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Denise Lourenço
PUC/SP
São Paulo
2006
Mestrado em Comunicação e Semiótica
Fanzine:
Procedimentos construtivos em mídia tática impressa
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Denise Lourenço
Fanzine:
Procedimentos construtivos em mídia tática impressa
Mestrado em Comunicação e Semiótica
PUC/SP
São Paulo
2006
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Denise Lourenço
Fanzine:
Procedimentos construtivos em mídia tática impressa
Mestrado em Comunicação e Semiótica
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em
Comunicação e Semiótica signo e significação nas
mídias, sob a orientação da
Profª Doutora Cecília Almeida Salles.
PUC/SP
São Paulo/ SP
2006
BANCA EXAMINADORA
________________________________
________________________________
________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação/tese por processos de
fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura:______________________Local e Data:_______________
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, que me ensinaram a importância dos estudos, da
responsabilidade, do amor, da fé e da indignação.
Aos meus irmãos, companheiros de existência e de confabulações.
Ao Dante pela vida, o amor e o riso compartilhados.
A minha orientadora, parceira nesse projeto e amiga querida, Cecília
Almeida Salles, que me revelou, de maneira brilhante, o fanzine que eu ainda não
conhecia.
Ao Prof Dema Siqueira, pela amizade e incentivo.
A todos os meus amigos e amigas que contribuíram para a realização deste
trabalho.
À estrada do caminho de volta pra casa.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPQ), pela concessão da bolsa de estudos.
Resumo
Este trabalho é uma reflexão sobre procedimentos de criação de fanzines,
revistas com produção de baixo custo que veiculam histórias em quadrinhos,
poemas, desenhos, textos e colagens produzidos para este fim específico ou
“emprestados” de outras situações cotidianas para pertencer ao universo
fanzinesco. Primeiramente situamos o objeto de estudos Fanzine no Brasil no
campo da diversidade de produção, impressão e distribuição, em seguida
apresentamos a análise de especificidades da criação, no capítulo sobre
procedimentos construtivos. Chegamos ao terceiro capítulo quando discorremos
sobre Mídia Tática, um conceito provisório que escapa da tradução literal da
palavra fanzine (fanatic-magaz ine ou revista de fã) e da fixação dessas revistas na
definição vagas e pejorativa do termo “revista alternativa”. Encerramos localizando
alguns espaços públicos que conservam coleções de fanzines e apontando
experiências das oficinas de fanzine como laboratório de mídia e não como um
passa-tempo apenas lúdico de recortar e colar.
ABSTRACT
This work is a reflection on creation procedures of fanzines, low cost
production magazines that propagate comics, poems, drawings, texts and glues
produced for this specific end or “loaned” of other daily situations to belong to the
fanzine universe. First we point out the object of Fanzine studies in Brazil in the
field of the production diversity, impression and distribution. After that we present
the analysis of creation specificities, in the chapter on constructive procedures. We
arrive at the third chapter when we discourse on Tactical Media, a provisory
concept that escapes of the literal translation of the word “fanzine” (fanatic-
magazine or fan magazine) and of the setting of these magazines in the prejudiced
and vague definition of the term “reviewed alternative”. We lock up locating some
public spaces that conserve fanzines collections and pointing fanzines workshops
experiences as media laboratories and not as only playful pastime to cut and glue.
Sumário
Introdução ........................................................................................................... 1
1. O diverso como definição ................................................................ 8
1. 1 Diversidade temática ........................................................................ 9
1. 2 Variações do tom ............................................................................ 15
1. 3 A música urbana ......................................................................... 34
1. 3. 1 Cibercidade .................................................................................. 46
1. 4 Modos de produção ........................................................................ 55
1. 5 Distribuição ................................................................................... 74
2. Procedimentos construtivos ............................................................ 77
2.1 Análise de procedimentos .............................................................. 83
2. 1. 1 Apropriação ..................................................................................... 85
2. 1. 1. 1 Feito para zinar-se ........................................................................... 97
2. 1. 2 Colagem ........................................................................................ 104
2. 1. 3 Exploração tipográfica ................................................................. 107
2. 1. 4 Sobreposição de camadas ............................................................ 112
2. 1. 5 Moldura ......................................................................................... 117
2.1. 6 Sangramento................................................................................. 121
2. 2 Algumas conseqüências do uso desses procedimentos .............. 124
2. 2. 1 Experimentação ........................................................................... 125
2. 2. 2 Acúmulo ........................................................................................ 132
3. Fã o quê? Fanzine ......................................................................... 141
Considerações finais ........................................................................................... 147
Bibliografia .......................................................................................................... 152
“Nós fazemos revistas como as crianças cantam,
brincam e fazem barulho. Porque nós vivemos,
isso é tudo. Porque nós vivemos.”
(autor desconhecido)
introdução
1
Introdução
É desafiador iniciar uma pesquisa sobre procedimentos construtivos de
fanzines sendo que sobre este objeto ainda paira a questão sobre sua definição: “o
que é, afinal, um fanzine?”.
Partimos de uma falta, de uma quase ausência bibliográfica sobre o tema,
mas também de discursos que se configuraram como verdades absolutas, porque
foram excessivamente repetidos por editores, leitores e pesquisadores, que definem
o fanzine como uma revista de fã ou como revista alternativa.
Essas denominações foram necessárias, mesmo porque, na prática, sabemos
que elas demarcam uma fronteira maleável que apenas agrupa diversas categorias
de revistas informais e não comerciais.
Entretanto, na medida em que o trabalho de pesquisa se aprofundou,
percebemos que o termo “alternativo” relacionado às revistas da Imprensa
Alternativa ao regime militar do Brasil entre 1964 e 1979 (Kucinski,1991) como O
Pasquim, O Sol, Opinião, Ex, Pif-Paf, Bondinho, alcançou status de qualidade, por
seu poder de luta contra a imprensa formal, conferido pelo trabalho de jornalistas e
ilustradores que mantiveram essas produções como Tarso de Castro, Millôr
Fernandes, Henfil, Ziraldo, Raimundo Pereira, Sérgio de Souza, dentre outros.
Porém, quando o alternativo é transportado para olhar o fanzine, ele converte-
se em algo menor, pejorativo, que rotula a produção fanzinesca com a marca da
falta de capacidade para executar normas ensinadas por manuais de redação de
jornais e revistas de circulação nacional e que deve, portanto, permanecer na
marginalidade editorial.
2
Sabemos que fanzine (ou somente zine, como é normalmente usado por
aqueles que produzem este tipo de revista) é uma publicação impressa que se
aproxima de um jornal ou revista, porque utiliza técnicas de edição, editoração,
diagramação, impressão, distribuição e, às vezes, até publicidade, embora não
trabalhe com a mesma formalidade, nem pretensões editoriais dos grandes meios
de comunicação impressa.
Fanzine certamente é isso. Mas, sobretudo, é atitude, estilo de vida
(socialista, anarquista, ecológico), é prazer em publicar (que nada tem a ver com
obrigações e prazos injustos das grandes redações), é posicionamento diante do
hermético mercado editorial nacional, da mórbida rotina de indiferença que reina nas
grandes cidades, diante do ritmo do tempo da produtividade.
Fanzine é, portanto, uma ação de alguém criando uma situação de mídia na
qual não se pretende fazer jornalismo, nem treinamento para ingressar na grande
imprensa, mas agir no ambiente social aqui e agora. É uma via de acesso ao que
parece interessar realmente para os editores: experimentar situações de vida que
consigam ir além da simples antipatia teórica contra instituições fixas como o Estado,
a educação, a polícia, a família, a religião, etc.
Para tanto, é necessário participar de fluxos que conduzem ao desvio do
pensamento e da ação conservadora em política, arte, ciência, religião,
comunicação e outros assuntos que permeiam a convivência urbana. Rebeldia, aqui,
consiste justamente no empenho em “permanecer dentro” dos sistemas e códigos
sociais, interpretá-los e utilizá-los para produzir, de forma caseira, um laboratório de
experimentações gráficas e textuais, individuais ou coletivas.
3
Observamos ainda que a escassa bibliografia concentra-se sobretudo na
produção de fanzines de história em quadrinhos, enquanto a produção nacional
extrapola esta delimitação.
Portanto, a aparente inconsistência das definições na escassa bibliografia foi,
sem dúvida, o que nos indicou a pertinência e a relevância de desenvolver esta
pesquisa sobre a linguagem fanzinesca.
A partir disso, então, com o nosso objeto de estudos “fanzine no Brasil”,
selecionamos aproximadamente 100 números diferentes de fanzines que
recolhemos com alguns editores em Fóruns sociais e culturais mundiais realizados
no Brasil entre 2000 e 2005. Após esse contato inicial, as trocas continuaram via
Correios, com editores conhecidos pessoalmente e desconhecidos.
Diante da imensa diversidade de exemplares ficou evidente que era
necessário estabelecer um modo de leitura que, além de fugir do ‘alternativo’, não
funcionasse como uma amarra externa ao objeto.
Passamos à observação detalhada dos exemplares, pretendendo extrair dos
próprios fanzines o método para sua leitura, evitando ir para o objeto com conceitos
definidos a priori. Após a primeira leitura, o critério de classificação por
procedimentos pareceu o caminho mais acertado para não excluir da pesquisa a
diversidade de temas e formatos característicos dessa produção.
Seguimos com esse critério, sabendo que ele não é suficiente para mapear o
fanzine na sua totalidade, visto que ela comporta-se de maneira muito diversa,
mutante e inconstante tanto quanto aos formatos e temas (libertários, educativos,
criativos, literários, artísticos, políticos, etc), quanto aos modos de produção e
distribuição.
4
Entretanto, percebemos que, como teríamos que trilhar o caminho de uma
pesquisa inédita, a análise por procedimentos construtivos seria uma maneira de
fixar um critério não fixo, uma maneira de olhar que é inclusiva e se constrói a
partir da observação sistemática do objeto.
Como afirma Ferrara (1986), a pesquisa é o trabalho conjunto entre o objeto
pesquisado e a história de vida do pesquisador, portanto, que fique claro, não temos
a pretensão de fornecer verdades absolutas sobre os fanzines, mas apenas ampliar
essa discussão:
É necessário ter presente que o que vemos no objeto lido é resultado de
uma operação singular entre o que efetivamente está no objeto e a
memória das nossas informações e experiências emocionais e culturais,
individuais e coletivas; logo, o resultado da leitura é sempre possível, mas
jamais correto ou total. (Ferrara, 1986)
Desta maneira selecionamos páginas, porque como o fanzine encontra-se no
campo de precários testes editoriais, tantos editores não obtêm sucesso do ponto de
vista formal, outros pouco se importam com planejamento gráfico, enquanto apenas
alguns adensam experimentações gráfico/plástico/verbais e, ainda assim, raramente
encontramos essa qualidade em todas as páginas de um mesmo projeto editorial
fanzinesco.
Estamos considerando que as imagens apresentadas neste trabalho são
apenas um exemplário da produção que será aqui visitada como um sistema aberto
para a atualização de materiais diversos: imagens recortadas de revistas e jornais
(novos ou descartados), letras de músicas, histórias em quadrinhos, textos e
poemas “emprestados” do cotidiano.
5
Nossa base teórica e metodológica é orientada pelos estudos sobre processo
de criação de base semiótica (peirceana) (Salles, 1998 e 2006) que têm sinalizado
caminhos para discutir a visualidade contida nas soluções estéticas destas revistas.
Além disso, esta base teórica permite conceber a criação fanzinesca como um
processo dinâmico, móvel, aberto a conexões culturais e sociais ao mesmo tempo
em que fornece meios para observar restrições que conferem especificidades a
diversos objetos midiáticos ou artísticos:
Quando defino procedimentos, estou enfatizando como aquele artista
específico faz a concretização de sua ação manipuladora da matéria
para chegar o mais perto possível de seu projeto poético.
Procedimentos criativos estão ligados ao momento histórico, as
opções aparentemente individuais estão inseridas na coletividade.
(Salles, 1998, p.112).
Fanzine é algo que não acontece isolado da cultura, da tradição e da
contemporaneidade e para a discussão desses aspectos solicitamos apontamentos
de pesquisas de Pinheiro (1994), que discorre sobre textos mestiços amalgamados
às séries culturais.
Percebemos que a questão da linguagem e da atitude fanzinescas não nasce
na atualidade e não é algo que diz respeito somente ao fanzine, mas dialoga com
uma tradição de observar e trazer para a obra o urbano, o vivenciado diariamente.
O esforço para não separar a produção da vida cotidiana é uma herança das
vanguardas históricas do séc XX, mas anterior à discussão das vanguardas
artísticas, Allan Poe, Walter Benjamin e Machado de Assis, por exemplo,
discutiram esse tema.
6
Selecionamos uma imagem de boletim do Movimento Dada, proposto por
Marcel Duchamp e Man Ray (Fig.1) que, no início de século, mostrou que a palavra
não precisava mais representar a realidade ou exprimir um significado, a letra em si
poderia converter-se em experimentação visual e a página poderia ser pensada sem
grandes restrições de colunas, imagens, tipografia ou formato. Uma sinalização do
que viria pela frente em artes gráficas. Observe, no decorrer do trabalho, como
algumas páginas aproximam-se desta proposta.
Fig. 1
1
1
Capa Der Dada nº 1.
7
Dentre rebeldias contra-culturais que compartilham dos ideais dadaístas de
“tábula rasa” para a superação do que já havia sido criado em política e arte, Provos
e a Internacional Situacionista (de 1957 a 1968), destacam-se particularmente, pelas
propostas de alteração do território da cidade através da participação ativa de seus
habitantes. (Guarnaccia, 2001) e (Jacques, 2003).
Percebemos que o fanzine dialoga com aspectos destes movimentos sem,
entretanto, podermos falar em influência, no sentido de um claro estabelecimento de
causa e efeito.
Apenas levantamos uma proximidade que consideramos pertinente,
sobretudo porque estes movimentos estéticos manejaram linguagens para
informação impressa de maneira próxima a fanzinesca e porque, além de
levantarem, no passado, temas que continuam sendo discutidos pelos zines, agiram
muitas vezes de maneira similar a este em relação aos usos e ocupações dos
espaços e sistemas urbanos.
A partir dessas considerações organizamos a dissertação com o primeiro
capítulo sobre a diversidade de temas e linguagens, o segundo com análise de
alguns procedimentos construtivos e chegamos no terceiro a uma possível definição,
que se estabelece a partir de uma relação entre as discussões desenvolvidas nos
capítulos anteriores, para, assim, contribuir com a expansão bibliográfica do nosso
objeto de estudos, o fanzine no Brasil.
1. o diverso como definição
8
1. O diverso como definição
Em busca de uma definição do que é o fanzine esbarramos sempre na
diversidade que nos remete à pluralidade, heterogeneidade, variedade e diferença.
A partir disso, solicita-se um olhar para esse objeto capaz de captar variados
aspectos e diferentes ângulos.
Com a repetição do hábito de olhar as páginas, percebemos que a
diversidade, mais que um aspecto visível na comparação entre um fanzine e outro,
poderia ser considerada um possível ponto de confluência para a análise, uma linha
de força na criação.
Nesse primeiro capítulo, investigaremos a questão da diversidade de temas,
tons das mensagens e modos de produção e distribuição dos fanzines selecionados,
que também nos auxiliará para a compreensão da discussão desenvolvida no
próximo capítulo sobre procedimentos construtivos.
