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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CHARLAN KREUTZFELD DE FARIAS
ESPAÇO GEOGRÁFICO E CINEMA
RIO DE JANEIRO
2008
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CHARLAN KREUTZFELD DE FARIAS
ESPAÇO GEOGRÁFICO E CINEMA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profa. Leila Beatriz Ribeiro
Rio de Janeiro
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
CHARLAN KREUTZFELD DE FARIAS
ESPAÇO GEOGRÁFICO E CINEMA
Aprovado pela Banca Examinadora
Rio de Janeiro, ______/______/______
_____________________________________________________
Professora Doutora Leila Beatriz Ribeiro (Orientadora)
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
_____________________________________________________
Professora Doutora Rosália Maria Duarte
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ
_________________________________________________________
Professora Doutora Guaracira Gouvêa de Souza
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
[W9S1] Comentário:
DEDICATÓRIA
À meu pai Welington e minha esposa Giovana, que foram fundamentais para a realização do
trabalho.
AGRADECIMENTOS
· À Leila, minha orientadora pelo grande exemplo de profissionalismo, compromisso,
respeito e envolvimento pelo trabalho. E, além disso, por sempre exigir um pouco
mais e me ajudar a colocar os “pés no chão” em várias oportunidades.
· À generosidade da banca examinadora na avaliação do meu trabalho e na imensa
contribuição para o desdobramento do mesmo após a qualificação.
· A toda minha família pelo apoio ofertado e por ficar a meu lado.
· A meus tios Jéferson, Rosângela e Rosemere por terem me acolhido com muito
carinho durante minha estada no Rio de Janeiro.
“Além de jogar com o tempo, o cinema também virou a geografia de cabeça para baixo. Ele
vestiu o planeta em todos os disfarces concebíveis”.
Jean-Claude Carrière
RESUMO
Busca aproximar o cinema da escola, analisando em particular como as imagens
cinematográficas influenciam nossas construções imaginárias acerca de locais não
familiares. Investiga como o espaço geográfico africano é representado nas
cinematografias estadunidense e africana. Apresenta breve análise do contexto histórico de
surgimento do cinema, remetendo-se à modernidade, para posteriormente tratar da
linguagem cinematográfica. Traça panorama da imersão das novas tecnologias no contexto
escolar, sublinhando as interações específicas entre cinema e escola e mais precisamente
busca aproximar a sétima arte da ciência geográfica. Discute o conceito de representação e
o papel das películas na formação de concepções espaciais e ideológicas. Constrói as
categorias de análise: representação do espaço africano e representação dos personagens
africanos e não africanos, utilizadas no estudo dos filmes selecionados. Elabora
considerações sobre a produção cultural do Terceiro Mundo, debruçando-se em especial
sobre a cinematografia africana. Realiza uma análise fílmica, de caráter simbólico, com os
filmes Caçados, Uma aventura na África, Infância Roubada, A minha voz e Nosso pai.
Efetua discussão comparativa entre a produção fílmica estadunidense e africana tomando
por base as apropriações do espaço geográfico realizada por ambas. Conclui que existem
significativas diferenças entre as cinematografias eleitas com relação à abordagem das
categorias de análise apresentadas, reforçando assim a necessidade de uma leitura crítica
dos filmes.
Palavras-chave: Espaço Geográfico. Cinema. Escola.
ABSTRACT
It looks to bring near the cinema of the school, analyzing particularly how the
cinematographic images influence our imaginary constructions about unfamiliar places. In
this sense, it is detained to investigate how the geographical African space is represented in
the North American and African cinematography. It executes a small analysis of the historical
context of the appearance of the cinema, sending itself to the modernity, subsequently treating
the cinematographic language. It draws a view of the immersion of the new technologies in
the school context, underlining the specific interactions between cinema and school and more
precisely it looks to bring near the seventh art of the geographical science. It discusses the
concept of representation and the function of the films in the formation of space and
ideological conceptions. It builds categories of analysis that are used subsequently in the
study of the elected movies. It prepares considerations about the cultural production of the
Third world, emphasizing in special the African cinematography. It carries out an analysis of
the films, of symbolic character, with the movies ‘Hunted’, ‘An Adventure in Africa’, ‘Stolen
Childhood’, ‘My voice’ and ‘Our father’. It effectuates a comparative discussion between the
production of North American and African films taking for base the appropriations of the
geographical space carried out by both.
Key words: Geographical space. Cinema. School.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................12
2 O CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO CINEMA E SEUS
IMPACTOS CULTURAIS....................................................................... 18
2.1 O ADVENTO DA MODERNIDADE.................................................... 18
2.2 O TREINO DO OLHAR........ .............................................................. 23
2.3 O PRIMEIRO CINEMA...................................................................................... 28
2.4 A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA.............................................. 34
3 CINEMA E ESCOLA............................................................................ 41
3.1 O IMPACTO DAS MÍDIAS NA EDUCAÇÃO...................................... 41
3.2 DIÁLOGOS ENTRE CINEMA E ESCOLA........................................... 46
3.3 CINEMA E GEOGRAFIA.................................................................... 50
3.4 A FORÇA DAS REPRESENTAÇÕES.................................................. 57
3.5 ESPAÇO GEOGRÁFICO E CINEMA................................................... 59
4 OLHARES SOBRE A ÁFRICA ............................................................ 68
4.1 CONSTRUINDO O IMAGINÁRIO OCIDENTAL................................. 68
4.2 A PRODUÇÃO CULTURAL DO TERCEIRO MUNDO.........................81
4.3 O CINEMA AFRICANO....................................................................84
4.4 O CORPUS DE ANÁLISE.....................................................................92
5 CONCLUSÃO...................................................................................... 124
REFERÊNCIAS.......................................................................................128
1 INTRODUÇÃO
Intenso escrutínio de idéias em busca de um pouco de sistematização para chegar a
integibilidade? Ou apenas as rédeas soltas da imaginação, da fruição, dos devaneios que se
entrecruzam num permanente movimento de aproximação e distanciamento; movimento
anárquico por excelência. Onde está a origem do presente trabalho? Qual a fonte primeira
que o alimentou? De onde vem a inspiração?
Mergulhar no tempo, nos recônditos das lembranças disformes, dos sentimentos
repousados na fonte viva do inconsciente, a alimentar, a criar formas ainda que temporais.
Ler nas entrelinhas imaginárias fechando os olhos e buscando a sala antiga, o pai e o filme.
Aquela presença forte em minha vida, aquele momento de mergulhar em outros mundos,
de desvelar o desconhecido, o fascínio, o brilho nos olhos. A terapêutica do filme, o lugar
seguro, o tempo de respirar dos problemas reais, o compartilhar de outras vivências ao
encarnar personagens. O tempo de sonhar. O sonho alimento da vida. O cinema, fonte
inesgotável. A fluir incessantemente como o próprio projetor das salas escuras.
Fechar um pouco as cortinas diáfanas das primeiras lembranças, entrar no túnel e
avançar vendo a infância se desvanecer dando espaço a outros olhares, marcados por outras
vivências. Chegar à universidade e na angústia gerada pela escolha do tema da monografia,
olhar de soslaio e percebê-lo forte e ainda significante em minha vida, como a me convidar
para o diálogo. Dessa forma, inicio minha aproximação com o cinema no meio acadêmico
tratando à época da monografia das relações entre cinema e Geografia. No presente
trabalho desejo dar continuidade, caminhar um pouco mais nas reflexões já iniciadas.
Iniciamos a atual discussão com a observação de que vivemos em uma sociedade
notadamente marcada pela incorporação e crescente perpetuação das chamadas novas
tecnologias, que respondem significativamente pela difusão da informação em todas as
escalas espaciais. Neste contexto singular e recente, os atores humanos são constantemente
13
bombardeados por um fluxo irrestrito de diversos assuntos provenientes das mais variadas
mídias. Este universo midiático, principalmente o audiovisual, ainda guarda relevante
distância da escola e de sua linguagem mais centrada na escrita.
Tencionando uma aproximação entre este universo midiático em que o aluno está
inserido e o ambiente da escola, tornar-se-ia extremamente relevante a análise pontual
desta cultura das mídias através do estudo de uma de suas autênticas manifestações visuais,
qual seja, a produção fílmica. É notório o poder de penetração dos filmes nos mais diversos
meios sociais, seja através da TV, das videolocadoras e do cinema, assim como é bastante
aceita a idéia de que no campo das manifestações artísticas, a produção fílmica é aquela
que mais se aproxima da realidade, o que explica em grande parte seu poder de fascínio:
“Entre todas as artes ou todos os modos de representação, o cinema aparece como um dos
mais realistas, pois tem a capacidade de produzir o movimento e a duração e restituir o
ambiente sonoro de uma ação ou de um lugar” (AUMONT, 1994, p. 53).
Manifestação artística fecunda, o cinema trabalha “com uma linguagem dos
sentidos, transmite-nos significados que não podem ser transmitidos por outro tipo de
linguagem, como a discursiva ou científica” (TEIXEIRA; LOPES, 2003, p. 1). Estas
últimas são apropriadas pela escola, que as utiliza visando tornar seu discurso mais
verdadeiro e confiável. Mas caberia ao discurso científico o monopólio da busca humana
para se chegar ao conhecimento, para decodificar o mundo e a vida? A arte e a criação
estética não possibilitariam novas leituras e significações de objetos já largamente
visitados pela ciência? Adotaremos o caminho de entender a arte “como possibilidade de
leitura e interpretação do espaço socialmente constituído” (BARBOSA, 2000, p. 69).
Neste sentido, faz-se mister mergulhar nos processos educativos, nas possibilidades
de novas leituras propiciadas pelo cinema, entendendo-o como arte que através da
experiência estética, da emoção, do exercício da sensibilidade e da fruição, nos aproxima
14
da realidade educacional” que se encontra cada vez mais imersa em uma estrutura social
tangenciada pelas imagens (TEIXEIRA; LOPES, 2003, p. 1).
Entretanto, a inserção qualitativa do cinema na escola não é tarefa fácil. Existem
vários “lugares comuns”, práticas já disseminadas de forma pouco criteriosa, como a
utilização do filme para suprir a ausência de professores. Ou ainda, o uso das películas
como mera ilustração de conteúdos pedagógicos já balizados pelas ciências oficiais como a
Geografia. Sobre a questão, Leandro (2001, p. 29) defende que a escola ao relacionar-se
com a arte cinematográfica desconsidera que ela “por si só, possibilita pensar novas
relações de espaço e de tempo, por exemplo”, mas a enxerga apenas como “um aditivo
tecnológico para incrementar processos educativos em andamento, desencadeados por
ciências já consolidadas, como a Biologia, Geografia e História”.
Mais uma vez nota-se o descredenciamento da arte cinematográfica como
instrumento para se chegar ao conhecimento, quando a mesma é restringida a simples
referência ao discurso científico. Trata-se do tecnicismo utilitário em detrimento da
abstração artística.
Na vertente oposta desta matriz reducionista, fulguram novas possibilidades mais
abrangentes e ricas. Estas distanciam-se da instrumentalização ou didatização do cinema,
buscando usar o cinema para ampliar e “lapidar as sensibilidades, as identidades
individuais e coletivas, as dimensões que nos constituem como humanos” (TEIXEIRA;
LOPES, 2003, p. 1).
O cinema é antes de tudo um olhar sobre o mundo, uma forma de organizá-lo, de
dar-lhe forma, sentido. É uma visão permeada de concepções histórico-sociais, religiosas,
estéticas, filosóficas, éticas a produzir ininterruptamente memória individual, coletiva e
histórica, ultrapassando a barreira da técnica e adentrando no campo da arte e da ideologia.
Ataca fortemente moldando imaginários históricos e espaciais sobre os locais retratados,
15
direciona olhares, muitas vezes reduzindo complexidades locais à modelos estereotipados e
condensações etnocêntricas.
Dessa forma, optando por trafegar entre as polaridades concebemos o cinema como
um produto da indústria cultural (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) mas também como
fidedigna manifestação artística, um objeto que “é produzido dentro de um projeto
artístico, cultural e de mercado, um objeto de cultura para ser consumido dentro da
liberdade maior ou menor do mercado” (ALMEIDA, 2001 apud NAPOLITANO, 2003, p.
11). Corroborando esta visão, Campos (2006, p. 1) informa que o cinema
[...] se constitui em uma fonte de cultura e informação. Também é uma
indústria, é um produto, e os produtores nem sempre estão interessados
na verdade, o que exige, dada a sua grande influência, a análise de seu
papel e de sua ideologia. No entanto, é um meio de expressão artística,
um importante instrumento de comunicação e, por isso, ignorá-lo como
meio didático-pedagógico pode ser omitir, no processo educativo, uma
discussão sobre valores cuja riqueza somente o cinema pode transmitir.
É um recurso que pode ser usado para criar condições de um
conhecimento maior da realidade e para uma reflexão mais profunda.
Como as aproximações entre cinema e escola estão carregadas de possibilidades
infindas, optamos por valorizar a área em que tramitamos melhor e dessa forma conduzir
um diálogo entre cinema e geografia. Relação ainda incipiente, os dois ainda encontram-se
distanciados, não obstante o esforço de alguns autores em aproximar a geografia das artes
imagéticas.
Na atual fase pós-moderna, a Geografia, como as outras ciências sociais,
passa a exigir de seus praticantes um lastro cultural crescente. O papel da
cultura no quadro econômico e social é crescente. Isto significa,
inclusive, recorrer às diversas mídias, para se conhecer seus imaginários
construídos. ‘As construções imagéticas servem não somente como
objeto constituído, mas ao re-ordenamento das imaginações geográficas
que adquirimos do Mundo’ (CRANG, 2000 apud GEIGER, 2004, p. 15).
A epistemologia da Geografia foi marcada sobremaneira pelas indefinições acerca
de seu objeto de estudo, mas não podemos negar o papel de destaque que o espaço ocupou
no âmbito da ciência. Emerge neste momento, uma profícua tentativa de aproximar cinema
16
e geografia, com a observação de um conceito amplamente manipulado e devassado por
ambas, o espaço. “As correspondências entre a Geografia e o Cinema são muito densas,
ambas cobrindo os temas do espaço vivido e das representações do espaço. [...] O cinema é
especificamente uma arte de representação, e a Geografia trata especificamente de
representar o espaço geográfico”. (GEIGER, 2004, p. 15) Para trabalhar essas
manipulações do espaço geográfico efetuada pelo cinema e suas conseqüências sobre
vários aspectos, elegemos a cinematografia estadunidense enfocando os filmes que
retratam o continente africano.
No capítulo 2 trataremos de contextualizar historicamente o nascimento do cinema,
entendendo-o como filho fidedigno da modernidade e dessa forma situando-o em um
panorama mais amplo onde os públicos da época já exercitavam o voyerismo em atrações
populares que precederam o cinema como os museus, necrotérios e os panoramas. Ainda
abordaremos o que denominou-se primeiro cinema, quando não havia ocorrido o
estabelecimento de uma linguagem do cinema propriamente. Linguagem esta, que
examinaremos no final do capítulo.
No capítulo 3 abordaremos a revolução midiática e seus impactos no ambiente
escolar. Neste particular, aguçaremos o olhar sobre as possibilidades de diálogos entre
cinema e escola, com ênfase para a Geografia e mais particularmente para o conceito de
espaço.
No último capítulo, delimitaremos o objeto de estudo através de um recorte
temático e da eleição de categorias de análise. Outrossim, buscaremos situar como a África
insere-se no imaginário ocidental e como o cinema, assim como outras formas narrativas
contribuem para a criação destas construções. Também procederemos à análise dos filmes
previamente selecionados respaldados pelas construções teóricas precedentes e por um
modelo para a análise fílmica. Neste particular, elegeremos filmes estadunidenses e
17
africanos que versam sobre o mesmo tema, o continente africano. Na conclusão buscamos
repassar sinteticamente as questões desenvolvidas no decorrer do trabalho intentando
entrelaçá-las de forma gica, além de traçarmos considerações finais sobre os resultados
encontrados no corpus de análise.
18
2 O CONTEXTO HISTÓRICO DO SURGIMENTO DO CINEMA E SEUS
IMPACTOS CULTURAIS
O surgimento da modernidade mudou estruturalmente as relações sociais e o modo de
vida dos indivíduos. Mergulhados em um ambiente caracterizado pelo novo e fugaz, o homem
moderno experimentará uma mudança radical em seus paradigmas e conceitos outrora
estruturantes. Neste ambiente de incertezas, se permitirá também o prazer, expresso entre
outras coisas, no voyeurismo vinculado aos novos entretenimentos contidos na vida moderna,
como é o caso do cinema.
Os filmes configurar-se-ão num primeiro momento, como um prolongamento
ressonante do mundo a sua volta, da agitação e do caos da metrópole, e servirão como um
elemento de adequação do homem moderno a este mundo que se mostra indomável,
ameaçador, mas com infindas promessas de prazer.
2.1 O ADVENTO DA MODERNIDADE
A fim de tratarmos assunto de singular complexidade e que abriga um vasto repertório
de abordagens e idéias tal qual o é a modernidade, se faz necessário respeitar uma separação
com relação aos impactos provocados pela mesma no modo de pensar da humanidade. Singer
(2001), fala dos efeitos da modernidade analisando campos específicos: o político, afetado por
uma estruturação econômica, qual seja, o capitalismo que pulveriza as configurações feudais
abalando concomitantemente os dogmas religiosos centrados no teocentrismo e numa
explicação mística da natureza; a valorização crescente da razão que emerge no contexto
renascentista e dá ao homem a possibilidade, outrora inexistente, de questionar valores
enraizados na cultura da época.
Os efeitos da modernidade também se farão sentir no setor tecnológico, que trará as
revoluções na indústria e transportes ocasionando reconfigurações às cidades. Estas,
consubstar-se-ão em espaço privilegiado das infindas complexidades, ambigüidades e
19
mudanças que permeiam o homem moderno. Palco de atores ainda deslumbrados, temerosos e
imbuídos ora pela busca do prazer da descoberta, do novo, oferecido em abundância pelas
metrópoles, ora profundamente melancólicos com a perda dos referenciais passados que
estruturavam-no. O sujeito moderno encontra-se num espaço hiperestimulado; a urbanização
que traz consigo os sinais, as vitrines, um estímulo constante à visão, um olhar que necessita
ser treinado para adaptar-se à nova realidade. Tal contexto leva a individualização do sujeito.
Neste cenário, a modernidade reivindicará do indivíduo o desenvolvimento de sua
autonomia a fim de que este adeque-se às novas demandas da vida moderna. Portanto, a
modernidade traz consigo novos parâmetros sociais, fato que indubitavelmente leva o sujeito
a um clima de tensão crescente e constante, onde pode sentir o ar espesso carregado de
ameaças, principalmente a de levar consigo aquilo que o indivíduo possuía, sabia e era.
Todavia, para Ribeiro (2005, p. 135) “ser moderno é também se encontrar em um ambiente
que traz promessas de alegria, crescimento, autotransformação, anulação de fronteiras
geográficas, raciais, nacionais, econômicas e ideológicas”.
Reforçando este conjunto de sensações presentes na vida moderna e como elas
influenciam o indivíduo, Baudelaire (1996) corrobora o caráter prazeroso da vida moderna
discorrendo sobre o flanar pelas ruas, o sentir-se em casa, o desbravar este novo mundo caótico
e desafiador.
A lógica brutal do capitalismo, materializada na industrialização e urbanização e
impulsionadas pela evolução tecnológica transforma contundentemente o espaço geográfico,
não obstante cobrar seu preço.
É impossível não ficar emocionado com o espetáculo desta população
doentia, que engole a poeira das fábricas, que inala partículas de algodão,
que deixa penetrar seus tecidos pelo alvaiade, pelo mercúrio e por todos
os venenos necessários à realização de obras-primas... Esta população
espera os milagres a que o mundo parece ter direito, sente correr sangue
purpúreo nas veias e lança um longo olhar carregado de tristeza à luz do
sol e à sombra dos grandes parques (BAUDELAIRE, 1851 apud
BENJAMIN, 2000, p. 11).
20
O homem moderno mergulhado neste mundo de ambigüidades e incertezas sofrerá
agressões superlativas em seus paradigmas. Ao redimensionar o papel do indivíduo, a
modernidade conduzi-lo-á a uma atmosfera questionadora e libertadora dos outrora
acachapantes e carcerários determinismos religiosos. O incremento de uma racionalidade
revolucionária, apesar de seu potencial emancipatório, mergulha o sujeito em uma crise,
levando-o a inúmeras contradições. Segundo Albuquerque (2004, p. 107) “a modernidade
apostou que por meio da razão instrumental o homem desvelaria as regras que regulam a
regularidade da natureza e poderia então controlar os fenômenos naturais que, com seus
rompantes, ameaçam a vida humana e suas obras”. Trata-se de um momento histórico, onde
é fundamental a instituição das regras claras e estabelecidas, a fim de afastar os homens de
seus impulsos autodestrutivos. Neste sentido, a adição desta lei material, mas também
simbólica, funcionaria como um freio às pulsões humanas em troca de um sentido de
proteção social. Como ressalta Albuquerque (2004, p. 74) “a cultura da modernidade
representa portanto, uma espécie de formação de compromisso pela qual o sujeito abdica do
gozo, mas tem em troca a segurança oferecida pela vida na civilização”. Contudo, a despeito
disso o que se vê são “as nossas sociedades se defrontando com questões como a destruição
do meio-ambiente, a pobreza e o consumismo, e afastamento dos sujeitos dos valores
democráticos fundamentais, efeitos perversos da racionalidade modernizante e instrumental”
(RIBEIRO, 2005). Esta aparente contradição é aclarada, pois segundo Albuquerque (2004, p.
108) “o correlato das regras claras é a possibilidade da transgressão. É preciso um limite para
ser transposto”. Em outras palavras, impor o limite através das regras não é garantia de
cumprimento das mesmas.
Outro abalo significativo protagonizado pela modernidade deu-se sobre as narrativas.
Para Benjamim (1983), o romance, filho dileto do capitalismo em vias de consolidação e
hegemonia, interfere contundentemente na narrativa tornando-a arcaica. O romance moderno,
21
decorrente da invenção da imprensa que permitiu a difusão das obras, rompe umbilicalmente
com a narrativa, pois não deriva da tradição oral. Sua origem está ligada ao isolamento do
indivíduo, reflexo da modernidade. Tal segregação é refratária à concepção do narrador, uma
vez que este busca na troca de experiências a matéria-prima fundante de suas criações
narrativas. Todavia, como nos informa Costa (2002), na modernidade os círculos de relação se
ampliam, incluindo as mediadas pelo jornal, pela fotografia, pelo telefone e pelo fonógrafo. O
homem comum vai substituindo o contato direto com a realidade por informações recebidas de
fontes cada vez mais distantes e desconhecidas. Tais mudanças substanciais adjuntas à
modernidade causam impacto avassalador sobre a narrativa arcaica.
Outro impacto que se faz sentir fortemente devido às mudanças tecnológicas
imbricadas na modernidade é o que Benjamim (1983) denominou de “A Era da
Reprodutibilidade Técnica”. Tal inovação rompe drasticamente com a concepção de arte
precedente. Walter Benjamim analisando essas mudanças reforça a importância do cinema
entendendo-o enquanto filho fidedigno da modernidade, e que promoverá a liquidação
definitiva do elemento aurático das obras de arte, destituindo-as de seu valor de culto, algo que
se prenuncia com o advento da fotografia. Não obstante, a fotografia ainda manteria alguns
resquícios do valor de culto das obras de arte, como por exemplo, quando “da recordação
destinada a seres queridos, afastados ou desaparecidos, o valor de culto da imagem encontra
seu último refúgio [...] Mas, desde que o homem está ausente da fotografia, o valor de exibição
sobrepõe-se decididamente ao valor de culto” (BENJAMIM, 1983, p. 10).
O cinema, portanto, retira a arte de seu status de raridade, democratizando-a ao torná-la
um fenômeno de massas. Ao fazer isso o cinema estaria ampliando sobremaneira nossa visão
do mundo, ao retratar não apenas o espaço familiar/próximo dando-lhe nova ênfase com seus
primeiros planos, mas estaria a permitir também viagens a locais distanciados ao representá-los
através da lente. Os bares e as ruas de nossas grandes cidades, nossos gabinetes e aposentos
22
mobiliados, as estações e usinas pareciam aprisionar-nos sem esperança de libertação. Então
veio o cinema e, graças à dinâmica de seus décimos de segundo, destruiu esse universo
carcerário” (BENJAMIM, 1983, p. 22).
O cinema, assim como outras formas de comunicação do século XX, a exemplo do
rádio e da televisão, estaria a reconfigurar a noção de espaço do homem moderno,
reelaborando as noções de distância, o que concorreria para uma desvalorização do
entorno. O interesse é deslocado para o outro, para o distante materialmente, para o
desconhecido. As mídias ampliam o ciclo de relações do homem que “vai substituindo o
contato direto com a realidade por informações recebidas de fontes cada vez mais
impessoais, distantes e desconhecidas” (COSTA, 2002, p. 56).
Porém, que se questionar até que ponto o advento e a consolidação destas
tecnologias referidas estariam a nos aproximar, nós cidadãos deste mundo globalizado que
pretensamente se outorga como encurtador das distâncias postulando a chamada “aldeia
global”. Torna-se fundamental inserir a crítica com relação às representações hodiernas
trazidas por estas mídias imagéticas ou não e sua recorrente visão acachapante e
homogeneizadora de locais não pertencentes à cultura ocidental hegemônica. Até que ponto as
informações mediadas pelas mídias podem efetivamente substituir o contato direto com a
realidade?
O voyeurismo, o constante e necessário treino do olhar em uma sociedade que se
complexifica exponencialmente, trazendo novas exigências e prazeres ao homem moderno,
encontrará ressonância em diversos matizes, no século XIX, como os museus de cera, os
panoramas e posteriormente o cinema. Neste sentido, a representação fílmica irá cumprir
importantes papéis, quais sejam: funcionará, em alguns casos como fidedigno representante de
um projeto homogeneizador que visa dar identidade e certa formatação às massas amorfas das
metrópoles que acorriam às salas de cinema; um treino para a apreensão de uma nova realidade
23
que se fazia rápida e dinâmica; um escape das tensões provenientes de uma realidade
sufocante, e por fim “o cinema funcionará como caixa de ressonância das imagens que o
relacionam com o mundo” (LINS apud RIBEIRO, 2005, p. 109).
Contudo, tal capacidade de leitura das massas exercitadas no cinema pressupõe o
exercício anterior dessas competências. Tal constatação leva-nos a um mergulho necessário nas
diversas formas de ver desenvolvidas pelo público durante o século XIX.
2.2 O TREINO DO OLHAR
Faz-se necessário entender o cinema, não como uma grande inovação dicotomizada de
um contexto histórico, mas enxergá-lo como mais um componente a protagonizar mudanças
ocorridas no século XIX, que vieram a transformar e influenciar sobremaneira a relação do
sujeito moderno com seu entorno. A busca pelo divertimento, pelo prazer, ideais propagados
pela vida moderna, é compartilhada pelos cidadãos.
Nenhum povo do mundo aprecia tanto os divertimentos ou distractions
como eles os chamam – quanto os parisienses. Manhã, tarde e noite, verão e
inverno, sempre algo para ser visto, e uma grande parte da população
parece absorvida em busca do prazer [...] Mas mais importante do que o
prazer, talvez, o guia prometia que “há sempre algo para ser visto”. A vida
em Paris, pretendo mostrar aqui, tornou-se fortemente identificada com o
espetáculo. A vida real era vivenciada como um show, mas, ao mesmo
tempo, os shows tornavam-se cada vez mais parecidos com a vida
(SCHWARTZ, 2001, p. 411).
O primeiro cinema, como se convencionou chamar o nascimento do mesmo, funciona
como “um componente do gosto do público pela realidade” (SCHWARTZ, 2001, p. 411).
Entender a recepção e aceitação do público pelo cinema, é antes traçar uma análise
investigativa acerca das diversas formas de ver cultivadas antes de seu advento. Para Schwartz
(2001, p. 412) “os espectadores de cinema levaram para a experiência cinematográfica modos
de ver cultivadas em uma variedade de atividades e práticas culturais”. Tal afirmativa reforça a
24
hipótese de que o cinema emerge como mais uma da série de invenções que vieram a compor a
vida do homem moderno.
Recortando no amplo contexto do mundo moderno que se instaurou em locais
emblemáticos, Paris apresenta-se como um dos ícones mais contundentes deste mundo que se
anuncia. Schwartz (2001, p. 412) informa que existem “três locais de prazer popular na França
do fim do século XIX – o necrotério de Paris, os museus de cera e os panoramas”.
As narrativas dos jornais funcionaram como elemento fundamental para o que se
denominou “realismo do espetáculo”. Os jornais alimentavam a imaginação da população com
relação a acontecimentos extraordinários como crimes, por exemplo, contribuindo para aguçar
e estimular o olhar do público. Um exemplo deste fenômeno dava-se claramente nos
necrotérios. O grande público que se deslocava regularmente aos mesmos, era estimulado pela
imprensa popular que noticiava os crimes.
Rapidamente deu-se a espetacularização do necrotério. Transformada em show, a
exposição dos corpos excitava o olhar do público e contribuía para o “voyeurismo público”.
Para Schwartz (2001, p. 415) “o necrotério satisfazia e reforçou o desejo de olhar que tanto
permeou a cultura parisiense do fim do século XIX”.
Muito possivelmente, o apelo maior registrado com relação aos necrotérios
relacionava-se com o fato de o mesmo ser extremamente realista. Acontecimentos reais são
exibidos no local e sensibilizam a todos os indivíduos, que acorriam às salas no afã de
sorver um pouco mais dessa realidade indubitavelmente mórbida, não obstante constituinte
da vivência do público. Schwartz (2001) relata um caso basilar, que diz respeito à
exposição do corpo de uma criança que chegou a levar 150 mil pessoas ao necrotério.
Importante observar que tal apelo, não se relacionava de forma alguma à motivação de
identificar o corpo, mas sim com o desejo superlativo de usufruir um pouco mais dessa
25
cultura de espetacularização ofertada pelo mundo parisiense à época, onde o necrotério
ocupava posição de destaque por transformar a vida real em espetáculo.
