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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Elias Nascimento
Estudo das estratégias lingüístico-discursivas do risível em Porque Lulu
Bergantim não atravessou o Rubicon de José Cândido de Carvalho
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Elias Nascimento
Estudo das estratégias lingüístico-discursivas do risível em Porque Lulu
Bergantim não atravessou o Rubicon de José Cândido de Carvalho
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial para a
obtenção do título de MESTRE em Língua
Portuguesa, pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, sob a orientação da
Prof
a
. Dra. Ana Rosa Ferreira Dias.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
Agradecimentos
À minha orientadora, professora Ana Rosa Ferreira Dias, pela paciência e carinho, pelas
observações sempre pertinentes e pela orientação segura;
Ao professor Dino Preti pela postura profissional exemplar, pelas aulas esclarecedoras e
por compartilhar experiências de vida;
À professora Maria Lúcia da Cunha Victorio de Oliveira pelas valiosas sugestões dadas
a este trabalho;
Aos professores Maria Thereza de Queiroz Guimarães Strôngoli, Luiz Antonio Ferreira
e João Hilton Sayeg de Siqueira pelas leituras e discussões sempre estimulantes e pelo
apoio e incentivo;
À Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Ensino Superior pela bolsa concedida;
Aos colegas da PUC/SP pelo estímulo e amizade;
A todos que colaboraram no desenvolvimento deste trabalho.
RESUMO
O objetivo desta dissertação é estudar as estratégias lingüístico-discursivas do risível em
Porque Lulu Bergatim não atravessou o Rubicon de José Cândido de Carvalho. A obra
reúne dezenas de contos curiosos sobre o interior do país. Escritas de forma bastante
característica, as narrativas apresentam personagens divertidos envolvidos em situações
insólitas. O estilo do autor é marcado, principalmente, pelo uso do exagero cômico
empregado às ironias e às metáforas. O estudo abrangeu o gênero conto, sua ligação
com o riso e o laconismo inerente a ambos. Compreendeu a manifestação do riso a
partir de um levantamento histórico que considerou os conceitos discutidos pelos
filósofos e teóricos desde a Antiguidade até os dias atuais. Nesse estudo verificou-se
que nos séculos passados o cômico era próprio das classes inferiores, rebaixadas, com
vícios e falhas. A partir do século XX o riso passou a ter valor nas relações sociais. Nas
teorias contemporâneas, o riso existe para corrigir costumes, castigar comportamentos e
punir distraídos, e pode se manifestar de quatro maneiras: nas formas e movimentos, nas
situações, nas palavras e no caráter. O corpus foi dividido segundo estas quatro
categorias. A análise das estratégias lingüístico-discursivas do riso destacou a
exploração polissêmica ocorrida nos contos não pela utilização das metáforas e das
ironias, mas também pelo uso de gírias, de aliterações, de hipérboles, de trocadilhos, de
nomes estranhos e de neologismos.
Palavras-chave: contos, comicidade, riso, estratégias lingüístico-discursivas
ABSTRACT
The objective of this dissertation is the study of the linguistic-discursive strategies of the
laughable in Porque Lulu Bergatim não atravessou o Rubicon of José Cândido de
Carvalho. The author’s work presents dozens of curious stories on the interior of the
country. Written in a very characteristic way, the narratives introduce funny personages
involved in unusual situations. The author's style is marked, mainly, by the use of the
comic exaggeration employed in ironies and metaphors. The present study included the
analysis of stories, their connection with the laughter and the brevity inherent to both. In
the present work the manifestation of the laughter was analyzed considering the
concepts discussed by the philosophers and theoretical from the Antiquity to the current
days. In the study it was verified that in the last centuries the comedian was own of the
inferior classes, lowered, with addictions and faults. Starting from the century XX the
laughter began to have value in the social relationships. In the contemporary theories,
the laughter exists to correct habits, to punish behaviors and to punish distracted, and it
can be expressed in four ways: in the forms and movements, in the situations, in the
words and in the character. The corpus was divided considering these four categories.
The analysis of the linguistic-discursive strategies of the laughter detached the
polissemic exploration happened in the stories not only by the use of the metaphors and
of the ironies, but also by the use of slangs, of alliterations, of hyperboles, of puns, of
strange names and of neologisms.
Key-words: stories, comicality, laughter, linguistic-discursive strategies
Estudado com lupa culos, por todas as
disciplinas, o riso esconde seu mistério.
Alternadamente agressivo, sarcástico, escarnecedor,
amigável, sardônico, angélico, tomando as formas da
ironia, do humor, do burlesco, do grotesco, ele é
multiforme, ambivalente, ambíguo. Pode expressar
tanto a alegria pura quanto o triunfo maldoso, o
orgulho ou a simpatia.
Georges Minois
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
.................................................................................................................................................
9
CAPÍTULO 1 – APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DO CORPUS
...........................................................................................
13
1.1 - José Cândido de Carvalho: o contador de histórias envolvido na História....................................... 13
1.2 - O conto cômico...........................................................................................................................................................................................................................
19
1.3 - Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon.............................................................................................
21
1.4 - Os contos de José Cândido de Carvalho...............................................................................................
22
CAPÍTULO 2 – TEORIAS SOBRE O RISO: DA ANTIGUIDADE AO RENASCIMENTO
.....................
24
2.1 - O riso do ponto de vista do cristianismo........................................................................................... 24
2.2 - Platão e as primeiras especulações sobre o riso.............................................................................. 27
2.3 - O riso segundo Aristóteles.................................................................................................................................................................................................
28
2.4 - Cícero + Tractatus = riso imortalizado...........................................................................................
30
2.5 - A contribuição de Quintiliano.......................................................................................................... 31
2.6 - Bakhtin e o riso medieval.......................................................................................................................
32
CAPÍTULO 3 – TEORIAS SOBRE O RISO: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS..............
35
3.1 - Freud e os chistes..................................................................................................................................................................................................
35
3.2 - Bergson e a comicidade...........................................................................................................................................................................................
40
3.3 - Propp e os tipos de riso.........................................................................................................................................................................................................................
45
3.4 - Uma pincelada do humor de Raskin.......................................................................................................
48
3.5 - A contribuição de Possenti................................................................................................................................
52
3.6 - As considerações de Travaglia................................................................................................................
53
CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DO CORPUS
.................................................................................................
55
4.1 - Do cômico de formas e movimentos................................................................................................... 56
4.1.1 - Aspectos físicos...............................................................................................................................................................................................................................
56
4.2 - Do cômico de situação....................................................................................................................................................................................................
59
4.2.1 - Contradição...............................................................................................................................................................................................................
59
4.2.2 - Violência..................................................................................................................................................................
62
4.3 - Do cômico de palavras....................................................................................................................................................................................................
65
4.3.1 - Gíria.......................................................................................................................................................................................................................................
65
4.3.2 - Metáfora..........................................................................................................................................................................................................
69
4.3.3 - Ironia............................................................................................................................................................................................................................
72
4.3.4 - Neologismo..........................................................................................................................................................................................................................
75
4.3.5 - Nomes estranhos....................................................................................................................................................................................................................................
78
4.3.6 - Trocadilho...................................................................................................................................................................................................................................
80
4.4 - Do cômico de caráter.............................................................................................................................
82
4.4.1 - Alogismos.................................................................................................................................................................................................................
82
CONSIDERAÇÕES FINAIS
......................................................................................................................
85
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
......................................................................................................
87
ANEXOS
89
9
INTRODUÇÃO
Quando do nosso primeiro contato com a obra de José Cândido de Carvalho,
Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, percebemos, ainda que
superficialmente, elementos lingüísticos capazes de provocar o riso. Logo nas primeiras
páginas, as narrativas denunciavam uma forma espirituosa e bastante característica de
escrever. A comicidade surgia ora pelo absurdo, ora pelo exagero, ora pelo inesperado.
Nosso interesse pelo riso, aliado ao desejo de entender as sutilezas de sua manifestação
nos contos de José Cândido, foi determinante para fixarmos o objetivo deste trabalho no
estudo das estratégias lingüístico-discursivas do risível que o autor lançou mão ao
escrever suas histórias.
A obra é composta por 151 relatos breves que o autor denomina como
“contados, astuciados, sucedidos e acontecidos do povinho do Brasil”. Assim, nosso
ponto de partida foi estudar o gênero conto. Constatamos que, historicamente, esse
gênero passou a dominar a literatura do começo do século XVIII, em substituição à
grande narrativa. Relatos breves tendem a ser cômicos pelo fato do riso ser
incompatível com a prolixidade. Quanto mais breve a narrativa, melhor a relação conto-
riso. Segundo Propp (1992, p. 192), “um dos erros mais comuns cometidos pelos
autores de peças humorísticas está justamente na extensão de suas obras.”
Para melhor circunstanciar a obra e o contexto na qual se insere, no capítulo 1
fizemos um levantamento sobre a vida e sobre as obras de José Cândido de Carvalho.
Percebemos que o bom humor e o riso presentes nos contos, também se faziam
presentes no seu estilo de vida. Sua trajetória como jornalista, contista e romancista,
permitiu-lhe escrever de forma leve e despretensiosa e ao mesmo tempo rica em
estratégias lingüístico-discursivas do riso.
Uma vez conhecidos o autor e os contos, precisávamos ampliar nosso
conhecimento sobre o riso. Estabelecemos como meta investigar qual a sua origem, seus
efeitos na história da humanidade. Nesse sentido, o capítulo 2 compreendeu um
levantamento das teorias do riso, da Antiguidade a o Renascimento. Para tanto, as
pesquisas de Bakhtin (1965)
1
, Attardo (1994), Alberti (1999), Minois (2003), foram
imprescindíveis. Cada qual, a sua maneira, forneceu dados valiosos sobre a história do
1
Julgamos importante destacar a data da primeira publicação, muito embora tenhamos nos servido da
edição brasileira de 1993, conforme indicam as referências bibliográficas no final do trabalho.
10
riso. Embora com informações muito próximas, até porque muitas vezes a fonte era a
mesma, pudemos enriquecer nossas considerações com comparações entre os autores.
Começamos pela gênese, pela criação do homem. No início, do ponto de vista
do cristianismo, tudo era belo e perfeito e não havia espaço para o riso até a ocorrência
do pecado original. A partir daí, o riso surge como algo negativo, ligado à imperfeição,
à corrupção e à decadência humanas. O Antigo Testamento contém diversos registros de
sua manifestação. Apuramos que, por séculos, o cristianismo rejeitou o riso por não
haver no Novo Testamento menção alguma ao fato de Jesus ter rido. Por outro lado, os
cristãos de hoje, por viverem em uma era humorística, esforçam-se para dar a Jesus
características do bom humor e do riso, como as metáforas e as ironias (Cf. Minois,
2003).
O capítulo 2 considera ainda os conceitos dos filósofos gregos. Platão não tem
um estudo específico sobre o riso, mas quando discute o bem e a sua relação com os
prazeres, condena o riso por ser uma afecção mista. Atribui ao cômico valor negativo
por sua relação com o elemento inferior da alma humana.
De Platão, partimos para Aristóteles, que também classificava a comédia como
gênero literário inferior à tragédia. Para nossa pesquisa em especial, a contribuição
significativa de Aristóteles está na divisão do objeto do riso em “cômico de ação” e
“cômico de palavras”. Essa divisão e as especificidades do riso que cada filósofo lhe
atribuiu, nortearam a análise que fizemos do nosso corpus, uma vez que percebemos a
recorrência, na obra analisada, do cômico de ação e do cômico de palavras.
Todos os filósofos estudados, e mesmo os autores contemporâneos, fazem
menção direta ou indiretamente a essa divisão aristotélica, ainda que com certa variação.
Foi o que ocorreu com o filósofo Cícero que, para escrever sua teoria, tomou por base
um manuscrito, conhecido por Tractatus Coislinianus, que alguns creditam a autoria a
Aristóteles. E, por conseguinte, com Quintiliano, cujos conceitos são uma extensão da
teoria decero. Ambos discutem e detalham os efeitos do riso, mas não alteram a base
de ocorrência do cômico, a saber: ações e palavras.
Encerramos o capítulo 2 no Renascimento, época em que viveu François
Rabelais, quando o riso mostra sua face mais contestadora, mais libertadora. Cria-se
uma visão cômica do mundo, que se manifesta por meio das festas populares. A
principal manifestação dessas festas é o carnaval. O carnaval cria um mundo paralelo,
em que o riso se torna um bem coletivo do povo. O riso é universal por atingir todas as
11
coisas e pessoas e ambivalente por ser ao mesmo tempo alegre e zombeteiro. Durante o
Renascimento, as obras cômicas verbais apresentavam um novo vocabulário, no qual
pragas e grosserias desempenhavam um papel importante. O riso causado pela
comicidade de palavras tem base no vocabulário grosseiro assim como à comicidade de
ação soma-se o cômico de formas e movimentos decorrente das muitas imitações e
transformações pelas quais passavam os foliões.
Neste ponto de nossa pesquisa tínhamos uma idéia geral para a análise do nosso
corpus. Suspeitávamos que explorar a comicidade de situação e de palavras, muito
recorrente na obra de José Cândido de Carvalho, poderia ser o caminho. Partimos para a
pesquisa das teorias contemporâneas do riso para confirmar nossas suspeitas.
Começamos o capítulo 3 abordando o conceito de chistes, proposto por Freud
(1905)
2
. Consideramos importante a constatação de que os chistes se dividem em
chistes de palavras e pensamentos. E não menos importante as características
específicas próprias de cada um. De Freud destacamos ainda a economia de energia
psíquica inerente às definições de chiste, cômico e humor.
Depois abordamos os conceitos de Bérgson (1900)
3
. Sua teoria é considerada
uma referência no estudo contemporâneo do riso. Bérgson dá ao riso um enfoque
diferenciado nas relações sociais, pois o considera como uma forma de punição para
aquele que se desvia das normas impostas pela sociedade. A distração especial dos
homens e dos acontecimentos deve ser reprimida e corrigida para o aperfeiçoamento
social. Fundamenta sua teoria do riso como gesto social ao destacar três tipos de
comicidade: das formas e movimentos, de situação e palavras, e de caráter. Suas
definições vieram confirmar a linha de análise que aplicamos ao nosso corpus.
Partimos para Propp (1946)
4
. O teórico russo, embora não a mesma
nomenclatura, também estuda os três aspectos da comicidade. Ao explorar a comicidade
de formas e movimentos, o autor analisa o riso causado pelo cômico da semelhança e
pelo cômico da diferença. O cômico nos movimentos é enfatizado nas ponderações
2
Novamente julgamos importante destacar a data da primeira publicação, embora tenhamos adotado para
a nossa pesquisa a edição brasileira de 1996, conforme indicam as referências bibliográficas no final do
trabalho.
3
Também aqui, em respeito à cronologia, anotamos a data da primeira publicação. Para a consecução
desta dissertação foi usada uma publicação brasileira de 2001, cujas especificações aparecem nas
referências bibliográficas finais.
4
O procedimento anterior foi reiterado: fizemos questão de registrar a data da primeira publicação. As
referências bibliográficas da edição brasileira de 1992 que nos serviu de apoio encontram-se no final
deste trabalho.
12
sobre o riso relacionado à natureza física do homem, ao exagero cômico, no ato de fazer
alguém de bobo, no malogro da vontade. Sobre a comicidade de situação e palavras a
discussão concentra-se nas estratégias lingüísticas responsáveis pela manifestação da
mentira e da paródia. A comicidade de caráter considera o riso provocado pelos
caracteres cômicos, pelo alogismo e pela estultice. Porém, a teoria de Propp destaca-se,
principalmente, pela classificação de tipos de riso como o riso de zombaria, o riso bom,
o riso alegre, o riso maldoso, o riso cínico, o riso ritual e o riso imoderado.
Depois nossos levantamentos do riso contemplaram a teoria lingüística de
Raskin (1985). Considerada abrangente e atual, sua teoria é baseada em scripts. O autor
propõe uma fórmula para a produção do humor e estabelece uma oscilação na
comunicação bona-fide(séria) e non-bona-fide(não séria) como fundamento para o jogo
verbal responsável pela produção do humor.
As considerações de Possenti (1998), segundo as quais as teorias lingüísticas do
riso devem importar-se mais em apreender como o humor é produzido verbalmente do
que os seus efeitos, foram importantes para determinar o enfoque que daríamos à nossa
análise. O autor discorre sobre possibilidades lingüísticas de compreensão do riso e, por
meio de exemplos, ressalta conceitos que os lingüistas devem considerar em seus
estudos.
Por fim, nossa pesquisa sobre as teorias contemporâneas do riso considerou as
reflexões de Travaglia (1990). Embora o riso seja considerado a partir da análise de
programas humorísticos televisivos, as ponderações do autor voltaram-se para o humor
como forma de liberação, crítica e denúncia. Essas características contestadoras do
humor manifestam-se por meio de scripts e mecanismos de produção do riso muito
presentes em nosso corpus.
Como a obra de José Cândido de Carvalho reúne 151 contos, e notamos que em
muitos a estratégia de riso é recorrente, separamos os contos analisados em quatro
grandes categorias, a saber: cômico de formas e movimentos, cômico de situação,
cômico de palavras, e cômico de caráter. A análise das estratégias lingüístico-
discursivas do riso destacou a exploração polissêmica ocorrida nos contos pela
utilização das metáforas, gírias, aliterações, ironias, hipérboles e neologismos. Os
resultados obtidos com a pesquisa apontam para um riso emblemático, revelador do
homem, sua língua e sua história.
13
CAPÍTULO 1
APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DO CORPUS
A biografia e as obras de José Cândido de Carvalho contêm um riso latente que
se revela à medida que ampliamos o contato com a sua história. A apresentação dos
acontecimentos de sua vida torna-se importante para compreender a opção que fizemos
por sua obra. Para fazer este relato, apoiamo-nos em informações encontradas no site
oficial da Academia Brasileira de Letras, da qual o escritor foi membro. Também no
livro José Cândido de Carvalho, organizado pela escritora Maria Aparecida Bacega
(1983), que reúne depoimento biográfico, cronologia, obras, textos e um panorama da
época, além de características do autor.
O fato de José Cândido de Carvalho ter tido uma significativa experiência como
jornalista, aliado à sua formação acadêmica em Direito e ao seu trabalho em órgãos
públicos, revelou-nos um homem inteirado com o seu tempo. Por isso, não nos
limitamos à simples narração de sua biografia. Consideramos que uma pequena
contextualização, em que se destacassem os principais acontecimentos históricos que
permearam a sua vida, poderia aproximar-nos mais do autor, de sua época e de sua obra.
As citações, no corpo dos parágrafos, foram retiradas de um depoimento que
José Cândido concedeu a Bacega (1983, p. 3-10) em julho de 1982, e as citações em
destaque foram escritas pelo próprio autor em setembro de 1970 e constam do prefácio
da obra que analisamos. Embora algumas vezes José Cândido aborde o mesmo assunto
nas entrevistas, seus pontos de vista são enriquecidos pela lembrança de detalhes novos.
Por isso, nos casos em que quisemos realçar determinada fase da vida do autor,
transcrevemos suas duas formas de enxergar a própria vida.
1.1 – José Cândido de Carvalho – o contador de histórias envolvido na História
O início do século XX no Brasil é marcado pela chegada dos imigrantes, pelo
florescimento do café e pelo desenvolvimento, ainda embrionário, da indústria. O
advento da eletricidade e a revolução tecnológica contribuem para que a população
cresça e urbanize-se. No mundo, a arquitetura ganha novas concepções de organização
do espaço e da forma e nas artes plásticas, novos movimentos renegam a arte de
“antigamente” (Cf. Bacega, 1983, p. 97).
14
Estamos em 1914. Nasce, no dia 05 de agosto, na cidade Campos dos
Goitacazes, Rio de Janeiro, José Cândido de Carvalho. “Nasci porque sou muito
curioso. Arrebentou a Grande Guerra no dia 4 de agosto e eu, 24 horas depois, quis ver
como era ela e nasci.” O menino cresceu, transformou-se em um jornalista, contista e
romancista. Na Academia Brasileira de Letras foi o quinto ocupante da cadeira 31,
eleito em 23 de maio de 1974, na sucessão de Cassiano Ricardo e recebido pelo
acadêmico Herberto Sales em 1º de outubro de 1974.
5
Faleceu em Niterói, Rio de
Janeiro, no dia 1º. de agosto de 1989:
A bem dizer, fui inaugurado em 1914, vinte e quatro horas depois de rebentar a Primeira
Grande Guerra. Era agosto e chovia em Campos dos Goitacazes. Comecei com jeito de
grandeza. Meu ideal era ser usineiro, viver no último andar de trezentos mil sacos de
açúcar. Como isso não foi possível, tratei de realizar o subideal que era ser funcionário
da Leopoldina.
A década de 1920 foi de transformações na política e nas artes no Brasil.
Aconteceram a Revolução dos 18 do Forte e a Revolta dos Tenentes, formou-se a
Coluna Prestes, fundou-se o Partido Comunista. Idéias anarquistas trazidas por italianos
e espanhóis ganharam grande número de adeptos (cf. op. cit., p. 98). Em 1922, aos oito
anos, por doença do pai, José Cândido de Carvalho foi morar por algum tempo no Rio
de Janeiro e trabalhou como estafeta na Exposição Internacional de 1922. Quando
retornou à cidade de Campos, continuou a estudar em escolas públicas. Porém, nas
férias trabalhava como ajudante de farmacêutico, cobrador de uma firma de aguardente
e trabalhador de uma refinaria de açúcar.
Embora tenha guardado boas lembranças dessa época, considera que sua
infância foi como a de qualquer outra criança, de qualquer menino sem poder aquisitivo.
“Campos, no Estado do Rio, naquela ocasião era uma cidade muito rural. (...) E era uma
cidade de encantos mis[sic]: havia lobisomens nas casas, havia flores nos jardins e
flores também encantadas, flores maravilhosas. Enfim, uma infância como outra
qualquer”.
Filho de lavradores de Trás-os-Montes, norte de Portugal, seu pai, um pequeno
comerciante, Bonifácio de Carvalho e sua mãe, Maria Cândido de Carvalho, fixaram-se
em Campos dos Goitacazes. Como seus pais eram pobres, sempre cursou escolas
públicas e de muitas delas foi expulso por ser irrequieto. Lembro-me que, numa delas,
a professora chamou minha mãe e disse: ‘Esse menino é muito burro, isso não pode,
5
Fonte: http://www.academia.org.br/, consultado em 09.10.07
15
esse menino é burro demais. Em concurso de burro ele ganha de qualquer um’”
(Bacega, 1983, p. 3). Somente quando seu pai melhorou um pouco de vida é que ele se
desligou da escola e passou a ter aulas particulares. “Terminei o meu curso primário e
fui para o Liceu de Humanidades de Campos, onde não cheguei a fazer o curso todo.
Fui completar o curso no Rio de Janeiro.” Ainda assim, sempre trabalhou. Primeiro em
uma refinaria de açúcar e em uma torrefação de café. Depois como gerente de uma
refinaria de açúcar, montada pelo pai, à beira do Paraíba, em Campos.
Sempre tive admiração toda especial por chefes de estação, espécie de donos de trem.
Como esse subideal também não veio, tratei de escrever para os jornais da minha terra.
Em 1930 Getúlio Vargas e a Aliança Liberal tomam o poder. O novo presidente
adota medidas de interesse social, outorgando as primeiras leis trabalhistas. Tem início
a segunda geração de modernistas, da qual fazem parte Carlos Drummond de Andrade,
Graciliano Ramos, Murilo Mendes, José Américo e José Cândido de Carvalho. Por ter
herdado o gosto pela liberdade de criação e de expressão, essa é uma geração que
enfrentaria problemas com o Estado Novo, seu Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP) e sua polícia secreta (Cf. Bacega, 1983, p. 99).
Com a iminência da Revolução de 1930, José Cândido trocou o comércio pelo
jornal. Começou a atividade de jornalista na revisão de O Liberal. Entre 1930 e 1939,
exerceu funções de redator e colaborador em diversos periódicos de Campos, como a
Folha do Comércio, que se honrava de ter um dos jornalistas mais promissores de sua
geração, Raimundo Magalhães Júnior. Também em O Dia passou a comentar a política
internacional e ainda colaborava com a Gazeta do Povo e o Monitor Campista.
Uma tarde, em plena década de 1930, entrava este José para a redação da Folha do
Comércio por uma porta e Raimundo Magalhães nior saía por outra. Eu para escrever
notinhas de aniversários e casamentos de comerciantes locais e Magalhães Júnior para
iniciar sua prodigiosa carreira de grande jornalista e grande escritor.
José Cândido de Carvalho era admirador de Rachel de Queiroz e de José Lins do
Rego e deixou-se influenciar por este último quando começou a escrever, em 1936, o
romance Olha para o céu, Frederico!. Em 1939, ano do início da segunda guerra
mundial, a editora Vecchi publicou a obra na coleção Novos Autores Brasileiros. “Tive
algum êxito com Olha para o céu, Frederico!. O Mário de Andrade achou um excelente
livro. O meu querido amigo Alceu Amoroso Lima também fez referências elogiosas.
16
Mas vim a escrever um novo livro 25 anos depois. Porque realmente sou muito
preguiçoso”(Bacega, 1983, p. 5).
Foi em 1937, ano da implantação do Estado Novo e da dissolução do Congresso
por Getúlio Vargas, que José Cândido de Carvalho conquistou o diploma de bacharel
em Direito, pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. “Fiz Direito porque meu pai
achava muito bom. Ele nem queria o diploma, queria a beca. Principalmente o retrato,
que tinha muita importância: “Meu filho é doutor!”. E realmente fui doutor durante
algum tempo em Campos, na minha terra” (op.cit., p. 4).
De jornal em jornal realizei o sonho de todo o pai brasileiro do começo do século: ver o
filho bacharel, fotografado de beca e de óculos. E bacharel saí na fornada de 1937,
depois de passar, como o diabo pela cruz, através de lombadas de livros de alto saber
jurídico. E uma ocasião, com a sacola soltando leis e parágrafos pelo ladrão, fui extrair
da unha de subdelegado um pobre-diabo qualquer. Foi quando constatei, para
desencanto do meu canudo de bacharel, que mais vale ter a chave da cadeia do que ser
Rui Barbosa.
