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VALTER MARTINS GIOVEDI
A INSPIRAÇÃO FENOMENOLÓGICA NA CONCEPÇÃO DE
ENSINO-APRENDIZAGEM DE PAULO FREIRE
MESTRADO EM EDUCAÇÃO: CURRÍCULO
PUC/ SP
2006
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VALTER MARTINS GIOVEDI
A INSPIRAÇÃO FENOMENOLÓGICA NA CONCEPÇÃO DE
ENSINO-APRENDIZAGEM DE PAULO FREIRE
Dissertação apresentada à banca
examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
Mestre em Educação: Currículo sob a
orientação da Professora Doutora Ana
Maria Saul.
PUC / SP
2006
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Comissão Julgadora:
_________________________
Ana Maria Saul
_________________________
Antonio Fernando Gouvêa da Silva
_________________________
Mario Sérgio Cortella
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura: _______________________________________ Local e Data: _____________
Dedico este trabalho ao meu pai Walter,
à minha mãe Dora, meu irmão Ricardo, à
minha irmã Mara e à Vó Linda (in
memorian). Com eles aprendi a amar
através da experiência de por eles ser
amado.
Ao meu mestre Valther Mhaestro. Com
suas aulas, e de sua amizade, aprendi a
lição mais importante da minha vida: a
de que podemos mudar o mundo. Depois
dessa amizade, o mundo nunca mais foi
o mesmo.
Ao meu amor, minha companheira
Alessandra. Juntos, nós nos
acompanhamos.
Para o educador e para a educadora das
escolas públicas que se sentem sozinhos,
isolados, sem saber para que lado ir, mas
que não desistiram de gostar
sinceramente dos educandos e
educandas.
AGRADECIMENTOS
Aos amigos e amigas, Júlio, Ferdi, Leandro, Rodrigo, Aline, Michele... da
Caminhos e Paisagens, que participaram direta e indiretamente desse trabalho. Com eles
convivi e com eles encontrei apoio, compreensão e alegria para que essas páginas pudessem
ser produzidas.
Às amigas Milene e Guiomar, por terem confiado em mim para que estivéssemos
juntos no Projeto Parceiros da Criança em Heliópolis. Lá aprendo muito sobre educação
popular, tendo Paulo Freire como intermediador.
Aos amigos Diogo, Divino, Renato, Maicon e Adilson. Eles foram fundamentais
para que uma parte da minha vida acadêmica tão sem beleza, pudesse ganhar vida, e para
que, em tempos de tantos obstáculos e dificuldades, pudéssemos nos divertir mesmo com
tantos absurdos.
Da Universidade São Judas, agradeço a três pessoas em especial: à professora
Dinea, à Gorette e ao professor Humberto. Todos me encorajaram a acreditar no projeto de
mestrado que resultou nesse trabalho. Mostraram-me que eu estava em condições de
enfrentar esse desafio.
Aos amigos que conheci durante o cumprimento dos créditos do mestrado, em
especial àqueles que foram companheiros durante os almoços de terça-feira: Nilda, Lucélia,
Zé Luis, Noemi e Alessandra. Quantos papos esclarecedores tivemos, e quantos desabafos e
angústias nós nos confiamos.
Aos professores Mário Sérgio Cortella e Antonio Fernando Gouvêa, por terem
oferecido tantas contribuições fundamentais durante a qualificação, ajudando-me a
“desatravancar” esse trabalho, contribuindo profundamente para que ele chegasse onde
chegou. Certamente, as deficiências e limitações que ainda persistem nesse texto, devem
ser consideradas única e exclusivamente de minha responsabilidade.
À professora e orientadora Ana Maria Saul. Coordenando a Cátedra Paulo Freire,
possibilitou-me conhecer o pensamento freireano de maneira profunda e rigorosa.
Orientando-me, deixou-me sempre tranqüilo e à vontade para que caminhasse com minhas
próprias pernas. Respeitou sempre a minha autonomia intelectual e acadêmica, por meio de
atitudes essencialmente freireanas: sabendo ouvir e dialogar.
Ao CNPq por ter possibilitado as condições materiais para que esse trabalho
pudesse ser realizado.
- Muito bem – disse eu a eles. – Eu sei. Vocês não
sabem. Mas por que eu sei e vocês não sabem?
(...)
- O senhor sabe porque é doutor. Nós, não.
- Exato, eu sou doutor. Vocês não. Mas, por que eu
sou doutor e vocês não?
- Porque foi à escola, tem leitura, tem estudo e nós,
não.
- E por que fui à escola?
- Porque seu pai pôde mandar o senhor à escola. O
nosso, não.
- E por que os pais de vocês não puderam mandar
vocês à escola?
- Porque eram camponeses como nós.
- E o que é ser camponês?
- É não ter educação, posses, trabalhar de sol a sol
sem direitos, sem esperança de um dia melhor.
- E por que ao camponês falta tudo isso?
- Porque Deus quer.
- E quem é Deus?
- É o pai de nós todos.
- E quem é pai aqui nesta reunião?
Quase todos de mão para cima, disseram que o
eram.
Olhando o grupo todo em silêncio, me fixei num
deles e lhe perguntei: - Quantos filhos você tem?
- Três.
- Você seria capaz de sacrificar dois deles,
submetendo-os a sofrimentos para que o terceiro
estudasse, com vida boa, no Recife? Você seria
capaz de amar assim?
- Não!
- Se você – disse eu -, homem de carne e osso, não é
capaz de fazer uma injustiça desta, como é possível
entender que Deus o faça? Será mesmo que Deus é
o fazedor dessas coisas?
Um silêncio diferente, completamente diferente do
anterior, um silêncio no qual algo começava a ser
partejado. Em seguida:
- Não. Não é Deus o fazedor disso tudo. É o patrão!
(Relato feito por Paulo Freire, em Pedagogia da Esperança,
de um diálogo que ele teve com trabalhadores da Zona da
Mata de Pernambuco)
RESUMO
O intento desse trabalho é fazer uma análise da concepção freireana de ensino-
aprendizagem enfatizando, os seus pressupostos epistemológicos ligados à fenomenologia
existencial. Em outras palavras, nele o leitor ou a leitora encontrarão uma pesquisa
bibliográfica feita no sentido de buscar em várias obras de Paulo Freire categorias que
evidenciam as influências que ele sofreu da corrente filosófica, que aqui denominei de
Fenomenologia Existencial, sobre a sua concepção de ensino-aprendizagem.
Para tanto, esse texto divide-se em dois capítulos que se articulam. O primeiro
capítulo tem como objetivo apresentar um panorama geral das principais correntes
epistemológicas que se desenvolveram na história da filosofia ocidental a partir da
modernidade, chegando até a Fenomenologia Existencial, passando pelo empirismo, pelo
racionalismo, pelo naturalismo, pela fenomenologia de Husserl e pelo marxismo. Nele
existe a intenção de contextualizar as principais idéias defendidas pela Fenomenologia
Existencial, mostrando como essa corrente filosófica se posiciona frente às limitações
presentes nas perspectivas epistemológicas anteriores a ela.
No segundo capítulo, é feita uma sistematização do pensamento freireano dando
ênfase primeiramente à categoria da politicidade e posteriormente ao ensino-aprendizagem.
Procurou-se demonstrar como o conceito freireano de ensino-aprendizagem possui uma
dimensão que vai além das concepções convencionais, na medida em que contempla o
processo de investigação dialógica do currículo como um elemento essencial, portanto
necessário, ao processo de ensino-aprendizagem.
Depois de configurada a concepção freireana de ensino-aprendizagem em suas
diversas dimensões (dialogicidade, construção dialógica do currículo, papel do educador e a
relação educador-educandos), termino o trabalho analisando os pressupostos
epistemológicos da concepção freireana de ensino-aprendizagem, ligados à fenomenologia
existencial. Mostro como categorias como a intencionalidade da consciência, o ser-no-
mundo, com-o-mundo e com-os-outros, o ensino-aprendizagem como ato de conhecimento
e outras, estão presentes no pensamento freireano e serviram como fundamentos para que
Freire pudesse desenvolver e legitimar suas posições a respeito da sua concepção de
ensino-aprendizagem e, portanto, de sua Pedagogia Libertadora.
ABSTRACT
The purpose of this is to analyze the “freireana” teaching-learning concept,
emphasizing its epistemological concepts linked to existential phenomenology. In other
words, the reader will find a bibliographical research performed in the sense to search
categories that will evidence all the philosophical influences Paulo Freire had in his work. I
hereby denominate this teaching-learning concept of “existencial-phenomenology”.
Therefore, this text is divided into two main chapters. The first chapter has the
purpose to promote a general overview of the main epistemological chains developed in
western philosophy in modern times, reaching the “existencial-phenomenology”, passing
through empirics, rationalism, naturalism, Husserl’s phenomenology and Marxism. The
text has the intent to contextually show the mains ideas defended by “phenomenology-
existencial”, showing how this philosophical chain stands face the current limitations in the
epistemological chains that came before.
In the second chapter, there is a systematization of the “freireano” thinking
emphasizing first the political category and then the teaching-learning concept. We tried to
demonstrate how the “freireano” teaching-learning concept has a dimension that goes
beyond conventional concepts in regards of contemplating the dialogic investigation of the
curriculum as an essential element, therefore necessary, to the teaching-learning process.
After configuring the “freireano” teaching-learning concept in all its several
dimensions (dialogic, dialogic construction of the curriculum, educator role and the relation
educator-educated), I finish the work by analyzing the epistemological precepts of the
“freireano” teaching-learning concept linked to existential phenomenology. I present into
categories the intension of the conscience, the being-in-the world, with-the-world and with-
the-others, the teaching-learning as knowledge act and others, are present in “freireano”
thinking and serve as fundamentals so Freire could develop and legitimate his positions
regarding his teaching-learning concept and, therefore, his liberating pedagogy.
SUMÁRIO
Apresentação.................................................................................................................
Introdução.....................................................................................................................
Capítulo I – A concepção fenomenológica existencial sobre o conhecimento:
uma reação às epistemologias clássicas, à fenomenologia idealista de Husserl e
ao marxismo..................................................................................................................
1. A concepção empirista de conhecimento...........................................................
2. A concepção racionalista/ intelectualista de conhecimento...............................
2.1 Teoria do conhecimento em Descartes.........................................................
2.2 Teoria do conhecimento em Kant................................................................
3. A concepção de educação e de aprendizagem que emergem do empirismo e
do racionalismo modernos..................................................................................
4. A concepção naturalista de conhecimento e o behaviorismo.............................
5. A concepção fenomenológica de Husserl..........................................................
6. O conhecimento na perspectiva marxista: alienação e ideologia.......................
7. O conhecimento na fenomenologia existencial..................................................
7.1. A crítica da fenomenologia existencial ao empirismo, ao idealismo e ao
naturalismo.........................................................................................................
7.2. A crítica da fenomenologia existencial ao marxismo: o mundo vivido x as
condições materiais de existência.......................................................................
Capítulo II – A inspiração fenomenológica na concepção de ensino-
aprendizagem de Paulo Freire....................................................................................
1. Paulo Freire: a politicidade assumida em favor do ser mais..............................
2. Ensino-aprendizagem na obra de Paulo Freire...................................................
2.1. A dialogicidade............................................................................................
2.2. A construção dialógica do conteúdo programático.....................................
2.3. A dialogicidade na relação educador-educandos........................................
2.3.1. O papel do educador no contexto teórico da relação de ensino-
aprendizagem................................................................................................
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2.3.2. . A dinâmica do diálogo no contexto teórico da relação de ensino-
aprendizagem e a construção do conhecimento por parte do
educando.......................................................................................................
3. A presença da fenomenologia existencial como um dos pressupostos
epistemológicos da concepção freireana de ensino-aprendizagem....................
Considerações Finais....................................................................................................
Bibliografia....................................................................................................................
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121
126
Apresentação
Apesar do tema desse trabalho parecer de cunho eminentemente teórico, os
acontecimentos que o inspiraram e que me levaram a preocupar-me com as temáticas nele
implicadas estão diretamente relacionados à minha prática como professor da educação
escolar nas redes privada e pública de São Paulo, nos níveis de Ensino Fundamental II e
Ensino Médio. Na vivência da atividade docente, pude experimentar muitos momentos de
angústia, de dúvidas, de perplexidade, de perda de referenciais etc. Nessas experiências,
alternaram-se sentimentos de euforia otimista e de desilusão pessimista que faziam com que
eu colocasse em dúvida a minha própria escolha de seguir no magistério.
Tais sentimentos controversos deviam-se principalmente à pluralidade de situações
em que fui colocado desde que iniciei a minha prática como educador. Ao mesmo tempo
em que sentia na pele a alegria da construção do conhecimento com algumas turmas de
educandos, a satisfação pelas amizades feitas e a esperança pelas propostas que deram
certo, também sentia a angústia frente ao descaso de muitos companheiros de profissão, a
raiva frente ao autoritarismo de burocratas da educação, a tristeza por não ter sido capaz de
sensibilizar vários alunos, a perplexidade por ver tanta distância entre os discursos e
práticas da escola e as expectativas e necessidades dos educandos.
Todo esse conjunto de incertezas e de instabilidades me conduzia sempre à procura
de respostas que pudessem preencher as lacunas que constantemente se manifestavam
frente às constantes derrubadas das minhas certezas provisórias. Ou seja, a cada momento
em que me achava mais seguro de quais caminhos seguir, surgiam novos obstáculos e
desafios que me conduziam a novas buscas.
Essas buscas que eram efetivadas a partir da minha situação de angústia
profissional, e até mesmo existencial, sempre me conduziram a novas temáticas, a novos
conhecimentos, a novas bibliografias, a novos autores. Assim, ainda que eu vivesse
constantemente perturbado pelas barreiras sociais, econômicas, culturais e ideológicas tão
incrustadas nas escolas, acreditava que poderia fazer a diferença nessa realidade
aparentemente tão sem perspectiva.
Essa crença no poder de um ou de poucos indivíduos poderem fazer a diferença
advinha principalmente das experiências que eu tive a oportunidade de ter quando era
estudante do Ensino Médio. Nessa época, tive a oportunidade de vivenciar, como aluno, o
que é possível ser construído, quando educadores efetivamente comprometidos, se inserem
1
num processo de luta por uma realidade mais justa, por uma escola mais significativa para
os educandos e mais engajada nos problemas sociais. Tais professores criaram dentro da
escola um projeto de Educação Ambiental em que os alunos que, voluntariamente
quisessem participar, poderiam protagonizar diversas ações transformadoras dentro e fora
da escola. Esse momento foi determinante para as minhas posteriores escolhas políticas,
pedagógicas e profissionais, já que após o Ensino Médio, graduei-me em Filosofia e fui ser
professor. Foi na época do Ensino Médio que comecei a analisar criticamente o modelo de
sociedade em que vivemos e a perceber que a educação poderia ser um instrumento de luta
e de resistência contra a força desumanizadora desse mesmo modelo, até porque eu me
sentia uma testemunha viva do poder que a escola tinha de ampliar os horizontes dos seus
educandos. Essas experiências me conduziram a uma inserção crítica na realidade que está
colocada e a uma busca de engajamento para transformá-la.
A partir de então, nesse período de fim da adolescência e de ingresso no Ensino
Superior, passei a experimentar de forma mais tensa a contradição de ser um sujeito que,
por um lado, desejava poder participar ativamente de processos de mudança da sociedade
junto de movimentos sociais, ONGs, escolas públicas etc. Por outro, vivia uma situação
concreta de jovem de classe média sobre o qual se depositam várias expectativas que nem
sempre podem ser conciliadas tranqüilamente com idéias que, a rigor, questionam os
costumes, os valores, as atitudes, as crenças... predominantes no universo cultural da
própria classe média.
Para ilustrar esse momento, basta dizer o quanto foi difícil compreender como as
aulas da universidade particular na qual eu cursei Filosofia e Direito (paralelamente)
podiam mostrar-se tão distantes e alheias aos problemas concretos que eu esperava poder
discutir. A indiferença das temáticas e dos conteúdos das aulas com relação aos problemas
sociais pelos quais o mundo passa cotidianamente era uma característica marcante e que me
saltava aos olhos como estudante universitário. Eu não esperava, sinceramente, que na
universidade haveria tão pouco espaço para a discussão, o debate, a troca de experiências.
Era muito estranho ser rotulado como um “ET”, simplesmente por querer da universidade
algo mais do que o diploma. Ou por querer das aulas algo mais do que simplesmente ficar
ouvindo o que os professores tinham a dizer. Tinha convicção absoluta de que as
experiências que tive no Ensino Médio no grupo de Educação Ambiental que já citei,
2
tinham sido muito mais ricas e geradoras de aprendizagem do que aquelas que eu estava
tendo no Ensino Superior ou aquelas que tinha tido no período de aulas na escola.
Foi nesse momento da minha vida (enquanto ainda era estudante universitário) que
tive a oportunidade de lecionar pela primeira vez. Queria fazer diferente do que a maioria
dos professores que haviam passado pela minha vida tinham feito. Sabia que era possível
ensinar de um modo diferente do convencional. A partir de então, a minha relação com a
educação passou a ser intensa.Tranquei a matrícula no curso de Direito para poder me
dedicar exclusivamente à educação. A partir de então, tive a oportunidade de entrar em
contato com a realidade concreta da escola privada e da escola pública.
Quem convive diariamente com a categoria de professores das escolas públicas e
privadas de São Paulo e se deixa levar pelo clima preponderante das salas de professores,
corre um grande risco de ser contaminado com o vírus da desilusão.
Se hoje em dia tem sido muito freqüente tomarmos contato com análises
sociológicas que constatam o atual momento em que vivemos como um tempo de
conformismo, ceticismo e desesperança generalizados, basta passarmos algumas poucas
horas dentro de uma escola pública ou privada, mais precisamente dentro da sala dos
professores, para efetivamente podermos constatar que essas análises fazem algum sentido.
Temas mais comuns no ambiente de sala dos professores, com base na minha
experiência empírica
1
: a falta de respeito dos alunos, doenças (pessoais, na família ou em
conhecidos), compras feitas nos últimos tempos, medo da violência, muitas fofocas, muitas
reclamações contra a direção e coordenação pedagógica da escola, reclamações dos
políticos (sempre dos que estão governando no presente momento), reclamações dos pais
dos alunos que não lhes dão a educação adequada, reclamações pelos baixos salários,
lamentos, lamentos, lamentos... Não que não haja momentos de descontração e de bom
humor, mas estes muitas vezes vêm associados a uma morbidez preconceituosa e a um
certo cinismo (desprezo velado por quem gosta dos alunos e gosta de dar aulas).
Tudo isso me faz crer que há meio que um consenso tácito entre a maioria dos
professores de que o melhor mesmo a fazer é “ir empurrando a vida com a barriga”, pois o
que tinha a ser oferecido por ela já foi, restando agora aproveitar os parcos momentos de
1
Faço essa ressalva de experiência empírica, pois o que citarei aqui não está baseado em qualquer estudo
mais aprofundado feito por mim ou por qualquer autor que eu tenha consultado para escrever esse trabalho.
Portanto, os temas citados são aqueles que, ouvi na passagem por várias salas de professores que tive
oportunidade de tomar contato e/ou vivenciar.
3
tranqüilidade que a vida pode oferecer. Aliás, tais momentos são, predominantemente,
associados a experiências fora da escola. Ou seja, a escola parece ser vista tão-somente
como um ambiente de trabalho como qualquer outro, em que o funcionário desempenha
uma função (fria, calculista e desapaixonada), apenas dentro de um espaço de tempo
limitado por um sinal, que o libera para ir embora, como se a natureza do ofício de
professor pudesse ter uma conformação profissional igual à de outras profissões em que o
profissional executa um trabalho cujo produto não lhe pertence e não leva a sua marca.
Diante de toda essa realidade que eu apreendia no decorrer da minha experiência
como professor, era inevitável que eu sentisse um certo isolamento frente à maioria dos
meus colegas de profissão. Sentia-me obrigado a relevar muitos acontecimentos e me calar
diante de muitas situações que me pareciam absurdas, pois se eu continuasse falando
abertamente tudo o que eu pensava, inclusive mostrando as contradições entre as práticas
preponderantes e o que diziam os projetos políticos-pedagógicos, eu corria o risco até
mesmo de perder o emprego nas escolas privadas ou de me isolar totalmente com relação
aos professores, coordenação e direção.
Cada vez mais eu sentia a necessidade de aprimorar o meu discurso e de aprofundar
as minhas reflexões sobre educação. Sabia que só assim poderia efetivamente intensificar a
minha capacidade de resistência a todas as práticas autoritárias reproduzidas
cotidianamente nas escolas.
No sentido de tentar compreender de maneira mais consistente a realidade que me
envolvia é que tomei contato com a obra Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire. Até
então, a referência que eu tinha sobre ele era a de um pensador de esquerda comprometido
com uma educação revolucionária. No momento em que tive a oportunidade de adentrar
mais profundamente nos textos freireanos, percebi que muitas das minhas angústias eram
compartilhadas por esse autor. Percebi que ele dava voz para muitas expectativas que eu
tinha e que, muitas vezes, não conseguia verbalizar. Identifiquei muitos pontos de
convergência entre aquilo que pretendia para a educação e aquilo de Paulo Freire dizia.
Enfim, vislumbrei em sua obra várias concepções que sistematizavam e aprofundavam
aquilo que eu pensava e procurava praticar, de maneira ainda superficial e intuitiva.
Num primeiro momento, o que mais me chamou a atenção na obra freireana foi o
aspecto político. Ou seja, a permanente insistência com que Paulo Freire afirmava o caráter
essencialmente político da atividade educativa foi muito importante para que eu pudesse me
4
orientar melhor não apenas pedagogicamente na sala de aula, mas também nos próprios
embates políticos-pedagógicos que ocorriam nas reuniões pedagógicas juntamente com os
outros professores nas escolas pelas quais passava. Assim, passou a ser muito evidente,
para mim, constatar aquilo que Paulo Freire chamou de ingenuidade ou astúcia de alguns
profissionais da educação que, na melhor das hipóteses, não enxergavam a natureza política
da sua prática, mas, na pior delas, praticavam intencionalmente uma educação com o
objetivo de domesticar e de submeter o educando a uma atitude de resignação frente à
realidade.
Com o passar do tempo, comecei a desenvolver um olhar mais acurado sobre a obra
de Paulo Freire, reparando em alguns aspectos que até o momento não dava uma atenção
maior. Isso começou a ocorrer quando passei a sentir na pele o problema da distância entre
os conhecimentos escolares tradicionalmente transmitidos e consolidados nos currículos e
as expectativas e necessidades dos educandos que freqüentavam as escolas. Percebia o
descaso com que os conhecimentos não-significativos eram tratados pelos alunos. O quanto
esses saberes eram vistos como meras informações a serem reproduzidas nas provas. Em
outras palavras, angustiava-me de sobremaneira o quanto os educandos e a escola não
conseguiam falar a “mesma língua”, sendo que, logo que o sinal batia, os primeiros iam
para suas casas pensar em tudo aquilo que não dissesse respeito aos conteúdos escolares.
De certo modo, o que era feito dentro da escola não servia para o mundo real que estava
sendo vivido fora dela.
Tudo isso me conduzia à idéia de que a realidade da educação escolar tem
apresentado, em regra, uma grande distância entre os conhecimentos trabalhados e
transmitidos e a realidade existencial concreta dos educandos, sendo que, esses últimos,
vêm paulatinamente ampliando e intensificando sua resistência frente a esse
distanciamento
2
.
Quando lecionava, sentia isso de maneira muito forte. O desinteresse pelos
conteúdos tradicionais e pelas formas desses serem abordados, bem como o constante
recurso à memorização da matéria da prova por parte dos alunos, faziam com que eu me
perguntasse se não haveria algumas condições necessárias que deveriam ser levadas em
2
Isso nós podemos perceber no aumento dos problemas relacionados à indisciplina na escola. Ainda que esse
não seja o único motivo que explique os problemas de comportamento e de aprendizagem dos estudantes nas
escolas, acredito que essa falta de vínculo entre conteúdos escolares e vida dos estudantes é uma das
principais causas dessa problemática.
5
consideração para que o ensino-aprendizagem na relação professor-aluno pudesse se
efetivar. Ou seja, era óbvio para mim que, além da educação baseada na memorização, ser
politicamente autoritária e político-epistemologicamente doutrinadora, ela era também
inviabilizadora de uma aprendizagem autêntica, já que despreza alguns princípios
essenciais do modo de ser da relação entre sujeito e o objeto do conhecimento.
Já nesse momento, eu tinha algumas referências sobre as obras de autores, como
Piaget e Vygotsky, por exemplo, que problematizaram a questão da aprendizagem ou do
ensino-aprendizagem, e que chegaram a algumas conclusões sobre as suas condições de
possibilidade. Portanto, já vislumbrava, ainda que não tão profundamente, que o problema
do ensino-aprendizagem estava relacionado a questões que, indo além do campo
pedagógico, perpassava os âmbitos da psicologia, da sociologia e da filosofia da educação.
Isso me conduziu a buscar na obra de Paulo Freire elementos que me dessem
instrumentos teóricos para compreender como é que, para esse educador, com o qual já me
identificava, ocorria o processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, uma pergunta
passou a ser bem evidente dentre o meu complexo de indagações: Quais são as
características essenciais do pensamento freireano no que concerne às condições de
possibilidade do ensino-aprendizagem? Ou, em outras palavras, a pergunta poderia ser
formulada da seguinte forma: Como se configura a concepção de ensino-aprendizagem
freireana no que diz respeito aos seus fundamentos epistemológicos?
Com essas questões, eu esperava buscar elementos que justificassem a necessidade
de adesão à pedagogia freireana não só por razões de ordem estritamente políticas, mas
também por razões epistemológicas. Dessa forma, eu me propunha a adentrar num aspecto
do universo do pensamento freireano que me levaria a ressaltar determinados conceitos e
categorias que, articulando-se à fundamentação política, poderiam acrescentar elementos
ainda mais consistentes para sustentar as minhas escolhas pedagógicas.
A busca por responder a essas questões é justamente o objetivo desse trabalho.
Porém, sinto a necessidade de reiterar que as razões que estão na base dessas indagações
estão muito além de meras preocupações especulativas e de caráter eminentemente teórico.
Essas questões nasceram de problemas sentidos na pele.
Paulo Freire foi o interlocutor com o qual eu me identifiquei para legitimar as
minhas práticas de resistência. Assim, estudar os seus pressupostos epistemológicos é
acima de tudo uma oportunidade de ressaltar uma dimensão do pensamento de Freire que,
6
ao ser compreendida, poderá dar mais força à argumentação que visa à defesa de uma
educação comprometida com a libertação dos seres humanos.
A partir da introdução, estarei delimitando melhor o meu campo de preocupação
dentro da concepção freireana de ensino-aprendizagem, bem como estarei delimitando o
meu campo de análise dentro do aspecto epistemológico da concepção freireana de ensino-
aprendizagem.
7
Introdução
Na busca por responder às questões destacadas na apresentação desse trabalho,
encontrei algumas pistas que me indicaram categorias que Paulo Freire utilizou para
fundamentar epistemologicamente a sua concepção de ensino-aprendizagem.
No segundo capítulo desse texto estarei definindo mais detalhadamente as diversas
dimensões que Paulo Freire indica como sendo essenciais ao processo de ensino-
aprendizagem e à experiência educativa. Ou seja, em Paulo Freire, o processo de ensino-
aprendizagem possui diversas dimensões: política, ética, estética, ideológica, além da
epistemológica. Procurarei mostrar que esta última dimensão possui uma importância
fundamental enquanto balizadora e indicadora de fundamentos filosóficos para que Freire
pudesse delinear aspectos de seu pensamento, tais como a concepção de relação professor-
aluno, a dialogicidade e a investigação dos conteúdos programáticos.
Quando falo em pressupostos epistemológicos da concepção freireana de ensino-
aprendizagem, estou me referindo ao modo pelo qual Freire concebe a relação homem-
mundo no que diz respeito ao modo como ela se dá do ponto de vista da produção de
conhecimento que os seres humanos constroem sobre os objetos com os quais se deparam.
Em outras palavras, estou preocupado com a relação sujeito-objeto na produção do
conhecimento. Portanto, nesse trabalho volto o meu olhar para a teoria do conhecimento
que está presente no alicerce da concepção freireana de ensino-aprendizagem. Pois, para
Freire:
“... o educando precisa de se assumir como tal, mas, assumir-se como
educando significa reconhecer-se como sujeito que é capaz de conhecer e
que quer conhecer em relação com outro sujeito igualmente capaz de
conhecer, o educador e, entre os dois, possibilitando a tarefa de ambos, o
objeto de conhecimento. Ensinar e aprender são assim momentos de
um processo maior - o de conhecer, que implica re-conhecer...”
(1992: 47, grifo meu)
Portanto, pode-se constatar que para Paulo Freire não é possível separar o ato de
conhecer do processo de ensinar-aprender. Assim, compreender os fundamentos
epistemológicos freireanos é compreender a base teórica que define as diretrizes de ação do
educador e dos educandos. Diante disso, na perspectiva freireana, quando nos perguntamos
como os seres humanos ensinam e aprendem, na verdade, estamos nos fazendo a seguinte
questão: Como os seres humanos conhecem? Em outras palavras, a questão sobre quais são
8
as condições que possibilitam o ensino-aprendizagem, é também a questão sobre quais são
as condições que possibilitam e interferem na produção do conhecimento (como o sujeito
do conhecimento interage com o seu objeto).
Na exposição da sua visão a respeito do modo de ser da relação entre sujeito e
objeto do conhecimento, ou seja, na busca por fundamentar a sua teoria do conhecimento,
Paulo Freire utiliza uma argumentação que bebe de diferentes fontes filosóficas. Dentre
elas, podemos destacar o hegelianismo, o marxismo e a fenomenologia existencial. No caso
dessa última, Freire inclusive cita expressamente Sartre, que na sua primeira fase filosófica
baseou o seu pensamento na fenomenologia existencial.
A inspiração fenomenológico-existencial freireana é justamente o objeto mais
específico de estudo desse trabalho. Nas leituras mais aprofundadas que fiz, principalmente
da obra Pedagogia do Oprimido, pude constatar no pensamento de Paulo Freire alguns
termos, algumas expressões, algumas citações e algumas afirmações que me remetiam
diretamente à abordagem fenomenológica do conhecimento. Pude identificar que, dentre as
correntes epistemológicas que interferiram na obra desse autor, a fenomenologia tinha uma
posição importante no que concerne à compreensão que Paulo Freire apresenta a respeito
da relação de ensino-aprendizagem, enquanto uma experiência gnosiológica.
Só a título de exemplo, vale a pena citar algumas das passagens de Pedagogia do
Oprimido que me chamaram a atenção
3
:
“Prática pedagógica em que o método deixa de ser, como salientamos no
nosso trabalho anterior, instrumento do educador (no caso, a liderança
revolucionária), com o qual manipula os educandos (no caso os
oprimidos) por que é já a própria consciência.
“‘O método é, na verdade (diz o professor Álvaro Vieira Pinto), a forma
exterior e materializada em atos, que assume a propriedade
fundamental da consciência: a sua intencionalidade. O próprio da
consciência é estar com o mundo e este procedimento é permanente e
irrecusável. Portanto, a consciência é, em sua essência, um ‘caminho
para’ algo que não é ela, que está fora dela, que a circunda e que ela
apreende por sua capacidade ideativa. Por definição, a consciência é,
pois, método, entendido este no seu sentido de máxima generalidade. Tal
é a raiz do método, assim como tal é a essência da consciência, que só
existe enquanto faculdade abstrata e metódica.’” (VIEIRA PINTO,
1986
4
: sem página, citado por FREIRE, 1987: 56, grifos meus)
3
Essas passagens estarão sendo analisadas no capítulo 2 desse trabalho, além de outras que estão presentes
em outras obras de Freire.
4
Álvaro Vieira Pinto, Ciência e Existência, RJ, Paz e Terra, 1986, 2ª ed.
9
“... A mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos que me
cercam estão simplesmente presentes à minha consciência e não dentro
dela. Tenho a consciência deles mas não os tenho dentro de mim.”
(FREIRE, 1987: 63, grifos meus)
“A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem
com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens
como seres ‘vazios’ a quem o mundo ‘encha’ de conteúdos; não pode
basear-se numa consciência espacializada, mecanicistamente
compartimentada, mas nos homens como ‘corpos conscientes’ e na
consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a
do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas
relações com o mundo.
“Ao contrário da ‘bancária’, a educação problematizadora, respondendo à
essência do ser da consciência, que é a sua intencionalidade, nega os
comunicados e existencía a comunicação. Identifica-se com o próprio da
consciência que é sempre ser consciência de...
(...)
“Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser
o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir
‘conhecimentos’ e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da
educação bancária, mas um ato cognoscente.” (FREIRE, 1987: 67-68,
grifos meus)
“[Na educação bancária] Não pode haver conhecimento pois os
educandos não são chamados a conhecer, mas a memorizar o conteúdo
narrado pelo educador. Não realizam nenhum ato cognoscitivo, uma vez
que o objeto que deveria ser posto como incidência de sue ato
cognoscente é posse do educador e não mediatizador da reflexão crítica
de ambos.” (FREIRE, 1987: 69, grifos meus)
“ ‘A consciência e o mundo’, diz Sartre, ‘se dão ao mesmo tempo:
exterior por essência à consciência, o mundo é, por essência, relativo a
ela.” (FREIRE, 1987: 70)
“A primeira [a educação bancária] ‘assistencializa’; a segunda [a
educação libertadora], criticiza. A primeira, na medida em que, servindo
à dominação, inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar a
intencionalidade da consciência como um desprender-se ao mundo, a
‘domestica’, nega os homens na sua vocação ontológica e histórica de
humanizar-se. A segunda, na medida em que, servindo à libertação, se
funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos
homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não
podem autenticar-se fora da busca e da transformação criadora.”
(FREIRE, 1987: 72, grifos meus)
O que todas essas passagens têm em comum é o fato de que todas elas contêm de
alguma forma categorias que advêm da fenomenologia. Além disso, algumas dessas
citações mostram que Freire explicitou implicações, para a relação de ensino-
10
aprendizagem, de se compreender a relação sujeito-objeto pelo viés da fenomenologia
existencial.
Nesse sentido, esse trabalho procura dirigir um olhar sobre um aspecto do
pensamento freireano que, apesar de ser muito importante para elucidar a sua prática
educativa, não é tão comentado e conhecido pelas pessoas em geral, principalmente se o
compararmos com a dimensão política do pensamento desse educador, que normalmente é
o aspecto mais ressaltado pelas pessoas ao falarem de Freire. Ou seja, minhas preocupações
estão voltadas para as concepções que Paulo Freire apresenta a respeito dos requisitos
filosóficos necessários à aprendizagem e, portanto, ao ensino. Nesse sentido, pretendo, com
esse trabalho, identificar e analisar algumas categorias do pensamento freireano que
indicam sob quais condições o conhecimento é construído pelos educandos, tentando
contribuir no sentido de sistematizar a teoria do conhecimento e a teoria de ensino-
aprendizagem que estão presentes na obra desse importante pensador da educação.
Para realizar esse objetivo, pretendo mostrar o processo de mudanças que ocorreram
na história das idéias epistemológicas ocidental, até o surgimento das teorias
fenomenológicas. A razão desse trajeto é contextualizar o papel que a fenomenologia
exerceu enquanto uma maneira inovadora de compreender a relação homem-mundo/
sujeito-objeto em fins do século XIX e início do XX. Tal contextualização poderá fornecer
subsídios para uma compreensão, com maior profundidade, das categorias epistemológicas
presentes na concepção de ensino-aprendizagem defendida por Freire.
Acredito que, com as considerações que serão feitas nesse trabalho, poderei
contribuir para que novos olhares possam ser direcionados sobre a teoria freireana. Colocar
frente-a-frente as concepções epistemológicas aqui apresentadas e a teoria freireana, pode
clarear perspectivas e práticas pedagógicas que se comprometem com a Pedagogia
Libertadora de Paulo Freire.
Para realizar tais pretensões, executei um trabalho de pesquisa bibliográfica que
buscou apresentar algumas teorias epistemológicas, que se destacaram na história da
filosofia ocidental, de maneira ampla, bem como fiz um trabalho de pesquisa bibliográfica
rigorosa de boa parte das obras de Freire. Por isso, antes de apresentar os resultados dessas
pesquisas e análises, vou indicar de que maneira me aproximei dos textos analisados,
principalmente dos textos de Paulo Freire que, evidentemente, foram aqueles nos quais
canalizei a maior parte das minhas energias. Por isso, a partir de agora, farei algumas
11
considerações sobre a metodologia que utilizei para abordar os textos mais importantes para
o esclarecimento das problemáticas que me dispus a pesquisar.
* * *
Antes de fazer qualquer afirmação mais específica sobre o meu método de leitura,
de compreensão e de interpretação dos textos de Paulo Freire, vale a pena ressaltar o fato de
que a temática que me propus a discutir não está concentrada direta ou indiretamente em
uma obra específica, tampouco em uma parte específica dos textos de Paulo Freire. Ou seja,
não dá para reduzir a problemática fenomenológica do pensamento freireano a algum livro,
texto ou parte específica. O que eu posso afirmar, como já tentei mostrar com as citações
feitas nessa introdução, é que na sua obra Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire promoveu
considerações sobre essa temática e explicitou argumentos que nos permitem ter uma visão
mais sistematizada e pormenorizada das suas idéias. Por isso, essa obra estará
constantemente sendo citada e referida nesse trabalho.
Para me aproximar dos textos de Paulo Freire e de todos os outros que serviram de
base para a elaboração desse trabalho, procurei me apoiar (sem necessariamente seguir a
risca) no que Antônio Joaquim Severino chamou de leitura analítica. Ou seja, procurei
adotar um método de estudo de textos que garantisse, na medida do possível, um
responsável “distanciamento valorativo” no momento de aferir as idéias dos autores com os
quais me deparei. Ou seja, procurei sempre, num primeiro contato com o discurso das
bibliografias analisadas, compreender a lógica interna que os autores construíram para
transmitir suas idéias. Nesse sentido, busquei em cada texto evidenciar a estrutura interna
de cada um deles, para que pudesse ter uma visão global do caminho que o autor estaria
traçando. Após ter essa visão mais global dos caminhos tomados pelas obras, procurei
sistematizar as idéias que se encontravam nas partes que emergiram a partir dessa análise
da totalidade. Nesse momento, já me era possível relacionar as partes com o todo, sendo
que estas já passaram a ganhar significados específicos dentro da estrutura geral das obras.