Nomeamos esses pontos e os destacamos para facilitar o entendimento mas,
como veremos, eles encontram-se muitas vezes entrelaçados, motivo pelo qual se
torna impossível discorrer sobre diversidade temática e de linguagem sem levar em
consideração a relação com o tom da mensagem, a cidade, a cibercidade e os
modos de produção, que variam de editor para editor, e apresentam tendências
como transgressão de padrões, utilização de resíduos, impressão em xerox com
conseqüente perda da qualidade gráfica e distribuição informal pelos Correios, como
veremos a seguir.
9
1.1 Diversidade temática
Ficou evidente desde as primeiras aproximações e tentativas de leitura da
linguagem fanzinesca que reconhecer a variedade de temas e linguagens seria
fundamental para entender o fanzine.
Observe que, dentro da diversidade temática, as formas de composição
textual também variam entre relatos pessoais, desabafos íntimos, textos impessoais,
denúncias, críticas, apelos, etc.
F
ig. 2
2
2
Página interna ‘Defronte zine’. São Paulo/ SP, sem data.
10
Esta página interna de Defronte zine (Fig. 2) veicula texto de uma campanha
para sexo seguro da mesma maneira que panfletos formais distribuídos em hospitais
para campanhas anti-drogas, anti-aids, anti-gravidez na adolescência, etc.
Na segunda página, um relato bastante irônico sugerindo ao então presidente
do Brasil, sociólogo e professor universitário, Fernando Henrique Cardoso, uma pós-
graduação em Heliópolis para vivenciar o cotidiano de uma grande favela. Uma
provocação que opõe o discurso ao modo de vida de FHC.
Fig. 3
3
3
Página interna Nova Geração. Porto Alegre / RS: Comunidade Bom Jesus, 1993.
11
Nova Geração (Fig. 3), ao mostrar a criança no alvo de cinco armas diferentes
e mortais com a informação textual que nega o contexto proposto pela frase "Homo
homini lupus" (o homem é o lobo do homem) de Thomas Hobbes, direciona o leitor
para uma reflexão sobre a fragilidade infantil diante da violência urbana.
Fig. 4
4
4
Contracapa Um grito pela paz. Natal/ RN: Homero Luiz, 2002.
12
Na contracapa de Um grito pela paz (Fig. 4), questionamento sobre
concentração de renda e gastos mundiais com armamento, publicidade, bebidas e
esportes caros que ultrapassam, em muitas vezes, o necessário para suprir
necessidades humanas básicas.
Fig. 5
5
5
Página interna Tesão . São Paulo/ SP: Coletivo anarquista Brancaleone, 2000.
13
A página do zine Tesão (Fig. 5), propõe uma pedagogia anarquista para
crianças e a transformação de vidas pela autogestão e pelo anarquismo. Houve um
ensaio de liberdade na brincadeira tipográfica do título com fonte flutuante e leve,
mas, o texto em bloco junto à foto final (distorcida) panorâmica, permaneceu como
uma solução gráfica pouco condizente com a ousadia das palavras e propostas.
Aprofundaremos questões sobre a diagramação fanzinesca mais adiante, no
capítulo 2.
Fig. 6
6
6
Página interna reivindicando@Timoty Leary el silecio de los sub mundos. Montevidéu / UR, sem data.
14
Reivindicando@Timoty Leary (Fig. 6) publica o desenho de um “humano-
chaminé” para expressar o descontentamento com a emissão de gases poluidores
por indústrias, automóveis e cigarros. A informação visual é acrescida da frase “El
bosque precede al hombre, lo desierto lo sigue” (o bosque precede o homem, o
deserto o segue) que critica seres humanos que, como parasitas, utilizam todos os
recursos de um determinado espaço até esgotá-los.
Como podemos perceber, não existe um modelo, um manual para se produzir
informação para fanzine, o que existe são diversas linguagens que vão sendo
organizadas em distintos jogos combinatórios para criar situações midiáticas
momentâneas.
Quando falamos em atitude na produção de fanzine, estamos, portanto, no
campo da resistência às regras pré-estabelecidas da vida normal que, nos
exemplos, acabou por determinar a escolha das imagens e das palavras usadas
para compor o discurso fanzinesco.
Em poucos exemplos, foi possível demonstrar o trânsito por temas como
ecologia, economia, sexo, drogas, política, educação e violência, e o uso de
desenho, colagem e recursos de computador na composição das páginas. A
diversidade de uso de diferentes linguagens para compor a página ficará mais
evidente no decorrer do trabalho.
Passaremos então à observação do tom das mensagens veiculadas pelos
fanzines, que parece ser umas das características definidoras deste objeto. O tom
varia bastante de uma proposta à outra, mas certas recorrências atraíram nossa
atenção.
15
1.2 Variações do Tom
As páginas dos fanzines oferecem registros do cotidiano de pessoas que
criam sua própria mídia, cooperam com outros editores, participam de redes de
distribuição de fanzines e desenvolvem um sistema gráfico simples onde tudo
parece funcionar em (des)harmonia com o erro, o acaso, o irreverente, o vulgar, o
residual, o risível, o brega, o banal, o proibido, o grotescoeoescandaloso.
Neste trabalho nomeamos “tom” a diversidade de posicionamento de olhares,
dos autores dos textos, sobre determinados fatos do cotidiano.
Fig. 7
7
7
Página interna Tônia.
16
O fanzine Tônia (Fig. 7) expõe de maneira sarcásticas o apresentador Cid
Moreira, e sua namorada Uliana, vestida de “onça”. É uma atitude de
desqualificação da imagem pública do apresentador que tem sua credibilidade
assegurada pelos anos de apresentação de programas jornalísticos televisivos. A
cartada final é a informação de última manuscrita no rodapé, que sugestiona o
receptor à leitura da imagem de acordo com o pensamento do editor: “Bizarro é
pouco”.
Fig. 8
8
8
Página interna Supimpa. Jackson Jr.
17
Supimpa (Fig. 8) veicula crítica social fotografando situações banais do
cotidiano de “dona Maria”, de avental, guarda chuva e rádio de pilha. As imagens
grandes, sem nenhum tratamento gráfico para excluir rugas, manchas, gorduras,
etc., estabelecem cumplicidade com o receptor pelo reconhecimento do “já visto”.
Todos já vimos e vemos diariamente pessoas simples e trabalhadoras.
O que realmente complementa os textos visuais neste zine, são os trechos
das músicas “Vá com Deus” que tem letra de Roberta Miranda e interpretação do
estandarte da música brega nacional, Reginaldo Rossi, e “Nuvem de lágrimas”, um
clássico sertanejo interpretado por Chitãozinho e Xororó. Temos a liberdade de não
apreciar este gênero musical, mas estas trilhas sonoras são de ampla difusão.
No zine, trechos das letras aparecem em pequenas fontes, sobrepostos às
fotografias das situações banais de uma parcela do público admirador destes sons:
as empregadas domésticas e as donas de casa. Entretanto, na leitura, estas frases
assumem a condução do imaginário que, direcionado pelos trechos das músicas,
pode criar imagens de quem seria, afinal, Dona Maria? Nesta figura, a trilha sonora
conduz a leitura das imagens, o tom é literalmente verbo/musical.
18
Fig. 9
9
9
Página interna Bodega. Rio de Janeiro / RJ, sem data.
19
Na página do zine Bodega (Fig. 9) o tom é de denúncia e deboche. O editor
desmascara a matéria da Folha Dirigida em que é citado após uma prova de
vestibular, contestando tópico por tópico a “criatividade” jornalística de colocar
palavras na boca dos entrevistados.
A página foi diagramada em duas colunas de textos escritos à mão, que
contrastam com o pequeno trecho da matéria que lemos somente após a conclusão
do manuscrito, quando podemos entender a razão da construção desta página.
Fig. 10
10
10
Página interna Onó. Gustavo Gojen. Porto Alegre / RS, 2000.
20
O trote do “fusca verde” funciona quando uma pessoa telefona para um
número qualquer e pergunta: “Por favor, tem um fusca verde estacionado em frente
a sua casa?”, e o outro responde “Não, não nenhum”. Em seguida vem o
comentário: “Ahhh, então deve ser porque ele já amadureceu” (risos).
O editor de O (Fig. 10) acrescentou piada ao trote do “fusca verde”,
envolvendo figuras lendárias da história mundial como o ex-presidente americano
RichardNixoneomarxistaLeon Trotski.
Fig. 11
11
11
Página interna Design de bolso. 2AB. Rio de Janeiro/ RJ, sem data.
21
A página do Design de bolso (Fig. 11) discorre sobre a dificuldade de agir
contra normas dos sistemas políticos e sociais vigentes conservando-se dentro
deles. Neste caso, uma frase curta ocupa toda a páginaeafonteescolhida funciona
como imagem. O tom é desafiador.
Fig. 12
12
12
Página interna Bodega. Rio de Janeiro / RJ, sem data.
22
Esta página do Bodega (Fig.12) encaixa-se no hall das bizarrias fanzinescas.
Discorre sobre a escolha de uma mulher manter relações sexuais com seu cachorro,
ao invés de com seu marido.
Fig. 13
13
O Bagazine (Fig. 13) confronta duas opiniões sobre consumo de Cannabis
Sativas, uma a favor do consumo, do direito de fumar após um dia de trabalho,
embora essa seja uma pratica ilegal no Brasil, passível de prisão, inquérito, etc., e a
13
Página interna Bagazine. Porto Alegre: Sylvio Ayala, 1998.
23
contrária, que discorre sobre a alienação e passividade que podem resultar desse
hábito.
O que de interessante é que esta página foi montada com uma colagem
utilizando a caixa de um famoso chocolate nacional que exibia a figura de dois
meninos fumantes e circulou por mercearias, bares, padarias e supermercados nos
anos 80, sem nenhuma contra-indicação imagética.
A utilização destas imagens confronta a não preocupação do Estado com
uma mercadoria que incentiva crianças ao hábito do fumo e a extrema repressão
contra adultos que preferem os cigarros que não são vendidos facilmente, nem
pagam imposto algum pela sua comercialização.
Até aqui, enfatizamos a irreverência das mensagens fanzinescas, mas não
podemos esquecer das revistas que estão vinculadas ao tom político, contra-
hegemônico, geralmente de orientação anarquista ou socialista com objetivos
subversivos contra o capitalismo.
Em muitos números percebemos textos a favor de reformas sociais amplas,
de movimentos sociais organizados como Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) no Brasil, Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN) no
México, Forças Armadas Revolucionárias na Colômbia (FARC), Madres de la Plaza
de Mayo na Argentina, etc.
24
Fig. 14
14
Underground Grungezine (fig. 14) é dedicado à revolucionária Olga Benário
Prestes, casada com Luis Carlos Prestes, ícones do movimento socialista nacional
do meio do século XX.
14
Capa underground grungezine. Mirela Filgueiras. Fortaleza/ CE, sem data.
25
A capa foi diagramada com fotos de Olga, sua cela na prisão no Rio de
Janeiro e pouquíssimos textos explicativos sobre as ocasiões em que ela vestia
farda e sobre a morte em câmera de gás nazista, após ter sido deportada do Brasil
para a Alemanha pelo governo de Getúlio Vargas.
Fig. 15
15
15
Capa Acerca de la impunidad. Madres de Plaza de Mayo, Buenos Aires/ AR, sem data.
26
A capa do fanzine das madres da Plaza de Mayo na Argentina (fig. 15), foi
diagramada sobre fundo preto que faz referência ao luto das mães que perderam
seus filhos no regime militar argentino.
Sobreposto ao fundo, um desenho de uma mulher solitária, reclusa no canto
da cela e, em segundo plano, uma mancha de sangue na parede da prisão. Fica
claro que o tom dos fanzines das madres da Plaza de mayo é de protesto contra a
impunidade dos assassinos de seus filhos.
Fig. 16
16
16
Capa Doug. Pedro Paulo Losi Monteiro. Goiânia/ GO, 2001.
27
ZineDoug (fig. 16) é agressivo contra toda a autoridade. Na capa, um
desenho complexo e indecifrável lembra uma fase que diz algo como “a humanidade
será feliz no dia em que o último burocrata for enforcado nas tripas do último
capitalista”, muito proclamada por anarquistas. O peso desta afirmação contrasta
com a expressão juvenil do inofensivo Doug, da série de desenho animado.
Fig. 17
17
17
Página interna Guerrilha. Bandido binário. Porto Alegre/ RS, 2000.
28
O zine Guerrilha, como o próprio nome diz, dedica-se a apoiar as guerrilhas
da América Latina. Nessa página (Fig. 17), faz um apelo a favor do Exército
Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) comandado nas florestas de Chiapas, no
sul México, pelo Sub- Comandante Marcos.
O EZLN, de tempos em tempos, baixa telões em praças públicas para Marcos
pronunciar discursos sobre o povo indígena, a importância da conservação das
florestas e a necessidade de melhores condições de vida ao povo do sul do México
que vive, na sua maioria, sem energia elétrica, sem água, sem esgoto, sem serviço
de saúde, sem escolas, etc...
É um movimento com cerca de 2.000 guerrilheiros indígenas uniformizados e
armados com metralhadoras, fuzis automáticos e lanças de madeira, que se
manifestam depredando sedes de prefeituras, pontes, monumentos, libertando
prisioneiros políticos (ou não), saqueando supermercados e distribuindo mercadorias
para a população.
Para atrair a atenção da mídia com maior veemência, seqüestram
personalidades importantes da vida política, dentre elas, o ex-governador de
Chiapas, Absalón Castellanos Domínguez, a quem acusam de violar os direitos
humanos dos povos indígenas e que já foi seqüestrado três vezes.
Este fanzine também levanta a questão do plano Colômbia, desenvolvido por
bases militares americanas na Amazônia, na divisa com quatro países da América
Latina (Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia).
O editor protesta contra o argumento americano que pretende reter a
produção da folha de coca, usada de forma medicinal pelos povos andinos
muitos séculos.
29
É sabido que estas bases militares encontram-se na Colômbia por outros
motivos, uma vez que seria mais eficiente proibir a produção de matérias primas
para o refinamento da cocaína nos EUA do que reter a produção da folha na Bolívia,
que não produz, sem o auxílio da matéria-prima americana, sequer um grama da
droga.
Fig. 18
18
18
Capa El Zapatista. Tiro loco 99’. Chiapas/ MX, 2001.
30
ACapade El Zapatista (Fig. 18) exibe grandes imagens de Emiliano Zapata
em xilogravura com textos manuscritos e se posiciona a favor do EZLN, no Estado
de Chiapas, sudeste do México. O tom é de exaltação da figura do revolucionário.
Fig. 19
19
19
Capa Sendero Luminoso. Dante Moretti. Piracicaba, 2001.
31
Sendero Luminoso ou “caminho iluminado” (fig.19) é o maior movimento
revolucionário do Peru e busca destruir o governo para substituí-lo por outro de base
camponesa (campesina). Porém é um zine brasileiro, de contestação de práticas
autoritárias do cotidiano.
A capa é um desenho da bandeira do Brasil, com alteração da inscrição
“progresso” provocada por dobras da bandeira tremulante, que escondem algumas
letras e exibe outras, criando “regresso”. O desenho foi sobreposto por um trecho de
Demian, livro do escritor alemão Herman Hesse.
A diagramação se diferencia por deslocar as cores da bandeira para o quadro
da citação e porque mesmo com a possibilidade de colorir tudo, optou pelo preto e
branco na maioria do espaço.