Mudou-se para o Rio e passou a viver no bairro de Santa Teresa, entrando para a
redação de A Noite, um jornal de quatro edições diárias. Também trabalhou, embora por
pouco tempo, como redator no Departamento Nacional do Café. Em 1942, a convite de
Amaral Peixoto, então interventor no Estado do Rio, passou a dirigir O Estado, um dos
grandes diários fluminenses, em Niterói, cidade para a qual se mudou. Com o
desaparecimento de A Noite, em 1957, foi chefiar o copidesque de O Cruzeiro e dirigir,
substituindo Odylo Costa Filho, a edição internacional dessa importante revista.
“Sempre fiz jornalismo. Trabalhei em vários jornais do Brasil, grandes jornais inclusive.
Trabalhei em A Noite. (...) Depois fui trabalhar na revista O Cruzeiro, onde cheguei a
ser chefe do copidesque. Também dirigi O Cruzeiro Internacional. Jornalismo é o que
gosto de fazer. Faço com um pé nas costas” (op.cit., p. 5).
Aborrecido, dei de mão numa resma de papel e escrevi meu primeiro romance, Olha
para o céu, Frederico! Uns elogiaram, outros malharam. Embrulhado em suas páginas
arrumei, no Rio de Janeiro, o cargo de redator da velha e saudosa A Noite. E em seu
manso seio fiquei até que o governo, a poder de bofetões, fechou o jornal em 1957. Dos
cacos de A Noite pulei para os Diários Associados. Nesse meio-tempo, entre uma coisa
e outra, caí no serviço público, com escrivaninha no Ministério da Indústria e do
Comércio, onde procuro tirar o país da beira do abismo a poder de relatórios que
ninguém lê.
José Cândido de Carvalho, segundo o que ele mesmo dizia, não gostava de
escrever. escrevia para suprir uma necessidade de dinheiro ou interior. Foi por isso
que somente 25 anos depois de ter publicado o primeiro romance, voltou a publicar, em
17
1964, pela Empresa Editora de O Cruzeiro, o romance O coronel e o lobisomem.
Considerado uma das obras-primas da ficção brasileira, teve imediatamente grande
sucesso. Atingiu em 1996 sua 41ª. edição. Foi publicado também em Portugal e
traduzido para o francês e para o espanhol. Recebeu o Prêmio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro, o Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, e o
Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, do PEN Clube do Brasil. “Eu escrevo e reescrevo.
Quando escrevo uma gina, fico muito contente. Publiquei um romance em 1939 e
parei. Em 1964 publiquei outro, O Coronel e o lobisomem. (...) Vinte anos de espaço
entre um e outro”:
Quanto à ficção, é mato brabo no qual rarissimamente circulo, temente que sou de
mordida de cobra e de dente de lobisomem. Vejam que não exagero. Publiquei o
primeiro livro em 1939 e o segundo precisamente vinte e cinco anos depois. Entre Olha
para o céu, Frederico! e O coronel e o lobisomem o mundo mudou de roupa e de
penteado. Apareceu o imposto de renda, apareceu Adolf Hitler e o enfarte apareceu.
Veio a bomba atômica, veio o transplante. E a Lua deixou de ser dos namorados.
Sobrevivi a todas essas catástrofes.
Nos 25 anos que José Cândido ficou sem escrever realmente “o mundo mudou
de roupa e de penteado”. Como jornalista, ele certamente acompanhou o panorama
histórico da época e vivenciou os seguintes fatos: Em 1945 chega ao fim a segunda
guerra mundial. Tem início a terceira geração modernistas, encabeçada por Guimarães
Rosa. Em 1950, Getúlio Vargas reassume o poder por meio do voto direto e secreto. Em
1954, dois fatos marcam a história do Brasil: a criação da Petrobrás e o suicídio de
Getúlio. Em 1956 toma posse Juscelino Kubitschek e “propõe um desenvolvimentismo
desenfreado. As grandes multinacionais se instalam no país. Brasília é construída a
toque de caixa” (op.cit., p. 100). “O Brasil será um grande país quando funcionar
democraticamente ao jeito de Juscelino Kubitschek. Ai sim, ele vai pra frente.”
No mundo, a década de 1960 é marcada pela adesão ao movimento hippie. O
rock o tom. Os tabus de comportamento são rompidos. A televisão domina os meios
de comunicação. “É a década do questionamento, das drogas, da esperança e da certeza
de mudar, há revolta contra a guerra e a exploração” (op.cit., p. 100).
No Brasil, em 1961, ocorre a renúncia de Jânio Quadros e toma posse João
Goulart (Jango). Em 1964, ano de lançamento do romance O coronel e o lobisomem,
ocorreu o golpe militar que depôs João Goulart e submeteu o Brasil a uma ditadura
militar que durou até 1985, quando, indiretamente, foi eleito o primeiro presidente civil
desde o golpe de 1964, Tancredo Neves. “O Brasil está empobrecendo politicamente.
Houve dois golpes fatais para a evolução política do Brasil: o Estado Novo de Getúlio
18
Vargas e esse golpe de 1964, apesar de tomarem parte nele grandes figuras, com o
maior espírito público, querendo salvar o Brasil. Mas não salvaram o Brasil. Eles
estavam errados” (op.cit., p. 6-7).
José Cândido de Carvalho, em 1970, é nomeado diretor da Rádio Roquette-
Pinto, onde se manteve por quatro anos. Em 1971, publicou seu primeiro livro de
contos, Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, objeto de nossos estudos e
sobre o qual faremos uma abordagem especifica. Em 1972, o autor publicou seu
segundo livro de contos, Um ninho de mafagafos cheio de mafagafinhos. Os dois livros
de contos se assemelham por tratar de “contados, astuciados, sucedidos e acontecidos
do povinho do Brasil”, nas palavras do próprio autor. Ainda em 1972 publicou Ninguém
mata o Arco-Íris, livro de entrevistas em que demonstra toda sua experiência de
jornalista. “São entrevistas que fiz e, modéstia à parte, com certa originalidade. Eu
interpreto as figuras” (op.cit., p. 5).
Em 1974 assumiu a direção do Serviço de Radiodifusão Educativa do Ministério
de Educação e Cultura. Como já havíamos apontado, foi eleito imortal por aclamação da
Academia Brasileira de Letras. Ainda em 1974 publicou Manequinho e o Anjo de
Procissão. O livro é uma seleção de contos publicados e se destina ao Mobral. Em
1975, foi eleito presidente do Conselho Estadual de Cultura do Estado do Rio de
Janeiro. “Escritores ou não, poetas ou não, os jovens devem trabalhar a língua
portuguesa, que é uma ngua muito bonita. Devem dar novos elementos a ela. Escrever
muito para poder pelo menos fazer uma carta de amor bonita, que não seja uma carta
comercial: respeitosamente, vossa senhoria” (op.cit., p. 7).
De 1976 a 1981, foi presidente da Fundação Nacional de Arte (Funarte),
atendendo a um convite do ministro Nei Braga, a quem admirava por sua atuação
política. De 1982 a 1983 foi presidente do Instituto Municipal de Cultura do Rio de
Janeiro (Rioarte). Eu descreio da nova geração como dos escritores, porque não se
ensina mais a língua portuguesa como deveria ser ensinada. A linguagem da mocidade
hoje é muito pequena: fala-se mais por gestos” (op.cit., p. 7). Estava escrevendo um
novo romance, O rei Baltazar, que ficou inacabado:
E agora, não tendo mais o que inventar, inventaram a tal da poluição, que é doença
própria de máquinas e parafusos. Que mata os verdes da terra e o azul do céu. Esse
tempo não foi feito para mim. Um dia não vai haver mais azul, não vai haver mais
pássaros e rosas. Vão trocar o sabiá pelo computador. Estou certo que esse monstro,
feito de mil astúcias e mil ferrinhos, não leva em consideração o canto do galo nem o
brotar das madrugadas. Um mundo assim, primo, não está mais por conta de Deus.
está agindo por conta própria.
19
José Cândido de Carvalho faleceu no dia 1º. de agosto de 1989. Suas obras
constituem importante legado para a literatura brasileira. Ao estudar sua biografia,
tivemos a sensação de que, assim como narrou, viveu os acontecimentos de sua vida de
forma simples e envolvente. O modo bem humorado de encarar os fatos parece ter
contagiado sua forma de escrever. Por isso, o riso é facilmente constatado em seus
contos. Essa percepção foi determinante para optarmos pela obra Porque Lulu
Bergantim não atravessou o Rubicon como corpus de nossa pesquisa.
1.2 – O conto cômico
Em sua obra, Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon, José Cândido
de Carvalho narrou dezenas de pequenas histórias. Essas pequenas histórias respeitam
um código narrativo: limitação de número de personagens, caracterização vaga e
estereotipada, redução e imprecisão das referências espaciais e temporais, bem como a
simplificação da ação
6
. Esse é o código narrativo do gênero conto. Entendamos, pois,
como aspectos do conto se inter-relacionam com aspectos do cômico para provocar o
riso.
Uma das principais características do conto é a sua brevidade narrativa. Na ação
cômica essa brevidade torna-se ainda mais necessária, porque o riso não é compatível
com a prolixidade. Para quem ri, o riso surge de repente, embora possa ser preparado de
algum modo. Por isso, para atingir seu objetivo o conto cômico deve ter uma narrativa
linear, evitar análises e complicações do enredo e não se aprofundar no estudo
psicológico das personagens nem nas motivações de suas ações.
Inicialmente o conto tratava de histórias narradas oralmente pelos povos
primitivos ao redor de fogueiras.
Começou por ser um relato simples e despretensioso
de situações imaginárias, destinado a ocupar os momentos de lazer. Dada a sua origem
popular, não há um autor determinado para o gênero conto. Constitui-se em uma criação
coletiva, o que mantém a atualidade do aforisma “quem conta um conto, aumenta um
ponto”.
Com o advento da escrita, o conto liberou a imaginação criadora do contador,
que não se submetia mais à censura implícita dos ouvintes. Por outro lado a narração
oral e o código lingüístico que variavam de contador para contador e enriqueciam a
narração, eram irreproduzíveis na escrita. Interessante notar que, embora os contos
6
Fonte: http://pwp.netcabo.pt/0511134301/conto.htm, consultado em 09.10.07
20
populares, com que hoje nos defrontamos, sejam diferentes daqueles que, durante
séculos, foram transmitidos
oralmente de geração em geração, neles uma censura
latente. É ela que nos faz compreender a permanência de determinados valores sociais,
independentemente do tempo e do espaço.
Tratando ainda sobre a origem do conto, temos os registros de Jolles (1976).
Segundo o autor, o gênero conto surgiu na Europa no começo do culo XVIII para
“substituir, por um lado, a grande narrativa do século XVII, o romance, e, por outro
lado, tudo o que ainda restava da novela toscana”(op.cit., p. 191). Um dos principais
autores de contos daquela época foi Wieland e foi justamente esse autor que descreveu
o conto como “uma forma de arte em que se reúnem e podem ser satisfeitas em
conjunto duas tendências opostas da natureza humana, que são a tendência para o
maravilhoso e o amor ao verdadeiro e ao natural” (op.cit., p. 191).
Para a comicidade, a concisão, a precisão, a densidade, a unidade de efeito
próprias do conto são imprescindíveis para suscitar o riso. É nesse sentido que Propp
(1992, p. 192) faz referência a uma frase de Tchékhov um mestre do conto
humorístico breve que afirma: “A força do conto humorístico está, por sinal, em seu
laconismo. Ele deve ser comprimido, como a mola de gatilho [...] A verbosidade é o
mal de nossa literatura humorística.”
A tensão, o ritmo e o imprevisto são características necessárias na criação do
conto. Mas é na reviravolta final que o conto surpreende o leitor. Ferraz (2007, p. 38)
reforça essa idéia, quando declara: “O miniconto, como qualquer ficção curta, tem de
pegar o leitor de cara, com recursos expressivos capazes de interessá-lo a seguir o
desenvolvimento da história até chegar a uma reviravolta que provocará a surpresa e
que geralmente é o objetivo do escritor.”
Às características necessárias para a crião do conto, podem-se acrescentar
estratégias do risível para torná-lo um conto cômico. É o que teremos oportunidade de
constatar ao analisarmos os contos de nosso corpus. De antemão, asseguramos que o
discurso de José Cândido de Carvalho, em seus contos, foi simples e natural. Em suas
narrativas, ele foi espirituoso e levou-nos ao sorriso de forma contida, sem apressar-se,
desde as primeiras linhas, para obter o efeito cômico (cf. Propp, 1992, p.203).
21
1.3 – Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon
O conto que origem ao título do livro narra a história de Lulu Bergantim que,
embora não tenha atravessado o Rubicon, fugiu do hospício e elegeu-se prefeito. O
melhor prefeito visto em Curralzinho Novo, com direito a estátua no melhor pedestal
da praça das Acácias. Fatos históricos e relevantes relacionados ao título do conto
merecem explicação.
A palavra Bergantim, por exemplo, diz respeito a uma antiga embarcação
movida a velas e a remos. Em 1780, por ordem de D. Maria I foi construída a mais bela
e imponente galeota real: o bergantim real ou galeota de D. Maria I. A sua construção
destinou-se a servir os esponsais do príncipe D. João (futuro rei D. João VI) com a
infanta espanhola D. Carlota Joaquina e, ainda, do infante D. Gabriel, de Espanha, com
a infanta D. Maria Ana Vitória, ambos celebrados em 1784
7
. No conto 151 (p.164-6) a
expressão “Lulu foi embora embarcado em nunca mais”, utilizada na recondução de
Lulu ao hospício, é responsável pelo jogo de palavras envolvendo o significado de
Bergantim e o particípio do verbo embarcar.
Ao conjunto de palavras que podem se relacionar com Bergantim, pode-se
incluir o fato de Lulu não ter atravessado o Rubicon. Isso porque Rubicon é o antigo
nome latino de um riacho no norte da Península Itálica. Na época romana, corria para o
Mar Adriático entre Ariminum (atual Rimini) e Caesena. O rio ficou conhecido pelo fato
do direito romano proibir, no período da República, qualquer general de atravessá-lo
acompanhado de suas tropas. Tal medida visava a impedir que os generais
manobrassem grandes contigentes de tropas no núcleo do Império Romano, evitando
riscos à estabilidade do poder central. O curso d´água marcava então a divisa entre a
província da Gália Cisalpina e o norte do território da cidade de Roma (posteriormente,
a província da Itália)
8
.
Júlio César atravessou o Rubicão, em 49 a.C., em perseguição a Pompeu, violou
a lei e tornou inevitável o conflito armado. Sobre o exato momento da travessia de Julio
César, Martins (1952) constatou:
Quando, alta noite, chegou ao Rubicão teve um momento de hesitação, como quem vai
cometer um crime. Passaram-lhe visões infernais pelo cérebro. Na noite anterior
sonhara que violava sua mãe. As sombras povoavam-se de génios [sic], o silêncio
murmurava... Teve ânsias, julgou que lhe vinha um ataque... mas, por um esforço de
vontade racional, dominando os últimos escrúpulos, mandou o cocheiro bater, e passou
o ribeiro dizendo consigo – Alea jacta est! (Martins, 1952, p. 172).
7
http://museu.marinha.pt/NR/exeres/95FA5C8C-959A-4C17-9FA4-EFB7836CFF48.htm, consultado em
12.02.08
8
http://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Rubic%C3%A3o, consultado em 12.02.08
22
Em função da frase alea jacta est ou a sorte está lançada, a expressão
"atravessar o Rubicon" passou a ser usada para referir-se a qualquer pessoa que tome
uma decisão arriscada de maneira irrevogável, sem volta. Note-se que Lulu Bergantim
não atravessou o Rubicon. Com isso pode-se concluir que, embora fugido do hospício,
tomou decisões acertadas como prefeito da cidade de Curralzinho Novo.
Lulu explicou “por que não atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu,
expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu”. A queda
da Bastilha ocorreu no dia 14 de julho de 1789 e marcou o início do movimento
revolucionário pelo qual a burguesia francesa, consciente de seu papel preponderante na
vida econômica, tirou do poder a aristocracia e a monarquia absolutista
9
. A Bastilha
uma fortaleza-prisão construída por Carlos V, entre 1369 e 1382, com oito torres,
muralhas de 25 metros de altura cercadas por fossos era o símbolo do despotismo
parisiense. Lulu Bergantim pode ser entendido como um tirano que rechaçou com dois
socos a Tomada da Bastilha e que não exercia seu poder de forma arbitrária e
absoluta por ter prováveis problemas mentais, fugido do hospício que era. Ainda assim,
frases exclamativas como: “- Já falaram, comeram biscoitinhos de araruta e licor de
jenipapo. Agora é hora de trabalhar!” ou “- Ou vai ou racha!” e também “- Agora a
gente vai fazer serviço de tatu!” apresentam o lado imperativo de Lulu.
1.4 – Os contos de José Cândido de Carvalho
A obra de José Cândido de Carvalho, Porque Lulu Bergantim não atravessou o
Rubicon: contados, astuciados, sucedidos e acontecidos do povinho do Brasil, reúne 151
contos, separados em três grupos temáticos: "Os elefantes do tempo", "Corretores do
Juízo Final" e "Todo boticão tem sua dor de dente". Muitos contos foram originalmente
publicados em O Jornal, onde o escritor assinava a seção Diário de JCC.
O escritor Gilberto Amado, em texto publicado no jornal Última Hora, em
8/7/1969, sobre o futuro lançamento do livro Porque Lulu Bergantim não atravessou o
Rubicon, que localizamos no prefácio da obra (2003, p. 9-10), reconheceu e elogiou a
capacidade criativa, a verbalização e o conhecimento de José Cândido:
Quem me faz rir todas as manhãs, com riso grosso que deve fazer bem à saúde é José
Cândido de Carvalho com sua verbalização abstrusa na apresentação de figuras do
sertão num tom de extrema comicidade, um mundo estrambótico, brigas, festanças,
pequenas farsas, tudo isso não raro obras-primas do gênero. O primeiro requisito do
burlesco o absurdo, a surpresa espontaneamente espoucando inesperados revela no
autor conhecimento do seu mister, capacidade de prever e de medir o alcance de seus
achados e desígnios.
9
http://www.unificado.com.br/calendario/07/bastilha.htm, consultado em 12.02.08
23
Lançado originalmente em 1971, o livro apresenta um importante painel de tipos
brasileiros. Os contos reunidos traçam uma imagem do interior do país diferente
daquela marcada pela falta de esperança e pela miséria. José Cândido de Carvalho, com
sua linguagem simples e, segundo ele, por “extrair” suas personagens do “povinho do
Brasil”, revela a simplicidade e a humildade do sertanista. Mas ênfase ao seu bom
humor e à sua forma descontraída de encarar as mazelas da vida. Gilberto Amado
ressalta a importância da obra de José Cândido:
As páginas cotidianas de José Cândido de Carvalho reunidas em volume constituirão,
sem dúvida, uma das mais ricas contribuições literárias à nossa humorística, da fixação
do patusco, do bufo, do fundo histriônico de uma população julgada macambúzia,
enfadada, deprimida. Jo Cândido só encontrou gente reinadia, folgazã, chula mas
voltada demais para o gozo.
Outra marca registrada do autor são os nomes engraçados. Sobre isso, prossegue
Gilberto Amado:
Também de consignar-se nos escritos de José Cândido de Carvalho é sua contribuição
para a onomastia brasileira. Há quem retenha na memória prenomes alucinantes de
originalidade, sobretudo os formados pelas junções de sílabas dos nomes dos pais. Quão
fora dos quadros da anormalidade, da prática dos demais povos essa nossa
singularidade! No ano retrasado um pai do interior da França quis dar à filha o nome de
Marjorie. O padre recusou e o juiz civil também. Nome de gente além do calendário
os de herói ou heroínas nacionais. Não é na França que se daria, por exemplo, a nenhum
catecúmeno o nome entre todos venerado de um Churchill. O pai francês foi aos
tribunais. Ignoro o resultado do processo. Portugal não sai do João, do Manoel, do José,
etc. Na Inglaterra, como em outros países, as regras da tradição prevalecem. No Brasil
até número é nome de gente. José Cândido de Carvalho aumenta a lista com alguns que
excedem tudo que a extravagância pudesse conceber. Brasil imprevisível. Pelo menos
nesse particular não imita o estrangeiro.
Consideramos que o riso na obra de José Cândido de Carvalho é emblemático
dentre as obras do gênero. Escritos de forma bastante característica, os contos
apresentam personagens divertidos envolvidos em situações insólitas. O estilo do autor
é marcado pelo uso recorrente de estratégias lingüístico-discursivas do riso, por isso
seus contos fornecem um vasto material para análise.
24
CAPÍTULO 2
TEORIAS SOBRE O RISO: DA ANTIGUIDADE AO RENASCIMENTO
2.1 – O riso do ponto de vista do cristianismo
O homem é o único animal que ri. É a partir dessa constatação de Aristóteles que
propomos uma reflexão dos caminhos percorridos pelo riso, desde a criação do homem,
na perspectiva do cristianismo, até os dias atuais. Para a teologia clássica, Deus “não
tem motivo de hilaridade. Puro espírito, sem corpo e sem sexo, o trio divino, imutável e
imóvel, está eternamente absorvido em sua autocontemplação” (Minois, 2003, 111).
Essa concepção é apoiada nos conceitos platônicos e aristotélicos, segundo os quais o
riso, por pertencer ao domínio desprezível do mutante, do múltiplo, do feio, do mal, é
estranho ao mundo divino, mundo imutável e da unidade.
Por isso o riso é um traço que distingue tanto o homem de outros animais como
também o distingue de Deus. Fenômeno estritamente humano, o riso é “alheio ao
mundo divino, surgido depois da queda e que é um dos símbolos da decadência da
condição humana(op.cit., p. 120). Segundo o cristianismo, essa decadência se deu em
conseqüência do pecado original. Entendamos, pois, qual a relação desse ato com o
surgimento do riso.
Criados como seres perfeitos, Adão e Eva não tinham motivos para rir. Eram
eternamente belos, eternamente jovens. Viviam nus, mas não havia vergonha.
Caminhavam em um jardim de delícias onde tudo era harmônico. Não havia defeitos,
nem desejos, nem fealdades ou maldades a serem supridos. Por isso não havia espaço
para o riso no jardim do Éden, nem para o riso de satisfação, pois satisfação
quando alguma carência é suprida. Ou seja, o riso não fazia parte dos desígnios divinos.
(cf. Minois, 2003, p.112)
Porém, quando o pecado original é cometido, tudo se desequilibra, cria-se a
desarmonia e com isso o riso aparece. Como o diabo foi o responsável por essa
dissonância, o riso está ligado à imperfeição, à corrupção, à decadência. Ao se dar conta
de sua nova realidade, o homem é tomado pela angústia e pelo desespero e para não
chorar, usa o riso como forma de consolo e defesa. É o que ratifica Minois (2003):
25
Agora, pode-se rir. de quê: rir do outro, desse fantoche ridículo, nu, que tem um
sexo, que peida e arrota, que defeca, que se fere, que cai, que se engana, que se
prejudica, que se torna feio, que envelhece e que morre um ser humano, bolas!, uma
criatura decaída. (op.cit., p. 112).
A partir do pecado original o homem passou a ser o único animal a poder rir,
mas ainda assim, o primeiro registro de riso aconteceu depois do dilúvio, da mistura
das línguas, do extermínio de Sodoma e Gomorra. Ocorreu quando Deus disse a
Abraão, com 100 anos de idade, e a Sara, com 90 anos, que eles deveriam ter um filho.
Ele riu por duvidar do fato de conseguir uma ereção naquela idade e ela porque não
tinha menstruação havia muito tempo. Como para Deus não coisas impossíveis, o
riso do casal O irritou e para assinalar aquele deboche, foi determinado que a criança se
chamasse Isaac, que significa, “Deus ri”
(cf. op. cit., p. 113).
Depois desse primeiro registro, outras manifestações do riso são encontradas no
Antigo Testamento. A narrativa da trajetória do povo hebreu é permeada tanto por
momentos alegres, em que o riso, como por momentos tristes. É como pondera
Minois (op.cit., p. 117): “Há na Bíblia uma fonte permanente de cômico, que provém da
“conflagração do sagrado e do profano””. Ele prossegue explicativo: “No período mais
arcaico, o riso é, antes de tudo, uma expressão agressiva de zombaria e de triunfo sobre
os inimigos. A zombaria faz parte das invectivas rituais; é uma arma, uma ameaça,
eficaz e temerosa, usada pelos bons e pelos maus.”
Nesse período histórico, o riso está ligado à dicotomia bom-mau. O riso de
zombaria é atributo dos maus, que serão castigados por zombarem dos servidores de
Deus. Por outro lado, o riso bom pertence às pessoas íntegras e honestas e traz leveza ao
coração e alegria para a alma. Sobre estas formas de reflexão do riso, Minois afirma: “A
concepção bíblica do riso é, de fato, clássica e equilibrada. Ela se revela até mais
moderna que aquela do mundo greco-romano, uma vez que dessacraliza o riso, que não
tem mais nada a ver com o sobrenatural.” (op.cit., p. 120).
No Novo Testamento uma repressão sobre o riso. Sob o mito de que “Jesus
nunca riu”, os Evangelhos, os Atos e as Epístolas são muito severos em relação ao riso.
Rir é o mesmo que cometer uma heresia. É um atestado de falta de e desrespeito aos
dogmas da igreja. Não nenhuma menção ao riso positivo. “Daí o surgimento do
famoso mito do qual se tirarão conseqüências mortais para os cristãos: já que não se fala
que Jesus riu, é porque ele não riu, e como os cristãos devem imitá-lo em tudo, não
devem rir”. (op.cit., p. 121).