Na medida do possível, tentei identificar as tramas conceituais de partes ou do todo de
algumas obras, o que me possibilitou ter uma melhor visualização do conjunto dos
conceitos e das inter-relações que esses estabeleciam entre si. A esse conjunto de
procedimentos que visam extrair do texto a lógica do próprio autor, procurando captar o
tema, a problemática, a tese, o raciocínio e as subteses do autor, Severino chama de análise
12
temática (2002: 53-55). Nesse sentido, apesar de ter procurado evidenciar tais elementos,
não posso afirmar que segui à risca os procedimentos propostos por esse autor, até porque,
na minha experiência acadêmica, já vinha construindo métodos, passos e procedimentos de
estudo próprios que também visavam garantir a rigorosidade na aproximação com os textos
com os quais precisei me deparar. Assim, na análise temática que busquei fazer, procurei
sempre respeitar o modo pelo qual os textos se apresentaram para mim, tentando, o máximo
possível, extrair os significados a partir dos referenciais do próprio texto e dos contextos
dos próprios autores. Isso, obviamente, não me isenta de interferências pessoais na
interpretação, já que a postura de neutralidade não é possível, nem desejável.
Para explicitar o modo pelo qual procurei efetivar a minha análise interpretativa,
utilizarei algumas palavras de José Saramago que, no meu entender, criou uma metáfora
que consegue representar aquilo que essencialmente acredito ser o cerne do ato de
interpretar. Eis o que ele diz
5
:
“... Lendo, fica-se a saber quase tudo [fala de Cipriano Algor], Eu
também leio [fala de Marta], Algo portanto saberás, Agora já não estou
tão certa,Terás então de ler doutra maneira, Como, Não serve a mesma
para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem
leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da
leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são
apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é
para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que
importa, A não ser, A não ser, quê, A não ser que esses tais rios não
tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela, a
sua própria margem, e que seja sua, e apenas sua, a margem a que
terá de chegar, Bem observado, disse Cipriano Algor...” (2000: 77,
grifos meus).
Assim como está representado nesse belíssimo trecho, acredito que o papel de
qualquer indivíduo como intérprete de textos, no meu caso, como intérprete principalmente
de alguns aspectos específicos da obra freireana, é o de ir além das palavras com as quais
estarei lidando, sem, contudo, desrespeitar as idéias das fontes em que estarei pesquisando.
No decorrer das minhas leituras, procurei constantemente fazer as “pontes” que achei
necessárias e pertinentes entre os conceitos com os quais lidei e práticas. Também procurei
5
Para ficar mais claro para o leitor(a), vale a pena ressaltar que, nesse trecho da obra A caverna, José
Saramago separa cada uma das falas do diálogo entre dois dos principais personagens (Cipriano Algor e
Marta) com vírgulas (por isso, depois das vírgulas vem a letra maiúscula). Portanto, para sabermos quando a
fala mudou de personagem e para sabermos se a fala trata-se de uma pergunta, precisamos ficar atentos ao
sentido e aos momentos em que à vírgula segue-se uma letra maiúscula.
13
fazer conexões entre esses e outras idéias que me pareciam emergir das afirmações feitas
pelos autores. Em outras palavras, minha interpretação procurou não se eximir da ousadia
de ampliar e de traduzir para as minhas necessidades as falas daqueles que nos legaram
muitas contribuições que, inevitavelmente, servem-nos como parâmetros para construir
novos discursos, novas práticas, ou para criarmos novos olhares.
Por tudo isso, não me acanhei em tentar chegar “às outras margens”, utilizando os
textos como meus pontos de apoio para elucidar e esclarecer as minhas reflexões. Assim,
após fazer a análise temática já referida em alguns parágrafos acima, procurei me deter com
um olhar crítico sobre todos aqueles elementos (tema, problemática, raciocínio, tese e
subteses) que tinha levantado naquela primeira abordagem.
Para definir o significado do ato de interpretar, acho pertinente também deixar aqui
registradas as palavras de Antônio Joaquim Severino que, num discurso mais acadêmico, e
também cheio de riqueza, define o que ele entende por interpretar:
“Interpretar, em sentido restrito, é tomar uma posição própria a respeito
das idéias enunciadas, é superar a estrita mensagem do texto, é ler nas
entrelinhas, é forçar o autor a um diálogo, é explorar toda a fecundidade
das idéias expostas, é cotejá-las com outras, enfim, é dialogar com o
autor”. (2002: 56)
Os leitores perceberão que no decorrer desse trabalho me posiciono a favor dessa ou
daquela abordagem, argumentando sobre as eventuais lacunas e equívocos que acredito
haver em determinadas propostas. Procuro ir além das mensagens dos textos, buscando
evidenciar as implicações de determinadas propostas e afirmações, construindo assim novas
leituras ou construindo novas maneiras de se representar leituras já feitas. Procuro ler nas
entrelinhas, tentando desvendar quais os pressupostos que estão por detrás das idéias das
principais obras que aqui foram analisadas, procurando apresentar os contextos histórico-
social, cultural e intelectual que envolvia e que criavam condições para que determinadas
propostas surgissem. Procurei, portanto, não ser passivo diante das falas dos nossos
interlocutores, aproximando-me criteriosamente e rigorosamente dos seus discursos, para
que, na medida em que sinta a necessidade, afirmar as minhas discordâncias ou
convergências. Procurei comparar interpretações, sem ter a pretensão/ ilusão de achar que
estaria recriando visões de mundo ou leituras inovadoras. Por isso, estarei me apoiando
constantemente naquilo que outros já disseram e trouxeram para elucidar as problemáticas
com as quais também estarei lidando.
14
Enfim, posso afirmar que esse trabalho buscou nortear-se, num primeiro momento,
por uma metodologia de pesquisa que respeitasse rigorosamente os princípios da leitura
compreensiva (análise temática), para que, num segundo momento, pudesse ousar numa
abordagem mais interpretativa, no sentido sempre de atingir os objetivos desse trabalho
que, em suma, podemos dizer que é o seguinte: saber em que medida Paulo Freire bebeu
das contribuições da fenomenologia existencial para fundar uma perspectiva
educacional original no que diz respeito à compreensão do processo de ensino-
aprendizagem.
* * *
Esse trabalho foi estruturado com a finalidade de propiciar uma visão ampla de
parte da história do pensamento epistemológico ocidental, para que se possa dimensionar o
significado filosófico da fenomenologia existencial e em que medida Paulo Freire se
relacionou com essa corrente filosófica. Por isso, esse texto foi dividido em dois capítulos,
sendo que cada um deles possui seus respectivos itens e sub-itens.
O Capítulo 1 (A concepção fenomenológica existencial sobre o conhecimento:
uma reação às epistemologias clássicas, à fenomenologia idealista de Husserl e ao
marxismo) está dividido em sete itens. Nos quatro primeiros, discuto a concepção
empirista, a concepção racionalista e a concepção naturalista do conhecimento, mostrando
as repercussões delas para a educação, enfatizando o behaviorismo. Nesses itens estou
mostrando como as concepções clássicas, principalmente aquelas consolidadas na
modernidade européia, passando pelo iluminismo e chegando ao século XIX com o
positivismo interferiram significativamente no tipo de educação que passou a ser praticada
nas escolas a partir de então. Discuto como essas concepções interferiram para a
legitimação de um tipo de psicologia da aprendizagem baseada nos princípios da vertente
positivista, representada pelo comportamentalismo. Mostro como as concepções de
consciência, de aprendizagem e de conhecimento fundamentadas nessa vertente se
difundiram no ambiente escolar, deixando nele marcas que podemos perceber nitidamente
até os nossos dias. Por fim, mostro o quanto a abordagem comportamentalista trabalha com
uma concepção de ensino-aprendizagem que, pelas suas próprias limitações de
compreensão da forma de ser do fenômeno da aprendizagem, não consegue fundamentar
15
uma concepção pedagógica compromissada com uma visão política e epistemológica
libertadoras e viabilizadoras da autonomia dos educandos.
No quinto e no sexto itens, respectivamente, mostro a concepção fenomenológica de
Husserl sobre o conhecimento e a perspectiva marxista. A necessidade de mostrar ambas as
concepções se deve principalmente ao fato de que a fenomenologia existencial, para se
consolidar, aceitou contribuições das duas, porém fazendo restrições a pontos específicos.
Contra a fenomenologia de Husserl, a crítica se sobrepôs à excessiva ênfase que esse
filósofo deu ao sujeito na constituição do conhecimento. Contra o marxismo, a crítica
incide, principalmente, aos pressupostos materialistas, que, ao delegar ao sujeito um papel
secundário na produção das próprias idéias, acaba reduzindo-o a uma situação que lhe
subtrai a subjetividade.
No item 7 do capítulo 1, procuro expor as principais idéias defendidas pela
concepção fenomenológico-existencial do conhecimento, enquanto reação a todas as
concepções expostas nos quatro anteriores. Nesse sentido, procuro mostrar o olhar da
fenomenologia existencial, sobre o modo de ser da relação consciência-mundo/ sujeito-
objeto, evidenciando o entendimento não-dogmático que ela possui a respeito da ciência e
do conhecimento em geral.
O Capítulo 2 (A inspiração fenomenológica na concepção de ensino-
aprendizagem de Paulo Freire) é o centro e a razão de ser desse trabalho. Para discorrer
sobre o meu objeto de estudo mais específico, que é a concepção de ensino-aprendizagem
freireana na sua dimensão fenomenológica, dividi esse capítulo em três itens.
No primeiro deles (Paulo Freire: A politicidade assumida em favor do ser mais)
procuro ressaltar a categoria que acredito ser a mais importante contribuição de Paulo
Freire para o pensamento pedagógico já produzido: a politicidade. Quero deixar claro nesse
item que não dá para compreender qualquer “pedaço” do pensamento de Paulo Freire sem
relacioná-lo com o fato de que a razão última de sua obra é contribuir para construção de
uma sociedade mais justa, que respeite a vocação humana, no seu direito de ser mais.
Portanto, em Freire, toda a discussão sobre a educação que queremos, está intimamente
relacionada com a discussão da sociedade que queremos construir.
Sendo assim, para superação da sociedade que aí está, não dá para se pensar em uma
educação em favor dos interesses políticos e econômicos de todos os grupos sociais. Nesse
sentido, Freire ressalta sempre a quem serve a educação que ele propõe.
16
Assim, sua compreensão da educação defende que não há educação neutra. A
educação é sempre política em favor de alguém ou de algum grupo. Dessa forma, a
educação libertadora só pode ser compreendida, se relacionada com a realidade social e
política contra a qual Paulo Freire se posiciona. Toda proposta freireana converge para a
politicidade. Se eu omitisse essa convergência, estaria desconsiderando o que há de
essencial em seu pensamento pedagógico.
No segundo item (O ensino-aprendizagem na obra de Paulo Freire) analiso a
concepção freireana de ensino-aprendizagem de maneira ampla. Nele, discuto algumas
categorias que me parecem que Paulo Freire compreende como centrais para definir a sua
concepção de ensino-aprendizagem. Assim, a idéia central desse momento do trabalho é
mostrar que a concepção de ensino-aprendizagem freireana possui uma originalidade e uma
amplitude que normalmente não existe em concepções mais convencionais. Dessa forma,
enfatizo a importância que a construção dialógica dos conteúdos programáticos possui na
concepção educacional de Paulo Freire.
No terceiro item do capítulo 2 (A presença da fenomenologia existencial como
um dos pressupostos epistemológicos da concepção freireana de ensino-
aprendizagem), discorri sobre a influência da fenomenologia existencial na concepção
freireana de ensino-aprendizagem. Mostro como há categorias comuns no discurso
freireano e no discurso fenomenológico-existencial. Procuro, enfim explicitar que, ainda
que a fenomenologia não tenha sido uma corrente filosófica determinante na configuração
da concepção freireana de educação, ela possui um papel importante na compreensão
freireana do fenômeno do ensino-aprendizagem enquanto uma experiência total (político-
ideológica, ética, estética, pedagógica e gnosiológica), sendo que dentro dessa totalidade,
aprofundo considerações na sua dimensão epistemológica.
Esse trabalho também é composto por algumas considerações finais, por meio das
quais eu busquei reiterar o papel que acredito que esse texto pode ter no sentido de se
compreender a problemática da relação ensino-aprendizagem. Além disso, também nesse
momento busquei falar de maneira um pouco mais detalhada sobre a realidade dos
educadores atualmente, procurando evidenciar a realidade de desesperança e desilusão
preponderante e a necessidade de se superar esses sentimentos para que a profissão de
educador ou educadora ganhe um sentido político em que nós, educadores, nos assumamos
como anunciadores de uma outra sociedade possível.
17
Por fim, esse trabalho é composto de uma bibliografia que foi consultada, desde o
início do projeto que deu origem a essa dissertação, para que as idéias aqui expostas
pudessem ser semeadas, amadurecidas e ampliadas.
18
Capítulo I
A concepção fenomenológica existencial sobre o conhecimento:
uma reação às epistemologias clássicas, à fenomenologia
idealista de Husserl e ao marxismo
A relação de ensino-aprendizagem lida com o conhecimento. No entanto, apesar de
utilizarmos a palavra conhecimento no singular, não podemos nunca esquecer que, na
realidade, o que existe são conhecimentos. Ou seja, ao falarmos de conhecimento,
precisamos ter clareza de que não se trata de uma “coisa” única sobre a qual há um
consenso. Não se trata de algo a que podemos nos referir achando que historicamente foi
construída uma idéia única a respeito de como essa palavra deve ser entendida. Pelo
contrário, como veremos nesse capítulo, há toda uma discussão profunda que foi feita e que
é feita até os dias de hoje sobre quais são as condições de possibilidade que tornam o
conhecimento a respeito do mundo em algo seguro e livre da possibilidade de erro.
Nesse sentido, é importante deixar claro que, de maneira geral, entende-se por
conhecimento dois fenômenos que, apesar de estarem relacionados, não é possível dizer
que são os mesmos. Por um lado, quando se fala em conhecimento, normalmente entende-
se que se refere ao produto final de um processo de elaboração de explicações sobre
qualquer fenômeno que seja. Por exemplo, falamos em conhecimento do senso comum, em
conhecimento científico, em conhecimento filosófico etc. O que há de comum entre esses
exemplos é que todos se referem a uma série de saberes existentes que, apesar de terem
naturezas diferentes, possuem um conjunto de idéias já produzidas e que fazem parte de um
patrimônio cultural ao qual recorremos para responder às nossas necessidades.
Por outro lado, a palavra conhecimento também pode se referir ao processo em que
o sujeito cognoscente se relaciona com um determinado objeto cognoscível para produzir,
aí sim, um tipo de produto final que podemos chamar de conhecimento no sentido
explicitado no parágrafo acima. Ou seja, quando, por exemplo, falo da concepção de
conhecimento de Descartes, estou me referindo ao modo pelo qual esse autor compreende
como ocorre a relação entre sujeito e objeto do conhecimento. Em outras palavras, estou me
remetendo ao modo como esse filósofo concebe a sua teoria do conhecimento. E essa
19
questão da teoria do conhecimento é uma problemática que se coloca como “anterior” à
discussão do produto final. Ou seja, é compreendendo como se dão as relações entre sujeito
e objeto do conhecimento, que poderemos entender o significado profundo do
conhecimento final que surgiu como resultado dessa mesma relação. Dessa forma, pode-se
afirmar que a principal pergunta que se coloca para a teoria do conhecimento é justamente a
seguinte: quais são as condições que interferem e que são premissas para que um
determinado tipo de conhecimento (seja qual for ele) seja produzido?
Ao compreender tais condições, pode-se entender algumas razões de ser que estão
por detrás do conhecimento escolar e por detrás do modo como esse conhecimento está
sendo preponderantemente trabalhado. Se esse conhecimento é tido como uma verdade
absoluta, fundamentando-se, portanto, em uma teoria do conhecimento que garante essa
verdade, provavelmente a escola terá um grande trunfo na mão para justificar a sua postura
impositora de verdades já descobertas e, portanto, a escola poderá se legitimar enquanto
doadora do saber universalmente válido. Por outro lado, se a teoria do conhecimento nos
conduzir a outros pressupostos, certamente teremos outro conhecimento e, portanto,
teremos que lidar diferentemente com ele dentro da sala de aula.
Por isso, esse capítulo tem como primeiro objetivo explicitar algumas teorias do
conhecimento clássicas que fundamentaram por muito tempo um tipo de conhecimento que
se apresentava como a verdade última sobre o mundo e garantia, assim, uma concepção de
educação que se legitimava por essa crença. Em seguida, procurarei mostrar as críticas
feitas por Husserl e pelo marxismo às teorias do conhecimento clássicas, para, por fim,
apresentar a proposta filosófica que aqui identifico como fenomenologia existencial, para
podermos compreender de maneira geral essa corrente e depois mostrar a sua influência
sobre a concepção freireana de ensino-aprendizagem.
1. A concepção empirista de conhecimento
Quando o indivíduo nasce, ele é uma folha em branco. Basicamente esse é um dos
pressupostos das teorias clássicas empiristas a respeito da constituição do conhecimento.
Com isso, os empiristas queriam afirmar que, ao contrário do que muitos filósofos haviam
defendido, os indivíduos não nascem com idéias e conhecimentos prontos no intelecto. Para
os empiristas, todos os conhecimentos e princípios intelectuais advêm do mundo externo ao
espírito, sendo que o indivíduo só passa a ser capaz de conhecer na medida em que se torna
20
passível de experimentar, por meio dos seus sentidos, o mundo que o envolve. Nesse
sentido, a relação entre o sujeito do conhecimento e o objeto exterior ocorre mediada por
sensações.
A sensação é considerada para os empiristas o produto final de um processo que se
inicia com um estímulo promovido pelo mundo exterior sobre o sujeito. Assim, o objeto
sensível possui várias qualidades. A experiência faz com que esse objeto chegue aos órgãos
dos sentidos, fazendo com que o corpo tenha alguma reação imediata. O resultado dessa
reação será a sensação, que por sua vez será a matéria-prima de todas as idéias que se
formarão na razão. Nessa perspectiva, é preciso ressaltar a correspondência e a identidade
que existe entre as qualidades do objeto externo e o sentimento interno que o sujeito possui
das qualidades sentidas, de tal modo que é quase impossível distinguir o estímulo exterior e
o sentimento interior.
Grosso modo, se pudermos fazer uma certa esquematização seqüencial da
concepção empirista, poderíamos relatar o trajeto da relação objeto-sujeito da seguinte
forma: primeiramente há uma coisa exterior que “libera” estímulos que agem sobre os
nossos sentidos. Esses estímulos passam dos nossos sentidos para os canais transmissores
do nosso sistema nervoso, chegando até o cérebro. O nosso cérebro interpreta a mensagem
enviada pelos sentidos e dá uma resposta que volta pelos transmissores nervosos ao órgão
excitado sob a forma de uma sensação. O interessante é que esse trajeto é realizado pelas
diversas partes do objeto, como se esse fosse constituído por pontos que sucessivamente
chegam como estímulos aos nossos órgãos. A sensação é nome que se dá ao resultado final
de cada ponto sentido. Assim, a sensação, em sua pureza, é a mais elementar das
experiências, já que é justamente a soma de todas as sensações é que dão ao sujeito a
possibilidade de constituir o objeto tal como ele é. Por exemplo, se vemos uma superfície
vermelha, para o empirismo, o que de fato acontece é que temos vários pontos do vermelho
sentido se associando independentemente pela própria força do objeto. Essa associação dos
pontos faz com que o objeto seja apreendido por nós não como sensações separadas, mas
sim como uma unidade percebida. É essa unidade que me permite falar em um vermelho
contínuo para além de uma mera sensação pontual.
“Quando examinamos a sensação, notamos que ninguém diz que sente o
quente, vê o azul e engole o amargo. Pelo contrário, dizemos que a água
está quente, que o céu é azul e que o alimento está amargo. Isto é,
sentimos as qualidades como integrantes de seres mais amplos e
complexos do que a sensação isolada de cada qualidade. Por isso, se diz
21
que, na realidade, só temos sensações sob a forma de percepções, isto é,
de síntese de sensações”. (CHAUÍ, 1995: 120)
Essa citação conduz a um dos elementos fundamentais para se compreender o modo
de ser da teoria do conhecimento empirista. Como eu já disse, o ato da sensação nos dá as
qualidades sensíveis dos objetos externos de maneira pura e direta, sendo que o sentimento
interno do nosso corpo corresponde a elas passivamente, já que, nele, elas se manifestam
enquanto qualidades sentidas. No entanto, na hora de falarmos do que sentimos, nunca nos
referimos a sensações, mas sim a percepções. Isso significa que os estímulos externos e as
diferentes qualidades dos objetos atuam simultaneamente ou sucessivamente sobre
diferentes órgãos ou sobre um mesmo órgão, dando-nos a apreender a realidade exterior
somente enquanto realidade percebida, portanto mais complexa, do que simplesmente
sentida.
Assim, pode-se dizer que, no empirismo, o objeto chega para o sujeito enquanto
conjunto de sensações reunidas. Porém, nesse processo não há qualquer tipo de
interferência do sujeito, já que este se subordina passivamente a um processo que está
totalmente fora de qualquer controle da sua parte. É como se a lei de constituição dos
objetos estivesse presente neles mesmos, só cabendo ao sujeito traduzir, ou melhor,
reproduzir igualmente aquilo que a ele se apresentou e materializar essa reprodução num
conhecimento sistemático. Aliás, é a partir desses pressupostos que o conhecimento
científico vai se constituir para o empirismo. As idéias que vão compor a ciência e os
princípios da racionalidade vão se estabelecer no nosso espírito numa “entidade” que
podemos chamar de memória. Na medida em que as nossas vivências vão se repetindo e as
nossas sensações e percepções dos fenômenos vão se sucedendo, as idéias guardadas pelo
nosso espírito começam a ser associadas, seja pela semelhança que carregam em si, seja
pela proximidade espacial entre elas ou pela sucessão temporal na qual elas se demonstram
mutuamente implicadas.
Portanto, por causa da observação e da experimentação habitual, repetitiva e
insistente, nós conseguimos descobrir a lógica interna aos fenômenos exteriores a nós. A
associação, a combinação ou a separação de idéias, realizadas pelo nosso entendimento,
razão ou pensamento, que chegam a nós por meio dos sentidos, serão os atos da nossa
consciência que nos conduzirão a um conhecimento seguro a respeito do mundo.
22
Sobre essa questão de um conhecimento seguro a respeito do mundo é necessário
que façamos uma ressalva em se tratando do empirismo moderno. Em Bacon e em Locke,
por exemplo, era possível, por meio do empirismo, a ciência pretender atingir um estatuto
de universalidade e necessidade. Para eles, o conhecimento que se consolidava a partir do
paradigma por eles defendido tinha uma validade universal, ou seja, era válido para todas as
pessoas, em todos os lugares e em todas as épocas; e uma necessidade intrínseca, ou seja, as
coisas só poderiam ser do jeito que são e não de outra maneira. No entanto, Hume, filósofo
empirista inglês que viveu no século XVIII, considerava que tanto a universalidade quanto
a necessidade do conhecimento, pretendidas pelos seus antecessores, era impossível de ser
alcançada, já que são dois atributos que justamente contrapõem-se ao próprio modo de ser
do conhecimento empírico. Acreditava ele que, tanto a ciência, quanto os princípios da
racionalidade não passavam de hábitos psíquicos que os seres humanos passavam a ter na
medida em que iam observando os mesmos fenômenos se repetindo constantemente na sua
frente. Isso não significa obviamente que do ponto de vista empírico esses fenômenos vão
aparecer do mesmo modo, ou seja, não há qualquer evidência empírica para acreditarmos
que os fenômenos vão necessariamente acontecer do modo pelo qual explicamos que eles
acontecem.
“Se, por exemplo – diz Hume -, toma-se o juízo causal ‘a pedra esquenta
porque os raios de sol incidem sobre ela’, constata-se que a primeira e
última partes (‘a pedra esquenta’ e ‘os raios de sol incidem sobre ela’)
têm como origem duas inquestionáveis impressões sensíveis, uma tátil e
outra visual. O mesmo não acontece com a vinculação expressa na
palavra ‘porque’. Qual seria, então, a origem desta última?
“Para Hume a resposta encontra-se numa habitual associação entre o
posterior e o anterior. O fato de um fenômeno ser sempre seguido por
outro, no tempo, faz com que os dois sejam relacionados como se
houvesse conexão causal entre eles”. (MONTEIRO, 1996: 10)
Nesse sentido, a versão Humeana de empirismo nos conduz a um ceticismo no que
diz respeito à validade universal do conhecimento científico. Assim, a ciência não tinha,
para Hume, o papel de nos tirar de uma situação de “desconsolo” teórico, já que ela não nos
dá as respostas seguras e irrefutáveis, que tanto muitos buscavam, a respeito da verdade do
mundo. Isso não significou, no entanto, que o ceticismo predominou enquanto visão de
mundo norteadora da produção científica que se consolidava principalmente nos séculos
XVIII e XIX na Europa. A partir de então, o otimismo quanto à capacidade humana de
conhecer a verdade e de realizar a felicidade para todos só aumentou. O empirismo, nesse
23
sentido, contribuíra significativamente para que se consolidasse uma visão de natureza
perfeita que funcionava a partir de leis próprias. Ao se apropriar dessas leis, os homens
poderiam conhecer melhor a realidade. Sabendo sobre ela, poderiam controlá-la.
Controlando-a, ampliariam o seu poder.
Discordando dos princípios, mas chegando a resultados não muito diferentes, o
racionalismo intelectualista ofereceu outras respostas para o problema da relação sujeito-
objeto do conhecimento. É sobre essa perspectiva que estarei falando no próximo item.
2. A concepção racionalista/ intelectualista de conhecimento
A teoria do conhecimento na perspectiva racionalista atribui grande importância
para o sujeito do conhecimento enquanto principal responsável pela constituição das idéias
e dos conceitos produzidos pela atividade intelectual do ser humano. Nesse sentido, se no
empirismo o mundo exterior à razão tinha um papel fundamental e até mesmo controlador
da atividade desta, por outro lado, no racionalismo, os objetos do mundo sensível
desempenham um papel totalmente passivo frente à atividade sintetizadora realizada pela
razão. Assim, sensação e percepção que tinham papéis fundamentais na constituição do
conhecimento na perspectiva empirista, passam a ter papéis meramente secundários, na
medida em que se submetem totalmente ao controle do intelecto.
Sensação e percepção não têm o poder de, por si mesmas, gerar e organizar o
conhecimento. Cabe a ambas recolher qualidades pontuais, dispersas e elementares dos
objetos do mundo exterior, que são trazidas do mundo sensível ao mundo interno do sujeito
do conhecimento. No entanto, serão as próprias faculdades da razão que possibilitarão as
distinções das diferentes sensações mediante a decomposição dos objetos em qualidades
simples e a recomposição dos objetos, organizando-os por meio da ordenação das
sensações e dando sentido às mesmas. Essa ordenação e atribuição de sentido que, no
empirismo, era promovida pela percepção, é agora efetivada pelo entendimento. É esse que
faz a síntese das informações confusas que foram trazidas pelos sentidos.
Ou seja, no nível da percepção intelectualista o que há é uma atividade
exclusivamente promovida pela própria estrutura intelectual do sujeito. Por isso, podemos
dizer que, tanto a sensação quanto a percepção no intelectualismo possuem a razão
enquanto condição de possibilidade de sua efetivação. Não há qualquer uma das duas se
não existir antes uma razão que me faz saber que estou tendo uma sensação ou uma
24
percepção. E isso é uma condição que coloca o sujeito no centro do processo de
conhecimento. Por outro lado, o empirismo fazia com que o objeto exterior promovesse a
percepção. Ela se tornava para os empiristas a própria condição de existência da posterior
atividade do entendimento que só atua “bem mais tarde” juntando e relacionando as idéias
nascidas do processo senso-perceptivo.
Para que possamos compreender melhor essa perspectiva intelectualista, falarei,
ainda que um tanto quanto superficialmente, sobre os dois representantes mais
significativos dessa corrente para que tenhamos uma dimensão mais apropriada do que essa
abordagem propunha para a compreensão do conhecimento.
2.1 Teoria do conhecimento em Descartes
O grande problema com que Descartes se deparava nos séculos XVI e XVII era com
o dinamismo das investigações científicas de sua época que cada vez mais demonstravam
que as concepções aristotélicas a respeito do funcionamento do mundo físico se mostravam
incapazes de dar conta daquilo que estava sendo constatado pelas “descobertas” realizadas
por Nicolau Copérnico, com a sua teoria heliocêntrica, e por Galileu, com sua mecânica
terrestre que dava novas explicações para os fenômenos da natureza.
Isso significava que as bases filosóficas das ciências da natureza que predominaram
por milhares de anos também precisavam ser revistas para que o conhecimento pudesse ser
estruturado num alicerce sólido que possibilitasse que cada um novos conhecimentos fosse
uma conseqüência das certezas primeiras. Quando as raízes do conhecimento estivessem
sólidas, todas as outras partes da árvore do saber poderiam ser consideradas como
conhecimentos universais e necessários.
Tratava-se, portanto, de reconstruir o edifício do conhecimento. No entanto, para
que essa construção fosse realizada de maneira confiável, era necessária uma total revisão
das opiniões que, até o momento, estavam sendo consideradas como verdadeiras, mas que
efetivamente só estavam conduzindo os filósofos ao erro. Isso significava uma necessidade
de reforma do entendimento para que o ser humano não se deixasse mais levar por opiniões
alheias (pelo simples critério de autoridade de quem as está exprimindo) tão pouco pelas
suas vontades que, por serem mais fortes do que o intelecto, fazem com que opiniões sejam
formuladas sem que passem pelo crivo desse último.
25
Assim, a primeira atitude cartesiana foi a de admitir que tudo é duvidoso e incerto e
para comprovar esse argumento, o filósofo utiliza-se da estratégia da dúvida metódica. Essa
consiste em submeter todos os conhecimentos que até então o filósofo tinha a um exame
crítico, para que se analise até que ponto esses mesmos conhecimentos estavam realmente
fundamentados em bases sólidas. Nesse sentido, todos os conhecimentos advindos pelos
órgãos dos sentidos, todos os conhecimentos matemáticos, enfim, todos os juízos até então
feitos foram suspensos na medida em que Descartes demonstrava que cada um deles
poderia estar sujeito a incertezas. No entanto, como conseqüência desse processo de ataque
a todos os saberes, um saber emergia como sendo uma evidência que não poderia ser
questionada. Se não poderia ainda haver a certeza sobre a existência de qualquer coisa, pelo
menos, poderia haver a certeza de que, se o filósofo estava duvidando, era evidente que ele
estava pensando, e se era evidente que ele estava pensando, era necessário que alguma
coisa pensasse, portanto, essa coisa existe. Daí a famosa formulação: “Penso, logo existo”.
Para Descartes, esse juízo não era um simples jogo de palavras, mas sim uma
primeira certeza construída totalmente com base em atividades exclusivamente racionais e
que, por estar totalmente isenta de qualquer dúvida, poderia servir como fonte para todas as
outras certezas, bastando para isso seguir as regras ditadas pela própria razão/
entendimento/ intelecto. A partir de então, as certezas foram se sucedendo, inclusive
passando pela prova racional da existência de Deus, que por sua vez seria a garantia de que
o mundo exterior efetivamente existe e, portanto, é passível de ser compreendido.
Na verdade, Descartes estava promovendo uma mudança de rumos na história da
filosofia na medida em que propunha uma problematização não mais do mundo em si como
primeira atitude do conhecimento, mas sim propunha uma reflexão cuidadosa sobre a
própria atividade de conhecer. Propunha, assim, um conhecimento do conhecimento (uma
teoria do conhecimento), ou seja, uma investigação sobre os próprios princípios que
deveriam ser respeitados para que toda e qualquer investigação científica pudesse ser bem
sucedida. Nesse sentido, vale a pena ressaltar, não podemos desprezar as íntimas relações
entre teoria do conhecimento e as conseqüências que essa traz para a educação.
Assim, a preocupação da filosofia passa a ser o estudo da capacidade humana de
conhecer e, portanto, a relação entre o pensamento e as coisas, a relação entre o sujeito e o
objeto do conhecimento.
26
A partir das primeiras certezas, Descartes construiu um encadeamento lógico que,
por uma argumentação eminentemente racional e respeitando as regras da dedução lógica,
ia formulando novas idéias racionais. Foi assim que o filósofo chegou até a sua física,
sendo que as leis que regiam a natureza (que já tinha sua existência comprovada também
racionalmente) eram também exclusivamente produto da atividade do intelecto.
As verdades, portanto, iam se sucedendo a partir de idéias inatas. Ou seja, Descartes
provava que todos os seres humanos nascem com idéias já prontas e que correspondem à
verdade das coisas do mundo. Ou seja, num mundo em que todas as coisas mudam e tudo,
portanto, seria incerto, Descartes encontra um critério de avaliação da verdade: as idéias
inatas e conhecidas por um ato imediato de conhecimento: a intuição intelectual.
Essas idéias não seriam cópias das coisas dos seres e dos fatos, mas correspondem a
eles na medida em que conseguem representar a essência das coisas, ou seja, as relações
internas, as propriedades e as qualidades que se encontram para além das próprias
transformações a que as coisas estão sujeitas. A razão, portanto, tem a capacidade de
alcançar as características universais do mundo, sua essência imutável. E é por isso que o
conhecimento universal, necessário, justificado e, portanto, científico, é possível, já que as
condições para que ele seja alcançado podem ser realizadas exclusivamente pela razão
humana. Por isso, Descartes ficou conhecido como o fundador do racionalismo moderno.
2.2 Teoria do conhecimento em Kant
Enquanto o empirismo de Locke e o inatismo de Descartes afirmavam que a
realidade é racional e, portanto, poderia ser totalmente conhecida pelas idéias da razão (o
primeiro via a origem dessas idéias na sensação e o segundo no entendimento,
fundamentando assim as suas concepções filosóficas na idéia da verdade como
correspondência entre mundo exterior e idéias do intelecto), Hume contestava ambos ao
demonstrar que a ciência da natureza que os filósofos estavam tentando fundamentar não
possui qualquer fundamento lógico. Para ele, o conhecimento não passava do produto da
nossa observação que percebe nos acontecimentos e nos fatos uma certa repetição. Ao
percebermos essa repetição, associamos arbitrariamente idéias. Não podemos afirmar que
tais idéias estão de fato associadas na realidade tal como ela é, já que não podemos ver,
experimentar e sentir as relações entre as coisas. Nesse sentido, nada me garante que algum
dia as associações que fazemos por hábito e costume não possam falhar. Portanto, é
27
impossível, para Hume, estabelecer princípios universais e necessários fundadores do
conhecimento, o que não impede que a ciência possua um alto valor prático.
De modo geral, é nesse contexto filosófico que Kant encontra os problemas para
desenvolver o seu sistema filosófico. Seu objetivo era justamente responder às indagações
propostas por Hume, demonstrando as limitações do empirismo e do inatismo cartesiano.
Para cumprir com essa pretensão, Kant promove aquilo que ele mesmo denominou
Revolução Copernicana. Essa revolução consistia numa mudança de enfoque da Filosofia
que, no entender de Kant, até então só havia se preocupado em colocar o sujeito do
conhecimento orbitando em volta da realidade exterior. Nesse sentido, o objeto ganhava
uma importância determinante, já que submetia o sujeito à sua estrutura racional, cabendo a
esse último tão somente descrever o objeto tal como ele é em essência. Para Kant, tratava-
se de colocar o sujeito no centro da relação sujeito-realidade exterior, fazendo com que o
objeto se submetesse à estrutura universal da razão subjetiva. Isso significava colocar a
razão no centro do conhecimento, sendo que, antes de qualquer coisa, a filosofia deveria
começar indagando-se sobre a própria razão que, na verdade, não está nas coisas, mas única
e exclusivamente em nós.
Assim, para responder ao desafio humeano, Kant explica que a razão humana possui
uma estrutura inata e universal que, portanto, não varia no tempo e no espaço. O que está
sujeito às variações espaço-temporais são os conteúdos advindos da experiência sensível.
Nesse sentido, se por um lado, contra Descartes, Kant nega a idéia de que existem idéias
inatas, já que idéias advêm dos conteúdos que são trazidos pela experiência, havendo
apenas uma estrutura/ forma inata. Por outro lado, contra os empiristas, Kant nega que a
estrutura da razão venha da experiência tal como esses defendiam.
Grosso modo, Kant fala que o conhecimento é produto de uma síntese que a razão
promove, por meio de suas estruturas a priori, dos conteúdos particulares advindos do
mundo exterior. Assim, para ele, duas estruturas (a da sensibilidade – responsável pela
organização espaço-temporal; e a do entendimento – dotada de categorias a priori que
organizam os conteúdos empíricos) subordinam a percepção e são condições para que a
realidade exterior seja conhecida. Assim, a experiência confusa e desorganizada só se
efetiva enquanto percepção na medida em que a razão age de forma ordenadora da
realidade exterior. Essa consciência universal é que dá sustentação para o que Kant
chamará de sujeito transcendental.
28
“O sujeito transcendental kantiano é um sujeito formal e abstrato, uma
espécie de estrutura universal da subjetividade, contendo as condições de
possibilidade do conhecimento. Esta estrutura, constitutiva de toda
relação cognitiva com a realidade, consiste nas formas puras da
sensibilidade, a intuição pura, e do entendimento, a capacidade de
formular juízos.” (MARCONDES, 2002: 21-22)
O sujeito transcendental será justamente a garantia kantiana para que as ciências
sejam possíveis e válidas, e não apenas, como queria Hume, hábitos psicológicos
associativos. Nesse sentido, a razão com sua estrutura universal, é a garantia de que a
verdade é possível.
No entanto, o conhecimento só pode se expressar por juízos e para que esses juízos
tenham algum valor de verdade, é necessário que eles se fundamentem nas estruturas a
priori do intelecto. Isso significa que os juízos, para Kant, não têm como base a realidade
em si do mundo exterior, mas tão somente eles conseguem expressar a realidade para a
razão. A realidade só se apresenta ao sujeito transcendental na medida em que é “moldada”
pelas formas da sensibilidade e pelas categorias do entendimento que pertencem
universalmente a todos os indivíduos. Por isso Kant afirma que só podemos formular juízos
sobre a realidade enquanto fenômeno e não sobre a realidade em si. Não falamos das coisas
em si. Somente coisas para nós (humanidade).
