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teatro
Domingos Pellegrini
O mundo em que vivemos está
em constante mudança. As famílias
tradicionais, com pais, mães, fi lhos e
um casamento para a vida toda, es-
tão passando a conviver com as cha-
madas famílias compostas, formadas
por pais com fi lhos de mais de uma
relação. Nesta peça, Domingos Pel-
legrini aborda um decisivo momento
na vida de uma dessas famílias mo-
dernas. Um momento marcado por
decisões que podem mudar defi nitiva-
mente a vida de todos os envolvidos.
Em Família composta, o autor
promove, de forma bem humorada,
uma refl exão sobre a importância de
se adaptar às rápidas e profundas
mudanças impostas pela sociedade
e de estar preparado para se reno-
var, sem preconceitos e resistências,
para uma convivência melhor. Com
uma mistura de comédia de costu-
mes com teatro de vanguarda, o tex-
to faz com que o leitor (ou expecta-
dor) ria de suas próprias atitudes e,
ao mesmo tempo, consiga se olhar
criticamente e repensar a vida.
E depois de quase morto
a gente enxerga tudo
com outros olhos, e muda
endireita o que era torto
ajeita o que era sem jeito
aceita o inaceitável
e só com o preconceito
se mantém intolerável!
Família composta Domingos Pellegrini teatro
Domingos Pelle grini é um pro-
ssional multivariedades. O escritor,
jornalista e publicitário paranaen-
se tem 40 livros de diversos estilos:
contos, crônicas, romances e poe-
mas para crianças, jovens e adultos.
A versatilidade e o texto acurado e
criativo renderam ao autor, nascido
em 1949, reconhecimento nacional
como um dos maiores escritores
brasileiros da atualidade. Duas de
suas obras – o livro de contos O Ho-
mem vermelho, de 1977, e o roman-
ce O Caso da Chácara Chão, de 2001
– foram vencedoras da mais impor-
tante e tradicional premiação literá-
ria nacional, o Prêmio Jabuti.
Família
composta
Foto: Carmen Kley
COLEÇÃO LITERATURA PARA TODOS
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Família composta
I Concurso Literatura para Todos
Consultora Pedagógica
Ira Maciel
Comissão de Pré-seleção das Obras
Cristiane Costa
Heitor Ferraz Mello
Júlio César Valladão Diniz
Maria da Luz Pinheiro de Cristo
Comissão Julgadora
Antônio Torres
Heloisa Jahn
Jane Paiva
Lígia Cademartori
Magda Soares
Marcelino Freire
Milton Hatoum
Moacyr Scliar
Rubens Figueiredo
Ministério
da Educação
Esplanada dos Ministérios
Bloco L – 7º andar – Sala 710
www.mec.gov.br
Família composta
Domingos Pellegrini
teatro
1
a
Edição
Brasília – 2006
Título original: Família composta
Autor: Domingos Pellegrini
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ano 2006
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610
de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro poderá ser
reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios
empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gra-
vação ou quaisquer outros sem autorização prévia por
escrito do Ministério da Educão ou do autor.
Pellegrini, Domingos.
Família composta / Domingos Pellegrini. – Brasília :
Ministério da Educação, 2006.
68 p. : il. ; 18 cm. -- (Coleção literatura para todos ; v. 7)
ISBN: 85-296-0049-5
1. Teatro brasileiro. 2. Literatura brasileira. I. Título.
CDD B869.2
CDU 821.134.3(81)-2
P386
7
Índice
Apresentação 8
Prefácio 10
Personagens 13
Peça teatral 15
Entrevista com o autor 58
8
Carta ao leitor
Caras leitoras e caros leitores,
É com enorme satisfação que apresento
a Coleção Literatura para Todos, pensada e
escrita especificamente para vocês, alunos
e alunas do Programa Brasil Alfabetizado e
alunos e alunas que estão dando continuida-
de a seus estudos nas salas de aula de educa-
ção de jovens e adultos.
Esta coleção, composta por dez livros – po-
esia, conto, novela, crônica, tradição oral, bio-
grafia e peça teatral –, é fruto de um concurso
nacional lançado em 2005 pelo Ministério da
Educação. As obras foram escolhidas entre os
mais de dois mil textos submetidos à comissão
julgadora. Muitas pessoas foram envolvidas
no processo de criação, o que representou um
verdadeiro mutirão, um esforço coletivo. Mas
quais os motivos que levaram o Ministério a
realizar o Concurso Literatura para Todos e
agora lançar a Coleção Literatura para Todos?
A primeira resposta é dada pelo próprio
título do concurso e da coleção – Literatura
para Todos. O Ministério acredita que o aces-
so ao livro e à leitura é um direito de todos.
Nós todos temos o direito de ler e ter acesso
9
a livros da mesma forma que a Constituição
Federal nos garante o direito à educação. Por
isso, em 2003, o governo criou o Programa
Brasil Alfabetizado, para garantir, aos jovens
e adultos que nunca tiveram esse direito, a
oportunidade de aprender a ler, escrever e fa-
zer as operações matemáticas básicas.
Acima de tudo, o Ministério foi motivado
por acreditar que o acesso ao livro e a cria-
ção do hábito de leitura são essenciais para
fortalecer a nossa cidadania e também como
alicerce para outras aprendizagens. A leitura
nos permite entender melhor o mundo a nossa
volta e conhecer melhor também quem somos
nós. Por meio da leitura, ganhamos acesso a
outras informações e novos conhecimentos.
A Coleção Literatura para Todos visa, as-
sim, oferecer um conjunto de livros, produ-
zido com muito carinho e zelo, que propor-
cionará a vocês leitores um grande prazer – o
prazer de ler, de viajar, de criar e de fazer parte
de uma nova comunidade: a de leitores. Pelo
menos, é assim que esperamos. Brasil, país de
todos – Brasil, comunidade de leitores!
Secretaria de Educão Continuada, Alfabetizão e Diversidade
Minisrio da Educação
10
Precio
Família composta é um livro que fala um
pouco da nossa vida e a das pessoas que nós
conhecemos. Um texto que trata de afetivi-
dade, problemas de relacionamento, família,
amor, valores sociais, poesia, meios de co-
municação, enfim, coisas do dia-a-dia dos
brasileiros.
Existem diferentes maneiras de escrever
um texto. Este livro, Família composta, per-
tence ao que nós chamamos de dramaturgia,
ou seja, um texto que pode ser lido e ao mes-
mo tempo encenado no teatro ou transfor-
mado em filme. O leitor vai observar desde
o início que ninguém conta nada sobre as
personagens, não há um narrador. Das cin-
co personagens, quatro pai, filha, poeta e
mãe – dialogam entre si e mostram o que são,
sentem e querem diretamente ao leitor. Já a
fala do homem da tevê está mais pxima do
monólogo, uma maneira crítica que o autor
encontrou para refletir sobre a vida moderna
e suas transformações.
