êxito progressivo que obteve o CELS no mercado
internacional de recursos filantrópicos pode-se perceber na listagem de associações que o
financiam.
Os recursos financeiros internacionais que dispunha o CELS foram utilizados para
criar uma equipe de advogados dedicados profissionalmente ao litígio de causas judiciais.
Esta possibilidade esteve presente na APDH, e foi avaliada positivamente pelo próprio
Mignone: “A vantagem do PC provinha do fato que estava em condições de financiar a
presencia na instituição de militantes com dedicação exclusiva (...) contava com funcionários
permanentes e com advogados, embora, fossem muito seletivos na sua assistência”.
505
Independentemente da veracidade desta afirmação, interessa ver como o fato de perceber
honorários profissionais aparece investido de uma qualidade positiva por quem criara as
condições para a profissionalização na defesa dos direitos humanos. Os advogados fundadores
do CELS pertenciam a mesma geração (em meia, tinham 50 anos em 1976, o que os coloca
502
Mignone, 1991: 104.
503
Entrevista a Alicia Herbon realizada por mim. Buenos Aires. Junho 2002.
504
Em: Guest, 1990: 213. Segundo este autor, Meeker aportou uma contribuição inicial de U$S 40.000. Dezalay
e Garth qualificam a Fundação Ford como uma ‘campeã da profissionalização do ativismo’ no campo dos
direitos humanos na América latina. Sobre o paradoxo de que uma instituição como esta tenha começado a
intervir neste campo das mãos da CIA e do projeto do Departamento de Estado dos EEUU no contexto da guerra
fria e logo tenha protegido a toda uma nova geração de associações civis dedicadas à defesa dos direitos
humanos, ver Dezalay e Garth, 1998 a.
505
Mignone: 1991: 101 e 102. Grifos meus. Pela sua vez, o próprio Mignone, uma vez produzido o golpe de
Estado, abandonou as suas tarefas profissionais, o que lhe permitiu se dedicar com exclusividade à causa: “...
reduzi drasticamente meu nível de vida para dedicar todas as minhas energias à luta contra a ditadura militar”.
Mignone, 1991:94.
259
numa geração anterior a dos integrantes das associações examinadas no capítulo 2) e
compartilhavam, também, o fato de serem parentes de desaparecidos (os que pertenciam a
mesma geração dos defensores de presos políticos). Os fundadores do CELS compartilhavam
também outros atributos, entre eles, a condição de acadêmicos. Enquanto Mignone tinha
trabalhado como professor na universidade, chegando a ser nomeado reitor em Luján, Galleti
foi professor de direito na Universidade de La Plata. Federico Westerkamp, outro integrante
do CELS, embora ele não era advogado, era um importante pesquisador argentino muito
ligado à esfera acadêmica internacional. Outra condição comum era o seu ativismo partidário.
Emilio Mignone havia sido dirigente do Partido Justicialista, Augusto Conte da Democracia
Cristiana, Boris Pasik e Alfredo Galetti do Partido Socialista. Vários dentre eles tinham
também experiência na função pública como eram os casos de Mignone e Conte.
O CELS esteve integrado também por profissionais do direito da geração seguinte à
dos fundadores. Num contexto onde vários dentre eles haviam sido deixados cessantes ou não
tinham possibilidades de continuar com o assessoramento legislativo ou sindical, a
incorporação ao CELS significou a possibilidade de obter um trabalho remunerado. De uma
parte, se incorporaram advogados que tinham intervindo na defesa de alguns presos
políticos antes do golpe de 1976 e que tinham sido expulsos da universidade e da atividade
parlamentar, assim como também da justiça, como foi o caso da advogada penalista Lucila
Larrandart.
506
Quando se produziu o golpe de Estado, Larrandart era professora adjunta do
direito penal na Universidade de Buenos Aires e secretaria de um juizado nacional. Em ambos
os postos, foi declarada cessante por resolução das autoridades da ditadura.
Da mesma geração era Alicia Oliveira, cuja irmã compartilhava com a filha
desaparecida de Emilio Mignone a tarefa missioneira numa favela de Bajo Flores. Oliveira
também estava especializada em direito penal e com Larrandart se conheciam da época do
secundário, quando assistiram juntas ao Normal de San Fernando. Oliveira também tinha sido
deixada cessante da Justiça, atividade que realizava desde 1973 quando, aos 29 anos foi
nomeada juíza penal da Capital Federal, um tribunal ao qual “chegavam trabalhadores todos
os dias”. Previamente a esta experiência profissional, havia ‘trabalhado’ como advogada no
Sindicato de Imprensa.
507
Perante a interrupção das atividades militantes e profissionais
506
Entrevista realizada por mim a Lucila Larrandart, setembro 2002.
507
A trajetória de Alicia Oliveira foi reconstruída utilizando a entrevista realizada por Armando Doria e
Fernando Ritacco “Soy muy indisciplinada”. Em: Revista Exactamente. Bs. As. N° 14. Junio 1999.
260
ocasionada pela ditadura, o CELS ofereceu uma oportunidade de trabalho remunerado a este
tipo de profissionais. De uma outra parte, incorporou também a jovens recém-formados
desprovidos de um capital social como foram os casos de Marcelo Parrilli, filho do porteiro
do prédio onde vivia Mignone, e de Luis Zamora, quem tinha militado na APDH como
integrante do ‘Seminário Juvenil’. Outros integrantes do CELS intervinham como para-legais
tomando em conta as tramitações nos tribunais e o registro das denuncias. Enquanto os recém-
formados se ocupavam dos ‘casos menores’ os advogados com maior experiência na profissão
assumiam os ‘casos mais pesados’.
508
Hoje, todos eles são reconhecidos pela sua trajetória em
‘direitos humanos’. A partir deste capital moral, tem voltado à política e à função pública,
como Zamora, Parrilli e Oliveira, ou se incorporaram à vida acadêmica e dos tribunais como é
o caso de Larrandart, hoje juíza federal. Vários de entre eles participaram da Comisión
Nacional de Desaparición de Personas (CoNaDeP).
A marca desta profissionalização se faz evidente, não na disponibilidade de
recursos como também na orientação que seguiu o CELS uma vez finalizada a ditadura em
1983. Neste novo contexto, Mignone advertia que: “... mesmo que as organizações de direitos
humanos não deviam fazer abandono do seu trabalho de denuncia, não deviam se limitar a
estas funções (...) devendo enfatizar a participação cidadã em todas as esferas,
governamentais e não governamentais” para incluir assuntos como a independência do poder
judicial, corrupção, seguridade, educação e direitos sociais.
509
Progressivamente, este
organismo foi incorporando uma nova agenda de problemas, como a discriminação contra as
mulheres, os homossexuais, os deficientes, as minorias religiosas, os direitos dos
consumidores, a violência institucional e a segurança pública.
O perfil profissional dos advogados que integram o Centro se continua e aprofunda na
atualidade: “uma nova geração de advogados e estagiários em direito percorre os corredores
do CELS. um deles, Martin Abregú, recebeu uma bolsa de estudos para se aperfeiçoar em
Washington em Direito Internacional dos Direitos Humanos. Dos anos depois, foi seleto
Diretor Executivo do CELS.
510
Na trajetória de Abregú, ele mesmo parente de uma vítima do
terrorismo de Estado mas pertencente a geração que sucede a seus fundadores, destacam-se
exclusivamente as condições acadêmicas e profissionais que o instituem como ‘perito’ em
508
Esta classificação dos casos foi utilizada por Silvia Dvovich (nome apócrifo). Entrevista realizada por mim.
Juno de 2002.
509
Mignone “Argentina, los desafíos de fin de siglo”. 1996. Reproducido em Roberto Saba, 2000.
510
Em: Brunschtein, L. op.cit.
261
direitos humanos: pós-graduação em leis na American Univeristy del Washington College of
Law (WCL) e intervenção na Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (CIDH) como
assistente de Cláudio Grossmann, seu professor em Washington. Esta pratica dupla lhe
permitiu somar conhecimento e experiência na gestão internacional em organizações
dedicadas à defesa dos direitos humanos.
Em seguida de ter assumido funções no CELS, Abregú acrescentou seu perfil de
‘perito’ com a tarefa de ensino na universidade (professor adjunto em Direitos Humanos e
Garantias da Universidade de Buenos Aires) e como fundador de várias revistas jurídicas. Sua
atividade se completou com a sua atuação como oficial do Programa de Derechos Humanos y
Ciudadania, da Fundação Ford e como representante do Centro por la Justicia y el Derecho
Internacional (CEJIL). Todos estes estabelecimentos mostram que as vias que levam da
academia à carreira internacional na área dos direitos humanos estão incorporadas ao
repertorio de ações seguidas por esta segunda geração de ativistas.
Esta via aberta à profissionalização indica também que os direitos humanos tem
deixado de ser considerados exclusivamente como uma causa política para se constituir num
assunto relativo ao direito, fato que se evidencia na proliferação de programas universitários
especializados em direitos humanos, tanto na Argentina quanto no exterior. Neste sentido, o
CELS também faz parte deste processo em tanto que, ainda que contribui a expandir a agenda
de problemas, assume a tarefa de formar novas gerações de profissionais preparados para
trabalhar em casos de direitos humanos.
A criação de uma ‘clínica jurídica’ incorporada ao currículo da carreira de direito da
UBA e o fato de ter integrantes e ex integrantes do CELS ligados à vida acadêmica desta
unidade de estudos (Abregú e Larrandart, entre outros) são indicativos da importância que
tem para o CELS o fato de participar na formação dos futuros juristas ao tempo que mostra a
sua capacidade para se legitimar como profissionais e peritos diante da instituição que fornece
de titulações em direito mais importante do país. Esta ‘clínica jurídica’ mostra que o CELS é
reconhecido pela sua intervenção na definição do que é o direito e não simplesmente como
uma fachada da atuação política. As políticas desenvolvidas a partir da democracia, como o
Juicio a las Juntas ou as leis de reparação as vítimas, fizeram também que a competência
262
técnica ganhada através da passagem pelo mundo acadêmico fosse ainda mais relevante que
no passado.
511
O CELS formulou também uma nova maneira de trabalhar na defesa pelos direitos
humanos em democracia. Abregú coloca nestes termos a transformação de “... uma luta
radical contra os desaparecimentos, as torturas e os crimes militares ao uso deliberado dos
meios, do lobby, de ferramentas de mediação, o litígio de causas, a difusão e a educação”.
512
Na sua perspectiva, o litígio de causas aspira, no atual contexto, a reformular o Estado:
“El Estado es el único que viola los derechos humanos pero también es el único
que los puede proteger. Y sin ser amigo del Estado, sabes que solamente el Estado
puede darte la situación a la que queres llegar (…) Por un lado, sabes que el litigio
tiene que exponer y detener una situación de abuso, sin embargo también sabes que
para ser realmente exitoso ese litigio te tiene que permitir lograr un cambio en ese
Estado, ese litigio se tienen que transformar en políticas”.
No contexto das associações analisadas neste capítulo e nos capítulos anteriores, pode-
se ver que o apelo ou a exaltação da dimensão ‘técnica’ do trabalho destes profissionais do
direito por sobre o ‘engajamento militante’, a distinção entre a ‘prestação de serviços’ e o
‘ativismo’ ou ‘denuncia’ que faz parte constitutiva do perfil do CELS, longe de se considerar
atributos inerentes a esta associação, devem serem entendidos como parte constitutiva do
processo de construção de um ponto de vista interessado no interior de uma contenda mais
abrangente pela representação da causa pelos direitos humanos e por definir as relações entre
direito e política.
511
Esta mesma competência é altamente reconhecida na esfera internacional como se evidencia no caso de Luis
Moreno Ocampo que, depois da sua atuação como fiscal no Juizo às Juntas Militares, sua participação na criação
de uma associação civil com fortes vínculos com as associações internacionais do direito como Poder Ciudadano
(filial de Transparência Internacional) e sua atuação em universidades nacionais e do exterior, foi selecionado
como Primeiro Fiscal da Corte Penal Internacional. Seu escritório jurídico na Argentina combina a
especialização na apresentação na apresentação de casos perante tribunais internacionais com a recuperação de
ativos e lavagem de dinheiro. Este caso mostra como a institucionalização do direito internacional dos direitos
humanos criou novas oportunidades de carreira internacional.
512
Em: Bruschtein, op.cit.
263
3. 3 A organização transnacional da denuncia
Nesta segunda seção do capítulo me proponho mostrar a criação de diversas
associações de advogados argentinos no exílio, o engajamento com a causa argentina de um
conjunto de juristas integrantes de associações internacionais e de associações de defesa dos
direitos humanos e a forma em que os primeiros vão se incorporar progressivamente a estas
redes transnacionais. Para dar conta do primeiro propósito, me centrarei especialmente na
experiência do exílio francês. Francia constituiu uma das cidades que concentraram uma
proporção importante dos exilados. Segundo dados aportados por Marina Franco, entre 1974 e
1983 ter-se-iam exilado em Franca uns 3000 argentinos.
513
Descreverei depois as distintas
missões internacionais que chegaram ao país com o propósito de conferir as denuncias
recebidas sobre violações aos direitos humanos. Como vai se ver, foram uma instancia crítica
na articulação desta rede. Por último, me proponho mostrar a criação de redes de profissionais
do direito integradas tanto por advogados exilados ou residentes na Argentina (como
Mignone) e juristas estrangeiros que pertenciam a associações internacionais. Esta descrição
tenta sugerir a interpenetração destas redes de profissionais do direito.
3. 3. 1 O engajamento com a causa no exilo
Os defensores de presos políticos se apresentavam ante o cenário francês segundo uma
dupla condição sintetizada em definições como: ‘advogados argentinos exilados na Franca’,
como se evidencia nas muitas matérias de jornais publicadas pela imprensa francesa e que
reproduziam as denuncias sobre a situação argentina, denuncias nas quais os protagonistas
eram advogados. Foram estes mesmos advogados os que se constituíram na porta de entrada
de toda a rede de relações internacionais, ao ponto que, a primeira missão consagrada a
verificar ‘in loco’ as violações aos direitos humanos esteve dedicada exclusivamente à
situação dos advogados defensores de presos políticos.
513
Franco, 2004. Outros países que receberam argentinos foram xico, Espanha, Suécia e Venezuela. A
escolha por descrever este exílio se justifica não num critério quantitativo mas também no fato de ter tido
aceso aos arquivos existentes na Franca e de ter feito entrevistas a alguns destes peritos internacionais que se
engajaram com a denuncia das violações aos direitos humanos na Argentina durante o meu estagio na Ecole
Normale Superieure, Paris.
264
Com anterioridade ao golpe de Estado de março de 1976, Paris tinha-se conformado
como um ponto de encontro para vários dos advogados argentinos defensores de presos
políticos. Foi onde morou Hipólito Solari Yrigoyen em seguida da sua liberação e foi
onde chegaram vários advogados defensores de presos políticos integrantes das associações
analisadas no capítulo anterior, como Gustavo Roca, Raúl Aragon, Rodolfo Mattarollo, Rafael
Lombardi, Alejandro Teitelbaum, Martin Federico, Lucio Garzón Maceda, Susana Aguad e
Omar Moreno, entre outros. Outros se radicariam na Espanha e no México, como Eduardo
Luis Duhalde, Haydée Birgin, Esteban Righi, Mario Kestelbaum, Mario Gaggero, Carlos
González Garland, Oscar Correas Vázques e Nestor Sandler.
Todos eles chegaram ao exilo na dupla condição de profissionais do direito e vítimas
diretas do terrorismo do Estado. No exilo, aderiram à ‘causa anti-ditatorial’ através de
inúmeras atividades e espaços de participação. Os contrastes entre ‘a imagem dourada’ de
uma vida em Paris e o ‘engajamento’ com esta causa são recorrentemente enunciados por
eles. González Garland, por exemplo, coloca a ênfase na sua disponibilidade para visitar
juristas ao invés que ir ao Museu do Louvre. Rodolfo Mattarollo, pela sua vez, sublinha o
contraste com os intelectuais que tinham chegado anteriormente a Paris como parte de um
projeto cultural:
“… desde el comienzo, mi actividad principal fue la solidaridad y la denuncia (…)
la Francia idealizada por todo intelectual rioplatense ya no existía (…) En vez de
conocer literatos, me dediqué a tratar a los juristas y si bien no frecuenté a Sastre ni
a Simone de Beauvoir conocí a algunos maestros del derecho internacional que me
enseñaron cosas esenciales en las que luego encontraría algunas de las claves del
futuro de Argentina (…) como intelectual latinoamericano que soy, el exilio es una
experiencia totalmente distinta a lo que había imaginado. La metáfora del viaje se
daba pero no como viaje estético sin como experiencia política”
514
.
Na França se formaram duas associações integradas por profissionais do direito: o
Groupe d’Avocats Argentins Exiles en France (GAAEF) e a filial francesa da Commission
Argentine des Droits de l’Homme (CADHU) que, como já se viu na seção anterior, havia sido
criada poucos meses depois do golpe de 1976. Seguindo o modelo das associações descritas
514
Entrevista a Mattarollo en Revista Humor. Op.cit. Grifos meus.
265
nos capítulos anteriores, estas convocaram a profissionais do direito que provinham de
distintas filiações políticas e partidárias.
O GAAEF se criou a instancias do advogado francês Nuri Albalá, membro da
Association Internationale des Juristas Démocrates (AIJD) quem, apenas dois meses depois
do golpe de Estado de março de 1976, havia viajado a Buenos Aires participando de uma
missão desta entidade: “Cada vez que acontecia alguma coisa, vinha-me ver um ou outro
advogado argentino exilado aqui, me perguntado como publicar comunicados de imprensa,
como fazer pública declarações sobre seqüestros ou chacinas”.
515
No seu escritório da Rue de
Rivoli se reuniram no inicio Gustavo Roca, Raúl Aragon, Leandro Despoy, Hipólito Solari
Yrigoyen, Rodolfo Mattarollo, Susana Aguad, Martín Federico, Lucio Garzón Maceda e
Omar Moreno, entre outros.
A CADHU definiu-se publicamente como uma ‘organização humanitária’ integrada
por homens e mulheres de todas as tendências, congregações e ideologias’ reunidos com o
propósito de alcançar o ‘restabelecimento da democracia na Argentina e o pleno respeito da
vontade popular’. Num dos seus boletins se expõem seus objetivos: “É necessário que o
movimento da solidariedade se concentre em tarefas precisas: de uma parte, continuar com o
trabalho dirigido a obter a liberação dos prisioneiros e seqüestrados e, de outra, realizar
medidas eficazes que isolem à Junta no plano internacional”.
516
Como vai se ver, se repete a
proposta identificada nos capítulos anteriores de criar associações desde as quais intervir
tanto desde o plano jurídico quanto na denuncia pública. Com esta intenção define como um
dos seus propósitos o de adquirir visibilidade diante a opinião pública internacional: “...
conscientes da necessidade de uma ação unitária, fazemos apelo ao povo francês, as
personalidades francesas, aos partidos políticos e aos sindicatos, as instituições confessionais
e de defesa dos direitos do homem que tantas vezes tem expressado seu apoio a o nosso
povo...”.
517
Sob a palavra de ordem ‘cada voz que se levanta pode salvar uma vida’, se levaram a
frente desde a CADHU diversas iniciativas como a publicação de abaixo-assinados na
imprensa nacional, principalmente no Le Monde, a edição de livros, folhetos, cartão postais e
515
Entrevista realizada por mim a Nuri Albalá no seu escritório profissional. Paris. 09. 06. 2004.
516
Em: Bulletin CADHU. N° 4. Junho-julho 1978. Paris. Minha tradução.
517
Em: Bulletin CADHU. N° 1. Paris. 1977. Grifos meus, minha tradução.
266
a publicação de boletins periódicos de informação. A publicação na Franca do livro
Argentina, proceso al genocídio, que foi divulgado então pela Europa graças ao trabalho dos
integrantes da CADHU, interessa porque exprime uma inovação na linguagem utilizada para
formular as denuncias: a atividade de defesa de presos políticos foi traduzida agora a
linguagem técnica do direito dos direitos humanos. Publicado originariamente em Espanha,
este livro foi traduzido ao francês em abril de 1977 e logo depois ao alemão e apresentado na
Feria Internacional do Livro em Frankfurt. O uso de uma linguagem técnica e politicamente
neutra está acompanhado de um deslocamento no centro da atenção: da narração das ações
heróicas da militância à descrição detalhada da responsabilidade do Estado na repressão. Das
duas partes que o compõem (a primeira explica o regime jurídico que fundamenta a ordem
repressiva) é a segunda, intitulada ‘Terrorismo de Estado’ a que expõe com maior clareza o
repertorio de novas categorias do direito internacional aplicadas ao caso argentino. Centra-se
na descrição de como o Estado viola seus próprios princípios legais. Sua apresentação teve
importantes repercussão na imprensa francesa. O jornal Le Monde, por exemplo, reproduziu a
conferencia de imprensa na qual participaram os advogados integrantes da CADHU Eduardo
Luis Duhalde, Gustavo Roca e Roberto Guervara Lynch
518
.
Os boletins destas associações continham denuncias de casos, detalhes dos métodos
empregados na repressão, listagens de vitimas, informação sobre a situação nas cárceres e
centros clandestinos de detenção e testemunhos diretos de vítimas e parntes. Segundo o
Programa de Ação elaborado pela CADHU:
“… la información es un elemento prioritario para luchar contra la violación
sistemática de los derechos humanos (…) consideramos que la tarea de denuncia
está íntimamente ligada a la tarea humanitaria de asistencia moral y material a las
víctimas de la represión. La denuncia que alerta a la opinión pública es la que
permite que la presión internacional se ejerza para corregir las flagrantes
violaciones a los derechos humanos…”
519
.
Entre as ações de alerta dirigidas à opinião pública internacional que merecem
destaque se encontra a entrega de uma listagem de vítimas elaborada pela CADHU e entregue
518
“La commission des droits de l’Homme fait le procès d’un génocide » Em ; Le Monde. 22.04.1977.