Se o conhecimento só se formula por juízos e os juízos só podem se referir à
realidade como fenômenos, só podemos conhecer os fenômenos, sendo que as coisas só
passam a existir e serem passíveis de serem conhecidas após formularmos um juízo sobre
elas. Como dissemos, os juízos precisam fundamentar-se na estrutura universal da razão
para que eles possam ser considerados universais e necessários e, portanto, embasar a
ciência e a filosofia. Por isso, Kant afirma que todo o conhecimento que se quer legítimo
precisa estar, em última instância, fundamentado em juízos sintéticos (aqueles em que o
conteúdo do predicado dá informações novas sobre o sujeito) e a priori (não dependem da
experiência, mas sim apenas da estrutura universal e necessária da razão).
O exemplo clássico desse tipo de juízo é o princípio da causalidade que, para Kant,
é a expressão verbal do modo universal e necessário dos seres humanos de relacionar e
conhecer a realidade. Portanto, esse princípio é formal, já que tem como base exclusiva a
estrutura formal do intelecto.
Enfim, dessa forma Kant procurava demonstrar que era possível falarmos de
Conhecimento com letra maiúscula, já que a partir do momento em que há fundamentos
29
seguros e indubitáveis, o trabalho deve ser encaminhado no sentido de derivar a partir das
primeiras certezas todas as demais. Por isso, Kant defendia a física newtoniana como um
conhecimento que representava bem a realidade, já que seus princípios mostravam-se
adequadamente fundamentados em crenças verdadeiras e justificadas.
“Kant acreditava que, por meio de sua epistemologia, estava conferindo
os fundamentos à física de Newton (1642-1727), e que esta era, por estar
bem fundamentada, a expressão das noções mais gerais que dizem
respeito à estrutura do mundo físico. E, paralelamente, o que faz o
mesmo trabalho a respeito do mundo mental é a epistemologia... Assim,
as teorias científicas nas ciências maduras nos dão uma representação
intocável ou irrevisável do mundo.
“Utilizando agora os termos dos epistemólogos do século XX, podemos
dizer que tais teorias incorporam crenças verdadeiras e justificadas. Elas
são justificadas porque foram obtidas a partir de conhecimentos evidentes
por si e, logo, indubitáveis, sendo, obviamente, também verdadeiros. E
tais crenças são verdadeiras porque dizem como o mundo é; elas o
representam adequadamente. Assim, a epistemologia tradicional
fundacionalista, de forma geral, compreende que há conhecimento
apenas onde há crenças verdadeiras e justificadas. O conhecimento é,
portanto, um tipo especial de crença. São idéias que temos das coisas,
idéias cuja verdade podemos mostrar fora de toda dúvida.” (DUTRA,
2000: 31)
As epistemologias fundacionalistas são aquelas que buscam, como vimos em
Descartes, Locke e Kant, fundamentos últimos para que todo o conhecimento possa ser
produzido com bases sólidas, seja pela capacidade que a razão tem de descobrir verdades
evidentes por si mesmas, seja pela capacidade de relacionar idéias que realmente
representam o mundo tal como ele é, seja pela capacidade da razão constituir o mundo por
meio das suas estruturas universais.
Dessas epistemologias serão retiradas implicações para a aprendizagem, já que
conhecer e aprender possuem (ou não), entre si, íntimas relações que estarei analisando no
próximo item.
3. A concepção de educação e de aprendizagem que emergem do empirismo e do
racionalismo modernos
O Iluminismo, enquanto movimento intelectual que teve como uma das suas
principais marca a crença na capacidade da razão humana de buscar e encontrar a verdade
sobre o mundo desde que fosse conduzida pelos fundamentos e procedimentos corretos, vai
provocar mudanças na concepção de educação vigente na Europa do século XVIII.
30
O otimismo epistemológico e científico que rondava as produções dos pensadores
dessa época explicava-se principalmente pelo fato de os iluministas, de maneira geral,
acreditarem que a partir do momento em que cada ser humano fosse dirigido pela sua
própria razão, inevitavelmente, haveria a mudança na própria forma dos indivíduos se
relacionarem em todas as áreas da vida social. A partir de então, a construção de uma
sociedade efetivamente movida pelos princípios de liberdade, justiça e verdade seria
possível na medida em que a mentalidade iluminista se espalhasse para todas as pessoas e
no momento em que cada pessoa individualmente pudesse ter a oportunidade de se
conduzir pelos critérios intrínsecos à sua própria condição humana de sujeito racional. A
felicidade plena, irrestrita e universal era vislumbrada no horizonte do projeto iluminista.
Na busca desses ideais, a educação, a pedagogia e a escola teriam papéis fundamentais.
“O pressuposto básico do iluminismo é, portanto, que o homem, todos os
homens, são dotados de uma luz natural, de uma racionalidade capaz de
permitir que conheçam o real, e que ajam livre e adequadamente para a
realização de seus fins. A tarefa da Filosofia, da Ciência e da Educação é,
então, permitir que esta luz natural possa ser posta em prática,
removendo-se os obstáculos que a impedem e promovendo o seu
desenvolvimento. O iluminismo possui, portanto, um caráter pedagógico,
enquanto projeto de formação do indivíduo, podendo ser visto também
como herdeiro do humanismo inaugurado no Renascimento (século
XVI).” (MARCONDES, 2002: 23)
Foi no momento em que essas idéias se proliferaram dentro do continente europeu,
que a escola começou a ganhar uma importância fundamental como núcleo disseminador
do ideal de homem dotado de um espírito racional, técnico e científico necessário à
consolidação de uma sociedade pautada pelos ditames do intelecto humano capaz de
conhecer a realidade e capaz de agir de acordo com tal conhecimento.
Nessa perspectiva, o Conhecimento (no sentido restrito que essa palavra tomava
para os fundacionalistas) é entendido como crença verdadeira e justificada. Portanto, nem
todo saber era tido como algo que poderia receber o qualificativo de conhecimento. Ou
seja, só se pode afirmar que uma pessoa conhece, no sentido rigoroso, quando esta possui
uma crença verdadeira e justificada sobre o objeto em questão. Ao se falar em
Conhecimento, portanto, já está implícita a idéia de que não há a possibilidade do erro.
Nesse sentido, não há como se falar em conhecimento errado, já que, se se trata de
conhecimento, estamos lidando com algo que não admite a idéia de erro, já que o
conhecimento está pautado eminentemente em critérios de certeza.
31
Uma pessoa, portanto, só pode achar ou pensar erroneamente, mas não pode (pois
seria um paradoxo) conhecer erroneamente. Por isso, aprender e conhecer, nessa
perspectiva, são coisas diferentes. Quando falamos de aprendizagem, estamos falando de
algo que é passível de erro, já que ao tomar conhecimento de alguma coisa que já é sabida
de outros, é possível que ocorra uma falha na transmissão da informação ou na experiência
sensível que pode nos enganar.
Diante disso, a concepção de conhecimento dessas teorias fundacionalistas implica
numa concepção de aprendizagem que se distancia da idéia de aprendizagem como
construção de conhecimento. Aprender não é visto como um processo de construção do
conhecimento, tão pouco é visto como um processo que conduz necessariamente à
aquisição de conhecimento, já que este último só existe quando o indivíduo demonstra
publicamente ter uma crença verdadeira (por representar o mundo tal como ele é) e
justificada (pois fundamentada em certezas inquestionáveis).
“Essa separação entre conhecer e aprender decorre também da noção
tradicional de que o conhecimento é uma forma de representação. Uma
crença é verdadeira se representa as coisas tal como são, se corresponde
ao que é o caso. O erro resulta de meios inadequados para tomar
conhecimento de uma informação e produz representações inadequadas,
crenças falsas. Para a epistemologia tradicional, se o conhecimento é um
tipo de crença – a crença verdadeira e justificada -, conhecer é aquele
processo que nos conduz a crenças verdadeiras, mas aprender é um
processo que pode nos conduzir a crenças falsas. Logo, nem todo caso de
aprendizagem é um caso de aquisição de conhecimento, e aprender nem
sempre conduz a conhecer ou a saber alguma coisa. Se for encarado
como um processo, o conhecimento é um tipo privilegiado ou especial de
aprendizagem, aquele em que o indivíduo chega a crenças verdadeiras e
justificadas. Ensinar e aprender são possíveis, portanto, apenas depois
que se tem conhecimento.
“... Aprender, no sentido especial do termo, é apenas receber o
conhecimento já adquirido, é receber a informação já tida como correta,
adequada, verdadeira”. (DUTRA, 2000: 37-38)
Sendo o conhecimento, enquanto produto final, uma representação da realidade tal
como ela é, toda e qualquer representação da realidade que não condiga com um
determinado padrão de resposta não pode ser considerada válida, já que a realidade se
apresenta ao entendimento ou por meio dele, de forma unívoca. No entanto, para que essa
representação única seja alcançada, é necessário que meios adequados para a produção do
conhecimento sejam adotados. Esses meios também não são possibilidades diversas a
serem exploradas, mas tão somente, um caminho único a ser seguido. Por isso, nem todo o
32
processo de aprender corresponde a um processo de conhecer, tampouco a algum
conhecimento. O processo de aprender, para que seja autêntico, precisa conduzir o
educando a crenças verdadeiras e justificadas. Por isso, essas preexistem ao processo de
ensino-aprendizagem que, nesse sentido, não é um processo de construção e de invenção,
mas sim uma busca daquilo que já foi descoberto por aqueles que seguiram os
procedimentos corretos e chegaram às crenças verdadeiras e justificadas. Tanto a realidade
a ser conhecida, como a informação produzida pelo sujeito do conhecimento, por estarem à
disposição de um tipo de consciência, que não é individual, mas sim transcendental, não
são passíveis de reformulações no processo de ensino-aprendizagem e isso,
inevitavelmente, conduz a um tipo de prática educativa específica.
Só para indicar previamente para onde Paulo Freire vai nos conduzir no que diz
respeito à prática educativa, já se pode adiantar que, na sua leitura, essa abordagem
epistemológica do conhecimento é inviabilizadora de uma educação e de uma
aprendizagem que respeitem o modo de ser da relação homem-mundo.
“Esta ‘concepção bancária’ implica,... outros aspectos que envolvem sua
falsa visão dos homens...
“Sugere uma dicotomia inexistente homens-mundo. Homens
simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros. Homens
espectadores e não recriadores do mundo. Concebe a sua consciência
como algo espacializado neles e não aos homens como ‘corpos
conscientes’. A consciência como se fosse alguma seção ‘dentro’ dos
homens, mecanicistamente compartimentada, passivamente aberta ao
mundo que a irá ‘enchendo’ de realidade.
“Mas, se para a concepção ‘bancária’ a consciência é, em sua relação
com o mundo, esta ‘peça’ passivamente escancarada a ele à espera de que
entre nela, coerentemente concluirá que não cabe ao educador nenhum
outro papel que não o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos.
Seu trabalho será, também, o de imitar o mundo. O de ordenar o que já se
faz espontaneamente.” (1987: 62-63)
Parece-me que Paulo Freire chega ao âmago do problema quando denuncia o
pressuposto epistemológico da educação bancária: a dicotomia homem-mundo. Como
vimos, tanto o empirismo quanto racionalismo não compreendem o sujeito do
conhecimento como uma subjetividade concreta em relação a uma realidade específica
também concreta. Ou seja, ambos não entendem a consciência e o mundo como dois pólos
de uma unidade que nunca deixam de se relacionar recíproca e dialeticamente. No caso do
empirismo, o sujeito do conhecimento é epistemológica e historicamente passivo na medida
em que o objeto possui total supremacia sobre o sujeito, sendo que a este cabe tão somente
33
descrever/ relatar impessoal e “friamente” aquilo que o objeto escreve para a nossa
percepção e que servirá de matéria-prima para a constituição das nossas idéias. No caso do
intelectualismo, o sujeito é historicamente passivo, na medida em que a sua consciência é
desistoricizada e desenraizada do seu contexto particular, específico e concreto. Um sujeito
universal não está ligado ao mundo na medida em que as especificidades de cada lugar e de
cada indivíduo estão encobertas pela onipresença de uma consciência transcendental, seja
do ponto de vista kantiano, enquanto consciência formalmente pré-existente à realidade,
seja, do ponto de vista cartesiano como consciência possuidora de idéias e conteúdos inatos
e anteriores a toda e qualquer experiência possível.
Seja como for, há aí uma crença “solidamente” fundamentada de que a configuração
do processo de conhecimento independe de variáveis que transcendem os limites lógicos,
portanto, não perpassando por elementos de ordem psicológica, histórica, social, cultural...
Além disso, o conhecimento no sentido rigoroso não admite o erro. Pedagogicamente
falando, esse só pode ocorrer quando o ensino não consegue representar adequadamente o
mundo para o indivíduo que, aprendendo inadequadamente, não conhece. Assim, a
dicotomia homem x mundo, não admite a possibilidade do processo de ensino-
aprendizagem enquanto uma prática de construção de conhecimento, mas tão-somente
como uma atividade de depósito de verdades.
Para DUTRA (2000), uma outra conseqüência da divisão e separação intransponível
entre conhecer e aprender promovida pelas epistemologias fundacionalistas é aquela que se
consolidou entre ciência pura x ciência aplicada. Entre teoria x prática. Cabe à primeira
retratar o mundo tal como ele é. Cabe à segunda interferir no mundo por meio das técnicas
com o fim de controlar os fenômenos naturais e até mesmo os humanos. Ensinar e aprender
são duas atividades que correspondem à prática, portanto, nelas não estão implicados os
processos de invenção teórica e de releitura do mundo. Por outro lado, conhecer, tratando-
se de uma atividade eminentemente intelectual, não possui qualquer relação necessária com
o mundo da prática, tratando-se sim de uma atividade pura que constrói uma filosofia e uma
ciência puras. Por detrás dessa pureza existe a idéia de que a mente está fora do mundo,
sendo que o seu âmbito é o de um mundo à parte e separado daquele que se encontra fora
dela. Nessa perspectiva, conhecer torna-se uma atividade suprema e sem qualquer contágio
com o mundo da prática. Portanto, ensinar e aprender acabam sendo a tentativa de realizar a
34
transmissão desse conhecimento puro para consciências “virgens” que devem se submeter a
uma relação unilateral de submissão ao que já está descoberto.
4. A concepção naturalista de conhecimento e o behaviorismo
Até o momento, apresentei teorias do conhecimento que procuravam fundamentar a
ciência e a filosofia em evidências ou em processos que assegurariam ao conhecimento um
estatuto de saber universal e necessário. Ou seja, as teorias até então discutidas propunham
argumentos logicamente encadeados que tinham como objetivo demonstrar que, ao se
respeitarem algumas regras da razão, seria possível construir uma ciência totalmente isenta
de erros e de falhas. Uma forma de se denominar esse tipo de teoria é fundacionalismo, ou
seja, aquela forma de explicação que procura um fundamento último e seguro para todo o
edifício do conhecimento científico elaborado pelo ser humano.
Em contrapartida ao fundacionalismo, surgiram várias e várias teorias do
conhecimento que defendiam a idéia de que não é possível dar um fundamento último para
o saber humano. Ou seja, essas teorias descartavam a hipótese de se chegar a um
conhecimento universal e necessariamente válido, já que, para elas é impossível almejar
que todos e todas possam representar, em todas as épocas e lugares, os objetos de
conhecimento de uma mesma forma. Nesse sentido, é impossível pretender que todas as
experiências individuais possam ser reduzidas a uma e única explicação legítima, já que o
modo pelo qual cada indivíduo se relaciona com o mundo varia de pessoa para pessoa, de
época para época, de lugar para lugar.
Além disso, as explicações pretensamente necessárias para os fenômenos do mundo
têm se mostrado limitadas para dar conta de outros fenômenos que sobrevêm e que não
podem ser compreendidos pelos modelos teóricos pré-existentes. Quando isso acontece,
colocam-se em questão as relações de necessidade e de universalidade que eram tão
almejadas pelas teses fundacionalistas.
De certo modo, o questionamento a respeito da possibilidade de um conhecimento
seguro e confiável já tinha sido elaborado, como vimos, por David Hume que, tinha
demonstrado a impossibilidade de termos certeza de que os fenômenos sempre ocorrerão do
modo pelo qual nós os explicamos, já que as nossas explicações, ao contrário do que
pensamos, não estão baseadas em fontes seguras, mas sim em meros hábitos psicológicos
de sempre observar no mundo vários fatos que se repetem, mas que não possuem qualquer
35
elemento visível que nos façam ter certeza de que sempre se repetirão. Assim, Hume já nos
alertava sobre a falibilidade das explicações dadas pelas ciências (aliás, foram
principalmente suas provocações que conduziram Kant a formular as suas análises e as suas
hipóteses a respeito das condições de possibilidade do conhecimento por meio da sua
Crítica da Razão Pura). Portanto, nessa perspectiva, a Filosofia está diante de hipóteses
explicativas que não estão propriamente buscando formas de se encontrar uma verdade
universalmente válida, mas sim buscando modos de compreensão que sejam “julgados” por
critérios de adequação e de pertinência para desenvolver um conhecimento que resolva
problemas reais que surgem nas diversas circunstâncias da vida humana. Agora, mais do
que o valor de verdade, o importante do conhecimento passa a ser o seu valor de utilidade.
Em outras palavras, não se trata mais de uma perspectiva preocupada com um
conhecimento que retrata o mundo, mas sim com um conhecimento que ofereça respostas
adequadas e que não se desvie do que a maioria acha sobre o mundo, pois se o saber está
sujeito a falhas pela sua própria natureza circunstancial e específica, ele deve ser visto não
como algo sujeito ao erro, mas sim como algo passível de desviar-se daquilo que o conjunto
das pessoas de um determinado contexto acredita sobre determinado assunto.
Os fundacionalistas pensavam a teoria do conhecimento principalmente buscando
critérios lógicos que fundamentassem o modo de ser da relação sujeito-objeto do
conhecimento. Quando se fala em critérios lógicos, o que se buscavam eram instrumentos
da razão ou da experiência humana que se manifestavam necessariamente a partir do
momento em que o indivíduo se apresenta frente ao mundo no sentido de tentar dar a ele
um conjunto de explicações que fossem pautadas por raciocínios universalmente válidos.
Tais raciocínios só são possíveis porque o modo da Consciência humana proceder está
pautado em elementos de caráter lógico. Portanto, em elementos que estão para além das
experiências individuais.
Por outro lado, quando se passa a valorizar elementos que não pertencem a esse
âmbito universalmente válido da lógica, mas sim a tratar o processo de conhecimento como
uma experiência que pertence ao indivíduo na sua especificidade, começa-se a enveredar a
discussão de uma teoria de caráter lógico para uma reflexão de caráter psicológico. Ou seja,
a teoria do conhecimento ou epistemologia passa a ser uma área do saber que passa a
pertencer à Psicologia, que por sua vez está mais preocupada não com as categorias lógicas
universais que orientam o processo de conhecimento humano, mas sim com as experiências
36
e relações que cada indivíduo particular, no seu meio também particular, estabelece com o
mundo que o envolve.
A corrente de pensamento que inaugura essa perspectiva de “psicologicização” da
teoria do conhecimento é o naturalismo. De modo geral
6
, o naturalismo concebe o
conhecimento como um fenômeno psicológico, portanto, natural do indivíduo. Ou seja, é da
própria natureza do organismo humano, que é constituído por um sistema nervoso
responsável pelas transmissões de informações trazidas pelo mundo externo, transformar
estímulos sensoriais pobres em respostas individuais ricas, que se tornam teorias sobre o
mundo.
Quando se atribui o processo de produção do conhecimento a propriedades do
organismo humano, que são mecanismos psicológicos pertencentes ao sistema nervoso, o
que os naturalistas estão fazendo é retirar o elemento consciência do âmbito da teoria do
conhecimento. Para o naturalismo, trata-se de trabalhar com propriedades presentes no
próprio organismo humano (mecanismos concretos) para que possamos compreender o
modo pelo qual o conhecimento é concebido. Tais propriedades podem ser tanto de caráter
neurofisiológico quanto de caráter psicológico. No segundo caso, o que ocorre é que os
mecanismos que constituem o conhecimento passam a ser concebidos como produtos do
meio em que o indivíduo está inserido e dos estímulos que esse indivíduo recebe desse
mesmo meio. Portanto, trata-se não de ficar estudando os mecanismos pré-existentes de
produção do conhecimento, mas sim estudar indutivamente e experimentalmente as atitudes
e comportamentos dos indivíduos frente a estímulos determinados. Por isso, pode-se dizer
que a corrente naturalista sugere uma volta do olhar não mais para o sujeito, mas sim para
as condições ambientais que fazem com que o sujeito se comporte desta ou daquela
maneira. É dessa perspectiva que o naturalismo vai ganhar a sua versão behaviorista ou
comportamentalista.
Vale a pena, antes de começar a falar sobre o behaviorismo, citar um trecho de Luiz
Henrique A. Dutra que nos ajudará a compreender o que me parece ser mais essencial dessa
teoria psicológica do conhecimento e da aprendizagem:
“... Para o behaviorista, nosso comportamento, como resposta, é função
do estímulo que se encontra no meio em que estamos. Assim, as
regularidades a serem encontradas e explicadas são regularidades entre
6
É importante que fique clara essa expressão “de modo geral”, pois o naturalismo é uma corrente de
pensamento que não pode ser reduzida a apenas uma versão, já que ele teve vários e diferentes
desenvolvimentos teóricos.
37
estímulo e resposta, independentemente do que há de interno no
organismo e que faz a mediação entre uma coisa e outra.” (2000: 52)
Enquanto os fundacionalistas buscavam regularidades em elementos universais que
fariam a mediação entre o conhecimento produzido e o mundo exterior, um dos princípios
básicos do behaviorismo é só admitir como objeto de estudo aquilo que pode ser
apreensível pela experiência, portanto, um estudo científico não pode partir de hipóteses
que não possuem fundamentos em experiências empíricas.
Nesse sentido, o behaviorismo faz uma crítica a todas as teorias do conhecimento
que se propuseram a explicar o funcionamento da consciência enquanto entidade que possui
determinadas estruturas pré-existentes. Faz também uma crítica à psicanálise freudiana que
procura explicar a mente humana por hipóteses como id, ego e superego que, tampouco,
podem ser constatados por meio da observação sensível.
Defendem os behavioristas que, se só podemos produzir conhecimento legítimo, se
partirmos de fatos acessíveis aos nossos sentidos, então só podemos admitir como objetos
de estudo a expressão visível de um organismo. Ou seja, para o comportamentalismo, o
universo interior do indivíduo não importa, na medida em que os comportamentos dos
indivíduos podem ser explicáveis por categorias e conceitos visíveis à razão. Nesse sentido,
se quisermos compreender o modo dos seres humanos produzirem conhecimento, buscando
assim um comportamento regular-padrão que explique essa produção, poderemos utilizar
como fontes de pesquisa única e exclusivamente o próprio comportamento e os fatores
externos responsáveis por ele. Isso significa que no comportamentalismo a tese central
pode ser elaborada da seguinte forma: o ambiente em que o indivíduo está inserido produz
estímulos ambientais que são os principais responsáveis por determinados tipos de
comportamentos, atitudes e condutas. Se conhecer e aprender são dois tipos de
comportamentos, então a grande questão é sabermos quais são os estímulos mais adequados
para que o conhecimento e a aprendizagem sejam efetivados por um indivíduo. Ou seja, se
quisermos que as pessoas se comportem de determinada maneira de acordo com as nossas
expectativas, basta que saibamos controlar os estímulos que possuem a faculdade de
produzir determinado tipo de comportamento.
“Quanto à possibilidade de controle do comportamento humano, Watson
era categórico. Considerava ser possível transformar o indivíduo, por
meio de educação ou de reeducação, naquilo que desejamos. É célebre
sua afirmação de que poderia tomar um recém-nascido e torná-lo tanto
um homem honesto quanto um marginal corrupto. O destino de uma
38
pessoa dependeria tão-somente dos fatores condicionantes organizados
em torno dela...” (CUNHA, 2002: 48)
Watson (1878-1958), criador do termo behaviorismo, levava a tese behaviorista até
às últimas conseqüências, defendendo que os sujeitos poderiam ser totalmente
condicionados a terem determinados comportamentos e a agirem de determinadas formas,
bastando que, para tanto, controlássemos as variáveis do ambiente em que vivem. Nesse
sentido, o ambiente no behaviorismo tem o poder de delimitar o repertório de
comportamentos que um indivíduo é capaz de executar. Assim, ao sujeito não há
alternativas no que diz respeito a escapar dos determinismos a que o ambiente o
condiciona. Seus atos estão sujeitos às limitações daquilo que compõe os atos dos seus
semelhantes e às situações em que se encontra no ambiente específico em que convive.
Assim, agir, falar, imaginar, escrever, pensar... são comportamentos passíveis de serem
controlados.
A esse esquema de estímulo-resposta, Skinner (1904-1990) faz uma ressalva no
sentido de admitir que não há uma linearidade assim tão acentuada para que possamos
afirmar que seja possível haver todo esse controle sobre os indivíduos, na medida em que
esses interagem com o ambiente. Por isso, um ambiente novo pode alterar as respostas do
indivíduo, no sentido de que esse tem um poder de adaptação às novas disposições e
condições ambientais. Daí a necessidade, proposta por Skinner, de que, em determinadas
circunstâncias, sejam utilizados artifícios que reforcem determinado comportamento para
que o indivíduo, paulatinamente, vá se adaptando às novas exigências do ambiente.
Para a educação as idéias comportamentalistas trazem conseqüências significativas.
A aprendizagem é vista como o resultado da observação que fazemos sobre o indivíduo de
tal modo que este demonstre que adquiriu o hábito de proceder de acordo com os objetivos
traçados pelo sistema de ensino. Assim, aprender é agir de acordo com o que foi ensinado e
isso só pode ser constatado na medida em que o educando seja capaz de repetir o
comportamento esperado e desejado pelo sistema. Para tanto, o sistema educacional
consiste principalmente numa gama de métodos e técnicas de ensino que procuram incutir
nas pessoas determinados comportamentos que são definidos como os melhores para o bom
funcionamento da sociedade.
Acredito que é muito evidente no paradigma behaviorista a crença de que é possível
haver uma margem grande de controle sobre o desenvolvimento dos indivíduos. Pelos
39
próprios princípios desse paradigma, o âmbito da subjetividade é quase que totalmente
descartado, já que ao eu não cabe muitas alternativas, senão a de se submeter às imposições
do planejamento educacional que elabora e fixa os comportamentos que a pessoa deve ter
até o final de um determinado período. Nessa perspectiva, não se tem espaço para uma
análise daquilo que podemos chamar de a riqueza da alma humana. Será que não há muitos
outros fatores envolvidos e implicados nos processos que se desenrolam no fenômeno do
comportamento humano? Será que é possível, de antemão, definirem-se comportamentos
desejáveis, atribuindo a tais comportamentos, quando alcançados, o termo aprendizagem ou
conhecimento?
A essa segunda questão, o que se pode constatar é que muitas vezes as pessoas que
passam por um processo de condicionamento nem sempre têm clareza do próprio
comportamento. Ou seja, não é difícil vermos indivíduos agirem de maneira mecânica sem,
necessariamente compreender a operação que estão fazendo. Por exemplo, não é algo muito
raro olharmos para estudantes e percebermos que apesar de estarem dando respostas
desejáveis aos testes ou exercícios que lhes são propostos, não possuírem qualquer clareza
sobre o real significado dos raciocínios necessários para que um determinado resultado seja
alcançado. Ou, por exemplo, vemos com muita freqüência estudantes que conseguem
responder determinados tipos de atividades, mas quando tais atividades passam a ter novos
elementos, já não são capazes de lidar com os novos dados, o que demonstra não
exatamente uma aprendizagem, mas sim uma capacidade de dar respostas programadas a
determinados problemas específicos.
No que diz respeito à primeira questão, é interessante nos atermos às seguintes
considerações de Paulo Freire que, ao denunciar o caráter perverso da educação bancária,
faz uma crítica interessante sobre os limites de qualquer possibilidade de controle sobre as
respostas do indivíduo no processo educativo:
“O que não percebem os que executam a educação ‘bancária’,
deliberadamente ou não (porque há um sem-número de educadores de
boa vontade, que apenas não se sabem a serviço da desumanização ao
praticarem o ‘bancarismo’), é que nos próprios ‘depósitos’ se encontram
as contradições, apenas revestidas por uma exterioridade que as oculta. E
que, cedo ou tarde, os próprios ‘depósitos’ podem provocar um confronto
com a realidade devenir e despertar os educandos, até então passivos,
contra a sua ‘domesticação’.
“A sua ‘domesticação’ e a da realidade, da que se lhes fala como algo
estático, pode despertá-los como contradição de si mesmo e da realidade.
De si mesmos, ao se descobrirem, por experiência existencial, em um
40
modo de ser inconciliável com a sua vocação de humanizar-se. Da
realidade, ao perceberem-na em suas relações com ela, como devenir
constante.” (1987: 61)
A tentativa de se programar respostas comportamentais a determinados estímulos
ambientais não corresponde ao modo de ser das relações humanas com o universo que
envolve os indivíduos. Ainda que essa tentativa possa ajustar e adaptar parcialmente os
indivíduos a determinadas condições, o fato é que ela sempre estará sujeita a se contradizer
na medida em que os modos pelos quais os indivíduos incorporam conhecimentos estão
diretamente relacionados ao modo como vivem, sendo que essa variável é impossível de ser
controlada. Não é por acaso, portanto, que a apropriação dos depósitos podem servir à
efetivação de comportamentos que vão diretamente de encontro àqueles que estavam sendo
desejados a priori. Isso ocorre pela própria vocação e condição humana que, como veremos
mais à frente, não tende a responder passivamente a qualquer projeto de domesticação. Pelo
contrário, tende a se descobrir como sujeito do conhecimento, da aprendizagem e da
história nas suas relações com o mundo em com os outros.
Antes de passar à análise da concepção fenomenológica de conhecimento, é
importante reiterar a idéia das íntimas relações que existem entre as concepções de homem
e de conhecimento, com as concepções de educação e de ensino-aprendizagem. Minha
busca aqui nesse trabalho, é compreender os fundamentos da concepção problematizadora
de educação proposta por Paulo Freire. No entanto, para realizar esse intento, acho
importante não deixar de constatar a relação que existe entre as concepções até então
expostas com aquilo que conhecemos como educação tradicional e educação tecnicista.
Ambas, que foram muito combatidas por Paulo Freire, são muito presentes (ainda que com
variações) nos dias de hoje na maioria das instituições de ensino. Estão muito arraigadas na
cultura dos agentes e dos sistemas educacionais. Portanto, para avaliarmos as reais
dimensões e profundidade dessas práticas, não podemos deixar de vislumbrar o que há nas
entrelinhas delas. Foi isso que procurei fazer nesse primeiro momento desse trabalho.
5. A concepção fenomenológica de Husserl
Com a consolidação do naturalismo e da psicologia naturalista, as teorias que
buscavam uma fundamentação última e segura para o conhecimento científico sofreram um
considerável golpe. Como vimos, na concepção naturalista a importância do conhecimento
não está no fato de este ser um retrato preciso do mundo, mas sim no seu valor de utilidade,
41
ou seja, na sua capacidade de adequar-se pragmaticamente à resolução dos problemas que
vão surgindo no dia-a-dia. Nesse sentido, a teoria do conhecimento foi absorvida pela
psicologia, já que, como não se trata mais de buscar os fundamentos últimos do
conhecimento, a filosofia poderia ser deixada de lado, tratando-se agora de estudar como é
que os indivíduos, a partir de suas experiências particulares, produzem conhecimentos e
teorias sobre o mundo, também particulares.
Nessa psicologia, que Husserl vai chamar de psicologismo, a dimensão psicológica
do indivíduo, que opera durante o processo de conhecer, é concebida como um conjunto de
mecanismos pertencentes ao sistema nervoso e ao cérebro, que são estimulados por fatos
externos causadores de comportamentos ou fatos comportamentais. Assim, o papel de toda
e qualquer ciência seria o de estudar e explicar fatos observáveis, sem necessidade de
investigações filosóficas, já que estas incidem sobre conceitos, categorias e criam hipóteses
que não podem ser comprovadas pela experiência e pela observação. Portanto, as ciências
nunca poderiam atingir o ideal de universalidade e necessidade, pois, sendo elas, produto de
experiências particulares, não poderiam almejar um estatuto de conhecimento
universalmente válido.
É justamente para combater a tese psicologista que Husserl cria a sua
fenomenologia. A exemplo dos fundacionalistas, Husserl procurou resgatar o sujeito do
conhecimento como fundamento último e universal da ciência, mantendo, nesse sentido,
uma fidelidade à tradição kantiana. Assim (da mesma forma que em Kant), a categoria de
Consciência Transcendental tem em Husserl uma importância fundamental. Porém, Husserl
atribui à consciência um papel distinto daquele que era atribuído por Kant.
Para Husserl, a característica essencial da consciência é a intencionalidade:
“A consciência não é uma coisa entre as coisas, não é um fato
observável, nem é, como imaginava a metafísica, uma substância
pensante ou uma alma, entidade espiritual. A consciência é pura
atividade, o ato de constituir essências ou significações, dando sentido ao
mundo das coisas. Estas – ou o mundo como significação – são o
correlato da consciência, aquilo que é visado por ela e dela recebe
sentido. Não sendo uma coisa nem uma substância, mas puro ato, a
consciência é uma forma: é sempre consciência de. O ser ou essência da
consciência é o de ser sempre consciência de, a que husserl dá o nome de
intencionalidade.” (CHAUI, 1995: 237)
Com Husserl, a consciência deixa de ser uma entidade estática, espacializada, que
só recebe dados do mundo, para se tornar uma entidade essencialmente dinâmica: um
42
“eterno” dirigir-se a alguma coisa. Nesse sentido, ela não existe enquanto um ente puro,
desprovido de conteúdos. Pelo contrário, a consciência é uma unidade entre a forma
(intencionalidade – “ser consciência de”) e os conteúdos sobre os quais ela se dirige, sendo
que, assim, não faz sentido em falar em conteúdos como coisas em si, já que eles estão
sempre ligados necessariamente aos atos da consciência. Portanto, o mundo (a realidade)
formado por coisas, seres, objetos, fatos, pessoas, idéias etc não existe isoladamente. Todos
esses elementos estão sempre ligados necessariamente aos atos da consciência. Portanto,
existe uma unidade irredutível composta por consciência de alguma coisa. Por exemplo:
consciência de um ser, consciência de um objeto, consciência de um fato, consciência de
uma pessoa, consciência de uma idéia.
Coisas, fatos, seres, objetos... só existem enquanto pólos sobre os quais a
consciência se intenciona. Só existem enquanto entidades visadas pela consciência. Não
são, portanto, coisas em si, mas sim essências, significações, fenômenos (correlatos da
consciência). Portanto, existe na fenomenologia de Husserl um par irredutível: ato da
consciência e seu correlato. Se o ato da consciência for o ato de perceber, o correlato é a
coisa percebida. Se o ato for o ato de imaginar, o correlato é a coisa imaginada. Se o ato for
o ato de idear, o correlato é a coisa ideada. Coisa percebida, coisa imaginada, coisa ideada
são, para Husserl, essências, significações, fenômenos. Portanto, não há mundo, mas sim,
mundo como significação.
Em Husserl, portanto, a consciência é puro ato intencional. Os diferentes atos
intencionais consistem em diferentes atribuições de sentido a tudo o que há no mundo,
portanto produzem sentidos diferentes. O mundo, por outro lado, é o receptor desses
sentidos todos. Para ilustrar os diferentes sentidos, produzidos por diferentes atos
intencionais, vale a pena citar o seguinte exemplo:
“As essências ou significações (noemas
7
) são objetos visados de certa
maneira pelos atos intencionais da consciência. Assim, por exemplo, um
cubo pode ser visado pela percepção e, enquanto essência perceptiva, é
distinto do cubo quando visado pela idéia geométrica de volume. Por
outro lado, esse mesmo cubo pode ser visado por um ato de imaginação,
encontrando-se, assim, uma terceira essência, distinta das anteriores.”
(CHAUI, 1996: 9)
7
Aos atos da consciência, Husserl chama noesis e aquilo que é visado pelos mesmos são os noemas. (CHAUI,
1996: 7)
43
A partir desse exemplo surge uma questão: Qual é afinal a essência do cubo? Como
chegar a um conhecimento universal e necessário sobre o cubo?
Para Husserl, essas questões não fazem sentido, já que o cubo percebido já é uma
essência, o cubo ideado é outra e o cubo imaginado é outra. O que poderíamos questionar é
como promover um conhecimento sobre fenômenos empíricos ao estatuto da universalidade
e da necessidade, se o ato perceptivo, por exemplo, (que é um dos atos de consciência que
apreende os fenômenos empíricos), sempre nos traz o fato empírico por uma só perspectiva,
sendo que um outro indivíduo pode ter, sobre o mesmo fato, um outro ponto de vista. Por
esse raciocínio, é totalmente justificável que as ciências empírico-experimentais, tais como,
a Psicologia, a Sociologia, a Física, a Biologia, a Geologia... nunca alcancem um
conhecimento verdadeiro sobre os seus objetos, já que os mesmos estão necessariamente
submetidos à condições impostas pelo perspectivismo.
É justamente contra esse perspectivismo reinante nas ciências de tradição positivista
do século XIX que Husserl queria lutar. Para ele, enquanto as ciências não buscarem os
seus fundamentos na filosofia, elas estarão condenadas a serem meras explicações
superficiais dos fenômenos empíricos, nunca chegando à essência desses mesmos
fenômenos.
Para não se deixar levar por esse equívoco cometido pelas ciências de um modo
geral, é que Husserl propõe uma operação chamada de redução fenomenológica:
“A redução ou epoquê é a operação pela qual a existência efetiva do
mundo exterior é ‘posta entre parênteses’, para que a investigação se
ocupe apenas com as operações realizadas pela consciência, sem que se
pergunte se as coisas visadas por ela existem ou não realmente. A
redução, diz Husserl, suspende a ‘tese natural do mundo’ (do grego
thésis: posição, aceitação). A ‘atitude natural’ é a atitude cotidiana de
‘tese do mundo’, ou seja: acredita-se espontaneamente que as coisas
exteriores existem tais como se as vê; portanto, natural e
espontaneamente, ‘põe-se’ o mundo...