11
Nesse tipo de texto há um recurso que é
fundamental: o uso das rubricas, as indica-
ções que aparecem entre parênteses e defi-
nem o comportamento das personagens, es-
tados de esrito e dicas de cenário.
Outra característica de Família compos-
ta é a utilização de elementos da comédia de
costumes lado a lado com os da dramaturgia
de vanguarda, misturando o dlogo do coti-
diano familiar com a linguagem empregada
pelos meios de comunicação, em particular a
televio.
A trama deste livro é muito bem costura-
da. O autor constrói, a partir de duas situações
dramáticas, a maternidade da filha e a sepa-
ração do pai, uma história cotidiana e fami-
liar com muita sensibilidade, crítica e humor.
Destaque para a entrada em cena do poeta e
da mãe, personagens que mudam o rumo dos
fatos. Em relação ao homem da tevê, bem, fica
para os comentários de vocês, leitores. Apro-
veitem! Boa leitura porque o livro vale a pena.
lio Diniz
Comissão de pré-selão
I Concurso Literatura para Todos
12
13
Personagens
Pai
Filha
Poeta
Homem da tevê
Mãe
Ratinho
Sombra
14
15
PAI ESTÁ NA SALA, EMBALANDO NENÊ (BONECO
ENROLADO EM PANOS QUE NÃO PRECISA APA-
RECER PARA O PÚBLICO) NOS BRAÇOS, E FALA
ALTO PARA FILHA QUE SE ARRUMA E SE MA-
QUIA EM OUTRO APOSENTO.
PAI:
Eu te falei que se este ne urinar em
mim mais uma vez, eu deixo ali no sofá e
não quero nem saber! E você nem me apa-
reça arrumadinha e pintadinha, prontinha
pra sair, que só se for levando o filho que
você pariu; quem pariu que embale!
(BAIXO,
EMBALANDO O NENÊ E SORRINDO):
Mas nem
precisa embalar, que você dorme tão fácil,
né, meninão lindo, minha mãe dizia que eu
também era um nenê tão dorminhoco que
um dia ela me levou na roça, pra ajudar meu
pai a colher café, e eu fiquei tão quietinho
no cesto que esqueceram de mim, voltaram
pra casa e me deixaram lá!
(GRITANDO PARA
A FILHA):
E o jogo vai começar, o jogo vai
começar, faça-me o favor!!
FILHA: Ai, pai, pára de fazer drama, de tudo
você faz drama!
PAI: Ah, é? Que nem quando você saía pra
festinha e eu te avisava, “olha, cuidado com
16
essa rapaziada, que homem é tudo sem-
vergonha, cuidado”, e você dizia que eu
fazia drama e que a vida é mais comédia
que drama, mas agora, olha só se eu não
estava certo, eu aqui com o resultado da
comédia e não é nada engraçado, não, e até
fede, de vez em quando enche a fralda e eu
tenho de trocar que a mãe tá batendo perna
ats de emprego!
(BAIXINHO AO NENÊ): Né,
seu cagão, enche a fralda, né, mas o vô
limpa legal, né?
FILHA: Ah, pai, você devia agradecer por ter
um neto lindo, isso sim, agradecer em vez
de reclamar! Você não dizia que eu era uma
avoada, que só pensava em festa e diversão,
mas hoje, veja só, eu amadureci com esse
nenê, procuro emprego e ainda vou cuidar
de você na velhice! Vou comprar guardana-
po de pacote pra limpar sua baba, pai, pode
confiar! E, se um dia você ficar que não pu-
der nem limpar depois de fazer cocô, eu vou
limpar você, te prometo, pode confiar, você
vai ter de troco tudo que está fazendo por
meu filho, ou melhor, seu neto, né...
PAI: Muito engraçadinha... Mas vê se anda
logo que eu quero ver o jogo, já falei, eu
17
deixo esse guri no chão e vou ver meu jogo!
(AO NENÊ): Mentirinha, viu, meninão?! (À FI-
LHA):
E não precisa se preocupar com mi-
nha velhice que eu não fumo nem bebo, viu,
que nem o pai do teu filho que te deixou na
mão com a barriga cheia, eu não bebo nem
fumo, não vou ter derrame pra ficar baban-
do, viu?! Muito menos vou ficar sem poder
me limpar depois de fazer cocô!
FILHA: Não sei, foi você mesmo que me en-
sinou a nunca dizer “desta água não bebe-
rei”, ou melhor, “desta sujeira não me suja-
rei, né...
PAI: Para de brincadeirinha que eu não es-
tou brincando, vem logo que vai começar
o jogo, e eu não consigo ver jogo com este
nenê no colo!
FILHA (PASSANDO PARA A SALA): Você não
consegue é tomar cerveja com o nenê no
colo, né pai, porque precisa ir pra geladei-
ra a cada cinco minutos! E depois diz que
não bebe...
PAI: Duas latinhas no primeiro tempo, mais
duas no segundo tempo, isso não é beber,
é hidratar!... E peraí, onde é que você pen-
18
sa que vai toda produzida assim?! Parece
uma árvore de natal de tanto brilho! Eu já
falei que...
FILHA: Acalme-se, não vou sair não, pai, va-
mos receber uma visita.
PAI: Na hora do jogo?! Ah, não, vo me avi-
sasse antes! Esse jogo é decisivo e... Antes
de tudo, toma teu filho!
(PASSA O NENÊ PARA
ELA, QUE O DEIXA NO BERÇO)
Quando é pra me
dar o nenê, você diz que ele detesta ficar no
berço. Quando te dou, você bota no berço!
FILHA: Ele tá dormindo, você já podia ter
deixado no berço. Eu acho é que você gosta
de embalar ele, pai... Embala, embala, aí ele
dorme, depois fica acordando de noite pra
me infernizar.
PAI: Ah, claro, eu sou o culpado de tudo.
FILHA (DANDO-LHE UM BEIJO NA BOCHECHA):
o, você é o melhor pai do mundo e o me-
lhor avô do mundo também, pelo menos
para mim e para o meu filho.
PAI: Não me venha com conversa doce, não,
que alguma coisa você armando, te co-
nheço! Quem é essa tal visita?!
19
PAI LIGA A TEVÊ (O HOMEM DA TEVÊ APARECE
EM VÍDEO GRAVADO, QUE CONGELARÁ E VOL-
TARÁ SEMPRE QUE O PAI ACIONAR O CONTRO-
LE REMOTO).
HOMEM DA TEVÊ: Na Alemanha, um agri-
cultor processou o governo porque o ca-
minhão do correio passa em frente a seu
estábulo, buzinando para alertar os mora-
dores da aldeia de que a correspondência
está chegando à agência postal. O agricul-
tor alega que a buzina afeta a produtivida-
de de leite das vacas! E não perca no próxi-
mo bloco: continua aumentando omero
dees adolescentes, um novo fenômeno
social que desafia pais e educadores! Os
últimos dados revelam que...