519
CADHU, Programa. ,Grifos meus.
267
a Cyrus Vance, então secretario de Estado norte-americano. Esta listagem foi logo entregue
por Vance ao general Videla na ocasião de sua visita à Argentina.
A denuncia da situação em que se encontravam os profissionais do direito ocupava um
lugar de destaque nestas organizações. Os integrantes da Agrupación de Abogados de
Córdoba, Martín Federico, Omar Moreno e Lucio Garzón Maceda publicaram uma nota
(intitulada “Les Atientes aux Droits de la Défense”) no mensário Le Monde Diplomatique
onde advertem sobre o impacto da repressão sobre ‘os juristas, os magistrados e os
advogados’ e instavam à mobilização da comunidade de pares, identificada agora com a
‘comunidade jurídica internacional’:
“esta represión específica a los juristas es, en realidad, una pieza esencial del sistema
represivo que apunta a hacer impracticable el derecho a la defensa (…) Es suficiente
que los abogados aseguren el derecho a la defensa de los presos políticos para que
les sean imputadas las mismas presunciones que aquellas atribuidas a sus
clientes”
520
.
Foram estas e outras denuncias deste tipo realizadas diante a opinião pública européia
as que ativaram o engajamento das associações internacionais de juristas.
3. 3. 2 As missões internacionais de juristas
Um conjunto heterogêneo de profissionais do direito de Europa e de EEUU se
mobilizaram pela causa dos direitos humanos na Argentina. Esta movimentação significou,
entre outras cosas, o deslocamento dos seus integrantes para conferir ‘in loco’ a autenticidade
das denuncias. Esta movimentação toda foi ativada por associações com origens e propósitos
diversos.
Exemplos destas associações foram: a Federation Internationale des Droits de
‘Homme (FIDH), a Association Internationale des Juristes Démocrates (AIJD), a Commission
Internationale des Juristes (CIJ), com sede em Genebra, o Secretariat Internationale des
Juristse Catoliques (SIJC), Amnisty International e a Association of the Bar of the City of
520
Le Monde Diplomatique. 22.05.1979. Grifos meus, minha traducao.
268
New York, entre outras. A despeito de suas diferencias, todas elas tinham um propósito
comum: fazer dos direitos humanos um verdadeiro direito internacional
521
Tabela N˚ 5: Perfil das associações internacionais de Juristas
La Asociación Internacional de Juristas Democráticos (AIJD), fue creada en 1946
por un grupo de juristas y abogados franceses que habían participado de la Resistencia entre
quienes se encontraban René Cassin, profesor de derecho, diplomático, consejero del general
de Gaulle en Londres, juez del Consejo de Estado y dirigente de la Ligue Française des Droits
de l’Homme y Joë Nordmann, fundador de la sección jurídica del Front Nacional des Juristas
de la Resístanse (presidente y secretario, respectivamente). De acuerdo con Madsen, la idea
de crear una organización trasnacional de juristas de este tipo reuniendo delegados de 16
países, incluyendo los EEUU y la URSS, se elaboró durante el proceso de Nuremberg. El
universalismo que le dio origen se fundaba en el propósito de erradicar el fascismo mediante
la intervención en procesos judiciales específicos de profesionales del derecho de mucho
prestigio. Pese a estas intenciones, la AIJD congregó a abogados en su mayor parte franceses
o italianos pertenecientes al Partido Comunista que concentraron su acción en la denuncia del
macartismo
522
. Por su parte la Comisión Internacional de Juristas (CIJ) se creó a principios
de los años 50 con el propósito de afirmar los valores del ‘mundo libre’ sobre el terreno de los
grandes principios jurídicos: el Estado de derecho, los derechos del hombre. Esta iniciativa se
formuló como una manera de contraatacar a su rival, la AIJD. Integró a verdaderos notables
del derecho dentro de una estructura que se proponía como equivalente a una alta corte
internacional. Sus primeros cuadros dirigentes provenían del Council of Foreing Relations de
fuertes convicciones anticomunistas, eran exitosos abogados de negocios y habían adquirido
notoriedad a través del servicio jurídico prestado en distintas asociaciones civiles. Reclutaron
en el exterior al resto de sus integrantes, siempre teniendo en cuenta su notoriedad. Amnistía
Internacional (AI) fue creada en 1961 en Inglaterra con el propósito de conformar una
organización masiva, financiada exclusivamente por sus activistas e identificada por su
neutralidad. En lugar de basar sus acciones en discretas relaciones personales, AI procuró
centrar su acción en la difusión mediática de sus campañas y actividades. La Fédération
Internationale des Ligues des Droits de l’Homme (FIDH), a pesar de su proclamado
internacionalismo, permaneció como una asociación principalmente franco-francesa bajo la
influencia de un pequeño grupo de jóvenes abogados como Henri Leclerc, Daniel Jacoby,
Michel Blum y Etienne Jaudel, todos ellos integrantes, a su vez de la Ligue Française des
Droits de l’Homme. Leclerc, junto con Blum, son los abogados más activos en la defensa de
los estudiantes procesados por los sucesos del Mayo del 68 francés. Anteriormente habían
participado activamente de la creación de un colectivo de abogados que interviene durante el
conflicto de Algeria.
O leque total das atividades promovidas por estas associações era muito amplio e
incluía:
521
Em: Madsen, M. 2004.
522
Dezalay y Garth, 2002: 62 a 72. Madsen, M. 2004.
269
“… la publicación de la Revista, la organización de congresos, conferencias y
seminarios, la realización de investigaciones de situaciones particulares o de temas
que involucran el Imperio del Derecho y la publicación de informes, el envío de
observadores internacionales a los juicios de mayor importancia, intervenciones
ante gobiernos y difusión de comunicados de prensa referidos a violaciones del
Imperio del Derecho, el patrocinio de propuestas dentro de las Naciones Unidas y
de otras organizaciones internacionales para promover la aprobación de
procedimientos y convenciones tendientes a la protección de los derechos
humanos”
523
.
A primeira missão internacional que chegou à Argentina sentou as bases das seguintes
e, em forma encadeada,umas recomendavam as outras o continuar com este tipo de atividades
no país. Três destas missões tiveram lugar antes do golpe de Estado de março de 1976 e se
sucederam no breve lapso de três meses. Uma quarta teve lugar três meses depois do golpe de
Estado, motivada pelo inquérito sobre a situação dos exilados uruguaios na Argentina,
especialmente logo depois do assassinato dos parlamentares uruguaios Zelmar Michelini e
Héctor Gutiérrez Ruiz. Em novembro desse mesmo ano chegou uma missão de Anistia
Internacional. O reporte, apresentado em março de 1977, continha uma listagem de 489
desaparições e, entre suas recomendações solicitava-se o envio de uma missão oficial da
ONU, reclamava a publicação de uma listagem oficial de prisioneiros e um inquérito sobre a
situação dos desaparecidos. Uma sexta missão foi realizada em janeiro de 1978, a pedido da
FIDH e o Movimento de Juristas Católicos. Por último, uma sétima teve lugar em abril de
1979 a pedido da Association of the Bar of the City of New York. Estes esforços todos
resultaram na chegada de uma missão a pedido da própria Comissão Inter-americana dos
Direitos Humanos (CIDH) em setembro de 1979.
A visita da CIDH teve uma importância singular. No dia 6 de setembro de 1979
circulou na imprensa argentina o seguinte comunicado: “No dia de hoje tem iniciado suas
atividades em território argentino a Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (...) o
propósito da visita é o de fazer uma observação relativa ao respeito dos direitos humanos, as
denuncias a respeito de violações a tais direitos e estudar e analisar a situação neste
assunto...”.
524
Definida como “... uma instancia ao qual pode-se recorrer quando os direitos
523
En: Revista de la CIJ. Número 16. Junio 1976. Mis cursivas.
524
Em: Informa sobre la situación de los Derechos Humanos en Argentina. OEA. Washington DC. 1980: 2 e 3.
270
humanos tem sido violados por agentes ou órgãos do Estado”
525
, a necessidade de observar
‘in loco’ a situação argentina fundamentava-se pelo fato de ser este “... o meio mais idôneo
para estabelecer com a maior precisão e objetividade a situação dos direitos humanos num
determinado país e momento histórico”.
526
A visita da CIDH se destaca pelo forte impacto das
suas denuncias em quanto a CIDH é uma organização inter-guvernamental com sede em
Washington, integrada oficialmente pelos Estados membros da OEA.
527
Tabela N˚ 6 Detalhe das missões internacionais de juristas
Data Associação Internacional Peritos
03 – 12 Marzo 1975 Comisión Internacional de
Juristas
Heleno Claudio Fragoso
24 – 30 Abril 1975 Fédération Internationale des
Droits de l’Homme, Mouvement
Internationale des Juristes
Catholiques.
Jean Luis Weil
18 – 24 Mayo 1975 Fédération Internationale des
Droits de l’Homme, Mouvement
Internationale des Juristes
Catholiques.
Léopold Aisenstein, Daniel
Jacoby, Etienne Jaudel, Louis
Joinet
02 – 08 Junio 1976 Asssociation Internationale des
Juristes Démocrates
Nuri Albalá
06 – 15 Noviem. 1976 Amnistía Internacional Lord Averbury, Robert Drinan,
Patricia Feeney
18 – 25 Enero 1978 Fédération Internationale des
Droits de l’ Homme,
Mouvement Internationale des
Juristes Catholiques.
Antoine Sanguinetti, Franceline
Lepany, Herbert Semmel y Juan
Carro
Abril 1979 Association of the Bar of the
City of New York
Orvuille H. Schell, Marvin E.
Frankel, Harold H. Healy, Stephen
L. Kass y R. Scott Greathed
525
Em: Informe, op.cit.:29. A CIDH começou oficialmente a funcionar em 1960 embora começou a ter
importância nos anos 70, como se confere dos seguintes dados: em 1973 tinha apenas uns 50 casos. A inícios
dos anos 80 os casos superavam os 7000. Para uma história da CIDH ver: Farer: 1997.
526
Ibídem.
527
Entre os propósitos da CIDH se encontra o de: a) receber, analisar e investigar petições individuais que
alegam violações aos direitos humanos, segundo o dispõem os artigos 44 ao 51da Convenção. b) observar a
vigência geral dos direitos humanos nos Estados membros e, quando o considere conveniente, publica informes
especiais sobre a situação num Estado particular, c) realizar visitas in loco aos países para aprofundar a
observação geral y/o para pesquisar uma situação particular. Geralmente essas visitas resultaram na preparação
de um informe respectivo que se publica e é enviado aos governos e à Assembléia Geral. En.
www.cidh.org
271
No diagnóstico elaborado pelos peritos internacionais, a situação vigente no país
durante o governo anterior ao golpe de Estado de março de 1976 foi avaliada nestes termos:
“… un Estado de derecho profundamente degradado por la sanción de numerosas
leyes de excepción’ (…) una ‘coyuntura de severa represión gubernamental y de un
terrorismo de extrema derecha que actúa con total impunidad (…) la Delegación ha
podido constatar que la fase de represión clandestina e ilegítima ha alcanzado el
estado de institucional. Esta violencia generalizada resulta en una violación
permanente de los derechos fundamentales…
528
.
O tribunal Russell II tinha-se expedido em 1975 sobre o caso argentino. Ao longo das
audiências presididas por Lélio Basso, o tribunal escuto informes e testemunhas diretos da
repressão e conferiu documentação escrita e audiovisual sobre o caso concluindo que:
“… atentados políticos que llegan hasta el asesinato son cometidos por o con la
complicidad de las autoridades de la República Argentina y que el Tribunal se ha
alarmado particularmente por la situación creada a los refugiados políticos de ese
país (…) El Tribunal expresa su profunda inquietud por los arrestos, persecuciones,
torturas y asesinatos de militantes, de obreros y profesionales como también de
refugiados políticos sudamericanos. En vista de esto, decide abrir inmediatamente
una encuesta para establecer la amplitud de la responsabilidad del gobierno
argentino a este respecto”.
529
Estas ‘missões humanitárias’ tinham como propósito: “... coletar todos os elementos
de informação concernentes à sorte e à situação dos prisioneiros políticos na Argentina e do
estado dos direitos humanos nesse país”.
530
Para isso, e no percurso de uma semana ou dez
dias, desenvolviam a um ritmo febril ‘reuniões’, ‘entrevistas’, ‘encontros’ com timas,
parentes das vítimas, altos funcionários públicos, representantes da oposição, jornalistas,
sindicalistas, dirigentes estudantis, professores universitários, representantes de associações
profissionais e de instituições internacionais como o Alto Comissariado das Nações Unidas
528
En: “Rapport a la Fédération Internationale des droits de l’homme…” op.cit. Mayo 1975. Mis cursivas.
529
Sentença do Tribunal. O Tribunal foi criado pela inspiração do filósofo inglês Bertand Russelll quem, em
1966, convocou a diversas personalidades de distintos países para pesquisar os crimes cometidos pelas tropas
americanas em Vietnam.
530
Em: “Rapport a la Fédération Internationale des droits de l’Homme et au Mouvement International des
Juristes Catoliques sur la situation des droits de l’homme em Argentine”. Maio 1975. Minha traducao.
272
para os Refugiados. Progressivamente, estas missões foram adquirindo maior importância,
participando das mesmas um maior número de peritos internacionais.
Os resultados destas ‘missões’ eram desenvolvidos em ‘relatórios’ nos quais se
procedia a compilar a documentação utilizada para fundamentar as denuncias sobre as
violações aos direitos humanos, colocando em destaque a possibilidade de “... restituir a
verdadeira dimensão da repressão que, contrariando a opinião geralmente admitida, abrange a
grandes setores da população e não somente aos setores radicalizados”.
531
Para conseguir dar
a publicidade esta situação ‘pouco conhecida internacionalmente’, os profissionais do direito
encarregados destas missões escolhiam casos exemplares que, deliberadamente, não incluíam
a militantes armados mas a jornalistas, parlamentares, advogados, dirigentes e militantes
sindicais assassinados, desaparecidos, destituídos, detidos ou clandestinos’ como foi,
notoriamente, o caso de Hipólito Solari Yrigoyen descrito anteriormente.
Como se identificou nos capítulos anteriores, a reprodução dos depoimentos
‘diretos’ das ‘vítimas’ ocupava um lugar de destaque nestas denuncias. Estes eram coletados
em entrevistas diretas com pessoas que tinham sido seqüestradas e liberadas depois de ter sido
torturadas e ameaçadas de morte em diversos ‘centros de interrogação’ e com os próprios
presos políticos nos seus lugares de detenção, entre eles ‘eminentes’ advogados detidos a
disposição do PEN devido a sua ‘especialização na defesa de detidos políticos’. A linguagem
utilizado nestes reportes caracteristicamente evita qualquer tipo de identificação da tima
com a ideologia ou com posições políticas.
A transcendência destas missões se evidencia em tanto, desde o ponto de vista dos
profissionais do direito, existe uma relação direta entre a presencia do advogado francês e o
fato pontual de um dirigentes sindical que estava desaparecido, salvasse a sua vida ao passar
da condição de seqüestrado e detido clandestinamente a detido a disposição do PEN num
presídio oficial. Na divulgação dos resultados da missão destaca-se justamente como esta
situação de emergência foi resolvida favoravelmente. Aos poços minutos de chegada a
missão, Weil se entrevistou com a mãe do dirigente sindical e no dia seguinte com
‘autoridades oficiais’. O resultado direto e imediato foi descobrir o paradeiro e entrevista-lo
531
Em: “Rapport a la Fédération Internationale des droits de l’Homme et au Mouvement International des
Juristes Catoliques sur la situation des droits de l’homme em Argentine”. Maio 1975. Minha traducao
273
no seu lugar de detenção: “Graças à mobilização internacional, Hugo Cores ainda esta
vivo”.
532
Esta ‘missões’ faziam parte, pela sua vez, de ‘campanhas’ mas amplias que incluíam a
realização de conferencias de imprensa, a divulgação de comunicados, a tradução de
declarações de associações de direitos humanos de Argentina, a publicação dos próprios
reportes e solicitadas em meios europeus, a confecção de listagens de vitimas, a entrega dos
reportes e o envio de telegramas e cartas às autoridades argentinas, todo com a intenção de
que os casos ‘não caiam no olvido’.
Os reportes destas missões sobre a situação dos direitos humanos eram apresentado
diante as autoridades públicas européias e de América latina e perante outras associações civis
européias semelhantes com o propósito de que contribuíam difundido as denuncias e
colaborando com o financiamento das mesmas. Estas ultimas eram estimuladas a “...
manifestar sua solidariedade com as lutas [das associações argentinas] e a intensificar suas
ações em defesa dos direitos humanos”.
533
Todos estes reportes serviram como base para a
formulação de denuncias envidas à comissão de direitos humanos da OEA e à CIDH.
A participação destes juristas internacionais não se reduzia à realização de missões
humanitárias. Estes advogados realizavam todo um conjunto de outras atividades tendentes a
manter ativa a denuncia sobre os casos de violações aos direitos humanos. Antes e depois das
missões, eles estabeleciam contatos com os parentes das vítimas, com os advogados
encarregados do caso na Argentina, com as autoridades francesas na Franca e na Argentina e
com as autoridades argentinas em ambos os paises. Até a própria vida pessoal se colocava ao
serviço da causa. Como se viu, o escritório profissional de Nuri Albalá serveu de sede para
as reuniões do GAAEF. Sua própria casa foi onde se hospedaram alguns dos advogados
recém chegados a Paris.
534
532
Carta da CIMADE a seus afiliados informando-lhes do caso. 05. 05. 1975. Minha tradução. A CIMADE se
define como uma associação ecumênica criada em 1939 para dar ajuda as pessoas deslocadas do sur da Francia.
Durante a Segunda Guerra Mundial, participou ativamente da resistência e logo se comprometeu a favor da
causa da independência de Algeria. Tem desde então um serviço de solidariedade internacional.
533
Relatorio “La Repression en Argentine et plus particulièrement la situation des réfugies politiques uruguayens
dans ce pays ». 1976. Nuri Albalá.
534
Entrevista a Nuri Albalá realizada por mim. Maio 2004. Paris.
274
Uma outra instancia de participação foi a convocatória a reuniões semanais perante a
embaixada argentina em Paris. Desde finais de 1979, os profissionais do direito reunidos no
Club des Droits Socialistas de l’Homme, sob a iniciativa de Pierre Bercis, convocaram todas
as quintas feiras ao meio-dia a se manifestar em solidariedade com as voltas em torno a praça
de Maio que nesse mesmo dia realizavam em Buenos Aires os parentes congregados na
associação Madres de Plaza de Mayo. Segundo Bercis:
“El sistema era simple: apelábamos a todas las organizaciones y personalidades
democráticas a que todos los jueves se reunieran con nosotros ante la embajada
para atraer así, primero a la prensa y la opinión pública, luego a las autoridades,
hacia la causa de los derechos del hombre (…) Muchísimas personalidades como el
actual presidente de la república, François Mitterrand, intelectuales y religiosos se
alternaban frente a la embajada garantizando así la repercusión en la prensa”
535
.
Este relato evoca os vínculos construídos entre os exilados argentinos, as associações
de parentes das vítimas e os juristas integrantes de associações internacionais. Qual foram as
condições que permitiram juntar a este conjunto de indivíduos numa ação comum?
3. 3. 3 As redes transnacionais
Relatar os inícios da Comisión Argentina por los Derechos Humanos (CADHU)
permite reconhecer quais foram os traços que possibilitaram a incorporação dos advogados
argentinos nesta comunidade internacional de juristas e sua conversão em especialistas em
direitos humanos. Como se viu antes neste mesmo capítulo, a CADHU havia sido criada
nos seus inícios em Buenos Aires em seguida do golpe de Estado de 1976 por alguns
advogados integrantes da Gremial como Carlos González Garland, Eduardo Luis Duhalde e
Manuel Gaggero, a partir da experiência prévia de denuncia que eles mesmos realizaram em
distintos foros internacionais:
535
“Se gauna batalla pero no la guerra” Reportajem a Pierre Bercis. Revista Humor. N° 132. Bs. As. Julio
1984. Mitterrand era então Primeiro Secretario do Partido Socialista Francês.
275
“[a inicios de 1975] me fui a Europa a declarar en el Tribunal Russell (…)
lamentablemente por desajustes propios de mi propia ignorancia mezclados con el
retraso del avión, llegué al Tribunal el día en que cerró (…) Y me encontré en
Europa con 300 dólares y sin pasaje de vuelta (…) Y entonces me quedé con las
otras organizaciones de exiliados que ya existían (…) Entonces aproveché para
denunciar la situación de la Argentina en la Asociación Internacional de Juristas
Demócratas, la Federación Internacional de los Derechos Humanos, la Comisión
Internacional de Juristas, Amnistía Internacional, el Consejo Mundial de Iglesias,
la Organización Internacional del Trabajo, todos organismos internacionales y de
abogados internacionales (…) cuando volví a la Argentina, participé de la
fundación de la CADHU a fines de 1975.”
536
A importância destes contatos começados na Europa se traduz no chegada ao país das missões
internacionais. Estes contatos se continuaram logo na Argentina com o arribo das ‘missões’
de forma tal que, diante a desaparição de dois advogados integrante da Gremial, Mario
Hernandez e Roberto Sinigaglia, Raúl Piedrabuena destacou:
“Ese mismo día [de la desaparición] teníamos una reunión plenaria de la CADHU
en Buenos Aires (…) nos reunimos y fuimos al Hotel Claridge donde estaba
alojado el primer delegado de la Comisión Internacional de Juristas que vino a
hacer una investigación a la Argentina. Yo lo había conocido en París (…)
Entonces el secuestro de Mario y Rorberto Sinigaglia se conocía al día siguiente en
Europa”
537
.