“Husserl distingue dois níveis ou momentos da redução. No primeiro, a
redução consiste em buscar o significado ideal e não empírico dos
elementos empíricos. É uma redução eidética que procura essências ou
significados. Segundo Husserl, toda ciência (empírica ou pura) deve ser
antecedida por uma investigação eidética que defina a essência ou
estrutura necessária do objeto a ser estudado. Assim, antes da psicologia
deve vir uma psicologia eidética ou fenomenológica que apresente a
essência ou estrutura necessária do objeto a ser estudado. Assim, antes da
psicologia deve vir uma psicologia eidética ou fenomenológica que
apresente a essência do psíquico; antes da física, uma física eidética que
faça a mesma descrição da essência do físico; e assim por diante. No
segundo momento, porém, a redução é transcendental porque visa à
44
essência da própria consciência enquanto constituidora ou produtora das
essências ideais. É nesse nível que noesis e noemas se revelam
absolutamente a priori.” (CHAUI, 1996: 10)
Como já foi dito, os acontecimentos e os fatos empíricos estão submetidos ao
perspectivismo. Num raciocínio precipitado, chegaríamos à conclusão de que, portanto, não
há universalidade e necessidade possíveis a serem alcançadas no conhecimento sobre os
mesmos. No entanto, Husserl afirma que, se conseguimos identificar diferentes fatos sociais
como sendo essencialmente sociais, diferentes fatos psíquicos como sendo essencialmente
psíquicos, diferentes fatos físicos como sendo essencialmente físicos etc, isso significa que
na nossa consciência existe uma essência do que seja o social, do que seja o psíquico e do
que seja o físico. Devemos, portanto, promover uma investigação eidética sobre a estrutura
necessária a todos os fatos sociais, a todos os fatos psíquicos e a todos os fatos físicos,
sendo que dessas investigações surgirão ciências eidéticas, ou seja, ciências de essências.
A partir das ciências eidéticas, os equívocos que as ciências têm produzido até o
momento poderão ser superados. Ao invés de se tratar de explicar os fatos empíricos, as
ciências eidéticas passam a se preocupar com a essência desses mesmos fatos, o modo
necessário deles se estruturarem. Elas serão responsáveis por definir as significações ideais
de um certo campo de conhecimento, bem como os métodos capazes de apreender tais
significações. A configuração das ciências eidéticas garante pressupostos seguros para a
construção das ciências empíricas, bastando aplicar os princípios das primeiras para o
estudo dos fenômenos empíricos, garantida, assim, a apoditicidade para as ciências
experimentais.
A redução transcendental seria aquela que nos leva à compreensão da condição a
priori de toda a possibilidade de conhecimento universal e necessário, ou seja, à
compreensão da consciência como doadora de sentido e, portanto, como constituidora das
essências universais. Ela conduz ao fundamento último das próprias ciências eidéticas.
Diante disso, já temos aqui todos os elementos que, para Husserl, compõem o
universo de preocupações da fenomenologia. Primeiramente, a fenomenologia deve se
preocupar com a descrição da essência/ estrutura necessária da consciência (que, como já
vimos é a intencionalidade). Posteriormente, deve se preocupar com a descrição das
essências/ das estruturas necessárias dos atos de consciência (perceber, imaginar,
idear,lembrar etc) e dos seus respectivos correlatos. Por fim, o papel da fenomenologia é o
de descrever as essências/ estruturas de todas as coisas da realidade, de todos os seres do
45
mundo. Como no mundo há diferentes seres, sendo que sobre eles incidem diferentes atos
de consciência, Husserl diz que há diferentes regiões do ser (Região Consciência, Região
Natureza, Região Matemática, Região Arte, Região História...). Cabe à fenomenologia,
portanto, investigar cada uma das regiões do ser, sendo que cada uma delas corresponde a
uma essência própria, irredutível uma à outra.
Grosso modo, é dessa forma que Husserl funda a sua fenomenologia idealista, ou
seja, uma fenomenologia que busca descrever as idéias/ significações/ essências de todas as
coisas como sendo universais e necessárias. Essas descrições só são possíveis pela forma/
estrutura transcendental da consciência enquanto intencionalidade. Em última instância, é a
Consciência, enquanto atividade constituidora de essências, a garantia das verdades
retratadas pelas ciências.
6. O conhecimento na perspectiva marxista: alienação e ideologia
As considerações que Marx e Engels fizeram a respeito do conhecimento
decorreram mais de uma necessidade de se compreender o universo das idéias dentro das
sociedades historicamente constituídas nas diferentes épocas, do que propriamente de uma
necessidade de se elaborar uma teoria do conhecimento em sentido restrito. Por isso, não
podemos falar em uma teoria do conhecimento marxista sem relacioná-la com o modo pelo
qual Marx e Engels concebem o funcionamento das sociedades humanas em geral e da
sociedade capitalista em particular.
Para os objetivos desse trabalho, os apontamentos que aqui serão feitos sobre o
marxismo terão duplo papel: por um lado, eles nos ajudarão a compreender vários aspectos
do pensamento freireano que, sem dúvida, teve no marxismo uma das suas principais fontes
inspiradoras. Por outro lado, tomar ciência da perspectiva marxista do conhecimento nos
ajudará a compreender a concepção da relação homem-mundo na perspectiva
fenomenológico-existencial, bem como as restrições que essa perspectiva faz à teoria
marxista.
Da mesma forma em que busquei evidenciar até aqui as condições de possibilidade
do conhecimento para diversas correntes epistemológicas ocidentais, buscarei mostrar aqui
como, no marxismo, também há uma reflexão sobre essas condições. Porém, ao contrário
do que foi exposto nas diversas teorias do conhecimento representadas até aqui, o
marxismo não tentou encontrar fundamentos sólidos e seguros para a consolidação de todos
46
os conhecimentos científicos. Pelo contrário, Marx e Engels procuraram mostrar como o
pensamento científico e filosófico cria sistemas de explicação da realidade que, ao invés de
mostrar como ela funciona em suas “entranhas”, acabam ocultando seus reais mecanismos
de funcionamento. A essas elaborações intelectuais que representam a realidade de maneira
invertida, com lacunas, distorcida..., Marx e Engels deram o nome de ideologia.
“Nasce agora a ideologia propriamente dita, isto é, o sistema ordenado de
idéias ou representações das normas e regras como algo separado e
independente das condições materiais, visto que seus produtores – os
teóricos, os ideólogos, os intelectuais – não estão diretamente vinculados
à produção material das condições de existência...”. (CHAUI, 1994: 65)
A ideologia é o conjunto de conhecimentos que estão difusos na sociedade e que
constituem o senso comum, mas que, apesar disso, possuem uma elaboração intelectual e
uma fundamentação teórica, científica e filosófica que sustenta e dá uma aparência de
solidez para todas esses conhecimentos. Nesse sentido, não são idéias desprovidas de
qualquer fundamento teórico. São sim desprovidas de fundamentos na realidade concreta,
que, como veremos, possui processos, relações e contradições que a ideologia omite.
O fato é que o principal objetivo da ideologia é:
“... fazer com que todas as classes sociais aceitem as condições em que
vivem, julgando-as naturais, normais, corretas, justas, sem pretender
transformá-las ou conhecê-las realmente, sem levar em conta que há uma
contradição profunda entre as condições reais em que vivemos e as
idéias.” (CHAUI, 1995: 174)
A ideologia não é apenas um fenômeno subjetivo que pode ser extraído da
sociedade simplesmente com um processo de transformação das consciências. Ela é um
efeito necessário da exploração, da dominação e da opressão. Por isso, para Marx e Engels,
o processo de luta contra as ideologias não pode ser simplesmente subjetivista, incidindo
apenas sobre o pensamento, mas tamm deve propor e realizar mudanças nas práticas
sociais, eliminando-se as relações de opressão, de violência, de subordinação etc. Ou seja,
não basta acharmos que alguém, dotado de um espírito crítico, pode simplesmente
convencer outros, vítimas do pensamento ideológico, de que o mundo não é o que ele
realmente pensa que é. Trata-se também, de mudar as práticas. Portanto, no trabalho de
contestação das ideologias junto às pessoas do povo, mais do que um questionamento dos
conteúdos do pensamento, há uma reflexão necessária a ser feita sobre a forma não-
autoritária de se promover a ação cultural conscientizadora. Aliás, é importante termos
clareza de que Paulo Freire absorveu e ampliou esse ensinamento do marxismo, quando,
47
em Pedagogia do Oprimido, reitera constantemente a relação dialética entre objetividade e
subjetividade no processo de constituição da realidade e na preocupação em não dissociar
conteúdos pedagógicos e formas/práticas pedagógicas libertadoras.
A ideologia se apresenta quando ouvimos ou vemos explícita ou implicitamente
representações e idéias que produzem o conformismo das classes sociais com a situação
concreta em que vivem. Por exemplo, há a ideologia fatalista, que defende que o mundo é
assim mesmo e não há como mudá-lo; há a ideologia da liberdade irrestrita, que defende
que os indivíduos são totalmente livres para escolher o que serão na vida, portanto, são
única e exclusivamente responsáveis pela sua sorte; há a ideologia que defende que o
trabalho dignifica o homem, que na verdade omite o fato de que o trabalho explorado
desumaniza o homem; há tamm a ideologia da neutralidade científica (essa muito
presente nos meios acadêmicos e intelectuais), que defende que o conhecimento é uma
representação pura e neutra do mundo tal como ele é, sendo que os valores dos cientistas
não interferem nos resultados de suas pesquisas científicas, logo, nada mais justo que os
cientistas tomem as decisões por toda a sociedade.
As ideologias fatalistas são fundamentadas, por exemplo, em diversos discursos
científicos e teológicos, que defendem, por exemplo, a interferência divina no destino dos
homens, negando-lhes o papel como sujeitos da história, bem como em discursos que
defendem o fim da história (tão criticados por Freire em vários momentos de sua obra). A
ideologia da liberdade irrestrita e a de que o trabalho dignifica o homem foi largamente
sustentada pelas teorias do liberalismo político e econômico nos séculos XVIII e XIX. A
ideologia na neutralidade científica consubstanciou-se fortemente nas correntes positivistas
que se consolidaram o século XIX e que tiveram o seu auge de aplicação no século XX.
Acredito que essas referências são importantes, pois elas nos mostram o quanto a ideologia
é muito mais do que um conjunto de idéias presentes no senso comum da sociedade. Ela se
origina nos meios científicos e intelectuais, daí o seu poder de convencimento e sua
autoridade enquanto discurso altamente fundamentado.
Para o marxismo, a ideologia não teria como se difundir, caso não houvesse uma
condição objetiva que possibilitasse a sua disseminação pela sociedade. Essa condição é a
alienação. A alienação possibilita a atuação da ideologia, e também ela surge de condições
concretas e objetivas, como veremos a seguir.
48
Marilena Chauí (1995: 172-173 e 416) destaca quatro formas principais de
alienação: a alienação social, a alienação econômica, a alienação intelectual e a alienação
política. A alienação social consiste no desconhecimento das condições histórico-sociais
concretas em que vivemos, sendo que por causa dela, os indivíduos não se reconhecem
como produtores das instituições sócio-políticas, não se percebendo como agente da vida
social ou julgando-se completamente livre para mudar a história. A alienação econômica
consiste no trabalhador não perceber que foi reduzido a uma condição de coisa, na medida
em que não é dono do seu próprio trabalho, e também consiste na não percepção do
trabalhador de que as mercadorias que produz são um produto de seu próprio trabalho. A
alienação intelectual consiste na crença de que os pensadores (representantes dos pontos de
vista das classes dominantes, ideólogos da sociedade), possuem de que o trabalho material
(trabalhos manuais) não exige conhecimentos, considerando-o, portanto inferior ao trabalho
intelectual. Esses intelectuais ignoram que suas próprias opiniões estão ligadas aos pontos
de vista das classes dominantes, crêem que o conhecimento é uma descoberta neutra, e
crêem que as idéias produzidas por eles estão separadas dos seus autores, possuindo,
portanto validade universal e necessária. A alienação política consiste no não-
reconhecimento de quem são os verdadeiros criadores do poder político e do Estado, dando
a impressão de que essas instituições possuem a finalidade de zelar pelos interesses de
todos os integrantes da sociedade, como se tais interesses universais realmente existissem.
Enfim, todos essas crenças, todos esses não-reconhecimentos e não-percepções de
como concretamente as coisas são, fazem com que os elementos produzidos pelos seres
humanos passem a controlá-los e a definir os seus modos de existência. A alienação gera
nos indivíduos a impressão de que tudo é natural, de que a sociedade é assim mesmo e de
que só resta submeter-se às condições tais como elas estão postas.
Com a alienação consolidada, a ideologia já encontra o terreno propício para operar,
com o seu organizado sistema de ilusões, nas consciências dos indivíduos que vivem nas
sociedades em que há a dominação de uma classe sobre a outra.
Resta agora analisarmos o que torna a alienação possível enquanto um fenômeno
concreto e objetivo. Para isso, precisamos compreender como o marxismo compreende o
modo pelo qual ocorre o desenvolvimento e o funcionamento das sociedades em geral.
Há, para Marx e Engels, uma premissa fundamental (que para eles pode ser
constatada empiricamente), que nos leva a compreender o fato mais primordial da
49
existência humana, e a partir do qual os seres humanos vão criar todas as suas instituições
sociais.
“A primeira condição de toda a história humana é, naturalmente, a
existência de seres humanos vivos. A primeira situação a constatar é,
portanto, a constituição corporal desses indivíduos e as relações que ela
gera entre eles e o restante da natureza...
“Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião
e por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se distinguir dos
animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e esse
passo a frente é a própria conseqüência de sua organização corporal. Ao
produzirem seus meios de existência, os homens produzem indiretamente
sua própria vida material.” (MARX & ENGELS, 1998: 10-11)
Manter a vida é o impulso fundamental e um dado irrecusável do qual o marxismo
parte para entender as formações sociais, as ações e a consciência humanas. A necessidade
de sobrevivência do corpo conduz os seres humanos a buscar estratégias para que a vida
possa se manter. Daí a necessidade de produção de meios de existência, tais como: comida,
bebida, casa, vestuário etc (que obviamente variam de lugar para lugar). Os recursos para
produzir esses meios de existência serão retirados da natureza por meio da atividade de
transformação desta última. Portanto, a atividade primordial instituída pelos seres humanos
é o trabalho. Como os seres humanos se agrupam para que possam ser mais fortes no
processo de luta pela sobrevivência, o trabalho não ocorre enquanto atividade individual, e
sim enquanto atividade social na qual se instituem relações sociais de trabalho.
Tais relações se materializam, em princípio, por meio da divisão sexual do trabalho.
Primitivamente, o critério utilizado pelos seres humanos para definir as relações de
produção estava ligado à sexualidade e à idade dos integrantes dos diversos grupos sociais.
Nesse sentido, as práticas sociais de cada integrante da família são instituídas em função da
necessidade de sobrevivência do grupo social. Com o passar dos tempos, as famílias foram
estabelecendo entre si relações de trocas entre produtos. Essas trocas eram possíveis na
medida em que havia um equilíbrio na produtividade das diferentes famílias. O que também
garantia esse equilíbrio é o fato de que cada uma das famílias possuía a sua propriedade.
No entanto, no momento em que alguma família, por algum motivo (seja infertilidade de
sua terra ou ausência de procriação de seu rebanho), deixa de ter como produzir bens para
trocar, ela é obrigada a se submeter a outras. Tal submissão inaugura uma nova fase no
processo de divisão do trabalho que deixa de ser pautado por critérios de sexo e idade,
tornando-se divisão social do trabalho. Divisão na qual alguns trabalham enquanto outros
50
se apropriam do produto do trabalho desses alguns. Ou seja, alguns se ocupam do trabalho
manual e material necessário para a sobrevivência, enquanto outros ficam livres dessas
atividades. Institui-se, então, a divisão social desigual das riquezas e, conseqüentemente, a
divisão desigual do poder econômico.
Nessa breve descrição temos os dois principais fatores estruturantes que determinam
o funcionamento das diferentes sociedades: a divisão social do trabalho e a propriedade.
Em princípio, a divisão social do trabalho engendrou a existência da propriedade. Porém,
no momento em que alguns passam a poder se apropriar do produto do trabalho realizado
por outros, a divisão do trabalho chega ao seu auge com a divisão entre o trabalho manual e
o trabalho intelectual. Ou seja, no momento em que a propriedade deixa de ser um bem
social para se tornar num bem privado, é que a execução do trabalho se separa de sua
concepção. Alguns pensam, alguns planejam. Outros executam.
A esse conjunto de fatores inter-relacionados, a saber, a forma propriedade dos
meios de produção (propriedade tribal, propriedade estatal, propriedade feudal, propriedade
capitalista), mais a conseqüente distribuição dos produtos do trabalho, mais a divisão social
do trabalho, mais as relações de produção (relações servis, relações escravistas, relações
assalariadas), o marxismo definiu como economia ou como condições materiais de
produção.
Essas condições são de tanta importância para o marxismo que todas as outras
condições de existência dos indivíduos e todas as outras instituições da vida social
convergirão direta ou indiretamente para essas condições materiais de produção. Portanto,
compreendê-las significa compreender o princípio articulador de todas as outras esferas da
vida social.
A divisão desigual do poder político, a divisão desigual do poder religioso, a divisão
desigual do poder militar são, para o marxismo, conseqüências daquelas divisões desiguais
a que já me referi: a divisão desigual do poder econômico e da divisão social do trabalho.
No fundo, essas divisões todas são diferentes escalas de uma divisão que define a estrutura
social das sociedades de classes: a divisão de classes (exploradores x explorados,
dominadores x dominados).
Com isso, já podemos compreender o motivo pelo qual o marxismo é conhecido
como materialismo histórico e dialético. É materialismo histórico, pois defende a idéia de
que a compreensão das condições materiais de produção instituídas em cada momento
51
histórico são fundamentais para o entendimento do funcionamento das sociedades. É
dialético, pois as classes sociais divididas vivem em situação objetiva de contradição entre
si. É a partir da luta entre elas (ou seja, da luta de classes) que as grandes mudanças
ocorrem na história da humanidade. Portanto, a relação entre essas classes é de contradição:
é de dialeticidade.
Tudo isso nos possibilita compreender que, quando um indivíduo passa a existir na
sociedade, as diversas práticas sociais com suas respectivas divisões já estão instituídas: as
práticas econômicas (ou materiais – as de trabalho, as de trocas e as comerciais), as práticas
familiares, as práticas religiosas, as práticas políticas, as práticas escolares, as práticas
científicas e filosóficas etc. O conjunto de todas essas práticas instituídas é o que, no
marxismo, entende-se como condições materiais (ou concretas) de existência da vida
social e política. Dentro dessas condições materiais de existência, ou realidade concreta, há
um elemento fundamental que são as condições materiais de produção.
Agora, já nos é possível dimensionar em que contexto mais amplo a alienação e a
ideologia estão presentes. O que torna possível a alienação é justamente esse conjunto de
divisões sociais que impedem que cada indivíduo possa ter a noção do todo da vida social,
tornando-se refém das “coisas” instituídas pelos próprios seres humanos. Nesse sentido,
assim como a ideologia, a alienação é um fenômeno necessário de toda e qualquer
sociedade que se sustente estruturalmente a partir de divisões nas diferentes esferas da vida
social: divisão do trabalho, divisão do poder político, divisão do poder intelectual etc.
Assim, a consciência humana, no marxismo, é produto da realidade concreta em que
ela está situada. Os conhecimentos, portanto, estão diretamente relacionados a essa
realidade concreta. Ela é a condição de possibilidade do conhecimento, pois as idéias
humanas não podem ser compreendidas, se não forem inseridas em seu contexto sócio-
histórico que as engendrou.
Com isso, o marxismo não eliminou o papel da subjetividade na produção da
história e na produção dos conhecimentos, mas mostrou-nos que as ações e reflexões
humanas são determinadas por condições objetivas que existem independentemente das
vontades individuais. Só a alteração dessas condições objetivas (ou seja, só novas práticas
sociais) podem produzir novas subjetividades e serem dialeticamente transformadas por
essas mesmas subjetividades.
52
A partir de agora, já poderemos compreender com maior profundidade como a
corrente fenomenológico-existencial equacionou o problema da consciência e do
conhecimento, sendo que a consciência deixasse de ter um papel totalizador sobre a
realidade, bem como, poderemos compreender algumas ressalvas que essa corrente fez ao
marxismo. Fenomenólogos existenciais como Heidegger, Merleau-Ponty e Sartre
contestaram o idealismo husserliano, trazendo a base do conhecimento para o terreno da
existência, não mais para o da consciência pura. Essa corrente que estou chamando aqui
com o nome genérico de fenomenologia existencial possui alguns pressupostos gerais que
podem ser analisados.
Buscarei mostrar mais para frente que Paulo Freire sofreu influências da
fenomenologia existencial na fundamentação de sua concepção de ensino-aprendizagem.
Portanto, nesse momento procurarei mostrar as idéias gerais que constituem essa concepção
filosófica do processo de conhecimento.
7. O conhecimento na fenomenologia existencial
Como vimos, tanto o empirismo quanto o intelectualismo promoveram uma
dicotomia entre sujeito e objeto do conhecimento. Já o naturalismo desfez essa dicotomia
anulando o papel da subjetividade no processo de conhecimento e de comportamento.
Tais correntes de pensamento levaram a uma concepção de conhecimento que teria
alguma legitimidade ou se se fundamentasse em determinados princípios de ordem lógica e
racional, ou se se justificasse pela utilidade para corresponder a determinadas necessidades
impostas pela sociedade. De um lado, estaríamos lidando com o reino da verdade absoluta
fundamentada. De outro, com o da necessidade pragmática de quem define o que deve ser
comportamento pertinente ou não em uma determinada época e contexto.
Vimos também que, para o marxismo, não é possível conceber um sujeito, senão
como um indivíduo que pensa e age em condições determinadas, sendo que essas condições
são justamente as condições que possibilitam a construção do conhecimento por qualquer
pessoa que seja. Nesse sentido, o marxismo dá bastante ênfase nas condições objetivas nas
quais os indivíduos estão inseridos e que precisam ser entendidas se quisermos
compreender as diversas manifestações da subjetividade humana. Portanto, as condições
materiais de existência são dados fundamentais na compreensão de qualquer fenômeno
social. Para que o conceito de condições materiais de existência fique mais claro para nós
53
(até porque o considero muito importante para esse trabalho), atentemo-nos à seguinte
reflexão promovida por Marilena Chauí:
“... em todas as instituições sociais (família, trabalho, comércio, guerra,
religião, política) uma parte detém poder, riqueza, bens, armas, idéias e
saberes, terras, trabalhadores, poder político, enquanto outra parte não
possui nada disso, estando subjugada à outra, rica, poderosa e instruída.
(...)
“... A esse conjunto (tanto simples quanto complexo) de instituições
nascidas da divisão social [divisão sexual do trabalho, divisão social do
trabalho, divisão social das trocas, divisão social das riquezas, divisão
social do poder econômico, divisão social do poder militar, do poder
religioso, do poder político] Marx deu o nome de condições materiais da
vida social e política. Por que materiais? Por que se referem ao conjunto
de práticas sociais pelas quais os homens garantem sua sobrevivência por
meio do trabalho e da troca dos produtos do trabalho, e que constituem a
economia.” (CHAUI, 1995: 171)
Acredito que o importante a ser enfatizado aqui é que no marxismo não dá para se
falar em práticas sociais, das diversas esferas da vida social, senão como práticas de
trabalho, ou seja, aquelas voltadas para garantir a sobrevivência. Nesse sentido, há o
trabalho dividido constituindo essencialmente os diversos aspectos da vida social (política,
religião, educação etc), sendo que o sentido real desses diversos aspectos só pode ser
desvendado se desvelarmos também as relações sociais de trabalho que são, em última
instância, a base material que os fundamenta. Em outras palavras, podemos dizer que as
condições materiais de existência, materializadas pelas práticas sociais das diversas
instituições sociais, são condições materiais de produção, que são, em última análise, as
relações sociais de trabalho e de troca.
Enfim, no marxismo, a subjetividade é produto das condições objetivas de produção
da existência.
Por outro lado, vimos que Husserl, na mesma linha de Kant, define a subjetividade
também enquanto subjetividade transcendental e que, portanto, em última instância, não
está condicionada pelas práticas materiais objetivas na produção de suas significações ou
essências. Por isso, Husserl mantém a possibilidade de universalidade e de necessidade do
conhecimento, desde que a consciência se deixasse conduzir por procedimentos corretos na
investigação e descoberta de seus objetos de conhecimento.
Nos próximos dois itens veremos os princípios básicos da proposta
fenomenológico-existencial pertinentes à necessidades desse trabalho, bem como veremos
como essa corrente lida com as outras que já foram apresentadas aqui.
54
7.1. A crítica da fenomenologia existencial ao empirismo, ao idealismo e ao
naturalismo
A fenomenologia existencial surgiu como uma corrente filosófica que busca acabar
com a dicotomia sujeito/ objeto, sem necessariamente anular o sujeito e sem lhe atribuir um
papel exclusivo no processo de conhecimento. Para isso, ela se apóia em princípios em que
a interação entre os dois pólos é um fator primordial e irrefutável.
“Toda consciência é consciência de alguma coisa” e “todo objeto é objeto para
alguma consciência” são duas proposições essenciais para se entender o pensamento
fenomenológico-existencial.
Assim, para essa corrente filosófica não é possível compreender a consciência em
estado puro, como se esta pudesse ser afastada dos objetos para os quais ela se dirige. Ou
seja, a constatação da consciência enquanto algo existente ocorre na medida em que ela só
pode ser surpreendida como movimento em direção a alguma coisa para a qual ela volta a
sua atenção. Não há consciência, senão nessa condição necessária de relação da mesma
com um objeto qualquer. Isso significa uma crítica direta ao pensamento intelectualista que
admitia a hipótese de uma razão inata (no caso de Descartes) ou de uma consciência
universal (no caso de Kant). Ambas se configuravam independentemente dos objetos aos
quais se referiam. Daí a dicotomia do intelectualismo.
Nesse sentido, a fenomenologia existencial acolhe a contribuição de Husserl que já
defendia que a consciência possui o atributo da intencionalidade (“toda consciência é
consciência de alguma coisa”), o que implica ela não poder ser compreendida como um
ente isolado em si, mas sim como um permanente movimento em direção ao mundo.
A fenomenologia existencial, porém, vai além de Husserl, na medida em que para
ela o mundo não pode ser reduzido à consciência, do mesmo jeito que o mundo também
não pode ser compreendido como um dado absoluto tal como o empirismo o encarava.
Portanto, da mesma forma em que o mundo não está subordinado ao sujeito, também não
podemos afirmar que o sujeito encontra-se numa posição passiva frente ao mundo. O
mundo é sempre mundo para uma consciência, o que significa dizer que, do mesmo jeito
que não há uma consciência que reduz o objeto a uma condição de mero dado, também não
há um objeto que se despe por conta própria para o sujeito, cabendo a esse tão-somente
traduzir as suas manifestações transparentes e os seus “segredos”. Portanto, na
55
fenomenologia existencial, assim como na fenomenologia idealista, não é possível se falar
exatamente em um objeto isolado do sujeito, mas sim de fenômenos.
Na fenomenologia existencial, os objetos estão “molhados de subjetividade”. Do
mesmo jeito, podemos afirmar que os sujeitos estão mergulhados no mundo, estão
“molhados de objetividade”. Não há, portanto, sujeito, senão na interação com o objeto.
Não há objeto senão na interação com o sujeito. Por isso, o olhar do fenomenólogo volta-se
para objetos não enquanto entidades afastadas que aguardam um olhar neutro, mas sim para
os objetos enquanto fenômenos. Ou seja, enquanto mundo para uma consciência.
Nesse sentido, entendendo-se fenômeno como mundo para a consciência, o método
fenomenológico defende a idéia de que cabe a nós procurarmos descrever os fenômenos.
Descrevê-los tal como eles se apresentam para nós. Por isso, abordar um fenômeno não
significa constituí-lo com as nossas categorias lógicas e mentais, nem já definir de antemão
um caminho para o qual devemos conduzir nossa análise na busca do sentido último do
mesmo. Não há, portanto, uma construção que podemos fazer arbitrariamente. Não há uma
interpretação que se pauta em uma lógica pré-estabelecida por nós e que utilizamos para
incluir nela os dados da realidade.
“... a tarefa filosófica dos fenomenólogos consiste em descrever os
fenômenos, e não explicá-los. À primeira vista pode-se pensar que esses
sejam procedimentos parecidos. No entanto, explicar implica interferir no
fenômeno, introduzindo nele nossas categorias lógicas. Assim, explicar é
um ato artificial, enquanto descrever supõe abordar o fenômeno da
perspectiva do homem que o vivencia tal como ele se apresenta à
consciência...” (CARMO, 2002: 22)
Nessa diferenciação entre descrever e explicar há uma importante proposta
metodológica implícita. O respeito pela perspectiva de quem aborda o fenômeno é essencial
para que não esqueçamos que as relações existentes na experiência de vida desse sujeito
que aborda também fazem parte da descrição fenomenológica. Ou seja, a fenomenologia
traz a brilhante contribuição para o mundo da pesquisa científica e filosófica quando nos
alerta para a necessidade de explicitarmos de qual posição estamos falando, de qual posição
os sujeitos de nossas pesquisas também estão falando e quais condições nos levaram a falar
isso ou aquilo e disso ou daquilo.
Assim, se dou para o mundo essa ou aquela explicação, só chego a ela porque faço
parte de um conjunto de relações que me conduzem a dar determinado sentido aos
fenômenos que abordo. Por isso, é necesrio que eu descreva o fenômeno por mim
56
abordado juntamente com a descrição que faço de mim mesmo, já que só ela poderá fazer
entender os significados que dou para as minhas experiências. Do mesmo modo, quando
tenho como objeto de minha investigação a fala e as explicações dadas por outros, elas só
farão sentido dentro do conjunto de significados dele, quando eu descrever as relações que
o mesmo estabelece com o mundo e que o levaram a dizer isto ou aquilo.
Portanto, para a fenomenologia existencial, o mundo vivido pelo sujeito, mundo
este que está molhado de objetividade, é uma condição anterior ao mundo pensado pelo
mesmo (pensamento este que está molhado de subjetividade). Assim, entre o pensado e o
vivido há uma interação sem rupturas. Portanto, as diversas teorias, doutrinas, explicações
que formam o conhecimento e o patrimônio teórico-científico-filosófico-artístico que nos
envolvem só podem ser compreendidas em suas raízes, se forem relacionadas com o vivido
de quem as pensou, elaborou, produziu e escreveu. Por isso, não se trata de, como é muito
cultuado pelos cientistas positivistas, acatar as teorias como referências únicas de
explicação dos fenômenos, mas sim encará-las como produto específico de experiências
vividas específicas e que geraram respostas específicas para questões de um determinado
contexto. As respostas construídas nessas circunstâncias não se referem a verdades
universais e absolutas sobre o mundo, mas sim a uma possibilidade de, em determinadas
condições, dar determinadas explicações e significados às coisas.
Para ilustrar esse importante elemento da fenomenologia, gostaria de citar uma
longa e instigante passagem de Marilena Chauí, em seu livro O que é ideologia.
“... costumamos dizer que uma montanha é real porque é uma coisa. No
entanto, o simples fato de que essa ‘coisa’ possua um nome, que a
chamemos ‘montanha’, indica que ela é, pelo menos, uma ‘coisa-para-
nós’, isto é, algo que possui um sentido em nossa experiência.
Suponhamos que pertencemos a uma sociedade cuja religião é politeísta
e cujos deuses são imaginados com formas e sentimentos humanos,
embora superiores aos homens, e que nossa sociedade exprima essa
superioridade divina fazendo com que os deuses sejam habitantes dos
altos lugares. A montanha já não é uma coisa: é a morada dos deuses.
Suponhamos, agora, que somos uma empresa capitalista que pretende
explorar minério de ferro e que descobrimos uma grande jazida numa
montanha. Como empresários, compramos a montanha, que, portanto,
não é uma coisa, mas propriedade privada. Visto que iremos explorá-la
para obtenção de lucros, não é uma coisa, mas capital. Ora, sendo
propriedade privada capitalista, só existe como tal se for lugar de
trabalho. Assim, a montanha não é coisa, mas relação econômica e,
portanto, relação social. A montanha, agora, é matéria-prima num
conjunto de forças produtivas, dentre as quais se destaca o trabalhador,
para quem a montanha é lugar de trabalho. Suponhamos, agora, que
57
somos pintores. Para nós, a montanha é forma, cor, volume, linhas,
profundidade – não é uma coisa, mas um campo de visibilidade.
“Não se trata de supor que há, de um lado, a ‘coisa’ física ou material e,
de outro, a ‘coisa’ como idéia ou significação. Não há, de um lado, a
coisa-em-si, e, de outro lado, a coisa para-nós, mas entrelaçamento do
físico-material e da significação, a unidade de um ser e de seu sentido,
fazendo com que aquilo que chamamos ‘coisa’ seja sempre um campo
significativo. O Monte Olimpo, o Monte Sinai são realidades culturais
tanto quanto as Sierras para a história da revolução cubana ou as
montanhas para a resistência espanhola ou francesa, ou a Montanha Santa
Vitória, pintada por Cézanne. O que não impede ao geólogo de estudá-las
de modo diverso, nem ao capitalista de reduzi-las a mercadorias (seja
explorando seus recursos de matéria-prima, seja transformando-as em
objeto de turismo lucrativo)”. (1994: 17-18)
Acredito que o teor de toda argumentação de Marilena Chauí, correspondendo com
a da fenomenologia, é nos mostrar que o mundo vivido pelo indivíduo terá papel essencial
na consolidação daquilo que esse indivíduo vai dizer sobre os fenômenos que a ele se
apresentam. Por isso, não dá para afirmar a verdade universal sobre o que se deve entender
sobre o que é montanha, ou o que é história, ou o que é dinheiro, o que é felicidade, o que é
o número 4, o que é linguagem, o que é melhor, o que é verdade...
Ao analisar como esse processo se materializa na reflexão científica sobre o
conceito de natureza, Marcos B. de Carvalho nos oferece a seguinte contribuição:
“A resposta da natureza está na própria história dos homens.
“Produzir idéias, concepções, modos de vida, hábitos de convivência, ou,
numa palavra, produzir cultura, faz parte da natureza do homem. Neste
sentido é natural que a natureza também mude, toda vez que, a partir da
adoção de novas regras de convivência social, as pessoas sejam capazes
de produzir novas culturas e, portanto, novas concepções do mundo e de
sua natureza (...)
“Assim, não é possível entender nem a natureza nem o homem, a não ser
que os encaremos como partes integrantes e indissociáveis, que em cada
um dos momentos históricos constituem um mesmo e único mundo, onde
as ‘coisas’ da natureza e as idéias dos homens compõem uma mesma
realidade...” (2003: 61-62)
Essa citação ilustra o caráter relacional do conhecimento científico, que não pode
ser compreendido nas suas implicações e razões mais profundas, se não se considerarem os
diversos fatores sociais, econômicos, políticos, culturais, psicológicos, biográficos etc, que
envolveram o seu processo de elaboração.
No âmbito do mundo vivido, o mundo nos faz infinitas solicitações. Chega a nós
permanentemente sem que possamos dar conta de todos esses elementos que vêm até nós.
Como, na fenomenologia existencial, a consciência está encarnada no mundo, toda a sua
58
ação está impregnada dessas inúmeras “informações” que vêm a nós. Portanto, a nossa
consciência reflexiva só pode ser compreendida quando levamos em consideração a
complexidade do contexto em que ela está inserida.
Quando o sujeito toma a iniciativa de explicar o mundo que está aberto a ele, não
pode ter a ilusão de achar que a realidade está se apresentando em toda a sua transparência
e em suas diversas facetas e perspectivas. O mundo só se apresenta para cada um de nós em
um perfil específico e inacabado. É como se a cada momento a coisa se apresentasse em
sua originalidade, já que o número de variáveis implicadas na relação homem-mundo são
tão grandes, que não podem ser abarcadas em sua totalidade pelo conhecimento humano.
Nessa perspectiva, a ciência é colocada em xeque no que diz respeito à sua
pretensão de conhecimento universal e necessário, tal como era proposta pelos pensadores
da modernidade até a culminância do positivismo do século XIX e do pensamento de
Husserl, e isso inevitavelmente gera implicações na concepção de educação que será
praticada.
Assim, a proposta fenomenológico-existencial (que propõe, num primeiro momento,
a aproximação do sujeito cognoscente ao objeto de conhecimento como um ato de
descrição) quer nos esclarecer e nos alertar para o fato de que não há compreensão rigorosa
sem que o nosso olhar incida sobre a relação entre o vivido e o pensado. Ambos fazem
parte de uma mesma trama. Pretender uma reflexão que não explicite o vivido é promover
um movimento artificial que desconsidera a natureza dos objetos de conhecimento
enquanto fenômenos. E ser fenômeno significa afirmar que o objeto é objeto-para-uma-
consciência.
7.2. A crítica da fenomenologia existencial ao marxismo: o mundo vivido x as
condições materiais de existência
Sabendo-se da importância que o marxismo tem na obra de Paulo Freire, acredito
que seja de grande relevância, neste momento, falar sobre as ressalvas e limites que a
fenomenologia existencial vê no marxismo. Para cumprir com essa tarefa, estarei utilizando
como base a síntese feita por Antonio Muniz de Rezende sobre a fenomenologia existencial
em seu livro Concepção fenomenológica da educação.
A idéia de mundo vivido como fonte, fundamento e origem do conhecimento
precisa ser mais bem explicitada, pois, num primeiro olhar, mais precipitado, poderia
59
parecer que ela em nada se diferencia das condições materiais de existência do marxismo.
No entanto, como veremos, há diferenças importantes entre ambas as categorias.