Outra atração adjunta e componente da vida do espectador pré-cinematográfico era
o Mussé Grevin. Com uma aproximação da realidade menos acentuada do que o
necrotério, o Mussé solidarizava-se com este no que tange seu escopo principal, qual seja,
o de buscar primordialmente a aceitação do público.
Os museus, todavia, possuíam características distintas dos necrotérios. Com relação
à representação da realidade, destacavam-se por adicionar a imagem ao texto, funcionando
“como um modo mais realista de satisfazer o interesse do público pelos fatos diários”
(SCHWARTZ, 2001, p. 421).
Situando os museus de cera enquanto mais uma das inovações presentes no século
XIX que estimulavam o treino do olhar, e que viria a ser de fundamental importância para
a futura identificação do público com o cinema, podemos traçar paralelos ainda incipientes
no sentido de encontrar práticas comuns aos museus que posteriormente seriam utilizadas
pelo cinema. Um desses paralelos se quando os museus tratavam de representar
personagens históricos, que eram inacessíveis à maioria do público. Tal representação
influía diretamente no êxito das atrações. Uma crítica de jornal serve de exemplo: “A
semelhança dos nossos grandes homens, dos nossos artistas famosos ou das pessoas da
sociedade nos agrada... e é para vê-los bem de perto que o público lota o Mussé Grevin”
(L’INDÉPENDANCE BELGE, 1882 apud SCHWARTZ, 2001, p. 423).
Ao adotarem esta prática, os museus acabam celebrizando os personagens
representados. Mais tarde, o cinema também irá criar suas próprias celebridades, que assim
como ocorria nos museus, influíram decisivamente na popularidade das películas. Como
ressalta Benjamim (1983, p. 18) “o cinema constrói artificialmente a ‘personalidade do
ator’, o culto do astro que favorece ao capitalismo dos produtores.Sobre esse caráter da
26
indústria cinematográfica de utilizar-se do “endeusamento” dos atores com fins lucrativos,
Costa (2002, p. 63) salienta que “[...] a indústria cinematográfica foi acusada de ter como
objetivo apenas o lucro, o entretenimento e a satisfação escapista do público [...] e por
promover uma falsa compreensão do real que se manifesta de forma aguda, na idolatria
sempre estimulada dos astros cinematográficos”.
Outro incremento singular dos museus no que tange às formas de ver do século
XIX, diz respeito à adoção das narrativas seqüenciais. Estas, não se reduziam à exposição
de quadros pontuais com relação ao tema aludido, como por exemplo, a representação de
Napoleão Bonaparte em uma de suas batalhas, mas indo além, davam gênese a uma
história composta de início, meio e fim. Explicitando tal fato, Schwartz (2002, p. 428)
informa que uma dada exposição “retratava as vicissitudes de um crime do começo ao fim:
o assassinato, a prisão, o confronto do assassino com sua vítima no necrotério, o
julgamento, a cela do condenado, a preparação para a execução e a própria execução”.
Neste particular, difere-se fundamentalmente do cinema em seu nascedouro, pois
temos, por exemplo, as primeiras exibições dos irmãos Lumiére se limitando a mostrar
cenas pontuais como a saída de trabalhadores de uma fábrica, revelando portanto uma
despretensão em contar uma história. Todavia, com a evolução das técnicas
cinematográficas, como por exemplo, a flexibilização dos planos rompendo com a fixidez
inicial, que juntamente com outros fatores ocasiona a gênese da linguagem
cinematográfica, o cinema também utilizará a linearidade narrativa para contar suas
histórias (MACHADO, 1997).
Entretenimento bastante popular no fim do século XIX, os panoramas têm ocupado
lugar destacado no campo das discussões que versam sobre as invenções tecnológicas que
configuram-se como antecedentes e fundamentais para o advento do cinema, assim como
27
outras tecnologias, a exemplo das projeções criptológicas, a lanterna mágica e a própria
fotografia.
Fato é, que inseridos em um contexto histórico onde o gosto do blico pela
realidade era notório, os panoramas irão apresentar várias convergências com os museus,
expressas, por exemplo, na busca tenaz pelo realismo; sendo que neste aspecto, eles
apresentam uma inovação, qual seja, a de propiciar ao público uma experiência corporal e
não meramente visual. Isto fica claro, como ressalta Schwartz (2001) em um panorama
intitulado “A Batalha de Nazarino”, que refere-se à Guerra Franco-Prussiana; neste
espetáculo os visitantes se deleitavam com o fato de se encontrarem em um navio de
guerra real. Percebe-se, nesta encenação a preocupação de que os panoramas também
retratassem acontecimentos reais e recentes, o que mais tarde também será uma prática
comum ao cinema. Costa (1995, p.137-138) constata essa afirmação ao tratar do filme
Battle of Manila bay que “reproduz com barquinhos de papel sobre um tanque de água
(ajudados por punhados de pólvora que explodem) a batalha em que o almirante norte-
americano Dewey saiu vitorioso nas Filipinas, em conflito contra os espanhóis. O evento
era recente, tinha ocorrido duas semanas antes”.
Outra aproximação entre as artes, centra-se no fato de que o panorama promove um
recorte do espaço geográfico, determinando a extensão, angulação, enfim o que olhar e de
que forma. Além disso, coloca o espectador em posição central, dando-lhe uma idéia de
controle. Prazer este, que será retomado pelo cinema em seu período clássico, como
ressalta Amâncio (2000, p. 50) “a câmera celebra festivamente o prazer do espectador do
cinema clássico, pela centralidade de sua posição, pela amplitude do seu olhar e pelo
fascínio da imagem que lhe é revelada, a partir de um eixo fixo”.
Os panoramas, assim como os necrotérios e os museus, também se projetarão como
extensões das temáticas aludidas nos jornais que serão reverberadas nestes
28
entretenimentos. Além disso, os panoramas, aproximando-se novamente dos museus,
revelar-se-ão como agentes eficazes no processo de celebrização, pois como observou uma
crítica de jornal à época, o “panorama atraía muitas pessoas que ‘sempre quiseram
conhecer e ver os poetas, escritores, pintores, escultores, atores e políticos cujos nomes
liam no jornal todos os dias’. A galeria funcionava como uma summa da imprensa
popular” (SCHWARTZ, 2001, p. 431).
Portanto, tal preâmbulo, qual seja, a análise das formas de ver, e dos
entretenimentos popularizados à época do nascimento do cinema, toma vulto para que
entendamos o advento do cinema e a recepção cinematográfica, não como algo pontual ou
deslocado historicamente, mas sim localizado no “campo das formas e práticas culturais
associadas à florescente cultura de massa do fim do século XIX” (SCHWARTZ, 2001, p.
436). Faz-se necessário perceber, que nessa multidão eclipsada pelas inovações advindas
da modernidade que assaltam abruptamente todos os setores da vida, é que se encontra o
espectador cinematográfico.
2.3 O PRIMEIRO CINEMA
Assunto de singular polêmica, as discussões acerca do nascimento do cinema
comportam diferentes visões que se encontram distanciadas de um consenso, não existindo
portanto um marco referencial para situar sua origem. Questão recorrente, que pode ser
aplicada a outras descobertas, sempre temos vozes que clamam em nome de determinados
grupos ou países os louros da primazia nas invenções de toda natureza.
Segundo Machado (1997), o cinema “stricto sensu”, ou seja, aquele nasce a partir
do cinematógrafo de Jean Acme Leroy, Louis e Auguste Lumiére, Auguste Le Prince,
Robert W. Paul, Max Skaladanowsky e Thomas Edison representa na verdade um esforço
e reunião sistematizada de descobertas e invenções que precedem o cinematógrafo, como é
o caso “dos teatros de luz por Giovanni della Porta (século XVI), das projeções
29
criptológicas por Athanasius Kircher (século XVIII), do panorama por Robert Barker
(século XVIII) e da fotografia por Niépce e Louis Daguerre (século XIX) [...]”, entre
outros (MACHADO, 1997, p. 12).
Todavia, é necessário frisar que ao tomar tal direção a fim de situar o nascimento
do cinema, privilegia-se apenas algumas das técnicas constituintes do mesmo (aquelas que
podem ser datadas historicamente) em detrimento de outras, “como é o caso da câmera
obscura e de seu mecanismo de produção de perspectiva, bem como a síntese do
movimento, que se perdem na noite do tempo” (MACHADO, 1997, p. 13).
Ressalvadas as diversas abordagens acerca das origens do cinema, que se
ressaltar que o cinema decorrente da invenção do cinematógrafo, guarda vultuosas
diferenças da concepção de cinema hodierna. Devido às impositivas restrições técnicas, e
objetivando respeitar os modelos basilares à época que permitiam granjear acesso à
chamada cultura popular, quais sejam, a valorização do sensacionalismo, do espetáculo e a
aproximação da realidade, o cinema em seus primórdios buscará priorizar temáticas
antagônicas aos valores éticos e morais entronizados pelos meios religiosos, e dessa forma
intensificar sua consonância com os desejos do público. Cria-se então um mundo “paralelo
ao da cultura oficial, um mundo de cinismo, obscenidades, grossuras e ambigüidades, onde
não cabia qualquer escrúpulo de elevação espiritualista abstrata” (MACHADO, 1997, p.
76).
Estas temáticas que aludiam a realidade e valorizavam a cultura do espetáculo, é
importante lembrar, se encontravam em entretenimentos anteriores ao cinema, como
aqueles estudados aqui. Dessa forma “as massas acorriam às salas de espetáculo, feiras,
exposições, galerias, museus, necrotérios e circos para vivenciar sensações intensas e
sensacionais” (RIBEIRO, 2005, p. 110).
30
A fase inicial do cinema, ou primeiro cinema, refletia na verdade o contexto em que
os indivíduos estavam mergulhados com o advento do mundo moderno, onde “o gosto do
público pelo real estava assentado na indistinção da vida e da arte” (SCHWARTZ, 2001, p.
435). Os filmes funcionavam como um espelho da realidade, pois assinalaram um pacto
fiel com a prática do “realismo, da excitação, da fragmentação e da efemeridade”
(RIBEIRO, 2005, p. 113). Este mundo fragmentado, descontínuo era capturado pelas
formas de diversão à época que serviam de espelho para o homem moderno.
Kracauer (1926 apud SINGER, 2001, p. 137) reforça a idéia argumentando que os
“divertimentos baseados na distração isto é em fortes impressões desconectadas,
atropeladas, intensas eram expressivas como reflexo da anarquia descontrolada do nosso
mundo. A platéia se reconhece na exterioridade”.
Tratando especificamente do cinema, Costa (2002, p. 62) afirma que em seus
primórdios, “o cinema converte-se em uma espécie de espelho da platéia, provocando um
processo de identificação, nunca antes visto, pelo qual o espectador se projeta no universo
fílmico”.
Tendo sido excluído do grupo seleto de atividades artísticas ligadas à cultura oficial,
o cinema foi alvejado por críticos veementes e muitas vezes radicais.
Trata-se de uma diversão de párias, um passatempo para analfabetos, de
pessoas miseráveis, aturdidas por seu trabalho e suas preocupações [...]
um espetáculo que não requer nenhum esforço, que não pressupõe
nenhuma implicação de idéias, não levanta nenhuma implicação de
idéias, não levanta nenhuma indagação, que não aborda seriamente
qualquer problema, não ilumina paixão alguma, não desperta nenhuma
luz no fundo dos corações, que não excita qualquer esperança a não ser
aquela, ridícula de, um dia, virar star em Los Angeles (DUHAMEL,
1930 apud BENJAMIM, 1983, p. 25).
Abstrai-se claramente do pensamento de Duhamel, o preconceito ligado a
entretenimentos não associados à “arte oficial”, restrita à grupos elitizados, o que
31
conservaria seu caráter aurático. Impossibilitado de ingressar no seleto grupo das artes
reconhecidas, o cinema em seus primórdios volta-se para as massas populares, para aqueles
alijados das formas “elevadas” de arte. Como aponta Machado (1997), as formas de
espetáculo provenientes da baixa cultura foram confinadas à periferia geográfica e
econômica das cidades. Os filmes, longe de se apresentarem como atração exclusiva ou
principal dos locais onde eram exibidos, se concentraram em “casas de espetáculo de
variedades, nas quais se podia também comer, beber e dançar conhecidas como music-
halls na Inglaterra, café-concerts na França e vaudevilles ou smoking nos Estados Unidos”
(MACHADO, 1997, p. 78).
Difamadas e mal-vistas pelas classes dominantes, estas casas eram compostas por
um público majoritariamente ligado às camadas proletárias, que se regozijavam com as
atrações oferecidas.
Não obstante, com o passar do tempo, os profissionais ligados à difusão dos filmes
perceberam a necessidade de ensejar mudanças às práticas cinematográficas vigentes,
visando ampliar o público das películas através da incorporação das classes médias e
segmentos da burguesia, que possuíam diferenciais significativos: solidez econômica e
maior tempo de lazer. O caminho para se chegar a este objetivo passava necessariamente
por uma revisão das temáticas fílmicas, que a partir de então buscam uma “elevação
moral”, além de individualizar personagens e adensá-los quando os recheia com
abordagens psicológicas. As histórias se tornam mais complexas e muitas vezes
depositárias das narrativas romanescas dos séculos XVIII e XIX, uma vez que autores
como Shakespeare, Tolstoi, Dickens, entre outros, tiveram suas obras vertidas para a tela
(MACHADO, 1997). Em suma, o cinema aprende a contar histórias.
A despeito das tentativas de “purificação” perpetradas pelo cinema visando o
desvincular-se de suas matrizes escatológicas, o cinema ao buscar inserir valores morais às
32
suas histórias, não se abstém de seu originário eixo norteador. Pois mesmo ao mostrar o
pecado visando exaltar a virtude, ao fazê-lo revela seu caráter perverso, uma vez que ao
exibi-lo, ainda que sob ótica negativa, conduz o espectador ao voyeurismo da prática
recriminada, induzindo-o a um prazer culpado, situado entre a pulsão do desejo e a lei
repressiva referente à ética protestante. “O cinema havia sido inocente, jubiloso e sujo. Ele
vai se tornar obsessivo, fetichista e frio. A sujeira não desaparece, ela se torna
interiorizada, ela passa pelos olhos, isto é, pelo registro do desejo” (BONITZER, 1982
apud MACHADO, 1997, p. 87).
Independente das temáticas, o cinema ainda sofrerá severas restrições técnicas.
Apesar de buscar outras fontes para a criação dos filmes, como os romances e o teatro, o
cinema ainda não se afirmara a ponto de contar uma história; daí a necessidade de um
conferencista para explicar o filme. “De pé, com um longo bastão, o homem apontava os
personagens na tela e explicava o que estavam fazendo” (CARRIÈRE, 1995, p. 13). Nos
Estados Unidos, coube a este conferencista além da missão de elevar o vel do público, o
papel do suposto saber e de indutor das diretrizes morais. O maior obstáculo enfrentado
pelo cinema e que o cerceava em suas construções narrativas era o imobilismo da mera.
Esta, estava “congelada” em sua fixidez, com seu eixo óptico frontal perpendicular ao
cenário, recortando-o em plano geral, e representava o ponto de vista de um espectador
teatral. Assim como no teatro, as entradas e saídas dos atores eram laterais (MACHADO,
1997).
Tal característica, trazia uma certa acomodação ao público, que ao assistirem aos
filmes eram irremediavelmente remetidos à experiência teatral. A inércia da câmera não
era diferente do olhar do espectador teatral, que apresentava um campo de visão fixo em
relação ao palco e quando os atores “deixavam o campo de visão da mera era como se
saíssem para os bastidores” (CARRIÈRE, 1995, p. 14).
33
Inevitável, portanto, as comparações entre cinema e teatro, executadas por vários
estudiosos da cultura. Benjamim (1983, p. 15) lança-se na questão detendo-se sobre a
figura do ator:
No teatro é, em definitivo, o ator em pessoa que apresenta, diante do
público, a sua atuação artística; já a do ator de cinema requer a mediação
de todo um mecanismo. Disso resultam duas conseqüências. O conjunto
de aparelhos que transmite a performance do artista ao público não está
obrigado a respeitá-la integralmente. Sob a direção do fotógrafo, na
medida em que se executa o filme, os aparelhos perfazem tomadas com
relação a essa performance. Essas tomadas sucessivas constituem os
materiais com que, em seguida, o montador realizará a montagem
definitiva do filme.
Entretanto, a montagem referida pelo autor, não se encontra no primeiro cinema, as
mudanças de cena ocorriam quando a ação se passasse em outro espaço ou tempo. Não
obstante, com o passar do tempo alguns cineastas vão encontrar meios inovadores para
romper com o aprisionamento imposto pelo plano geral. Este quadro primitivo, que
comportava a ação do início ao fim, passa a ser decomposto em vários planos que mostram
fragmentos da ação original. De acordo com Machado (1997, p. 124-125):
A fragmentação da história em unidades de sentido traz conseqüências
inúmeras para a nascente narrativa cinematográfica [...] a constatação de
que uma cena não precisa ser filmada em uma única tomada [o plano
geral ou quadro primitivo] e de que ela pode ganhar melhor
inteligibilidade se for desmembrada em fragmentos, que serão depois
recompostos numa seqüência linearizada, capaz de guiar os olhos do
espectador.
Estas revoluções na técnica cinematográfica irão permear a obra de alguns
cineastas. Dentre eles, podemos citar destacadamente David W. Griffith, autor de filmes
como Nascimento de uma nação (1915) e Intolerância (1916) onde o diretor começa a
aplicar algumas inovações como “mudar a posição da câmera no interior de uma mesma
cena, visando entre outras coisas, extrair efeitos dramáticos do ângulo de visão [...]. Salta
de um plano médio, para um primeiro plano e deste para um plano americano”
34
(MACHADO, 1997, p. 111). Dessa forma, o diretor de acordo com Jean Claude Bernadeth
marca “o início da maturidade lingüística do cinema, sistematizando as mudanças que ele e
outros vinham, intuitivamente, tentando produzir” (DUARTE, 2002, p. 26).
Neste momento podemos falar do nascimento de uma linguagem, pois como
observa Carrière (1995, p. 14), “não surgiu uma linguagem autenticamente nova até os
cineastas começarem a cortar o filme em cenas, até o nascimento da montagem, da edição.
Foi nessa relação invisível de uma cena com a outra, que o cinema gerou uma nova
linguagem”.
2.4 A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA
A gênese da linguagem cinematográfica demonstrou a potencialidade, outrora
questionável, do cinema em contar histórias. Assumindo definitivamente seu pleiteado
lugar de destaque no campo das artes, o cinema tornou-se alvo da análise de alguns
estudiosos, que muitas vezes inflamaram-se ao defender o valor da arte cinematográfica,
como é o caso de Martin (2003, p. 13) considerando que é absolutamente irracional
negligenciar uma arte, que socialmente falando, é a mais importante e influente da nossa
época”.
Analisando a linguagem cinematográfica, Duarte (2002) ressalta que a riqueza da
mesma provém da articulação de códigos e elementos, como a imagem em movimento,
música, iluminação, som, e destaca as possibilidades desta linguagem na produção de
significados com as infindas combinações dos códigos supracitados.
Temos assim, que cada código cumpre função específica no momento de se contar
uma história. Logicamente, que a utilização simultânea dos mesmos, pode acentuar, por
exemplo, a dramaticidade almejada pelo diretor em uma dada cena. Dessa forma, a
utilização de uma música de suspense juntamente com uma iluminação tênue, pode
35
adensar o clima de excitação psicológica em uma cena que represente o clímax ou o
desfecho de uma película de suspense. Assim como em filmes de comédia, a utilização
oposta destes códigos (iluminação farta, trilha sonora festiva e cômica) propicia um clima
de leveza e alegria. A iluminação também é usada para trazer à tona elementos-chaves da
história contada. Um exemplo ocorre em Perfume: a história de um assassino (2006), que
versa sobre a vida de um jovem com um olfato apuradíssimo. Logo no início, tal
característica é aclarada pela iluminação que incide apenas sobre o nariz do personagem
contrastando com a escuridão da cela onde ele se encontra.
A cor também cumpre papel importante para atribuir sentido ao filme. Amancio
(2000), por exemplo, associa os desenhos animados que versavam sobre o Brasil e
carregados de forte colorido pictórico a uma posterior tropicalização do Brasil no
estrangeiro. No filme Amor além da vida (1998 ), a cor também tem papel de destaque ao
caracterizar o que seria o mundo espiritual que apresenta-se com cores fortes, exageradas e
artificiais.
Com o rompimento da fixidez da câmera, esta passou a externar todo seu
incomensurável papel criativo na produção de significados dentro de um filme. “A câmera
torna-se vel como o olho humano, como o olho do espectador, ou do herói do filme. A
partir de então, a filmadora é uma criatura móvel, ativa, uma personagem do drama”
(MARTIN, 2003, p. 31).
Ilustrando este potencial criador na produção de sentido, temos que o
enquadramento de um personagem de baixo para cima (contra plongée), confere ao mesmo
uma idéia de superioridade, de altivez, de afirmação; porém se a câmera filma de cima para
baixo (plongée), o sentido muda, e o personagem assume tons de fragilidade, inferioridade
e submissão.
36
A câmera também determina diversos tipos de planos. Segundo Bernardet (1985
apud GOUVÊA et al, 2006, p. 49) “chama-se plano uma imagem entre dois cortes”. O
tamanho deste “plano (e conseqüentemente seu nome e seu lugar na nomenclatura técnica)
é determinado pela distância entre a câmera e o objeto e pela duração focal da cena
utilizada” (MARTIN, 2003, p. 37) . Temos como principais tipos de plano: “o grande
plano geral (que mostra geralmente a cidade onde a ação vai se passar), o plano americano
(onde os personagens são mostrados a partir do joelho), o primeiro plano (onde o
personagem é enquadrado do busto para cima) e o close (que mostra o rosto inteiro da
vítima)” (GOUVEA et al, 2006, p. 76-78).
Porém, como salienta Martin (2003, p. 37), “a maior parte dos tipos de plano não
tem outra finalidade senão a percepção e clareza da narrativa. Apenas o close e o plano
geral têm na maioria das vezes um significado psicológico preciso e não apenas
descritivo”.
Outro código fundante na linguagem cinematográfica é o som, que ao ser
introduzido revolucionou a história da cinematografia mundial, virando a página onde se
encontrava o cinema mudo. Pontuando o avanço proveniente da introdução do som nas
películas, Eisenstein (apud MARTIN, 2003, p. 111) escreveu: “O som não foi introduzido
no cinema mudo; saiu dele. Surgiu da necessidade que levou nosso cinema mudo a
ultrapassar os limites da pura expressão plástica”.
De acordo com Martin (2003) temos o som diegético, ou seja, aquele referente às
ações ocorridas no filme, como ruídos, explosões, tiros, entre outros, e que contrariando o
senso comum é introduzido ao filme em uma fase posterior à filmagem, garantindo a
verossimilhança, a sensação de realismo e trata muitas vezes de acentuar a carga dramática
da cena. O outro tipo de som, o não diegético, se refere à trilha sonora. Tamanha é a
importância deste recurso, que se torna difícil associar algumas das mais célebres cenas do
37
cinema mundial separadas das trilhas sonoras correspondentes, uma vez estas contribuíram
sobremaneira para sua imortalização. A título de exemplo, como imaginar os ápices
melodramáticos de filmes como Ghost (1990) e Titanic (1997) sem as trilhas musicais que
reforçaram o apelo emocional dos mesmos? Em alguns momentos, é como se a música
pudesse adentrar nas complexas ligações e teias de pensamentos/sentimentos dos
personagens, expressando uma mensagem do espírito, um desbravar do expoente
abstrativo, a mente humana. Temos uma cena singular em O Libertino (2004), que denota
a importância deste código. No funeral do Conde Rochester, a ópera que inunda a tela
parece absolver o personagem dos erros cometidos e colocá-lo acima das iniqüidades e
julgamentos humanos. É o cinema a ofertar estas viagens interiores, construindo tênues
cadeias de elos psíquicos entre nós e os personagens, é a lente objetiva devassando o
mundo subjetivo.
O valor da música no que tange o envolvimento do espectador é tão notório que
como informa Martin (2003, p. 120), “na época do cinema mudo, cada sala dispunha de
um pianista ou de uma orquestra encarregados de acompanhar as imagens com eflúvios
sonoros baseados numa postura especialmente composta para essa finalidade”. Com a
evolução das técnicas, a trilha sonora foi acoplada à narrativa fílmica. Todavia, observando
a obra de alguns cineastas, percebemos uma superexploração deste código, um pleonasmo
narrativo musical que, se por um lado robustece a ação eliminando as pequenas
ambigüidades da imagem, por outro esgota este recurso ímpar reduzindo exponencialmente
as possibilidades de interações originais entre imagem e música.
Elemento de fundamental importância no processo fílmico, a montagem, foi
determinante na criação da linguagem cinematográfica. A montagem tem a função
precípua de reunir os diferentes códigos com uma técnica que lhe é própria a fim de
conferir sentido ao filme, ou nos dizeres de Duarte (2002, p. 50), “a montagem é a ordem
38
em que os planos se sucedem em uma seqüência temporal, assim como a forma como os
elementos que compõem um mesmo plano são apresentados simultânea ou
sucessivamente”. Para Betton (1987, p. 45) a montagem não se limita a cortes e colagens,
mas define-se principalmente como um processo criativo que por ser uma linguagem do
realizador “ela impõe um estilo e revela uma visão original do mundo [...] provoca a
emoção artística, o efeito dramático ou onírico: faz malabarismos com o tempo e o espaço,
com cenários e personagens”.
A partir disso, ainda segundo Betton (1987), pode-se classificar os tipos de
montagem em três categorias principais. A primeira seria a montagem rítmica, responsável
pelo ritmo do filme. Este seria o resultado do movimento das imagens entre si e da
convergência entre o movimento da atenção do espectador e o das imagens. Isso porque
um plano não é percebido da mesma maneira do começo ao fim. Inicialmente, ele é
reconhecido e em seguida tem-se o momento de atenção máxima, onde o espectador capta
a razão de ser do plano, o seu significado. Todavia, se o plano se alongar demasiadamente,
o espectador diminuirá seu nível de atenção despertando-lhe a impaciência. Em virtude
disso, para que o filme tenha ritmo é necessário que os planos sejam cortados no momento
exato da baixa de atenção do espectador. Assim sendo, ritmo cinematográfico conceitua-se
como a coincidência entre a duração de cada plano e os movimentos de atenção que ela
suscita e satisfaz, não se relacionando simplesmente à apreensão das relações de tempo
entre os planos. Dessa forma, é alternando as durações e variando com freqüência a
extensão dos planos que o filme atinge diversidade e vida.
O segundo tipo de montagem, qual seja, a intelectual ou ideológica pode ser
definida como uma operação com um objetivo mais ou menos descritivo, que consiste em
aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento, ou um conteúdo
ideológico ao espectador.
39
Dessa forma, a montagem intelectual seria entendida como a arte de dar significado
através da relação de dois planos justapostos, de forma que essa justaposição origem à
idéia ou exprima algo que não existe nos dois planos separadamente. O conjunto é superior
à soma das partes.
Com relação à montagem narrativa, pode-se dizer que esta seria a reunião de
diversos fragmentos da realidade objetivando contar uma ação, e cuja sucessão desses
fragmentos destinar-se-ia a formar uma totalidade com significado.
Comparada com outros tipos de montagem, a narrativa diferencia-se por sua
característica descritiva. Adotando como parâmetro de diferenciação o tempo, pode-se
distinguir quatro tipos de montagem narrativa, a saber: a linear, a invertida, a alternada e a
paralela. A linear seria a forma clássica, onde a sucessão de cenas segue uma ordem lógica
e cronológica. Na invertida, a ordem não é respeitada, sendo comum a utilização de flash-
back
1
A alternada, seria baseada no paralelismo entre duas ou várias ações
contemporâneas, sendo utilizadas muitas vezes para criar ações de suspense (filmes de
suspense utilizam-se largamente desta técnica, alternando planos que mostram a
aproximação do assassino, e a vítima). Por último, a narrativa paralela, baseia-se na
aproximação simbólica de várias ações, com o objetivo de fazer surgir uma significação de
sua justaposição, sendo que as ações retratadas não precisam pertencer ao mesmo espaço
de tempo (BETTON, 1987).
Lançar um olhar agudo a fim de desvelar suas técnicas, entender seu
funcionamento e sua linguagem não é de modo algum ignorar que na magia do não
revelado, do não mensurável e concreto, daquilo que se oculta e se encontra mergulhado
nas malhas do inconsciente, deste “não saber” sobre nós, é que o cinema ataca com força
máxima, pois quando adentramos nas salas de cinema e contemplamos o apagar das luzes
1
Determinadas seqüências dentro de um filme que retratam ações do passado.
40
estamos a permitir um encontro com nossos fantasmas, nossos sonhos, nossos desejos
irreveláveis, e portanto talvez “lançar uma luz sobre ele não é bem o caso; talvez fosse o
caso de apagar um pouco as luzes que o explicam. No escuro, quem sabe, o filme pode ser
visto melhor” (MACHADO, 1997, p. 25).
41
3 CINEMA E ESCOLA
Nas novas diretrizes e posicionamentos adotados pela escola, ganha destaque o espaço
cada vez mais ampliado para as aproximações e diálogos entre a mesma e as mídias. Entender
a escola como instrumento profícuo para pensar criticamente tais manifestações midiáticas é
um posicionamento adotado por cada vez mais docentes. Todavia, estamos apenas na gênese
deste processo e naturalmente surgem obstáculos consideráveis neste caminho que
encontrado, começa a ser trilhado pelos educadores.