Esta visível tentativa de desautomatização de sistemas sociais que move
atualmente grande parte da produção, linguagem e modo de distribuição de
fanzines, torna-se sua marca registrada a partir dos anos 70, período em que a
produção se aproximou do movimento anarco-punk, responsável pela proclamação
da atitude (DIY) - “Do it yourself” - (faça você mesmo):
“Se você gosta de música e não agüenta o que está tocando por aí,
aprenda a tocar um instrumento, chame os amigos e monte uma
banda. Não fique esperando que os outros façam as coisas por
você. Foi com esse espírito punk que surgiram os fanzines tais
como os conhecemos hoje” (Ayala, 1998).
Mas nem sempre foi assim. A prática de editar revistas de baixa ou média
tiragem apareceu no Brasil em 1965, quando Edson Rontani lançou em Piracicaba
32
(interior de São Paulo) seu primeiro fanzine, o Ficção (Fig. 20), um boletim para
divulgar e receber informações sobre histórias em quadrinhos e ficção científica.
(Magalhães, 2003, p.67).
Fig. 20
20
20
Capa Ficção - primeiro fanzine do Brasil. Piracicaba / SP: Edson Rontani, 1965.
33
Foram impressos seis exemplares do Ficção, um marco da comunicação
caseira levando-se em conta que, naquela época, máquinas copiadoras ainda eram
objetos caros e restavam apenas as opções de impressão em clicheria ou
mimeógrafo à tinta. Era o início de mais um estilo de revistas que transitam fora dos
circuitos editoriais industriais nacionais.
Na realidade, o tom da efemeridade está presente na maioria das produções
e, apesar de possibilidades tecnológicas de baixo custo em xerox ou impressão
caseira, a constância da produção fanzinesca é inexistente e um fanzine que tenha
conseguido alcançar o sexto exemplar é considerado insistente e incomum.
Por se tratar de uma zona temporária e autônoma
21
, não como quantificar
exatamente o número de fanzines que circulam pelo país, a não ser por estimativa
aproximada. Sua produção é um jogo que pode ser jogado diariamente,
mensalmente, anualmente ou nunca mais. Sabemos que em 1994 existiam
aproximadamente mil fanzines diferentes circulando pelo país, número que
certamente não abarca toda produção nacional.
21
Zona Autônoma Temporária – TAZ (Temporary Autonomous Zone) é um conceito desenvolvido por
Hakim Bey no livro TAZ editado pela Conrad.
34
1. 3 A música urbana
A cidade é um dos principais textos da cultura. Grandes ou pequenas, são
estruturas complexas que colocam em relação variadas séries de linguagem. São
cenários, atmosferas que alimentam a produção fanzinesca, mas que também se
alimentam dela, gerando fluxos (inter)urbanos e suburbanos responsáveis pelas
trocas e conexões entre sistemas e sub-sistemas da cultura.
O espaço urbano é mais uma mídia da qual o zine se apropria, mas é
também, junto às tecnologias e materiais, condição para sua existência.
Fig. 22
22
22
Página interna Busca. Upgrade do macaco. São Paulo/ SP, 2004.
35
Esta página é de um fanzine dedicado ao graffiti (Fig. 22). Foi produzida
digitalmente, sobrepondo a uma textura de papelão (um papel muito usado nos
meios urbanos) o rosto em preto e branco que imita uma impressão em stêncil, feita
numa forma para pintar muros, caixas de fios de telefone em esquinas de ruas,
postes, etc. E em segundo plano o perfil de uma cabeça desenhado em linhas
finas. Dentro, o texto, o pensamento sobre intervenção em espaços urbanos, paixão,
pixação, design e comunicação. A aproximação entre a seleção das imagens que
ilustram essa página e a intenção das palavras do texto é notável.
Fig. 23
23
Copyrigh cu corporation (Fig. 23) usa a imagem de um aglomerado de prédios
de classe média como fundo para a frase que questiona a subserviência das
23
Página interna Copyrigh cu corporation. Edição coletiva. São Paulo/ SP e Fortaleza/ CE, 2002.
36
empregadas domésticas: “às 9 da manhã todas as empregadas lamberão os vidros
simultaneamente”.
Na seqüência, o temaéareprodução em série, mas de pessoas e não de
mercadorias. Para a construção da página, uma etiqueta de roupa e um código de
barras, grandes ícones das mercadorias comerciais disponíveis no mercado.
Fig. 24
24
24
Página interna inimigo do Rei. Piracicaba/ SP: Gabriel Lourenço, 2001.
37
O zine Inimigo do Rei (Fig. 24) publica a fotografia de uma criança
abandonada, ainda usando chupeta e a alternando com cigarro. O retrato da
estrutura suburbana causa mais impacto e incômodo do que o próprio texto.
Fig. 25
25
O fanzine Nova Geração (Fig. 25) retrata três crianças, uma maior, uma
fumante e outra de colo. Acima, barracos de favela, abaixo, outro grupo infantil
25
Página interna Nova Geração. Porto Alegre / RS: Comunidade Bom Jesus, 1993.
38
dorme numa calçada. Ao lado, manuscrito, o texto clamando por “justiça e paz”. A
diagramação tornou-se ousada ao optar por deslocamentos rápidos característicos
dos meios urbanos, provocados pela divisão da página em uma zona principal,
central e focada (a foto das três crianças), e quatro zonas secundárias de imagens e
textos que complementam o centro da página ao mesmo tempo em que
movimentam o olhar rapidamente pelos quatro cantos.
Fig. 26
26
26
Página interna Guerrilha. Bandido binário. Porto Alegre/ RS, 2000.
39
O fanzine Guerrilha (Fig. 26) incentiva ação subversiva do leitor no espaço
urbano, ao ensinar uma fórmula barata para burlar as tarifas do sistema telefônico.
Nesse caso, a cidadeéoassuntoeadiagramação da página não tem a ver
com este tema. A mescla entre fontes com desenhos medievais que não indicam
absolutamente nada de atual, escrita chinesa e letras manuscritas pelo editor, não
oferece pistas sobre as informações dessa página, que veicula conteúdo atual,
subversivo e urbano.
Fig. 27
27
27
Página interna Infoarte. Cidade Tiradentes. São Paulo/ SP, 2006.
40
O Infoarte (Fig. 27) é produzido por jovens da Cidade Tiradentes. Nesta
página, a cidade também aparece como tema, registrando a precariedade do
transporte coletivo.
Fig. 28
28
28
Página interna V. São Paulo/ SP, sem data.
41
A figura 28, página do zine V, relaciona códigos digitais indecifráveis iniciados
com a afirmação “reconheço e pagarei a dívida”, código de barras e valor
padronizado como em boleto bancário. A intensa proliferação dos códigos digitais
produz uma textura, uma faixa escura sobre a qual se escreve que aquele padrão
digital acima, é o utilizado em todos os seus assentos.
O interessante está na não correspondência inicial entre o tema “assentos” e
códigos numéricos, valores, códigos de barras, mas na inesperada aproximação
quando paramos para observar que tecidos, madeiras, ferros e fibras envolvidos
na construção desses objetos e que esses materiais sempre custam algum dinheiro.
Se for assento privado, custou algum valor a ser pago pelo extrato do cartão
de crédito, se for de transporte público, pode ter custado inclusive superfaturamento
de verba, enfim, sentar sempre custa.
Talvez seja por isso que o editor fez questão de sublinhar, como num caça-
palavras, a expressão de descontentamento “foda”, afirmando seus reais
sentimentos em relação a esse fato.
42
Relação antropofágica com o espaço
No dicionário Aurélio, o termo antropofagia é aplicado ao ato de devoração da
carne humana como canibalismo. Alguns autores distinguem antropofagia de
canibalismo considerando que canibalismo seria o ato de se alimentar de carne
humana constantemente, enquanto antropofagia estaria ligada a um ritual sagrado
de índios ferozes realizadores de atos bárbaros e selvagens de devoração.
Oswald de Andrade, nos anos 20, usou essa expressão em forma de
metáfora para sinalizar o processo cultural do Brasil, capaz tanto de apropriação de
textos externos a cultura, como de expropriação.
A necessidade de pensar o local não separado do universal conferiu
polêmica ao pensamento de Oswald que, naquele momento, levantou a importância
da não negação das históricas contribuições dos povos indígenas, árabes, lusos,
negros, europeus e asiáticos à cultura do Brasil.
O espanto maior foi Oswald romper com tendências da classe artística
nacional de transportar para o Brasil o pensamento que se encontrava em voga na
Europa, a exemplo das vanguardas artísticas do início do séc. XX, que buscava uma
espécie de “tabula rasa” para um futuro puro e livre dos horrores das guerras
mundiais.
A partir desse momento a metáfora da antropofagia deslocada para os textos
culturais passa a ser o carro chefe do pensamento oswaldiano:
A “antropofagia” oswaldianaéopensamentodadevoraçãocríticado
legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e
reconciliada do “bom selvagem” (idealizado sob o modelo das virtudes
43
européias no Romantismo brasileiro de tipo nativista, em Gonçalves Dias e
José de Alencar, por exemplo), mas segundo o ponto de vista desabusado
do “mau selvagem”, devorador de brancos, antropófago. (Campos, 1992)
Porém, a idéia de antropofagia se letiva, que propõe a devoração somente
daquilo que se considera superior, fica descartada quando ele estabeleceu, para sua
metáfora, o parâmetro dos índios Tupinambá, que praticavam o canibalismo não-
seletivo e incluíam covardes, mulheres e crianças em seu cardápio.
Uma ilustração da deglutição do bispo Dom Pêro Fernandes Sardinha pelos
índios passa a ser a cena inaugural da nacionalidade oswaldiana, um pensamento
que não se encerrou em si, que não se transformou em um tratado antropológico
para ser seguido, mas em uma construção, um exercício, um desafio como aponta o
próprio Andrade nos últimos dias de sua vida:
Devido ao meu estado de saúde, não posso tornar mais longa esta
comunicação que julgo essencial a uma revisão de conceitos sobre
o homem da América. Faço pois um apelo a todos os estudiosos
desse grande assunto para que tomem em consideração a grandeza
do primitivo, o seu sólido conceito de vida como devoração e levem
avante toda uma filosofia que está para ser feita. (Andrade, 1954)
Como vimos, a metáfora da antropofagia refere-se sobretudo à percepção da
nossa habilidade cultural para metabolizar conceitos e parâmetros externos. Essa
habilidade foi adquirida, em grande parte, pela mestiçagem dos povos indígenas,
negros, árabes, europeus, asiáticos que praticaram, neste continente, novas séries
44
de códigos e de linguagem que contribuíram imensamente para a formação de
nossa cultura.
Percebemos que é digna de nota a relação antropofágica que o fanzine
estabelece com o espaço urbano e seus recursos imagéticos, textuais e
tecnológicos responsáveis pela experimentação plástica, editorial e gráfica que
emana destas revistas.
Ao publicar sem se fixar em um único modelo ou padrão midiático, os editores
exteriorizam seus vínculos com jornalismo, poesia, desenho, história em quadrinhos,
artes plásticas, manejando e descartando constantemente informações e
ferramentas providas por essas áreas.
Para o jogo fanzinesco, o que conta é a capacidade de conexões temporárias
que um editor é capaz de fazer aqui e agora com as possibilidades de produção,
impressão e distribuição que ele tem acesso, ou seja, a mídia que pode ser
produzida hoje, não em algum lugar prometido para o futuro.
Esta é na verdade a atitude que fornece alguma solidez à prática de editar
revistas autonomamente, porque critérios de produção e de distribuição variam
bastante de editor para editor.
O que eles têm em comum é o tr abalho de constantemente realizar
reciclagem de resíduos, textos e materiais disponibilizados pela cultura para
metabolizar informações disponíveis nas cidades e re-construir, re-visitar, re-
conectar essas informações a outras séries que lhe fornecerão novos significados,
oferecendo novas relações sintáticas entre diferentes linguagens.
É comum também que os textos fanzinescos, autorais ou não, tendam, no
Brasil e América Latina, a narrativas que envolvem humor, erotismo e subversão nas
45
formas mais diversas. São trabalhos experimentais que armam conexões que
podem ser bem ou mal realizadas, dependendo das habilidades de cada editor.
46
1. 3. 1 Ciber- cidade
Esse pensamento sobre o fanzine em relação à cidade (e vice-versa) será
ampliado aqui para tratar da aproximação semelhante que o universo fanzinesco
estabeleceu com a Internet, a cidade ciborgue. (Lemos, 2004).
O fanzine é mediado pelo espaço concreto e pelo ciberespaço, que colabora
com o espaço real e permite relações de proximidade por meio de redes eletrônicas
como orkut, msn, blog, fotolog que alteram os significados de distância e tempo,
utilizando o espaço urbano traduzido pela Internet.
Existem dezenas de comunidades dedicadas a fanzines no www.orkut.com, o
maior site de relacionamentos do Brasil.
47
Fig. 29
29
29
Capa comunidade do orkut. Fanzine – Descrição: zineiros do mundo, uni-vos.
48
Fig. 30
30
30
Capa comunidade do orkut. Zines – Descrição: comunidade para editores, leitores e amantes de
zines.
49
Fig. 31
31
31
Capa comunidade do orkut. Zine-se – Descrição: Para quem curte invenções no papel...
50
Fig. 32
32
32
Capa comunidade do orkut. Zine por um mundo melhor – Descrição: zine por um mundo melhor.
51
Estas comunidades do orkut concentram-se em agregar pessoas diversas em
torno do tema fanzine, facilitar redes de trocas entre fanzineiros, envio de arquivos,
divulgação de eventos, etc...
Evitamos entrar nas comunidades de fanzines específicos e citamos os
exemplos para demonstrar que, se somarmos os membros participantes, obteremos
cerca de 2500 pessoas conectadas pelo orkut em torno do tema fanzine.
Observe que a rede de possibilidade de acesso a outros links que estas
páginas oferecem, como: “centro de mídia independente”, “Robert Crumb”,
“escambo”, “o que está havendo com o mundo”, “documentários”, “reduza, reutilize,
52
Fig. 33
33
33
www.tarjapreta.com.br
53
Fig. 34
34
34
www.ninaflores.net (site) e http://ninaflores.blogger.com.br (blog)
54
Não podemos dizer, entretanto, que trabalhos de autores conhecidos no meio
impresso sejam fanzines na Internet porque, na verdade, a maioria deles não utiliza,
na rede, elementos gráficos que caracterizam o fanzine de papel, tampouco criam
uma linguagem fanzinesca para web, apenas constroem sites com conteúdos
textuais, e não gráficos, que remetem às suas criações impressas.
Uma exceção é Relicário de palavras (Fig. 34) que ensaia uma tentativa de
desenvolver a linguagem gráfica que desenvolve no zine impresso, na Internet.
Mescla texturas de materiais como papelão e tecido, usados pela editora na sua
produção impressa, com elementos de desenhos digitais, selos e carimbos de
correio.
Existem ainda propostas que utilizam a Internet como meio para divulgar
eventos e situações fanzinescas, como é caso do coletivo Zinco de Fortaleza/ CE
(www.zinco.oktiva.net), que produz um fanzine impresso semanal, o Cidade Solar,e
promove discussões, exibição de vídeos e produção de diversos trabalhos
fanzinescos ao ar livre, em praças e espaços públicos .
55
1. 4 Modos de produção
Escolher o fanzine como meio de expressão, é uma opção consciente pela
precariedade gráfica e baixo custo de produção, impressão e distribuição. Esse
dado não ocorre por acaso, é também uma ação política, estética dentro da cidade
que é tema e suporte para a produção fanzinesca.