Inspirado nos estudos que fez sobre a fenomenologia, Antonio Muniz de Rezende
(1990: 34-40) concebe o fenômeno como uma estrutura. Essa estrutura consiste numa
unidade dialética entre o ser humano e o mundo. O ser humano, portanto, não é entendido
por ele como uma entidade em si, mas sim como um ser-no-mundo, ou seja, um ser que
antes de mais nada se define como produto de uma situação existencial. Portanto, o ser
humano não pode ser entendido como um espírito puro, mas sim como um espírito unido
necessariamente a um corpo. O ser humano também não pode ser entendido como um
indivíduo isolado, mas sim como um ser presente numa sociedade. A estrutura humana não
pode ser reduzida a simplesmente um elemento definidor isolado. Somos seres ambíguos:
corporais-espirituais, individuais-sociais, teórico-práticos.
No entanto, não é suficiente dizer que somos seres-no-mundo, pois dessa forma
estamos enfatizando o poder que o mundo tem de determinar a nossa condição. Cairíamos
assim no objetivismo determinista. Para não cair nesse reducionismo, a fenomenologia
existencial propõe que entendamos a condição humana também como ser-ao-mundo, ou
seja, longe de estarmos simplesmente à mercê das circunstâncias objetivas e externas a nós,
estamos também em condição de atribuirmos significações existenciais ao mundo, seja
pelos nossos atos de conhecimento, seja pelas nossas ações práticas.
É importante que fique ressaltada aí a expressão significações existenciais. Ao
contrário das significações husserlianas, as significações da fenomenologia existencial são
impregnadas de existência, ou seja, estão em relação direta com as condições existenciais
de quem as formula. Em outras palavras, podemos dizer que as significações existenciais
formam uma unidade inseparável com o mundo vivido, com a existência.
Assim, a fenomenologia existencial não pretende desprover o conhecer e o agir da
possibilidade subjetiva da decisão, da intenção, da posição, da liberdade, da
responsabilidade, no entanto, ressalta que toda a posição nossa está ligada à nossa situação
existencial. Situação essa que, para Rezende, possui, pelo menos, quatro dimensões: uma
dimensão subjetiva, que nos insere numa condição corporal, ainda que esse corpo não possa
ser reduzido apensas ao seu aspecto biológico; uma dimensão social, que nos leva a
considerar que a nossa consciência corresponde sempre a uma co-existência, manifestando-
se pela linguagem compartilhada, pelos objetos culturais compartilhados e pelas relações de
60
trabalho compartilhadas; uma dimensão histórica, consistindo essa dimensão ao período
histórico que diz respeito a todos nós numa determinada época; e, a dimensão mundo, que é
a dimensão que pretende enfatizar tudo aquilo que está para além de nossas especificidades
histórico-culturais e que pode ser identificado na intersecção das experiências individuais e
coletivas que ocorrem e ocorreram nos diversos lugares.
Longe dessas dimensões da existência serem condições que atuam
deterministicamente sobre as consciências individuais, elas não passam de condições, ou
seja, de forças que podem ser negadas e transformadas pela ação dos sujeitos que podem,
por meio da palavra (na busca da verdade), e do trabalho, transcender as estruturas sociais e
culturais.
É a partir dessas premissas que a fenomenologia existencial faz as suas críticas ao
marxismo. Ainda que hajam diferentes interpretações sobre o modo pelo qual o marxismo
concebe a relação entre consciência e relações de produção, desde as interpretações mais
deterministas, até as mais dialéticas, é muito difícil negar a importância preponderante que
essa corrente filosófica atribui aos aspectos econômicos na formação das demais estruturas
sociais. Nesse sentido, a crítica fenomenológica se faz presente nos seguintes termos:
“A filosofia tenta compreender o mundo, apreender o seu sentido, da
maneira como ele é vivido. Ela visa apreender o mundo, e não apenas um
de seus setores (a sociedade, a economia, por exemplo), sem deixar
escapar nenhuma das manifestações do sentido da existência. Filosofia
do mundo, tanto quanto filosofia do homem.
“Pensando em Marx, Merleau-Ponty escreve: ‘É verdade, como disse
Marx, que a história não caminha sobre a cabeça, mas é verdade
igualmente que ela não pensa com os pés. Melhor dizendo, não tempos
que nos ocupar nem com sua cabeça nem com seus pés, mas com seu
corpo’ (Fenomenologia da Percepção, p. 14). A pretensão da
fenomenologia é de não privilegiar nem os pés nem a cabeça, mas o
corpo. Isto quer dizer que mundo não deve ser compreendido somente a
partir da economia, da sociologia, da política, da ideologia, mas de todas
as maneiras pelas quais temos acesso ao sentido. Não há por que
privilegiar a infra-estrutura ou a supra-estrutura em detrimento da
estrutura. Esta aparece onde quer que haja sentido. E tudo tem sentido,
embora nem tudo tenha o mesmo sentido. É no mundo que o homem
encontra sentido. É nele que o sentido se encarna para fazer dele um
mundo humano.” (REZENDE, 1990: 40-41)
Como vimos ao analisar o marxismo, no fundamento último da ação e da
consciência humanas é manutenção da existência física do corpo. Essa manutenção ocorre
por meio da atividade produtiva. Assim, o fundamento último da ação/ da prática e da ação
da consciência na compreensão do mundo está nas relações de produção. São essas relações
61
que são efetivamente a base concreta da atividade espiritual humana e da atribuição
humana de sentido para o mundo. Por outro lado, na fenomenologia, o fundamento último
do sentido não está necessariamente na manutenção da existência física (nas condições
materiais de produção, nas relações econômicas). Cada pessoa e cada sociedade precisam
ser compreendidas em suas especificidades e complexidade, se quisermos realmente
entender o sentido daquilo que foi explicitado individual ou coletivamente. Dessa forma,
basicamente, a crítica fenomenológica sobre marxismo é a de que na ânsia dele querer
explicar os fenômenos sociais com um modelo explicativo definido a priori, ele acaba
desprezando o mundo vivido que, na verdade, é anterior à própria atividade explicativa.
“A volta às próprias coisas, a redescoberta do mundo vivido é condição
radical para o nascimento da filosofia, e mesmo das ciências, que,
quando aparecem, encontra o mundo já constituído. O momento do
nascimento da filosofia é anterior à reflexão, sendo, ao contrário,
sustentáculo de toda reflexão posterior, tanto da filosofia como da
ciência...
“Isto faz da fenomenologia uma filosofia de experiência, ou mesmo uma
‘filosofia genética’, anterior às ‘explicações’ meramente psicológicas,
sociológicas ou historicistas, oferecidas pela ciência. Por outro lado,
supondo feita esta experiência, estará a fenomenologia em condições de
dialogar com as várias ciências, discutindo, criticando e integrando suas
diversas contribuições. O mesmo acontece em seu diálogo com outras
filosofias, que seja a de Hegel, a de Marx ou a de Freud, para mencionar
apenas três dos maiores nomes do pensamento contemporâneo.”
(REZENDE, 1990: 36-37)
Diferentemente da categoria de condições materiais de existência de Marx que
possui um caráter predominantemente de objetividade, enquanto força concreta que se
sobrepõe aos indivíduos, a categoria de mundo vivido da fenomenologia existencial refere-
se a um dado anterior à reflexão do sujeito e que é definido objetiva e subjetivamente. Os
atos, as falas inseridas nesse momento pré-reflexivo são produtos de uma tensão entre a
condição existencial de cada um e a sua subjetividade que não se reduz a essas condições
de existência objetiva. Nesse sentido, com a fenomenologia, a subjetividade e a
individualidade ganham uma importância significativa enquanto elementos a serem
ressaltados antes de nos precipitarmos em explicações mais generalizantes ou pré-
estabelecidas.
Para ficar mais claro onde a fenomenologia existencial pretende chegar no seu
processo de busca pela compreensão do sentido dos fenômenos, Rezende (1990: 60)
62
valoriza muito o conceito de cultura. Para ele, a cultura é a forma pela qual a existência se
expressa, se manifesta.
“Como tal, a cultura é a fisionomia ou o conjunto de traços distintos da
humanidade e dos grupos humanos.
“Estes traços devem ser entendidos, fenomenologicamente, como as
diversas formas concretas do relacionamento entre o homem e o mundo,
as diversas formas da intencionalidade, as diversas modalidades da
dialética fenomenal. A utilização do mundo, sua transformação, a
apropriação do mundo, seu conhecimento, o poder, as relações sociais, a
arte, a religião etc., são essas formas (no plural) da significação
existencial. Através da história, elas se consolidam, se institucionalizam,
na constituição de um determinado mundo. Tornam-se então os diversos
tópicos ou lugares concretos de manifestação do sentido em seus
múltiplos sentidos. (...)
Esta é a razão fundamental pela qual a distinção marxista entre a infra-
estrutura, a estrutura e a supra-estrutura já nos aparece como fruto de
uma visão secundária, posterior à percepção do ser-ao-mundo como um
fenômeno global. É uma interpretação que, como tal, conota uma tomada
de posição privilegiando um tópico, o econômico [infra-estrutura], em
detrimento de outros, e desconhecendo a essência simbólica da estrutura
cultural. Significativamente, esta acaba sendo reduzida a uma supra-
estrutura... Mais uma vez, este inconveniente, no caso do marxismo, não
nos parece provir tanto da adoção da perspectiva dialético-histórica,
como do materialismo e de uma concepção evolucionista da história, com
o correspondente isomorfismo na consideração das estruturas físicas,
vitais e humanas.” (1990: 60-61)
Como vemos, para Rezende o reducionismo marxista advêm da posição materialista
assumida por essa filosofia. Ao definir o ser humano a partir de sua prática material na
busca pela sua sobrevivência, o marxismo faz com que todas as outras práticas humanas
acabem convergindo para as relações econômicas. Conseqüentemente, no marxismo, as
contradições econômicas passam a ter o papel definidor dos rumos da história, já que essas
contradições materializar-se-ão pela luta de classes que é, para o marxismo, o grande motor
da história. Na lógica marxista, levada até as últimas conseqüências, pautada pelas
contradições de interesses materialmente determinados necessariamente, a história segue
um sentido inevitável pela necessidade de realização das próprias necessidades materiais
humanas: esse é o evolucionismo a que Rezende se refere nessa citação. Dessa forma,
inerente ao materialismo histórico e dialético há uma concepção evolucionista e
determinista da história e dos eventos de longa duração que inviabilizam o sentido da
história enquanto possibilidade e liberdade.
Respondendo a esse limite do materialismo, a fenomenologia propõe que o sentido
dos fenômenos não pode ser um problema solucionado a partir de uma relação necessária
63
com um elemento preponderante, de tal forma que ocorra uma convergência explicativa
necessária para tal elemento. Pelo contrário, na leitura fenomenológica, o sentido do mundo
não converge para nada em específico, na medida em que vários sentidos podem ser
reconhecidos, dependendo da perspectiva da qual nós nos aproximamos dos fenômenos.
Essas críticas que a fenomenologia remeteu ao marxismo efetivamente nos
previnem quanto aos perigos das várias formas de reducionismo e determinismo, porém,
terminarei esse capítulo fazendo alguns comentários sobre uma citação de Henry Giroux
que nos alerta sobre os cuidados que devemos ter com relação à concepção fenomenológica
no que concerne ao modo pelo qual essa corrente filosófica encara os fenômenos sociais
(por meio da fenomenologia social):
“Mas a nova sociologia [também chamada por Giroux de abordagem
sócio-fenomenológica] também tem suas falhas, as quais solapam sua
capacidade de resolver os próprios problemas que identificou. A análise
crítica mais elaborada apresentada contra a nova sociologia é a de que ela
representa uma forma de idealismo subjetivo. Supostamente, em seu
cerne a nova sociologia carece de uma teoria adequada de mudança
social e consciência. Embora ajude os educadores a desvelarem as formas
nas quais o conhecimento é definido e imposto, ela deixa de fornecer
critérios para medir-se o valor de diferentes formas de conhecimento em
sala de aula. Ao endossar o valor e relevância da intencionalidade dos
estudantes, a nova sociologia sucumbiu a uma noção de relatividade
cultural. Ela carece de um construto teórico para explicar o papel
desempenhado pela ideologia na construção do conhecimento por parte
dos estudantes. Ela não leva em conta o fato de que a maneira na qual os
estudantes percebem o mundo externo nem sempre corresponde à
estrutura e conteúdo real daquele mundo. As percepções subjetivas estão
dialeticamente relacionadas com o mundo social e não simplesmente o
espelham. Ignorar isso, como têm feito os nos novos sociólogos, significa
ser vítima de um subjetivismo distorcido. (...)
“A abordagem neomarxista elucida de maneira mais clara do que as duas
outras abordagens [estrutural funcional e a sócio-fenomenológica]...
como a reprodução social está ligada aos relacionamentos sociais em sala
de aula e como a construção do conhecimento está relacionada à noção
de falsa consciência. Ainda que enfatizem a importância do papel
subjetivo do estudante na constituição do significado por si mesmo, os
neomarxistas estão igualmente preocupados com as formas nas quais as
condições sociais e econômicas limitam e distorcem a construção social
do significado, particularmente enquanto mediado através do currículo
oculto. Os estudos em sala de aula não devem apenas ser relacionados
com o estudo da sociedade mais ampla, como também com uma noção de
justiça, a qual seja capaz de articular como certas estruturas sociais
injustas podem ser identificadas e substituídas”. (1997: 59-60)
Acredito que essa tensão entre neomarxismo e fenomenologia social descrita por
Giroux seja uma porta de entrada interessante para compreendermos a posição de Paulo
64
Freire frente a essa tensão. Como veremos, Paulo Freire se utilizou reiteradamente de
conceitos advindos da filosofia marxista (tais como, ideologia, alienação, exploração
econômica, dominação política), principalmente para delinear a sua leitura da realidade
sócio-econômica e política mais ampla em que se pratica a educação.
Nesse sentido, do mesmo jeito em que uma incorporação a-crítica do marxismo
pode ter conseqüências danosas quanto à compreensão do poder da subjetividade, também
pode-se incorrer em graves limitações se nos restringirmos à abordagem sócio-
fenomenológica que, de tanta preocupação com as individualidade, pode esquecer da
essencial politicidade inerente ao fenômeno educativo.
Sendo a politicidade a categoria mais importante do pensamento freireano, e talvez
a fonte principal que conduziu Freire a construir uma proposta educacional original com o
objetivo de libertação dos seres humanos, sinto-me compelido a iniciar por ela para uma
adequada apresentação do pensamento de Paulo Freire. Portanto, é daí que se iniciará o
capítulo seguinte.
65
Capítulo II
A inspiração fenomenológica na concepção de ensino-
aprendizagem de Paulo Freire
Durante o cumprimento dos créditos do mestrado, tive a oportunidade de participar
de uma das “disciplinas”, denominada Cátedra Paulo Freire, no 2º Semestre de 2004. Nela
tive a chance de discutir com um grupo de participantes sobre diversos aspectos do
pensamento de Paulo Freire. Numa das aulas, problematizávamos o fato de que o
pensamento e a teoria de Freire foram e têm sido muitas vezes apropriados por educadores,
por órgãos públicos, por instituições educacionais, por intelectuais e outros, que nem
sempre cumprem com o princípio de respeito pela integridade à produção intelectual do
autor.
Algumas vezes, pessoas e instituições promovem e divulgam interpretações da obra
de Paulo Freire e de conceitos identificadores desse educador, que nem sempre são
devidamente apropriados, interpretados, articulados ou aplicados. Idéias e categorias
freqüentes na obra freireana, tais como temas geradores, palavras-geradoras, conteúdos
programáticos, diálogo e outros, são invariavelmente repetidos por pessoas que possuem
diversas posições, muitas vezes antagônicas, e que, no entanto, assumem categorias
freireanas, como se elas não tivessem articuladas a um posicionamento claro e explícito
sobre qual é o projeto de sociedade ao qual elas se coadunam.
Nesse sentido, o pensamento de Paulo Freire (assim como todo e qualquer tipo de
pensamento e de legado intelectual) também já foi e continua sendo refém de um processo
de idealização que se materializa principalmente pela fragmentação e descontextualização
de diversas dimensões de sua obra. Transformam-se, assim, princípios, conceitos,
categorias que emergiram de situações concretas e para servirem a realidades concretas, em
entidades abstratas que são citadas de forma não-rigorosa e sem compromisso com as reais
intenções do autor e com o contexto de sua obra. Disso resulta que, desde indivíduos,
partidos ou pessoas claramente ligadas a práticas conservadoras, reacionárias ou atreladas a
uma concepção de mundo mais descompromissada com as classes sociais dominadas, como
também pessoas que assumem a luta por uma sociedade mais justa (e que supere toda e
66
qualquer forma de opressão), podem estar aparentemente falando as mesmas coisas quando
eventualmente utilizam a terminologia freireana para expressar os seus anseios.
Por tudo isso, naquela aula da disciplina acima citada, discutimos se havia no
pensamento desse educador alguma categoria ou algum conceito que articulasse todos
outros para que os elementos específicos da teoria de Paulo Freire não pudessem ser
distorcidos ou apropriados indevidamente no sentido de atenderem a qualquer proposta
pedagógica e qualquer projeto de sociedade. Constatamos que o conceito articulador do
pensamento freireano, mais do isso, o conceito diferenciador da teoria freireana, com
relação a muitas teorias educacionais que tinham sido propostas antes de Freire, é a
politicidade.
Essa nossa constatação é corroborada por Moacir Gadotti no prefácio do livro
Educação e Mudança de autoria de Paulo Freire:
“Depois de Paulo Freire ninguém mais pode ignorar que a educação é
sempre um ato político. Aqueles que tentam argumentar em contrário,
afirmando que o educador não pode ‘fazer política’, estão defendendo
uma certa política, a política da despolitização. Pelo contrário, se a
educação, notadamente a brasileira, sempre ignorou a política, a política
nunca ignorou a educação. Não estamos politizando a educação. Ela
sempre foi política. Ela sempre esteve a serviço das classes dominantes.
Este é um princípio de que parte Paulo Freire, princípio subjacente a cada
página do que aqui escreveu.” (In: FREIRE, 1979: 14)
Moacir Gadotti conseguiu expressar aquilo que acredito ser o cerne da obra
freireana. Sendo a educação uma prática social, não é possível concebê-la senão como uma
prática que emerge das condições concretas em que se encontra a sociedade. Na sua
concretude, a sociedade capitalista se ordena a partir de relações conflituosas entre grupos
sociais que lutam entre si para: ou se manterem numa determinada posição, ou para
chegarem a uma posição que possibilita melhores condições de vida a alguns indivíduos em
detrimento de outros, ou para que as próprias hierarquias sociais sejam eliminadas. Nessa
luta, tudo (ou quase tudo) está implicado, desde as relações familiares, passando pelas
relações nas instituições econômicas, até as relações nos meios educacionais. Isso significa
que os diversos espaços sociais estão sujeitos a influências que surgem no próprio seio da
sociedade em que estão situados. Neles, idéias circulam, e tais idéias representam a
sociedade. No entanto, podem representar a sociedade tal como ela é, como também podem
omitir os conflitos reais que estão presentes na sociedade (como já pudemos ver na breve
apresentação que fizemos do marxismo no Capítulo 1), mas que, para serem percebidos,
67
precisam ser desvelados por meio de uma leitura de mundo que vá além de uma mera
observação da aparência imediata dos fenômenos.
O futuro da sociedade está justamente ligado (dentre outros fatores) aos modos
pelos quais os indivíduos têm acesso aos conhecimentos que podem permitir ou não o
desmascaramento da realidade social. Sendo a educação um veículo privilegiado de
transmissão de conhecimentos, é um grande equívoco acreditar que ela é um mero
instrumento que, neutramente, tem o objetivo de “elevar o espírito humano”, como muitos
acreditam. Na verdade, ela serve a objetivos de alguém. Ela conforma ou não conforma
consciências a aceitarem ou não uma determinada situação. Tal situação se materializa na
organização da sociedade por meio do poder de deixá-la como é ou de transformá-la em
outra coisa. Daí, o sentido de se inferir a politicidade da educação como algo não
circunstancial, mas como algo inerente à própria prática educativa.
Assim, pode-se dizer que essa prática está molhada por valores que podem
representar ou a manutenção de um determinado padrão de relações sociais, ou justamente
a reflexão crítica sobre esse padrão, anunciando a possibilidade do advento de um outro
modelo de sociedade. Seja como for, não é possível despolitizar a educação, pois isso
significaria pensar numa relação educador-educando fora da sociedade e que não estivesse
sujeita às determinações dessa última.
A posição política de Paulo Freire, em favor do combate às injustiças sociais não
pode ser de modo algum omitida. Não se pode considerar justo qualquer tipo de referência
ao diálogo freireano, sem dizer que esse diálogo é um princípio marcado pelo conceito de
criticidade, que por sua vez está atrelado ao conceito de politicidade. Ou seja, não podemos
admitir a possibilidade de uma apropriação do pensamento de Paulo Freire sem que se
respeite o fato de que a politicidade é um elemento articulador de todo esse pensamento e
de todas as categorias desse autor, sem a qual, suas idéias passariam a ser meras
generalidades que se refeririam a uma sociedade abstrata e que, portanto, poderiam servir a
qualquer projeto de educação e de sociedade.
Sustentando toda a pedagogia libertadora freireana e a posição política assumida por
Paulo Freire, há uma reflexão sólida sobre a questão da natureza humana. Ou seja, a crítica
a todas as formas de exploração e de dominação presentes na sociedade em que vivemos se
sustenta em valores que Paulo Freire preza como sendo fundamentais no sentido de
definirem os seres humanos como tais. A distorção desses valores significa a negação do
68
direito dos humanos viverem como tais. Por isso, falar em politicidade em Paulo Freire nos
conduz ao problema do porquê assumir essa ou aquela posição política. Esse porquê só
pode ser respondido se se analisar um pouco a compreensão freireana da condição humana
e do processo de desumanização a que nos submetemos no decorrer dos tempos.
1. Paulo Freire: a politicidade assumida em favor do ser mais
Uma das preocupações centrais que Paulo Freire teve e que pode ser percebido por
toda a sua obra diz respeito à configuração da natureza humana. Para ele, há características
básicas que definem a presença do ser humano no mundo.
A primeira delas que gostaria de destacar é a concepção freireana do mundo como
possibilidade. Se Freire acreditasse na existência de uma força irresistível que reduzisse a
natureza humana a uma mera subordinação a circunstâncias alheias, ele sem dúvida não
teria proposto uma concepção pedagógica que visa a transformação da sociedade, já que,
contra tais circunstâncias, não haveria como lutar. Isso significa que acreditar numa tal
compreensão da realidade seria dar ao mundo objetivo uma força determinante sobre a
realidade dos indivíduos. Cairíamos aí na concepção determinista da sociedade.
Tal concepção se caracteriza essencialmente por reduzir o fenômeno humano a um
mero produto de forças econômicas, ou políticas, ou religiosas etc contra as quais não
haveria nada a fazer senão submeter-se passivamente.
Essa compreensão mecanicista e determinista da realidade preocupou muito Paulo
Freire, o que pode ser percebido em vários momentos de sua obra. No entanto, nas suas
últimas obras é possível perceber a insistência com que Paulo Freire retornou a essa
temática.
No contexto dos anos 90, pós-queda do Muro de Berlim, apareceram no cenário
intelectual mundial diversas teorias que, alinhando-se aos interesses dos grupos
dominantes, pronunciavam o fim da história, o fim das ideologias, o fim das classes
sociais... Tais teorias vieram ao encontro das expectativas de todos aqueles que se
beneficiam das contradições inerentes ao mundo capitalista, já que elas fundamentam
cientificamente que não há qualquer caminho a ser trilhado nas sociedades humanas senão
continuar seguindo aquele que conduz à sociedade de mercado. Tal raciocínio carrega
dentro de si uma inconsistência que nos remete à discussão sobre a própria essência da
presença humana no mundo.
69
Contra ele, Paulo Freire posicionou-se, dentre outras maneiras, da seguinte forma:
“A desproblematização do futuro numa compreensão mecanicista da
História, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à
negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança. É que, na
inteligência mecanicista portanto determinista da História, o futuro é já
sabido. A luta por um futuro assim ‘a priori’ conhecido prescinde da
esperança.
“A desproblematização do futuro, não importa em nome de quê, é uma
violenta ruptura com a natureza humana social e historicamente
constituindo-se.” (1996: 81-82)
Propondo-se a uma leitura cuidadosa dos diversos momentos da obra freireana
pode-se constatar a luta que Paulo Freire travou contra as tentativas de se imobilizar o
processo histórico, reduzindo-se o ser humano a um mero produto e objeto das
circunstâncias.
Por outro lado, Freire também contestou fortemente as tentativas de se atribuir ao
indivíduo o poder exclusivo sobre as circunstâncias em que está inserido. Ao contrário do
determinismo objetivista, essa compreensão da realidade é aquilo que Freire chamou de
subjetivismo. Enquanto que a primeira atribui uma força avassaladora para a realidade
objetiva, a segunda admite no ser humano uma consciência pura, que paira acima do
mundo: uma racionalidade inatingível. Como conseqüência dessa última chega-se a uma
compreensão da realidade do indivíduo como sendo o único e exclusivamente responsável
pela sua situação no mundo, já que basta a ele ver o mundo de outro jeito para que a
realidade objetiva se dissolva frente aos seus anseios. Só para exemplificar essa concepção
não se pode desprezar o quanto ela está presente na mentalidade de boa parte da produção
de teorias da auto-ajuda, bem como em diversas formas de relacionamento com a fé. Nessa
perspectiva, as angústias, os problemas sociais, as frustrações de ordem material etc
reduzem-se a problemas individuais que cada um deve resolver por conta própria, seja
pensando mais positivo, seja aumentando a própria fé. Não é por acaso que vemos e
ouvimos constantemente, nos dias de hoje, a simplificação dos problemas e uma constante
culpabilização dos indivíduos por sua própria sorte na vida.
Diante disso, quero dizer que, assim como as explicações deterministas conduzem
ao fatalismo e à morte da história, as explicações subjetivistas conduzem a um
individualismo e a uma simplificação no que concerne à compreensão das relações que os
indivíduos mantêm com a realidade.
70
Para questionar ambas as teses, Paulo Freire nos remete, num de seus textos do livro
Ação Cultural para a liberdade, ao processo de hominização. Eis o que ele diz:
“... a prática educativo-libertadora se obriga a propor aos homens uma
espécie de ‘arqueologia’ da consciência, através de cujo esforço eles
podem, em certo sentido, refazer o caminho natural pelo qual a
consciência emerge capaz de perceber-se a si mesma. No processo de
‘hominização’ em que a reflexão se instaura, se verifica o ‘salto
individual, instantâneo, do instinto ao pensamento’. Desde aquele
remotíssimo momento, porém, a consciência reflexiva caracterizou o
homem como um animal não apenas capaz de conhecer, mas também
capaz de saber-se conhecendo...
“A percepção crítica deste fato, de um lado, desfaz o dualismo simplista
que estabelece uma inexistente dicotomia entre a consciência e o mundo;
de outro, retifica o equívoco em que se encontra a consciência ingênua,
ideologizada nas estruturas da dominação, tal o de considerar-se como
aquele recipiente vazio a ser enchido de conteúdos”. (FREIRE, 1976:
100)
As inúmeras implicações do processo de hominização vão resolver o problema do
subjetivismo e do objetivismo.
No momento em que se instaura o pensamento, a relação do indivíduo com o mundo
já não mais se caracteriza pelo determinismo em que o mundo físico e biológico da
natureza são entidades supremas que determinam as leis e os limites da vida. A partir desse
momento, a ação consciente do homem sobre o mundo é capaz de transformá-lo de acordo
com um projeto construído na consciência humana dentro de circunstâncias determinadas.
Aí já podemos constatar a presença de circunstâncias objetivas envolvendo uma
subjetividade ativa, não mais passiva como ocorria até o momento. Da relação entre essas
circunstâncias e a ação consciente humana que vai nascer o mundo propriamente humano:
o mundo da cultura. Mundo que o ser humano transforma de acordo com a sua consciência,
finalidade e necessidade e, para isso, mundo que passa a ser objeto de reflexão do ser
humano, que passa a ter capacidade de objetivá-lo em sua consciência.
A já não mais total submissão do ser humano às forças da natureza e às forças
instintivas possibilitam que o mundo propriamente humano possa ser delineado não mais
em termos de determinação, mas sim como condição. Ou seja, ao invés de falarmos de
determinismo na relação homem-mundo, podemos falar de condicionamento, já que o
elemento desencadeador da hominização é justamente a capacidade de transformação
concreta que o homem exerce sobre o mundo.
71
Portanto, é necessário, se quisermos mais tarde entender, que mundo é esse, que
realidade concreta é essa, que condições concretas são essas que condicionam o ser
humano, e que é uma das bases da pedagogia freireana, precisamos dimensionar a que
Paulo Freire está se referindo quando fala dele.
Nesse sentido, vale a pena incidir a nossa reflexão sobre a seguinte passagem
freireana:
“... Como um ser da práxis, o homem, ao responder aos desafios que
partem do mundo, cria seu mundo: o mundo histórico-cultural.
“O mundo de acontecimentos, de valores, de idéias, de instituições.
Mundo da linguagem, dos sinais, dos significados, dos símbolos.
“Mundo da opinião e mundo do saber. Mundo da ciência, da religião, das
artes, mundo das relações de produção. Mundo finalmente humano.
“Todo este mundo histórico-cultural, produto da práxis humana, se volta
sobre o homem, condicionando-o. Criado por ele, o homem não pode,
sem dúvida, fugir dele. Não pode fugir do condicionamento de sua
própria produção.” (FREIRE, 1979 :46-47)
As transformações que o ser humano promove no mundo recaem sobre ele
condicionando-o. Esse é o elemento exclusivamente humano que o distingue de todos os
outros seres vivos ou não-vivos. Quando todos esses elementos recaem sobre os indivíduos,
o que na verdade está constituindo a subjetividade é uma totalidade que não pode ser
reduzida a um ou outro elemento, a um ou outro aspecto.
Quando, numa das citações feitas acima, Paulo Freire denuncia os determinismos,
sejam de direita, sejam de esquerda, acredito que ele esteja preocupado justamente com
essa redução do mundo a apenas um ou outro de seus aspectos (uma preocupação que
vimos presente na fenomenologia existencial). Como é possível ver nessa última citação,
Paulo Freire preocupou-se em ampliar o campo de fatores que compõe o mundo, não o
reduzindo tão-somente às relações materiais de produção ou a qualquer outro aspecto. Um
reducionismo dessa natureza levar-nos-ia a acreditar que se alterando apenas um aspecto da
totalidade da realidade objetiva ocorreria mecanicisticamente a mudança de todos os outros
aspectos da sociedade, bem como dos indivíduos que nela vivem. Daí a importância de
compreendermos o entendimento de Paulo Freire sobre o quê afinal é esse mundo
condicionador da realidade dos indivíduos.
Paulo Freire enumera implicações do processo de hominização no decorrer de toda
a sua obra. Ele fala que o ser humano é o único ser capaz de promover a sua ação
consciente sobre o mundo, portanto, é capaz não só de reproduzir, de adaptar-se e de se
72
ajustar a esse mundo, como também de criar e de re-criá-lo. Por ser capaz de transformá-lo,
possui liberdade com relação a ele e capacidade de decisão.
No entanto, para que essa transformação seja consciente, é preciso que o ser
humano seja capaz de captar dados da realidade. Isso significa que o ser humano não
apenas está no mundo, mas também com ele, já que possui a faculdade de incidir sua
reflexão sobre ele transformando-o em seu objeto de conhecimento. No entanto, essa
incidência de sua reflexão sobre o mundo não ocorre sem uma intencionalidade como já
tive oportunidade de explicar em momentos anteriores desse trabalho.
É nessa perspectiva que Paulo Freire fala do ser humano como um ser inacabado,
inconcluso e consciente do seu inacabamento. A própria experiência mostra para o ser
humano que ele pode saber o que ainda não sabe, que ele pode conhecer o que ainda não
conhece. Aí está o fundamento da educabilidade humana. Ou seja, o ser humano só pode
ser educado porque tivemos condições de constatar que ele não é um ser pronto e acabado,
mas sim que sua natureza permite que ele ultrapasse seu conhecimento e condições
presentes por meio do processo educativo.
“Seria realmente impensável que um ser assim, ‘programado para
aprender’, inacabado, mas consciente de seu inacabamento, por isso
mesmo em permanente busca, indagador, curioso em torno de si e de si
no e com o mundo e com os outros; porque histórico, preocupado sempre
com o amanhã, não se achasse, como condição necessária para estar
sendo, inserido, ingênua ou criticamente, num incessante processo de
formação...”. (FREIRE, 2001: 19)
É a capacidade de transcender o instinto e a natureza que confere ao ser humano a
faculdade de poder escolher, de ter autonomia, de mudar, de intervir no mundo (seja
técnica, ética, científica, politicamente etc), enfim, de ir além de seu condicionamento.
Um ser situado e temporalizado, que pode ir além de sua situação espaço-temporal,
na medida em que interage com o mundo, é o que possibilita Paulo Freire definir a relação
homem-mundo não em termos de determinismo, mas sim de dialética. O ser humano é o
mundo, ao mesmo tempo em que é a sua negação (na medida em que possui uma
subjetividade). O mundo é o que o ser humano faz, ao mesmo tempo em que é uma
realidade maior que nega a possibilidade de ser reduzido a uma subjetividade. Mundo-
consciência, realidade-indivíduo é uma unidade dialética na qual os dois pólos não podem
nunca se reduzir um ao outro, sob a pena de se ter uma compreensão distorcida da História
humana. Daí a seguinte afirmação que Paulo Freire nos legou:
73
“... Se mecanicistas ou idealistas não podem alterar a dialética
consciência/mundo e subjetividade/objetividade, isso não significa que
nossa prática idealista ou mecanicista esteja eximida de seu erro
fundamental. Alcançam rotundo fracasso os planos de ação que se
fundam na concepção da consciência como fazedora arbitrária do mundo
e defende que mudar o mundo demanda antes ‘purificar’ a consciência
moral. Da mesma forma, projetos baseados na visão mecanicista,
segundo a qual a consciência é puro reflexo da materialidade objetiva não
escapam à punição da História.” (FREIRE, 2001 :21)
Quando se despreza a dialética realidade objetiva-consciência, inevitavelmente,
tem-se uma ação político-pedagógica fracassada (caso essa tenha como finalidade a
libertação), pois não existe como ignorar a presença da realidade na constituição da
subjetividade, bem como a intervenção desta última na realidade. Este é sem dúvida um dos
grandes equívocos da educação bancária.
Penso que agora já se pode vislumbrar melhor os valores e os fundamentos
antropológicos que estão na base da concepção de ensino-aprendizagem freireana. Desde o
momento em que ocorreu o processo de hominização e o futuro ser humano passou a se
desligar do mundo como um ser exclusivamente passivo e passou a ser o produtor de sua
própria História e de sua própria cultura, desde esse momento, nós passamos a ter um
critério para avaliarmos se o modo de estar sendo dos homens em determinado momento
histórico e em determinado lugar está realmente criando condições para que os indivíduos
desenvolvam todas as capacidades que os definem como efetivamente humanos.
A questão que se coloca, portanto, é sobre quais estão sendo as possibilidades que
os seres humanos estão tendo, no atual modelo de sociedade em que vivemos, de criar mais,
de ter o seu ponto de decisão dentro de si, de transformar mais, de aprender mais, de agir
mais de acordo com finalidades próprias, de ser dono do produto do próprio trabalho... É
disso que se trata quando pensamos pelo quê que precisamos lutar numa perspectiva
freireana.
Quando Paulo Freire nos possibilita vislumbrar a dialética homem-mundo, ele nos
faz perguntar em qual nível de uso e de usufruto de suas capacidades os seres humanos
estão vivendo no atual momento de nossa sociedade. De que maneira não é uma violência
você viver em uma realidade objetiva que nega o desenvolvimento de todas aquelas
faculdades e de todos aqueles potenciais que são tipicamente humanos? Daí o problema da
humanização ser a questão central que está presente em toda a obra freireana. Se a práxis
humana estiver sendo desenvolvida, tanto mais o ser humano estará efetivamente se
74
humanizando, quanto mais essa práxis estiver sendo atrofiada, tanto mais os seres humanos
estarão negando a sua vocação e, portanto, estarão se coisificando.
Dessa forma, podemos dizer que a questão do ser mais colocada por Paulo Freire
explicita-se e justifica-se na medida em que durante anos e anos de história os seres
humanos não vêm podendo ser mais livres, mais criativos, mais transformadores da
realidade que tem sido violenta e tem se apresentado como a única possível. Daí a
necessidade da assunção de uma educação que se posicione politicamente a favor do ser
mais.
Por isso, ao falar do educador, Paulo Freire, em seu livro Pedagogia da
Autonomia, não foi omisso quanto ao seu olhar e sua posição político-pedagógica frente à
situação vigente:
“Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não
ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de
posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo.
Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e favor de não
importa o quê. Não posso ser professor a favor simplesmente do Homem
ou da Humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com
a concretude da prática educativa. Sou professor a favor da decência
contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da
autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de
direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra
qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos
indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem
capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura...”
(1996: 115)
Diferentemente do que muitos fazem, não se pode compreender os saberes
necessários à prática educativa propostos por Paulo Freire sem que se evidencie que cada
um deles se articula de tal forma que não se pode compreendê-los senão numa perspectiva
de totalidade. No entanto, tais relações entre os conceitos só ganham uma substantividade e
concretude quando constatamos que no significado mais profundo de cada frase de Paulo
Freire há uma dimensão política em favor de uma sociedade em que não haja a apropriação
do produto do trabalho social, do patrimônio sócio-cultural da humanidade e do poder
político por parte de grupos sociais específicos. Por isso mesmo, não é qualquer projeto de
alfabetização de adultos que adota terminologias freireanas que pode ser efetivamente
considerado como legitimamente freireano. Não é qualquer política pública ou proposta
pedagógica que, ainda que se rotule como tal, pode ser considerada legitimamente
freireana, pois, mais do que uma proposta mais restrita ao âmbito pedagógico, Paulo Freire
75
nos legou uma concepção educacional que não concebe o pedagógico isoladamente,
assumindo, portanto, de maneira mais precisa uma teoria explicitamente político-
pedagógica. Ou seja, não uma teoria que, por ser política, se diferencia das demais, mas sim
uma teoria que, ao contrário de muitas outras, assume a sua politicidade, característica essa
que é imanente a qualquer teoria, ainda que não é qualquer teoria que assuma essa sua
natureza.