26
Entre os eclesiásticos medievais, era recorrente a discussão a respeito do fato de
Jesus ter rido em sua vida terrestre e sobre a asserção de Aristóteles de que o riso é
próprio do homem. Jacques Le Goff (apud Alberti,1999, p. 69) se posiciona sobre os
dois temas da seguinte forma:
Vê-se, portanto, que em torno do riso travou-se um grande debate, que vai longe,
porque, se Jesus não riu uma única vez em sua vida humana, ele que é o grande modelo
humano, (...) o riso torna-se estranho ao homem, ou pelo menos ao homem cristão.
Inversamente, se é dito que o riso é próprio do homem, é certo que, ao rir, o homem
estará exprimindo melhor sua natureza.
Embora afirme que Jesus é inteiramente homem, o cristianismo lhe recusa as
particularidades da natureza humana, entre elas o riso e o sexo. Os cristãos têm que
resignar-se e aceitar simplesmente que ele comia. Ainda mais considerando que em
2000 anos de história, a condição dominante do cristianismo, não favoreceu nem o
humor nem a ironia, qualidades julgadas subversivas (cf. Minois, 2003, p.123).
Nos dias de hoje, em função da valorização da comicidade, o cristianismo
alterou sua forma de encarar o riso e essa mudança reflete na imagem que se projeta de
Cristo. É como constata Minois:
Na idade humorística a nossa -, que tanto admira os micos, os cristãos esforçam-se
por mostrar uma imagem mais ou menos sorridente de Cristo. Sem chegar a fazê-lo rir,
é divertido ver com que engenhosidade, com que piedosa satisfação, “descobre-se” que
Jesus tinha um famoso senso de humor. (...) Suas parábolas seriam cheias de ironia em
relação às práticas hipócritas dos fariseus, “sepulcros caiados”. Suas histórias de palha e
de viga, do camelo e do buraco de agulha, o jogo de palavras com “Pedra-Pedro” (...)
tudo isso revelaria um espírito facecioso, malicioso, zombeteiro (...) marcas de uma
ironia mordaz, que a tradição cristã se empenhou em ampliar (op. cit., p. 124).
Este breve histórico do riso foi feito sob uma perspectiva do cristianismo,
religião monoteísta que derivou do judaísmo a partir do século I, e os registros do riso
que antecedem Jesus são constantes do Antigo Testamento. Somente no século IV, com
João Crisóstomo, é que se desenvolveu o mito de que “Jesus nunca riu” (cf.op. cit., p.
130). No entanto, há uma unanimidade entre os estudiosos na aceitação de que as
primeiras especulações sobre as causas do riso remontem à época de Platão.
27
2.2 – Platão e as primeiras especulações sobre o riso
Para Platão (428-347 a.C.) a natureza ambivalente do riso é inquietante. É uma
paixão que perturba a alma e que pode estar ligada, ao mesmo tempo, ao prazer e à dor.
Por isso, somente nas ponderações em que a questão central era o prazer, contemplou-se
a ocorrência do riso e do risível. Ao elaborar o panorama histórico sobre o riso, Verena
Alberti (1999, p. 40) constatou que, para o filósofo, os prazeres ou eram verdadeiros ou
eram falsos. Os verdadeiros eram “puros e precisos, enquanto os falsos misturavam-se
com a dor.”
O riso, por ser uma afecção mista, não estava entre os prazeres verdadeiros. Era
um processo exclusivo da alma, como a cólera, o arrependimento, o luto, o amor, o
ciúme, a inveja. Sócrates constatou a dificuldade de compreensão desse tipo de afecção
e a comparou aos estados da alma despertados pelas comédias, que também misturavam
prazer e dor. Considerando “que a inveja e a malícia são uma dor da alma, que o
invejoso se regozija com os infortúnios alheios, e que a ignorância e a estupidez são
males” (op.cit., p. 41-2), Sócrates concluiu que no riso e no risível as dores e os prazeres
também se misturam.
Na continuação de Filebo, obra de Platão, Sócrates define o ser risível como
vítima de uma ilusão, por não seguir aquilo que pregou o oráculo de Delfos, ou seja,
conhecer-se a si mesmo. Esse desconhecimento de si pode ocorrer, “do ponto de vista
da fortuna (quando crêem que são mais ricos do que o são na realidade), do ponto de
vista do corpo (quando se acham mais belos do que o são) e do ponto de vista das
qualidades da alma (quando se acham superiores em virtude)” (Alberti, 1999, p. 41-2).
Por não conhecerem a si mesmas, as pessoas dividem-se em dois grupos. Os que
têm a força e o poder e se tornam temíveis e odiáveis por sua ignorância e os que não
são nem fortes nem poderosos e se tornam risíveis por sua fraqueza. Portanto, o cômico
se verifica no segundo grupo, ou seja, naqueles cujo desconhecimento de si não
causa temor nem ódio.
Um segundo argumento de Sócrates é sobre aquele que ri. O riso malévolo
ratifica a natureza perturbadora do riso ao combinar bem e mal, prazer e inveja. Por
isso, deve-se condenar o riso cotidiano e banal, por expor os infortúnios e pequenos
reveses de nossos amigos. Porque quando se ri do ridículo do amigo, estimula-se uma
combinação entre prazer e desgosto. É o que afirma Minois (2003, p. 71): “Rir do
28
ridículo de outrem é também demonstrar que não se conhece a si mesmo. O único caso
de riso lícito é rir dos inimigos.”
Dessa forma, a teoria de Platão sobre o riso encerraria um duplo erro: aquele que
é objeto do riso desconhece a si mesmo e aquele que ri macula o prazer verdadeiro com
a inveja. O riso por não estar entre os prazeres puros, mas por misturar-se a eles, produz
um falso prazer. Com isso a comédia e o cômico estão ligados a valores negativos em
que o desconhecimento de si e a inveja opõem o prazer cômico ao prazer verdadeiro do
conhecimento. Por isso, Platão condena moral e filosoficamente tanto o risível quanto
aquele que ri, “pela relação com o elemento inferior da alma humana, a parte irrazoável
e distante da sabedoria.” (Alberti, 1999, p. 44).
2.3 – O riso segundo Aristóteles
Aristóteles (384–322 a.C.) classificava a comédia como gênero literário inferior
à tragédia. A tragédia e a epopéia representavam as ações humanas nobres, ao passo que
a comédia representava as baixas. O riso é feio. A definição aristotélica do risível como
“um defeito e uma feiúra sem dor nem dano” é também muito negativa (Minois, 2003,
p.73). É o que o filósofo ratifica no capítulo 5 da Poética:
A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não, todavia, quanto a
toda espécie de vícios, mas quanto aquela parte do torpe que é ridículo. O ridículo é
apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a
máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor
(Aristoteles,1984, p. 245).
Na comédia o riso é produzido quando a ação cai no ridículo, mas em um
ridículo voltado para os defeitos, para os vícios que não causam sofrimento. A base da
comédia é o absurdo, e em suas ões participam não heróis, mas personagens sem
grandeza, rebaixados, inferiores, com vícios e falhas. A exposição de tais falhas conduz
as personagens a situações ridículas que, provocando o riso, castigam e procuram
corrigir.
Aristóteles ratificou sua visão do cômico como algo baixo e torpe ao constatar,
em seus estudos sobre as partes dos animais, que o homem é o único animal que ri e que
isso se dá por conta de um efeito físico-biológico que compreende a ação do calor sobre
o diafragma. Segundo o filósofo, o diafragma divide o corpo em duas partes: a alta e
nobre, composta por cabeça, pulmões e coração; e a baixa e menos nobre, em que se
localizam o abdômen, fígado, baço, vesícula.
29
O humor
10
quente, devido à digestão, advindo da parte baixa em direção à alta,
passando pelo diafragma, provoca uma perturbação na sensibilidade e no raciocínio. O
pensamento se opõe ao movimento quando o diafragma é sensibilizado pelo calor, que
se origina nas partes baixas, ocasionando o riso. Para ilustrar sua teoria, verificou que ao
se fazer cócegas em alguém, esse alguém logo se põe a rir porque “o movimento que
resulta das cócegas gera um calor que, mesmo leve, produz um efeito sensível sobre o
diafragma. O diafragma manifesta e experimenta imediatamente essa sensação e o
pensamento se põe em movimento contra a vontade” (Alberti, 1999, p. 50).
Importa-nos em especial a afirmação que as coisas risíveis podem ser
encontradas nos homens, nos discursos e nos atos, localizada na Retórica de Aristóteles.
A partir dessa classificação tem origem a divisão do objeto do riso em “cômico de ação”
e “cômico de palavras” que será a base para a análise de nosso corpus. Quando trata do
estilo do discurso, Aristóteles refere-se ao fator surpresa causado pela troca de letras em
uma palavra ou pela troca de palavra em um verso. O trocadilho produz um efeito
diferente do esperado e, portanto, pode ser utilizado como recurso cômico.
Ainda no que concerne ao discurso, o riso é visto como um dos efeitos
produzidos pelo orador na atenção do ouvinte. Ou seja, o riso advém da distração do
espectador e serve para desviar a atenção dos fatos. Aristóteles valoriza a ironia em
detrimento da bufonaria, porque pelo riso “o ironista procura seu próprio prazer; o
bufão, aquele de outrem” (Alberti, 1999, p.54).
Dessa forma, para se atingir o riso por meio do cômico de palavras, o filósofo
destaca como instrumentos: os pensamentos confusos, os sotaques, as marcas dialetais,
os trocadilhos, as metáforas e as ironias. Ao passo que o cômico de ação pode fazer uso
do engano, dos disfarces, das trocas de papéis, da presença do impossível, do cômico de
ação inconsequente, dos eventos contrários à expectativa do espectador e do
rebaixamento da personagem, para alcançar o riso.
10
“A palavra humor derivou para nós do latim, e (...) desde os tempos mais antigos, todo humor corporal
era considerado signo ou causa de doença. Os homens (...) m quatro humores, isto é, o sangue, a cólera,
a fleuma e a melancolia, e estes humores são as causas das enfermidades dos homens” (Pirandello, 1996,
p. 20-1).
30
2.4 – Cícero + Tractatus = riso imortalizado
Antes de abordarmos a teoria de Cícero (106-43 a.C.), é importante mencionar a
influência que o filósofo sofreu do Tractatus Coislinianus. Segundo constatou França
(2006, p. 18), tratava-se de um pequeno texto grego encontrado em um manuscrito no
qual havia prefácios às comédias de Aristófanes. O texto recebeu essa designação
porque o manuscrito pertencia à coleção de Coislin, da Biblioteca Nacional de Paris.
Segundo o Tractatus, a origem do cômico nasce ou do que é dito ou da ação.
Percebem-se algumas definições semelhantes às de Aristóteles, principalmente nas duas
classificações cômicas: o cômico de palavras e o cômico de ação. No cômico de
palavras, produzem o riso: “a homonímia, a sinonímia, a repetição de palavras, a
paronímia, a forma diminutiva da expressão infantil, a modificação de palavras por
gestos ou voz e os erros de gramática.” Para o cômico de ação, o Tractatus relaciona ao
riso a “assimilação ao melhor ou ao pior, os artifícios usados por um personagem para
atingir seu objetivo, o inesperado e a surpresa, a escolha do pior, quando se tem a
possibilidade de obter o melhor, entre outros” (Alberti, 1999, p. 55).
A principal semelhança entre o Tractatus e a sistematização do risível proposta
por Cícero está na compreensão do riso a partir da divisão entre o cômico de
coisas/ações e o cômico de palavras. Na teoria apresentada, o conceito cômico de
coisas parece se assemelhar ao conceito cômico de palavras. O riso ligado às coisas
“compreende dois gêneros: o conto ou a anedota e a imitação cômica das pessoas”
enquanto o riso ligado às palavras “consiste em uma expressão ou pensamento picantes
(op.cit., p. 59).
Porém o detalhamento dos conceitos afasta a possível semelhança entre as duas
classificações. Cícero afirma:
O risível de coisas compreende, juntamente com o conto e a imitação, categorias que, ao
invés de corresponderem ao gênero que se estende por todo o discurso, se aproximam
muito mais dos ditos vivos e curtos da dicacitas (dito espirituoso). Entre essas
categorias estão, por exemplo, a “frase de contrastes” (como em “Não falta nada a este
homem, a não ser a fortuna e a virtude”), “dar à troça uma forma de sentença”, “nomear
com palavra honorável uma ão repreensível”, ou ainda aquela figura de linguagem
que, para diminuir ou aumentar a verdade das coisas, é levada até o surpreendente e o
inacreditável”. Todas essas categorias são risíveis de coisas, e não como deixar de
nos perguntar em que reside sua unidade (op.cit., p. 60).
As fontes do riso para Cícero estão ligadas às fontes de pensamentos graves.
Nesse sentido a comicidade de palavras tem base nas figuras de estilo que também são
utilizadas nos pensamentos graves, enquanto a comicidade de coisas constitui aquilo
31
que, no discurso, não concerne à escolha dos nomes em si, mas à prova ou
demonstração, de um lado, e à ação, de outro. Com isso, para Cícero, o cômico de
coisas inclui anedotas, caricatura (imitações), comparações e analogias e o cômico de
palavras inclui ambigüidades, paronomásias, interpretações literais, uso de provérbios,
alegorias, metáforas, antífrases.
Essa classificação para cômico de coisas contempla o argumento do discurso
(tudo o que se diz, tudo o que se finge dizer ou ainda tudo o que se deixa adivinhar pelo
recurso à ironia, à comparação, à ingenuidade etc.) e à ação do discurso (a voz, os
gestos, o tom, o ar etc.)” (op.cit., p. 62). Aqui, como no Tractatus, podemos identificar
coisas e/ou ações” como aquelas em que o risível resulta do pensamento.
Para Cícero, que estuda o riso sob uma perspectiva da oratória, a distinção de
Aristóteles entre procedimentos cômicos do homem livre e os do bufão continuam
válidas, uma vez que o bom orador se utiliza do risível movido apenas por boas razões,
diferente do bufão que o faz de forma ininterrupta e inconseqüente (cf. Alberti,1999, p.
59).
Essa distinção do riso proposta por Cícero, entre o cômico de palavras e cômico
de coisas/ação, é recorrente também em teorias modernas, como teremos a oportunidade
de verificar no decorrer de nossa pesquisa. Sobre esta atualidade da teoria de Cícero,
Attardo(1994, p. 28) observa:
Se compararmos a classificação (de Cícero) às classificações contemporâneas do
humor, é surpreendente como houve pouco progresso. Mais surpreendente ainda é que
muitos autores que apresentam as classificações do humor desconhecem o fato de que a
distinção entre humor verbal e referencial foi introduzida cerca de dois mil anos;
além do mais, Cícero foi completamente original em propor um surpreendente e
moderno teste empírico para a oposição verbal/referencial
11
.
2.5 – A contribuição de Quintiliano
A teoria de Quintiliano embora não possa ser compreendida fora do contexto do
ensinamento retórico e dissociada da teoria de Cícero, introduz novas categorias de
análise do riso. O filósofo reitera a divisão conceitual do cômico das ações e do cômico
das palavras ao dizer: “Fazemos rir igualmente ou pelo que fazemos (facimus), ou pelo
11
If we compare the taxonomy to contemporary taxonomies, it is amazing how little progress has been
made. It is even more amazing that so few of the authors who introduced taxonomies of humor seem to be
aware that the distinction verbal/referencial was introduced two millennia before; furthermore, Cicero is
completely original in proposing a surprisingly modern empirical test for the verbal/referencial
opposition.”[Trad. nossa].
32
que dizemos (dicimus)(apud Alberti, 1999, p. 64). No entanto, vai além ao especificar
que o objeto do riso é localizado em três lugares: em nós mesmos, nos outros ou em
elementos neutros:
A divisão primária é aqui a mesma que em todo discurso, onde se distinguem as coisas e
as palavras. Mas, na prática, a distinção leva a três pontos: o riso se extrai ou de outrem,
ou de s, ou de elementos neutros. No que concerne aos outros, ou repreendemos, ou
refutamos, ou humilhamos, ou replicamos, ou iludimos. No que diz respeito a nós,
falamos rindo, e, para retomar a expressão de Cícero, dizemos palavras que beiram o
absurdo. Porque as mesmas palavras que são asneiras se nos escapam por imprudência,
passam por elegâncias se é[sic]um fingimento. O terceiro gênero, como ele o diz ainda,
consiste em decepcionar a expectativa, em tomar as palavras em uma acepção
deturpada, em usar outros meios, que não concernem nem a nós nem aos outros e que,
por essa razão, eu chamo de neutros (apud Alberti, 1999, p. 64).
Para não sobrecarregar sua obra “de exemplos e fazê-la assemelhar-se às
compilações para fazer rir” (apud Minois, 2003, p. 87), Quintiliano destaca alguns
gêneros de risível que considera mais significativos. Interessante é perceber aspectos do
risível que tornam atuais as teorias de Quintiliano, por serem recorrentes nas teorias
contemporâneas como “as palavras com duplo sentido, ou com sentidos opostos; a
modificação de letras para formar nomes de pessoas; a comparação de pessoas a
animais; os risíveis fundados nos contrários, que são de diversas espécies, e assim por
diante” (Alberti, 1999, p. 65).
Entre os gêneros de risível assinalados pelo filósofo reconhece-se o fundamento
de Cícero, segundo o qual as fontes dos pensamentos graves e sérios são as mesmas
fontes do risível. A diferença, segundo Quintiliano, está no fato de que, quando as
figuras do pensamento se destinam a fazer rir, tudo não passa de simulação, fingimento.
E esclarece: “A única diferença é que o pensamento grave se aplica às coisas honestas,
às qualidades sérias; o risível, àquilo que é baixo e torpe” (apud Alberti,1999, p. 65).
2.6 – Bakhtin e o riso medieval
Por meio de sua obra, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais, o teórico russo Mikhail Bakhtin expôs e discutiu a
natureza do riso medieval. Observou que na sociedade da Idade Média havia uma
divisão muito acentuada entre o sério e o cômico. As autoridades, os religiosos e os
senhores feudais defendiam a seriedade como atributo da cultura oficial. Por outro lado,
o cômico opunha-se à cultura oficial e este seu valor subversivo o transformou em uma
característica essencial da cultura popular.
33
Essa dualidade na percepção do mundo e da vida humana não era novidade nos
cultos realizados pelo homem ao longo de sua história, segundo mencionou Bakhtin.
Nas sociedades primitivas encontravam-se paralelamente cultos sérios e cultos cômicos,
mas “nas etapas primitivas, dentro de um regime social que não conhecia ainda nem
classes nem Estado, os aspectos sérios e cômicos da divindade, do mundo e do homem,
eram, segundo todos os indícios, igualmente sagrados, igualmente, poderíamos dizer,
‘oficiais’” (Bakhtin, 1993, p. 5).
Porém, diferente da era primitiva, na Idade Média o cômico foi excluído do
domínio do sagrado. Elaborando-se de maneira autônoma, fora do controle das
autoridades, o cômico adquiriu licença e liberdade consideráveis. A partir dessas
constatações, Bakhtin percebeu que as múltiplas manifestações do cômico poderiam se
subdividir em três grandes categorias, a saber:
1. As formas dos ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, obras cômicas
representadas nas praças públicas, etc.);
2. Obras cômicas verbais (inclusive as paródias) de diversa natureza: orais e escritas,
em latim ou em língua vulgar;
3. Diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos,
blasões populares, etc.) (op. cit., p. 4).
A primeira categoria compreendeu toda a gama de festas populares, inclusive
aquelas que utilizavam elementos religiosos: festas dos tolos, festa do asno, riso pascal e
festas ligadas aos trabalhos agrícolas, ritos de passagem da vida, sempre com a
participação de bobos e bufões. Organizava-se um mundo paralelo em que os ritos e
espetáculos parodiavam as cerimônias oficiais. Foi o que notou Bakhtin ao afirmar:
Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente
diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter
construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais
os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles
viviam em ocasiões determinadas (op. cit., p. 4).
Mas foram os festejos carnavalescos que marcaram a intensidade do cômico na
cultura popular. “O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a
sua vida festiva. A festa é a propriedade fundamental de todas as formas de ritos e
espetáculos cômicos da Idade Média” (op. cit., p. 7). Com duração de até três meses nas
grandes cidades, o carnaval exercia um efeito catártico sobre o povo. Era o triunfo de
uma liberação temporária “da verdade dominante”, abolição provisória de todas as
relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Foi o que asseverou o autor quando
explicou a complexa natureza do riso carnavalesco:
34
É, antes de mais nada, um riso festivo. Não é, portanto, uma reação individual diante de
um ou outro fato “cômico” isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio
do povo (esse caráter popular, como dissemos, é inerente à própria natureza do
carnaval); todos riem, o riso é “geral”; em segundo lugar, é universal, atinge a todas as
coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval), o mundo inteiro parece
cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo;
por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo
burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente. (...) Uma
qualidade do riso na festa popular é que escarnece dos próprios burladores. O povo não
se exclui do mundo em evolução (op. cit., p. 10).
Esse contagiante riso carnavalesco expandiu-se para a literatura. Com isso as
obras orais e escritas ganharam grande importância no registro do riso e traduziram uma
literatura festiva e recreativa, típica da Idade Média. A partir dos apontamentos de
Bakhtin, Minois assinalou:
a visão mica popular do mundo traduz-se por obras verbais, elas próprias ligadas aos
regozijos carnavalescos. Literatura de festa, parodística, pela qual as condições sociais
oficiais são zombadas e reviradas e nas quais os ritos mais sagrados são parodiados:
liturgias, preces e sermões bufos, paródias de romances de cavalaria, fábulas e farsas,
peças religiosas com diabruras (Minois, 2003, p. 157).
Para expressar o caráter dinâmico, ambivalente e alegre da realidade, onde não
havia barreiras hierárquicas, nem respeito a regras e tabus, privilegiou-se um
vocabulário rico em insultos e grosserias. Essa nova forma de comunicação produziu
gêneros lingüísticos inéditos, mudanças de sentido e eliminação de formas desusadas.
Foi o que concluiu Bakhtin (1993, p. 15) ao afirmar: “A linguagem familiar converteu-
se, de certa forma, em um reservatório onde se acumularam as expressões verbais
proibidas e eliminadas da comunicação oficial.” Para o autor era como se as palavras
tivessem assimilado a concepção carnavalesca do mundo e tivessem adquirido um tom
cômico geral, apesar de sua heterogeneidade original.
Segundo Bakhtin, a cultura popular na Idade Média tornou-se cômica por
produzir um tipo peculiar de imagens materiais e corporais e ter uma concepção estética
da vida prática bem característica. A essa concepção o autor deu o nome de realismo
grotesco. No realismo grotesco, atribuíam-se significações restritas e modificadas para a
“matéria”, o “corpo” e a “vida material” (comer, beber, necessidades naturais). O centro
das imagens da vida corporal e material eram a fertilidade, o crescimento e a
superabundância, fatores determinantes para garantir o “caráter alegre e festivo das
imagens referentes à vida material e corporal.” O realismo grotesco consistia no
rebaixamento, isto é, na transferência ao plano material e corporal, o da terra e do
corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato (op.
cit., p. 17).
35
O riso medieval era um riso profanador e libertador. Embora essa visão cômica
não chegasse ao nível da consciência, exerceu uma poderosa influência sobre o estilo de
Rabelais. Também nos influenciou na medida em que a manifestação do riso na Idade
Média reforçou a divisão, que procuraremos explorar na análise do nosso corpus, entre
o cômico de situação e o cômico de palavras. Assinalou o cômico de situação quando
propôs um mundo paralelo e avesso ao oficial e o cômico de palavras à medida que o
vocabulário desse mundo paralelo inovou na produção de gêneros lingüístico-
discursivos.
CAPÍTULO 3
TEORIAS SOBRE O RISO: PERPESCTIVAS CONTEMPORÂNEAS
3.1 – Freud e os chistes
Freud (1856-1939), em sua obra ‘Os chistes e sua relação com o inconsciente’,
fez importantes considerações a respeito do riso e suas manifestações. Embora não
discuta abertamente, o médico vienense endossou a divisão, proposta por Cícero e na
qual temos particular interesse, entre a comicidade de palavras e a comicidade de ação.
Em sua pesquisa, parafraseou inúmeras piadas, usando um procedimento de redução, e
agrupou-as em 20 categorias de acordo com a técnica humorística nelas usada. Concluiu
que os mecanismos do riso operam tanto no nível da palavra como no nível do
pensamento. Reduziu as muitas categorias a apenas duas: condensação e deslocamento.
Para melhor apreendermos a teoria proposta por Freud, buscamos apoio no
trabalho de Todorov (1996), Teorias do Símbolo, que dedica um capítulo à elaboração
de relevantes questionamentos sobre o tema e propõe uma pertinente discussão sobre
esses conceitos freudianos. Embora reconheça a importância de Freud e desses
mecanismos para uma melhor compreensão do riso, Todorov assegura que a
condensação e o deslocamento integram o próprio simbolismo lingüístico e são os
mesmos classificados pela tradição retórica.
Segundo o autor, a condensação ocorre quando um excesso de significado
condensado em um único significante. Ele afirma: “Poderíamos então dizer que a
condensação sempre que um único significante nos induz ao conhecimento de mais de
36
um significado; ou, mais simplesmente, sempre que o significado é mais abundante que
o significante (Todorov, 1996, p. 316).