Editar fanzine impresso é sempre um gasto, e quem assume as despesas
com o a reprodução em xerox ou impressora caseiraéoprópriofanzineiro que, no
geral, não é um profissional das artes gráficas formais.
Sendo assim, o editor não está obrigado a preocupar-se excessivamente com
padrões rigorosos de composição de página impressa, como a disposição de textos
em colunas simétricas, fontes ultra-legíveis e clássicas como Helvética, Times New
Roman, Arial, Tahoma, Bodoni, títulos claros, informações precisas, espaços em
branco, etc., mas acaba conhecendo, na prática, estes conceitos para usá-los ou
para fugir deles. De qualquer forma, ao que parece, é a partir da relação com a
linguagem midiática formal que validamos fanzine como objeto de mídia.
Percebemos, neste ponto, que não podemos desconsiderar o fanzine
enquanto projeto editorial. Embora, neste trabalho, estejamos visitando apenas
páginas destes projetos, eles são na realidade objetos individuais ou coletivos que
resolvem assuntos cotidianos graficamente, editorialmente.
Muitas vezes dispensam o uso de colunas fixas, um padrão das artes gráficas
formais, e desconsideram a importância dos espaços em branco que promovem a
facilidade da leitura, mas ainda, nesta oposição, continuam sendo projetos editoriais.
Fanzineiros possuem acesso à Internet, a softwares para imagens ou
construção de páginas como CorelDraw, Photoshop e Adobe PageMaker,porém,a
56
imensa maioria opta pela tesoura, cola e papel, ou ainda, por softwares livres de
editoração eletrônica (que não precisam ser comprados, nem pirateados) como o
Scribus eoGimp, que possuem recursos avançados de layout de página, similares
aos encontrados no Adobe PageMaker, QuarkXPress e Adobe InDesign.
Os títulos geralmente nascem das experiências na rua, do concreto e dos
resíduos. Não definem o teor das páginas internas e muitas vezes conservam traços
de purismo mesclados com imaginário urbano subterrâneo e marginal como Jesus
Crises, Um grito pela Paz, Serotonina, Sofá de dois lugares, Onó.
Pela praticidade e baixo custo, os fanzines são geralmente impressos em
papel sulfite 75gr, em formatos A4 (21 X 29,7cm) ou Ofício (21,5 X 35,6 cm) com
diferentes dobras que conservam essas proporções. Porém, não regras fixas
para isso e existem fanzines em formatos menos comuns e irregulares.
A tiragem varia entre 50 e 200 exemplares e o sistema de reprodução,
impressão (de baixa qualidade), geralmente é feito em fotocópias (xerox),
mimeógrafos à tinta ou álcool ou, no melhor dos casos, impressora caseira.
Entretanto, podem surgir oscilação no processo de produção de acordo com
possibilidades financeiras e ousadias da experimentação estética de cada editor,
como veremos no capítulo seguinte quando aprofundarmos a questão da
experimentação em fanzine.
57
Fig. 35
35
A variação observada em Tarja Preta (Fig 35), editado no Rio de Janeiro por
Matias Max, aparecem como exceção para o modo de reprodução: impresso em off-
set, com tiragem de 5 mil exemplares, vendido em bancas de revistas.
35
Capa ‘Tarja Preta terrorismo editorial’. Matias Max. Rio de Janeiro, 2005.
58
Sabemos que o fanzine possui capacidade de rede estrutural (não de
conteúdo apenas) e ocupa seu espaço coletando experiências que outras pessoas
produziram em jornal, revista, folder, história em quadrinhos, poesia, design, artes
plásticas, cinema, televisão, etc. Ele sobrevive entrando e saindo permanentemente
de diversas áreas, discussões, sem, entretanto, estabelecer nenhuma hierarquia de
linguagem ou pertencer a qualquer um desses universos.
Em outras palavras, editores/consumidores usam textos e artefatos culturais
num princípio de trabalho em rede, com deslocamentos rápidos e diferentes
coligações que acabam caracterizando o fanzine pela mobilidade mais do que pela
fixidez.
A capacidade de combinar ou pular de uma mídia para outra, de um assunto
para outro, de um sistema semiótico para outro, conecta uma variedade de
possibilidades que são, atualmente, aquecidas também pelo ritmo das mudanças
tecnológicas e suas fronteiras incertas.
A liberdade e mobilidade serão lidas nos próximos exemplos do modo de
produção suficientemente elástico para existir com muito texto, com muita imagem,
sem texto, só com imagem, com imagem texto, com texto imagem, etc...
59
Fig. 36
36
36
Editorial Jesus Cries. São Paulo, 1994.
60
É comum que notas fiscais, embalagens diversas, páginas de classificados de
jornal, panfletos e tickets de compra sejam incorporados em diversas soluções
gráficas fanzinescas, como veremos mais adiante na discussão sobre procedimento
de apropriação.
No zine Jesus Cries (Fig. 36), houve aproveitamento literal de uma folha de
termo de advertência contra más companhias, emitido pela vara especial de
menores do poder judiciário de São Paulo, que serviu como editorial dedicado a
Charles Bukovski.
Para construir a página, o editor selecionou a imagem de um homem trajando
gravata que representa a formalidade do poder judiciárioeacolocou sobre o termo
de advertência, no canto superior esquerdo, sobre um fundo xadrez, que pode
sugerir a ‘prisão’ (o xadrez) por desobediência desta figura mandante.
Abaixo, junto às condições a serem seguidas pelo adolescente, aparece, em
oposição à formalidade do termo e da imagem do homem de gravata, a figura de
uma dama escultural que sugere que o editor não pretende virar um “bom menino”
apesar do deslize com a justiça.
61
Fig. 17
37
O fanzine Tertúlia (Fig. 37) usa desenho e texto manuscrito para compor esta
página. Demarca uma “aura” que se encarrega de explicar a sensação que o
semblante da menina transmite, paz interna, contentamento consigo por ter
conseguido se livrar de um namorado que a maltratava, utilizando um recurso
reprovado por ele: o álcool.
37
Página interna Tertúlia. Renato Aless. Araraquara / SP, sem data.
62
Toda a confusão da relação afetiva, representada pelos rabiscos e zonas
escuras que ficam do lado de fora da “aura”, contrastam com o intenso uso dos
espaços em branco “dentro” da menina, após a situação resolvida. Nota-se
novamente o uso da textura xadrez (agora no vestido) como retícula funcional para
impressão em preto e branco.
Fig. 38
38
38
Página Interna do zine coletivo Crimidéia. Piracicaba/ SP: C.A Comunicação Unimep, 2003.
63
Crimidéia (Fig. 38) apresenta uma tentativa de resolver a página usando
colagem. A imagem da mulher jamais é retratada no fanzine como um gênero frágil,
recatado e reservado, mas, nesse caso, houve o deslocamento de uma cena do
filme Fight Club (dirigido por David Fincher). Em cena, Helena Borham Carter
interpretando a raivosa Marla Singer que, em meio ao seu pleno descontrole
emocional, de repente, pára e pensa em frases de Shakespeare e Molière, que
obviamente não fazem parte do roteiro de Clube da Luta, mas poderiam fazer.
Novamente xadrez (ao fundo) como recurso viável para impressão em preto e
branco.
Fig. 39
39
Essa (Fig. 39) é a capa do fanzine Justiça eterna, todo feito de histórias em
quadrinhos desenhadas pelo próprio autor. Talvez esse seja o estilo mais
abundantemente encontrado e o que mais cresce no país, principalmente
incentivado pela moda dos desenhos japoneses (mangás), amplamente difundida
entre adolescentes brasileiros.
39
Capa Justiça eterna. Sergio Chaves. Vera Cruz/ SP, 2005.
64
Fig. 40
40
A adição de frases de efeito manuscritas, datilografadas ou coladas sobre
imagens de propagandas deslocadas de jornais, revistas e Internet, imprime um
estilo ao fanzine Copyrigh cu corporation (Fig. 40).
Fig. 41
41
40
Páginas internas Copyrigh cu corporation. São Paulo/ SP e Fortaleza/ CE: Edição coletiva, 2002.
41
Detalhe de Acerca de la impunidad. Madres de Plaza de Mayo. Argentina/ AR, sem data.
65
Os textos manuscritos aparecem em diversos fanzines, seja em textos
inteiros, trechos ou informações de última hora.
O detalhe (Fig. 41) refere-se às páginas do zine das Madres de Plaza de
Mayo que é completamente manuscrito por Hebe de Bonafini, uma das mães que
protestam contra o desaparecimento de seus filhos no regime militar argentino. Hoje,
30 anos depois, ‘Las Madres’ são uma organização com site na Internet
(www.madres.org), rádio livre e meios impressos de comunicação.
O fato de o fanzine ser feito pela mão trêmula de Hebe é uma tentativa de
se diferenciar entre tantos papéis, e de imprimir, sem correções, sua indignação. A
comunicação do site não possui esse mesmo apelo estético.
66
Fig. 42
42
O exemplo seguinte (Fig. 42), sobre banda hardcore utiliza um conceito ultra-
formal de diagramação de texto impresso, duas colunas simétricas, como num jornal
ou revista comercial.
42
Página interna ‘The wild side’ editado por Andhye Iore. Maringá/PR, 1994.
67
Fig. 43
43
43
Página interna zinealcoólico.
68
Zinealcoólico (Fig. 43) não apresenta o mesmo cuidado com a legibilidade do
manuscrito que Acerca de la impunidad, aliás, parece mesmo ter preferido publicar o
rascunho. As informações são reforçadas por uma segunda caneta preta um pouco
mais grossa, em letras maiores que também podem ser lidas separadamente das
menores. O editor dispensou completamente o uso de computador pessoal, fez seu
fanzine à mão, sobre folhas de caderno, do início ao fim.
Fig. 44
44
44
Páginas internas s distorção alternativa. Jaraguá do Sul/ SC: Tito, 1993.
69
Pós Distorção Alternativa (Fig. 44) aproxima tecnologia de computador
pessoal de colagem, texto batido à máquina e retículas de pontinhos feitos com
caneta hidrocor. Mescla, portanto, sistemas arcaicos como máquina de escrever
com o avanço tecnológico disponível na época de sua produção.
A inscrição anarquista na camiseta: “Se hay govierno, soy contra” (Se existe
governo eu sou contra) foi feita digitalmente e deixa evidente a opção política do
editor.
Fig 45
45
O Abismar é um exemplo de fanzine que utiliza preferencialmente palavras na
sua construção. O detalhe (Fig. 45) é a transcrição de um texto anarquista de Enrico
Malatesta, batido à máquina, sem fotos, sobreposto sobre rabiscos de caneta.
Fig. 46
45
Página interna Abismar. Germán Feria. Buenos Aires/ Ar, 2001.
70
46
A página do zine Rum (Fig. 46), de maneira parecida com o exemplo anterior,
trabalhou somente com palavras, sem fotos ou ilustrações. Porém, a editora brincou
um pouco com o tamanho das fontes, concedendo ao leitor a possibilidade de
descanso visual em amplos espaços em branco.
46
Página interna zineRum. Carola Gonzáles. São Paulo/ SP. 2002.
71
Fig. 47
47
O zine Anarko-punk (Fig. 47) trabalha com uma imagem grande, que ocupa
dois terços da página, e um texto bem espaçado que favorece a leitura e fornece à
página a sensação de clareza, limpeza e leveza, apesar da qualidade da foto e
do peso do tema que deixa explícita a relação da polícia militar com moradores de
favelas.
47
Página interna zine anarko punk.
72
Fig. 48
48
Tecnicolor (Fig. 48) utiliza praticamente ilustração. A imagem de um globo
(mundo) envolta por um balão de história em quadrinhos com a de um labirinto de
onde vem a voz que diz “não” ao armamento americano.
48
Página interna zine tecnicolor.
73
Não resta dúvida de que fanzines são produções precárias diante de grandes
revistas com elaborados projetos editoriais, equipes de jornalistas e editores
74
1. 5 Distribuição
A distribuição de fanzines, na maioria das vezes, é feita para os amigos de
mão em mão ou pelos Correios. Neste caso, é comum que o envelope da
correspondência seja ‘recheado’ com ‘propagandas’ de outros fanzines, uma carta
de saudação ou apresentação e vários exemplares de editores distintos.
É a divulgação das propagandas ‘avulsas’ que permite contato entre
fanzineiros que ainda não se conhecem.
75
50
51
50
Carta recebida com Abismar Punkzine, editado por Germán del Kolectivo Kontracultural Hasta las
chapas, Argentina, sem data.
51
Saudações e convites para participar de projetos novos.
76
Não motivos comerciais na veiculação de fanzines e, mesmo quando é
comercializado, geralmente o dinheiro é usado para custear a próxima edição. A
intenção de obter lucros raramente permeia essa produção.
Fig. 52
52
Existem também fanzines que veiculam endereços de outros fanzineiros
(Fig. 52) mas, com as comunidades do orkut e as facilidades do MSN, que permitem
conversas virtuais sem o alto custo da ligação telefônica, iniciar uma rede de trocas
tornou-se um processo bem mais simples e direto e estes fanzines de contatos
estão cada vez mais raros.
Passamos ao próximo capítulo, para observar os procedimentos de produção
do fanzine, para deixar claro as restrições da construção deste objeto, que, como
qualquer outro, possui algumas leis de criação que nos levam a crer que os fanzines
que temos em mãos se diferenciam de revistas comerciais.
52
Capa e página interna do Maldito Fanzine. Porto Alegre, sem data.
2. procedimentos construtivos
77
2. Procedimentos Construtivos
Neste trabalho expandimos o termo fanzine fixado ao significado “revista de
fã”, para olhar a relação existente entre o zine, a cidade e algumas séries culturais e
tecnológicas que determinam os modos de produção, impressão e distribuição
destas revistas, como vimos no capítulo anterior.
Pode-se dizer que o espaço e o pensamento individual se alimentam
mutuamente e incessantemente. Falamos sobre espaços urbanos variados e da
manipulação de resíduos informacionais que circulam diariamente pelas cidades e
pela Internet. Nada pode se dito em relação ao modo de ação fanzinesco sem
observar as escolhas adotadas por diferentes editores.
A resistência a normas cotidianas é um projeto geral da produção fanzinesca,
mas é o estudo dos procedimentos que evidenciará os projetos editoriais específicos
com colunas, tipografias, escrituras e imagens que concedem aos fanzines um estilo
rítmico singular de leitura.
A possibilidade de ‘jogos combinatórios’ entre as informações que a cultura
fabricaedescartaeaprodução editorial e gráfica ‘outsider’ é infinita. Porém o editor
seleciona dessas ofertas culturais o que o sensibiliza, o que de alguma maneira está
ligado à sua própria visão de mundo, aos seus desejos pessoais.
Falamos da história do fanzine e da impossibilidade de usar classificações
muito fixas para este objeto que nasce da livre vontade de pessoas que não se
ocupam das regras do jornalismo impresso.
78
A lista de matérias primas
53
utilizadas pela maioria dos editores não é extensa
nem variável: jornal, revista, textos diversos (autorais ou não) e ilustrações
(desenhos, histórias em quadrinhos, fotografias, colagens, etc).
A diferença e a diversidade de jogos combinatórios vêm do modo como os
editores trabalham com esses materiais, os transformam e criam fanzines
completamente variados, em alguns aspectos específicos, e próximos em outros
mais gerais.
