
por amor, ainda muito nova, com o filho de um inimigo político de seu pai. Por
isso, foi por este deserdada da amizade e do convívio, pois que nunca a
perdoou. Mas o marido, jovem médico, morreu inesperadamente numa viagem a
Lisboa. A moça, a partir de então, se manteve fiel à memória do defunto e nunca
mais se casou, indo, inclusive, periodicamente ao cemitério para visitar seu
túmulo. O nome Fidélia evoca, mesmo que ironicamente, esse fato.
Aparentemente o texto é simples. Mas note-se, além da referência
a Romeu e Julieta, a referência truncada a uma outra ópera: Ernani de Giuseppe
Verdi. Podemos afirmar isso a partir da citação de um de seus versos: “perdono
a tutti”. É significativa a construção enviesada da “fidelidade” shakespeareana a
uma pessoa que já morreu. Desloca-se, na verdade, o tema do amor, pois ao
subverter a citação de Shakespeare através de Verdi, o narrador também está
deslendo Romeu e Julieta, o que o permite não matar Fidélia de amor, gerando
uma referência ambígua com seu nome. Por outro lado, ao citar Verdi, o tema do
amor é deslocado para o tema político. E Machado o faz com sutileza, uma vez
que tanto em Ernani quanto em Romeu e Julieta, há esse elemento, que também
irá aparecer em outra citação do Memorial, a ópera Tristão e Isolda, que o nome
do personagem não nos deixa esquecer.
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Na ópera de Verdi, há, além do tema do amor, uma trama política contra o rei D. Carlo.
Ernani o quer destituir, assim como deseja Elvira, bela jovem que está, por sua vez, prometida
ao Conde Ruy. Mas Elvira também é amada pelo rei D. Carlo. Todos a querem, enfim. Após
encontros e desencontros, o rei é brando com os rebeldes, dando-lhes perdão – perdono a tutti
– vinda daí a frase citada por Machado. E é ainda mais generoso com Ernani, dando-lhe Elvira
em casamento. Havia, no entanto, por detrás da generosidade, uma trama nefanda que leva
Ernani ao suicídio: a alegria vira malogro. Elvira, ao ver seu amado morto, morre ao seu lado.
Assim também irão morrer Tristão e Isolda na ópera de Wagner. Na obra desse gênio
romântico, os dois amantes também se vêem separados após enfrentarem a ira e a
perseguição do rei Marcos, que fora por eles traído. O rei se casa com Isolda, mas esta já
havia se entregado a Tristão e, então, os dois amantes passam a se encontrar às escondidas
até serem descobertos. São, por isso, condenados à morte, mas conseguem fugir, indo parar
numa floresta, onde vivem por cerca de três anos, até serem novamente capturados. O rei,
piedoso, recupera Isolda e bane Tristão. Este se casa, em seu exílio, com outra Isolda (Isolda
das Mãos Brancas, filha do rei da Bretanha), mas, ferido mortalmente pelo anão Baladis,
espera ser curado por sua amada, a inesquecível Isolda, que seu cunhado Kahardin traria em
seu navio, já que ele, Kahardin, fora o culpado do ferimento de Tristão, que o defendera contra
Baladis. Tristão, porém, é enganado por sua esposa, Isolda das Mãos Brancas. Sabendo esta
da combinação de seu marido com seu irmão – se Isolda estivesse no navio, Kahardin, no
regresso, iria içar velas brancas; se não, velas negras – aproveita-se da pouca visão de Tristão
para, na praia, ao avistar o navio, dizer-lhe que as velas brancas eram negras. Tristão perde as
esperanças de rever sua amada e literalmente morre na praia. Isolda, ao desembarcar,
encontrando seu Tristão morto, também morre ao seu lado.
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