A formação destas redes pode se seguir com detalhe nos próprios relatórios das missões
internacionais:
“... establecí contacto con numerosos abogados de las más diversas tendencias
políticas, entre los cuales se incluyen las figuras más respetadas de nuestra
profesión. Mantuve entrevistas con los presidentes y miembros de las instituciones
representativas de la clase profesional, el Colegio de Abogados de Buenos Aires, la
Asociación de Abogados de Buenos Aires y la Federación de Colegios de
Abogados. Estuve igualmente en contacto con periodistas, profesores universitarios
536
Entrevista realizada a Raúl Piedrabuena (nome apócrifo) por Laura Saldívia.
537
Entrevista realizada por Laura Saldivia a Raúl Piedrabuena (nome apócrifo).
276
y magistrados de diversas categorías (…) también pude entrevistarme con
ministros de Estado yderes del parlamento nacional”
538
.
O contato com as associações locais era uma peça chave para o trabalho destes peritos
internacionais. As associações locais ofereciam um capital indispensável para o sucesso das
missões: documentos contendo listagens de detentos, desaparecidos, denuncias e contatos
com advogados dispostos a assumir o compromisso com as defesas das vítimas. Obter esse
compromisso era um fato crítico, tanto pela necessidade de as apresentar perante o detido
contando com o auxilio de um advogado local quanto pelo fato de se garantir o compromisso
de continuar o caso depois do retorno da missão internacional.
Os peritos internacionais que chegaram à Argentina em nome da Federación
Internacional de los Derechos del Hombre (FIDH) entraram em contato com os profissionais
do direito que pertenciam à Liga, associação filiada à FIDH, assim que chegaram ao pais. No
seu relatório, Weil colocava em destaque a dificuldade de obter o compromisso de assumir a
defesa de Hugo Cores, o sindicalista uruguaio exilado em Argentina e desaparecido até o
arribo da missão. Foi quando entrou em contato com o advogado da Liga, Julio Viaggio,
quando conseguiu resolver o problema. Sobre este advogado se destaca no relatório: “...
aceitou sem reticências e com uma enorme coragem físico, ainda que ele mesmo já tinha sido
vítima de dois atentados com bombas como conseqüência de assumir a defesa de prisioneiros
políticos”.
539
A visita da CIDH constituiu um caso particularmente produtivo para mostrar a enorme
rede de relações locais e internacionais que se cristalizaram e fizeram possível esta particular
missão que, em tanto proveio de uma organização inter-guvernamental, foi a que teve maior
repercussão pública. A realização desta missão é parte do processo mesmo de conformação
desta rede transnacional de peritos.
Em primeiro lugar, o arribo da missão pressupõe relações prévias entre associações
internacionais de juristas e a CIDH.
540
Estes vínculos eram possíveis em tanto a participação
538
Reporte “La situación de los abogados defensores en la República Argentina”. CIJ. 1975.
539
Op,cit. Minha tradução, grifos meus.
540
Estes nculos foram identificados também em outros casos, como o chileno. Em: Sikkink, 1996. Foram
registradas, também, as denuncias que realizara a CIJ diante a CIDH em 1972, referidas aos riscos assumidos
pelos advogados defensores de presos políticos.
277
destas associações internacionais de juristas era parte das próprias trajetórias internacionais de
vários dos integrantes da CIDH, como era o caso de Andrés Aguilar Mawskey, integrante da
missão que visitou a Argentina e, ao mesmo tempo, membro da CIJ.
Como assinalara no capítulo anterior, os vínculos entre o caso argentino, as
associações internacionais de juristas e a CIDH preexistiam ao golpe de Estado de 1976. A
CIDH foi contatada por profissionais do direito argentinos e europeus em 1971 em relação à
desaparição do advogado Nestor Martins e a detenção de vários dirigentes sindicais, entre os
quais se encontrava o líder da CGT A, Raimundo Ongaro. Depois do assassinato dos
advogados Rodolfo Ortega Pena e Silvio Frondizi em 1974, a CIDH foi contatada novamente
pela CIJ para que investigue as denuncias apresentadas por Fragoso sobre as condições para o
exercício da defesa de presos políticos na Argentina.
Um ano depois, em setembro de 1976, a CIJ enviou um novo relatório atualizado à
CIDH fazendo um detalhe da situação argentina, como uma maneira de influir ante a CIDH
para que interviera. Uma terceira comunicação foi realizada em abril de 1977. Nela se
apresentaram ‘novos e alarmantes fatos’ ligados à situação dos advogados defensores, e seis
meses depois, em outubro de 1977, a CIJ fez um novo pedido de tratamento do caso argentino
diante a CIDH. Como assinala um dos integrantes desta missão, estas associações e suas
próprias missões in loco tem uma importância crítica para o trabalho da CIDH em tanto “...
uma considerável proporção dos casos da Comissão e, certamente, os mais importantes, vem
destas associações”.
541
No próprio relatório elaborado pela CIDH se destacam estes vínculos:
“La CIDH, desde el mes de octubre de 1975, (…) ha venido estudiando con
preocupación las denuncias e informaciones recibidas relativas a la situación de los
abogados defensores (…) Es así como la CIDH, sobre la base del informe
presentado por la Comisión Internacional de Juristas, trasmitió al gobierno
argentino, denuncias sobre violaciones a derechos humanos en las cuales se
alegaba la muerte, desaparición, detención o malos tratos de abogados
defensores”
542
.
541
Em: Farer, 1977: 516.
542
En: Informe CIDH: 255, Grifos meus. Esta parte do informe dedicado à situação dos advogados defensores
esta acompanhada de uma listagem de advogados defensores detidos sem processo.
278
Os vínculos com os profissionais do direito locais engajados com a causa pelos
direitos humanos também foram críticos para que a CIDH reconhecera positivamente o caso
Argentino e enviasse uma missão ao país. Os documentos elaborados pela APDH e os escritos
apresentados pelos integrantes da sua comissão jurídica constituíram uma parte importante
dos insumos utilizados pelos peritos da CIDH.
Esta proximidade era possível para uma instituição como o CELS a partir das
possibilidades abertas a uma figura como Emilio Mignone, fortemente ligado aos EEUU.
Trata-se de relações profissionais e de amizade que Mignone havia criado previamente. Como
assinalara o próprio Mignone: “... o secretario executivo da CIDH era um antigo amigo meu, o
diplomata e professor universitário chileno Edmundo Vargas Carreño”.
543
A amizade com
vários destes diplomatas que moraram em Washington durante os anos em que Mignone
cumpria funções para a OEA fez possível que o próprio Mignone se reunisse seis meses antes
em Washington com os funcionários da CIDH para contribuir a preparar a visita à Argentina.
Focalizando na atuação dos exilados, os contatos com os peritos internacionais foram
um elemento chave, decisivo no sucesso de suas atividades. A comissão de direitos humanos
da OEA, com sede em Genebra, constituiu um espaço muito importante ocupado pelos
profissionais do direito exilados na Europa. Esta participação esteve mediada pelos contatos
prévios com outras associações internacionais de juristas e pelo compromisso destas em
outorgar a palavra aos defensores argentinos. Estes vínculos foram a condição necessária para
a atuação deste advogados exilados. Segundo Rodolfo Mattarollo:
“La mecánica por la que un particular podía hablar en las sesiones de las Naciones
Unidas era precisamente ocupar el espacio de palabra concedido a organizaciones
no gubernamentales con estatuto consultivo en Naciones Unidas. La organización
no gubernamental que me cedió la tribuna en el 76 fue nada menos que la
Comisión Internacional de Juristas, un organismo muy respetado, de larga tradición
y que consideró inadmisible lo que estaba ocurriendo en la Argentina y necesaria
su denuncia. Entonces, a través de una gestión que hicimos varios abogados
argentinos exiliados en Europa, nos entrevistamos con las autoridades de estas
543
Em: Mignone, 1991: 190 e 111. Grifos meus.
279
ONG. Yo llego [a la ONU] con mandato de esta ONG y hago una descripción
breve, que queda registrada, de esta metodología de las desapariciones forzadas”
544
.
Estas intervenções tiveram como resultado a formação de um grupo de trabalho sobre
desaparições e um outro sobre torturas: “A gente começou a trabalhar os primeiros projetos de
declaração e de convenção internacional sobre desaparições”.
545
Em apoio a todas estas
atuações, cada vez que seccionava a comissão, os advogados realizavam simultaneamente em
Genevra uma serie de conferencias de imprensa acompanhados dos próprios representantes
das associações de parentes das vítimas. Estas intervenções diante a ONU, mediadas pelas
associações internacionais de juristas, permitiam também vincular às associações locais de
direitos humanos com a comunidade internacional.
“Nosotros presentamos denuncias e hicimos lobby (…) continuamos esa tarea
preparando, ampliando el espacio para que los organismos de la Argentina salgan
al exterior (…) y encuentren preparado el terreno, encuentren que ya había lobby,
que tienen identificados a los interlocutores, que se les explican cómo son los
procedimientos (…) ya a mediados de 1976 hicimos la primer denuncia en la
Subcomisión …
546
.
Estas ações todas empreendidas pelos defensores de presos políticos supõem o
reconhecimento por parte dos profissionais do direito argentino do valor destas associações
internacionais. Em reconhecimento à ação dos advogados que trabalhavam a favor da ‘causa
anti-ditatorial’, a CADHU instituiu um premio “Fundadores de la CADHU: Mario
Hernández, Roberto Sinigaglia, Mario Amaya, Miguel Zavala Rodríguez e Daniel
Antolokez”. Desde o ponto de vista dos organizadores, tratou-se de uma “... homenagem às
personalidades e instituições que, ao nível internacional, tem demonstrado a maior
preocupação pelo restabelecimento dos direitos fundamentais do nosso país” (ibidem, minha
tradução).
Na eleição do nome, todos colegas assassinados e desaparecidos na Argentina, se
reivindicava a figura do advogado defensor de presos políticos. O ato de lhes homenagear foi
a oportunidade de traçar um perfil destes advogados. Nele se destacam qualidades como o
544
Entrevista a Mattarollo realizada por Vera Carnovale para el archivo de Memoria Abierta.
545
Entrevista a Rodolfo Mattarollo realizada por Vera Carnovale para o arquivo de Memoria Abierta.
546
Entrevista a Juan Carlos Rossi (nome apócrifo) realizada por Laura Saldivia.
280
valor e a coragem. Trata-se de “brilhantes defensores de presos políticos que levaram a frente
com valor, dignidade e coragem, sua atividade profissional” e que por isso “... tem oferecido
as suas vidas pela defesa dos direitos humanos, da liberdade, da democracia e da dignidade do
povo argentino”.
547
Contudo, o valor deste premio reside no fato de estar dedicado ao reconhecimento dos
juristas internacionais. O que simboliza a aspiração destes profissionais argentinos de se
inscrever dentro deste espaço moral conformado pela ‘comunidade jurídica internacional’. Em
1977 o premio foi outorgado a Lelio Basso e a Pierre Bercis.
Neste contexto, a figura de Hipólito Solari Yrigoyen foi lembrada por uma das
entrevistadas como a figura ‘aglutinante do exílio dos advogados’, atributo que deriva da
posse de um amplio capital de relações sociais constituídas como resultado da sua atuação
como dirigente da UCR, como senador da nação e como advogado defensor de presos
políticos. Como lembra uma entrevistada: “Ele era um pouco a figura aglutinante porque
ajudava a organizar, ajudava com os contatos aqui na Argentina, tinha uma rede de relações
mais abrangente que a nossa e tinha uma maior repercussão a sua presencia e a sua
intervenção diante dos organismos internacionais e diante dos países”.
548
Seu caso era também especialmente destacado na imprensa nacional francesa em tanto
permitia mostrar com clareza que a repressão do Estado não estava dirigida aos chamados
‘subversivos’ que atuavam clandestinamente em ações armadas mas que chegava a homens
públicos que desenvolviam sua atividade na legalidade. Uma noticia publicada na Franca
caracterizava seu caso nos mesmos termos, “Seu caso não é banal: é um senador, não um
guerrilheiro. Ele esta longe de qualquer vinculação com os grupos armados da ultra esquerda,
ele pertence a UCR, velho partido moderado e de tradição democrática, alérgico a toda
ditadura e aos golpes de Estado...”.
549
A descrição de Hipólito Solari Yrigoyen que aparece
nos documentos oficiais do Departamento dos EEUU a quem se lhe define como “.... um
homem de grande coragem e princípios, de uma certa forma quixotesca, um progressista
moderado e convencido constitucionalista, advogado dos direitos civis e de profundas
547
Em: Bulletin CADHU, junio-julio 1978. Minha tradução.
548
Entrevista realizada por mim a Malena Bordenave (nome apócrifo). Bs. As. 2002.
549
Em: Le Point. 16 de Janeiro de 1978. Minha tradução.
281
convicções democráticas” ilustra quais eram as propriedades sociais que lhes permitiam a
estes profissionais do direito argentino participar desta esfera internacional.
550
A importância desta rede internacional criada em volta à causa argentina pode-se
sintetizar ao considerar um evento especialmente destacado pelos profissionais do direito
entrevistados: o ‘Colóquio sobre a desaparição forçada de pessoas’ que teve lugar no próprio
senado nacional o dia 31 de janeiro de 1981. Na convocatória ao colóquio figuram tanto o
GAAEF quanto a Association Internationale des Juristes Démocrates (AIJD), o Centre pour
l’Indépendance des Juges et des Avocats, a Commission Internationale des Juristes (CIJ), a
Fédération Internationale des Droits de l’Homme (FIDH), o Mouvement International des
Juristes Catholiques (MIJC) e a Union Internationale des Avocats (UIA). Ao longo das
sessoes, se apresentaram tanto advogados argentinos exilados, como Solari Yrigoyen, quanto
advogados argentinos que participavam de associações de direitos humanos criadas
recentemente no país, como Raúl Alfonsín, Augusto Conte e Alberto Pedroncini, integrantes
da APDH e Emilio Mignone, fundador do CELS. Participaram também figuras do direito
francês como o advogado Nuri Albalá, o magistrado Louis Joinet e outros juristas
reconhecidos internacionalmente, como o premio novel da Paz, o advogado irlandês Sean Mc
Bride, fundador de Anistia Internacional, Neal Mc Dermott, secretário da CIJ, Joe Nordman,
presidente da AIJD ou Louis Pettiti, presidente do Movimento Internacional de Juristas
Católicos e juiz da Corte Européia de Direitos do Homem. Participaram também dirigentes
políticos dos principais partidos da oposição, como o ex presidente Arturo Illia, representando
à UCR e Leônidas Saadi, pelo PJ assim como figuras de destaque da política francesa como
Lionel Jospin e François Mitterand. Um lugar de destaque tiveram as vítimas diretas da
repressão e seus parentes, convocados na Associação Mães de Praça de Maio. As
apresentações foram logo publicadas em forma de livro sob o título: “Le refus a l’oublie’
prologado pelo escritor argentino residente em Paris, Julio Cortazar.
A convocatória a este colóquio foi a expressão acabada da participação dos advogados
exilados na comunidade jurídica internacional. Sua organização ilustra adequadamente a
cristalização de redes de relações, princípios de recrutamento e valores morais em volta à
causa dos direitos humanos. Esta reunião condensa as relações criadas entre o universo dos
550
Vale a pena salientar o contraste entre estes casos aceitados pela CIDH como violações aos direitos humanos
com os casos formalmente similares de advogados desaparecidos ou detidos sem processo denunciados diante a
CIDH em 1971 que forma rejeitados, notoriamente o caso de Nestor Martins desenvolvido no capítulo 2.
282
profissionais do direito exilados, os parentes de detidos desaparecidos, os advogados
residentes na Argentina e os participantes da comunidade jurídica internacional.
3. 3. 4 Peritos do internacional
Para compreender a complexidade de circunstancias que criaram a oportunidade de um
reconhecimento mutuo entre profissionais do direito argentinos no exílio e integrantes da
comunidade internacional de juristas, vale a pena salientar alguns traços das trajetórias
biográficas e profissionais dos juristas internacionais que integraram as missões descritas
anteriormente ou que foram reconhecidos pelos exilados pelo engajamento com a causa
argentina.
O advogado chileno Vargas Carreño integrou o staff da CIDH na sua condição de alto
funcionário público e professor universitário, notável do direito e dedicado à política
profissional que, junto com muitos outros integrantes da CIDH, estavam então condenados ao
exílio pelos regime militares que dominavam América latina ao longo dos anos 70.
551
Este
perfil, que combinava o exercício do direito e da função pública, a atividade acadêmica e a
diplomacia era compartilhado com outros dos integrantes da CIDH que integraram a missão à
Argentina como Andrés Aguilar Mawdsley, de Venezuela, Luis Demetrio Tinoco Castro, de
Costa Rica ou Marco Gerardo Monroy Cabra de Colômbia, entre outros. Chegados de
diferentes países de América latina e Central, estes juristas haviam iniciado sua carreira
internacional com a realização de estudos de pós-graduação nos EEUU. Antes de ingressar à
CIDH haviam exercido funções como embaixadores perante os EEUU ou a OEA.
O representante da CIDH, Tom Farer, tinha entre as suas credencias o exercício da
função pública na estratégia Council of Foreing Relations norte-americana, a atividade
acadêmica na Universidade de Columbia e Harvard e seu passo pela Carnegie Endowment for
International Peace. Alguns deles, inclusive, mantinham também uma importante atividade
como sócios de estudos profissionais internacionais. Atualmente, todos eles são reconhecidos
como ‘peritos’ em direitos humanos. Pierre Bercis era em 1977 o presidente do Club des
551
Dezalay e Garth, 1998 a.
283
Droits Socialistes de l’Homme e integrante do parlamento francês. O grupo de parlamentares
europeus que pertenciam ao socialismo haviam impulsionado esse ano uma sessão pública
especialmente dedicada a atender a situação da Argentina e contou com os depoimentos das
próprias vítimas da repressão, dos juristas integrantes da CIJ, de Anistia Internacional e da
CADHU.
Lélio Basso, o outro jurista premiado pela CADHU, foi ele mesmo vítima dos campos
de concentração durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1940). Uma vez em liberdade,
participou do movimento conhecido como Resistência. Finalizada a guerra, foi eleito
deputado e senador pelo PS a começos dos anos 70. Seu primeiro ‘contato’ com América
latina remonta-se a 1965, quando um grupo de exilados venezuelanos na Itália e integrantes
do ‘Comité para la Amnistía y la libertad de los prisioneros políticos de Venezuela” pediram a
Basso que fosse o relator principal da ‘Conferencia Européia para a anistia dos detentos
políticos e para as liberdades democráticas de Venezuela” convocada o 8 de junho de 1965
em Roma. Entre as adesões a esta iniciativa se destacam os nomes de figuras que participaram
da denuncia da situação argentina a inícios dos anos setenta como Jean-Paul Sartre, Bertrand
Russell, Ernesto Sábato e Julio Cortázar.
552
A mediados dos anos setenta, Basso continuou
ligado a América latina através da sua atuação como presidente do Tribunal Russell II e da
recentemente criada Ligue des Droits et la Liberation des Peuples
553
A primeira missão dirigida a pedido da CIJ foi realizada por Heleno Cláudio Fragoso.
De nacionalidade brasileira, era então professor de direito penal no Rio de Janeiro. Entre os
traços destacados da sua trajetória, se encontram seus fortes vínculos com a comunidade
internacional de juristas, em tanto atuava como professor visitante da Faculdade de Direito da
Universidade de Nova York. Era também secretario general adjunto da Associação
Internacional de Direito Penal e Vice-presidente da Ordem de Advogados do Brasil (AOB).
Apenas dois anos depois desta missão, foi eleito integrante do Comitê Executivo da CIJ.
Jean Louis Weil, advogado francês, veio à Argentina a pedido da FIDH. Ele tinha feito
várias missões relacionadas com o desaparecimento de cidadãos uruguaios em países de
América do Sul em representação da FIDH e/ou de Anistia de Franca, da qual era o seu vice-
552
Em: MULAS, 2005.
553
Para uma breve resenha historica desta Liga, ver: www.grisnet.it/FILB
284
presidente. Também integrou o Secretariado Internacional de Juristas pela Anistia em Uruguai
(SIJAU), associação criada na Franca em 1976 por um conjunto de advogados. Seus relatórios
sobre as visitas in loco a Uruguai a fines de 1977 e a Porto Alegre em 1978 seriam utilizados
logo pela CIDH. Daniel Jacoby chegou à Argentina pelo mandato da FIDH e do Mouvement
Internationale des Juristas Catholiques. Havia participado 3 anos antes de uma missão
equivalente em Iran. Lorde Averbury veio na missão enviada por Anistia Internacional. Foi
chefe do comitê de direitos humanos do parlamento inglês.
As trajetórias destes ‘peritos’ revelam a acumulação dos atributos de ‘nobreza’ que os
legitimam dentro deste universo como é o caso de Sean Mc Bride: advogado e jornalista, filho
de revolucionários irlandeses, nascido na Franca e prisioneiro do governo inglês antes de ser
eleito deputado e ministro de assuntos exteriores e signatário da convenção européia de
direitos humanos. Seu ativismo no seno da CIJ o levou a criar na ONU, a figura do Alto
Comissionado dos Direitos Humanos e a própria Anistia Internacional.
554
Um olhar mais em detalhe da trajetória do magistrado francês Pierre Larroquette vai-
nos permitir perceber a complexidade do processo através do qual vai se conformando esta
rede internacional de peritos. No relato de Larroquette, vão se entretecendo as trajetórias de
várias das figuras mencionadas neste trabalho, notoriamente as de Lélio Basso e Rodolfo
Mattarollo. Através das suas palavras se destacam também os itinerários que fazem com que
estes ‘peritos’ internacionais vão se deslocando tanto dentro de distintas organizações que
pertencem a este campo associativo como dentro do Estado:
“Pertenezco a la generación de la guerra de Vietnam (..) cuando tenía 17 años vine
a París para estudiar derecho (…) mis padres no tenían dinero de manera que me
convertí en educador para costear mis estudios. Este trabajo me apasionó (…) y
abandoné mis estudios para dedicarme a ser un ‘educador de la calle’
555
(…)
Después vino la guerra de Algeria donde intervine como instructor militar. Estuve
en Algeria 6 meses pero la guerra abarcó un período de 3 años de mi vida. La
experiencia de la guerra cambió mi vida. Después volví a Francia y en 1963 pasé el
concurso para entrar a la Escuela de la Magistratura (…) cuando entré a la Escuela
estaba muy presente toda la conmoción producida por la guerra de Algeria y por el
surgimiento del derecho de la guerra de descolonización. Pero en la escuela uno
554
A trajetória deste jurista pode-se encontrar desenvolvida em Dezalay e Garth, 1998 a: 25.