O que pretendemos neste capítulo é observar e discutir as conexões entre o
que os fanzineiros anseiam com as suas produções, ou seja, as tendências dos
projetos editoriais individuais e a maneira como isso interfere de forma distinta na
manipulação de matérias primas comuns a todos os editores.
O fanzineiro não é alguém isolado da sua cultura, ao contrário, é uma espécie
de co-criador, alimentador e ao mesmo tempo consumidor da própria cultura e de
outras. Um antropófago, que transita em percursos completamente móveis para
realizar a tarefa de identificação, seleção, edição, escolha do que fará parte da sua
experimentação estética. Metaforicamente, ele é um filtro e comporta-se como
membrana de tradução intersemiótica, como película que envolve sistemas e traduz
informações.
53
“Matéria prima está sendo usada no sentido comum de substância principal de que se
utiliza no fabrico de alguma coisa, aquilo de que a obra é feita, aquilo que vai sendo trabalhado ou
manipulado durante o processo”. (Salles, 2006).
79
Fig. 54
54
Acima (fig. 54), um convite para encontro de fanzineiros. O termo
subjetividade é levantado pertinentemente, pois à discussão para além de “o que é
fanzine?” não devemos desconsiderar as conexões pessoais de cada editor.
O primordial nesta análise do ponto de vista construtivo é, não observar o
que se recolhe, mas, principalmente, compreender por meio de quais procedimentos
específicos e pessoais a matéria prima passa a pertencer ao discurso fanzinesco.
54
Divulgação do evento Subjetividade no papel. Produzido por Nina Flores, São Leopoldo / RS, 2006.
80
Lidar somente com a técnica de manipular os materiais pode resultar em um
manual de fabricação fanzinesca como foi feito tantas vezes por muitos
fanzineiros:
- Encontre algo que queira publicar.
- Pense em um título para o fanzine.
- Escolha um formato.
- Selecione material textual e gráfico.
- Copie em xerox ou scaner o que não puder recortar
- Tenha cola, tesoura, estilete, régua, caneta preta e folha sulfite para
diagramar a página.
- Recorte e cole o material, organize como quiser.
- Deixe uma margem (de 1 cm) na folha que não deve em hipótese alguma
ser ocupado por textos. É a margem da máquina de xerox. Se desejar, pode
‘sangrar a imagem.
- Monte um boneco, o original do qual sairão cópias.
- Coloque algum contato (endereço ou e-mail).
- Imprima a primeira cópia, revise, arrume o que achar que deve.
- Imprima como quiser (Xerox, off-set, impressora caseira).
- Escolha bem a qualidade do xerox, ele deve ser preto e branco e não cinza
e branco.
- Pode-se usar papel colorido para as cópias.
- Pode-se finalizar com grampo, costura, durex ou cola. Seja funcional, não
queira que seu zine despenque ao ser manuseado.
- Distribua para os amigos.
81
- Se puder descubra o endereço de alguns fanzineiros e envie seu trabalho
pelo correio com alguns ‘avulsos’ que contenham o nome do seu zine e seu contato
para o destinatário poder entregar para alguém. Com o tempo você terá uma rede
de fanzineiros parceiros e alguns zines que dedicam-se a catalogar e distribuir
endereços para aumentar sua rede de contatos.
- Altere a ordem dos acontecimentos se achar necessário.
82
Esta ‘gramática básica’ ilustrada pelo cartunista Laerte serve como apoio para
todos os iniciantes, mas é a tendência do projeto poético pessoal que determina
procedimentos específicos para manipular essas etapas. A revista que é entregue
ao público é um registro, um mapa simplificado da multiplicidade de conexões, da
habilidade (ou não) do editor agregar e colocar em relação múltiplas linguagens.
83
2.1 Análise de procedimentos
Para entrar nas escolhas pessoais de cada fanzineiro, não podemos
desconsiderar o contexto da cidade e da cibercidade, pois, de alguma forma, o editor
se relaciona com estas estruturas de linguagens para transformar as informações
obtidas e devolver, a estas atmosferas, suas conexões pessoais, em forma de
projeto editorial fanzinesco.
Falamos da diversidade de temas e materiais, das formas precárias de
reprodução e distribuição, da informalidade e irreverência que envolvem a produção
e, agora, observaremos a habilidade pessoal de alguns editores pra lidar com estas
questões e gerar conseqüências gráficas que fornecem alguma coesão para esta
produção.
A maneira como as matérias-primas são elaboradas por editores distintos nos
fez perceber uma espécie de tensão entre ausência de padrão (que permite infinitas
possibilidades de jogos combinatórios de temas, formatos e linguagens) e o limite
severo da perda de qualidade gráfica com impressão de baixo custo. É esta
contradição irônica que nos leva a crer que, o que temos em mãos são fanzines,
revistas experimentais, e não revistas comerciais.
Cada página é manipulada num percurso intersemiótico (de inter-relação
entre linguagens) que traduz para o novo universo as buscas pessoais de cada
editor. É o método de experimentar e transformar as matérias-primas (que não
pertenciam ao universo fanzinesco e passam a pertencer) que evidenciam o vínculo
entre o percurso criativo do fanzineiroeasuanoçãodecidade e cultura.
84
O desenho, o uso do espaço da página, é rastro de quem necessita se
comunicar, índice do inacabado projeto editorial pessoal e das buscas internas de
comunicadores anônimos.
85
2.1.1 Apropriação
No primeiro capítulo, vimos a questão da relação antropofágica que o fanzine
estabelece com o espaço urbano. A maioria dos materiais empregados na
construção fanzinesca foi retirada de um contexto anterior, ou seja, foi emprestada,
apropriada, deslocada, traduzida de algum lugar não fanzinesco para fazer parte de
um novo discurso.
A habilidade de selecionar materiais do cotidiano informacional é tão
importante para o fanzine quanto o trabalho de editores que produzem e veiculam
textos e imagens de autoria própria.
Apropriação de textos e imagens de sites da Internet, revistas, jornais,
histórias em quadrinhos, letras de músicas, etc., é um procedimento utilizado
constantemente na produção e, neste caso, a matéria-prima encontra-se na
qualidade de signo móvel dentro da cidade.
Um objeto que pertencia a um espaço com determinadas funções e relações
é deslocado para o suporte fanzinesco, ou seja, é convidado a se relacionar com um
universo novo. Isto é o que nomeamos apropriação.
86
Fig. 55
55
Este exemplo do fanzine Tecnicolor (Fig. 55) é o deslocamento explícito de
uma cena do filme “Corra Lola Corra” (Lola Rennt) do diretor alemão Tom Tykwer. O
filme se desenrola em recortes de cenas da corrida de Lola que conta com apenas
20 minutos para salvar o namorado.
O editor de Tecnicolor deslocou esta imagem do site oficial do filme na
Internet (http://www.sonypictures.com/classics/runlolarun/photos/fp-2.html) e agregou
uma moldura de macacos em movimento para reforçar a frase ‘pernas para que te
quero’. Para quem assistiu ao filme, o desespero da cena de Lola correndo é
deslocado para a página e alimenta o texto novo que o editor agregou à imagem.
55
Página interna Tecnicolor. Jackson Jr.
87
Fig. 56
56
No fanzine coletivo Crimidéia (Fig. 56), a apropriação é do conceito desta
palavra, que representa o crime de pensar para o escritor George Orwell em seu
livro 1984.
Este zine ostenta este nome no título porque pretende incitar a prática do
pensamento subversivo, ou não. Para a construção da página, se apropriou de
recortes de imagens e frases de revistas, e de um xerox reduzido da página do livro
1984. Este último é uma apropriação do objeto, é como se o livro adentrasse a
atmosfera da página.
56
Editorial Crimidéia. Fanzine coletivo do Centro Acadêmico de Comunicação da Unimep. Piracicaba/ SP. 2003.
88
As outras imagens são secundárias, desconexas e insignificantes para o tema
do editorial do fanzine e, mesmo assim, o autor abriu sulcos com tesoura entre uma
linha e outra do texto, um procedimento plástico para mesclar a informação textual
com a imagem da primeira camada.
Neste caso, esta mescla foi leve porque as imagens da primeira camada
deixaram espaços em branco da folha sulfite, mas este procedimento diminuiu
consideravelmente a legibilidade do texto e conseqüentemente agrega um desafio
ao leitor, o de chegar até a última linha.
Fig. 57
57
Este é um exemplo (Fig. 57) de deslocamento de um objeto, um envelope,
que deveria ser usado para remeter cartas. A função é subvertida quando a editora
resolve usá-lo como suporte para sua apropriação seguinte, versos de Alice Ruiz e
Florberla Espanca.
57
Página interna ‘Relicário de palavras’ . Aline Hebert. São Leopoldo/ RS, 2006.
89
A conexão entre as três peças é praticamente inexistente, a não ser pela
singeleza dos versos e simplicidade do envelope, mas os motivos que levaram a
editora a aproximar as peças permanecem misteriosos.
Fig. 58
58
Em Copyrigh cu corporation (Fig. 58) houve o deslocamento de um mapa, a
apropriação literal do conceito de organização espacial de qualquer grande evento
com expectativas de fluxos ordenados, saídas de emergência, segurança, etc.
Este aparato vai ao chão com a pergunta afirmativa: “Quantos livros você
roubou na última Bienal?”. O editor se ocupou de aproximar dois extremos: a
58
Página interna Copyrigh cu corporation. Edição coletiva. São Paulo/ SP e Fortaleza/ CE, 2002.
90
organização do eventoeasubversãodasnormas.Afunçãodelocalização, inerente
ao mapa, perde-se completamente quando ele passa a funcionar apenas como um
fundo que se refere ao espaço do qual se fala, o palco da ação subversiva de roubo
de livros.
Na página seguinte, o deslocamento da imagem do comandante Che
Guevara, líder da revolução Cubana, vem amarrado à imagem de homem bonito,
corajoso, viril, inteligente, preocupado com questões filosóficas e sociais, etc.
Da relação entre as palavras ‘esfrega’ e ‘companheiro’ (na frase que faz
referência a um ato de prazer erótico feminino e solitário) e do significado da
imagem de Che, em close, inaugura-se um novo ambiente que agrega o erótico ao
subversivoeéreforçadopela palavra “vermelhíssima” que faz referência tanto à
paixão quanto às bandeiras socialistas.
Fig. 59
59
59
Página interna Tecnicolor. Jack Jr.
91
Na página do fanzine Tecnicolor (Fig. 59) percebe-se a apropriação da tira do
cartunista Laerte, provavelmente retirada de um jornal. O deslocamento altera o
ambiente do qual a história em quadrinhos foi apropriada, acrescentando ao fundo a
retícula feita da repetição das palavras “vocês humanos”, que serve para destacar o
desenho.
“Vocês humanos” é o início da frase do primeiro balão da tira, é uma sátira ao
ser humano que se supõe um super-homem hábil a decidir de maneira autoritária o
que os outros humanos errantes devem fazer.
Quando o autor destaca esta frase, separa o orador do resto da humanidade
e denuncia suas pretensões megalomaníacas. É uma maneira de reforçar o caráter
absurdo e irônico implícito na H.Q. Uma apropriação da materialidade e do conteúdo
deste trabalho de Laerte.
Fig. 60
60
60
Página interna Luizine. São Paulo.
92
Fig. 61
61
Estes dois exemplos referem-se à metalinguagem do procedimento de
apropriação. O primeiro (Fig. 60) construído com um desenho deslocado, que
provavelmente iria parar na lata de lixo se não tivesse vindo para o fanzine e texto
sobre a afeição do editor por desenhistas nas horas vagas.
O segundo (Fig. 61) é um convite virtual para conhecer o metaZine do
programa coletivo metaReciclagem, uma idéia para gerar ações de reapropriação
tecnológica para a transformação digital (http://oxossi.metareciclagem.org).
Para este projeto, as comunidades devem contar não com um tele-centro
que permite acesso à navegar na Internet, mas também com trabalhos de
93
Fig. 62
62
A página do Crimidéia se apropria, neste exemplo (Fig. 62), dos conceitos que
Theodor Adorno desenvolveu na Escola de Frankfurt sobre os meios de
comunicação de massa e a indústria cultural.
O denso tratado sociológico foi aproximado de um personagem, o receptor
passivo que acredita estar “curado” de sua relação nociva com a televisão após um
62
Página interna Crimidéia. Edição coletiva do Centro acadêmico de comunicação da Unimep- Henfil.
Piracicaba, 2003.
94
pileque no BarLarmino, uma brincadeira com o nome do Professor que ministra
aulas sobre a Teoria Crítica na faculdade de Comunicação da Unimep, Belarmino
César.
O triplo deboche subversivo das imagens formais do sociólogo, do professor
pesquisador e dos termos usados por essa corrente do pensamento conferem
humor diferenciado a esse texto.
A colagem final, apropriação de uma propaganda antiga de LP, CD e K7 de
um disco da Xuxa (ícone da reprodução em série para crianças) reforça a
alienação do personagem “receptor passivo”.
Fig. 63
63
63
Página interna do fanzine coletivo do Forumzinho Social Mundial: Forunzine - o zine da galerinha.Porto
Alegre, 2002.
95
Esta página do Forumzine–ozinedagalerinha (Fig. 63) deslocou a foto de
Cartier Bresson, que exibe três crianças tensas em uma sala de aula francesa, no
século passado.
A este significado, o autor da página agregou letras recortadas de revistas,
outro deslocamento, para formar a sentença: ‘desobedeça’. A frase funciona como
uma ação, como se o autor estivesse dando uma ordem para acabar com o
incômodo significado da imagem.
Atribuir frases a fotografias traduzidas de outros ambientes é comum quando
estamos falando da apropriação de imagens. Elas chegam ao editor com uma carga
de significados que podem ser reforçados ou subvertidos.
Fig. 64
64
64
Capa ‘Subversão’, editado por Wellington Furtado Ramos em Campo Grande /MS, 2006.
96
Na capa do zine subversão (Fig. 64) o editor utilizou fontes tipográficas
recortadas de seis palavras distintas, que tinham uma uniformidade gráfica nas
revistas de onde foram retiradas e misturou tamanhos, estilos e cores diferentes.
É comum que este estilo de colagem tipográfica apareça nos títulos e em
frases curtas, apesar de exigir paciência e habilidade para o recorte, é um
procedimento bastante útil em processos de montagem que não utilizam o
computador, mas jornais, revistas, cola e tesoura.
Com o tempo, este recurso ficou conhecido como ‘letra de seqüestrador’, por
não deixar pistas como preferências tipográficas ou a letra manuscrita do autor da
página.
É interessante pontuar aqui que as apropriações passam ao universo
fanzinesco sem nenhum tipo de referência ou citação de onde foram deslocadas.
Isso nos remete, primeiro, claro, a atitude fanzinesca que não está preocupada com
direitos autorais e, segundo, a uma questão que envolve contar com o repertório dos
receptores.
97
2. 1. 1. 1 Feito para zinar-se
Existem outras situações, que aparecem como nuance do procedimento de
apropriação, em que o material publicado não é deslocado do ambiente externo,
mas de elucubrações internas, autorais, completamente produzidas para o próprio
fanzine. Se o editor utiliza desenho, textos e fotografias, eles são produzidos por ele
próprio ou por colaboradores próximos.
Fig. 65
65
O zineLuiz (Fig. 65) é um bom exemplo de criação fanzinesca
predominantemente autoral e colaboracional que se concentra em vincular autoria a
situações vivenciadas em espaços urbanos.
65
Página interna. Luizine. São Paulo/ SP.