PAI (AO HOMEM DA TEVÊ): É, eu sei, eu sei!
(DESLIGA A TEVÊ) Ainda não acabou o noti-
ciário, mas já já começa o jogo, então você
leva essa tua visita lá pra cozinha e...
TOCA A CAMPAINHA. PAI OLHA PELA JANELA.
PAI: Mas... mas é o filho duma égua daquele
poetinha de meia tigela que te engravidou!
Cadê o pau do pilão?
20
FILHA:
Pai, escuta, pai!
PAI (PEGA PAU DO PILÃO): Esse pilão é tudo
que tua avó me deixou, e nunca usei, mas
agora ao menos o pau do pilão eu vou usar!
Vamos ver se sai muita poesia ou o que sai
daquela cabeça!
(INDO PARA A PORTA, É DETI-
DO PELA FILHA)
.
FILHA: Pai, ele vai me pedir em casamento!
PAI: O que?!
FILHA: Ele vai me pedir em casamento pai,
e reconhecer nosso filho!
PAI: E vai morar aqui?! E eu vou sustentar
mais um?! Porque aquele traste não tem
um gato pra puxar pelo rabo e mora num
quartinho da casa da mãe com mais sete
irmãos! Se você acha que eu vou sustentar
mais um, pra viver aqui encostado que nem
cipó em peroba, ah, não vou não! Eu jogo
no meio da rua e soco que nem minha mãe
socava paçoca no pilão!
FILHA: Pai, pelo amor de Deus, se quer a mi-
nha felicidade, escuta ele, pai!
PAI: Escutar ele? Eu escutei bem quando fui
falar pra ele que você estava grávida dele e
21
perguntar o que ele ia fazer, e ele me falou
“pois é, eu acho que o que tinha de ser feito
já tá feito, né”... Eu esgano o desgrado se
abrir a boca pra dizer que quer casar com
você pra virar morar aqui!
FILHA: Pai, alguma vez eu te menti?!
PAI: Não, só me escondeu a verdade!
TOCA A CAMPAINHA.
PAI (GRITANDO PARA FORA): Já vai, filho duma
égua, tá com pressa por quê? Muita poesia
urgente pra fazer?!
FILHA: Pai, nunca te menti e garanto que
ele não vem te pedir pra morar aqui! Então
te peço que atenda, pai, com o mesmo res-
peito com que você atende mendigo e cata-
dor de lata. Será que o pai do teu neto não
merece ao menos um mínimo de respeito?
PAI: Ah, sim, eu tenho de respeitar quem
encheu o bucho da minha filha, me botou
um neto no colo e não quis nem saber de
fazer nada porque tudo “já estava feito”,
que beleza, pra rei dos trouxas só me falta
a coroa, né? Será que ele tá me trazendo a
coroa? Será que é de prata, de lata ou de
cocô de barata?!
22
PAI: Pai, pelo amor de Deus, pela memória
da mamãe...!
TOCA A CAMPAINHA. PAI RESPIRA FUNDO, LAR-
GA O PAU DO PILÃO E VAI PARA A PORTA.
PAI: Filho duma égua sarnenta... (RESPIRA
FUNDO, ABRE A PORTA SORRINDO FORÇADO)
Boa noite...
POETA:
Boa noite, querido sogro!
A vida imita a arte
quando nos dá um malogro,
mas também, por outra parte,
é como uma viagem
com a graça inesperada
de poética paisagem
depois da curva da estrada!
PAI: Ptica paisagem... Cadê o pau do pi-
lão?!
FILHA: Pai! (AO POETA): Entra, entra, veja
quem está ali no berço!
POETA (ENTRA, OLHA O NENÊ NO BERÇO, DE-
CLAMA ENQUANTO O PAI SE EXPRESSA POR CA-
RETAS E CONTORSÕES):
23
Eis o sangue do meu sangue
poema do meu desejo
e fruto dos nossos beijos!
Caro sogro, não se zangue
se eu disser que se parece
com meu pai, cantor famoso
de cabas e quermesses
Ah, como fico orgulhoso...
PAI: Deixa eu ficar aqui perto do pilão... Ci-
dadão, depois do que o senhor fez com mi-
nha filha, espero que se explique logo e...
POETA:
Antes de tudo, deixemos
bem claro que nada fiz:
entre nós dois houve apenas
o que sua filha quis!
Primeiro fui seduzido
por ela – Não é, mainha? –
e depois fui convencido
a transar sem camisinha!
FILHA: É verdade, pai!
PAI: Você... É verdade? Você é que quis ter
um filho com ele?!
24
FILHA:
É verdade, pai. Eu vi ele declamando
numa festa, eu me apresentei, eu procurei
ele depois, várias vezes, eu trouxe ele aqui
em casa quando você estava trabalhando...
PAI: Você trouxe ele aqui em casa?! Vocês
fizeram esse filho aqui? Só falta dizer que
foi no meu colchão!
POETA:
Eu falei: meu bem, não vamos
usar a cama do sogro
pois vai que ele volta logo...
e, além disso, quem ama
ama em qualquer lugar
então que tal namorar
ali no velho sofá?
FILHA: Não, pai, eu queria um filho! Desde
que a mãe morreu eu sinto que você sente a
casa vazia, a vida vazia, eu via você morren-
do dia a dia, pai, de tristeza, de desconsolo, e
ouvindo o meu amor falar poesia eu vi a luz,
eu vi que um neto ia iluminar a sua vida!
PAI: Você está brincando? Só falta me dizer
que eu estou em dívida com vocês, que eu
preciso pagar a vocês por terem me dado
um neto!
25
POETA:
Fique tranqüilo, a mim
o senhor nada deve, mas
reconheça o quanto traz
de alegria um neto assim!
PAI: Você não pensou que podia ter um fi-
lho com alguém que não fosse um saco de
rimas?! Você nem parou pra pensar que ele
não tem um gato pra puxar pelo rabo e... Não,
eu não quero saber, vocês façam o que qui-
serem, eu vou ver meu jogo que deve estar
começando! Eu não entendo mais nada, eu
sou do tempo do namoro, quando a gente co-
meçava pegando na mão, demorava ums
pra beijar, casava virgem e tinha filhos só
depois de nove meses no mínimo! Hoje, não,
ninguém namora mais, todo mundo só fica,
né. Fica um dia com um, um dia com outro,
então vocês fiquem como quiserem, que eu
vou ver meu jogo, com licença!
(LIGA A TEVÊ).
HOMEM DA TEVÊ:
O IBGE divulga pesquisa
revelando que a família composta tornou-
se maioria no país, ou seja, aquela família
formada por pais já descasados e casados
novamente, o casal morando com filhos de
casamentos anteriores...