3.1 O IMPACTO DAS MÍDIAS NA EDUCAÇÃO
Hodiernamente, ganha destaque à proliferação e disseminação de uma profusão
voraz de imagens que nos assaltam o dia a dia e nos fazem mergulhar, sem inquirir o nosso
desejo, num universo essencialmente imagético. Tal realidade liga-se obviamente a
revolução preconizada pela mídia em suas diversas manifestações como a TV, o cinema e
a informática. Veículos que através de meios de transmissão materiais e imateriais
explicitam suas possibilidades em romper barreiras chegando à espaços geográficos dantes
confinados ao isolamento com relação ao conhecimento do mundo. Novas geografias
afloram neste contexto recente, e a constituição de lugares outrora moldados apenas pelas
adjacências territoriais, sofrem novas lapidações com o impacto fulminante das
informações imagéticas via mídia, e inserem-se no sistema capitalista ainda que margeados
pela exclusão social. Fronteiras culturais e geoeconômicas sofrem novas delineações e
mesmo locais de extrema exclusão como os bolsões de pobreza do semi-árido brasileiro
são abarcados pelas ondas da revolução midiática.
Tal revolução veio a mudar sobremaneira a relação do homem com seu entorno e
com o mundo, que de forma autêntica ou não, lhe parece mais familiar.
A opinião mais comum sobre as características de nossa época,
repetida mais de trinta anos, é que vivemos em uma “civilização da
42
imagem”. No entanto, quanto mais essa constatação se afirma, mais
parece pesar ameaçadoramente sobre nossos destinos. Quanto mais
vemos imagens, mais corremos o risco de ser enganados e, contudo, só
estamos na alvorada da geração de imagens virtuais, essas “novas”
imagens que nos propõem mundos ilusórios e no entanto perceptíveis,
dentro dos quais poderemos nos deslocar sem por isso ter de sair do
nosso quarto [...] (JOLY, 1996, p. 9-10).
Ao analisar esta questão, Belloni pontua que (2001, p. 60): “A mídia parece cada
vez mais substituir com suas imagens fictícias as experiências realmente vividas. Ao
mundo real incorpora-se o mundo representado. E esta representação tem força real, possui
esta objetividade material conferida pela técnica”.
Fato é que qualquer análise que vise debruçar-se sobre questões de cunho social,
seja na forma macro ou na análise pontual de grupos ou sujeitos, não pode prescindir de
pesar os impactos da mídia no que tange a construção de valores morais e éticos, nas
questões envolvendo gênero, sexualidade, na formação de imaginários sociais ou espaciais.
Para Duarte (2002, p. 90) “o cinema é um instrumento precioso, por exemplo, para ensinar
o respeito aos valores, crenças e visões de mundo que orientam a prática dos diferentes
grupos sociais que integram as sociedades complexas”.
Este universo midiático audiovisual distingue-se claramente da linguagem
comumente usada nas escolas que prima pela verbalização e a escrita. São notórios os
volumosos enfrentamentos da escola em repensar-se, redimensionar seus escopos e suas
práticas a fim de coadunar-se com os desejos, realidades e necessidades dos educandos. O
distanciamento e desmotivação dos mesmos nos dias atuais dão margem às inúmeras
teorias explicativas. Porém, faz-se necessário encarar o isolamento efetuado pela escola
com relação aos padrões de vida dos discentes. A cultura imagética permeia a vivência dos
jovens sendo extremamente significativa em suas vidas e na construção de valores,
conhecimentos, comportamentos e modos de pensar. “Não parece haver dúvidas quanto à
existência de vínculos mais ou menos estreitos entre a mídia veiculada em imagem-som e
43
produção/difusão de valores éticos e morais em culturas que valorizam este tipo de
artefato” (DUARTE et al, 2004, p. 38).
Não propomos, contudo, uma despersonalização da escola, uma transmutação
forçosa para simplesmente atender às demandas e desejos dos discentes. que se
salvaguardar a escola como espaço privilegiado para a crítica da sociedade, uma escola
“que assegura a todos a formação cultural e científica para a vida pessoal, profissional e
cidadã possibilitando uma relação autônoma, crítica e construtiva com a cultura em suas
várias manifestações [...]” (LIBÂNEO, 2003, p. 23). Advogamos, portanto, em prol da
aproximação, da construção de um diálogo com as mídias e não da incorporação acrítica.
Retomando a questão da dicotomia entre a cultura verbal/escrita proeminente na
escola e a cultura imagética/iconográfica dos meios audiovisuais. Esta discrepância é
entendida por Belloni (2001, p. 18) como uma defasagem da escola em relação à cultura
dos jovens. Para a autora este descompasso “é gritante, e diz respeito tanto às questões
éticas (conteúdos, mensagens) quanto aos aspectos estéticos (imagens, linguagens, modos
de percepção, pensamento e expressão).”
Lima (2005, p. 1) corrobora a questão, observando que “[...] a educação formal
praticada nas instituições oficiais está em descompasso com a vida que se leva fora do
âmbito da escola e que ela tampouco vem conseguindo ser atraente para seus alunos não
é novidade para ninguém”.
Apesar dessas constatações, muitos profissionais da educação ainda olham as
mídias com bastantes ressalvas. Porém, apesar das críticas que podem ser feitas a esta
cultura imagética impactante, argumentando que a mesma desfavorece uma maior
concentração e reflexão, além de limitar o poder de abstração, é inegável seu
incomensurável poder de sedução e a fluidez na disseminação das informações. Talvez
resida nesta precária interlocução entre dois universos distintos, quais sejam o escolar e o
44
midiático, um componente importante quando se trata da crise enfrentada pela educação.
Outro aspecto relevante centra-se no fato de que muitos docentes ainda têm dificuldade de
aceitar a perda da centralidade na transmissão dos conhecimentos outrora exercida, e se
abrirem para o fato de que nos dias de hoje o conhecimento via mídia invade a vida dos
discentes, que se apropriam do mesmo de forma, muitas vezes, mais prazerosa. Faz-se
mister a aceitação do fato e a busca por uma outra relação dos professores e da escola com
as mídias, fugindo da crítica vazia e do medo injustificado. Chamá-las à convivência é
imperativo, todavia deve-se atentar para não se cometer erro oposto e não menos grave do
que a demonização das mídias, qual seja, entronizá-las e delegar as mesmas o potencial
irreal de panacéia educacional, como se as mesmas detivessem um poder mágico para
solucionar toda leva de problemas.
Cabe neste momento, determo-nos sobre questão crucial, qual seja, de que forma
lidar com as mídias concebendo-as como componentes essenciais do ambiente escolar?
Quais são as mudanças necessárias na escola para o adensamento dessa interlocução?
Quais são as novas exigências impostas aos professores e como prepará-los para essa nova
realidade? Protagonista de qualquer processo inserido no contexto escolar, o professor é
peça fundamental para que tais novas engrenagens ensejem renovações salutares na relação
professor-aluno e mídias. Todavia, reforçamos que estas novidades desestruturam um
pouco os paradigmas alicerçantes dos docentes, fazendo-os experimentar uma opressão
perpetrada pela ascendência das técnicas no ambiente escolar, que muitas vezes impõem
consecuções de atividades para as quais os profissionais não estão preparados. Fato que os
leva, em alguns casos, à adesão temerosa diante do elemento novo ou, no outro pólo, à
recusa sistemática em inserir tais atividades em sua prática, mas não sem experimentar um
sentimento de culpa por estar possivelmente desprezando um instrumento potencializador
da ação pedagógica.
45
Uma das estratégias passíveis de utilização visando minimizar esta insegurança ou
mesmo afastamento e repúdio, que muitas vezes funciona como mecanismo de defesa,
seria uma preparação adequada que dar-se-ia na formação superior do docente habilitando-
o a tramitar com mais desenvoltura por este campo midiático e seus meandros. Dessa
forma, algumas quimeras poderiam se viabilizarem, como, por exemplo, o ensino da
linguagem cinematográfica nas escolas como condição sine qua non para o trabalho com
filmes, o que enriqueceria substancialmente a s leituras das obras, que tornar-se-iam mais
críticas, agudas e abrangentes. Compartilhando do sonho, Duarte (2002, p. 95) ressalta:
Seria bom que todas as universidades e escolas tivessem espaços e
equipamentos adequados para a exibição regular de filmes, com uma
programação orientada tanto para o entretenimento (o prazer de ver é
ponto de partida) quanto para o ensino de história e teoria do cinema.
Seria bom que os professores tivessem noções básicas de cinema e
audiovisual em sua formação. Seria bom que a videoteca (ou laboratório
de multimídia) estivesse incluída entre os equipamentos necessários para
o funcionamento das instituições de ensino. Parece absurdo isso, numa
sociedade em que a maioria das escolas sequer tem bibliotecas, jornais e
revistas? Pode ser. Mas se queremos uma educação de qualidade para
todos os níveis, não podemos nos contentar com o mínimo.
Não podemos ignorar as inúmeras possibilidades de aprendizagem decorrentes da
aproximação mídia-escola, principalmente se lembrarmos que a “autodidaxia”, termo
cunhado por Belloni que designa os modos de aprendizagem relativamente independentes
das crianças com relação às mídias. Portanto, cabe um redimensionamento da relação
professor-aluno neste cenário midiático. Por mais que seja utópico pensar no discente
autodidata no ambiente escolar que enxerga no professor um parceiro na construção dos
conhecimentos, esta independência do aluno já ocorre de forma significativa em outros
meios. Como ressalta Belloni (2001, p. 28), “a autodidaxia já é uma característica essencial
dos modos de aprendizagem das crianças e jovens em sua relação com as máquinas de
informação e comunicação [...]”. Dessa constatação emerge um desafio salutar para os
professores, ou seja, como utilizar esta intimidade dos educandos com a imagem e seus
46
suportes técnicos na escola, esta imersão facilitada no universo midiático? Como
incorporar o universo da imagem ao da palavra escrita? Parece que esta é uma ponte que
requer obrigatoriedade e certa emergência em sua construção.
Um cenário de convívio harmonioso ainda que idealizado entre escola e técnicas
midiáticas é cunhado por Belloni (2001, p. 8-9), que lista algumas exigências para sua
concretização:
[...] Convergência dos paradigmas presencial e a distância e
transformações nos papéis dos dois atores principais: o ‘professor
coletivo’ e multicompetente e o estudante autônomo.
Integração dessas tecnologias de modo criativo, inteligente e distanciado,
no sentido de desenvolver a autonomia e a competência do estudante e
do educador enquanto ‘usuários’ e criadores das TIC e não como meros
‘receptores’.
Mediatização do processo ensino/aprendizagem, aproveitando ao
máximo as potencialidades comunicacionais e pedagógicas dos recursos
técnicos: criação de materiais e estratégias, metodologias, formação de
educadores (professores, comunicadores, produtores, tutores); produção
de conhecimento.
3.2 DIÁLOGOS ENTRE CINEMA E ESCOLA
Nos dizeres de Duarte (2002), não obstante as relações entre cinema e educação
serem marcadas pelo acanhamento, os mesmos falam um do outro algum tempo. Ainda
que estes direcionamentos sejam recheados de preconceitos, reducionismos e
maniqueísmos, a escola tem sido alvo de várias películas. O cinema, principalmente o
hollywodiano, muito afeito a simplificações de problemáticas densas, tende a limitar toda
uma gama de sentimentos contraditórios e conflitantes inerentes ao professorado em
estereótipos que os representam como seres especiais, alijados de sentimentos mundanos e
envolvidos com missões salvacionistas e abnegadas no campo da educação. Por outro lado,
a escola não se priva de emitir juízos com relação ao cinema, geralmente ligados a
associações simplistas à violência. Entretanto, segundo Duarte (2004, p. 39) no que diz
respeito “à relação entre o consumo de imagens de violência e comportamentos violentos,
o que foi possível constatar até agora é que certas imagens de violência contribuem para a
47
banalização da vida e dos sofrimentos humanos, mas dificilmente deflagram atitudes
violentas”.
É necessário um esforço a fim de superarmos noção tão primária com relação ao
pseudo-poder das mídias na imposição de mensagens, sejam elas violentas ou o.
Regorjear baluartes teóricos destronados que confinavam o sujeito ao papel de receptor
passivo baseando-se em modelos lineares de comunicação que atribuíam toda ação ao
emissor, é ignorar os novos paradigmas inseridos pelos Estudos Culturais e pela Teoria da
Recepção que redefiniram o papel do leitor. “Ele não é mais o sujeito passivo diante de um
texto qualquer; ele tem outras possibilidades de construção de sentidos que não aquelas
determinadas pelo autor criador do texto [como] a importância do contexto sócio-cultural
de produção e leitura das imagens” (GOUVÊA et al, 2006, p. 79-80).
Ademais, tal postura vai ao encontro de superestimar o potencial midiático em
minimizar a cadeia flutuante da produção de sentido. Fischer (2001, p. 80) ao mencionar o
trabalho de Sérgio Adorno contribui:
Seus estudos sobre violência remetem a uma discussão mais complexa
sobre a mídia, vista por ele como um espaço de interpretação do social
que merece ser discutido enquanto tal, isto é, enquanto uma
interpretação, passível de várias leituras e apropriações, e não um lugar
plenamente poderoso no sentido da imposição de significados e da
deflagração de atos sociais, como é o caso, por exemplo, de atos de
violência atribuídos quase exclusivamente à intensa e prolongada
exposição de jovens a filmes e outros produtos considerados violentos.
O olhar da escola para o cinema, ainda de soslaio, parece recheado de desconfiança
com relação à legitimidade da arte cinematográfica, principalmente quando comparada
com outras manifestações artísticas como a literatura, detentora de mais créditos. Parece
difícil desassociar a experiência cinematográfica do simples entretenimento, para concebê-
la como uma legítima fonte de conhecimento.
48
Prática já bastante disseminada, a exibição de filmes na escola acaba na maioria das
vezes sendo pouco criteriosa, caindo quase sempre na vala comum da utilização das
películas como tapa buracos ou mera ilustração da fala do professor e do conteúdo
trabalhado. Todavia, dada à riqueza da arte cinematográfica, deve-se atentar para que seu
valor não seja subestimado, obstruindo de tal forma a grande contribuição da mesma no
que tange a representação de culturas, locais, ideologias consubstanciadas nos filmes. Por
isso, é equivocada a utilização dos filmes como mero recurso ou ferramenta didática no
intuito de ilustrar as aulas.
A utilização do cinema na escola deve ser muito mais ampla e cumprir um papel
mais relevante, qual seja, o de possibilitar ao aluno um entendimento maior desta arte que
o absorve sendo significante em sua vida. E, para dilatar a compreensão do mesmo com
relação às películas é necessário adensarmos nosso olhar buscando um estudo investigativo
e sistemático, a fim de desvendar seus processos estruturantes e fundamentalmente a sua
linguagem. A “alfabetização” do discente com relação à linguagem cinematográfica pode
ampliar sua visão dos filmes propiciando ao mesmo um olhar mais aguçado, mais crítico,
que foge da leitura superficial do grande público permitindo incursões cognitivas que
mapeiam ideologias implícitas transmitidas habilmente pelos realizadores. Em outras
palavras, o aluno ao ser instruído sobre a mídia cinematográfica, pode torna-se
paulatinamente mais cauteloso, mais atento e principalmente mais crítico em suas análises,
e com o afloramento desta criticidade sua inserção em um mundo marcado pela
proliferação das informações midiáticas tornar-se-á mais rico e seletivo. Duarte (2004, p.
46) ressalta as vantagens do aceso à linguagem cinematográfica:
Nossos estudos nos levam a trabalhar com a hipótese de que um domínio
maior da linguagem audiovisual por parte do espectador tende a diminuir
o recurso a parâmetros da realidade e/ou experiências de vida para
interpretar mensagens contidas nas narrativas. Isto é, para atribuir
sentido a um filme com o qual acaba de entrar em contato, um
espectador com mais ‘proficiência’ na linguagem cinematográfica e uma
49
trajetória relativamente extensa de contato com filmes tende mais
freqüentemente a buscar referências no conhecimento que tem do
próprio cinema, do modo como este conta histórias, de como articula
códigos de uma linguagem específica para a produção de significados
internos ao filme, dos clichês narrativos, etc. Aparentemente, isso a
ele mais recursos para operar com a narrativa e maiores possibilidades de
extrair prazer e conhecimento daquela experiência.
Dessa forma, estaremos maximizando as possibilidades de profícuo aproveitamento
dos filmes ao concebê-los como objetos riquíssimos e dotados de vasto arsenal no que diz
respeito à representação de línguas, artes, espaços geográficos e da própria História. Essa é
elemento recorrente nas temáticas fílmicas, que ao desbravarem os meandros dos períodos
históricos acabam por influir em nosso imaginário e com isso “talvez até nosso sentido de
História nos cheguem agora principalmente através do cinema [...] Imagens
cinematográficas se gravam em nós sem que percebamos, como máscaras fixadas sobre os
séculos passados. Aos poucos substituem as antigas versões oficiais”. (CARRIÉRE, 1995,
p. 64).
Como em parte considerável das películas emergem questões geográficas (como a
captação do espaço), históricas (os filmes estão inseridos em um contexto histórico, mesmo
quando não se centram nesta questão), sociais (geralmente abordam relações econômicas,
familiares), entre outras, os filmes constituem-se em rico material para o trabalho
interdisciplinar. Um filme como Shakespeare Apaixonado (1998), por exemplo, instiga
várias expedições cognitivas podendo ser apreciado por vários olhares e suscitar inúmeras
abordagens. Podendo se trabalhar em História, a representação da Idade Média inglesa, a
estruturação social, as relações de poder; em Geografia, a organização do espaço; em
Literatura, a própria obra de Shakespeare além do período literário correspondente. Tudo
isto, sem dispensar o exercício da crítica.
Portanto, trata-se de prestimoso tópico de discussão a análise acerca de tais
representações fílmicas buscando aproximá-las do âmbito escolar. Porém, devido a este
50
mar de possibilidades no universo educacional, procederemos à recorte obrigatório,
optando por enveredar em caminhos mais conhecidos onde o trâmite será facilitado.
Portanto, elegemos a Geografia como lócus privilegiado de interlocução com o cinema.
Assim como as relações entre cinema e escola pecam pela incipiência, o mesmo pode se
dizer com relação à Geografia. “Apesar dos esforços consideráveis nos últimos dez anos,
tem sido bastante tímido o diálogo entre a geografia e o cinema” (BARBOSA, 1999, p.
110).
3.3 CINEMA E GEOGRAFIA
Inserimos neste momento, uma proposta de análise dos filmes sob um filtro
geográfico. O fato de a imagem estar em movimento, indubitavelmente aproxima a
representação fílmica da realidade. Todavia, para que o cinema, enquanto forma de
enriquecimento da atividade pedagógica, possa ser maximizado, devemos
adicionar a crítica no universo cinematográfico, questionando e analisando as
obras fílmicas a serem utilizadas. Não basta apenas reproduzir o filme, confiando
a este a tarefa de ensinar, é preciso identificar e analisar os elementos que o
compõem. Bernard; Farges e Wallet (1995 apud BARBOSA, 1999, p. 117)
indicam três filtros para a leitura das imagens cinematográficas do ponto de vista
geográfico: a autenticidade das paisagens apresentadas, o etnocentrismo e os
arquétipos de figuração e a subjetividade do autor na narração e na escolha dos
enquadramentos do espaço apresentado.
Em relação à autenticidade das paisagens apresentadas, pode-se dizer que na
maioria dos filmes, o cenário não é situado no lugar real referido pela trama, sendo muitas
vezes completamente diferente. Dessa forma, várias analogias são criadas. Contar uma
aventura no deserto do Saara não implica estar na África, basta uma planície arenosa.
Florestas tropicais são usadas genericamente para situar quaisquer locais que a apresentem
51
em sua vegetação. Assim, locações na América aludem paisagens do Sudeste asiático em
determinados filmes. Como exemplifica Carriére (1995, p. 128) “os desertos do oeste
americano têm sido cenário de diversos filmes bíblicos. Moisés e Salomão atravessam a
Califórnia. Napoleão foi forçado a retirar-se de Moscou através das neves do Canadá”.
Neste contexto, o que importa é a paisagem tipo, aquela que alude a verdadeira. Portanto,
substituir um lugar pelo outro não representa problema para a maioria dos cineastas uma
vez que “o lugar dos símbolos visuais é genérico: você quer trópicos, ponha algumas
palmeiras ao fundo.” (NIESTCHMANN 1993 apud AMÂNCIO 2000, p. 46).
Constatada a inautenticidade dos lugares, presente na maioria dos filmes, Barbosa
(1999, p. 118) levanta outra questão: “as paisagens precisam ser necessariamente
autênticas para a realização e interpretação dos filmes de ficção?E indo um pouco além:
como aplicar o conceito de paisagem neste mundo dominado pelas imagens? Conceito
chave em Geografia, a paisagem ao ser capturada pela câmera, sendo ela verossímil ou
não, perde sua condição de acontecimento material transformando-se em signo, o que
desestrutura o sentido da paisagem sobre o enfoque geográfico, que a conceitua como
aquilo captado pelo olho, limitada a uma concepção empírica do real. Adequando a
concepção de paisagem aos dias de hoje concordamos com Barbosa (1999, p. 119) quando
este salienta que “podemos nos contentar com um exame entre a ‘imagem autêntica’ e ‘a
imagem tipo’ para definir o estatuto de realidade que a paisagem transfere aos filmes de
ficção” julgando ser mais conveniente abordar a paisagem-imagem como representação do
mundo. Todavia, fato é que a paisagem geográfica já não consegue explicar a dinâmica do
mundo atual, marcado pela estetização e simulação do império da imagem. Barbosa (1999,
p. 120) acrescenta:
E, se a paisagem pode nos falar algo a respeito das sociedades,
certamente não será por sua objetividade intrínseca ou por sua
autenticidade, pois corremos o risco de situar nossas análises na
aparência imediata do real e perdermos a complexidade que
52
constrói as imagens do mundo e o mundo das imagens. [...]
Afinal, o real não é feito de coisas e/ou imagens autênticas das
coisas, mas sim das relações que temos com elas.
Com relação ao etnocentrismo e os arquétipos de figuração, pode-se dizer que
representam elementos destacados na criação cinematográfica, marcada “por estereótipos e
clichês, destinada a reproduzir concepções pretensamente homogeneizadoras do mundo”
(BARBOSA, 1999, p. 120).
É comum encontrar em filmes de ficção ou mesmo documentários, representações
de sociedades, costumes, tradições, culturas, realizadas através de leituras redutoras e
preconceituosas, relegando as sociedades retratadas à condição de fora da humanidade, por
não compartilharem dos valores e costumes da sociedade ou cultura ocidental hegemônica.
Assim sendo, não é difícil encontrar, por exemplo, em filmes que retratem o continente
africano figuras lendárias como o caçador, o aventureiro e o colonizador. Nestes, a África é
o palco habitado por nativos selvagens com práticas refratárias ao mundo civilizado.
Rahier (1999, p. 51) aponta para representações africanas na indústria branca de
Hollywood que assinala o continente “como um lugar de safáris e/ou trabalho missionário
para heróis brancos, sempre envolvidos com povos e animais selvagens”. Nestes filmes, a
oposição clara entre o homem branco e o negro, busca representar na verdade, outros
elementos opostos: cultura/natureza, civilização/barbárie, maravilhoso/bizarro. Com isso,
temos a representação dos nativos africanos como bestas selvagens, a mercê da libido
desenfreada. Este processo de animalização visa criar “um elo entre ‘indivíduos selvagens
e animais silvestres’, ambos criaturas ferozes vagando em terras não habitadas”
(SHOHAT; STAM, 2006, p. 200).
Tais construções desembocam no mito da cadeia biológica, na busca pelo elo
perdido entre animais superiores (os macacos) e seres humanos inferiores (os negros).
Estes arquétipos negociam com o imaginário a colocação dos colonizados africanos como
53
marionetes dos instintos e das pulsões, em vez de associá-los à elementos culturais e
intelectuais. “Os povos colonizados são representados como corpos em vez de mentes”
(SHOHAT; STAM, 2006, p. 201). Fato que, em última instância, liga-se simbioticamente à
universos paralelos: o mundo das matérias-primas e o industrializado. Assim, o discurso
imperialista insere mais um argumento em sua orquestração.
O viés etnocêntrico é identificado também no exotismo que as obras fílmicas
utilizam-se para representar sociedades e lugares. Tais representações reducionistas não
reconhecem limites geográficos. Vagueiam por terras árabes dando gênese a personagens
caricatos de moral duvidosa como líderes tribais inescrupulosos e dançarinas do ventre.
São locais ideais para que o homem ocidental, eclipsado por obsessivo puritanismo sexual,
encontre um desafogo, uma provisória libertação masculina das convenções sociais
erigidas pelo mundo civilizado. Shohat e Stam (2006, p. 245) fornecem um exemplo com o
musical Feriado no Harém (1965), que narra as aventuras de um jovem (vivido por Elvis
Presley). Tem-se logo no início do filme, a ato heróico do personagem ao salvar uma
mulher das mãos de dois árabes mal-intencionados, que após o feito se põe a cantar:
Irei aonde o sol do deserto for/ aonde a diversão estiver/ irei aonde garotas do harém
dançam/ irei aonde houver amor e romance – lá nas areias ardentes, junto a uma caravana
qualquer/ Encontrarei aventura onde conseguir/ Em síntese, para o oriente meu jovem/ Você
será um Sheik, rico e majestoso, com dançarinas à sua disposição/ Quando o paraíso me chamar,
vou me esconder em alguma barraca/ Farei amor como havia planejado/ Vá para o Oriente – beba
e festeje – vá para o Oriente, jovem rapaz/.
Como observam Shohat e Stam (2006, p. 245), “as imagens do harém oferecem um
‘Abre-te sésamo!’ mágico para um mundo proibido, tentador e excitante, ardentemente
desejado pelo homem primitivo que moraria em todos os homens”. Nas inúmeras
representações de Cleópatra, desde as mais antigas como a de Cecil de Mille na década de
54
1950, as mais atuais como na série apresentada pela HBO intitulada Roma, temos a
personagem não como um símbolo de intelectualidade, dedicação às artes e a cultura e da
emancipação feminina, mas sim como uma mulher inescrupulosa e lasciva que através de
artimanhas sexuais articula os destinos da nação. Mais uma vez constrói-se a imagem do
oriente excessivamente sexualizado e lúbrico.
Quando os locais escolhidos são terras latino-americanas, ocorre a reificação de
modelos enraizados ao homogeneizar o espaço geográfico através do esgotamento de
paisagens referentes como a Baía de Guanabara, a Amazônia, entre outras. A montagem,
nestes casos, licencia o filme a uma série de manipulações inverossímeis do espaço
representado, de uma forma que o país
[...] é condensado nestas imagens emblemáticas através das quais a
montagem edifica uma síntese enganadora de suas vastidão geográfica.
As particularidades, as distâncias e as fronteiras são modificadas graças a
essa geografia criativa ou imaginária e se estabelece um território
ficcional sem nenhum compromisso com as reais dimensões e
qualificações da paisagem (AMANCIO, 2000, p. 74).
Quanto aos habitantes latinos, não são notadas significativas diferenças. Em
especial, temos as mulheres latino-americanas associadas à epítetos verbais que evocam
calor tropical, violência e paixão” (SHOHAT; STAM, p. 201). Essas alcunhas ampliam-se,
generalizando as retratações das mulheres do Terceiro Mundo de forma a contrapô-las à
expressão da mulher branca dos centros do capitalismo. Essa tem que ser envolvida
romanticamente para que haja o relaxamento de suas amarras morais e assim possa aflorar
seu ímpeto carnal. Entrementes, na outra vertente, as mulheres terceiro-mundistas
encontram-se não sintonizadas aos pudores que impedem a livre manifestação dos apetites
vorazes. Sinteticamente, dois mundos diametralmente opostos têm gênese, aquele do
deslizar livre dos arroubos sexuais e, por isso designado primitivo, e outro que repousa no
55
lugar seguro da civilização, onde a cruel ditadura dos instintos foi asfixiada pela bem
sucedida sublimação.
O último filtro proposto para uma leitura das imagens cinematográficas do ponto de
vista geográfico, refere-se à subjetividade do autor na narração e na escolha dos
enquadramentos do espaço representado. De que forma recortar espaços e quais espaços
recortar, o que evidenciar (com close-ups, por exemplo) ou omitir (com planos gerais, por
exemplo), são questões que emergem no discurso da câmera. Dessa forma, o cinema é
moldado pela tradição cultural de onde se origina ao mesmo tempo que atua sobre ela, e
ainda que haja tentativas deliberadas, o narrador cinematográfico não consegue “purificar-
se” das influências exercidas pelos sistemas sócio-culturais. Da apreensão do espaço pela
câmera, tem gênese uma cadeia flutuante de sentido que forma a várias conotações
topográficas ultrapassando a escala espacial. Expressões como perto/longe, alto/baixo, se
relacionam com índices de sentimentos dos personagens.
A narrativa pode ser considerada a grande artífice da imagem fílmica, visto que ela
pesa sobremaneira nos discursos da câmera, do som, da luz, e da edição, constituindo a
fala, e também influindo no gesto da imagem. Barbosa (1999, p. 125) observa que os
caminhos tomados pela narrativa não estão condicionados exclusivamente por influências
estéticas, do roteiro ou ainda pelas obrigações impostas pelos grupos que financiam o
filme, mas também pela “concepção de mundo do narrador. Esta aflora na superfície da
imagem de modo mais ou menos claro, como observamos na radicalidade dos estereótipos
e dos clichês”.
A subjetividade do autor na narrativa fílmica, também atinge as formas de
representação do espaço. Cieutaut (1988 apud BARBOSA, 1999, p. 126) exemplifica
esta questão ao analisar gêneros melodrama e policial estadunidense dos anos 40 e
50, sublinhando como o espaço aparece como atributo de coisas:
56
Esses gêneros carregavam a força de sua dramatização na direção
de localizações bem definidas: a exemplo das pontes. Aqui o par
alto/baixo assumia conotações inesperadas. No alto, em cima das
pontes, é o lugar dos encontros e reencontros românticos, das
juras de amor, da reconciliação e do perdão. Debaixo das pontes,
os acontecimentos o outros... mortes, assassinatos, crimes,
ajustes de contas, traições, perversões e castigos. Situações
cênicas que eram reforçadas por jogo de luz e sombras. Alto e
baixo tornavam-se índices de sentimentos, estados de espírito e
de ações, constituindo um universo marcado pela oposição
binária bem-mal. No seu âmago mais rendito, aposição ocupada
pelos personagens e a localização espacial dos dramas exprimiam
significações que buscavam reiterar a ética puritana da Arica,
com suas alusões de céu e inferno encarnadas nas referências
alto/baixo.