98
Percebemos esta tendência quando ele veiculou um mini-manual de como
fazer um zine como o seu, produzido em softwares digitais de editoração eletrônica
e impresso em off-set. O formato é um pouco menor do que um ‘talão de cheques’,
monocromático (rosa, verde, azul, laranja ou dourado – uma cor para cada edição).
Costuma disponibilizar suas escolhas tipográficas e cromáticas para os
leitores em fontes pequenas na própria página. Geralmente usa a fonte New Gotic,
lançada em 1908, que é um tipo denso (por isso gotic), mas muito legível.
Fig. 66
66
Dentre as páginas com conteúdos feitos para publicar no Luizine,
selecionamos esta página de uma campanha imaginária que contesta fatos do
cotidiano urbano (Fig. 66). Ele polemiza ou afirma com letras pequenas o que havia
escrito em letras grandes e consegue a inversão da ordem de importância das duas
66
Páginas internas Luizine. São Paulo.
99
frases. A menor, em corpo 6, converte-s e em maior, porque traz o significado que
faltava para uma frase solta. São mini-out-doors.
No caso do texto “não, o tio não tem troquinho”, Luiz está protestando contra
um adesivo que circulou entre motoristas de Porto Alegre (RS) no início do ano
2000.
Fig. 67
67
Herege (Fig. 67) usou a técnica de serigrafia na capa e em algumas páginas
internas. É um recurso alternativo à impressão do sistema gráfico CMYK (Ciano ou
azul, Magenta ou pink, Yelow ou amarelo e BlaK ou preto), que mistura estas 4
cores em busca dos tons ideais na impressão colorida, mas também permite a
impressão monocromática, ou seja, uma dessas cores sobre o papel branco (ou
claro).
67
Página interna Herege. Érico San Juan. Piracicaba/ SP.
100
No sistema serigráfico, as cores básicas (e suas variações de tons) são
usadas obrigatoriamente uma a uma. Existem casos em que se sobrepõem duas ou
mais cores, mas para isso, é necessário que a primeira camada da tinta aplicada
sobre o papel esteja completamente seca, um processo que leva por volta de 72
horas.
As impressões são feitas de forma manual, uma a uma, com uma tela própria
para impressão em silk-screen, tinta especial e um rodo pequeno.
Figs. 68 e 69
68 69
Este avulso (Fig. 68), remetido com o zine Cidade Solar, utilizou carimbo,
objeto comum, conhecido de todos, e usado para conferir autenticidade a
documentos a partir dos anos 1300.
68
Avulso emitido pelo correio com o zine Cidade Solar.
69
Avulso emitido pelo correio com o zine Abismar .
101
Inovadoraéamescladopapel colorido pink ‘lumi’ com o conteúdo da frase
que contradiz o mandamento matriarcal para crianças: ‘não fale com estranhos’. A
reunião de técnica arcaica de impressão com o que de inovador em cor de papel
no mercado editorial criou uma peça singela e contemporânea, especialmente
produzida para circular com o zine Cidade Solar.
O argentino Germán Feria construiu este avulso (Fig.69) para circular com
seu zine Abismar. Protesta contra exposições de animais em gaiolas e jaulas
aproximando desenho e fontes tipográficas desenhadas por ele com caneta
hidrocor.
Fig. 70
102
70
Nueva Mitologia Pop (Fig. 70) é editado em Buenos Aires pela
103
Fig. 71
71
DxdágxQuê? Surreal H.Q (Fig. 71) apresenta dois textos feitos para pertencer
ao universo fanzinesco. O primeiro aproxima-se de um editorial que nos contempla,
nesse número, com seu espírito de liberdade.O autor associa sua liberdade ao
demônio, no Brasil popularmente batizado de ‘cão’ e aprisiona, em um quadrado, a
imagem de um cachorro esculpida em xilogravura.
A página seguinte relaciona bebê de colo com arte, poesia, ballet e
movimento Dada. O título em traços reforçados, o texto com traço um pouco mais
leve em tipografia manuscrita em vários tamanhos flutua na página sem linhas. É
notável a ausência completa do uso de computador na produção deste fanzine.
71
Páginas internas. DxdágxQuê? Surreal H.Q editado em Goiânia/ GO, sem data.
104
2. 1. 2 Colagem
A colagem como procedimento construtivo é, ainda hoje, quase sempre
associada a um passatempo infantil. Tem um a trajetória antiga, e sua incorporação
na história da arte foi conquista de artistas das vanguardas do século passado,
como, por exemplo, George Braque, Picasso, Matisse, Schwitters, Max Ernst e Hélio
Oiticica, que afirmaram-na como procedimento estético e discutem, com suas obras,
produção em série e reutilização de materiais descartados pela cultura.
Ao abrigar no espaço do quadro materiais retirados do cotidiano, a pintura
pode passar a ser concebida como construção sobre um suporte (cartolina, sulfite,
madeira) o que alterou a fronteira até então existente entre pintura a óleo em tela e
escultura para moldar materiais.
A colagem não precisa ser feita de apenas um material, pode-se misturar
recortes de jornal e revista, papéis diversos, tecido, planta, madeira, etc...
No fanzine aparece como procedimento tipográfico ilustrativo e aproxima-se
dos procedimentos acúmulo e sobreposição, mas em alguns casos geram apenas
montagens, que amontoam informações sem alcançar uma treliça harmoniosa, uma
aproximação coerente entre pelo menos dois materiais de significados distintos.
105
Fig. 72
72
O zine Forunzine (Fig. 72) utiliza a colagem tipográfica no título e aproveita o
desenho da comunicação visual do evento Forumzinho Social Mundial (duas
crianças segurando um balão com o mapa-mundi invertido) como solução imagética
para a capa do fanzine, resultado de uma oficina para crianças. Na página da
esquerda, a colagem dos endereços das crianças sobre rabiscos de lápis de cor
preto que intensificam a informação e dividem a página em três colunas verticais
imaginárias.
Além disto, este fanzine experimenta a impressão em xerox no papel sulfite
coloridoeacordopapel o diferencia frente a outros impressos em papel branco.
72 Capa do fanzine coletivo do Forumzinho Social Mundial: Forunzine - o zine da galerinha. Porto Alegre, 2002.
106
Para o leitor, às vezes, este estilo de impressão é confundido com impressão
colorida, que valoriza qualquer projeto editorial.
Podemos observar este procedimento e outras figuras deste trabalho, como
nas páginas 87, 88, 91, 94 e 96, por exemplo.
107
2. 1. 3 Exploração tipográfica
As fontes tipográficas digitais são constantemente manipuladas nas
construções dos textos e títulos fanzinescos. As mais comuns estão disponíveis em
qualquer computador pessoal: Times New Roman, Arial (variação da Helvética) e
Currier New (que simula a fonte da máquina de escrever, que aliás, por vezes, ainda
é usada).
A Helvética, a fonte que melhor representa a limpeza do design suíço dos
anos 50 e 60, foi criada em 1956 por Max Miednger. Seu título é derivado do nome
latino para Suíça e ela é usada em diversos projetos gráficos modernos, como na
sinalização do Metrô de São Paulo, por exemplo.
Sua sucessora, Arial, é considerada uma ‘má cópia’ da Helvética. Na verdade
esta fonte é baseada em uma tipografia mais antiga chamada Akzidenz Grotesk, que
também inspirou a criação da Helvética. (Rocha, 2003).
De qualquer forma, esta fonte foi bastante difundida pelo sistema
Windows/Microsoft, que a utilizou em seu sistema operacional e embutiu sua
instalação em todos os computadores pessoais produzidos pela empresa.
A Times New Roman é uma fonte serifada criada para proporcionar alta
legibilidade para as páginas do jornal inglês Times (The Times of London), em 1932.
Seu nome refere-se ao jornal e ao fato de ser uma releitura das antigas curvas e
serifas clássicas (New Roman), que permite que a Times seja usada em livros,
revistas, textos publicitários e relatórios formais. (Ribeiro, 2003).
Todas estas fontes transmitem formalidade, conservadorismo e clareza que
não são princípios fanzinescos. Porém, o acesso a esta pequena lista tipográfica é
simples e deixa transparecer nos exemplares a praticidade de não se preocupar com
108
um passo fundamental de qualquer planejamento gráfico formal: a escolha das
fontes tipográficas, auxiliares da leitura rítmica.
Fig. 78
73
73
Página interna ‘El Zapata’ editado no México, sem data.
109
O fanzine El Zapata (Fig. 78) mescla Times com Arial e acrescenta as fontes
manuscritas à caneta esferográfica ou hidrocor, uma variação recorrente para títulos,
textos ou correções e anotações de última hora.
É comum que o editor não re-imprima o boneco todo se algumas rasuras à
caneta resolvem pequenas lacunas e lapsos de memória que vêm à consciência
após a decisão de encerrar a construção da página.
Fig. 79
74
74
Página Interna ‘Bad Lhoice’, editado pó DJ Danieus, sem data.
110
Nesse exemplo (Fig. 79) a frase principal foi, em grandes fontes, desenhada
com caneta hidrocor. Ao final, uma informação de última hora, espremida no canto
inferior direito é responsável pela injeção de humor à constatação sobre a vida
moderna e seus recursos para disciplinar os cabelos rebeldes.
Fig. 80
75
75
Página interna ‘Nova geração – Jornal fanzine da Comunidade Bom Jesus, Porto Alegre /RS,
editado por Sylvio Ayala, sem data.
111
A página do zine Nova Geração (Fig. 80), mostra que a frase construída com
fonte manuscrita força um elo inexistente entre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e uma ação ambiental em favor da qualidade do ar que respiramos.
Passaremos à observação da exploração do espaço das páginas com os
tópicos sobreposição de camadas, moldura e sangramento.
112
2. 1. 4 Sobreposição de camadas
No procedimento de sobreposição de camadas a mensagem não ultrapassa a
barreira para o campo da ilegibilidade. Aqui, o editor seleciona as peças e as
experimenta lado a lado, uma sobre a outra, sempre com a intenção de criar algum
significado que tem mais a ver com criação de linguagem do que com necessidade
de aproveitar o espaço da página ao máximo, como veremos mais adiante na
discussão sobre o acúmulo.
Fig. 81
76
76
Capa ‘Zero’, editado por Jack. Maracanau / CE, 2006.
113
O zine zero (Fig.81) sobrepõe às letras miúdas de um fundo deslocado,
aparentemente uma coluna de um jornal, o título Zero em fontes grandes. A
oposição grande/ pequenoeacamadapretaaolado da coluna do jornal valorizam a
colagem das grandes letras recortadas de revista.
Mais abaixo, sobre as letras miúdas de jornal, uma pausa: a sobreposição de
um pedaço de papelão Kraft, que serve como moldura para uma foto de uma garota
‘non sense’. Esta imagem é uma ponte para a faixa preta, que transporta o olhar
para ao lado direito da página.
O lado direito sobrepõe ao suporte a ‘retícula’ desenhada com caneta. Sobre
a retícula, a foto da garota desconfiando, ou do lado esquerdo da página, ou do
conteúdo interno do zineZero.
A mesma caneta usada para desenhar a retícula selecionou do texto da
coluna de jornal, no lado esquerdo da página, as palavras indústria, dia, Grammy
(prêmio de música americano equivalente ao Oscar do cinema) e Mtv.
Coincidentemente, esta atitude de provocar deslocamentos rápidos do olhar de uma
imagem a outra, num curto espaço de tempo, se assemelha à linguagem de
comercial de tevê.
114
Fig. 82
77
Memória (Fig. 82), ao sobrepor sobre uma imagem geral durex vermelho (que
viraram traços pretos ao serem xerocados) e, sobre esse durex, frases, cria um
significado de ruas paralelas, de um pequeno espaço urbano visto de cima. A
confusão causada pelo positivo e negativo, remete ao congestionamento de
pedestres.
77
Contracapa ‘Memória’ editado por Murillo Mendes. Piracicaba / SP, 2005.
115
Este procedimento de sobreposição de camadas dialoga um pouco com as
colagens da arte postal ‘mail-art, como observamos nestes dois exemplos.
78
78
Arte Postal.
116
Na arte-postal, o autor remete sua arte pelo correio fora do envelope. Os
selos e carimbos sobre a obra estão previstos pelo autor e se sobrepõem à proposta
inicial da maneira como o funcionário dos Correios entender pertinente.
Nos exemplos acima observamos a utilização de materiais como jornal,
imagem, carimbo e de procedimentos como a apropriação de colantes (ou alteração
de etiquetas) e sobreposição de camadas de materiais descartados ou novos, que
têm sua similaridade com algumas produções fanzinescas.
117
2. 1. 5 Moldura
Emprestamos este termo das artes plásticas e estamos o usando aqui
exatamente da mesma maneira, como algo que adorna, enfeita e valoriza a
informação emoldurada.
No fanzine, a moldura delimita o espaço de criação, possibilita que ele
apresente-se demarcado, estabelecido, focado. É um procedimento comum quando
118
Fig. 84
79
Nesse exemplo (fig. 84) a moldura funciona complementando o emaranhado
de sentimentos descritos no texto e foi composta com traços fortes de pincel atômico
preto em diversas grossuras e com cantos arredondados. Além disso, o editor conta
com a criatividade do receptor para visualizar o personagem extraterrestre que
aparece em seus sonhos, pois não oferece nenhuma ilustração que direcione a
imaginação.
79
Páginas internas ‘Enxofre’ editado em Ijuí /RS, sem data.
119
Fig. 85
80
Em Enxofre (Fig. 85), a moldura direciona o olhar para dentro, para o texto.
Uma questão de contraste entre a escura figura que está fora do espaço delimitado
80
Páginas internas ‘Enxofre’ editado em Ijuí /RS, sem data.
120
pela molduraeobrancodoqueestádentro, fixa o olhar e valoriza o texto transcrito
em fonte grande, com alta legibilidade, sobre o fundo completamente branco.
O espaço entre o “fora” do fundo e o “dentro” do texto fica ainda mais
demarcado pelo risco retangular feito com caneta hidrocor preta. Note que o título,
escrito sobre o fundo escuro, não apresenta a mesma clareza.
Não fosse pelo procedimento de emoldurar a informação, concedendo-lhe
limite menor do que o tamanho da folha, estas páginas veiculariam apenas um bloco
pesado de texto, sem nada que chamasse a atenção para sua leitura.
O adorno da moldura, como qualquer enfeite, atrai a atenção do leitor, e
ajudam a descansar o olhar as margens largas que ficam no espaço delimitado
como “fora” da restrição que interessa.
121
2. 1. 6. Sangramento
O sangramento, ao inverso da moldura, oferece a sensação de que o
desenho da página vaza para além dela própria. É como se o editor não se
contentasse com a delimitação do espaço fornecida pelo tamanho da folha sulfite e
subvertesse esta informação criando a ilusão ótica de que este espaço seria maior
do que realmente é.
Fig. 86
81
81
Página interna ‘ Dr. Libério’ editado Por Sylvio Ayala. Porto Alegre/ RS, 1992.
122
No exemplo de ‘Dr. Libério’ (Fig. 86), o sangramento extremo, conseqüência
de uma retícula conseguida com acúmulo de desenhos, pequenos riscos e pontos
feitos com caneta hidrocor preta fina não deixa nenhuma pequena margem nas
bordas do papel.
Porém, esse fundo geral enfatiza a história em quadrinhos no centro,
sobreposta à retícula, como se fosse uma moldura e, nesse momento, ao invés de
continuar sangrando e criando a ilusão de que este espaço se expande para fora, a
retícula parece se contrair para adornar a informação mais importante, que está no
centro. É como se o editor dissesse que o que deve ser lido é que contém mais
espaços em branco. Neste caso, o sangramento é moldura.