2. Ensino-aprendizagem na obra de Paulo Freire
Buscar delimitar, na obra de Paulo Freire, o que é o ensino-aprendizagem, é um
grande desafio.
É um desafio porque toda delimitação impõe a necessidade de se fazer seleções e
recortes que, talvez, me obriguem a omitir determinados aspectos do pensamento do autor
que não poderiam deixar de ser citados e analisados, sem prejudicar o seu entendimento.
Sem dúvida, as sínteses que fiz no Capítulo 1 já estavam sujeitas a esses problemas, porém,
sendo o pensamento de Paulo Freire o meu objeto específico de reflexão nesse trabalho,
não posso deixar de fazer essa ressalva que concerne ao risco que corro de, talvez, deixar
algum aspecto importante da concepção freireana de ensino-aprendizagem de lado. Não por
achá-lo irrelevante, mas sim por uma necessidade inerente ao processo de delimitar uma
temática.
A minha preocupação neste momento é o que Freire entende por ensino-
aprendizagem. Chegar a essa definição é fundamental para os objetivos desse trabalho, já
que a busca por analisar os pressupostos epistemológicos da concepção freireana de ensino-
aprendizagem exige naturalmente uma compreensão das categorias fundamentais que nos
permitem dimensionar os aspectos principais dessa categoria mais ampla.
Para realizar uma primeira aproximação à concepção freireana de ensino-
aprendizagem, vale a pena nos voltarmos para a seguinte consideração feita por Freire em
seu Pedagogia da Autonomia:
“Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-
aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política,
ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza
deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade.” (1996:
26)
76
Primeiramente, acredito que a palavra “autenticidade” é muito importante nessa fala
de Freire. Na história das idéias pedagógicas, certamente, há inúmeras concepções de
ensino-aprendizagem. Cada uma delas prioriza determinados aspectos, desconsiderando
outros. Há aquelas mais tecnicistas, ressaltando aspectos mais ligados aos métodos, à
didática, aos objetivos. Há aquelas mais psicologizantes, que priorizam as operações
cognitivas e as relações afetivas envolvidas na relação educadores-educandos. Há também
aquelas que ressaltam os aspectos morais ou moralizantes da prática educativa.
Nesse sentido, o interessante da concepção freireana de ensino-aprendizagem é a
constatação de que há nesse processo uma totalidade de elementos envolvidos que não
podem ser ignorados sob a pena de estarmos omitindo características essenciais ao processo
educativo, seja qual for ele.
Assim, toda experiência educativa carrega dentro de si, como elementos a ela
impregnados, diferentes dimensões que formam uma unidade inseparável. Todas essas
dimensões estão concentradas na relação de ensino-aprendizagem, ainda que os seus
agentes não tenham consciência da presença de todas elas.
Ainda que nesse trabalho eu tenha ressaltado a dimensão política da prática
educativa, não posso ignorar que, na concepção freireana, essa prática possui também uma
natureza ideológica, uma natureza ética, uma natureza estética, uma natureza gnosiológica,
uma natureza epistemológica, uma natureza pedagógica. Ou seja, implícita na relação de
ensino-aprendizagem há um conjunto de decisões políticas, ideológicas, éticas, estéticas,
pedagógicas, gnosiológicas e epistemológicas, que são necessariamente levadas a cabo
pelos atores do processo, ainda que esses mesmos atores não tenham participado
diretamente dessas decisões.
Dessa forma, podemos dizer que a prática de ensinar-aprender numa perspectiva
freireana é uma prática complexa, já que sua compreensão exige uma aproximação que
considere esse fenômeno em suas diferentes facetas. Qual a posição político-ideológica, a
posição ética, a posição pedagógica, a posição epistemológica pressupostas numa
determinada concepção e prática de ensino-aprendizagem são perguntas fundamentais para
que se possa efetivamente compreender a qual humanidade, determinada prática educativa
específica, serve.
77
Quanto mais os atores de uma prática pedagógica tiverem consciência das respostas
que dão a essas perguntas, mais serão sujeitos da própria prática, portanto, muito menos
alienados estarão com relação a ela.
Portanto, o estudo dos pressupostos antropológicos, pedagógicos, éticos,
epistemológicos, políticos do pensamento freireano sobre o fenômeno do ensino-
aprendizagem é fundamental para que o pensamento pedagógico-libertador de Paulo Freire
seja entendido na sua “plenitude”. Diante disso, o meu objetivo nesse trabalho é discutir um
dos pressupostos relacionados à questão do ensino-aprendizagem: o pressuposto
epistemológico. Ou seja, do ponto de vista metodológico, o meu recorte visa compreender
as implicações que as escolhas epistemológicas freireanas tiveram sobre a sua concepção de
ensino-aprendizagem. Isso não significa obviamente que as outras dimensões implícitas da
categoria ensino-aprendizagem não estarão sendo contempladas indiretamente ou sem
referência explícita.
Para tanto, agora que já fiz algumas considerações sobre as dimensões inerentes à
relação de ensino-aprendizagem em Paulo Freire, preciso expor os conceitos fundamentais
que, de certa forma, “operacionalizam” o ensino-aprendizagem freireano. Ou seja, dos
pressupostos políticos, antropológicos, éticos, pedagógicos, epistemológicos... freireanos
emerge um conjunto de conceitos que oferecem parâmetros para uma práxis educativa sem
precedentes e que fazem da teoria freireana uma proposta original com relação a tantas
outras.
As categorias da concepção freireana de ensino-aprendizagem que analisarei aqui
serão as seguintes: a dialogicidade, a construção dialógica do conteúdo programático e a
dialogicidade na relação educador-educandos (no contexto teórico da aula), sendo que,
nesta última, destacarei o papel do educador na relação de ensino-aprendizagem, a
dinâmica da relação educador-educandos durante o diálogo e a construção do
conhecimento.
2.1. A dialogicidade
O diálogo é uma categoria fundamental da pedagogia freireana. Como veremos
mais à frente, ele é uma implicação necessária dos pressupostos epistemológicos freireanos.
“E o que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de
uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da
humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo
78
comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor,
com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo.
Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há
comunicação.” (FREIRE, 2003: 115)
Como vimos, o fundamento último da pedagogia freireana é a humanização. Essa
humanização se amplia quando as relações entre os seres humanos permitem a efetivação
do ser mais.
O ser mais significa a possibilidade concreta de cada indivíduo poder desenvolver
cada vez mais as características essencialmente definidoras da condição humana frente aos
outros seres da natureza. Nesse sentido, a educação humanizadora é praticada em favor
dele.
Daí resulta que seria impossível para uma educação compromissada com a
humanização dos seres humanos defender uma relação de ensino-aprendizagem que não
estivesse pautada pela dialogicidade. A nossa capacidade de compreender o mundo, típica
dos seres humanos, só é possível pelo desenvolvimento crescente da nossa capacidade de
pronunciá-lo. Por sua vez, tanto maior será nossa capacidade de pronunciá-lo, quanto mais
estivermos envolvidos em situações de troca contínua de experiências, opiniões, pontos de
vista. Tais trocas só podem ser efetivadas por meio do diálogo.
Re-afirmando essa argumentação que relaciona o diálogo com o própria condição da
existência humana, Freire nos oferece a seguinte reflexão:
“A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem
tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras,
com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é
pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez,
se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo
pronunciar.
“Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho,
na ação-reflexão.” (1987: 78)
Com o desenvolvimento do diálogo sobre objetos cognoscíveis que mediatizam a
relação entre os seus agentes, os participantes vão ampliando cada vez mais a sua
consciência do mundo, promovendo paulatinamente a sua capacidade de relacionar os fatos
isolados a contextos mais amplos, numa perspectiva de totalidade. Por isso, Paulo Freire
fala que, no decorrer do processo de ensino-aprendizagem libertador, ocorre uma superação
de um determinado nível ingênuo de indagações, questionamentos, saberes e
conhecimentos para um outro que, por ser dotado de maior grau de rigorosidade metódica,
configura-se como um conhecimento crítico da realidade.
79
Tal conhecimento se caracteriza principalmente pela profundidade na interpretação
dos problemas, pela atribuição de um caráter dinâmico para a realidade, pela apropriação da
realidade como sendo histórica, ou seja, como um processo. Portanto, a consciência crítica
atribui aos seus achados não um status de verdade universal, nem de fatalidade, mas sim
um caráter de conteúdo historicamente situado, portanto, passível de ser revisto e re-feito,
tal como a própria realidade que também pode ser transformada.
Como não podemos falar em ruptura, e sim em processo dialógico de superação de
níveis de conhecimento, obviamente, não é possível compreender o processo de criticização
da consciência em termos de educação bancária, já que esta, sustentando a sua prática no
ato de depositar conteúdos sem relação qualquer com a práxis dos educandos, consegue, no
máximo, promover uma memorização alienante de conteúdos, porém não podemos chamar
isso de aprendizagem, tão-pouco de conhecimento crítico.
Portanto, o diálogo freireano não pode ser confundido com a mera negociação de
interesses, ou a mera mediação de conflitos. Ele não serve a qualquer prática ou intenção.
Ele não é possível, senão entre aqueles que possuem concretamente interesses que
convergem. Daí ser interessante nos atermos a uma citação de Freire e o comentário de
Moacir Gadotti que ressalta a dimensão político-engajadora do diálogo freireano:
“O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para
pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu.
“Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a
pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos
demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste
direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no
direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo
que este assalto desumanizante continue.” (FREIRE, 1987: 78-79)
“Há igualmente limites para o diálogo. Porque numa sociedade de classes
não há diálogo, há apenas um pseudodiálogo, utopia romântica quando
parte do oprimido e ardil astuto quando parte do opressor. Numa
sociedade dividida em classes antagônicas não há condições para uma
pedagogia dialogal. O diálogo pode estabelecer-se talvez no interior da
escola, da sala de aula, em pequenos grupos, mas nunca na sociedade
global...
“... O diálogo de que nos fala Paulo Freire não é o diálogo romântico
entre oprimidos e opressores, mas o diálogo entre os oprimidos para a
superação de sua condição de oprimidos. Esse diálogo supõe e se
completa, ao mesmo tempo, na organização de classe, na luta comum
contra o opressor, portanto, no conflito.” (GADOTTI, In: FREIRE, 1979:
12-13)
80
A impossibilidade de harmonização de interesses contraditórios é a tônica do
pensamento sócio-político de Paulo Freire. A busca de uma educação forjada pelo oprimido
e para o oprimido é o principal objetivo de Paulo Freire que só vê a possibilidade do
advento de uma nova sociedade a partir do momento em que os indivíduos se inserem
criticamente na luta pela sua libertação e humanização.
O diálogo, nessa luta, tem, para Paulo Freire, um papel fundamental como
instrumento de mobilização de pessoas para uma resistência contra todo e qualquer tipo de
exploração, opressão, homogeneização e desrespeito pela dignidade humana. Esse
compromisso da práxis freireana com aqueles que sustentam e reproduzem, por meio do
seu trabalho ou do seu desemprego, a riqueza de toda um nação, parece-me condição
indispensável para uma prática pedagógica que pode fazer da vida em sociedade alguma
coisa muito mais condizente com a nossa própria condição humana de ser.
É importante, por fim, ressaltar que o diálogo freireano não pode ser confundido
com os diálogos socrático e platônico, pois a teoria do conhecimento que os fundamentam
não são as mesmas. A esse respeito, Freire nos legou as seguintes considerações:
“O intelectualismo socrático – que tomava a definição do conceito como
o conhecimento da coisa definida e o conhecimento mesmo como
virtude, não constituía uma verdadeira pedagogia do conhecimento,
mesmo que fosse dialógica...
“Para Platão, porém, a ‘prise de conscience’ não se referia ao que os
seres humanos soubessem ou não soubesse ou soubessem
equivocadamente em torno de suas relações dialéticas com o mundo.
Tinha que ver com o que os seres humanos um dia souberam e que se
esqueceram ao nascer. Conhecer era, pois, relembrar ou recuperar um
conhecimento olvidado. A apreensão da ‘doxa’ e do ‘logos’ e a
superação daquela por este não se dava na compreensão dialética das
relações seres humanos-mundo, mas no esforço de recordar um ‘logos’
esquecido.
“Para que o diálogo seja o selo do ato de um verdadeiro conhecimento é
preciso que os sujeitos cognoscentes tentem apreender a realidade
cientificamente no sentido de descobrir a razão de ser da mesma – o que
a faz ser como está sendo. Assim, conhecer não é relembrar algo
previamente conhecido e agora esquecido. Nem a ‘doxa’ pode ser
superada pelo ‘logos’ fora da prática consciente dos seres humanos sobre
a realidade.” (FREIRE, 1976: 55)
Por mais que Sócrates e Platão propusessem uma dinâmica dialógica como condição
para a gestação do conhecimento, ambas as perspectivas partem de teorias do conhecimento
que não levam em consideração a relação primordial homem-mundo como pressuposto
básico a partir do qual o conhecimento, enquanto processo e enquanto produto,
81
historicamente se realiza. A busca socrática é por definições absolutas sobre coisas e
valores. A mera definição é o objetivo final. A sua emersão ocorria na medida em que cada
indivíduo fizesse uma busca interna em sua alma. Lá pode ser encontrada a Verdade.
Em Platão, essa busca deveria ser feita também na alma de cada indivíduo. A
Verdade só está lá porque cada um já a contemplou antes de reencarnar. O papel do diálogo
é possibilitar a recordação da Verdade um dia contemplada.
O diálogo, assim, não era, em Sócrates e em Platão, mais do que uma estratégia para
facilitar o contato dos indivíduos com a verdade absoluta, tanto é assim, que Platão, com o
decorrer de sua obra, vai se distanciando da dinâmica dialógica para se centrar numa forma
de exposição cada vez mais centrada num discurso longamente exposto por um dos
interlocutores dos seus famosos “Diálogos”. Além disso, a dialética platônica vai também
se configurar como uma operação do espírito que pode ser realizada pelo filósofo
independentemente do outro.
Veremos mais a frente que o diálogo em Paulo Freire não é uma mera estratégia
metodológica, que pode ser substituída a qualquer momento por uma outra que o negue. O
diálogo freireano é uma implicação necessária de pressupostos de ordem epistemológica,
ética e política. Sem eles o conhecimento e o ensino-aprendizagem não seriam possíveis em
termos autênticos.
2.2. A construção dialógica do conteúdo programático
Para compreender rigorosamente a concepção freireana do processo de ensino-
aprendizagem, não basta afirmar que ela está pautada no diálogo, pois tal compreensão
poderia levar a uma impressão reduzida e equivocada da participação que o diálogo possui
em toda a extensão do processo de ensino-aprendizagem freireano.
Se o diálogo é uma característica essencial do ensino-aprendizagem em Paulo
Freire, é necessário termos clareza de que este processo começa antes mesmo do encontro
educador-educandos em sala de aula ou em círculos de debates (ou seja, naquele momento
que Freire chama de contexto teórico). Nesse sentido, a relação de ensino-aprendizagem em
Paulo Freire é uma categoria mais ampla do que normalmente defendem as teorias
pedagógicas mais tradicionais que a reduzem ao momento da sala de aula. O ensino-
aprendizagem em Paulo Freire começa fora desse espaço restrito, levando-nos a um
momento anterior a esse encontro.
82
Todo diálogo deve ter um tema, um assunto, um objeto sobre o qual ele se expressa.
Ou seja, todo diálogo é sobre alguma coisa. Na educação, essa alguma coisa é o que
conhecemos como conteúdos programáticos e também, de forma mais ampla, conhecemos
como currículo.
Na educação tradicional e na tecnicista que, na prática, predominam até hoje no
nosso país, o currículo é definido de forma não-dialógica, autoritária e excludente. É
elaborado dentro de gabinetes por técnicos-especialistas (produtores de livros didático e de
apostilas) que definem até o que todas as instituições educacionais de um país devem
ensinar e em que tempo isso deve acontecer.
“Por um conjunto de múltiplas explicações que passam pelas condições
do trabalhador da educação, cada vez mais deterioradas, pela formação
tecnicista e aligeirada do professor, pelas condições frágeis, confusas e
sucateadas da organização escolar, pelo caráter elitista, autoritário e
centralizador da educação brasileira e outras, o ‘currículo’ acaba sendo a
transmissão do conhecimento que o mercado editorial produzir,
propagandear e vender através dos livros didáticos...” (SAUL, 1998: 153-
154)
Uma das conseqüências mais evidentes dessa prática curricular bastante instituída é
a ausência de significado das coisas que são “ensinadas” nas escolas para os educandos. Os
conteúdos não correspondem aos seus anseios pois se distanciam muito de seu contexto
existencial. Dessa forma, é claro que um currículo definido nesses termos não pode se
desvencilhar do bancarismo educacional, já que a prática de depósitos de informações é a
única possível quando o educando não tem como interagir com o objeto de conhecimento
trazido para o ambiente da sala de aula.
Diante disso, a concepção pedagógica freireana defende a necessidade insubstituível
de se relacionar o contexto teórico do diálogo “em sala de aula” com o contexto concreto
em que os educandos vivem.
“Como um ato de conhecimento, o processo de alfabetização implica na
existência de dois contextos dialeticamente relacionados. Um é o
contexto do autêntico diálogo entre educadores e educandos, enquanto
sujeitos de conhecimento. É o contexto teórico. O outro é o contexto
concreto, em que os fatos se dão – a realidade social em que se
encontram os alfabetizandos.” (FREIRE, 1976: 51)
Essa citação de Paulo Freire, apesar de se referir especificadamente ao processo de
alfabetização, pode ser compreendida como uma premissa necessária ao processo educativo
de pós-alfabetização também. A relação necessária entre os contextos existencial concreto e
83
teórico é um componente essencial da concepção freireana de ensino-aprendizagem. Isso
implica, portanto, uma concepção de currículo que, ao contrário da perspectiva bancária
(que não se preocupa com a relação entre ensino-aprendizagem e a realidade social dos
educandos) é concebido a partir de uma práxis de investigação do contexto concreto em que
os educandos estão inseridos. Portanto, o currículo freireano, ao invés de ser uma proposta
abstrata para sujeitos abstratos, é construído dialogicamente com os sujeitos do processo
educativo para, ouvindo-os, constituir-se como elemento sobre o qual educador e
educandos incidem a sua reflexão.
O processo de investigação do currículo a ser trabalhado no contexto teórico é
bastante rigoroso. Ele tem como objetivo chegar-se a um programa final (mas não acabado)
a ser proposto aos educandos como parâmetro para o direcionamento da ação pedagógica
no cotidiano dos encontros no contexto teórico. No processo de alfabetização, Paulo Freire
deu o nome para esse momento de investigação do universo vocabular. No processo de pós-
alfabetização, Paulo Freire nomeou esse momento como investigação do universo temático
ou da temática significativa.
Ao final do processo de investigação do universo vocabular, os educadores terão
feito o levantamento das palavras geradoras, que nas palavras de Freire são “... aquelas
que, decompostas em seus elementos silábicos, propiciam, pela combinação desses
elementos, a criação de novas palavras.” (2003: 120) Além disso, ao final desse processo,
os educadores já poderão construir codificações que representem situações existenciais dos
grupos de educandos com os quais se irá trabalhar, partindo-se dessas codificações no
sentido de se promover a leitura de mundo que precede a leitura da palavra, que ocorre num
segundo momento.
Nesse momento, alongar-me-ei na análise da compreensão que Freire tem sobre o
que é o processo de investigação dialógica do universo temático relatado em Pedagogia do
Oprimido, enfatizando o conceito de temas geradores. Aprofundarei esse aspecto, pois ele
permitirá compreender melhor o papel que a fenomenologia existencial desempenha na
concepção freireana de ensino-aprendizagem. Nessa minha escolha, não priorizarei as
etapas da investigação temática descritas por Freire (1987: 108-118), pois tal
aprofundamento já fugiria aos meus objetivos nesse trabalho. Porém, é necessário ressaltar
aqui que entendo que essas etapas também fazem parte da concepção freireana de ensino-
aprendizagem em seu sentido mais rigoroso.
84
Para definir no que consiste investigação dialógica dos temas geradores, Freire nos
oferece a seguinte explicação:
“Esta investigação implica, necessariamente, uma metodologia que não
pode contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja
igualmente dialógica. Daí que, conscientizadora também, proporcione, ao
mesmo tempo, a apreensão dos ‘temas geradores’ e a tomada de
consciência dos indivíduos em torno dos mesmos.
“Esta é a razão pela qual (em coerência ainda com a finalidade
libertadora da educação dialógica) não se trata de ter nos homens o
objeto da investigação, de que o investigador seria o sujeito.
“O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se
fossem peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à
realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão do
mundo, em que se encontram envolvidos seus ‘temas geradores’.” (1987:
87-88)
Primeiramente, é necessário deixar evidenciado o compromisso do processo de
investigação com a humanização dos sujeitos. Diante disso, é importante ressaltar que a
importância que Paulo Freire atribui à investigação dos temas geradores tem um sentido
político que defende a idéia de que a Pedagogia que está em causa é uma Pedagogia em que
o oprimido, o povo, o educando, as classes populares devem ser sujeitas de todo o processo
de ensino-aprendizagem, portanto, devem ser sujeitas do processo desde a sua fase de
concepção, até a fase de execução. Há na base dessa Pedagogia uma fundamentação que,
em última instância, promove uma ruptura com a base produtiva da nossa sociedade, que
funciona essencialmente a partir da divisão social e técnica do trabalho. Daí o fato da
investigação não poder prescindir da dialogicidade da educação libertadora.
Além disso, há aí uma implicação para a prática dos investigadores. Esses devem
necessariamente se engajar num processo de investigação do universo existencial concreto
dos educandos, bem como do modo como subjetivamente os educandos compreendem esse
universo. Portanto, a práxis dos educandos deve estar na base do currículo, cabendo aos
investigadores refletir sobre qual é essa práxis. Em outras palavras, cabe analisar qual é
essa ação-reflexão que os homens estabelecem com os lugares e com as pessoas com quem
convivem no seu dia-a-dia.
Para isso ficar mais claro, parece-me essencial adentrar no conceito freireano de
tema gerador:
“Em verdade, o conceito de ‘tema gerador’ não é uma criação arbitrária,
ou uma hipótese de trabalho que deva ser comprovada. Se o ‘tema
gerador’ fosse uma hipótese que devesse ser comprovada, a investigação,
85
primeiramente, não seria em torno dele, mas de sua existência ou não.”
(FREIRE, 1987: 88)
O que é importante ficar claro dessa fala de Freire é que a tentativa de apreender os
temas geradores de uma determinada comunidade a quê os educandos pertencem não pode
ocorrer de modo que já se tenham hipóteses pré-concebidas a respeito do que se vai
encontrar. Tais hipóteses até podem existir, porém, não podemos achar que elas sejam
temas geradores. Se fizermos isso, estaremos atropelando esse momento fundamental que é
o de identificar os temas geradores no seio mesmo da comunidade com a qual estamos
lidando. Nesse sentido, Freire defende que o tema gerador é já algo concreto, que se
explicita nas falas e nas práticas dos sujeitos e que pode ser surpreendido na relação que
esses mesmos sujeitos estabelecem no mundo, com o mundo e com os outros sujeitos.
Dessa forma, os temas geradores devem ser apreendidos pelos sujeitos investigadores e não
criados arbitrariamente pelos mesmos, como se fossem aspectos relevantes da realidade que
se imagina que estejam lá.
Freire explica que os temas geradores são realidades concretas que emergem a partir
da própria natureza das relações homens-mundo, mostrando que, em comparação aos
demais seres do mundo, o ser humano é o único que é capaz de transformar
substantivamente as suas condições de existência. Se antes os seres humanos viviam em
cavernas, o processo de transformação imprimido por ele possibilitou construir tendas, que
por suas vez foram substituídas por casas de palha, de pedra, tijolo, chegando a grandes
arranha-céus projetados por meio de diferentes projetos arquitetônicos e de engenharia.
Nesse sentido, não podemos desprezar esse diferencial que faz com que os seres humanos
tenham uma maneira de ser que os distanciam de todos os outros seres do mundo: o ser
humano é capaz de produzir cultura, e ao re-elaborá-la e recriá-la, ele está movimentando o
processo histórico, portanto, está fazendo história.
Por outro lado, fora desse fazer história, só há o mundo dos seres que não a fazem,
que não são capazes de ir além das condições que lhes são impostas pela sua própria
natureza.
“Ao não ter este ponto de decisão em si, ao não poder objetivar-se nem à
sua atividade, ao carecer de finalidades que proponha, ao viver ‘imerso’
no ‘mundo’ a que não consegue dar sentido, ao não ter um amanhã nem
um hoje, por viver num presente esmagador, o animal é a-histórico...
“O mundo humano, que é histórico, se faz, para o ‘ser fechado em si’,
mero suporte. Seu controle não é problemático, mas estimulante. Sua
vida não é um correr riscos, uma vez que não os sabe correndo. Estes,
86
porque não são desafios perceptíveis reflexivamente, mas puramente
‘notados’ pelos sinais que os apontam, não exigem respostas que
impliquem ações decisórias. O animal, por isto mesmo, não pode
comprometer-se. Sua condição de a-histórico não lhe permite assumir a
vida, e, porque não a assume, não pode construí-la. E, se não constrói,
não pode transformar o seu contorno...” (FREIRE, 1987: 89)
Assim, Paulo Freire nos mostra que no mundo dos animais, o que existe não é
exatamente uma relação entre criatura-mundo, já que por esta não ter condições de
objetivá-lo incidindo uma reflexão crítica sobre ele, tão pouco ele poderá ganhar esse
estatuto de mundo, já que o mundo só é mundo quando há alguém que isso possa dizer.
Como os animais não possuem essa faculdade de atribuir ao mundo os seus valores, o que
para nós é mundo, para eles é um mero suporte, ou seja, alguma coisa em que suas vidas se
dão, mas que não está exatamente separado deles como algo passível de ser objeto de
qualquer tipo de reflexão de sua parte. Quando não há essa reciprocidade entre o animal e a
realidade que o envolve, não existe o que poderíamos chamar propriamente de uma relação,
já que essa pressupõe uma interação dialética. Por isso, o que há aí são apenas estímulos
vindos de fora da criatura que, na verdade, nada mais faz além de agir de acordo com os
determinismos de seu ambiente e de sua espécie. Há, portanto, um contato com a realidade
que se processa apenas em condições de submissão da espécie frente às condições
determinadas pela própria natureza.
Numa relação de determinismo, não há a possibilidade de se alterarem as condições
que estão previamente postas. Tais condições são instransponíveis na medida em que não
estão sujeitas a uma atividade reflexiva que se dirige no sentido contrário ao “vetor” da
determinação. Os animais, portanto, não têm a capacidade de refletirem sobre a sua própria
atividade já que o ponto de decisão sobre ela mesma está fora deles. Está na espécie a que
pertencem.
Sua atividade, portanto não se insere num contexto de elaboração e de projeção de
um outro futuro possível. Sua atividade não passa de um conjunto de ações pré-concebidas
que não estão sujeitas a adaptações, senão num âmbito biológico pela própria evolução na
perspectiva da seleção natural. Por isso, Paulo Freire nos fala da condição animal como
uma condição de imersão, adaptação e aderência a uma determinada natureza dada. Nesse
sentido, os animais não constroem o seu entorno e as suas condições de produção para
realizar suas necessidades. Quando estas necessidades surgem como estímulos, dão
respostas programadas a priori pela sua própria natureza.
87
Em contrapartida, Paulo Freire oferece uma síntese da condição humana que
fornece vários elementos para pensarmos a nossa própria história e das relações sociais que
os homens vêm mantendo entre si:
“Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e do
mundo em que estão, ao atuarem em função de finalidades que propõem
e se propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e em suas
relações com o mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua
presença criadora através da transformação que realizam nele, na medida
em que dele podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os
homens ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua
existência é histórica.” (1987: 89)
“Os homens, pelo contrário, porque são consciência de si e, assim,
consciência do mundo, porque são um ‘corpo consciente’, vivem uma
relação dialética entre os condicionamentos e sua liberdade” (1987: 90)
Vivemos, assim, numa condição diferente daquela que está posta aos outros seres
que fazem parte do mundo. Na medida em que somos seres biologicamente condicionados,
superamos, pela nossa própria natureza, as limitações que por esse determinante teríamos.
Numa representação que tentasse explicar a nossa relação com o mundo, não poderia haver
somente uma flecha apontando a força do mundo no sentido de determinar os nossos
comportamentos, mas também teria que haver uma flecha no sentido contrário que
represente aquilo que nós atribuímos ao mundo, seja por meio da nossa reflexão, seja por
meio da nossa ação, ou seja, por meio da nossa ação refletida. O fato é que no mundo
humano existe, para além dos estímulos que vêm de fora do sujeito, uma consciência que se
projeta sobre esses mesmos estímulos e os compreende e os transforma. Portanto, para além
de uma relação de respostas programadas, o ser humano estabelece uma interação dialética
com o mundo que faz com que sua própria forma de existir não seja em termos de
submissão e de aceitação das condições que lhe são colocadas.
Diante disso, para cada elemento condicionante, seja ele social, biológico, cultural
ou psicológico, o ser humano tem a capacidade de responder com uma atividade reflexiva
que busca explicar aquilo que compõe o seu entorno. Para cada situação pré-existente ao
seu surgimento, cada indivíduo tem condições de transcendê-la para uma outra situação que
lhe pareça como mais apropriada aos seus anseios. Isso não significa que os indivíduos são
maiores que as situações em que estão colocados, bastando uma mera vontade pessoal para
que outra situação se sobreponha. Mas isso significa sim que o indivíduo é capaz, dentro de
um determinado, mas variável, âmbito de ação, viabilizar mudanças nas formas pelas quais
88
suas relações com o mundo se estabelecem, promovendo inevitavelmente transformações
no próprio mundo que o envolve
8
.
Essa capacidade de enfrentar o mundo, estando nele situado, faz com que os seres
humanos promovam a continuidade histórica, alterando continuadamente os valores, as
idéias, as dúvidas, os desafios com os quais se depara em cada momento de sua existência.
Agora já é possível me re-aproximar à questão dos temas geradores,
compreendendo o que Paulo Freire quer dizer quando afirma que:
“Uma unidade epocal se caracteriza pelo conjunto de idéias, de
concepções, esperanças, dúvidas, valores, desafios, em interação dialética
com seus contrários, buscando plenitude. A representação concreta de
muitas destas idéias, destes valores, destas concepções e esperanças,
como também os obstáculos ao ser mais dos homens, constituem os
temas da época.” (1987: 93)
O modo pelo qual os seres humanos compreendem os temas da sua época definirão,
para Paulo Freire, as tomadas de posição que esses mesmos indivíduos terão com relação
ao mundo. Uma compreensão mágica ou ingênua levará a práticas que levem à manutenção
da realidade histórica tal como ela se apresenta. Por outro lado, uma compreensão crítica
desses temas conduzirá os seres humanos a uma prática também crítica e, portanto,
transformadora da realidade social em que se encontram.
A ação crítica e transformadora dos indivíduos com relação ao mundo só é possível
na medida em que estes mesmos indivíduos percebam-se em relação dialética com suas
situações-limites
9
(conceito que Paulo Freire toma emprestado de Álvaro Vieira Pinto).
Portanto, as situações-limites devem ser tematizadas pelos indivíduos como condição para
que elas mesmas sejam superadas.
“Enquanto os temas [geradores] não são percebidos como tais,
envolvidos e envolvendo as ‘situações-limites’, as tarefas referidas a eles,
que são as respostas dos homens através de sua ação histórica não se dão
em termos autênticos ou críticos. (...)
“Desta forma, se impõe à ação libertadora, que é histórica, sobre um
contexto, também histórico, a exigência de que esteja em relação de
correspondência, não só com os temas geradores, mas com a percepção
8
Isso me faz lembrar de uma palestra que assisti num Congresso de Geógrafos e que o palestrante Douglas
Santos fazia os participantes relembrar que “o capitalismo não é uma coisa, mas sim um modo de vida”. A
partir de então, relembrei que é possível que, a partir de novas relações interpessoais, construir outras formas
de conviver coletivamente, ainda que dentro desse sistema que se impõe como uma situação existencial que
influencia a maior parte do modo de viver das pessoas do mundo contemporâneo.
9
“Ao se separarem do mundo, que objetivam, ao separarem sua atividade de si mesmos, ao terem o ponto de
decisão de sua atividade em si, em suas relações com o mundo e com os outros, os homens ultrapassam as
‘situações-limites’, que não devem ser tomadas como se fossem barreiras insuperáveis, mais além das quais
nada existisse...” (FREIRE, 1987: 90)
89
que deles estejam tendo os homens. Esta exigência necessariamente se
alonga noutra: a da investigação da temática significativa.” (FREIRE,
1987: 93-94)
Assim, pode-se afirmar que os temas geradores são a expressão dos indivíduos a
partir da relação dialética que possuem com suas situações-limites. Em outras palavras, os
temas geradores representam a realidade concreta em que os indivíduos estão inseridos.
O interessante de ser constatado é que a realidade concreta para Paulo Freire não é
uma categoria exclusivamente objetiva, mas é também o sentido que os indivíduos
atribuem a essa mesma realidade. Nas próprias palavras de Freire:
“Reconhecemos a indiscutível unidade entre subjetividade e objetividade
no ato de conhecer. A realidade concreta nunca é, apenas, o dado
objetivo, o fato real, mas também a percepção que dela se tenha. Esta não
é uma afirmação idealista, como poderia parecer. Idealismo existiria se,
rompendo a unidade dialética subjetividade-objetividade, submetêssemos
esta aos caprichos daquela.” (1976: 51)
Portanto, partir de um currículo por temas geradores significa partir da realidade
existencial concreta, que por sua vez significa referir-se primordialmente à realidade em
que os educandos se encontram e com a qual interagem, seja por meio de sua ação, seja por
meio de seu pensamento-linguagem. O importante aqui é que Paulo Freire está se
posicionando direta ou indiretamente contra propostas curriculares que compreendem a
realidade concreta numa perspectiva que despreza o entendimento que os sujeitos-
educandos possuem sobre essa mesma realidade.
Muitas vezes, educadores que possuem uma visão crítica do mundo lidam com a
realidade concreta enquanto algo eminentemente objetivo, material apenas, não
considerando que essa realidade a quê ele se refere pode possuir sentidos diferentes na
medida em que pessoas diferentes a ela se referem. Desconsiderando essa dimensão de
subjetividade, a educação e o currículo implicados numa perspectiva exclusivamente
materialista, objetivista, estarão sujeitos também à arbitrariedade do professor, que, por
pretensamente dominar como funciona a realidade concreta, acredita que pode trazê-la à
sua maneira para o contexto teórico da “sala de aula”.
Nessa prática há, na verdade, uma equivocada compreensão sobre o que seja a
realidade concreta, que, como vimos, não pode ser reduzida à idéia de realidade objetiva,
material, mas sim deve ser compreendida como uma unidade dialética entre objetividade e
subjetividade.
90
Por isso, Paulo Freire faz a seguinte ressalva:
“Poderá dizer-se que o fato de serem os homens do povo, tanto quanto os
investigadores, sujeitos da busca de sua temática significativa, sacrifica a
objetividade da investigação. Que os achados já não serão ‘puros’ porque
terão sofrido uma interferência intrusa. No caso, em última análise,
daqueles que são os maiores interessados – ou devem ser – em sua
própria educação.
“Isso revela uma consciência ingênua da investigação temática, para a
qual os temas existiriam em sua pureza objetiva e original, fora dos
homens, como se fossem coisas.
“Os temas, em verdade, existem nos homens, em suas relações com o
mundo, referidos a fatos concretos. Um mesmo fato objetivo pode
provocar, numa subunidade epocal, um conjunto de temas geradores, e,
noutra, não os mesmos, necessariamente. Há, pois, uma relação entre o
fato objetivo, a percepção que dele tenham os homens e os temas
geradores.
“É através dos homens que se expressa a temática significativa e, ao
expressar-se, num certo momento, pode já não ser, exatamente, o que
antes era, desde que haja mudado sua percepção dos dados objetivos aos
quais os temas se acham referidos.” (1987: 99)
Por isso, é preciso deixar claro que para Paulo Freire há uma diferença entre o que é
objetivo e o que é concreto. Os temas geradores são o produto da unidade primordial entre
objetividade e subjetividade que compõe a realidade concreta. Isso não significa que haja
em Paulo Freire uma negação da existência da realidade objetiva enquanto limitadora do
ser mais dos seres humanos. Significa sim, que a compreensão que se tem sobre essa
limitação está diretamente relacionada com as diversas relações que cada indivíduo
estabelece com o mundo. Sendo a prática educativa libertadora uma prática que parte do
respeito pelos diferentes modos de se conceber o mundo, ela não parte da compreensão
sistematizada e acabada da realidade, mas sim do universo existencial concreto dos
educandos, que é composto pela objetividade e a subjetividade.
Assim, uma coisa é o educador ou o pesquisador analisarem a realidade objetiva e
definir os seus conteúdos a partir da sua leitura e a partir de seus referenciais projetados
sobre essa realidade. Outra coisa é ouvir o que as pessoas que vivem naquela realidade
dizem sobre ela e debater com elas os significados que elas mesmas atribuem ao seu
mundo.
Naquilo que alguém vê exploração, outro pode ver dignidade. Naquilo que alguém
vê alienação ideológica, outro pode ver diversão. Naquilo que alguém pode ver feiúra, o
outro pode ver beleza... Ou seja, a base do currículo freireano não está apenas no
conhecimento científico que os educadores utilizam para dar sentido ao mundo que os
91
envolve, mas naquilo que Paulo Freire chamou tamm de conhecimentos de experiência
feitos.
A importância desse conceito na teoria freireana é central. Não há possibilidades de
uma relação de ensino-aprendizagem significativa, motivadora, efetivamente prazerosa e
crítica, caso o currículo não seja um produto das vivências e experiências daqueles em
função de quem o currículo existe: os educandos.
“Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em
áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por
exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de
bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das
gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo
puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é considerada
em si demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz. É pergunta
de subversivo, dizem certos defensores da democracia.
“Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva
associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em
que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior
com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma necessária
‘intimidade’ entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a
experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir as
implicações políticas e ideológicas de um tal descaso pelos dominantes
pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida nesse descaso?
Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem
nada a ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os
conteúdos, transferí-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si
mesmos.” (FREIRE, 1996: 33-34)
Se fôssemos buscar respostas para cada uma destas perguntas feitas por Freire,
talvez teríamos que elaborar outro trabalho, dada a complexidade que cada uma delas
envolve. No entanto, não dá para deixar de ver aí nessa citação a proposta de um currículo
que é sem dúvida bastante revolucionário, quando confrontado com o currículo dos livros
didáticos e apostilas que geralmente predomina na educação do país, seja ela privada ou
pública.
A grande questão é saber em que medida um educador ou um grupo de educadores
isolados podem pensar o seu currículo a partir de questões como estas. Questões que não
surgem de problemas de indivíduos abstratos sobre conteúdos abstratos, mas sim de
realidades concretas vividas por indivíduos concretos que, inevitavelmente olham para seu
bairro e perguntam-se coisas tais como as que Freire formulou acima.
Há na realidade concreta vivida pelas pessoas, há nos seus saberes de experiência
feitos um conteúdo latente que só precisa de um olhar crítico para emergir de maneira
92
sistematizada enquanto “matéria escolar”. Há conexões inevitáveis entre os diversos
componentes curriculares e as experiências e saberes de vida dos educandos. Há, portanto,
uma forma de se lidar com a realidade, já estabelecida e praticada pelos educandos. Forma
essa que só precisa ganhar sistematicidade, ordenação, criticidade.
Por isso, não dá para alimentar a idéia de que tudo a ser aprendido ocorrerá a partir
do vazio. Pelo contrário, antes de chegar à sala de aula, o educando já estabelece relações
próprias com as pessoas e com as coisas do mundo.
Antes de chegar à sala de aula, o educando já construiu algumas hipóteses, já
estabeleceu relações, comparações. Já formulou questões. Só falta tudo isso ter espaço para
operar, pois aquilo que nasce das angústias coletivas de educandos pertencentes a uma
comunidade são as questões que dão identidade a um determinado grupo. Quando tais
questões são negadas e desprezadas, há aí um processo de desrespeito pela identidade e
pelos conhecimentos/ saberes com os quais os educandos dão significados para o seu
mundo.
Daí a proposta freireana de que os conhecimentos de experiência feitos devam ser
pontos de partida para toda e qualquer ação educativa que se pretenda libertadora:
“Não é possível respeito aos educandos, à sua dignidade, a seu ser
formando-se, à sua identidade fazendo-se, se não se levam em
consideração as condições em que eles vêm existindo, se não se
reconhece a importância dos ‘conhecimentos de experiência feitos’ com
que chegam à escola. O respeito devido à dignidade do educando não me
permite subestimar, pior ainda, zombar do saber que ele traz consigo para
a escola”. (FREIRE, 1996: 71)
A força dessa citação está justamente em colocar em evidência que a importância de
se respeitarem os conhecimentos de experiência feitos não se deve a um mero princípio
pedagógico arbitrário que poderia ser utilizado ou não. Paulo Freire adverte
categoricamente que a não consideração desse princípio tem um certo caráter de
“violência” contra a dignidade do educando. Uma “violência” que para muitos pode parecer
um exagero de interpretação do fenômeno, mas que, na medida em que consiste num
desprezo pela possibilidade do indivíduo exercer a sua capacidade de ser sujeito da própria
aprendizagem, produz uma relação de dominação simbólica que certamente é percebida
pelo educando como uma relação de opressão. Portanto, não dá para deixar de relacionar o
contínuo processo de desrespeito pelos saberes de experiência feitos como sendo uma certa
dimensão do currículo oculto que se materializa na medida em que transforma o educando
93
em objeto, coisificando-o, portanto, negando a sua humanidade e, conseqüentemente, a sua
dignidade.
Ocorre que os conhecimentos de experiência feitos não são saberes já
sistematizados cientificamente, ao ponto de servirem ao educando como instrumentos de
compreensão crítica da realidade e de inserção, também crítica, na mesma.
Esses conhecimentos são saberes com os quais os educandos chegam à escola e,
portanto, são, na maioria das vezes, dotados de uma superficialidade na interpretação dos
fatos.
“Fazer uma educação pública nessa perspectiva implica fazê-la voltada
para as necessidades da quase totalidade de nossa população; porém, essa
mesma população tem um arsenal de conhecimentos para o dia-a-dia que,
se são satisfatórios para a sobrevivência imediata, mostram-se frágeis
para a alteração mais radical de suas coletivas condições de existência”.
(CORTELLA, 2003: 16)
É nesse sentido que Paulo Freire, em boa parte de sua obra, preocupou-se em
analisar os níveis de consciência que a população tem de sua realidade e quais os elementos
que esta mesma população predominantemente utiliza para explicar o mundo. Utilizando-se
de diferentes terminologias no decorrer de seus escritos, Paulo Freire procurou delimitar de
maneira não estanque os vários graus de poder de captação da realidade por parte do
educando.
Em Á sombra dessa mangueira e em Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire não
mais falava somente em consciência mágica, ingênua e em consciência crítica, mas trouxe
para o debate as expressões curiosidade ingênua e curiosidade epistemológica. Parece-me
que, quando ele nos ofereceu tais categorias, buscava dar ênfase àquilo que gera
conhecimentos ingênuos ou conhecimentos críticos. Ou seja, a curiosidade é a base
geradora da busca de explicações para o mundo. Ela se expressa por meio das perguntas
que fazemos a ele. Quando as perguntas possuem um caráter de maior rigorosidade e
buscam respostas profundas e até mesmo complexas para a compreensão e interpretação
dos fatos, estamos lidando com um nível de curiosidade muito mais propícia ao
conhecimento sistemático, crítico e fundamentador de ações críticas. Pela prática dessa
curiosidade, a consciência vai paulatinamente criticizando-se.
Por outro lado, na base dos saberes de pura experiência feitos há um tipo de
curiosidade que Paulo Freire define como ingênua, da qual a consciência a ela referida,
Paulo Freire chamou de vários nomes: consciência ingênua, consciência mágica,
94
consciência fatalista, consciência dominada. Para Paulo Freire, tal consciência “... não
toma suficiente distância da realidade a fim de objetivá-la e conhecê-la criticamente”
(1976: 73), por isso está sujeita a ser controlada pelos mitos criados ideologicamente com o
objetivo de manter as classes e grupos oprimidos conformados com a situação em que
sobrevivem.
É interessante ressaltar que Paulo Freire faz uma descrição da consciência ingênua,
constatando que nesse grau de consciência está muito presente o teor emotivo, a fragilidade
de argumentação e uma inclinação às explicações fabulosas. Nesse sentido, tal consciência
capta dados da realidade sem conseguir atingir as razões de ser autênticas que efetivamente
são as causas reais da situação analisada. Se, por exemplo, fizermos uma pesquisa simples
com as pessoas nas ruas de São Paulo, provavelmente vamos encontrar explicações do
seguinte tipo para alguns fenômenos sociais: “os políticos são os grandes culpados pela
situação que vive o país”, “as pessoas que têm um alto padrão de vida devem isso
exclusivamente ao seu esforço”, “o pobre é pobre por falta de garra e perseverança”, “na
nossa sociedade todos são livres e iguais para escolherem o que querem da vida”, “os
pobres estão como estão porque saem fazendo filhos como coelhos”, “cada um tem que
buscar vencer na vida por conta própria”...
Um dia, no primeiro semestre de 2005, eu voltava para a minha casa de ônibus,
depois de uma manhã dando aulas, e ouvia dois homens de mais ou menos 60 anos
conversarem (não dialogarem) de maneira apaixonada sobre os rumos que o governo
brasileiro atual dava ao país. Utilizavam-se de palavras que estão todo dia na mídia sendo
difundidas, tais como taxa de juros, investimentos sociais, valor do dólar, inflação etc.
Concluíam que não tinham visto o país mudar tal como esperavam. Enfim, o presidente não
tinha feito nada. Acreditavam realmente que a mudança do país depende única e
exclusivamente da vontade de um presidente e, portanto, acreditam que mudando as
pessoas que governam, o país muda. Olharam para mim esperando que eu concordasse com
o que eles estavam falando e, em pouco tempo, dei minha opinião sobre o porquê que eu
achava que não era tão simples assim dizer que é só baixar taxa de juros. Eu levei para a
conversa alguns dados que deixavam um pouco mais complicadas as questões que eles
debatiam. Nesse momento, algumas certezas que eles tinham transformaram-se em
perplexidade, pois as questões que eu colocara demonstravam que eu tinha muito mais
95
perguntas sobre o que estava acontecendo com o Brasil, do que propriamente certezas. A
única certeza que eu tinha era que as certezas deles precisavam ser melhor fundamentadas.
Esses conhecimentos sem rigor, que julgam os fatos livremente como melhor
agradar a quem os relata, criam fábulas que levam as pessoas a acreditarem que atos
mágicos, fabulosos, podem resolver os problemas de uma hora para a outra. Criam-se
heróis e vilões, personificando-se as soluções e simplificando-se os problemas. Essa é a
consciência ingênua. Ao mitificar o mundo, ela conduz a um desengajamento do sujeito no
processo de transformação da história, já que as soluções estão sempre fora de si, mesmo
porque a causalidade autêntica dos problemas não é identificada.
É nesse sentido que, ao mesmo tempo em que os conhecimentos de experiência
feitos dão identidade cultural a um determinado grupo ou classe social, eles também são
impregnados de senso comum e de ideologias que ocultam as reais razões de ser da
realidade. Por isso, a questão não é negar esses conhecimentos, promovendo uma ruptura
com os mesmos no processo de ensino-aprendizagem, mas sim dialogar com eles no
sentido de cada educando buscar a sua superação, sem que isso signifique um
desenraizamento cultural por parte do educando.
Diante disso, pode-se afirmar que a curiosidade ingênua, os conhecimentos de
experiência feitos e, conseqüentemente, a consciência ingênua, produzem uma percepção
fatalista e fragmentada da realidade, como se os obstáculos impostos por esta fossem
intransponíveis, pois contra forças que estão fora do meu alcance direto, nada posso fazer.
A percepção fragmentada inviabiliza a compreensão de que há um contexto mais amplo e
uma estrutura mais ampla da qual todos participamos e que sustentam a manutenção da
realidade tal como ela tem sido.
“A questão fundamental, neste caso, está em que, faltando aos homens
uma compreensão crítica da totalidade em que estão, captando-a em
pedaços nos quais não reconhecem a interação constituinte da mesma
totalidade, não podem conhecê-la. E não podem porque, para conhecê-la,
seria necessário partir do ponto inverso. Isto é, lhes seria indispensável
ter antes a visão totalizada do contexto para, em seguida, separarem ou
isolarem os elementos ou as parcialidades do contexto, através de cuja
cisão voltariam com mais claridade à totalidade analisada.” (FREIRE,
1987: 96)
Possibilitar a compreensão de como interagem nas vidas dos indivíduos, o trabalho,
a escola, a televisão, a família, o lazer, as músicas, os problemas de seu bairro, a política, a
igreja etc é o grande desafio de uma educação que pretende efetivamente libertar o ser
96
humano dos processos que o oprimem e que, no entanto, são dificilmente identificados
como tais.
O modo pelo qual cada indivíduo atribui significados a cada uma dessas esferas de
sua vida não pode ser desconsiderado caso comprometamo-nos efetivamente com um
currículo que leve em consideração as necessidades dos educandos. Esse é o sentido último
de se investigar dialogicamente os conteúdos para se buscar os temas geradores. Em outras
palavras, esse é o sentido de se partir da realidade concreta ou dos conhecimentos de
experiência feitos.
2.3. A dialogicidade na relação educador-educandos
Se eu estivesse falando de alguma concepção mais restrita do processo de ensino-
aprendizagem, provavelmente deveria começar desse momento. Ou seja, se estivesse
lidando com um conceito convencional de ensino-aprendizagem, meu papel, ao analisá-lo,
deveria ser o de discutir o modo pelo qual a relação educador-educandos se processa
durante o contexto teórico da sala de aula.
Porém, como já mostrei, a concepção freireana de ensino-aprendizagem possui um
momento essencial que é o de investigação dialógica do currículo. Tal momento não é uma
parte da teoria freireana que pode ser simplesmente desprezada, como se não se referisse à
sua essência. Pelo contrário, o compromisso de se praticar a pedagogia libertadora de Paulo
Freire exige necessariamente o compromisso com o processo de investigação dialógica dos
conteúdos programáticos. O que Freire deixa claro em Pedagogia do Oprimido (1987:
118-119) é que é possível promover a investigação das temáticas significativas ainda que as
condições expostas por ele nas etapas da investigação não sejam viáveis por razões de força
maior. Mas, isso não significa de modo algum que o processo de investigação possa ser
afastado como um elemento secundário da sua concepção de ensino-aprendizagem.
A partir de agora, estarei discutindo a relação de ensino-aprendizagem no contexto
teórico, em que educadores e educandos se juntam para desvelar dialogicamente a realidade
concreta que os envolve.
97
2.3.1. O papel do educador no contexto teórico da relação de ensino-
aprendizagem
Além de participar ativamente de todo processo de investigação dialógica dos
conteúdos programáticos, o educador da concepção pedagógica freireana é essencialmente
um problematizador. Nesse sentido, para Freire, o educador progressista deve ter em mente
que, quando se encontra numa relação de ensino-aprendizagem libertadora, seu papel é o de
problematizar o mundo/ a realidade concreta, os conhecimentos de experiência feitos que
estão sendo trazidos para dentro da sala de aula após o processo de investigação curricular.
A problematização é uma espécie de provocação, de desafio, que o professor faz aos
educandos para que esses mirem os seus olhares atentamente para aspectos de sua realidade
que haviam passado desapercebidos (ou a-criticamente percebidos) e que, no entanto, estão
presentes em sua situação existencial concreta.
A atitude problematizadora por parte do educador não possui um fundamento
meramente arbitrário, mas assim como ocorre com a concepção freireana de currículo, é
uma implicação necessária dos pressupostos epistemológicos e políticos e Paulo Freire.
Tanto é assim, que Freire faz a seguinte afirmação para justificar a necessidade da
superação da educação não-problematizadora:
“... [Na educação bancária] Educador e educandos se arquivam na
medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade,
não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na
busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo,
com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.” (1987: 58)
Contra a educação bancária, Freire faz uma crítica que vai além do argumento
político-pedagógico. A prática bancária inviabiliza o conhecimento, o saber, que por sua
vez, em nada se assemelham à memorização mecânica de conteúdos. O conhecimento só é
possível se o educador possibilitar que o ato de conhecimento dos educandos realmente se
efetive, por meio da interação com os objetos de conhecimento. Tal interação possibilita o
ato criativo, transformador, inventivo por parte daqueles que são sujeitos do processo. E
tais atos possibilitam o conhecimento.
Diante disso, o professor é aquele que ensina, mas o que Paulo Freire defende é que
não podemos entender por ensino aquilo que convencionalmente se entende por esse
conceito. Normalmente, o ensino é associado ao ato de narrar determinado objeto aos
educandos. Assim, cabe ao professor ser um bom conhecedor da matéria que leciona e
98
basta a ele ter uma boa capacidade de transmissão para que o ensino se efetive. É essa
concepção, por exemplo, que leva muitos professores a dizerem coisas do tipo: “Eu ensinei
a matéria, agora, se eles não aprenderam, eu não tenho culpa”. Tal concepção carrega
consigo a idéia de que o ensino e a aprendizagem são dois termos separados e que existem
independentemente um do outro.
“... É preciso, sobretudo,... que o formando, desde o princípio mesmo de
sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da
produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é
transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção
ou a sua construção. (...)
“... Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo
socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era
possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos
tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso
– trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu
ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente
fundante de aprender. Não temo dizer que inexiste validade no ensino de
que não resulta um aprendizado em que o aprendiz não se tornou capaz
de recriar ou refazer o ensinado, em que o ensinado que não foi
apreendido não pode ser realmente aprendido pelo aprendiz.” (FREIRE,
1996: 24-26)
O interessante dessa passagem é que nela Paulo Freire não cria uma prescrição de
como deve ser o ensinar. Ele não está propondo uma maneira de ensinar: não está propondo
um método. O que ele está propondo é um conceito em que só se realiza na medida em que
um outro fenômeno se efetive: a aprendizagem.
O fenômeno do ensinar só se realiza na medida em que houve a aprendizagem. Caso
contrário, nada mais houve do que uma verbalização sem sentido, que, na melhor das
hipóteses pode até ser memorizada pelos educandos, mas que, por não ter sido apreendida,
não possibilita a este último utilizá-la significativamente para lidar com as situações
concretas de sua vida. Nesse sentido, o ensinar autêntico é aquele que cria condições para
que os educandos sejam sujeitos, sendo que para isso, é necessário que, por um lado, o
ensinar possibilite que os educandos interajam com os objetos de conhecimento propostos.
Por outro lado, é necessário que esses objetos de conhecimento tenham sentido no universo
existencial dos educandos, pois se assim não for, a interação será impossível. Ou seja, os
educando só podem interagir com aquilo a partir do qual têm algo a dizer. Caso isso não
ocorra, estará havendo um artificialismo pedagógico e, portanto, uma falsa compreensão do
que seja a interação.
99
Para essas condições se efetivarem, portanto, é necessário que o educador seja capaz
de problematizar as temáticas significativas a que já me referi. Seu papel é o de mostrar o
conhecimento como algo inacabado, questionável, passível de ser construído e re-
construído. Daí Freire falar dos dois momentos do ciclo gnosiológico:
“O professor que pensa certo deixa transparecer aos educandos que uma
das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como
seres históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o
mundo. Mas, histórico como nós, o nosso conhecimento do mundo tem
historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que
antes foi novo e se fez velho e se ‘dispõe’ a ser ultrapassado por outro
amanhã. Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento
existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do
conhecimento ainda não existente. Ensinar, aprender e pesquisar lidam
com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que ensina e se
aprende conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do
conhecimento ainda não existente. A ‘do-discência’ – docência-discência
– e a pesquisa, indicotomizáveis, são assim práticas requeridas por estes
momentos do ciclo gnosiológico.” (1996: 31)
Na relação de ensino-aprendizagem, é necessário que o educador e educando
percebam que estão engajados num processo de criação de conhecimento. Que justamente
pelo conhecimento ser produto de relações sociais submetidas à historicidade, pode ser
questionado e superado. No entanto, essa percepção só é possível quando educador e
educando, problematizando a realidade que os envolve, percebem que os saberes já
existentes não dão conta do objeto a que se propõem a investigar ou, que esses saberes
podem ser ampliados no sentido de se compreender aspectos do objeto que não haviam sido
levantados pelos saberes já instituídos. Em outras palavras, não há construção de um saber
novo caso a situação de ensino-aprendizagem não proporcione a reflexão crítica sobre
aspectos do mundo que realmente interessam diretamente aos sujeitos envolvidos no
processo de ensino-aprendizagem.
Por tudo isso, é que Paulo Freire não fala em educador que não viva no seu ato de
ensinar uma experiência de educando. Ao mesmo tempo em que não há educando que não
viva a experiência de educador. Ambos, quando engajados num autêntico ensino-
aprendizagem, “trocam” de papéis, já que ambos lançam-se num desafio de compreender
cada vez mais o mundo e essa compreensão tanto mais precisa será, quanto mais emergir
das diferentes percepções que se têm sobre os fenômenos. Inevitavelmente, nesse processo,
todos se inserem numa prática de aprender-ensinar e ensinar-aprender.
100
Esses papéis que se intercalam no processo de ensino-aprendizagem não pode nos
levar a concluir que Paulo Freire está propondo uma indiferenciação das atribuições do
professor e dos educandos. Para mostrar essa diferença é que podemos recorrer à seguinte
citação:
“Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo
programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um
conjunto de informes a ser depositado nos educandos -, mas a devolução
organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que
este lhe entregou de forma desestruturada” (1987: 84)
No momento em que o educador problematiza uma dada realidade objetiva aos
educandos, estes últimos falam dela, estruturando discursos explicativos próprios para a
situação existencial que se lhes apresenta. Tais discursos, freqüentemente, são
pronunciados com uma série de elementos que chegam desestruturadamente ao educador
que tem o papel de organizar, sistematizar, articular, relacionar esses elementos, de tal
forma que todos aqueles fragmentos de compreensão subjetiva da realidade concreta
passem a se conectar de modo a ganhar um caráter de totalidade.
“A questão fundamental, neste caso, está em que, faltando aos homens
uma compreensão crítica da totalidade em que estão, captando-a em
pedaços nos quais não reconhecem a interação constituinte da mesma
totalidade, não podem conhecê-la. E não o podem porque, para conhecê-
la, seria necessário partir do ponto inverso. Isto é, lhes seria
indispensável ter antes a visão totalizada do contexto para, em seguida,
separarem ou isolarem os elementos ou as parcialidades do contexto,
através de cuja cisão voltariam com mais claridade à totalidade analisada.
“Este é um esforço que cabe realizar, não apenas na metodologia da
investigação temática que advogamos, mas, também, na educação
problematizadora que defendemos. O esforço de propor aos indivíduos
dimensões significativas de sua realidade, cuja análise crítica lhes
possibilite reconhecer a interação de suas partes.
“Desta maneira, as dimensões significativas que, por sua vez, estão
constituídas de partes em interação, ao serem analisadas, devem ser
percebidas pelos indivíduos como dimensões da totalidade...” (FREIRE,
1987: 96)
Parece-me que um dos grandes desafios do processo educativo nos dias de hoje é o
de que os educadores compreendam os conteúdos curriculares como elementos que
possuem uma relação com a totalidade que os envolvem. Ou seja, a dificuldade de se
compreender relacionalmente as partes, enquanto elementos integrados a um contexto mais
amplo, impede que o processo de ensino-aprendizagem se efetive de forma significativa.
Assim, na educação bancária, além de não se levar em consideração as diferentes relações
101
da relação educando-mundo na elaboração do currículo e na construção do conhecimento,
pode-se também perceber que, nela, os conteúdos não se ampliam e não se inserem dentro
de universos e totalidades significativas. Parece que as temáticas são soltas e sem nexos,
nem implicações com ações humanas em contextos históricos específicos. Assim, ao
destacarmos um dado ou um conhecimento sem inseri-lo em seu contexto (o que lhe daria
significado e conexão com uma realidade maior do que ele mesmo), estamos não só
retirando-lhe a sua dimensão existencial (enquanto algo que circunda a situação existencial
concreta do educando), como também estamos tirando-lhe a sua historicidade.
Diante disso, pode-se afirmar que, na perspectiva freireana, os dados da realidade
concreta e o conhecimento tornam-se significativos na medida em que comportam relações
entre si. A realidade é algo complexo. Com isso, quero dizer que ela não se explica por
meio da pura e simples observação empírica. Entendê-la exige um esforço de reflexão sobre
as suas características aparentes, mas também exige um trabalho de ampliação da nossa
capacidade de analisar o que se apresenta em suas “entrelinhas”. Ela não se apresenta e não
se explica a partir de simples raciocínios de causa e efeito, mas, por ser complexa, exige de
nós a capacidade de trabalharmos numa lógica aberta às diferentes variáveis.
Se as coisas não podem ser entendidas com abordagens simplistas e reducionistas,
para entendê-las, educador e educandos precisam se engajar no esforço de compreender os
modos pelos quais as partes interagem para constituir o todo que está envolvendo o nosso
estar-no-mundo. Os objetos, os valores, os sistemas políticos, as crenças, os costumes...,
tudo isso está inserido num conjunto dinâmico de fatores que se conectam e interagem
mutuamente. O que é causa de alguma coisa também possui uma causa, e essa causa
também possui outra, e assim por diante. No entanto, como a realidade é um todo, podemos
afirmar que temos que pensar não apenas em causa, mas sim em causas e, além disso, não
podemos pensar em causas que não sejam também efeitos. Assim, percebemos que dialogar
com o educando sobre a realidade não é possível se não tivermos dimensão das relações
dialéticas que se concretizam nas relações entre os diferentes elementos da natureza e da
cultura.
Diante disso, o processo de descodificação da realidade deve ser mediado de tal
forma que os conteúdos não sejam meros fragmentos de uma realidade em que seus
elementos sejam independentes e desconexos.
102
Como exemplo da totalidade que precisa ser buscada, imaginemos a seguinte
situação, com o qual espero poder deixar claro uma possibilidade de relações entre o todo e
as partes: um tijolo é produto da ação humana, a ação humana está ligada à uma forma de
organizar a sociedade. A sociedade possui formas de distribuição do poder. O poder está
ligado a níveis de apropriação da cultura. A escola difunde certos tipos de saberes. Os
saberes têm um papel importante na organização da estrutura social... Enfim, de uma
realidade hipoteticamente significativa, que constitui uma parte da realidade, podemos
inferir várias outras temáticas e, a partir dessas, podemos inferir outras tantas. Cabe ao
educador provocar a possibilidade dessas relações acontecerem.
Ao explorar tais temáticas dialogicamente por meio da relação problematização-
sistematização, os indivíduos começam a perceber que a situação em que se encontram é
historicamente construída e que a práxis transformadora do homem é a fonte das condições
de existência que estão postas. Essas condições, ao serem colocadas como objetos de
indagação e de reflexão crítica, deixam de ser obstáculos intransponíveis.
Assim, é necessário que a cada problematização ocorra esse movimento do pensar
dos educandos, que consigam articular as partes problematizadas com o contexto, com o
todo, com a estrutura, que fornece às partes um sentido crítico. Por isso, a necessidade
premente de que os educadores reforcem constantemente a sua capacidade e compreender
criticamente a realidade.
“Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar
impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar
convencidos de que a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias
formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui.
A ação educativa e política não podem prescindir do conhecimento
crítico dessa situação, sob pena de se fazer ‘bancária’ ou de pregar no
deserto” (FREIRE, 1987: 87)
Ao invés do que muitos pensam hoje, que a ampliação da liberdade de expressão do
educando leva necessariamente ao caos e a uma aprendizagem sem fundamento e
totalmente desordenada, Paulo Freire defende o papel sistematizador do professor sem abrir
mão do princípio essencial de garantir sim a livre expressão do pensamento e o diálogo
sobre ele. Portanto, alegar que as teorias progressistas de natureza sócio-interacionista
defendem a ausência de disciplina intelectual, só pode ser falta de conhecimento ou até
mesmo má-fé de quem faz tal tipo de afirmação.
103
O que ocorre, na verdade, é que uma implicação inevitável de teorias educacionais
dessa natureza é a de não eximir o profissional de tomar decisões e de necessariamente
ampliar constantemente a sua criticidade no que diz respeito à sua leitura da realidade que o
envolve e que envolve seu aluno. Isso implica um retorno a uma paixão pelo saber e um
retorno da capacidade de se seduzir pelo conhecimento que muitos educadores perderam,
pois não há possibilidade de se aprimorar a criticidade sobre a realidade, caso cada
educador não esteja, ele mesmo, dentro de um processo de busca pela constante ampliação
de seu universo de saberes.
2.3.2. A dinâmica do diálogo no contexto teórico da relação de ensino-
aprendizagem e a construção do conhecimento por parte do educando
Agora que já pude mostrar como Paulo Freire entende o papel do educador no
processo de ensino-aprendizagem, estarei enfatizando a operacionalização do diálogo, para
que se possa dimensionar, principalmente por meio de exemplos, a realidade do diálogo
crítico no contexto teórico.
Com base no que foi coletado e debatido na investigação da temática significativa,
Paulo Freire propõe a confecção de codificações
10
, que são canais de comunicação (visuais,
pictóricos, gráficos, táteis ou auditivos) que representam situações existenciais desafiadoras
(FREIRE, 1987: 116-118).
A partir da problematização dessas codificações, é que o debate se estabelece com a
finalidade de promover a descodificação das situações apresentadas. Para relatar essa
situação, Paulo Freire fala dos dois momentos da descodificação:
“O primeiro momento da descodificação – ou ‘leitura’ – é descritivo. A
este nível, os ‘leitores’ – descodificadores – narram mais do que
analisam, alinham as diferentes categorias constitutivas da codificação.
“Suponhamos, por exemplo, a codificação de uma situação de trabalho
no campo. A ‘estrutura de superfície’ desta codificação seria
representada por diferentes dados: presença de mulheres e de homens
trabalhando com alguns instrumentos; a figura do patrão, no seu cavalo;
árvores, pássaros, animais etc. O primeiro momento da ‘leitura’ ou
descodificação se centra na descrição daqueles dados. ‘Vemos dois
homens e três mulheres trabalhando. O patrão olha eles de seu cavalo. Lá
longe tem umas árvores. Tem também uns passarinhos nos galhos. E
animal pastando. O céu escuro indica chuva’ etc.
10
“A codificação de uma situação existencial é a representação desta, com alguns de seus elementos
constitutivos, em interação. A descodificação é a análise crítica da situação codificada.” (FREIRE, 1987: 97)
104
“Esta aproximação preliminar à ‘estrutura de superfície’ é seguida pela
problematização da situação codificada, com que se chega ao segundo e
fundamental momento da descodificação. É neste momento que se pode
alcançar a compreensão da ‘estrutura profunda’ da codificação, que abre
possibilidades a análises críticas
11
em torno da realidade codificada.
“Assim, se no primeiro momento, o que se faz é preponderantemente
mirar a codificação, no segundo, ela é ‘ad-mirada’. Naquele se diz apenas
que há homens e mulheres trabalhando, que o patrão os observa de seu
cavalo etc.; neste, se discute a significação do trabalho, as relações entre
os trabalhadores e o patrão; o problema da produção, quem lucra com ela
etc.
“Na ‘estrutura profunda’ desta codificação hipotética há um mundo de
problemas a ser discutidos e que se encontram apontados na sua
‘estrutura de superfície’. Isto é o que se dá com qualquer codificação que,
ao ser bem descodificada, proporciona aos educandos um nível mais
crítico de conhecimento de sua realidade, partindo da análise de seu
contexto concreto.” (1976: 51-52)
A passagem da “estrutura de superfície” da codificação para a sua “estrutura de
fundo” é o que possibilita aos sujeitos do processo de ensino-aprendizagem perceberem
aquilo que objetivamente os envolve enquanto indivíduos que pertencem a uma mesma
realidade concreta.
Objetivamente falando, o fato é que na “estrutura de fundo” das codificações há a
relação dialética Homem-Mundo no contexto da sociedade capitalista que se caracteriza por
uma estrutura muito bem articulada, que condiciona os indivíduos a adotarem determinadas
atitudes e a fazerem determinadas escolhas em suas vidas. No âmago dessa estrutura há
relações sociais desumanizadoras que estão ocultadas. A essas relações Paulo Freire atribui
a expressão relações de opressão e a realidade que delas deriva é a realidade opressora.
Essa realidade se materializa essencialmente por uma relação de violência mascarada que
se manifesta nas relações sociais em vários âmbitos, tais como: nas relações de produção
(bem como nas relações de poder nela implicadas), nas relações familiares, nas relações de
gênero, de etnias, de raças...
Instaurada essa relação de violência econômica, social, política e cultural, ela passa
a fazer parte da vida dos indivíduos de tal maneira que esses não conseguem identificá-la
objetivamente como violência de uma classe contra a outra ou de um grupo contra o outro.
Por não ser identificada como tal, essa violência que gera a desumanização (inviabilizadora
11
No seguinte trecho de Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire nos oferece uma idéia daquilo que ele
compreende pelo termo crítico: “... precisamente porque captam o desafio como um problema em suas
conexões com outros, num plano de totalidade e na como algo petrificado, a compreensão resultante tende a
tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada”. (FREIRE, 1987: 70)
105
do ser mais), se reproduz cotidianamente na vida dos seres humanos (opressores e
oprimidos) sem que esses se insiram criticamente num processo de luta contra a realidade
concreta de opressão. Dessa forma, a opressão é um fenômeno objetivo que produz nos
indivíduos respostas de ajustamento, adaptação e de acomodação sustentadas por um
poderoso aparato ideológico que cria explicações cheias de lacunas para os fenômenos
sociais.
Dessa forma, a exploração econômica (no capitalismo produzida pela mais-valia e
pelo conseqüente desemprego) e a dominação política sustentada por uma cultura do
silêncio não-dialógica produzem um efeito de “anestesiamento” do ser humano situado e
datado, portanto, imerso nessa condição objetiva de opressão.
Mitos ideológicos são criados e difundidos por poderosos meios de comunicação
(inclusive a escola) para que respostas condicionadas sejam sempre garantidas.
Objetivamente, os indivíduos que não conseguem discernir as razões de ser desses mitos
são coisificados, viram objeto, na medida em que não são valorizados na sua capacidade de
decidir sobre suas próprias vidas.
Tal como vimos quando, no primeiro capítulo, falei um pouco do marxismo, Paulo
Freire acentua que o papel da educação é o de desvelar “verdades” e de desmascarar mitos
ideológicos, tais como a de que a riqueza vem do esforço daqueles que detêm o poder
econômico, a de que Deus quis que o mundo fosse assim, de que quem não vai à escola não
tem cultura, de que o problema da miséria é porque o pobre faz muito filho, de que a
cultura dos países ditos desenvolvidos é superior, de que a ciência é neutra, de que o
assistencialismo das classes dominantes é uma autêntica generosidade..., enfim, todos esses
valores e muitos outros estão presentes na realidade concreta (apresentada pelas situações
codificadas) dos indivíduos, dos educandos, por meio das relações que esses estabelecem
com a cultura local, com os costumes locais, com as brincadeiras locais, com a literatura
local, com a cultura sexual local, com a violência local, com os programas de tv locais, com
os problemas de saneamento e de infra-estrutura local, com a gestão comunitária local, com
a economia local, com a Física local, com a Química local, com a Língua Portuguesa local,
com a Matemática local, com a História local, com a Geografia local, com a Educação
Física local...
O indivíduo situado numa realidade concreta de opressão ou não possui um
universo existencial próprio que lhe chega diretamente pela própria convivência social. Ele
106
interpreta tudo isso e transforma tudo isso em saber (conhecimentos de experiência feitos).
Ele conhece ou ignora as mediações que existem entre todos esses elementos locais e as
estruturas mais amplas da sociedade e do mundo em que ele vive. É justamente nessa
capacidade de se fazer a conexão entre esses elementos que a consciência crítica vai se
constituindo.
Em Pedagogia da Esperança, Freire relata dois diálogos que manteve com
educandos e que me parecem paradigmáticos para nos fazer visualizar a dinâmica dialógica
orientada no sentido de se ampliar a criticidade dos educandos. Conta ele que em ambos os
diálogos ele ouvia dos camponeses, respectivamente, do Chile e da Zona da Mata de
Pernambuco o discurso ideológico já incorporado de que eles eram ignorantes e de que não
tinham o direito de falar nada porque nada sabiam.
Com os trabalhadores do Chile, Freire propôs um jogo no qual:
“ ‘... consiste em cada um perguntar algo ao outro. Se o perguntado não
sabe responder, é gol do perguntador. Começarei o jogo fazendo uma
primeira pergunta a vocês.’
A essa altura, precisamente por que assumira o ‘momento’ do grupo, o
clima era mais vivo do que quando começáramos, antes do silêncio.
Primeira pergunta:
- Que significa a maiêutica socrática?
Gargalhada geral e eu registrei o meu primeiro gol.
- Agora cabe a vocês fazer a pergunta a mim – disse.
Houve uns cochichos e um eles lançou a questão:
- Que é curva de nível?
Não soube responder. Registrei um a um.
- Qual a importância de Hegel no pensamento de Marx?
Dois a um.
- Para que seve a calagem do solo?
Dois a dois.
- Que é um verbo intransitivo?
Três a dois.
- Que relação há entre curva de nível e erosão?
Três a três.
- Que significa epistemologia?
Quatro a três.
- O que é adubação verde?
Quatro a quatro.
Assim, sucessivamente, até chegarmos a dez a dez.
Ao me despedir deles lhes fiz uma sugestão: ‘Pensem no que houve esta
tarde aqui. Vocês começaram discutindo muito bem comigo. Em certo
momento ficaram silenciosos e disseram que só eu poderia falar porque
só eu sabia e vocês não. Fizemos um jogo sobre saberes e empatamos dez
a dez. Eu sabia dez coisas que vocês não sabiam e vocês sabiam dez
coisas que eu não sabia. Pensem sobre isso.’” (1992: 48-49)
107
Nessa circunstância Freire criou condições para que os educandos percebessem que
não há ignorância absoluta, portanto, possibilitou que um dos grandes mitos ideológicos da
sociedade opressora fosse quebrado.
O outro diálogo relatado por Freire está citado neste meu trabalho na epígrafe
presente nas páginas iniciais. Nela, Freire promove condições para que a ideologia fatalista
cedesse espaço para a compreensão crítica da situação em que os camponeses da Zona da
Mata de Pernambuco se encontravam.
Acredito que ambos os diálogos citados por Freire materializam a essência da
educação problematizadora proposta por ele. Neles, os educandos são tão sujeitos do
processo de ensino-aprendizagem quanto o educador; neles, os educandos refletem sobre a
situação concreta em que estão envolvidos, interagindo entre si e com o educador,
construindo conhecimento; enfim, neles, os educandos e o educador participam de um
processo de descodificação em que a realidade passa a se apresentar não mais como uma
situação intransponível, mas sim como uma realidade histórica construída por seres
humanos na sua relação com o mundo e com os outros.
“A descodificação da situação existencial provoca esta postura normal,
que implica um partir abstratamente até o concreto; que implica uma ida
das partes ao todo e uma volta deste às partes, que implica um
reconhecimento do sujeito no objeto (a situação existencial concreta) e
do objeto como situação em que está o sujeito.
“Este movimento de ida e volta, do abstrato ao concreto, que se dá na
análise de uma situação codificada, sem bem-feita a descodificação,
conduz à superação da abstração com a percepção crítica do concreto, já
agora não mais realidade espessa e pouco vislumbrada. (...)
“Como, porém, a codificação é a representação de uma situação
existencial, a tendência dos indivíduos é dar o passo da representação da
situação (codificação) à situação concreta mesma em que e com que se
encontram.
“Teoricamente é lícito esperar que os indivíduos passem a comportar-se
em face de sua realidade objetiva da mesma forma, do que resulta que
deixa de ser um beco sem saída para ser o que em verdade é: um desafio
ao qual os homens têm que responder.” (FREIRE, 1987: 97-98)
O importante dessa reflexão é que nela Freire nos evidencia o modo pelo qual o
pensamento incide sobre o objeto de conhecimento, de tal forma que o pensamento do
educador não pode substituir a reflexão dos educandos, respeitando a idéia de a
aprendizagem se efetiva enquanto ato de conhecimento.