26
FILHA (DESLIGA A TEVÊ):
Tá vendo, pai? Tudo
mudou!
PAI: E você também pode mudar na hora
que quiser! É só pegar seu filho...
FILHA: Seu neto, pai! Seu sangue!
POETA (AGACHADO AO LADO DO BERÇO):
Sangue seu, sim, de fato
dá para ver nas canelas
tão finas, e pés tão chatos
como os das suas chinelas!
PAI (FALANDO PARA O PILÃO): Minha mãe, que
tanta paçoca fez nesse pilão, me ilumina, me
diga por que é que não pego esse pau e...
FILHA: Escuta, pai, a nossa proposta!
PAI: Ah, eles têm uma proposta! E proposta
rima com que?!... Eles têm uma proposta!...
FILHA: Escuta, pai, por favor, como a mãe
dizia: escutar não custa nada, muito mais
custa falar demais!
PAI: Tô escutando, tô escutando, pode falar,
senhor poeta, só não me peça pra aplaudir
depois, né, como aplaudem o senhor aí nos
botecos da vila e lhe pagam cerveja, não
27
me peça aplauso não, viu, e se quiser to-
mar cerveja...
FILHA (AJOELHANDO): Escuta, pai, quer que
eu implore? Eu imploro, escuta nossa pro-
posta!
PAI (LARGA O PAU DE PILÃO, SENTA): Vossa pro-
posta... escutando.
POETA (PIGARREIA, OLHA O PAPEL QUE DEVOL-
VE AO BOLSO):
Meu sogro, esta sociedade
à poesia só dá valor
se o poeta for ator
e tiver notoriedade!
Meus livros só venderei
se for parado na rua
por gente que diga “a tua
cara já vi na tevê”!
FILHA: Fala logo, amor, a proposta!
PAI: E proposta rima com isso que o nenê
faz toda hora...
POETA:
É a era do espetáculo!
E a telinha é o oráculo
28
das massas, o rei é o Jô
a Hebe é sacerdotisa
o Sílvio é o santo maior
e a poesia só dá camisa
a quem na tela se expor!
FILHA: Eu falo, pronto! Pai, a gente quer
que você vá ao Programa do Ratinho junto
com a gente!
PAI: Eu?! No Programa do Ra-ti-nho?! Pra
que?!
FILHA: Pro teste de DNA, pai!
PAI: Mas o filho não é meu, é dele!! O pé cha-
to pode ser meu, mas o filho é dele, não é?!
POETA:
o é só questão genética:
é o teatro da ética
da donzela e do vilão
que pode virar mocinho
se assumir o nenezinho
ganhando a galera então!
PAI: Pois boa sorte, podem ir! E já vai de
mala e cuia, viu, filha? Leva o nenê, vão já,
peçam lá pro Ratinho ser padrinho, que o
menino decerto vai ganhar o nome do pai,
29
né, então vão registrar de novo, né, podem
fazer uma festa, com padrinhos e tudo, que
nem você queria que eu fizesse, então agora
façam, façam o que quiserem, que eu vou é
ver meu jogo!
(LIGA A TEVÊ)
HOMEM DA TEVÊ:
A ONU divulga relatório
sobre o trabalho infantil, que vem dimi-
nuindo, mas ainda flagela centenas de mi-
les de crianças em todo o mundo, am
de outras formas de exploração infantil!
PAI (DESLIGANDO A TEVÊ E LEVANTANDO BRA-
VO):
Taí, ó, exploração infantil! E querem
saber duma coisa? Meu avô dizia que se o
coador não côa, a dentadura tem que coar!
Se os pais não cuidam, avô tem que cuidar!
Última forma! Não vão levar o nenê coisa
nenhuma, expor o meu neto ao vexame pú-
blico, ainda mais no Programa do Ratinho,
o coitadinho é até capaz de apanhar!
FILHA: Pai, pára de prejulgar! Como dizia
a mãe, você só prejulga e vive vendo tudo
errado!
PAI: E você pare de me jogar contra sua
mãe que ela não está aqui pra te desmentir!
Quem apela pros mortos tá sem rumo na
30
vida! Eu não prejulgo nada, eu vejo com os
olhos o que tá batendo na vista!
FILHA: Então saiba, pai, que ninguém pen-
sou em levar o nenê, queremos levar é o
senhor!
PAI: Eu?! E-u?! No Programa do Ratinho?
No quadro do DNA do Programa do Rati-
nho, eee-uuu?!!!?
POETA (QUE ANDOU FAZENDO CARETAS E CON-
TAS MÉTRICAS NOS DEDOS A VERSEJAR):
Sogro, creia no poeta:
a peça só é completa
com todos os personagens!
A donzela com seu filho
o poeta com seu brilho
o avô chato e ranheta
e a avó cheia de coragem!
PAI: Me belisca, pilão, que deve ser um pe-
sadelo! Minha filha, você está pensando em
levar sua mãe no Programa do Ratinho?!
FILHA: Pai, você diz que ela morreu, mas
você sabe que ela está muito viva! O Dalvo
acha que assim vai funcionar melhor, pai,
porque todo mundo vai lá e briga e xinga,
aquela pancadaria toda, e nós podemos fa-
31
zer diferente, a mãe dando a maior força e
convencendo você de que...
PAI: Peraí, “a avó cheia de coragem” con-
vencendo “o avô chato e ranheta” de que a
família combosta, ou composta, é melhor,
certo? E a sua mãe vai posar de bondosa
e corajosa depois de ter me chifrado e me
abandonado vergonhosamente enquanto
eu viajava a trabalho!?
POETA (CONSULTANDO ANOTAÇÕES):
Meu sogro, esses adornos
que a vida às vezes nos dá
e que chamamos de cornos
na verdade são medalhas
que só vem valorizar
quem assim tanto trabalha
pois é trabalho chorar
e sofrer por quem se ama!
O público saberá
reconhecer vossa alma
compreensiva, e da
aquele aplauso que acalma
a mais profunda amargura
e terás enfim a cura
que o teu coração reclama!
32
33
PAI:
Escuta aqui, seu bostoeta, e você, sua
irresponsável que eu tanto preveni, mas
não me escutou, se quiserem ir ao Ratinho
ou se quiserem ir pro meio do inferno, vão,
mas não contem comigo! Nada nem nin-
guém vai me convencer a participar daque-
la baixaria, nem se for pro meu neto ter um
pai, ninguém vai me convencer!!!
FILHA: Nem a mãe, pai? (PEGA O NENÊ NO
BERÇO)
TOCA A CAMPAINHA.
PAI:
Tua mãe?! Não vai me dizer que você
convidou tua mãe para...
FILHA SAI COM O NENÊ.
POETA:
Meu sogro, a vida logra
nos envolver em tais peças
que o melhor é esquecer logo
para esfriar a cabeça
aceitando as cicatrizes
e jogando enfim o jogo
se quisermos ser felizes!