Observamos que esta utilização topográfica na criação de metáforas, não se
limita às pontes dos referidos filmes. Elas corporificam-se também na criação de
signos do sistema capitalista que se remetendo à acentuada verticalidade dos
edifícios exprimem virilmente o poder do dinheiro. Em Wall Street (1987), por
exemplo, os encontros dos mega-investidores ocorrem no alto dos arranha-céus
com suas janelas transparentes para que os ícones do capital possam observar, mas
também serem observados. Já em Metrópolis (1927), o par alto/baixo é utilizado
para separar classes sociais opostas e rivais: os patrões no alto dos edifícios e os
proletários confinados ao mundo subterrâneo.
Cremos, portanto que a observância dos três filtros geográficos podem possibilitar
o surgimento de novos olhares sobre as películas e ao adensamento de uma percepção que
pode se tornar mais crítica e aguda.
3.4 A FORÇA DAS REPRESENTAÇÕES
A apropriação do espaço efetuada pelo homem restringiu-se durante séculos à
experiência vivida, ou seja, o contato com outras realidades espaciais não circunscritas a
seu espaço de vivência habitual estava hermeticamente condicionada à presença física do
sujeito nestes locais. Reside neste aspecto, muito provavelmente, o anunciado caráter
57
revolucionário e libertador do cinema, pois estaria o olhar da câmera com seus planos
gerais, primeiros planos, close-ups, a redimensionar sobremaneira a visão humana, outrora
aprisionada nos grilhões impostos por sua materialidade.
Portanto, o cinema, assim como outras formas midiáticas difusoras de imagens de
grande abrangência, concretizariam um estreitamento da relação do sujeito com o espaço
mundial, uma pretensa maior intimidade que, não obstante, pode ser ilusória. Senão
vejamos, prolifera-se exponencialmente nos dias de hoje, o que Jamenson (2006)
denominou de “hipermidiação do real” quando se debruçou sobre a questão da
supersaturação de imagens. Portanto, na contramão da euforia decorrente da familiaridade
do homem com o espaço mundial devido à mídia imagética, destacam-se conjeturas menos
entusiastas. Estas alertam para o fato de que a profusão voraz de imagens que nos assaltam
diariamente provoca uma substituição da experiência vivida por um universo onde estamos
confinados à representações de representações, o que esgota outras possibilidades de
relações com o real. Dessa forma, o cinema mostra seu caráter ambíguo, podendo retirar-
nos das acachapantes imagens cotidianas mas também condenar-nos à prisão imposta pelas
representações. Neste cenário, portanto, é imprescindível o exercício da crítica, pois nas
engrenagens da alienação social estaria a imagem e as representações redutoras e
estereotipadas de sociedades e locais.
Trabalhando o conceito de imagem, Barthes (1990, p. 27) lembra que “segundo
uma antiga etimologia, a palavra imagem deveria estar ligada à raiz de imitari”, temos que
para Joly (1996, p. 37) “a imagem tornou-se sinônimo de representação visual”. A autora
ainda aponta as inúmeras conotações deste termo que é apropriado por vários campos
1
sendo que o elemento comum de seu emprego remete à analogia. Dessa forma, a imagem
1
Na psicanálise, temos as imagens mentais, na informática, a imagem virtual, entre outros exemplos.
58
é antes de mais nada algo que se assemelha a outra coisa”. Portanto, para Joly (1996, p.
39) esta proposição:
[...] coloca de imediato a imagem na categoria das representações. Se ela
parece é porque ela não é a própria coisa: sua função é portanto, evocar,
querer dizer outra coisa que não ela própria utilizando o processo de
semelhança. Se a imagem é percebida como representação, isso quer
dizer que a imagem é percebida como signo.
Tratando especificamente das imagens fílmicas, a autora observa que “na
maioria das vezes, as imagens registradas assemelham-se ao que representam. A fotografia,
o vídeo, o filme são considerados imagens perfeitamente semelhantes, ícones puros, ainda
mais confiáveis porque são registros feitos, como vimos, a partir de ondas emitidas pelas
próprias coisas”.(JOLY, 1996, p. 400). Imagens estas que se enquadram no paradigma
fotográfico, termo cunhado por Santaella (2005, p. 296), que as define “como todas
aquelas que são produzidas por conexão dinâmica e captação física de fragmentos do
mundo visível, isto é, imagens que dependem de uma máquina de registro, implicando
necessariamente a presença de objetos reais pré-existentes”.
Porém, não podemos ignorar que nas representações fílmicas, as formas e
momentos ganham superposições, alterações, não ocorrendo uma simples redução ao
objeto externo, mas uma emancipação que se reinvestiria de uma percepção, interpretação,
reconstrução do objeto e uma construção do sujeito. Aplicando tal raciocínio no universo
fílmico, percebemos a materialização do exposto quando direcionamos nosso olhar para a
maneira pela qual o cinema retrata o espaço geográfico. As representações espaciais
fílmicas encarnam o caráter autônomo já referido, pois estão condicionadas aos códigos da
linguagem cinematográfica, em especial, as angulações, aproximações, enquadramentos da
câmera com relação ao espaço geográfico. Este se metamorfoseia através do filtro da
câmera e pode revelar detalhes antes confinados ao inconsciente visual. Não que o cinema
59
cria uma realidade própria, mas ao recortá-la, acaba condicionando novas formas de
apropriação desta realidade captada pela câmera.
3.5 ESPAÇO GEOGRÁFICO E CINEMA
Antes de avançarmos mais na questão relativa à apropriação do espaço geográfico
efetuada pelo cinema e como isto estaria a modificar nossa relação com o espaço mundial e
o nosso imaginário faz-se necessário adentrarmos um pouco mais no conceito de espaço,
conceito-chave em Geografia.
O conceito de espaço não é cativo de um campo do saber, sendo utilizado por várias
áreas e possuindo várias acepções. Sociologia, Economia, Psicologia, dentre outras
ciências apropriam-se do termo para engendrar seus sistemas teóricos.
No campo da Geografia, seu enlevo é consensual, ocupando algum tempo o
posto de objeto de estudo da ciência. Não obstante, na dimensão epistemológica nem
sempre foi assim. Nos primórdios, onde podemos citar destacadamente a Grécia Antiga, e
durante séculos, a Geografia restringiu-se a desenhar caminhos e elaborar roteiros de
viagens, o que a aproximou da astronomia e da cartografia. A inserção da Geografia no
universo científico ocorre apenas no século XIX com os trabalhos de Alexandre Von
Humboldt e Karl Ritter. A gênese acadêmica se dá sob as fortes impressões filosóficas do
determinismo ambiental, que deslocado para o olhar geográfico desembocará na teoria que
articulava o desenvolvimento humano à localização espacial e fatores climáticos. É o
primeiro aceno da categoria espaço no âmbito da ciência. Algumas variantes posteriores e
um pouco modificadas desta postulação, são a teoria de espaço vital, desenvolvida por
Frederic Ratzel e posta em prática pela política nazista e a expansão imperialista na África
e Ásia perpetrada pelos países europeus.
Posteriormente, Vidal de La Blache reagiu às enunciações do determinismo
geográfico, e ao adicionar um novo paradigma à Geografia Tradicional, buscou minimizar
60
o potencial superlativo dos agentes naturais na condução dos destinos humanos. Ao fazê-
lo, o teórico reivindica a afirmação do homem como principal agente geográfico, e insere
como principal variável nesta ação, o acesso das sociedades à técnica e ao capital. Talvez
nesta formulação, de forma consciente ou não, La Blache início ao rompimento, ainda
tímido, da Geografia como apenas uma ciência da natureza (CASTELLAR, 1996). Ao
adicionar o impacto das técnicas nas configurações espaciais, o elemento humano toma
vulto na análise uma vez que o estudo das técnicas repousa sobre a análise do
desenvolvimento econômico e histórico das civilizações. Acentuando a importância das
técnicas Santos (1997, p. 31) ressalta que “só o fenômeno técnico na sua total abrangência
permite alcançar a noção de espaço geográfico”.
Naturalmente, que estas mudanças paradigmáticas no campo epistemológico,
levaram à permutação da noção de espaço, que passou a ter como fundamental peso na sua
conformação, a ação humana. Num primeiro momento, poderíamos a título de didatização
conceitual, propor segundo Santos (1982) o espaço natureza, aquele intocado pelo homem,
e o espaço social, impressionado pela ação humana. Todavia, com a mundialização cultural
e econômica, com o encurtamento das distâncias materiais via evolução dos meios de
transporte e imateriais através do advento dos recursos eletrônicos, com o surgimento e
consolidação do Estado-Nação e suas avolumadas pretensões políticas, podemos ainda
falar em espaços natureza ou espaços vazios, mas não mais em espaços neutros. Isso
porque o simples despertar de interesses econômicos das corporações transnacionais ou
político territoriais dos países elimina sua neutralidade. Em suma, o espaço atual é global.
Portanto, temos que:
O espaço, soma dos resultados da intervenção humana sobre a terra, é
formado pelo espaço construído que é também espaço produtivo, pelo
espaço construído que é apenas uma expectativa, primeira ou segunda,
de uma atividade produtiva, e ainda pelo espaço não-construído mas
suscetível face ao avanço da ciência e das técnicas e às necessidades
econômicas e políticas ou simplesmente militares – de tornar-se um
61
valor, não-específico ou particular, mas universal, como o das
mercadorias no mercado mundial. O espaço, portanto, tornou-se
mercadoria universal por excelência. Como todas as frações do território
são marcadas, doravante, por uma potencialidade cuja definição não se
pode encontrar senão a posteriori, o espaço se converte numa gama de
especulações de ordem econômica, ideológica, política, isoladamente ou
em conjunto (SANTOS, 1982, p. 19-20).
Voltando a La Blache, é importante frisar que apesar de seus esforços para valorizar
a ação do homem na natureza, o autor ainda não toca a questão do processo de produção,
limitando-se a tatear os estabelecimentos humanos, as técnicas e os instrumentos de
trabalho. Portanto, a Geografia, apesar dos incrementos paradigmáticos continua a ser
essencialmente identificada como uma ciência da natureza.
No século XX, correntes menos ortodoxas tomaram espaço na discussão
geográfica, capitaneadas por uma reformulação de princípios científicos e filosóficos. Com
as mudanças do sistema capitalista, muitos geógrafos divergiram da Geografia Tradicional,
empreendendo novas diretrizes em suas análises da realidade. As questões sociais vieram à
tona, mas foram analisadas sob o prisma da pesquisa quantitativa, recorrente no
cientificismo que marcou o período. Nasce então a Geografia Teorético-Quantitativa, que
alicerçada em exaustivos dados estatísticos, promoveu a renovação da disciplina.
Não obstante, esta corrente recebeu várias críticas, centradas principalmente em sua
apolitização, onde alegava-se que a frieza dos meros servia à manutenção do status quo
e era insuficiente para explicar a complexa realidade social. Para muitos geógrafos como
Yves Lacoste e Milton Santos, era notória a precariedade dos sistemas teóricos da
Geografia Tradicional e da Teorético-Quantitativa para explicar a dinâmica do espaço
impactado pela revolução tecno-científica e a evolução das relações econômicas.
Ganhando projeção principalmente na década de 80, este movimento contestatório da
despolitização do discurso geográfico vai dar origem à Geografia Crítica, que ao priorizar
aspectos humanos em detrimento dos naturais, elegerá o espaço geográfico como o objeto
62
de estudo da Geografia. “O conceito de espaço nos leva a pensar sobre um espaço que está
sendo ou foi construído produzido pelo homem [...] o espaço geográfico está relacionado à
dinâmica da sociedade e da natureza, e a ação do homem é fundamental para a
transformação deste espaço” (CASTELLAR, 1996, p. 100).
Exercício mais difícil que o de analisar o conceito de espaço numa perspectiva
epistemológica geográfica, é propor uma epistemologia do próprio espaço. Isso se por
algumas razões. Primeiramente, é importante notar que os objetos materiais da paisagem
por si não são auto-explicativos. Eles estão diretamente ligados à estrutura, à sociedade
e à própria paisagem. Se nos primórdios da civilização era mais fácil perceber as
imbricações entre estes elementos, hodiernamente tal tarefa foi dificultada, uma vez que a
complexa divisão social do trabalho, a produção do espaço tornou-se o resultado de
inúmeras resoluções cuja origem se situa em níveis diferentes e escalas variáveis. Assim,
analisar o espaço local isoladamente, utilizando as forças econômicas e culturais que o
regem nessa escala não é suficiente para entendê-lo totalmente, pois os objetos espaciais
que o compõem possuem influências e determinações variadas e poligenéticas.
Para compreendermos o espaço é preciso ir além do imediatismo das formas e
inserir na paisagem a noção de tempo e a perspectiva histórica. Como aponta Santos (1982,
p. 41) “formas de idades diferentes, com finalidades e funções múltiplas são organizados e
dispostos de múltiplas maneiras [...] o espaço é a acumulação desigual dos tempos.” Reside
neste fato, as dificuldades de singularizar a ação da sociedade contemporânea neste espaço
em meio a este mosaico de formas que desfilam no túnel temporal, de chegar a
“compreensão do valor real-concreto dos objetos a cada momento da história”, que as
variáveis criadoras de acontecimentos se desingularizam, perdem sua assinatura quando se
fundem. (SANTOS, 1982, p. 42). Os períodos históricos trazem consigo variações na
função das estruturas sociais e seus conteúdos, e levando em consideração a
63
heterogeneidade das mesmas temos que não distribuição uniforme no espaço.
Outrossim, estes novos conteúdos imprimidos pelas mudanças na forma de organização da
sociedade, sofrem a forte influência das formas pré-existentes que detém sua própria
funcionalidade.
Finda a discussão sobre espaço no campo da Geografia, debruçaremo-nos agora
sobre questão já referida. Temos em oposição ao pensamento ortodoxo que confere à
investigação científica sistematizada o monopólio com relação à forma de se chegar ao
conhecimento e à verdade, conjeturas opostas que levantam questionamentos acerca deste
modelo de apreensão da realidade. Não estariam as artes a ofertarem novas visões e
deciframentos do mundo? A lançar novos olhares sobre espaços e temáticas que também
são analisados pela ciência?
A arte encontra-se desembaraçada das teias intrincadas inerentes à análise
científica, que propõe uma relação sistematizada e racional com seu objeto de estudo.
Neste sentido, oportuniza a desconstrução deste mundo organizado proposto pela ciência.
Assim como a ciência geográfica toma o espaço como objeto de análise, as artes, e em
especial o cinema, também o faz, e desta captação espacial efetuada pela câmera, temos
vários apontamentos singulares que deixam suas marcas no imaginário e na relação do
homem com o espaço familiar ou distante. A arte cinematográfica também ataca nossas
noções acerca do tempo, provocando muitas vezes embates íntimos que nos lançam em
pólos distintos de percepção da realidade. Ilustrando temos que:
Muito da percepção que temos da história da humanidade talvez esteja
irremediavelmente marcada pelo contato que temos/tivemos com as
imagens cinematográficas. Por mais que estejamos intelectualmente
informados a respeito de como se passaram os chamados ‘fatos
históricos’, John Wayne enfrentando índios nas planícies do oeste
americano, Mel Gibson lutando contra os ingleses pela independência da
Escócia, Tom Hanks comandando o desembarque dos mariners no Dia
D, Stallone em selvas vietnamitas e tantas outras cenas ‘históricas’
teimam em ocupar nosso imaginário, despertando sentimentos
contraditórios e constrangimentos íntimos (DUARTE, 2002, p. 18-19).
64
Relevando, portanto, este potencial do discurso artístico é importante que os
docentes apropriem-se deste conhecimento, esta forma de apropriação do mundo tão
significante para os alunos e que muitas vezes se choca com os discursos balizados pela
ciência e transmitidos pelos educadores acerca dos conteúdos de Geografia e História, por
exemplo. Em muitos casos, os professores têm reproduzido o discurso científico de
forma a ignorar outras formas de produção de conhecimento, como a cultura
midiática. De tal forma, as proposições científicas esgotam as questões tratadas na
sala de aula. Cria-se então, um certo dogmatismo desta informação que incorpora
o status de confiável, credível. Todavia, este modelo não esgota as possibilidades
de apreensão da realidade e assim temos novamente o choque entre o
conhecimento via mídia e o escolar acadêmico. Isso ocorre pois estes
conhecimentos fulguram entre as principais formas de apreensão da realidade e do
mundo pelos alunos, ou seja, através de generalizações – praticadas pelas escolas
através dos professores e as singularizações promovidas pelos meios audiovisuais. O
que faz com que muitas vezes o discurso de ambos se contradigam (OLIVEIRA JR.,
2000).
A singularização efetuada pelos meios audiovisuais, facilita a identificação do
aluno com a questão apresentada, oferecendo a este uma visão mais aproximada, já que
existe uma dificuldade de identificação quando os referenciais são mapas e/ou estatísticas.
É mais fácil colocar-se no corpo do personagem de um filme, pois ele é mais próximo da
realidade em relação ao modelo generalizador das aulas. O que não deve levar,
obviamente, à anulação dos dados científicos, como estatísticas e mapas, mas sim buscar
na adição destes elementos um enriquecimento da prática pedagógica. Como exemplo no
âmbito do ensino de História, existem vários filmes que se propõem a retratar períodos
65
históricos, como é o caso de Carlota Joaquina: a princesa do Brasil (1995),e por
conta disso podem ser utilizados pelos professores. Isso porque ao retratarem
determinados personagens históricos de forma mais humanizada, apresentam visão
diferenciada de livros de História, que emolduram miticamente tais figuras e os
distanciando dos alunos. Assim como o processo de assimilação do aluno com
relação às mazelas sociais ocasionadas pela marginalidade na cidade do Rio de
Janeiro, pode ser enriquecido com a exibição do filme Cidade de Deus (2002), que
mostra a realidade crua de uma favela dominada pelo tráfico.
Voltando nosso olhar para as representações do espaço encontramos uma reflexão
importante de Harvey (1989 apud BARBOSA, 200, p. 74) que
[...] é enfático ao afirmar que o modo pelo qual nós representamos o
espaço possui profundas implicações na maneira como nós (e os outros)
interpretamos o mundo e agimos em relação a ele. Portanto, o espaço
geográfico pode ser concebido como uma construção complexa onde
intervém o sujeito, a realidade espacial terrestre e suas representações.
Tal reflexão de Harvey, pode num primeiro momento relacionar-se à análise do
espaço familiar/próximo, mas lançando um olhar de esguelha descobrimos outro sentido,
qual seja, as representações cinematográficas espaciais acerca de locais distanciados estão
repletas de construções ideológicas anteriores que intervém sobremaneira na forma em que
o diretor recorta o espaço filmado. Tais recortes promovidos pelo discurso da câmera estão
a materializar leituras de mundo do idealizador. Jamenson (2006) faz coro à necessidade de
se trazer a tona à discussão sobre o papel das representações nesta era de emergência
inelutável dos meios audiovisuais.
Mas qual seria a dimensão criativa do cinema no sentido de construir/reconstruir
realidades captadas pela lente objetiva e superar a mera representação? Será que podemos
concordar com Barbosa (2000, p. 75) quando afirma que “trabalhadas e elaboradas, as
imagens se tornam potências de experiência social conferindo ao imaginário um papel
66
igual ou superior ao do saber que se refere ao real”. Neste sentido, a apropriação do espaço
pela câmera poderia sugerir outra realidade ou apenas representá-la com contornos
singulares, mas sem superá-la? A despeito da gama infinda de possibilidades
materializadas pela riqueza da linguagem cinematográfica a compor quadros novos,
lançando novos olhares sobre espaços, objetos através de recursos como a iluminação,
close-ups, entre outros, é possível superar o real? Talvez não resida neste extremo o
potencial da arte fílmica. Possivelmente não é ir além, superando a realidade fotografada,
mas seria dar-lhe novas conformações através do olhar filtro da câmera a expressar
continuamente novos enfoques e significações. Não seria então sugerir outro mundo, mas
revelar o mundo incapturável pelo olhar humano. Neste celeiro imagético, uma simples
gota d, através de um close-up, pode impressionar o espectador e sair do inconsciente
visual para se tornar um evento significativo. Arte da revelação, o cinema também oculta
quando isto lhe convém, por opção estética ou ideológica. É o caso de alguns filmes que se
propõem a tematizar a África e optam por retratações espaciais que se limitam ao ambiente
rural, expressando uma visão monolítica e anacrônica que não condiz com a realidade
continental já marcada pela urbanização.
67
4 OLHARES SOBRE A ÁFRICA
As narrativas que versavam sobre locais distanciados representaram uma forma
de levar o conhecimento do mundo às populações dos espaços de origem. Dessa
forma, temos, por exemplo, que o imaginário europeu acerca da América, da África e
outros locais foi moldado sobremaneira pelas primeiras descrições literárias acerca
destas terras.
Com o passar do tempo, a abstração mental recebeu a companhia de formas
imagéticas que registravam locais distantes, como os panoramas, por exemplo. Hoje,
com a difusão das imagens do mundo em larga escala através de várias formas
midiáticas, temos o cinema que também está por ofertar-nos um depósito infindo de
imagens.
Porém neste contexto singular, cabe-nos inserir uma reflexão: nesta
sociedade marcada pela proliferação de imagens, sons e informações pertencentes a
este universo simulacional, na tão propagada e aclamada globalização, que pretensamente
se outorga como encurtadora das distâncias postulando a chamada “aldeia global” é
fundamental desenvolver a crítica com relação às representações imagéticas e sua contumaz
visão acachapante e homogeneizadora de locais não pertencentes à cultura ocidental
hegemônica. Até que ponto essas imagens do mundo neste mundo de imagens estão a nos
aproximar, nós cidadãos do mundo?
4.1 CONSTRUINDO O IMAGINÁRIO OCIDENTAL
Procederemos a uma análise fílmica de caráter empírico (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ,
1994) cientes das necessidades correntes quando da execução de tal intento e respeitando o
postulado de que “analisar é mais do que ver, é rever o filme e, nessa intenção, isso significa
examiná-lo tecnicamente, desmontando.” E no desenrolar de tal dinâmica, buscar
68
significações entrelaçando-as como as bases teóricas pré-trabalhadas a fim de refutar,
corroborar ou reconfigurar as hipóteses iniciais (RIBEIRO, 2005, p. 230). Vale ressaltar que a
obra fílmica possibilita uma imensa variedade produção de sentidos e vários enfoques.
Portanto, cientes de que nosso olhar está condicionado pelos objetivos norteadores e pela
“não-neutralidade”, “cabe acrescentar que um processo de análise nunca se exaure, será
sempre incompleto, considerando que após ou no momento em que a imagem está sendo
analisada, novas formas de leitura podem vir à tona” (RIBEIRO, 2005, p. 231).
Dessa forma, elegemos aquelas produções estadunidenses que retratam o continente
africano, configurando-o como temática principal, objetivando criar um contraponto com
as retratações cinematográficas africanas in loco, ou seja, dos filmes africanos. No que
tange aos filmes estadunidenses, optamos por valorizar dois momentos históricos. Um
mais recuado, pertencente à década de 1950 com a análise de Uma aventura na África
(1951), e outro, hodierno, com a análise de Caçados (2007). A escolha de tal recorte
funda-se em duas questões: o fato de os mesmos terem sido alvo do Oscar ou alcançado
relevante sucesso de bilheteria, o que maximiza o potencial das películas enquanto
elementos representativos da cultura estadunidense dada a considerável recepção de
público e crítica; e o desejo de investigarmos um momento marcante na cinematografia
estadunidense ensejado na década de 1950, quando o cinema passa a fazer coro e torna-se
um fidedigno representante do american way of life, que em linhas gerais objetivava a
propagação e exaltação do modo de vida americano no contexto de pós-guerra e Guerra
Fria. Objetivamos com isso, perceber possíveis mudanças nas retratações fílmicas do
continente que possam estar tangenciadas pela política interna ou externa, lembrando que
muitas vezes o cinema funcionou como caixa de ressonância para ideais políticos, ou
mesmo metamorfoses geradas por algum movimento intrínseco à sétima arte, motivado por
questões estéticas ou ideológicas. Apesar do foco se dar nos filmes referidos, sombras
69
furtivas de outras películas irão marcar sua presença no quadro empírico, como Lágrimas
do sol (2003), A sombra e a escuridão (1996), Casablanca (1942), África dos meus sonhos
(2001), Entre dois amores (1985), entre outros. Não obstante, a escolha destes filmes
salvaguarda-se no fato de que os mesmos obtiveram meros expressivos de bilheteria.
Como ressalta Duarte (2000, p. 211), “é impossível abarcar um número muito grande de
filmes, o que faz do recorte uma necessidade imperiosa” e ainda segundo a autora, um dos
critérios de seleção seria “o ranking dos filmes de maior bilheteria ou os vídeos hits lista
dos filmes mais alugados por grandes locadoras , veiculados pela grande imprensa em
revistas especializadas ou sites da Internet fornecem um solo relativamente seguro para a
realização de estudos desta natureza”. Com relação aos filmes africanos, tomamos
caminho pouco diferente ao ignorarmos o recorte histórico, cuja relevância seria pequena,
mas salvaguardamos o critério de premiações ou participações em festivais importantes.
Dessa forma elegemos os filmes Infância Roubada (2005), vencedor do Oscar de melhor
filme estrangeiro em 2006, A minha voz (2002), participante da competição oficial do
Festival de Veneza em 2002 e Nosso pai (2002), participante da Quinzaine des
Réalisateurs do Festival de Cannes em 2002.
Outrossim, como objetivamos examinar o espaço, promoveremos quando
julgarmos pertinente, um levantamento de dados geográficos do local referido pela trama,
uma vez que, como observa Campos (2006, p. 4)
[...] normalmente, os lugares representados nas imagens não são
autênticos, a ação não se passa no lugar aludido pela trama. Belas
paisagens são construídas com o apoio de telas panorâmicas, locais
paradisíacos e florestas são criadas em estúdio, sem as marcas
produzidas pela História.
Algumas indagações servirão de mote para o desenrolar da pesquisa, tais como:
quais os valores, elementos da cultura e concepções de mundo que se encontram mais
destacadas nos filmes e fundamentalmente: como se dá a retratação espacial e sócio-
70
cultural da África nos filmes eleitos? E a partir destas questões norteadoras criar categorias
de análise que se assentarão em três matrizes: a representação do personagem não africano,
a representação do personagem africano juntamente com a relevância dos mesmos na
trama (protagonistas, coadjuvantes), além de uma terceira categoria ligada à representação
espacial do continente, salientando que o espaço geográfico é um conceito fundamental na
Geografia.
Partindo para a análise de tais categorias, enfocando primeiramente o cinema
estadunidense, objetivamos descobrir como se constrói um país [no nosso caso,
continente] no cinema”. Destacando os elementos que compõem o “universo diegético
criado pela localização geográfica, ambientação cenográfica, pelo vestuário, pela acuidade
da trilha sonora, pela caracterização dos atores [...]” (AMANCIO, 2000, p. 46). Com
relação à retratação dos personagens não africanos observamos que existe uma certa
recorrência nesta apresentação. Em linhas gerais, podemos identificar certos estereótipos
que se materializam da seguinte forma: o médico humanitário que se encontra no
continente a fim de cumprir nobres ideais altruístas fornecendo amparo aos africanos
adoentados e carentes de atenção (Sahara, 2005; Amor sem fronteiras, 2003; Lágrimas do
sol, 2003); o personagem branco europeu responsável por levar o progresso (construção de
uma ferrovia) mesclando-se com o imperialismo (A sombra e a escuridão, 1996); o
ocidental em busca de aventuras ou tesouros fantásticos no “indomável” continente
(Sahara, 2005; Congo, 1995, A rainha africana, 1951); expedições militares objetivando
executar missões e intervir em conflitos locais (Lágrimas do sol, 2003; Falcão Negro em
Perigo, 2001), que, como ressaltam Shohat e Stam (2006, p. 182), possuem nosso aval
imediato. “Somos compelidos à glória pela ‘precisão cirúrgica’ de uma tarefa bem
executada, seja qual for a sua motivação política. O direito europeu [ou estadunidense] de
71
determinar o destino da África é, simplesmente, aceito.” O elemento comum aos
estereótipos? O atraso, em vários sentidos do continente.
Não é incomum, nos filmes de ficção que tomam a África como cenário
ou tema, encontrarmos figuras lendárias: o caçador, o aventureiro e o
colonizador. Eles representam heróis solitários e revestidos por um certo
romantismo piegas, em um ambiente misterioso e não menos hostil que
precisa ser domado (BARBOSA, 1999, p. 121).
Reforçando essa tendência de valorização do homem branco nos filmes sobre
África, Carrière (1995, p. 186), corrobora: “Os africanos estão condenados a uma dieta
televisiva exclusiva de thrillers e romances feitos sob céus estrangeiros, imagens que
nunca falam aos africanos sobre africanos”.
Com relação à segunda categoria, a representação dos africanos, percebemos que,
em geral, ocupam papel secundário na trama. Uma raríssima exceção encontra-se em
Diamantes de sangue (2007), onde dois dos personagens principais são africanos e estão
unidos por distintos interesses: o desejo de enriquecer para concretizar o sonho de deixar o
continente; e o desejo de resgatar o filho das selvagens milícias de Serra Leoa (país onde o
filme se passa) e vê-lo desenvolver os estudos e inclusive dominar o inglês. Em um cem
número de papéis, não tão centrais como o referido, os africanos são revelados de uma
forma que massifica o caráter de selvageria, primitivismo e de seres o civilizados. Ora
mostrados em rituais anímicos como em Ace Ventura: um maluco na África (1995) e A
sombra e a escuridão (1996), ora em intensas demonstrações de barbarismo e desprezo
pela vida humana como em Diamantes de sangue (2006), e também retratados como seres
indefesos e com ares de infantilidade dependentes da ajuda externa (Amor sem fronteiras e
Lágrimas do sol), o que forçosamente nos remete à dependência do próprio continente.