A condensação, desse ponto de vista, justifica a concisão constatada por Freud
nos chistes e nos sonhos. Sobre essa constatação, ele pondera:
(...) meti-me na investigação dos processos que fazem surgir os sonhos a partir dos
pensamentos oníricos latentes, tanto quanto das forças psíquicas envolvidas nessa
transformação. Dei o nome de ‘elaboração onírica’ à totalidade desses processos
transformadores e descrevi como integrante dessa elaboração onírica um processo de
condensação que mostra a maior similaridade com aquele constatado na técnica dos
chistes que, da mesma forma, leva à abreviação, e cria formações de substitutos da
mesma natureza. Todos estão acostumados, pela recordação de seus próprios sonhos,
com as estruturas compostas, tanto de pessoas como de coisas, que emergem nos
sonhos. Na verdade, os sonhos constroem-nas mesmo com palavras, sendo possível
então dissecá-las na análise (Freud, 1996, p. 36).
o deslocamento “consiste no desvio do curso do pensamento, no
deslocamento da ênfase psíquica para outro tópico que não o da abertura.” Freud
considera que um “chiste de deslocamento independe, em alto grau, da expressão
verbal. Depende aqui não das palavras, mas do curso do pensamento”(op. cit., p.57).
Com isso, o deslocamento é entendido como “um desvio do processo mental”, uma vez
que abordado um tema, uma mudança na sua forma de apreensão, desloca-nos para
outro tema, diferente do inicial.
Para Todorov (1996, p. 326) o deslocamento é entendido como a incoerência
entre um discurso e uma resposta”, idéia que vem ao encontro da perspectiva freudiana.
Para esse autor, no deslocamento ocorre o duplo contexto de enunciação do chiste que
envolve tanto as réplicas entre as personagens, quanto o estabelecido entre o
narrador/leitor. Sendo assim, o deslocamento acontece tanto pelo jogo de palavras,
como pela incongruência das ações de determinadas personagens, o que reafirma a
divisão filosófica, considerada neste trabalho, entre o cômico de palavras e o cômico
de ações.
A classificação abaixo demonstra o caminho percorrido pelo chiste, a partir de
sua divisão entre chiste de palavra e chiste de pensamento, para alcançar o riso. É
possível contextualizar e perceber a aplicação da condensação e do deslocamento,
conceitos analisados aqui. É interessante notar que a estrutura que envolve a construção
dos chistes poderá ser, em muitos aspectos, comparada às estratégias do riso
encontradas em nosso corpus.
37
condensação--
com palavras compostas
com modificações
palavras inteiras e seus compostos
emprego do intervenção
material --
pequena modificação
as mesmas palavras no sentido pleno e vazio
chiste de nome próprio e nome de objeto
palavras --- sentido metafórico e sentido literal
duplo sentido --
jogos de palavras
equívoco
duplo sentido com alusão
chiste ---
trocadilhos ----
falhas de deslocamento
raciocínio-- contra-senso
outras falhas
chiste de
pensamento- unificação ----
representação pelo contrário
indireta ---
por semelhança
comparações
(Todorov,1996, p. 313).
Outro aspecto importante na obra de Freud é a categorização de chiste, de
cômico e de humor. Em cada um dos aspectos o mecanismo do prazer se manifesta por
meio do que o autor denomina de economia de despesa psíquica. Para explicar esta
economia de forma satisfatória, Freud recorreu ao conceito de “mécanisation de la vie”
(mecanização da vida) proposto por Bérgson. Segundo esse conceito, a causa do riso
está no mecânico sobreposto ao vivo ou na “divergência do vivo com o inanimado”.
Tanto o automatismo percebido em uma mímica, quanto o automatismo psíquico, são
fontes de comicidade. Sobre isso, Freud contextualiza:
Se, ademais, aceitamos estas plausíveis sugestões de Bérgson, não acharemos difícil
incluir sua concepção sob nossa própria fórmula. A experiência tem ensinado que toda
coisa viva difere de tudo o mais e requer uma espécie de despesa para a nossa
compreensão; desapontamo-nos se, em conseqüência de uma completa conformidade ou
de uma mímica enganadora, não necessitamos fazer nenhuma nova despesa.
Desapontamo-nos no sentido de um alívio, sendo descarregada pelo riso a despesa com
a expectativa que se tornou supérflua. A mesma fórmula cobriria todos os casos que
Bérgson considera de rigidez cômica (...). Todos estes casos se reduziriam à
comparação entre a despesa com a expectativa e a despesa efetivamente requisitada para
a compreensão de algo que persiste sendo idêntico (Freud, 1996, p. 195).
Para explicar o prazer proporcionado pelos chistes, Freud os divide entre os que
são inocentes e os que são tendenciosos. Ambos têm em sua essência o prazer
proporcionado pelo jogo ou gracejo derivados do livre uso das palavras e dos
pensamentos. Diferente do inocente, no chiste tendencioso o prazer se concentra em
atingir uma segunda pessoa, ridicularizando-a.
38
Porém, quando o jogo com as palavras torna-se sem sentido ou o jogo com o
pensamento torna-se absurdo, os chistes juntam-se às idéias para torná-las mais forte no
embate contra o juízo crítico. Nesse sentido, o chiste inocente utiliza o que Freud
determina como “princípio da confusão das fontes de prazer” e o tendencioso vem
combater a supressão, suspendendo as inibições pelo “princípio do prazer preliminar”
(op.cit., p.133). Sobre essa resistência dos chistes à razão e sobre a economia na despesa
psíquica envolvida nesse processo, o autor esclarece:
Razão, julgamento crítico, supressão eis as forças contra as quais sucessivamente se
luta; conserva-se fiel às fontes originais do prazer verbal, e do estágio de gracejo em
diante abre por si mesmo novas fontes de prazer, suspendendo as inibições. O prazer
que produz, seja prazer no jogo ou na suspensão das inibições, pode ser invariavelmente
referido à economia na despesa psíquica, desde que esta concepção não contradiga a
natureza essencial do prazer e se comprove fecunda em outras direções (op.cit., p.133).
Diferente do cômico, que para se manifestar geralmente envolve o sujeito e o
objeto do cômico, o chiste, “enquanto jogo com as palavras e pensamentos, prescinde
de uma pessoa como objeto” (op.cit., p.139), exceto pelo chiste tendencioso que, como
dissemos, visa a humilhar a pessoa que será alvo dele e por isso se aproxima do cômico.
No estágio preliminar de gracejo, salvo dos protestos da razão, o chiste necessita de
uma pessoa para transmitir seu resultado e verificar se atingiu seu objetivo. Freud
considera esta, não uma segunda, mas uma terceira pessoa e assevera que “o processo
psíquico nos chistes se cumpre entre a primeira pessoa (o eu) e a terceira (a pessoa de
fora) e não, como no caso do cômico, entre o eu e a pessoa que é o objeto” (op.cit.,
p.139).
Partiremos agora para apreender qual o sentido de comicidade para o autor.
Percebemos que é com alguma reserva que Freud expõe sua definição para a
comicidade, uma vez que segundo ele “pensadores eminentes fracassaram em produzir
uma explicação inteiramente satisfatória” para o fenômeno (op.cit., p.178). Sobre a
manifestação cômica o autor afirma:
O cômico aparece, em primeira instância, como involuntária descoberta, derivada das
relações sociais humanas. É constatado nas pessoas em seus movimentos, formas,
atitudes e traços de caráter, originalmente, com toda probabilidade, apenas em suas
características físicas mas, depois, também nas mentais ou naquilo em que estas possam
se manifestar (op. cit., p. 178).
Freud explica o cômico por meio da comparação que eu estabeleço entre mim e
o outro. Nessa comparação o prazer é conseguido por meio da degradação, da
humilhação da outra pessoa posto que se sente “uma gratificante sensação de
superioridade com relação à pessoa (que achamos cômica)” (op. cit., p. 183). Essa
39
sensação de superioridade se dá quando se percebe o excesso de energia que uma
pessoa gasta ao fazer algum movimento corporal ou ainda o excesso de energia que ela
economiza para realizar algum ato intelectual. Freud prosseguimento à discussão
sobre o cômico ressaltando que a percepção da inferioridade no outro se constata
quando há empatia “isto é, quando outra pessoa está envolvida: quando nós próprios
nos achamos em apuros semelhantes, somos cônscios apenas de sentimentos aflitivos”
(op. cit., p. 184).
O humor é a última manifestação de prazer tratada por Freud. Dentre os tipos de
comicidade, o humor é a mais facilmente satisfeito. Completa seu curso dentro de uma
única pessoa. Isso ocorre porque o prazer no humor revela-se por meio de uma liberação
de afeto que não ocorre, ou seja, procede de uma economia na despesa de afeto.
Segundo o autor, “o humor é um meio de obter prazer apesar dos afetos dolorosos que
interferem com ele; atua como um substitutivo para a geração destes afetos, coloca-se
no lugar deles” (op. cit., p. 212). Em outras palavras o humor bloqueia o afloramento do
afeto penoso, e nos permite economizar um desgaste afetivo, daí o prazer que ele
propicia.
Para ilustrar este “humor da piedade poupada”, Freud cita o exemplo de Mark
Twain, que conta a seguinte anedota sobre seu irmão: empregado em uma grande
empresa de construção de estrada, certa vez foi lançado longe pela explosão antecipada
de uma mina. Diante do ocorrido, descontaram-lhe “meio dia de serviço, em seu salário,
por estar ausente do lugar de serviço(op. cit., p. 214). Distraídos de nossa compaixão,
o humor cumpre a função de economizar a cólera ou a indignação, tornando-se assim,
um processo de defesa que impede a eclosão do desprazer.
Freud considera o humor mais próximo do cômico do que dos chistes. Explica
que o humor, assim como a comicidade, tem sua “localização psíquica no pré-
consciente, enquanto os chistes, (...), são formados com um compromisso entre o
inconsciente e o pré-consciente” (op. cit., p. 217). Ratifica que o do prazer advindo dos
chistes manifesta-se por meio da economia de despesa psíquica. Sobre o assunto o
autor declara: “O prazer nos chistes pareceu-nos proceder de uma economia na despesa
com a inibição, o prazer no cômico de uma economia na despesa com a ideação
(catexia) e o prazer no humor de uma economia na despesa com o sentimento” (op. cit.,
p. 218).
40
Após o estudo da obra de Freud, pudemos perceber sua grandeza, complexidade
e contribuição para o entendimento do riso. Quisemos, de forma sintetizada, abordar
conceitos que poderão nos ser úteis na análise do corpus. Percebemos que as idéias
inicialmente discutidas a respeito de condensação e deslocamento são aplicadas durante
a explanação de chiste, cômico e humor. Por fim, concordamos com a opinião de
Attardo (1994, p. 56) segundo a qual “o interesse maior na pesquisa de Freud não está
unicamente nas conclusões sobre o riso a que este chegou, mas nos efeitos que estas
conclusões deflagraram no mundo acadêmico
12
”.
3.2 – Bérgson e a comicidade
À assertiva de Aristóteles, segundo a qual o homem é o único animal que ri,
Bérgson (1859-1941) acrescenta o fato de que o homem é o único animal que faz rir. E
faz rir porque compreendeu que a graça do riso não é percebida no isolamento, o riso
precisa de repercussão. Com isso o fazer rir, ou seja, a produção do riso ocorre sempre
em um grupo e para aquele grupo, tornando o riso um gesto social.
As pesquisas do autor a respeito das manifestações do riso partem de três
premissas, a saber: o riso é próprio do homem; o riso não tem pior inimigo do que a
emoção; e nosso riso é sempre o riso de um grupo. A comicidade é um desvio negativo
do comportamento e o riso, sua correção. Segundo o autor, esse comportamento que o
riso corrige é a rigidez dos gestos, a mecanização das atitudes que consiste na falta de
elasticidade ou de flexibilidade e gera uma ausência de adaptação às mudanças. Essa
falta de mobilidade da vida constitui, então, o mecânico uma espécie de doença, um
desvio em relação ao que é dado por natureza.
A vida em sociedade exige atenção sempre alerta e leveza de espírito e de corpo
para se adaptar às necessidades do momento. Quando desatenção, distração ou ainda
por obstinação do corpo reflete-se a inconsciência, o gesto mecânico que contraria o
movimento incessante da vida. Esse efeito de rigidez é imperdoável e terá como sanção
o riso. É o que adverte Bérgson, quando diz:
O que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção constantemente
vigilante, a discernir os contornos da situação presente, é também certa elasticidade do
corpo e do espírito, que nos condições de adaptar-nos a ela. Tensão e elasticidade,
estão duas forças complementares entre si que a vida põe em jogo (Bérgson, 2001,
p.13).
12
“More interesting than Freud´s speculations are the reactions from subsequent scholars to Freud´s
analysis of the techniques of jokes.” [Trad. nossa].
41
Para Bérgson a essência da comicidade é “o mecânico sobreposto ao vivo”
(op.cit., p. 36), ou seja, o automatismo do comportamento. Ele considera o riso “uma
espécie de trote social” (op.cit., p. 101), por meio do qual se pretende manter e
aperfeiçoar a homogenia social. O riso “é, acima de tudo, uma correção. Feito para
humilhar, deve dar impressão penosa à pessoa que lhe serve de alvo. A sociedade vinga-
se por meio dele das liberdades tomadas com ela” (op. cit., p. 146).
A principal contribuição da obra de Bérgson, para nossa pesquisa, está na
divisão da comicidade em três categorias, a saber: comicidade das formas e
movimentos, comicidade de situação e palavras, e comicidade de caráter. Esta divisão é
recorrente na teoria dos filósofos, Aristóteles, Cícero e Quintiliano. É encontrada na
Idade Média e nas pesquisas de Freud. Mas, é em Bérgson que constatamos a amplitude
de sua abrangência e uma melhor adequação aos contos de nosso corpus.
A comicidade provoca o riso à medida que as formas causam estranheza pela
surpresa e pelo contraste. Nos movimentos, o riso surge quando a rigidez e a
mecanização, sejam de gestos ou de atitudes, se impõem à mobilidade da vida. A
propósito disso, o autor afirma que a comicidade provém do enrijecimento do corpo tal
qual uma máquina (cf. op.cit., p. 37).
Sob o argumento de que “pode tornar-se cômica toda deformidade que uma
pessoa bem-feita consiga imitar”, Bérgson (2001, p.17), discorre sobre o cômico
causado pelas deformidades fisionômicas ou corporais e atribui o riso ao automatismo, à
rigidez, ao vezo contraído em oposição à flexibilidade e maleabilidade próprias da alma
e da personalidade. Essa elasticidade da alma transmite harmonia e graça à matéria.
Porém, quando a matéria se contrai, se contorce e contraria os impulsos graciosos,
obtém-se um efeito cômico. Bérgson sintetiza o conceito da seguinte forma:
Quando a matéria consegue espessar assim exteriormente a vida da alma, congelar seu
movimento e contrariar sua graça, obtém um efeito mico do corpo. Se, pois,
quiséssemos definir aqui a comicidade aproximando-a de seu contrário, caberia opô-la à
graça, mais do que à beleza. É mais rigidez que fealdade (op. cit., p. 21).
Segundo Bérgson, as deformações risíveis se tornam ainda mais risíveis “quando
podemos vincular tais características a uma causa profunda, a certa distração
fundamental da pessoa, como se a alma se tivesse deixado fascinar, hipnotizar, pela
materialidade de uma ação simples” (op. cit., p.19). Esta é a definição da arte do
caricaturista que apreende a distração fundamental à qual um rosto se renderia se fosse
dominado pela matéria. Todo rosto, por mais simétrico que seja, nunca tem um
42
equilíbrio inteiramente perfeito. Podemos ver nele “o indício de um vezo que se
anuncia, o esboço de um esgar possível, enfim uma deformação preferida na qual se
contorceria a natureza.” (op. cit., p.19). O caricaturista tem a capacidade de apreender e
de exagerar esse movimento.
Do cômico das formas, Bérgson passa para o cômico dos gestos. Para explicar
como um mecanismo que funciona automaticamente pode suscitar o riso, o autor utiliza
o exemplo de um orador cujos gestos, ao se repetirem, distraem a platéia. A platéia
passa a observar e esperar a ocorrência do gesto e, quando este se dá, ri
involuntariamente. O autor enfatiza que esse tipo de comicidade se dá pelo automatismo
que, por distração, instala-se na vida, imitando-a. “Por isso certos gestos, dos quais não
pensamos em rir, tornam-se risíveis quando alguém os imita”, assegura (op. cit., p.24).
De suas reflexões, Bérgson conclui: “As atitudes, os gestos e os movimentos do corpo
humano são risíveis na medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples
mecânica” (op. cit., p.22).
Como constatamos, a teoria cômica de Bérgson está centrada no “mecânico
aplicado sobre o vivo”. Nos aspectos físicos, isso pode se traduzir no “corpo atenazando
o espírito, o corpo impondo-se ao espírito” (op. cit., p. 41). Ou ainda no riso causado
“sempre que uma pessoa nos a impressão de coisa” (op. cit., p. 43). De qualquer
forma sempre que nossa atenção é desviada “do fundo para a forma ou do moral para o
físico” (op. cit., p. 42) ocorre uma manifestação cômica. Daí outra importante conclusão
de Bérgson: “É cômico todo incidente que chame nossa atenção para o sico de uma
pessoa quando o que está em questão é o moral.” (op. cit, p. 38)
Para analisar a comicidade de situação, o autor parte do pressuposto de que “a
comédia é uma brincadeira, uma brincadeira que imita a vida” (op.cit., p.50) e associa
os mecanismos geradores do riso nas comédias às brincadeiras infantis, para, a partir
delas, estabelecer relações com a mecanicidade da vida e sua relação com o aspecto
moral.
A primeira associação é feita com um brinquedo denominado caixa de
surpresas. A caixa guarda um boneco preso a uma mola que, quanto mais pressionada
para dentro, mais impulsiona o boneco para fora ao ser aberta. A seqüência repetitiva de
ações, que consiste em esconder, mostrar e surpreender, é a causa do riso. Transferindo
esse jogo para um aspecto moral, chegaremos ao riso causado pela revelação de algum
defeito que uma pessoa tente, a todo custo, esconder. O desnudamento do defeito que
43
causa o riso pode vir à tona de forma abrupta e surpreendente ou pela repetição. Aliás, a
repetição só suscita o riso quando revela certos elementos morais.
Uma segunda associação é feita por analogia ao teatro de marionetes. Trata-se
do fantoche e seus cordões, situação em que determinadas personagens se crêem livres,
mas, na verdade, são manipuladas por outras como se fossem bonecos movidos por
cordas. Transportado para o aspecto moral, rimos da situação em que percebemos que a
pessoa é persuadida a tomar uma decisão, mas guarda a ilusão de que detém a liberdade
de escolha. Enxergar essas pessoas como simples resultados de ações alheias é que
desencadeia o riso.
Por fim, Bérgson se reporta ao efeito bola de neve, que podemos associar ao que
modernamente conhecemos como efeito dominó. Relacionada ao aspecto moral, o riso
está na expectativa frustrada que ocorre quando uma ação, aparentemente pequena e
despretensiosa, gera conseqüências maiores e inesperadas, as quais, por sua vez, geram
outras maiores ainda, até chegar a um acontecimento inteiramente desproporcional ao
fato que deu origem ao processo. A complicação da situação e o exagero desmedido das
conseqüências disparam o riso de quem as observa.
Embora tenhamos justificado o riso fazendo uma analogia entre os brinquedos e
as atitudes da vida, consideramos que, na citação abaixo, Bérgson tenha conseguido
exprimir a essência da associação. Ele pondera (op. cit., 64-5):
Mas por que rimos desse arranjo mecânico? O fato de a história de um indivíduo ou de
um grupo nos aparecer em certo momento como um jogo de engrenagens, molas ou
cordões é estranho, sem dúvida, mas de que provém o caráter especial dessa estranheza?
Por que ela é cômica? A essa pergunta, que nos foi feita de muitas formas, daremos
sempre a mesma resposta. O mecanismo rígido que surpreendemos vez por outra, como
um intruso, na viva continuidade das coisas humanas, tem para nós um interesse
particular, por ser como uma distração da vida. Se os acontecimentos pudessem estar
incessantemente atentos a seu próprio curso, não haveria coincidências, ocorrências
fortuitas, séries circulares; tudo se desenrolaria para a frente e progrediria sempre. E, se
os homens estivessem sempre atentos à vida, se constantemente retomassem contato
com o próximo e também consigo, nada pareceria jamais ser produzido em nós por
molas ou cordinhas. A comicidade é esse lado da pessoa pelo qual ela se assemelha a
uma coisa, aspecto dos acontecimentos humanos que, em virtude de sua rigidez de um
tipo particular, imita o mecanismo puro e simples, o automatismo, enfim o movimento
sem vida. Exprime, portanto, uma imperfeição individual ou coletiva que exige correção
imediata. O riso é essa correção. O riso é certo gesto social que reprime certa distração
especial dos homens e dos acontecimentos.
44
A comicidade de situação também se manifesta por meio de três procedimentos
típicos dos vaudeviles
13
. São eles: a repetição, a inversão e a interferência de séries. A
repetição trata de uma combinação de circunstâncias que retorna tal qual, várias vezes,
contrastando assim com o curso mutável da vida. A inversão ocorre quando uma pessoa
subitamente toma o lugar de outra, seja do ponto de vista pessoal, profissional,
hierárquico etc, melhorando ou piorando a situação. Esse procedimento pode ser
contemplado na inversão de papéis de funcionário e de patrão, de ladrão que é roubado,
de vilão que suas expectativas frustradas. Por sua vez a interferência de séries diz
respeito ao fato de duas séries de acontecimento independentes se sobreporem e
propiciarem uma possibilidade de dupla interpretação, como acontece no qüiproquó.
Bérgson também estuda as diversas formas do cômico verbal, do trocadilho à
paródia. Nesse sentido, reservamos algumas de suas considerações para ilustrar as
estratégias do riso utilizadas em nosso corpus. Segundo o autor a “comicidade da
linguagem deve corresponder, tintim por tintim, à comicidade das ações e das situações,
e que, se nos for permitido exprimir-nos assim, ela não passa de sua projeção no plano
das palavras” (op.cit., p.82). Portanto, podemos afirmar que é, principalmente, pela
linguagem que a comicidade vem à tona.
A comicidade de caráter é a forma mais elevada de manifestação cômica e se
encontra no que Bérgson chama de “alta comédia”. Trata-se do cômico do personagem
de comédia, um personagem tipo marcado pela rigidez de caráter, isto é, pela
insociabilidade, que é corrigida pelo riso. O autor volta a enfatizar que essa rigidez de
caráter não deve emocionar o espectador, porque “o riso é incompatível com a emoção.”
O autor afirma: “Descreva-se um defeito que seja o mais leve possível: se me for
apresentado de tal maneira que desperte minha simpatia, ou meu medo, ou minha
piedade, pronto, não consigo rir dele” (op.cit., p. 104). Na comicidade de caráter,
ocorre a fusão dos conceitos tratados por Bérgson sobre o riso. É o que o próprio autor
ratifica, quando afirma: “Rigidez, automatismo, distração, insociabilidade, tudo isso se
interpenetra, e é de tudo isso que é feita a comicidade de caráter.” (op.cit., p.110).
13
Comédia ligeira e divertida, de enredo fértil em intrigas e maquinações, que combina pantomima,
dança e/ou canções; divertimento teatral composto de vários números, p. ex., acrobacias, esquetes
cômicos, danças, canções, animais amestrados etc., sem relação entre si. (Dicionário Houaiss).
45
3.3 – Propp e os tipos de riso
Em sua obra Comicidade e Riso, o pensador russo Wladimir Propp (1895-1970)
faz importantes reflexões sobre o riso. O autor critica definições teóricas, surgidas no
século XIX, que estabeleciam diferenças entre aspectos da comicidade como cômico
superior e cômico inferior, cômico alto e cômico baixo, cômico vulgar e cômico sutil ou
ainda fino e grosseiro. Segundo o autor, essa “escolha dos epítetos negativos que
envolvem o conceito de cômico, a oposição do cômico e do sublime, do elevado, do
belo, do ideal etc., expressa certa atitude negativa para com o riso e para com o cômico
em geral e até certo desprezo” (Propp,1992, p.20).
Para o autor a diferenciação entre conceitos do cômico denuncia uma
diferenciação social. Com isso, “o aspecto refinado da comicidade existe para as
pessoas cultas, para os aristocratas de espírito e de origem. O segundo aspecto é
reservado à plebe, ao vulgo, à multidão” (op.cit., p.23). Ele constata, porém, que, pelo
fato de a vulgaridade ser encontrada em todos os setores da produção literária, os
conceitos que diferenciam o cômico tornam-se ilógicos e inconsistentes.
Em suas ponderações a respeito da comicidade suscitada pelos aspectos físicos,
Propp afirma que o riso surge quando se explicitam os defeitos que o indivíduo gostaria
que ficassem implícitos. Para embasar sua teoria, o autor usa o exemplo de um orador
que, durante uma palestra, é interrompido pela incômoda presença de uma mosca. A
presença da mosca dispersa a atenção dos ouvintes, eles não ouvem o orador, mas
olham para ele. “A atenção se transfere de um fenômeno de ordem espiritual, para um
fenômeno de ordem física” (op.cit, p. 42). Mas esse deslocamento de atenção não foi a
única condição do riso; para o autor, o episódio da mosca revelou algum defeito oculto
nas ações ou na natureza do orador.
Em outro exemplo de Propp, um gordo vai a um tribunal para fazer uma queixa,
mas entala em uma porta. Nesse caso o riso surge quando se constata que circunstâncias
de caráter exterior são mais fortes do que o desejo do homem. A situação tem seu foco
desviado para a natureza física do homem. O riso surge para punir este deslocamento
das ações interiores para as formas exteriores que revela o defeito e o torna evidente
para todos. Propp adverte, porém, que “nem todos os defeitos provocam o riso, somente
os mesquinhos” (op.cit., p.44).
Os defeitos, segundo o autor, por revelarem alguma debilidade do organismo,
representam uma transgressão da norma biológica. Por falar em normas, a vida em
46
sociedade se tornou possível por conta do respeito a normas determinadas pelo homem.
Cada povo, por meio de sua cultura e dos seus costumes, estabeleceu padrões de ordem
pública, social e política. A não observação desses padrões, ou seja, a transgressão
desses ideais coletivos é percebida como defeito e suscita o riso à medida que
ridiculariza o transgressor (op.cit, p.60).