TOCA A CAMPAINHA, POETA ABRE A PORTA E
SAI. ENTRA A MÃE (MESMA ATRIZ QUE INTER-
34
PRETOU A FILHA, COM PERUCA GRISALHA E OU-
TRAS ROUPAS E POSTURAS).
MÃE: Boa noite. (OLHAM-SE LONGAMENTE.
ELA VAI AO BERÇO, AGACHA)
Que lindo! É a
tua cara!
PAI: Não, são só os meus pés! E será que eu
estou ficando louco? Vou me beliscar pra
ver se é verdade! Quem sabe eu deva bater
com o pau do pilão na cabeça pra acordar!
MÃE (RI): Você continua engraçado! Foi por
isso que me apaixonei por você, sabia? Tanto
moço mais bonito, mais forte, até moço rico
tinha afim de mim, mas eu me interessei por
você porque você me fazia rir, sabia?
PAI: Ah, eu devo mesmo ser um palhaço, pra
ficar aqui olhando pra tua cara enquanto
você ri de mim! Como é que você tem co-
ragem de, depois de anos, chegar aqui de
repente, dizendo boa noite como se nada
tivesse acontecido?!
MÃE (LEVANTANDO-SE E ENCARANDO): Mas
nada aconteceu mesmo, meu ex-marido.
Nada aconteceu quando eu te pedi para tra-
balhar menos e ficar mais comigo, falei que
35
não era preciso a gente ganhar mais, mas
viver mais. Nada aconteceu quando eu te
procurava na cama e você se encolhia suspi-
rando de cansaço. Nada aconteceu quando
te falei que você podia usar melhor as tar-
des de domingo em vez de ficar vendo tele-
visão e se enchendo de cerveja. Nada acon-
teceu quando eu te convidei pra passear de
bicicleta, fazer jardinagem, fazer gistica,
fazer caminhada, ir dançar no baile do bair-
ro, nada aconteceu! Ou melhor, aconteceu
que você foi ficando barrigudo e eu ficando
cheia de você! E aí aconteceu que te convi-
dei pro curso de dança de salão e você fa-
lou que já sabia dançar, e lá fui eu parar nos
braços de alguém que viu em mim a mulher
que você não via mais. Aí, aconteceu!...
PAI (HUMILDE): É, acho que eu até mereço
ouvir tudo que você falou aí...
(ELEVANDO A
VOZ)
O que não posso aceitar é que, depois
de tantos anos sem eu deixar faltar nada em
casa, você foi embora sem falar nada...
MÃE: Mas queria que eu falasse o quê? E
você ia aceitar alguma coisa que eu disses-
se? Você sempre se achou cheio de razão,
nada do que eu dizia você ouvia, sempre
36
37
38
dizendo que você é que tinha razão, eu fa-
lando que a vida não é só comida na mesa
e você dizendo que comida na mesa é que
é o mais importante, até que eu vi que você
queria mais ter razão do que ser feliz...
PAI (HUMILDE): Hoje posso até reconhecer
que você tinha razão em achar que eu que-
ria ter razão demais, mas...
(ELEVANDO A
VOZ)
agora o que não posso aceitar é você
voltando pra me convencer a ir pra televi-
são participar de baixaria pro teu genro
acontecer como poeta, que maravilha! Eu
devia era estar vendo meu jogo, com licen-
ça!
(LIGA A TEVÊ).
HOMEM DA TEVÊ: Pesquisa da Unicef revela
que, além da alimentação incorreta e do es-
tresse, uma das principais causas de enfar-
te são as chamadas emoções reprimidas,
como o remorso, o ódio, a inveja, a amar-
gura ou rancor, que podem também levar à
depressão! A pesquisa...
PAI (DESLIGA A TEVÊ): Pois saiba que eu não
tenho rancor nenhum, depressão muito
menos, levo uma vida ótima e... Ai!
(CURVA-
SE COM A MÃO NO PEITO)
Ai!
39
MÃE:
Que foi?!
PAI: Nada, uma pontada, só uma pontada,
ai!
(DEITA NO SOFÁ)
MÃE
(GRITANDO): Dalvo, Dalvo!
PAI: E, além de poeta, se chama Dalvo! Eu
mereço, devo ter feito muito mal a algum
poeta em alguma outra vida... Ai!
MÃE: Fica quieto, não fale! Daaaalvooooo!
PAI: Lembra quando a gente casou e fazia
amor neste sofá, lembra?
MÃE: Lembro, antes de você ficar vendo tevê
e tomando cerveja até dormir aqui mesmo!
PAI: Me perdoa! Ai, parece que estão me
enfiando uma faca!
MÃE: Faca vão te enfiar é na mesa de ope-
ração se for o que estou pensando. Fica
quieto!
POETA ENTRA, DEPARANDO COM PAI DEITADO NO
SOFÁ E MÃE SENTADA DEBRUÇADA SOBRE ELE:
Que cena linda, a vitória
do amor e do perdão
mostrando que o corão
é quem manda em nossa história!
40
MÃE:
Manda vir o Siate, isto sim! Acho que
ele tá tendo um enfarte!
POETA:
Meu celular é pré-pago
e está momentaneamente
sem crédito, acredite!
PAI:
Me faz, meu bem, um afago...
Lembra o tempo em que a gente
se amava até no tapete?...
POETA (DISCANDO TELEFONE FIXO): Rimou!
Acredite com tapete, é rima tonante, mas
é rima! Só pode ser sinal de Deus, ele vai
se salvar! E vai ao Ratinho com a gente,
contar que o perdão e a poesia lhe salva-
ram a vida!
Alô? É do Siate?
Venham já, por favor,
à Rua dos Abacates
esquina com Melancia!
Meu sogro tá com enfarte!
DESLIGA O TELEFONE.
Não morra, sogro, ainda!
Te farei uma poesia
Serviço
Integrado de
Atendimento ao
Trauma e
Emergência;
serviço de
ambulâncias
do Governo
do Paraná.
41
com toda a minha arte
pra recitar muito linda
no Programa do Ratinho!
PAI:
Estou vendo só pontinhos
girando na escuridão...!
POETA:
o os pontos da audiência
do nosso sucesso imenso,
sogro, na televisão!
MÃE: Se ele morrer, vou sentir muito re-
morso!
PAI: Não estou vendo mais nada!...
POETA (ENQUANTO SE OUVE SIRENE DO SIATE):
Mas verá seu genro alçado
ao céu das celebridades
e superadas as mágoas
minha poesia afinal
vendendo mais do que água
mineral ou pão de sal!
MÃE: Ele tá ficando roxo!
POETA:
Se morrer, fazer o quê?
42
A gente diz pro Ratinho
que a felicidade é
um tortuoso caminho
que alguns não vencem não
e outros conseguem vencer
com perdão no coração!