555
‘educateur de rue’ es la expresión original utilizada por Joinet. Entrevista realizada por mi. 2004.
285
estudiaba sobre la justicia, Montesquieu, cosas que no tenían nada que ver con los
tribunales militares franceses que juzgaron a los militantes del FLN (risas). Y
entonces, un grupo de nosotros comenzó a organizar cursos de noche, alternativos
(…) Entonces, cuando nos reunimos para crear una asociación, yo propuse crear un
sindicato de magistrados. Yo ya había creado un sindicato de educadores, por eso
tenía más experiencia que mis colegas que, además, eran 5 años más jóvenes. Fui
elegido entonces presidente del Sindicato (…)
Mi primer contacto con América latina data de la época del gobierno del Frente
Popular de Salvador Allende. Entonces había en Chile un debate muy fuerte sobre
la sanción de la ley de nacionalización del cobre. Un cargamento de cobre había
sido confiscado en Francia y la corte de casación francesa había confirmado la
confiscación diciendo que el cargamento no pertenecía a Chile sino a una sociedad
norteamericana. Entonces, en tanto que presidente del Sindicato de la Magistratura,
fui contactado por el sociólogo Manuel Antonio Garretón, que dirigía un centro de
investigación y que yo había conocido en Francia cuando hacía sus estudios de
postgrado. Era el año 1973 y yo partí a Chile para mostrar que no todos los
magistrados franceses teníamos el mismo punto de vista sobre la ley de
nacionalización (…) Esta experiencia fue una toma de conciencia (…) Al en
Chile conocí a Lelio Basso, senador italiano antifascista, que es mi padre espiritual
(…) Cenamos juntos con otros juristas chilenos y con juristas que integraban el
Tribunal Russell (…) y ahí se tomó la decisión de convertir el Tribunal Russell en
un Tribunal Permanente por el Derecho de los Pueblos contra todos los
imperialismos. Yo fui un pequeño militante de este Tribunal, fui relator sobre la
situación en Chile y luego sobre la Argentina (…)
Mi primer misión en América latina fue en la Argentina (…) la FIDH me convocó
para esta misión en 1975 (…) En la Argentina, entré en contacto con los abogados
de la Liga, con los ideólogos del ERP como Rodolfo Mattarollo y con el
movimiento Montoneros (…) Los Montoneros me contactaron para que los
auxiliara a demostrar que eran un movimiento de liberación nacional que debía
beneficiarse de la protección de la Convención de Ginebra (…) estudié
técnicamente la cuestión y mi conclusión fue negativa (…) También trabajé mucho
para la Asociación Internacional de Juristas Democráticos (…) Cuando volví
durante la dictadura para otra misión, conocí a Raúl Alfonsín [de la APDH] (…)
Cuando terminó la dictadura, me ocupé de solicitar las extradiciones de los
militares argentinos acusados de la desaparición de ciudadanos franceses (…) la
286
gran revolución de los derechos del hombre se da a partir de la situación de
denuncia de América latina…”
556
.
A trajetória de Pierre Larroquette permite iluminar algumas das condições que fizeram
possível este engajamento militante e das propriedades sociais de quem vão protagonizar uma
mudança substantiva nas formas do ativismo internacional ligado aos direitos humanos.
Enquanto os ativistas ligados à criação do CELS ou aos juristas que integravam a
CIDH compartilhavam um perfil elitista, eram verdadeiros ‘notáveis do direito’, a geração
que se incorporou depois ao engajamento com a causa dos direitos do homem inclui, ao invés,
profissionais com o perfil de Larroquette. Trata-se de recém-chegados ao direito e
desprovestes de um capital herdado de relações sociais e familiares significativo. Larroquette
é um homem que vem do interior da Franca (Nevers, 250km de Paris) que deve financiar os
seus estudos com trabalho. Impregnado de inquietações sociais que aplicou no seu trabalho
como educador de rua e também através de um forte ativismo estudantil, foi a experiência da
guerra de Vietnam e de Algeria – e não a luta contra o fascismo - o que marca a sua trajetória
profissional. Seu engajamento com a América latina lhe permite prolongar o seu ativismo a
favor do direito dos povos à liberação nacional e a luta contra o imperialismo norte-
americano. Esta foi a porta de ingresso a este universo do internacional. Larroquette finalizou
a sua carreira como ‘perito independente’ da ONU na área dos direitos humanos, logo de mais
de vinte anos presidindo a Comissão de Direitos Humanos desta organização e logo de se
consagrar também como especialista na sua condição de conselheiro jurídico em direitos
humanos de cinco primeiros ministros franceses, entre os quais se encontra Lionel Jospin e o
presidente François Mitterrand. Em 1999 recebeu o Human Rights Awards outorgado pelo
International Service for Human Rights a quem realizam uma contribuição significativa na
área dos direitos humanos, especificamente dentro da ONU.
Esta trajetória permite entrever que o engajamento com a causa Argentina e latino-
americana em geral, lhes garantiu a estes profissionais do direito a sua própria reprodução
além do evento inicial da luta contra o fascismo (no caso dos europeus) ou da luta contra o
comunismo (no caso dos americanos). Como assinala Nicolas Guilhot, entre os principais
beneficiários dos programas internacionais de promoção dos direitos humanos se encontram
não só as vítimas, mas fundamentalmente, os próprios consultores, peritos e especialistas.
556
Entrevista realizada por mim a Pierre Larroquette (nome apócrifo). Junio de 2004. Paris. Minha tradução.
287
3. 3. 5 Os advogados como ‘vítimas do terrorismo de Estado’
A pesquisa das condições existentes para o exercício profissional do direito foi um dos
eixos centrais da movimentação destas associações internacionais, ao ponto que a primeira
missão levada a frente na Argentina esteve dedicada exclusivamente a fazer um registro da
situação dos advogados ‘especializados na defesa de presos políticos’. Entre os elementos
decisivos que permitiram legitimar as demandas dos profissionais do direito argentinos na
esfera internacional se encontram o fato de reunir a condição de ´vítima e de profissional do
direito’.
O reporte elaborado em março de 1975 por Fragoso se intitulava justamente “A
situação dos advogados defensores na República Argentina” e tinha por objetivo conhecer a
situação de aqueles profissionais que exerciam a defesa de presos políticos.
557
Esta mesma
preocupação se repete em Anistia Internacional que, em setembro de 1975 deu a conhecer um
informe dedicado especificamente à situação dos advogados que assumiram a defesa legal dos
‘dissidentes políticos’ na Argentina. Este informe assinalava que “... devido à natureza
especial dos seus deveres, os advogados são particularmente vulneráveis a sofrer as
conseqüências de suas corajosas ações...” colocando-se em destaque o caso do integrante da
Gremial assassinado por forças para-policiais em 1974, Silvio Frondizi, irmão do ex
presidente e fundador da Liga, Arturo Frondizi.
558
No primeiro reporte, Fragoso descreve a situação ‘extremadamente seria’ enfrentada
pelos advogados que defendem a pessoas ‘acusadas de ter cometido crimes políticos ou de
haver envolvido em atividades políticas’ da seguinte maneira:
los abogados son víctimas de amenazas de muerte, atentados contra sus vidas con
explosivos arrojados en sus oficinas y sus casas, han sido expulsados de sus cargos
en la universidad, han sido buscados ilegalmente a cualquier hora del día y de la
noche, han sido víctimas de detención, se han visto obligados a dejar el país o a
557
Relatório “A situação dos advogados defensores na República Argentina” CIJ. 1975.
558
Em: “Os advogados perante a tortura”. Relatório de Anistia Internacional reproduzido na Revista da CIJ.
N°16, junho 1976. Vale a pena salientar que esta revista, que recomendava a organização dos profissionais na
denuncia das violações aos direitos humanos era recebida pela Faculdade de Direito da Universidade de Buenos
Aires e integrava o acervo de sua biblioteca nesses anos.
288
llevar una vida clandestina suspendiendo sus actividades profesionales, han sido
víctimas de secuestros, torturas y asesinatos”
559
.
O reporte apresenta uma listagem de trinta e dois advogados detidos a disposição do
Poder Executivo Nacional, uma outra listagem de advogados ameaçados de morte e uma outra
listagem dos advogados assassinados. Este relatório se ocupa especificamente da situação da
Associação Gremial de Advogados que tem tomado “... uma posição enérgica e corajosa na
defesa dos seus integrantes e colegas” e que “... como resultante da repressão exercida contra
seus membros, tem deixado de existir” (ibidem).
O engajamento com a defesa dos presos políticos tinha-se convertido numa atividade
de risco para a vida destes profissionais. Fragoso assinalava no seu relatório de março de
1975: “... os advogados que trabalham em processos políticos sistematicamente rejeitam este
tipo de casos, alegando uma completa ausência de garantias. A defesa dos presos políticos
passou a ser feita por defensores de oficio, limitada a uma defesa ritual, sem eficácia”
560
,
problema que se incrementou depois do golpe de Estado.
Na missão Weil, este advogado destacava as ‘grandes dificuldades’ para achar um
profissional interessado em defender a dirigentes sindicais detidos “num contexto no qual se
faz impossível qualquer defesa política já que inúmeros advogados argentinos tem sido
assassinados ou deveram sair do pais para o exílio”.
561
O primeiro advogado procurado
assim que chegara Weil, rejeitou o oferecimento ‘por motivos principalmente de segurança’.
No terceiro reporte, a comitiva expõe as dificuldades para encontrar advogados com
disposição para assumir as defesas dos prisioneiros políticos: o testemunho de um prisioneiro
político reproduzido no reporte indica justamente esta dificuldade: “... o primeiro defensor
que havia escolhido foi assassinado, o segundo foi vítima de ameaças e deixou a Argentina e
agora vive em Paris e o terceiro não tem a coragem de me entrevistar na cadeia, fato que
compreendo bem, levando em conta a sorte dos que o precederam”.
Um outro depoimento reproduzido neste relatório corresponde a um advogado cujo
escritório havia sido objeto de um atentado com bombas: “... se aproximar até uma prisão,
559
En : « La situación de los abogados defensores en la República Argentina » ICJ. 1975. Mina tradução. Grifos
meus.
560
Relatório Fragoso, op.cit. 1975. Minha tradução.
561
Relatório Weil, op.cit. minha tradução, grifos meus.
289
assim como as delegacias ou, inclusive, perante os tribunais por um affaire político supõe uma
atitude heróica ou suicida. São poucos os advogados que tem essa coragem...”.
562
O relatório
continua com este diagnóstico: neste contexto, “... os advogados não especializados neste
assunto [a defesa dos presos políticos] desistiram de aceitar as defesas sobre a base do risco
envolvido nesta tarefa, qualquer que fossem os honorários oferecidos...”(ibidem).
Em 1978, a CIJ voltou a destacar o problema dos profissionais do direito na
Argentina:
“la situación posterior al golpe de Estado que depone al gobierno de Estela
Martínez de Perón se ha deteriorado aún más. Aunque la violencia es generalizada
y tiene por objetivo muchos sectores de la vida nacional, la situación de los
abogados defensores y miembros del poder judicial es particularmente crítica.
Muchos de los abogados mencionados en el reporte de Fragoso como habiendo
recibido amenazas o atentados contra sus vidas, así como muchos otros, han sido
asesinados o simplemente han desaparecido...”
563
.
Este novo relatório foi acompanhado por uma serie de anexos nos quais se detalhavam
casos ‘típicos’ de advogados ou juizes. Os dados são apresentados segundo uma classificação.
Exemplo: “Caso A: Detenção de Carlos Mariano Zamorano, advogado, desde o 5 de
dezembro de 1974. Habeas corpous apresentados no seu favor”. Também se apresentavam
listagens de advogados assassinados (incluindo dados do assassinato e uma curta história da
sua atuação profissional e política) e listagens de advogados desaparecidos ou detidos a
disposição do PEN.
No relatório da missão Sanguinetti (1978) se enuncia como prioridade a necessidade
de resolver a situação dos advogados detidos e sugere “... que delegações de associações
profissionais dos países ocidentais cheguem até a Argentina para apreciar diretamente a
situação dos advogados detidos. Devem fazer-lo com o apoio de suas respectivas embaixadas
na medida que o apoio dos seus governos lhes será indispensável para poder ver aos
562
Op.cit. Grifos meus.
563
“Attacks on the independence of Judges and Lawyers in Argentina”. Bulletin of the Centre for The
Independence of Judges and Lawyers. Vol. 1. Nro. 1. February 1978. Mi traducción
290
detidos”.
564
Nestes relatórios se reivindicava a figura do defensor para denunciar ao governo
militar porque é o seu dever proteger o Estado de direito, quer dizer, garantir “... a completa
liberdade do advogado defensor para lhe permitir cumprir a missão que lhe é confiada, com
independência da natureza do caso” (ibidem).
O relatório elaborado por Anistia Internacional em 1975 continha uma serie de
recomendações destinadas aos ‘profissionais do direito’ e as ‘organizações profissionais’, lhes
incitando a que levaram a frente ações de apoio a seus colegas. Estas recomendações incluíam
distintas formas de organização e cooperação e estavam dirigidas às associações profissionais
nacionais e internacionais, aos advogados defensores e aos professores em direito, “... quem
deveriam incluir o ensino dos direitos humanos nos programas de estudo de direito penal e de
direito internacional”.
565
Associações como Anistia Internacional ou a AIJC geriram a saída do país dos
defensores argentinos ameaçados. No apêndice destes relatórios se reproduz um ‘Projeto de
Princípios para um Código de Ética para os Advogados” cuja aspiração era conseguir que “...
as associações profissionais de advogados adotem e divulguem um código de ética
[universal?] que especifique as obrigações dos advogados em relação com a tortura ou outra
pena ou tratamento cruel, inumano ou degradante dos detidos”. Neste projeto se detalham as
responsabilidades dos advogados defensores, dos fiscais, juizes e demais autoridades judiciais
que exercem funções de responsabilidade perante estas situações.
Um outro exemplo do tratamento que davam as associações internacionais a este
assunto foi um dos primeiros casos reconhecidos pela CIDH, justamente o de Hipólito Solari
Yrigoyen. Entre a data de recepção da denuncia sobre o seu desaparecimento, o 24 de agosto
de 1976 e o 18 de novembro de 1978, a CIDH continuou decorrendo o caso. Resolveu,
finalmente, que os fatos denunciados: “... constituem gravíssimas violações ao Direito, a
liberdade, a segurança e integridade da pessoa (art.I), ao direito à residência (art. VIII), ao
direito a justiça (Art. XVIII) ao direito de proteção contra a detenção arbitraria (art.XXV) da
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem”. Ao mesmo tempo, ‘recomendou
ao Estado nacional que: “a) disponha um inquérito completo e imparcial para determinar a
564
Conclusão do reporte da missão Sanguinetti reproduzido no Bulletin CADHU. Abril-maio 1978. Minha
tradução.
565
Em: Revista da CIJ, op.cit.
291
autoria dos fatos denunciados, b) (...) sancione aos responsáveis de tais fatos e c) informe à
comissão, dentro de um prazo máximo de 30 dias, sobre as medidas tomadas para pôr em
prática as recomendações indicadas na presente Resolução” (Resolução 18/78. CIDH.
OEA).
Nesta mesma data, a CIDH se pronunciou sobre o caso de Mônica Maria Candelária
Mignone assinalando que os fatos denunciados constituem graves violações aos direitos
humanos e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. A CIDH recomendou
ao governo argentino a libertação de Mônica Mignone ou seu submetimento ao devido
processo (Resolução N° 21/78. CIDH. OEA).
Repetidamente se menciona nos relatórios o fato de ser líderes de partidos políticos,
assessores legais de sindicatos, parlamentares, funcionários públicos ou professores
universitários. Particularmente se coloca a ênfase nos casos em que estes profissionais foram
seqüestrados em situações nas quais cumpriam com o exercício profissional: entrando ou
saindo dos tribunais, entrando ou saindo dos seus escritórios privados. Mario Hernández e
Roberto Sinigaglia foram definidos como advogados ‘de grande prestigio na sua profissão e
que atuaram como defensores numa quantidade de juízos importantes”.
Como vai se ver, as trajetórias dos defensores de presos políticos exilados acaba se
assemelhando a trajetória destes peritos internacionais. Isto porque a sua ‘conversão’ à
condição de ‘peritos’ vai ser uma das possibilidades também abertas aos próprios defensores
de presos políticos que atuaram no exílio e que vão a integrar este universo transnacional de
‘peritos’ em direitos humanos.
3. 4 O exílio como uma ‘grande escola política’
As decisões assumidas pelas conduções partidárias as que pertenciam alguns destes
advogados, o risco sobre a própria vida e questões ligadas ao ciclo de vida do grupo familiar,
são elementos que confluem nos relatos dos profissionais do direito que foram para o exílio.
Assim, para Mattarollo, a conjuntura política aparece associada a elementos da sua biografia:
292
“Era difícil [permanecer en la Argentina] porque en ese momento ya teníamos dos
hijos muy pequeños y muy pocos medios económicos, más que alguna renta muy
reducida del partido (…) Pero si hay un hecho que marca una divisoria de aguas es
el asesinato de Rodolfo Ortega Peña el 31 de julio de 1974 (…) ahí empecé a
pensar en que debía preservar a mi familia”
566
.
Se o risco sobre a própria vida deixava de ser um problema a partir da saída do país, as
dificuldades profissionais se continuavam no exílio. Existia a possibilidade de trabalhar
legalmente, mas se precisava para isso ter o estatuto oficial de refugiado político ou ter a
cidadania francesa. Fora destas condições, a apertura de um escritório próprio, a carreira
política ou o ingresso na Justiça eram instancias profissionais que estavam vedadas para os
advogados argentinos residentes na Franca e carentes de uma titulação outorgada por esse
país. Diante destas impossibilidades, alguns advogados viviam do ensino do espanhol em
academias privadas ou públicas enquanto que outros se integravam a associações civis onde o
seu conhecimento experto era valorado. Este foi o caso dos advogados de presos políticos que
se integraram ao Mouvement contre le Racisme et pour l’Amitié entre les Peuples (MRAP),
associação inicialmente criada para combater o anti-semitismo (1949) e cuja área chave de
intervenção era justamente a defesa dos ‘direitos dos estrangeiros’. Dentro desta associação,
os exilados podiam fazer apelo a sua ‘expertise’ profissional formulando demandas e fazendo
todo o trabalho jurídico que logo era assinado por seus colegas franceses.
Mas, em outros casos, a experiência do exílio os colocou de cheio no cenário do
direito internacional. Este foi o caso, entre outros, de Rodolfo Mattarollo. A distancia
percorrida nos oito anos do exílio ilustra a maneira em que a atividade de denuncia do
Terrorismo de Estado vai conformando novas oportunidades profissionais que vão modelando
a sua trajetória como ‘perito’. Ao fazer uma resenha dos inícios da sua vida de trabalho na
Franca, Mattarollo assinala: “Eu, o primeiro trabalho que tive foi o de distribuir bulas nas
caixas de correio de apartamentos”.
567
Estes inícios se reverteram de maneira extraordinária
poucos anos mais tarde ao ponto que ao final do seu exílio se encontra ocupando um posto
numa dependência oficial como responsável de uma das seções da Oficina de Refugiados de
Franca, dependente do Ministério de Relações Exteriores. Mattarollo se converte, então, em:
“... o encarregado da proteção jurídica e administrativa dos 150.000 asilados de todo o mundo
566
Entrevista a Rodolfo Mattarollo realizada por Vera Carnovale para el archivo Memoria Abierta.
567
Entrevista a Mattarollo em Revista Humor. Op.cit.
293
que vivem neste país”.
568
foi responsável da divisão da África sub-sahariana que, para
Franca, é uma área geográfica extremadamente importante em assuntos de asilo e refugio,
pelos vínculos com as ex colônias dessa área de África.
569
Quando Mattarollo voltou à Argentina, a partir da volta à democracia, quem tinha
saído do país como defensor de presos políticos voltou como um profissional reconhecido
pela sua competência experta na área dos direitos humanos. Tinha somado a esta experiência
na função pública, uma experiência de atuação na ONU e uma especialização em direito
internacional na Sorbone. Este investimento na credibilidade científica seguida por vários dos
advogados entrevistados, aparece como uma maneira de compensar a origem altamente
política da ‘luta pelo direito’, tal como esta tinha sido levada a frente na Argentina dos anos
sessenta e princípios dos anos setenta.
570
Rofolfo Mattarollo enuncia como um momento chave na sua trajetória profissional a
sua ‘incursão’ nos organismos internacionais:
“… a mi me tocó intervenir en forma muy notoria en las primeras presentaciones
ante las Naciones Unidas en Ginebra. En agosto de 1976 hablé ante la Subcomisión
y en marzo de 1977 ante la Comisión de Derechos Humanos junto con el senador
uruguayo Enrique Erro que acababa de ser liberado de las cárceles argentinas”
571
.
“…personalmente, la especialización que yo pude hacer en derecho internacional
de los derechos humanos la hice a partir de esta experiencia, yendo como miembro
del concejo directivo de la CADHU a Ginebra …”
572
.
Esta atuação foi definida em termos de ‘descobrimento’, de ‘aprendizado’ e de perdida
das referencias conhecidas. Para quem se havia iniciado na defesa de presos políticos logo de
um viaje iniciatico pela América latina, a experiência profissional do exílio aparece revestida
do mesmo signo:
568
Ibídem.