Uma África selvagem.... de mistérios, ameaças e perigos é construída
para ser habitada por homens e mulheres de práticas não menos
selvagens e bizarras que, ora se comportam como seres arredios e no seu
limite, violentos. Tudo isso para exibir o homem branco e europeu como
72
o único referente possível de inteligência, racionalidade, coragem e
virilidade (BARBOSA, 1999, p. 121).
Parece que estes filmes reificam certo discurso colonial que prega a superioridade
do homem branco ocidental em oposição ao barbarismo e ignomínia do elemento
colonizado e inferior, como à época do Imperialismo em que discursos racistas visavam
legitimar a exploração do continente africano. Segundo Fanon (1964 apud SHOHAT;
STAM, 2006, p. 200): “o discurso colonial/racista sempre recorre ao bestiário e representa
os colonizados como bestas selvagens em virtude da incapacidade desses sujeitos de
controlarem sua libido, de se vestirem apropriadamente, de construírem habitações que não
sejam cabanas de barro.”
Seriam os filmes então mais uma peça na construção ideológica acerca das
representações da África? Se for o caso, quando esta começou? Visando cumprir quais
objetivos? Possuíam orquestrações políticas a fim de salvaguardar interesses imperialistas?
Com relação às primeiras representações construídas sobre o mundo subdesenvolvido pelas
esferas centrais da ordem capitalista, Amancio (2005, p. 15-16) informa-nos sobre a
importância dos panoramas neste contexto, que para o autor:
[...] cumpre seu papel de ‘revelador privilegiado’ (como seria hoje a
televisão), representando cidades, ações heróicas e paisagens,
construindo e transmitindo um imaginário coletivo feito sob medida por
pintores e empresários em busca de clientes. [...] o panorama realiza a
satisfação de um desejo caro ao homem do século XIX: o do domínio
absoluto que proporciona a cada indivíduo o sentimento eufórico de que
o mundo se organiza em torno e a partir dele, um mundo do qual está
protegido pela distância do olhar.
E ainda sobre o referido, Comment (1993 apud AMANCIO, 2005, p. 16)
complementa:
[...] o panorama instaura também uma nova lógica carregada de
conseqüências. A imagem não procura mais produzir uma natureza ideal
73
ou idealizada. Doravante, ela toma lugar da realidade, ela substitui a
prática, e logo priva o sujeito de suas próprias experiências como modo
de percepção e como acesso ao conhecimento.
O panorama então prenuncia o cinema, metaforiza-o e através do recorte ele
condiciona o ponto de vista do espectador, o que ver e de que forma. Como informa
Amancio (2005, p. 18) um panorama do Brasil foi exibido em Paris no ano de 1889 e
elegeu um local que se tornaria um ícone, um referente da imagem do Brasil: a Baía de
Guanabara. “O Brasil era antes de tudo essa imagem”. Sem mudar o foco da questão,
apenas vasculhando um pouco seus meandros cabe-nos uma reflexão sobre estas imagens
referentes e como elas são utilizadas. Situação recorrente, em muitos telejornais brasileiros
que trazem notícias de outros locais com a presença física de um repórter, tais imagens
auto-referentes são utilizadas. Se o local é Londres, recorre-se ao relógio do Big-Bang, em
Paris, a Torre Eiffel, em Nova Iorque, a Estátua da Liberdade. Estes ícones credenciam a
reportagem, retiram qualquer dúvida acerca da presença dos jornalistas nos locais
informados por esta. Tal recurso também é largamente utilizado nos filmes. Clichê
recorrente, o plano geral que percorre a cidade do Rio de Janeiro até chegar à Baía de
Guanabara é um exemplo. Amancio (2005, p. 75) aponta para um reducionismo na
representação do Brasil em filmes estrangeiros. Ignora-se a complexidade e diversidade
geográfica do Brasil para a composição de um modelo iconográfico assentado em uma
tríade simplista: Rio de Janeiro com suas imagens tipo, a Amazônia e as Cataratas do
Iguaçu. “O olhar eurocêntrico sobre o terceiro mundo não distingue as particularidades
culturais. Esse ‘outro mundo’ é como se fosse todo ele um só”.
Voltando o olhar para a África, emergem algumas questões. Quando ocorrem os
primeiros registros imagéticos sobre o continente? Quais são as narrativas fundadoras que
inauguram o imaginário ocidental acerca da África? Amancio (2005, p. 19) recorre a
historiografia antiga para buscar os primeiros relatos sobre o Brasil elegendo a célebre
74
carta de Pero Vaz de Caminha. E a relação de viagem do Capitão de Goneeville, que
segundo o autor: “[...] são dois dos mais antigos textos escritos sobre o Brasil e seus
habitantes. Documentos requeridos por seu valor simbólico frente a colocação do Brasil no
universo mental do ocidente [...]”. Reforçando a importância das narrativas na criação de
imaginários e depósito de idéias acerca dos locais enfocados Shohat e Stam (2006, p. 144)
observam que “opiniões sobre a origem e a evolução de nações sempre se materializaram
na forma de narrativas.” E neste sentido para os autores que se destacar a grande
contribuição do cinema. “O cinema, haja vista seu papel por excelência – de contador de
histórias da humanidade, adequou-se perfeitamente à função de retransmissor das
narrativas das nações e dos impérios, por meio de projeções” (SHOHAT; STAM, 2006, p.
144). Não obstante, no caso africano, seria o cinema um retransmissor e corroborador das
narrativas primeiras e mais significativas acerca do continente? A imagem mental, que
para Joly (1996, p. 19) “corresponde à impressão que temos quando, por exemplo, lemos
ou ouvimos a descrição de um lugar, de vê-lo quase como se estivéssemos lá”, nascidas
através das narrativas incipientes são confirmadas pela imagem cinematográfica?
Analisando a questão aplicada ao Brasil, Kilani (1994 apud AMANCIO, 2000, p. 39)
afirma que “a apreensão da realidade não é jamais direta. Ela é sempre mediatizada pelas
imagens veiculadas pela cultura”. E ilustra a questão:
Quase cinco séculos após Colombo, Claude Lévi-Strauss, chegando na
Baía de Guanabara, continua ‘cego’ frente à novidade que se revela
diante de seus olhos. Ele não descobre a América a não ser quando ´pode
ligar o que ao que leu nas relações de viagem que o precederam e
particularmente às primeiras imprensões de Colombo. No caso particular
de Lévi-Strauss, pelas lembranças que lhe deixavam suas leituras das
relações de viagens. O viajante ou etnólogo não lança jamais um olhar
completamente novo sobre as realidades que se lhe dão a ver.
Mas, e aqueles, os não viajantes materiais? Aqueles que não podem comprovar
fisicamente o que leram ou viram (através de fotos, TV ou cinema) sobre locais. Não
estariam encarcerados a um universo imagético midiático? A leituras condicionadas por
75
olhares individuais e seletivos? Ao escambo perpetrado pela troca da experiência vivida
por representações? Confinados a um ilusório sentimento de intimidade maior com o
mundo?
Aproximando a África do cinema, não podemos deixar de mencionar um fato
ilustrativo: o nascimento do mesmo ocorre no contexto histórico de implantação do projeto
imperialista. Quando da primeira exibição dos irmãos Lumiére já havia quase vinte anos do
início da exploração da África. “Durante o período do cinema mudo, os mais prolíficos
produtores de filmes – Grã-Bretanha, França, Estados Unidos e Alemanha – também eram,
‘por mera coincidência’, líderes imperialistas, nações cujo interesse consistia em louvar o
empreendimento colonial (SHOHAT; STAM, 2006, p. 142). Portanto, parece que no seu
nascedouro, já emerge em meio à técnica cinematográfica uma faceta notável da sétima
arte: seu potencial de corroborar posturas políticas. Na verdade, podemos afirmar que
nenhum filme é inocente, ou seja, todo filme acaba refletindo as “correntes e atitudes
existentes em sua sociedade, sua política” (FURHAMMAR; ISAKSSON, 1976, p. 54).
Dessa forma, o cinema, que é afetado pelo mundo, tem também um conteúdo político,
consciente ou inconsciente, escondido ou declarado.
Ilustrando o caráter propagandista de algumas cinematografias, como a
estadunidense, Furhammar e Isaksson (1976) destacam que várias películas produzidas
neste país reverberavam nitidamente os discursos políticos que norteavam determinado
momento histórico. Um grande exemplo disso é o ocorrido durante a Primeira Guerra.
Segundo Furhammar e Isaksson (1976, p. 56) nos “meses que se seguiram ao início da
guerra, os filmes americanos adotaram uma postura de neutralidade e pacifismo”, ou seja,
indo ao encontro da política estadunidense isolacionista e neutra do período.
Contudo, com a mudança da política externa norte-americana inclinando-se em
favor da entrada dos EUA na guerra, o que se viu foi uma mudança no cinema americano,
76
que deixou para trás seu pacifismo unânime e transformou-se num “militarismo igualmente
unânime; os cinemas foram mobilizados contra a Alemanha muito antes que Wilson
conduzisse a nação para a guerra. A situação ficou complicada para quem continuasse
pacifista ou com atitudes pró-alemãs” (FURHAMMAR; ISAKSSON, 1976, p. 57).
No que tange à questão imperialista, o cinema também foi utilizado como
ferramenta política. Como informam Shohat e Stam (2006, p. 142),o cinema
surgiu no exato momento em que o entusiasmo pelo projeto imperialista
ultrapassou as fronteiras das elites em direção às camadas populares graças, em
parte, aos romances e exposições destinadas às massas.
Retomando a discussão acerca das imagens referentes, notamos com relação à
África, uma ausência destes mbolos iconográficos (Big Bang, Pão de Açúcar etc.) na
maior parte do continente
2
, o que demanda outras estratégias cinematográficas a fim de
situar o público. Como o cinema prescindiu-se da figura do explicador
3
, nova ferramenta
didática foi criada, qual seja, a de através da utilização de um mapa da África (geralmente
no início do filme) anunciá-la. Temos isso em Casablanca e Sahara (onde depois de um
longo travelling, a câmera vai parar em um globo terrestre e através de um close-up
mergulha no continente cartografado para mostrar em seguida as primeiras imagens da
Nigéria).
Voltando novamente à questão dos papéis destinados aos africanos na maior parte
dos filmes como no emblemático Casablanca, Fhadel (1989 apud BARBOSA, 1999, p.
123) aponta que:
Certos filmes produzidos em terra árabe são muito bem sucedidos em
não mostrar nenhum árabe, outros não fazem mais que atribuir papéis
menores para dar um certo verniz local ao filme. Assim como os
minaretes, as palmeiras e os camelos, o homem não pode exercer outra
2
Exceção feita às Pirâmides de Gizé no Egito (África do Norte).
3
Referido no capítulo 1.
77
atividade a não ser a do exótico [...] Quanto às mulheres, estão
confinadas aos papéis de prostitutas ou dançarinas do ventre.
Reforçando a infantilização usada na representação dos africanos, Shohat e Stam
(2006, p. 203) apontam que:
[...] o tropo da infantilização representa os colonizados como se
corporificassem um estágio primitivo do progresso humano individual
ou do vasto desenvolvimento cultural. Na obra de Renan menções à
‘eterna infância das raças não passíveis de perfeição. Racistas científicos
tentaram provar que negros adultos eram, anatômica e intelectualmente,
idênticos às crianças brancas. O negro que entra em contato com os
brancos de acordo com um romance belga de 1868, perde seu caráter
bárbaro, mantendo somente as qualidades infantis dos habitantes da
floresta. O costume racista de chamar homens colonizados de ‘meninos’,
bem como o tique de fala que permite a alta burguesia resvalar para um
discurso infantilizado quando dialoga com negros é a marca lingüística
dessa atitude. ‘Quem é o garoto ao piano?’, Bergmam pergunta a Bogart
em Casablanca (1942), referindo-se à Dooley Wilson, um negro adulto.
Em relação às retratações espaciais, podemos perceber provisoriamente certa
hipervalorização da escolha de espaços ruralizados em detrimento do lócus urbano. A
imensa maioria dos filmes se desenrola em selvas, florestas, rios como é o caso de Ace
Ventura: um maluco na África, A rainha africana, Lágrimas do sol, As minas do rei
Salomão, A sombra e a escuridão, Congo entre outros. Como aponta Amâncio (2000, p.
87) “[...] a paisagem verdejante se concretiza pela visão do alto, à vol d’oiseau, pela
vista aérea que o cinema vai vulgarizar e tornar o modelo fotográfico de apreensão da
floresta. Só assim o olhar branco civilizado terá a ilusão de dominar a floresta, retratando-a
como um conjunto homogêneo composto de poucos elementos [...]”. Outrossim, tal
retratação parece querer resgatar certa utopia de volta às origens numa mítica integração
com a natureza, ao mesmo tempo que reforça a não urbanização, evidenciando este atraso
do desenvolvimento africano por não cumprir uma etapa fundamental do desenvolvimento
capitalista e da modernidade: o crescimento da cidade e do urbano. Os desertos também
são alvos das câmeras que os exploram geralmente em planos gerais, que evidenciando sua
78
aguda horizontalidade parecendo reforçar a impotência do homem diante da natureza
indomável e inextricável (Sahara (2005) e Amor sem fronteiras (2003)).
Ao contar as aventuras de um jovem oficial do exército britânico, D.H.
Lawrence, Lean apóia-se na apresentação de imagens panorâmicas das
paisagens do deserto. Elas constituem um especulo que inspira
mistérios, desafios e forças que o herói inglês pouco a pouco i
enfrentar e com os quais, posteriormente se identificará. Lawrence e o
deserto se confundem nos seus significados são indomáveis,
imprevisíveis e impávidos. O herói e a paisagem possuem a mesma
matriz, um se realiza na imagem do outro (BARBOSA, 1999, p. 122).
Tais escolhas recorrentes na retratação espacial do continente africano estão
carregadas de conotações e significados ideológicos. Visam arrefecer a já estigmatizada
imagem de atraso. Os desertos e as selvas ultrapassam o tônus topográfico e expandem-se
para uma cadeia repleta de significados.
Muitas vezes, a representação de uma região do Terceiro Mundo como
subdesenvolvida é reforçada por um reducionismo topográfico que
apresenta o oriente como deserto e, portanto, melancólico e monótono. O
deserto, um motivo verbal e visual recorrente em filmes orientalistas,
forma o pano de fundo atemporal no qual a história se exaure [...] trata-
se da esfera cultural determinando uma polaridade geográfica e
simbólica no duplo eixo leste/oeste e sul/norte. Em uma espécie de
inversão das teorias do determinismo climático, as de Madame de Stael
ou Hippolyte Taine, o cinema eurocêntrico delineou uma ecologia visual
‘leste’ ou ‘sul’ de primitivismo irracional e instintos perigosos. A terra
estéril e as areias metaforizam as paixões ‘lascivas’ e não-censuradas do
Oriente, ou seja, o incontrolável mundo do id (SHOHAT; STAM, 2006,
p. 221).
Tais elementos mencionados acabam por reforçar os contornos bem delimitados
do imaginário ocidental com relação ao continente e vão compor quadros teóricos que
apresentam o “hemisfério norte constituindo o lugar da racionalidade e da moralidade,
enquanto a selva e a floresta são representados como lugares confusos de ímpeto violento e
luxúria anárquica” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 206).
Todavia, não podemos ignorar que no lugar comum das retratações fílmicas
estadunidenses sobre a África existem elementos destoantes. Estes se referem à obras de
79
alguns cineastas “afro-americanos” que ao negarem o etnocentrismo e abordagens
redutoras, enveredam-se por caminhos delicados, quando evocam um afrocentrismo
idealizado com o intuito de resgatar, ou seria criar, uma visão da África como o berço das
raças e centro do mundo. Rahier (1999) detém-se a analisar duas produções: o
documentário When black men ruled the world: egipt during the golden age (Quando os
negros dominavam o mundo: o Egito durante a Idade de Ouro) (1991) e o filme de ficção
Um príncipe em Nova Iorque (1989). Ambos, filmes afro-americanos, convergem em um
ponto: pintam uma África com tonalidades exageradas, que esbarram na fantasia e muitas
vezes caem num romantismo piegas.
viciados e incomodados com este olhar branco hegemônico ocidental, tais
cineastas embrenham-se em uma jornada sociológica no esforço de criar novos espaços no
consolidado imaginário ocidental sobre a África. Provavelmente por isso, tornam-se
presas fáceis para as armadilhas etnocêntricas, apesar de revelarem um outro olhar.
Segundo Rahier (1999, p. 54) os filmes “são afrocêntricos porque ambos retratam o sonho
de um mundo sem brancos [...] ambos têm como motivação o desejo de recuperar a honra e
o orgulho africanos”. Não obstante, tais duelos ideológicos no campo de batalha
etnocêntrico fazem levantar a poeira que embaça a vista e impede o vislumbrar
contornos mais nítidos da África.
O olhar do cineasta estadunidense, afro-americano ou não, sua percepção e leitura
de mundo, sofre com os arroubos das expressões culturais do país que impõem
subordinações quase encarceirantes no que diz respeito à apropriação de outras realidades.
Há tempo, desvaneceu-se o mito do olhar neutro, asséptico. Para entender o olhar é
importante saber quem olha, e de onde olha. Não é diferente com o cinema. Portanto, para
fugir do ângulo de visão estadunidense, propomos uma ruptura, um vaguear em busca de
outras longitudes empíricas. Por isso, nos deteremos em analisar a própria cinematografia
80
africana, argüindo-a com as mesmas questões propostas anteriormente: como o espaço é
representado nestes filmes? Como os africanos e não africanos são representados? Enfim,
buscar neste enfoque um contraponto a fim de desconstruir o olhar estadunidense e o
nosso.
4.2 A PRODUÇÃO CULTURAL DO TERCEIRO MUNDO
A tentativa de imposição axiomática do fim das metanarrativas, o que implicaria
para alguns no “fim da História”, tão proclamada em meio à onda pós-moderna parece não
abarcar o pensamento vigoroso do Terceiro Mundo, para o qual existe emergência neste
processo relativamente novo de contar e construir suas histórias a fim de promover fissuras
nos paradigmas seculares exteriores que condicionaram limitações interpretativas abafando
gritos de resistência.
No campo cinematográfico, percebemos que as obras buscam um caráter dissonante
da produção hegemônica através da criação de novas estéticas e de uma certa recorrência
no discurso político anti-colonialista. Um exemplo clássico é encontrado em A Batalha de
Argel (1966) que apresenta-se claramente com várias contraposições à visão
hollywoodiana. Centrado na luta argelina para tornar-se independente da França, o conflito
tem como palco principal a cidade; o cenário não é mais aquele com palmeiras, desertos e
oásis, mas o urbano. Os árabes, geralmente restritos à figurantes ou, quando muito,
personagens secundários de caráter duvidoso, como é comum nos filmes que se passam no
norte da África, em A Batalha de Argel, protagonizam as ações, não obstante guardarem
distância significativa dos personagens heróicos criados pelo cinema estadunidense. Na
verdade, no filme, os personagens representam algo maior: o próprio povo argelino.
Outrossim, o filme desalinhando-se novamente dos moldes ocidentais, materializa
uma critica ácida à colonização imperialista, abandonando o lugar comum dos filmes
ocidentais que declinam do enfoque político em favor de histórias românticas recheadas
81
pelo exotismo da paisagem. Outro aspecto salutar diz respeito à linguagem. Em vez de
ficarem presos à participações monossilábicas na língua do colonizador ou a balbúcie na
língua materna, na película os “personagens argelinos, embora bilíngües, geralmente falam
sua língua materna (com legendas para as platéias européias) e possuem dignidade
lingüística e cultural” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 361). Mais um rompimento se com
relação à retratação dos inimigos. Enquanto o cinema ocidental, em linhas gerais, optou
pela demonização do inimigo, como na construção de uma ignomínia generalizante ligada
aos vietcongues e nazistas, no filme, os inimigos colonizadores não são distinguidos dos
colonizados através de uma ruptura maniqueísta, mas sim tratados como seres humanos
comuns impressionados pela guerra. Como exemplificam Shohat e Stam (2006, p. 362), o
líder francês Coronel Mathieu,
[...] não é desajustado ou maníaco, ele é charmoso, articulado, honrado,
sincero sobre a realidade da tortura e ‘racional’ em sua defesa [...]
Ambos os lados [colonizados e colonizadores] são mostrados como
aptos à generosidade assim como à crueldade. Ambos são humanamente
imperfeitos.
Não obstante existirem estes exemplos bem sucedidos de negação dos modelos
ocidentais, o que poderíamos denominar de legado colonial deixa marcas fortes nas
expressões culturais do Terceiro Mundo. É importante lembrar que embora o domínio
territorial colonial tenha chegado ao fim, houve a substituição deste modelo militar por
formas escamoteadas de gerência e dominação que tramitam principalmente pelo campo
econômico e alicerçando-se em instituições supranacionais ou não, do campo político ou
comunicacional, como é o caso do Banco Mundial, do FMI, da OTAN, de Hollywood,
CNN, entre outros. Estas configuram-se como vetores fundamentais para a manutenção de
uma ordem capitalista excludente e desigual. Portanto, não podemos desconsiderar que as
manifestações culturais do Terceiro Mundo, mesmo quando se propõem a descortinar a
realidade local rejeitando padrões exteriores, estão carregadas das influências culturais dos
82
centros dominantes que interferem, de forma consciente ou não, na subjetividade dos
artistas. Como confirmam Shohat e Stam (2006, p. 27) não podemos negar que “a natureza
global do processo de colonização, assim como o alcance global dos meios de
comunicação contemporâneos obrigam o crítico de cultura a ultrapassar os limites restritos
ao Estado-Nação”. Dessa forma, ainda que o intuito de alguns artistas ou críticos estejam
revestidos de boas intenções e objetivem uma espécie de depuração da cultura local, não
podemos esquecer que a mundialização fez acentuar o multiculturalismo. Forçar a idéia
de uma nação unitária onde desfilem formas culturais “puras” é abafar “a polifonia das
vozes sociais e étnicas que constituem uma cultura heteroglota”, seja na escala nacional,
regional ou continental. Embarcar em tal jornada é certeza de desdita pois “muitas vezes
mesmos os símbolos nacionais mais prezados são marcados pelo estrangeiro. As práticas
culturais vistas como tipicamente brasileiras, por exemplo, tem origem em outros locais: as
palmeiras vieram da Índia, o futebol da Inglaterra, o samba da África” (SHOHAT; STAM,
2006, p. 401).
Reinvidincando então previamente esta noção de caldeirão cultural, não podemos
ignorar a importância de se trazer à tona a discussão acerca da produção cultural do
Terceiro Mundo. Tratando do cinema, temos que a despeito da enorme produção
cinematográfica da Ásia, África e América Latina, parece que apenas a produção
hollywoodiana representa o cinema verdadeiro. Tal fato está ligado à distribuição global
do poder que ainda tende a fazer dos países de Primeiro Mundo os ‘transmissores’
culturais, enquanto os outros são reduzidos à condição de ‘receptores” (SHOHAT; STAM,
2006, p. 63). Romper portanto com esta visão unitária da produção cinematográfica, não
ignorando outras fontes culturais, como o cinema africano, por exemplo, é constatar que o
universo holywoodiano não encerra a questão.
83
4.3 O CINEMA AFRICANO.
Antes de entrarmos propriamente na questão do cinema africano, é importante frisar
que estamos tratando não de cinematografias locais ou regionais de contornos mais claros,
mas sim de um continente com multidiversidade étnica, lingüística e cultural. E tamanha
complexidade levou a divisões regionais e sub-regionais. Assim, podemos falar em uma
macrodivisão que separa o continente em dois grandes blocos, a África do Norte ou
Branca, e a África do Sul ou Sub-saariana. Todavia, dentro destes espaços, existem outras
divisões como é o caso do Magreb
4
(Marrocos, Argélia e Tunísia) e o Sahel
5
(Mauritânia,
Máli, Níger, Chade e Sudão), ambos pertencentes à África do Norte; a África Ocidental
(Guiné, Libéria, Costa do Marfim, Nigéria....), a África Equatorial (Zaire, Guiné
Equatorial, Gabão, Congo, Ruanda, Tanzânia....) e a África Meridional (Angola, mbia,
Moçambique, Namíbia, África do Sul....), ambas compondo a África Sub-saariana. Ainda
com relação a divisões, poderíamos tomar como critério a colonização européia, e dar
gênese à África Inglesa, Francesa, Portuguesa etc.
Justificamos portanto, a adoção da expressão “cinema africano” vinculada a uma
questão prática, uma vez que tal condensação não conta das especificidades regionais e
suas variantes no campo da estética, do apoio governamental, do processo de distribuição,
produção, entre outros.
Pode-se afirmar, em linhas gerais, que existe uma ligação determinante entre o
imperialismo europeu e a cinematografia africana, tanto no que tange ao seu nascimento
quanto seu desenvolvimento. Como atesta Armes (2007, p. 148) “o cinema africano é
4
Palavra que significa terras férteis e designa os países da África do Norte com saída para o mar mediterrâneo
(MAGNOLI; ARAÚJO, 2005).
5
Região que encontra-se na transição entre a vegetação árida, semi-árida e as savanas semi-úmidas (MAGNOLI;
ARAÚJO, 2005).
84
fundamentalmente uma atividade e uma experiência pós-colonial”.
6
Dessa forma, tal
atividade nasce quase como um manifesto norteado por uma ideologia anti-imperialista;
“um cinema engajado, comprometido social e ideologicamente com as lutas de
emancipação, que sacudiam toda a África nos períodos da descolonização” (BAMBA,
2007, p. 79). Entretanto, passado este furor inicial, o continente passa a conviver com o
duro cenário pós-independência, onde as importações forçadas da Europa como o Estado-
Nação parece não atender às demandas dos povos africanos. Buscando equilíbrio nestas
artificiais e débeis estruturas, os africanos passam a conviver com a herança colonial que
traz consigo o caos político-social expresso nas guerras civis, na fome, no
subdesenvolvimento econômico.
Com o passar do tempo torna-se mais clara a percepção de que os laços de
dependência não haviam sido de fato desatados, e assim como acontecerá em outros
setores, o cinema também prescindirá da ajuda das ex-metrópoles, notadamente a França.
Como ressalta Bamba (2007, p. 79) “a partir dos anos 1970, os cinemas africanos
tornaram-se de vez filhos da cooperação cultural que a França vem mantendo com suas ex-
colônias”. Tese reforçada por Boughedir (2007, p. 53) ao afirmar que “o grande entrave do
cinema africano é a falta de distribuição suficiente na África. A existência atual deste
cinema é muito dependente da Europa, tanto do apoio financeiro como da distribuição em
festivais e exibição em televisão”.
Com relação às temáticas, temos que na primeira década de produção pós-
independência, situada entre 1966 e 1976, os cineastas
7
, principalmente na África Sub-
6
Fora desta regra encontram-se raríssimas exceções como é o caso do cinema da África do Sul, que nasce por
volta de 1910 e tem seu desenvolvimento tangenciado pela colonização britânica e posteriormente pelo regime
do apartheid; sendo de tal forma uma cinematografia voltada para sul-africanos de origem européia e para os
próprios europeus.
7
Segundo Armes (2007), em toda a África, os cineastas geralmente caracterizam-se por serem provenientes de
uma elite educada e bilíngüe. Na maioria das vezes, complementam a educação recebida em seus países com o
estudo universitário desenvolvido na Europa. Muitos deles possuem pós-graduação ou doutorado, além das
qualificações formais de uma graduação em cinema.
85
saariana, imbuídos deste espírito contestatório e insuflados pela onda emancipatória,
passam a negar sistematicamente as tradições africanas, vistas por eles como o símbolo do
atraso e do mal a ser extirpado. Influenciados pelo ideal modernista, os cineastas apóiam-
se em bases científicas que impulsionariam o desenvolvimento e não poderiam conviver
com tradições primitivas como a feitiçaria, por exemplo. Em virtude disso,
[...] na maioria dos primeiros filmes da África Negra, o personagem do
feiticeiro, que alega possuir poderes sobrenaturais e conversar com os
deuses e ancestrais, é sempre apresentado como um charlatão, um
trapaceiro que abusa da do povo para extorquir seu dinheiro
(BOUGHEDIR, 2007, p. 47).
Todavia, esta importação de valores não foi bem aceita no continente, levando os
cineastas a redirecionarem seus escopos e passassem a valorizar a cultura local com suas
crenças e tradições.
Entretanto, a despeito do esperado esta via adotada também não logrou êxito e foi
bastante efêmera, sendo substituída por posturas e abordagens temáticas mais maduras e
lúcidas afastadas das polaridades anteriores. Le médecin de garife (1983) do Níger deixa
isso claro. Neste, o feiticeiro que possui poderes mágicos verdadeiros opta por
compartilhá-los com um jovem doutor africano recém chegado da Europa. Quando o
médico une seus conhecimentos científicos aos “mágicos”, o feiticeiro então se por
satisfeito e pode morrer. Fica claro, o amadurecimento dos cineastas deste período quando
“lançam um olhar lúcido ao passado e tentam fazer como o herói de Le médecin de garifé:
estabelecer uma síntese entre os elementos vivos da tradição africana e as contribuições do
ocidente” (BOUGHEDIR, 2007, p. 48). Assim, sem tocar as extremidades, as tradições
locais recebem outro tratamento, podendo ser enxergadas até como uma metáfora para
driblar a realidade e como símbolos de uma identidade cultural.
Hennebelle, 1978 apud (BOUGHEDIR, 2007, p. 39-40) elenca os principais temas
presentes no cinema africano, além do exposto:
86
[...] filmes que glorificam a luta contra o colonialismo no passado e a
luta atual dos movimentos dos movimentos de libertação [...] filmes
sobre os que lutaram pela independência ou os intelectuais traumatizados
ao se depararem com o ocidente [...] filmes que criticam as novas classes
médias que surgiram após a independência [...] filmes sobre o êxodo
rural que se tornou uma forte tendência após a independência [...] filmes
que descrevem as condições injustas impostas às mulheres africanas e a
busca por sua liberdade.