PAI: Ca o pau do pio?! Aaaaaaaaaaaai!!!
CORTE DE LUZ. NA ESCURIDÃO, FAMÍLIA CANTA
PARABÉNS PRA VOCÊ. LUZ: EM CENA, DIANTE DE
BOLO CUJA VELINHA A FILHA ACENDE, ESTÃO
ELA, O PAI E O POETA.
FILHA: Pena que o nenê está dormindo, se-
não ia ver seu primeiro bolo de aniversário!
POETA:
Primeiro ano de vida:
a página de um caderno
que depois de cada inverno
tem primavera florida!
PAI:
E depois de quase morto
a gente enxerga tudo
com outros olhos, e muda
endireita o que era torto
ajeita o que era sem jeito
43
aceita o inaceitável
e só com o preconceito
se mantém intolerável!
FILHA: Ai, pai, quem te viu e quem te vê!
Até agora não entendo como é que você
acordou da cirurgia só falando em forma
de poesia!
PAI:
Já te contei, minha filha
quando eu era rapazote
cantava lá os meus motes
fazia os meus
estribilhos,
mas por medo ou por vergonha
engavetei o talento
e a chave então joguei fora
até ver que cada sonho
faz parte do esqueleto
das carnes da nossa história!
POETA:
Meu sogro, você me orgulha
e jamais me esquecerei
dos versos que você fez
calando até o barulho
do Programa do Ratinho!
Verso repetido
no fi m de cada
estrofe de uma
composição.
44
Diante do teu soneto
eu me senti um poeta
a bem pequenininho...
Como era mesmo o soneto?
PAI:
Senhor Ratinho, não existe gato
capaz de amedrontar a decisão
de quem depois de ouvir o coração
só quer obedecer ao seu mandato!
POETA:
Nem é preciso comparar retratos
ou apelar para a ciência, não:
basta olhar nos olhos ou então
reconhecer os nossos pés de pato!
PAI:
É neto meu, é sangue de poeta
que sangue de poeta procurou
usando o coração de minha filha!
POETA:
Teste de DNA só nos atesta
que é o perdão a poesia do amor
e a maior arte é fazer família!
PAI: Retificando, retificando: fazer família
não é nada comparado com manter família...
45
POETA:
Me lembrou, meu sogro amado
que a cerveja e o guara
foram comprados fiado
na sua conta no bar
onde fui até cobrado
de forma impertinente,
mas deixei adiantado
que pagas brevemente
PAI:
Mas eu não autorizei fiado em bar algum!
POETA:
Meu sogro, a vida é repleta
de surpresas e imprevistos,
mas relaxe: haja visto
teu próprio neto, que foi
uma surpresa e agora
é a alegria do avô!
E veja aí, noves fora,
a conta do mês que passou!
(ENTREGA PAPEL AO PA I)
PAI
(LENDO PAPEL):
Mas... mas... Ai meu coração!
É uma pequena fortuna!
POETA: Calma que tudo se arruma!
46
47
FILHA:
Pai, tá fixando roxo, não!
POETA:
É só dar três pré-datados,
meu sogro, não tem problema!
o vá ficar estressado
por coisinha tão pequena!
PAI: Coisinha?! É o que eu levo quinze dias
pra ganhar dando duro no trabalho, seu...!
CAI NO SOFÁ, SOCORRIDO PELA FILHA E PELO
POETA, ENQUANTO A TEVÊ LIGA.
HOMEM DA TEVÊ:
Estudo da Federação dos
Bancos indica que o Brasil é o país que criou
um sistema único de crédito informal, por
meio dos cheques pré-datados.
(ENQUANTO
A FILHA E O POETA FALAM A SEGUIR):
Esse tipo
de microcrédito cresce muito mais que o
sistema de crédito formal!
FILHA: Desliga isso!
POETA: Não fui eu que liguei, acho que ele
caiu em cima do controle remoto!
HOMEM DA TEVÊ: Calcula-se que 70% da
população usam sempre ou regularmente
os cheques pré-datados para, como dizem
os economistas, “ir vivendo na frente” e
48
driblando assim os juros altos nos crédi-
tos convencionais. E, por falar em driblar,
em seguida vem aí o grande clássico do
nosso futebol...
FILHA DESLIGA A TEVÊ, EM SINCRONIA COM
CORTE DE LUZ. NA ESCURIO, OUVE-SE CHORO
DE NENÊ E PREFIXO MUSICAL DO PROGRAMA DO
RATINHO, SEGUIDO DE SIRENE DO SIATE, QUE
CESSA PARA SE OUVIR A VOZ DE RATINHO:
RATINHO:
Fala, Sombra!
SOMBRA: Pois não, Ratinho! Livro de poesia
de poeta que esteve aqui no seu programa
está vendendo mais que água mineral ou
pão de sal! Os poemas tratam de amor fa-
miliar, Ratinho!
RATINHO: Então vamos para os nossos co-
merciais com produtos de grande valia
para toda a família!
ACENDEM-SE AS LUZES. PAI ESTÁ DEITADO EM
CAMA COM PEDESTAL DE SORO INJETANDO NA
VEIA. POETA ENTRA PÉ ANTE PÉ COM A MÃE.
POETA:
Ah, coitado do meu sogro!
O que não faz o estresse
49
quando a pessoa não vê
que mais vale viver bem
que se matar trabalhando
pra ganhar o que não tem!
A vida é pra ir levando...
MÃE: É, você leva a vida, e a minha filha
leva dinheiro pra casa, trabalhando fora e
levando o filho pra creche enquanto você
fica fazendo poesia, que beleza!...
POETA:
É, minha sogra, a beleza
é a razão da minha vida!
Vejo a beleza até mesmo
numa formiga ou lesma
no arroz servido na mesa
erva daninha florida
tudo é belo nesta vida!
MÃE: Coitada da minha filha, agora com o
pai assim, largado numa cama sem saber
quando vai ou mesmo se vai melhorar...! E
ela chega em casa, ainda tem de cozinhar
pra botar a comida na mesa, pra quem só
come é uma beleza mesmo!...
POETA:
Beleza é a minha sogra
50
mesmo quando assim zangada...
Parece fruta madura
cheirosa e bem encarnada
uma dessas criaturas
que o tempo só embeleza
e que parece mistura
de pecado e de nobreza...
MÃE: Mas o que é isso agora?! Tá querendo
me cantar, é? E na beira da cama do meu
ex-marido agonizante?!
PAI: Eu não tô agonizante!
MÃE: Ele falou! Saiu do estado de coma!
POETA:
A poesia tem o dom
de fazer ressuscitar
reviver tudo que é bom
a beleza eternizar!
Eu sabia que provocando
meu sogro muito querido
teria de dar ouvidos
a quem está esperando
que levante enfim da cama
para viver com quem ama!