569
Entrevista a Mattarollo realizada para o archivo Memoria Abierta.
570
Outros advogados como Alejandro Teitelbaum e Hipólito Solari Yrigoyen, também realizaram na Franca
estudos de pós-graduação na área do direito ou da economia internacional.
571
Entrevista a Mattarollo en Revista Humor. Op.cit. Mis cursivas. Mientras que la Subcomisión es un
organismo de ‘expertos’ la Comisión es un organismo de expertos pero que representan a gobiernos
572
Entrevista a Mattarollo realizada por Laura Saldívia.
294
“Ahí nosotros, en el exterior, empezamos a descubrir el sistema internacional de
protección de los derechos humanos (…) Tuvimos que aprender los códigos: no se
podían nombrar países, entonces yo tenía que hablar refiriéndome a la Argentina
como a un país del Cono Sur donde se había producido el último golpe de Estado
(…)
573
“Yo creo que esa fue una gran escuela política (…) además de esos 2 años o 3
vertiginosos de la Argentina (…) Pero la experiencia de refinamiento, de
decantación en mi caso se hizo fundamentalmente en el exilio. Y allí hubo una
escuela política importante que fue la de tener que actuar en un campo que tenía
una configuración distinta de lo que habíamos esperado (…) encontrábamos
interlocutores en el gobierno norteamericano cuando el soviético nos cerraba las
puertas. Entonces esto nos obligaba a despabilarnos (..) Uno descubría en Europa
occidental la legalidad de la izquierda, no? Esa legalidad que no descubrimos en
Argentina (…). Con Eduardo Luis Duhalde (…) hemos reflexionado muchas veces
sobre la paradoja de haber tenido que pagarle en Ginebra un almuerzo al
representante del gobierno del presidente Carter, cosa que no hubiéramos
imaginado que podía ocurrir jamás”.
574
A participação nestas redes internacionais de ativistas dos direitos humanos é
enunciada, desde a perspectiva nativa, como um processo de aprendizado nas maneiras
próprias deste ativismo do internacional e da atuação política em geral. As condições desta
participação aparecem enunciadas pelo advogado francês, integrante da AJD, Nuri Albalá,
quem reclamava a seus pares argentinos que: “... por motivos de eficácia se trata-se de manter
as atuações num plano estritamente jurídico”:
575
“… como encargado del Cono Sur, de la Argentina, en la Asociación de Juristas
Democráticos, el problema que encontré fue que, cuando yo hacía una gestión
cualquiera, digamos, para un comunista, un radical o un peronista, me venían a ver
los demás a reclamarme: ¿por qué hiciste algo por ellos y no para nuestro
compañero fulano? Y entonces yo les dije: bueno compañeros, no podemos seguir
así. Ustedes pueden pedirme lo que quieran pero de parte de todos. Tienen que
armar un grupo de juristas exiliados que trabaje de manera unitaria, por lo menos
573
Entrevista a Mattarollo realizada por Laura Saldívia.
574
Entrevista a Mattarollo realizada por Vera Carnovale para Memoria Abierta. Grifos meus. Vale a pena
salientar que Mattarollo se referia a esta atuação na esfera internacional como correspondendo à ‘alta’ política.
575
Reportajem a Nuri Albalá realizado pela revista Humor. Abril 1984. Grifos meus.
295
en derechos humanos. Y por fin aceptaron. Y la condición que pusieron para
constituirlo fue que la sede fuese en mi estudio para que no fuera en la casa de
ninguno de ellos, para no darle una posición de dominación sobre los otros. Y este
grupo tenía sede aquí, en este estudio, 120 rue de Rivoli”
576
A existência de posições diferenciadas entre os exilados se revela diante de casos
concretos, como foi o desaparecimento de Roberto Quieto, um importante dirigente da
agrupação armada Montoneros. No relato de Juan Carlos Rossi, diante a suspeita de uma
possível delação durante a tortura, “... as organizações peronistas que haviam começado uma
grande campanha internacional de denuncia do seqüestro, tratam de pôr um freio no exterior
porque o consideram um traidor (...) Os advogados que estávamos no exterior consideramos
que isto era algo absolutamente inaceitável que se tratava de uma vitima do terrorismo de
Estado”.
577
Esta posição ser replicou, logo, em vários dos advogados exilados, como se
evidencia no abandono da CADHU de parte de figuras como Mattarollo e a qualificação
negativa que este iria realizar sobre a mesma, ao assinalar que estava ‘politizada’ demais.
Desde o ponto de vista de Rossi, num momento dado “... vemos que a relação com as
organizações [político-militares da esquerda representadas na Franca] é inconveniente. Já não
representam referencias nem sequer limitadas... Por isso, alguns de nós nos vamos da
CADHU porque estava muito ligada as organizações...”.
578
Nesta cisão pode-se identificar toda a marca do contato com o universo internacional
do direito. Segundo Mattarollo, “... deixei a CADHU porque considerei que seu ciclo estava
cumprido, que representava um espectro político muito radicalizado e que era necessário,
nesse momento, atuar em círculos mas amplos”.
579
Estas ações todas vão distanciando progressivamente aos profissionais do direito
argentino da retórica própria das associações de defesa dos presos políticos analisadas no
576
Entrevista realizada por mim a Nuri Albalá. Paris. 09.06.2004. Já numa entrevista realizada por meio
argentino, Albalá reconheceu que uma das principias dificuldades que teve foi a de “… limar as diferencias
políticas entre os argentinos que dificultavam a tarefa sobre a base de um objetivo comum: a defesa dos direitos
humanos”. Em: “Que los dictadores no hagan su antojo”. Reportajem a Nuri Albalá publicado en la Revista
Humor. Bs. As. Abril. 1984.
577
Entrevista a Juan Carlos Rossi (nome apócrifo) realizada por Laura Saldivia. Bs. As. Grifos meus.
578
Ibídem. Grifos meus.
579
Entrevista realizada a Mattarollo por Vera Carnovale para o arquivo Memoria Abierta. Esta mesma estratégia
tendente a preservar o capital de prestigio acumulado era utilizada pelos juristas das associações internacionais.
Segundo Pierre Larroquette, eles evitavam aparecer em público junto a altos dirigentes das organizações armadas
da Argentina ou oficializar o seu trabalho de assessoramento jurídico, mesmo que tivessem estreitos contatos
pessoais. Entrevista a Pierre Larroquette (nome apócrifo) realizada por mim. Paris. 2004.
296
capítulo anterior. Desde a perspectiva de Malena Bordenave, as ações das organizações
guerrilheiras no exterior e as dos profissionais do direito exilados, progressivamente
começaram a seguir caminhos diferentes, que não se coincidia nos propósitos da ação.
580
É
possível identificar nos reportagens, homenagens e apresentações em palestras e colóquios
que estes advogados se reivindicam no cenário francês como ‘defensores da liberdade e da
democracia’, quer dizer, como partícipes de uma comunidade internacional baseada em
valores que se pretendem universais. Neste cenário, esta atividade de defesa de valores
universais diferencia e distingue a estes profissionais de outros colegas e compatriotas
exilados para quem a categoria ‘direitos humanos’ se contrapõe à defesa dos ‘direitos da
classe trabalhadora’.
3. 4. 1 Os que ‘jetonean’ no exílio
Junto as associações integradas por advogados exilados na Franca, como a CADHU e
o GAAEF, existiam também em Paris outras associações como o Centre Argentin
d’Information et Solidarité (CAIS), o Centre d’Information sur l’Argentine en Lutte (CISAL),
a Comission de Solidarité des Parents des Prisioners, Disparus et Tues en Argentine
(CO.SO.FAM), integrado exclusivamente pelas vítimas diretas ou parentes de presos políticos
e desaparecidos.
Outras associações reivindicavam publicamente a identidade profissional dos seus
integrantes como era o caso dos médicos ou jornalistas agrupados na Unión de Periodistas
Argentinos Residentes en Francia (UPARF). Outras reivindicavam a pertença sindical como
o Grupo de Trabajadores y Sindicalistas Argentinos en el Exilio (TYSAE), em tanto outras se
conformaram em volta à adscrição político-partidaria dos seus integrantes como era o caso da
Oficina Internacional de los Exiliados del Radicalismo Argentino (OIERA) o do Círculo de
Argentinos para el Socialismo (CAS). Também estavam os que reclamavam uma identidade
confessional como a Comunidad Cristiana Argentina no Exílio. Existiam também outros
espaços associativos integrados por figuras representativas da vida pública francesa como o
Groupe de Solidarité avec le Peuple Argentine.
581
580
Entrevista realizada por mim a Malena Bordenave (nome apócrifo). Bs. AS. 2002.
581
Entre os trabalhos dedicados a analise do exílio argentino na Franca, encontram-se os de Marina Franco, 2005
e Maria Oliveira-Cézar, 2000.
297
A referencia a estas associações importa em tanto permite compreender, pelo contraste
entre as posições de algumas de elas e as adotadas pelas associações integradas por advogados
descritas anteriormente, que o apelo à retórica dos direitos humanos e o fato de acudir as
instancias internacionais especializadas em vigiar pela sua defesa, não constituem fatos
‘naturais’ nem necessariamente derivados da brutal repressão do Estado. O CISAL, por
exemplo, se define como ‘uma associação de apoio às forças populares e revolucionarias na
Argentina’ que se propõe desenvolver ‘uma solidariedade de classe entre a classe operária
argentina e a classe operária européia’. Desde esta perspectiva, os integrantes do CISAL se
propunham “... denunciar o rol da Franca, através de suas empresas Renault, Peugeot e
Citroën (...) em tanto parte ativa na exploração do povo argentino e cúmplices do aparato do
Estado e da repressão, cumplicidade que conduz a Franca a colaborar com as Forças Armadas
Argentinas”.
582
Desde esta perspectiva desqualificavam aos argentinos que ‘jetonean no exilio’,
referindo-se implicitamente aos advogados argentinos.
583
Por oposição a eles, os integrantes
do CISAL e do CAIS se reconhecem como aqueles que:
“No llegamos a Europa con saco y corbata, respetuosos de la respetabilidad liberal
burguesa a legitimar la socialdemocracia (…) por encima de la condición
circunstancial de expatriados [nuestra] condición permanente y trascendente es la
de militantes de nuestra clase en la guerra por su liberación (…) intentamos
recuperar esta etapa de ostracismo también como otro puesto de resistencia desde
el cual contribuir a la derrota del poder que sustenta la opresión de nuestra
gente”
584
.
Como se desprende destas afirmações, o apelo a retórica dos direitos humanos supõe
uma posição dentro de um campo maior de posições em disputa pelo poder de representar a
situação dos argentinos exilados na Franca e por se constituir como a voz autorizada para falar
582
Bulletin du CISAL. N° 3, Abril 1975: Paris.
583
O termo ‘jetón’ me foi repetidas vezes mencionado nas entrevistas com os advogados defensores de presos
políticos para fazer referencia à percepção que os integrantes das associações armadas da esquerda tinham dos
advogados defensores. Este termo, que pertence ao lunfardo portenho (gíria), significa literalmente ‘que tem o
rosto grande’. “Jetonear” se utiliza como sinônimo de ‘metido’ ou ‘convencido’. Em termos de Mattarollo, “ao
advogado se o considerava um ‘jetón’, alguém que estava ‘na superfície’ (não era clandestino), que gostava de
‘falar’ e ‘ter imprensa’. Em: entrevista realizada por Vera Carnovale para o arquivo de Memória Abierta.
584
“En el exilio también con los trabajadores y no junto a patrones ni traidores”. Folleto de los Equipos por la
Victoria Independiente de los Trabajadores Argentinos. Paris. s/d.
298
em nome dos argentinos em geral. Entre as estratégias de desqualificação utilizadas contra os
advogados se encontra as de os apresentar como ‘traidores e inimigos instalados no exílio a
espera de uma oportunidade’. Para quem integravam o CISAL, os advogados defensores dos
direitos humanos “são oportunistas (...) sem perdida de tempo aproveitam o exílio para se
dedicar, com tambores e pratos, a rastejar a solidariedade pelos parlamentos e as sedes
partidárias dos burgueses que administram a exploração dos trabalhadores europeus”
(ibidem).
Como veremos, estas formas de desqualificação tem a ver com o fato de que a atuação
dos advogados no exílio em quanto profissionais e em quanto vítimas criou novos espaços de
oportunidades profissionais derivados da sua conversão à condição de ‘peritos’. Se, como
assinala Vânia Markarian ao se referir ao exílio uruguaio, os exilados desse país
incorporaram: “... uma linguagem política em todo alheia à retórica revolucionaria que havia
definido sua militância até os anos sessenta” é preciso reconhecer que esta distancia se estreita
se observa-se a experiência do exílio desde o ponto de vista dos profissionais do direito quem,
junto com a retórica que exalta o seu compromisso com ‘a causa dos trabalhadores’ ou ‘a
causa pela liberação nacional’ utilizam também a linguagem internacional dos direitos
humanos e o apelo aos mecanismos internacionais de denuncia.
585
O fato de focalizar sobre este segmento dos militantes da esquerda que são os
profissionais do direito, permite identificar que a linguagem da revolução socialista e a defesa
do direito não eram necessariamente excludentes. O que sugere que provavelmente se possa
encontrar nesta condição uma das chaves para compreender o sucesso da conversão destes
advogados defensores de presos políticos à condição de ‘peritos’ e na consolidação da causa
pelos direitos humanos, tanto no plano local como internacional.
585
Ainda que a reconstrução da experiência do exílio não esteja feita desde o ponto de vista dos profissionais do
direito, vale a pena salientar o excelente trabalho de Vânia Markarian quem, desde uma perspectiva distanciada,
reconstrói a conformação de uma rede internacional de denuncia envolvendo aos exilados uruguaios. Markarian,
V. 2006.
299
3. 4. 2 Os defensores como ‘peritos em direitos humanos’
Os profissionais do direito exilados sintetizam toda a ‘incansável luta pelo
restabelecimento dos direitos confiscados’ destacando agora não tanto, o heroísmo e o
sacrifício pela causa, como foi reconhecido nos capítulos anteriores, quanto o ‘trabalho
tenaz e do dia-a-dia’, as estratégias de negociação e de lobby. As mesmas tarefas identificadas
como parte da defesa de presos políticos no capítulo anterior eram as que se realizavam
também desde o exílio: “... apresentar petições a favor da libertação dos prisioneiros e
desaparecidos, a publicação na imprensa nacional de listagens de vítimas da repressão (...) a
difusão de declarações públicas de dirigentes políticos e sindicais e o fato de garantir a
presencia na Argentina de missões de organizações internacionais”.
586
Mas a retórica que
imprime as mesmas, exalta agora o valor supremo da democracia e da defesa dos direitos
humanos.
A passagem do engajamento na defesa dos direitos humanos vai supor o deslocamento
para a ‘alta política’: “Alguns companheiros do exílio diziam que se podia discutir de política
ou que se podia discutir de solidariedade e direitos humanos [como questões excludentes]. Eu
estava entres os que pensavam que discutir e trabalhar pela solidariedade em direitos humanos
era a forma mais alta da política”.
587
Estes profissionais do direito se converteram no exílio em ‘peritos’ em direitos
humanos a partir da sua inserção em associações internacionais, como foi o caso
mencionado de Mattarollo. Trajetórias equivalentes foram as que seguiram os integrantes da
Asociación Gremial de Abogados de Buenos Aires e o Groupe d’Avocats Argentins Exiles
em France (GAAEF): Leandro Despouy, Alejandro Teitelbaum, Hipólito Solari Yrigoyen e
Horacio Menéndez Carrera, quem se reconhecem e são reconhecidos no espaço internacional
como ‘peritos em direitos humanos’. Na trajetória profissional destes advogados pode-se
reconhecer um padrão comum: a alternância entre os cargos na alta função pública e nos
postos na esfera internacional.
588
586
Em: Le Monde Diplomatique. Minha tradução.
587
Entrevista a Mattarollo. Archivo Memoria Abierta. Grifos meus.
588
Vale a pena salientar que a gestão de programas internacionais de promoção dos direitos humanos se
converteu numa industria florescente em tanto, segundo estimações recentes, estes programas envolvem uns 700
milhões de dólares anuais. T. Carothers, 2000. cit. Em Guilhot, 2001.
300
Horacio Menéndez Carrera, integrante da APDH, se somou no exílio em Paris à
Asociación de Franceses Desaparecidos na Argentina. Sua intervenção como ‘perito’ recebeu
o reconhecimento de figuras notáveis da Franca. Premiado pelo presidente François Mitterand
com a Ordem Nacional ao Mérito, atuou como consultor das embaixadas de Suécia, Franca,
Suíça e participou, também, como advogado da parte civil no juízo realizado em Franca
contra Alfredo Astiz, o responsável do assassinato das freiras de nacionalidade francesa
Leonie Duquet e Alice Domon. Sobre a sua intervenção no juízo destacava: “Tive a honra de
haver sido um dos advogados que advogou nessa solene audiência [a Chambre d’Accusation]
que ditou sentença condenatória em março de 1990”.
589
A intervenção nestes plano
internacional reverte logo em importantes postos na função pública ao retorno à Argentina.
Menéndez Carrera, por exemplo, se desempenha atualmente como Subsecretario de Direitos
Humanos da Cancelaria
Leandro Despouy, quem se define por ter “... feito do assunto dos direitos humanos
uma causa, um motivo de ser, o motivo da minha vida e uma trajetória...”,
590
logo do seu
exílio em Paris voltou à Argentina e contribuiu na montagem do juízo civil aos integrantes
das juntas militares de governo que foi levado a cabo sob a presidência de Raúl Alfonsín,
dirigente da UCR e advogado da APDH. Despouy esteve encarregado dos contatos com as
personalidades internacionais que iriam ser convocadas pela promotoria. Entre outros,
contatou à ex diretora de direitos humanos de James Carter, Patrícia Derian, a Louis Joinet,
magistrado francês integrante da comissão de direitos humanos da ONU e ao perito holandês
Theo van Boven.
Chegado o juízo a seu fim, foi nomeado primeiro diretor da Cancelaria e logo
embaixador durante o governo de Alfonsín. Ao finalizar este governo (1989), Despouy foi
designado como ‘perito’ da Subcomissão de Direitos Humanos da ONU. No ano 2001 chegou
a ocupar o cargo de Presidente dessa comissão. De volta no país, se desempenhou como
Auditor General da Nação, um órgão de assistência técnica ao parlamento. No ano 2003,
voltou a ONU como relator especial da comissão de direitos humanos sobre a independência
do poder judicial, magistrados e advogados criada especificamente para: “... fazer a defesa dos
advogados e do livre exercício de suas funções quando são vítimas de pressões, atentados ou
589
Horacio Menéndez Carrera. “El Código Penal Francés y el caso Astiz” Em: La Protección de los Derechos
Humanos en el Sistema Inter-americano. Bs. As. Ed. Gobierno de la Ciudad de Bs. As. 1999.
590
Leandro Despouy. “Evolución y sentido de los derechos humanos”. Em: La Protección de los Derechos
Humanos en el Sistema Inter-americano. Bs. As. Ed. Gobierno de la Ciudad de Bs. As. 1999.
301
outro tipo de violações”.
591
Desde esta função elaborou o relatório sobre as prisões de
Guantánamo dos EEUU e realizou missões a Brasil, Equador e Kazajstán, entre outras.
Despouy define a sua tarefa da seguinte maneira: “Consiste essencialmente na
apresentação de um relatório anual perante a Comissão de Direitos Humanos [da ONU] e
perante a Assembléia General e algumas missões de terreno, conseguindo leva-las a frente
sim abandonar minhas atividades acadêmicas e da função pública” (op.cit.). Alejandro
Teitelbaum, advogado defensor de presos políticos e diplomado em Relações Econômicas
Internacionais em Paris, é atualmente assessor internacional em assuntos de direitos humanos
e representante da Associação Americana de Juristas diante as Nações Unidas.
Hipólito Solari Yrigoyen, quem fosse designado assessor pelo presidente Alfonsín e
embaixador extraordinário e ministro plenipotenciário entre 1983 e 1987, voltou ao país e foi
senador entre 1987 e 1995. É reconhecido como autor de livros em direito internacional e por
ter participado em missões humanitárias a pedido de Anistia Internacional, a União Inter-
parlamentar e a CIJ. Entre 1988 e 1993 foi presidente do Comitê de Direitos Humanos desta
ultima instituição com sede em Genebra e em 1994 foi presidente da União Inter-parlamentar
para a paz Bósnia-Herzegovina. Atualmente é vice-presidente do comitê de direitos humanos
da ONU, integrante da CIJ e presidente do comitê executivo da associação civil Novos
Direitos do Homem, uma organização não governamental que tem caráter consultivo na ONU
e cuja sede é compartilhada entre a Franca e a Argentina.
Sob o qualificativo de ‘distinguidos advogados argentinos’ se fazia referencia a Raúl
Alfonsín e Genaro Carrió, ambos os dois integrantes da APDH. De Alfonsín se mencionava
entao a sua condição de ex parlamentar nacional e reconhecido dirigente político da UCR. De
Carrió se destacava, justamente, a sua condição de ex integrante da própria CIDH e o fato de
ter sido um especialista em direito internacional com estudos de pós-graduação nos EEUU. A
trajetória do jurista argentino Genaro Carrió esteve marcada por estes diversos atributos que o
colocam como uma figura notável dentro deste universo. Carrio iniciou a sua carreira
internacional a partir da sua pós-graduação nos EEUU. Até o golpe de Estado de 1966 havia
atuado como professor da faculdade de Direito de Buenos Aires. Em 1972, aparece
novamente ligado à esfera internacional a partir da sua incorporação à CIDH. Em seguida do
591
Em: “El argentino Leandro Despouy nombrado relator de la ONU para jueces y abogados”. France Press.
11.08.2003.