123
Fig. 87
82
Ao contrário do exemplo anterior, a capa de ‘Tertúlia’ (Fig. 87) sangra em
busca da atmosfera ilimitada, indeterminada, ampliada, representada pelo palhaço
sarcástico tapando a boca do menino (que pede socorro com um ‘tertúlia’ na mão)
pequenino, frágil e quase invisível.
A colagem do fundo em espiral oferece a sensação de movimento, de fim de
túnel. É um fanzine que dentre outros temas se ocupa da “crítica aos poderosos e
maquiavélicos meios de comunicação de massa”, representados, na figura, pelo
desenho do palhaço.
82
Capa ‘Tertúlia’ editado por Renato Alles. Araraquara / SP, 1996.
124
2. 2 Algumas conseqüências do uso desses procedimentos
Os procedimentos construtivos de fanzine surgem da habilidade pessoal do
fanzineiro pra lidar com a tensão mencionada entre ausência de padrão editorial
(que possibilita combinações entre temas, formatos e linguagens) e restrições
gráficas dos modos de reprodução de baixa qualidade.
As soluções editoriais encontradas para conviver com esta tensão, localizam
a linguagem fanzinesca, como observamos no capítulo 2, dos procedimentos
construtivos.
Detalhamos, nessa passagem, a experimentaçãoeoacúmulo, provenientes
da exploração intensa e exacerbada dos procedimentos analisados, elementos que
auxiliam a tentativa de construção de um conceito para fanzine que não o reduza a
definições estáticas, mas evidencie os limites da construção de sua linguagem,
conforme discutiremos no capítulo 3.
125
2. 2. 1 Experimentação
A discussão sobre experimentação foi necessária a partir da observação de
fanzines que procuram agir adensando seus testes estéticos, independentemente de
posicionamento abertamente político ou revolucionário.
Mencionamos que, na produção fanzinesca, a diversidade de linguagens
produz mosaicos móveis, jogos de estabelecer redes e conexões entre séries que se
encontravam disparatadas, de se aproximar de diversos meios, técnicas, atitudes e
procedimentos experimentados por outras pessoas em outras áreas, sem
entretanto passar a pertencer a elas.
Sabemos que a experimentação junto à pobreza dos meios de produção está
no cerne da maneira fanzinesca de editar sem padrões definidos e que, somente
reconhecendo esta relação, podemos começar a conhecer o que é fanzine.
Entretanto, quando falamos da experimentação neste tópico, estamos
afirmando que os exemplos daqui, mais do que a maioria, levam às últimas
conseqüências a proposta de estabelecer rede com distintas linguagens.
126
Fig. 73
83
O fanzine Pague-se, de Alex Cabral (Fig 73), é a experimentação de quatro
materiais: papel Kraft, giz de cera vermelho, tinta acrílica branca e carimbos, dos
anos 80, a respeito de meios de comunicação de massa ou profissões relacionadas
a este tema, sobrepostos nessa ordem.
Com o carimbo final da Branca de Neve produzido em massa por conta do
filme de Walt Disney sobre o conto A Branca de Neve e os sete anões, dos irmãos
Grimm, o autor levanta que a geração nascida nos anos 80, conhecedora dos
desenhos destes carimbos que circularam na sua infância foi educada com imagens
83
Capa e páginas zine Pague-se. Alex Cabral, Curitiba/ PR.
127
que favoreceram, mais tarde, a aceitação e compra de aparelhos e ícones dos
meios de comunicação de massas. Daí o título do fanzine, Pague-se.
Fig. 74
84
O editor Alex Cabral é particularmente conhecido por suas experimentações
editoriais plásticas. Neste, o Boredom (Fig. 74), utiliza páginas de um livro antigo de
engenharia civil escrito em Alemão.
Não se preocupa com a leitura, tanto que, em páginas internas, chega a
cortar partes dos textos, mas com a plasticidade dos desenhos e das palavras que
são complementadas com figurinhas auto-colantes antigas.
84
Capa zine Boredom. Alex Cabral, Curitiba/ PR
128
O diferencial maior desta produção é o fato de que ela não passa por nenhum
processo de reprodução em série. Os zines são montados um a um, enquanto
durarem as páginas do livro de engenharia e as figurinhas auto-colantes.
O título é impresso de maneira rudimentar, com carimbo feito em clicheria:
Boredom A Postmodern enterprise (Tédio uma empresa pós-moderna) e pode
ser lido também como uma crítica ao seu modo de produção que filtra o espaço em
que vive e coloca em relação elementos deste cotidiano, sem precisar produzir
textos ou desenhos.
Fig. 75
85
A capa do fanzine DxdágxQuê? (Fig 75) aponta, pelo título, seu caráter
experimental. Não busca transmitir uma mensagem coerente e conexa. Apresenta
85
Capa ‘DxdágxQuê? Surreal H.Q’ editado em Goiânia/ GO, sem data.
129
um desenho de gestalt que, de um lado é uma mulher nua e se virada de cabeça
para baixo, converte-se num rosto masculino.
A diagramação aproveita texturas de rendas e contêm um ‘corte’ quadrado
que serve como moldura para o detalhe do desenho, que está, na realidade,
impresso na segunda página.
Fig. 76
86
O exemplo do zine ONó(Fig. 76) é uma experimentação plástica da letra. A
fonte vira um objeto passível de intervenção. Neste caso, o editor usou uma cena de
propaganda de câmera fotográfica veiculada em revista dos anos 70 para ilustrar a
sensação de contentamento (postiço) que surge da interjeição “ah”.
86
Página interna O Nó. Gustavo Gojen. Porto Alegre/ RS, 2002.
130
Fig. 77
87
Em Jesus Cries (Fig. 77), uma experimentação de ocupação da página com
desenho e colagem de elementos enigmáticos heterogêneos. A imagem vai ficando
menos explícita a cada ponto da página. Primeiro, um gargarejo (ou vômito
explicito), depois, um enigmático palhaço fumante, e por fim, a ultra-enigmática (para
um leitor brasileiro) escrita ideográfica chinesa.
87
Contracapa Jesus Cries. São Paulo, 1994.
131
A experimentação ocorre não somente na construção das páginas, mas na
construção do envelope para remeter fanzines, feitos, muitas vezes, de folha de
revistas; Na intervenção com lápis de cor sobre xerox, como na capa do zine
Karamelo azul; nos títulos que aproveitam palavras que remetem à riqueza e
ostentação para subvertê-las ao universo pouco nobre dos fanzines, a exemplo do
LimoZine,etc.
132
2. 2. 2 Acúmulo
Entendemos por acúmulo a conseqüência da intensa exploração das
possibilidades da diversidade de linguagens e dos procedimentos construtivos que
vimos até aqui.
Oacúmuloéaconseqüência de uma hiper-colagem, de uma hiper
aproximação de textos, de um exagero que não deixa espaço em branco na página
para nada, nem para anotações de última hora.
Tanto a montagem manual, usando colagem, ou a montagem digital, usando
softwares de editoração eletrônica, trabalham com o princípio de adição de
camadas, ou seja, o papeléosuporte e a construção gráfica adiciona sobre ele
imagens e textos.
Na imprensa formal, geralmente o editor trabalha com poucas sobreposições
de materiais porque os espaços em branco, sem texto e sem imagens, são
importantes para a legibilidade da página, e diminuem quanto mais se sobrepõem as
camadas.
No fanzines, inúmeras vezes, a ânsia pelo total aproveitamento do espaço
ultrapassa a relação desejável em projetos editoriais formais entre uma única
camada de texto sobre outra camada de imagem e invade os espaços vizinhos
quando intensifica o procedimento de sobreposição de camadas.
A intensa repetição deste procedimento na construção de uma página, gera
ilegibilidade tal que chegamos a pensar que esse emaranhado fosse uma textura de
riscos. Ás vezes, o editor tem essa intenção, de criar texturas, mas, às vezes, não, e,
no caso de não ser uma intenção plástica, é um procedimento que vem por
133
necessidade de diminuir o número de folhas impressas, para, conseqüentemente,
baixar o custo da impressão.
Por desconhecimento ou desprezo às leis da clareza em planejamento
gráfico, o acúmulo é visto em quantidade na produção fanzinesca e aparece como o
grande responsável pelo aspecto de sujeira e esculacho, característicos de toda a
produção, mas em especial as de tema anarco-punk.
Fig. 88
88
88
Página interna ‘Anti-Selo’ editado por colectivo contrakultural. Buenos Aires, sem data.
134
Na capa do anti-selo (Fig. 88), ao primeiro olhar, afirmamos que o leitor não é
um definidor de padrão porque o editor trabalha com o amontoar, adicionar uma
informação sobre a outra, sem criar relações estruturais com alguma conexão, sem
facilitar a recepção com clareza, harmonia, etc...
Mas se insistirmos na leitura, veremos que ele tentou criar seis divisões claras
no espaço de meia folha de sulfite (14 X 21 cm), mas não obteve êxito do ponto de
vista construtivo, justamente por optar por colocar num fanzine de uma única folha,
toda a informação que poderia estar melhor distribuída em duas.
Fig. 89
89
89
Capa ‘Napa’editado por Marcelo R.K. Taboão da Serra/SP, 1995.
135
Observamos edições que, como o Napa (Fig. 89), fogem completamente do
ideal de harmonia, equilíbrio, simetria, regularidade, simplicidade, unidade, limpeza e
aderem ao ‘desequilíbrio, assimetria, irre gularidade, complexidade, fragmentação,
saturação e distorção’ (Ribeiro, 2003) que, frente às técnicas profissionais usuais,
são a chave da não diagramação.
136
Barroquização da cultura ao fanzine
Estamos afirmando ao longo deste trabalho que a linguagem zinesca não
possui um manual gráfico, de criação, impressão ou distribuição e que a
experimentação do fanzine se na relação entre infinitas possibilidades e
restrições combinadas nas etapas do seu processo de criação.
Pensar o Fanzine no Brasil requer uma perspectiva capaz de mesclar
elementos antigos e atuais de produção e reprodução gráfica a elementos de
contemporaneidade tecnológica com métodos não tão modernos, ou, ao contrário,
métodos de reprodução completamente atuais, como scaners e impressoras
caseiras, com temas completamente arcaicos ou máquinas de escrever, e assim por
diante.
É em favor desta complexidade que trabalhamos para relativizar tanto a
tendência de discurso que afirma que um mundo organizado e puro está se
corrompendo pela contemporaneidade, quanto a que diz que tudo o que é
contemporâneo é mais interessante e valioso porque supera o que de arcaico,
prosaico, senil na nossa sociedade.
Ao contrário de ambas, entendemos o arcaicoeomoderno, na criação
fanzinesca, como elementos que se apresentam irremediavelmente amalgamados,
hora com predominância de um, de outro ou proximidades equivalentes sem que um
ou outro apresentem-se com suposta superioridade.
137
Neste sentido, Pinheiro acrescenta, referindo-se a George Yudice em seu
livro sobre o poeta Vicente Huidobro:
No es el tema sino la manera de producirlo que hace ser novedos.
Los poetas que creen que porque las máquinas son modernas,
también serán modernos al cantarlas, se equivocan absolutamente.
Si canto el avión com la estética de Victor Hugo, seré tan viejo como
él; si canto el amor com uma estética nueva, seré nuevo. (Pinheiro,
1995, p. 100)
O Brasil foi capaz de agregar, para permanecerem em convivência, costumes,
crenças, línguas, arquiteturas, vestimentas, literaturas, músicas, danças trazidas por
pessoas vindas da Península Ibérica, Norte da África, Europa e, mais recentemente,
Ásia.
Podemos observar nesse continente a mestiçagem de séries culturais
trazidas por imigrantes de diversos locais do globo terrestre que formaram, pela
imensa quantidade de diferentes formas de organização, um sistema de linguagem
onde os conceitos duais nunca puderam ser dominantes, a não ser dentro de
estruturas muito fechadas com o Estado, a Polícia, a Educação, etc.
Pinheiro esclarece esse comportamento que sempre se encontrou legível na
cultura do Brasil e América Latina:
Nossa conquista não foi realizada pelos que organizavam a
Renascença e o Iluminismo, mas pelas razões e desrazões
combinadas dos nômades, vagabundos e foras-da-lei ibérico-
indígeno-mouriscos que, sob a capa da unificação político religiosa,
138
praticavam, nas entradas, bandeiras e monções, atos de re-
assimilação verbal/cultural migratória onde a base era a festa erótica
das permutações entre o conhecido e o desconhecido, a descoberta
das múltiplas possibilidades que oé1nemtampouco 2.
(Pinheiro, 1995, p.22)
A função de uma fronteira é delimitar a penetração do externo no interno. É
um mecanismo de separação que serve não à organização do interno mas
também ao tipo de organização externa que este interno pretende.
O Brasil, pela tamanha complexidade dos seus povos colonizadores, sofreu
processos tradutórios que viabilizaram a incorporação, a metamorfose de textos
externos por fronteiras maleáveis, mutáveis, facilmente permeáveis.
Essa característica se tornou visível em muitos textos da nossa cultura, que
comporta-se como uma complexa estrutura de tradução intersemiótica com
fronteiras móveis, sobre as quais discorre Yuri Lotman:
Em los sectores periféricos, organizados de manera menos rígida y
poseedores de construcciones flexibles, deslizantes, los procesos
dinâmicos encuentran menos resistência y, por conseguinte, se
desarrollan más rapidamente. (Lotman, 1996, p. 30)
Essa tendência a abarcar, assimilar e traduzir informações com facilidade
gera uma “barroquização” geral dos textos culturais capazes de relações não
lineares, de hipérboles, de exageros, de proliferações em pequenos espaços, de
relações com o diferente, com o desconhecido que aparece em processos criativos
de diversas produções culturais.
139
Campos observa com maestria a treliça barroquizada que podemos observar
nos objetos da cultura nacional:
O almagesto barroquista é a transenciclopédia carnavalizada de novos,
onde tudo pode coexistir com tudo. São mecanismos que esmagam a
matéria da tradição como dentes de um engenho tropical, convertendo
talos e tegumentos em bagaço e caldo sumoso. (Campos, 1992).
Fanzine nos remete a barroquização pela sua organização não linear, não
hierárquica. São tantas a mesclas e voltas que, às vezes, o que salta aos olhos é
apenas a ilegibilidade.
Essa diversidade fanzinesca surge no país a partir dos anos 70 e, desde
então, utiliza noções técnicas e materiais disponibilizados pelas cidades sem sequer
mencionar, em toda sua história, o termo “direito autoral” por uso de imagens, letras
de músicas, histórias em quadrinhos, textos, cenas de cinema, etc.
O fanzine prolifera no Brasil no momento em que passa a manusear códigos
e linguagens extremamente elaborados por profissionais de outras áreas como o
jornalismo, as artes plásticas, o design, a H.Q, etc., e deixa para trás a fixação por
temas que envolviam unicamente a ficção científica.
A informação, depois de metamorfoseada pelo universo fanzinesco, deixa
poucos rastros que possibilitam distinguir exatamente o organismo assimilador da
diversidade dos materiais assimilados. No geral são treliças conseguidas por
aproximação de séries que estavam desconexas.