PAI: Cadê o pau do pilão?!...
51
MÃE:
Que é que ele está dizendo?
POETA:
Está pedindo o pilão!
Querendo fazer paçoca
pra festejar a vitória
desse grande coração!
Meu Deus, que coisa mais louca!
PAI:
Eu quero é dar uma coça
nesse pilantra, querida!
E começar nova vida
caminhando todo dia
dançando bolero e tango
samba, baião e até mambo
e fazendo academia!
MÃE: Bem dizem que a pessoa muda muito
depois do coma, ganha outra visão da vida...
POETA:
E por falar em visão
que tal ver televisão?
LIGA A TEVÊ.
HOMEM DA TEVÊ
(FALA ENQUANTO PAI VAI
SENTANDO NA CAMA):
A média de vida dos
brasileiros continua a aumentar, passando
52
agora dos 70 anos, quando era de apenas 45
anos no começo do século passado! Além
de melhorar a alimentação, as pessoas de
terceira idade dedicam-se mais a atividades
saudáveis, como por exemplo...
PAI (PEGANDO O CONTROLE REMOTO, DESLI-
GA A TEVÊ):
Andar de bicicleta, querida, ir
até a zona rural fazer piquenique!
(BOTA
AS PERNAS PARA FORA DA CAMA, FICA EM PÉ)
Levar meu neto pra passear! Ir pescar!
Não quer ir junto? Só pescamos uma vez
na vida!...
MÃE: ...e você ficou reclamando do sol, do
calor, dos mosquitos!
PAI: Aquele homem reclamão morreu, que-
rida. Por falar em homem, como vai seu
atual marido?
MÃE: Não sei. Acabamos.
POETA:
Isso merece um poema!
A vida é caleidoscópio...
PAI: Cale a boca! Se rimar caleidoscópio com
copo, eu te esgano, seu sacana! Vai cuidar
do teu filho enquanto tua mulher trabalha
53
pra sustentar a casa, vai! Vai!! (POETA SAI)
Família composta...!
MÃE: Calma, meu bem, não se exalte, lem-
bre que o seu coração...
PAI: O que você disse?
MÃE: Que o seu coração...
PAI: o, antes. Me chamou de meu bem?
MÃE: É, afinal fomos casados quantos anos?
PAI: Fomoso, somos! Eu não pedi divór-
cio, nem você! Talvez a gente já pressentis-
se que, com o tempo...
(O-SE AS MÃOS)
MÃE:
Pois é, o tempo... Será que ainda te-
mos tempo?
PAI: Meu bem, como dizem os Stones...
MÃE: Quem?
PAI: Os Rolling Stones, meu bem, dizem que
o tempo está do nosso lado e é nosso amigo
quando a gente sabe viver a vida!
MÃE: Mas quem são esses Rolestones aí?
PAI: Um conjunto de rock, querida, vou te
mostrar. Eu não andei morto enquanto você
Os Rolling Stones
é um grupo de
rock em atividade
desde 1962. A
música Time is
on my side é uma
das mais antigas
gravações da
banda.
54
esteve fora, ouvi coisas novas, li novas coisas,
pensei em me renovar! Vamos namorar?
MÃE: O que?!
PAI:
Namorar. Como outrora
se namorava pra ver
se você gosta de mim
e eu também de você!
Talvez começar agora
uma nova vida enfim!
MÃE: Eu... eu nem sei o que dizer!
PAI:
Querida, não diga nada
é até melhor que assim seja
porque a boca que beija
já está demais ocupada...
BEIJAM-SE ENQUANTO ESCURECE EM RESISTÊN-
CIA E OUVE-SE A VOZ DE RATINHO:
RATINHO:
Fala, Sombra!
SOMBRA: Pois não, Ratinho! Sogro de poeta
monta site na internet chamado Velho Na-
moro, pregando a volta ao velho costume de
namorar firme, em vez de ficar fácil! E re-
55
comenda o namoro especialmente para as
pessoas da terceira idade! E para os jovens
recomenda namorar mais e ficar menos!
RATINHO: E nós ficamos com nossos comer-
ciais, Sombra!
ACENDEM-SE AS LUZES E A TEVÊ.
HOMEM DA TEVÊ:
Isto foi uma peça de tea-
tro. Qualquer semelhança com pessoas
vivas ou mortas é para nos fazer pensar
que também podemos mudar a nossa vida.
Tudo está em mudança rápida. Há apenas
um século, mulheres não podiam votar.
Meio século atrás, a maioria da população
morava no campo, hoje 90% moram na ci-
dade. Eram raras as mulheres que traba-
lhavam fora de casa, ao contrário de hoje.
A educação superior era para poucos. Os
serviços de saúde eram muito pouco usa-
dos, até porque existiam poucos servos
blicos de saúde. A população ainda não
sabia que paga impostos embutidos no pre-
ço de tudo que compra. De lá para cá, tudo
mudou muito, a família também. As famí-
lias compostas hoje são maioria na popu-
lação brasileira. Quem não muda, fica per-
56
dido. Eu mesmo não sei mais o que dizer
diante disso. Podem se retirar, por favor.
Isto foi uma peça de teatro. Não sei mais o
que dizer. Vão viver. Podem se retirar, por
favor. Isto foi uma peça de teatro e isto é
uma gravação. Qualquer semelhança com
pessoas vivas ou mortas é apenas para nos
fazer pensar que também podemos mudar
a nossa vida. Tudo está em mudança rápida.
Há apenas um século...
(CONTINUA REPETIN-
DO A MENSAGEM ATÉ O PÚBLICO SE RETIRAR).
F I M
57
58
Entrevista com o autor
Quando você começou a gostar de ler?
D
OMINGOS – Comecei a ler aos oito anos, atra-
ído por uma pilha de revistas O Cruzeiro que
havia em casa. Daí passei para os livros de
bulas e histórias infantis, como Esopo, La
Fontaine e Irmãos Grimm, que pedia para
meus pais. Depois comecei a emprestar li-
vros das bibliotecas escolares e públicas.
Meus pais, vendo meu interesse, compraram
coleções de literatura e enciclodias. Hoje,
gosto de ler romances, memórias, reporta-
gens, artigos, poesia, tudo.
Quais livros marcaram sua infância ou
adolescência?
D
OMINGOS – Os livros mais marcantes foram
Fábulas de Esopo, Robinson Crus, de Da-
niel Dafoe, e Aventuras de Gulliver, de Jona-
than Swift.
Como você começou a escrever?
D
OMINGOS – Comecei a escrever poesia, aos
catorze anos, ao sair de um filme do
Mazza-
ropi
, no qual um escravo era açoitado num
pelourinho. Aquilo me chocou tanto (embo-
Amacio
Mazzaropi
(1912-1981),
ator e cineasta
brasileiro muito
famoso nas
décadas
de 50 a 70.