Em última instância, o fundamento último da Pedagogia libertadora de Paulo Freire
é o engajamento dos indivíduos na luta pela sua libertação e libertação dos outros.
108
Concretamente, acredito que só podemos observar se esse engajamento se efetivou se os
educandos passaram a perceber a realidade objetiva como passível de ser transformada.
Precisamos constatar, portanto, se os educandos e os educadores (ambos sujeitos do
processo de ensino-aprendizagem) estão efetivamente se organizando por meio de projetos
sociais (não apenas assistencialistas), de ONGs, de cooperativas, de sindicatos, de
associações de bairro, de partidos, de conselhos de escola como meios de inserirem-se
criticamente na realidade, estabelecendo com ela uma relação de enfrentamento em busca
da superação concreta das relações de opressão na sociedade.
3. A presença da fenomenologia existencial como pressuposto epistemológico da
concepção freireana de ensino-aprendizagem
Não pretendo fazer aqui uma enumeração exaustiva de todos o momentos em que
Paulo Freire recorreu a princípios daquilo que denominei como fenomenologia existencial
para fundamentar a sua concepção de ensino-aprendizagem.
Farei sim análises de algumas falas em que Freire explicita categorias básicas da
concepção fenomenológico-existencial, relacionando-as direta ou indiretamente com a sua
proposta pedagógica libertadora.
Para iniciar, acredito que seja fundamental recorrer a um texto de Carlos Alberto
Torres, presente na obra Paulo Freire: uma biobibliografia, no qual o autor explicita, a
partir de sua leitura de Freire e a partir de conversas que teve pessoalmente com ele, a
perspectiva filosófica da qual Freire entende o mundo.
Eis uma das falas de Paulo Freire que Torres destaca nesse texto:
“‘Minha perspectiva é dialética e fenomenológica. Eu acredito que daqui
temos que olhar para vencer esse relacionamento oposto entre teoria e
práxis: superando o que não deve ser feito num nível idealista. De um
diagnóstico científico desse fenômeno, nós podemos determinar a
necessidade para a educação como uma ação cultural...’ ” (TORRES,
1996: 125)
A necessidade freireana de recorrer à fenomenologia, entendida numa perspectiva
dialética, portanto, não-idealista, nem mecanicista, vem do fato de Freire ter uma posição
clara sobre os perigos de se enveredar para concepções que superestimam o papel do
sujeito, ou para as que supervalorizam o poder da realidade objetiva sobre as
subjetividades.
109
No primeiro caso (o do idealismo), deparamo-nos com uma equivocada
compreensão do mundo que desconsidera as influências da realidade objetiva enquanto
condicionadora dos pensamentos e das ações dos indivíduos e enquanto definidora de seu
universo existencial.
Para quem atua na ponta da realidade da escola, em que essa mentalidade está
fortemente presente, não pode deixar de constatar as reiteradas vezes em que os agentes da
educação incidem no argumento de culpabilização dos educandos pela situação em que as
aulas e o ambiente escolar chegou. É como se os indivíduos em si mesmos pudessem se
adequar às expectativas da escola, dependendo só deles. Nessa perspectiva, abre-se
caminho para uma concepção educacional punitiva e culpabilizadora dos indivíduos pela
sua forma de se comportar e de pensar.
A ação cultural orientada pela perspectiva idealista também se equivoca ao acreditar
que a mudança das pessoas pode ocorrer somente no nível da consciência, sem alongar-se
na dimensão da prática. Tal perspectiva conduz a uma concepção messiânica de educação,
na qual os educadores de auto-intitulam salvadores dos ignorantes e, portanto, o centro do
processo de ensino-aprendizagem. Desprezam as práticas concretas nas quais os educandos
estão inseridos. Ignoram que tais práticas impregnam a consciência e as ações, de tal forma
que ambas refletem aquilo que a realidade objetiva ensina.
Ao ignorar isso, muitos profissionais da educação se deixam levar pela tentadora
perspectiva de se explicar, por exemplo, o fracasso escolar a partir exclusivamente do
suposto desinteresse dos alunos, do excesso de alunos por sala de aula e pela família
desestruturada (que não condiz com o ideal de família).
A mentalidade mecanicista também passa a ser contrariada a partir da perspectiva
fenomenológico-existencial e dialética. Uma educação nessa perspectiva pode surtir dois
efeitos possíveis. O primeiro deles é conduzir a um pensamento de que tudo o que ocorre
na escola é regido por forças exteriores intransponíveis, portanto, contra as quais é
impossível resistir. Tal mentalidade pode ser observada fartamente nas inúmeras vezes em
que se ouve dentro da escola a frase “não adianta nada fazer isso” ou “não vai dar certo”,
ou ainda, “você fala isso porque ainda é jovem”. O mundo já está dado de antemão, cabe a
nós nos adaptarmos a ele.
O segundo efeito possível da concepção mecanicista de educação é até acreditar que
é possível resistir, porém, tal resistência se faz sem que se leve em consideração o modo
110
pelo qual os educandos concebem a realidade que os envolve. Assim, como o mundo é feito
de um conjunto de relações entre elementos que se articulam objetivamente, cabe ao
professor levar os alunos a entenderem as articulações necessárias entre tais elementos, de
tal forma que a única maneira do aluno entendê-las, é acessar o conhecimento científico
universalmente produzido.
A dialética de que fala o mecanicismo, que muitas vezes vem ligado à perspectiva
materialista, é uma dialética limitada, na medida em que ressalta excessivamente a relação
contraditória entre classes sociais, não considerando uma dialética anterior a essa, que é
aquela presente intrinsecamente na relação indivíduo-mundo. Parece-me que é a esta última
que Paulo Freire se refere ao se auto-definir numa perspectiva fenomenológica e dialética.
“A significação profunda da estrutura fenomenal – reunindo
dialeticamente a estrutura do homem e a estrutura do mundo – é que uma
não é propriamente exterior à outra. Há uma verdadeira dialética entre
ambas, de tal forma que uma não se concebe sem a outra. Isto exclui,
desde logo, toda tentativa de ‘explicar’ uma pela outra como pretendiam
fazê-lo as diversas formas de causalismo mecanicista, positivista,
determinista...” (REZENDE, 1990: 37)
Parece-me que há uma convergência entre a realidade, a qual Paulo Freire diz que
precisamos nos ater para fundamentar nossa ação cultural, e a concepção fenomenológico-
existencial da realidade. Sendo esta última entendida como fenômeno, não podemos ignorar
o seu componente de subjetividade, tampouco o seu componente de objetividade. E é essa
consideração a esses dois componentes que faz como que a fenomenologia existencial e
Paulo Freire convirjam no pressuposto de que o ser humano é um ser-no-mundo ao mesmo
tempo em que é um ser-ao-mundo. Ou seja, um ser que não só é reflexo do mundo, como
também reflete sobre o mesmo.
Daí, Torres também destacar, no texto que citei no início desse item, a seguinte
reflexão feita por Freire numa entrevista dada a ele:
“ ‘O primeiro nível de apreensão da realidade é a tomada de consciência.
Esse conhecimento existe porque como seres humanos somos
‘colocados’ e ‘datados’, como Gabriel Marcel costumava dizer, os
homens são espectadores com e no mundo. Essa tomada de consciência,
no entanto, não é ainda a consciência crítica. Há a intensidade da tomada
de consciência. Isto é, o desenvolvimento crítico da tomada de
consciência. Por essa razão, a consciência crítica implica ultrapassar a
esfera espontânea da apreensão da realidade para uma posição crítica.
Através dessa crítica, a realidade passa a ser um conhecido objeto dentro
do qual o homem assume uma posição epistemológica: homem
procurando conhecimento. Portanto, consciência crítica é um teste de
ambiente, um teste de realidade. Como estamos conscientizando, estamos
111
revelando realidade, estamos penetrando na essência fenomenológica do
objeto que estamos tentando analisar.’ ” (TORRES, 1996: 125)
Para os humanos, basta estarem no mundo para tamm o apreender. Como Freire
explica nessa citação, a qualidade dessa apreensão, do ponto de vista do seu rigor, vai se
intensificando na medida em que vai se criticizando. Mesmo assim, a primeira relação com
o mundo é uma tomada de consciência espontânea, ou seja, é uma ação que cada um exerce
sobre a realidade na busca por atribuir a ela um sentido. A própria referência que Freire faz
a Gabriel Marcel nessa entrevista, nos indica a sua relação com a concepção
fenomenológico-existencial, principalmente, se levarmos em consideração as íntimas
relações que o existencialismo e a fenomenologia passaram a ter a partir de um certo
momento da história do pensamento ocidental.
“O ponto de partida para uma análise, tanto quanto possível sistemática,
da conscientização, deve ser uma compreensão crítica dos seres humanos
como existentes no mundo e com o mundo. Na medida em que a
condição básica para a conscientização é que seu agente seja um sujeito,
isto é, um ser consciente, a conscientização, como a educação, é um
processo específica e exclusivamente humano. É como seres conscientes
que mulheres e homens estão não apenas no mundo, mas com o
mundo...” (FREIRE, 1976: 65)
Nessa citação, Freire já nos adianta um pouco a ligação existente entre a educação
que defende e esse pressuposto epistemológico fundamental a partir do qual não é possível
compreender o conhecimento, seja como processo, seja como produto, senão como algo
que se dá necessariamente na relação homem-mundo, ou seja, ser humano no mundo e com
o mundo. Como já tive a oportunidade de mostrar no Capítulo 1 desse trabalho, essa
dialética homem-mundo, que também pode ser definida pela dialética sujeito-objeto, é uma
formulação central da perspectiva filosófica fenomenológico-existencial. Na diversidade de
orientações epistemológicas que nasceram a partir desse pressuposto, é possível constatar a
pedagogia freireana como sendo uma delas, e isso pode ser percebido também a partir do
modo pelo qual Freire compreende essencialmente a ação da consciência humana enquanto
vocacionada para a intencionalidade.
“A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem
com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens
como seres ‘vazios’ a quem o mundo ‘encha’ de conteúdos; não pode
basear-se numa consciência espacializada, mecanicistamente
compartimentada, mas nos homens como ‘corpos conscientes’ e na
consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a
do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas
relações com o mundo.
112
“Ao contrário da ‘bancária’, a educação problematizadora, respondendo à
essência do ser da consciência, que é a sua intencionalidade, nega os
comunicados e existencía a comunicação. Identifica-se com o próprio da
consciência que é sempre ser consciência de...” (FREIRE, 1987: 67)
“ ‘A consciência e o mundo’, diz Sartre, ‘se dão ao mesmo tempo:
exterior por essência à consciência, o mundo é, por essência, relativo a
ela.” (FREIRE, 1987: 70)
“A primeira [a educação bancária] ‘assistencializa’; a segunda [a
educação libertadora], criticiza. A primeira, na medida em que, servindo
à dominação, inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar a
intencionalidade da consciência como um desprender-se ao mundo, a
‘domestica’, nega os homens na sua vocação ontológica e histórica de
humanizar-se. A segunda, na medida em que, servindo à libertação, se
funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos
homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não
podem autenticar-se fora da busca e da transformação criadora.”
(FREIRE, 1987: 72)
Reafirmando o pressuposto da intencionalidade, em Ação Cultural para a
Liberdade e outros escritos, Freire faz a seguinte consideração:
“Se o conhecimento fosse algo estático e a consciência alguma coisa
vazia, ocupando um certo espaço no corpo, a prática educacional referida
[a prática bancária] estaria correta. Mas não é este o caso. O
conhecimento não é essa coisa feita e acabada e a consciência é
‘intencionalidade’ ao mundo.
“Ao nível humano, o conhecimento envolve a constante unidade entre
ação e reflexão sobre a realidade. Como presenças no mundo, os seres
humanos são corpos conscientes que o transformam, agindo e pensando,
o que os permite conhecer ao nível reflexivo...” (1976: 87-88)
Dessas reflexões promovidas por Freire, pode-se inferir que em sua visão, é próprio
da nossa forma de estar no mundo responder aos estímulos que por ele são trazidos não
com respostas programadas, tal como os animais o fazem, mas com a atividade da
consciência que, pela sua própria natureza, se dirige aos objetos, não se separando do
mundo em qualquer hipótese.
A incidência da consciência sobre o mundo consiste, na verdade, num processo de
objetivação ao qual esse é submetido. Isso significa que, ao contrário dos animais que são
imersos no mundo, os seres humanos têm a capacidade de abstraí-lo e objetivá-lo
transformando-o em objeto de conhecimento. Ao fazê-lo, passamos a ter condições de ir
além dos elementos que aparecem numa perspectiva mais superficial, buscando atingir as
suas razões de ser mais profundas.
113
Por isso, quando objetivamos a nossa realidade enquanto empregados, podemos vê-
la enquanto atividade produtora de cultura. Quando objetivamos a realidade infantil
enquanto, por exemplo, uma brincadeira, podemos juntos com as crianças, compreender as
regras e os acontecimentos que fizeram parte daquela experiência concreta dessas mesmas
crianças. Quando objetivamos a nossa realidade política, econômica, social, histórica,
geográfica... estamos propondo a nós mesmos a possibilidade de incidirmos a nossa
consciência sobre as entrelinhas dos processos que envolvem as nossas práticas cotidianas,
buscando desvelá-los, desmistificá-los, compreendê-los.
Assim, é da nossa própria maneira de estar no mundo incidir a nossa consciência
sobre os elementos que nos envolvem, dando-os significados e atribuindo-os símbolos. Tais
símbolos, ao se unirem com outros tantos, nos possibilitam recriar as nossas explicações
sobre o mundo, daí a importância da inserção dos seres humanos da nossa sociedade no
processo simbólico para que nela possam viver dentro de condições efetivamente humanas.
Ao atribuir ao mundo uma significação que vai além de sua própria realidade
aparente imediata, o ser humano passa a ter condições de projetar ações futuras. Tais ações,
por terem como base uma reflexão ou uma problematização do mundo, projetam-se como
práticas transformadoras, já que vão além das condições de existência que até então
predominavam. Essa compreensão freireana a respeito do modo de ser da consciência
relaciona-se com aquela compreensão de ser humano como essencialmente um ser de
decisão autônoma, já que a sua ação no mundo está totalmente relacionada ao seu processo
de deliberação que lhe garante a liberdade e lhe garante a possibilidade de ir além dos
determinismos. Portanto, lhe garante ser sujeito da sua própria história. Uma história que,
por ser produto do processo de construção coletiva, não é feita do jeito que o indivíduo
quer, já que este não é apenas produtor do mundo em que vive, mas também produto do
mesmo.
Dessa forma, Freire re-afirma a sua crítica epistemológica à educação bancária, que
nunca conseguirá eliminar essa faculdade essencial da consciência que é a sua
intencionalidade. Por isso, que:
“... apesar dele [do ensino bancário], o educando a ele submetido não está
fadado a fenecer; em que pese o ensino ‘bancário’, que deforma a
necessária criatividade do educando e do educador, o educando a ele
sujeitado pode, não por causa do conteúdo cujo ‘conhecimento’ lhe foi
transferido, mas por causa do processo mesmo do aprender, dar, como se
114
diz na linguagem popular, a volta por cima e superar o autoritarismo e o
erro epistemológico do ‘bancarismo’” (FREIRE, 1996: 27-28)
O atributo da intencionalidade da consciência permite que compreendamos a
impossibilidade de se domesticar completamente as pessoas ou de adestrá-las tal como
vimos que o behaviorismo apregoava. Rejeitando completamente toda e qualquer forma de
determinismo, esse princípio é que nos faz compreender porque é possível que, do ponto de
vista epistemológico, mesmo os educandos submetidos intensamente a uma atividade de
repetição de conhecimentos narrados pelos professores e de cópia de lousas escritas com
base em livros copiados, mantêm acesa a vontade de aprender, de construir conhecimento,
de conhecer. É totalmente possível ao educador “despertar a intencionalidade domesticada”
e adormecida, na medida em que se reconheçam as implicações pedagógicas e
metodológicas da compreensão da consciência enquanto movimento que se dirige ao
mundo. Sobre essas implicações, Freire nos oferece as seguintes reflexões:
“Prática pedagógica em que o método deixa de ser, como salientamos no
nosso trabalho anterior, instrumento do educador (no caso, a liderança
revolucionária), com o qual manipula os educandos (no caso os
oprimidos) por que é já a própria consciência.
“‘O método é, na verdade (diz o professor Álvaro Vieira Pinto), a forma
exterior e materializada em atos, que assume a propriedade
fundamental da consciência: a sua intencionalidade. O próprio da
consciência é estar com o mundo e este procedimento é permanente e
irrecusável. Portanto, a consciência é, em sua essência, um ‘caminho
para’ algo que não é ela, que está fora dela, que a circunda e que ela
apreende por sua capacidade ideativa. Por definição, a consciência é,
pois, método, entendido este no seu sentido de máxima generalidade. Tal
é a raiz do método, assim como tal é a essência da consciência, que só
existe enquanto faculdade abstrata e metódica.’” (VIEIRA PINTO, 1986:
sem página, citado por FREIRE, 1987: 56, grifos nossos)
“Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser
o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir
‘conhecimentos’ e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da
educação bancária, mas um ato cognoscente...” (FREIRE, 1987: 68)
Na perspectiva fenomenológica, como vimos desde Husserl, a consciência é um ato.
Ou seja, ela não é uma entidade estática que aguarda que as coisas de fora a preencham. Ela
é, por princípio, ativa, sujeito, que se dirige incessantemente a objetos. Portanto, nesse
sentido, ela é um caminhar, ela é um caminho a alguma coisa. Daí a sua “faculdade
metódica”.
115
Tendo clareza dessa natureza da consciência, não havia como Freire conceber uma
concepção de ensino-aprendizagem que não estipulasse como premissa básica a idéia de
que, para se gerar conhecimento e aprendizagem, é necessário que se permita que os
educandos promovam o seu ato cognoscente. Ou seja, a educação libertadora, com o seu
compromisso de criar condições para que os seres humanos reiteradamente ampliem as suas
faculdades propriamente humanas, não pode utilizar-se de uma metodologia que não seja
congruente com o potencial humano de conhecer a partir da posição de sujeito do seu
próprio ato de conhecimento. Por isso, do ponto de vista epistemológico, a relação de
ensino-aprendizagem na perspectiva freireana não se efetua, senão como um ato de
conhecimento dos sujeitos que participam do processo de ensino-aprendizagem como um
todo.
Isso significa que ninguém chega na escola vazio. Cada indivíduo passa a conhecer
a partir do momento em que existe, pois desde o momento em que cada pessoa interage
com o mundo e com os outros, ela realiza atos cognoscentes contínuos, que por sua vez
geram conhecimentos espontâneos, geram uma aprendizagem natural.
Essa é a natureza da aprendizagem. Ela é uma atividade essencialmente promovida
por cada indivíduo que inevitavelmente sabe sempre algo sobre o mundo. Esse saber ocorre
de maneira espontânea, sem que ninguém precisasse provocá-lo. Ele nasce das questões que
o próprio indivíduo se faz frente aos desafios concretos que o mundo lhe oferece. Ou seja, o
conhecimento de cada indivíduo só começa depois que a realidade provoca e propõe
questões que exigem dele uma inserção num processo de busca por respostas.
“[Na educação bancária] Não pode haver conhecimento pois os
educandos não são chamados a conhecer, mas a memorizar o conteúdo
narrado pelo educador. Não realizam nenhum ato cognoscitivo, uma vez
que o objeto que deveria ser posto como incidência de sue ato
cognoscente é posse do educador e não mediatizador da reflexão crítica
de ambos.” (FREIRE, 1987: 69)
Nesse sentido, a reação natural de um indivíduo que é colocado numa situação em
que deve conhecer aquilo que não parte dos desafios que o envolve existencialmente é a de
indiferença, repugnância e apatia, já que tais conhecimentos não possuem significado
algum para ele. Em outras palavras, tais conhecimentos não são objetos de incidência da
intencionalidade de sua consciência. Por isso, tais situações pedagógicas não geram
aprendizagem, nem conhecimento. Pelo contrário, só geram um sentimento de repulsa por
116
tudo aquilo que envolve aquela situação: a matéria, o professor, os cadernos, os livros, a
escola...
As questões que os indivíduos fazem sobre o mundo são aquelas que os afetam. Por
isso, cabe à educação que se pretende libertadora questionar a respeito do que afeta os
educandos com os quais se propõe a trabalhar. Em outras palavras, cabe a essa educação
perguntar-se sobre quais são os sentidos que os indivíduos têm dado para o mundo a partir
de sua incessante visada sobre ele. Pois, se toda consciência se dirige a algo, atribuindo-lhe
um sentido, precisamos questionar qual sentido é esse. Daí o imperativo freireano do
diálogo, tanto na construção dos conteúdos programáticos, quanto no momento do contexto
teórico de descodificação da realidade.
Portanto, o princípio ético-político-pedagógico-metodológico do diálogo no
pensamento de Paulo Freire é também epistemológico. Ele é uma implicação radical e
irrecusável de uma concepção de ensino-aprendizagem que possua pressupostos fundados
na perspectiva fenomenológico-existencial.
“... Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar
de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de
sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro, a
educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação
da contradição educador-educandos. Sem esta, não é possível a relação
dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes,
em torno do mesmo objeto cognoscível.” (FREIRE, 1987: 68)
Acredito que essa citação é uma ótima síntese que retrata a concepção freireana de
ensino-aprendizagem do ponto de vista epistemológico. Ela concentra as conseqüências
necessárias de uma concepção filosófica sobre o conhecimento pautada na vertente
fenomenológica.
A intencionalidade da consciência enquanto premissa exige que a educação permita
que os indivíduos promovam os seus atos cognoscentes, que por sua vez só são possíveis
no momento em que o educador não se assuma como dono do conhecimento, mas sim
como também um educando que está disposto a conhecer novamente e até mesmo de outra
forma. Daí a superação da contradição educador-educandos, pois é justamente ela que
possibilita a dinamização da relação entre as diversas consciências dirigindo-se para os
objetos cognoscíveis.
117
Dessa superação surge o diálogo como princípio norteador fundamental. Só ele
pode gerar o conhecimento e a aprendizagem. Ele é uma condição epistemológica de
possibilidade de ambos, pois só ele possibilita o ato cognoscente.
Em síntese, isso significa que a teoria do conhecimento na perspectiva freireana
possui uma raiz fenomenológico-existencial, na qual a dialética ser humano-mundo possui
um papel determinante na definição dos parâmetros pedagógicos freireanos. Ou seja, trata-
se de partir do modo de ser da relação dos seres humanos no mundo e com o mundo para se
definir a “forma” e o conteúdo da educação libertadora.
Por “forma”, estou entendendo o apego irrecusável ao diálogo como princípio
balizador de todas as ações. Por conteúdo estou entendendo a necessidade também
irrecusável de se ir até os espaços nos quais se dão as relações entre os indivíduos e o
mundo, ou seja, nos espaços em que se dá a práxis dos indivíduos para construir os
conteúdos sobre os quais esses mesmos indivíduos promoverão os seus atos cognoscentes.
Isso significa que o conjunto de questões, interesses e perspectivas que os
indivíduos possuem sobre o mundo só podem ser identificados se fizermos um
levantamento rigoroso a respeito da percepção que esses mesmos indivíduos possuem sobre
a sua própria realidade. Esse levantamento é definido por Freire como levantamento da
realidade concreta.
“Para muitos de nós, a realidade concreta de uma certa área se reduz a
um conjunto de dados materiais ou de fatos cuja existência ou não, de
nosso ponto de vista, importa constatar. Para mim, a realidade concreta é
algo mais que fatos ou dados tomados mais ou menos em si mesmos. Ela
é todos esses fatos e todos esses dados e mais a percepção que deles
esteja tendo a população neles envolvida. Assim, a realidade concreta se
dá a mim na relação dialética entre objetividade e subjetividade. Se
me preocupa, por exemplo, numa zona rural, o problema da erosão, não o
compreenderei, profundamente, se não percebo, criticamente, a
percepção que dele estejam tendo os camponeses da zona afetada. A
minha ação técnica sobre a erosão demanda de mim compreensão que
dela estejam tendo os camponeses da área. A minha compreensão e o
meu respeito. Fora desta compreensão e deste respeito à sabedoria
popular, à maneira como os grupos populares se compreendem em suas
relações com o seu mundo, a minha pesquisa só tem sentido se a minha
opção política é pela dominação e não pela libertação dos grupos e
classes sociais oprimidas. Desta forma, a minha ação na pesquisa e a dela
decorrente se constituem no que venho chamando de invasão cultural, a
serviço sempre da dominação.” (FREIRE, 1981: 35, grifo meu)
118
Apesar de, num momento anterior desse trabalho, eu já ter feito considerações em
torno no tema da realidade concreta, acredito que seja fundamental retornar a ele nesse
momento.
Parece-me que essa questão essencial da concepção freireana de ensino-
aprendizagem está diretamente relacionada com os pressupostos fenomenológico-
existenciais que servem de base epistemológica para a reflexão de Paulo Freire. Ao
contrário das compreensões puramente materialistas do conceito de realidade concreta,
Paulo Freire compreende esse conceito a partir também da subjetividade. Ou seja, Freire
ressalta a necessidade de se partir não apenas dos dados, mas também da compreensão que
os indivíduos de determinada comunidade têm sobre eles.
Como vimos no Capítulo 1, a proposta fenomenológica compromete-se
profundamente com os diferentes sentidos que os diferentes sujeitos atribuem ao mundo.
Nesse aspecto, há uma convergência entre a concepção freireana e a vertente
fenomenológico-existencial. Porém, o distanciamento de Freire para com essa perspectiva
parece ocorrer no decorrer de sua proposta na medida em que Freire não elimina o papel
que as condições objetivas de opressão têm sobre os indivíduos.
Para ele, toda a valorização da subjetividade individual não pode descartar a
possibilidade de uma educação que busque promover a descodificação da realidade objetiva
que apresenta mecanismos reais de desumanização e, portanto, de limitação da capacidade
humana de se realizar plenamente. Portanto, a pedagogia freireana reconhece os diferentes
sentidos que a realidade concreta concentra dentro de si, porém assume declaradamente o
compromisso de se propor aos educandos o sentido político de determinada realidade
concreta, e, portanto, de determinados conhecimentos de experiência feitos.
Sem esse compromisso com a politicidade, a pedagogia freireana se
descaracterizaria, atendendo não mais à causa dos oprimidos, que são todos aqueles grupos
sociais que sofrem de maneira mais acentuada as conseqüências da violência inerente à
ordem vigente nos dias atuais.
Por isso, não podemos dizer que os pressupostos fenomenológicos presentes na
fundamentação freireana de sua concepção de ensino-aprendizagem levam a uma
concepção fenomenológica da educação, pois isso implicaria uma proposta educacional que
não se identifica necessariamente com a politicidade essencial inerente a toda a proposta
político-pedagógica freireana.
119
Isso significa que a concepção freireana de ensino-aprendizagem compreende a
relação inseparável entre objetividade-subjetividade como sendo ponto de partida
necessário para que os indivíduos possam se engajar efetivamente na luta pelas
transformações das condições objetivas de sobrevivência.
A objetividade da realidade, nesse sentido, não implica para Freire a idéia de que só
há, em última instância, uma coisa a se dizer sobre o mundo. Significa sim que existem
dimensões da vida em sociedade que dizem respeito a todos os sujeito e que, portanto,
podem ser coletivamente compreendidas.
Para serem alteradas, tais dimensões exigem respostas coletivas e, portanto, exigem
a constatação coletiva de seus mecanismos objetivos de atuação. Tal constatação é possível
na medida em que os indivíduos vão assumindo cada vez mais uma compreensão crítica da
realidade objetiva que se apresenta e se impõe avassaladoramente sobre os sujeitos, sem
que seja possível dela se defender, senão a partir da construção de um conhecimento
coletivo, construído democraticamente, e, portanto, produtor de uma identidade coletiva
que leve cada um e todos a se reconhecerem como sujeitos de sua própria história.
120
Considerações Finais: um pouco mais sobre como vejo a
realidade do professor hoje...
A minha expectativa com relação a esse trabalho é a de que ele possa ter contribuído
para que seus eventuais leitores possam compreender melhor a essência do processo e da
relação de ensino-aprendizagem no pensamento de Paulo Freire.
Ele também pretende somar-se a uma grande variedade de estudos que já foram
feitos e estão sendo feitos sobre Paulo Freire no sentido de divulgar as várias dimensões da
sua Pedagogia Libertadora.
Aqui nesse trabalho foi aprofundada uma das dimensões do pensamento freireano: a
sua concepção de ensino-aprendizagem e um de seus pressupostos epistemológicos.
Pessoalmente, o aprofundamento dessa temática me serviu como uma forma de sistematizar
um conhecimento a respeito de um educador que já, desde os meus primeiros contatos com
sua obra, me sensibilizou profundamente. Em favor dessa sensibilização e possibilitando
que ela ocorresse, houve várias circunstâncias pessoais e acontecimentos da minha vida que
me conduziram a aproximar-me cada vez mais da obra de Paulo Freire.
Dentre essas circunstâncias, aquela que talvez tenha mais me impulsionado a
adentrar no universo freireano seja a necessidade de resistir.
O professor que hoje busca atuar esperançosamente, principalmente dentro do
espaço institucional educacional de ensino formal mais propício para a resistência, isto é, a
escola pública, precisa conhecer. Conhecer para resistir.
Anos e anos de implantação de uma política deliberada de descaso com a coisa
pública em nosso país legou e vem legando uma situação muito perturbadora para o
professor compromissado com a construção de uma escola e de uma sociedade mais
humanas.
Há, sem dúvida, muitos exemplos de escolas que enchem os olhos de todo o
educador que acredita na escola como um espaço de resistência. Há ambientes escolares
alegres, de discussão pedagógica intensa, de rico diálogo com a comunidade, enfim, de
educação verdadeira no sentido mais puro e humano que pode existir.
121
No entanto, sabemos que não é essa a realidade que tem predominado na maioria
das escolas públicas
12
desse país. As escolas têm estado tristes, os professores carrancudos,
os alunos violentos, os administradores burocráticos, a esperança adormecida.
O discurso da gestão democrática já tão propalado nos meios intelectuais e
acadêmicos está muito distante da cultura da maioria dos agentes da escola. Nos conselhos
deliberativos escolares há manipulação, nas reuniões pedagógicas há apatia, nas salas dos
professores há indiferença e descaso. Muitos alunos das escolas públicas estão se
transformando em perfeitos copistas. Passam grande parte do período em que estão na
escola copiando a lousa. Quando resistem, são tidos como indisciplinados, desajustados e
rotulados de marginais.
Nesse contexto, basta ficarmos um pouco em contato com professores para
percebermos a força que vêm ganhando os discursos de natureza saudosista, que vêem na
escola pública de antes um modelo melhor do que esse que está aí agora. Naquela, alegam
os saudosistas, os alunos tinham muito mais respeito pelos professores, estudavam com
muito mais afinco, dedicavam-se muito mais às tarefas, enfim, eram obrigados, por
necessidade, a assumir um comprometimento muito maior com os conteúdos, ainda que
estes não tivessem muito significado para as suas vidas.
Para o professor, a situação era muito mais “fácil”. Ele tinha muito poder sobre uma
dimensão fundamental da vida dos jovens, que é a continuidade progressiva nas sucessivas
séries/etapas escolares. A autorização para se poder freqüentar a série seguinte era dada
principalmente pelo professor, sendo que apenas em casos excepcionais a decisão final de
um professor sobre o futuro escolar de um aluno era alterada. Isso significava,
inevitavelmente, para a vida de um aluno um grande obstáculo. Cabia a ele buscar adaptar-
se da forma mais adequada possível às exigências dos professores, pois qualquer detalhe
poderia, talvez, definir a sua aprovação ou reprovação para a série seguinte.
Discussões sobre a natureza da relação de ensino-aprendizagem nem estavam em
pauta. Aprender era sinônimo de ir bem na prova, de responder adequadamente às questões
propostas, enfim, de deixar-se adestrar às imposições domesticadoras da escola com a sua
inspiração tecnicista-behaviorista.
12
Enfatizo aqui a minha fala como sendo direcionada de forma específica para a escola pública, pois quanto
às escolas privadas com fins lucrativos não acredito que haja espaço de resistência verdadeira. Nessas
instituições, o professor que se compromete acaba, mais cedo ou mais tarde, enfrentando o limite óbvio das
escolas privadas: o capital. Na hora que o capital fala mais alto, não há projeto libertador que resista,
tampouco ação libertadora que sobreviva.
122
Nessa perspectiva, o currículo oficial prescrito nacionalmente tinha uma presença
intensa na relação de ensino-aprendizagem, já que ele era a fonte principal de referência
utilizada pelos professores para definir os seus conteúdos programáticos e, assim, suas
avaliações. A tradução desse currículo materializou-se principalmente pela produção
editorial de inúmeros materiais didáticos que serviam como principal fonte de pesquisa para
os educadores organizarem e estruturarem o currículo de suas respectivas áreas do
conhecimento em cada série. Assim, tudo estava pré-formatado. Pouco trabalho restava ao
professor, senão o de executar uma grande receita pré-concebida por outras pessoas, em
outras instâncias do sistema educacional.
Como conseqüência lógica desse processo, os índices de reprovação no ensino
público do país eram muito altos. Na medida em que, cabia aos alunos da escola pública
incorporarem um currículo que representava um conjunto de saberes que compõem o
universo principalmente das classes, grupos e gênero dominantes, e na medida em que
predominantemente os freqüentadores das escolas públicas não pertenciam a esses grupos,
os estudantes viam-se obrigados a internalizar e a subordinar-se a um conjunto de códigos
sociais que tinham pouca, ou quase nenhuma relação com o universo de saberes, desafios
ou necessidades que compunham a sua realidade. Inevitavelmente, quando você avalia o
diferente, o desigual, o outro, o heterogêneo... por critérios rígidos e calcados numa
referência de mundo exclusivamente sua, haverá muita probabilidade de acontecer que o
avaliado não se enquadre no perfil pré-estabelecido. Era isso que ocorria. O aluno
freqüentador da escola pública vivia em outra cultura, em outra realidade, pensava com
outra lógica, bem diferente daquela que o professor tentava incutir na mente do educando.
No caso do professor, em regra, este possuía no mínimo o ensino superior, o que já
o diferenciava consideravelmente de inúmeros educandos vindos de famílias que muitas
vezes não tinham qualquer integrante alfabetizado ou que, sequer, freqüentou a escola.
Como resultado natural dessa situação, os estudantes que conseguiam concluir o ensino
escolar eram aqueles que já pertenciam a um grupo social com algum privilégio nessa
mesma sociedade. Portanto, as desigualdades e os preconceitos, ao contrário do que muitos
pensam, não eram reduzidos pela escolarização, mas sim reproduzidos, principalmente pelo
mecanismo da imposição de um currículo homogêneo para a população de um país como o
nosso que, de homogêneo, tem muito pouco.
123
Nesse contexto, o professor, sabendo ou não, agia como um importante executor
desse projeto de manutenção das estruturas sociais. Com a crença de que fazia seu papel de
profissional responsável, diariamente transmitia seu conteúdo para os alunos dentro da sala
de aula. Afinal, um eficiente sistema de inculcação de verdades ideológicas já estava a
serviço de uma determinada visão de mundo que, astutamente, difundia (e continua
difundindo) a idéia de que “para ser alguém nesse mundo, é preciso ir estudar”. Assim, o
professor orgulhosamente poderia se atribuir o papel missionário de ser aquele que faz do
ninguém, alguém.
Como já foi falado, muitos professores e outros profissionais da educação vêm
saudando essa realidade. O discurso da culpabilização dos educandos, das famílias, dos
governos, dos sindicatos, dos intelectuais (que produzem teorias mirabolantes), das
universidades que dão uma formação ruim, e de tudo aquilo que não sejam os próprios
professores e profissionais da educação como responsáveis, é reiterado diariamente na
escola.
Grandes pensadores da educação, mais conhecidos dos profissionais da escola, tais
como Piaget, Vygotsky, Paulo Freire, Emillia Ferrero, Freinet e teorias como, por exemplo,
o construtivismo e o sócio-interacionismo, dentre outras, passaram a ser repudiadas por
muitos professores que, de “orelhada” (sem nunca tê-las lido), julgam tais teorias e
pedagogos como alguns dos grandes culpados pelo caos que se encontra a educação e,
também, as suas vidas.
Obviamente que os professores não são os únicos culpados por toda a situação que
está posta no ensino público. Porém, aos professores cabe discutir qual é a sua parcela de
culpa nisso tudo e assumi-la como sendo de sua responsabilidade. Se cada professor ficar
esperando governos priorizarem a escola pública, as universidades formarem educadores
mais perto da realidade, o sindicato conquistar melhores salários, a família educar melhor
seus filhos..., para, só então, começar a agir de maneira diferente, menos agressiva e mais
comprometida com relação aos educandos, então nada mudará.
Diante disso tudo, é para o professor que se sente sozinho, isolado, sem saber para
que lado ir, mas que não desistiu de gostar dos educandos e educandas, que gostaria de
dedicar esse trabalho. Acho que ele pode ajudar a compreender que entre o decorar e o
aprender, e entre o ensinar e o domesticar, existe uma grande distância. Acho que ele pode
ajudar a compreender as matrizes epistemológicas que fundamentam a concepção
124
tradicional e tecnicista de educação. Acima de tudo, acho que ele pode ajudar a
compreender o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire como um pensamento
rigoroso, com uma fundamentação sólida e com uma proposta realizável para a educação.
Na pauta das escolas, a concepção de ensino-aprendizagem a ser assumida deveria
ser um tema de debate obrigatório. Cada professor precisa ter clareza da concepção de
ensino-aprendizagem que está implícita e explícita em sua prática pedagógica. Ao conhecer
essa dimensão de sua prática, o professor estará se municiando para debater, intervir,
participar, propor, resistir...
Nesse sentido, espero ter podido, com esse trabalho, contribuir para que o problema
do ensino-aprendizagem tenha ficado mais claro. E se, por meio dele, foi possível difundir
uma idéia consistente sobre a importância, a relevância e a beleza do pensamento de Paulo
Freire, já me dou por satisfeito.
125
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