302
golpe de Estado de 1976, interveio no serviço jurídico da APDH e, com o retorno a
democracia em 1983, ocupou a presidência do Supremo Tribunal de Justiça.
Hipólito Solari Yrigoyen era descrito como “... uma das personalidades políticas mais
conhecidas do país. Professor universitário, atuou como advogado defensor em casos de
presos políticos e tem levado a frente uma campanha de apoio aos direitos humanos”.
592
A
sede em Paris de Nouveaux Droits de l’Homme é presidida por Pierre Bercis, justamente o
dirigente socialista que integrava a associação Club des Droits Socialistas de l’Homme, que
fora premiada pela CADHU. Novos Direitos do Homem é o nome atual do Direitos
Socialistas do Homem. Os advogados Despouy e Alfonsín, ambos os dois dirigentes da
APDH, integram também o comitê executivo de Novos Direitos do Homem. Trata-se de uma
associação civil que se define pela promoção e plena vigência dos direitos humanos no
mundo.
593
Rodolfo Mattarollo, que havia começado a sua carreira profissional como advogado do
Estado, logo da sua atuação na Gremial e no espaço internacional, se desempenha atualmente
como subsecretario da Secretaria de Direitos Humanos da Nação, espaço crítico na
formulação de políticas relativas a esta área. Ele é reconhecido principalmente pela sua
condição de ‘jurista’ e ‘perito internacional’ em direitos humanos. Integrante da seção
francesa da Liga Internacional dos Direitos e da Libertação dos Povos, criada em 1976 por
Lélio Basso, é autor do artigo com que a célebre Encyclopeadia Universales inaugurou o
assunto ‘desaparecidos’. Publica regularmente desde os anos setenta até hoje em Le Monde
Diplomatique sobre ‘o direito internacional dos direitos humanos’ e em revistas da
especialidade dotadas de todos os atributos da respeitabilidade acadêmica como a Revista da
Comissão Internacional de Juristas. Logo do seu passo pela oficina de refugiados do
ministério de relações exteriores de Franca, a princípios dos anos 90 se incorporou à ONU em
qualidade de perito em direitos humanos. Vale a pena salientar este processo de incorporação
à ONU e a maneira em que alterna sua atuação na gestão de programas locais e internacionais
ligados aos direitos humanos:
592
Em: documentos desclassificados do Departamento de Estado dos EEUU. Junho 1977. Minha tradução.
593
Em: www.ndh.org.ar
303
“[En 1990]…me llaman de la Universidad Católica de El salvador, que es la s
prestigiosa del Salvador y, quizás de Centro América, para asesorar a la dirección
de la UCA sobre el juicio que los jesuitas de la universidad centroamericana
intentaban llevar adelante por el asesinato del padre Ignacio Yacuría, otros cinco o
seis sacerdotes y sus dos empleadas que fue uno de los crímenes más atroces del
gobierno salvadoreño durante la lucha contra el FLNM (…)los padres jesuitas
buscaron asesoramiento internacional. Me llamaron. Yo comencé a viajar a El
Salvador regularmente durante un año y medio para contribuir a construir la
ingeniería jurídica de este juicio (…)
[A raíz de esta intervención] Naciones Unidas me llama cuando se establece la
misión en El Salvador. Esa misión (...) fue la primera en la historia de la ONU en
verificar la observancia de los derechos humanos en un país independiente durante
un conflicto armado interno y antes de que terminara el conflicto (…). Fue el
comienzo de mi tarea orgánica, esta vez dentro de las Naciones unidas, ya no
desde afuera como ONG sino desde adentro como funcionario, lo que completó la
visión y la experiencia de la actividad internacional de los derechos humanos. A
esto siguieron múltiples experiencias.
El siguiente destino no fue dentro de Naciones Unidas pero sí como asesor jurídico
internacional fui a Etiopía. (...) estando en Etiopía me llaman nuevamente de las
Naciones Unidas para ir a Haití (...) dirigí esa misión durante 5 años. Vuelvo a la
Argentina en el año 2000. Colaboro con el senador Eduardo Sigal (…) en el senado
de la provincia de Bs. As. Siempre en temas de derechos humanos y vuelvo a salir
al exterior llamado x las Naciones Unidas para encabezar el contingente de
derechos humanos en Sierra Leona (...) dirigí ese contingente durante dos años.
Estando en Sierra Leona un día después del 25 de mayo de 2004 suena el teléfono
[fecha de la asunción del actual presidente Kirchner]. Era Eduardo Luis Duhalde
(…) quien me dice (…) Te ofrezco que seas el número dos de la Secretaría [de
Derechos Humanos de la Nación], que seas mi jefe de gabinete. Y aquí estoy
594
.
A trajetória íntegra de Mattarollo, tal como ela começou a ser relatada desde o capítulo
anterior, condensa a enorme transformação operada nas formas de assumir o compromisso
público entre finais dos anos sessenta e noventa e sugere a importância de compreender a
594
Entrevista a Rodolfo Mattarollo realizada por Vera Carnovale para Memoria Abierta.Grifos meus. Dois anos
depois, esta missão em Haiti vai estar ao frente de Louis Joinet.
304
relação entre conjunturas políticas e sociais e condições de emergência e de transformação
destas vocações militantes. Sua trajetória revela como o investimento no ativismo
internacional se relaciona com situações que revelam a falta de oportunidades profissionais na
Argentina como quando voltou ao país no ano 2000 e se dedicou à vida acadêmica numa
faculdade da periferia do estado de Buenos Aires, uma tarefa que qualificou de negativa.
Neste contexto, Mattarollo voltou a sair do país como ‘perito’ da ONU.
595
Se no primeiro capítulo, se havia destacado o perfil heróico deste tipo de militantismo
jurídico, no segundo podia-se identificar também a dimensão rutinizada desta atividade, foi a
partir da volta a democracia em 1983 quando o ativismo em direitos humanos ingressou,
progressivamente, no espaço do Estado. E os quadros políticos dotados do capital moral
acumulado na defesa dos direitos humanos, legitimados internacionalmente, vão fazer parte
das agencias estatais e internacionais dedicadas à formulação de políticas sobre direitos
humanos sob a condição de ‘perito’. Condição que se institui, não pela sua oposição à
política, mas por se tratar de trajetórias baseadas no exercício militante da profissão. É este
tipo de militantismo experto o que lhes permitiu re-converter as suas competências
profissionais e políticas em diferentes esferas locais e internacionais.
3. 5 Conclusão
As ações até aqui descritas expõem a complexa e densa rede que vincula aos
advogados defensores de presos políticos, vitimas, parentes das vítimas do terrorismo de
Estado e peritos em direitos humanos nacionais e estrangeiros. Nas trajetórias destes
profissionais do direito pode-se reconhecer a importância do jogo de pertenças múltiplas que
coloca a estes advogados engajados tanto no mundo da diplomacia, do mundo associativo,
acadêmico, quanto da política profissional o do Estado. Trata-se de indivíduos que baseiam a
sua posição num jogo de afiliações múltiplas ligadas tanto ao ativismo político, ao exercício
da profissão jurídica quanto a seu passo pelas esferas estatais.
595
Trajetórias semelhantes tem sido identificadas para o caso chileno por Daniela Cuadros Garland, mesmo que
seu análise começa em 1973 com o golpe de Estado contra Pinochet. Em Cuadros Garland, 2003.
305
Esta ação toda entre profissionais do direito nativos e estrangeiros (ou orientados
nacional ou internacionalmente) resulta numa sorte de jogo de duplo reconhecimento: a través
da inclusão das denuncias de países como a Argentina na agenda das agencias internacionais,
elas adquirem a capacidade de representar, através do direito, os interesses dos oprimidos, dos
perseguidos, e se posicionar, com isso, dentro das lutas existentes no próprio campo das
associações internacionais. A participação dos profissionais do direito em tanto vítimas ou
parentes das timas contribui a legitimar as associações internacionais de juristas a partir de
um capital moral e experto que aportam os advogado nativos. De fato, o premio Nobel da Paz
de 1977 foi entregue a Anistia Internacional fundamentalmente pelo relatório e pela missão
que realizara em 1976 à Argentina.
Ao mesmo tempo, através de todo o trabalho de assessoramento, financiamento e
difusão das denuncias e das atividades realizadas pelos profissionais do direito argentinos em
forma conjunta com as associações internacionais de juristas, as associações nativas se
institucionalizam e profissionalizam, se transformando os seus militantes em ‘peritos em
direitos humanos.
Esta profissionalização coincide com o auge do direito internacional dos direitos
humanos e com as transformações na esfera internacional onde a autonomização e
profissionalização dos seus ativistas faz parte das estratégias dos quadros dirigentes de
associações como a CIJ e a AIJD. Estes peritos recém-chegados a este tipo de militantismo do
internacional, vão ocupar, a partir de meados dos anos setenta, cargos chaves dentro do
universo dos direitos humanos fazendo apelo a seu conhecimento experto, por oposição aos
notáveis do direito que haviam hegemonizado até então este ativismo. A primeria geração de
juizes integrantes da CIDH, por exemplo, se recrutava entre os ex-ministros, embaixadores,
altos funcionários públicos ou acadêmicos distinguidos, dedicados profissionalmente à
política.
596
A compreensão das transformações deste tipo de militantismo baseado no direito na
Argentina requer levar em conta as condições existentes ao interior do universo das
associações internacionais de juristas. A conversão da militância em defesa dos presos
políticos e das causas populares, numa militância baseada na condição de peritos
596
Dezalay e Garth, 1998 a.
306
(independentes) na causa dos direitos humanos acontece em forma simultânea com profundas
mudanças nas próprias ‘multinacionais’ dos direitos humanos, fazendo uso de uma expressão
de Mikael Madsen.
597
A meados dos anos sessenta e princípios dos anos setenta, os notáveis do direito que se
haviam somado ao ativismo em direitos humanos, vão ser substituídos por uma nova geração
de peritos que provem, nos EEUU, de uma esquerda radicalizada pela sua oposição à guerra
de Vietnam e pela sua crítica à política exterior norte-americana de apoio aos golpes de
Estado que violavam os direitos humanos. Num clima de crescente desconformidade, não é
difícil perceber o atrativo de um discurso crítico de fundamento moral. Este processo
coincidiu com a expansão de associações como a CIJ, a criação de outras como Anistia
Internacional e a grave situação vivida por vários países de América latina. Na Europa, se a
luta contra o fascismo havia aglutinado aos juristas numa causa comum, foi a partir dos anos
sessenta quando foram criados novos princípios de recrutamento, entre os quais se encontram
a crítica ao colonialismo e o apóio as lutas de liberação nacional. Trata-se, então, de uma nova
geração de quadros políticos que fazem o seu ingresso ao campo da política e do ativismo
profissional da mão do capital moral acumulado pela sua participação em estes eventos,
capital que é renovado a partir de assumir um compromisso com a causa dos direitos humanos
fora das fronteiras do primeiro mundo. É nesta renovação da classe dirigente européia e norte-
americana onde está uma das chaves do sucesso deste tipo de militantismo experto e das
condições que fizeram possível a sua exportação a América latina.
598
Estas trajetórias baseadas neste tipo de militantismo experto assegura a promoção
destes juristas nas primeiras filas do Estado e das agencias internacionais como a ONU. Se,
como assinalava uma das advogadas argentinas entrevistadas, os profissionais do direito
estrangeiros engajados com a causa dos direitos humanos eram ‘advogados mas bem
marginais, que não se destacavam na atividade pública’,
599
esta situação se transformou já que
a partir da representação da causa pelos direitos humanos na América latina ganharam
notoriedade pública, como se viu nos casos de Carreño ou de Joinet, hoje uma das figuras
597
Madsen, op,.cit.
598
Este parágrafo reconhece a sua inspiração nos trabalhos citados de Guilhot, Agrikoliansy e Dezalay e
Garth. Uma analise sobre como as estratégias de exportação do ‘rule of law’ se relaciona com a especificidade
dos contextos nacionais nos quais ela é importada pode-se encontrar no trabalho de Dezalay e Garth. 2000.
Segundo estes autores “... o sucesso das estratégias de importação esta inevitavelmente unido as lutas do palácio
domésticas e a concorrência internacional para exportar expertos do Estado”. Op.cit.
599
Entrevista realizada por mim a Malena Bordenave (nome apócrifo).
307
de maior destaque na esfera internacional dos direitos humanos. Esta mesma situação se
verifica no análise de Dezalay e Garth que mostram como, graças à experiência adquirida
como responsáveis do serviço jurídico da CIJ, seus integrantes acederam a postos
importantes, tanto nos países centrais quanto em aqueles nos quais intervieram como
consultores.
600
As condições que estão na origem destas primeiras missões, os propósitos e seu
desenvolvimento importam em tanto exprimem, não a significação que esta tarefa tem
perante os colegas da Argentina e da Europa, mas também pela maneira em que a intervenção
destes advogados e magistrados europeus e norte-americanos transforma o espaço local da
profissão jurídica e da militância pela causa dos direitos humanos, tanto pelo fato de
introduzir aos profissionais nativos numa rede de relações internacionais quanto pelo fato de
incidir na constituição de novos espaços associativos, como o Comitê Argentino por los
Derechos Humanos (CADHU) e o Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS) e na
configuração do próprio Estado nacional.
Esta movimentação internacional promoveu a ação dos seus pares argentinos no exílio
constituindo-se as associações de juristas em novos espaços de recrutamento militante e
profissional para muitos dos defensores que haviam saído da Argentina e que encontraram
nestas associações não a possibilidade de amplificar suas denuncias como também de
ganhar experiência profissional. As práticas associativas dos advogados argentinos no exílio
são impossíveis de dissociar da participação neste universo mas abrangente das associações
internacionais de juristas. Esta participação possibilitou a integração dos advogados a estas
redes em qualidade de peritos, lhes outorgando uma linguagem, uma comunidade de pertença,
um repertorio de ação e novas possibilidades de inserção profissional.
Neste contexto, a ‘democracia burguesa’, o ‘Estado de direito’ vão ser objeto de uma
reavaliação positiva, fato que os aproxima ao movimento internacional dos direitos humanos e
que vai produzir profundas transformações nas formas de pensar e atuar na política. Como
decorrente destes relatos, a retórica dos direitos humanos vai permitir articular um conjunto
de práticas comuns e coletivas ao situar-las muito além da política, quer dizer, num espaço
que as transcende: o dos direitos humanos. A adscrição a este principio universal de
600
Ver Dezalay e Garth, 1998 a.
308
recrutamento vai permitir, também, aos advogados defensores de presos políticos argentinos
se somar a uma ampla comunidade internacional de pares.
Esta inovação está diretamente ligada ao fato que os profissionais analisados somaram
a sua condição de advogados, o atributo de vítima direta da repressão, como no caso de Solari
Yrigoyen, fundador do GAAEF e de Novos Direitos do Homem, ou de parentes das vítimas,
como é o caso de Emilio Mignone, fundador do CELS. Desprovestes na maioria dos casos de
disposições herdadas que lhes vão permitir tirar vantagem das oportunidades internacionais, o
ativismo pela causa dos direitos humanos os envolve nesta esfera de relações como exilados,
como parentes e como profissionais do direito. Em tanto tais, integram e produzem uma rede
de relações locais e internacionais que vai resultar chave na consolidação da causa pelos
direitos humanos na Argentina e na profissionalização dos seus militantes.
É importante salientar a importância dos atributos derivados do sangue, da profissão e
da posse de uma rede de relações internacionais na configuração de este processo tudo e na
conformação do movimento pelos direitos humanos na Argentina. Junto às associações
mencionadas acima, surgiram na Argentina um conjunto de outras associações civis que
fizeram do apelo ao sangue um principio de distinção pública. Surgidas a finais dos anos
setenta, as Abuelas de Plaza de Mayo (1977), Madres de Plaza de Mayo (1977), Familiares de
Desaparecidos y Detenidos por Razones Políticas (1976) irromperam no espaço público
baseando a legitimidade das suas demandas na inquestionabilidade do nculo biológico com
as vítimas. Este princípio de adesão lhes outorgou a seus integrantes uma posição de máxima
notoriedade e legitimidade no interior do movimento pelos direitos humanos.
601
A
centralidade destas associações se evidencia, entre outras coisas, quando quem exerceram a
defesa de presos políticos entre mediados dos anos sessenta e setenta costumava-se a
identificar como havendo sido parte da ‘pré-história’ do atual movimento pelos direitos
humanos na Argentina, reconhecendo desta maneira, a hegemonia que possuem na atualidade.
Apesar disso, a consolidação destas associações não pode se compreender sem sua relação
com as ações baseadas no engajamento com a justiça e com o direito, impulsionado e
sustentado pelos profissionais do direito aqui examinados.
601
Alguns dos princípios centrais na constituição do movimento pelos direitos humanos na Argentina tem sido
analisados por mim na minha dissertação de mestrado. Vecchioli 200.
309
O capital de recursos internacionais contatos, diplomas acadêmicos, legitimidade e
‘expertise’ foi utilizado pelos profissionais do direito argentinos para construir uma carreira
em tanto ‘peritos’ em direitos humanos e ir ganhando controle sobre esferas do campo estatal.
No primeiro lugar, o uso do direito internacional dos direitos humanos aparece como uma
estratégia para impugnar o regime militar. De volta a democracia, este recurso interveio na
legitimação da conquista do Estado diante outros possíveis adversários políticos. O
investimento nos direitos humanos forneceu de uma base muito importante para a atividade
política na democracia. É neste contexto de disputas internas pelo poder que adquire sentido o
apelo à retórica e ao capital moral acumulado nas lutas pela defesa dos direitos humanos,
como é notoriamente o caso de Raúl Alfonsín, Genaro Carrió, Leandro Despouy, Hipólito
Solari Yrigoyen, Emilio Mignone, Augusto Conte, Eduardo Luis Duhalde e Rodolfo
Mattarollo quem ocupam altos cargos na função pública logo de ter adquirido notoriedade
como defensores dos direitos humanos. Para este segmento marginal dos profissionais da
política e do direito na Argentina, a incorporação a esta esfera internacional ofereceu uma
oportunidade de fazer o seu ingresso ao centro da política através da reivindicação de
princípios universais como os direitos humanos e a democracia.
A descrição das trajetórias de quem integram o CELS ou as agencias públicas
orientadas a formular políticas relativas aos direitos humanos na Argentina, ilustram a
modalidade específica em que se desenvolve esta forma de ativismo experto no entanto ele se
desenvolve além das divisões entre o governamental e o no governamental. Tanto as
trajetórias de Mattarollo como de Despouy e outros mostram que uma das condições para
compreender a constituição deste ativismo experto é justamente o fato de reconhecer a
interpenetração de redes e a mobilidade entre elas. A experiência do exílio da geração dos
defensores de presos políticos e a formação em direito nos EEUU da geração que os sucedeu,
lhes deu, não credenciais morais e uma experiência em gestão, mas também uma rede
internacional de contatos que fortaleceu o conhecimento experto adquirido nestas instancias
internacionais.
É neste contexto nacional e internacional quando os advogados defensores dos direitos
humanos começaram a viver de e para a causa. A diferencia dos especialistas integrantes da
Liga ou da Associação Gremial estudados nos capítulos anteriores, o engajamento dos
advogados na criação de uma associação como o CELS evidencia um processo gradual de
profissionalização ao recrutar seu staff de profissionais segundo critérios meritocráticos.
310
A importância que lhe atribuem os advogados do CELS à tarefa de formar
profissionais que possam se incorporar ao trabalho neste tipo de associações se evidencia no
ditado, na própria sede do CELS de uma ‘clínica jurídica’ que faz parte da currículo
acadêmico dos estudantes de direito da Universidade de Buenos Aires. A importância da
formação em direito e em direito dos direitos humanos é reconhecida até pelas próprias
associações integradas pelos parentes das vítimas, como é o caso da Asociación Madres de
Plaza de Mayo, em cuja sede se tem criado uma carreira própria em direito (2006) na qual
participam profissionais do direito que integraram a Gremial, a APDH ou o CELS. A
reivindicação deste ativismo profissional tem dado origem, no atual contexto, a novas
associações de direitos humanos que se reivindicam pelo seu compromisso com o direito,
como são os casos do Centro de Profissionais em Direitos Humanos (CeProDH, 1977) e
Novos Direitos do Homem (NDH, 1990).
Esta profissionalização se expande, pela sua vez, a outros espaços que não estão
referidos exclusivamente as associações de direitos humanos. Na própria UBA, na mesma
carreira na qual se formaram a maior parte dos advogados defensores de presos políticos, os
atuais estudantes de direito podem cursar disciplinas específicas sobre direitos humanos sob a
responsabilidade de especialistas em assuntos tais como “Direitos humanos e Garantias”.
Como recém-formados podem-se especializar em seminários de pós-graduação tais como
“Procedimentos diante a Comissão Inter-americana de Diretos Humanos” e inclusive obter
diplomas de pós-graduação ligados a este novo conhecimento experto. Imbuídos de uma tal
condição, tem a possibilidade de publicar os seus trabalhos em revistas da especialidade como
a que publica a recentemente criada editora Ad Hoc, entre outras.
Esta profissionalização envolve, por um outro lado, o reconhecimento progressivo do
direito dos direitos humanos de parte do Estado, o que conduz a associações como o CELS ou
Novos Direitos do Homem a uma sorte de competência pelo monopólio da representação
desta causa. E por um outro lado, faz possível ‘viver de e para’ a causa, uma fórmula que
não remete exclusivamente ao exercício da profissão política mas que denota a possibilidade
desta profissionalização de um campo militante conformado em torno a uma competência
profissional, como é a atual conformação da causa pelos direitos humanos na Argentina.
311
Epílogo
“Hoy un abogado de derechos humanos tiene que empezar por estudiar
derecho internacional (…) cuando vos vas con la interpretación de las
convenciones del derecho internacional a un juez federal de Jujuy te mira con los
ojos así [de grandes] y te dice: ‘¿Y por qué tengo que estudiar la jurisprudencia del
tribunal de La Haya o de Costa Rica, por qué tengo que estudiar eso y no la
autonomía provincial?’ No señor, la autonomía provincial pasó de moda”
602
.