Independente da temática abordada, a maioria dos filmes esbarra em um problema:
a falta de financiamento. Executar o projeto de um filme implica vários desdobramentos
comerciais que envolvem uma rie de profissionais, aparelhagem técnica, entre outros
recursos. A escassez destes aparatos faz com que o acúmulo de funções torne-se algo
comum ao cinema africano, obrigando o cineasta a atuar como produtor, diretor, roteirista
e muitas vezes também como editor e ator principal. Este é um dos fatores que mais pesam
para explicar a pequena produção cinematográfica africana recheada por enormes lacunas
temporais. Em Benim, por exemplo, não houve um só filme produzido entre 1985 e 1989,
no Congo, entre 1982 e 1995, no Gabão, entre 1978 e 1999. Na verdade, se condensarmos
em um único bloco toda a produção da África Sub-saariana, não ultrapassaremos seis
longas-metragens por ano. O mesmo ocorre na África do Norte, em especial no Magreb,
onde Argélia, Marrocos e Tunísia dificilmente ultrapassam a marca de quatro longas por
ano (ARMES, 2007).
Atuar em tantas funções simultaneamente não é, sem dúvida, um desejo dos
cineastas, mas antes uma imposição proveniente da falta de uma estrutura melhor na
cinematografia local. Essas deficiências estão ligadas à questões macro-estruturais
provenientes das deficitárias engrenagens que sustentam os Estados africanos. Nações
envoltas em uma série de barreiras que impedem-nas de chegar à legitimidade popular, de
ratificar infra-estrutura que permita atender as demandas populacionais, de patrocinar o
87
desenvolvimento da cultura.
8
Tal panorama, remete-nos à questão já abordada e que
merece análise mais acurada, qual seja, a dependência econômica e técnica do cinema
africano com relação as suas ex-metrópoles. Para se ter uma idéia desta dependência,
temos que “ao todo, no período de 1963 a 1975, 125 dos 185 longas e curtas-metragens
produzidos na África francófona [aquela de colonização francesa] receberam apoio francês
técnico e financeiro” (ARMES, 2007, p. 172).
Analisando especificamente esta participação da França, sem dúvida a mais intensa
entre as ex-metrópoles, ocorre que de forma geral esta ajuda prevê, ainda que de forma
mascarada, algumas “exigências”. Portanto, o apoio francês tende a atuar naquelas
produções que tratam a África como um local misterioso, exótico, envolto em lendas e
crenças mágicas. Imagens que se coadunam com o bem delineado imaginário ocidental.
Não obstante, reverberações da África de caráter político e contestatório que expõem as
contradições e injustiças do processo colonizatório trazem um incômodo sentimento de
culpa que o francês não quer vivenciar, e com isso são desdenhadas pelo governo. “É
assim que o mercado ocidental tenta moldar o ainda tão dependente cinema africano:
rotulando-o de modo que sua ideologia esteja em conformidade com a das agências de
viagem, que nos leva longe, em uma viagem escapista e sem culpas” (BOUGHEDIR,
2007, p. 55). Assim, ao analisarmos a participação francesa não podemos deixar de
registrar que a mola propulsora da ação é o interesse próprio. Como observa O’ Brien
(2003 apud ARMES, 2007, p. 147) “a verdadeira justificativa para o investimento da
França na África pós-imperialista, um investimento muito mais substancial que o ofrecido
pela Grã-Bretanha a suas antigas colônias, é a manutenção do prestígio nacional francês”.
8
Uma exceção pode ser encontrada em Burkina Faso, onde o governo criou a partir de 1961 um setor no
Ministério da Comunicação dedicado exclusivamente ao cinema. Além disso, nos anos de 1970 o governo
eliminou empresas de distribuição francesa que estavam no país passando a controlar o setor, possuindo
atualmente centros de formação audiovisual que recebe alunos e professores da sub-região (BAMBA, 2007).
88
A recepção dos filmes africanos em festivais franceses também está submetida a
esta “polidez” de abordagem temática. Boughedir (20007) exemplifica quando analisa dois
filmes produzidos em solo africano. O primeiro, Camp Thiaroye (1988)
9
, que aborda a
política colonial ao descrever o massacre de um batalhão de soldados africanos pelo
exército francês após a Segunda Guerra, foi rejeitado em todas as mostras do Festival de
Cannes (França), não obstante ter vencido o prêmio Prêmio Especial do Júri no Festival de
Veneza em 1988. Já Yeelen (1987), primeiro filme da África Negra a ser aceito na
competição oficial de Cannes em 1987
10
, situa-se na margem oposta ao mostrar uma África
atemporal, mágica e cheia de mistérios. Além do sucesso em Cannes, tornou-se um sucesso
comercial na França, enquanto que Camp Thiaroye nunca foi distribuído, mesmo após o
prêmio em Veneza.
Naturalmente, os critérios adotados pela França acabam norteando as escolhas
estéticas e temáticas dos cineastas que aspiram o sucesso e dependem da nação mecena.
Dessa forma, os objetivos de grande parte do cinema africano voltam-se para fora e a
realização de leituras críticas do continente perde espaço para a obediência ao receituário
francês que facilita o acesso aos festivais, o fim a ser alcançado. Desta forma, algo externo
ao continente acaba servido de termômetro para atestar a saúde do cinema africano,
levando preocupação quando a participação em Cannes e outros festivais é pequena. Neste
sentido, temos que concordar com Bamba (2007, p. 81) quando afirma: “trata-se de um
cinema de festival e para os festivais”. Não podemos perder de vista que por trás das
premiações encontra-se a crítica européia, que assim como em outras áreas de produção de
conhecimento tem seu olhar ligado ao contexto cultural de produção. Esta contempla, em
sua apreciação simplista, a África como “um cenário de projeção, o suporte de estereótipos
9
Filme que não envolveu capital nem técnicos franceses.
10
O norte da África havia participado do festival com os filmes do argelino Lakhdar Hamina e do egípcio
Youssef Chahine.
89
do imaginário coletivo decorrente do cinema colonial: os negros são bons selvagens,
eternos festivos anti-materialistas que vivem unicamente do clamor social, grandes
crianças que sua inferioridade intelectual nos impõe proteger” (BARLET, 1997 apud
BAMBA, 2007, p. 84).
Manter essa imagem cunhada pelo ocidente é o preço a pagar pelos cineastas
voltados para a questão mercadológica. No entanto, é provável que ao seguirem tais
diretrizes, imagens ligadas à escravidão, neocolonialismo e racismo insistam em povoar
suas mentes, levando-os a exames de consciência. Isso porque ao negarem sua história em
prol de um fetiche estrangeiro, correm o risco de esquecerem de si mesmos, cedendo a
outro tipo de colonização mais sutil, a cultural. Como adverte Thiang’o (2007, p. 30) “o
sucesso da iniciativa anti-colonialista é completado quando restitui ao colonizado sua
memória” e, portanto, “se nós vivemos em uma situação que a imagem do mundo é ela
própria colonizada, então fica difícil perceber a nós mesmos a não ser que lutemos para
descolonizar esta imagem. Descolonização da mente é tanto um pré-requisito como
também a temática de um cinema africano sério”.
Por mais tímidas que sejam, já notam-se iniciativas situadas na contramão das
tendências gerais. É o caso dos festivais africanos, que independente do tamanho
conseguem reunir cineastas, filmes e públicos locais. Destacadamente, podemos citar o
Fespaço (Festival Pan Africano de Cinema e Televisão) que através da iniciativa de um
grupo de cineastas e do governo de Burkina Faso, transformou-se no “maior festival
dedicado ao cinema negro africano em solo africano” (BAMBA, 2007, p. 90). Porém é na
Nigéria que teve início um movimento original e eficaz para driblar a falta de recursos e
toda sorte de problemas do cinema africano. Trata-se da produção de vídeos que deu
origem a chamada Nolywood. O origem de tal fenômeno tem início na década de 1970
nascendo no cinema tradicional através da Film Unit (Companhia cinamatográfica herdada
90
dos tempos coloniais) quando foram produzidos os primeiros filmes em iorubá
11
e que
alcançaram grande aceitação do público. Todavia, rapidamente os cineastas perceberam as
dificuldades financeiras em finalizar essas películas com a criação de efeitos especiais e
pós-produção no exterior. Com isso, em meio a crise econômica que assolava o país,
decidiram abdicar das sofisticações técnicas e assumirem as etapas de produção e direção
do filme. Alheio a estas questões, o blico continuava ávido pelo consumo de imagens
nacionais e por “histórias que refletissem os problemas locais, como a corrupção, a
poligamia, modernidade-tradição, crenças religiosas anacrônicas ou extremamente
controladoras e tirania” (BALOGUN, 2007, p. 195).
Dessa forma, embora tenha havido um movimento em favor da qualidade dos
filmes nigerianos exigindo que fossem rodados em 35 mm, o que se viu foi a quase
extinção de filmes em celulóide e a ascensão exponencial
12
da produção de filmes em
vídeo, mesmo com as deficiências técnicas. Em 2002, a Nigéria já contava com 15.000
videoclubes e para cada filme no formato vídeo são produzidos 15.000 cópias que podem
ser adquiridas por US$ 3,50 dólares ou alugadas por US$ 0,30. Contudo, como ressalta
Balogun (2007, p. 197)
[...] a importância da produção de vídeos na Nigéria não deve ser
avaliada em termos numéricos [...] é uma reação a um tipo de demanda e
a uma situação específica. Uma enorme necessidade de imagens que
refletissem a identidade nacional foi responsável pela produção de vídeo
como única forma possível de produção de imagens no contexto
econômico do país. Chegou-se a um ponto em que as mesmas imagens
satisfaziam o público comum e as elites nigerianas, embora recebessem
críticas do público externo, principalmente devido a pouca qualidade.
Fato é que acima das veleidades estéticas da crítica ocidental, Nolywood
representa uma ruptura com a dependência externa, configurando-se como expressão
autêntica da identidade do país e atende ao desejo do público por imagens compreensíveis
11
Uma das principais etnias do país.
12
Entre 1995 e 1998, segundo o Nigerian Film Censorchip Board (Conselho de Censura de Filmes da Nigéria)
foram produzidos 858 filmes em vídeo (BALOGUN, 2007, p. 196).
91
e que os espelhem. Pode ser apenas um aceno no horizonte cinematográfico africano, mas
também sinalizar uma mudança com a construção de uma base sólida para um cinema
independente.
4.4 O CORPUS DE ANÁLISE
Procederemos neste momento, à análise fílmica propriamente dita, buscando a
utilização das ferramentas metodológicas previamente construídas a iniciar-se com os filmes
estadunidenses.
CAÇADOS
Título Original: Prey
Ano de Produção: 2007
Gênero: Suspense
País: EUA
Duração: 93 min.
Direção: Darrel Roodt
Roteiro: Darrel Roodt, Bean Bauman, Jeff Wadlow
Produção: Lions Gate.
Fotografia: Michael Brierley
Trilha sonora:Tony Humecke
Elenco Principal: Bridget Moynaham (Amy), Peter Weller (Tom), Carly Schroeder (Jéssica), Conner
Dowds (David).
Sinopse: Um pai norte-americano leva a família para se distrair em passeio numa reserva florestal na
África enquanto resolve problemas de trabalho no continente. No fundo, tudo que ele quer é ver os dois
filhos do primeiro casamento se dando bem com sua nova mulher. Mas as férias se tornam
particularmente inesquecíveis quando eles se perdem e começam a ser caçados por um bando de
leões selvagens.
Quadro 1 – Ficha técnica de Caçados
Fonte: www.moviemark.com.br
92
ESTADOS UNIDOS
A Doutrina Bush é o conjunto de princípios e métodos adotados pelo presidente George W. Bush para
proteger os EUA depois dos atentados de 11 de setembro, consolidar a hegemonia americana no
mundo e perpetuá-la indefinidamente.
Ela parte do pressuposto de que os EUA, única superpotência global, têm o papel de proteger o mundo
civilizado de terroristas que vivem nas sombras, se superpõem aos Estados e planejam ataques
"iminentes" com armas de destruição em massa.
Se necessário, a doutrina reserva aos EUA a prerrogativa de lançar ataques preventivos contra países
ou grupos terroristas antes que eles ameacem interesses americanos.
Ela mudou radicalmente o parâmetro da política externa dos EUA, substituindo os princípios da
contenção e da dissuasão, típicos da Doutrina Truman, pela possibilidade de ataques preventivos.
A grande dúvida é saber se, como as duas outras doutrinas aqui citadas, a de Bush se projetará no
futuro. Ou se, fugaz, será revogada pelo próximo presidente americano e ficará registrada na história
como uma espécie de "soluço".
A doutrina é composta por três pilares básicos:
1- "Todas as nações, em todas as regiões, agora têm uma decisão a tomar: ou estão conosco ou estão
com os terroristas" (discurso de Bush ao Congresso norte-americano no dia 20 de setembro de 2001).
Com essa afirmação, a Casa Branca prometeu caçar terroristas em todo o mundo e ameaçou países
que abrigam terroristas ou que optaram pela neutralidade. Nesse discurso, Bush definiu o terrorismo
como o principal inimigo da humanidade e condicionou qualquer apoio financeiro e diplomático dos
EUA ao engajamento de outros países.
2- "A guerra contra o terror não será ganha na defensiva. Dissuasão —a promessa de retaliação
maciça contra nações— nada significa contra esquivas redes terroristas sem nações ou cidadãos para
defender. A contenção é impossível quando ditadores desequilibrados, com armas de destruição em
massa, podem enviá-las por mísseis ou transferi-las secretamente para aliados terroristas" (discurso de
Bush a cadetes da academia militar de West Point em 2 de junho passado). Esse discurso introduziu a
opção de ataques militares preventivos como figura central de uma nova ordem mundial. Segundo o
presidente, é necessário "levar a batalha ao inimigo e confrontar as piores ameaças antes que venham
à tona". Em suma: durante a Guerra Fria, os EUA continham seus inimigos com ameaças. Agora,
passarão a destruí-los antes que eles ataquem.
3- "Nossas forças serão firmes o bastante para dissuadir adversários potenciais de buscar uma
escalada militar na esperança de ultrapassar ou se equiparar ao poderio dos Estados Unidos" (trecho
do documento "A Estratégia de Segurança Nacional dos EUA", enviado por Bush ao Congresso em 20
de setembro de 2002). O significado dessa afirmação é que os EUA não pretendem nunca mais
permitir que sua supremacia militar seja desafiada.
Existem outros aspectos da Doutrina Bush que, embora menos importantes, têm relevância. Um deles
é o econômico. O mesmo documento enviado ao Congresso no dia 20 de setembro diz que "comércio
e investimento são os motores reais do crescimento" e que "livre comércio e livre mercado são
prioridades-chave da estratégia de segurança nacional".
Os EUA sinalizam também oposição a qualquer tipo de modelo econômico baseado na intervenção
estatal, "com a mão pesada do governo". Esse aspecto é importante para países como o Brasil, pois os
EUA prometem usar sua influência em instituições como o FMI (Fundo Monetário Internacional) para
obter esses e outros objetivos.
Quadro 2 – Estados Unidos
93
Fonte: pt.wikipedia.com
CONGO
O Congo (por vezes chamado Congo-Brazzaville para o distinguir da vizinha República Democrática do
Congo) é um país africano limitado a norte pelos Camarões e pela República Centro-A O Congo obteve
a sua independência da França em 15 de agosto de 1960. Seu primeiro presidente foi Fulbert Youlou,
forçado a deixar o governo por uma revolta, em 1963. Assume, então, a presidência Alphonse
Massamba-Délbat que, em 1964, fundou um partido de índole marxista-leninista adotando uma
economia planificada, de base socialista. A seguir, dá início a um "Plano Qüinqüenal" que levou a uma
expansão inicial da agricultura e da indústria.A tensão entre o governo e os militares cresce e, em
1968, o Exército dá um golpe-de-estado, liderado pelo major Marien Ngouabi, que assume o poder. Ele
manteve a linha socialista, porém criando o seu próprio partido, o "Partido Congolês dos
Trabalhadores" (PCT). Em 1970, o país adota a denominação de República Popular do Congo e
consolida seu regime ligado ao marxismo-leninismo. Neste mesmo ano, o Exército esmaga uma
tentativa de golpe contra o presidente, liderada pelo ex-tenente pára-quedista Pierre Xitonga, e executa
todos os conspiradores, com exceção do ex-ministro da Defesa, Augustin Poignet, que consegue fugir.
Aproveitando-se desta situação, dá início a um expurgo geral de todos os suspeitos de serem
contrários ao seu governo.O Partido Congolês do Trabalho (PCT) permanece como sendo o único legal
e, em 1977, o presidente foi assassinado, assumindo o poder uma junta militar. Em 1979 passa à
presidência o coronel Sassou-Nguesso, que exerce poderes ditatoriais até 1989, quando o colapso
comunista do leste europeu o leva a anunciar reformas políticas e a transição para a economia de
mercado. O governo mantém uma política internacional de neutralidade, relacionando-se tanto com o
capitalismo como com o comunismo. Em 1990, o PCT abandona o marxismo-leninismo. No ano
seguinte, tropas cubanas estacionadas no país desde 1977, deixam o Congo. Em 1992 é votada a
nova Constituição, onde está previsto um sistema político multipartidário.Em 1993 milícias promovem
ataques contra tropas do governo, cujo presidente é Pascal Lissouba. A situação persiste até 1995,
com greves e motins. Sassiy-Nguesso dá um golpe de estado em 1997 apoiado por Angola (até então
também em guerra civil). Em 1998 e 1999 tropas do novo governo e aliados enfrentam rebeldes
orientados pelo antigo governo (Lissouba e Kolelas), deposto. Em 1999 é assinado cessar-fogo e
chega ao fim a guerra civil. Na Justiça, Kolelas é condenado à morte. As perdas são estimadas em
US$ 2,5 bilhões, além de 10 mil mortos.
Quadro 3 – Congo.
Fonte: pt.wikipedia.com
A música é sombria, inquietante. No ambiente escuro, se movimentam zebras e
gazelas evidenciando sua tensão. O perigo as espreita e materializa-se após o corte que mostra
os leões ávidos pela caça. A câmera em plano inteiro
13
registra o ataque em grupo bem
sucedido. Outro corte, e o leão ataca a jugular da vítima. Close
14
que enquadra as presas do
felino, iluminação intensa, congelamento da imagem e inserção da palavra PREY.
13
O personagem é enquadrado da cabeça aos pés (GOUVEA et al, 2006).
14
Também denominado primeiríssimo plano. Funciona para acentuar a carga dramática da cena (GOUVEA et al,
2006).
94
Não utilização de legenda para situar o local e nem mesmo de um mapa, como é
comum em filmes que se passam na África, na verdade uma outra cartografia toma forma, não
aquela de contornos claros separando os territórios, mas sim a ideológica, que geografando a
imaginação situa os leões como signos referentes do continente africano. “O excesso de
referências é a possibilidade de criar marcas precisas no imaginário cinematográfico”
(AMANCIO, 2000, p. 58). Dessa forma, a África nos é apresentada em seus contornos mais
nítidos. Escuridão e selvageria, palavras cativas no quadro que abriga o imaginário
ocidental.
Tal selvageria é anti-naturalizada pela linguagem cinematográfica que utilizando-se da
música, iluminação e close-up metamorfoseia relações biológicas da cadeia alimentar em algo
cruel e bestial. É importante notar que esta retratação centrada na selvageria, muitas vezes
ultrapassou a família dos felinos para chegar no próprio africano.
Conjetura, que vai ao encontro de uma estratégia bem traçada que busca edificar a
hegemonia branca, pois como ressaltam Shohat e Stam (2006, p. 201) “o processo de
animalização faz parte do mecanismo mais amplo e difuso da naturalização, ou seja, a
redução do elemento cultural ao biológico, associando o colonizado a fatores vegetativos e
instintivos em vez de associá-lo a aspectos culturais e intelectuais”. No conjunto de
argumentos pró-inferiorização do elemento africano, encontramos Queiroz (1976 apud
MELLO; COSTA, 1999, p. 274) que afirma:
Em toda parte onde [o inglês] domine e impere, todo o esforço consiste em
reduzir as civilizações estranhas ao tipo de sua civilização anglo-saxônica.
O mal não é grande quando eles operam sobre a Zuluândia e sobre a
Cafraria, nessas vastidões da Terra Negra, onde o selvagem e a sua cubata
mal se distinguem das ervas e das rochas, e são meros acessórios da
paisagem [...].
Esta retórica que visa menosprezar o nativo africano, assim como outros povos
colonizados, insere-se na matriz ideológica dedicada a justificar a conquista e exploração
95
neocolonial. Temos outro exemplo no pensamento de Sarraut (1931 apud FARIA, 1997, p.
190):
[...] A natureza distribui desigualmente no planeta os depósitos e a
abundância de suas matérias-primas; enquanto localiza o gênero inventivo
das raças brancas e a ciência da utilização das riquezas naturais nesta
extremidade continental que é a Europa, concentrou os mais vastos
depósitos dessas matérias-primas nas Áfricas, Ásias tropicais, Oceanias
equatoriais, para onde as necessidades de viver e de criar lançariam o ela
dos países civilizados. Estas imensas extensões incultas, de onde poderiam
ser tiradas tantas riquezas, deveriam ser deixadas virgens, abandonadas à
ignorância ou à incapacidade? [...]. A Humanidade total deve poder usufruir
da riqueza total espalhada pelo planeta. Esta riqueza é o tesouro comum da
Humanidade [...].
Voltando a falar da escuridão, esta faz parte de radicalismos binários, permeados por
maniqueísmos religiosos que quando transmutados para a questão filosófica, separam a
racionalidade ligada à luz, da irracionalidade proveniente da escuridão. Sob esta óptica,
entende-se a “teoria que considera a África como o ‘continente escuro’ [...]”.
15
(SHOHAT;
STAM, 2006, p. 205)
Partindo para as retratações espaciais, temos a chegada da família estadunidense no
continente realizada em uma pista de pouso rudimentar. Fato que chama a atenção e que
depois se tornará regra no filme, o espaço geográfico representado não apresenta qualquer
marca de urbanização, limitando-se quase que totalmente às paisagens naturais. Não obstante,
o fato de a urbanização ter deixado marcas significativas no país onde se passa a ação, o
Congo. As savanas, apesar de comporem a vegetação do país
16
, generalizam a
heterogeneidade espacial. Registradas repetidas vezes em planos gerais, desempenham o
papel de signo ao mostrar o desolamento/incapacidade do elemento humano frente à natureza
inóspita. Isso ocorre com as personagens Amy, Jéssica e David que se encontram presas a um
veículo em meio a savana africana povoada por leões. A paisagem captada pela câmera
15
Temos esta referência também no desenho animado denominado Safári e protagonizado pelo personagem da
Disney Pateta. Neste, o narrador da aventura se refere ao continente, que é representado em um mapa inusitado,
onde podemos ver florestas e rios que tomam toda a África, como negro e escuro, além de alusões a fauna local
utilizando-se de expressões como “as magníficas feras selvagens”.
16
Referido no quadro intitulado “Aspectos Geográficos”.
96
reveste-se de conteúdos ideológicos e transforma-se em “um campo de significação cio-
cultural e, nos seus simulacros, ainda pulsam, mesmo que debilmente, as contradições do
imaginário que atribuiu (e ainda atribui) o sentido de sua historicidade” (BARBOSA, 1999,
p. 119).
Os personagens africanos cumprem papéis secundários, quando não se reduzem à
meros figurantes com falas monossilábicas como é o caso do motorista (no início do filme) e
da garçonete do hotel. Quando participam efetivamente da trama, materializam figuras
exóticas como o caçador (Sr. Crawford e os caçadores de leão). Temos isso também com os
caçadores de leões, que ao extriparem o animal após a caça, provocam a repulsa civilizada de
Jéssica e Amy tocadas pelo ato primitivo. Ação que reforça a tese de que “africanos foram
[são] exibidos como figuras humanas aparentadas com espécies animais específicas,
tomavam-se ao da letra desse modo, as expressões ‘nativo’ e ‘animal’ [...]” (SHOHAT;
STAM, 2006, p. 156). Outra cena peculiar ocorre quando o guia florestal dirige-se para
David, quando o menino solicita papel higiênico, dizendo: “Você está na África.....”. Frase
que é interrompida por um rugido de leão. No tocante a esta questão, que é a motivação
principal do filme, ou seja, a fúria descontrolada e a sede por carne humana dos leões, temos
que apenas os africanos são vítimas dos leões. Tal opção remonta a uma equação
cinematográfica, não muito recente, de “provocar” mortes aos homens brancos (ou
colonizadores, ocidentais etc) e aos negros (ou nativos e colonizados). Como ressaltam
Shohat e Stam (2006, p. 182) ao analisarem o filme Selvagens cães de guerra (1978), a
película “obedece sistematicamente a uma ‘proporção colonial’ ao computar os cadáveres: a
cada mercenário branco assassinado corresponde um grande número, às vezes centenas, de
negros mortos.”
Quanto aos personagens não africanos, temos que ocupam as posições centrais na
trama. Tom, o pai de família, tem dois objetivos muito comuns que motivam a ida de
97
ocidentais para o continente nas produções fílmicas: ser um representante da modernidade
ocidental imbuída de levar o progresso à África (Tom é engenheiro responsável pela
construção de uma usina hidroelétrica), o que reforça a dependência africana e retoma o
discurso imperialista; e conceber o continente como espaço privilegiado para conciliações
amorosas ou aventuras (Tom busca além da aventura no safári, a aproximação dos filhos com
a nova mulher). Não obstante, com o desenrolar do filme, percebe-se que todo apreço de Tom
pelo continente é quebrado, quando a África com seus ares de selvageria através dos leões e
da imensidão das planícies, dificulta as buscas por sua família. Em um acesso de raiva pela
frustração do não êxito na busca Tom desabafa: “Vou vasculhar cada parte deste maldito
continente até encontrar minha família”. E quando a busca termina e o perigo chega ao fim,
Tom, registrado em primeiro plano, com um olhar vasculhando o horizonte distante como se
pudesse entrever contornos da terra natal, dispara a frase emblemática: “Vamos para casa”.
Desdobrando a frase e ampliando o seu sentido: vamos retornar para o lugar seguro, para a
civilização e abandonar este continente primitivo, que é registrado pela última vez em um
primeiro plano que mostra a vegetação da savana.
Recuando um pouco no tempo, traremos agora outra produção estadunidense sobre o
continente africano, mas datando da década de 1950.
UMA AVENTURA NA ÁFRICA
Título Original: The African Quenn
Ano de Produção: 1951
Gênero: Aventura
País: Estados Unidos
Duração: 105 min.
Direção: John Huston
Roteiro: James Agee
Produção:Sam P. Eagle, Sam Spíegeli
Fotografia: James Cardiffr
Trilha sonora: Alan Gray
Elenco Principal: Humphrey Bogart, Katharine Hepburn, Robert Moley, Peter Bull, Theodore Bikel,
Walter Gotell, Peter Swanwick, Richard Marner.
98
Sinopse: Na Primeira Guerra Mundial em território de colonização alemã na África, um casal de
ingleses, ele, um alcoólatra que trabalha na África com seu barco, ela, uma puritana trabalhando na
cristianização dos africanos, são unidos pelo destino após a destruição de uma aldeia nativa pelos
alemães. Envolvidos por sentimentos patrióticos, se utilizam de pequeno barco e muita imaginação
para além de refugiarem-se da ameaça alemã, provocarem baixas nas forças alemãs quando intentam
atacar um embarcação. Em meio à trama desenvolvem ardente paixão.
Quadro 4 – Ficha técnica de Uma aventura na África
Fonte: www.cineclick.com.br
CONTEXTO HISTÓRICO DA PRODUÇÃO – EUA
Com o desfecho da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da América podiam considerar-se os
grandes vencedores, uma vez que o seu território não fora alvo de massivas destruições, a perda de
vidas fora diminuta (apesar dos cerca de 400 000 soldados mortos em combate, não contando com os
feridos e desaparecidos) e o esforço de guerra proporcionou crescimento economico. De fato, entre
1939 e 1945, os EUA entraram num período de desenvolvimento resultante do aumento do produto
nacional bruto, do incremento da produtividade agrícola e industrial e da descida das taxas de
desemprego. Para dar um exemplo, as importações aumentaram aproximadamente 75%, enquanto as
exportações atingiram os 340%. Este crescimento económico foi mais notório a partir de 1945, porque
os EUA, além de abastecerem o mercado interno, estavam também a fornecer os países devastados
pela guerra. Nos anos 50, a sociedade americana era vista no exterior como a terra da abundância: de
pessoas, de bens e de meios técnico.. E afirmava-se já como uma superpotência capitalista na corrida
pela liderança do mundo ocidental. Na origem desta posição hegemônica estiveram vários factores: os
investimentos americanos aplicados na Europa durante o pós-guerra, que lhe conferiram uma posição
de supremacia tanto a nível comercial como financeiro; a aposta numa política que uebrasse o
isolamento da era da Guerra Fria, através de uma abertura a alianças para combater o crescimento dos
regimes comunistas; o desenvolvimento do sistema capitalista americano através da implantação de
empresas multinacionais fora do país; e o acelerado crescimento económico norte-americano até à
década de 70 acompanhado do aumento da dependência de outros países relativamente aos EUA.
Durante a Guerra Fria também difundiu-se o American Way of Life. A expressão era muito utilizada
pela mídia para mostrar as diferenças da qualidade de vida entre as populações dos blocos capitalista
e socialista. Naquela época, a cultura popular americana abraçava a idéia de que qualquer indivíduo,
independente das circunstâncias de sua vida no passado, poderia aumentar significativamente a
qualidade de sua vida no futuro atrevés de determinação, trabalho duro e habilidade. Politicamente, o
american way acredita na crença da "superioridade" da democracia dita livre, fundada num mercado de
trabalho competitivo sem limites.