Mesmo sem pretensão aparente, ao explicitar a posição de seu olhar diante
do universo, e a partir das condições dos modos de produção, discutidos, o
140
fanzineiro oferece sua contribuição para a história das trocas e conexões entre os
sistemas e sub-sistemas da nossa cultura.
3. fã o quê? Fanzine
141
3. Fã o quê? Fanzine
Podemos entender que a rede de conexões destes editores esteve entre
ícones socialistas e anarquistas latino-americanos, bandas de rock de garagem,
filmes, imagens e estruturas urbanas, eventos literários, poesias, direitos humanos,
subversões, erotismo, experimentações plástica, etc.
No primeiro capítulo apresentamos a ausência bibliográfica sobre fanzines,
nomeamos a atitude do fanzineiro, a diversidade temática e de linguagens que
apareceram em diversos trabalhos, o tom das mensagens, a relação estrutural com
a cidade e o diálogo com a ciber-cidade, modos de produção, impressão e
distribuição e encerramos com apontamentos sobre a relação antropofágica que o
fanzine tem com o espaço, com a cultura.
A aparente possibilidade construtiva infinita assumiu forma quando pensamos
em restrições como tamanho do papel, impressão de baixa qualidade em xerox (que
rebaixam o aspecto gráfico destes trabalhos frente aos de designers aprendizes ou
renomados), alto-custo por folha impressa (comparando com impressões
profissionais em alta tiragem), etc.
É necessário, para entender fanzine, observar que este é um lugar que
acontece na relação entre linguagens e pessoas, nunca de maneira isolada, sólida,
auto-bastante e, por isso mesmo, obviamente, nem todas essas ligações acontecem
de maneira interessante, afinal sabemos que está no campo da testagem onde não
existem certezas, a não ser a de experimentar e desfazer até se alcançar, ou não, o
momento de entregar o fanzine ao público.
Iniciamos então o capítulo 2, das restrições, dos procedimentos construtivos
que são as soluções gráfico/editoriais que os editores encontraram, levando em
142
conta a tensão entre as infinitas possibilidades fornecidas pela diversidade de
linguagem e as inúmeras restrições geradas pela precariedade de sua produção e
meios de impressão e distribuição.
Encontramos soluções como a apropriação e a auto-apropriação, colagem,
experimentação levada às últimas conseqüências, sobreposição, moldura e
sangramento.
Por fim, com o olhar voltado para os elementos discutidos no primeiro capítulo
da diversidade temática e de linguagem em relação com os procedimentos
construtivos vistos no capítulo 2, chegamos ao procedimento de acúmulo, que não é
uma atitude estética, mas também uma necessidade de aproveitamento de
espaço que está relacionada ao modo de impressão dos exemplares como
discutimos naquele momento.
O desenho do procedimento acúmulo na página nos remete aos diálogos
sobre a América Latina como cultura barroquizada, que não teve uma infância
cultural clássica, mas aconteceu da proliferação de diversos elementos do complexo
processo civilizatório mestiço.
O grande desafio foi escolher os pontos dessa rede que deveriam aparecer,
afinal no momento em que tentamos fixar o tema, percebemos que ele dependia do
tom e vice-versa, quando pensamos diagramação, percebemos que não poderíamos
pensá-la fora dos modos de produção, e assim por diante. O fanzine apareceu
sempre como um tecido, do qual íamos puxando os fios e observando o
desencadeamento deste desfiar.
Fanzine é movimento, escapa a qualquer tentativa de fixação rígida, de
catalogação precisa. Ele se encaixa e se desencaixa com facilidade. Pouco se
teorizou sobre a mídia fanzine porque uma parcela significativa de estudos sobre
143
comunicação social se restringe à análise crítica dos meios hegemônicos de
comunicação de massa e descarta completamente as manifestações ‘marginais,
alternativas, autônomas e experimentais em comunicação.’ (Machado, 2002).
Porém, estudos sobre produção midiática praticada fora do circuito industrial
hegemônico são tão relevantes para a cultura quanto as análises das formas de
produção de comunicação de massa. São registros subjetivos de editores que
consomem, reciclam e publicam seu próprio cotidiano.
Nesse trabalho, fomos de um ponto ao outro questionando linguagem e
tecnologia para mostrar que o projeto fanzinesco é contemporâneo sem entretanto
estar fixado à linguagem, tecnologia e discussões ultra-modernas. Afinal, em seu
processo de construção sincrônico-diacrônico, ele constantemente recorre a
tecnologias consideradas ultrapassadas para gerar novas linguagens.
Observamos que a mobilidade imensa da diagramação abre espaço para
jogos combinatórios infinitos que permitem que as montagens verbais e visuais
possam ser exploradas ao limite.
Por mais que o aspecto geral da página se altere, o gênero fanzine não se
descaracteriza justamente pela ausência de padrão que se constitui como padrão e
nos permitiu, nesta pesquisa, o reconhecimento do queéedoquenãoéfanzine.
De fato, nos interessa, particularmente neste trabalho, romper com a restrição
do termo “alternativo” vinculado ao pensamento sobre a produção de fanzines no
Brasil.
Por isto, queremos aproximar o fanzine das ações de mídia tática que, no
Brasil, desde o final dos anos 90, constrói laboratórios de mídia e festivais de novas
mídias, como Mídia Tática Brasil, que ocorreu na casa das Rosas em São Paulo em
2003, e gerou o fanzine Copyrigh cu corporation comentado neste trabalho.
144
O conceito do termo mídia tática está fundamentado na atitude ‘faça você
mesmo’. Engloba as manifestações midiáticas alternativas, embora não se restrinja
apenas a esta categoria que, em termos de jornalismo impresso, no Brasil, refere-se
claramente a jornais que circularam fora das esferas hegemônicas durante o regime
militar entre 1954 e 1979, como apontou o jornalista Kucinski (1991).
Além do mais, mídia tática, embora ainda não seja ideal, abarca as
manifestações impressas, radiofônicas, cibernéticas, televisivas, cinematográficas e
performáticas que trabalham com o propósito de mediações abertamente parciais
com aparato técnico mínimo e custos irrisórios.
Tática porque procura fomentar a formação de mídias independentes que
possam interagir de maneira não passiva com a informação disponível nas cidades.
Isto separa decisivamente a mídia tática das mídias convencionais e abre novas
perspectivas de redes para intenções que se aproximam (como graffiti, sticker,
fanzine, sites, rádios livres, instalações de vídeo, etc.) mas que, teoricamente, não
na prática, encontram-se desarticuladas atualmente.
O centro ciberativista de mídia independente (www.midiaindependente.org),
CMI, é responsável por um site de notícias 24 horas, alimentado por denúncias,
textos e fotos de livre reprodução (copyleft), enviados de forma voluntária de
qualquer computador caseiro. Talvez este seja o único espaço nacional a levar a
sério discussões de manifestações de mídia tática no Brasil e América Latina, mas,
ainda assim, acreditamos que este termo possa representar uma saída temporária
do isolamento da mídia alternativa, para a relação entre propostas midiáticas de
baixo custo.
145
O termo fanzine e um de seus problemas
Fanzine é um termo que foi criado para denominar os primeiros exemplares
de revistas caseiras de histórias em quadrinhos sobre ficção científica.
Foi usado pela primeira vez em 1941 por Russ Chauvenet. Trata-se da
contração de duas palavras inglesas: fanact e magazine e significa revista de
fanático ou revista de .
A primeira vez que se ouviu falar destas publicações foi na década de 30,
com um exemplar de The Comet (ficção científica e “sub-literatura”) produzido por
Ray Palmer nos Estados Unidos (Abernaz,1995, p.13).
Essas revistas reuniram fãs em torno da temática ficção científica, mas
também publicaram uma espécie de ‘sub-literatura’ que não obtinha espaço na
imprensa formal norte-americana no início do século. The Comet, editado nos
Estados Unidos na década de 30 é considerado o pioneiro mundial, seguido de
Nova Terrae, fanzine inglês de Maurice Handon e Dennis Jacques.
Porém, a produção deste estilo se consolidou quase 40 anos após quando,
desprovida da obrigação com temas e fanáticos futuristas, foi re-concebida pelo
pensamento anarco-punk: ‘Do it yourself’.
Duncombe (1997) resume a história do fanzine concentrando-se nos traços
marcantes de cada época:
Em 1936 surge o primeiro fanzine de ficção. Nos anos 50, aparecem
os dedicado às bandas de rock, e, em seguida, ele se transforma
em elemento político chave no movimento de contracultura dos anos
60. Nos anos 70 foram uma forma do movimento Punk espalhar a
146
sua ética do “do-it-yourself” e nos anos 80 enfim, converte-se num
meio de escritores divulgarem os seus pensamentos, o que não
seria possível pelos meios comuns de comunicação de massas.
A idéia inicial de reunir pessoas em torno de interesses comuns através das
redes de trocas de revistas permaneceu, porém os interesses se multiplicaram e a
condição inicial de fã de ficção científica perdeu-se completamente.
Considerações finais
147
Considerações finais
Fanzine é um tema do campo da comunicação que merece ser aprofundado e
avaliado com maior minúcia. Iniciamos a pesquisa com a proposta de buscar uma
definição mais condizente com a linguagem do nosso objeto, avançamos
observando a diversidade e chegamos ao fim através do caminho trilhado por alguns
procedimentos construtivos.
Observamos durante o trabalho que a produção fanzinesca recolhida para
esta pesquisa, entre 2000 e 2007, é intensa e diversificada. Alguns exemplares são
datados de períodos anteriores a este porque tivemos acesso a coleções de outras
pessoas, como o fanzineiro Silvio Ayalaeofundador da academia piracicabana de
fanzines, Ivan Diniz, que guardam verdadeiras raridades do gênero fanzinesco.
Entendemos necessário ao menos mencionar nas considerações finais o
pouco que sabemos sobre a conservação fanzinesca oficial, que vai além das
coleções pessoais.
A memória, também na cultura, trabalha contra o esquecimento
desenvolvendo zonas de conservação. A fanzineteca nacional, ainda pequena e
tímida, está localizada em São Vicente, litoral de São Paulo e prioriza, sobretudo, o
recolhimento de fanzines de histórias em quadrinhos, certamente os mais veiculados
atualmente no país.
Outra tentativa relevante de conservação fanzinesca nacional, ainda não
exatamente uma fanzineteca, é a coleção do Coletivo Zinco, em Fortaleza, que
desenvolve discussões e ações fanzinescas semanais, em praças públicas da
capital cearense.
148
E, a rigor, a primeira fanzineteca do mundoéaFanzinothèque de Poitiers,
cidade medieval francesa onde morreu Joana D’Arc. Isto nos leva a crer que a
produção seja expressiva na França, embora não tenhamos grandes informações
sobre nenhum outro país fora da América do Sul.
Conseguimos, pela Internet, apenas contato com um fanzineiro de Lisboa, o
JB que edita o blog Fanzinex a fanzinar desde 1996, produz fanzine de papel, o
Sucedâneo, e alimenta uma discussão fervorosa entre editores que preferem
pronunciar a palavra no feminino: a fanzine, alegando que trata-se de uma revista,
ao contrário dele que, à moda brasileira, prefere a pronúncia no masculino: o
fanzine.
149
Não obtivemos o exemplar do Sucedâneo porque o contato não teve êxito,
mas observamos, por imagens no blog (http://fanzinex.blogspot.com), que esse zine
português é impresso em xerox sobre sulfite cor de rosa e também veicula, junto ao
exemplar, anexos avulsos como um CD-ROM sobre a história do automóvel
português, um postal, uma santa, Nossa Senhora do Tudo ao Molho, Fé… em Deus,
dentre outras coisas enigmáticas.
Produções como esta merecem um trabalho futuro quando poderemos, por
exemplo, verificar se o caminho que traçamos para ler linguagem de fanzines no
Brasil será de alguma utilidade para analisar experiências que acontecem fora daqui.
Interessa-nos também avançar nessa discussão estabelecendo uma pesquisa
comparativa entre procedimentos construtivos, através dos quais poderemos
observar, por exemplo, especificidades e relações da produção fanzinesca de um
país e outro.
Saindo do aspecto da conservação e projetando a produção fanzinesca para
o futuro, percebemos que é crescente o interesse de adolescentes e adultos em
vivenciar experiências midiáticas.
Um laboratório de fanzine é um espaço em que todos são artesãos. As
informações técnicas como o que é figura, o que é texto, o que é tipografia e quais
são as formas mais comuns de montar estes elementos, são fornecidas pelo
facilitador que deve incentivar a observação do trabalho de outras pessoas e a
experimentação de acordo com as buscas pessoais de cada participante.
Nestes espaços as trocas de fanzines são dinamizadas porque o oficineiro
geralmente oferece sua lista de contatos para os participantes, que passam a saber
que existem pessoas interessadas em receber e ler o que eles fazem. Mesmo mal-
150
feita, torta, ingênua, sua produção pode ser enviada pelo correio por carta social
(custa R$ 0,01), para outras pessoas que também fazem fanzines.
A maioria dos oficineiros são editores de fanzines, mas também facilitadores
destes laboratórios midiáticos que acontecem de maneira autônoma em garagens,
em praças, em casas de amigos; vinculados a propostas governamentais em
secretarias municipais e estaduais de cultura e educação; ou patrocinados por
instituições como Sesc, colégios particulares, ONG(s), etc...
As buscas se alteram com faixa etária do público participante, mas é possível
produzir laboratórios de fanzine com qualquer faixa etária, alfabetizada ou não.
Da minha experiência como facilitadora de oficinas de fanzine percebo que a
procura maior por oficinas vem do público jovem que tem entre 15 e 35 anos. O
interesse inicial em articular códigos verbais e visuais nasce também da
necessidade de desvelar, para entender, a prática dos sistemas usados pelos meios
impressos de comunicação de massas.
Após o primeiro contato com o processo de criação de zines, a necessidade
inicial de produzir as revistas copiando modelos pré-existentes desaparece, e abre-
se o espaço para a experimentação textual relacionada com a montagem de
materiais autorais ou retirados de jornal, revista, embalagens, etc., como
observamos anteriormente.
Ainda que de maneira precária, o participante da oficina atravessa etapas da
construção de uma revista formal: seleção de materiais, assuntos, pautas,
posicionamento ideológico do olhar, edição, editoração, reprodução e distribuição.
A partir desta experiência editorial, o oficinando geralmente descobre que o
jornalista, de maneira semelhante ao editor de fanzines, publica o retrato de seu
posicionamento parcial diante dos fatos cotidiano. Afinal, embora a imparcialidade
151
seja um preceito desejável no jornalismo, ela apresenta-se como meta, muitas vezes
inacessível porque o registro de cada um é como um mapa de um território: pode
não corresponder a real topografia da área desenhada.
O entendimento da parcialidade do olhar do jornalista altera a relação dos
jovens com a imprensa, que, num primeiro momento, tendem a rejeitá-la
completamenteeareagir como se estivessem sido enganados.
Entretanto, com a prática de editar, percebem a existência de relações
formais entre as duas propostas, e que os resíduos disponibilizados pela imprensa
são indispensáveis para o fanzine, na medida em que possibilitam muito da
diversidade de material necessária à sua produção.
A relação entre fanzine e imprensa se estreita nesse ponto, quando
oficinandos passam a observar os mecanismos de produção midiática da imprensa
formal, do que eles próprios produzem, dos fanzines que chegam pelos correios, e
iniciam, finalmente, a prática de pensar sobre comunicação de maneira relacional e
de agir, taticamente, no processo de metamorfose da avalanche de informações
disponibilizadas pela cultura.
bibliografia
152
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