Para ilustrar como as mudanças e atualizações nas normas, se não
acompanhadas, podem ridicularizar o transgressor desatento, suscitando o riso, Propp
faz menção à efemeridade da moda, mas não à moda, “mas em geral qualquer roupa
extravagante que destaque o homem do seu meio. Do mesmo modo que se ri das modas
novas, ao contrário, são ridículas as roupas fora de moda que às vezes as velhas vestem
de acordo com o uso de seu tempo” (op.cit., p.63).
Propp reconhece, no entanto, que a comicidade inerente ao aspecto físico não
está somente nos defeitos que transgridem a harmonia da natureza ou da sociedade.
Pode ser encontrada também nas deformidades naturais que são risíveis simplesmente
por contrariar noções de harmonia e proporção, como acontece nos reflexos distorcidos
das imagens obtidas nos espelhos de parques de diversões. Por serem naturais, tais
deformidades explicam o riso de crianças e pessoas ingênuas, que consideram ridículas
“grandes pintas peludas, enormes orelhas de abano, olhos estrábicos ou saltados, lábios
caídos, papo grande, boca torta, narizes vermelhos” (op. cit., p.64).
Atribuir ao homem uma aparência de animal é outra importante consideração de
Propp sobre a comicidade inerente aos aspectos físicos. Segundo o autor, o riso só surge
quando a aparência do animal nos faz lembrar qualidades negativas dos homens.
“Chamar uma pessoa com nome de um animal qualquer é a forma mais difundida de
injúria cômica tanto na vida como nas obras literárias. Porco, asno, camelo, gralha,
cobra, etc. são xingamentos comuns que suscitam o riso dos espectadores” (op. cit.,
p.67).
Da mesma forma, comicidade na comparação do homem a uma coisa que
expressa algum defeito seu, como é o caso de pessoas gordas descritas como almofadas,
barris e colchões. Nesse sentido, é interessante assinalar duas diferenças que Propp
aponta em seus conceitos com relação aos de Bérgson. A primeira diz respeito ao fato
de que Bérgson, ao afirmar que rimos toda vez que uma pessoa nos a impressão de
coisa, não menciona que o riso só surge quando “a coisa é intrinsecamente comparável à
pessoa e expressa algum defeito seu” (op. cit., p.75). A outra é acerca da afirmação de
47
Bérgson de que atitudes, gestos e movimentos são ridículos na medida em que
representam uma mecanização do corpo. Sobre isso, Propp discorda e usa o
funcionamento interno do corpo humano como exemplo de um mecanismo preciso que
não é ridículo. Propp defende que a automatização dos movimentos é ridícula nas
mesmas condições em que uma coisa é ridícula.
Embora não a mesma nomenclatura, os conceitos que abordamos até este
ponto da teoria de Propp se assemelham à comicidade de formas e movimentos
discutida por Bérgson. O mesmo ocorrerá com a comicidade de situação e de palavras,
que Propp considerará por meio de instrumentos lingüísticos da comicidade e situações
cômicas, como as de vaudeviles, também exploradas por Bérgson. Da mesma forma a
comicidade de caráter sediscutida por meio dos caracteres cômicos e dos alogismos,
temas propostos por Propp. Assim como fizemos com alguns conceitos de Bérgson,
também reservamos alguns conceitos de Propp para ilustrar a análise que fizemos do
nosso corpus.
Em vez de sustentar a divisão do cômico por classes sociais, Propp propõe uma
discussão concreta a respeito da ligação entre as formas de comicidade e as
manifestações do riso. Partindo da premissa aristotélica de que o riso é exclusivo do
homem, o autor enumera diferentes aspectos do riso ligados a diferentes atitudes do ser
humano e observa como tais atitudes constituem um dos principais objetos da comédia.
Das análises que realiza infere que o riso de zombaria é o aspecto risível mais
ligado à comicidade. Isso porque o riso de zombaria, também entendido como derrisão,
ridicularização e escárnio, é o tipo de riso que mais se encontra na vida e na arte. A
importante ponderação do autor é no sentido de que se a comicidade está associada ao
“desnudamento dos defeitos, manifestos ou secretos, daquele ou daquilo que suscita o
riso” é possível que exista “apenas um gênero de riso e que sua multiplicidade não passa
da multiplicidade de seus aspectos e de suas variantes” (op.cit., p.171).
Segundo Propp, as causas que suscitam o riso de zombaria, bem como outros
tipos de risos, estão vinculadas às “condições de ordem histórica, social, nacional e
pessoal” (op.cit., p. 32). Assim, cada povo construiria seu sentido próprio e específico
de humor e de cômico, de acordo com o contexto histórico e social em que está inserido
em determinada época. Dessa forma, determinados sentidos de comicidade, produzidos
em determinados períodos, seriam incompreensíveis em outros.
48
A respeito de outros tipos de riso considerados por Propp, destacamos o riso
maldoso ou cínico. Semelhante ao riso de zombaria, o riso cínico também se manifesta
com o desnudamento de um defeito oculto, mas, nesse caso, os defeitos são
aumentados, inflados, alimentando assim os sentimentos maldosos, ruins e a
maledicência. Esse riso não suscita a simpatia, porque os que riem maldosamente não
acreditam em nenhum impulso nobre, sentem prazer pela desgraça alheia e vêem em
todo lugar a falsidade e a hipocrisia.
O riso alegre é uma categoria de riso que não está ligada a algum defeito oculto.
Desse riso sabem rir pessoas alegres por natureza, boas, dispostas ao humorismo. Este
riso elimina a emoção negativa, apaga a cólera e a ira, vence a perturbação e eleva as
forças vitais, o desejo de viver e de tomar parte da vida. O autor faz menção ao sorriso
de um recém-nascido que alegra a mãe e a todos que o cercam, além do fato de o
próprio recém-nascido, ao crescer, sorrir alegremente de qualquer manifestação
significativa da vida que lhe agrade.
o riso ritual que atribui ao riso uma capacidade de elevar e despertar “as
forças vitais”. Esta concepção sobre a força vivificadora do riso é encontrada na
Antiguidade e em mitos primitivos referentes à idéia de fertilidade. Outra categoria é a
do riso imoderado, desenfreado. Propp caracteriza esse riso como rabelaisiano, porque
nos domínios de Rabelais as pessoas se abandonavam a comilanças e bebedeiras
desenfreadas e aos tipos mais diversos de divertimento. “Porém, este riso não zomba
nem satiriza, é de um gênero completamente diferente: trata-se de um riso alto,
saudável, pleno de satisfação. (...) Ele expressa a alegria animal de sua própria natureza
fisiológica” (op.cit., p. 167).
3.4 – Uma pincelada do humor de Raskin
Em sua obra, Semantic Mechanisms of Humor, Victor Raskin (1985) apresenta
uma importante teoria lingüística sobre o riso: uma teoria baseada em scripts. O autor
afirma: “A teoria do humor baseada em scripts fornece um paradigma universal
totalmente neutro em relação às principais teorias sobre o humor, pois não se envolve
com a veracidade ou falsidade das premissas apresentadas por elas
14
(Raskin, 1985, p.
132).
14
“The script-based theory of humor provides a universal framework which is a completely neutral with
regard to the major theories and non-committal as to the truth or falsity or their claims.” (Trad. nossa)
49
No início de seu estudo, Raskin propõe uma fórmula para a produção do humor.
A fórmula traça o caminho que uma situação deve percorrer para culminar no humor.
Segundo o autor, o HU (HUmor) é composto pelos seguintes elementos: S (Speaker =
falante), H (Hearer = ouvinte), ST (STimulus = estímulo), E (Experience =
experiência), P (Psychology = psicologia), SI (SItuation = situação), SO (SOciety =
sociedade). Quando a função do humor é bem sucedida, temos que X = F (Funny =
engraçado); quando não, temos X = U (Unfanny = sem graça), na seguinte fórmula:
HU (S,H,ST,E,P,SI,SO) = X, onde X = F (FUNNY) ou X = U (UNFANNY)
Para o humor verbal, definido como VJ (verbal joke), a fórmula sofre uma
pequena alteração, porque segundo o autor, neste caso, o estímulo é sempre um Texto
(T). No humor verbal, a situação de humor, para atingir o riso, tem que considerar a
Experiência, a Psicologia e a Sociedade tanto do falante quanto do ouvinte. A partir
dessa definição, a fórmula, a seguir, pode ser aplicada com êxito ao nosso corpus.
VJ (S, H, T, E
s
, E
h
, E
s,h
, P
h
, SI, SO
s, h
) = F
Uma questão importante levantada por Raskin diz respeito à intencionalidade do
humor. Para o autor, o humor pode ser não intencional ou intencional, “o primeiro tipo
ocorre quando alguém diz alguma coisa (ou alguma coisa acontece) e o observador
percebe isso como engraçado; o que é inesperado para o falante. O último ocorre,
quando o falante quer ser engraçado e, de fato, faz um esforço para sê-lo”
15
(op. cit., p.
27). O esforço do falante para ser engraçado inclui a zombaria, o deboche, a ironia, a
brincadeira e pode se manifestar por meio da piada, da adivinhação, da charada, do jogo
de palavras e do conto.
A intencionalidade no texto cômico é atingida quando duas condições são
preenchidas: 1º.) O texto é compatível, em parte ou na totalidade, com dois scripts
diferentes, ou seja, uma sobreposição de scripts; 2º.) Os dois scripts sobrepostos
apresentam algum tipo de oposição e é desta oposição que decorre o humor
16
(op. cit.,
p. 99). Segundo Raskin, quando somente uma condição é preenchida o texto torna-se
ambíguo, mas não necessariamente cômico. É a relação entre a ambigüidade e a
15
“In somewhat simplistic terms, the former kind occurs when somebody says something (or something
happens) and the observer perceives it as funny, usually unexpectedly for the speaker. The latter occurs
when the speaker intends to be funny and actually makes an effort to be so.” (Trad. nossa)
16
“(i) The text is compatible, fully or in part, with two different scripts; (ii) The two scripts with which
the text is compatible are opposite in a special sense defined in section 4. The two scripts with which
some text is compatible are said to overlap fully or in part on this text.” (Trad. nossa)
50
sobreposição de scripts que produz um jogo verbal responsável por transformar a
comunicação bona-fide (séria) em non-bona-fide (não séria); característica necessária
para produção do humor. É o que acontece quando se conta uma piada, como constata o
autor:
A mudança da comunicação bona-fide para o modo comunicação non-bona-fide, forma
mais acessível e aceitável de contar piadas, se fundamenta no conceito básico do jogo,
que é prontamente assumido pelas pessoas como a forma mais natural de
comportamento e que compreende um jogo com regras mutuamente agradáveis
17
(op.
cit., p.104).
Neste jogo, as
regras de comunicação têm máximas bem distintas. Compreendê-
las significa clareza para distinguir entre um discurso sério e uma piada. Segundo o
autor (op. cit., p. 103), no modo bona-fide, as quatro máximas são as seguintes:
1. Máxima da quantidade: Dê toda a informação necessária;
2. Máxima da qualidade: Diga apenas aquilo que você acredita ser verdadeiro;
3. Máxima da relação: Seja relevante;
4. Máxima do modo: Seja sucinto.
Para o modo non-bona-fide, as máximas são outras em função do discurso ser
cômico. Ficam da seguinte forma:
1. xima da quantidade: Dê somente a informação necessária para a piada;
2. xima da qualidade: Diga apenas aquilo que é compatível com o mundo da piada;
3. xima da relação: Diga apenas o que é relevante para a piada;
4. xima do modo: Conte a piada eficientemente.
18
Dessa forma pretende-se evidenciar que o riso decorre do modo non-bona-fide,
(não sério) pois neste tipo de comunicação a interação lingüística entre falante e ouvinte
pode ocorrer sem que a verdade dos fatos e a relevância das informações sejam
imprescindíveis. Pelo contrário, o prazer do riso decorre da competência em entender
17
“The easy shift from bona-fide communication to joke telling as the most accessible and acceptable
form of non-bona-fide communication may be underlaid by the basic concept of play, which is readily
assumed by people as a natural form of behavior and which conforms to a set of mutually agreeable
rules.” (Trad. nossa)
18
“(i) Maxim of Quantity: Give exactly as much information as required;
(ii) Maxim of Quality: Say only what you believe to be true;
(iii) Maxim of Relation: Be relevant;
(iv) Maxim of Manner: Be succinct.
(...) The maxims on which the cooperative principle for the non-bona-fide communication mode of joke
telling based must be different:
(i) Maxim of Quantity: Give exactly as much information as is necessary for the joke;
(ii) Maxim of Quality: Say only what is compatible with the world of the joke;
(iii) Maxim of Relation: Say only what is relevant to the joke;
(iv) Maxim of Manner: Tell the joke efficiently (...).”(Trad. nossa)
51
pistas, captar gatilhos, mudar de scripts. É o que ratifica o autor, quando afirma: “O
humor parece representar a mais aceitável forma de comunicação na nossa sociedade
depois da comunicação bona-fide (séria)
19
” (op. cit., p. 104).
O esclarecimento sobre essas formas de comunicação nos ajuda a compreender a
sobreposição de scripts. Em um texto o primeiro script geralmente é bona-fide e o
segundo non-bona-fide, e a ligação entre esses scripts é o que o autor chama de gatilho
(trigger). O gatilho é o elemento disparador do humor, porque por meio dele destaca-se
a ambigüidade ou a contradição existente entre os scripts. Sobre esse assunto, Raskin
afirma: “O efeito habitual do gatilho é exatamente este: ao introduzir o segundo script
ele cria uma sombra no primeiro e na parte do texto que o introduziu, impondo-lhes
uma nova interpretação, diferente daquela que parecia a mais óbvia
20
(op. cit., p. 114).
A função do gatilho é levar o leitor a uma revisão interpretativa. O autor do texto
prepara o leitor para a segunda interpretação por meio de pistas que se tornam óbvias
após o acionamento do gatilho.
Raskin reitera que a produção do humor será eficiente sempre que o falante
responder ao “impulso de fazer a piada” (op.cit., p. 140) e respeitar os fatores de criação
do humor discutidos até aqui. O autor sintetiza estes fatores da produção do humor da
seguinte forma (op.cit., p. 140):
1. A oscilação no modo bona-fide para o modo non-bona-fide de comunicação;
2. O texto da piada;
3. Dois scripts parcialmente superpostos compatíveis com o texto;
4. Uma relação de oposição entre dois scripts;
5. Um gatilho, óbvio ou implícito, que realiza a relação de oposição.
21
Raskin aplica esta teoria semântica em três tipos específicos de humor: o sexual,
o étnico e o político. Embora o nosso material de estudo não trate especificamente do
humor contido em piadas, objeto de estudo de Raskin, suas considerações sobre a
produção do humor poderão ser constatadas em nossa análise. Principalmente no que
19
“Humor seems to be the next most socially acceptable form of communication in our society after
bona-fide communication.” (Trad. nossa)
20
“The usual effect of the trigger is exactly this: by introducing the second script it casts a shadow on the
first script and the part of the text which introduced it, and imposes a different interpretation on it, which
is different from the most obvious one.” (Trad. nossa)
21
1. A switch from the bona-fide mode of communication to the non-bona-fide mode of joke telling;
2. The text of an intended joke;
3. Two (partially) overlapping scripts compatible with the text;
4. An oppositeness relation between the two scripts;
5. A trigger, obvious or implied, realizing the oppositeness relation. (Trad. nossa)
52
diz respeito ao humor sexual, manifestação sobre a qual Raskin dedica todo um
capítulo, e que é uma estratégia do riso explorada por José Cândido de Carvalho, autor
de nosso corpus.
3.5 – A contribuição de Possenti
Uma relevante contribuição de Possenti (1998), a respeito da discussão em torno
das estratégias do riso, está em apontar aos lingüistas o questionamento a que devem
buscar responder quando quiserem apurar os mecanismos lingüísticos de produção do
humor. Segundo o autor, os lingüistas devem se preocupar em apreender o “como” o
riso é deflagrado, pois outras ramificações da ciência, como a sociologia, psicologia e a
antropologia, já se ocuparam, e insistem, em interpretar e explicar o “porquê”.
A lingüística se fixou como ciência a partir da segunda metade do século XX.
Sendo relativamente recente, sofreu influências e interferências de outras disciplinas.
No estudo das estratégias do riso não foi diferente. Por isso, Possenti discute alguns
conceitos com o propósito de evidenciar a distinção entre as análises lingüísticas e
outros tipos de análises do humor. Começa por indicar o tipo de questionamento que
deve nortear o lingüista. O autor afirma:
A melhor maneira de estabelecer a diferença entre um tratamento lingüístico das piadas
e outra abordagem qualquer dos mesmos textos talvez seja utilizar os termos de Raskin,
segundo o qual a lingüística explica o “como” e não o “porquê” do humor. Ou, nos
termos de uma distinção clássica e retomada por Jameson, a propósito de textos
literários, em O inconsciente político, não se tentará aqui explicar o que as piadas
significam, mas como funcionam (op.cit., p. 15-6).
O autor introduz a polêmica reconhecendo que “são incontáveis os estudos sobre
o humor e sobre aquilo que faz as pessoas rirem” (op.cit., p. 13), mas poucos se voltam
aos aspectos lingüísticos envolvidos no humor. E isso ocorre porque o estudo lingüístico
do humor é discriminado. Ele afirma: “Não sei por quais razões todos esses
explicadores imaginaram que tratar dos fatores lingüísticos é chato e tratar dos fatores
psicológicos, sociológicos, culturais, etc. é charmoso” (op.cit., p. 20).
Na história do riso, como pudemos observar durante nossa pesquisa, este sempre
foi considerado, desde a época de Aristóteles, um gênero inferior, menos nobre. A falta
de interesse pelos mecanismos lingüísticos, apontado por Possenti, pode ser um reflexo
deste preconceito maior, o de considerar o humor um gênero menor. O autor reafirma o
desinteresse, quando constata que não existe uma lingüística do humor. Ele pondera:
53
“No máximo, existem lingüistas que trabalham eventualmente sobre ou a partir de
dados colhidos em textos humorísticos.” (op.cit., p. 21).
Em suas análises lingüísticas de piadas, o autor faz constantes referências a
conceitos – já abordados por nós – de Raskin e Freud. De Raskin, por exemplo, Possenti
destaca os fatores de produção do humor e ressalta “a descrição dos gatilhos e das
razões que fazem um texto ser compatível com mais de um script(op.cit., p. 23) como
importante aspecto para o lingüista apreender qual a característica textual e/ou verbal da
piada. Para Possenti, Freud transformou os chistes em uma rica fonte de análise que
pode servir para os lingüistas estudarem “as propriedades essenciais das línguas
naturais, tanto de sua ‘estrutura’ como de seu ‘funcionamento’” (op.cit., p. 23).
Nas análises de lingüísticas, em que se pode destacar o humor por meio da
sintaxe, da morfologia, da fonologia, das regras de conversação, das inferências, das
pressuposições, etc., como o fez Possenti, é a ambigüidade, o duplo sentido resultado
dessas estratégias – responsável por deflagrar o riso.
Para nós, a discussão em torno dessas estratégias lingüísticas do humor é
importante uma vez que contribui para uma reflexão sobre a presença de tais estratégias
em nosso corpus.
3.6 – As considerações de Travaglia
Travaglia, em suas pesquisas, faz considerações sobre o uso dos scripts e
mecanismos da comicidade para a obtenção do riso. O autor não é muito favorável a
idéia do riso pelo riso porque a finalidade do humor é a crítica e a denúncia. Ele aborda
os demais objetivos, como a liberação, que tem caráter sócio-psicológico, pois por meio
do humor se rompe a proibição e a censura social imposta ao indivíduo ou a grupos. O
autor infere que toda forma de humor, no fundo, tem essa finalidade liberadora.
Outro objetivo do humor é a crítica social, que pode ser política ou de costumes;
pode se dirigir a instituições, serviço, governo, caráter ou tipo humano. Tendo em vista
a melhoria da sociedade, o humorista expõe o absurdo e o ridículo de muitos
comportamentos humanos para que o homem veja a necessidade de mudança na
estrutura social vigente. Outro objetivo do humor é a denúncia de comportamentos
explícitos, admitidos e mesmo incentivados pela sociedade.
Do ponto de vista da categoria de assunto, Travaglia (op.cit., 54) relaciona uma
categoria de humor, a saber:
54
humor social, que enfoca grupos sociais e tipos humanos através da crítica de suas
características, costumes, preconceitos, atitudes, da denúncia do que fazem contra a
própria sociedade ou ajudando-os a libertar-se de amarras de que são vítimas.
A cada um desses tipos de denúncia corresponde uma subcategoria de tipos de
humor: político, de costumes, de instituições, de serviços, de caráter, de governo, de
classes, de língua.
Travaglia destaca alguns scripts de humor. Dentre eles, o da estupidez, que
ressalta a dificuldade de alguma personagem para perceber as situações exatamente
como o público as vê. Oposto a esse é o script da esperteza ou da astúcia, segundo o
qual a personagem vale-se de sua esperteza para obter vantagens em certas situações.
Um terceiro script é o do ridículo, em que se destaca certa inadequação por meio do
exagero de situações, de caracteres ou de palavras. A esse, soma-se o do absurdo, que
contraria o senso comum estabelecido, a razão, escapando a regras ou condições
determinadas; é a fuga das evidências estabelecidas. Por fim, o autor destaca o script da
mesquinhez, isto é, da personagem dada a miudezas, sobretudo no que se refere a dar
algo a alguém.
Aos scripts estão aliadas às estratégias lingüístico-discursivas do riso. Das
analisadas por Travaglia, destacamos a ironia, a ambigüidade, a contradição e o
exagero, que estão presentes no humor de José Cândido de Carvalho. Esta categorização
de Travaglia, embora trate do humor especificamente a partir da análise de programas
humorísticos televisivos, foi muito útil para nossa análise por assinalar, assim como é
nossa pretensão quando da análise do corpus, a comicidade de situação e de palavras.
55
CAPÍTULO 4
ANÁLISE DO CORPUS
Até este momento, nossa pesquisa se preocupou em traçar uma linha geral da
história do riso. Constatamos que desde a Antiguidade até os tempos atuais o riso e o
risível sempre estiveram atrelados a uma ambivalência. Estudiosos, filósofos, lingüistas
e escritores estabeleceram discussões sobre o risível que transitavam entre o sagrado e o
profano, entre o prazer e a dor, entre o bem e o mal.
Uma característica recorrente nas discussões sobre o riso, antigas e atuais, ainda
que com certa variação entre uma e outra, é a distinção ou divisão das categorias do riso
entre cômico de ação e cômico de palavras. O fato de termos abordado o assunto
reiteradas vezes durante nossa pesquisa, aliado à verificação desta recorrência em nosso
corpus, permitiu-nos apresentar uma análise abrangente sobre as ações e as palavras
usadas por José Cândido de Carvalho para suscitar o riso.
Mas não nos prendemos somente às ações e às palavras. Apoiados
principalmente em Bérgson e Propp, incluímos em nossa análise as categorias do
cômico de formas e movimentos, e do cômico de caráter. Desse modo, a análise dos
contos selecionados, dar-se-á nos aspectos que o autor utilizou para enfatizar as quatro
categorias previamente estabelecidas, a saber: cômico de formas e movimentos, cômico
de ações ou situações, cômico de palavras e cômico de caráter.
Embora cada conto selecionado tenha sua narrativa acentuada necessariamente
por uma das quatro categorias a que nos referimos, no processo de análise foi possível
detectar correlações entre elas. Ainda que menos importante do que a categoria
principal, a secundária, sempre que detectada, foi apontada e devidamente explicada.
Para facilitar a localização dos contos em Porque Lulu Bergantim não
atravessou o Rubicon, em parte anexa a este trabalho, além do sumário próprio da obra,
enumeramos conto a conto, do número 1 ao 151. Dessa forma, além da página,
referiremo-nos aos contos pelo seu número. Isso porque, muitas vezes, mais de um
conto em uma mesma página.
56
4.1 – Do cômico das formas e movimentos
4.1.1 – Aspectos físicos
A descrição detalhada das formas ou aspectos físicos das suas personagens é um
recurso explorado por José Cândido de Carvalho para produzir o riso em seus contos.
Entendemos por aspectos físicos, não a deformidade física, como também o homem
com aparência de animal, o homem-coisa, gesticulação exagerada, a imitação, a
comicidade de diferenças e de semelhanças, além de deformações causadas por roupas e
odores; assuntos que exploramos em nosso referencial teórico.
Nos contos selecionados destacamos o riso suscitado pelas características físicas.
No entanto, é possível se perceber outros aspectos que serviram ao autor para provocar
o riso, como a distração dos personagens e características lingüísticas do cômico
representado por metáforas, comparações, contradições e hipérboles que indicaremos à
medida que se apresentarem.
Sob o título ‘Os elefantes do tempo’, o conto 51 (p. 66-7) é o relato de um casal
que, enquanto se arruma para sair, reflete sobre as condições físicas de um e de outro.
Para o marido, a mulher “era um completo e acabado mafuá. Tinha de tudo, desde
verruga no pescoço de zebu a esporão de galo nos pés.” Segundo o marido, se ela
passasse na porta do circo seria contratada como elefante. A mulher por sua vez sente
pena do marido. Outrora era “o sabiá-laranjeira de Brás de Pina”, agora mais parecia
“um boi de presépio”, e conclusiva afirma que se “pelanca fosse dinheiro” seu marido
seria o “Banco do Brasil em pessoa.” Já na rua, envolvidos em seus pensamentos, nem
dão ouvidos à zombaria de um bêbado que ao vê-los garante haver circo novo na
praça”, porque “a elefantada está chegando!” Ela “em cima dos seus cem quilos” e ele
“comboiando uma barriga de balão”.
As marcas do autor para tornar o conto cômico são: a distração do casal
assinalada pela narrativa reflexiva; a comparação que fazem de si mesmos a animais
presente em frases como: verruga no pescoço de zebu, esporão de galo nos pés, elefante,
sabiá-laranjeira; as metáforas pejorativas: completo e acabado mafuá, boi de presépio; a
aliteração presente na repetição da letra b e o exagero cômico, marcado pela hipérbole
em expressões como: Banco do Brasil em pessoa, barriga de balão. Destaca-se ainda o
nome do marido, Moscoso, citado 9 vezes no conto, que utiliza o sufixo oso que,
linguisticamente, está relacionado com abundância, existência em grande quantidade.