Quadro 5 – Contexto histórico da produção - EUA
Fonte: pt.wikipedia.org
CINEMA ESTADUNIDENSE NA DÉCADA DE 1950
Neste período, Hollywood vai promover sistematicamente assuntos históricos antigos a fim de evitar
comprometer-se nos debates do momento – o filme social e o filme noir desaparecem aos poucos para
só sobreviverem subterraneamente nos filmes B. Um cinema de propaganda estilisticamente inspirado
no êxito do filme noir da década precedente surge, assim como um cinema guerreiro, cujas produções,
99
numerosas e desiguais em valor, colocam em cena os feitos heróicos dos soldados americanos, novos
defensores da liberdade [...] Ao lado desse cinema aparentemente neutro, na realidade engajado na
luta anticomunista, alguns reformadores, influenciados pela escola neo-realista italiana (Rosselini, De
Santis, De Sica), desejam manter um cinema de reflexão em Holywood [...] Com relação a Holywood e
a guerra fria temos que o clima de tensão entre os dois blocos que saem dos acordos de Ialta leva
Holywood de volta aos filmes de propaganda: os filmes de guerra sobre a Coréia (Os bravos morrem
de pé, de Milestone, 1959; Os que sabem morrer, de Mann, 1957) e os filmes de espionagem desse
período são fortemente impregnados pelo clima anti-soviético da guerra fria (Anjo do mal e Tormenta
sob os mares de Fuller, 1954; Intriga internacional de Hitchcock, 1959)
Quadro 6 – Cinema Estadunidense na década de 1950.
Fonte: PARAIRE, 1994, p. 24-26.
Arvoredos folhudos cintilados pela luz do sol são capturados em contra plonglé
17
e
recheiam a tela com seus tons verdejantes remetendo à vida campestre. Ainda em plano geral
aberto
18
, a câmera com um travelling
19
penetra na paisagem bucólica revelando em seguida
uma aldeia marcada por construções semelhantes a ocas alicerçadas sob o barro e a palha. Os
palhais aglutinados apresentam em suas adjacências construção maior. Um corte no plano
geral e temos uma cruz capturada em close denotando o caráter do edifício. Através de um
travelling lateral em plano geral, a câmera adentra em seu interior registrando culto entusiasta
e febril, onde se destaca a figura de um reverendo e uma musicista que sob notável esforço
conduzem um coral improvisado de vozes desarmonizadas oriundas dos nativos. Estes
encontram-se seminus e com um olhar denunciando choque cultural e desincronia com a
cerimônia religiosa. A celeuma venerativa que inclui em seu canto frases como “Pai do céu....
nesta estéril selva”, é de súbito interrompida pelo apito de um barco (o African Quenn).
Neste, encontra-se Charlie Alnut, personagem inglês com inclinação ao alcoolismo e
emigrado para o continente em virtude da construção de uma ponte.
20
No momento, Charlie
encarrega-se de entregar a correspondência e sua chegada na aldeia será amplamente notada.
Isso porque ao avizinhar-se da igreja, o inglês desfaz-se de um resto de charuto jogando-o
próximo a animado grupo de africanos que ao aperceberem-se do fato, iniciam embate feroz
17
Quando a câmera filma de baixo para cima (GOUVEA, et al, 2006, p. 81).
18
Usado para mostrar cenas localizadas em exteriores ou interiores amplos (GOUVEA et al, 2006, p. 76)
19
Movimentos de câmera para a filmagem dos planos (GOUVEA et al, 2006, p. 82).
20
Um dos objetivos do movimento imperialista foi deslocar o excedente de mão de obra na Europa para as
colônias africanas (MELLO; COSTA, 1999).
100
pelo artigo ocidental, qual cães raivosos lutando por um pedaço de carne. Tamanha a
repercussão do simples ato, que a própria cerimônia religiosa é interrompida quando jovens
deixam o recinto para entrarem na disputa. Neste ponto torna-se pertinente voltarmos à
citação anterior de Shohat e Stam (2006, p. 200) que amarra e testifica as descrições feitas até
aqui. Referindo-se ao discurso colonial, os autores afirmam que o mesmo “representa os
colonizados como bestas selvagens em virtude da incapacidade destes sujeitos de controlarem
sua libido, de se vestirem apropriadamente, de construir habitações outras que não cabanas de
barro parecidas com ninhos e tocas”.
Travando diálogo com o reverendo e sua irmã, também ingleses, Charlie informa a
respeito da guerra (Primeira Guerra Mundial), causando preocupações imediatas ao reverendo
devido à sua localização (território africano que durante a Primeira Guerra Mundial era
colonizado pela Alemanha). Não obstante é redargüido por Charlie, com o seguinte
argumento: “Que pode acontecer neste local abandonado por Deus?Nota-se nesta fala algo
bastante recorrente no trato dessas questões manifestadas pelo cinema ocidental, ou seja,
evocar uma divindade para escamotear a grande parcela de contribuição do colonialismo na
promoção das agruras locais.
Todavia, voltando à película, sobrevém à afirmativa de Charlie, uma réplica
etnocêntrica de Rosie: “Deus não abandonou este lugar, pois meu irmão está aqui como
testemunha”. A sobrevalorização de uma imposição religiosa para contrapesar injustiças
colonizatórias encontra eco nesta fala.
Fato é, que a despeito das probabilidades realísticas, os alemães chegam à aldeia
deixando fluir seu caráter vil e cruel. O reverendo é agredido e a aldeia incendiada. Estas
ações nos remetem ao pensamento desenvolvido por Furhammar e Isaksson (1976) quando
salientam a barbarização e demonização dos alemães presentes na produção dos países
aliados: “Os alemães eram representados como demônios de olhos semi-cerrados, bigodudos,
101
lúbricos, com todos os instintos voltados para a rapina e o vandalismo”. Aliados dos norte-
americanos nas duas guerras mundiais, os ingleses do filme promovem a cisão maniqueísta
com relação aos alemães.
Após o incêndio da aldeia, Charlie resgata Rosie, que havia perdido o irmão, e
deliberam encontrar refúgio no rio, palco principal das ações. Neste, arquitetam um plano
carregado de ufanismo patriótico, que consiste em descer o rio enfrentando corredeiras
mortais a fim de atacarem um navio alemão, não obstante seus parcos recursos bélicos. Tal
jornada parece trazer profunda realização para Rosie, que deixa aflorar seu romantismo piegas
margeado por um dever cívico exagerado, carregando-a de tons caricaturais. Esses exageros
na composição da personagem coadunam-se com a criação bem quista do período
cinematográfico em questão a figura do herói –, para o qual as fraquezas humanas não têm
espaço em contato com ideais nobres e grandiosos. Tal construção é deixada bem clara no
filme, quando o próprio Charlie, após enumerar as façanhas de Rosie ao enfrentar as
corredeiras refere-se à mesma como “o quadro vivo de uma heroína”.
No trajeto heróico dos personagens o rio e a floresta, o captados em vários planos
gerais, a denunciarem a riqueza da fauna e flora local. Na verdade, em alguns momentos, com
tamanha a superexploração da fauna, temos a impressão de estarmos em um safári. Girafas,
crocodilos, leões, aves, veados, hipopótamos e macacos, sendo os dois últimos com direito a
imitações de Charlie, preenchem todos os espaços do mosaico faunístico africano consonantes
com o imaginário. Surge então relevante paralelismo com a produção estadunidense hodierna
analisada previamente, onde a exoticidade aferida pela fauna local motiva a viagem da família
e centraliza a trama. Parece que certos ícones imaginários têm lugar cativo nas representações
ocidentais do continente, independente do período histórico em questão. Nos dois filmes, o
senso de aventura dos personagens ocidentais motiva as ações, juntamente com a temática da
luta pela sobrevivência que os perigos locais acabam impondo. Portanto, apesar de as tramas
102
serem diferentes, encontramos em ambas aquelas velhas motivações que levam os
personagens não-africanos ao continente – missões altruístas, como a efetuada por Rosie e seu
irmão; levar o progresso ocidental, como o personagem Tom de Caçados incumbido de
supervisionar a construção de uma hidroelétrica; ou simplesmente a busca por aventura
expressa no safári em que Amy, Jéssica e David ingressam em Caçados. Os personagens
africanos também não recebem tratamento muito diferente nos filmes em questão. Com efeito,
as recorrentes alusões ao primitivismo africano são evocadas em diversos momentos das
películas, sem que existam diferenças significativas entre elas. Senão vejamos, com relação à
abordagem conceitual, o que difere os caçadores de leões de Caçados daqueles africanos a
degladiarem-se por um resto de charuto em Uma aventura na África?
Voltando ao desenrolar da trama, temos fato peculiar que diz respeito novamente à
Rosie, que independente das intempéries, naturais ou não, busca sempre trajar-se como que
preparada para o “chá das cinco”, apesar de não conseguirem manter tal compostura até o
final. Em sua jornada pelo rio, vencem as corredeiras e alvejadas da artilharia alemã quando
passam defronte a forte militar. Encaminhando-se para o final da jornada, o casal sofre com a
natureza local ao adentrarem em área assoreada por charcos que impedem a embarcação de
prosseguir jornada. Após esforço hercúleo, ambos são dominados pelo torpor físico e no
limiar das forças Rosie profere oração resignada antevendo o fim trágico. Temos então um
interessante registro cinematográfico carregado de linguagem da câmera. A devoção é
registrada em plonglé
21
, acentuando assim a fragilidade e desamparo da personagem. No
mesmo plano, a câmera abandona lentamente a inglesa, e num travelling vertical acaba por
registrar o céu, imprimindo assim subjetividade à cena, pois somos levados a crer que a prece
de Rosie encontrou seu destino. De fato, temos em seguida, após belos planos gerais do céu
africano, borrasca intensa que elevando o nível das águas retira a embarcação do atoleiro de
21
A câmera filma de cima para baixo, acentuando a posição de inferioridade, ou submissão e levando à
diminuição do personagem enquadrado, trabalhando no sentido de provocar um sentido associado à idéia de
subserviência, humilhação ou humildade.
103
lama, e permite a dupla efetivar o objetivo final atacar grande embarcação alemã
denominada Luisa.
Assim, o casal utilizando de componentes pouco usuais como cilindros de oxigênio,
pregos, cartuchos, blocos de madeira e explosivos plásticos dão origem a torpedo que será
usado contra os alemães. Antes do derradeiro ataque, ainda se permitem um último arroubo
patriótico, quando decidem limpar o barco e inserir uma bandeira pátria para, segundo
Charlie, representar “dignamente a marinha inglesa”. Frustrados em seu ataque por forte
correnteza que naufraga parcialmente a embarcação, são capturados pelos alemães e levados
ao Luisa. Presos novamente aos estereótipos usuais, como, por exemplo, os exagerados
bigodes, os alemães condenam arbitrariamente o casal ao enforcamento. Porém, antes da
consecução da sentença, cerimônia inesperada e presidida pelo capitão do navio une o casal
em votos matrimoniais após extremados pedidos de Charlie. Por fim, os nubentes são salvos,
após o Luisa chocar-se com o African Quenn semi-naufragado, e que trazia em seu casco os
torpedos confeccionados por Charlie. Assim, a explosão trata de por fim à ameaça do mal,
permitindo ao casal ser registrado em plano geral cantarolando nas águas do rio para surgir
posteriormente a clássica inscrição: “The End”.
Temos no filme a habitual retratação dos personagens africanos imbricando-os a
modelos que terminam por associá-los ao primitivismo expresso nas construções, nas
vestimentas, nos atos essencialmente instintivos, como, por exemplo, a famigerada luta por
um resto de charuto. Quando muito, lhe são dados o papel de auxiliar os alemães ao serem
incorporados ao militarismo da metrópole. Na cena em que Charlie e Rosie transformam-se
em alvos da fortificação alemã situada às margens do rio, é um soldado africano quem
primeiro dispara seguindo as ordens de oficial alemão. Compõe-se de tal forma, interessante
quadro binário na retratação dos africanos no filme, pois à medida que são dignos do amparo
e atenção ocidental ao serem cristianizados e com isso terem seus instintos primários
104
amenizados, também podem converterem-se em ameaças quando caem em mãos inimigas, no
caso, os alemães. Em ambos vértices porém, emerge o caráter despersonalizante dos nativos,
vistos como joguetes europeus eclipsados no desejo do outro.
Com relação aos personagens não africanos, temos a clássica divisão maniqueísta que
contextualizada historicamente, torna-se de fácil entendimento. Ou seja, tornou-se prática
comum a retratação de alemães e outros inimigos geopolíticos de forma quase caricata e
alicerçada em matizes amorais e perversos. Analisando a produção estadunidense Furhammar
e Isaksson (1976, p.120) ressaltam que durante a Segunda Guerra Mundial:
[...] os homens-maus dos filmes de aventura tornaram-se agentes alemães, e
os gangsters dos policiais eram quinta-colunas nazistas. Os atores
característicos, que antes haviam se especializados em vilões, adquiriram
um sotaque alemão e começaram a trabalhar para Hitler, na medida em que
desejavam interpretar papéis semelhantes, mas trocaram de uniforme
quando os vilões da GESTAPO, com a guerra fria, viraram comunistas.
Em Uma aventura na África, os ingleses são retratos da benignidade e moral superior
contra abjeção alemã. A concepção do espaço geográfico também se encontra submetida à
dieta baseada nas paisagens bucólicas sublinhadas pela exótica e exuberante fauna e flora que
postulam o continente como espaço não-urbano.
Neste momento, voltaremos nosso olhar para os filmes africanos, colocando em prática
o mesmo exercício anterior de buscar, com a utilização das categorias previamente elencadas,
um modelo de leitura e análise dos filmes.
INFÂNCIA ROUBADA
Título Original: Tsotsi
Ano de Produção: 2005
Gênero: Drama
País: África do Sul
Duração: 94 min.
Direção: Gavin Hood
Roteiro: Gavin Hood
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Produção: Peter Fudakowski
Fotografia: Lance Gewer
Trilha sonora: Paul Hepker e Vusi Mahlasela
Elenco Principal: Presley Chweneyagae, Mothusi Magano, Israel Makoe, Percy Matsemela, Jerry
Mofokeng, Benny Moshe, Nambitha Mpumlwana, Zenzo NgqobeBridget Moynaham
Sinopse: Tsotsi é um jovem que perambula com uma gangue de criminosos nas ruas de Joanesburgo.
Sua vida sofre uma reviravolta quando após o roubo de um carro ele encontra um bebê no bando
detrás e decide ficar com ela.
Quadro 7 – Ficha técnica de Infância Roubada
Fonte: www.cineclick.com.br
ASPECTOS GEOGRÁFICOS DA ÁFRICA DO SUL
A República da África do Sul está localizada no extremo sul do continente africano, com uma região
costeira que se estende por mais de 2500 km, sendo também banhada por dois oceanos (Atlântico e
Índico). Com uma extensão territorial de 1 219 912 km² o país é o 25º maior do mundo.A África do Sul
tem uma paisagem variada. Na parte ocidental, estende-se um grande planalto composto em parte por
deserto e em parte por pastagens e savanas, cortado pelo curso do rio Orange e do seu principal
afluente, o Vaal. A sul, erguem-se as cordilheiras do Karoo e, a leste, o Drakensberg, a maior cadeia
montanhosa da África meridional. A norte, o curso do rio Limpopo serve de fronteira com o Botswana e
o Zimbabwe.O clima varia entre uma pequena zona de clima mediterrânico, no extremo sul, na região
do Cabo, a desértico a noroeste. No Drakensberg há áreas com clima de montanha.A maior cidade é
Joanesburgo. A Cidade do Cabo, Durban, Bloemfontein e Pretória são outras cidades importantes. A
administração oficial (governo, tribunais, presidência e parlamento) encontra-se dispersa por Pretória,
Cidade do Cabo, Joanesburgo e Bloemfontein.
Quadro – 8 Aspectos Geográficos da África do Sul
Fonte: pt.wikipedia.org
ASPECTOS HISTÓRICOS E ÉTNICOS DA ÁFRICA DO SUL
A história da África do Sul, e também a Cronologia da História da África do Sul. Os primeiros
navegadores europeus, portugueses principalmente, chegaram à África do Sul no século XV. Diogo
Cão alcançou a costa sul-africana em 1485 e em 1488 foi a vez de Bartolomeu Dias.A história do país,
propriamente dita, começa no século XVII com a ocupação permanente da região do Cabo da Boa
Esperança pelos holandeses. Em 1909, a união das colónias britânicas de Cabo, Natal, Transval e
Orange River origina a nação da África do Sul. De 1948 a 1993/1994, a estrutura política e social é
baseada no Apartheid, o sistema legalizado de discriminação racial que manteve o domínio da minoria
branca nos campos político, económico e social.. Em 1983, é adotada uma nova Constituição que
garante uma política de direitos limitados às minorias asiáticas, mas continua a excluir os negros do
exercício dos direitos políticos e civis. A maioria negra, portanto, não tem direito de voto nem
representação parlamentar. O partido branco dominante, durante a era do Apartheid, é o Partido
Nacional, enquanto a principal organização política negra é o Congresso Nacional Africano (ANC), que
durante quase cinqüenta anos foi considerado ilegal.Mais tarde, em 1990, sob a liderança do
presidente F. W. de Klerk, o Governo sul-africano começa a desmantelar o sistema do Apartheid,
libertando Nelson Mandela, líder do ANC, e aceitando legalizar esta organização, bem como outras
anti-Apartheid.Os passos seguintes no sentido da união nacional são dados em 1991. A abertura das
negociações entre os representantes de todas as comunidades, com o objetivo de elaborar uma
Constituição democrática, marca o fim de uma época na África do Sul. Em 1993, o Governo e a
106
oposição negra acordam nos mecanismos que garantam a transição para um sistema político não
discriminatório. É criado um comité executivo intermediário, com maioria negra, para supervisionar as
primeiras eleições multipartidárias e multirraciais, e é criado, também, um organismo que fica
encarregado de elaborar uma Constituição que garanta o fim do Apartheid. Em Abril de 1994 fazem-se
eleições multirraciais para o novo Parlamento. O ANC ganha as eleições e Nelson Mandela, formando
um Governo de unidade nacional, torna-se o primeiro Presidente sul-africano negro. Em 2004, ano em
que Thabo Mbeki completou cinco anos como sucessor de Nelson Mandela, o Presidente da República
da África do Sul prometeu acabar com toda a violência de carácter político que ainda possa existir no
país. A África do Sul tem uma economia de mercado que se baseia nos serviços, na indústria, na
exploração mineradora e na agricultura.Os principais parceiros comerciais da África do Sul são os EUA,
a Itália, o Japão, a Alemanha, Holanda, Brasil e o Reino Unido. A África do Sul apresenta o safári pela
savana africana como um dos seus principais destinos, mas outros atrativos como parques nacionais,
turismo de negócios e veraneio no litoral (ex. Cidade do Cabo, Durban, Port Elizabeth, entre outros),
complementam a oferta de destinos do setor turístico .A população da África do Sul é de 43.647.658
habitantes e a densidade populacional de 36,05 hab./km². A taxa de natalidade é de 18,87% e a taxa
de mortalidade é de 18,42%. A esperança média de vida é de 46,56 anos. O valor do Índice do
Desenvolvimento Humano (IDH) é de 0,684.Os negros são maioria e correspondem a 79,5% da
população total.Os brancos representam 9,2%, divididos entre bôeres, falantes do Africânder, em sua
maioria descendentes de colonos holandeses, alemães e franceses que ali se estabeleceram entre os
anos de 1652 à 1795. O outro grupo é o de falantes da língua inglesa, em sua maioria descendentes de
colonos britânicos.
Quadro – 9 Aspectos Históricos e Étnicos da África do Sul
Fonte: pt.wikipedia.org
Um plano geral mostra o interior da sala edificada com madeiras velhas desordenadas
que alicerçam a precária habitação. No centro do cômodo, jovens capturados em planos
médios e closes evidenciam seu envolvimento com jogo de dados. Finda a partida, a câmera
em travelling lateral acompanha os personagens deixando o casebre, para depois abandoná-
los e concentrar-se nos arredores do local. Trata-se de um gueto, marcado pelo excesso de
sobrados, dispostos de forma irregular e arbitrária ligados muitas vezes por varais de roupas
dispostos sob esgoto a céu aberto. Com um travelling para cima a câmera traz uma
panorâmica do local ao registrá-lo em grande plano geral. Neste, a pobreza assume tons
acinzentados que são contrastados com o rosáceo presente no horizonte da tela. Um corte e a
câmera situada acima, registra o rápido deslocamento de um trem, para em seguida denunciar
os robustos arranha-céus ao fundo. Temos assim, uma rápida exploração do espaço local que
já aponta sua heterogeneidade. No centro de Joanesburgo, somos levados ao interior da
estação de trem, que em plano geral aberto é captada mostrando o deslocamento ansioso dos
107
transeuntes para depois focar um outdoor sobre a AIDS. Dessa forma, o filme rompe desde o
início, com a massificada apresentação do continente africano no cinema ocidental que
prioriza a paisagem natural. Os primeiros registros imagéticos do filme deslizam sobre o
espaço urbano de Joanesburgo e seus arredores. Portanto, o olhar introdutório do africano que
olha para si mesmo, não vê no reflexo do espelho apenas o registro ancestral e reducionista da
selva escura e fechada povoadora por seres selvagens com seus sons animalizados e
ameaçadores, mas sim uma outra composição de imagens e sons marcados pelo concreto das
edificações e ruas, pelo mosaico de sinais sonoros provenientes dos automóveis, dos metrôs e
das multidões.
No mergulho vertiginoso da câmera, vamos aos poucos adentrando nos meandros e
dramas da grande cidade. Os problemas comuns às mesmas, independente de sua longitude
vão sendo apresentados. A desenfreada urbanização que desumaniza e traz consigo as drogas,
a violência (como na cena em que o protagonista Tsotsi comete um latrocínio) e a excludente
favelização, ou no caso de filme, a formação dos guetos. As ações que se passam
principalmente à noite acabam acentuando essa diferença entre o centro da cidade e a
periferia. No primeiro, a iluminação se mostra farta no shopping, no metrô e nos letreiros
(como aquele que chama a atenção para a AIDS, uma das “chagas” do continente). No gueto,
ao contrário, a iluminação parca oculta pessoas e lugares. Neste particular, uma cena ganha
destaque, aquela em que Tsotsi, após roubar o carro que continha uma criança, detém-se por
segundos a observar o centro de Joanesburgo. As luzes da cidade impressionam o olhar do
personagem e marcam um contraponto com relação ao local em que se encontra, escuro e
periférico.
Na verdade, Tsotsi não deixa de ser um produto deste espaço. Vítima da pobreza, da
família desestruturada pela violência e alcoolismo do pai, sem acesso à educação, abandonado
108
pelo Estado, o jovem é apenas mais um neste agrupamento, comum às grandes cidades, de
pessoas destituídas das mínimas condições para alcançarem uma vida digna.
Por sinal, quando começamos a olhar mais atentamente para o personagem principal,
notamos aspectos dissonantes da representação ocidental. Senão vejamos, o personagem
principal é um africano, assim como todos os coadjuvantes, uma vez que não temos
personagens não africanos na película. o a necessidade como no cinema estadunidense
de se introduzir personagens ocidentais para se contar uma história que se passa na África a
fim de familiarizar o espectador. Rompe-se, portanto “com a etnografia de Hollywood que
tem como premissa a capacidade do cinema de introduzir o espectador ocidental em uma
cultura desconhecida” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 220) Em Tsotsi (2005), o personagem
principal não está submetido a uma dieta estereotipada de retratação dos africanos como no
cinema ocidental. Não está marcado pela superficialidade psicológica presa a modelos
maniqueístas. Tsotsi é um produto direto do capitalismo excludente, do abandono, do descaso
familiar e do Estado e da violência psíquica e física. Todavia, afastando-se das simplificações
e generalizações incompletas, o filme opta pela não-homogeneização ao singularizar essas
mazelas sociais através do rastreamento das impressões ímpares deixadas pelo personagem.
Intenta-se tratar destas temáticas sociais de forma diferenciada, não se restringindo a mostrá-
las na coletividade que dificulta análises mais pontuais, mas antes, entrar no universo de um
indivíduo, na sua subjetivação diante da realidade. Ao fazê-lo, o filme contraria a lógica
reinante no cinema estadunidense e ocidental que opta por tratar os africanos como “corpos
em vez de mentes” (SHOHAT; STAM, 2006, p.136).
Voltando ao início do filme, temos o personagem em vias de perder sua
“humanidade”, quando em grupo pratica um latrocínio vitimando um idoso. O ato registrado
em closes e cut ups
22
que alternam-se sobre a vitima e os algozes trazem toda a tensão do
22
Também chamado de detalhe, mostra parte do corpo, como detalhes da boca, mão etc. Também é adotado para
mostrar objetos.
109
momento recheada por sentimentos como indecisão, excitação, frieza, remorso. Fato é que
Tsotsi, mergulha em uma crise, ao ser admoestado por sua consciência e por um companheiro
que se revolta contra o ato. Neste momento, temos seqüência interessante, pois o jovem após
agredir o comparsa que o acusou, foge do local correndo desesperadamente. A cena é
registrada com closes do personagem e do movimento de suas pernas, alternando através de
cortes na imagem, com registros de similar correria na infância de Tsotsi. Ambos olhares, o
da criança e do jovem Tsotsi evidenciam o desespero. Este, que é acentuado pela linguagem
da câmera quando a fotografia do ato em grande plano geral enfocando o personagem de
cima. Tal registro parece esmagar o personagem, como se aquele grande espaço sob o qual
corre devorasse-o ao reduzi-lo a algo minúsculo e impotente.
Após a correria, Tsotsi pratica outro crime, desta vez assaltando um automóvel,
pertencente à família que reside em bairro luxuoso, onde a qualidade e requintes
arquitetônicos muito se assemelham a condomínios elitizados presentes nos paises
desenvolvidos. Após evadir-se do bairro nobre onde praticara o roubo, Tsotsi percebe no
banco detrás do veículo um bebê. Contrariando o esperado, Tsotsi resolve ficar com a criança.
Em sua breve relação com a criança, coisas interessantes irão emergir. Após abrigar o bebê
em sua casa, Tsotsi sai a procura de jovem que poderia amamentar a criança. Acompanhando
seu trajeto, a câmera ora registra Tsotsi, ora assume o seu olhar trazendo-nos o campo de
visão do personagem. No trajeto da mulher seguida por Tsotsi, mais uma vez adensa-se a
precariedade do gueto, com suas construções carcomidas pelo tempo, de arreboques
inconclusos, vidraças quebradas, tijolos à mostra que compõem um mosaico de pobreza. Nas
visitas de Tsotsi à jovem que se tornam freqüentes, temos algumas cenas que se reportam à
infância de Tsotsi mostradas através de flash-backs. Em uma delas se privado pelo pai da
companhia de sua mãe doente na fase terminal. O rompimento do seu vínculo mais forte é de
forma traumática. Talvez a necessidade de ficar com o bebê, um resgate do afeto e também
110
de si mesmo, de sua infância. Poderíamos pontuar vários outros momentos, onde se mostra
claramente as dificuldades e o desejo do personagem em “dar conta”, em “sobreviver” no
sentido físico e psicológico, como na cena em que ele se reconcilia com o velho aleijado, o
qual havia molestado anteriormente no metrô. Fica claro depois dos flash-backs da infância,
que o incômodo idoso lhe remetia a experiência infantil desagradável de ver seu amado cão
ser aleijado por seu pai.
Através destes apontamentos, o filme deixa claro sua opção por adicionar densidade
ao abordar os personagens. Abdicando daquela visão reducionista e cômoda tão usada no
cinema em geral para tratar destes assuntos, o filme se lança corajosamente no universo físico
e psíquico rejeitando determinismos e declinando da busca de respostas objetivas para as
questões complexas abordadas. Assim sendo, cria um outro personagem africano, muito
distante daquele estereótipo comum ao cinema ocidental. Na verdade, o filme traz a tona
outros personagens além de Tsotsi. Temos Butcher, Aap e Boston, os companheiros de Tsotsi.
O primeiro tratado como assassino demonstra sua frieza e falta de escrúpulos, o segundo mais
pacato e humanizado e Boston, alcunhado por outros de professor, nunca se graduou de fato,
apenas possuía instrução mediana que o distinguia daquela classe. Além destes temos
personagens menores como o chefe de polícia (único personagem branco do filme) e o casal
abastado que teve o bebê roubado. No conjunto, eles engendram um quadro complexo do
local pois estão condicionados pelas diferenças econômicas, sociais e físicas do espaço em
questão. Espaço este, multifacetado, típico dos grandes centros urbanos onde o crescimento
desordenado ignorou o planejamento urbano e imprimiu inúmeras variantes no que tange a
apropriação do espaço pelo homem. Dessa forma, ícones do capitalismo e da modernização
das cidades como os imponentes prédios de centro de Joanesburgo e a sofisticada estação do
metrô, que representam os incessantes fluxos materiais ou não presentes nas metrópoles, são
margeados pela precariedade de recursos infra-estruturais presentes nos guetos que também
111
compõem este quadro metropolitano. Não obstante, o filme, no que tange a representação do
espaço, distancia-se daquela mono-concepção naturalística trazida pela cinematografia
ocidental. E mesmo, quando utilizamos as outras películas africanas presentes no trabalho
como base comparativa, percebemos aspecto peculiar na abordagem espacial do filme
Infância Roubada. Nos filmes que serão analisados a seguir, temos uma composição que
alterna espaços urbanos e rurais ou campestres. O mesmo não ocorre no filme em questão que
apresenta uma África essencialmente urbana. Interessante notar que o único registro
imagético que encontra eco naquelas formas imaginárias comuns ao continente é pictórica.
Está registrada no quarto da criança que Tsotsi sequestrou e se trata de uma pintura ocupando
toda a parede e registrando a savana africana habitada por alguns animais associados à fauna
continental, como o macaco.
Ao final da película, temos uma espécie de conclusão dos dramas vividos pelo
personagem, quando o mesmo tomado por forte emoção resolve devolver a criança, não sem
antes tratar de estabelecer e retomar vínculos afetivos ao abrigar Boston em sua casa após tê-
lo agredido, ao reconciliar-se com o velho aleijado e ao aproximar-se emocionalmente da
jovem que havia amamentado o bebê. Feito isto, temos o encerramento do filme com a
devolução da criança, que parece ter sido o meio que Tsotsi encontrou de resgatar sua própria
humanidade.