59
ra o filme fosse uma comédia, com passa-
gens tristes), que saí zonzo do cinema, com
os versos nascendo na cabeça: Negro velho,
carapinha em neve / negro novo, coração em
fel... Só lembro desses dois versos, pois des-
cartei o poema anos depois. Mas a vocação
literária continuou.
Como nascem suas histórias e
persona gens?
D
OMINGOS – Poemas surgem instantaneamen-
te e em minutos são escritos. Contos surgem
de alguma idéia, geralmente já com a pri-
meira frase. Romances surgem do interesse
por algum assunto. Depois que leio muito a
respeito e/ou vivo também intensamente o
assunto, penso numa história, prevendo um
final para ela, e então vou escrevendo toda
manhã, durante semanas ou meses.
Além de escrever, o que você também
gos ta de fazer?
D
OMINGOS – Gosto de caminhar e lidar com
a chácara onde moro. Também gosto de tra-
tar e conviver com meus quatro cachorros.
Gosto de coisas naturais, de comida natural.
Na chácara, planto, adubo, podo, trato, co-
lho. Gosto de ver filmes e de música. Escrevo
ouvindo música.
60
Leitura e cidadania
A leitura torna mais vasto o mundo de
quem lê. Também desperta a sua imaginação
e você ganha condições de aprender e desen-
volver seu senso crítico e cultural. Quanto
mais livros você ler, mais aumenta o prazer de
ler, mais alegrias você terá com a leitura. Com
isso, todos ganham, você, a sua família, a sua
comunidade e a sociedade em que você vive.
Pelo Brasil afora, muita gente tem traba-
lhado para estimular a prática e o acesso ao
livro e à leitura. Projetos, programas e ações
que envolvem todos: governos, universidades,
escolas, empresas, ONGs e os cidadãos. Todas
as propostas fazem parte do Plano Nacional
do Livro e Leitura – PNLL, do Ministério da
Cultura. Um dos objetivos desse empreendi-
mento é fazer funcionar bibliotecas públicas
em todos os municípios brasileiros.
É na biblioteca que você vai encontrar
apoio para seu desenvolvimento pessoal e
educação formal. Além disso, nesse espaço
você vai poder conhecer sobre a herança cul-
61
tural do seu povo, vai ter a oportunidade de
tomar apreço pelas artes e pelas realizações
da humanidade.
Visite uma biblioteca, pergunte ao biblio-
terio como é que ela funciona e como você
pode ter livros emprestados. A biblioteca pú-
blica é de todos e para todos.
62
Mais informações sobre esta obra
A peça teatral Família composta ganhou
sete ilustrações que contribuem com a cons-
trução cênica da obra. O processo de cria-
ção do artista João Rafael consistiu em de-
senhar em nanquim sobre papel à mão livre
e, depois, digitalizar a imagem e retocá-la no
computador.
O desenho da silhueta dos personagens,
sem detalhes, foi inspirado em recortes de
papel e transmite uma idéia linear. O fundo
preto, obtido com o uso do nanquim, funcio-
na como recurso cenogfico e combustível
para a imaginação do leitor, que fica livre
para criar os espaços segundo sua própria
interpretação.
O contraste do preto com o amarelo-quei-
mado remete à iluminação dos palcos e confe-
re teatralidade às cenas. O resultado é um con-
traste que constrói uma linguagem cênica.
As cenas ilustradas foram as que, de al-
guma maneira, con tribuíram para as gui-
nadas da história e criaram contrastes na
narrativa.
63
Outros livros desta coleção
Poesias Tradição oral
Contos Poesias
Crônicas
Biografia Novela
Contos
Poesias
64
65
Produção gráfica e editorial
SUPERNOVA PROJETOS EDITORIAIS
Coordenação de produção
Cristina Guimarães
cristina@supernovadesign.com.br
Projeto gráfico e capa
Ribamar Fonseca
ribamar@supernovadesign.com.br
Projeto editorial, edição e revisão do texto
Alessandro Mendes e Iara Vidal
alessandro@azimutecomunicacao.com.br
iara@azimutecomunicacao.com.br
Ilustrações
J. Rafael
jooorafa[email protected]om.br
Editoração eletrônica
Fernando Alves
fernando@supernovadesign.com.br
Auxiliar de produção
Adriana Mattos
adriana@supernovadesign.com.br
O papel da capa é o Duo Design 240g/m
2
e o papel do miolo
é o Pólen bold 90 g/m
2
. A fonte de texto é a Versailles, corpo
11,5 pt, projetada por Adrian Frutiger em 1984, serifada,
baseada nos tipos franceses desenhados no século 19. As notas
explicativas laterais foram retiradas dos dicionários da língua
portuguesa Houaiss e Aurélio e informações dos autores.
Impresso pela Gráfica e Editora Brasil para o Minisrio da Edu-
cação em novembro de 2006.
teatro
Domingos Pellegrini
O mundo em que vivemos está
em constante mudança. As famílias
tradicionais, com pais, mães, fi lhos e
um casamento para a vida toda, es-
tão passando a conviver com as cha-
madas famílias compostas, formadas
por pais com fi lhos de mais de uma
relação. Nesta peça, Domingos Pel-
legrini aborda um decisivo momento
na vida de uma dessas famílias mo-
dernas. Um momento marcado por
decisões que podem mudar defi nitiva-
mente a vida de todos os envolvidos.
Em Família composta, o autor
promove, de forma bem humorada,
uma refl exão sobre a importância de
se adaptar às rápidas e profundas
mudanças impostas pela sociedade
e de estar preparado para se reno-
var, sem preconceitos e resistências,
para uma convivência melhor. Com
uma mistura de comédia de costu-
mes com teatro de vanguarda, o tex-
to faz com que o leitor (ou expecta-
dor) ria de suas próprias atitudes e,
ao mesmo tempo, consiga se olhar
criticamente e repensar a vida.
E depois de quase morto
a gente enxerga tudo
com outros olhos, e muda
endireita o que era torto
ajeita o que era sem jeito
aceita o inaceitável
e só com o preconceito
se mantém intolerável!
Família composta Domingos Pellegrini teatro
Domingos Pelle grini é um pro-
ssional multivariedades. O escritor,
jornalista e publicitário paranaen-
se tem 40 livros de diversos estilos:
contos, crônicas, romances e poe-
mas para crianças, jovens e adultos.
A versatilidade e o texto acurado e
criativo renderam ao autor, nascido
em 1949, reconhecimento nacional
como um dos maiores escritores
brasileiros da atualidade. Duas de
suas obras – o livro de contos O Ho-
mem vermelho, de 1977, e o roman-
ce O Caso da Chácara Chão, de 2001
– foram vencedoras da mais impor-
tante e tradicional premiação literá-
ria nacional, o Prêmio Jabuti.
Família
composta
Foto: Carmen Kley
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