57
O conto 22 (p. 41-2), sob o título ‘Amor imortal morre de tarde’, relata o
“encontrão” ou “esbarrão” de duas pessoas que quarenta anos antes haviam sido muito
apaixonadas. Sem se reconhecerem, Castro pondera: “- Uma ilha desta tonelagem devia
andar no meio da rua, com placa de caminhão nas costas. É páreo para ônibus e não
para gente de calça e botina.” E Mercedes: “- Cada tipo esquisito! Parece, de tão gordo,
que está esperando criança. Se tivesse espelho em casa devia reparar que aquela sua
cara de engomador elétrico não pode usar óculos nem costeleta. É cara para tomada de
parede.”
O autor mostra uma predisposição para o cômico no título do conto, pois faz
uso de um oxímoro - figura de linguagem utilizada para harmonizar dois conceitos
opostos numa expressão, formando assim um terceiro conceito. Aliado a essa
contradição no título, a distração do casal corrigida pelo encontrão, esbarrão e a
coisificação do homem uma ilha desta tonelagem, cara de engomador elétrico, cara de
tomada de parede assinalando uma tendência do autor pelo cômico causado pelo
exagero, pelo processo hiperbólico.
Neste caso, é importante ressaltar como dois conceitos tratados por de Bérgson
(2001) evidenciam a veia cômica de José Cândido. O primeiro afirma que, para a pessoa
que segue seu caminho sem se preocupar com os outros, “o riso estará para corrigir
sua distração e para tirá-la do seu sonho” (op.cit., p.43) e o segundo assegura que
“rimos sempre que uma pessoa nos dá a impressão de coisa” (op.cit., p.100).
No conto 55 (p. 73-4), sob o título ‘Como era verde o meu canhão’, há o
reencontro de um homem com a mulher que trinta anos antes tinha sido seu amor. Na
época fora impedido de namorá-la sob a ameaça de levar bala de canhão. Hoje era
agradecido àquele canhão, porque ela estava “enorme, vazando gordura pelas
presilhas.” aqui uma referência implícita a gíria canhão para referir-se a mulher feia
ou sem atrativos. Aquela senhora “devia andar movida à gasolina e sobre rodas de
borracha”. Há aqui uma referência ao canhão enquanto peça de artilharia, máquina de
guerra. “Era melhor ser Papai Noel de casa de fazenda do que casar com aquele
latifúndio.” Há aqui um trocadilho lingüístico entre as palavras latifúndio e fazenda.
O título do conto 55 faz alusão a um filme da década de 1940 intitulado ‘Como
era verde o meu vale’. No filme assim como no conto os personagens recordam uma
época já passada com saudosismo. José Cândido muitas vezes busca a comicidade
existente no discurso polifônico, ou seja, na comparação, na alusão e na referência a
58
provérbios, slogans e ditados. Segundo Maingueneau (2005, p.170), por não explicitar a
fonte do enunciado, José Cândido delega ao co-enunciador a responsabilidade de
“identificar o provérbio como tal, apoiando-se, ao mesmo tempo, nas propriedades
lingüísticas do enunciado e em sua própria memória”. No caso do título do conto ocorre
o que Maingueneau denomina de subversão, ou seja, “quando o texto que imita visa
desqualificar o texto imitado. Nesse caso a estratégia adotada é a da paródia” (op.cit, p.
173).
É interessante perceber que nos três contos analisados (22, 51, 55) o autor trata
da relação amor-beleza e obesidade-feiúra, tendo o tempo como intermediário ou causa.
O cômico criado pelas situações pode nos remeter a uma reflexão acerca da
impossibilidade de se amar obesos ou da impossibilidade de obesos de se amarem, pela
imposição do padrão de beleza ideal.
No relato do conto 12 (p. 32), sob o título ‘Na asa do último gás’, os serviços de
um anão são oferecidos ao Pavilhão Americano. O anão é descrito como o maior
saltador de altura da cidade. Com uma cacetada firme no tendão do pé, o sem-vergonha
saltava mais que macaco em roça de milho. “Já disse e repito. Salta mais que o vento,
mais que cabra e cabrito.” O cômico de José Cândido é evidenciado pela desproporção
na altura da personagem e na comparação do anão com animais macaco em roça de
milho, cabra e cabrito. Linguisticamente chama atenção o peso no nome Jonjoca-Meio-
Quilo com o fato de ele ser anão e também ser ele de Sapopira do Sul, em uma
referência indireta ao anuro saltador.
a feiúra de um rapaz era o que mais encantava uma rica moça na cidade de
São Sebastião da Várzea, segundo relata o conto 73 (p. 90-1), cujo título é ‘Um sujeito
de linhas mal traçadas’. No entanto, ao saber da paixão da menina, o rapaz realiza uma
modificação geral em seu visual e parte para “estraçalhar o coração da moça
apaixonada.” Quando ela o vê, fica decepcionada com a transformação e põe um ponto
final à paixão com estas palavras: “-Coitado! Mataram Zizito à tesourada de alfaiate.
Ficou uma vaquinha de presépio. Não serve nem para a gente botar na lata do lixo.” O
cômico está na inversão de valores de beleza padronizados e na coisificação da
personagem: vaquinha de presépio.
A teoria de que os aspectos físicos podem desviar a atenção do moral para o
físico e com isso suscitar a comicidade (cf. Bérgson, 2001, p. 38) vem ao encontro do
cômico produzido por José Cândido de Carvalho no conto 136 (p. 150-1). Sob o título
59
‘Tango argentino morto a pauladas’, é o relato de um tabelião que viaja de sua cidade
para o Rio de Janeiro para inteirar as autoridades do governo a respeito do que se passa
em sua região. Porém, ao chegar ao Rio, o tabelião toma um banho demorado, exagera
no perfume, muda as roupas tradicionais por roupas mais jovens e é visto a passear pela
rua do Ouvidor. E para piorar sua situação aprende a dançar tango, algo considerado
absurdo pelo relator dos fatos.
O cômico é percebido na transgressão à postura de autoridade determinada pela
sociedade. No relato havia uma motivação moral para a visita do tabelião. Porém,
quando alguns aspectos, como diferentes roupas e adereços, cheiros e atitudes,
deslocam a atenção do leitor do moral para o físico, frustram a intenção intelectual e
expõem um tabelião vaidoso, boêmio e folgazão, e com isso o autor obtém a
comicidade. O linguajar utilizado pelo personagem do conto é bastante característico,
provavelmente da região de São José dos Pilares. O destaque lingüístico está no
trocadilho existente no fato do tabelião trabalhar em uma repartição e colocar uma
roupa que “deixava a repartição traseira mais arrebitada do que rabo de tanajura”.
Dos exemplos analisados depreende-se que a comicidade suscitada pelo
exterior (físico, aparência) quando este se sobrepõe ao interior e torna claro um defeito
que se tenta ocultar. Assim como a comicidade suscitada pelo exterior, quando não
se tem a noção exata de tempo e espaço. E, por fim, a comicidade causada pelo
exterior somente por contrariar o padrão social de harmonia e proporção. A assertiva de
Propp (1992, p. 65), segundo a qual “têm razão os teóricos que, a começar de
Aristóteles, afirmaram a identidade entre o cômico e o disforme”, vem ratificar a
comicidade de aspectos físicos obtida por José Cândido de Carvalho.
4.2 – Do cômico de situação
4.2.1 – Contradição
Quando a ação vem de encontro ao que está previamente contextualizado e
entendido ou subentendido pelo leitor, dá-se o paradoxo. Historicamente o paradoxo
surge como elemento da retórica clássica. É importante considerar que a retórica, ou a
arte de convencer e persuadir surgiu em Atenas, na Grécia antiga, por volta de 427
A.C., quando os atenienses estavam vivendo a primeira experiência de democracia de
que se tem notícia na História. A retórica clássica se baseava na diversidade de pontos
de vistas, no verossímil, e não em verdades absolutas. Naquela época os professores de
60
retórica em Atenas utilizavam o paradoxo para contrariar o discurso do senso comum.
Uma das técnicas do paradoxo era criar discursos a partir de um antimodelo, ou seja,
escolhia-se algum tema sobre o qual já houvesse uma opinião formada e escrevia-se um
texto contrariando essa opinião
22
.
O paradoxo ou contradição é uma estratégia importante para suscitar o riso nos
contos porque, na maioria das vezes, lida com situações cômicas cristalizadas pelo uso.
Essas situações, normalmente, são engraçadas, independentemente das causas que nos
fizeram achar graça. É o que se constata no “caso das variações em torno do tema do
ladrão roubado. No fundo, trata-se sempre de uma inversão de papéis e de uma situação
que se volta contra quem a criou” (Bergson, 2001, p.70).
Esta perspectiva ilumina a comicidade suscitada em alguns contos de José
Cândido de Carvalho. É o que ocorre no conto 02 (p. 22-3). Sob o título ‘Viúva em
quatro maridos’, narra o desejo de Jundiaí Carapebus de “ficar livre de dona
Hermengarda e de sua mania de seguro de vida. Viúva de longo curso, pelos cuidados
de Hermengarda transitaram três maridos, fora Carapebus, que ainda estava em pauta.”
Ele a havia conhecido durante o luto do terceiro marido. “Funcionário de baixa
extração, viu que era negócio hipotecar a solteirice na caixa-forte da viúva.(...) Foi nesse
tempo que teve a idéia de acelerar a viagem de dona Hermengarda para o céu. Era
mesmo para rir. Hermengarda, de papada e óculos, voando para Deus.(...) Foi pena que
Jundiaí Carapebus pensasse nisso tão tarde. A bem informar, ele havia morrido dois dias
antes, do mesmo modo que finou o capitão Albernaz de Melo, afogado numa feijoada.
Subiu aos céus montado em toucinho e lombo de porco.”
Seguindo a mesma linha de raciocínio, em que o paradoxo suscita o riso, porque
as ações da personagem contradizem algo estabelecido ou esperado pelo leitor, também
está o conto 125 (p. 139-0). Nele o marido planeja a morte da esposa para apoderar-se
da herança dela. Ocorre que é ele quem morre ao escorregar num degrau podre. “Era o
quarto marido de dona Limocínia a tropeçar em degrau roído.”
Por meio destes dois relatos (02, 125), José Cândido suscita a comicidade pela
contradição em cada conto individualmente e pela repetição, no conjunto. O autor
reitera o conceito de comicidade de repetição abordado por Bérgson. As coincidências
22
http://books.google.com.br/books?id=oBESkw2IKhEC&pg=PA32&lpg=PA32&dq=retorica+classica+pa
radoxo&source=web&ots=ysjxJfErfm&sig=igsuIgwTwi49qpaMV90BDKiF7PA&hl=pt-BR#PPA33,M1,
consultado em 12.02.08
61
dos relatos ambos os maridos quererem dar um golpe na esposa, ambas as esposas
perceberem e agirem antes dos maridos e ambas se livrarem do quarto marido
contrastam “o curso mutável da vida” (Bérgson, 2001, p. 67). Remetem-nos a uma
reflexão sobre vaudevile (comédia ligeira e divertida) feita por Bérgson, que, aliás,
parece ter sido feita sob medida para José Cândido de Carvalho. Ao abordar essa forma
de construção do riso, ele pondera: “Mas a arte do contista e do autor de vaudeville não
consiste simplesmente em compor o dito. O difícil é dar-lhe força de sugestão, ou seja,
torná-lo aceitável. E o aceitamos porque ele nos parece sair de um estado d´alma ou
caber nas circunstâncias” (Bergson, 2001, p.47).
O conto 79 (p. 96) narra a história de um valente cobrador de dívidas que depois
de beber cachaça deixa vir à tona toda sua valentia. Designado para cobrar uma dívida,
conta vantagens e diz que faz e acontece. O fato é que o devedor o intimida por ser uma
pessoa grande e pela faca que carrega na cintura. E, depois de somar e diminuir, chega à
conclusão de que era a firma do cobrador que lhe devia dinheiro. O cobrador efetua o
pagamento ao devedor e sai da situação “feliz da vida”, achando ter feito a coisa certa e
dizendo que pedirá aumento na firma.
A comicidade de situação deste conto está na inversão de papéis. O riso é
provocado ao se perceber a contradição existente entre aquilo que o cobrador falou e
aquilo que de fato aconteceu. Novamente encontramos em Bérgson (2001, p.70) uma
ponderação que parece refletir o pensamento de José Cândido ao suscitar a comicidade
pela contradição: “É assim que rimos do réu que uma lição de moral ao juiz, da
criança que pretende dar lições aos pais, enfim daquilo que se classifique sob a rubrica
do “mundo às avessas.”
Nas análises realizadas constatamos que a contradição foi uma estratégia
explorada por José Cândido de Carvalho para suscitar o riso em seus contos.
Acreditamos importante finalizar estas considerações sobre a comicidade do paradoxo
mencionando Travaglia (1989, p.62) que conseguiu sintetizar as diversas manifestações
de contradição que provocam o riso. São elas:
negar o que é obvio pela situação; falar uma coisa e fazer outra; quando a ação, palavras
ou atitudes contradizem algo estabelecido ou esperado de um grupo, instituição ou
pessoa; o indivíduo falar de uma posição de sujeito que não é sua; quando duas pessoas
tendo um objetivo comum em relação a uma terceira se contradizem; quando imagem e
palavra se contradizem, ou seja, no uso de quaisquer dois elementos que se opõem e se
contradizem.
62
4.2.2 - Violência
Em 21 contos da obra que analisamos a comicidade é causada por uma narrativa
rica em ações violentas. Por isso, consideramos importante uma reflexão sobre a
representação da violência, ou ainda, ao discurso que a elabora e sua relação com a
comicidade, pois segundo Michaud (1989, p. 111): “A violência são os fatos tanto
quanto nossas maneiras de apreendê-los, de julgá-los, de vê-los – ou de não vê-los”
Em sua pesquisa, O discurso da violência As marcas da oralidade no
jornalismo popular, Dias (2003, p. 100) faz constatações a respeito de “uma violência
filtrada pela comicidade”. A autora pondera: “Os aspectos grotescos, maliciosos,
humorísticos acabam por amenizar a violência efetiva.” (op.cit., p. 115). Em outro
artigo, ao abordar a relação do jornal sensacionalista e sua relação com a comicidade,
Dias (2001, p. 214) afirma:
(...) como é o caso do humor, enquanto efeito de sentido, em notícias que tratam da
morte, do crime e de insucessos de várias ordens. Contudo, observamos que é matéria
do risível, no jornal popular, não propriamente o crime, o infortúnio, mas o modo como
tais acontecimentos são relatados e representados no discurso da notícia.
De fato, a descrição bem humorada de contendas e conflitos é uma estratégia
utilizada em nosso corpus para suscitar o riso. É nesse sentido que o riso do conto 40 (p.
56-7), sob o título ‘Saldos de uma tarde de verão’, narra o ocorrido no jogo entre o time
de Poço das Antas e “o pessoalzinho de Seridó da Serra.” Quando o juiz da partida
anulou “um gol feito com as duas mãos pelo time de Seridó da Serra”, deu-se o “Juízo
Final, uma coisa nunca igual inventada.” Depois de tudo serenado surgiram os “troféus
da guerra: cinco bonés, vinte e três garruchas, dez facas de matar porco, um mapa do
Ceará, um retrato do Padre Cícero, duas dúzias de patuás, um vidro do famoso Xarope
são Domingos e a gloriosa cadeira de rodas do major Nepomuceno Beirão que
comandou a imortal batalha.”
O conto 17 (p. 36-7), com o sugestivo título: ‘Porretada nos ipisilones da
confraternização geral’, segue a mesma linha narrativa. Relata a violência ocorrida
durante o jogo entre a equipe de Limoeiros e a equipe de Jacarezinho. “Serenado o
comício de cacetadas”, o delegado remeteu um relatório aos seus superiores em que
dizia que “o pessoal embirrou com a costeleta” de um “treze-de-maio, mulatão do time
visitante”. Mas o “piormente” aconteceu quando os visitantes, sem a menor
“respeitoria” pelo povo de Limoeiros, “deu de enfiar gol no cangote de gol. Aí, com
justas razões, o povo do distrito deixou de banda as boas educações e largou porretada
63
de fundir os ipisilones da dita confraternização”. Nem tudo foi prejuízo, “Dona
Escolástica de Araújo levou uma bolachada tão bem lavrada naquela cara de fogão a gás
que aprendeu a andar de bicicleta.”
O conto 54 (p. 73) também tem um título sugestivo: ‘Nos braços de uma
cacetada’, e narra a violência sofrida pelo “pobre juiz Fofó Cruz”. O jogo entre a equipe
de Jabuticabeiras e o “pessoalzinho sem caráter de Riachão do Norte”, ocorria de forma
tranqüila, até que o juiz marcou penalidade máxima e antes de autorizar a cobrança do
pênalti desmaiou “nos braços de uma cacetada que levou de dona Leôncia das Mercês,
impoluta madrinha do time de Jabuticabeiras.” Diante disso, “o povo desta jurisdição,
no maior ardor cívico, aproveitou para botar para correr um magote de cabeludos que
veio na rabeira do pessoal de Riachão do Norte. Foi tanta cacetada de tremer a praça do
Mercado.” No fim das cacetadas, os retirantes haviam deixado para trás: “quatro pneus
de caminhão, um motor, uma bateria, uma caixinha de pastilha Valda, um vidro de
brilhantina Quebra-Galho, dois bigodes e meio, duas costeletas em bom estado de uso,
uma cabeleira encaracolada que foi cortada a serrote, um anel de horóscopo, fotografia
de um disco voador, três bonés zebrados, o mapa do glorioso Estado do Piauí, uma carta
de pedido de emprego, um pacote de mariola, uma receita para queda de cabelo e o
retrato de uma certa Minervina Cunha (...)”.
Os três contos (40, 17, 54) se assemelham por narrarem brigas em disputas de
futebol. No conto 40 uma predisposição ao cômico no título, que estabelece um
diálogo com a comédia de William Shakespeare: ‘Sonhos de uma noite de verão’. Essa
relação entre entre textos é considerada intertextualidade e pressupõe um universo
cultural muito amplo e complexo, pois implica na identificação e no reconhecimento de
remissões a obras ou a trechos mais ou menos conhecidos. A intertextualidade está
ligado ao "conhecimento de mundo", que deve ser compartilhado, ou seja, comum ao
produtor e ao receptor de textos
23
.
Outra característica que suscita o riso e está presente, tanto no conto 40 quanto
no 54, é de fato o saldo da briga, com objetos inusitados como “dez facas de matar
porco, um mapa do Ceará” no 40 e “o mapa do glorioso Estado do Piauí, uma carta
de pedido de emprego” no 54. No conto 17 o riso é assinalado pela escolha lexical
“um treze-de-maio, mulatão do time visitante”, pois a data faz referência ao dia da
libertação dos escravos e é justamente o personagem pivô da confusão pelos
23
http://pt.wikipedia.org/wiki/Intertextualidade, consultado em 12.02.08
64
neologismos “piormente”, “respeitoria”, “justicialista” e pela metáfora hiperbólica e
caricatural – “cara de fogão a gás”.
Outras histórias também estão dentro da perspectiva de suavizar o discurso da
violência com uma narrativa cômica. É o que ocorre no conto 127 (p. 142-3). Sob o
título ‘Extrato de mulher é solavanco’ relata o conselho dado por Jordão de Araújo a
Neném Cruz: “- O negócio é meter a cara. Mulher não gosta de sujeito mariquinhas.
Gosta de sarrafo, Seu Neném. Energismo! Tu chega na aba da saia de Ocarina e vai
desempacotando naquela cara de marmita de operário o ventilador da mão. Quanto mais
firme o tapa mais ela vai apreciar. É o que eu digo sempre, Neném. Mulher gosta de
solavanco.” Neném segue o conselho do amigo e se mal. “Pois é. Cheguei e
despachei o braço na cara de engomador elétrico de Ocarina. A sarará tirou o corpo
fora, de modo a me largar um tapa-olho de Camões que não lhe conto! meti uma
cabeçada de bode velho. Outra vez a sarará, que parecia aparentada dos capetas, deixou
passar a minha cabeçada e na passagem largou o alicate da mão bem no meu passador
de farinha. desfolhei por cima de uns pés de espada-de-são-jorge e dei de espernear
como galinha na hora do facão.”
A violência do conto 127 provoca o riso por meio do uso de metáforas
hiperbólicas: “cara de marmita de operário” determina característica física da pessoa
que se pretende agredir, provavelmente um rosto comprido; “ventilador da mão”
caracteriza a agilidade do golpe, como o movimento circular do ventilador; “idéia de
mula-sem-cabeça” idéia absurda; “cara de engomador elétrico” mais uma forma
pejorativa de se referir à vítima; “um tapa-olho de Camões” golpe recebido pelo
agressor; “cabeçada de bode velho” referência a uma provável diferença de idade
entre agressor e a vítima; “passador de farinha” – referência a garganta; “funil da
respiragem” – referência ao nariz. O autor, na busca pelo riso fácil, fez escolhas lexicais
que empobreceram suas metáforas e, consequentemente, suas narrativas.
Nesse sentido também está o conto 33 (p. 50-1). Sob o título ‘Um mestre de
confissão espontânea’ narra o relato do delegado Xenxém Cardoso, de Cacimbas do
Livramento, a respeito da prisão de Vandílio Rosa. “Abri o processo com uma surra de
cipó que foi um santo vomitório. Na quarta rodada de embira, o indigitado suspeito
confessou um jacá de vandalismos, numa totalizagem de mais de oitocentos e cinquenta
e três e meio delitos. O escrivão Jurandino Chaves trabalhou duas semanas de modo a
meter em termos da Justiça tanta grandeza de maldade. Foi tanto crime e delitagem que
65
a gente teve que dar outra surra em Vandílio para o indigitado recuar e o arcar com a
responsabilidade da morte de gente que ainda está viva e vota no governo.”
O riso do conto 33 está no exagero cômico contido em expressões como: “quarta
rodada de embira (...) um jacá de vandalismos, numa totalizagem de mais de oitocentos
e cinquenta e três e meio delitos” e também na contradição presente entre forçar a
confissão e forçar a negação da confissão posteriormente.
4.3 – Do cômico de palavras
4.3.1 – Gíria
À medida que surpreende pela criatividade, pela originalidade e pela estranheza
que provoca, a gíria transforma-se em uma estratégia do riso. Surge como um fenômeno
sociolingüístico geralmente no vocabulário de grupos sociais restritos, cujo
comportamento se afasta da maioria pelo conflito que estabelece com a sociedade.
Converte-se em gíria comum no momento em que a linguagem do grupo deixa de ser
restrita e propaga-se para a sociedade, tornando-se conhecida e passando a fazer parte
do vocabulário popular (cf. Preti, 2004, p.66).
A gíria comum é “parte do vocabulário usado na linguagem da comunicação
cotidiana necessária, espontânea e despoliciada, falada comumente pela média da
população urbana e contaminada pelas linguagens especiais das pequenas comunidades”
(Urbano, 2001, p. 182). O homem moderno pode utilizar a gíria para enfatizar uma
postura crítica e contestadora frente às injustiças sociais. Nesse sentido, a gíria encontra
no riso grande aliado. É o que ratifica Preti (2004):
O vocabulário gírio, com seu humor, sua ironia, seu poder agressivo (quando não
injurioso), cumpre, também, o papel de um verdadeiro processo de catarse, de purgação
para o homem moderno, que nele encontra uma das formas de defender-se das injustiças
sociais, atacando-as no conservadorismo de sua linguagem, para compensar sua revolta
e frustração.
Sob o título ‘Amante de Sevilha com bofetada no terceiro ato’, o conto 133 (p.
147-8) faz uso da gíria para suscitar o riso ao narrar o teor da carta de Sandoval
Moscoso ao primo Betinho Moscoso de Barrinha de Serapuí. Ele relata que, desde que
fugiu com o dinheiro da Prefeitura de Barrinha, arrumou emprego no Circo
Internacional. “O trabalho mais pau-com-formiga que peguei foi de Judas. Sabe como é
o povinho dos matos, que só deseja ver o desgraçado do Judas estrebuchando nas cordas
do enforcamento. Em Iguabinha, lugar danado dos colarinhos, quase morri
66
dependurado. Na hora da figueira, naquele temporal feito de lata de querosene nos
ouvidos, um sem-vergonha com cara de porco-espinho pulou no palco e veio apertar
meu gasganete. Foi uma batalha, Betinho, para fazer o vaca-braba desocupar meu
gogó.” O relato prossegue dizendo que agora o serviço é mais leve: “Apanho bofetadas
no terceiro ato do drama O amante de Sevilha. Mas tenho promessa de pegar o cargo de
galã da peça O ladrão elegante.Se isto acontecesse daria “beijos de repuxo na cara
bonita de Rutinha Cruz, uma coisa feita de curvas e recurvas. Essa lindeza vai fazer a
figuração de certa madama muito virtuosa, sortida de rococós e não-me-toques.” E
termina enfático: “Comigo ela vai perder os pivôs. Vai sair do palco com os beiços e
partes próximas em fogo vivo, que em negócio de realismo estou sozinho.”