A MINHA VOZ
Título Original: Nha Fala
Ano de Produção: 2002
Gênero: Musical
País: Guiné Bissau/ França/ Luxemburgo/ Portugal.
Duração: 90 min.
Direção: Flora Gomes
Produção: Les Films de Mai, Fado Filmes e Samsa Film
Fotografia: Edgar Moura
Trilha sonora: Manu Dibango
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Elenco Principal: Ângelo Torres, Bia Gomes, Danielle Evenou,Fatou Ndiaye, François Hadji-Lazaro,
Jean-Christophe Dollé, Jorge Biague, José carlos Imbombo.
Sinopse: Em Cabo Verde, todos os acontecimentos que regem a vida social viram música. Mas na
família da jovem Vita, uma lenda promete a morte a quem tentar. Na França, onde Vita estuda, ela
encontra Pierre, músico, por quem se apaixona. Ela canta e Pierre descobre a beleza de sua voz,
convencendo-a a gravar um disco que se torna sucesso. Mas Vita desafiou a tradição e decide voltar
para casa para confessar à sua família e receber o castigo.
.
Quadro 10 – Ficha técnica de A minha voz
Fonte: www.cinefrance.com.br
ASPECTOS GEOGRÁFICOS DE CABO VERDE
Cabo Verde é um país africano, arquipélago de origem vulcânica, constituído por dez ilhas. Está
localizado no Oceano Atlântico, a 640 km a oeste de Dacar, Senegal. Outros vizinhos são a Mauritânia,
a Gâmbia e a Guiné-Bissau, ou seja, todos na faixa costeira ocidental da África que vai do Cabo
Branco às ilhas Bijagós. Curiosamente, o Cabo Verde que dá nome ao país não se situa nele, mas a
centenas de quilômetros a oeste, no Senegal.
Quadro 11 – Aspectos Geográficos de Cabo Verde
Fonte: pt.wikipedia.org
ASPECTOS HISTÓRICOS DE CABO VERDE
Arquipélago que pertenceu a Portugal desde a sua descoberta, como ainda hoje pertencem os
arquipélagos dos Açores e da Madeira, tornou-se independente em 1975 e é hoje uma república
parlamentarista.Foi descoberto em 1460 por Diogo Gomes ao serviço da coroa portuguesa, que
encontrou as ilhas desabitadas e aparentemente sem indícios de anterior presença humana.
Começaram a ser colonizadas por Portugal por meio do sistema de Capitanias hereditárias dois anos
mais tarde, trazendo escravos da costa da África para plantar algodão, árvores frutíferas e cana-de-
açúcar para a ilha de Santiago. Nessa ilha fundaram a cidade de Ribeira Grande, que se tornou muito
importante para o comércio de escravos. A importância da cidade cresceu de tal maneira que, em
1541, foi atacada por piratas e, em 1585, pelos Ingleses. Depois de um forte ataque pirata francês, no
ano de 1712, a cidade foi abandonada. A posição estratégica das ilhas nas rotas que ligavam Portugal
ao Brasil e ao resto da África contribuíram para o facto dessas serem utilizadas como entreposto
comercial e de aprovisionamento. Abolido o tráfico de escravos em 1876, o interesse comercial do
arquipélago para a metrópole decresceu, só voltando a ter importância a partir da segunda metade do
século XX. No entanto já tinham sido criadas as condições para o Cabo Verde de hoje: Europeus e
escravos africanos uniram-se numa simbiose, criando um povo de características próprias.
Quadro 12 – Aspectos Históricos de Cabo Verde
Fonte: pt.wikipedia.org
O que percebemos através de outras fontes, que o filme não fornece tal informação,
Cabo Verde nos é apresentado por meio de um plano geral com travelling lateral que
113
descortina as primeiras imagens do país: o mar, a praia com barcos ancorados e crianças
cantando. Um corte na imagem e temos outro plano geral mostrando a cidade no “fundo da
tela”, através de um recurso cinematográfico conhecido como profundidade de campo
23
.
Outro corte e o filme manipulando as categorias espaço e tempo nos transporta imediatamente
para dentro da cidade marcada por suas formas antigas expressas nas casas e na pavimentação
das ruas. Neste cenário, um automóvel marca um contraste devido à sua constituição
moderna. Em seu interior está Yano, um nativo individualista e inescrupuloso que enriquece
explorando a população da vila. Yano está em busca de Vita, desejando reatar o namoro. Esta
é personagem principal do filme, estando prestes a viajar para a França, com o objetivo de
complementar seus estudos. Além disso, é acompanhada por uma tradição/maldição de
família que a impede de cantar sob pena de perder a vida.
Como vimos no capítulo anterior, a questão da tradição é um tema recorrente na
cinematografia africana, sendo que ultimamente, parte considerável dos cineastas optam por
um diálogo aberto entre as tradições seculares locais e as influências ocidentais modernas. Na
seqüência, Vita dirige-se à igreja católica da cidade captada em plano geral, para se despedir
do coral. Como A minha voz se trata de um musical, os integrantes do grupo executam um
tema que aborda a eleição de um regente para o coral. Dessa forma, os pretendentes se põem a
cantar e oferecer suas propostas e argumentos: eu sou a mais forte e governar é uma questão
de autoridade”; “eu passei por três conservatórios, conheço música e governar é uma questão
de competência”; “eu sou o mais belo e popular, tudo o que quiserem será de vocês e
governar é uma questão de sedução”; “eu sou a mais gorda, mas aparência pouco importa,
governar é uma questão de coração e amor”; “protegemos o mundo de ontem e vigiamos o de
amanhã, governar é uma questão de tradição”. Além destes versos, outros candidatos julgam-
23
Em técnica cinematográfica, a definição de profundidade de campo é a seguinte: zona de nitidez que se
estende a frente e atrás do ponto de foco. No cinema, este recurso é utilizado largamente, como naquelas cenas
clássicas em que o personagem caminha em direção à câmera até ficar em primeiríssimo plano (close) sem
mudança de foco (MARTIN, 2003).
114
se mais aptos por serem mais pobre, ou rico, ou diplomado e até mesmo louco. Impossível
não ver nessa disputa, uma metáfora sobre a melhor forma de governo para o país ou mesmo
o continente.
Saindo da igreja, temos Vita capturada em planos gerais, inteiros, médios e closes e
caminhando por um espaço essencialmente urbano, com a praça, a igreja, o hospital e os
casebres. Não obstante as construções possuírem marcas evidentes da ação do tempo e não
serem símbolos da arquitetura ligada ao capitalismo moderno com seus arranha-céus e tráfego
intenso de pessoas e automóveis, temos em A minha voz a retratação de um espaço que em
muito se distancia daquelas formas monádicas restritas a paisagens naturais tão comuns as
películas ocidentais que enfocam a África.
Procedendo a suas visitas de despedida, Vita dirige-se à carpintaria. Sua entrada no
local dá-se através do que poderíamos chamar de requinte cinematográfico. Isso porque ao
invés de filmar a cena em dois planos, sendo o primeiro mostrando a jovem no exterior do
recinto e após o corte, o segundo com ela na carpintaria, a diretora opta por outro recurso
mais elaborado
24
.
Na carpintaria, executa-se outro tema musical, que se baseia em conselhos dos nativos
para Vita. Entre outras coisas sugerem: que volte antes da velhice pois eles não tratam bem
os seus velhos, apesar de reconhecerem que pelo menos que na França eles pelo menos
chegam à velhice; que arranje um marido em Paris e assim jamais passe fome. Além disso,
denunciam o tratamento que recebem no estrangeiro alegando que “nossas irmãs mais velhas
jamais regressam” e que foram expulsos de vários lugares. Por fim, com certo tom de
lamentação, informam que a maioria ali tem curso superior (economista, engenheiro
agrônomo, engenheira informática, bioquímico e piloto) muito embora seus diplomas não
24
A câmera acompanha a personagem através de um travelling vertical, que como ressalta Martin (2003, p. 47)
“é bastante raro e geralmente só tem a função de acompanhar um personagem em movimento”. Este movimento
da câmera eleva-se sobre o muro do local e acompanha a trajetória de Vita. Tais opções estéticas, no campo da
linguagem denotam um aparato técnico sofisticado. Neste particular, é interessante lembrar que o filme recebeu
o apoio do Fundo Europeu de Desenvolvimento (Comissão Européia), o que interfere na qualidade da filmagem.
115
terem muito efeito no local, restando apenas as ocupações de “príncipes do ededron” e
“ministros estofadores”, ou seja, ofícios da carpintaria. Ao final da música, Vita adverte:
“Construam seus caixões, a única coisa certa neste país é a morte”. A música tem suas
ambigüidades ao criticar a relação da Europa com imigrantes e com a terceira idade, mas
também o reconhecimento da longevidade do velho mundo contraposta à visão pessimista que
têm da África expressa na certeza da morte, por exemplo.
Ao sair da carpintaria, Vita recebe pedidos de crianças que denotariam certo
estereótipo africano com relação ao exterior do continente: “Traga-nos Nikes, Barbies e Coca-
Cola”. Na seqüência, temos Vita em direção ao funeral de um vizinho, um caso raro de
octagenário no local, sugestivamente denominado de Sr. Sonho. Nome apropriado quando
pensamos na baixa expectativa de vida presente em quase todo o continente. Nesta cena do
funeral, temos um debate interessante acerca dos preparativos do funeral que dar-se-ia sob
padrões católicos e por isso, o sacrifício de um porco é questionado por um conhecido do
morto, alegando que o mesmo era um bom católico. No que é redargüido pelo homem que
alega as inclinações animistas do Sr. Sonho. Este diálogo na verdade mostra uma
característica muito comum ao continente que é o convívio entre crenças seculares como o
animismo e religiões importadas como o cristianismo e islamismo.
Terminado o funeral, acompanhado em plano geral que vai mostrando o cortejo se
distanciar lentamente do “olhar da câmera”, temos um corte na imagem e em seguida somos
transportados ao Velho Mundo. Um grande plano geral
25
e temos Paris anunciada através das
imagens referentes
26
a câmera em travelling lateral passa pelo ícone arquitetônico da cidade
luz: a torre Eifeil. Em seguida o filme introduz os primeiros personagens não africanos,
parisienses que como seria esperado em um musical, põem-se a cantar. Neste tema musical,
há uma certa apologia à jovem Vita juntamente com a exposição de sua utilidade para aqueles
25
Planos bastante abertos, funcionam para mostrar o espectador a cidade na qual a ação vai se passar (GOUVEA
et al, 2006, p. 75).
26
Assunto tratado no capítulo anterior.
116
franceses: “ela é muito séria, pensa em estudar”; “ela faz minha contabilidade”; “ela faz
minha declaração de impostos”; “ela faz meu trabalho de casa”. Na contramão destas falas,
temos a participação de um velhinho que assinala: “não importa, não gosto de pretos”.
Enquanto cantam, deslocam-se por espaços tipicamente parisienses como a livraria (onde são
citados Sartre e Camus) e a boutique que adequa o vestuário de Vita aos padrões locais. Estas
retratações espaciais de Paris vão se distinguir claramente do espaço africano apresentado
anteriormente. Ao fotografar livrarias, cafés, boutiques, praças movimentadas, o filme pontua
claramente o caráter metropolitano da capital francesa, que em nada se aproxima da
simplicidade registrada em Cabo Verde.
Após enamorar-se, Vita vai ao encontro dos pais de Pierre. Em especial, trava diálogo
interessante com a mãe do mesmo ao ser inquirida sobre sua nacionalidade. Abdicando de
dizer o nome de seu país, Vita opta por informar: “Sou da África Ocidental. De uma antiga
colônia como todos os países africanos”. Esta resposta pode representar uma negação ou
crítica ao modelo colonialista europeu que criou Estados-nação artificiais. Assim, Vita prefere
generalizar o espaço africano como uma vítima da imposição imperialista. Voltando a trama
de A minha voz, Vita resolve superar seu medo e cantar. Após gravar um álbum ao ceder à
forte influência do namorado, a jovem obtém grande sucesso. Neste momento, surpreende a
todos, anunciando que deve voltar à sua terra e pagar o preço por ter contrariado a tradição
familiar. Temos então a substituição de Paris por Cabo Verde que novamente é registrada em
um plano geral no litoral. Na recepção dos amigos, temos uma fala salutar daquele que auto-
intitula-se “louco”, quando após verbalizar uma vez mais a frase “o céu está limpo”, profere
outra atribuída a Amílcar Cabral
27
: A África é sempre África, mas não é o continente negro”.
Novamente, o filme rompe com certos estereótipos associados ao continente como aquele que
o alcunha de negro.
27
No início do filme temos uma informação que liga o filme a Almícar Cabral, considerado o pai da
independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde.
117
Vita então anuncia à mãe que gravara um cd e por isso estando fadada à maldição teria
que morrer. Apesar do desespero da mãe, não se trata de uma morte real, mas apenas
simbólica. É uma morte que, apesar de anunciada no rádio e possuir funeral inclusive com
algo inusitado ao olhar ocidental os caixões temáticos uma assinatura da cultura local ao
lidar com a morte, indica na verdade a fidelidade da jovem às tradições familiares. Porém, ao
passo que existe o respeito, também uma releitura daquela tradição, onde se constata,
rejeitando os radicalismos, que não necessidade de morte verdadeira. Basta simbolizá-la.
Por fim, a própria mãe, mais arraigada às tradições, resolve participar da canção final,
efetuando portanto o rompimento com a tradição e também morrer simbolicamente, que traz
em sua letra uma mensagem que confirma a necessidade de os africanos assumirem novos
posicionamentos: “Que faz tu quando algo te impede de avançar? Que faz tu quando te queres
deslocar? Quando receias rasgar o livro ao virar a página? E a resposta expressa no refrão:
“Atreve-te”. Outrossim, temos na conclusão do filme, outra passagem que deixa clara a
tentativa do mesmo de promover uma releitura da relação entre tradição e maldição.
Utilizando-se do busto de Almícar Cabral, um grande expoente da tradição e história local
local, a autora compõe interessante metáfora, uma vez que durante o filme o busto é levado de
um lugar a outro, sem contudo ser fixado. A escolha de um local definitivo para acolher a
imagem do herói ocorre no final do filme, quando o binômio tradição/maldição é
reinventado.
Como é característico em alguns filmes africanos das últimas décadas
28
, A minha voz
propõe um diálogo aberto entre a tradição e as raízes culturais africanas e as influências
externas evitando a afirmação ou negação de ambas. Ademais, retrata personagens africanos
sem recorrer a arquétipos comuns à retratação ocidental e ao tratar dos não africanos (no caso,
os franceses), o faz renunciando a qualquer tipo de demonização, e embora anuncie uma
28
Abordado no capítulo anterior, o filme Lé medecin de garife (1983) também propõe uma aproximação entre a
cultura local e as influências estrangeiras.
118
duvidosa admiração com relação à Vita não abdica de trazer também a aversão, expressa nas
falas do velhinho: “Não importa, não gosto de pretos” e no tema musical final “Continuo a
não gostar de pretos, mas gosto bem da música”.
NOSSO PAI
Título Original: Abouna
Ano de Produção: 2002
Gênero: Drama
País: Chade/França.
Duração: 85 min.
Direção: Mahamat-Saleh Haroun
Elenco Principal: Ahidjo Mahamat Moussa, Garba Issa, Hamza Moctar Aguid, Koulsy Lamko, Mounira
Khalil, Zara Haroun.
Sinopse: Tahir (15 anos) e Amine (8 anos) descobrem ao acordar que seu pai foi embora
misteriosamente. A frustração é maior, porque naquele dia, ele devia ser árbitro do jogo de futebol
entre os garotos do bairro. Decidem portanto sair à sua busca pela cidade, em todos os lugares em que
costumava ir.
Cansados, acabam refugiando-se em salas de cinema, onde um dia, acreditam reconhecer seu pai na
tela e roubam as latas do filme e a partir de então uma série de acontecimentos se desdobrará.
Quadro 13 – Ficha técnica de Nosso Pai
Fonte: www.cinefrance.com.br
ASPECTOS GEOGRÁFICOS DO CHADE
O Chade (em francês Tchad) é um país sem acesso ao mar localizado no centro-norte da África. Faz
fronteira com a Líbia a norte, com o Sudão a leste, com a República Centro-Africana a sul, com
Camarões e Nigéria a sudoeste e com o Níger a oeste. Devido a sua distância do mar e seu clima
predominantemente desértico, o país é por vezes referido como o "coração morto da África". O Chade
é dividido em três regiões geográficas: a zona desértica no norte, um zona de Sahel no centro e uma
área de savana mais fértil no sul. O lago Chade, que deu nome à nação, é uma das regiões mais
úmidas do continente africano. O monte mais alto do Chade é o Emi Koussi no Saara e a maior cidade
é sua capital N'Djamena.O país abriga mais de duzentos grupos étnicos e lingüísticos. O francês e o
árabe são as línguas oficial e o Islã é a religião mais praticada.
Quadro 14 – Aspectos Geográficos do Chade
Fonte: pt.wikipedia.org
119
ASPECTOS HISTÓRICOS DO CHADE
A região em torno do lago Chade foi cenário de importantes civilizações na Antiguidade. No século XVI
é dominada por traficantes de escravos. Em 1905, os franceses ocupam o território e instalam
companhias de comércio. Após o fim da II Guerra Mundial, Chade é considerado pela França uma
província de ultramar. Em 1960 obtém a independência sob a Presidência de François Tombalbaye.
Quadro 15 – Aspectos Históricos do Chade
Fonte: pt.wikipedia.org
Como ressalta Martin (2003, p. 37) “[...] a maior parte dos tipos de planos não tem
outra finalidade senão a comodidade da percepção e a clareza narrativa. Apenas o close e o
plano geral têm na maioria das vezes um significado psicológico preciso e não apenas
descritivo”. Isso se confirma no início de Nosso pai. Um plano geral do deserto, onde se
identifica um homem caminhando que em seguida é capturado em plano médio ao
interromper o passo. Após captarmos a expressão do personagem, que denuncia uma certa
indecisão ao olhar para o local de partida, temos um grande plano geral do deserto e a
inscrição do título do filme
29
. Este jogo de planos cria uma atmosfera de suspense, aguça a
subjetividade e nos enche de perguntas, tais como: quem é aquele homem? O que faz sozinho
no deserto? Para aonde vai? Por que seu olhar traz um ar de vida e tristeza? Talvez o
principal responsável por isso seja o deserto, captado em plano geral. Como ressalta Martin
(2003, p. 38), o plano geral pode reduzir “o homem a uma silhueta minúscula, o plano geral o
reintegra no mundo, faz com que as coisas o devorem, ‘objetiva-o’. Daí uma tonalidade
psicológica bastante pessimista, uma ambiência moral bastante negativa”. Essa impressão
moral é confirmada a seguir, quando percebemos que o homem retratado no início
abandonara seus filhos (Amine e Tahir) e a esposa.
Após as primeiras imagens do deserto, a mera vasculha a casa e os arredores da
moradia dos irmãos Tahir e Amine, denunciando a precariedade de ambos. Ruas sem
pavimentação, falta de energia elétrica, habitações em péssimas condições compõem um
29
Inclusive com direito a duas inscrições, sendo uma delas em árabe. Justifica-se pelo fato de o filme se passar
no Chade, país situado na região do Sahel e que sofre forte influência da cultura árabe.
120
quadro que nos remete à carência de infra-estrutura. Todavia, com o decorrer do filme, logo
percebemos que não síntese homogeneizante do espaço geográfico. Na busca pelo pai, os
irmãos deslocam-se até a fronteira entre Chade e Camarões
30
e em seguida a câmera em
travelling lateral com plano inteiro, ao acompanhar a corrida dos irmãos, traz outras
composições espaciais onde elementos urbanos surgem na tela, como o asfalto das ruas, os
automóveis, o comércio, além de moradias em melhores condições. Como acontecerá outras
vezes, o filme opta por conceituar o espaço geográfico abdicando de reduzi-lo aos ícones
referenciados no imaginário ocidental, como a savana e o deserto. Não é que deixe de mostrá-
los, mas indo além, revela a heterogeneidade espacial presente no país, onde formas urbanas
convivem com paisagens naturais. Em uma dada seqüência presente no final do filme, temos
um bom exemplo. Nesta, a câmera alternando planos gerais, médios e inteiros e com vários
travellings laterais, registra a fuga de Tahir da escola corânica.
31
Ao fazê-lo, retrata fielmente
a vegetação do país, ao mostrar sucessivamente flora mais densa e úmida
32
e outra mais seca,
já se aproximando da zona de transição para o clima árido.
Outrossim, o filme apresenta a forte influência da cultura árabe e do Islã no país. Em
plano geral do centro da cidade, percebemos vários cidadãos trajando vestes tipicamente
islâmicas, isso sem falar na posterior internação dos irmãos em uma escola corânica. Temos,
ademais, várias cenas a esclarecerem que modelos etnocêntricos aplicados ao continente não
encontram ressonância neste olhar africano. Por exemplo, quando Amine sofre uma crise de
asma no início do filme, não é o curandeiro ou feiticeiro a quem a mãe recorre, mas sim à
assistência médica-hospitalar, onde naturalmente são prescritos remédios e não chás ou
poções. O mesmo ocorre com o adoecimento da mãe que a leva ao hospital psiquiátrico.
Denotando outros tipos de investimentos sociais do país, temos em plano inteiro, jovens
saindo de uma escola. No cinema, antes do início da exibição do filme, é mostrado um
30
Situada no norte do Chade.
31
Espécie de internato onde se ensina a jovens as leis do Alcorão.
32
Área de savana mais fértil situada no sul do país e referida no Quadro 11 “Aspectos Geográficos do Chade”.
1
21
africano atendendo ao telefone celular. A câmera voltada para a platéia, mostra o apagar das
luzes e naquela sala escura que antecede a exibição do filme continuamos a ouvir a conversa
no celular. Nas penumbras do imaginário ocidental, esta seria uma imagem comum a qualquer
local do mundo ocidental.
Com relação à outra categoria de análise os personagens africanos nota-se que o
filme é centrado na história de uma família que sofre forte abalo após o abandono promovido
pelo pai. Este fato norteia o desenvolvimento dos personagens. Os filhos, Tahir e Amine, ao
tomarem consciência da ausência do pai iniciam um movimento visando o reencontro, seja no
sentido físico (por exemplo, quando se deslocam até a fronteira com Camarões) ou
psicológico (quando, por exemplo, Amine solicita reiteradas vezes que alguém leia
determinado livro como o pai fazia). No cinema, chegam a confundir o personagem do filme
com o pai, o que os leva posteriormente a furtar o rolo cinematográfico na esperança de
confirmar a hipótese. Com efeito, é justamente essa busca e falta que determinará as tragédias
que advirão. Isso porque é o furto que os leva à internação pela mãe na escola corânica como
uma forma de punição e reajustamento. Marcada pela falta de recursos, o local é uma
expressão pica da vida campestre, registrada em tomadas de rios, estradas poeirentas e
atividade agrícola. Neste, a assistência médica inexiste, e quando Amine tem outra crise
asmática, acaba falecendo. Tal fato motiva a fuga de seu irmão que leva consigo uma jovem
pela qual enamora-se, retornando à sua casa. Na tentativa de selar a união com a garota, Tahir
executa um pacto de sangue e em seguida resgata sua mãe do hospital psiquiátrico em que
estava internada.
De uma forma geral, podemos notar que o autor não se limita a tatear superficialmente
os personagens. Ao contrário, tomando como o eixo a importância da figura masculina na
estrutura social e familiar local, desenrola o drama dos personagens. Com efeito, quando
ocorre a falta do pai, vem a conseqüente crise e movimento de resgate da figura paterna e
122
marital expressas na recorrente leitura do livro exigida por Amine, na descompensação da
mãe e na estratégia usada por Amine para impedir outra perda, ou seja, o pacto de sangue com
sua namorada. Em suma, a abordagem é complexa e busca revelar os personagens de forma
mais profunda e verdadeira com seus conflitos, dúvidas, fantasias, amores e ódios.
123
CONCLUSÃO
Os novos ares impressos pelo surgimento das novas tecnologias no âmbito escolar, ao
que tudo indica, parecem ser perenes. Neste cenário, apresenta-se como tarefa hercúlea
açambarcar os efeitos que tal mudança vem a trazer no processo de ensino-aprendizagem. O
cinema, enquanto um dos vetores destas reformulações, desempenha papel de relevo no que
tange a construção de ideologias, visões e imaginações do mundo e de tal forma, não pode ser
negligenciado pela escola. Faz-se necessário passar as imagens cinematográficas pelo filtro da
crítica e retirar delas o muitas vezes consensual status de verdade, acrescendo dessa forma
novas subjetividades à leitura dos filmes.
É importante lembrar que as relações do homem com seu entorno foram
profundamente modificadas com a introdução das revoluções imagéticas como a fotografia e
o cinema. Estes adventos tecnológicos impactaram diversos campos sociais e o próprio lócus
científico. Se nos detivermos sobre a Geografia, veremos a imensa gama de possibilidades nas
relações com o cinema, principalmente no que diz respeito ao espaço geográfico. Este, que
após ter sido filtrado pelas objetivas parece transmutado, tendo ganhado novas conotações,
apropriações e impressões digitais deixadas pelos cineastas. De certo modo, perdeu sua
inércia ao ser captado e levado para alhures ampliando a visão do homem sobre o mundo à
sua volta.
Não obstante, esta maior familiaridade com o espaço mundial deve ser
problematizada, afinal é comum as separações efetuadas pelos espectadores com relação às
licenças fantasiosas e mágicas ensejadas por muitos filmes e o que se convencionou chamar
de realidade. Nestes casos, a expressão recorrente é “isso é coisa de filme”, usada sempre que
a dimensão ficcional ultrapassa o limite realístico. Porém, tal regra não vale para o espaço
geográfico. Captado pelo cinema, ganha status de realidade, não importando se as locações
fílmicas ocorrem nos locais referidos pela trama. Ocorre pois, de forma muito natural ou
124
mesmo inconsciente, o ingresso daquelas imagens em nossa cartografia imaginária. Passamos
a vinculá-las como puras expressões dos locais aludidos e ponto. Não um ponto de
interrogação, mas aquele que encerra, acrítico, sem reflexão.
E indo além, é importante considerar que mesmo as películas que optam por locações
reais não são de fato imparciais, uma vez que comportam um olhar prévio, seletivo e
carregado de valores, muitas vezes etnocêntricos. Seria este o caso da esmagadora maioria dos
filmes ocidentais que tratam da África. Difícil não notar a vinculação entre os espaços
geográficos eleitos e as condensadas opiniões que associam o continente à vida selvagem, ao
atraso e a exoticidade. O ato de fotografar em abundância e quase monoliticamente rios,
florestas fechadas, animais selvagens e nativos seminus, é precedido pela idéia que une a
África a estes modelos respaldados pelo olhar ocidental. Levanta-se desta conjetura questão
relevante, que se assenta na investigação acerca das razões que induzem a este recorrente
reducionismo ofertado pelo mundo das imagens com relação às imagens do mundo.
Talvez tal opção resida numa necessária ou opcional didatização que a revolução
midiática materializou quando dispôs-se a familiarizar o homem com o espaço mundial.
Como seria impossível abarcar toda a complexidade e singularidades deste espaço, delibera-se
buscar nas sínteses homogeneizadoras, arquétipos mais inteligíveis e que trariam mais
segurança ao publico. Tem gênese então, as imagens referentes, verdadeiros ícones
sintetizadores que escamoteiam estruturas espaciais intrincadas, dinâmicas e poliformes para
dar lugar a estereótipos imagéticos já devidamente acoplados às estruturas simbólicas do
outro, daquele que não desfruta da experiência vivida e encontra-se no universo carcerário das
imagens. Será então, que essa aproximação do homem com o mundo efetuada pelas mídias,
estaria por encerrar a imensa fertilidade das imaginações individuais, singulares, moldadas
pelas histórias contadas, por descrições literárias científicas ou ficcionais, ou pelo simples
125
exercício de fantasiar, sonhar com locais distantes? A objetividade intrínseca da câmera pode
dar fim às abstrações imaginárias?
Submetidos à dieta das imagens referentes é natural que nosso olhar encontre-se
engessado com relação à percepção do mundo. Se tomarmos o continente africano como
exemplo, notamos que as imagens acerca do mesmo tem grande peso na construção de noções
deformadas que limitam todo um multifacetado espaço ao primitivismo. Neste ponto reside a
importância deste trabalho. Buscar a desconstrução deste olhar impregnado pela lógica
ocidental ao vasculhar no horizonte longínquo dos filmes africanos novas tonalidades e
concepções sobre questões espaciais, culturais e étnicas do continente. E nestas películas
encontrar um novo olhar, aquele que olha para si mesmo e não vê apenas o reflexo da
ferocidade da fauna, do verde ofuscante das embrenhadas matas, das habitações que se
perdem na noite dos tempos, da pele desnuda, do desalinhado movimento de corpos sob o
frenesi de tambores, da libido desenfreada, do primarismo da inteligência; mas que também
enxerga o mundo urbano com suas edificações alimentadas pelo capitalismo a conviver com
as precárias estruturas periféricas. Ademais, uma visão que não reduz os africanos a meros
títeres dos desejos ocidentais, mas que ao adensá-los revela-os em suas ambigüidades, seus
medos, dúvidas, rejeitando qualquer redução maniqueísta e resgatando sua humanidade
negligenciada muitas vezes pelo mundo ocidental.
Portanto, buscamos neste trabalho mostrar que as percepções geográficas e espaciais
que temos do mundo não provém apenas da fonte situada na ciência geográfica instituída, mas
que também é depositária dos filmes que assistimos. E ao centrarmos nossa análise em um
espaço geográfico específico, aferimos como a sua captação emana e é influenciada por vários
matizes culturais, ideológicos, estéticos e locais que geram produtos de imensa
heterogeneidade, o que acentua a necessidade de problematizarmos e adensarmos a discussão
acerca do poder das representações imagéticas em nossas vidas.
126
REFERÊNCIAS
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Zahar, 1985.
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