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É, antes de mais nada, um riso festivo. Não é, portanto, uma reação individual diante de
um ou outro fato “cômico” isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio
do povo (esse caráter popular, como dissemos, é inerente à própria natureza do
carnaval); todos riem, o riso é “geral”; em segundo lugar, é universal, atinge a todas as
coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro parece
cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo;
por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo
burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente. (...) Uma
qualidade do riso na festa popular é que escarnece dos próprios burladores. O povo não
se exclui do mundo em evolução (op. cit., p. 10).
Esse contagiante riso carnavalesco expandiu-se para a literatura. Com isso as
obras orais e escritas ganharam grande importância no registro do riso e traduziram uma
literatura festiva e recreativa, típica da Idade Média. A partir dos apontamentos de
Bakhtin, Minois assinalou:
a visão cômica popular do mundo traduz-se por obras verbais, elas próprias ligadas aos
regozijos carnavalescos. Literatura de festa, parodística, pela qual as condições sociais
oficiais são zombadas e reviradas e nas quais os ritos mais sagrados são parodiados:
liturgias, preces e sermões bufos, paródias de romances de cavalaria, fábulas e farsas,
peças religiosas com diabruras (Minois, 2003, p. 157).
Para expressar o caráter dinâmico, ambivalente e alegre da realidade, onde não
havia barreiras hierárquicas, nem respeito a regras e tabus, privilegiou-se um
vocabulário rico em insultos e grosserias. Essa nova forma de comunicação produziu
gêneros lingüísticos inéditos, mudanças de sentido e eliminação de formas desusadas.
Foi o que concluiu Bakhtin (1993, p. 15) ao afirmar: “A linguagem familiar converteu-
se, de certa forma, em um reservatório onde se acumularam as expressões verbais
proibidas e eliminadas da comunicação oficial.” Para o autor era como se as palavras
tivessem assimilado a concepção carnavalesca do mundo e tivessem adquirido um tom
cômico geral, apesar de sua heterogeneidade original.
Segundo Bakhtin, a cultura popular na Idade Média tornou-se cômica por
produzir um tipo peculiar de imagens materiais e corporais e ter uma concepção estética
da vida prática bem característica. A essa concepção o autor deu o nome de realismo
grotesco. No realismo grotesco, atribuíam-se significações restritas e modificadas para a
“matéria”, o “corpo” e a “vida material” (comer, beber, necessidades naturais). O centro
das imagens da vida corporal e material eram a fertilidade, o crescimento e a
superabundância, fatores determinantes para garantir o “caráter alegre e festivo das
imagens referentes à vida material e corporal.” O realismo grotesco consistia no
“rebaixamento, isto é, na transferência ao plano material e corporal, o da terra e do
corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato (op.
cit., p. 17).