O sufixo oso nos nomes dos personagens indica a idéia de posse plena, de
abundância, de existência em grande quantidade. Se considerarmos Moscoso uma
derivação da palavra mosca, poderemos enquadrar o comportamento de Sandoval como
muito inoportuno. O que pode ser confirmado com o fato de ele ter saído às pressas com
a maleta dos impostos da prefeitura de Barrinha. Para o primo Sandoval esforça-se por
passar uma imagem de trabalhador dedicado. É nesse sentido que o uso da expressão
gíria “pau-com-formiga” busca valorizar o trabalho de Sandoval no circo. Significa que
ele tem ambições e está preparado para todo tipo de serviço. Outra expressão gíria
“vaca-braba”- representa uma pessoa descontrolada que ele teve que enfrentar durante o
trabalho - vem confirmar sua disposição. As metáforas estão relacionadas com a
dificuldade e perigo do trabalho realizado. O desejo de Sandoval com tal esforço é
beijar uma moça e os termos gírios: “sortida de rococós e não-me-toques”, “perder os
pivôs” e “fogo vivo”, buscam valorizar a dificuldade dele nesse intento. As metáforas
fazem menção à sexualidade.
Em outro exemplo do uso da gíria, o conto 01 (p. 21-2), sob o título ‘Uma festa
montada em fatias de mortadela’, narra o ocorrido com o major Aniceto Cunha, durante
uma festa de aniversário, no Hotel Palmeiras. A tudo que lhe ofereciam o major
recusava. “Vez por outra, uma chegava e indagava: - Major, quer um copo de maracujá?
E o major: - Não bebo coisa de moça. Outra vinha e indagava: - Major, aceita licor de
jenipapo feito pela viúva Frazão? E o major: - Militar que é militar não bebe. Mesmo
aposentado do pau-de-fogo.” Deu-se tamanha desordem quando o major respondeu para
todos o que mais apreciava nas mulheres. De nada adiantou chamarem Dr. Zozó para
desagravar a honra do estabelecimento, pois ele concordava como o major. “O major foi
despejado como sem-vergonha. E o doutor como ajudante dele.”
67
A força da comicidade no conto 1 está na aliteração. A repetição das sílabas ma,
me, mi, mo, mu são responsáveis por dar graça à sonoridade. Destacamos as palavras:
montada, mortadela, major, maracujá, moça, militar, mesmo, mulheres. A gíria “pau-de-
fogo” é relativa à revólver. A metáfora pode ser associada à sexualidade uma vez que o
major foi acusado de sem vergonha.
Em sua obra, A linguagem proibida: um estudo sobre a linguagem erótica, Preti
(1984) destaca a importância da gíria na manifestação da linguagem erótica. Sua
pesquisa se deu em O Coió, um periódico mico-erótico, publicado no Dicionário
Moderno, no começo do século XX, no Rio de Janeiro. Segundo o autor:
Verificamos que a obra, mesmo surgindo anônima, no contexto leviano de um periódico
humorístico, representa, de fato, um levantamento muito original e historicamente
pioneiro de um ângulo pouco estudado da cultura popular: a linguagem erótica e suas
várias manifestações na gíria, no vocabulário obsceno, e nos processos lingüísticos de
expressão da malícia (Preti, 1984, p. 2).
Nossa pesquisa vem ao encontro das considerações de Preti (1984) ao
analisarmos a gíria em contos cômicos com um fundo erótico. É nesse sentido que
entendemos a expressão “alisador de cadeira” – nádega – termo utilizado por um
vendedor de máquinas, no conto 24 (p. 43), ao relatar ao primo os motivos pelos quais
se casaria com uma moça da cidade: “Cuido que vou acabar tomando estado em
Guaxirim com moça de uns turcos entranhados em comércio de panos, uma família
muito distinta, com três incêndios nas costas, todos três garantidos pelo seguro. No
quarto fogo, que não vai demorar a ter, pois botaram o estabelecimento a salvo de
corisco e curto-circuito, eu caso, que nessa altura o fogo consolidou o prosperismo
deles e a menina do meu xodó, além de possuir alisador de cadeira de fino trato, deve
ter o baú da herança mais que cheio”.
Na mesma linha de raciocínio está a expressão “assentador de moça” nádega
do conto 41(p. 57-8) que tem como título: ‘Anão no vento das quatro horas da tarde’. “E
por causa de uma discussão sobre coisas de zepelim e assentador de moça, o anão
Azevedinho Codó levou, de um certo Chico Pereira, pescoção de tal modo peçonhento
que atravessou de foguete toda a cidade de Guarus e sumiu para o lado do Piauí numa
poeirinha de não ser mais visto”.
Nesse sentido também está a expressão “atrasado de moça bonita” – nádega – do
conto 140 (p. 154-55), que tem como título: ‘A gloriosa morte de Gaudério Paiva’ e
narra o encontro de dois velhos amigos. Como um deles está todo “modernão,
68
vistosão”, o outro pergunta: “-Homem de Deus, que avanço é esse?” A resposta é: “-
Cala a boca, Pestana. Morro mas não entrego a rapadura. Sei que estou velho, que estou
fora do compasso. De manhã, quando acordo, tenho de ser desempenado por dois
especialistas em reumatismo. Mas logo que piso a rua do Ouvidor ou a rua das
Marrecas sou outro. Empino o peito de 1901 e não perco um atrasado de moça bonita.”
A linguagem erótica continua utilizando a gíria para suscitar o riso em expressão
como “um par de possuídos” seios encontrada no conto 26 (p. 44-5). Sob o título
‘Bode velho pede capim novo’, narra a história de Cincinato Pereira que “almoçava e
jantava provérbios.” Aos sessenta e nove anos, embrulhado na bandeira que diz que “o
coração não envelhece”, abalou “a cidadezinha de Santo André de Macabu com a
novidade de seu casamento contra a menina Ritinha Barbeitas, moça tenrinha em idade,
mas com um par de possuídos que fazia o povo sem brio de Santo André parar e olhar
para trás. Cincinato também olhou para trás, gostou e casou.(...) Dois meses andados, no
esforço de subir e descer as ladeiras e curvas da menina Ritinha, o professor sentiu fina
agulhada no peito, arregalou os olhos e pediu padre. E antes que a morte viesse,
enquanto alisava os torneados e partes afins da esposa, deixou escapar seu último
Marquês de Marica: - Bode velho pede capim novo. E fechou o pasto.” Este conto
também tem apelo cômico pelo trocadilho velho/novo; e pela metáfora peso da
idade/vigor da juventude, contidos no provérbio do tulo e pode ser enquadrado dentro
do humor sexual pela referência as carícias do marido na esposa. Segundo Maingueneau
(2005, p. 169) a enunciação proverbial é polifônica e quando se profere um provérbio
significa fazer ouvir, por meio de sua própria voz, outra voz, a da “sabedoria popular”.
A expressão “maior par de amamentadores de criança” seios é usada para
descrever uma moça que se encantou por um cantor de tango argentino sedutor,
conforme narra o conto 117 (p. 133), ‘Os destroços de um bigode’: “Para abertura dos
trabalhos, derreteu, com uma nesga de olho, o coração da filha do major Afonsinho
Bragança, menina de boas leituras e responsável pelo maior par de amamentadores de
criança de Penedos e circunscrições adjuntas. Ao ver passar pela rua da Praia o bigode
de ponta caída de Pereda, a moça Bragança revirou os olhos, colocou a mão no peito e
teve um acento circunflexo no coração. Avisou: - Vou ter uma coisa. Sei que vou ter.”
Encerramos a discussão sobre o riso suscitado pela gíria estratégia utilizada
por José Cândido de Carvalho com o posicionamento de Bérgson (2001, p. 94) sobre
o tema: “Uma palavra basta às vezes, desde que nos permita entrever todo um sistema
69
de transposição aceita em certo meio e nos revele, de algum modo, uma organização
moral da imoralidade.”
4.3.2 - Metáfora
A metáfora, na obra de Bérgson, é tratada como uma estratégia lingüístico-
discursiva que suscita o efeito jocoso por meio da interferência de séries, conceito
segundo o qual é possível “dar à mesma frase dois significados independentes que se
superpõem” (Bérgson, 2001, p.90). A metáfora provoca o riso à medida que a
transposição de significados entre os termos dê-lhe sentido diferente do próprio, por
analogia ou semelhança. É o que o autor ratifica ao dizer: “Obteremos efeito cômico se
fingirmos entender uma expressão no sentido próprio quando ela é empregada no
sentido figurado. Ou ainda: Quando nossa atenção se concentra na materialidade de uma
metáfora, a idéia expressa se torna cômica” (Bérgson, 2001, p.85-6).
Nesse sentido o conceito de Bergson ilustra a comicidade suscitada pelas
metáforas utilizadas por José Cândido de Carvalho. É o que ocorre no conto 95 (p. 110-
1). Sob o título ‘Abriu as velas e foi embora’ narra a história de uma queixa, feita pela
velha Quinzinha Seixas, ao delegado Zozó Dias contra o capitão Bartolomeu Pimenta
que “para além de vinte anos de galés” teria “desonestado uma sua afilhada ainda dentro
da menoridade.” Convocado para depor o capitão lamentou “não ser autor de tão
mimoso despautério.” E metafórico ponderou: “- Seu Zozó, para enfrentar mar virgem,
como é a dita afilhada da velha Quinzinha, menina na força das dezoito marolas, carece
o sujeito de leme rijo a tempo e a hora. E eu, amigo Zozó, nem mais pequena
cabotagem faço quanto mais sair de barra afora com uma navegação desse quilate! Não
tenho capacitismo, delegado Zozó!”
No conto podemos destacar o riso causado pela utilização de algumas metáforas
marítimas: “para além de vinte anos de galés” referência ao tempo decorrido de
navegação ou ao tempo do fato ocorrido; “mar virgem” virgindade da moça; “dezoito
marolas” idade da moça; “leme rijo a tempo e a hora” órgão sexual masculino
sempre pronto; “pequena cabotagem” – mínima atividade sexual; “navegação desse
quilate” – referência ao vigor e à disposição da moça.
Corroborando com o conceito de metáfora, Propp (1992, p. 133) ressalta que é o
“estilo lingüístico” do autor que “suscita no leitor uma contínua sensação de
admiração.” Afirma que o êxito da comicidade está em se apropriar das particularidades
70
e sutilezas encontradas nas formas de expressão abstrata, campo das idéias e figurada,
imagens visuais. E reconhece que a expressividade da língua é um fator importante
nesse sentido.
Em ‘O virilhista’, conto 03 (p. 24), o protagonista faz uso da metáfora para
descrever o término de seu casamento ao compadre. Segundo ele: “Nunca que botei sua
comadre em estado de nove meses. Continua metafórico: “Comprei um livro de
safadeza e até seus corredores de baixo joguei na mão de doutor de preço, coisa que um
Barbosa nunca fez em derredor de duzentos anos, por ser uma sem-vergonheira de fazer
meu finado bisavô Pantaleão espumar na sepultura.” E a metáfora final: “-Pois é,
compadre. Fui muito infeliz de virilha.”
As metáforas que suscitam o riso no conto são: “estado de nove meses” e
“infeliz de virilha” referindo-se à incapacidade do protagonista de engravidar sua
esposa. E as expressões: “corredores de baixo” parte sexual feminina; “espumar na
sepultura” – discordar da ação.
Sob o título ‘Tarde demais e Inês morta’, o conto 05 (p. 25-6) narra a história de
Rebordão Castanheira que, ao receber uma carta de Lisboa, “tossiu sua tossinha de
cemitério, foi ver a cara no espelho e disse: - Chegou tarde!”. Na carta um advogado
comunicava que um tio, “duas quinzenas antes de empacotar, havia feito dele herdeiro
de todos seus teres e haveres, coisa de monta, com vinhedos, dinheiros em banco,
apólices, dividendos, cachos de casa, uma por cima da outra.” A narrativa prossegue
metafórica: “a vida toda sonhou com os altos-relevos das damas em noites de braços
macios. Tudo isso na camaradagem de bifes impulsionados a vinho de preço. E
cinqüenta anos passaram sem damas, sem braços, sem vinhos. O que Rebordão teve em
quantidade de encharcar, foi papel para despachar em sua pobre mesa de amanuense da
Inspetoria das Águas. Foi humilhado e ofendido. Aturou diretores e subdiretores que
falavam com os pés. Certa ocasião, por causa de uma vírgula, levou um montanhoso
bofetão. E ao querer casar com a menina Peralgina, filha de um reles chefete de seção,
teve o pedido indeferido a socos. Foi para Catumbi com o nariz de Rebordão
Castanheira e voltou com o nariz de ananás.” A narrativa prossegue dizendo que
“depois de uma papelada de trinta e cinco anos de tamanho, Rebordão era um caco. Por
ele haviam passado mágoas e fomes. Vivia por procuração, nos braços dos remédios.”
Amassou a carta e a jogou no lixo. Enviou uma resposta ao advogado em que afirmava
não ter preparo para arcar com tanta herança junta. “E voltou para a janela da Pensão
Santa Rita de modo a olhar a chuva que caía triste como um amor perdido.”
71
As metáforas responsáveis pelo riso no conto 05 são: “tossinha de cemitério”
tosse de pessoa doente próxima de morrer; “empacotar” – morrer; “alto-relevo das
damas” seios e nádegas das mulheres; “falavam com os pés” eram agressivos;
“trinta e cinco anos de tamanho” muito grande; “nos braços dos remédios”
dependente de remédios.
É importante realçar que o autor utilizou a intertextualidade no título do conto
para nos remeter a um fato que acontece tardiamente. A expressão ‘Agora Inês é morta’
que dialoga com o título do conto vem de uma história na qual um nobre quer se casar
com Inês, porém, era tarde demais, pois ela estava morta. Inês de Castro, uma
nobre castelhana, foi amante do futuro Pedro I de Portugal, tendo sido executada às
ordens do pai deste, Afonso IV. Era filha bastarda de um cavaleiro galego e tinha
irmãos favoráveis à junção de Portugal ao Reino de Espanha. Ao morrer a primeira
esposa de D. Pedro I, D. Afonso IV e seus vassalos sentem-se ameaçados pela possível
influência de Inês de Castro na vida política do futuro rei. Temendo pela independência
de Portugal, o rei cede às pressões dos seus conselheiros, e aproveitando a ausência de
Pedro numa excursão de caça, envia ro Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes
Pacheco para executar Inês. Ao retornar, D. Pedro encontra sua amada Inês morta. A
morte de Inês fez com que Pedro se revoltasse contra Afonso IV, a quem
responsabilizou pela morte e este fato provocou uma sangrenta guerra civil. Com a
morte de D. Afonso IV, D. Pedro I assume o trono e coroa Inês, sua rainha. D. Pedro
mandou construir dois esplêndidos túmulos no mosteiro de Alcobaça, um para si e outro
para onde trasladou os restos de sua amada Inês. O cadáver de Inês em estado de
composição é colocado no trono, e a realeza portuguesa é obrigada a beijar sua mão
24
.
A metáfora também é o que realça a comicidade do conto 10 (p. 30). Com o
título ‘Um quilo de espírito público, por favor!’ narra à história de um funcionário
público que depois de beber, desanda em confidências ao seu compadre. Admite que
com a bebida o “sujeito fica liberado de tudo. (...) Nas minhas águas, sou outra
prosopopéia.” Bêbado, é capaz de dizer na cara do prefeito “que ele não passa de um
ratão velho”. Sem bebida, é “serviçal de tudo que é graúdo da terra.” Até artigo de
louvor “andou derramando” para o prefeito, “esse animal de tração”, quando “inaugurou
quarenta anos de furtos e roubos na jurisdição”. E metafórico, afirma que “se baixar
nesse ninho de Ali-Babá uma inquirição do governo não fica ninguém do lado de fora.”
24
http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20060914080615AArODap, consultado em 12.02.08
72
Inclusive ele que quando não está “bebido de gambá”, também mete “a mão nos
impostos.”
As metáforas responsáveis pelo riso no conto 10 são: “nas minhas águas”
quando bebo; “ratão velho” – ladrão; “animal de tração” forma pejorativa de se referir
a uma pessoa; “ninho de Ali-Babá” – conjunto de ladrões; “bebido de gambá” – bêbado;
“meto a mão nos impostos” – roubo. Destaque para a metáfora do tulo que está
colocada como se fosse um pedido de um cliente ao garçom e ironiza a honestidade dos
funcionários públicos.
A metáfora, como vimos, permite a comparação entre dois elementos por meio
de seus significados e pode provocar um efeito inesperado no significado de um termo
quando comparado ao outro. Por isso, esse efeito surpresa contribuiu para tornar a
metáfora uma estratégia do riso muito utilizada por José Cândido de Carvalho.
4.3.3 – Ironia
A ironia é uma importante estratégia do risível. Cabe, no entanto, uma reflexão a
respeito das considerações de Nash (1985), segundo as quais uma dificuldade em se
achar definições claras e aplicações concisas do uso da ironia. Para ele, o conceito de
ironia perdeu muito de seu conteúdo técnico e acabou por se tornar um rótulo afetivo do
qual não se consegue denotar um tipo de uso lingüístico. O autor afirma:
(...) os críticos literários passaram a ter o hábito de usar a palavra para denotar qualquer
reflexão oblíqua, qualquer inconsistência de caráter, qualquer volta imprevista na
história, qualquer sinal de uma corrente perversa de significado não direcionado (dito
diretamente) pelo autor. (Nash, 1985, p. 152)
25
Na contramão das idéias de Nash (1985), Propp (1992) considera de fácil
entendimento a definição de ironia. Para o autor, “na ironia se expressa com as palavras
um conceito, mas se subentende (sem expressá-lo por palavras) um outro, contrário.”
Nesse sentido, a linguagem falada é mais expressiva porque possibilita para a ironia
“uma particular entoação escarnecedora.” À medida que expõe algo negativo por meio
de palavras positivas, a ironia transforma aquele (ou aquilo) de que se fala em motivo
de chacota, “nisto está sua comicidade” (Propp, 1992, p. 125).
25
“particularly since literary critics are in the habit of using the word to denote any oblique reflection, any
inconsistency of character, any unforeseen turn in the fable, any sign of a perverse current of meaning not
directed by the author.” [Trad. nossa].
73
Para explicar o uso da ironia como estratégia do riso, Bérgson discorre a respeito
do conceito de transposição. Ao transpor uma expressão do sentido ideal para o sentido
real, gera-se uma oposição entre o que é e o que deveria ser. Segundo o autor, a ironia
consiste em expor “o que deveria ser, fingindo acreditar que isso é precisamente o que
é”. Além disso, traz a questão do fenômeno irônico para o plano da retórica ao afirmar
que “a ironia é de natureza oratória” (Bérgson, 2001, p. 95).
Corroborando com o conceito de Bérgson a respeito da ironia, Brait (1996) faz
alguns questionamentos a respeito da dificuldade em se entender a oposição proposta
entre o sentido ideal, tratado como ‘sentido figurado’ e o sentido real, tratado como
‘sentido próprio’. Segundo a autora, por conta da ambigüidade comum a este tipo de
jogo irônico é necessário contar com conhecimento compartilhado do leitor que precisa
“descodificar, conscientemente ou não, as implicações, as sugestões que estão
veiculadas” (Brait,1996, p. 42).
para Freud (1996) também uma preocupação do autor com o entendimento
da ironia por parte do leitor. Afirma que no processo de criação da ironia são colocados
sinais na mensagem que revelarão as intenções do autor em dizer o contrário do que
quer sugerir. Neste caso, porém, o leitor se satisfaz justamente com o fato de a ironia lhe
inspirar um esforço de contradição. Em sua obra ele assegura que a “única técnica que
caracteriza a ironia é a representação pelo contrário” (Freud,1996, p.76).
Pinto (1970, p. 26, 29 e 37) reforça o conceito defendido por Bérgson (2001) em
que a ironia evidencia “o que deveria ser fazendo crer que assim é na realidade”.
Acrescenta que embora provoque o riso “quase sempre ela é da mais profunda
amargura.” E reconhece a ironia como sendo “a principal característica do moderno
humor americano”. Por sua vez, Jerkovic (1970, p. 50) afirma que a transposição entre o
“mundo do nosso dia-a-dia com um mundo deliberadamente reduzido ao absurdo” cria
o paradoxo irônico. Dessa forma, a ironia transforma-se em um instrumento para se
violar as convenções sociais, ignorando “deliberadamente a “sabedoria” constituída”.
José Cândido de Carvalho traz a ironia para algumas situações em que a
intenção da personagem é uma, mas a consequência de seus atos, é outra. Sob o título
“Dilúvio ao alcance da mão”, o conto 105 (p. 122) narra a história de um feiticeiro
contratado para fazer chover em Jundiá dos Patos. “Deu bom-dia e perguntou em que
confim andava o banheiro. (...) Entrou, puxou a descarga e no mesmo instante, como
coisa feita, deu um d`água em Jundiá como nunca ninguém em cem anos viu ou teve
74
notícias. (...) Correram para pedir ao feiticeiro que estancasse tão grande sangria. O
sujeito não estava. Em seu lugar deixou este bilhete: Sou representante da firma de
tecidos Vieira Peixoto & Cia. e nunca que lidei com água do céu. A minha desgraça foi
puxar a descarga.” Pode-se destacar ainda a inversão de sons entre as letras g e ç de
desgraça e as letras c e g de descarga como recurso lingüístico que provoca o riso.
O conto 04 (p. 24-5), com o título ‘Ferreira Alves & Cia. vai para o céu’, relata a
visita da mulher ao túmulo do marido. Depois de olhar para os lados, “falou bem junto
do retrato dele perto da aba esquerda do bigode do pranteado: - Bem que te avisei,
Ferreira. Bem que te disse que o doutor Botelho Santos estava de olho em teus teres e
haveres. De receita em receita, de pozinho branco em pozinho branco, tu foste
recambiado para o céu. Enquanto isso, o doutor Botelho ficava com a Panificadora Duas
Pátrias, com a tua casa de Nova Iguaçu, com a tua bicicleta de quatro espelhos e com
mais esta tua mulher que sou eu. Mas fica sossegado, Ferreira, que teus negócios na
mão do doutor Botelho vão de vento em popa. Vais ter um lucro enorme no fim do
ano.”
No conto 04 é a ironia está no sentimento de vingança da mulher por não ter sido
ouvida. São irônicas expressões como “falou bem junto do retrato dele” como se fizesse
diferença a distância da fala uma vez que falava com o retrato de um morto. Destacamos
a expressão “foste recambiado para o céu” que significa devolvido ou reenviado “para o
céu” e também o cinismo da mulher ao se incluir entre os bens cuidados pelo doutor
Botelho. Ironicamente ela pede para o morto ficar sossegado que terá “um lucro enorme
no fim do ano.”
O conto 78 (p. 95), sob o título ‘O maravilhoso a serviço municipal’, é o relato
da prisão de Antônio Sapo que, “pelos poderes da treva”, fez “Bentinho Ramos botar
um ovo de galinha em pleno largo da Lapa, foi preso pelo delegado Chiquinho Kalil
com o respectivo delito do crime, o mencionado ovo. (...) E estava Chiquinho
desatarraxando a confissão de livre e espontânea vontade do dito sujeito, com o auxílio
de um par de alicates e medicamentoso maçarico de bombeiro, quando a competente
autoridade desatarraxadora deu de dar coices, fazer macaquismos de jerico e urrar em
feitio de jumento. (...) E mais depois, nem era passada meia hora, brotou a primeira
orelha grande, de ventarola, em Chiquinho.” Transformado num cavalo, Chiquinho foi
indicado “para a diretoria do ensino municipal com a brecha deixada por Pedrinho do
Carmo, que aprendeu a ler e escrever,fez dois discursos e foi ser caixeiro em
Diamantina .”
75
A parte final do conto é toda irônica. Um cavalo foi indicado para a diretoria do
ensino municipal, porque a pessoa que estava aprendeu a ler e a escrever e virou
caixeiro em Diamantina.
Sob o título ‘Do purgativo saiu uma borboleta’, o conto 23 (p. 42-3) relata o erro
cometido pelo boticário Zito Pereira. Errou a indicação de um remédio e fez com que o
o juiz de paz Arcanjo Aragão sofresse com uma desordem estomacal. Depois de curado,
em represália, o paciente manda um telegrama irônico para um compadre nos seguintes
termos: “PEÇO REMETER URGÊNCIA MAIOR PURGATIVO DE CAVALO
ENCONTRAR NA PRAÇA PARA SALVAR VIDA BOTICÁRIO ZITO PEREIRA.”
Depois de tomar o remédio, o boticário “ficou tão fino que virou borboleta. Pegou um
vento de mau jeito e morreu.”
A ironia está presente no fato de pedir um remédio para salvar a vida com
intenção de matar o boticário.
O conto 52 (p. 71-2), com o título ‘A vírgula não foi feita para humilhar
ninguém’ relata a história de Borjalino Ferraz que perdeu o emprego na prefeitura por
exagerar no uso da vírgula em seus ofícios. É comunicado com ironia pelo seu superior
de que a “comarca não tem dinheiro pra comprar vírgulas novas”. Estudou gramática,
aprendeu a utilizar corretamente a vírgula e arrumou emprego como escriturário em
outra repartição. Depois de dois meses foi nova e ironicamente demitido. A alegação foi
de que ele era muito instruído para o trabalho, tanto que, quando alguém recebia um
ofício feito por ele pensava ser ordem de prisão. Um coronel quase teve um sopro no
coração e reclamou direto com o governador do Estado. “E por colocar bem as vírgulas
e citar Nabucodonosor em ofício de pequena cabotagem, o esplêndido Borjalino foi
colocado à disposição do olho da rua. Com uma citação no Diário Oficial e duas
gramáticas debaixo do braço.”
4.3.4 – Neologismo
Outra estratégia com a qual o escritor de contos pode contar para provocar o riso
é a utilização de neologismos. Embora no conto a narrativa seja breve, a criação
neológica pode ser inserida para provocar um estranhamento pelo caráter incomum do
vocábulo. Pode ser esse estranhamento o responsável pela produção do riso.
Na obra analisada, percebemos que o processo criativo dos contos, recorre
constantemente a essa estratégia do riso. Constatamos uma unidade lexical nova em
76
pelo menos quarenta e três contos, sendo que em muitos mais de uma ocorrência. A
exploração do neologismo como responsável pela produção do riso é justificada nos
argumentos de Alves (1994, p. 86), segundo os quais a produção lexical “pode ser
criada por razões estilísticas e, nesse caso, contribui para causar efeitos intencionais”,
como é o caso do efeito cômico causado pelo estranhamento.