“Si hablamos de cultura jurídica, el derecho internacional que yo había
estudiado en la Facultad de Derecho de la UBA era el derecho internacional
clásico, se podría decir, hasta la segunda guerra mundial, era un derecho donde los
sujetos eran los Estados. A nadie se le hubiera ocurrido que el individuo podía ser
un sujeto del derecho internacional y donde el derecho internacional de los
derechos humanos ni siquiera se enseñaba porque prácticamente no existía o no era
conocido en la Argentina. Digamos que yo intenté por la vía de la opinión pública,
del periodismo, de innumerables charlas, debates y seminarios en los que intervine
en aquellos años de alguna manera trasvasar un poco estas experiencias. Nosotros
empezamos a hablar de crímenes de lesa humanidad, de crímenes del derecho
internacional en un momento en que los jueces argentinos no lo hacían. Hoy parece
un sueño ver en los fallos de la jueza María Romilda Servini de Cubría categorías
como crímenes de lesa humanidad que ya son usados corrientemente por la
jurisprudencia argentina cuando en aquellos años eran cosas que escribíamos
algunos en columnas de opinión en los años 80. De modo que creo que se ha
caminado un cierto camino en ese aspecto, que tal vez alguna contribución se ha
llegado a hacer”
603
.
602
Entrevista realizada por Laura Saldívia a Cristina González (nome apócrifo). Jujuy é um estado argentino
localizado no norte do país, a uns 1500 km. de Buenos Aires. Grifos meus.
603
Entrevista a Mattarollo para Memoria Abierta.
312
Conclusões
Esta tese se propus mostrar a formação de um segmento da profissão jurídica
diretamente associado à promoção e defesa dos direitos humanos na Argentina. Ao longo
deste trabalho se deu ênfase a um itinerário: o que vai da invenção da causa dos direitos do
homem nas primeiras décadas do século XX até a profissionalização dos seus militantes na
atualidade. Na descrição deste percurso se privilegiaram algumas das instancias chaves na re-
configuração deste perfil profissional. Se os advogados descritos nos capítulos iniciais
evocam a figura heróica do profissional que se entrega desinteressadamente à causa, o último
nos apresentou aos profissionais do direito na sua condição de peritos a partir da organização
de um campo transnacional do ativismo profissional em direitos humanos.
Para compor o complexo retrato dos especialistas engajados com a causa e da causa
que os faz existirem socialmente realizei um levantamento das suas propriedades sociais.
Tenho identificado inúmeros índices da proximidade social que existia entre os indivíduos
comprometidos com a causa: sua pertença ao mesmo universo profissional, a colaboração nos
mesmos periódicos, os nculos criados ao longo da vida de estudantes, as opções políticas, o
exercício de funções públicas, sua identificação com a figura do intelectual, etc. Isto permite
sugerir que a participação num engajamento militante deste tipo não deriva nem do acaso nem
de simples identificações ideológicas mas da existência de espaços de interação social a partir
dos quais foram-se estruturando as afinidades ideológicas, as redes e seus princípios de
distinção no interior do universo mais abrangente da política o do direito. Mesmo que o
defensor de presos políticos se perceba a sim mesmo como um solitário herói jurídico, tenho
tentado apresentar todo o peso social das suas redes de pertença e filiação.
A adesão à causa pelos ‘direitos humanos’ não preexistiu à ação reivindicativa mas
foi-se criando no próprio processo, convertido-se numa instancia mais na consolidação de
relações sociais, profissionais e de amizade previas. Neste sentido é interessante destacar a
polissemia do termo ‘engajamento’, significando tanto o fato de se comprometer com uma
ação quanto o fato de se vincular aos outros por uma serie de obrigações inerentes à posição
social que se ocupa ou se pretende ocupar ao interior destes múltiplas espaços militantes e
profissionais.
313
Esta pertença múltipla é um dos fatores críticos que permitem compreender a
incorporação destes indivíduos à causa pelos direitos humanos. Seus dirigentes o
conduzidos a este tipo de ação cívica como resultado dos compromissos e obrigações
recíprocas derivadas da participação nesta rede de espaços sociais comuns aos quais
estavam filiados previamente. Em este sentido, trata-se da conformação de redes de
profissionais do direito e da política que integram uma comunidade moral relativamente
reduzida que inclui tanto aos nomes consagrados quanto aos outros menos célebres e, por
último, também, a desconhecidos.
Através desta descrição, pode-se compreender como o compromisso prévio com a
causa dos ‘trabalhadores’ e suas organizações sindicais orientou a transformação da defesa do
direito trabalhista na defesa dos ‘presos políticos’. A repressão as organizações sindicais por
meio da confiscação dos seus periódicos e boletins, o fechamento das suas sedes, a
perseguição e detenção arbitrária dos seus dirigentes até a deportação dos mesmos fizeram
que este conjunto de juristas, advogados e dirigentes políticos interessados nos direitos dos
trabalhadores fossem levados à defesa dos seus interesses fazendo apelo a linguagem dos
‘direitos do homem’ ou direitos humanos’, ação que se compreende como uma continuidade
com os compromissos existentes adquiridos por estes ‘peritos’ e militantes ao interior deste
universo.
Para quem aparecem como recém-chegados ao mundo do direito, o engajamento com
a causa anti-fascista ou com a revolução, o engajamento profissional e militante com os
grêmios e sindicatos supus uma amplificação do exercício do direito por fora dos marcos em
que tradicionalmente este se havia praticado. A formulação de uma legislação trabalhista, o
patrocínio de trabalhadores e de sindicatos, a criação de cadeiras sobre direito do trabalho, de
revistas jurídicas especializadas, o fato de sustentar uma imprensa anti-fascista y/o anti-
ditatorial, são todos espaços ocupados pelos profissionais do direito e que se associam a esta
maneira de exercer o direito em quanto prática militante. Em estes espaços, estes ‘outsiders
participavam em quanto ‘peritos’ em direito do trabalho, direito penal e direito do asilo,
reivindicando ao mesmo tempo uma identidade militante e se distinguindo de quem possui
um capital de relações ao interior do direito e da política, pela possessão de outros atributos,
tal vez mais intangíveis como o heroísmo, o sacrifício e o desinteresse, mais não por isso
menos eficazes na hora de se fazer de um nome e de uma posição no interior deste espaço de
314
relações. Este processo se tem desenvolvido em contextos de forte incremento da matrícula
universitária que resultaram na existência de ‘advogados sem causa’.
Ao mesmo tempo, se produz uma aproximação de alguns notáveis a este universo
habitado por trabalhadores e imigrantes. Sugeri compreender estes movimentos no contexto
do complexo espaço político de princípios do culo XX quando, trás a sanção da lei de voto
masculino segredo e obrigatório, se transformaram as condições de competência pela
representação e as estratégias de acumulação de notoriedade pública deixaram de estar ligadas
diretamente à posse de riqueza. O paradoxo parece residir no fato de que esta proximidade
com os outsiders’ lhes permitiu o ingresso ao centro da vida política. O uso experto do
direito na defesa das injustiças e dos excluídos posso se converter num recurso crítico de
distinção diante potenciais concorrentes ao permitir a acumulação de um capital
extremadamente valioso com é o capital moral.
Um dos argumentos centrais de esta tese é que este encontro entre notáveis e recém-
chegados ao direito e à política foi uma das condições de possibilidade da constituição da
causa pelos direitos humanos na Argentina, uma morfologia que foi analisada com maior
detalhe no primeiro capítulo mas que também foi identificada nos capítulos seguintes.
Uma outra estratégia proposta para apresentar o processo de ‘construção social e
política da vocação por esta forma de militantismo foi a de levar em conta o enorme trabalho
de definição e delimitação da categoria ‘defensor de presos políticos’. Esta noção aparece
ligada a uma representação do trabalho profissional associada ao culto ao heroísmo, ao
coragem, ao sacrifício e a entrega desinteressada à causa, qualidades todas que os identificam
com os seus defendidos. Estes critérios tem uma importância crítica na hora de criar
homogeneidade entre indivíduos que tem origens e trajetórias profissionais heterogêneas.
Estes princípios de representação são os que fundamentam a legitimidade da sua posição no
interior do mundo do direito e da política, especialmente numa conjuntura como a de
princípios dos anos sessentas, quando a sua clientela se recrutava principalmente entre a
militância armada das organizações da esquerda surgidas então no país. Através desta
representação, este segmento de profissionais do direito adquiriu existência como grupo.
O sucesso relativo alcançado nesta tarefa de unificação se traduziu sob a forma de um
nome coletivo (defensor de presos políticos), de instancias de representação (associações,
315
publicações) emblemas (o desaparecimento do advogado Nestor Martins, o assassinato do
advogado Rodolfo Ortega Peña), taxonomias (advogados do povo / advogados ao serviço do
imperialismo, ‘militar’ na Gremial / exercer o direito), categorias (repressão judicial), teorias
(o imperialismo / a ausência de um Estado de direito), e formas de conceber a profissão: o
engajamento jurídico (‘militar’ em associações de defesa de presos políticos) como
diferenciado hierarquicamente do exercício tradicional ou ‘liberal’ da profissão (‘exercer o
direito’).
Ainda que dotados de valores diferentes, ‘militar’ e ‘exercer a profissão’ não
constituem alternativas opostas ou excludentes. Pelo contrário, ‘exercer a profissão’ foi uma
das condições de possibilidade deste ativismo em quanto permitiu dispor de recursos chaves
para sustentar e dar continuidade à vocação militante. Se a categoria ‘defensor de presos
políticos’ aparece associada ao culto ao heroísmo, paradoxalmente, a legitimidade alcançada
através do fato de pôr em perigo a própria vida foi constituindo ao mesmo tempo a
necessidade de organizar, planejar e conceber novas formas de trabalho em comum. Um dos
argumentos centrais de esta tese é que a rutinizacao do trabalho de defesa constituiu uma
instancia chave na homogeneização da categoria ‘defensor de presos políticos’ e na
objetivação do grupo como tal.
Um outro objetivo da tese foi o de apresentar a construção da causa pelos direitos
humanos e a constituição dos próprios agentes que militam nela e como todo isso leva a re-
configurações significativas, não do campo da militância quanto do próprio campo
profissional. Em este processo é possível identificar um duplo movimento pelo qual ‘a causa’
transforma ao ‘direito’ e vice-versa.
A descrição das distintas redes e espaços de circulação dos militantes permitiu
apresentar como este engajamento incide profundamente dentro do próprio universo do
direito, convertendo uma ‘causa’ em uma questão ligada ao ‘direito’, quer dizer, a um saber
especializado. Um dos efeitos centrais deste processo foi a profissionalização do ativismo
jurídico. Ele envolve tanto a definição do lugar do profissional do direito em função da posse
de um conhecimento experto quanto a transformação do universo de representações
associadas a este novo perfil profissional. Este processo traz consigo uma inovação crítica: a
possibilidade de ocupar espaços de importância dentro da esfera do próprio Estado, não
como resultado do ativismo partidário mas sob a base da sua condição de ‘peritos.
316
Se no inicio da tese tinha-se destacado o perfil heróico de este tipo de militantismo
jurídico e também da dimensão rutinizada da sua atividade, foi a partir do retorno a
democracia em 1983, quando o ativismo em direitos humanos ingressou, progressivamente na
órbita do Estado. Os quadros políticos dotados do capital moral acumulado na defesa dos
direitos humanos, legitimados internacionalmente, vão se integrar às agencias do Estado e das
agencias internacionais dedicadas a formulação de políticas sobre direitos humanos sob o
estatuto de ‘perito’. A perspectiva temporal aqui adotada nos permitiu ver que a condição de
‘perito’ se institui não pela sua oposição à política mas também como uma continuidade
nas trajetórias dos profissionais do direito que haviam assumido um engajamento militante.
Foi este tipo de militantismo experto, mediado pela sua participação em redes internacionais
de juristas, o que permitiu converter as suas competências profissionais e políticas em
distintas esferas nacionais e internacionais.
Esta inovação está diretamente ligada ao fato de que a condição de advogados se
somou, a partir de mediados dos anos setenta, o atributo de vítima direta da repressão ou de
familiar das vítimas. Em este contexto, o ativismo pela causa dos direitos humanos os envolve
nesta esfera de relações como exilados, como familiares e como profissionais do direito. Em
tanto tais integram e produzem uma rede de relações locais e internacionais que resultou
chave na consolidação da causa pelos direitos humanos na Argentina e na profissionalização
dos seus militantes.
A descrição do repertorio de ações e noções utilizados permitiu também dar conta da
maneira em que a intervenção destes profissionais incide no modo em que se processam e
interpretam certos conflitos políticos em clave de ‘direitos humanos’. Sua inscrição dentro de
uma narrativa jurídica supõe, entre outras cosas, um modo de nomear a quem foram os
protagonistas desta história (as vítimas), um modo de intervir no espaço público (‘denunciar’,
‘demandar’, ‘litigar’, inquirir’), de definir aos sujeitos dotados da capacidade para fazer-lo
(‘os advogados’), de demarcar um espaço de engajamento militante (‘a causa pelos direitos
humanos’) e, em última instancia, uma maneira de narrar a história nacional (por exemplo,
com referencia ao ‘terrorismo de Estado).
Esta narrativa é homóloga a que sustentam os familiares das vítimas que se
constituíram como militantes do movimento pelos direitos humanos consagrando as suas
317
vidas à causa. Junto às associações integradas por profissionais, surgiram na Argentina um
conjunto de outras associações civis que fizeram do apelo ao sangue um principio de distinção
pública. Surgidas a finais dos anos setenta, as Abuelas de Plaza de Mayo (1977), Madres de
Plaza de Mayo (1977) e Familiares de Desaparecidos y Detenidos por Razones Políticas
(1976) irromperam no espaço público reclamando pelo reconhecimento das ‘vítimas do
terrorismo de Estado’ e do lugar central das ‘maes’ e ‘avós para reclamar por elas. Estas
associações e seus ativistas tem fundado a legitimidade das suas demandas na
inquestionabilidade do vínculo biológico com elas. Este princípio de adesão outorga a seus
integrantes uma posição de máxima notoriedade e legitimidade por relação à causa dos
direitos humanos.
Quem fazem do sangue um principio de distinção pública organizam seu discurso em
torno a uma propriedade principal: a de situar os tumultuados fatos dos anos setenta como um
problema que se coloca ‘por fora’ e ‘além’ do campo da política. O desenho de esta fronteira
é crucial à pretensão destes nativos de construir um discurso ‘objetivo’ e ‘verdadeiro’ a
respeito do passado político recente. Baseadas na autoridade moral que da ser portadoras de
um laço de máxima proximidade com as vítimas, esta militância resulta crítica na objetivação
das ‘vítimas’ e, com isso, da causa pelos direitos humanos.
Expertos em direito e familiares das vítimas contribuem a criar um conjunto de
princípios classificatórios comuns, que convertem ao problema dos direitos humanos numa
questão que ‘transcende’ as diferencias político-partidarias e os confrontos ideológicos. A
criação de uma correlação entre ‘vítimas’ e ‘terrorismo de Estado’ coloca às mortes e
desaparecimentos por fora do campo da política, em quanto esta categoria não remete à
identidade militante do assassinado ou desaparecido mas a sua inscrição no campo jurídico,
ao interior do qual recebem uma identidade politicamente neutra mas moralmente poderosa.
A causa pelos direitos humanos na Argentina se tem constituído sobre dois princípios
de recrutamento: um princípio universal, ligado com o direito, e um outro principio particular,
marcado pelo vínculo do sangue com as vítimas. Afirmo que é esta convergência entre
associações de profissionais do direito (nacionais e internacionais) e associações de familiares
das vítimas a matriz sobre a qual se tem conformado o atual movimento pelos direitos
humanos e se tem consolidado a causa pelos direitos humanos na Argentina.
318
Referências Bibliográficas
Agrikoliansky, Eric. 2002. La Ligue Française des Droits de L’Homme et du Citoyen depuis
1945. Sociologie d’un engagement civique. Paris. L’Harmattan.
Aragón, Raúl. 2001. Glorias y Tragedias en el Colegio Nacional de Buenos Aires. Bs. As. Ed.
Leviatán.
Alonso Piñeiro, Armando. 1959. Historia del General Viamonte y su época. Bs. As.
Altamirano, Carlos. 2001. Bajo el signo de las masas (1943-1973). Bs. As. Ariel.
Bielsa, Rafael. 1945. La facultad de Derecho y Ciencias Sociales de Buenos Aires hace treinta
años. Profesores y Estudiantes. Bs. As.
Bisso, Andrés. 2001. “La recepción de la tradición liberal por parte del antifascismo
argentino” En: Estudios interdisciplinarios de América latina y el Caribe. Vol. 12, Nro. 2,
julio-diciembre.
Boltanski, Luc. 2000. El amor y la justicia como competencias. Tres ensayos de sociología de
la acción. Bs.As. Amorrortu. 2000.
Boltanski, Luc. 1982. Les cadres. La formation d’um groupe social. Paris. Ed. De Minuit.
Bonafini, Hebe. 1996. Historia de Vida. Bs. As. Ed. Fraterna.
Bourdieu, Pierre. 1998 (1989). “A força do direito. Elementos para uma sociologia do campo
jurídico”. Em: O poder simbólico. Brasil. Ed. Bertrand Brasil. Pág. 209-254.
Bourdieu, Pierre. 1994. Raisons Pratiques: sur la théorie de l’action. Paris. Editions de Minuit.
Carnovale, Vera. 2006. “Jugarse al Cristo: mandatos y construcción identitaria en el Partido
Revolucionario de los Trabajadores Ejército Revolucionario del Pueblo (PRT-ERP). En:
Revista Entrepasados. Año XVI. Número 28. Dossier: los años setenta. Memoria y militancia
Cattáneo, Atilio. 1939.Entre Rejas (Memorias). Buenos Aires.
Chama, Mauricio. 2005. Los nuevos rasgos en la defensa de presos políticos a principios de
los ’70. Los abogados y su relación con el ejercicio profesional, el derecho y la política”. X
Jornadas Interescuelas. Departamentos de Historia. Rosario. Mimeo.
319
Chama, Mauricio. “Movilización y politización: los abogados de Buenos Aires. 1968-1973”
s/d. Mimeo. 22 págs.
Chama, Mauricio. “Politización y radicalización de grupos de abogados. Defensa de presos
políticos y peronismo de izquierda, 1955-1973”. Mimeo. 18 páginas
Chiroleu, Adriana. 2000. “La reforma universitaria” en: Ricardo Falcon. Democracia,
Conflicto social y renovación de ideas (1916-1930). Buenos Aires. Ed. Sudamericana.
Ciria, Alberto y Horacio Sanguinetti. 1983. La Reforma Universitaria. Buenos Aires. CEAL.
Claverie, Elisabeth. 1994. “Procès, affaire, cause. Voltaire et l’innovation critique” En :
Politix. Paris. Vol. 26.
Comité Central del Partido Comunista. 1948. Esbozo de Historia del Partido Comunista de la
Argentina. Origen y desarrollo del Partido Comunista y del movimiento obrero y popular
argentino. 1918 – 1948. Bs. As. Ed. Anteo. 150 pág.
Cuadros Garland, Daniela. 2003. “Formation et reformulation d’une cause. Le cas des droits
de l’homme au Chili, de la dictature a la politique de réconciliation nationale” En : Politix.
Paris. Vol. 16. Nro. 62. pág. 165-190.
Cutolo, Vicente Osvaldo. 1951. La facultad de Derecho después de Caseros. Bs. As. Ed.
Elche.
De Privitellio, Luciano. 2003. Vecinos y ciudadanos. Política y sociedad en la Buenos Aires
de entreguerras. Bs. As. Siglo XXI.
Dezalay, Yves y Bryant Garth. 2002. The internationalization of Palace Wars. Lawyers,
Economists and the Contest to Transform Latin American States. Chicago. The University of
Chicago Press.
Dezalay, Yves y Bryant Garth. 1998 a. “Droits de l’Homme et Philanthropie gémonique”.
En : Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Nro. 21 – 22. Mars.
Dezalay, Yves y Bryant Garth. 1998. “Argentine: law at the pheriphery and law in
dependencies: political and economic crisis and the instrumentalization and fragmentation of
law”. En: American Bar Foundation. Working Papers. Nro. 9708.
Domínguez, Carlos Horacio. 1980. La Nueva Guerra y el Nuevo Derecho. Ensayo para una
estrategia jurídica contra- subversiva. Buenos Aires. Círculo Militar.
Elbaz, Sharon. ‘Les avocats métropolitains dans les procès du Rassemblement démocratique
africain (1949-1952) : un banc d’essai pour les collectifs d’avocats en guerre d’Algérie ?
320
Bulletin de l’institut d’histoire du temps présent. 2002. 2do. Sem. Dossier. Usages politiques
du droit et de la justice.
Elias, Norbert. 1997 (1989) Os Alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos
séculos XIX e XX. Brasil. Jorge Zahar Ed.
Farer, Tom, 1997. “The Rise of the Inter-American Human Rights Regime: No longer a
unicorn, not yet an ox” En: Human Rights Quarterly 19. 510-546. The Johns Hopkins
University Press.
Fayt, Carlos. El político armado. Dinámica del proceso político argentino (1960 / 1971). Bs.
As. Ed. Pannedille.
Foro de Buenos Aires por la Vigencia de los Derechos Humanos. 1973. Proceso a la
Explotación y a la represión en la Argentina. Bs. As.
Franco, Marina. 2004. “Testimoniar e informar: exiliados argentinos en París (1976-1983)”.
En: Cahiers. ALM.. Nro. 8, janvier. Université de Paris 8. Paris, Francia.
Fucito, Felipe. 2000. “La educación en la Argentina, una visión histórica” En: El profesor de
derecho en las universidades de Buenos Aires y Nacional de La Plata. Un estudio
comparativo. La Plata. Ed. UNLP.