Nesse sentido o conto 9 (p. 28-9) é bem ilustrativo. Sob o título ‘O alisador ou a
missão fracassada do soldado Tatão Ramos’ descreve o relatório que um delegado envia
aos seus superiores contando as providências que tomou contra um sem-vergonha,
conhecido por Chico Alisador, que vinha escamar, no sono da madrugada, pernas e
demais naturezas das meninas e damas em suas alcovas.” Uma das ações executadas foi
a de disfarçar um soldado com roupas femininas, maquiagem, ‘foramente’ uma peruca
angariada no comércio da cidade vizinha e colocá-lo para dormir na casa das meninas.
Embora o ‘descompetente’ soldado tenha sido submetido ao processo de ‘alisação’, não
prendeu o indigitado. Foi inquirido em modo ‘autoritativo’ e teve reprovado seu ‘pouco-
casismo’ para com a Polícia Militar.
Neste caso os neologismos têm a função de satirizar a incompetência policial de
ação e de verbalização e o sentido sexual do conto. De fato causa estranheza que um
delegado de polícia, de quem se espera um linguajar formal, faça uso de tantos novos
vocábulos. Por outro lado, é, principalmente, a utilização do neologismo ‘alisação’
fundamental na produção do riso uma vez que esta palavra dá o tom sexual que permeia
todo o conto e que o torna espirituoso. Cabe destacar as palavras ‘foramente’ e ‘pouco-
casismo’ que contêm derivações sufixais muito recorrentes em nossa língua. O ‘mente’,
é um sufixo de caráter adverbial e “expressa uma intensa produtividade ao juntar-se a
bases adjetivas femininas para designar modo e o ‘ismo’ denota “o exagero e,
consequentemente, a depreciação” (Alves, 1994, p. 35).
o conto 61(p. 79-0), sob o título, ‘A voz que perdeu o freio’, narra a história
de um amigo que escreve para outro dizendo que tomou aula de educamento’ da voz.
Com dois meses de ‘praticamentos’ estava preparado para falar em qualquer recinto.
Sua voz estava mais grossa depois do trato do mestre de ‘gargantismo’. Foi quando
numa palestra que fazia apareceu um ‘sujeitãoespaçado que ‘brincancista’ perguntou
se o pessoal da repartição tinha ligado a bomba d’água. Em resposta ao ‘perguntante’,
ele largou um discurso de abalar os alicerces do edifício.
77
No sufixo ‘mento’ das palavras “educamento” e “praticamentos”, “a expressão
da ação verbal não se faz acompanhar por um mecanismo de expansão” (Alves, 1994, p.
30). O sufixo ‘ista’ de “brincancista” designa “próprio de” ou “adepto de”, no conto,
adepto da brincadeira. Neste caso, o protagonista quer demonstrar ao amigo que além de
ter aprendido a impostar a voz para falar em público, também é conhecedor de um
vocabulário diferenciado. Mais do que a ameaça fantasiosa em que transforma sua voz,
a criação de palavras é a responsável por realçar o inusitado das ações e causar o
estranhamento próprio da situação cômica. Principalmente nas palavras ‘brincancista’ e
‘perguntante’ que ficam bem diferentes de seus substantivos de origem
brincador/brincalhão e perguntador/indagador.
No conto 107 (p. 124), cujo título é: ‘Patriota duas vezes por dia’, o relato de
um psicólogo contratado por um educandário que em seu discurso ‘inaugurativo’
adverte os alunos sobre as conseqüências do ‘faltamento’ de respeito em suas aulas.
Antes de ministrar aulas, foi retirado da força policial por ter amassado a cara de dois
sargentos e descadeirado um capitão. No mais, tudo dentro do maiorcorretismo’.
Destelhou um colégio para pegar um aluno que o desrespeitou e fugiu pela chaminé. Em
outro colégio saiu aos socos com os estudantes de modo a deixar apenasmente’ um
aluno desacordado por doze horas. Tirando esses pormenores, era sujeito de paz,
religioso e patriota.
Toda a situação criada pelo conto é absurda, uma vez que é inconcebível a um
professor de psicologia a intimidação pela agressão física. Também é inusitado o fato de
os neologismos serem proferidos por um professor. Considerando o absurdo e a
violência da história, a criação lexical surge como responsável pela comicidade, na
medida que, pelo estranhamento, dá leveza à narrativa.
O conto 146 (p. 160-1), sob o título “Rogaciano Mota descobre a vocação: sem-
vergonha’, relata a história de um homem que sempre viveu no maior ‘respeitismo’.
Puxava andor de procissão, tomava parte nas festas cívicas. Fundou a Liga dos Bons
Princípios com o promotor público na ‘comandância’ e ele na ‘secretariância’. “Um dia,
a serviço da lavoura, teve de vir ao Rio de Janeiro para tratar de coisas de saúva e
plantação no Fomento Agrícola. (...) De repente, Rogaciano ficou modernão, de pegar,
em meio mês de carioca, um par de costeletas que dobrava em curva quase na boca.” E
encontrando um amigo desabafa: -Seu Codó, não queira saber! Sou a maior vocação
para sem-vergonha do Brasil. Só agora é que descobri.”
78
Destaque para o neologismo “modernão” que emprega o sufixo ‘ão’ para dar um
valor aumentativo. O ‘ão’ é “formador de nomes substantivos e adjetivos cujas
categorias de origem são do tipo nominal e verbal” (Alves, 1994, p. 37). O sufixo
‘ância’ das palavras “comandância” e “secretariância” assinalam o sentido de ação ou
resultado dela. Sendo assim, embora a criação do neologismo se dê por meio de
derivações prefixais e sufixais, onde os verbos, advérbios, adjetivos e substantivos
sofrem alterações em suas bases e transformam-se em idéias complementares, muitas
vezes sofrendo alteração de classe gramatical (op.cit., p. 29), José Cândido de Carvalho
concentra seu humor nas derivações sufixais.
4.3.5 – Nomes estranhos
Em nosso corpus encontramos nomes próprios ou de cidades que por sua
originalidade e pela contextualização em que estão inseridos são inusitados e causam
uma estranheza que suscita o riso. A propósito da utilização de nomes como estratégia
do risível, Propp (1992, p. 129) afirma:
O âmbito da comicidade conseguida graças a meios lingüísticos é bastante rico e
variado. Ao tocar a questão da comicidade de palavras isoladas não é possível deixar de
falar em nomes próprios que os autores de comédias e de obras cômicas dão a suas
personagens.
Em todo conto da obra que ora analisamos há, em média, uma denominada
personagem que interage ou se refere a outras personagens pelo nome. Da mesma
forma, a maioria das histórias é situada em alguma cidade, sempre nominalmente
indicada. Esta estratégia utilizada pelo autor confirma as palavras de Propp (1992,
p.131): “Os nomes cômicos são um procedimento estilístico auxiliar que se aplica para
reforçar o efeito cômico da situação, do caráter ou da trama.”
É nesse sentido que está a comicidade do conto 117 (p. 133). Sob o título ‘Os
destroços de um bigode’ narra a história de um sedutor cantor de tango argentino.
Segundo seu empresário, ele era “o maior abridor de quarto de moça solteira e dama
casada” que ele conhecera. E de fato “com dois espetáculos no Parque de Pequim,
Pereda desmantelou a cidade de Penedos do rodapé à chaminé. Segundo O Combate,
em prosa de renda, o cantor de tangos, depois de passar o arado no coração do pessoal
da comarca e arredores, deixou estes destroços: dona Maurilina Feijó teve cachumba,
dona Idalina Abreu pediu desquite e levou duas sovas do marido, dona Gumercinda de
Melo bebeu lisol junto do retrato de Pereda, dona Carmelina Araújo escreveu
79
quinhentos sonetos, dona Orneliana de Castro viu um lobisomem, a professora
Alfredina Teles comeu uma dúzia de agulhas de vitrola, a velha Euclacinda Barbalho
deitou fogo às vestes, Miltinha de Barros sumiu com a féria da Casa das Rendas, a
costureira Feliciana de Azeredo bebeu um litro de querosene e a solteirona Ormelinda
Barbosa aproveitou a confusão geral para dar vazão aos seus instintos bestiais: fugiu
com um anão.”
Como o relato do acontecido é feito no espaço discursivo do jornal O Combate,
a expressão ‘prosa de renda’ pode ser uma forma de expressão quase caricatural para
melhor se apreender a comicidade dos nomes e das ações das personagens. José
Cândido utiliza essa estratégia da caricatura do personagem pelo nome em outros
exemplos. É o caso de Adrião Popó (conto 47, p. 62) para o criminoso (onomatopéia =
sons de tiros); Dona Jurubaldina (conto 36, p. 53), para a adúltera (semelhança com
jura, juramento); Fifi Mendonça (conto 36, p. 53), para o marido traído (semelhança
com onça, bicho); Dona Rosália Seabra (conto 39, p. 56), para a esposa “ingênua”
(semelhança com rosa, flor); Julinho Ferraz (conto 118, p. 134), para o entregador de
mercadorias (semelhança com ferro, metal pesado); Gegé Cruz (conto 118, p. 134), para
o farmacêutico (referencia a cruz, morte); Joaquim Alves (conto 118, p. 134), para o
dono da mercearia (nome tipicamente português). Dignos de destaque são também os
nomes das localidades: Paus Vermelhos (conto 47, p. 62) referência à palmatória,
Curralzinho Novo (conto 151, p. 164), referência aos currais eleitorais.
Outro conto em que os nomes são cômicos pela estranheza que causam é o 114
(p. 130), cujo título é: ‘O compadre que era um tiro nos suspensórios’. Nele, o velho
Nepomuceno Bragança liga para seu compadre Lifinibático de Almeida para contar que
sairá com a menina Filodendra. No hotel, antes que a menina ficasse totalmente nua,
Nepomuceno liga novamente para o amigo: “- Compadre Lifinibático, deixei testamento
nas prestimosas mãos do amigo Arquias Rocha do Cartório do Sabugosa Melo. Vou
atacar com meu certificado de reservista da Marinha Mercante a fortaleza da menina
Filodendra. Viva a Tomada da Bastilha! Avançar!” Dos braços de Filodendra, “rolou
em pedaços para uma tenda de oxigênio do Hospital São Judas Tadeu.”
Além dos nomes próprios, nomes não convencionais também são dados às
cidades. É o caso da cidade de Xereréu de São Mateus, que é cenário para o conto 93 (p.
108-9). Com a chegada de um forasteiro, Aruinha de Melo “foi logo verrumando o
ouvido de Lacavinha Pereira com esta suspeita: - Capaz que esse sujeitinho é parido da
barriga do disco voador que passou zunindo por cima da praça da Aclamação.”
80
Lacavinha por sua vez pediu providências ao major Lagartino Reis. Planejam descobrir
de forma violenta quem é o sujeito e acabam por matar “o novo juiz de direito da
jurisdição de Xereréu de São Mateus.”
O conto 77 (p. 94), sob o título ‘A importância de usar óculos’, narra o
acontecido com a personagem que tem o nome de Arsênio Burlamaqui e que está na
cidade que tem o estranho nome de Marimbondos do Funil. Caixeiro em férias e
munido de arma foi à caça de onças. Voltou “meio perneta, meio zarolho, sem armas e
sem munições.” O fiasco na caça deveu-se à perda dos óculos na hora do tiro na onça.
Dona Vilandina Pereira, no conto 108 (p. 125), sob o título ‘Aladim de pequena
cabotagem’, repreende o filho, que de repente se descobriu gico, da seguinte forma:
“- Deixa isso de lado, menino. Teu pai, quando brotou nele o negócio de mágico, não
quis ouvir meus conselhos e desandou a dar retreta em tudo que era festinha e festineta
que encontrava ao alcance de seus pombos. Até que em noite de aniversário, em
Jenipapos do Fundão, teve a idéia nefasta de tirar dos fundilhos da mulher do prefeito
um ovo que mais parecia uma abóbora. No mesmo instante levou uma cacetada tão em
alto-relevo que ficou vesgo e corcunda de Notre-Dame. Morreu soltando passarinho
pela boca, meu filho.” Neste caso o jogo de palavras entre o Fundão no nome da
cidade e tirar dos fundilhos da mulher.
4.3.6 – Trocadilho
Quando o objetivo é suscitar o riso por meio do jogo de palavras, o trocadilho ou
calembur surge como importante estratégia lingüístico-discursiva. Para Propp (1992, p.
121-3) o jogo de palavras provoca o riso quando a palavra é compreendida em seu
sentido amplo, geral, mas é substituída por um sentido mais restrito ou literal. Segundo
o autor, quando “dirigido contra os aspectos negativos da vida”, o calembur “torna-se
um arma de sátira afiada e precisa.” Reconhece, no entanto, que a argúcia é necessária
para que o trocadilho não adquira um caráter ofensivo ou depreciativo.
Para Bérgson (2001, p. 90-1), o trocadilho também se por meio do jogo de
palavras. A possibilidade do jogo está na “diversidade de sentido que uma palavra pode
ter, em sua passagem do próprio ao figurado, principalmente.” Para o autor, o jogo de
palavras revela “uma distração momentânea da linguagem” e por causa deste descuido
lingüístico se torna risível.
81
Em nosso corpus alguns contos suscitam o riso com a utilização do jogo de
palavras. Sob o título “O par de Montepios da viúva Morais”, o conto 103 (p. 120) narra
a história de um ferreiro apaixonado por uma “viúva de farto montepio.” Por não ser
correspondido apelou para a ajuda de um pai-de-santo e “partiu para assaltar” a viúva.
Repelido a tapas e bofetões, desabafou: “- Com aquele par de montepios de tremer por
baixo do vestido eu devia ver que era viúva demais para meu pobre martelo.”
Neste conto o jogo de palavras ocorre entre o significado da palavra montepio,
pensão recebida pela viúva, e o sentido sexual dado a ela pelo ferreiro. também uma
relação entre a palavra montepio e o fato dele partir para assaltá-la, com um possível
duplo sentido para a palavra assaltar.
a história do conto 142 (p. 157) é a de um homem que chega a uma cidade
todo vestido de preto: roupa preta, sapato preto e chapéu preto. Assim que coloca o
na rua das Palmeiras, desaba um temporal sobre a cidadezinha. Esfregando as mãos
“falou em preto enquanto olhava barriga preta das nuvens” que não havia pedido tanta
chuva a São Pedro e pediu para o santo guardar o resto da chuva para inauguração da
funerária que pretendia montar. “Abriu o guarda chuva preto e foi embora na mesma
cor.” A intenção é fazer um trocadilho entre a cor preta e o que ela representa. Alguns
fatos apontam para isso: vestimenta preta, falar em preto, barriga preta das nuvens,
inauguração da funerária, guarda-chuva preto e ir “embora na mesma cor”.
O conto 84 (p. 100-1) narra a história do regente de banda de música que vai
para a guerra. Volta uma semana depois com uma bala “em parte desabonadora, nas
dobradiças do assentador de cadeira.” Embora com o tempo fique curado do tiro, nas
paradas e desfiles “não deixava de capengar.” Segundo ele: “- Fiquei bom no civil. No
militar continuo ferido. Sou capenga com discurso e louvação. Capenga de papel
passado.”
O trocadilho no conto 84 fica por conta do civil e militar, condições que podem
alterar o estado de saúde da personagem. No civil estava bem, mas no militar era
manco, coxo.
O trocadilho é uma estratégia do riso muito utilizada por José Cândido de
Carvalho. Em alguns contos o autor faz uso dessa estratégia no título do conto. É o que
ocorre nos títulos dos contos seguintes: Conto 19 Mágico de pequena extração não
chega a pássaro azul; Conto 49 - Quem nasceu para polca não chega a tango argentino;
Conto 60 Uísque de velho é coalhada; Conto 64 Revólver de mágico é pombo;
82
Conto 88 Ferreiro não tem mulher de pau; Conto 69 Para Deus nas asas da bomba;
Conto 148 – Quem pega bala na popa não chega a tabelião.
Notamos que muitos dos trocadilhos se deram com relação a um provérbio.
Segundo Maingueneau (2005, p. 169), a “enunciação proverbial é fundamentalmente
polifônica; o enunciador apresenta sua enunciação como uma retomada de inumeráveis
enunciações anteriores, as de todos os locutores que proferiram aquele provérbio.”
José Cândido faz uso da polifonia própria do provérbio para suscitar o riso com o
trocadilho. A discussão a respeito do trocadilho é complementada com os conceitos de
captação e subversão de Maingueneau, que evidenciam bem a técnica utilizada por José
Cândido:
Captar um texto significa imitá-lo, tomando a mesma direção que ele. É o caso, por
exemplo, de um slogan que imita um provérbio: o primeiro esforça-se para, em
benefício próprio, apropriar-se do valor pragmático do segundo. Por outro lado, a
subversão quando o texto que imita visa desqualificar o texto imitado.”
Em todos os títulos que citamos ocorre a subversão porque imaginamos um
provérbio paródico, ou seja, um provérbio que contesta a autoridade da sabedoria
popular. O enunciador “imita” um texto ou um gênero para desqualificá-lo. Por meio da
subversão ataca-se toda a forma de discurso cristalizado, de senso comum.
4.4 – Do cômico de caráter
4.4.1 – Alogismos
O alogismo, a estupidez, a tolice ou ainda a falta de inteligência, são conceitos
que se equivalem quando a estratégia é tornar um conto cômico. Por meio desta
estratégia somos levados a castigar, pelo riso, a incapacidade da percepção geral, da
visão do todo, dos tolos em situações aparentemente óbvias. Por outro lado, o riso
também é provocado pela identificação com o herói, que na maioria das vezes se safa
dos conflitos com esperteza. Com isso, a comicidade exalta a esperteza e a astúcia do
herói espertalhão - aquele que se bem em qualquer situação, e considera merecida a
punição ao tolo - aquele que ignora os acontecimentos ao seu redor. É o que constata
Bérgson (2001, p. 57) quando diz:
“Tanto por instinto natural quanto porque todos
preferem em imaginação ao menos enganar a ser enganados, é do lado dos espertos
que o espectador se põe.”
O conto cômico conta com esta possibilidade estratégica, ou seja, o riso
provocado pela tolice, de duas formas diferentes. Uma forma é aquela em que a
83
estupidez está manifesta. A movimentação das personagens na história aponta para a
superioridade e de um sobre o outro ou a falta de conhecimento de um deles. A
outra forma é aquela em que a ignorância latente vem à tona repentinamente nas
palavras ou nas ações do tolo, ou na súbita vantagem levada pelo espertalhão. Esse
desmascaramento origem a uma situação de prazer inesperado e com isso surge o
riso (Cf. Propp, 1992, p. 107-8).
Como estratégia do risível, os alogismos revelam-se muito eficientes. O conto
que distribuir, equilibradamente em sua narrativa, o tolo - sua incapacidade de
observação mais elementar, e/ou o espertalhão - sua astúcia e sagacidade, garantirá ao
leitor momentos de descontração e comicidade.
As considerações feitas a respeito de alogismos vêm justificar o riso conseguido
em alguns contos de José Cândido de Carvalho. É o que acontece no conto 20 (p. 39).
Sob o título ‘Sonho também pega fogo’, narra uma situação em que a falta de
inteligência está claramente manifesta. É a história de um vendedor ambulante que,
depois de beber, acende o pavio de vinte rojões, que ele mesmo havia amarrado a um
cabo de um guarda-chuva. O cômico é facilmente percebido na estupidez dessa ação e
nas ações seguintes em que ele é levado aos ares pelos rojões e culmina com ele sendo
“desencravado a poder de muita corda e pá”, depois de cair num alagado.
Desde o primeiro parágrafo, o encadeamento das ações no conto 20, rumava
para uma situação mica provocada pela estupidez do protagonista. A falta de
inteligência declarada da personagem é o mote que assegura a comicidade da trama do
início até o seu desfecho. Não há intenção de ocultar a tolice, pelo contrário, sua
exaltação é que constrói a comicidade.
No conto 110 (p.126-7) uma situação em que a esperteza se sobrepõe à
ignorância. Sob o título ‘Compre o céu antes que acabe’, relata a história de um
espertalhão que engana uma cidade inteira, com a falsa notícia de que o mundo iria se
acabar, para se safar de dívidas e ainda ganhar algum dinheiro com a venda de terreno
no céu. Nesse caso, é evidente a falta de inteligência das vítimas do golpe. Por outro
lado, o zombador ainda conta vantagem de seus atos ao desdenhar da avareza de outra
personagem.
A forma astuta e sagaz com a qual o espertalhão conduz o conflito resulta em
sua superioridade em relação ao rumo das ações. O cômico tem origem no súbito
reconhecimento da incapacidade de percepção das vítimas do golpe e no sucesso do
84
mentiroso. O riso castiga as vítimas do golpe pela estultice, ao mesmo tempo em que
estabelece uma relação de cumplicidade entre o enganador e o leitor (Cf. Bergson,
2001, p.57).
Sob o título ‘Incêndio como bonificação de fim de ano’, no conto 132 (p. 146-7)
temos o relato de um bombeiro-eletricista amador que, em dois anos, quase demoliu
toda uma cidade. Depois de danificar mais de vinte casas, atear fogo em parte do
comércio local, tem orgulho e admiração para o que considera sua obra-prima - o
grande incêndio da Fogueteria Azeredo. O tolo do conto estabelece um vínculo de
simpatia com o leitor à medida que exerce seu atrapalhado ofício, de forma
despropositada, sem nada cobrar pelo trabalho; e é cômico por conta de, ingenuamente,
acreditar que sua incompetência consiste no fato de ainda não ter levado a cidade toda
pelos ares, ignorando os danos que sua inabilidade já causara.
A visão distorcida que o tolo tem do mundo faz com que suas conclusões sejam
equivocadas e, portanto, cômicas. Porém, considerando suas convicções, ele é capaz de
ter compaixão e até sacrificar-se pelos outros. É isso, inclusive, o que cria simpatia entre
o tolo e os leitores: o fato de suas qualidades morais prevalecerem sobre a sua
inteligência (Cf. Propp, 1992, p. 113).
85
Considerações Finais
Encerrada a pesquisa, feitas as análises, cremos ter atingido o objetivo inicial
deste trabalho ao estudar, explorar e destacar as mais significativas estratégias
lingüístico-discursivas do risível nos contos que compuseram nosso corpus. Nesse
sentido, Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon correspondeu às nossas
expectativas e confirmou-se como o material rico em estratégias do riso que
suspeitávamos desde o início.
A forma de escrever de José Cândido de Carvalho é que se mostrou bastante
característica. Seu estilo é marcado por uma linguagem exagerada, hiperbólica. Esse
fato pode ser atribuído a sua larga experiência como jornalista, pois a rotina de uma
redação de jornal muitas vezes exerce influência sobre o estilo do escritor. Essas
marcas, quando transmitidas aos contos, contribuem para que a leitura se torne um tanto
quanto cansativa e repetitiva.
Porém, muito acertada é a constatação de Minois (2003, p. 15), segundo a qual o
riso é estudado com lupa séculos, por todas as disciplinas, e ainda resguarda seu
mistério. Isso porque no levantamento do riso que compreendeu o período da
Antiguidade ao Renascimento não encontramos registros que dessem ao riso um aspecto
positivo. Nesse período o riso era feio e próprio das classes inferiores, baixas, ridículas,
cheias de vícios e falhas. Essa divisão entre o sério e o não-sério refletia também uma
divisão de classes sociais. O riso, ao mostrar sua face libertadora, contestadora, torna-se
um grande aliado do povo para se rebelar e debochar da sociedade da época.
O mistério que envolve o riso fortificou-se quando no levantamento
contemporâneo constatamos que havia o riso bom, que a sociedade ou os grupos sociais
encontraram no riso um aliado para a manutenção da ordem e dos bons costumes e, que,
entre as muitas disciplinas que estudam o riso estava a lingüística.
O enfoque lingüístico-discursivo que demos ao nosso corpus teve como base
quatro categorias de comicidade exploradas, principalmente, nas teorias de Bérgson e
Propp. São elas: a comicidade de formas e movimentos, a comicidade de situação, a
comicidade de palavras, e a comicidade de caráter.
O cômico de formas e movimentos foi estudado a partir da descrição de
personagens facilmente encontrados no convívio social. José Cândido reuniu contos
sobre gente gorda, gente feia, gente vaidosa e anões, ou seja, pessoas que fogem do
padrão de beleza estabelecido pela sociedade e linguisticamente explorou o riso desses
tipos com o uso de metáforas, hipérboles e ironias.
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O cômico de situação é marcado pelos relatos de violência e, principalmente,
violência em partidas de futebol. O exagero nas ações das personagens, realçados pelo
uso lingüístico da metáfora e da escolha lexical, chega a anular o efeito cômico em
alguns casos, e a vulgarizar a narrativa, em outros. O riso assume a função de amenizar
a violência das ações, mas não contém qualquer crítica social à situação.
A comicidade de palavras é a mais recorrente nos contos de José Cândido. O
autor tem uma predileção pela criação de nomes e palavras novas. Estratégias como
neologismos, nomes estranhos, gírias e trocadilhos são facilmente encontradas nos
contos e utilizadas de forma hábil na produção do riso. Ainda assim, em alguns casos, o
vocábulo ou o nome novo é tão absurdo que ultrapassa o limite do estranhamento e o
provoca o riso.
O cômico de caráter é explorado a partir da relação estupidez-ingenuidade. Os
contos assinalam bem as características dos personagens que querem levar vantagens
sobre os outros. O riso é provocado ora pelo desmascaramento das ações do espertalhão,
ora pela merecida punição do tolo que não consegue perceber o que se passa ao seu
redor. Linguisticamente o riso é suscitado a partir do uso de muitas metáforas e ironias
nas narrativas.
O estudo lingüístico-discursivo do riso oferece ainda um vasto campo para
investigações, mas encerramos nossas análises com a sensação de que demos a nossa
contribuição não para as pesquisas lingüísticas, mas também para revelar parte do
mistério que envolve o fenômeno riso.
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