Gabbeta, Carlos. 1983 (1979) Todos somos subversivos. Bs. As. Ed. Bruguera.
Gaïti, Brigitte y Liora Israel. 2003. “Sur l’engagement du droit dans la construction des
causes” En: Revista Politix. Paris. Vol. 16. Nro. 62. pág. 17 a 30.
García Costa, Víctor. 1997. Alfredo Palacios. Entre el Clavel y la Espada. Bs. As. Planeta.
Giorlandini, Eduardo. 1986. “Una Historia negra: la Ley de Residencia”. En: Revista Todo es
Historia. Bs. As. Número 226.
Godio, Julio. 1989. El movimiento obrero argentino (1930-1943). Socialismo, comunismo y
nacionalismo obrero. Bs. As. Legasa.
Gómez, Alejandra. 1994. No nos han vencido. Historia del Centro de Estudiantes de Derecho.
UBA. Bs. As. Ed. Centro de Estudiantes de Derecho y Ciencias Sociales.
Graciano, Osvaldo. 2003. “Intelectuales, ciencia y política en la Argentina neoconservadora.
La experiencia de los universitarios socialistas” En: Estudios Interdisciplinarios de América
latina y el Caribe. Vol. 14, nro. 2, julio-diciembre.
321
Guest, Iain. 1990. Behind the disappearances : Argentina’s dirty war against human rights and
the United Nations. Philadephia. University of Pennsylvania Press.
Guilhot, Nicolas. 2001. “Les professionnels de la démocratie. Logiques militants et logiques
savantes dans le nouvel internationalisme américain”. En : Actes de la Recherche en Sciences
Sociales. Nro. 139. Septiembre. Paris.
Cutolo, Vicente Osvaldo. 1951. La Facultad de Derecho después de Caseros. Bs. As. Ed.
Elche.
Halliday, Terence y Lucien Karpik (ed). 1997. Lawyers and the Rise of Western Political
Liberalism: Europe and North America from the Eighteenth to Twentieth Centurias. New
York. Clarendon Press.
Halperín Donghi. 1999. Vida y muerte de la República Verdadera. (1910-1930). Bs. As. Ed.
Ariel.
Herrero, Antonio. 1946. “Prólogo”. En: Alfredo Palacios. En Defensa de la Libertad. Bs. As.
Ed. Ponfilia.
Imaz, José Luís. 1964. Los que mandan. Bs. As. Eudeba.
Jelin, Elizabeth. 1995. “La política de la memoria: el movimiento de derechos humanos y la
construcción democrática de la Argentina” En: Acuña, Carlos y Catalina Smulovitz. Juicio,
Castigo y Memorias. Derechos Humanos y Justicia en la política argentina. Bs. As. Nueva
Visión.
Karpik, Lucien. 1995. Les avocats. Entre l’Etat, le public, le marché. XIII-XX siècle. Paris.
Gallimard.
Kaufman, Esther. 1991. “El ritual jurídico en el Juicio a los Ex Comandantes. La
desnaturalización del cotidiano” En: Rosana Guber. El salvaje metropolitano. Bs. As. Legasa.
Landi, Oscar e Inés González Bombal. 1995. “Los derechos en la cultura política”. En:
Acuna. Et.al. Juicio, Castigo y Memórias. Derechos Humanos y Justicia en la política
Argentina. Bs. As. Nueva Visión. 1995
Le Béguec, Gilles. 2003. La République des avocats. Paris. Armand Colin.
Lecler, Gerard. 2003. Sociologie des intellectuelles. Paris. PUF.
Leiva, Alberto David. 2005. Historia del Foro de Buenos Aires. La tarea de pedir justicia
durante los siglos XVIII a XX. Bs. As. Ed. Ad-Hoc.
322
Loveman, Mara. 1998. “High-risk collective action. Defending Human Rights in Chile,
Uruguay and Argentina”. En; American Journal of Sociology. Vol. 104 (2) September .
Madsen, Mikael. 2004. “Make law, not war” Les “sociétés impériales” confrontées a
l’institutionnalisation internationale des droits de l’homme. En : Actes de la Recherche en
Sciences Sociales. Número 151. p. 96-106.
Markarian, V. 2006. Idos y recién llegados. La izquierda uruguaya en el exilio y las redes
transnacionales de derechos humanos, 1967-1984. Montevideo: Correo del
Maestro/Ediciones La Vasija-Centro de Estudios Interdisciplinarios Uruguayo, Universidad
de la República, 2006
Mendras, Emmanuele. 1980. “Le militantisme moral” En: Henri Mendras (dir) La Sagesse et
le Désordre. Paris. Gallimard.
Mignone, Emilio. 1996. “Argentina : los desafíos de fin de siglo”. En : Saba, Roberto. “The
Human Rights Movements, citizen participation organizations and the process of building
civil society and the rule of law in Argentina” (copiao).
Mignone, Emilio. 1991. Derechos Humanos y Sociedad. El caso argentino. Bs. As. Centro de
Estudios Legales y Sociales.
Mignone, Emilio. 1999. Iglesia y Dictadura. Bs. As. Universidad Nacional de Quilmes.
Mulas, Andrea. 2005. “Las relaciones político-jurídicas entre Lelio Basso y el Ceren en los
años de gobierno de la Unidad Popular”. Revista Universum, 2005, vol..20, no.1.
Muschietti, Delfina. 2003. L.a Vanguardia en Disputa” En: Hispamérica. Revista de
Literatura. Nro. 95. pág. 21-44.
Neiburg, Federico. 1998. Los intelectuales y la invención del peronismo. Madrid / Bs. As. Ed.
Alianza.
Neiburg, Federico y Mariano Plotkin (comp.) 2004. Intelectuales y Expertos. La constitución
del conocimiento social en la Argentina. Bs. As. Ed. Paidós.
Offerlé, Michel. 1998 (1994). Sociologie des groupes d'intérêt , Paris , Montchrestien.
Oliveira-Cézar, María, 2000. “El exilio argentino en Francia”. Les Cahiers ALHIM. Numero
1, 2000.
Orgaz, Alfredo. 1961.Reflexiones sobre los Derechos Humanos
. Colección Monografías
Jurídicas. Bs. As. Ed. Abeledo Perrot.
323
Ortiz, Tulio. 2004. Historia de la Facultad de Derecho. Bs. As. Facultad de Derecho,
Universidad de Buenos Aires.
Oviedo, I. 1976. “El trasfondo histórico de la ley 4144 de residencia”. En: Desarrollo
Económico. Revista de Ciencias Sociales. Nro. 61, vol. 16. Abril-junio.
Palacio, Juan Manuel. 2004. “Aves negras”: Abogados rurales y la experiencia de la ley en la
región pampeana, 1890-1945. En: Desarrollo Económico. Número 174.
Palacios, Alfredo. 1946. En defensa de la libertad. Bs. As. Ed. Ponfilia.
Palacios, Alfredo. 1928. El Nuevo Derecho. Buenos Aires. El Ateneo.
Pasolini, Ricardo. 2006. “Intelectuales antifascistas y comunismo durante la década de 1930.
Un recorrido posible: entre Buenos Aires y Tandil” (mimeo)
Pellet Lastra, Arturo. 2001. Historia Política de la Corte (1930-1990). Bs. As. Ad-Hoc.
Pinto, Louis. 1984. “La vocation de l’universel. La formation de la representation de
l’intellectuel vers 1900”. En: Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Nro. 55.
Ricardo Rodríguez Molas, 1985. Historia de la Tortura y el Orden Represivo en la Argentina.
Bs. As. Ed. Eudeba.
Rojas Hurtado, Fernando. 1992. “Les services juridiques alternatifs en Amérique latine.
Réflexions a propos des résultats d’une recherche”. En : Droit et Société. 22. pág. 409- 431.
Romero, Luis Alberto. 1994. La Restauración conservadora. 1930-1943” En: Breve Historia
Contemporánea de la Argentina. Bs. As. Fondo de Cultura Económica.
Romero, Luis Alberto. 2000. Argentina. Crónica Total del Siglo XX. Bs. As. Siglo XXI.
Sábato, Hilda. 1998. La política en las calles. Entre el voto y la movilización. Buenos Aires
1860-1880. Buenos Aires. Ed. Sudamericana.
Sabba, Roberto. 2000. The human rights movement. Citizen participation organizations and
the process of building civil society and rule of law in Argentina” s/d. mimeo.
Sacriste, G. y A. Vauchez, 2004 “La ´guerre hors-la loi. 1910-1930. En : Actes de la
Recherche en Sciences Sociales. Nro. 150. Pág. 91-95
324
Saldívia, Laura. 2002. “Derechos Humanos y Derecho de interés público en Argentina:
¿Quiebre o continuidad?”. Documentos de Trabajo sobre Derecho de Interés Público. Bs. As.
Universidad de Palermo.
Sánchez Viamonte, Carlos. 1971. Crónicas de Ayer y de Hoy. Sesenta años del vivir
Argentino. México. Ed. José M. Cajica.
Sánchez Viamonte, Carlos. 1928. “Prólogo de la 2da. Edición” En: Palacios, Alfredo. El
Nuevo Derecho. Bs. As. El Ateneo.
Sanguinetti, Horacio. 2003. La trayectoria de una flecha. Las obras y los días de Deodoro
Roca. Ed. Histórica.
Sarrabayrouse, María José. 2003. Poder judicial y dictadura. Relaciones patrimonialistas e
intercambio de favores: el caso de las excusaciones en la causa de la morgue judicial.
Sarlo, Beatriz. 2001. La Batalla de las ideas (1943 -1973). Bs. As. Ed. Ariel.
Scheingold, Stuart y Austin Sarat. 2004. Something to Belive In. Politics, Professionalism and
Cause Lawyering. California. Stanford University Press.
Schenkolewski-Kroll, Silvia. 1999. “El partido comunista en la Argentina ante Moscú:
deberes y realidades, 1930-1941” En: Estudios Interdisciplinarios de América latina y el
Caribe. Vol. 10. Nro. 2, julio-diciembre
Seoane, María Isabel. 1981. La enseñanza del derecho en la Argentina desde sus orígenes
hasta la primera década del siglo XX. Bs. As. Perrot.
Seoane, María. 1991. Todo o Nada. La historia secreta y la historia publica del jefe guerrillero
Mario Roberto Santucho. Ed. Planeta. Espejo de la Argentina
Sigal, Silvia. 1991. Intelectuales y poder en la década del sesenta. Bs. As. Puntosur.
Sikkink, Kathryn, 1996. “La red internacional de derechos humanos en América latina:
surgimiento, evolución y efectividad”. En: Jelin, E. y E. Hershberg (coord). Construir la
democracia: derechos humanos, ciudadanía y sociedad en América latina. Caracas. Ed. Nueva
Sociedad. Págs. 71 a 96.
Siméant, Johanna. 2001. “Entrer, rester en humanitaire. Des fondateurs de Médecins sans
Frontières aux membres actuels des ONG médicales françaises”. En : Revue Française de
Science Politique. Volume 51. Número 1-2. pág. 47- 72.
325
Sigaud, Lygia. “Direito e Coerção Moral no Mundo dos Engenhos”. Em: Estudos Históricos.
Rio de Janeiro. Vol. 9, Nro. 18, 1996. p. 257-424.
Sigaud, Lygia. “Les paysans et le droit: le mode juridique de glement des conflits”. En:
Information sur les Sciences Sociales. 1999. New Delhi, 38 (1) pp. 113-147
Suriano, Juan. 2004 (2002). “La oposición anarquista a la intervención estatal en las
relaciones laborales” En: La Cuestión social en la Argentina. 1870-1943. Bs. As. La Colmena.
Suriano, Juan. 2004 (2002) “Una aproximación a la definición de la cuestión social en
Argentina”. En: La Cuestión social en la Argentina. 1870-1943. Bs. As. La Colmena.
Suriano, Juan. 1983. La huelga de inquilinos de 1907. Bs. As. Centro Editor de América
Latina.
Terán, Oscar. 1991. Nuestros Años Sesenta. La formación de la nueva izquierda intelectual en
la Argentina. 1956-1966. Buenos Aires. Ed. Puntosur.
Tiscornia, Sofía (comp). 2004 Burocracias y violencia. Estudios de antropología jurídica Bs
A, Ed. Antropofagia y Facultad de Filosofía y Letras, Colección de Antropología Social.
Tiscornia, Sofía y Maria Victoria Pita (comp). 2006. Derechos Humanos, Tribunales y
Policías en Argentina y en Brasil. Estudios de Antropología Jurídica. Bs. As. Ed.
Antropofagia.
Vecchioli, Virginia. 2000. “Os trabalhos pela memória” Um esboço do campo dos direitos
humanos na Argentina através da construção social da categoria de tima do terrorismo de
Estado. Dissertação de mestrado. PPGAS.
Vecchioli, Virginia. 2001, “Políticas de la Memoria y Formas de Clasificación Social.
¿Quiénes son las ‘Víctimas del Terrorismo de Estado’ en la Argentina?” En: Bruno Groppo y
Patricia Flier (comp). La Imposibilidad del Olvido. Recorridos de la Memoria en Argentina,
Chile y Uruguay. Ed. Al Margen. Argentina. La Plata. Pág. 83 a 102.
Vecchioli, Virginia. 2005. ““La Nación como familia” Metáforas políticas en el movimiento
argentino por los derechos humanos” En: Frederic, S. y G. Soprano (comp). Cultura y política
en etnografías sobre la Argentina. Bs. As. Universidad Nacional de Quilmes.
Veiga, 1985. Las organizaciones de derechos humanos. Bs. As. CEAL.
Vezzetti, Hugo. 2002. Pasado y Presente. Guerra, dictadura y sociedad en la Argentina
. Bs.
As. Siglo XXI.
326
Viaggio, Julio. 1970. Macartismo versus Democracia. Análisis doctrinario y juridisprudencial
de la ‘ley’ 17.401 de represión del comunismo. Bs. As. Ed. Derechos Humanos.
Villalba Welsh, Alfredo. 1984 . Tiempo de ira, tiempo de esperanza. 50 años de vida
política a través de la Liga Argentina por los Derechos del Hombre. R. Centeno Editor.
Vuotto, Pascual. 1991. Yo Acuso. El proceso de Bragado. Bs. As. Ed. Reconstruir.
Willemez, Laurent, 2003. “Engagement professionnel et fidelités militantes. Les avocats
travaillistes dans la defense judiciaire des salariés” En: Revue Politix. Vol. 16. Nro. 62.
Zanatta, Loris. 1998. “Religión, nación y derechos humanos. El caso argentino en perspectiva
histórica” En: Revista de Ciencias Sociales. Bs. As. UnQ. Abril. 7-8.
Zimmermann, Eduardo. 1995. Los liberales reformistas. La cuestión social en la Argentina.
1890-1916. Bs. As. Universidad de San Andrés / Editorial Sudamericana.
Zimmermann, Eduardo. 1999. “The Education of lawyers and judges in Argentina’s
Organización Nacional (1860-1880). En: Eduardo Zimmermann (ed). Judicial Institutions in
Ninetheenth Century latin America. Londres. Institute of latin American Studies.
Zimmermann, Eduardo. 1998. “El poder judicial, la construcción del Estado y el federalismo:
Argentina, 1860-1880” En: Eduardo Posada (ed). In search of a New Order: Essays on the
Politics and Society of Nineteenth Century Latin America. London. Institute of latin
American Studies.
FONTES DOCUMENTAIS
Jornais
Crítica. Buenos Aires.
Periódicos
Derechos Humanos.
El Defensor.
327
El Liguista.
El Boletín de la LADH
Derechos del Hombre
Periódico del Comité pro Amnistía a los Exiliados y Presos Políticos de América.
Socorro Rojo
Amnistía
Defensa Popular
Alerta! Contra el Fascismo y el Antisemitismo
Contra-Fascismo
Boletín del Congreso Antiguerrero Latinoamericano
Nuevo Hombre.
Peronismo y Socialismo
Liberación
No Transar
Desacuerdo
Propósitos
Dossier de Press . ‘Droit et justice. Argentine. 1974-1976. Paris.
Dossier de Press ‘Droit et Justice. Argentine. 1976-1978’. Tome 1 et 2. Paris.
Dossier de Press ‘Vie politique en Argentine. 1976-2004’ Tome 3. Paris.
Bulletin. Commission Argentine de Droits de l’homme (CADHU).
Bulletin CISAL. ‘Argentine’. Nro. 3. Paris. Fevreiro 1975.
Bulletin d’information. Comite de Défense des Prisonniers Politiques Argentines.
Revistas
Revista Jurídica Argentina La Ley.
328
Anales de la Academia Nacional de Ciencias Morales y Políticas.
Anales de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad Nacional de La
Plata.
Historia del Derecho.
Nueva Doctrina Penal
Humor.
Primera Plana
Militancia Peronista para la Liberación
Clarinada
Documentos
Actas del Primer Congreso contra el Racismo y el Antisemitismo. Comité contra el Racismo
y el Antisemitismo de la Argentina. Bs. As. 1938.
Comisión Internacional de Juristas. 1978. “Attacks on the independence of judges and
lawyers in Argentina” En: Bulletin of the Centre for The Independence of Judges and
Lawyers. Vol. 1. Nro. 1. February.
Association Internationale des Juristas Democrates. “La repression en Argentine ». Rapport
de Mission. Nuri Albala. Junio 1976.
Comisión Argentina de Derechos Humanos. “Argentine. Proces d’ un genocide. Le
Terrorisme d’Etat”. (s/d) aprox. 1976.
International Commisssion of Jurists. “Informe. La Situación de los Abogados Defensores en
la República Argentina” Ginebra. 1976.
Internacional Commission of Jurists. 1978. “Attacks on the independence of judges and
lawyers in Argentina”. Bulletin of the Centre for the Independence of Judges and Lawyers.
CIDH: Informe sobre la situación de los Derechos Humanos en Argentina. OEA. Washington
DC. 1980
APDH. Cartas institucionales, actas de reunión, normas de organización, documentos
internos, declaraciones públicas, listas de integrantes de las sucesivas comisiones directivas,
crónicas de eventos, informes, escritos presentados a los tribunales, denuncias, proyectos de
ley, folletos, libros. Catálogo Colectivo de Memória Abierta.
329
Memorial presentado por los consejeros estudiantiles al Rector de la Universidad de Buenos
Aires. Bs. As. 1930.
Varios
Diccionario Biográfico Quien es Quien en la Argentina. Biografías Contemporáneas. Bs. As.
Ed. Kraft. 1947, 1952 y 1963, 1972.
Estatutos de la Liga Argentina por los Derechos del Hombre.
Comunicado de prensa. Agrupación Peronista Autentica de Abogados. Los abogados ante la
nueva dictadura’. Argentina. 1976.
Comunicado de prensa. Association syndicale des juristes de Buenos Aires. Comunicado de
prensa. S/d. Paris.
Comunicados de prensa. Comite de Défense des Prisonniers Politiques Argentines. Paris.
1972.
Comunicados de prensa de la Federación Internacional de Ligas de los Derechos del Hombre.
Paris. 1975 y 1976.
Carta de Andrés Cultelli dirigida al presidente de Amnesty International de Suecia solicitando
su intervención en el caso de los detenidos en la cárcel de Sierra Chica, Córdoba. Octubre
1975.
Carta de Norma Espindola dirigida al abogado Aisenstein denunciando al desaparición de su
hijo. Paris. 1978.
Folleto de los Equipos por la Victoria Independiente de los Trabajadores. Paris. s/d.
Solicitada des Familles des prisonniers et disparus en l’Argentine. Le Monde. Paris.
Diciembre 1977.
Arquivos e bibliotecas consultadas:
Fondation Nationale des Sciences Politiques. Centre de Documentation Contemporaine. Paris.
Francia.
Hemeroteca de la Bilioteca Nacional. Argentina.
Hemeroteca de la Facultad de Filosofía y Letras. Argentina.
Biblioteca y Hemeroteca de la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires.
Biblioteca y Hemeroteca de la Facultad de Derecho de la Universidad de La Plata
330
Biblioteca y Hemeroteca del Congreso Nacional. Buenos Aires.
Biblioteca de la Academia Nacional de Historia. Buenos Aires.
Biblioteca de la Academia Nacional de Ciencias Morales y Políticas. Buenos Aires.
Biblioteca de la Corte Suprema de Justicia. Buenos Aires.
Biblioteca de la Asociación de Abogados de Buenos Aires.
Biblioteca de la Fundación Alfredo Palacios. Buenos Aires.
Biblioteca de la Universidad Popular Alejandro Korn. La Plata.
Biblioteca del Partido Comunista Argentino. Buenos Aires.
Biblioteca del Consulado Argentino en Río de Janeiro.
Centro de Investigación de la Cultura de Izquierda en la Argentina (CeDInCI).
Archivo del Departamento Histórico-Judicial de la Suprema Corte de Justicia de la Provincia
de Buenos Aires. La Plata.
Archivo Oral. Colección Abogados y Política. Memória Abierta Asociación Civil
Archivo privado de la familia de Néstor Martins.
Documentos em páginas web
Documentos desclasificados por el Departamento de Estado Norteamericano.
“Marxists Internet Archive”: www.marxists.org./archive/lenin
Entrevistas
1. 21 entrevistas realizadas por mim a advogados, parentes de advogados desaparecidos
na Argentina, lideranças de associações de direitos humanos e magistrados e
advogados na França.
2. 6 entrevistas realizadas por Laura Saldivia a advogados defensores de presos políticos
(arquivo pessoal)
3. 1 Entrevista realizada por Emilio Crenzel a um advogado defensor de presos políticos
(arquivo pessoal)
331
4. Entrevistas realizadas por Vera Carnovale para Archivo de Memoria Abierta
disponiveis para sua consulta na instituição. Integran a colección “Abogados, Derecho
y Política”
Héctor Sandler
Mario Landaburu
Rodolfo Mattarollo
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo