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AgênciaFinanciadora
UniversidadeEstadualdoCeará
LucyanadoAmaralBrilhante
EQUUS
E
AMADEUS
:ATRADUÇÃODOS
PERSONAGENSAPOLÍNEOSEDIONISÍACOSDE
PETERSHAFFERP ARAOCINEMA
Fortaleza–Ceará
2007
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2
UniversidadeEstadualdoCeará
LucyanadoAmaralBrilhante
EQUUS
E
AMADEUS
:ATRADUÇÃODOS
PERSONAGENSAPOLÍNEOSEDIONISÍACOSDE
PETERSHAFFERP ARAOCINEMA
Dissertação apresentada ao Curso de
MestradoAcadêmicoemLingüísticaAplicada
do Centro de Humanidades da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito parcial
para obtenção do grau de mestre em
Lingüística Aplicada. Área de concentração:
Estudos da linguagem. Linha de pesquisa:
Tradão, Lexicologia e Processamento da
Linguagem.
Orientadora: Profa. Dra. Soraya Ferreira
Alves.
Fortaleza–Ceará
2007
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3
UniversidadeEstadualdoCeará
CursodeMestrado AcadêmicoemLingüísticaAplicada
TítulodoTrabalho:
Equus e Amadeus: a tradução dos personagens apolíneos e dionisíacos de Peter
Shafferpara ocinema
Equus
and
Amad eus
: the translation to screen of Peter Shaffer’s Apollonian and
Dionysiancharacters
Autora:LucyanadoAmaralBrilhante
Defesaem:25/05/2007
BancaExaminadora
____________________________________
SorayaFerreiraAlves,Profa.Dra.
_______________________________________________________________
MeizeReginadeLucenaLucas,Profa.Dra.LauraTeyIwakami,Profa. Dra.
4
AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª. Sor aya Ferreira Alves, pela atenção, competência e profissionalismo
comqueorientouestetrabalho.
Às professoras Vera cia Santiago Araújoe Denise Azevedo Duarte Gui marães,
pelascríticasesugestõesnoExamedeQualificação.
Aoquerido,parasempreprofessor,CarlosAugustoVi anadaSilva,peloexemplode
força de vontade, bem como pelo apoio nos primeiros passos de minha vida
acadêmica.
AoscolegaseprofessoresdoCMLA,pelasreflexõessobreLing üística,Pragmática,
Tradão,AnálisedoDiscursoeLiteratu ra.
Aos amigos (professor es e alunos) do grupo de pesquisa
Tradução e Semiótica
,
pelasdiscussõesteóricasepelocompanheirismodentroeforadauniversidade.
ÀCAPES,peloapoio financeiroqueviabilizouarealizaçãodestapesquisa.
Aosamigosefamiliares,peloincentivo.
5
RESUMO
OdramaturgoinglêsPeterShafferéconhecidoporseusdramasfilosóficosqueapresentam
doisprotagonistasqueseenfrentamnabuscaderespostasparaquestõesmetafísicas.Esta
abordagemshafferianasurgedacompreensãodoautoracercadaobradeNietzscheesua
teo ria sobre a origem da tragédia grega. Nietzsche elabora uma teoria paraa origem da
tragédia fundada na luta entre dois espíritos antagônicos: o apolíneo (associado à
racionalidade)eodionisíaco(relacionadoàpassionalidade).Aspeças
Equus
e
Amadeus
,
de P eter Shaffer, exploram o conflito apolíneodionisíaco por meio do confronto entre os
personagens(MartinDysarte AlanStrang)e(SalierieMozart)respectivamente.
Equus
foi
traduzidaparaastelasem1977,eA madeusem1984.Nestetrabalho,analisamoscomoas
características apolíneas e dionisíacas dos personagens centrais de
Equus
e
Amadeus
foram traduzidas e redimensionadas na versão cinematográfica. A análise se baseia na
compreensãodaadaptaçãofílmicacomoumprocessotradutórioeadotacomoferramentas
de interpretação a semiótica peirceana e estudos da linguage m cinematográfica. Nessa
perspectiva,descrevemosasestratégiasutilizadaspelostradutoresda peçaeanalisamoso
efe ito destas estratégias na ressignificação da obra. Concluímos que, em
Equus
, as
característicasapolíneasedionisíacasfo ramdestacadaspelailuminação,movimentaçãoda
câmera e montagem. Em
Amadeus
, as oposições foram enfatizadas não somente pelo
figurino e modos dos personagens, mas ainda pelo enquadramento, posicionamento de
câmeraepelamontagem.
Palavraschave:tradução,traduçãointersemiótica,literatura,cinema.
6
ABSTRACT
PeterShaffer,theEnglishplaywright,is wellknownforhisphilosophicaldramasthatpresent
two dueling p rotagonists in search for an swers to their metaphysical questions. Shaffer’s
approachofcharactersstemsfromhisinterpretationofNietzsche’stheoryoftheoriginsof
the Greektragedy.Nietzscheelaboratesatheorytothebirthofthetragedygroundedinthe
conf lict of two antagonist impulses: the Apollonian (associated to rationality) and the
Dionysian(relatedtopassion).Theplays
Equus
and
Amadeus
dealwiththeclashbetween
ApollonianandDionysianspiritsbymeansoftheoppositionofthecha racters(MartinDysart
AlanStrang)and(SalieriMozart).Bothplaysweretranslatedintofilms,
Equus
in1977and
Amadeus
in 1984. In this research, we analyzed how the Apollonian and Dionysian
characteristicsoftheprotagonistsof
Equus
and
Amadeus
weretranslatedandrecreatedin
the  films. The analysis is based on the assumption that a film adaptation is, in fact, a
translation. We adopt as tools for interpretation Peirce semiotics and the studies of the
cinematiclanguage.Inthisperspective,wedescribethestrategiesusedbythetranslators
and analyzed the effect of these strategies in the construction of new meanings. We 
concludethat,in
Equus
,theApollonianandDionysiancharacteristicswereemphasizedby
the  lightening, the changing of position of the camera and the editing. In
Amadeus
, the
oppositions werehighlighted not only by the costumea nd mannersof the characters,but
alsobytheuseandpositionofthecameraandediting.
Keywords:translation ,intersemiotictranslation,literature,cinema.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................08
1.Arelaçãocinema–literatura................................................................................12
1.1Aadaptaçãocinematográfica............................ .............................................12
1.2Adaptaçãocinematográficacomotraduçãointersemiótica............................23
1.3Procedimentosmetodológicos.......................................................................47
1.3.1Constituiçãodo
corpus
........................ ...................................................47
1.3.1.1
Equus
(peça)..............................................................................47
1.3.1.2
Equus
(filme)..............................................................................48
1.3.1.3
Amadeus
(peça)........................................................................49
1.3.1.4
Amadeus
(filme).........................................................................50
1.3.2Análisedosdados..................................................................................51
2.PeterShafferesuaobra......................................................................................54
2.1AtrajetóriadePeterShaffer...........................................................................54
2.2PeterShaffereoconflitoapolíneodionisíaco................................................73
3.Atraduçãodosper sonagensem
Equus
e
Amadeus
...........................................90
3.1Opersonagemno teatroenocinema:umabrevereflexão...........................90
3.2Oapolíneoeodionisíacoem
Equus
..............................................................93
3.3Oapolíneoeodionisíacoem
Amadeus
.......................................................120
CONSIDERAÇÕESFINAIS....................................................................................154
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................157
REFERÊNCIASDO
CORPUS
...............................................................................161
ANEXOS........ .........................................................................................................162
8
INTRODUÇÃO
Quando se fala em pósmodernidade, não raro costumamos escutar
clichês que mencionam a interrelação das linguagens, citando, como exempl o
máximo dessas possibilidades de relações, o advento do computador e as
linguagens dele decorrentes, como a holografia, a computação gráfica e suas
diversas hibridizações. Convém lembrar, todavia, que as relações, combinações,
misturasouhibridizaçõesentrediferenteslinguagenssempreexistiu,aindaquenão
estivessemenvolvendoasmídias digitais.Ume xemplodissoéa an tigainterrelação
queseestabeleceuentrealiteraturaeocinema.
Passado o momento em que o ci nema atraía penas como novidade
técnica, iniciouse um período de experimentações em que houve uma busca por
uma linguagem específica que o identificasse e que criasse seus pr óprios
referenciais de interpretação e análise. Mas, ainda assim, o cinema desenvolveu
estreita s relaçõescoma literatura,inicialmente porqueeracomumfilmarempeças
teatrai s;e,posteriormente,porquefoialiteratura,notadamentenomodelonarrativo
do romance de sécul o XIX, a fonte em que o cinema bebeu ao desenvolver sua
linguagemmaispopularmentedifundida.Essarelaçãoentreocinemaealiteratura,
contudo,nãosep erdeunopassado.Atéhojeelapodeserpe rcebida,principalmente
devido à freqüente realização de adaptações cinematográficas. As adaptações de
obrasliterárias(tomadasaquiemsuaacepçãomaisabrangente,incluindoosóo
romance,apoesiaeaspeçasdeteatro,masaindaosquadrinhos)tornaramseum 
fatotãocomumquepassaramaserobjetode discussão,nãosódoscríticos,mas
tammdograndepúbli co.
Narealidade,essadiscussãoéan tiga,eaadaptaçãodeobrasliterárias
semprepossuiucríticosqueseposicionaramtantoaseufavor,comocontra.Aesse
respeito,comentaBazin(2000:22)queaadaptaçãosetornouumaformadedifundir
a literatura para o público que não acessa a obra dos grandes escritores. E,
exatamenteporisso,elapassouaserobjetode rias críticasnegativas,afinal,a
literaturatendeaserencaradacomoumaarte porexcelência;enquantoocinema
costumaser vistocomoumaartesecundáriaquebuscanaliteraturaumaformade
selegitimar.
9
Ao ser visto como elemento derivado, o filme adaptado de uma obra
literáriatendeaserjulgadopelocritériodefidelidadeemrelaçãoaolivro.Contudo,
esseargumentoomaissesustentanoatualdesenvolvimentodasdiscussões.O
filme, mesmoaquele que é adaptado,éuma obra autônoma e, em conseqüência
disso,lidacomumsistemadesignosdiferentedosistemaliterário.
Sãováriasasmaneirasdecompreenderaobrafílmicaadaptada,alguns
autor essereferemaelacomoumareescrita,ouaumdiálogoentretextos,outros,
ainda,comoumatradução.Qualquerquesejaaabordagem,oimportanteéatentar
paraaspossibilidadesqueestanovaobratempararedimensionaro textoanterior,a
partirdousodeseuspróprioscódigos.
Nestapesquisa,consideramosaadaptação fílmicacomoumatradução.
Paraisso,tr abalhamoscomasnovasabordagensadotadaspelateoriadetradução
queaentendemcomooresultadodeumprocessoreguladopordiferentesfatores,
como: as i nfluênciasdocontexto cultural ehistóri co, aimportância einfluência da
recepção, a questão da multiplicidade de sentidos etc. Investigaremos questões
ligadas à adequação das linguagens literária e cinematográfica que, conforme
mencionamos, apresentam nítidas diferenças, mesmo quando a obra literária em 
questãoéumapeçateatral,oqueocorreemnossapesquisa.
Ointeressenestapesqui satevecomopontodepartidaasdi scussõesde
umgrupodeestudosobretraduçãointersemiótica.Aescolha detercomoobjetode
análise o trabalho de Shaffer, contudo, surgiu ainda na graduação, quando
estabelecemoscontatocomodramatur goque,detantoversuaobraseradaptada
para o cinema, acabo u por se tornar um roteirista. Constatamos, então, a grande
qualidadedo autoringlês,qualidadeessaqueéevidenciadaemsuaoriginalidade,
na habilidade da utilização dos recursos e técnicas teatrais, na intensidade dos
diálogosenasólidaconstruçãodospersonagens.
Já a atração pelo estudo de seus personagens nasce da produção do
trabalhode conclusãodecurso
Equus:aconstruçãodopersonagem AlanStrangna
traduçãocinematográfica
.Apartirdessetrabalhovislumbramosacomplexidadedos
personagensshafferi anos,seu sconflitos,seusembateseseufascínio.Tammfoi
pormeiodestetrabalhoqueconhecemosavisãodeShaffersobreatensãoapolínea
e dionisíaca, tensão esta que é vista como forma de interpr etação da vida. A
observaçãodamaneirashafferianadefazerasvisõesdemundocolidirem,pormeio
dos personagens, gerou algumas dúvidas e a necessidade de continuar com a
10
investigação,ampliandoseuestudo.Essatemática,tãoessencialemsuaobra,foi
nitidamente influenciada pelas discussões de Nietzsche em seu livro
Aorigem da
tragédia
, e sua  teoria sobre a coexistência das forças apolíneas e dionisíacas na
gênese da verdadeira tragédia grega que, infestada pel o racionalismo socrático,
entrouemdecadência.
Noreferidotrabalho,aoanalisaraadaptaçãofílmi cade
Equus
,umaobra
cujo roteiro cinematográfico foi elaborado pelo próprio autor, começamos a nos
questionarseestefatoinfluiriasobremaneiranatradução,umavezque,
Amadeus
,
outra peça de Shaffer que também foi adaptada, mas com a ajuda no roteiro de 
Milos For man, gerou um filme muito diferente. Adveio, então, o questionamento:
como pode um escritor adaptar sua própria obra e conseguir resultados tão
diversos?Desta questãoinicialflorescemasoutrasdiscussõesaseremabordadas
napesquisa.
Assim,pretendemosanalisaratraduçãodospersonagensprincipaisem
Equus
(Dysart e Strang) e
Amadeus
(Salieri e Mozart) para o cinema, atentando,
especialmente, para os recursos utilizados na tradução e ressignificação das
características apolíneas e dionisíacas, identificando possíveis similaridades ou
diferençasentreos resultados destasestratégiastradutórias. Esperamosque esta
pesquisacontribuacomosestudosdaadaptaçãofílmicadeobrasliteráriasparao
cinema e quepossibilitereflexões pertinentesàobraeaos personagens dePeter
Shaffer.
Desejamos,aind a,colaborarcomumadiscussãomaisampla,queéada
compree nsãodaadaptaçãocomoresultadodeumprocessotradutóri o.Justificamos
aadoçãodavisãoda adaptaçãocomotrad uçãocombasenoconceitodetr adução
intersemióticadeJakobsonenassemelhançasda sdiscussõesquetantopautamos
estudosdaadaptaçãoquantoosestudosdetradução.Nossaanáliseirásebasear
em alguns princípios dos estudos descritivos, de ntre eles, o da compreensão da
importânciadopóloreceptordatradução(jáqueéapartirdelequeoprocessose
inicia), o da  descrição das escolhas e estratégias tradutórias do tradutor e no de
rechaço das noções de fidelidade ou equivalência. Dos estudos descritivos
trabalharemos,de maneira geral, comas n oções de reescrituradeLefevere, mas
semlevaracabo,emdetalhe,suassugestõesnaanálisedeadaptaçõesfílmicas.
Alémdosconceitosdatradução,tencionamosfundamentarnossaanál ise
nas teorias sobre o estudo do teatro, incluindo o estudo do personagem, e nas
11
teorias deanálise cinematográfica, atentando não só para as discussões teóricas,
masaindaaspectospráticosehistóricosrelativosaessasduaslinguagens.Somado
às teorias tradutórias, às teorias da linguagem literária (teatro) e do cinema,
utilizaremoso instr umentaloferecido pela semiótica peirceana. Acreditamos que a
semiótica dePeirce,apartirdesuanoçãodesemiose,istoé,avisãodasignificação
comoprocessodinâmicoeinfinito,coadunase,perfeitamente,comumavisãomais
atual de tradução, ou seja, a compreensão da tradução o como uma tarefa
estanque e finita, mas como umprocesso, algoque enseja permanente revisãoe
mudança. Assim, nossa análise não pretende oferecer uma interpretação que se
prete nde única, mas colaborar na compreensão das soluções encontradas pelos
tradutores na adaptação fílmica das características próprias dos personagens
apolíneosedionisíacosdeShaffer.
No intuito de facilitar o acesso r ápido aos elementos observados em
nossoestudo,utilizaremos,comoferramentametodológica,ofichamentodaspeças
Equus
e
Amadeus
.Oquechamamosdefichamentoéadivisãodasobrasemblocos
narrativos, com as descrições da s cenas. Utilizaremos, ainda, a decupagem de
algumas cenas dos filmes, que contará não só com da descrição dos blocos
narrativos, mas com algumas descrições mais apuradas, uma vez que considera
dados como a montagem, o posicionamento da câmera, a inci dência ou não de
música,enteoutros.
Nosso trabalho está dividido em três partes. Em um primeiro momento
trataremosdasquestõesteóricassobre aadaptaçãofílmicae suarelação comas
questões de tradução. Neste momento, a partir de nossas considerações,
explicaremos porque trataremos a adaptação como um processo tradutório,
fundamentando nosso tratamento nas discussões mais atuais sobre as teorias de
tradução e na semiótica peirceana. Ainda na primeira parte, ap resent aremos os
procedi mentos metodológicosadotadosna análise. Nasegunda parte dotrabalho ,
enfocaremos o trabalho de Peter Shaffer, explicitando sua evolução, enfatizando
suastemáticaspreferida sequestõespertinentesaoembateapolíneodionisíaco.E,
finalmente, analisaremos a tradução dos personagens apolíneos e dionisíacos de
Equus
e
Amadeus
paraocinema.
12
1.ARELAÇÃOCINEMALITERATURA
Este capítulo tratará da relação entre o cinema e a literatura.
Consider aremos, em nossa exposição, tanto as discussões e argumentações dos
teóricosquetratamdaadaptaçãodeobrasliteráriasparaocinemanape rspectiva
única da adaptação, quanto aquelas que entendem este processo como uma
tradução.Emfacedisto,dividiremosocapítuloemtrêspartesdistintas.Inicialmente,
abordaremos as questões levantada s e debatidas pelos teóricos da adaptação
cinematográfica, como, a natureza da relação entre a literatura e o cinema, a
possível existência de uma hierarquia e a noção de fidelidade, entre outros. Em
seguida, trataremosdaabordagemdaadaptaçãocomotradução.Nestemomento,
exploraremos as di scussões relativas à noção de tradução e sua implicação na
utilizaçãodoconceitodefidelidade,eàvisãodaadaptaçãofílmicacomoresultado
de uma tradução intersemiótica. Para tanto, faremos uma breve explanação de
alguns conceitos da semiótica peirceana. Finalmente, ap resentaremos os
procedi mentos metodológicos que aplicamos no  desenvolvimento de nossa
pesquisa.
1.1AADAPTAÇÃOCINEMATOGRÁFICA
Desde seus primórdios o cinema desenvolveu uma vinculação com a
literatura, o que inclui não somente os romances, mas também outr os neros,
como o teat ro. Como explicita Brito (2006), em seu i nício, o cinema existia como
atraçã oemsimesmo,ouseja,aspessoasqueriamter acessoànovidadetécnica.
Poucoi mportavaoqueseriamasimagens,ocinemaatraíapelo“poderfotográfico
decopiaromovimentodascoisas”(2006:137138).Eraaépocadoqueviriamais
tarde aserdenomi nadopeloteóricoamericanoGunningcomo“cinemadeatração”
(apud Brito: 137). Mas não tardou para que a novidade se tornasse cansativa e,
carecendo naquele momento o cinema de uma linguagem específica, ganha
destaqueapráticadesegravarespetáculosteatrais.Estasgravaçõesadotavamo
uso da câmera com um ponto de vista fixo, situandoa “na clássica posição dos
espectadores” (Xavier, 1984: 14). No entanto, com o passar do tempo, o cinema
passouabuscarodesenvolvimentodesualinguagem.
13
É Interessante notar que, na busca pelo desenvolvimento de uma
linguagem,cinemaeliteraturatambémestãoimbricados.Conrad,em1897,afirmaa
respeito de suas intenções literárias: a tarefa que tento atingir é, pelo poder da
palavraescrita,fazercomqueouçam,fazercomquesi ntame,acimadetudo,fazer
com que vejam”
1
(apud Mcfarlane, 1996: 3). Dezesseis anos mais tarde, D. W.
Griffith, considerado por muitos um dos principais criadores da linguagem
cinematográfica afirma: a tarefa que tentoatingir é acimadetudo fazer comque
vejam”
2
(apudMcfarlane,1996: 4).Arespeitodisso,eaocomentaradiferençaentre
osmeioscinematográficoeliterário,Bluestone,noensaio
Thetwowaysofsee ing
,
afirma que “entre a percepção da imagem visual e o conceito da imagem mental
repousaadiferençaessencialentreosdoismeios”
3
(apudMcFafarlane,1996:4).
Ainfluênciaquealiteraturaexerceunocinemaénotória,emespecialno
queconcerneaode senvolvimentodesualinguagem.Oci neastaamer icanoGriffith
afirmou ter  sido influenciado pela literatura de Charles Dickens na concepção e
realizaçãodesuaobrapormeioderecursosdelinguagem,quedepoisinstituiriamo
que viríamos a conceber como linguagem cinematográfica. Como nos relata Brito
(2006:137):
Foi nas páginas de narrativ as de Dickens que G riffith foi se base ar para
ousarlances expressivoscomo,porexemplo,variaraposiçãodacâmera
emrelaçãoaomaterialaserfilmado,oquecriou,automaticamenteepara
sempre, uma verdadeira tipologia do plano cinematográfico [...]. Mais
importanteaindafoialição,tiradasempredeDickens, deque,noprocesso
denarrarvisualmenteumaestória,essesplanosdiversospodiamedeviam
ser combinados do mesmo jeito que o criador muda, de repente e sem
explicação, o alvo de seu discurso, de um elemento ficcional para outro,
independentemente das dimensões de tais elementos e das distâncias
diegéticas entre eles. Assim, não era somente o enquadram ento que se
aprendia com a literatura, mas a própria montagem, com a noção de
contrasteaíimplícita.
Valesalientaraqui,queoutroscineastascontribuíramenormementeparaacriação
dalinguagemcinematográfica.Entreeles, destacamos Eisenstein,fi gura essencial
para ahistóriadocinema.Eisenstein,juntamente comoutrosnomes,fezpartede
ummovimentoestéticopolíticoiniciadonaRússia, apartirde1914,con hecidocomo
construti vismo. O movimento estava ligado à ideologia marxista e ne gava a “arte
1
Todasastraduçõessemreferênciasnestetrabalhosãodaautora.MytaskwhichIamtryingtoachieveis,by
thepowersofthewrittenword,tomakeyouhear,tomakeyoufeel–itis,beforeall,tomakeyousee”.
2
“ThetaskIamtryingtoachieveisabovealltomakeyousee”.
3
“[...] between the percept of the visual image and the concept of themental image lies the root difference
betweenthetwomedia”.
14
pura”epropunhaainserçãodaarteemumarealidadeconcretaerevolucionária.A
artedeveria,assim,servirob jetivossociaiseaconstruçãodeummundosociali sta.
O cineasta russo, ao contrário do modelo de linguagem proposto por
Griffithdeumcinemarepresentativo,narrativoeficcional,propõe ousono cinema
deuma“montagemdeatrações”.Emseuentender,umaatraçãoseria
[...] qualqueraspectoagressivodoteatro;ouseja,qualquerelementoque
submete o espectador a um impacto sensual e psicológico, regulado
experimentalmenteematematicamentecalculadoparaproduzirnelecertos
choquesemocionais(apudXavier,1984:107).
Convém ainda lembrar que estaidéia de “montagem de atr ações” advém deuma
divisãoqueEisensteinfazdoteatro:teatronarrativorepresentativoeteatrodeagit
atraçõ es.Esteúltimoseriaodefinidordalinhacorretanaedificaçãodeumaprática
teatral  compatível com a revolução” (Xavier, 1984: 107). A idéia de Eisenstein
sugere,portanto,aintroduçãodeelementosqueseriammanipuladosno intuitode
promoveref eitosemocionaise,porconseguinte,umdiscurso.Seu ob jetivoseriao
deseopor aocinemadeGr iffith que,noseuentender,juntoaoteatroeliteratura
natur alistas,criaumailusão derealidade.Suaproposta sevincula aoprincípio do
poeta Maiakovski, o qual afirma que sem forma revolucionária o arte
revolucionária”(Xavier,1984:108).
Dessaforma,amon tagemtípicadocinemaclássicoenarrativodeGriffith
é rejeitada por Eisenstein que propõe uma “montagem figurativa” (Xavier, 1984:
108). Esta montagem colabora para a falta de uma evolução dramática dos
personagens e evita o encadeamento,  o fluxo natural dos acontecimentos,
privilegiando a “inserção de planos que destroem a continuidade do espaço
diegético” (Xavier,1984:108).Asinserçõesconstituem,aindaassim,partedaidéia
aserdesenvolvidanofilme.
A partir do exposto, pudemos demonstr ar a colaboração ine gável da
literatura e seus modelos na criação da linguagem cinematográfica. Muitos
escritores, entretanto, criticaram as adaptações cinematográficas de livros. Um
destesescritoresfoiVirginiaWoolf(1978),quearespeitodaadaptaçãoafirmouem
seuar tigo
Thecinema
:
Todososfamososromancesdomundo,comseuspersonagensconhecidos
esuascena sfamosas,aoqueparece,somentepediamparaserempostos
nosfilmes.Oquepoderiasermaisfáciloumaissimples?Ocinemalançou
15
seemsuatimacomimensaavidezenom omentomalconseguesubsistir
sobreocorpodesuavítimainfeliz.Masosresultadosodesastrosospara
ambos.Aaliançanãoénatural
4
(1978:182).
Apesardascríticasàadaptaçãocinematográfica,senãocomoumtodo,
mas pelo menos à adaptação feita até aquele momento, Woolf reconhece as
potencialidadesdocinema.Elaafi rmaqueembor aocinemaatéaquelepontotenha
fracassado em encontraraexata expressão pa ra as emoçõ es literárias,ele ainda
poderi a deixar de ser “um parasita” e “caminhar ereto” (1978: 183). Ela afirma,
entretanto, queestemomentoaindaestariaporvir.
Contudo,segrandepartedenossopensamentoesentimentoestáligadoao
ver, algum resíduo de emoção visual que não tem utilidade seja para o
pintor,sejaparaopoeta,deveainda aguardaro cinema.Parecebastante
prováv elqueessessímbolososerãoosobjetosreaisquevemosdiante
denós.Algoabstrato,algoquesemovecom artecontroladaeconsci ente,
algo quepedepouquíssima ajudaàs palavras ou àmúsica para sefazer
inteligível [....]. Então, de fato, quando alguns novos símbolos para
expressar o pensamento forem encontrados, o cineasta terá grandes
riquezasaseucomando
5
(1978:184,185).
Por outro lado, já naquele tempo, alguns escritores perceberam a
grandezadocinema,nãoovendocomo“umparasita”,maspercebendoinclusiveo
quanto o cinema poderia vir a influenciar  a literatura. Entre eles, podemos citar
Tolstoi(apudWhelehan,1999:5)queafirmou:
Você perceberá que este aparelhinho perfeito com manivela giratóri a irá
revolucionar nossa vida – a vida dos escritores. É um ataque direto no
antigométododaarteliterária.Teremosquenosadaptaràtelasombriaeà
máquinafri a. Uma nova forma de escrev er será necessária.... Mas gosto
disso.Estarápidamudançadecena,estamisturadeemoçãoeexperiência
–ébemmelhorqueopesadoelentamentedelineadotipodeescritaaqual
nós estamos acostumados. Está mais próx ima davida. Tamm na vida
mudanças e transições surgem repentinamente bem a nossa f rente, e
emoções da alma o como um furacão. O cinema prediz o mi stério do
movimento.Istoégrandioso
6
.
4
“Allthefamousnovelsoftheworld,withtheirwellknowncharactersandtheirfamousscenes,only asked,it
seemed,tobeputon thefilms.Whatwouldbeeasierandsimpler?Thecinemafelluponitspreywithimmense
rapacity,andtothemomentlargelysubsistsuponthebodyofitsunfortunatevictim.Buttheresultsaredisastrous
toboth.Theallianceisunnatural”.
5
“Yetifsomuchofourthinkingandfeelingisconnectedwithseeing,someresidueofvisualemotionwhichisof
nouseeither to painteror to poetmaystill await the cinema.That suchsymbolswill be quiteunlikethereal
objects which we see before us seems highly probable. Something abstract, something which moves with
controlledandconsciousart,somethingwhichcallsfortheverysl ightesthelpfromwordsormusictomakei tself
intelligible [...]. Then indeed when some new symbol for expressing thought is found, the filmmaker has
enormousrichesathiscommand”.
6
“Youwillseet hatthislittlecli ckingcontraptionwiththe revolvinghandlewillmakearevolutioninourlife–inthe
life of writers. It is a direct attack on the old method of literary art.We shall have to adapt ourselves to the
shadowyscreenandtothecoldm achine.Anewformofwritingwillbenecessary....ButIratherlikeit.Thi sswift
changeofscene,thisblendingofemotionandexperience–itismuchbetterthantheheavy,longdrawnoutkind
16
DeacordocomMichelMourlet(apudBrito,2006:140),acriaçãodocinemaatingiu
enormementeoromance do século XX. Segundo Brito (2006:140),tantoacrítica
quanto a historiografia literárias afirmam que o romance reagiu ao cinema ora
acolhendoo, ora afastandose.Como exem plo de escritores do século XXque se
aproximaram do cinema, são citados os americanos Hemingway, Faulkner,
Steinbeck, Cadwell – que aproximaram seus textos dos roteiros de cinema ao
centraremofoconarrativonoprotagonistaquenã oeraonisciente–,be mcomoos
europeus Malraux, Gide, Camus e Woolf. Enfi m, como sugere Brito (2006), “o
consensopareceserodeque,depoisdeconhecerocinema,nuncamaisaliteratura
foiamesma”(2006,141).
Convém explicar um ponto muito importante no que tange a mútua
relaçãocinemaliteratura:éaquestãodacrisederepresentaçãodasartes”(Brito,
2006: 165). Segundo Brito  (2006: 165; 166), em geral, as artes (pintura, teatro,
dança, escultura e literatura) sempre possuíram natureza representacional, isto é,
eramimitativas.Essanaturezafoi levadaàexploraçãoextremaemummovimento
conhecidopornaturalismo.Osmovimentosde vanguardaquesurgiramnofinaldo
século XIX e início do XX questionavam essa postura naturalista da capacidade
representativadasartes.Aimpossibilidadederepresentarseriaoteordasobras,daí
decorrerammovimentosartísticoschamadosdeabstracionistas.Ocinema,talcomo
outras artes, foi atingido. Brito ci ta Buñuel, o cinema poético francês e o cinema
montagemsoviéticocomoexemplostípicosdocinemaaseguirestesmovimentosde
nãorepresentação.
Poroutrolado,Brito(2006)explica,sem negarasexperiênciascontrárias,
que historicamente o cinema o se curvou às “tendências abstracionistas e
desestr uturadoras” (2006: 166). Como era ainda muito insipiente enquanto estes
movimentossedesenvolviamemoutr asartes,ocinemasedesenvol veesefirmaao
longo do século como arte representacional, herdeira do modelo narrativo do
romancedoséculoXIX, ou seja, comcomeço,meioefim.Assim, Britopreferefocar
aexperiênciadeummodelodecinemaquefoioacolhidopel ograndepúblico.
Com a criaçã o e o conseqüente desenvolvimento da linguagem
cinematográfica,ocinemacomeçouatrilharumcaminhoqueofezdesenvolverese
ofwritingtowhichweareaccustomed.Itisclosertolife.In lifetoo,changesandtransitionsflashbybeforeour
eyes,andemotionsofthesoularelikeahurricane.Thecinemahasdivinedt hemysteryofmotion.Andt hatis
greatness”.
17
firmar no cenário cultural. Apesar de já ter estabelecido um caminho próprio,
independentedaliteratura,ainda é possível perceberaimbricada relaçãocinema 
literatura, que permanece na constante recor rência a textos literários como
“inspiração” de roteiros cinematográficos, ou seja, na freqüente realização de
adaptaçõescinematográficas.
Aadaptaçãofílmicaosóéumrecursomuitofreqüente,comotamm,
e apesar de todas as críticas, é bastante apreciada. Segundo Giddings (apud
Cartmell, 1999), as adaptações possuem inegável visibilidade e prestígio, prova
dissoéqueaAcademiadeArteseCiênciasCinematográficas,entidadeamericana
composta por vár ios trabalhadores da indústria do cinema, com sede em Beverly
Hills( Califórnia),entregoutrêsquartosdeseusprêmiosdemelhorfilmepararoteiros
adaptadosdelivros.Tambéméimportanteressaltarsuaviabilidadecomer cial,pois
dos vinte filmes mais rentáveis da  história, quatorze são adaptações. Tamanho
sucessocomercialéumindicadordaaceitaçãodasadaptaçõespelograndepúblico.
Ainda que se possa sugerir que parte significativa do público não toma
conhecimentoseofilmeéou oaadaptaçãodeumaobraliterária,ésabido que,
quandosetratadeumcânone,osestúdiosnu ncadeixamdemencionararelação
entreasduasobras.
Naremore(2000),naintroduçãode
Filmadaptation
,expõeumasériede
considerações acerca dos estudos das adaptações cinematográficas. Ele diz, por
exemplo, que no âmbito dos estudos de cinema, a adaptação é uma das áreas
menosestudadas,sugerindo,emseguida,queistosedeveriaao fatodeosestudos
dasadaptaçõesestaremvincul adosaosdepartamentosdeliteratura.Aadaptação,
portanto, seria usada como “uma forma de ensinar a literatura célebre por outros
meios”
7
(2000:1);elanãopassariadeumrecursoamaisaserdisponibilizadopara
o estudo da literatura. Existiria, dessa forma, uma hierar quia entre literatura e
cinema,umahierarquiaquesemanifestariaatémesmopelosmeiosinstitucionais.
O referido autor afirma, ainda, que essa hierarquia é influenciada pel a
visãoqueamaioriada suniversidadesamericanastêmsobreliteraturaearte.Essa
visãoresultariadeumamisturaentreaestéticakantianaeasidéiassobresociedade
deMatthewArnold.Oprimeiroafirmavaquetanto“ofazer[...][quanto]aapreciação
da arte eram concebidos como ati vidades especializadas, autônomas e
7
“[...]awayofteachingcelebratedliteraturebyothermeans”.
18
transcendentes e que se relacionavam acima de tudo com a forma específ ica do
meio”
8
(2000: 2). O segundo argumentava que o trabalho artísti co é sinônimo de
cultura e que “a tradição cultural herdada pelo mundo judaicocristão, que
personi ficava o que de melhor já foi pensado e dito, pode ter uma influência
civilizadora,transcendendotensõessociaiseconduzindoparaumasociedademais
humanitária”
9
(2000: 2). O que po deríamos dizer acerca da  junção dessas visões
sobreaarte“autêntica”eseupapel,équeelaexisteparaosimplesdeleiteestético;
oucomodisseStephenDedalus,ofamosopersonagemde
PortraitoftheArtistasa
Young Man
(1914) de James Joyce, o efeito da arte é o “êxtase silencioso e
luminosodoprazerestético”
10
(apudNaremore,2000:3).Emfacedisso,Naremore
afirma que é comum acreditar ser a l iteratura “superior” ao cinema, porque ela é
verdadeiramentearte,enquantoocinemaassimnãopo deriaserconside rado,uma
vez que estaria sujeito às exigências da i ndústri a cultural de massa e, por
conseguinte, à obtenção de lucro. Obviamente, ele se refere aqui ao modelo de
cinemanarrati voquesevinculaàesmagadoramaioriadaproduçãocinematográfica.
Arespeitodesteassunto,Bluestonerevelaquearelaçãoentreromance
(ou qualquer outro gênero literário) e filme tem sido “ abertamente compatível [e]
secretamentehostil”
11
(apudWhelehan,1999:7).Elequestionaoargumentodeque
escritores produziriam um trabalho de arte, de alta qualidade, decorrentes de seu
esforço solitário e desprovido de qualquer preocupação de cunho material. Os
filmes, em contrapartida, seriamproduzidos por companhias, comaltos custos de
produção que devem ser resgatadosporuma folgadamar gem delucros,alémde
estarem à mercê da censura dos produtores. Ele ressalta que esta visão pode
prejudicaraanálisedefilmesdeumamaneirageral.Elediz:
Asuposiçãodequeaobraliteráriaémaiscomplexaqueofilmeéumanova
maneiradeprivilegiar‘arte’naficção,eladestróiapossibilidadedoestudo
rioarespeitodoregistroverbal,visualesonorodofilme,alémdesugerir
que o filme é incapaz do uso de metáforas ou de simbolismo
12
(apud
Whelehan,1999:6).
8
“[…] themaking and the appreciation ofart wer e conceived as specialized, autonomous, and transcendent
activitieshavingchieflytodowithmediaspecificform”.
9
“[…]theinheritedculturaltraditionoftheJudeoChristianworld,embodiedin“thebestthathasbeenthought
andsai d,”canhaveacivilizinginfluence,transcendingclasstensionsandleadingtoamorehumanesociety”.
10
“[...]luminoussilentstasisofaestheticpleasure […]”.
11
“[…]overtlycompatible,secretlyhostile”.
12
“The assumption that fiction is more ‘complex’ than film is another way of privileging ‘art’ in fiction and
undermines the possibility of serious study of the verbal, visual and audio registers of the film, as well as
suggesti ngthatfilmisincapableofmetaphororsymbolism”.
19
Etalconclusão,alémdepreconceituosa,éinverídica.
Para Whelehan (1999), a comparação entre obra literária e o filme
privilegia até de forma inconsciente a ficção original em detrimento do filme
resultante da adaptação. Cartmell (1999), por sua vez, levanta uma problemática
muito interessante a respeito desta suposta hierarquia entr e literatura e cinema.
Segundoaautora,ahierarquiaestápossivelmenter elacionadaaotipodeobraque
foiadaptada.Paraela,qu andosetratadeumcânone,mesmoque agrandemaioria
da audi ência não conheça o texto original, a tendência é da crítica negativa em
relação aofilme.Poroutrolado,quandoa obraadaptadafazpartedoque muitos
chamam de subliteratura, as críticas ao filme costumam ser menos contundentes.
Muitasvezessequersemencionaofatodeeletersidoumfilmedecorren tedeuma
obraliterári aadaptada.
A qu estão da hierarquia entre li teratura e cinema leva a uma outra
problemática freqüentemente discutida quanto se trata de adaptação
cinematográfica:afidelidadedofilmeemrelaçãoàobraliterária.Bazin(2000),em
seuartigo
Adaptation,or cinemaasdigest
(1948 ),criticaaopiniãoesta belecidana
época de que a adaptação cinematográfica o se justificava esteticamente. Ele
afirmava que o problema da adaptação está na necessidade de se encontrar 
equivalentesparaosconteúdosdevalorestéticoliterários.Elecitacomoe xemploo
usodopassadosimplesdaobra deGideecriticaanãoutilizaçãodeum equi valente
estéticoparaesterecursonofilmeadaptado.SegundoBazin,
[...]nenhumdetalhedanarrativapodeserconsideradosecundário,todasas
características sintáticas são, na verdade, expressões do conteúdo
psicológico,moralemetasicodotrabalho.Ousodopassadosimplespor
André Gi de é,de algumamaneira,inseparável doseventosde
Asinfonia
pastoral
13
[...](2000:1920).
Assim, não é que as adaptações o se justificassem esteticamente, o
problemaeraqueamaioriadasadaptaçõesnãoerafelizemrealizaratransposição
de elementos estéticos do texto para elementos estéticos equivalentes nas telas.
Para Bazin, era perfeitamente possível que um filme conseguisse transpor a
essênciaeasignificaçãoestética deuma obrali terária.Elediz:“nãoéimpossível
13
“ […] no detail of the narrative can be considered secondary, all syntatic characteri stics, then, are in fact
expressionsofthepsychological,moralormetaphysicalcontentofthework.AndréGide’ssimplepastsare,ina
way,inseparablefromtheeventsof
Thepastoralsymphony
[...]”.
20
para aalmaartísticasemanifestar atravésde  outra encarnação”
14
(2000:22).Ele
até mesmoafirmaserpossívelque o filme ultrapassasse o valor estético da obra
original.Elecitacomoexemploaadaptaçãod aobra
Adayinthecountry
,deGuyde
Maupassant,fei taporJeanRenoir.
Aindaquesuaopiniãonãocondene
apriori
aadaptaçãoaestaremum 
patamarinferioremrelaçãoàliteratura,eapesardedefenderaadaptação, umavez
que ela serviria como elemento para despertarogrande público para a leitura do
romance,nãohácomonãoperceberavisãoumtantoparcialemfavorda literatura,
pois Bazin fal ava em equivalência, fideli dade, essência, o que necessariamente
implica na visão da literatura como modelo a ser atingido. Da mesma forma, o
argumentodevernaliteraturaumaformadeconquistarnovosleitorestrazembutida
a máxima de Matthew Arnold de que o “acesso à literatura é moralmente
edificante”
15
(apudCartmell,1999:25)e,conseqüentemente,aconclusãodequeter
acesso àliteratura diluída (leiase aqui adaptações lmicas) é melhor que não ter
nenhumacessoàliteratura.
Esteúltimoargumentotambémdesconsideraocaminhoinverso,istoé,a
influênciadosfilmesquesãoadaptadosparalivros,oquenãoétãocomum, mas
pode ocorrer, e o crescente número de publicações de roteiros de filmes. Para
Cartmell (1999), é necessário “abrir os estudos de adaptação e estender às
adaptações tela–texto, como tamm às adaptações variadas em que a
multiplicidadedefontes[originais]nãoéalgoaserlamentado,mascomemorad o
16
(1999:28).
A fidelidade foi um concei to que perdurou até bem pouco tempo nos
estudosdasadaptaçõescinematográficas.SegundoStam(2000),acrítica,aolidar
comaadaptação,nãorarousou,ouaindausa,termoscomo“infidelidade,traição,
defor mação,violação,vulgarizaçãoeprofanação”
17
(2000:54).Porém,ano çãode
fidelidade para el e não passa de uma quimera. U m de seus primeiros
questionamentosé:fidelidadeaque?Seráqueexistedefato,naobraliterária,uma
essência,um núcleo?Stamafirmaquecostumamosdizer que um filmeé infielao
original,quandosentimosqueelenãocapturouoqueconsideramosfundamentalna
14
“[...]itisnotimpossiblefortheartisticsoultomanifestitselfthroughanotherincarnation[…]”.
15
“[...]accesstoliteratureismorallyedifying[…]”.
16
“[...]toopenupthestudyofadaptationto extendtoscreentotextadaptations,aswellasmultipleadaptations
whereamultiplicityofsourcesisnotbemoanedbutcelebrated”.
17
“[...]infidelity,betrayal,deformation,violation,vulgarization,anddesecration,[...]”.
21
obra, seja no âmbito da na rrativa, das características estéticas ou da temática
desenvolvida. Contudo, cabenos questionar, será que o que consideramos
essencialemumaobraéessencialparatod ososleitores?Seráquesomenteexiste
umaleiturapossível?Algunspoderiamargumentarqueaobraadaptadadeveriaser
“fiel” às intenções doautor, mas esse conceito é muito vago para ser inferido de
manei ra a ser generalizado. Quanto a isso, Peter Shaffer (1984) afirma na
introdução da peça
Amadeus
: “qualquer trabalho artístico – não importa o quão
finalizado ele pareça estar – possui uma vida própria,independente; ele muda de
acordo com o ânimo e as circunstâncias do leitor, espectador ou ouvinte” (1984,
xi)
18
.
Stam (2000) ainda comenta que a noção de fidelidade também é
problemática quando falamos em relação à adaptação fílmica porque estamos
falandodemeiosdiferentes.Parailustraressaproblemática,eleutilizaumtrechodo
livro
Vinhas da ira
de Steinbeck. No referido trecho, descrevemse os momentos
anterioresàpartidadapersonagemMaJoadparaaCalifórnia.Apersonagemabre
umacai xa,olhaalgu mascartas,fotografias,umjornaleumpardebrincosquehavia
dentr o dela. Stam ressalta que, na adaptação lmica desse pequeno trecho, o
diretor vai se de parar com uma série de questõe s: como será a aparência das
cartas? Quem estará nas fotografias? Qual será a manchete do  jornal? Deverá
existirumfundo musical?Aoencontrarrespostasetomarsuasdecisões,odiretor
inevitavelmenteestarácri andoumaobraquesedi feren ciarádoromance.Maisuma
vez, o conceito de fidelidade colide com a natureza da ati vidade de adaptação
cinematográfica.Nemarecusadodiretoremusarintensamenteosrecursostípicos
do cinema, como efeitos sonoros, de imagens (foco, planos, luz) e narrativos
(roteiro, montagem etc), garante a total “fideli dade” em relação à obra literária. A
fidelidadeemrelãoaotexto,portanto,éimprovável.
Apesardetantosargumentoscontrários,aidéiadefidelidade,queimplica
navisãodotextoliteráriocomootextocujaessênciadeveseralcançadapelofilme,
é tão arraigada, que mesmo autores que se colocam contra ela sugerem uma
divisão das adaptações por categorias. E estas cate gorias se definem a partir do
critériodeaproximaçãoounãodotextooriginal.Wagner(apudCartmell,1999),por
exemplo, indica três categorias: transposição, comentário e analogia. Na
18
“[...] any work of art – nomatter how ‘finished’ it may seem  to be – has an independent life of its own; it
changesaccordingtotheframeofmindandthecircumstancesofthereader,watcherorlistener”.
22
transposição,otextoliterárioseriatransferidodamaneiramaisprecisapossível.No
comentário,ocorremalteraçõesemrelaçãoaotextooriginalenaanalogiaooriginal
é usado apenas como ponto de partida. De maneira semelhante, Dudley Andrew
(apud Cartmell, 1999) também classifica as adaptações em transformação,
intercessãoeempréstimo”
19
(1999:24).Na primeira,otextooriginaléreproduzido
essencialmente,nasegunda ,aadaptaçãotentarecriarooriginalenaúltimanãose
preocupaematingirfidelidade.Écuriosonotar,nocasodaclassificaçãodeDudley
Andrew,anomen claturautilizada.Acreditamosserumtantocontraditórioclassificar
detransformaçãoatentativadeadaptar“fielmente”umtexto.
No intuito de por fim a qualquer argumento que professe em favor da
fidelidade, Stam ( 2000) defende a noção de adaptação como um diálogo entre
textos. Segundo ele, esta intertextualidade pode ocorrer de maneira voluntária ou
inconsciente,poisqualquertextoé,de algumaforma,geradoporoutrostextos.Ele
explica,então,oscon ceitos de Gérard Genetteemrelaçãoàadaptaçãofílmica.Das
categoriasapresentadasporGenette,Stam fixasenadehipertextualidade,ouseja,
na relação de um texto (hipertexto) com um texto anterior (hipotexto) que é
transformado, elaborado ou ampliado. Assim sendo, adaptações lmicas [...] são
hipertextos derivados de hipotextos préexistentes que fo ram transformados por
operaçõesdesel eção,ampliação,concretizaçãoeatualização”
20
(2000,66).Estas
transformaçõessãoinfluenciadasporoutrosdiscursoseideologiasdaépoca,sendo
aindamediadasporumasériedeoutrosaspectoscomo:estilo,restriçõespolíticas,
predileçõesautorais,vantagenseconômicasetc.
Por fim, Stam (2000) comenta que a palavra mais adequada para
denominar o exercício daadaptação e suastransformações é a palavra tradução.
Segundo ele, a noçãodetraduçãoimpli ca necessari amente em perda s e ganhos.
Apesardeconcordarmoscomasugestãodoau tor,devemoslembrarqueesta visão
da tradução não foi,ouo é,uma visão que carecede opositores. Ao contrário,
comoveremosadian te,aidéiadetraduçãofoi,d uranteamaiorpartedesuahistória,
vinculada à idéia de igualdade. É sobre a compreensão da adaptação
cinematográficacomoati vidadedetraduçãoquetrataremosaseguir.
19
“[…]transformation,intersectionandborrowing”.
20
“Filmic adaptations, in this sense, are hypertexts derived from preexisting hypotexts that have been
transformedbyoperationsofselection,amplification,concretizationandactualization”.
23
1.2ADAPTAÇÃOC INEMATOGRÁFICACOMOTRADUÇÃOINTERSE MIÓTICA
Nossaanálisetrabalharácomaadaptaçãofílmicasobopontodevistada
tradução, da tradução intersemiótica mais especificamente. Desejamos, com isso,
nos afastar da idéia de fidelidade tão comumente relacionada ao universo das
adaptações.Contudo,o quepudemos perceber éque oconceitode fidelidadede
umaobratraduzidaemrelaçãoàobraoriginaltammsubjazaoconceitogeralde
tradução.Defato,umadasquestõesbastanter ecorrentesnaliteratur adetradução
é a questão das oposições que contrapõem certos tipos de tradução, ou seja, "a
tradução 'fiel' em oposição à tr adução ‘criativa', a 'literal’ em relação à 'livre',
'equival ênciaformal'emoposi çãoà'equivalênciadinâmica'"(Rodrigues,2000:15).
Aquestãoda“fidelidade”deumatraduçãoestariarelacionadacomalinhaqueuma
traduçãode ve seguir, se deve se aproximar ou não do textofonte. Essa questão,
além deestarligada ano çãode  traduçãoemgeral,tammse refere àtradução
intersemiótica.
Os conceitos referentes à tr adução, entre el es o de fidelidade e
equivalência (aqui tratados como sinônimos), estão ligados à idéia que as mais
diversas correntes desse âmbito de estudo fazem em relação à própria tradução.
Para compreendermos melhor a problemática dessa crítica feita às traduções de
obras literárias em filmes ( adaptações fílmicas), faremos um breve apanhado das
teorias detraduçãoeda compreensão doconceitodefidelidadenoâmbitodestas
teorias aolongodostempos.
Inicialmente, as reflexões sobre tradução se originaram da prática de
traduzir. Desde Cícero e Horácio, no século I a.C., questões sobre tradução são
abordadas.Aquestãoentreformaeconteúdo,ouseja,sea traduçãodevebuscara
simil aridad e ou equivalência com o original a partir da li teralidade da forma ou a
partir das idéias, sempre esteve presente nas discussões. Cícero (apud Milton,
1998),tradutordelivrosdePlatãoparaolatim,jádeclarava:
Oquehomenscomovós...chamamdefidelidadeemtraduçãooseruditos
chamamdeminuciosidadepestilenta... éduropreservaremumatraduçãoo
encanto de expressões felizes em outra língua... Se traduzo palavra por
palavra,oresultadosoaráinculto,ese,forçadopornecessidade,alteroalgo
na ordem ou nas palavras, parecerá que eu me distanciei da função do
tradutor(1998:5).
24
Contudo,deacordocomMilton(1998),aprimeiraexperiêncianabusca
de uma teoria sobre a tarefa de  traduzir ocorreu no fim do século XVII e XVIII,
período conhecido como
Augustan
. Estas tentativas foram realizadas por vários
escritores ingleses, entre eles Alexander Pope, tradutor da
Ilíada
, e John Dryden,
tradutorda
Eneida
.
Milton (1998) explica que, no referido período, a tradução de uma obra
faziapartedapróprialiteraturainglesa,eistooco rriaporqueeracomumatradução
de obras sem qualquer referência às fontes. Várias histórias e peças francesas e
latinasforamtraduzidasporescritoresinglesesesei ntegraramàliteraturadopaís,
comoseostradutorestivessemcriadoashistórias.
De todos os trad utores deste período, que de maneira geral eram
escritores,aqueledemaiorvultofoiJohnDryden.Foinosprefáciosdoslivrosque
traduziuqueDrydendeixousuasidéiassobretradução,eestasiriaminfluenciartoda
a teoria de tradução nos séculos seguintes. No prefácio das
Epístolas de Ovídio
(1680), Dryden classifica as traduções em três tipos: metáfrase, paráfrase e
imitação.Ametáfraseseriaa“traduçãodeumautorpalavraporpalavra,elinhapor
linha,deumalínguaparaoutra”(apudMilton,1998:26).ParaDryden,ametáfrase
somente produziria traduções ruins, pois literali dade e qualidade de texto seriam
incompatíveis.Aparáfraseseriaatraduçãoemqueoautorémantidoaoalcance
dosnossosolhos...porémsuaspalavrasosãoseguidastãoestritamentequanto
seusentido,quetambémpodeserampliado,masnãoalterado”(apudMilton,1998:
26). A imitação  seri a a tradução em que “o tradutor assume a liberdade, não
somente de variar as palavras e o sentido, mas de abandonálos quando achar
oportuno,retirandosomenteaidéiageraldooriginal,atuandodemaneiralivreaseu
belprazer ” (apud  Milton, 1998: 26). Na análise de algumas traduções, como as
OdesdePíndaro
,feitaporAbrahamCowley,Drydenelogiaaescolhadatradução
por imitação, considerando, neste caso, a melhor escolha para realizar uma
tradução.
Em geral, Dryden (apud Milton, 1998) acredita no meio termo, pois
sustenta que o tradutor deve conhecer bem o escritor , com quem deve tentar
associarse ao reproduzir o mesmo estilo, sem, contudo, estar necessariamente
ligadoàr eproduçãoliteral.Eleacreditaqueotradutordepoesia,porexemplo,o
devereprod uzirliteralmenteaspalavraseamétricaoriginal.Maseleadvertequeo
tradutorjamaispoderámodificarosigni ficadodadopeloautor.
25
Comopassardotempo,entreta nto,Drydenadmitenãoterseguidoseus
própriosconselhos.Noprefáciode
Sylvae
,elediz:“[...]nãosófizacréscimos,como
tammomitieatémesmofizalgumasvezes,muitoaudaciosamente,elucidações
demeusautoresquenenhumcomentaristaholandêsperdoaria”(apudMilton,1998:
28).Elepassaapensaratraduçãoemumaperspectiva diferentedasclassificações
quehaviapropostoesepreocupamaisemcativaroleitor.
É relevante lembrar que vários outros tradutores do período
Augustan
foramimportantes,comoAbrahem Cowley,AlexanderTytler(LordeWoodhouslee)e
Alexander Pope, entre outros. Nossa preferência por explanar somente o
pensamentodeDryden,sedeveaofatodeeletersidoumdostradutoresdemaior
visibilidade.
Para finalizar, do período
Augustan
podemos dizer que os tradutores
acreditavam que uma tradução literal não levava ao “núcleo do original” (Milton,
1998:40). Contudo, eles não acreditavam que o texto original devesse ser visto
como intocado. Dessa forma, ap esar de prezarem versõe s livres, voltadas para o
gosto do blico, não admitiam a total liberdade do tradutor. Os tradutores do
período
Augustan
compreendemquecadaautorexigeumaestratégiadetradução,
pois“oqueébomquandosetraduzumautornemsempreébomquandosetraduz
outro” (Milton, 1998:41). Eles acreditavam que deveria existir entre o autor e o
tradutor uma r elação de afinidade para que se fosse possível produzir uma boa
tradução.
Porsuavez,naFrança,entreosséculosXVIIeXVIII,ostradutoresviam
o conceito de fidelidade muito diferentemente da man eira que o encaramos
atualmente. Os tradutores franceses acreditavam que, par a produzir uma boa
tradução,eranecessáriofazeralteraçõeseacréscimosnotexto.Nadiscussãodeste
tópico, Milton (1998) apresenta o trabalho do tradutor Nicolas d’Ablancour que
ajudoumuitonadefiniçãodoconceitodetraduçãoqueviriaaserconhecidocomo
bellesinfidèles
.Paraostradutoresdessemodelo,obeloadvinhadaclareza,assim,
paraseproduzi rumabelatradução,otradutordeveriasuprimirqualquerobstáculoà
compree nsão.
Ao contrário de parte dos poetastradutores
Augustan
, os tradutores
francesesnãoviamalínguafrancesacomoinferior,mascomotãovalorosaquanto
asl ínguasclássicas.Muitasdasmodificaçõesfeitasaotextoocorriamparaeliminar
as referências consideradas o apropriadas dos cl ássicos originais. Como
26
exemplifica Milton (1998), “a embriaguez e as práticas homossexuais dos
macedônios,oestuprodeBritânicoporNeroeoadultériodeAgripinaePalassão
todoseu femizados”(1998:58).Alémdestes,umoutroexemplodemodificaçãodiz
respeito à transformação dos costumes gregos e romanos na adequação aos
costumes da alta soci edade francesa, sem fal ar na absoluta correspondência das
atitudes dos per sonagens e sua classe social. Caso esta correspondência o
estivesseexpressadamaneiraqueesperavaasociedadefrancesa,otradutorteria
por obrigação fazer as devidas modificações. Não havi a, pois, “separação entre
forma e conteúdo. A expressão, que tinha de ser clara e elegante, era parte da
significaçãode umaobra”(Milton,1998:59).Ostradutoresfrancesesdemonstravam
orgulho das modificações feitas e costumavam desaprovar abertamente as
traduções literais, ou seja, feitas palavra por palavra que, segundo d’Ablancourt
“seguealetrae[...]suprimeoespírito”(apudMilton,1998:60).Asboastraduções
eram aquelas que proporcionavam ao leitor “a impressão semelhante à que a
originalteriasuscitado” (1998,57),assimo“espírito”daobraseriamantido.
Na Alemanha, de acordo com Milton (1998), a tr adução desempe nhou
papel bastante relevante. Um exemplo disto foi a tradução da Bíblia de Martinho
Luter o (14831546) que cri ou uma padroni zação dos dialetos da língua alemã. As
traduçõestambémforamesse nciaisparaaformaçãodaliteraturadopaís,umavez
que não somente obras clássicas, mas tamm de várias outras nacionalidades
foramtraduzidasparaoalemão.Atraduçãose riaaponteatrazerparaosindivíduos
o conhecimento do mundo, logo, el a era importante, pois proporcionava o
crescimento individual. Os tradutores alemães iam de encontro às iias dos
tradutores franceses que, em nome da clareza, procuravam fazer qualquer texto
clássicosoarfrancês.Paraosalemães,astraduçõesfrancesasnãopermitiamqueo
públicoleitorsebeneficiasseverdadeiramentedasobrasclássicas.
Goethe(17491832)(apudMilton,1998)classificouastraduçõesemtrês
tipos e as relacionou com o processo evolutivo das nações. Em um primeiro
momento, atr adução seria simpleseteriaointuitodefamiliarizaro público coma
obra. Em umsegundo momento, o tradutor produziria uma obra baseada naobra
original.Finalmente,a maisvaliosaformadetr adução,ouseja,aquelaemquese
faz“umaversãointerlinear,buscandodeixarooriginalidênticoàtradução,masao
mesmotempoconservandolheaestranhezaaparente”(Milton,1998:65).
27
Outro autor alemão que escreveu sobre tradução foi Schleiermacher
(1768   1834) (apud Milton, 1998). No ensaio
Sobre as maneiras diferentes de
traduzir
ele afirma haver dois tipos de tradução. No primeiro tipo,o tradutor deve
fazer comque o textotraduzido pareça fluentena língua alvo. Na outra forma de
tradução,otradutorprivilegiaasformasdotextooriginal.Paraele,“ouotradutorfaz
doautorlatinoumalemãoparaoblicoalemão,ouelelevaoslei toresalemãesao 
mundodopoetalatino”(apudMilton,1998:67).Schleiermachercompletaafirmando
que,apesardosegundotipodetraduçãoexigirmuitomaisdoleitor,elairáproduzir
melho r efeito, poi s permitirá que ele chegue mais próximo do texto original e,
portanto, te nha melhor acesso ao conhecimento e a beleza nele contido. Dessa
forma, Schleiermacher se mostra mais favorável a uma tradução “que tenta
reproduzira formadooriginal”(Milton,1998:6869).
Do início do século XX, podemos examinar a influência de vários
tradutores e te óricos nas considerações acerca da tradução. Uma das mais
importantesinfluênciasfoiadoescritoramericanoErzaPound.DasidéiasdePound
(apud Milton, 1998), podemos destacar: a importância do tradutor, que deve
“domina[r]atradução,colocandoseupróprioserdentrodela”(Milton,1998:118),a
relevânciadatraduçãonaanálisedodesenvolvimentodaliteratura,dapoesiaedas
línguas, e a idéia de tradução como renovação, processo criativo. Milton (1998)
alegaqueas traduçõesde Pound, se levássemosem consi deração as categorias
criadasporDryden,corresponderiam,emsuamaioria,aimitações.
No século passado, oensaio
A tarefa do tradutor
(1921),deautoriade
Walter Benjamin, causou grande impacto nos estudos de tradução. Dentre suas
várias idéias, Benjamin (2001) defendeu que a tradução não devia considerar o
recept or.Paraele, ne nhumaobradeartefoielaboradacomvistaàrecepçãodeum
público específico, elas apenas pressupunham a existência e a natureza do ser
humano.Aisto,acrescentaquecomunicarnãoéfunçãoessencialdaobradearte.
Logo, a tradução não deve comunicar nada, pois, se assim o fizer, será uma má
tradução.Eleargumenta:“masseela[tradução]fossedestinadaaoleitor,tambémo
originalodeveriaser. Seooriginalnãoexisteem funçãodoleitor,comopoderíamos
compree nderatraduçãoapartirdeumarelaçãodessaespécie?”(2001:191).
Benjami n afirma, ainda, que a tradução é uma forma cuja lei reside no
original.Eletrata,então,dequestõesdetraduzibilidadee,parael e,atraduzibilidade
éalgoinerenteacertasobras.Emsuaspalavras:“atraduzibilidadeé,emessência,
28
ineren teacertas obras.Issonãoquerdizerque suatraduçãosejaessencialpara
elasmesmas,masqueumdeterminadosignificadoi nerenteaosoriginaisseexprime
nasuatraduzibilidade”(2001:193).
Aoanalisararelaçãoentreotextooriginaleatradução,Benjaminelabora
metáforas queatéhojesãorecorren temente usadasemtrabalhossobretradução.
Naprimeiradelas,oautoravaliaadiferençaentreo originaleatraduçãoemtermos
da relação entreconteúdoelíngua. Diz, então, que no original  conteúdoelíngua
formam“umacertaunidade,comoacasca como fruto”(20 01:201), enquantona
traduçãoalínguarecobreseuconteúdoemamplaspregas,comoummantoreal ”
(2001:201).Comi sto, elesugerequeatradução“significaumalínguamaiselevada
doqueelaprópriaé,permanecendocomissoinadequadaaseupróprioconteúdo–
grandi osa eestranha”(2001:201).Asegundametáforaéaquelaqueserelacionaà
questão da fidelidade na tradução. Benjamin compara a tradução a um vaso
quebradoquemesmoquetenhaoscacosrecompostosjamaispoder áseigualara
ele. Eleafirmaque“atraduçãodeve,aoinvésdeprocurarassemelharseaosentido
dooriginal,irreconfigurando,emsuapróprialíngua,amorosamente,chegandoaté
aosmínimosdetalhes,omododedesignardooriginal”(2001:207).
Milton (1998) observa que as idéias de Benjamin confirmam em parte
muitas das idéias de Goethe e Schleiermacher. Tal  como os últimos sugerem,
Benjami nacreditaquea“verdadeiratraduçãotraduzaformadaobrafonteequea
importânciadaobrapoéticaestámaisnaformadoquenoconteúdo”(apudMilton,
1998:160).TammcomoSchleiermacher,Benjami nnãoacreditanatraduçãoque
prete ndeserfluentenalínguaalvo.Sobreisto,elecitaRudolfPannwitzem
Criseda
culturaeuropéia
:
Nossastraduções(mesmoasmelhores)partemdeumfalsoprincípio,elas
queremgermanizarosânscrito,ogrego,oinglês,aoinvésdesanscritizar,
grecizar,anglicizaroalemão.Elaspossuemum respeitomuitomaiordiante
dos próprios usos lingüísticos do que diante do espírito da obra
estrangeira... O errofundamental de quem traduz é apegarse ao estado
fortuitodapróprialíngua, aoinvésdedeixarseabalarviolentamentepela
línguaestrangeira.Sobretudoquandotraduzdeumalínguamuitodistante,
eledeveremontaraoselementosúltimosdapróprialíngua,ondepalavra,
imagemesomsetornamumsó;eletemdeampliareaprofundarsualí ngua
pormeiodoelementoestrangeiro[...](apudBenjami n,2001:211).
Assim,tantoSchleiermacherquan toBenjaminpercebemtraduçãocomoumaforma
da aumentar as possibilidades de de senvolvimento de uma língua, no caso, da
línguaalemã.
29
Aresp eitoda tradução,eespecialmentedaobradeBenjamin,Lages
(2002)fazumaanáliseinteressantesobrealigaçã oentreatradução eamelancolia.
Para a autora, a melancolia corresponde a um ciclo psíquico em que um dado
indivíduoalternaestadosdetristezaeeuforia.Segundoela,essecicloécomparável
à compreensão que a tradição filosófi coliterária atribuiu ao longo da história à
tradução.
“Ahistóriadatraduçãoedaimagemdotradutorqueescritores,filósofose
osprópriostradutoreseteóricosdatraduçãoforjaramaolongodosséculos
pode ser descrita como uma história de rebaixamentos, autoreproches
enfim,deumaconstantedesvalori zaçãodapessoa,doego,dotradutor,por
um lado; por outro, há uma exigência – evidentemente exagerada – de
capacidades sobrehumanas a serem dominadas pelo tradutor em termos
de abrangência de seus conhecimentos culturais e lingüísticos.
Simultaneamente,nãoapenassãoexigidastaiscaracterísticasdotradutor,
mas elas constituem aquilo que marca a diferença entre o trabalho do
tradutoreodeoutrosintelectuais”(Lages,2002:65).
Apartirdasegundametadedoséculo passado,comasreflexõesteóricas
sobre a tradução já mais firmadas, comam a surgir trabalhos que procuram
teorizar sobre a tradução a partir da lingüística. Segundo Rodrigues (2000), os
vários trabalhos que enfocam a tradão sob o prisma da lingüística, apesar de
algumasdiferenças,têmemcomumofatodeperceberemanoçãodeequivalência
como um ponto central na teoria da tradução. Os conceitos de equivalência nas
teorias de cunho lingüístico estão ligados, sobretudo, a uma idéia de igualdade.
Essa visão foi talvez influenciada pelo sentido matemático do termo, pois
“equivalente”,emmatemática,significaseromesmoemr elação”àalgumacoisa.
Ou pode ter sido até mesmo influenciado pelo sentido etimológico. Das várias
verten tes ligadas à lingüística, Rodrigues (20 00) apresenta três: a lingüística
contrasti va, a teoria lingüística de tradução de John Catfo rd e a equivalência
dinâmicadeEugeneNida.
Osteóricosdalingüísticacontrastiva,en treelesHalliday(apudRodrigues,
2000), acreditam ser a tradução “a relação entre dois ou mais textos que
desempenha midênticopapelemidêntica situação”(2000:29). MasHallidayfaz a
ressalvadequeaspalavras“papel”e“situação”nãosãoabsolutos.Assimsendo,a
comparaçãodaslínguasseriapossível apartirdeumaequivalênciacontextual,ou
seja, uma eq uivalência no uso real da língua. É a partir dessa equivalência
contextual que duas formas em dois idiomas diferentes podem ser compar adas.
30
Halliday apresenta como exe mplo do  que seriam expressões contextualmente
equivalentes:aexpressãofrancesa
j’aisoif
(tenhosede)eaexpressãoinglesa
I’m
thirsty
(estousedento).
Pareceincongruentequeanoçãodeequivalêncianessa visão, apesarde
àprimeira vistasup orasemelhançaentretextos,confirmeadificuldadede definir
seuslimites, umavezqueadmite que“assituações variam nas diversas culturas”
(2000:29). Dessa maneira, Rodrigues lembr a que a tal equi valência contextual
exemplificada não é situacional, mas uma equivalência idealizada. Em suas
palavras:“o ‘equivalentecontextual’ [...] nãopassaria deuma construção emuma
língua que pode, em certas circunstâncias, substituir outra construçã o em outra
língua”(2000:30).
Váriosoutrosteóricosdalingüísticacontrastivaseativeramàquestãoda
equivalência,porémnenhumconseguiudefinirotermodemaneiraprecisa.Assimse
posicionaRodrigu es:
Cada autor supostamente define de modo objetivo a equivalência, mas
acabaporterdefragmentaroconceitoemumasériedecategorias,desde
‘congruência’ até ‘equivalência de t radução’, passando por ‘equivalência
formal’,‘equivalênciasemântica’,‘equivalênciapragmática’etc(2000:36).
Outro estudo da tradução vinculada à lingüística seri a o proposto por
Catford (apudRodrigues, 2000),“quebuscaanalisaredescreverosprocessosda
tradução no quadro de uma teoria lingüística geral” (2000: 37), tentando en tender
nãoosproblemasespecíficosdatradução,masoqueelaéverdadeiramente.Para
ele,o processo de  tradução é unidirecional(línguafonte– líng uameta) e envolve
necessari amente o conceito de equivalência. No entanto, o autor não de fine o
conceito, limi tandose apenas a explicar as espécies do gênero equivalência:
“equivalênciatextual”,“equivalênciadetradução”etc.
Apesar do autor ter afirmado que seu objetivo não seria “explicar
problemasdetradução”, concluise que o autor fiouse nalingüísti ca apenas para
encontrar “probabilidades de equival ência”, tentando sistematizar a tradução por
meio de certas regras, de maneira prescritiva. Para tanto, cria o que chamou de
algoritmosdatradução,ouseja,instrõesoperacionaisquepossuemumagrande
probabili dadedepr oduzirumatraduçã o“correta”(apudRodrigues,2000).
Aindacomrelaçãoàsteoriaslingüísticas,podemosmencionarotrabalho
deNida.Oautorpretendeu “usar alingüísticacomouminstrumentalparaanálisee
31
soluçãodeproblemasdetradução”.Rodrigues(2000)comentaqueNidanãoexplica
nasobrasqueelaanalisouoconceitodeequivalência,masdesdobrao termoem
dois conceitos: equi valência dinâmica (ligada ao significado) e equivalência formal
(ligadaàestruturaformal).Contudo,noglossáriodaobra
Thetheoryandpracticeof
translation
o termo equivalência é definido como “uma similaridade muito próxima
emsignificado,opostaàsimilaridadeemforma”(Rodrigues,2000:65).Assim,par a
olingüistanorteamericano,oconteúdodaobraébemmaisimportantequeaforma.
Ele afirma que “a tradução consiste em reproduzir na língua receptora o mais
próximoequivalentenaturalda mensagemdalínguafonte,primeiro emtermos da
significaçãoesegundoemtermosdeestilo”(apudMilton,1998:169).
Rodrigues (2000) conclui, de  forma clara, que a noção de eq uivalência
nasteoriaslingüísticasapresentaasseguintescaracterísticas:
[...] nas teorias propostas a equivalência é um conjunto de requisitos
básicos que não tem fundamento nos textos ou nas culturas envolvidas,
masemexigênciasabstratas,determinadaspelomodeloemquesebaseia
aproposta.Arelaçãodesignificaçãopostuladaéestáticaeahistórica,pois
atentativadeformulaçãodemétodosparaatingiraexatasignificaçãodos
textos por meio da análise lingüísti ca pretende ser válida universalmente.
Issovinculaaconcepçãodeequiv alênciaaum anoçãodetraduçã ocomo
transporteou substituiçãodesignificadospretensamenteneutros,quenão
sofreriaminfluênciadomeioparaquesedirigem(2000:100).
O que podemos constatar do que explanamos até agora acerca das
questõessobretraduçãoéque,comoMilton(1998)afirma,asdiscussõesteóricas
sobre tradução quase nunca se afastam dos argumentos tradicionais que
contrapõemformaeconteúdo,aomesmotempoem quevinculamestesconceitosà
noçãodefidelidade.
Se observarmos atentamente, perceberemos que dos vários períodos e
teóricos mencionados, sempre perceberemos a oposição entre a tradução literal
versus
a tradução livre, já enfocada nos primeiros trad utores, como Cícero. Esta
questãopermanecenasdiscussõesdospoetasdoper íodo
Aug ustan
,quetemem
Drydenseumaisnotóriotradutor.Dryden(apudMilton,1998)classificaas traduções
emmetáfrase,paráfraseeimitação,eestaclassificaçãoimplicanaaproximaçãoou
nãodasobrastraduzidasemrelaçãoaooriginal,ocasiãoemquepodemosperceber
mais uma vez o confronto forma e conteúdo perpassando pela questão da
fidelidade. Os tradutores franceses do século XVII e XVIII tamm estiveram
envolvidoscomaquestãodafidelidade,nocasodelesaopçãoerapel aclareza(de
32
conteúdo), ainda que rias modificações (da forma) tivessem de ser feitas. Os
alemães, entreeles,Goethe,Schleiermacher e, maistarde , Benjamin acreditavam
na adaptação da obra à forma da língua estrangeira. Pound, no século passado,
apoiava a tradução que implicasse em ren ovação. Os teóricos das correntes
vinculadas à lingüística procuravam a equivalência. Várias são as épocas e as
verten tes,mas,asquestõescentraispermanecemasmesmas.
Sevoltarmosaoiníciodocapítulo,nãoserádifícilperceberque,apesar,
dasdenominaçõesdiversas,asquestõesfundamentaisqueenvolvemasdiscussões
acerca daadaptaçãocinematográfica,istoé,asquestõesdehierarquiaentreobra
literáriaefilmeeanoçãodefidelidadeentreaobraoriginaleaadaptada,emmuito
seassemelhamàstemáticasdosestudosdetradução.Nãoseriamosconceitosde
transformação,inter seçãoeempréstimodeDudleyAndrew,ou aindaaclassificação
das adaptações fílmicas de Wagner em tr ansposição, comentário e analogia
bastantesimilaresàclassificação dastraduçõesemmetáfrase,paráfraseeimitação
deDryden?AcreditamostambémqueomesmoargumentousadoporBazin,quando
diziaqueerapossívelqueumfilmeconseguissetransporaessênciaeasignificação
estética de umaobra literária,éanálogoao posicionamento do tradutor que acha
possível ser fiel ao conteúdo de um texto, de uma história, mesmo que para isto
tenha que fazer modificaçõesna forma,como os tradutores francesesadepto s da
tradução
bellesinfidèles
.
Em face do  exposto, julgamos ser perfeitamente compreensível que o
processodeadaptaçãofílmicasejaencaradocomoumatradução,talcomosugeriu
Stam, pois, como demonstramos, a tr adução e a adaptação lidam com
questionamentoscomuns.
Mencion amosanteriormentequeStam(2000)sugerequeatraduçãoéa
melho r palavra para definir o processo de adaptação fílmica, pois tradução exige
transformação.Aaceitaçãodestasugestão podeparecerincongrue nte,umavezque
aoexplicitarmosasquestões sobretraduçãoafirmamosqueumadasquestõesmais
presentes é a questão da fidelidade; no entanto, como veremos mais adiante, as
últimasvertentesqueteorizamsobreatraduçãopassamaquestionarasnoçõesde
fidelidadeeequivalência.Istoocorreprincipalmenteapartirdosanos70doséculo
passado.
Nos anos 70, um grupo de  estudiosos da área de tradução, conhecido
como o grupo de Telavive, expõe um estudo acerca da tradução liter ária. Este
33
estudo possui como núcleo  idéias advindas do formalismo russo. A teoria dos
polissistemas, desenvolvida por Itamar EvenZohar, postula que "o s fenômenos
semióticos não são conglomerados de elementos" (apud Vieira, 1996: 124), eles
formam um sistema múltiplo, composto poruma série de elementos heterogêneos
aomesmotempodependenteseindependentes.Dessaforma,aliteraturatambém
seria um sistema, ou melhor, um po lissistema, vez que deveria ser  considerada
"uma estrutura aberta composta de várias redes simultâneas de relações" (1996:
125).Umadessaspossíveisredesderelaçãoseriaaestabelecidaentrealiteratura
originaleatraduzida.
Convém lembrar que, ao se perceber a literatura como um sistema
dinâmico,passamosaentenderqueosváriostiposdeobrasedegênerosliterários
podemtersua valorizaçãomodificad aaolongodotempo.Eestamodificaçãopode
tamm incluir a mudança da valorização de uma tr adução, ou um estilo de
tradução.Atraduçãopassa,ainda,aserexaminadanãosoboprismadacor reção
ouperfeiçãoemrelaçãoaooriginal,masapartirdoseulugarqueocupanosistema
alvo.ComoafirmaHermans(apudVieira,1996),
[...] essa visão da literatura representou uma quebra de paradigma nos
estudos de tradução literária, pois permitiu perceber uma articulação
contínua entre modelos teóricos e estudo s de casos práticos; uma
abordagemdastraduçõesliteráriasquesejadescritiva,voltadaparaolo
receptor,funcional esistêmica:[...]epelolugarepapeldastraduçõestanto
no interior de uma literatura, quanto na interação entre literaturas (1996:
128).
Uma vez sendo um sistema, haveria na literatura uma constante luta
“paradominaçãoentreforçasconservadoraseinovadoras,entreobrascanonizadas
eocanonizadas,entremodelosnocentrodosistemae modelos naperiferia,e
entre as várias tendências e gêneros” (Milton, 1998: 184). Os vários modelos se
revezariam nos patamares mais altos e, quando os modelos permanecessem por
muitotemponosmesmosníveis,istosignificariaqueaquelesistemaliterárioestaria
estagnado. A respeito desta hierarquia, EvenZohar (apud Milton, 1998) sugere a
análise da literatura traduzida no sistema literário alvo. Para ele, “quando uma
traduçãoparticipaativamenteemmodelar ocentrodopolissistema”(1998:185),isto
significaria que ela é inovadora, ou seja, responsável pela introdução de novas
tendências,novosmodelos.Segundooautor,atraduçãonessasituaçãoédifícilde
serdistinguidaemrelaçãoàobraoriginal.
34
Ainda de acordo com EvenZohar (apud Milton, 1998), existem três
circunstânciasemqueatraduçãoocupariauml ugarcentralemumsistemaliterário
nacional.Aprimeiraseriaaqueleemquealiteraturaémui toinsipiente,necessitan do
ainda daimitação de model os estrangeiros. A segunda circunstância seri a aquela
das literaturas menores, que não estariam solidificadas. Par a EvenZohar, “tais
literaturas menores nã o podem produzir todos os gêneros e deixam que alguns
sejam preenchidos pela literatura traduzida” (apud Milton , 1998: 185). Por fim, a
traduçãopo de também ocuparum local dedestaquequandoum modelo nacional
nãoémaisaceitoporumanovageraçãoquenãoencontramodelosemsuaprópria
literatura.
Em contrapartida, é possível que as traduções possuam um papel
bastante diminuto em um sistema literário. Isto ocorre quando elas permanecem
conservadoras. Dessa forma, não influenciam obras vanguardistas e podem se
torna r uma forma de perpetuar um modelo já consoli dado, funcionando como um 
formadebarrarasinovações,umaverdadeira“linhadedefesareacionária”(Even
ZoharapudMilton,1998: 187).
A partir do exposto, podemos concluir que as questões abordadas na
teoria dospolissistemas divergem bastante das questõ es apresentadasaté então.
Aquinãoseaventamquestõesdetraduzibilidade,nãose discutesehouveounãoa
apreensão do conteúdo ou da forma do texto original. Para se analisar uma
tradução, devería mos atentar  para outras questões, como: o desenvolvimento da
tradução em uma socied ade, a influência do mercado editorial etc. Como sugere
Milton (1998), os seguidores desta teori a perguntariam: “qu ais são  as forças
literáriasqueproduziramastraduçõesAeB?QualéaposiçãodastraduçõesAeB
dentr o de sua literatura?” (1998: 188). O método é descritivo, ou seja, trabalha a
partirdaanálisedetraduçõesfeitas.Estemétodosecolocaemoposiçãoaométodo
prescritivo peloqualas questões detraduçãosãopreviamente mencionad as, bem
como as sugestõesde como se deve proceder aosefazer umatradução eé por
isso que os estudos relacionados a esta vertente são chamados de estudos
descritivos.
Toury(apudVieira,1996)sug ereumaaplicaçãoesp ecíficadateoriados
polissistemasaosestudosdetradução.Elepropõeum"método explícito,combases
teóricas,  que permita generalizações válidas e testáveis sobre a tradução literária
como umtodo" (1996: 132). Sua teoria visaao estudo de traduções existentes, o
35
foco passa a ser o pólo receptor e suas soluções e o mais o texto original.
Segundo Toury (apud Vieira), "os objetivos da tradução são definidos pelo pólo
recept or,por sereleoquetomaainiciativadatransferênciainterlingual"(1996:132).
Dessaforma,atraduçãopassaaserencaradacomoumareescrita enãomaisuma
cópiadotextofonte.Elapodenaverdadetransformaroor iginal.Otextotraduzido
passaafazerpa rtedaculturadopóloreceptor.Paraele,“ nãoéimpróprioafirmar
que a posição e função de um texto, incluindo a posição e função de um texto
considerado uma tradão, são determinados primeiramente pela importância
originada na cultura que os recebe”
21
(Toury, 1995: 26). Toury (1995) sustenta,
ainda,quetextosesistemasculturaisquerecebemtraduçõessãoafetadosporelas
sejanovocabulário,sintaxeounacultura;contudo,oinversonãoéverdadeiro,ou
seja,ossistemasfonteraramentesãoinfluenciadospelastraduções.
Comojáfrisamos,nestaabordagemaquestãodafidelidadedeixadeser
primordial, pois, ao se enfocar o texto traduzido, deixarseia de postular a
equivalência, pois a equivalência "passaria a ser um fato e mpírico, ou seja,
estabeleceriaas'relaçõesreais'entretextoalvoetextofonte".Logo,"acomparação
não é feita para determinar se se atinge a equivalência entre tradução e original,
mas qual o tipo (e/ou grau) de equival ência que realmente ocorre entre eles"
(Rodrigues,2000:143144).
AndréLefevere(apudVieira,1996)acolhealgumasconcepçõesdogrupo
de Telavive; mas desenvolve um estudo qu e leva em consideração outros
elementos. Lefevere entende que o conhecimento literário é composto pela
experiência, pela literatura "disciplina não científica que produz obras literárias" e
pela"metaliteratura","disciplinaquefazdeclaraçõessobreliteraturaequeabarcaa
traduçãoeocomentário"(1996:140).Eledizqueumadasformasdecrescimento
literário é fazer com que a literatura seja acessível através do comentário ou da
tradução.
Asrefraçõesaquesuateoriaserefereseriam"aadaptaçãodeumaobra
literáriaaumpúblicodiferente,comaintençãodeinfluenciaraformacomoopúblico
lê a obra". Elas seriam encontradas nas traduções, crítica, historiografi a, ensino,
antologias etc. As refrações seriam importantes porque por meio delas um texto
21
“[...]thereisnothingtooperverse inclaimingt hatatext’sposition(andfunction),includingthepositionand
functionwhichgowithatextbeingregardedasatranslation,aredeterminedfirstandforemostbyconsiderations
originatingintheculturewhichhoststhem”.
36
poderi a vir a se estabelecer dentr o de um sistema, afinal , algumas pessoas são
expostasprimeiramenteaelas,querepresentariamo“ original”.Étamm"através
dasrefraçõesnomeioeducacionalqueacanonizaçãoéati ngidaemantida"(apud
Vieira, 1996: 140141). Mais tarde, Lefevere passou a chamar as refrações de
reescritas.
Para Lefevere, as traduções seriam muito importantes, vez que "são
responsáveis pelo estabel ecimento do cânone; como tal, elas exercem papel
importantenaevoluçãoeinterpretaçãodeliteraturas".Elastammexer ceriam"um
papelnamanipul açãodepalavraseconceitosqueconstituemopo dernumacultura"
(apudVieira,1996:145).
Lefevereposicionasecontrariamenteàscomparaçõesquedenotemjuízo
devalorentretextooriginaletraduçãoeentendequeoquesedeveemrelaçãoàs
traduções é descrever as "estratégias" utilizadas pelos tradutores no exercício de
seutrabalho,ficandoacargodoleitoratarefadejulgálos.Elevaideencontroao
"pensamentotradicional,segundooqualteriaquehaverumparâmetrodecorreção
parasetraduzirequesedeveriatentarsistematizaropr ocessoparaquetodasas
traduções pudessem atingir esse padrão de ‘fidelidade’ e ‘precisão'” (apud
Rodrigues, 2000: 125) Para ele, a fidelidade não significa igualdade, mas "uma
complexa rede de decisões tomadas pelos tradutores nos níveis da ideologia, da
poéticaedouniversododiscurso"(apudRodrigues,2000:129).Astraduçõesnão
são, portanto, nem "objetivas", nem "isentas" e "as 'traduções 'fiéis' se inspiram
freqüentemente emumaideologiaconservadora"(apudRodrigues,2000:130).Ou
comoenfatizaLi aWyler(2003):
Toda reescritura, seja qual for a intenção que lhe dê origem, refl ete uma
certa ideologia e uma poética, cuja função élevar o receptor a reagir de
uma dada maneira. E é isto que confere à tradução de pensamentos,
palavras e im agens a característica de instrumento de manipulação a
serviçodeumdadopoder(2003:11).
Lages (2002) nomeia essa nova tendência dos estudos teóricos de
tradução de ideológica ou culturali sta, para a autora, o estudo da tradução parte
para a superação do s limites lingüísticos e das questões de fidelidade, o que
necessari amente implica em uma valorização do trabalho do tradutor . Em suas
palavras:“otradutordeve,acimadetudoenecessariamente,serreconh ecidocomo
37
um escritor, autor do texto traduzido, a partir de determinaçõe s históricas
particulareseespecíficasacadacaso”(2002:75).
Énessaperspectivaquepretendemosanalisarasobrasenvolvidasnesta
pesquisa. O que pretendemos fazer  é descreve r as estratégias utilizadas pelo
tradutor,sem,contudo,classificar
apr iori
comoequivocadassuasescolhasquando
elassedistanciaremouseaproximaremdemaisdotextooriginal.
Porém, é importante ressaltar que, o uso que fazemos da palavra
“estratégias”, nãoéomesmo da acepção deLefevere. Por estratégiasoautorse
refere ao comportamento reiterado de tradutores sob certas circunstâncias, certos
contextos.Obviamente,parasedeter minarqueumcertocompor tamentotradutório
serepetecomgrandefreqüê ncia,énecessáriaaanálisedeumcorpusavantajado.
Logo,nossapesquisa,quetrabalharásomentecomatransmutaçãodeduasobras,
não poderia servir como base de identificação de padrões de regularidade nas
traduções. O que chamaremos de estratégia é a opção, a escolha do tradutor na
execução de seu ofício.Observaremos se há alguma regularidade, especialmente
por serem obras escritas e traduzidas por um mesmo autor, contudo, sem alçar
essescomportamentosaumpatamaremquesepossasustentarsuageneralização
paratraduçõesemgeral.
É necessário observar que Toury e Lefevere, todavia, trabalharam a
tradução somente sob a perspe ctiva da tradução interlingual quando trataram de
análisepropriamentedita.Dessaforma,seusestudosnãoseestenderamaoâmbito
da traduçãointersemiótica.Foi Cattrysse(1992)  quem pelaprimeira vez trabalhou
asadaptaçõesfílmicassobopontodevistadatradução,fazendoinclusivealgumas
ressalvas à utilização da teoria dos polissistemas e dos estudos descritivos na
análisedetextosfílmicos.
Convém ressalta r que não trabalharemos estritamente com os estudos
descritivos. Dos estudos descritivos,utilizaremos a noção de tradução emsentido
mais amplo, com ênfase no texto de chegada, na identificação da importância
histórica, políticaeideológi cadoprocessotradutório.Utilizaremos,ainda,aidéiade
estratégia, mas em uma acepção diferenciada. Como já mencionamos,
trabalharemos as estratégias usadas na tradução das obras de Peter Shaffer,
apenasobservandoessasregularidadesnasobrasescolhidas.
Valelembrar,ainda,queosestudosdescritivosnãosãoaúltimapalavra
emtermosdosestudosdetradução.Aslinhasde pensamentodapósmodernidade
38
desconstroem a noção de equivalência e passase a ver a relação entre texto e
traduçãocomoumarelaçãodesuplementaridade.Essesquestionamentosiniciam
seapartirdereflexõesace rcadoessencialismo.
Segundo Fish (apud Rodrigues, 2000), a razão surge como a resposta
iluministacontraodogmatismoreligioso. Arazãonãoprivilegiariaqualquerideologia
e poderia apontar o que era verdadeiro ou falso, certo ou errado, sem recorrer a
Deusouaqualqueroutroelementoexternoaelamesma.Estaconcepçãoteóricada
razão que buscava descobrir e determinar “verdades essenciais” não levava em
consideração questões relativas ao tempo ou ao ser  humano. Como afirmou
Rodrigues (2000), havia a “noção de um sujeito raci onal, autônomo, livre da
influênciadeseucontexto,que,comoauxíliodeuminstrumentaladequado,teriao
poderdeati ngira supostaessência”(2000:164)dascoi sas.
Assim, a tradução na concepção  essencialista seria, de acordo co m
Arrojo(2003a)aocomentarNida,“[o]transportedesignificadosentrelínguaAeB”
(2003a:12),sendo“otextooriginalumobjetoestável,‘tr ansportável’,decontornos
absolutamenteclaros,cujoconteúdopodemosclassificarcompletaeobjetivamente”
(2003a: 12). Da mesma forma, o contexto essencialista implicaria uma tradução
livredaideologia,porqueseexecutariasobodomíniodarazão”(Rodrigues,2000:
177).
Ascorrentesdo pensamentosmoderno,noentanto,secon trapõema
essavisão.ComoesclareceFish(apudRodrigues,2000),arazãoéumaentidade
política”,“umaconstruçãoideológica”(2000:177).Arrojodizque
[...] a defesa da possibilidade da razão e do conhecimento objetivos e
universais,independentesdahistóriaedosinteressesdeseusproponentes
oudefensores,étambém,einescapavelmente,adefesadoeurocentrismo,
ou do domínio da razão e dos interesses do homem ocidental, do Norte,
sobreoutrasrazõeseinteresses,minoritáriosesemopodereoprestígio
necessários para se impor como ‘únicos’ e ‘legítimos’ (apud Rodrigues,
2000:177).
Portanto, a idéia de  princípios univer salmente aceitos e aplicáveis embutiria “uma
estratégia dos poderosos para justificar e legitimar a exclusão da diferença”
(Rodrigues, 2000: 164), seria “a repressão da contradição”, da “heterogeneidade”
(2000:164).
Obviamente,nestecasoteremosumavisãodetraduçãodiferenciada.Se
não há um texto com significado fixo e que “transcenda as circunstâncias e a
39
história” (Rodrigues, 2000: 178), não a possibilidade de uma tradução que
possua uma essência a ser recuperada por um tradutor absolutamente livre de
qualquer influência ideol ógica. Segundo Arrojo (2003b), a tradução não pode ser
“fiel”ou“neutra”,poiselasempreembutir á“asmarcasdesuarealização:otempo,a
história,  as circunstâncias,os objetivose aperspectivade seu realizador”(2003b:
78).ApropósitodaexposiçãodeArrojo,manifestaseWyler(2003):
[...] as palavras de uma língua ganham e perdem significados
continuamente e [...] cada tradutor, conforme as influências que recebeu
durante avida,vairecortálas de ummodomuitoseu. Em um nívelmais
teórico,a rel ação entre o autor e seutradutornãoserianecessariamente
marcadapelaharmoniaeafidelidade.Muitoaocontrário,atraduçãoseriao
lugardalutapelopoder,queéemúltimaanálisealutapelopoderautoral
(2003:19).
Das correntes do pensamento smoderno, em nosso trabalho,
limitaremonosacomentarasidéiasdopósestruturalismo,particularmenteasidéias
dadesconstruçãodeJacquesDerrida, poissãoesta sidéiasasqueserelacionamà
traduçãoeànoçãodefidelida de.
Umadasobras maisimpor tantes de Derrida sobre tradução é
Torre de
Babel
,ensaiopublicadoem1987.Nesteensaio,Derridafazcomentáriosaoartigo
A
tarefa do tradutor
, de Benjamim, a partir de uma interpretação do mito de Babel,
segundooqualDeuscastigaseusfilhospelasuadesobediênciadaconstruçãoda 
torre.Jádeinício, Derrida(2002)questionaopróprioterno“Babel”quepoderiaser
umnomepróprioetammnomecomumquesignifica“confusão”.Ele questiona:
“em qual língua a torre de Babel foi construída e desconstruída? Numalínguano
interiordaqualonomepróprioBabel podia,porconfusão,sertraduzidotammpor
‘confusão’” (2002: 12). O autor cita Voltaire que, no seu
Dicionário filosófico
, faz
mençãoàdistinçãoentreonome próprioBabel”eo“nome co mumrelacionadoà
generalidade de um sentido” (2002: 13). Ele ainda afirma que o nome comum
“babel ”,ouseja,“confusão”,possuiduplicidadedesentidos:aconfusãodaslíngua s
eaconfusãodosconstrutoresdatorre.Nestejogo,Derridaparecequerermostrar
queamultiplicidadedaslínguasimpõeanecessidadedatradução,masatradução
teriaquelidarcoma multiplicidadedesentidosnalínguaeemváriaslínguas.Ele
questiona:
[...] notemos um dos limites das teorias de tradução: eles tratam bem
freqüentemente das passagens de uma língua a outra e não consideram
suficientementeapossibilidadeparaaslínguas,
amaisdeduas
,deestarem
40
implicadasemumtexto.Comotraduzirumtextoescritoemdiversaslínguas
aomesmotempo?Como‘devolver’oefeitodepluralidade?Esesetraduz
para diversas nguas ao mesmo tempo, chamarseá a isso traduzir?”
(2002:20).
Atraduçãoé vistacomonecessária,mas,ao mesmotempo impossível.
EstaproblemáticaestácontidanonomeBabelque,quandoénomepróprionãose
traduz, mas quando não é nome próprio deve ser traduzido. Para Derrida, “a
tradução tornase a lei, o dever e a dívida, mas dívida que não se pode quitar”
(2002:25).
Na visão de tradução de Derrida não há espaço para a noção de
equivalência,maspara anoçãodesuplementarida de.Anoçãodeequivalência só
existiriacasofossepossívelretornaràharmoniadaslínguasanterioresaBabel.A
traduçãoimplicaria na necessidade de transformação. Assim, texto absolutamen te
traduzível(dimensãodosagrado)sópodeseralcançadonumasituaçãolimite
[...]porumaviaquepressupõetrêsmomentos,oupressupostosnegativos:
não partir do plano da recepção da obra; não pressupor a língua como
instrumentodecomunicação;nãoatribuiràtraduçãoafunçãodecópiaou
imitação. Eliminados esses compromissos da obra com elementos a ela
exteriores [...], resta a pura relação entre original e tradução, livre de
determinaçõesexternas(Lages,2002:185).
No entanto, consideramos forçoso mencionar algumas críticas feitas à
desconstrução. Não é que di scordemos da problematizaçã o levantada pelas
correntesdesconstrutivistas;contudo,acreditamos,comosugereBritto(2001),queé
preciso relativizar sua aplicação estrita, sem negar sua importância enquanto
reflexão te órica. Britto (2001) afirma que os argumentos que enfatizam a
impossibilidadedetraduçõesliterais,ousemamarcadotradutor,aimpossibilidade 
dadete rminaçãodosignificadoúnicoedefinitivodeumtexto,destacado“deoutros
elementos do texto como o estilo” (2001: 45) são absolutamente pertinentes.
Todavia,eleafirmaque,napráticatradutória,énecessárioaderiracertasfiões,
comoaquevêotextotraduzidosenãocomofielouequivalente,pelomenoscomo
umtextopróximo.Emsuaspalavras:“paraagrandemaioriados finspráticosque
envolvemautilizaçãodetextos,sópodemosagir seadotarmoscertospr essupostos,
aproximações que, embora não correspondam à realidade dos fatos, o
imprescindíveis”(2001:45).
41
Para demonstrar seu argumento, ele comenta um artigo de autoria de
Arrojo, demonstrando que, ainda que advogue em favor do desconstrutivismo, a
autor aorarocitatrechostraduzidosparaoportuguêsdeautorescomoNietzsche
e Mounin como se estivesse citando os próprios autores. Segundo Britto, Arrojo
consideraque o significado da passagem e stá completa mente expresso naquelas
palavras,nãosendonecessáriocomentálasnemcontextual izálascominformações
referentesasiprópria,ouaoprovávelleitorbrasileirodeseutexto”( 2001:44).Ela,
portanto, acaba por considerar o significado “como uma propriedade estável do
texto,quepodeseridentificadacomaintençãoconscientedoautoraoescrevêlo,e
queindependedascircunstânciasdoleitor”(2001:44).Dessaforma,Arrojoacaba
por demonstrar que apesar da propriedade das discussões levantadas pelo
desconstrutivismo, a prática nos força a trabalhar com as ficções rejeitadas pela
teoria. 
Acreditamos que, após este apanhado sobre aspectos da tradução ao
longo do tempo, tenhamos podido demonstrar a inadequação da noção de
fidelidade, como condição para se proceder a uma tradução. Esta noção é
incompatível com a percepção do texto como detentor de várias possibilidades
semânticas e interpretativas. Contudo, é preciso nos conscientizar da diferença
entre oquedeveseras metasda atividadetradutóriaeoquenapráticasepode
exigir de uma tradução real” (Britto, 2001: 47). Por isso, escolhemos, como
afirmamos anteriormente, o viés dosestudosdescritivos comooideal para nossa
análise.
A perspectiva de análise da tradução que pretendemos implementar se
afastacompletamentedasnoçõe sdefidelidadeouequivalência,poisnossaanálise
não se pautará pelas concepções prescritivas de tradução. Conforme exploramos
em nossas considerações, a noção de fidelidade muito já não é considerada
relevantenosestudosdetradução.Estanoçãoéaindamaisdi fícildeseraceitana
tradução intersemiótica, porque esta implica necessariamente na existência de
sistemasse mióticosdistintos.
O conceitode tradução intersemiótica foi pela primeira vez mencionado
porJakobson(1995).Eleclassificouastraduçõesem:traduçãointralingual,istoé,
“interpret açãode signosverbaispormeiodeoutrossignosdamesmalíngua”(1995:
64), tradução interlingual, ou seja, “interpretação de signos verbais por meio de
algumaoutralíngua”(1995:65)eaprópriatraduçãointersemiótica,“ainterpretação
42
de signos verbais por sistemas de signos o verbai s” (1995: 65). Os sistemas
semióticosdiferenciadosaquenosreferimossãoocinemaealiteraturae,senãoé
aceitável sustentar a fidelidade como parâmetro da tradução na literatura
(interlingual),porexemplo,comoutilizálonatraduçãoemsistemasdistintos?
No intuito de sistematizar uma teoria para trabalhar com a tradução
intersemiótica, Plaza (2003) estabelece uma tipologia que distingue três tipos de
traduçãointersemióti ca:icônica,indicialesimbólica.Estatipologiaestáintimamente
ligadaàsnoçõesdeícone,índiceesímboloda TeoriaGeraldosSignosdeCharles
S. Peirce. Para uma melhor compreensão da sugestão de Plaza, é necessário
entender, portanto, o estudo de Peirce e sua relação com a tradução. Antes de
adentrarmos no pensamento peirciano, convém lembrar que osestudosdePeirce
sãovastosemuitoabstratos.Assim,oqueapresentamosaquiéapenasumesboço
deumaáreaespecíficadeseupensamento,asemiótica.
O maiorobjetivo dePeirce era“delinear osprincípiosfundamentaisque
subjazemaosmétodosquesãoutilizadosnasciências”(apudSantaella,2005:31),
paratanto,Peirceestudouváriasáreas,seusmétodosecompreendeuquetodas as
conclusões do pensamento científico devem estar fundada s em evidências. As
evidências deveriam ser continuamente revisadas, uma vez que, a cada evol ução
dos métodos e instrumentos, novas evidências poderiam surgir. Em um outro
momento, Peirce sugere que substituamos a noção de evidência pel a noção de
representação ou signo. O autor conclui, então, que a “análise da ciência é [...]
semiótica” (Santaella, 2005: 31). A semiótica, para Peir ce, é a ciência das leis
necessári as do pensamento” (Santaella, 2005: 39) e, como para Peirce todo
pensamento,eporconseqüênciatodainterpretação,ocorreemsignos,oestudoda
semiótica éessencial.
A semiótica de Peirce (apud Santaella, 2002) possui tr ês ramos: a
gramáticaespeculati va,alógi cacríticaeametodêutica.Iremosutilizarparanossa
análisenestetrabalhoapenasagramáticaespeculativa,ouseja,"oestudodetodos
ostiposdesignoseformasdepensamentoqueelespossibilitam"(Santaella,2002:
3).Osconceitosgeraisdagramáticaespeculativapossuemasferramentasasere m
utilizadasnadescrição,análiseeavaliaçãode"todoequalquerprocessoexistente
designosverbais,nãoverbaise naturais:fala,escrita,gestos,sons,comunicação
dos animais, imagens fixas e em movimento, audiovisuais, hipermídia etc"
(Santaella,2002:4).Dessaforma,aanálisesemióticapoderiapossibilitaroestudo
43
dopoderdereferênciadossignos,oquetransmitem,comoseestruturam,comosão
utilizadoseosefeitosqueprovocamnoreceptor.
Como jámencion amos,paraPeir ce,todopensamentoéumsigno,pois,
paraqueconheçamosalgo,énecessárioqueestealgosejarepresentável.Osigno
é "tudo aquiloquerepr esente ou substituaalguma coisa, emcerta medida epara
certos efeitos"(Pignatari,1987:19),ou"todae qualquercoisaque seorganizeou
tendaaorganizarsesobaformadelinguagem,verba lounão,éobjetodeestudo
da Semiótica" (1987: 13). Como podemos observar, são várias as definições,
mesmo Peir ce apresentou várias definições de signo, mas, segundo Santaella
(2005),amaiscompletadefiniçãoéaquedizque
[...]umsignointentarepresentar,emparte,pelomenos,umobjetoqueé,
portanto,numcertosentido, acausaoudeterminantedosigno,mesmoque
osignorepresenteoobjetofalsamente.Masdizerqueelerepresentaseu
objetoimplicaqueeleafeteumamentedetalmodoque,decertamaneira,
determina,naquelamente,algoqueémediatamentedevidoaoobjeto.Essa
determinaçãodaqualacausaimediataoudeterminanteéosignoedaqual
acausamediadaéoobjetopodeserchamadadeinterpretante(2005:42
43).
Doexposto,po demosconcluirquePierceusoualógi catriádica(relação
triádicabásica)paraexplicarosignificadodossignos,quedeveriasercompreendido
pela relação signo (manifestação que representa algo)  objeto (aquilo que se
representa)interpretante(oefeitoqueosignopodegerar ) ( Niemeyer,2003:32,
33; 39). O signo é, dessa forma, “uma mediação entre o objeto ( aquilo que ele
representa)eointerpretante(oefeitoqueeleproduz)”(Santaella,2005:43).Porsua
vez, o interpretante “é uma mediação entre o signo e um outro signo futuro”
(Santaella, 2005:43),issoporquetod o efeitodeumsigno (interpretante), sejaele
ação ou percepção (física ou mental), também é um signo. Dessa maneira, todo
significado de um signo irá gerar outro signo, desenvolvendo uma cadeia de
significação contínua. A compree nsão deste fenômeno, chamado de semi ose, é
fundamental para a utilização do instrumental da semiótica na construção de 
interpretações. A semiose é a ação do signo, e a ação de qualquer signo é ser
interpretado por outro signo. Nas palavras de Peirce, “a significação de uma
representação é outra representaçã o. [...] Finalmente, o interpretante é outra
representação a cujas mãos passa o facho da verdade; e como representação
tammpossuiinterpretante.Aíestánovasérieinfinita”!(apudPlaza,2003:17).A
44
aceitação desta argumentação vai implicar na “visão dinâmica da significação
enquantoprocesso”(Deely,1990:42).
É imprescindível deixar claro que a divisão triádica apresentada entre
signo,objeto einterpretante épuramente didática, pois a noçãodesigno engloba
necessari amente os três termos. O uso das definições se presta a ser um “meio
lógicodeexplicaçãodoprocessodesemiose”(Plaza,2003:17).Valeaindaressaltar
que,opoderrepresentativodosignoserásempredinâmico,nãosó pelanaturezado
processodesemiose,mastammporqueel esofreainfluênciatantodointérprete
(pessoaqueointerpreta)quantodocontextoemqueestáinserido.
Peirce (apud Santaella, 2002: 5) afirma que, devido à sua natureza
triádica,osigno podeseran alisadodetrêsformas.Osignoanalisadoemsimesmo,
"nassuaspropriedadesinternas,ouseja,emseupoderdesignificar".Nessecaso,o
signopoderiaserclassificadocomo:qualissigno,sinsignoelegissigno.Poderiaser
analisadoemrelaçãoaoobjeto,oumelhor,emreferênciaàquiloqueindica,refere
ourepresenta,podendoserumícone,índiceou símbolo.E,finalmente,poderiaser
analisadonosefeitoseinterpretaçõesqueécapazdeproduziremseusreceptores
(rema,dicissignoeargumento).
Das diversas maneiras de analisar um signo, vamos utilizar em nossa
pesquisaaqueladosignoemrelaçãoaseuobjeto.Chamaseíconearepresentação
quesedáporsemelhança,analogia.Chamaseíndicearepresentaçãoquesefaz
pormeiodemarcasqueoobjetocausa.Assim,osignoindicaoobjeto,poispossui
com ele uma relação concreta. O índice pode traçar a origem da causa ou
simplesmenteevidenciaroefeito.Denominasesímboloarepresentaçãoquesedá 
por meio de um processo de  convenção. Entendemos qu e esta perspectiva de
análisedosignoemrelaçãoaoobjetopodeserestendidaaumaanálisedetextos
traduzidosemmeiossemióticosdiferentes,emnossocaso,deumtextoliteráriopara
umtextofílmico.
Comoafirmamosanteriormente,asdefiniçõeseclassificaçõesdesignos
podemseprest aràanálisedetextosliterários,fil mes,peçaspublicitárias,vídeose
obrasdearteetc,ouseja,elasoferecemapoionacompreensãodequalquertipode
linguagem. Como frisa Santaella (2005), as linguagens estão em permanente
mudançaedesenvolvimento.Contudo,normalmenteasescolasnãoraroconfundem
aslinguagenscomossuportespormeiodosquaisel astransitam.Asemióticapode
funcionar no  entendimento do caráter interativo e intersemiótico das linguagens à
45
medidaquepodeabrircaminhosparaentendercomoaslinguagenseosmeiosse
combinam, o qu e representam e como os signos são formados. Como disse
Pignatari(1987),asemióticaajudanacompreensãode
[...] ligações entre um código e outro, entre uma linguagem e outra
linguagem. [El a] serve para ler o mundo nãoverbal: 'ler' um quadro, 'ler'
umadança,'ler'umfilmeeparaensinaraleromundoverbalemligação
comomundoicônicoounãoverbal(1987:17).
Demon stramoscomoasemióticapodefacilitarasinterpretaçõesdevárias
linguagens.Mascomounirestesconcei tosàidéiadetradução?Arespostaestána
semiose. Plaza afirma, com base na teoria dos signos peirceana e na natureza
contínuaeinfinitadarepresentaçãosígnica,quetodopensamentoétradução.Isto
porque,setodopensamento existe pormeiodamediaçãode signos,comoafirmava
Peirce, e todo signo gerará necessariamente ou tro signo, ele estará sendo 
sucessivamentetraduzido.Porisso,Plazaafirmaque“todo pensamentoétradução
de outro pensamento, pois qualquer pensamento requer ter havido outro
pensamentoparao qual elefuncionacomointerpretante”.(2003:18). Evaiainda
alémaoafirmar que:
Quando pensamos, somos obrigados a manter o pensamento conosco
mesmos e, nessa operação, criamos um observadorleitor desse
pensamento que somos nós mesmos, visto que o pensamento se
desenvolvepor etapas. [...] Se no vel do pensamento i nterior’a cadeia
semióticajáseinstituicomoprocessodetraduçãoe,portanto,dialógico,o
quedizerdaquelaqueseinstauranointercâmbioentreemissorereceptor
comoentidadesdiferenciadas?(2003:18).
É assim que Plaza (2003) estabelece uma tipologia de traduções
intersemióticas com base na relação do signo com o objeto. São as trad uções
icônicas, indiciais e simbólicas. A tradução icônica “se pauta pelo princípio de
simil aridad edeestrutura”(2003:89).Atraduçãoindicial,porsuavez,“sepautapelo
contatoentreoriginaletradução”( 2002:91).Asimbólicarelacionariasignoeobjeto
a partir de uma convenção. Vale salientar, que estas classificações não são
inflexíveiseque,muitasvezes,podemcoexistir.Ostiposdetr aduçãoapresentados
são, segundo Plaza, “tipos de referência, algumas vezes simultâneos em uma
mesmatradução,que[...]instrumentalizamoexamedetraduçõesreais”(2003 :89).
Portanto,éimportantelembrarquenãoénossoobjetivo,nemtampoucoo
objetivo da semiótica, utilizar as classificações do s si gnos e das traduções como
46
objetivoúltimodenossotrabalho.Aclassificaçãonãoéoobjetivofinal,masomeio
atravé s doqualpoderemosconstruire formularinterpretações.Dessaforma, cabe
aointérpreteidentificar,analisar econ struirossignificadospossíveistan to apartir
dos textos e suas capacidades de representaçã o por meio de seus elementos
visuaiseverbais,comopelainserçãodestessignificadosemseucontextohistóri co
ecultur al.
Santaella (2002) alerta para o fato de que a se miótica apenas indica
caminhos pelos quais uma análise pode ser conduzida, sem, entretanto, trazer 
"conhecimentoesp ecíficodahistória,teoriae práticadeumdeterminado processo
de si gnos" (2002: 6). Em conseqüência disso,émister conhecer a história de um
sistemadesignos,bemcomoseucontexto,parasepoderencontrarasmarcasque
ocontextodei xanamensagem.Daíanecessidadedainteraçãodasemióticacom
asteoriasrelativasaosprocessosaseremestudados.Emnossocaso,paraaboa
utilizaçãodasemióticanaanálisedetextosfílmicos,precisamosconhecereutilizar
teorias específicasdocinema.
Assim,emno ssaanálise,ta mbémlevaremosemconsideraçãoelementos
próprios do cinema, co mo sua linguagem e sua hi stória, expostos nas diversas
teorias sobre o tema. Essa abordagem é essencial em uma an álise. Sob re isso,
destacaVanoyeeGoli otLé té(2002):
Analisar um filme é também situálo num contexto, numa história. E, se
considerarmos o cinema como arte, é situar o filme em uma história das
formas
fílmicas.Assimcomoosromances,asobraspict óricasoum usicais,
os filmes inscrevemse em correntes, em t endências e até em "escolas"
estéticas,ounelasseinspiram
aposteriori
(2002:23)
.
Estetipodeinformaçãoéimprescindívelemumaanálisefílmicasobaperspe ctiva
datradução semiótica.
Os elemento s típicos das linguagens ci nematográfica e literária, bem
comoos el ementosdeadequaçãodestaslinguagens,serãoigualmentevalorosos.
Semoconhecimentode les,qualquertentativadeinterpretaçãoestariainviabilizada.
Em relação a estes elementos, podemos enumerar  como exemplos própri os da
linguagemliterária:aconstrução doenredo, métodos de criaçãodos personagens
etc.Noquedizrespeitoaosistemacinematográfico,osteóricostambémacreditam
em uma linguagem própria, um sistema especificamente cinematográfico. Diniz
(1998)enumeratrêsgruposder ecursosdocinema:
47
Oprimeirogrupotemrelaçãocomotrabalhodacâmara.Inclui osplanos
estáticos(planosdeconjunto,planomédioeprimeiroplano)eosplanosem
movimento (plano panorâm ico, plano com movimento de câmara e os
relacionadosàvelocidadedaf ilmagem:maralentaeplanoacelerado).O
segundogrupotemavercomaligaçãoentreosplanos:adissolvência,a
fusão de imagens, a tela dividida e o
corte
seco. O terceiro grupo se
relaciona ao sistema de signos daedição. Inclui amontagem e ouso da
sucessãorítmicadeimagens(1998:320321).
Na adaptação fílmi ca a necessidade de ajustar as linguagens. Por
vezes,éprecisoeliminarouresumi ralgunselementosdaobraliteráriaouparaque
o filme não fique muito lon go, ou para destacar aspectos que o di retor considera
maisimportantes.Podeseexcluirouresumirelementoscomo:personagens(muitas
vezesapelaseatémesmoparaafusãodepersonagens),descriçõesdetalhadasde
ambientesepaisagens( substituídaspelasprópriasimagens),diálogos(alinguagem
corporal dos atores muitas vezes pode substituir falas), r eflexões excessivamente
abstrataseações.
Éforçosoesclarecerque,nestetrabalho,asobrasliterári ascomasquais
trabalharemos são peças teatrais. Obviamente, ainda que utilizando na análise o
textoescr ito,enãooencenado,devemosencontrarumasériedeaspectostípicos
da linguagem teatral, o que necessariamente i mplicará em uma interpretação
diferenciadasecompararmoscomoselementosdeumromance.
Éapartirdasquestõesteóricaslevantadasquepretendemosdesenvolver
uma análise das traduções intersemióticas (peça – filme) de alguns aspectos dos
personagens de Shaffer em
Equus
e
Amadeus
. A seguir, exporemos os
procedi mentosmetodológicosdesenvolvidosemnossaanálise.
1.3PROCEDIMENTOSMETODOLÓGICOS
1.3.1CONSTITUIÇÃODO
CORPUS
OcorpusdapesquisaécompostopelaspeçasdePeterShaffer
Equus
e
Amadeus,
bemcomoporsuasrespectivastraduçõescinematográficas.Acercadas
peçasefilmesfaremosumbrevecomentário.
1.3.1.1
Equus
(peça)
A peça
Equus
foi encenada pela primeira vez em julho de 1973 em
Londres.El afoibaseadaemumahistóriareal.Shaffercria,então,ahistóriadeum
48
jovem (Alan Stran g) que, ap arentemente sem motivos, cega seis cavalos. A peça
tratadodramadesserapazqueéinternadoparaumtratamentopsiquiátricocomo
médicoMartinDysart.
Oencontrodospersonagenséba stanteimpactan teparaosdois.Deum
lado,háumjovemproblemático,reprimidopelafamília,deslocadodopapelexigido
pelasociedadedaqualfazparteequecometeuumcrimeincompreensível;dooutro
lado, um psiquiatra respeitado, mas em crise, que perdeu o interesse pela vida,
exerce sua profissão sem paixão e está absolutamente descrente de sua
capacidade de ajudar pessoas. Alan é o pacien te, ele está ali para ser “curado”;
Dysart é o médico que deve contribuir para a cura. Mas esses papéis vão ser
alternados.Alanvaiquestionare atingirduramenteasconvicções deDysart,aponto
de causarlheinveja. Dysart vai trabalhar para ajudar Alan, ao mesmotempo que
seráa judadoporsu asreflexões.
Equus
lidacomdiferentesassuntoscomoreligião,adoração,convenções,
paixão, insanidade e sexualidade. Ao discutila, Shaffer afirma: é uma peça
profu ndamenteeróticaetambémumconflitotrágico”
22
(apudAlfarano,1987:119).A
peça foi um grande sucesso e é considerada um clássico do teatro britânico. Em
apenastrêsanos,játinhasidomontadaemmetadedospaísesdeprimeiromundoe
ganhoprêmiosimportantes
23
.
1.3.1.2
Equus
(filme)
Foi exatamente em decor rência do êxito obtido pela peça que Shaffer
recebeuoconviteparatransformálaemumfilme,oquedefatoocorreem1977.O
filmeéadaptadopelopróprioShaffer,quetrabalhoucomoroteiri sta,edirigidopel o
consagrado diretor SidneyLu met.Ofilmenão foi um sucesso de público,tendo o
próprio Shaffer criticado seu resultado. Ele foi considerado muito sombrio e lento,
alémdeterdespertadoairadosdefensoresdosdirei tosdosanimaispelacenaem
queoscavalossãoatingidos.
Apesar de toda polêmica, o filme contou com alguns pontos positivos,
como a indicação a prêmios e a efetiva premiação dos atores centrais da trama.
22
“Itisadeeperoticplay,andalsooneoftragicconflict”.
23
Equus
ganhouosseguintesprêmios:
Outer Critics Circle Award
(melhorpeçado ano de1975),
New York
DramaCriticsCircle
(melhorpeçadatemporada1974/1975),
AntoinettePerry
(Tony)
Award
(melhorpeça1974/
1975)e
LosAngelesDramaCriticsAward
(melhordrama).
49
RichardBurtoninterpretouopsiquiatraMartinDysart.ElefoiindicadoaoOscarde
melho r ator e ganhou o
Golden Globe
para a categoria. O jovem Alan Strang é
interpretadoporPeterFirth,atorbritâni coquejátinhafeitoomesmopapelnoteatro
e que tamm é agraciado com o
Gold en Globe
, no caso o de melhor ator
coadjuvante
24
.
1.3.1.3
Amadeus
(peça)
A peça estreou em Londres em novembro de 1979. Foi um grande
sucessodepúblicoedecríti ca,mastambémfoiobjetodemuitapolêmica.Muitoda
crítica negativa e da polêmica provocadas diz respeito ao fato de estudi osos de
música,admiradoresdeMozar t,admiradoresdeSalieriehistoriadoresdiscordarem
damaneiraqueavidadessaspessoasesuascaracterizaçõesforamnarradas.Os
historiadores diziamquenãohaviaevidênciasdequeSalieritinha matadoMozar t.
Falavam, também, que Mozart jamais pode ria ter se comportado de maneira
desrespeitosa na frente de um imperador, sob pena de ser expulso da corte.
Criticavam, ainda, a forma que os pe rsonagens foram apresentados: Mozart, um
gênionamúsica;masumidiotainfantilizadonavidapri vada,eSalieri,umapessoa
invejosaeummúsicomedíocre.Contudo, essa argumentação é equivocada, pois
ShaffernuncaafirmoutratarsedeumabiografiadeMozart.Shaffer(apudTibbetts)
diz:
Obviamente,
Amadeus
no palco nunca pretendeu ser um documentário
biográficodocompositor[...] Nósestamosostensivamentereivindicandoa
grande licença do contador de histórias para enfeitar seu conto com um
ornamento f iccional e, acima de tudo, dar a el e um clímax cuja única
justificativasejaqueelecativesuaplatéiaeenalteçaseutema
25
.
24
Ofilme
Equus
ganhouo
KansasCit yFilmCriticsCircleAward
nacategoriademelhoratorcoadjuvante(Peter
Firth).
Ganhouo
GoldenGlobeAward
(
Globodeouro
)nascategoriasdemelhoratordedrama(RichardBurton)e
melhoratorcoadjuvante(PeterFirth).
Ganhouo
BAFTAFilmAward
nacategoriademelhoratrizcoadjuvante(JennyAgutter).Recebeuaindaoutras
trêsindicações,nasseguintescategorias:melhoratriz(JoanPlowright),melhoratorcoadjuvante(ColinBlakely)
emelhorroteiro.
Recebeu indicações ao
O scar
em três categorias: melhor ator principal (Richard Burton), melhor ator
coadjuvante(PeterFirth)emelhorroteiroadaptado(PeterShaffer).
25
“ObviouslyAmadeusonstagewasnever intended tobeadocumentarybiographyofthecomposer[...]We
blatantl yclaimingthegrandlicenseofthestorytellertoembellishhistalewith fictionalornamentand,aboveall,to
supplyitwithaclimaxwhosesolejustificationneedbethatitenthrallshisaudienceandemblazonshistheme”.
50
AidéiadeescreverapeçaveiodeumainvestigaçãodeShafferacercado
enter rodeMozar t.Eleleuqueumatempestadeteriaafugentadoosacompanhantes
duranteofuneraldocompositor.Apartirdaí,elepermanecedoisanospesquisando
sobre suavidaeumterceiroanoescrevendoapeça(Alfarano,1987).
Dealgunsfatosreais,comoofatodeMozarttermorridoemdificuldades
financeir as,suadoença,aexistênciadeumcompositor da cortechamadoSalieri,os
boatos que surgiram sugerindo que Salieri tinha envenenado Mozart, Shaffer cria
umahistóriaficcionalquetratadainvejadeSalieriquevêemMozartuminstrumento
deDeus.
Apri meiraversãodapeçaécompletamenter evistanaversãoamericana
queestreouemNovaYorkemdezembrode1980
26
.SegundoShaffer(1984a),na
versãobritânica“SalieritinhamuitopoucarelaçãocomaruínadeMozart”
27
(1984a:
xxvi). Na segunda versão Shaffer suaviza a vulgaridade de Mozart e destaca sua
atitude ambivalente em relação a seu pai: Leopold Mozart. Shaffer ainda escreve
uma terceira e mais completa versão, que mantém o tom da segunda e restaura
algunselementosdaprimeira.Éjustamenteestaúltimaversãoqueiremosusarem
nossaanálise.
A histó ria se inicia em 1823, quando Salieri, diretor e condutor dos
músicos empregadospelacorte(
Kapellmeister
),confessasuaresponsabilidade na
mortedeMozart.Emseguida,voltaseàhistóriadesua(Salieri)infância,dopacto
queelefezcomDeusno intu itodetornarseumgrandecompositoremtrocadeuma
vidavirtuosaeseuencontrocomAmadeus(oamadodeDeus),em1781.Apartir
daí,
Amadeus
na rra oconflitode Salieri,quese sentetraídoporDeus,esualuta
paraodestruiratravésdeseuinstrumentonaterra:Mozart.
1.3.1.4
Amadeus
(filme)
Apeçatammfoitransfor madaemfilmee,maisumavez,Shafferfoio
responsávelpeloroteiro.Porém,desta vezoprocessodeadaptaçãode
Amadeus
contou com a colaboração do experiente diretor Milos Forman. Eles trabalharam
arduamente leva ndo em consideração o apenas a mudança de meio e a
necessidadedesemudaralinguagemteatral,masaindanointuitodetransformara
26
Aversãoamericanaépremiadaemquatrocategoriasdo
TonyAwards
,incluindooprêmiodemelhorpeça.
27
“[...]Salierihadtoolittlet odowithMozart’sruin”.
51
peçadeShaffer,detomnotadamenteprovocador,emumfilmemaispalatável,que
não dirigisse insultos diretos à platéia e que fosse menos psicológico (Kurowska,
1998).
Ofilmefoilançadoem1984e,aocontráriodaversãocinematográficade
Equus
,aversãode
Amadeus
obtevesucessodepúblicoecrítica.Ofilmerecebe u
vários prêmios
28
, entre eles, oito
Oscars
quatro
Golden Globes
. Como a peça, o
filmetrouxeàtonaumasériedepolêmi casrelativasàsbiografiasdospersonagens
envolvidos no roteiro, e também foi responsável por uma maior popularização de
Mozartesuaobra.
Háalgunsanos,
Amadeus
foirelançadoemDVD.Nesteno volançamento
podemosassistiraversãofinaldofilmeaprovadapelodi retor(MilosForman),mas
que foi rejeitada pelo estúdio que a considerou muito longa. Resolvemos, então,
considerarneste trabalhoaversãodos cinemasporseramaisconhecidadogrande
público.
1.3.2 ANÁLISEDOSDADOS
Esta pesquisa analisaediscute a traduçãodas peças de Peter Shaffer
Equus
e
Amadeus
paraocinema.Elaé,portanto,denatur ezaanalíticodescritiva.
Aanálisefoi feitanaperspectiva daadaptaçãofílmicacomouma forma
detradução.Justificamosaadoçãodavisãodaadaptação comotraduçãocombase
no conceito de tradução inter semi ótica de Jakobson e nas semelhanças das
discussões que tanto pautam os estudos da adaptação quanto os estudos de
tradução. Nossa visão de tradão se fundamenta notadamente em alguns
princípiosdosestudosdescritivos,comoaênfasenopóloreceptordatradução,uma
vez que é este pólo que toma a iniciativa no processo, a i mportância do texto
28
Amadeus
ganhouoito
Oscars
nasseguintescategorias:melhorfilme,melhordiretor,melhorator
(F. Murray Abraham), melhor direção de arte, melhor figurino, melhor maquiagem, melhor som e
melhor roteiro adaptado. Recebeu ainda outras três indicações: melhor ator (Tom Hulce), melhor
fotografiaemelhoredição.
Ganhou quatro
Globos de ouro
nas seguintes categorias: melhor filme  drama, melhor diretor,
melhoratordedrama(F.MurrayAbrahams)emelhorroteiro.Recebeuaindaoutrasduasindicações:
melhoratordedrama(TomHulce)emelhoratorcoadjuvante(JeffreyJones).
Ganhou quatro
BAFTAs
nas seguintes categorias: melhor fotografia, melhor edição, melhor
maquiagememelhorsom.Foiaindaindicadoemoutrascincocategorias:m elhorfilme,melhorator
(F.MurrayAbraham),melhorroteiroadaptado,melhorfiguri noemelhordireçãodeprodução.
Ganhouo
César
demelhorfilmeestrangeiro.
Ganhou os prêmios de melhor filme, melhor diretor e melhor contribuição artística no
Festival
InternacionaldeFlandres
.
52
traduzido na cultura de chegada e a descrição das escolhas do tradutor e suas
estratégiastradutórias,sempautálasemnoçõesdefidelidadeou equivalência.Dos
autor es relacionados aos estudos descritivos acolhemos, sobretudo, as i déias de
Lefevere devido à sua contribuição na concepção da obra traduzida como
reescritura.
Ainda em relação à tradução, utilizamos o instr umental da semiótica
peirceanaparaainterpretaçãoeconstruçãodasignificaçãoouressignificaçãodas
linguagensvisuaiseverbaisdostextosliterários efílmicosnoprocessotradutório.
Dessaforma,aanáliseecompreensãodacapacidaderepresentativadasobrasnão
estãolimitadasàmeraclassificaçãoestanquedeseuselementos,masestãol igadas
àsemiose,ouseja,àvisão dasignificaçãoenquantoprocessodinâmicoeinfinito.
Alémdouso dasteorias detraduçãoe dasemiótica, nossaanálisetem
como supedâneo aspectos teóricos, práticos e históricos ligados ao estudo das
linguagensliterária(teatro)ecinematográfica.
Tendo como base as teorias sup racitadas, partimos para a análise das
traduções.Paraisso,inicialmentefichamosaspeças
Equus
e
Amadeus
,conforme
model o anexo.Ofichamento ajuda na  localização dos trechosdasobras que têm
relaçãocomosaspectosabordadosnaanálise,ouseja,ascaracterísticasapolíneas
e dionisíacas das duplas de personagens DysartAlan e SalieriMozart. Em um 
segundomomento,fichamososfilmes.Nofichamentodosfilmes,alémdadescrição
dos bl ocos narrativos, procedemos às descrições mais detalhadas das cenas,
levando em consideração aspectos como: montagem, mera, foco, música etc.
Estetr abalhotammé conhecidocomodecupageme, devidoaseualtograude
minuciosidade, somente é r ealizado nas cenas de interesse específico à análise.
Procedemos,então,àanálise datraduçã o dasobras, apartirdaidentificaçãodas
estratégiasutilizadas,dassemelhanças,dasmodificaçõesesuas nuances.Aofinal,
umavezqueomesmoautor daspeçasétambémorote iristadosfilmes,verificamos
aocorrênciaounãodepadrõesderegularidadeentreastraduções(obrasfílmicas)
de
Equus
e
Amadeus
eapossívelinfl uênciadeShaffer.
Antesdocapítulodeanálise,entretanto,apresentamosumpanoramado
trabalhodeShaffer,enfocandosuastemáticasmaisrecorrentes,otrata mentodado
a seus personagens e seu trabalho como roteirista. Tamm ap rofundamos a
concepção shafferiana do embate apolíneodionisíaco desenvolvido pelos
53
personagens,aproveitandoparadefinirascaracterísticasqueestãorelacionadasa
cadaumdosladosdesteconflito.
54
2.PETERSHAFFERESUAOBRA
Neste capítulo abordamos o trabalho desenvolvido por Peter Shaffer,
especialmentesuaobrateatral,atendonosespecificamenteadoispontos:ostemas
poreleexploradoseaabordagemutilizadaemseuspersonagen s.Comrelaçãoaos
personagens,desenvolveremosumadiscussã osobreoconflitoapolíneodionisíaco,
tãopresentenaobrashafferiana,maisparticularmentenasobrasan alisadasneste
trabalho, ou seja, as peças
Equus
e
Amadeus
. Para tanto, faremos algumas
reflexõessobreaobradeNietzsche
Aorigemdatragédia
,aprimeiraamencionaro
parap olíneodionisíaco,apresentandoumabreveanálisedastesesdoautornessa
obra, bem como suas repercussões. Atentaremos, ainda, para a polêmica gerada
pelaobradeNietzschenoqueconcerneàcompreensãodatr agédiaedosestudos
daAntigüidade.Por fim,relacion aremosadiscussãosobrea tragédiaaotrabalhode
Shaffer.
2.1ATRAGETÓRIADEPETERSHAFFER
Para melhor compreendermos a forma que Shaffer trabalha suas
temáticas,alémdaforma comoconstróiseuspersonagens,especialmentenoque
concerne à criação de suas duplas de prota gonistas, objeto a ser anali sado
posteriormente, acreditamos ser relevante travar contato com a evolução de seu
trabalho.Dessaforma,exporemosbreve mentecomosedesenvolveuotrabalhode
PeterShaffer.
DesdeofinaldoséculoXIX,oteatroinglêsmoviaseemdireçãoauma
transformação.Noperíodopósguerra(séc.XX),estemovimentofoitoman doforma
atéque,em1956,apeçadeJohnOsborne,
Lookbackinanger,
foi apresentadaem
Londres. A peça foi o marco inicial do teatro inglês contemporâneo, marco do 
movimento que foi denominado
The new drama.
Este movimento  foi, em linhas
gerais,ummovimentodecaráterinovadorqueviaanecessidadedeprotestarcontra
a forma que a sociedade se estabelecia. Segundo Alfarano (1997), ainda que os
dramaturgos o tivessem a capacidade de sugerir soluções, podiam, ao menos,
demonstrarasfalhasdessasociedadecontraaqualbradavam.
Shaffer éum dos dramaturgosqueescreveu nesseperíodo.Entretanto,
não se pode dizer que comungou totalmente das aspirações de seus colegas.
55
Segundo MacMurrau ghKavanagh (1998), o pri meiro grande sucesso de Shaffer,
Fivefingerexercise
(1958),nãosecoadunavacomatemáticaemvogaàépoca,ou
seja,orealismosocial
29
,típicodaescolados
Angryyoungman
(Jovensirados)
30
.Os
escritores do
The new drama
produziram peças que foram ou políticas ou
revolucionárias,sejanaformaounoconteúdo.AobradeShaffer,porsuavez,nã o
era nem política, nem revolucionária, mas uma mescla de diversas temáticas
apresentadas tanto por meio de dramas como de comédias. Seus interesses
transcendiam a área política para en focar "problemas metafísicos como a relação
entre o homem e Deus, o homem e ele mesmo e o homem e a eternidade"
31
(MacMurraughKavanagh,1998:11).Suasobrasmaisconhe cidassãoumasériede
dramas:
Theroyalhuntofthesun
,
Equus
,
Shrivings
,
Amadeus
e
Yonadab
.Contudo,
eleai ndaescreveu comédiasesátirascomo:
Theprivate ear
/
Thepubliceye
,
Black
comedy
e
Whiteliars
.Emfacedisso,Shafferfoimuitasvezesapontadocomoum 
autor  apol ítico, ou que sempre se rendeu ao
establishment
. MacMurraugh –
Kavanagh(1998)lembraqueessanecessidadedeclassificarosescritoresapartir
deumcritériopolítico,semprefezcomqueodramatur go rejeitassequalquertipode
rótulo. Segundoopr óprioShaffer(apudAlfarano,1987:46),"nãoqueroclassificar,
nemserclassificadopelosoutros".
Conformemencionamos,ostemasprefe ridosdeShaffercongregamuma
série de questionamentos metafísicos, como por exemplo: “existe uma divindade
universal emnossomundotãoinjusto,e,casoexista,querelacionamentoháentreo
homemeela?Comoohomempressupõeumaordem,umestado pormeiodoqual
levaumavidasatisfatória”
32
?(Gianakaris,1992:3).ParaShaffer,nãohárespostas
simples para questões tão profundas, no  entanto, ele o as minimiza ou evita.
SegundoGianakaris(1992),emseusdramas,Shaffertendeasemostrarcéticoem
relaçãoàspossíveisrespostasenissoelesemostraindubitavelmenteousado.Isso
porque,paraGianakaris,poucosdramaturgosou sariamarriscarumachanceemum
29
As obras (peças) relacionadas ao realismo soci al apresentam, em geral, personagens do diaadia e
problemas docotidiano, aomesmotempo em quefuncionam como um veículodecrítica tantodasociedade
comoumtodo,comotambémdeumgrupoespefico,comoaigrejaouaburguesia.
30
Aquivalelembrarque, apesardenãoserconsideradoumdos
Jovensirados
e,portanto,nãotercomotônica
especial do seu tr abalho o desenvolvimentodorealismosocial, comoacontecia com os autoresdo
The new
drama
, Shaffertambémseatevea estatemática,especialmente nas peças para televisãoerádio.Umoutro
estudioso de seu trabalho, o professor e crítico C. J. G ianakaris (1992), diferentemente de MacMurraugh
Kavanah,entende que
Five finger exercise
é um bom exemploda abordagem do realismo social naobra de
Shaffer.
31
"[...]metaphysicalissuessuchasther elationshipbetweenmanandGod,manandhimself,manandeternity”.
32
“[...]doesauniversaldeityexistinourunjustworld, and,ifso,what isman’srelationshiptohim?Ifnogod
exists,howdoesmaninferanorderthroughwhichtoleadasatisfyinglife?”.
56
teatrodedestaquecomtrabalhosqueexigemmuitodacapacidadedesuaaudiência
e,porfim,encerraras peçasemumtomabertamentepessimista.Gianakaris(1992)
lembra, entretanto, que o trabalho de Shaffer não pode ser considerado
propriamentevanguardista,acr escentando,ainda,queestefato,aliadoaoconsenso
de que seu trabalho tamm o é puramente comercial, acaba por deixálo mal
vistopelosdoislados.NaspalavrasdeHiden(apudGianakaris,1992:5):Shaffer,
então, se encontrapreso entre campos teatraisopostos,recebendo críticashostis
juntamenteco mosprêmiosTonyeOscar”
33
.
Mas,quemquerqueobjetiveanalisaracur adamenteotrabalho deShaffer
há de concordar com Taylor ( apud Alfarano, 1987: 45) que diz: "sua obra revela
todasasqualidadesclássicasdeumdramaturgotradicional:construçãofortemente
alicerçada, estória bem elaborada, caracterização realista, extrema fluência em
diálogos vivos e precisos". Ainda sobre Shaffer, Gianakaris (1992) lembra sua
mestria no uso da linguagem (evidenciado nos diálogos de suas peças mai s
maduras) ,suahabilidadecomocontadordehistórias(explicitadanasmaisdiversas
formaseestilosdepeças)eaqualidadedousodetécnicasteatraisque,alémde
inventivas,podemserconsideradasalgumasvezesexperi mentais.
AspeçasdeShafferprovocam umenvolvimentoquetranscendeaesfera
intelectual, elas tamm nos atingem por sua força emocional e psicológica. A
destreza com que ele usa os recursos e técnicas do teatro, a capacidade de
desenvolveratragédia,oépicoeodramaexistencial,ahabilidadecom queassocia
mitologia,filosofiaepsicologiapormeiodasmaisdifer enciadastemáticas, ovigorde
suashistórias,dosconflitosnelasabordadoseariquezadeseu spersonagenstêm 
envolvidoleitoreseplatéiasportodoomundo.
Nãofoipor acasoqueseutrabalhorecebeutantos elogiosdeblicoe
crítica,incluindoumasériedeprêmios,comodoisprêmios
Tony
(
Equus
e
Amadeus
)
e oi to
Oscars
(
Amadeus
). O própriofato dete r tido várias peças como inspiração
paraadaptaçõesemdiversasáreascomooballet(
Equus
),aópera(
Theroyalhunt
ofthesun
)eoprópriocinema(
Fivefingerexercise
,
Thepubliceye
,
Theroyalhuntof
the sun
,
Equus
e
Amadeus
) denota a aceitação de seu trabalho junto ao público.
Equus
e
Amadeus
obtiveram, especialmente, uma inequívoca aprovação e são
33
“Shafferthusfindshimself caughtbetween opposingtheatrical camps,receivi ngsome hostile critical salvos
alongwiththeTonysandOscars”.
57
consideradasaspeçasmaisconhecidasdodramaturgo. Osroteirosdaadaptação
destaspeçasparaastel asforamfeitospelopróp rioShaffer,nocasode
Amadeus
,
elecontoucomacolaboraçãodeMilosForman.
Antes de nos concentrarmos nas peças
Equus
e
Amadeus
, objetos de
nossaanálise,faremosumbreveapanhadodaevoluçãodotrabalhodeShaffer.Ele
desenvolveuoutrostalentosatésetornarumconhecidodramaturgo.Apósumasérie
de trabalhos temporários sem relevância, Sha ffer trabalhou para o editor musical
Boosey and Hawkes
. Posteriormente, foi tamm crítico literário e revisor do
semanár io
Truth
,só entãooptandopelacarreiraliterária.Masseuiníci onaliteratura
sedeuporumavia diferentedoteatro:o romance policial.Em1951,elepublicou
The woman in the wardrobe
, em 1952,
How doth the little crocodile?
e em 1955,
Withered murder
, tendo as duas últimas sido escritas em parceri a com seu irmão
AnthonyShaffer.Antesdeseuprimeirosucessonospalcos,qu eocorreuem1958
com
Fivefingerexercise
,Sha fferescreveupeçasparaorádioeparaaTV,sendo
exemplodoprimeiro
Prodigalfather
(1957),umdramadaradioBBC;edosegundo,
aspeças
Thesaltland
(1955),exibidapelaemissoraITVe
Balanceofterror
(1957),
exibidapelaBBC.Shaffervoltaaterumaoutraexperiênciacomorádio,masisso
ocorreubemde pois,em1989(
WhomdoIhavethehonourofaddressing?
),quando
elejáeraumdramaturgoconsagrado.
ParaGianakaris(1992),ose nredosdeseusromancespoliciaissão,regra
geral, o que convencionalmente se esp era do gênero, pel o menos em relação às
característicasessenciais.Emtodaselasháumdetetive(
Verity
/
Fathom
)quetenta
solucionar um crime hediondo. Suas vítimas são desprezíveis e, como possuem
váriosinimigos,existeumnúmerograndedepossíveisculpados.Umoutroelemento
clichêéacenafinal,emquetodosos personagensestãoreunidoseaguardama
explanaçãododetetive(comumemAgathaChristie).Nocasodaprimei rapeça,sua
contribui ção para o gênero policial está “na resolução surpreendente e nos
personagens detalhadamente delineados que geram interesse acima da média”
34
(Gianakaris, 1992: 9). Em
How doth  the little crocodile
?, escrita com Anthony, a
atmosfer a é mais sombria e os personagens são capazes de atos horrendos. A
solução do mistério revela o crime perfeito da suposta vítima, que planejou e
executou sua morte, mas o antes de plantar evidências contra todos. O último
34
“[...]inthestartlingresolutionandinthefullydelineatedcharacters,whogenerateaboveaverageinterest”.
58
romance é, na visão de Gianakaris (1992), o mais tenso (uma vez que se
desenvolve em uma ilha inacessível e, assim, col abora para uma sensação de
claustrofobia) e tamm o mais inventivo, possuindo várias reviravoltas. Aqui, a
supostavítimapermanecevivae disfarçada.
AcarreiraliteráriainicialdeShaffer,ouseja,aquelaligadaaosromances
policiais,tempoucarelaçãocomsuaobrateatral.Énaturalque,aoseestudarum
autor , tenhamos a tendência de procurar em seus trabalhos iniciais algum i ndício
que possibilite uma ligação com suas obras mais madur as. No entanto, a obra
posteriordeShafferébemmaisdiversificadaenãopossuicorrespondênciaevidente
comseusromancespoliciais.Todavia,Gianakaris(1992)arriscaapontarparauma
relação entre o trabalho dos detetives e o de vários personagens das peças de
Shaffer,comoopsiqui atraDysart(
Equus
),quenãobuscapistasexternas”
35
,mas
investiga a psique de Alan na tentativa de desvendar “o mistério que está sob a
superfíci e de seu comportamento estranho”
36
(1992: 13). Ou ainda Pizarro, que
procura investigar e compreender os valores e crenças de Atahuallpa (
The royal
huntofthesun
).AtémesmoSalieri(
Amadeus
)trabalhariacomoumdetetiveatentar
solucionaro “mistério”portrásdamortedeMozart. Naopiniãodoautor,é essaa
tarefadeSalieriquesequestionasempre:“amortede Mozart,fuieuquefizisso?”
37
(1992:13).
Comrelaçãoàs peçasqueShafferescreveupara orádioe atelevisão,
Gianakari s (1992) afirma que, de modo geral, todas elas se coadunam com o
realismosocialquedominavaacenabritânicaà época.Elecompletadizendoque
Shaffer trabalhou de forma conservador a, sem apresentar  nenhuma técnica
realmente inovadora. Entretanto, Gianakaris apresenta algumas evidências que
mostram o nascer de um novo Shaffer, com algumas característi cas que iriam
florescertotalmente emsuacarreiranospalcos.Aprimeiradel asconsistenousodo
conflito entre personagens a respeito de questionamentos importantes, o que cria
uma colisão inevitável e, conseqüentemente, garante uma permanente tensão
dramática. A segunda característica é o uso de diálogos fortes, vigorosos, que
atuamdemodoaintensificaroseventosdoenredo.
35
“[...]externalleads[…]”.
36
“[...]theunderlyingmysteryofStrang’sbizarrebehaviour”.
37
“TheDeathofMozart,or,DidIdoit?”.
59
Aprimeirapeça,
The saltland
,sepa ssaentre 1947e1949.Elaenfoca
uma família fictícia de refugiados, a família Mayer  (o patri arca e seus dois filhos
Arieh e Jo), que tenta adentr ar na Palestina de modo ilícito, como vários outros
migrantes,embuscadaterraprometida”.Avi sãodosirmãosacercadaidaparaa
novaterraédiametralmenteoposta.EnquantoAriehencaraamudançasobaótica
religiosa, a chance de criar a terra prometida descrita no Talmud”
38
; seu irmão
imagina as ilimitadas op ortunidades de ludibriar os ingênuos colonizadores”
39
(Gianakaris,1992:18).
SegundoGianakaris(1992),
Thesaltland
enfocaoconflitoentreosdois
irmãoseapresentapelaprimeiravezo“arquétipodo sprotagonistasquesebatem
em duelo, o padrão que domina todos seus dramas no palco”
40
(1992: 18). Aqui
tammpodemosperceberarespostaclássicadoconflitoshafferiano,nenhumdos
ladosestácompletamentecerto,elessemprevãodependerumdooutro.Étamm
nessa peça que, em sua opinião, Shaffer pela primeira vez “manifesta a procura
persistentede[...]umaforçaidentificávelquegovernaouniversoefornecealguma
razãológicaparaeventosquedeoutraformapareceriamcompleta menteinjustos”
41
(1992:17).
A outra peça feita para televisão,
Balance of terror
, é uma espécie de
história de espionagem que se desenvolve nos anos cinqüenta em meio da crise
entreoocidenteeaantigaUniãoSoviética.Nadamaisépossívelacrescentar,uma
vezqueoroteironãoestádisponível.Alémdaversãobritânica,estapeçatamm 
foiapresentadaem umaversãoa mericana.Opoucoquesesabeéobtidopormeio
decomentáriosecríticasnosjornai serevistas(
Times
,
NewYor kTimes
e
NewYor k
HeraldTribune
).Ascríticasnãoforammuitofavoráveis,eatéopróprioShafferfaz
comentários nada elogiosos ao se referir à versão americana no jornal
Herald
Tribune
.Eleafirmaqueoroteiro“foiresumidono maisbaixodenominadorcomum
dolixotelevisivoamericano”
42
(apudGianakaris:1992:20).
Theprodigalfather
foiproduzidaparaorádioeapresentadaem1957na
BBC, em cuja biblioteca ainda existe uma gravação. A peça discute questões
relativasagosto sevaloresculturais. Nelaumafamíliaamericana(paiefilho)muda
38
“[...]achancetocreateThePromisedLanddescribedi ntheTalmud”.
39
“[...]limitlessopportunitiesforcheatingthegulliblesettlers”.
40
“[...]thearchetypeofduellingprotagonists,thepatterndominatingallShaffer’sstagedramas”.
41
“[...]manifestsShaffer’spersistentsearchforanidentifiableforcegoverningtheuniverseandprovidingsome
rationaleforeventsthatotherwiseseemwhollyunjust”.
42
“[...]boileddowntothelowestcommondenominatorofAmericantelevisionrubbish”.
60
separ aaInglaterra.Opaitencionacomprarumapropriedadesofisticadaeda raseu
filho uma vi da aristocrática. O filho, contudo, não parece admirar o estilo de vida
aristocráticoeoconflitoseinstala.Aofinal,opai acabaaceitandoapr eferênciado
filhoeelesretornamparaosEstadosUnidos.
Gianakari s(1992)fazaindareferênciaaalgunstrabalhosdeShafferpara
a televisão que ocorreram após sua estréia e sucesso nos palcos. Ele colaborou
comdois
sketches
satí ricos(
Butm ydear
e
ThepresidentofFrance
)eaindaparaa
sérietelevisiva
Thatwastheweekthatwas
.Umoutrotrabalhoémencionado(
The
merryrooster spanto
),masquantoaele,Gianakarisnãoaprofundaoscomentários,
pois,alémdecurto,nãopossuiroteirodi sponívelparaanálise.
Shaffer volta aorádi o em1989 em um monólogo:
Whom do I have the
honorofaddressing
?.Éahistóriadeumamulherdemeiaidade,Angela,quenarra
em um gravador suas aventuras na  Califórnia como secretária de um
playboy
de
Hollywood:T omPran ce.Essapeçacômica,estreladaporJudiDench,representoua
última investida de Shaffer no meio radiofônico. Depoi s dela, ele jamais voltou a
escreverparaorádioouatelevisão.
Finalmente,comentaremosacercadacarreiradeShaffernospalcos.Tão
logoesteouumadesuaspeçasno
ComedyTheatre
,em1958,Shafferconhe ceuo
sucesso.
Five finger exercise
recebeu várias críticas favoráveis, entre elas, a da
revista
StageandTelevisonToday
,adojornal
TheTimes
,bemcomoado
Illustrated
London News
. A crítica do
The Times
chegou a dizer que o “Sr. Shaffer pode
facilmen te se tornar  um mestre do teatro”
43
(apud Gianakaris, 1992: 27). A peça
tamm foi exibida nos Estados Unido s e, como na Inglaterra, recebeu críticas
positivas, inclusive do
New York Times
. Os elogios foram, ai nda, traduzidos em
alguns prêmios, como o de melhor dramaturgo estreante no
London Newspaper
CriticsAward
eodemelhorpeçaestrangeirano
NewYorkTheatreSeason
.
Gianakari s (1992) acredita que, já nessa peça, Shaffer evidencia seu
talentodramático,especialmenteno quedizrespeitoàformaçãodospersonagens.
Para ele, os personagens são habilmente desenvolvidos, contando com todas as
nuancespsicológicasnecessáriasàcaracterizaçãodepersonagensredondos
44
.E,
apesardenãocontarcomnovida detécnica,foiumapeça muitobemrealizada.Com
43
“[...]Mr.Shaffermayeasilybecomeamasterofthetheatre”.
44
ParaMoi sés(2000:113),“[...]as[personagens]redondassomentenosdãoidéiadesuaidentidadeprofunda
quando, fechado o romance, verificamos que, através de tantas modificações, apenas deram expressão à
multiformepersonalidadequepossuem[...]”.
61
relaçãoaotemaabordado,apeçalidacomquestõesdopósguerra,oumelhor,lida
com a tentativa das pessoas em voltar à vida normal e esquecer os horrores da
guerra.Seutítulofazreferênciaaumexercíciocomumnapráticadopiano,emque
omovimentodo sdedosdeveserfeitoemtotalharmonia.Oscincodedos”sãoos
membros dafamília( Stanl ey, Louise(pais),CliveePamela( filhos)),alémdotutor
Walter. Dessa forma, o autor mostra “como atos compulsivos de qualquer dos
membros de uma família pode de sorganizar o delicado equilíbrio do todo”
45
(Gianakaris, 1992: 30). Mas, o que mais é r elevante mencionar sobre
Five finger
exercise
,emrelaçãoaonosso trabalho,éapossibilidadedeconstatarque, jáem
seu primeiro trabalho feito especificamente para os pal cos, podemos vislumbrar a
antítese apolíneodionisíaca tão presente na obra shafferiana. Esse conflito é
apresentadopormeiodadivergênciadospersonagensStanley(pai)eLouise(mãe).
Stanl eyéumhomemdenegóciosqueveiodeumafamília,senãopobre,
pelo menos de classe média baixa. Louise é uma amante das artes oriunda da
classemédiaaltaquesecasacomStanleyporcausadeseudinheiro.Enquantoele
insisteparaqueseufilhoClivesedediqueaosnegócios;elaapóiaofilhonacarreira
artística.  Ele defende seu status atacando outros grupos sociais, super valoriza o
dinheiroedesdenhadasinclinaçõesartísticasdofilho.Porsuavez,Louisedebocha
da falta de “lustre” do marido, seja do ponto de vista estético, seja do intelectual.
Assim, Stanley e seu pragmatismo representariam a face apolínea do conflito,
enquantoLouiseeseudiletantismo,afacedionisíaca.
Masessenãoéoúnicoexemplo.Gianakaris(1992)tambémsugereum
embateapolíneodionisíacoqueserealizaapartirdaoposiçãoentreCli ve(filho)e
Walter(tutor).CliveseaproximadeWalteretentaconvencêloafugir,masWalter
senegaefazerissoporrespeito aLouise.Dessaforma,esteúltimopersonificao
respeitoàsregraseoautocontroletípicosdascaracterísticasapolíneas,enquanto
Clive seria a imagem do exagero, seja da bebida, seja das reações, comumente
relacionadosaDioni so.
AindadeacordocomGianakaris(1992),amaneiracomqueavidaeas
características de Stanley são descritas, acima de tudo, seu embaraço por sua
origemhumilde,fazemdeleumprecursordeFrankStang,opaideAlanem
Equus
.
45
“[...]howcompulsiveactsbyonememberofafamilycandisruptthedelicatebalanceofthewhole”.
62
Depois de
Five finger exerc ise
, Shaffer escreveu du as comédias:
The
privateear
e
Thepubliceye
.Nesseperíodo,eletambémtrabalhoucomocríticode
músicadarevista
TimeandT ide
.Logodepois,escreveuumadesuaspeças mais
conhecidas
Theroyalhuntof thesun
,quetammfoiseguidademaisoutrasduas
comédias,
Blackcomedy
e
Whiteliars
.Umavezquenossointuitoéodeexploraro
conflitoapolíneodionisíaconaobrade Sha ffer,nãoiremostecermuitoscomentários
sobre as peças cômicas, pois esse conflito não faz parte da construção de seus
personagens.Centraremosnossadiscussãonosdramasqueexploramoconflito,ou
seja,
Theroyalhuntofthesun
,
Equus,Amadeus
e
Yonadab
.Antes,po rém,convém
fazeral gunscomentáriossobreascomédias.
Essascomédiasapresentamemcomumofatodeseremtodaspeçasde
um só ato e tratarem de temas relacionados ao amor. Gianakaris (1992) aponta
Blackcomedy
e
Thepubliceye
comoasmelhores,enquantoopróprioShaffer(apud
Gianakari s, 1992) critica
The private ear
por ser antiquada e
White liars
por ser
pesada, sem movimento. Mesmo o sendo muito relevantes quando olhamos o
trabalhodeShaffercomoumtodo,suascomédiasforambemrecebidaspelopúblico
etodasforamexibidasnaInglaterraenosEstadosUnidos.
Comoexpomos,
Blackcomedy
foi,daspeçasmicasdeShaffer,aque
maissede stacou.Pormeiodela,Shafferdemonstradefinitivamentesuahabilidade 
paraescreverpeçasdetodososgêneros.Apeçaexploraotomburlescoetemsua
comicidademaiscentradanasváriassituações,con fusõesedesentendimentosque
propriamentenosassuntosabordados.Éahistóriadeumjovemartista(Brindsley)
que quer impressionar um colecionador de arte (Mr. Bamberger) para vender
algumas de suas peças. No mesmo dia em que vai receber a visita de Mr.
Bamberger, sua namorada (Carol) o avisa de que o pai dela ( Mr. Melkett) quer
conhecêlo.Paracausarumaboaimpressãonosdois,Brindsleyaceitaasugestão
deCaroledecidepegar“emprestado”amobíliacaradovizinho(Harold).U mfusível
queima,eapeçasegueàsescuras,estefatoreforçaajocosidadedasituação,pois
propiciaumasériede malentendidos.Alémdasvisitasesperadas,contasecoma
presençadeCléa(amantedeBrindsley),MissFurnival(ou travizinha),oeletricista
(Schuppanzigh) e, ainda, a volta de Harold, que chega a sua casa antes do
esperado.
Sobre
Blackcomedy
,Gianakari s(1992)comentaque,ofatodapeçater
apenas um sóato fezcomquealguns críticosquestionassemsuaextensão.Mas,
63
tanto emsuaopinião, como par a os críticosemgeral , esse fatoo prejudicou a
qualidade da peça. Ele se refere também à boa utilização das luzes (o contraste
claroescuro) como um reforço no sentido dos acontecimentos e na criação de
situaçõescômicas.
Apósestebrevecomentár iosobreasobrascômicasdeShaffer,partamos
para o comentário de seus dramas e seus personagens, aquilo que realmente
interessaparanossotrabalho.
AindaqueShaffertenhaobtidoosucessologono começodesuacarreia,
os estudiosos de sua obra são unânimes em dizer que a obra que marcou o
verdadeiro início de sua carreira, ou melhor, o início de sua maturidade como
dramaturgo foi
The royal hunt of the sun
(1964). A peça foi um marco em sua
carreiraporque,apartirdela,Shafferabandonadevezorealismosocialeexpande
asquestõesfilosóficasdiscutidasemsuaspeça s.Podemosacrescentaràmudança
temática,ousodiferenciadoderecursosdepalco(Gianakaris,1992).
Com relação ao tema, surge aquele que ser á o novo paradigma do
prota gonista shafferiano, aquele que busca uma divindade reconhecível para
forne cer uma ordem racional ao universo caó tico”
46
(Gianakaris, 1992: 76). Este
arquétipo será repetido em
Equus
(Dysart),
Amadeus
(Salieri) e
Yonadab
(Yonadab).Em
The royalhuntofthesun
,Shafferadiciona àquestãofil osóficada
procura por uma divindade (intimamente ligada à op osição morte x imortalidade),
questões históricas. Obviamente, o foco histórico dado à peça não corresponde à
absoluta realidade dos fatos, podendo inclusive modificálos, mas tudo isso
respondeaumpropósitoespecífico,qualseja,odepermitir oaprofundamentodas
discussõeslevantadaspeloautor.
Aliado  àmudançatemáticaestáousodealgumastécnicas depalco.A
partirde
The royalhu ntofthesun
,Shaffersedespe dedonaturalismo
47
noteatro
para se entregarao “teatrototal”
48
. O cenário apresentaaostentaçãoqu e pedea
história épica. Shaffer não economiza, “esplendor, ritual, música, máscaras,
danças coreografadas e mímica – características centrais do ‘teatro total’”
49
(Gianakaris,1992:77).
46
“[...]aknowabledeitytolendrationalordertothechaoticuniverse”.
47
Otermo“naturalismo”foiusadoporGianakarisparadesignaraabordagemsimplestantodopontodevista
temático quanto dos recursos teatrais das peças de Shaffer até então. Peças que, segundo Gianakaris,
condizemcomorealismosocialtãoenfocadoàquelaépoca.
48
“[...]totaltheatre […]”.
49
“Pageantry,ritual,music,masks,choreographeddanceandmimes– featurescentraltothe‘totaltheatre’[...]”.
64
A história da peça se passa entre 1529 e 1533. Ela trata da invasão
espanhola da América e a derrota do império Inca. O rei da Espanha, Carlos V,
desejando expandir seu imrio, faz uso de seu título de Imperador do Sagrado
Impé rioRomanocomoobjetivodelegi timarseuintuitoeconvencerpessoasalutar
porele.FranciscoPizarroéumde sseshomensqueguerreiampelor ei.Játendoido
uma vez à América e sabendo da existência de grande riqueza naquelas terras,
Pizarrodecidepartirmaisumavezparalá.
Na América, as tribos Incas são governadas por Atahuall pa que se
autodenominaofilhoimortaldodeussol.TalcomooreiCarlosV,eletambémfaz
usodareligiãoparaobtervantagenspolíticas.Apesardavastidãodeseuimpérioe
dograndenúmerodehomenssobsuasordens,Atahuallpanãoestá preparadopara
asartimanhasdeseuinimigo.Quandoosespanhóischegam,fingindoserpacíficos,
conseguem ludibriar os Incas. Depois de matar vários homens desarmados,
seqüestramAtahuall pae,aofim,conquistamoimpério.
O embate entre Pizarro e Atahuallpa é decisivo na peça. Pizarro é um
homemrudeembuscaderiqueza,masétammalguémquecomeçaaquestionar
a vida. Ele também busca uma resposta pessoal para o transcorrer contínuo do
tempoeofiminevitáveldetodos:amorte.AprincípionãoacreditaemDeus,poiso
Deuscristãoqueeleconheceéaqueleligadoàigrejaeela,porsuavez,écorrupta
e,portanto,nãoédignadeconfiança.Atahuallpa,aocontrário,acreditanosval ores
ecrençasdeseupovo.Eledebochadodeuscristãodosinvasoresespanhóiseo
julgainferioraoseu,comopodemospercebernoseguintediálogo:
VALVERDE:Eleéumespírito–dentrodenós.
VILLACUMU:Seudeusestádentrodevocê?Comopode?
ATAHUALLPA: Eles podem comêlo. Mas, antes disso, ele se torna um
biscoito, então eles o comem. [O inca expõe seus dentes ri
silenciosamente.]Tenhovistoisso.Quandorezamdi zem‘Esteéocorpode
nosso Deus’.Então,eles bebemseu sangue. É horrível. Emmeuimpério
nãocomemoshomens.Minhafamíliaproibiuessapráticahámuitotempo
50
(Shaffer,1985:60).
Ele sente como se realmente fosse um deus, pois domina todo u m
império(seussúditoslheobedecemcegamente)eseconsideraimortal.Pizarrovê
50
“VALVERDE:Heisspirit–insideus.
VILLACUMU:Yourgodisinsideyou?Howcanthisbe?
ATAHUALPA:Theycaneathim.Firsthebecomesabiscuit,andthentheyeathim.[TheIncabares histeeth
andlaughssoundlessl y.]Ihaveseenthis.Atprayingtheysay‘ThisisthebodyofourGod’.Thentheydrinkhis
blood.Itisverybad.Hereinmyempirewedonoteatman.Myfamilyf orbadeitmanyyearspast”.
65
emAtahuallpaseusalvador,poiséapartirdocontatoquetravacomelequeresgata
suas esperanças, suas crenças, seu eu” espiritual. Contudo, com a traição dos
espanhóis e a morte de Atahuallpa, Pizarro vê suas crenças e esperanças
desaparecerem.Eleacabaporconcluirqueaprocuraporumdeuséinútil.Essaéa
verdadeira questão da peça: a busca de um deus. Ou como disse Shaffer (apud
Cooke;Page,1987: 24):“aprocurapor umadefiniçãodaidéiadedeus”
51
.
Consoante expomos, ademais da temática,
The royal hunt of  the sun
inovou nos recursos teatrais. A intervenção do diretor, John Dexter, foi  decisiva
nesteasp ecto,opróprioShaffer(1983)oadmite.Comoexemplosdessesrecursos,
podemoscitarocenário(comseugrandiososoldemetal),ousodemáscaras(como
asusadaspel osincas),otecidovermelho(simbolizandoosanguederramado),além
dousodamúsicaedamímica.Todoissoconduzoblicoa umaexperiênciade
“teatro total”, em seu caso o resultado da influência do teatro Kabuki japonês, do
teatroépicodeBrechtedasidéiasdofrancêsAntoninArtaud
52
.Shaffer(1983:xvi) 
entendeque,emtodos estesexemplosqueo influenciaram,háumapreocupação
como“jogo”  doteatro, ou melhor, umapreocupação na maneira de apresentaro
espetáculoe,emconseqüência, existeousoderecursosnãonaturalísticos.
Artaud (1999), em seu livro
O teatro e seu du plo
, publicado em 19 64,
defendeumaidéiadeteatroquenãoserestringeaumalinguagemouaumaforma.
Emsuaspalavras:
Oteatroquenãoestáemnadamasqueseservedetodasaslinguagens–
gestos,sons,palavras,fogo,gritos–encontraseexatamentenopontoem
queoespíritoprecisadeumalinguagemparaproduzirsuasmanif estações.
Eafixaçãodoteatroemumalinguagem–palavrasescritas,música,luzes,
sons – indica sua perdição a curto prazo, sendo que a escolha de uma
determinada linguagem demonstra o gosto que se tem pelas facilidades
dessalinguagem;eoressecamentodalinguagemacompanhasualimitação
(1999:78).
Dessaforma,o“teatrototal”estáligadonecessariamenteàcon junçãodeling uagens
quedevemserexplor adas.
51
“[...]thesearchforadefinitionoftheideaofgod.
52
Podeparecer umtantocontraditórioofatodeShaffersedizerumapreciadordo“teatrototal”eadmitir,ao
mesmotempo,tanto ainfluência de Brecht, quanto a de Artaud. Como é sabido, o teatro de Brecht nega a
catarse, pois ela impediria o público de desenvolver uma atitude crítica. Assim, ele prega a vio crítica, o
distanciamentodopúblico.Naproposta deArtaud,aocontrário,nãohádistânciaentreatoreplatéia.Opúblico
deve “viver” a experiência teatral. Aaparente incongruênciaé desfeitaao se analisar qualquer dasobras de
Shaffer. Nelas, podemos perceber tanto o uso de caractesticas relacionadas aoteatro brechtiano, como os
personagensquenarramosfatosdapeça,aomesmotempoemqueosanalisam;quantoousoextensivodos
recursosteatraissugeridosporArtaud.
66
Theroyalhuntofthesun
representou,assim,aportadeentradaparaos
trabalhosmaisconsistentesdeShaffer.
OprimeirodramaqueShafferescreveuapós
Ther oyal hunt
foi
Thebattle 
ofShrivings
.EssapeçacontaahistóriadoSr.GideonPetrie,umaespéciedeguru
pacifistaqueviveemumprédioantigonaInglaterra(Shirivings).Elevivecomsua
esposa(Enid),suasecretáriaediscípula(Lois)ealgunsdiscípulos,entreel esDavid
(filhodopoetaMarkAskelon).ElesrecebemavisitadeumantigoalunodeGideon
(opoetaMarkAskelon,paide David).Markquestionaopacifistasobrequetipode
insultoouatitudeele agüentaria antes departir  para violência. Gideon afirma que
não pode responder antes de passar pela experiência. Assim, Mark o desafia,
afirmandoconseguirprovocarsuairaemapenasumfimdesemana.
MarktudofazparaqueGideontraiasuapregaçãopacifista.Elecriatoda
sorte de discórdias. Primeiramente seduz Lois, o que provoca ciúmes em David.
DepoisanunciaatodosahomossexualidadedeGideoneinsinuaqueaatençãoque
ele dá a David é movida porluxúria e não por motivos espirituais. Gideon e Lois
acabam discutindo e, ao final, Mark consegue seuintento. Em apenas um fim de
semana,eleprovocaadestemperançadeGideon,queestapeiaLois.
Apeça,demodogeral,nãofoibemrecebida,nempelopúblico,nempela
imprensa especializada. O próprio Shaffer ficouinsatisfeito com o resultado, tanto
que a reescreveu com o título de apenas
Shrivings
. Taylor (apud Cooke; Page,
1987) acredita que a reescrita de Shaffer melhora a peça, pois ataca o princi pal
defeitodaprimeiraversão,ouseja,afaltadeumadefiniçãodeestil oqueporvárias
vezesoscilaentreona turalismoeumestiloretóricomaisextravagante.Gianakaris
(1992)critica,ainda,afaltaumacar acterizaçãodepersonagensquesejacrível,ou
melho r, que l evantasse problemas reais. Ele afirma que a apresentação dos
personagens é simplista, principalmente a dos personagens centrais. Tanto a
caracterização de Gideon quanto a de Mark resvalam para o completo
maniqueísmo, com Gideon representando Deus (o bem) e Mark representando o
demônio(omal).
Comen taremos, agora, a peça que veio aprofundar as questões
metafísicasereligiosaseconfirmaraexcelênciadotrabalhodeShaffer:
Equus
.Na
referidaobra,Shafferestendeadi scussãodeumadesuastemáticasfavoritas,isto
é,abuscadeumdeus,deumadivindadeemquesepossaconfiar,queorganizee
dêsentidoàexistê ncia(Gianakaris,1992).Todavia,
Equus
tambémdiscute outros
67
temascomoconvençõessociais,repressãosexual,adoraçãoeconflitosfamiliares.
Shaffer também estende  seu trabalho no desen volvimento do conflito apolíneo
dionisíaco dos personagens, no caso, o psiquiatra Martin Dysart (Apolo) e seu
paciente Alan Strang (Dioniso). Tal como ocorreu em
The royal hunt of the sun
,
Shaffercriaumaficçãoapartirdealgunsfatosreais.Em
Equus
,elesebaseiaem
umahi stóriacontadaporumamigo,ahistóriadeumrapazdeumacidadedoi nterior
que trabalha em um estábulo e que reage violentamente a uma tentativa de
sedução,cegandovárioscavalos.
Maisumavez,John Dexterassumeadireçãodapeçae, como ocorreu
anteriormente,oresultadofoiumgrandesucesso.Gianakaris(1992) comentaque
Shafferconsegueumperfeitoequilíbrioen treanarrativaexterior,ouseja, oqueé
contado (as coisas as quais os personagens se referem) e a narrativa que é
apresentadanopalco.Háadramatizaçãoseguidadocomentário(racionalização)do
narrador(Dysart).Shafferjátinhafeitousodonar radorem
Theroyalhunt ofthesun
,
evoltariaafazêlodepoisde
Equus
em
Amadeus
e
Yonadab
.
Gianakari s (1992) tamm sustenta  que em
Equus
aflora a po rção
shafferi analigada às históri as de detetivesdoinício desua carreira.Nela, oleitor
(espect ador) é sempre levado do presente ao passado em uma tentativa de se
elucidar que fatos anteriores corroboraram para os desdobramentos da história.
Além desses elementos, a peça alia outros aspectos tradicionais da dramaturgia.
Para Gianakaris (1992), “o padrão da história policial compartilha suas
características com o teatro clássico gr ego de maneira que ambos estabelecem
primeir amenteumenigmae então,metodicamente,fornecemos fatosnecessários
pararesolvêlo”
53
(1992:93).Dysartéodetetive,opolicialqueprocurapistasque
venhamajudálo a desvendar o problemático Alan Strang. No entanto, Gianakaris
(1992) faz uma ressalva a seu próprio comentário. Para ele, a peça vai além da
perguntaclássicadosromancespoliciais,ouseja,queméoresponsávelpelofeito.
Shafferquestiona,ainda,osmotivosqu eensejaramaaçãoetammareaçãoda
sociedade,istoé,oqueelapodeoudevefazerarespei todessasações.
Aindacomo
Theroyalhuntofthesun
,
Equus
faz uso de rituais,máscaras
e de um coro, no entanto, desta vez em uma per spectiva bem diferenciada. A
53
“Thedetectivestorypattern sharesfeatureswithclassicalGreekdramainthatbothfirstestablishapuzzleand
thenmethodicallyfillinthefactsneededtoresolveit”.
68
história épica daquela permitiu todos os tipos de excessos; afinal, apesar da
temática semelhante, era a conquista de um império que estava sendo narrada.
Dessa forma, o havia o uso de  muitos recursos, como eles aind a eram
grandiloqüent es.
Equus
temumtombemmaisintimistae,aindaquefaçausodeum
coro(atoressentadosnopalcoquefaziamosbarulhosdo scavalos),máscaras(nos
atoresquerepresentavamcavalos)eumnarrador(Dysart),oháquesefalarem
exagero ou suntuosidade. Shaffer (1976: 204) descreve de talhadamente, na
publicaçãodotextodapeça ,ocenárioaser utilizado.Eleésimples,formadoporum
círculodemadeiraquecontémemseuinteriorumquadradotammdemadeira.O
quadradodeveriaparecercomumringuedeboxe,comcercasemtodososlados,
excetooqu eestávoltadoparaopúblicodoteatro.Aoladodecadaumadascercas
haveriaumbancodemadeirapi ntadodeverdee,aindanocírculo,ummastroque
serviriadeapoioaoatorquerepresentariaocavalo.Naáreaforadocírculo,haveria
tammbancos.OdoladoesquerdoserviriacomoacamadeAlannohospitaleo
lugarondeDysartassisteosacontecimentos.Odoladodireitoéusa dopor Dorae
Frank Strang (pais de Alan). Haveria, ainda, ao  fundo, outros ba ncos que
acomodariamosoutr osatores.Assim,todooelencodeveriaficarnopalcodurantea
apresentação. Segundo Shaffer (1976), eles funcionam como testemunhas,
assistentesecomocor o.
Ahistóriade
Equus
,conformejámencionamos,éahistóriadotratamento
psiquiátri codeAlanStrang.EleétratadopelopsiquiatraMartinDysartque,porsua
vez,estáemcriseconsigomesmo,questionandoseutrabalhoeotipodevida que
leva.ApeçainiciacomummonólogodeDysart;elevaiservircomoomediadore
comentadordasações.ArelaçãodeAlaneDysartéconfusaaprincípio.Alannão
parecequerer colaborar como tratamento,alémdisso, testa os limites de Dysart,
muitofragilizadoporvivenciarummomentopessoaldelicado.Aotentardescobriro
problema de Alan, por meio de conversas, jogos e vivências, para em seguida
trabalhar visando sua cura, Dysart questiona suas escolha s, sua vida e as
exigências sociais. O processo de “cura” de Alan implica necessariamente na
confor midade às exigênciasdeumasociedadequeagora Dysartquestiona.Como
comenta Gianakari s (1992), “Alan Strang e Martin Dysart consistem nas duas
metadesdeummesmoenigma.AcondutaindependentedeAlanéinaceitávelpara
69
a sociedade. As obri gações profissionais de Dysart em nome do estado não são
maisconfiávei sparaele”
54
(1992:99).
Éinter essantenotarauniãoentreosrecursoscenográficossugeridospor
Shaffereodesenvol vimento dos personagens.Ocenáriosugereumringuedeboxe
ondeestáprestesaseiniciarumal uta.Éumembateconstan tementerenovadona
obra shafferiana, o embate entre “conformidade” versus “individualidade”
(Gianakaris,1992:103),oucomoopróprioShaffe rsugere,aexpressãodionisíaca
seopondoaoautocontroleapolíneo.Aquioconflitoapresentaumaoutrafaceta,a
doconfronto entreosdesejosindividuaiseasexigênciassociais.
Depoisdoinegávelêxitode
Equus
eaconfirmaçãodefinitivadaqualidade
de seu trabalho, Shaffer escreve aquela que ia ser considerada sua maior obra:
Amadeus
. Em
Amadeus
, Shaffervoltaàs questões centraisem seu trabalho,mas
nada disso faz desta  peça uma obra repetitiva ou lugarcomum. Ela representa o
ápicedodesenvolvimentotemáticodeShaffer.Écomoseasoutrasobrasfossemo
caminho a ser trilhado para se atingir a compreensão máxima das questões
metafísicas levantadas pelo autor, e que somente viriam a se apresentar por
completonessa peça.
Shaffer faz uma pesquisa acurada da vida do grande compositor
WolfgangAmadeusMozart(1756–1791).Apartirdealgunsboatosqueocorreram
à época de sua morte, como aquele que Mozart acusa o compositor da corte,
AntonioSalieri,detêloenvenenado,Shaffercriaumahistóriaficcionalsobreavida
dessesdoismúsicos,seurelacionamento, seusconflitos,suasformasdepercebera
vida e de vivêla. A peça inclui também outras temáticas como inveja, traição,
talento, adequação social e a relação entre o homemeDeus.Éexatamente este
último elementooque é verdadeiramente explorado no decorrer da peça. Shaffer
usaestesdoisexpoentesdomundodamúsicaparaapresentarseuquestionamento
metafísico.
Para apresentar seu enigma, Shaffer se serve de alguns fatos reais.
Tanto Mozart quanto Salieri viveram e m Viena, que era considerada a capital da
música, e ambos gozaram de prestígio enquanto viveram. Contudo, Salieri viveu
maisconfortavelmentequ e Mozart,que morreunapo breza. Shaffertenta justificar
estefatoapartirdadistinçãoentrearelaçãode cadaum delescomamúsicaecom
54
“Alan Strang and Martin Dysart comprise two halves of the same puzzle. Alan’s independent conduct is
unacceptabletosociety.Dysart’sprofessionalobligationsonbehalfofthestatearenolongercredibletohim”.
70
asexigênciassociais.Enquantoo SalierideShaffereraconsideradoumhomempio,
queofereci aaseuempregadoreàsociedadeumtipodemúsicacompreensívelem
seutempoeque,emfacedisso,obtevereconhecimentosocialefinanceiro;Mozart
eraohomemaudaciosoeindependentequeinovavaemsuascomposiçõeseque,
apesardeinfinitamentemaistalentoso,nãoobtevetodoosucessoprofissional que
merecia.
Dessaforma,Shaffervoltaaquestionaraimportânciadaadequaçãoaos
padrões sociai s, temática já amplamente debatida em
Equus
. Mas Alan, o
personagem desajustado” de
Equus
, manifestou essa inadequação de maneira
maisextremada,umavezquecometeuumcrimeeseviuforçadoaseafastardo
meio social para se submeter a tratamento psiquiátrico. Mozart, diferentemente,
demonstra sua incapacidade de ajuste aos padrões por meio de uma rebeldia
infantil. Ele não choca a sociedade com atos de sprezíveis, mas com uma atitude
debochada,inconseqüenteeumpoucoarrogante. Seucasti gopeladesobediência
às normas o é o isolamento social, mas a impossibilidade da obtenção de um
prestígi osocialquecondigacomseutalen to.
Um dos aspectos mais r elevantes de
Amadeus
é o foco dado aos
personagenscentrais.Apesardesechamar
Amadeus
,apeçanãoésobreMozart,
masestácentradanafiguradeSalieri,emsuasaspiraçõesdesetornar umgrande
compositor e em sua frustração por compreender sua inferioridade em relação a
Mozart.Podemosvislumbrarnoprópriotítulodapeça
Amadeus
aconfiguraçãodo
embate entre Salieri e Mozart. O nome da peça reúne e identifica a raiz da
divergênciaentreospersonagens:enquantoSalieriamaaDeus(aomenosemum
primeir o momento); Mozart é o amado de Deus. Esse descompasso entre ser ou
nãoofavoritodeDeus,aqueleserdignodepossuirodomdivino,estánocentroda
disputadospersonagens.
Salieriéonarrador. TalcomoDysart,eleconvi daaplatéiaaassistiros
fatos paradepois comentálos. Nessediálogo” com o blicoele se esforçapara
conseguir sua cumplicidade, angariando apoio para sua tese. Ao público ele se
dirige, chamandoo de “meus confessores”
55
(Shaffer, 1984: 5) e convidandoo a
julgarosfatosqueelei ránarrar.
55
“[...]myConfessors[...]”.
71
Na realidade, o que Salieri deseja mostrar  não é apenas a falta de
merecimento de Mozart para gozar de tão extraordinário talento, mas a
impossibilidadedaexistênciadeumDeusconfiável.Oqueestádefatofuncionando
comotemaeeixocentraldetodaapeçaéadifícil,senãoimpossível,relaçãoentre
ohomemeDeus.Comoafir maodiretordaprimeiraversãodapeça,PeterHall,em
Amadeus
está presente a obsessão de Sha ffer, ou seja, provar a existê ncia de
Deusesuanatureza.AquiEleémostradocomoeg oístaeinsensível,preocupado
comsuasprópriasnecessidades,indiferenteaosofrimentodoshomens”
56
(Hallapud
Cooke;Page,1987).
Noiníciodapeça,SalieriprometeaDeusque,seforabençoadocomo
dom necessário para ser um grande músico, iria devotar sua  vida ao bem e à
virtude.Aoconseguirmudar separaVienaafimdeestudarmúsica,elejulga queo
Senhoraceito usuabarganhaeagedemodoahonrarsuapromessa.Todavia,ao
conhecerMozartesuamúsica,elesesentetraídoporDeus, poispercebequeDeus
premiou Mozart com o maior talento já visto pa ra música até então. Julgandose
enganado,SalieridesafiaDeusparaumabatalha.Abatalhaserátravadapormeio
deMozart,umavezqueSalieriovêcomooinstrumentodeDeusnaterra.Suavida
irá se resumir às tentativas de bloquear todoequalquer progresso de Mozart em
Viena.ArelaçãoentreoshomenseDeusé,assim,umarelaçãodifícil,nãofundada
em justiça ou no respei to aos acordos feito s. O deus de Shaffer é um deus
incoerente,injustoeat émesmonãoconfiável.
Mais uma vez, Shaffer dispõe seus personagens centrais a partir de
características apolíneas e dionisíacas. Tal como Pi zarro e Dysart, Salieri age
confor meoqueseesperadelee,comoosou tros,pagaumpr eçoporisso,poisvive
umavidaoprimi da.Poroutrolado,tantoAtahuallpaeAlanquantoMozart,vivemde
manei ramaislivre,mastammpagamumpreçoporsuasescolhas.Éoconfronto
entrerazãoeinstinto.
Depois do grande sucesso de
Amadeus
, Shaffer escreveu
Yonadab
. A
peçafoiinspiradapelolivro
TherapeofTamar
,deautoriadeDanJacobson.Este,
por sua vez, foi certamente inspirado pelas histórias bíblicas e lendas,
especialmentenocapítulotrezedosegundolivrodeSamuel,entitulado
Ocrimede
Amnon
. Ahistória se passa na Jerusalém do rei Davi. Amnon, filho de Davi, está
56
“[...]toprovetheexi stenceofGodandthenatureofGod.HereHeisshownasselfishanduncaring,following
Hisownneedsindifferenttothesufferingofman”.
72
apaixonado po r sua meioirmã Tamar. Seguindo o conselho de seu confidente e
primoYonadab,Amnontentaseduzila,mas,antesuarecusa,acabaporestuprála.
TamarperambulaseminuapelasruasdeJerusalémecontaoocorridoaseuirmão
Absalomqueficafurioso comAmnon.AbsalomafastaAmnonda corteeo manda
matar,mas,temendo areaçãodeDavi,fogedacorte.
Exatamentecomonaspeçasanteriormentecitadas,estatammpossui
seu narrador: Yonadab. É ele que conta a história e faz as veze s de mediador,
exatamentecomoDysarteSalieri.Contudo,YonadabnãoéotorturadoDysart,ouo
senil Salieri. Ele é um aproveitador que procura pelos pontos fracos de todos no
intuito de explorálos. Éelequem sugere a Amnon que a seduçãode Tamar não
representa um problema e ainda afirma que isso pode lhe garantir imortalidade.
Posteriormente, tenta manipular também Absalom, no entanto, já é tar de, pois
AbsalomjáestásendomanipuladoporTamar.
JuntoaPizarro,DysarteSalieri,Yonadabtammestáembuscadeuma
respost aparaaexistênciadeDeus.Eleparecemuitocético.Quandoestá prestesa
verAmnonabusardeTamar,desafia:“provequeEleexiste,finalmente! Permitaque
Ele me detenha se Elerealmente existe – Javé,oproibidor! “
57
(apudGianakaris,
1992:137).EledesafiaoDeusdeIsraelar eagiraseusatosdesprezíveis.Aofimda
peça, comoos outrospersonagens,mostrase poucoesperançoso e conclui:“que
escolha, eu lhes pergunto, é esta entre crer e não crer, onde qualquer delas é
letal?”
58
(apudGianakaris,1992:148).
Alémdatemática,
Yonadab
possuiemcomumcomasoutraspeçasouso
da mímica e ritos. No caso em questão a cena do estupro de Tamar, com uma
encenaçãoestilizada,vistaapenasatravésdassombrasdascortinaseadescrição
dacenadacaptu radeAmnon, comosguardas atingindo ocomflechas,crian doum
movimentosincronizado,simulandoumacópula.
No entanto,
Yonadab
nã o apresenta claramente o conflito apolíneo
dionisíaco. Yonadab se contrapõe a vários personagens como Amnon, Absalom,
Davi,TamareatémesmoDeus.Dessaforma,emnossoentender,oconflitonãose
configura. Gianakaris (1992) sustenta, entretanto, que o conflito se apresenta em
Yonadab
por meio do conflito entre o per sonagem título, que manipula todos os
57
“ProvethatHeexists,finally!LetHimstopmeifHeisthere–YavehtheProibitor!”.
58
Whatchoice,Iaskyou,isthis–betweenBeliefandNone,whereeachislethal?”.
73
outros,eAmnonquesedeixainfluenciarporqueageinsti ntivamente,umavezque
estáapaixonadoporTamar.
Finalmente,em1987, Shaffer deixaseus dramas metafísicos delado e
voltaaapresentarumacomédia:
LetticeandLovage
.Elafoibemsuce dida combom
públicoecr íticaspositivas.SegundoGianakaris(1992),foiexatamentenessapeça
que Shaffer desenvolveu de maneira mais extensiva os personagens ap olíneos e
dionisíacos. E, ao contrário de seus dramas, em que os protagonistas jamais
conseguem reconciliar suas naturezas distintas, em
Lettice and Lovage
, as
personagensLotte(Apolo)eLettice(Dioniso)conseguemcriarumaimprovável,mas
possível aliança entre pe rsonalidades tão divergentes. Como aponta Gianakaris
(1992:165):precisamostantodeorde mcomodecriatividadeemnossasvidasse
quisermosserpersonalidadescompletase,paraisto,fazsenecessárioumacordo
entreosdoisladosdenossasnaturezas”
59
.
Durante toda a seção fal amos dos personagens de Shaffer e de sua
caracterizaçãonoquedizrespeitoaconstruçãodeum confrontoquenomeamosde
apolíneodionisíaco.Con tudo,nãocomentamosdeondesur gemaidéiadoconflito,
tampoucoap rofundamosseu ssignificados.ApoloeDionisosãodeusesdamitologia
grega e, na próxima seção, apresentaremos a origem das característicasque são
tipicamente vinculados a eles. Partiremos da mitologia e caminharemos até os
desdobramentosdestanafilosofiaeartecontemporânea.
2.2PETERSHAFFEREOCONFLITOAPOLÍNEODIONISÍACO
NaspeçasdeShaffersãofeitasváriasreferênciasàmitologia.Em
Equus
e
Amad eus,
podemos encontrar menções a alguns nomes míticos, divindades e
lendas.Essasreferênciasmitológicastambémsãoencontradasnoconflitoessencial
que se desenvolve nas obras: o embate conhecido como dialética apolíneo
dionisíaca.Estatemática,comopudemosobservar,éumaconstantenotrabalhode
Shaffer,queexploraesseconflitoapa rtirdeseuspersonagens.Écomumqueseus
personagens colidam, promovendo o embate de uma per sonalidade racional
(apolínea)eumapersonalidadeinfantil(dionisíaca).Esteconfrontoestápresenteem
seus trabalhos mais importantes:
The royal hunt of the sun
(Pizarro e Atualpa),
59
“[...]werequireboth orderandcreativityinourlivesifwearetobewholepersonalities,andthat necessitatesa
compromisebetweenthetwosidesofournatures”.
74
Equus
(Martin Dysart e Alan Strang) e
Amadeus
(Salieri e Mozart) e
Lettice and
Lovage
(Charlotte e Lettice) sendo os primeiros os personagens apolíneos e os
últimososdi onisíacos.
OsnomesApoloeDionisoesuasrespectivascaracterísticasderivamda
mitologia grega. Ao se definir o mito, comumente dizemos que el e seria uma
tentativahumanadefornecerexplicaçãoparafenômenosnaturaisque,antigamente,
nãosepodiamexplicar.Todavia,segundoLeach(apud Grimal,2000),apercepção
da mitologia não deve ser feita a partir de “sua classificação como expressão de
mentalida de primitiva” (2000: vii), mas deve ser entendida como “uma verdadeira
ciência, recorrendo a metodologias próprias, operando em direções múltiplas e
apoiandose em outras disciplinas (psicologia, sociologia, etnologia, história das
religiões, lingüística, gnosiologia, antropologia, etc)” (2000: vii). De acordo com o
autor ,aspesquisasmíticascontemporâneasdividemseemtrêsgrandesvertentes:
as teorias funcionalistas;asteorias simbolistas e as estruturalistas. Em cada uma
destaslinhas teóricas existemos mais variados estudos, mas não noscabe aqui,
umaexplicaçãoexaustivadetodaselas.Nossointuitoéodefornecerapenasuma
explanaçãogeraldecadaumdosgrupos.
Asteori asfuncionalistasdefendemafunçãosocialdasnarrativasmíticas,
istoé,estasteoriasnãoenfocamosignificadointelectualouespiritualdo mito,mas
sua ação como fundamento de usos e normas de convivência. Nas palavras de
Jabouille (apud Grimal, 2000: vii), o mito é “uma ressurreição narrativa de uma
realidadeprimordial,contadaparasatisfaçãodeintençõesreligiosasprofundas,de
desejos morais, de submissões sociais, de certezas e, até, de necessidades
práticas”.
Já para as teorias simbolistas, o mito o se dirige apenas ao
entendimento,masàfantasiaeàrealidade.Cassirer(apud Grimal,2000 ),umdos
teóricosdalinhasimbolista,afir maque“omitoapóiasesobreumaforçapositivada
figuração e da imaginação, mais do que sobre uma espécie de deficiência do
espírito , sendo, assim, forma que cria significado” (2000, i x). Ele (mito) “surge 
espiritualmente sobre o mundo das coisas materiais como expressão colectiva,
poéticaeprimordialdi feren tedopensamentológi co”(2000,ix).
Um dos princi pais estudiosos das teorias estruturalistas foi Dumézil.
Segundooautor(apudGrimal,2000),todaaexperiênciahumanaédistribuídapor
meiodasreligiões.Osistemareligiosode umadadasociedadeseriaexprimidoem
75
uma “estrutura conceptual” (2000, xvi). O mito faria com que estas estruturas
fundamentais agissem. Desta forma, a partir do mito podemse perceber as
“relaçõesconceptuaisfundamentais”(2000,xvi).
O estudo da mitologia é tarefa árdua. O que se designa por “mitologia
clássica” é um objeto que agr ega toda sorte de na rrativas fabulosas das mais
diferentes épocas. Como fontes da mitologia, Grimal (2000) destaca as lendas
transmitidas pela tradição oral e que resultaram em algumas transcrições diretas,
alémdasfonteseruditas,queenglobamtratadostécnicoseob rasliteráriasquese
propunham a esclarecer pontos obscuros (parte das obras tentam interpretar as
narrativas fabulosas, ou tra parte tenta integrálas à história e há, ainda, as obras
(coleções)quesimplesmenteasrecol hem).Mas,mesmoseabstrairmosaquestão
da formação do que viria a ser posteriormente denominado mitologia, ou seja,
fábulas, histórias da tradição oral, lendas históricas, rituais religiosos etc, e nos
fixarmosnosdocumentosdisponíveisparaestudoa tualmenteavariedadeéenorme.
Desta forma, nossa expl icação acerca das divindades greg as se
restringiráaumadescr içãosucintadahistóriadosdoisdeuses.Vejamos,então,o
que a mitologi a tem a nos dizer sobre eles. Para entendermos melhorolugar de
ApoloeDionisonoOlimpogr ego,énecessárioconhecerumpoucocomosedeua
estruturaçãodouniverso.
Segundo a lenda sob re a criação, os primeiros seres a existir foram a
Terra,ÊreboeAmor.Amorseriaum“ovodaNoitequeflutuavanoCaos”(Bulfinch,
1999:11)ecomsuassetasiacriandovidaedistribuindoalegria.Surgiram,então,
osprimeirosTitãs,“filhosdaTerraedoCéuquesurgiramdoCaos”(Bulfinch ,1999:
11).OsTitãseramosdeusesprimitivos, entreelesestavam Cronos(Tempo)eOps,
paisdeZeus.
As idéias relativas a Cronos são, às vezes, confusas e opostas. E m
algunsmomentosseureinadoéapontadocomoaqueleemquepreponderouapaz
eai nocência;contudo, eletambéméapontadocomoummonstroquedevorouseus
própriosfilhos.Zeusfoioúnicodeseusfilhosqueconseguiuescapare,maistarde,
casouse com Prudência. Ela oferece um remédio a Cronos que, por causa do
remédio,vomitaseusfilhos.EstessejuntaramaZeuselutaramcontraCronoseos
demaisTitãs.Aovencerem,Zeuseseu sirmãosimpuser amcastigosatodos,sendo
que a maioria teve que permanecer aprisionada no Tártaro. Após a vitória, Zeus
divideosdomíniosdoreinocomseusirmãos.Poseidonficoucomosoceanos,Dis
76
comoreinodosmortoseostrêsdividiamaTerraeoOlimpo.Zeuseraochamado
deusdosdeusesoupaidosdeuses.Bulfinch (1999) explicaqueestasegundavisão
emrelaçãoaCronos,ouseja,aquelaemqueel eeraummonstro,era,defato,uma
falta de compreensão da idéia por trás do mito. Segundo o autor, como Cronos
(Tempo) sempre “traz um fim para todas as coisas que tiveram um começo, é
acusadodedevoraraprópriaprole”(1999:12).
Os gregos acreditavam que a terra era chata e redonda, ocupando a
Gréciaseucentro,maisespecificamenteoMonteOlimpo.Elaeradivididadeleste a
oestepeloMar(designaçãodoMediterrâneo),eaoseuredorestavaorioOceano.
Na parte norte, vivia um povo chamado hiperbóreos. Os gregos acreditavam que
estepovoeramuitofeliz,pois,alémdedesfrutaremdeumaprimaverapermanente,
não sabiam o que era a velhi ce, o trabalho ou a guerra. Na parte sul, vivia outro
povo virtuoso e abençoado, os etíopes. Eles eram tão especiais que, às vezes,
podiamgozardacompanhiadosdeuses.Noocidente,haviaumlocalchamadode
Campo s Elíseos, lá viviam antigos mortais que tinham sido favo recidos com a
imortalidade pelos deuses. Os deuses, po r sua vez, viviam no cume do Monte
Olimpo.Suamoradapossuía portasdenuvenseeraresguardadaporduasdeusas
chamadas de Estações. Apesar de viverem em casas distintas, os deuses
costumavamsereunirnopaláciodeZeuse,quandoconvocadosadiscutiralguma
questão, era para lá que deveriam se dirigir todos os deuses, os que viviam no
OlimpoeosqueviviamnaTerra,naságuasounossubterrâneos.
Zeus desposa Hera e eles têm filhos: Hefestoe Ares (deusdaguerra).
MasZeusfoiváriasvezesinfielaHera.Elaconseguiuimpediralgunsenvolvimentos
do marido; noutras ocasiões, não podendo evitálos, impôs castigos severos às
rivais.Aindaassim,Zeusteveoutrosfil hoscomo:Apolo,Ártemis,Hermes,Dioniso,
asMusas,entreoutros.
Apolo era filho de Zeus e Leto (Latona). Hera, enfurecida  de ciúme,
castigou Leto negandolhe um lugar onde pudesse ter seus filhos. Le to vagou de
terra em terra sem nunca encontrar abrigo, pois todos temiam Hera. Até que ela
chegouaOrtígia(Astéria),umailhaflutuanteemquefoirecebida.ÉláqueLetodáà
luz aos filhos gêmeos (Apolo e Ártemis). Então, Zeus prende a ilha flutuante no
fundo domareailharecebeonomedeDelos,abrilhante.Zeusenviapresentes
paraofilho:umamitradeouro,umaliraeumcarropuxadoporcisnes.
77
ApolofoiodeusmaisveneradonopanteãogregodepoisdeZ eus,opai
doscéus.Erarepr esentadocomoumdeusmuitobelo,dealtaestaturaedelongos
cabelos. Ele transmitia ao s homens os segredos da vida e da morte. O deus é
conhecidopelahabilidadedousodaflecha,eépelousoquefazdelaqueelemata
o dragão Píton e se apodera do oráculo de Têmis. Assim ele esta belece o mais
célebredosoráculosgregos,ooráculodeDelfos.Existiamsantuáriosdedicadosa
essadivindadeemtoda Grécia;aeleeraconsagradootemplodeDelfos,odemai or
importâncianaGrécia,mencionadonaIlíada.OpoderdeApoloseexerciaemtodos
os âmbitos da natur eza e do homem. Por isso, suas inovações eram múlti plas e
variadas.Eraidentificadocomoodeusdamúsica,dapoesia,da adivinhação,deus
pastor aledeusguerreiro.Tinhapodersobreamortepodendoevitálae afastála.
Asclépio, o deus da  medicina , era seu filho. Era considerado também deus da
músicaportervencidoodeusPãemumtorneiomusical.Seuinstrumen toeraali ra.
NumaépocatardiafoiidentificadocomoHélios,deusdosol,poiseraantesodeus
daluz.
JáDionisoerafilhodeZeuseSêmele.Hera,muitoenciumada,tomoua
formadacriadadeSêmeleeinstigouqueestapedisseumaprova deamoraZeus.
A tarefa consistia em provar que ele era mesmo o pa i dos céus. Assim, Sê mele
suplica que eleusesuas vestesdivinas.Zeusafastaseabatido,mascumpre sua
promessa.ElesabequeSêmele,umamortal,oserácapazquesobreviver,oque
de fatoocorre,pois, ao vêlo vestidonos trajes reais,Sêmele é ofuscada por sua
radiaçã oeécarbonizada.MasZeusconsegueretirarofilhodoventredamãeeo
põeemsuacoxaatéquesecompleteagestação.Apósonascimento,Zeusentrega
DionisoaHermes,queoconfiaaoreiÁtamasesuaesposaIno,nãoesquecendode
advertilos de que o menino deveria se disfarçar no intuito de ludibriar Hera.
Contudo,Heranãosedeixaenganareenlouqueceatod os.Assim,Zeusoentrega
às ninfas e sátiros do monte Nisa para que eles cuidem do garoto, no entanto,
temendoqueHeraoreconhecesse,transformaoeumcabrito.
Aocrescer,Dionisodescobreaculturadavinhaeafo rmadeextrairseu
suco. Mas, ainda como parte do castigo de Hera, que o enlouquece, vagueia por
muitotempo.Jácuradodesualoucura,DionisovaiàTráciaeàÍndia.Depois,volta
à Gréciaparai nstituirel e mesmo seu culto . No entanto, quandochegou a Tebas,
Penteu, o rei, proíbe a execução de seus ritos. Apesarda proibição, as pessoas,
especialmente as mulheres, vão ao  encontro de Dioniso para recebêlo. Irritado,
78
Penteu manda que aprisionem o deus, alegando que seu culto é falso. Como
Dioniso o é capturado, Penteu resolve ele mesmo ir ao local do culto.
chegando,surpreendeseaoversuaprópriamãe,Agave,entreosadoradores.Ao
vêlo,asmulheres,emestado deêxtase,tomamnoporumjavali eoperseguem.
Penteu tenta escapar, mas acaba sendo morto. É assim que a mitologia explica
comofoiestabel ecidoocultoaDioni so.
Dionisoeraadivindadegregadanatureza,tammconhecidocomodeus
do vinho, da vegetação, da inspiração  e do delírio místico. O culto a Dioniso era
marcado pelo êxtase. Nos festivais realizados em sua homenagem, que eram
basicamente festas da primavera e do vinho, o deus em forma de tour o
freqüentemente lideravabacantes,sáti ros,ninfaseoutrasfigurasdisfarçadaspara
osbosques.Elesdançavam,desmembravamanimaisecomiamsuascarnescruas,
ealcançavamumestadodeêxtase.Pori sso,ocultododeusse estabeleceu contra
muita oposição, princi palmente da aristocracia. Homero, por exemplo, não
reconheceDionisocomoumdosgrandesdeusesolímpicos.
Essas são as explicações mitológicas que fundamentam as
características imputadas aos deuses. Dessa forma, as características apolíneas
representariam a face clara, racional  do homem; enquanto as características
dionisíacas sua face obscura e passional. Explicaremos, agora, quando pela
primeir avezsemencionouoembateapolíneodioni síaco.
Foi Nietzsche, em seu livro
A origem da tragédia
(1872), quem fez a
primeir a menção ao conflito apolíneodionisíaco. De acordo com Machado (2005),
naintroduçãode
NietzscheeapolêmicasobreOnascimentodatragédia
,sãotrês
asidéi asmaisimportantesapresentadasnolivro:aprimeiraéumaexplicaçãoda
origem, compo sição e finalidade da arte trágica grega” (2005: 7); a segunda é a
constatação da “morte da arte trágica perpetrada por Eurípedes” (2005: 9) e a
terceiraéademonstraçãodoretornoda“concepçãotrágicadomundo”(2005:11)
emalgumasmanifestaçõesculturaisdesuaprópriaépoca,maisespecificamentena
músicadeRichardWagner.
Aprimeiraidéiadefendidanolivro, ouseja,aquelaqueprocuraexplicara
tragédiagregaemsuaconstituição ,estáfundadanosconceitosdoqueéapol íneoe
dionisíaco. Estes conceitos, por sua vez, foram profu ndamente infl uenciados pela
teoriadeSchopenhauer esuasidéiassobrevontadeerepresentação.Essefilósofo
tem po r base alguns pressupostos de Kant (17241804) e sua concepção de
79
fenômeno. Kant distinguia o que chamava de fenômeno (o que nos aparece) e a
“coisaemsi”(oqueexistiriaemsi  mesmo), sendoqueestaúltima,jamai spo deria
ser objeto do conhecimen to científico. Mas Schopenhauer discordou dele, e em
conseqüência disso de todo pensamento metafísico clássico, por acreditar que é
possível que a consciência alcance a “coisaemsi”, isto é, a r ealidade não
fenomênica.
ParaSchopenhauer(1980),omundoérepresentaçãoeestefat oimplica
na aceitação da existência de dois pólos inseparáveis: o objeto, con stituído de
espaçoetempo,eaconsciênciasubjetiva,quepossibilitaapercepçãodomesmo.
Já o conceito de vontade é r esultado da paixão e das aspirações humanas, é a
“coisaemsi”,a aspiraçãoúltimadetodoserhumano,seu  desejodepreservação.
Essavontadenãoéalgoracional,masumquererquesubjazaconsciênciahumana.
Uma vez que essa vontade nunca será satisfeita em sua plenitude, ela será uma
permanentefontededor.Parafugiraessador,o homempodebuscarummomento
fugaz de prazer que, segundo Schopenhauer, viria da arte, da contemplação
artística. Eleafirma:
Ogostodobelo,oconsoloproporcionadopelaarte,oentusiasmodoartista,
alhefazeresqueceraspenasdavida,estaúnicaprerrogativadogênioem
relação aos outros, a compensálo pelo sofrimento também crescente na
mesma medida da lucidez da consciência e pela solidão árida numa
multidãoheterogênea–tudoistorepousaemque,comoveremosaseguir,
oemsidavida,av ontade,aprópriaexistência,éumsofrimentocontínuo,
empartemiserável,emparteterríveomesmoporém,consideradoúnicae
puramente como representação, ou reproduzido pela arte, apresenta um
espetáculosignificativo,destituídodesofrimento(Schopenhauer,1980:81
82).
Paraele,erainequívocaasuperioridadedamúsicaemrelaçãoàsoutras
artes.Essaidéiadevontadecomoaessênciadomundo,tendoamúsicacomosua
expressãoimediataéfundamentalparaNietzsche.Paraeste,éamúsicaquetorna
aartetrágicapossível.Mas,paraentenderestaafirmação,éprecisocompreender
asnoçõesdoapolíneoedodionisíaco.
O apolíneo está obviamente ligado a Apolo, o deus do sol e do br ilho.
Logo,omundoapolíneoéummundoquenegaoladosombriod avida,criandouma
espéciede“proteçãopela aparência”(2005:7).Naspalavras deMachado(2005),
“osdeuseseheróisapolíneossão apar ênciasartísticasquetornamavidadesejável,
encobri ndo o sofrimento pela criação de uma ilusão. Essa ilusão é o princípi o de
80
individuação” (2005: 7). Seriam características do mundo apolíneo a medida, o
comedimentoeatranqüilidade.
JáomundodionisíacoestárelacionadocomocultoaDioniso:oscortejos
eoêxtasedepe ssoasquecantam edançam.Aoinvésdoprincípiodeindividuação,
da experiência da individualidade, temse a iia de comunhã o, seja com as
pessoas,sejacomanatur eza.Assim,odionisíacorepresentariaummundopleno,
semfronteirasouquaisquermedidas.OucomodisseMachado(2005),“odionisíaco
produzadesintegraçãodoeu,aaboliçãodasub jetividade;produzoentusiasmo,o
enfeitiçamento, o abandono ao êxtase divino, à loucura mística do deus da
possessão”(2005:8).
Nietzsche acredita que a tr agédia grega nasce da aliança entre os
princípios apolíneos e dionisíacos. Para ele (2005: 27), “o progresso da arte está
ligado à du plicidade do apolíneo e do dionisíaco”. É importante salientar em que
ponto, para Nietzsche, a tragédia e a músi ca se contatam. Apesar das diferentes
teoriasparaaorigemdatragédia,Nietzscheacreditanahipótese aristotélicadeque
a arte trágica advém do culto di onisíaco e, por isso, está intimamente ligada à
música.Eleafirma:“atragédiaseoriginadocorotrágicoequefora,primitivamente,
somentecoroenadamaisqueocoro,peloquetemosaobrigaçãodefitarestecoro
trágicocomooverdadeirodramaprimitivo”(2005:48).Contudo,para ele,atragédia,
aindaqueorigináriadamúsicacomoarteessencialmentedionisíaca,nãoésomente
isso, a tragédia é tamm palavra, ela tamm é cena. É neste ponto que os
componentesapolíneosedionisíacossefundem.ComoconcluiMachado(2005),
[...] fundada na música, a tragédia, ex pressão das pulsões artísticas
apolíneaedionisíaca,uniãodaaparênciaedaessência,darepresentação
e da vontade, da ilusão e da verdade, é a atividade que dá acesso às
questõesfundamentaisdaexistência(2005:9).
Aquiérelevantefazerumapequenadigressãopar aexplicitar,aindaque
superficialmente,apolêmicasobr easorigensdatragédia.Estadiscussãoseráútil
para que, posteriormente, possamos entender as críticas do s filólogos ao livro de
Nietzsche. Ainda que a versão aristotélica da origem da tragédia seja bastante
respeitada,sendoconsideradaumadasmaisaceitaspelosestudiosos,elatamm
possuiopositores.
Segundo a
Poética
de Aristóteles, a tragédia e a comédia surgiram da
improvisação do s solos dos ditirambos. Os ditirambos eram r efrões improvisad os
81
entoados para ho menagear o deus (Dioni so) em celebrações rurais e procissões
chamadasdeKomoi.Acomédiaeatragédiateriam,por tanto,umaorigemcomum.
Apartirdesseinício
(tantoatragédia,comoacomédia:atragédiados solistasdoditirambo;a
comédia, dos solistas dos cantos fálicos, composições estas ainda hoje
estimadasemmuitasdasnossascidades),[atragédia]poucoapoucofoi
evoluindo,àmedidaquesedesenvolviatudoquanto nelasemanifestava;
até que, passadas muitastransformações, atragédia sedeteve, logo que
atingiuasuaformanatural(Aristóteles,1992:108).
Segundo Rehm (apud Luna,2005),aprimeirareferência aosditirambos
está em um fragmento do poeta Arqu íloco(no século VII a.C.)em que ele afirma
saberfazerumditiramboemhonraaDioniso.Contudo,segundoEud orode Sousa
(apud Luna, 2005), as informações quanto à origem do ditirambo são confusa s e
vários testemunhos históricos dão conta de ou tras versões. Por exemplo, há um
relato deHerótodo que diz tersidoÁrionoprimeiro a cantar umditirambo,eisto
teriasedadoemCorinto.Masháoutrosrelatos,comoodeProclo,queconfirmao
local(Corinto),mas atribuioprimeiroditiramboaPíndaro.
Aoqueparece,emsetratandodaorigemda tragédia,afaltadeprecisão
éaspectoinarredável.MesmoparaAristóteles,oditirambonãodeveserencarado
comooúnicoelementoaoferecerargumentosparaaorigemdatragédia.Pois,se
assimfosse,segundoEudorodeSousa(naintroduçãoda
Poética
),opoematrágico
deveria estar ligado somente ao mi to dionisíaco. Todavia, para ele isto o
corresponde à verdade, vez que “a argumentação  das tragédias, tanto a que se
conhecedirectamentepelosdramasconservadoscomoaqueseinferedosnomese
referênciasadramasperdidos,demonstraqueoéomitodionisíaco,massima
lendaheróica, asubstância,digamos,dopoematrágico”(Aristóteles,1992:5152).
Existem também, de acordo com Luna (2005), várias evidências que
sugeremqueastragédiasnãosurgiramcomaevoluçãodosditirambos.Aprimeira
delaséofa todosditirambosnuncateremdeixadodeexistireteremcon tinuadoa
fazerpartedascompetiçõesdosfestivais.Assimsendo,atragédianãorepresentaria
suaevolução.Umaoutraevi dênciaéaquelaqueapontaparaumaincongruênciaem
relação ao coro ditirâmbico e o trágico. O coro ditirâmbico era formado por 50
membroseestesousavammáscara;masocorotrágico,queeraformadoporno
máximo 15 membros, usava obrigatoriamente as máscaras. Este fato vai de
82
encontroaoargumento,segundooqual,a utilizaçãodemáscarastinhaseorigi nado
noespíritoreligiosoprimitivodaartetrági ca.
Uma outr a versão para a origem da tragédia é aquela que afirma ter a
tragédia se originado de encenações trágicas em áreas rurais. Segundo essa
versão, a tragédia terseia iniciadoa partirdo culto aodeus Dioniso Eleuthereus,
cultoestequefaziapartedocalendáriofestivodeEleutéria,umacidadequedepois
viria a ser anexada a Atenas por volta de 5087 a.C.. Após a anexação, os fiéis
“realizavamumaprocissãosacrificialreencenandoaincorporaçãodocultoaodeus
em Atenas” (Luna, 2005: 69). Esta versão se confronta com a teoria de que a
primeir a competição trágicaoficial”na Grande Dionisía
60
ocorrera em Atenas 534
a.C., pois existiria um lapso de tempo muito grande a separar os dois eventos:
aprimeiracompetiçãotrági caeaanexaçãodeEleutéria.
Há ainda algumas versõe s sugeridas pela enciclopédia britânica. Essas
versões são con ciliatórias, pois não afastam de todo a idéia ari stotélica, mas
apontamparaoutroselementosaserem considerados.Emumadessasversões,as
dançaseencenações depovosprimitivosquequeriamlouvarseusmortosseriam
umfat orcomuma colab orarcomaidéiadequeessesritosvieramasedesen volver
noquedepoissechamoude tragédia. Umaou trahipótesesugeridaseriaaquela
em que “a tragédia em sua s origens estaria vinculada a cel ebrações rituais do 
sofrimento de um deus cíclico anual, o
Eniautos – Daimon
, que nasce, cresce,
reproduzseemorrecomasestações”( Luna,2005:73).
Independente das polêmicas, ou seja, advindo ou não da evolução dos
ditirambos,Luna(2005)enfatizaqueaorigemdatragédiafoisemdúvidainspirada
pelas epopéias homéricas que ofereceram as primeiras reflexões acerca do
trágico
61
. A autora, ao comentar a distinção entre o trágico e a tragédia,
relacionandoaaosconceitosdoapolíneoedodionisíacodeNietzsche,afirmaque 
[...] a obra de Homero seria a representação por excelência da arte
apolínea,umarendiçãodaarteàplastici dadedasimagensdossonhos,daí
seu encantamento e a receita de manipulação que desvia do trágico.
Apesardasreiteradascenasdemorte,asepopéiashoméricasprojetam,em
60
GrandeDi onísia,ouDionísiasUrbanas,eraumdosmaispopularesfestivaisreligiososdaGréciaantiga.Essa
festa de tributo a Dioniso, deus da vegetação e da fertilidade, ocorria no final de março e contava com a
realizaçãodeváriascompetições,entreelas,ascompetiçõesdramáticas(Luna,2005).
61
SegundoLuna(2005),hádistorçõesna compreensãodotrágico.Estenãosignificanecessariamenteamorte,
masestáligadoaodesafiodalógicadecausalidade,aoincompreensível,aoinaceitável,“àdoreaosofrimento
naexperiênciadoexistir”(2005:19).Aautoralembraque,emváriosmomentosdaepopéiahomérica,amorte
levaareflexõesediscursosquesãoumverdadeiro“hinodelouvoràvida”.Assim,osepisódiosdemortedaobra
homéricaseriamapenasaparentementetrágicos.
83
primeiro plano, um radiante mundo de aparências, que apenas deixa
entrever, mas não alimenta o trágico. De suas cenas emanam, sim, o
deleite,oprazer,ocontatoindoloridocomosofrimento(Luna,2005:33).
Para ela, além das obras de Homero, é indubitável a influência da organização
social grega, repleta de exemplos ritualísticos e encenações teatralizadas. Essas
encenaçõesnãoserestringiamàvidareligi osa,masestavampresentesemrituais
domésticos(casamentosefunerais)eemrituaisdaesferablica(osdiscursosnas
assembléi as e nos conselhos, julgamentos, palestras em locais públicos etc).
Obviamente, havia os festivais religiosos de homenagem aos deuse s com suas
marchas, vestimentas, procissões, sacrifíciodeanimais, competições atléticas etc.
Tudoi ssoveioaauxiliarosurgimentoeamanutençãodaarteteatral.
Impo rta deixar assinalado, todavia, que apesar de toda polêmica e
contradição,aversãoaristotélicadaorigemdatragédiagozademuitoprestígio.Isto
ocorre,acimadetudo,pelofatodeAristótelesterdiscorridosobreessaquestãono
séculoIVa.C.,ouseja,ele escreveua
Poética
emumperíodo muitopróximodos
eventoscomentados,oquevalida sobremaneirasuaopinião.
Luna(2005)lembraquesejadeforma diretaouindireta,atragédia,em
suaorigem,estádealgumaformavinculadaaocultodeDioniso,poisindependente
desuasorigens,ascompetiçõestrágicasocorri amnosfestivaisdedicadosaodeus.
Aautoratammcomenta que,àprimeiravista,soa um tantoestranhovincularo
deusdafertilidade,davidaedoêxtaseaoelementotrágico.Maselatambémsugere
que este par adoxo faz parte  da compreensão das características dionisíacas. Ela
diz:“ aceitemosDionisocomopa tronodatragédia,nãocomoarautodamorte,mas
como um deus que garante a celebração da vida a qualquer preço, inclusive ao
preçodotrágico”(2005:56).
DevoltaaNietzscheesuateoriasobreaorigemdatragédia,percebemos
queeleacei tapartedasteoriasdeAristótel es,masadesenvolveàsuamaneira.É
assimqueNietzscheconseguealiarseusprincípiosdoqueéapolíneoedionisíaco,
permitindoavinculãodatragédiaprimitivaeamúsica.
UmadasoutrasidéiasdefendidasporNi etzscheéaquelaquedizrespeito
ài nfluênciadeEurípedesna“morte”da tragédia.Segundoele,Eurípedesteriasido
o trágico que foi influenciado pela época socrática e seu racionalismo. Par a
Nietzsche(2006),Sócratesrepresentariao“racionalismoingênuonocampoético”,
enquanto Eurípedes seria o “poeta desse racionalismo ingênuo” (2006: 29). Ele
84
acreditaqueSócrates,natentativadetudoracionalizar,defazercomquetudoseja
compree ndido,acabapordestruiroespaçodo instintonaarte.Eurípedes,comoo
dramaturgo que se rende a estes preceitos, aniquila com o lado dionisíaco na
tragédia e isso acontece, acima de tudo, pela diminuição da importância do coro.
Semaforçadamúsica,doobscuro,doinstintivo,enfim,semametadedionisíaca,
Nietzsche acredita que a tragédia morre, e com ela o verdadeiro espírito da arte.
Machadoexplicaque,paraNietzsche,
[...] enquanto a metafísica do artista trágico, em que a experiência da
verdade dionisíaca se faz indissoluv elmente ligada à bela aparência
apolínea,écapaz,comsuamúsicaeseumito,dejustificaraexistênciado
‘piordosmundos’,transfigurandoo,ametafísicaracionalsocrática,criadora
doespíritocientífico,éincapazdeexpressaromundoemsuatragicidade,
pelaprevalênciaquedáàverdadeemdetrim entodailusãoepelacrençade
queécapazdecuraraferidadaexistência(Machado,2005:1011).
SegundoLuna(2005),éforçosodistinguirotrágicodatragédia.Otrágico
seria o acontecimento difícil para a compreensão humana por ser “imotivado,
inesperadoouimerecido”(2005:19).Atragédia,porsuavez,éogê neroquetrata
do trágico. O ser humano, ao dramatizar o trágico, busca um sentido para seu
mistério e acaba por promover sua racionalização. Essa racionalização ocorre
notadamentepelaimputaçã o daculpa,oquepermiteacriaçãodeumaseqüência
decausaeefeito.Assim,otrágicodeixariadeserinescrutável,injustificado, parase
torna r um resul tado de ações anteriores. Contudo, Luna (2005) adverte que “ao
enquadrálonalógicadar acionalidade,atragédiasedeparacomoslimitesdessa
mesmalógica”(2005:25).
Depois de expl anar a origem e a constituição da tragédia, Nietzsche
atestasuamorteeexplicaqueessefatoafetatodaaculturaocidental.Umavezque
aculturaocidentalfoiabsolutamenteinfluenciadapelomundogregoeestepelaarte
trágica,  seria forçoso aceitar a relação entre esses elementos. Dessa forma, a
“morte” de um (tragédia) implicava na morte” do outro (cultura ocidental). Mas
Nietzsche também acredita que as duas metades da ar te trágica podiam se
reconciliarna moderni dade.Istosedariapelamúsica.Eleacreditavaquealgumas
manifestaçõesculturaisdeseutempo,comoamúsicadeWagner,poderiamrefletir
oespíri tomaisprofundodatragédiagrega.
Nessesentido,ouseja,nessapossibilidadedetrazeràton aoespíritoda
arte grega, a Alemanha desempenhava um papel de destaque. Para Nietzsche, o
85
caminhopercorridopelamúsicaalemãdeBachaWagner,passandoporBeethove n,
seriaumaevidênciainequívocadodespertardoespíritoalemãoe,emdecorrência
disso, também o despertar do espírito dioni síaco na arte. Dessa forma, ele
acreditava que a filosofia (Kant e Schopenhauer) e a música alemãs seriam
essenciaisparatrazerdevoltaametadedionisíacadaarteeaconcepçãotrágicado
mundo.Eleafirma:
Dofundodionisíacodoespíritoalemãoelevouseumaforçaquenadatem
em comum com as condições primitivas da cultura socrática, não sendo
explicável nemdesculpávelporestas,eque,muitopelocontrário,ésentida
porestacultura,comoohorrívelinexplivel,oprepotentehostil,amúsica
alemã,comodeveserentendidaemsuapoderosamarchasolardeBacha
Beethoven, de Beethoven a Wagner. O que poderá fazer o socratismo
desejosodeconhecimentos,nomelhordoscasos,comestedemônioque
seelevadeprofundezasinsondáveis?(Nietzsche,2005:105).
Aesserespeito,Nietzscher ecebeoapoiodeRohde
62
,queendossaseu
pontodevistanaresenhapublicadadolivro.Estefinalizaaresenhadesejandoque
a obra e as idéias que ela propaga tenham grande rep ercussão junto ao povo
alemão.
Aorigemdatragédia
foi umlivroqu ecausoumuitapolêmicaà suaépoca.
Ele ensejou alguns comentários positivos; entretanto, as críti cas foram, em sua
maioria,negativas.Entreseuscríticos,estavaseuprofessorRitschl,queescrevea
Nietzsche para dizerlhe que discorda de sua interpretação. Mas Ritschl o faz de
manei ra polida, justificando sua discordância pelo fato de estar em uma idade
avançada e, em conseqüência disto, pouco inclinado a abrar idéias tão
inovadoras. Foram vários seus comentários, primeiramente, Ritschl discorda do
métododeest udopropostoporNietzsche,poisestecriticaamaneiradeseestudar
filologia,ouseja,umamaneiratotalmentecientífi caeapartadadafilosofiaedaarte.
Ritschl ainda viu nesse fato um desprezo injustificado pela ciência com possíveis
desdobramentosnegativosnaeducaçãodo sjovens.Alémdessesdoisfatores,ele
tamm criticou a visão de Nietzsche acerca da  tragédia grega e do helenismo,
considerados de maneira a forjar uma impor tância excessi va. Há ainda críticas a
questõespropriamentefilológicas,comoaorigemdatragédi aapartirdamúsicaea
interpretaçãodospoetastrágicos.
62
ErwinRohdefoiumfilólogocolegadeNietzschenauniversidadedeLeipzig.Elefoiconvidadoeaceitouredigir
aresenhadolivro
Aorigemdatragédia
.
86
Todavia, as observações de Ritschl o foram, de maneira alguma, as
mais ácidas. Ainda estaria por vir o folhetode autoria do jovem doutor Ulrich von
WilamowitzMöllendorff:
Filologia do futuro!  uma réplica a O nascimento da
tragédia
. O tom do escrito é notadamente irônico, nele Wilamowitz critica a
orientação do livro de Nietzsche, acusandoo de estar mais inclinado a ser um
religiosoqueumcientista.Arespeitodisto,debochadizendoque
Nietzschenãoseapresentacomoumpesquisadorcientífico: suasabedoria,
conseguida pela via da intuição, é exposta ora ao estilo de um pregador
religioso, ora em um
raisonnement
que só tem parentesco com o dos
jornalistasescravosdafolhadodia(apudMachado,2005:56).
Ao comentar a crítica de Nietzsche ao socratismo, o autor escreve: “o tempo do
homemsocráticopassou.Essaespéciepeculiardenossogênerochamasetamm
homem teórico, crítico, otimista, nãomístico, e todas essas coisas arrepiantes”
(apudMachado,2005:56).Aoqueemenda comvirulência,“gostariadeserdignodo
insultode‘homemsocrático’oudepelomenosmerecerotítul odehomemsaudável
(apudMachado,2005:57)”.
Wilamowitz censura, ainda, uma série de conceitos defendidos por
Nietzsche,especialmenteas interpretaçõesdadasa ApoloeDionisofundadasem
Schopenhauer eWagner. Ele discorda, por exemplo, da deno minação atribuída a
Apolode“deusdaaparência”pelofatodeleserbrilhante”,deacordocomaraizdo
nome.Lembra,tamm,queoApolodeHomeronãoé omesmodoséculoVIII,pois
sua importância tanto no aspecto político como religioso não era pleno àquela
época.
Alémdessascríticas,eleelencaumgrandenúmerodediscordânciasque
dizem respeito às análises filológicas de Nietzsche. Uma delas se refere à
introduçãodocantopopularporArquíloco.Wilamowitzdiscordadacomparaçãofeita
entreapoesiadeArquílocoeascançõespopulares,sustentandoqueArquílocofoi
umpoetalíricoqueescreviasobreoquesentia,logo,opodendosercomparado
aos poetas anônimos das canções populares. Com r elaçã o ao ditirambo, o autor
sugere o desconhecimento de Nietzsche que, no seu entender, afirma que o
ditirambosemprefoicantado po rumcorodesátiros,ignorando, dessaforma,seu
processoevolutivo.Porfim,tammseopõeàsidéiasdequeatragédiasurgeda
música,ouqueelalevouodesenvol vimentodestaàperfeição.
87
A crítica ferina deWilamowitz o ficou sem resposta. Ri chard Wagner
intercedeu por Nietzschepormeio de umacarta aberta,em que critica a filologia,
chamandoa de retrógrada (ao contrário do que queria o próprio Nietzsche).
TambémRohdesaiuemdefesade Nietzsche,aoescreverumacartaemrespostaa
Wagner . MasasdefesassomenteensejaramumnovoataquedeWilamowitzque,
destafeita,ficousemresposta.
EudorodeSousa(apudAristóteles,1992),nocomentárioda
Poética
,faz
umaobservaçãobastanteinteressantearespeitodaobradeNietzscheedacrítica
deWilamowitzàmesma.Eleafirmaqueafaltadeprecisãohistóricaefilológicaque
Wilamowitz imputa a Nietzscheparece desnudar suaestreita visão acercado que
este último propõe. Assim, Wilamowitz, o filólogo, o cientista, “não chegava
cientificamenteaapercebersedeque,emverdade,oforaaorigemhistóri cada
tragédia grega, pura e simples, a questão que mais poderosamente solicitara”
Nietzsche(1992: 49) . Há, portanto, um descompasso ao  se tentar dar resposta s
filológicas a questões fenomenológicas. Cabenos, desta feita, explicitar as
definições de Eudoro do Sou sa ao tratamento da filologia e da fenomenologia no
quedizrespeitoàtragédiagrega.Emsuadefinição,afilologiaseocupariaem
[...] achar formas literárias, testemunhadas ou hipotéticas, que, uma vez
justapostasnotempo,figurematrajectóriahistoriáveldatragédiagrega.A
este aspecto do problema corresponde o método filológico, de exclusivo
recurso à análise dos textos, à crítica das fontes, à exegese e à
hermenêutica(1992:50).
Porsuavez,aotratardatragédia,Nietzscheteriatidooutrospropósitos,maisafeitos
aosestudosfilosóficos.SegundoEudorodeSousa,nafenomenologia
[...]oproblemaconsi steemdescobrirogradualdesenvolvimentodopróprio
fenômenotrágico,damesmatragicidade,cujosprimórdiossenosdeparam,
napsicologiaenaetnologia,emersosdapenumbradasubconsciênciaeda
préhistória do homem e dos povos gregos. Método mais adequado à
naturezadoproblemanãohá,quenãosejaofilosófico,nagenuínaacepção
dapalavra(1992:50).
OqueapresentamosatéaquifoiumaamostradasteoriasdeNietzsche 
no i ntuito de situar nosso estudo dos personagens shafferianos. Obviamente, nã o
afeta tão diretamente nosso estudo o fato de as idéias defendidas por Nietzsche,
sejaaidéiadaorigemdatragédiagregafundadanosconceitosdoembateapolíneo
dionisíaco,ouaidéiadarelaçãoentreatragédiaeamúsica,ouaindaaidéiado
88
renascimentodo espíritodomitodatragédianamúsicadeWagner,seconfrontarou
não com os da dos filológicos e históricos. O que realmente nos interessa é a
influênciadaobradeNietzscheemShaffe reseureflexonacaracterizaçãode seus
personagens.
A respeito do conflito apolíneodionisíaco, Shaffer  acredita em sua
existênciaeadmiteservítimadoembatede ssasduasforçasopostas.Todavia,ao
contrário de Nietzsche, que propõe a conciliação dos espíritos apolíneos e
dionisíacosnodesenvolvimentoda arte,Shafferacreditaseressafusãomuitodifícil.
Acercadissoelediz:
Existe em mim uma tensão contínua entre o que creio imprecisamente
poder chamar de lados apolíneos e dionisíacos de interpretar a vida [...]
Sintoqueháemmimumconstantedebateentreaviol ênciadoinstinto,de
umlado,eodesejoporordemerepressão
63
(apudMacMurraughKavanagh,
1998:103).
Acreditamos que essa noção das características apolínea e dionisíaca
dos personagens foi bem explorada nas peças
Equus
e
Amadeus
. É po ssível
observar com clareza essa oposição, consubstanciada em vários aspectos dos
personagens.Apoloéodeusdo brilho,daaparênciaartísticaquefaz davidaum
bemdesejável,uma vezquedissimulaosofrimento.Ascaracterísticasprincipaisdos
personagens a ele relacionados são: a ordem, o comedimento e a tranqüilidade.
Essascaracterísticasen fatizariamafaceclara,convencional,ordeiraeracional do 
homem. É assim que o termo apolíneo está descrito no Dicionário de etnologia
(PanoffePerrin,1979:21):“qualificaassociedadeshumanasdetipo<harmonioso,
equilibrado, comedido> que [...] têm uma propensão para a arte e para o
confor mismo, etc”. Por sua vez, Dioniso, deus do vinho e da vegetação , está
relacionadoaoarrebatamento eà comunhãocomomundoeanatureza.O termo
dionisíaco designaria “as sociedades humanas de tipo <dep ressivo e excessivo>”
(Panoff e Perrin, 1979: 57). Ao se vincular à idéia de liberdade e prazer, os
personagens dionisíacos apresentariam características que enfatizassem a
passionalidadeetammafaltadefronteirasoumedidas.
Oconflitoentreospersonagensapolíneosem
Equus
e
Amadeus
(Dysart
eSalierirespectivamente)eseuscorrespondentesdionisíacos(AlaneMozart),se
63
"There i s in me a continuous tension between what I suppose I could loosely call the Apollonian and the
Dionysiacsidesofinterpretinglife[...]Ijustfeelthatthereisaconstantdebategoingonbetweentheviolenceof
instinctontheonehandandthedesireinmymindfororderandrestraint".
89
manifesta por meio de uma série de oposições, como por exemplo, as oposiçõe s
entre conformidade x individualidade, comedimento x excesso, razão x insti nto,
sanidade x insanidade, autocontrole x expressão da personalidade, repressão
sexual x liberdade sexual entre outras. Nosso intuito, portanto, é analisar o
tratamentodadoaestasoposiçõesnoresultadodoprocessotradutóriodaspeças,
istoé,nofilme.ValelembrarquenestetrabalhooestudodaspeçasdeShafferirá
sedesenvolver demodoaconside rar suaspeçasocomotextoencenado, mas
comotextoescrito.Éestaatarefaaserdesenvolvidanopróximocapítulo.
90
3.ATRADUÇÃODOSPERSONAGENSEM
EQUUS
E
AMADEUS
Conformeexplicitamosnocapítul oanterior,oembateapolíneodionisíaco
foi uma constante no desenvolvimento dos personagens de Shaffer. Para a
construção de suas duplas de protagonistas, o autor expressou as características
ineren tes aos personagens apolíneos e dionisíacos por meio das mais variadas
formas.
Nosso objetivo neste capítulo é analisar como esse antagonismo foi
explorado em suas peças
Equus
e
Amadeus
e, acima de tudo, analisar como a
traduçãocinematográficadasreferidaspeçastratoueredi mension ouaabordagem
dessas características. Entretanto, antes de adentrarmos na análise propriamente
dita, convém fazer alguns comentários sobre a constituição e a análise dos
personagens no teatro e no cinema, bem como e xplicitar os parâmetros por nós
adotados. Em seguida, exporemos nossa interpretação acerca das características
apolíneas e dionisíacas e seus efeitos na versão cinematográfica, enfatizando as
estratégiasutilizadasporseusrealizadores
64
.
Lembramos,ainda,queaolidarcomaadaptaçãofílmi canaperspectiva
deumatraduçãointersemiótica,nãofalamosemumaanáliseestanque,exaustivae
impassíveldeserrevista.Umavezqueutilizamoscomoumdosfundamentosdeno
ssa análise a semiótica peirceana, não compreendemos a interpretaçãocomo um
fim,mascomooresultadodeumprocessoquepoderágeraroutrossignoseestes,
outrasnovasinterpretações,emumacadeiai nfinita.Dessaforma,apresentaremos
nossaanáliseenfocandoospontosconsideradosmaisrelevantesnacaracterização
dos personagens,verificando a relação (tradução) entre o signo(filme) e o objeto
queelerepresenta(peça).
3.1OPERSONAGEMNOTEATROENOCINEMA:UMABREVEREFLEXÃO
Será que podemos fazer uma separação nítida e definitiva entre os
personagens de teatro e cinema? Haveria elementos comuns à caracterização
destes personagens? Na tentativa de explicar antecipadamente a ab ordagem
64
Por realizadores, entendase, principalmente, oroteirista,o diretor, ou seja, as pessoas responsáveis pela
realizaçãodeumfilme.
91
utilizadaemnossotrabalhodeanálise,exporemosdemaneirabrevealgunspontos
importantesnacompreensãodacaracterizaçãodepersonagens.
Pallottini  (1989) busca uma resposta na Antigüidade grega ao tentar
explicar a origem do que compree ndemos hoje como o personagem teatral.
Segundo a autora, o personagem como o concebemos nasce a partir da ruptura
entreatragédiacomofest ivalreligiosoeatragédiacomoespetáculoartístico.Para
ela,emalgummomentodeixasedeol harodeusparaseverosacerdotee,emum
outromomento,deixasedeverosacerdoteparaseperceberoatore/ouopoeta.
No intuito de demonstrar a importância do personagem no
desenvolvimento da tragédia, podemos citar Aristóteles que, ao falar da imitação
dramática,enfatizaarelevânciadoselementosaçãoepersonagens.Eleafirmana
Poéti ca que“éaimitaçãodeumaacção ese executa mediante personagensque
agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio carácter e
pensamento(porqueésegundoesta sdiferençasdecarácterepe nsamentoqu es
qualificamos as acções)” (1992: 110111). Em decorrência disso, Pallottini afirma
que ação dramática e personagens o elementos que estão permanentemente
imbricados.Segundoela:
A ação deflui doconflito; duas posições antagônicas, umavezcolocadas
dentro deumapeça,ondeserãodefendidas,pelaspalavras,sentimentos,
emoções, atos dos personagens, que tomarão atitudes definitivas em
conseqüência de suas posições, acabarão fatalmente por produzir ação
dramática.(1989:11)
Aindasobreopersonagem,Aristóteles(1992)elencaqua troaspectosque
consideraessenciais:elesdevemserbons,convenientes,semelhantesecoerentes,
aliando, na execução das ações, a verossimilha nça e a necessidade. Devemos
atentar para suas palavras e compreender que, obviamente, a “bondade” a que
Aristótelessereferenãoserelacionaàgenerosidadeouafabilidadedopersonagem,
masasua“boa”constituição,suasolidez.Aconveniênciasereportaàadequação
dascaracterísticasdopersonagem edesuasatitudesemrelaçãoàsuasituaçãono
mundo.
Mas é no aspecto de ver ossimilhança que, segundo Pallottini (1989),
resideamaiorcomplexidade.Aautoraatentaparaofatodequeaverossimilhança
não deve ser tomada como realismo, naturalismo, semelhança à “verdade” dos
fatos, semelhança a coisas “comuns”, corriqueiras. A verossimil hança decorre da
92
coerênciainterna,daligaçãoentreope rsonagemeaobraenãodasimilitudedesse
personagemcomoserhumano“real”.Assim,Pallottinilembraqueéperfeitamente
possívelqueumafada(serquenãoexistenoplanodarealidade)venhaaserum 
personagem verossímil. Como expressa Cândido (1995), a verossimilhança
depende
[...]daorgani zaçãoestéticadomaterial,queapenasgraçasaelasetorna
plenamente verossímil. Concluise, no plano crítico, que o aspecto mais
importante para o estudo do romance é o que resulta da análi se da sua
composição,nãodasuacomparaçãocomomundo(1995:75).
Podemosdizer,emconsonânciacomPallottini(1989),queopersonagem
teatral  é aquele ser criado pelo autor e que irá, através de sua
performance
,
desenvolver as idéias deste mesmo autor por meio da sucessão de ações cujos
desdobramentospromovemodesenrolardahistória.Naspalavrasdaautora:
[...] um serficcional que, através da imitação, fale, se movimente,mostre
seus sentim entoseemoções,dêvazãoaofluxodesuasi déias,tudoisto
obedecendo a um plano de trabal ho que se ba seia naevolução da ação
dramática,equeconduzaumfim,aumalvo,àmetafinalqueoautorse
propôsepropôsaospersonagens,condutoresdetodoprocesso(1989:13).
Acreditamos, ainda, que os comentários feitos até então se aplicam
perfeitamente aos personagens do cinema. Senão vejamos, os personagens do
cinematammdevemserbons,convincenteseverossímeis.Suasações,conflitos
ecaracterísticastammmovemosaco ntecimentosdofilmedemodoapermitirque
a história chegue a um de terminado fim, intenção maior do autor. Não negamos,
com este comentário, que o personagem do cinema possua suas próprias
especificidades. Haverá, indubitavel mente, novas formas e novos recursos que
ajudarão a compor sua caracterização; contudo, pensamos que essas
particularidadesnãoinvalidamassemelhançasnoque dizrespeitoaoselementos
essenciaisdeumpersonagem.
Emno ssaanálise,buscaremosver ificardequemaneirasPeterShaffere
os diretores das peças e filmes caracterizaram os personagens apolíneos e
dionisíacosde
Equus
e
Amadeus
.Querecursosforampensadospa raenfatizarou
atenuarestascaracterísticas?Comosetrabal houestesrecursosnatraduçãodestes
personagens paraomeiocinematográfico?DeacordocomGirard(apud Pallottini,
1989), o personagem, além dos gestos (gestualidade, incluindo tamm a
93
imobilidade) e atitudes, tem sua caracterização definida pelo som, il uminação,
figurino ,adereçosecenário.Eécomaajudadetodosestesaspectosquefaremos
nossaanálise.
Érelevantenotarque,mesmotratandoapeçacomotextoescritoenão
comotextoencenado,asindicaçõesdoautoredodiretorreferentesaoselementos
previamente mencionados (como som, luz, vestimentas etc) serão levadas em
consideraçãoemnossa análise. Cremos que observaçõesimportantes podemser
feitasapartirdecertosaspectosicônicos.
Finalmente, ao respondermos as indagações iniciais desta seção,
acreditamos que compartilham, tanto o personagemteatral, quantoopersonagem
cinematográfico,umnúcleocomum.Aomesmotempo ,tambémacreditamosque,os
meios semióticos em que estes personagens vivem e se deslocam pode m vir a
interfe rirsobremaneiraemsuascaracterizações.Partamos,pois,parasuaanálise.
3.2OAPOLÍNEOEODIONISÍACOEM
EQUUS
Falar do  confronto apolíneodionisíaco em
Equus
é, sem vida, fal ar
inicialmentedopalco,ouseja,dasindicaçõesdeShafferdecomoopalcodapeça
deveria ser elaborado. Com algumas omissões, podemos apresentar em suas
palavras,acomposiçãodocenário:
Um quadrado de madeira posto em um círculo de madeira. O quadrado
parece um ringue de boxe cercado. A grade, também feita de madeira,
fechatrêsladosdoringue.Elaéperfuradaemcadaladoporumaabertura.
Abaixodagradeficamalgumasripasnavertical,comoemumacerca.Na
áreadopalcopróximaaopúbliconãohágrades.
[...] No quadrado ficam três bancos de madeira. Eles f icam posto s
paralelamente à grade, contra as ri pas, mas podem  ser movimentadas
pelosatores.
[...]Naáreaforadocírculoexistembancos.Doisdoladoesquerdoedoisdo
ladodireito.Elestêmaformacurva,seguindoocírculo.Odoladoesquerd o
éusadoporDysart,comolocalemqueeleescutaeobserva,enquantoestá
fora do quadrado, e também por Alan, funcionando como sua cama de
hospital.OdoladodireitoéusadopelospaisdeAlanquesentamnelelado
alado.
[...]Napartesuperiordopalco,formandoumacortinadefundodocenário,
ficamfileirasdeassentosàmaneiradeumanfiteatrodeanatomia,formadas
pordoisblocossemgrade,trespassadoporumtúnelcentral.Nestesblocos
sentampessoasdaplatéia
65
(Shaffer,1976:204).
65
“Asquareofwoodsetonacircleofwood.Thesquareresemblesarailedboxingring.Therail,alsoofwood,
enclosesthreesides.Itisperforatedoneachsidebyanopening.Undertherailareafewverticalslats,asina
fence.Onthedownstagesidethereisnorail.
94
Apartirda descriçãodocenáriooháespaçoparadúvidas:umabatalhaestápor
começar.Comosenãobastasseaexpressadescriçãodequ esetratadeumringue
de boxe, há,ainda, outrasindicaçõesinteressantes, como a aparência desala de
anatomia,umaclarareferênciaàexperiência“científica”queseráalidesenvolvidae
assistidapelosoutrospersonagensepelaplatéia.Afor maarredondada,ouseja,o
círculo que envolveoringue tamm nos remeteàidéia de uma arena na qualo
representantedasnormassociaisdomundomodernoenfrentaetentadomaraquele
indivíduocujaliberdadedeespíritoosurpreendeedesafia.Esteéoespaçoemque
estáporsedesenvolverumconflitoqueapresentará,aomesmotempo,simpl icidade
(cenário) ecomplexidade  (tema,recursosteatr ais),mesclando algunsaspectosdo
teatroantigoarituaisepsiquiatriamoderna.
O representante das forças apolíneas, o psiquiatra Martin Dysart, é o
médico respeitado,exitoso,educadoecheiodeautocontrole.Comorepresentante
da ciência, ele está ali para curar, limpar, purificar Alan. Ele deve resgatálo e
devolverlheachancedeviverumavidanormal.EstasimplesdescriçãodeDysart
noslevaimediatamenteareconhecerneleopapeldeApoloque,entreoutrosdons,
tinha uma associação ao dom da  cura, pois ele era pai  de Asclépio (deus da
medicina).SuafunçãomaiorétrazerAlandomundocaóticoemqueeleseencontra
ereint egráloàsociedade.
Do outro lado do ringue está Alan Strang, o adolescenteproblema
desafiadoreteimosoquecometeumcrimesemnenhumarazãoaparente.Seriaele
umlouco?Oqueestariaportrásdeseucomportamentodesajustado,semlimites,
fora dospadrõesaceitos pelasoci edade?Comoreprese ntantedionisíaco,Alanse
recusa a se render às exigências sociais. Mas sua  conduta i ndependente é
consideradainaceitável,doentia,co moumdiafoiocultoaDioniso.
Ao longo da peça, nas diversas vezes em que esses personagens se
confrontam, seus combates se configuram nas mais diversas oposições, como já
mencionamosnocapítuloanterior.Entretanto,dasdiversasoposiçõesencontradas,
destacaremos estas: conformidade x individualidade, ceti cismo x religiosidade,
[…]Onthesquarearesetthreelittleplainbenches,alsoofwood.Theyareplacedparallelwiththerail,against
theslats,butcanbemovedoutbytheactors.
[…]Intheareaoutsidethecirclestandbenches.Twodownstagesl eftandrightarecurvedtoaccordwiththe
circle.TheleftoneisusedbyDysartasalisteningand observingpostwhenhei soutofthesquare,andalsoby
Alanashishospitalbed.TherightoneisusedbyAlan’sparents,whositsidebysideonit.
[…]Upstage,formingabackdroptothewhole,aretiersofseatsinthefashionofadissectingtheatre,formedinto
tworailedoffblocks,piercedbyacentraltunnel.Intheseblockssitmembersoftheaudience”.
95
comedimento x excesso, sanidade x insanidade, incapacidade de adoração x
capacidade de adoração e repressão sexual x liberdade sexual. Ao fim,
perceberemosquetoda sdeumaformaoudeoutraestãointimamenteconectadas.
Dysartabreapeçadaqualéonarrador.Elesedirigeàplatéiadentroe
foradopalco,sejacomoumcien tistaqueemsuaaulapreparaadissecaçãodeu m
corpo,sejacomoumpacientequesedirigeaoanalistaouatécomoumatorqu eem
umatragédiagregasedirigeaocoro.Jáno monólogoinicialeleanunciaoproblema
queasatitudesdeAlanocasionamtantoparaasociedadecomoparasuavida.O
encontrocomAlantrazàtonadúvidasexistenciai satéentãoadormecidas.Seráel e
capaz de curar, salvar pessoas, ou seria ele que precisaria ser salvo? Dysart
confessaseuatordoamen to.
DYSART: [...] A quest ão é: estou desesperado. Sabe, eu mesmo estou
usandoacabeçadecavalo.Éestaaidéia.
[...]Nãoconsigoenxergarporqueminhacabeçaeducadaemedianapende
paraumânguloerrado.
[...]Asdúvidassempreestiveramlá,sendoacumuladasregularmenteneste
lugar sombrio. Somente o extremismo deste caso é que as ativou
66
(Shaffer,1976:209210).
Dysart está consciente de sua condição apolínea, contudo parece nitidamente
desconfortávelcomseu papel.Ahistóriadeseuencontroseráiniciada,assimcomo
oconfrontoentrepersonalidadestãodi stintas.
Deinício,DysartnãoqueraceitarqueAlanfiquesobseuscuidados,mas
a insistência de  sua amiga Hesther o faz ceder. A princípio, o caso o parece
perturbar Dysart, sempr e seguro e ciente de seu papel de  “curar” pessoas. O
comportamentoirritantedeAlan,queinsisteemcantarjingles,nã opareceperturbá
lo.
DYSART: Se vocêfor cantar é melhorsentar. Você nãoacha que ficaria
maisconfortável?
[
Pausa
]
ALAN[
cantando
]:Sóexisteum‘T’
67
em
Typhoo
!
Empacotesesaquinhostambém.
66
“DYSART:[...]Thethingis,I’mdesperate.Yousee,Imwearingthathorse’sheadmyself.That’sthefeeling.
[…]Ican’tseebecausemyeducated,averageheadisbeingheldatthewrongangle.
[…] the doubts have been there for years, piling up steadily in this dreary place. It’s only the
extremityofthiscasethat’smadethemactive”.
67
A palavra chá, em inglês, escrevese
tea
, mas é pronunciada da mesma maneira que a letra ‘T’. Existe,
portanto,umjogodesignificadosnojinglecantadoporAlan.Quando eledizquesóexisteum‘T’em
Typhoo
,ele
tantoserefereaofatodapalavra
Typhoo
tersomenteumaletra‘T’,quantoaofatodocháchamado
Typhoo
ser
formadoporumtipodefolha,ousej a,ocháépuro.
96
Dequal querjeitoquevocêofaça,vocêsaberá
Sóexisteum‘T’em
Typhoo
!
DYSART[
apreciando
]:Ah,agorasim,umaboamúsica.Bemmelhorqueas
outrasduas.Possoouvirmaisumavez?
68
(Shaffer,1976:214).
MasnãodemoramuitoeDysartsesurpreendecomaatitudedesafiadora
deAlan,quenãosecontentacomopapel deanalisadoesepropõetammasero
analista. Ele o inquire, provoca e, algumas vezes, deixa Dysart desconcertado.
Alémdapostura deAlan,Dysartco meçaaterpesadelosnosquais,emumaespécie
deritualdaGréciaHomérica,Dysart,entãoumsacerdo te,participadosacrifíciode
criançasindefesas.Emseusonho,eleficapostadodefronteaumapedrabastante
espessaematacriançascomumafaca.Apartirdaí,seupapelcomoperson agem
apolíneo sofre um abalo. Não cremos que suas dúvidas sejam suficientes para
retirálodesteposto,mas,inquestionavelmente,Dysartpassaa seropersonagem
apolíneo que, apesar de o abandonar seu papel social, passa a questionar
seriamenteanecessidadedeadequaçãoaospadrõesexigidospelasociedade.Ele
admiteaHesthe rqueoencontrocomAlanafetousuavida.
DYSART: Foi aquele ‘seu’ rapaz que começou tudo. Sabe que é o rosto
delequeeuvejoemcadavítim adispostasobreapedra?
HESTHER:Strang?
DYSART:Eletemoolharmaisestranhoqueeujávi.
HESTHER:É.
DYSART: É como estar sendo acusado. Violentam ente acusado. Mas de
quê?... Tratar dele será perturbador. Especialmente em  meu estado.
O que ele canta é extremamente direto. Seu falar é mais direto ainda
69
(Shaffer,1976:218).
Dessaforma,semabandonarseudevercomorepresentantedasociedade,Dysart
passaareconheceremsimesmo,al utaentrealógicaeoinstinto,oconflitopa ssa
tammaserinterno.
68
“DYSART: I wish you’d sit down,  i f you’re going to sing. Don’t you think you’d be more comfortable?
[
Pause
.]
ALAN[
singing
]:There’sonlyone‘T’inTyphoo! 
Inpacketsandinteabagstoo.
Anywayyoumakeit,you’llfindit’strue.
There’sonlyone‘T’inTyphoo!
DYSART[
appreciatively
]: Nowthat’sagoodsong.Ilikeitbetterthantheothertwo.CanIhearthatone
again?”
69
“DYSART:It’sthatladofyourswhostarteditoff.Doyouknowit’shisfaceIsawoneveryvictimacrossthe
stone?
HESTHER:Strang?
DYSART:HehasthestrangeststareIevermet.
HESTHER:Yes.
DYSART: It’s exactly like being accused. Viol ently accused. But what of?... Treating him is going to be
unsettling.Especiallyinmypresentstate.Hissingingwas directenough.Hisspeech ismoreso”.
97
Interessante ressaltar o comentári o de Joan Fitzpatrick Dean (apud
MacMurraugh Kava nagh, 1998)  acerca do sobr enome de Alan: Strang. Strang
sugere,eminglês,strange,algoestranhoouquecausaalgumestranhamento.Alan
será, dessaforma,opersonagem“diferente”,aquelequevai criticartudoqueestá
estabelecido como o correto.Logoemuma das primeiras sessõesdeanálise, ele
mostraquenãoser áapenasacusado,mastambémacusador.
DYSART: Olá. Como você está hoje? [
Alan o olha fixamente
.] Sentese.
[
Alancruzaopalcoesesentanobancodoladooposto
.]Medesculpepor
tertedadoumsustoontemànoite.Euestavapegandounspapéisemmeu
escritórioe acheiquedeveriadarumaolhadaemvocê.Vocêsonhacom
freqüência?
ALAN:Vocêsonha?
DYSART:Éomeutrabalhofazerasperguntas.Eoseuéresponder.
ALAN:Quemdisseisso?
DYSART:Eudisse.Vocêsonhacomfreqüência?
ALAN:Evocê?
DYSART:Olha,Alan...
ALAN:Eurespondosevocêresponder.Umdecadavez.[
Pausa.
]
DYSART:Estábem.Masvamosterquefalaraverdade
ALAN[
debochando
]:Estábem
70
(Shaffer:1976:228).
AindaqueAlantragahesitaçãoaomundodeDysart,aomenosnafrentedeAlanele
manmsuaposição,enfatizandoqueéeleomédico.
Paralelamenteàssessõesdeanálise,Dysartdescobremuitacoisasobre
Alanapartirdasconversasquetemcomospaisdele.Eledescobre,porexemplo,
que seus pais, Dora e Frank Strang são pessoas muito diferentes. Dora é uma
profe ssora anglicana pr oveniente de uma classe mais abastada e que tinh a uma
visão sobre sexualidade profundamente vinculada às suas convicções religiosas.
Frank Strang, por sua vez, era um homem de ori gem simples com inclinações
socialistas;logo, elevia comprofundo desprezo areligiosidadee oesnobismo de
suaesposa.Sobreareli giãoelediz:
70
“DYSART:Hello.Howareyouthismorni ng?[
Alanstaresathim
]Comeonsitdown.[
Alancrossesthestage
andsitsonthebench,opposite
.]SorryifIgaveyouastartlastnight.Iwascollectingsomepapersfrom myoffice,
andIthoughtI’dlookinonyou.Doyoudreamoften?
ALAN:Doyou?
DYSART:It’smyjobtoaskthequestions.Yourstoanswerthem.
ALAN:Sayswho?
DYSART:Saysme.Doyoudreamoften?
ALAN:Doyou?
DYSART:Look–Alan.
ALAN:I’llanswer ifyouanswer.Inturns.[
Pause
]
DYSART:Verywell. Onlywehavetospeakthetruth.
ALAN[
mocking
]:Verywell”.
98
FRANK:Souateu,nãomeincomododeadmitiristo.Sequisersaber, éa
bíbliaqueéresponsávelportudoisto.
DYSART:Porque?
FRANK: [...] Mal dita religião – é o único problema que realmente
enfrentamos nesta casa, mas é insuperável; o me importo de admitir
71
(Shaffer,1976:226).
Ouainda,
FRANK:Chamedoquequiser.Masparamimistonãopassadesexoruim
72
(Shaffer,1976:226).
Daí,DysartconcluiqueesteambienteconflituosoafetoubastanteAlan.Deumlado
umpai de stemperado,queodiavatelevisão,desprezavaareligiãoeerarigoroso;de
outro,umamãeexcessivamentereligiosa,sexualmenterepri midaerepressora,mas
indulgenteemalgunsaspectos,comoporexemplo,aopermitirqueAlanassistisse
televisãoàsescondidas.Assim,aprimeiramanifestaçãodeinconformidadedeAlan
em relação à sociedade se manifesta em sua incapacidade a se adequar aos
padrõesdesuaprópriafamília.
Todos estes conflitos domésticos levam Alan a desenvolver uma noção
muitopeculiardereligiãoesexualidade.Aodesaprovarosensinamentosr eligiosos
dados a Alan por  Dora,Frank Strang comenta com Dysart a verdadeira adoração
queogarotosentiaporumafotodeCristonocalvário,totalmenteferido,queficava
emseuquarto.Afotofoisubstituídaporumafo todecavalo;eAlan,queaprincípio
tinha ficado aborrecido por Frank ter tirado a antiga foto, parou de reclamar. Ao
descreverafotodocavaloparaDysart,DoraStrangafirma:
DORA:Bem,érealmenteextraordinário.Parecetodoolhos.
DYSART:Olhandofixamenteparavocê?
73
(Shaffer,1976:237).
Umaoutrainformação que ajudou Dysar t foi a de queAlancriou uma espéciede
rituale mqueadoravaafotodocavalo.
71
“FRANK:Imanatheist,andIdon’tmindadmittingit.Ifyouwantmyopinion,it’stheBiblethat’sresponsibl efor
allthis.
DYSART:Why?
FRANK: [...] Bloody religion – it’s our only real problem in this house, but it’s insuper able; I don’t mind
admittingit”.
72
“FRANK:Callitwhatyoulike.Allthatstufftomeisjustbadsex”.
73
“DORA:Well,it’smostextraordinary.Itcomesoutalleyes.
DYSART:Staringstraightatyou?.
99
Alémdocontato comospais,Dysartvisitouodonodoestábuloemque
Alantr abalhava.Elesesurpreendeucomo fatodeAlantrabalharemumestábulo
nos finais de semana, mas nunca andar a cavalo. Ficou aind a mais intri gado ao
saberqueoSr.Dalton,odonodo estábulo,desconfiavaqueAlanlevavaoscavalos
para passear às escondidas à noite. Todas essas informações contribuíram para
queDysartcompreendesseanaturezadaadoraçãoreligiosaqu eAlanatribuíaaos
cavalos.
Podemos, à primeira vista, considerar contraditório o fato de Alan, o
representante dionisíaco da obra, ser reprimido sexualmente. Afinal, Dioniso é o
deus da falta de medidas, e isto tamm se aplica à sexualidade. Por isso, o
personagemaseridentificadocomocomedimentoear epressãosexual de veriaser
Dysart,oquedefatoocorre,poisDysartéinfértileviveumcasamentosempaixão
ousexo.Mas,seatentarmosbem,perceberemosquea repressãosexualdeAlan
somenteoatingiuquandotentouserelacionarcomJill,agarotaquetrabalhavano
estábulo.Noentanto,opersonagem admitiuquesentiadesejo eseexcitavaquando
cavalgava; assim, os cavalos significavam o somente um deus. Alan , em
decorrência de uma série de episódios, passa a perceber os cavalos como seres
superiores e grandiosos e, várias pistas nos são dadas na peça em respeito da
ordemqueeleestabeleceentreDeuseoscavalos.Elesub stituiafotodeJesusno
calrioporumafotodecavalo,tamm realizavarituaisdesacrifícioeadoraçãode
cavalos em seu quarto, substituind o estes rituais, posteriormente, por caval gadas
notur nasemqueele,despido,excitavaseesatisfaziasesexualmente.Estesrituais,
todavia, não eram somente rituais executados com o único intuito de obter
satisfação sexual, funcion ando como uma a válvula de escape da sexualidade
frustrada de Alan,mas ainda uma forma de expressarsua religiosidade . Era uma
visão desexualidadeverdadeiramentedionisíaca,pois era fundadaemumêxtase
arrebatado e fazia uso de animais. Era tamm sacrílega, muito distinta da
defendidaporsuamãe,quedizia:
DORA:Expliqueiparaeleosaspectosbiológicos. Mastambémfaleisobre
oqueacredito.Sexonãoésomente umaquestãobiol ógica,mas também
espiritual. Se fosse da vontade de Deus, ele um dia se apaixonaria
74
(Shaffer,1976:227).
74
“DORA:Itoldhim thebiologicalfacts.ButIalsotoldhimwhatIbelieved.Thatsexisnotjustabiologicalmatter,
butspiritualaswell.ThatifGodwilled,hewouldfallinloveoneday”.
100
Alexander S. Murray (apud MacMurraughKavanagh, 19 98) nos chama a atenção
paraofatodequeAlansomenterealizavaseus“rituais”ànoite.Segundooautor,as
cerimônias religi osas antigas eram conduzidas pela manhã, no caso de deuses
celestes;eànoite,nocasodedeusesdo“ baixomundo”.Porisso,asexperiências
notur nas de Alan estavam plen amente de acordo com o espírito pagão de sua
religiosidade.
Dessaforma,podemosvislumbrarbemasoposiçõesentreDysar teAlan
(ceticismo x religiosidade, cientificidade x paixão e sexualidade reprimida x
sexualidade exercida), bem como a relação entre elas. Dysart percebe que, ao
contráriodeAlan,vi veumavidasempaixão.Eletammconcluiquejamaisviverá
umapaixãotãopa rticular,íntimaeprofunda,comoaqueorapazexperimentou,e
passa a se questionar se deveria realmente“curar” Alan. Ele se questiona se, ao
cabodotr atamento,eleteráfeitoum“bem”paraAlan.Emmeioasuasdúvidas,ele
consultaHesthereesta,diferentementedele,parecemuitoseguraquandoaolado
doqueé“certo”,“bome“normal”.
DYSART:Essegaroto, comaqueleolharfixo.Eleestátentandosalvaraele
mesmopormim.
HESTHER:Eudiri aquesim.
DYSART:Oqueestoutentandofazercomele?
HESTHER:Recuperálo,porcerto?
DYSART:Paraque?
HESTHER:Umavidanormal.
DYSART:Normal?
HESTHER:Istoaindasignificaalgumacoisa.
DYSART:Significa?
HESTHER:Claro
75
(Shaffer,1976:254255).
Sendo incapaz de canali zar sua espiritualidade de forma construtiva,
DysartinvejaAlan,poiseleconseguedesenvolverumaformaoriginalevisceralde
adoração/paixão que vincula cristianismo, mitologia e sexualidade, muito diferente
do que é denominado normal pela sociedade. Esta capacidade de Alan está
perfeitamente de acordocom os padrões dionisíacos deinstinto, êxtaseepaixão.
75
“DYSART:Thisboy,withhisstare.He’stryingtosavehimselfthroughme.
HESTHER:I’dsayso.
DYSART:WhatamItryingtodotohim?
HESTHER:Restorehim,surely?
DYSART:Towhat?
HESTHER:Anormalli fe.
DYSART:Normal?
HESTHER:Itstillmeanssomething.
DYSART:Doesit?
HESTHER:Ofcourse”.
101
Contudo,aindaqueDysartinvejeAlan,elesabequeestacapacidadedeviveruma
paixãodemodotãopróprio tambéméproblemática,assimo lembraa magistrada
Hesther.
DYSART: Você consegue pensar em algo pi or que tirar de alguém sua
adoração?
HESTHER:Adoração?
DYSART:É,essapalavradenovo!
HESTHER:Vocênãoachaqueestáexagerando?
DYSART:Oexageroéaquestão
76
(Shaffer,1976:272273).
DYSART:Tudobem,eleestádoente.Estácheiode tristezaemedo.Elefoi
perigoso epoderia ser novamente,embora eu duvide.Mas aquele garoto
conheceu uma paixão mais feroz do que eu já tenha sentido em algum
segundodeminhavida.Edigomais:euinvejoisso.
HESTHER:Nãopode.
DYSART:Vocênãovê?Éessaaacusação!Éissoqueseuolharfixotem
me dito todo esse tempo. “Ao m enos eu galopei! E você?”... Estou com
inveja,Hesther.InvejadeAlanStrang.
HESTHER:Issoéabsurdo
77
(Shaffer,1976:274).
Porfim,Dysartparececonvencidopelosargumentos desuaamiga.Ele
trabalha para que Alan esqueça sua adoração religiosa e sexual de Equus e se
adequeaospadrõessociaisvigentes.Adespeitodesuasdúvidas,eleassumepor
inteiroseupapelapolíneo.Suasvidasocorroem,maselemanmumapostura
impassível junto a Alan, e, ao final da peça,acaba por ajudar Alan a “matar”seu
deus Equus.Noentanto, enquanto Alandorme, Dysart lembra que extirpar Equus
definitivamentedavi danãoseráfácil.
DYSART:Estoumentindo,Alan.Elenãoiráassimtãofacilmente,trotando
pralongecomoumpangarévelho.Não!QuandoEquusparte–seelepartir
– será com seus intestinos em  seus dentes. E não tenho peças de
reposição em estoque... Se você soubesse de alguma coisa, você se
levantaria neste exato minuto e correria daqui o mais rápido que você
pudesse
78
(Shaffer,1976:299).
76
“DYSART[quietly]:Canyouthinkofanythingworseonecandotoanybodythantakeawaytheirworship?
HESTHER:Worship?
DYSART:Yes,thatwordagain!
HESTHER:Aren’tyoubeingalittleextreme?
DYSART:Extremity’sthepoint.“
77
“DYSART:(...)Allright,he’ssick.He’sfullofmiseryandfear.Hewasdangerous,andcouldbeagain,thoughI
doubtit.ButthatboyhasknownapassionmoreferociousthanIhavefeltinanysecondofmylife.Andletmetell
yousomething:Ienvyit.
HESTHER:Youcan’t.
DYSART:Don’tyousee?That’stheAccusation!That’swhathisstarehasbeensayingtomeallthistime.“At
leastIgalloped!Whendidyou?”...Imjealous,Hesther.JealousofAlanStrang.
HESTHER:That’sabsurd”.
78
“DYSART:I’mlyingtoyou,Alan.Hewon’treallygothateasily.Justclopawayfromyoulikeaniceoldnag.Oh,
no! When Equus leaves – if he leaves at all – it will be with your intestines in his teeth. And I don’t stock
replacements...Ifyouknewanything,you’dgetupthisminuteandrunfrommefastasyoucould”.
102
AocontráriodaidéiadeNietzsche,Shaffernão deixatransparecer apossibilidade
dafusãodosdoi slados.E,aindaqueospersonagensdesejassemessafusão,esta
remotapossibilidadesomentepoderiaservislumbradaapósumconflitosangrento.
Uma outra oposição pode ser encontrada em
Equus
: a oposição en tre
visão x cegueira. Ela é mencionada por MacMurraughKavanah (1998) e se
relaciona com as palavras
I
e
eye
que, em inglês, têm a mesma pron úncia, mas
significadosdistintos:eueolhorespectivamente.Paraaautora,Shafferfazumjogo
com o significado de eu (identidade) e olho (visão de mundo), como se aquele
personagemcom maior compreensão de simesmo, fosse aquele com uma maior
visãodemundo,criando,assim,umasimbologia,ouseja,construindoumaligação
entre aspalavrasesuas si gnificações, quesãoampliadasnotexto.Elamenciona
uma série de referências em
Equus
a este jogo de palavras e a importância da 
visão.Existemosolho sde Deus quetudoem,e,emcon seqüênciadisto,osolhos
doscavalos(queestãosemprevigiando atodos)sãoatacadosporAlan.Háojogo
psicológicofeitoporDysartparahipnotizarAlan,jogodepiscar
79
,queéumaforma
deadentrarnamentedeAlan,ouseja,observarsuamente.Acreditamosqueesta
noção da oposição entre visão x cegueira é um pouco mais complexa que as
mencionadas até aqui. Em nosso entender, é bastante difícil identificar quem é o
personagemquevêeoqueestácego.Afinal,qualseriaopersonagem“alerta”,o
psiquiatra que conhece as regras do mundo, mas quer sucumbir à verdade
incontestável lançada a seu rosto por um paciente? Ou seria Alan, o jovem que,
apesardasdificuldadesdeajusteaopapelsocialquelhecabe,conseguedesvendar
os segredos mais recônditos daquele que deveria tratar de sua “saúde”? Difícil
precisar.
Consoante nosso comentário no primeiro capítulo, ao analisarmos
adaptaçõesfílmi cas,vamosnosd eparar comumtextoresultantedeumprocessode
transformaçãodeumtextoprecedente,sendoestastransformaçõesumresultadoda
ampliaçã o,restrição,concretizaçãoeatualizaçãodaquele.Nointuitodepercebere
interpretarestesprocessos,éprecisolerofilme,interpretandooscódigostípicosdo
cinema. Como sug ere McFarlane (apud Anastácio, 2006), para compreender um
textodeumfilmeénecessárioi nterpretaroscódi gosdocinema,queseapóiam
79
“[...]blinkgame[...]”.
103
[...] em  códigos lingüísticos, incluindo aspectos como acento, timbre,
entonação de voz, que têm um senti do social, além de expressarem
sentimentoseemoçõesasmaisdiversas;[...]códigosvisuaisquesugerem
quesevalorizenãoapenasoqueévisto,masasuainterpretação,oqueé
subentendido nas entrelinhas [...]; códigos sonoros até não lingüísticos,
compreendendonãoapenasamúsica,m asoutrossignossonorosutilizados
pelo cineasta, como ruídos div ersos. E, finalmente, códigos culturais que
têmavercominformaçõesdecomoospovosvivemouviveramnasépocas
enoslugaresfocalizados(McFarlane,apudAnastácio,2006:105).
Etendoemmenteest esaspectos,bemcomosuasinteraçõescomoenredo,aação
dospersonagens,oespaço,otempo,équepoderemospartirparaainterpretação
das traduções fílmicas das obras. Tendo explicitado como as características
apolíneasedionisíacasdospersonagensDysarteAlanforamexploradasnapeça,
partimos agora para uma análise das estratégias de Shaffer (roteirista) e Lumet
(diretor) na tradução da peça para o cinema. A seguir, apresentamos nossas
observaçõespe rtinent esàtr aduçãode
Equus
.
O primeiro aspecto a chamar nossa atenção na tradução foi a maneira
comqueosautoresiriamlidarcomoespaçoemquesedesenvolveriaa“batalha”
entreDysarteAlan,ouseja,comoelesiriamtrabalharcomaidéiadeumespaço no 
qual os personagens vão se enfrentar, uma vez que a op ção do r ingue seria
excessivamente“teatral” para ser man tida. Parecenos bastante clara a opçãopor
transformar o escritório de Dysart, ou melhor, sua sala no hospital , no espaço
decisivonoembatedos personagens.ÉnasalaqueDysarteAlantravamoprimeiro
contato,ta mbéméláqueocorremassessõesdeanálisedeAlaneasdiscussõese
questionamentos entre os dois. É tamm naquele espaço que Dysart consegue
desvendar o mistério de Alan e inicia seu processo de “cura”. Acreditamos que a
saída encontrada pelos realizadores foi adequada, pois optou por uma solução
natur al,semabandonaraidéiadequeserianecessáriodefinirumespaçoemque
elesseenfrentariam.
O filme mantém, em um âmbi to geral, a mesma estrutura da peça,
fazendo as de vidas alterações no que diz respeito a algumas soluções do teatro.
Logo,emvezdeumringue,comojámencionamos,oescr itóriodeDysart.Emvez
de um ator usando uma máscara de cavalo, cavalos. As opções teatrais já
anteriormente citadas, uma vez fora do contexto do palco, seriam um pouco
extremas.Entretanto,algumas estratégiasutilizadasnapeçasãomantidas, dentre
elas,anarraçãodeDysart.Comooterapeutaquedefatoé,Dysartfazanarração,
emitesuaopiniãoe,aomesmotempo,tentaanalisartudo.Todavia,aocontrárioda
104
peça, há em alguns momentos uma mudança de foco na narração. Para melhor
explicarmos esta mudança, convém compreender um pouco como se trata da
narraçãonocinema.
SegundoMetz(apudVanoyeeGoliotLété,2002),nocine ma,onarrador
pode ser extradiegético, pode estar à beira da diegese ou pode ser um
personagem. O  narrador extradiegético, como o nome sugere, é aquele que
“apareceemfor madeu mavoz,ide ntificávelounão”(2002:46).Onarradorabeira
dadiegesenãoint erfere diretamentenahistória,maspertenceao en torno diegético,
comoavozdeumvizinhoetc.Onarrad orperson agem,porsua vez,podenarrara
história sozinho, ou deleg ar seu posto a outros personagens. Para o autor, a
questãodonarr adoratrela,invariavelmente, aquestãodopontodevistaedoponto
de escuta. Assi m, o ponto de vista
80
(visual) pode ligar a image m a um narrador
exterior,ouaumpersonagem.Ou,emsetratandodopontodeescuta,podeexi stir
ou não a dissociação entre o ponto de escuta e o ponto visual. Personagem e
espectadorescutamamesmacoisa?Quandoopersonagemétambémonarradoré
relevantepensarnafocalização
81
,melhordizendo,narelaçãoentreoespectadordo
filmeeopersonagemnarrador.Dessaforma,seopersonagemsabe,efazcomque
saibamos,afocalizaçãomental.Seouveefazcomqueouçamos,sevêefaz
com que vejamos ou se ouve e vê e faz com que ouçamos e vejamos,
focalizaçãoauditiva,visualeaudiovisualrespectivamente.
Em
Equus
,anarraçãopassadaprimeirapessoa(monólogosdeDysart)
paraaterceira(nodesenrolardofilme).AindaqueconsideremosoolhardeDysarta
nosguiarpelodesenvolvimentodahi stória,temosquereconhecerque,emalguns
momentos, Alan toma a palavra e é, literalmente, seu ponto de vista (visual e
narratológico)queéoadotado.Istoépe rcebidonomomentoemque,duranteuma
sessão,AlanrelataparaDysartsuaprimeiraexperiênciacomcavalos. Aoexplicar
para omédicoaexcitaçãoeencantamento queestaexperiênciaprovocou,há um
momento de focalização audiovisual, ou seja, podemos sentir, ver e ouvir a
experiência da primeira cavalgada de Alan, uma vez que a câmera assume a
80
SegundoVanoyeeGoliotLété(2002),a expressãoponto devistapodesertomadadetrêsmaneiras:oponto
devistaestritamentevisual,nosentidonarrativoounosentidoideológico.Nosenti dovisual, ensejariaperguntas
como:de onde se vê aquilo quesevê? De ondeé tomadaa imagem?” No sentidonarrativo, as perguntas
seriam:“quemcontaahistória?Dopontodevistadequemahistóriaécontada?(2002:51).”Dessaforma,ainda
segundoosautores,asduasordensdeperguntassecombinamquandoperguntamos:Quemvê?Opontode
vista(visual )éodeumpersonagem(imagem,porvezes,denominadasubjetiva)oudeumnarradorexteriorà
história?Aimageméatribuívelaumpersonagemouaofilme?”(2002:51)”.
81
SegundoAnastácio(2006),otermofocalizaçãofoiintroduzidoporGerardGenette.
105
posição dos olhos do personagem. Este recurso da câmera subjetiva chama a
narraçãoparaAlanque,naquelemomento,passaaseropersonagemna rrador.Ele
se presta a destacar a importância daquele evento, fazendo repercutir  visual e
fisicamente a emoção do personagem no espectador, representando esta
experiência de forma i ndicial
82
. Este recurso tamm se constitui uma iconi zação
dos sentimentos de Alan. Esta alternância na narração garantenos razoável
imparcialidadenaanálisedospersonagens,poisnospermiteteracessoamaisde
um ponto de vista. Afinal,temos acesso tanto a perspectiva de Dysart, quantode
Alan.
Dysartnarrador:m onólogo.
Opontodev istadeAlan:aprimeiravezquecavalgou
82
A relação é indicial porque ao mostrar e cena da cavalgada de Alan, o posicionamento da câmera, que
assume o ponto de vista de Alan, colabora para que tenhamos a sensação física experimentada pelo
personagem.Assim,arepresentaçãopossuiumarelaçãoconcretacomoobjeto.
106
No que se refere à caracterização física, as características apolíneas e
dionisíacas de Dysart e Alan nã o são muito enfatizadas no filme. Não existe um
destaque acentuado no figurino, por exemplo. Obviamente, Dysart se veste com
umaroupaadequadaparaummédicobemsucedido:jalecoouternonohospitale
emseusdeslocamentos.Suaroupaédiscretaecomum,masnãoháquantoaeste
quesito umapreocupação de reforçar as característi cas apolíneas. Podemos dizer
apenas que ele usa uma roupa padrão”, em conformidade com sua posi ção.
TambémAlanusaumfigurinodeumadolescentecomum.Nãohánadadeespeci al
adestacarsuarepresentaçãodionisíaca.
Aindacomrelaçãoàcaracterizaçãofísica,maslevandoemconsideração
os modos e comportamentos dos personagens, podemos dizer que há um maior
destaque. Dysart é um médico resp eitado e se comporta como tal. É educado  e
atencioso,mas,quandonecessário,tambéméenfáticoeatéumpoucocínico.Não
cremosqueessasnuancesdiminuamanaturezadesuapersonalidadeapolínea.Ao
contrário, par a melhor exercer sua profissão, ou seja, para melhor executar seu
papelsocial,énecessáriodemonstrarautoridadeeautocontrole;eeleofazsempre
que preciso. Ao se compor tar como manda os princípios de seu tempo, a
representação física,incluindoocomportamento easações de Dysart,colaboram
emsuacaracterizaçãoapolínea.
Alan tamm tem uma série de modos e atitudes que fazem dele a
representaçãodionisíacadapeça.Todasasaçõesrelacionadasaomodoparticul ar
de encarar sua religiosidade e sexualidade são exemplos típicos de uma
personalidade não convencional, exagerada e passional. São exemplos destas
atitudes osrituais,acavalgada,o desejodeacariciaros cavalose,obviamente,o
ato de cegar os cavalos. Todavia, existem outros indícios mais sutis da
personalidadedi onisíacaem Alan. Seu comportamento, no primeiro encontrocom
Dysart, em que ficou cantando jingles e ignorou as perguntas e comentários do
médico, suas caretas e atitudes infantis (como colocar  a cabeça de ntro de uma
gaveta e cantar) em uma das primei ras sessões, evidenciam a infantilidade  e o
deboche típicos de Dioniso. Isso sem mencionar a permanente tentativa de
confrontar Dysart e sua posição como médico, uma demonstração clara de sua
dificuldadede se adequarapapéis sociaisetentardesestabilizar os conceitos de
normalidade.
107
Umasérie de  recursospróprios do cinema são utilizados para enfatizar
característicasqu eserelacionamaApoloeDioni so,entreelas,ousodoscortes,a
iluminação ,amovimentaçãodecâmeraeacâmerasubjetiva.
Quanto ao uso dos cortes, acreditamos que é relevante explicitar os
comentários de Leone (2005). Segundo o autor, a narrativa cinematográfica é
constituídapelajunçãodeuni dadesdramáticas.Estasunidadessãodefinidaspelo
cortequedeterminaaconclusãodeumplan o.Alémdesuprimirosespaços,tempos
emovimentosdesnecessários,bemcomocolaborarnoritmodofil me,acreditamos
que, dependendo da intenção do autor/diretor/montado r, o corte, bem co mo a
manei racomqueeleéfei to(escurecimento,fusão,cortina...),poderesultaremum
elemento bastante expressivo. Por isso, entendemos que o corte seco, isto é, a
mudança brusca de uma imagem para outra sem a mediação de nenhum efeito,
entre imagens que mostram sucessivamente o rosto de Dysart e o rosto de Alan,
colaboram para representar no campo visual o confronto que se desenvolve no
enredo,comoumarepresentaçãoindicialdalutaentreeles.
Umoutroexemplodousodoscortesnadefiniçãodoconfrontoapolíneo
dionisíacoestárelacionadoàmontagemdosplanos
83
.Oembateestápresentenas
cenasemqueospersonagensestãodormindoesãoacordadosumpelooutro. Apó s
ainternação deAlan,DysartvaiaohospitalànoiteepassapeloquartodeAlanque
dorme, mas que tem um sono muito agitado, demonstrando estar tendo um
pesadelo.AlanacordaatordoadoeseassustacomapresençadeDysart.Estetenta
ajudáloasecobrir,porém,Alanrecusaaajudaenfiandoseporbaixodascobertas.
Dysartterminapordormirnohospitale,pelamanhã,éacordadoabruptamentepor
Alan que, aoadentrar na sala e perceber Dysart dormindo nosofá, fecha a porta
comba rulhoeabreascortinas.Ofatodeestesplanosteremsidocortadosepostos
em seqüência no processo de montagem demonstra a intenção do diretor de
demonstrarqueos personagensosedebater.Demonstra,ainda,a naturezade
cada personagem, enquanto Dysart oferece ajuda; Alan deseja incomodar. Existe
umaoutrautilizaçãodoscortesquecorroboraránacaracterizaçãodospersonagens,
mas dela nos preocuparemos mais adiante, quando falarmos sobre a crise de
Dysart.
83
SegundoVanoyeeGigliotLété(2002),planoéa“porçãodofilmeimpressionadapelameraentreoinícioe
ofinaldeumatomada(2002:37).Aumont(2002)lembra queanoçãodeplanoenglobatantoaspectoscomoo
tamanhodeenquadramentos, ângulo,amovimentaçãodacâmera;masaindaquestõesdetempo,ouseja,plano
comounidadededuração,relacionadoaduraçãoeritmodasimagens.
108
AlanacordaeseassustacomapresençadeDysart. 
DysartdormeemsuasalanohospitaleéacordadoporAlan.
Um outr o componente cinematográfico que apóia a construção dos
personagenséailuminação.Conformecomentamosnocap ítuloanteri or,Apoloera
identificado,entreou trascoisas,comoodeusdosol,daluz;enquantoDionisoerao
deusdavegetação,mastammdasforçasdanaturezaedasforçasobscurasdo
inconsciente, e por isto, muito relacionado às profundezas, à escuridão. Estes
aspectos foramnitidamenteexploradospelosrealizadores nofilme.Deuma forma
geral,ofilmetemumailuminaçãofraca,aluz nãoémuitobril hante,talvezpelofato
de se passar no outono, talvez até mesmo em decorrência da qualidade técnica
disponívelàépoca,umavezqueofilmeéde1977.Aindaassim,podemosperceber
autilizaçãodoscontrastescl aro/escuroparadistinguirApoloeDioniso.
109
UmbomexemplodissoéacenaemqueAlangravaoprimeirotrechode
seusdepoimentosnogravador.Emumdo sprimeirosencontrosentreDysarteAlan
aquele entregaumgravadorpara este,explicandoqu e, àsvezes,ospacientesse
sentem constrangidos em dizer algumas coisas diretamente para o analista, e
sugerindode  esteartifício poderiaajudarnotratamento. Alanchama o  métodode
“estúpido”,mas saidasalacomogravador.Aochegaraseuquarto,queestáàs
escuras, Alandeixaogravadorsobreamesa.Notamosquetodooquartoestásem
iluminação eoúnicoobjetocujoscontornossãoplenamentevisíveiséexatamente o
gravador,quefi carelativamente iluminado erefleteumpoucodeluz devidoàsua
corprateada.Compreendemosestedestaquedadoaogravadorcomoachavepara
trazer Alan à tona das profundezas de seu mundo. A iluminação do  gravador
fortalecesuasimbologiadeferramentade“cura”aserviçodasforçasapolíneasque
elarepresenta.Parareforçarestainterpretação,podemoscitaracenaemqueAlan
grava suasprimei rasrevelações paraDysart.Eleregistr aaogravadora sensação
devolúpiaquandocavalgoupelaprimeiravez.Alanestásozinhoemsuasala,que
está completamente iluminada. A iluminação, neste contexto, teria dupla
significação, primeiramente, demonstraria a exposição de seu íntimo, ela
representaria,ainda,apreval ênciadasforçasapolíneas.
Alan,napenumbra,olhaparaogravadorqueestáiluminado.
Reforçodaoposiçãoentreclaro/escuro.
A luz tamm é um elemento importante como exemplo das forças
apolíneasnacenadoencontrosexualdeAlaneJill.Inicialmente,estãonocinema,
110
assistindoaumfil mepornô,quandosãoflagradosporFrankearrastadosparafora
docinema.Destaforma, apesar deserà noite,existeuma transiçãoentreescuro
(cinema) e claro (fora da sal a de cine ma), que remete à saída de um ambiente
proibido(dionisíaco)paraumambienteiluminado(apolíneo).Apósoocorrido,Alan
decide acompanhar Jill até sua casa. Eles se deslocam do ambiente da rua em
direçãoaoestábulo,deixandoaáreaurbanaepartindoparaaárearuralondeficao
estábulo. Eles passam, novamente, de umazona governadapor Apolo, uma vez
que iluminada, para o caminho do estábulo, zona o iluminada e, portanto,
dionisíaca.Aochagaremaoestábulo,JillseinsinuaparaAlanepedequeelefique.
Ailuminaçãoénotadamentedébil,existecertapenumbra.Elessobemparaaparte
superior do estábulo e, ao chegarem lá, quando despidos, o ambiente passa da
penumbra para umaluz que po ssuium filtro de cor,um pouco laranja,umpouco
amarelado. Entretanto, independentemente da coloração, o ambiente fica mais
iluminado , pois desaparecem as sombras. Acreditamos que este trabalho com a
iluminação  reflete os sentimentos de Alan. Ao voltar para o estábulo, o “lugar
sagrado”dodeusEquus,énaturalqueoambien tedionisíacoqueesteevocaseja
representadopelapenumbra.Noentan to,Alanpassaasesentirumtraidor,vezque
estáprestesaprati caro“ritualsagrado”comou trapessoa.Ailuminação,emnosso
entender,simbolizaoquãoAlansesenteexpostoaosolhosdedeus,oquantose
sentevigiado.E,sentindoseassimtãoexposto,énaturalquenãotenhaconseguido
serelacionarcomagarota.
Oposiçãoescuro/claro.
Alanévistoporseupaieretiradodocinema.Jilloacompanha.
111
AlaneJillvoltamaoestábulo.Transiçãodoclaro(cidade)paraazonarural(escuro).
Noestábulo,Alant entaserelacionarcomJill.Transiçãodoescuroparaoclaro,demonstrandoa
exposiçãodopersonagem.
TambémsãopoucoiluminadososrituaisdeadoraçãoeprazerqueAlan
vivecomocavaloNugget.Alanretiraocavalodoestábuloeolevaparaocampo.
Lá chegando, despese e montao para cavalgar. Depois de um momento de
reverência,ori tualsetransformaemumritualdeprazer. Aquipodemosencontrar
vários elementosque remetem aos cultos dionisíacos. Além da pouca iluminação,
112
podemoscitarofatodeAlanmontarnocavaloesesentirumsóeoprazerobtido
comestaadoração.Ésabidoqueoscultosdionisíacoseramcultosemqueadança,
aalegriaeoprazereramembaladospeloconsumodovinho,oqueresultavafalta
de senso e de medidas. Além disso, a representação de Dioniso era feita por
homemcomchifr es,barbaesdebode.Emfacedisso,éperfeitamentepossível
vincular os rituais de Alan aos rituais de Dioniso, pois o prazer que emerge da
ingestãodebebidaeavinculaçãodeDionisoaanimaissãorepresentad osnoculto
deAl anpeloprazersexualepelasensaçãodeseruman imal,deseremeleeEquus
umsócor po.
AlandeixaoestábuloànoiteesedirigeaocampocomocavaloNugget.
Aochegarlá,Alansepreparaparaoritualemontaocavalo.
Ritualdeadoraçãoeprazer.Alancavalgaeasimagensenfatizamaiia
deêxtaseexperimentadopelopersonagem.
113
Além dos exemplos apresentados, entendemos que a utilização da
iluminação  ainda parti cipa da ressignificação das características apolíneo
dionisíacastammnascenasdeconfrontoentreAlaneDysartnasaladoméd ico.
Nasduaspri meirasvezesemqueAlanvaiàsaladeDysart,elaestáiluminada.Na
primeir avisita, Al antentaenfrentarDysar t.Mas,diantedaposturadiretadomédico,
Alan parece assustado. Dysart logo o dispensa. Já na segunda visita, Alan
comportase de maneira estranha e desafia Dysart com sua ati tude. Entendemos
que,aosedestacaraclaridade,háumaênfase na necessidadedead equaçãode 
Alan,quedevecederesecomportardemaneira“ correta”n aquelelocal.Oresultado
disto é que, em reação, o personagem dionisíaco se comporta o mais
desafiadoramentepossível.Emtodasassessõesemqueospersonag ensmantém
umtomminimamenteconciliador,ailuminaçãoébemmaisfraca.Elanãochegaa
ser uma penumbra, mas pa rece, indubitavelmente, menos ameaçadora; e assim,
Alanrespondemaisamistosamente.
A oposição claro/escuro na iluminação como um dado importante na
reafirmaçã o das características apolíneas e dionisíacas também se nos
monól ogosdeDysart.Logonoi níciodofilme,temosaimagemdeAlan abraçandoo
cavalo.Aomesmotempo,avozdeDysartiniciaomonólogoemqueeleexpõesuas
dúvidas sobre o caso de Alan e sua vida. Consoante indicamos anteriormente,
Dysart,apesardeserarepresentaçãoapolínea,entraemcriseapartirdocasode
Alan.DaimagemdeAlancomocavalo,acâmerasemoveemumapanorâmica
84
paraadireita,atéqueatelaficatotalmenteescura.Dysartpergunta:“vocêvê”?Ao
queelemesmoemenda,“estouperdido”.Aoaparecerseurosto,vêsequeuml ado
estánapenumbra;eooutroladoiluminado.Odiscursoeojogodoclaroeescuro
corroboramparademonstrarseuestadodeconfusão.Pensamosque,ne stecaso,a
iluminação  trabalha claramente no intuito de tor nar visível a luta entre as forças
apolíneodionisíacas que Dysart trava em seu interior, iconizandoa para o
espectador.Aqui,podemosperceberoconflitodopróprioShafferqueadmitesentir
emsiosdoisimpulsos.
Ainda nesta cena, adicionada ao uso da iluminação, está um outro
recursodo cinema:a movimentação dacâmera. AoaparecerorostodeDysart,a
84
Panorâmicaé amovimentação degirodacâmeraem seupróprioeixo,seja na vertical, seja nahorizontal
(Aumont,2002).
114
câmeraofocalizaemumprimeiroplano
85
.Assimtãopróxima,elaparecequerernos
aproximar do conflito interior de Dysart que é demonstrado por seu di scurso e
confirmadopelousodaluz.Poucoapouco,noentanto,acâmeravaiseafastando,
emumaespéciedet
ravelling
86
paratrás.Namedidaemqueseafasta,ailuminação
vaiaumentandoepassamosaperceberqueDysartestáemsuamesadetrabalho.
Ao haver o afastamento, Dysart começa a falar do caso de Al an, assumindo sua
postur acomomédico,aomesmotempoemqueestáaceitandoascaracterísticasda
representaçãoapolínea.Nãohádú vidasdequeeleestáemseupostoe,portanto,
eledevepassaraagircomoomédico.Assim,compreendemosqueautilizaçãoda
movimentaçãodemeraserelacionatantoaoespectadorquantoaopersonagem.
Pormeiodela,somosconvidadosaatentarmosparaoestadodeconfusãomental
deDysart(aproximação),bemcomopara anecessidadequeopersonagemsente
de comportarse da maneira que se espera dele (afastamento), representan do
iconicamenteeindicialmenteaangústiadeDysart,perdidoentresuasdúvidasea
necessidadedeexercerexemplarmenteseupapelsocial.Nesteexemplo,ousoda
câmera o colabora na definição de um conjunto de características, sejam elas
apolíneas ou dionisíacas; mas contr ibui para expor o próprio conflito que se
desenvolvenamentedeDysart.
AcâmeraestápróximaaDysartquetempartedeseurostonapenumbra.Àmedidaqueacâmera
seafasta,oambiente,bemcomooprópriorostodeDysartficammaisiluminados.
OconflitoentreosladosapolíneosedionisíacosdeDysartéaindamuito
bem trabalhado através do uso de cortes. Já no primeiro monólogo, o que
mencionamos no parágrafo anterior, Dysart fala de suas dúvida s, demonstrando
85
Oprimeiroplano,oucloseup,aquenosreferimosaquidizrespeitoaolugardemeraemrelaçãoaoobjeto
filmado.Nele,a“câmerarecortaorostodopersonagem”(Leone,2005).
86
“SegundoAumot(2002),“otravellingéumdeslocamentodopédacâmera,duranteoqualoeixodetomada
permaneceparaleloemumam esmadireção”(2002:39).Oautorlembraque“recentemente,introduziuseouso
do zoom ou objetiva com focal variável” (2002: 39). Assim, a própria objetiva pode criar a sensação de
aproximaçãoouafastamentodeumdeterminadoobjeto,semquehajaanecessi dadedodeslocam entodopéda
mera.
115
genuína inquietação. Não sabemos, no enta nto, a que precisamente estas
inquietações se referem. Em seguida, Dysart começa a falar do caso de Alan.
Somos,então,apresentadosaojovemeaomotivopeloqualamagistradaHesther
quer tanto que ele seja internado naquele hospital, sob  os cuidados de Dysart. É
exatamentenessemomentodahi stóriaq ueDysartiniciaosegundomonólogo.
No segundo monólogo, Dysart conta um sonho que ele teve três dias
apósachegadadeAlanaohospital.Éomesmosonhorelatadonapeça,ouseja,o
sonhoquesepassanaGréciaanti ga,emqueeleéumaespéciedesacerdoteque
usa uma máscara e cujo trabal ho é matar crianças indefesas. O que queremos
destacaraquiéoengenhonousodeimagensdocinema,que cortamanarrativade
Dysart,eque,automaticamente,explicamosonho.Napeça,acompreensãosobre
osigni ficadodosonhodeDysartdemoraumpouco,poissomenteapósumasérie
de diálogos, especialmente os que Dysart tem com Hesther, poderemos entender
sua frustração interior. Já no filme, enquanto Dysart narra o sonho, uma série de
imagens de sua vida cotidiana são exibidas, intercaladas com suas imagens no
presente, em sua sala, narrando a história. Inicialmente, ele está ao espelho,
fazendo a barba. Em seguida ele vai para sua cama, onde sua esposa já está
deitada,maselessequertrocamolhares.Depois,introduzseumacenaemqueele
tomacafée,finalmente,acenaemqueelepe gaocarroparasedirigiraotr abalho.
ÀmedidaemqueavozdeDysartnarraosonho,percebemosqueestenãopassa
de uma metáfora de sua vida atual. Enquanto ele diz qu e no sonho ele é uma
pessoa importante, mas que seg ura uma faca e destrói vi das inocentes,
compree ndemos que o sonho é uma alegoria de sua vida. No sonho, ele é um
homemrespeitadopeloquefaz,masquecomeçaasentirnáuseas,istoé,desprezar
sua honrada tarefa. Usa uma máscara que impede os outros de perceberem seu
realestado;eéassimqu eeleparecevivernomomento,usandoumamáscaraque
esconde a abjeção que ele sente por seu trabalho de “curar” pessoas,
especialmente jovens. Além da habilidade com que as cenas são inseridas, há,
ainda,ainterpretação,osemblante doator,que caracterizaodesapontamento de
Dysartcomsuavida.Oreferidorecursocinematográficosemostramuitoeficiente,
permitindo a restrição de elementos da peça, como al guns diálogos, ao mesmo
tempoemque consegueindicararaizdoconflitovividopelopersonagem.
116
DYSART: Três noites depois, tive um
sonho muito específico. Nele sou um
sacerdotesupremodaGréciahomérica.
Estou usando uma máscara de ouro,
preciosa e barbuda como a de
Agamenon encontrada em Micenas.
Estoudepénumapedraredonda,com
umafaca.
Conduzoum  sacrifícioritualimportante
doqualdependeodestinodascolheitas
ou de um a expedição militar. O
sacrifícioéumbandodecrianças.Uns
500 meni nosemeninas na planície de
Argos. Sei que é Argos por causa do
solovermelho.
De cada lado meu estão dois
sacerdotes assistentes de máscaras
também. Pesadas e de olhos
esbugalhados. ..
... como as que são encontradas em
Micenas.Elesoextremamentefortes
e incanveis. E cada criança que dá
umpassoàfrenteéagarradaporelese
jogada em cima da pedra. Então, com
habilidadecirúrgicaeuenfioafaca...
.. e corto elegantementeaté oumbigo,
como uma costureira seguindo um
desenho. Corto os canais internos,
arrancoosejogoosnochão,quentese
exalandovapor.
Então os outros dois estudam o
desenho qu e fizeram como se
estivessem lendo hieróglifos. Sou
obviamente o melhor como sacerdote
supremo.
Este talento para entalhe me levou
aondeestou.
117
A única coisa é que sem os outros
saberemestou começandoa mesentir
claramente nauseado. E a cada vítima
tornasepior.
Meu rosto tornase verde atrás da
máscara. Recobro meus esforços para
parecerprofissional,cortandocomtudo
...
... que podi a porque se os dois
suspeitarem de minha aflição e vida
de que este trabalho fedido esteja
sendoumbemsocial...
...entãosereiopróximonapedra.Edaí
amalditamáscaracomeçaacair!
OusodoscortesexplicitaarelaçãoentreosonhodeDysarteseuconflitopessoal.
Quandoestávamosexplicandosobreofoconarrativoem
Equus
,falamos
obreorecursodacâmerasubjetiva,comoumadasindicaçõesdequeAlantambém
temseumomentocomonarr adornofilme.Contudo,gostaríamostambémdeusaro
exemplo da utilização da câmera subjetiva naquela cena para falar de sua
importâncianacaracteri zaçãodionisíacadeAlan.EleestánasaladeDysartquando
estelheperguntaquandofoisuapri meiraexperi ênciacomcavalos.Apósalegarque
nãoserecorda,acabaporconfessarquefoiquandoer aaindaumgarotodeseisou
seteanos.Há,então,umcortequeinsereo
flashba ck
87
dacenaemqueAlanmonta
em um caval o pela primeira vez. De imediato, causanos surpresa o fato de que,
mesmo se tr atando de uma cena ocorrida enquanto Alan era criança, os
87
“Oflashbackéumatécnicanaqualumcertosegmentodofilmequebraaordemcronológicanormaldosfatos
aomudarparaopassado.Oflashbackpodesersubjetivo(quandomostraospensamentosdamemóriados
personagens)ouobjetivo(quandoretornaasituaçõesanterioresdanarrativaparamostrarasuarelaçãocomo
presente)”(Silva,2002:52).
118
personagens que r epresentam são  os mesmos atores adultos que identificamos
comoAlan,DoraeFrankStrang.Acreditamosqueaopçãoporutilizarosmesmos
atoreséumatentativadedeixarclaroquenãosetratapropriamentedaocorrência
dacenanopassado,masamemóriadeAlanematividadeemumavivênciana sala
deseuterap euta.
Acontribuiçãodessacenanaconstruçãodascaracterísti casdionisíacasé
a chance que ela oferece ao espectador de experimentar o prazer vivido pelo
personagemnaquelemomento.Alanéapenasummeninoqueconstróicastelosna
praia. Sua atenção é atraída pela imagem de um cavalo negr o montado por um
rapaz.  Eles se aproximam de Alan  e pelo enquadramento de mera em
contre
plongée
88
,temosumadimensãodagrandiosidadedaimagemdaquelecavalopara
Alan.Podemosvislumbraroentusiasmoeaansiedadedogarotoaoveroanimal.
Alan aceita o convitepara caval gar. O desconhecido o ajuda a montar e ele está
absolutamente encantado. A par tir deste momento, haverá cortes que mostrarão
alternadamente a cavalgada sob três perspectivas: a de alguém que, de longe,
observaacen aemumplanogeral
89
;a de umprimeiroplano,quandovemosorosto
deAl an;efinalmente,aperspectivadacâmerasubjetiva.
Todas essas perspectivas colaboram para demonstrar a magnitude
daquelaexperiêncianavidadeAlan.Aoobservarmosacenadelonge,constatamos
o tamanho e a velocidade do cavalo e seus “cavaleiros”, pois vemos seu
deslocamentodapraia.TendoaoportunidadedeanalisarorostodeAlan,podemos
ver suas expressões faci ais e, em conseqüência disto, a maneira como ele está
reagindo a tudo. Finalmente, a câmera subjetiva nos “empresta” os olhos do
personagem.Nestacenaespecífica,oespectadortemachancedeexperimenta ras
sensações do personagem
90
. É possível ter acesso ao ângulo de visão de Alan,
observar a crina do cavalo voando e sentir o trepidar do galope do cavalo. A
constante alternância das cenas potencializa seus efeitos e aproxima nossos
sentimentos aos sentimentos do personagem, em face da ide ntificação que
passamos a tercom ele, uma vez quepudemos partilhar um dos momentos mais
relevantesdesuavida.
88
Tipodeângulodefilmagememqueameraéposicionadademaneiraaenquadrarospersonagensouos
objetosdebaixoparacima.(Mascarenhas,2005)
89
No plano geral o enquadramento da mera é abrangente e “pega o máximo do espaço e o mí nimo da
personagem”(Leone,2005:43).
90
OefeitoobtidoéumaiconizaçãodossentimentosvividosproAlan.
119
Essascenas são,ainda,amplificadaspelousodo  som epelosdiál ogos
dospersonagens.Com relaçãoaosom,há,duranteascenasdaprimeiracavalgada,
aocorrênciadeumfundomusicalem
off
,bemco moossonsdogalopeedobarulho
docontatodocavalocomaágua.Ocorretammobrevediálogoentreorapaze
Alan. Neste diálogo, Alan é questionado se gostaria de cavalgar mais rápido. Ao
responderdeformaafirmativa,eleéestimulad oapedirao cavaloqueoleveembora
eassimofaz.Portudoqueexpomosatéaqui,pensamosqueodiretorconseguiude
forma criativa e completa  ressignificar a importância do episódio na vida do
personagem. Ao dar o devido destaque às sensações vividas por ele naquele
momento, osrealizadoresnão somenteter minamporsugeriremque momentose
acendeafagulha quefazde spertaroespíritodionisíacoemAlan,comotammnos
faz compreender porque, depois daquela experiência, ele não mais poderia ser o
mesmo.Entendemosporque,apóstervividotamanhasensaçãodeliberdade,Alan
nãosecontentariamaiscomasrestriçõesdasregrassociais.Depoisdetertidoseu
prazer roubado pelos pais, ele já nã o queria se adequar ao qu e a família ou a
sociedadequeriamdele.
Com relação ao código sonoro, acreditamos que a música foi pouco
utilizada. E, apesar de sua utilização ter sido limitada e de não estar diretamente
relacionadaàdefiniçãodascaracterísticasapolíneasedionisíacas,entendemosque
convémteceralgumasconsideraçõesacercadeseuusonofil me.Arelevânciado
uso da música é que, no filme, ela liga todos os episódios importantes para a
compree nsão do problema de Alan. Ela está no início do filme, quan do vemos a
imagemdeAlanab raçadoao cavalo,comavozdeDysartsobreposta,ecessano
momentoemqueestedizqueestásesentindoperdido.Amúsicaretornaemoutras
situações, como: na cena da primeira cavalgada de Al an; no momento em que
Dysart,noquartodeAlan,posicional adoaladoafotodeCristoeafotodocavalo;
na cena em que Alan vai ao estábulo pedir o emprego; quando ele anda pelo
estábulo sozinho; na cena do ritual de Equus; no momento em que ele volta do
cinema comJill; ou quando Jilldeixa o estábulo, após a tentativa frustrada de se
relacionaremsexualmente;e,ainda,nacenaemqu eelecegaoscavalos.Noiníci o
do filme, ao sermos apresentados à história de Alan, o que queremos saber é
exatamentequemotivosoucircunstânciaslevaramaquelerapazcometerumatotão
reprovável.Aoligarmososeventos,apa rtirdouso da  música,tornasefacilmente
perceptívelquaisosfatosque,aosejuntarem,culminaramnosurtodesesperadode
120
Alan.Umoutrofatoquedenotaestaligaçãopelamúsicaéqueésempre
amesmamúsica queserepete,aindaque porperíodosdiferentesemcadaumadas
cenas.
Esses for am os dados que consideramos mais relevantes para as
característicasapolíneasedionisíacasnatraduçãode
Equus
.Umavezconcluídas
nossas reflexões, apresentamos a seguir, nossas consideraçõessobre a tradução
de
Amadeus
.
3.3OAPOLÍNEOEODIONISÍACOEMAMADEUS
Seem
Equus
no ssacaracterizaçãodadialéticaapolíneodioni síacapartiu
da descrição do cenário/palco, em
Amadeus
, acreditamos que nossa primeira
mençãodevesereferiraoconvitequeSalieri,onarradordapeça,fazparaqueos
membros da platéia sejam seus confessores
91
. Inicialmente, podemos supor que
Salieri apenas narra uma história para um grupo, tentando se redimir de seus
“pecados”.Noentanto,nãodemoramosaperceberquealiseconfiguraoiníciode
umabatalha.Suaverdadeiraatitudenãoéadeumpecadorqueanseiaporperdão,
mas adeumpromotorouadvogadoquesedirigeaojúri,tentandopersuadilode
suatese.Ocenáriodescritonãolembraodeumtribunal,masodiscursonãodeixa
dúvidas, Salieri quer conquistar a platéia. Sua tentativa de apelar para a
comiseraçãodetodosiniciacomsuaapariçãonopalco,emumacadeiraderodas,
cobertoporummanto,egritandoonomedeMozart.Todaadescriçãodacenanos
fazimediat amentesuporqueeleélouco.
Napartedafrentedopalco,emumacadeiraderodas,decostasparas
estásentadoumhomemidoso.Podemosperceber,amedidaqueasluzes
vãoficandoumpoucomaisclaras,apartesuperiordesuacabeçaenvolvida
porumcapuzvelhoetalvezoxaleporsobreseusombros
92
(Shaffer,1984:
1).
SALIERI(
gritandoalto
):MOZART!!!
93
(Shaffer,1984:3).
SALIERI:Piedade,Mozart!Mozart,piedade!
94
(Shaffer,1984:4).
91
‘[...]myConfessors”(Shaffer,1984a:5).
92
Downstageinthewheelchair with his back tous, sitsan old man. Wecan see, as thelightgrows a little
brighter,thetopofhisheadencasedinanold cap,andperhapstheshawlwrappedaroundhisshoulders
”.
93
“SALIERI(
inagreatcry
):MOZART!!!”.
94
“SALIERI:Pietà,Mozart.Mozartpietá!”.
121
Salieri tenta passar por um mero narrador, tenta parecer imparcial, mas logo no
inícioserevela.Logoemseguida suaposturamudaeseudiscursonãoparecemais
o de um louco, mas o de alguém que tentará tenazmente contar sua versão da
história. Aosugeri rsuspeitassobreseuenvol vimentonamortedeMozart,parece
nosclaroquesuavisãoacercadeMozartserámuito tendenciosa.Aquiseconfigura
oembatequeposteriormenteserát ravado.
Eagora,graciosasdamaseamáveiscavalheiros!Apresentovos–emúnica
apresentação–minhaúltimacomposiçãoentituladaAmortedeMozart,ou
Fiz i sto? ... dedicada à posteridade nesta última noite de minha vida!
95
(Shaffer,1984:9)
Salieripassa,en tão,afalardesuapromessaparaDeus.Ele,umsimples
meninoitalianoquedesejaardentementesetornarumgrande compositor,impl ora
paraqueDeusoabençoecomodomdesermúsicodesucesso,emretorno,eleo
serviria e honraria eternamente, sendo um exemplo de virtude. Deus parece ouvir
suas preces. Logo no dia seguinte ao da promessa, um amigo de sua família
apareceeseofereceparapagarseusestudosdemúsicaemViena.Saliericumpre
a promessa de levar uma vida virtuosa e chega a fazer parte do grupo de
compositoresdacortedosHapsburgs.
Suavidanacortepedeuma condutaexemplareSalieriodesaponta.
Ele representa Apolo em seu comportamento contido e absolutamente de acordo
com as regras sociais. Polido, trabalhador e respeitado, Salieri  aproveita a
concretizaçãodeseussonhosqu andodescobrequeumfamosovirtuoso,Mozart,foi
convidado pelo imperador para escrever uma ópera e está a caminho para se
estabeleceremViena.Curi osoesurpresocomvindadeMozart,Salieridecideirà
casa da baronesa de Waldstädten para conhecer o famoso compositor. Ele
simplesmentenãoconsegueacreditarnacenaquepresencia.Aoentraremumadas
salas para comer doces sem ser notado, Salieri flagra Mozart em companhia de
ConstanzeWeber,afilhadasenhoriadele.Comocrianças,elesrolamebrincamno
chão fazendousodelinguagem chula e atémesmo escatológica. Minutosdepois,
eleouveacordesdamúsicadeMozarteficaabismadocomaquelesomdebeleza
inigualável.AqueleencontroabalaasconvicçõesdeSalieri,umavezqueelepassa
95
“And now – Gracious Ladies!Obliging Gentlemen! I present to you – for one performance only –my last
composition,entitledTheDeathofMozart,orDidI doit?...dedicatedtoPosterityonthis–thelast nightofmy
life!”.
122
aduvidarserealmentefoioescolhidode Deus.Aomesmotempoquequestiona a
fidelidade de Deu s para com a promessa por ele feita, Salieri não consegue
acreditarqueDeustenhaescolhido“aquele”Mozartparaserpremiadocomodom
supremo.
[...]Euestav arepentinamenteassustado.Pareciamequeeutinhaescutado
a voz de Deus e i sto tinha brotado de uma criatura cuja voz eutamm
tinhaouvido,eeraumavozdeumacriançaobscena
96
(Shaffer,1984:20).
Não demora muito e suas suspeitas se confirmam. Salieri tinha cumprido a
promessa,masDeusnã oaceitousua ba rganhaepremiouumaoutrapessoacomo
talentomáximo:WolfgangAmadeusMozart.
Depois dessa breve apresentação, já podemos comentar algumas
indicações claras das características apolíneas e dionisíacas dos personagens, a
começarpeladescriçãofísicadosmesmos.
No que diz respei to à aparência, uma forma de demonstrar a
contraposiçãodospersonagenséatravésdofigurino.Notextodapeça,Shafferfaz
menção aos modos como os personagens devem ser e como devem se vestir.
Referind oseàSalieri,diz:“eleéumhomemnoprimordeseusanos,vestindoum
casacoazulcelesteeasroupaselegantesdeumcompositordesucessodosanos
80 do século dezoito”
97
(1984a: 9). Mozart é descrito como um homem franzino,
pálido, de olhos grandes, com peruca e roupas pomposas”
98
(1984a: 16).
Obviamente, quando da montagem da peça, é possível que os diretores tenham
feitoalgu masmodificaçõeseacentuadoou atenua doalgumacaracterística.Porém,
vamos nos ater a estas descrições quando compararmos filme e peça, pois, a
pesquisaencar aapeçacomoumtextoescritoenãootextoencenado.
Não é somente a descrição do figurino que marca a oposição de
personalidades, mas tamm a forma com que Shaffer descreve os modos dos
personagens.Sobr eSalieri,percebemososmodoselegantes,odiscursocalculado
e eloqüente, a postura inabalável, o respeito à hierarquia, ou seja, a perfeita
adequação aos pa drões da corte austríaca. Podemos ter uma demonstração do
respeitoeadmiraçãoqueele gozajuntoaseusparesda corteapartir doconvite
96
“[...]Iwassuddenlyfri ghtened.ItseemedtomeIhadheardavoiceofGod–anditissuedfromacreature
whoseownvoiceIhadalsoheard–anditwasthevoiceofanobscenechild!”
97
“[...] he is a young man in the prime of life, wearing a skyblue coat and the elegant decent clothes of a
successfulcomposerofthe seventeeneighties”.
98
“[...]asmall,pallid,largeeyedmaninashowywigandashowysetofclothes”.
123
feitoparaqueelepertencesseàmaçonaria,honrariaofer ecidasomente aoshomens
depr estígioeinfluência.
VANSWIETEN:OSenhoréumhomemdevalor,Salieri!Vocêdeveriase
juntaranossafraterni dadedemaçons.Nósoreceberíamoscalorosamente.
SALIERI:Eumesentiriahonrado,Barão!
VAN SWIETEN: Se você quiser, eu poderia providenciar para que sua
iniciaçãofosseemminhacasa
99
(Shaffer,1984:14).
JáadescriçãodosmodosdeMozartnãoparecesugerirqueel essãoapropriados
para pessoas de grande prestígi o. Ele é o personagem antipadrão, vulgar,
barulhentoe indiscretotanto no falar quanto no vestir. Seu comportamento revela
sua origem simples, pois era o filho de um mero compositor local. Sob re Mozart
Shafferescreve:
Conforme começamos a conhecêlo nas próximas cenas, descobrimos
váriascoisassobreele:éumhomemextremamenteagitado,suasmãose
pésestãopermanentementeemmovimento.Suavozéágileaguda,eele
possuiumarisadinhainesquecível–agudaeinfantil
100
(Shaffer,1984:16).
Suafaltadetraquejosocialacabaporcolaborarparasuaruínafinanceira.Incapaz
decontrolaremoderarsuafala,Mozartseindispõecomváriosmúsicosdacortee
perdeboas oportunidades.Seusmodosexageradoscausam,ainda,certoembaraço
para o imperador, podemos observaristo no momento em que Mozart encontra o
imperadorpelaprimeiravez.
Mozartseaproximaeocumprimentademaneiraextravagante
.
MOZART:Majestade!SouapenasumhumildeservodeVossaMajestade!
Deixemebeijarsuamãorealcemmilvezes!
Ele beija rias vezes a mão do imperador sofregamente, até que o
imperadoraafastaconstrangido.
JOSEPH:Não,não,porfavor!Umpoucomenosdeentusiasmo,euimploro.
Vamos,Senhor,levantese!
[...]
Osmúsicosdacorteriemeducadamente.Mozartemitesuarisadaaltae
aguda. O imperador fica nitidamente surpreso com a risada
101
(Shaffer,
1984:2223).
99
“VANSWIETEN:You’reaworthyman,Salieri!YoushouldjoinourBrotherhoodofMasons.Wewoul dwelcome
youwarmly.
SALIERI:Iwoul dbehonoured,Baron!
VANSWIETEN:IfyouwishedIcouldarrangeinitiationintomyLodge”.
100
“Aswegettoknowhimthroughhisnextscenes,wediscover severalthingsabouthim:heisanextremely
restlessman,hishandsandfeet inalmostcontinuousmotion;hisvoiceislightandhigh; and heispossessedof
anunforgettablegiggle–piercingandinfantile”.
101
“Mozartapproachesandkneelsextravagantly.
MOZART:Majesty!YourMajesty’shumbleslave!LetmeKissyourroyalhandahundredthousandtimes!
Hekissesitgreedily,overandover,untilitsownerwithdrawsitinembarrasment.
JOSEPH:Non,non,s’ilvouspl at!Alittlelessenthusiasm,Ibegyou.Comesir,levezvous!
124
Podemosconcluir, peladescriçãodospersonagensnapeça,queSalieripossuiuma
elegância sóbria, enquanto Mozart possui vestimentas e modos que expressam
vulgaridade.
Umaoutraoposiçãoentre ApoloeDionisose firmanospersonagenspel a
vivênciaxrepressãodasexualidade.AoprometerparaDeusquelevariaumavida
virtuosa,Salieriincluiumavidasempaixão esemsexo.Ele chegaasecasarcoma
respeitávelTeresa,masdescrevedestaformaseucasamento:
Salieri:[...]Sópeçoumaqualidadeparaumacompanhiadoméstica–falta
defervor,paixão.EnessaomissãoTeresaeranotável
102
(Shaffer,1984:10).
Eleadmitesesentirfortementeatraídoporumadesuasalunas,KatherinaCavalieri,
noentantonãotentaseduzilaemrespeitoàpromessaquetinhafeitoaDeus.
EstavaapaixonadoporKatherina,oupelomenosadesejavasexualmente.
Porém,porcausademeusvotosaDeus,j amaisdeiteiumdedonamoça,
com exceção das vezes em que, ocasionalmente, ao ensi nála a cantar,
baixeiseudiafragma
103
(Shaffer,1984:10).
Com casamento estéril, sem paixão e sem que houvesse relações
extraconjugais, os desejos sexuais de Salieri são canalizados para a comida. Em
vários momentos da peça Salieri aparece comendo. É na ávida tentativa de
satisfação deseusdesejosqueSalieribuscaguloseimasnacasadabaronesa de 
Waldstädten.Eéemfacedestabuscaq ueeleacabaporconhecerpelaprimeiravez
MozarteflagráloemencontrocomConstanze.
SALIERI
(paraaplatéia)
:[...] Minhagenerosaanfitriãsemprecolocava os
mais deliciosos doces naquela sala quando sabia que eu estav a v indo.
Sorvete, caramelo, e mais especialmente um fenomenal creme à
mascarpone que é simplesmente creme de queijo com açúcar granulado
cobertocombebidaalcoólica,totalmenteirresistível!
104
(Shaffer,1984:15).
[…]
TheCourtierslaughpolitely.Mozartemi tshishighpitchedgiggle.TheEmperorisclearlystartledbyit
.
102
“[...] I require only one quality in a domestic companion – lack of fire. And in that omission Teresa was
conspicuous”.
103
“[...]IwasverymuchinlovewithKatherina–oratleastinlust.ButbutbecauseofmyvowtoGod,Ihadnever
laidafingeruponthegirl–exceptoccasionallytodepressher diaphragminthewayofteachinghertosing”.
104
“SALIERI(totheAudience):[...]Mygeneroushostessalways putoutthemostdeliciousconfectionsinthat
room whenever  she knew I was coming. Sorbetti – caramelli – and most especially a miraculous crema al
mascarpone–whichissimplycreamcheesem ixedwithgranulatedsugarandsuffusedwi thrun–thatwastotally
irresistible!”.
125
Aligação entre a gula e asexualidadereprimida de Salieri fica aindaevidente no 
nome de alguns petiscos mencionados na peça. Além dos no mes das iguarias, a
relaçãoentrecomidaedesejoficapatentenastentativasde sed uçãodeSali eri,que
usaacomidatantoparatentarseaproximardeConstanze,esposadeMozart,como
deKatherinaCavalieri.
SALIERI
(estendendo a caixa)
: Capezzoli di Venere. Mamilos de Vênus.
Castanhasromanasemaçúcarregadoaconhaque.
CONSTANZE:Não,obrigada.
SALIERI: Experimente. Eles foram feitos especialmente para você
105
(Shaffer,1984:44).
Mozart, diferentemente de Salieri, não encontra problemas para se
satisfazer sexualmente; ao contrário, tal como em outros aspectos de  sua
personalidade,oexcessoeoexagerota mbémencontramneleexpressão.Mozart,
que ao se mudar para Viena vai viver na pensão da senhora Weber, flerta,
inicialmente, com uma de sua s filhas, a soprano Aloysia. Depois de romper o
namorocomest a,envolvesejustamentecomairmãdela,Constan ze,queelevem
adesposar,a despeitodafaltadoconsentimentodeseupai.
Oirreq uietoMozart,todavia,nãosecontentacomoamordesuaesposa
e, para to tal horror de Salieri, toma Katherina Cavali eri como sua amante,
oferecendoparaelaumpapelemsuaópera
OraptodoSerralho
.
SALIERI
(suavemente)
: Bem, ocasionalmente, em outros momentos, por
exemplonaáriadeKatherina,estav aumpoucoexcessivo.
MOZART: Katherina é uma garota excessiva. Na verdade, ela é
insaciável!
106
(Shaffer,1984:31).
Apesar de não a poder possuir, em face de sua promessa, Salieri não suporta a
idéia de um outro homem se relacionar com ela. Além do talento de Mozart, é
somenteapartirdoenvolvimentodestecomKatherinaqueSalieridecidedestrui ro
compositor.
105
“SALIERI(producingthebox):CapezzolidiVenere.NipplesofVenus.Romanchestnutsinbrandi edsugar.
CONSTANZE:No,thankyou.
SALIERI:Dotry.Theyweremadeespeciallyforyou“.
106
“SALIERI
(smoothly)
:Well,justoccasionallyatothertimes–inKatherina’saria,forexample–itwasalittle
excessive.
MOZART:Katherinaisanexcessivegirl.Infactshe’sinsatiable”.
126
As investidas extraconjugais de Mozart também irritam sua esposa que
aponta seu comportamento com as alunas como a causa de seu fracasso como
profe ssor.
CONSTANZE:Vocêseaproveitoudetodasasalunasqueapareceram.
MOZART:Issonãoéverdade!
CONSTANZE:Todaequalqueraluna! 
MOZART:Digaonomedelas!Diga!
CONSTANZE: A senhorita Aurnhammer! A Rumbeck! Katherina Cavalieri,
aquela prostitutazinha maliciosa! Ela sequer era sua aluna, era aluna de
Salieri,oque,naverdade,meucaro,deveseromotivopeloqualeletem
centenasdealunas evocê nenhuma!Ele o asarrasta para a cama!
107
(Shaffer,1984:3839).
Avoracidadenasati sfaçãodeseus desejosatingeMozartosomente
na vi da sexual, mas tammnasua música.Ele discorda dos temas das óperas,
geralmenteliga dosàmitologiaecomintuitomoral izante.Paraele,amúsicaexiste,
acimadetudo,paradivertire,paragarantirodivertimento,asóp erasdeveriamtratar
davida“real”.Aoinsistiremsuavisãoprópriacomrelaçãoaostemasdasóperas,
Mozartcriainimigosnacorte.Aospoucos,mesmoaquelesqueviamneleumgrande
talento,passamaboi cotarseutrabalho.Em
OraptodoSerralho
,ahistóriasepassa
em um ham, em
As boda s de Fígaro
, uma cena apresenta um vestiário de
senhoras, com peças de lingerie espalhadaspelo chão e umpenico embaixo da
cama.Todosparecem escandalizados,masnãoconse guemconvencerMozart.
MOZART:[...](
Dirigindoseatodos
)Nãoentendovocês!Vocêsestãotodos
emseuspoleiros,masissonãoescondeseuscus!Vocêsestãocagandoe
andando para deuses e heróis! Se fossem honestos, cada um de vocês,
comquemvocêssesentirammaisàvontadeemcasa,comseucabeleireiro
ouHércules?OuHorácio?[...]Todaestavelhariatorturante! Elassãoum
saco!Tédio,tédio,tédio!(
Derepente,eleselevantaepulaemumacadeira,
como um orador. E como em uma declaração
.) Todas as óperas sérias
escritasnesteséculosãoumsaco!
Elessevirameolhamparaelechocados!Pausa.Eledásuarisadinhaefica
pulandonacadeira....
108
(Shaffer,1984:5960).
107
“CONSTANZE:You’veonlyhadeverypupilwhoevercametoyou.
MOZART:That’snottrue.
CONSTANZE:Everysinglefemalepupil!
MOZART:Namethem!Namethem!
CONSTANZE:TheAurnhammergirl!TheRumbeckgirl!KatherinaCavalieri–thatslylittlewhore!Shewasn’t
evenyourpupil–shewasSalieri’s.Whichactually,mydear,maybewhyhehashundredsandyouhavenone!
Hedoesn’tdragthemtobed!”
108
“MOZART: [...] (
Toall ofthem
):I don’tunderstand you!You’reall up onperches, but it doesn’t hideyour
arseholes!Youdon’tgiveashitaboutgodsandheroes!Ifyouarehonest–eachoneofyou–whichofyouisn’t
moreat homewithhis hairdresser thanHercules?Or Horatius? (...) Allthose anguishedantiques! They’reall
bores!Bores, bores, bores!(
Suddenly he springs up andjumps onto achair, like anorator.Declaring it
.) All
seriousoperaswrittenthiscenturyareboring!
127
Podemos apontar aqui uma outra contraposição entre as características
apolíneasedionisíacas,éaquelaquesemanifestanamúsica.Estadivergênciadiz
respeito a vários aspectos, entre eles, a discrepância entre as capacidades
musicais,aaceitaçãoecompreensãodesuasmúsicaseasvisõesantagônicasdo
queseriaopapeldoartista.
Salieri estava mais de acordo com o que se esperava dele naquele
momentohistórico.Suamúsi caeraconvencional,comedidaeagradavaàsociedade
desuaépoca.Elerecebeelogi os detodosna corteeseuprestígioéevidenciado
quandoeleépromovidoaomelhorcargo,ocargode
Kapellmeister
.
VENTICELLO1:KapellmeisterBonno.
VENTICELLO2:KapellmeisterBonno.
VENTICELLO1eVENTICELLO2:KapellmeisterBonnoestámorto!
Salierificaboquiaberto.
VENTICELLO1:Vocêéescolhido.
VENTICELLO2:Porumdecretoreal.
VENTICELLO1:Parasubstituílo.
Luzes fortes no imperador ao fundo. Ele está ladeado por Strack e
Rosemberg,depécomoíconescomonaprimeiradesuasaparições
.
JOSEPH: (
formalmente, enquanto Salieri se vira e o reverencia
) Primeiro
diretorecondutorrealeimperialdosmúsicosem pregadospelacorte.
OsVenticelliaplaudem
109
(Shaffer,1984:76).
Em contrapartida, a música de Mozart não é muito bem compreendida
pelacorteoupelo público.Eleé umhomemà frente deseutempo, seutrabalho,
extremamenteelaborado,exigegrandeesforçoeconcentraçãoporpartedopúblico.
Sobreaapresentaçãodaópera
OraptodoSerralho
,oimperadorcomenta:
JOSEPH: Pois bem, Mozart – bom trabalho. Decididamente um bom
trabalho.
MOZART:Realmentegostou,Senhor?
JOSEPH: Achei muito interessante. Realmente. Um certo esbajamento –
comopoderiadizer?(
paraRosemberg
)Comodizer,SenhorDiretor?
ROSEMBERG:(
subservientemente
)Excessodenotas,Majestade?
JOSEPH:Bemcolocado.Excessodenotas.
Theyturnandlookathim inshockedamazement.Apause.Hegiveshislittlegiggle,andthemjumpsupand
downthechair...”
109
“VENTICELLO1:KapellmeisterBonno.
VENTICELLO2:KapellmeisterBonno.
VENTICELLO1eVENTICELLO2:KapellmeisterBonnoisdead!
Salieriopenshismouthwithsurprise
.
VENTICELLO1:Youareappointed
VENTICELLO2:ByRoyalDecree
VENTICELLO1:Tofillhisplace.
LightsfullupontheEmperorattheback. HeisflankedbyStrackandRosemberg, standinglikeiconsasattheir
firstappearance
.
JOSEPH:(
formallyasSalieriturnsandbowstohim
)FirstRoyalandImperialKapellmeisterto ourCourt.
TheVenticelliapplaud
”.
128
MOZART:Nãocompreendo.
JOSEPH: Meucaro, não seofenda. Existem, naverdade, um númerode
notasquesepodeouvirduranteumanoite.Acreditoestarcorretoemdi zer
isto,nãoestou,Compositoroficial?
110
(Shaffer,1984:30).
Naestréiadaópera
AsbodasdeFígaro
,oimperadorJosephboceja.Éumaópera
muito longaquedesagradou àplatéiaefezapenasnoveapresentações.
JOSEPH(
friamente
):[...]Realmenteachoquedeveríamosomitirosbisno
futuro.Ficatudodemasiadamentelongo
111
(Shaffer,1984:69).
Mozart se ressente da falta de compreensão para seu talento e sua
música.Ele lastimaaatençã oedestaquedadosaSalieri.Considerandosesuperior
a ele, debocha do trabalho do colega, tachandoo de convencional e sem
inventividade.
MOZART:Vocêv iuaúltimaóperadele(Salieri)?–
ChimneySweep
?Viu?
STRACK:Claroquesim.
MOZART:Bostadecachorro.Bostadecachorroseca
112
(Shaffer,1984:34).
MOZART: (cantando)Pompom, pompom, pompom, pompom! Tônico e
dominante,Tônicoedominantedaquiatéaressurreição!Nemmesmouma
única modulação durante t oda a noite. Salieri É um idiota m usical!
113
(Shaffer,1984:34).
Como se percebesse a falta de paixão na vida de Salieri, reconhece sua música
comoadeumhomemquenãoconsegue“levantar”.
MOZART: [...] Você já ouviu a música dele? É a música de quem não
conseguelevantar!
114
(Shaffer,1984:30).
110
“JOSEPH:So,Mozart–agoodeffort.Decidedlythat.Agoodeffort.
MOZART:Didyoureallylikeit,Sire?
JOSEPH:Ithoughtitwasmostinteresting.Yes,indeed.Atriflehowshallonesay?(
ToRosemberg
)How
shallone say,Director?
ROSEMBERG:(
subserviently
)Toomanynotes,YourMajesty?
JOSEPH:Verywellput.Toomanynotes.
MOZART:Idon’tunderstand.
JOSEPH:Mydearfellow,don’ttakeittoohard.Thereareinfactonlysomanynotestheearcanhearinthe
courseofanevening.IthinkI’mrightinsayingthat,aren’tI,CourtComposer?”. 
111
“JOSEPH(
cooly
):[...]Idothinkwemustomitencoresinthefuture.Itreallymakesthingsfartoolong”.
112
“MOZART:Didyouseehislastopera?
ChimneySweep
?Didyou?
STRACK:OfcourseIdid.
MOZART:Dogshit.Drieddogshit”.
113
“MOZART:Pompom,pompom,pompom,pompom!Tonicanddominant,tonicanddominantfromhereto
resurrection!Notoneinterestingmodulationallni ght.Salieriisamusicalidiot!”.
114
“MOZART:[...]Haveyouheardhismusic?That’sthesoundofsomeonewhocan’tgetitup!”.
129
Podemos perceber, portanto, que a músi ca de Salieri (racional,
convencional, comedida e simples) encerra a face apolínea das características;
enquantoamúsicadeMozart(instintiva,autoral,exuberanteeelaborada)congrega
ascaracterísticasdionisíacas.
Um exemplo dos mais interessantes, e que ilustra a desigualdade da
competênciadeSalieriemrelaçãoàdeMozartatravésdamúsica,éaqueleemque
Salieri lê pela primeira vez as partituras de Mozart, levadas à sua casa por
Constanze.AcadapáginaqueSalieriolha,ouveamúsicaquealiestáescritaese
maravilhacomabelezadascomposições.Énestemomentoqueelepercebequea
serenata ouvida na casa da baronesa de Waldstädten o foi um mero golpe de
sorte.AmúsicadeMozarterasuperior,inigualável,eleeraoescolhidodeDeus,o
amado de Deus (Amadeus). Um outro momento é aquele em que Mozart, na
primeir a visita ao palácio, propõe variações à marcha de bo as vindas escrita por
Salieri.Areferidamúsica(amarchadeSalieri)é,naverdade,umasimplificaçãode
uma verda deira ária daópera
As bodas deFígaro
, de Mozart. Shaffer utiliza este
recurso não sóparademonstrar a grandediferen ça entre o talento dos dois,bem
comoparaexploraracomicidadequeela enseja. Aária marca opo ntoemquea
vidadopersonagemmuda.Naópera,elaocorrenomomentoemqueopersonagem
Cherubinoéavisadoquedeveesquecersuavidadeprazeresevislumbrar umfuturo
cheiode dificuldades. No casode Salieri, elemarca a chegadae oencontro com
Mozarte,conseqüentemente,funcionacomoumavisodasmudançasqueocorrerão
emsuavida.Dessaforma,aomenosparaosconhecedoreseamantesdaópera,a
execução da  ária
Non più andrai
, como a marcha de recepção de Mozart é
permeadadeironi a.
Existe,ainda,umaspectomuitointeressantequefoiexploradonasobras
equereforçamasdiferençasentreaspersonalidadesapolínea(Salieri)edionisíaca
(Mozart).Équepodemosdizerqueelesrepr esentam,tantonapeçaquantonofilme,
asvisõesantagônicasdoqueseri a opapeldoartista.“Salierirepresentaaépoca
passada na qual o artista era visto como um artesão cuja tarefa era produzir
trabalhosqueagradassemseuempregador”
115
(Kurowska,1998).Osartistaseram
como servos pagos pela igreja e pela aristocracia. Mozart, por outro lado,
115
“Salierirepresentsthe passing epochinwhich the artistwasr egarded asacraftsmanwhose taskwasto
produceworksthatpleasedhisemployer”.
130
representaria uma “nova imagem do artista como uma pessoa livre [...] que l uta
contraasrestriçõesimpostaspelasociedade”
116
(Kurowska,1998).
Um ponto interessante a se notar é a maneira diferenciada que os
personagens percebemDeus.ODeusde Salieri é o dareligiãoinstitucionalizada,
percebi dologicamente.Nãoé,todavia,umDeusdignodeconfiança,umavezque
parece relacionarse com seus adeptos por meio de barga nhas. Salieri se sente
traídoporseuDeusedecidetravarcomeleumaverdadeiraguerra.Tendosidoo
prete ridodosfavoresdivinos,decidequeopermitiráqueMozartprospere,para
istoi nterfereemseusempregosenarelaçãodelecomamaçonaria.Salieri ,assim,
abandonaporcompletosuavidavirtuosa.ParaSalieri ,Deusécruelcomele,mas
tammoécomMozar t.Deuséumser impiedosoquenãoseincomodade usa r
pessoasinocentesparasatisfazerseuscaprichos.
MozartnãosedirigeousereferetantoaDeusquantoSalieri.SeuDeus
não é vingativo ou desprezível. Para ele, a música é a maneira correta de se
comunicarcomDeus.É pormeiodamúsicaqueElenosescuta.Aocomentarcom
Strack, Van Swieten e Salieri como poderia elaborar um quarteto vocal que se
desdobrariaemquintetoesexteto,el efazumadesuaspo ucasobservaçõessobre
Deus.
Apostoqueéassim queDeusouveomundo.Milhõesdesonsascendendo
todosdeumavezesemisturandoemseuouvidoparasetransformarem
uma música sem fim, inimaginável para nós! (
Para Salieri
) É este nosso
trabalho! É estenosso trabalho, scompositores: unir as mentesdele e
dele, dela e dela e os pensamentos das camareiras e compositores da
corte,transformandoaaudiênciaemDeus
117
(Shaffer,1984:60).
Tal como Alan, Mozart desenvol ve uma adoração muito particular, em seu caso,
essa adoração/religião é a música. Encontramos, neste aspecto, uma referência
clara de Shaffer  a Nietzsche qu e acreditava que a música está tanto na raiz dos
cultosreligi osos,quantonabasedaartetrágica.
Éforçosoassinalarque,aolongodapeça,ascaracterísticasapolínease
dionisíacas referentes aos personagens parecem sofrer um abalo. Em um
deter minado po ntodapeça,oSaliericorreto,pio,exemplodehonestidadeetalento,
116
“[...]newimageoftheartistasafree,[...]creaturewhofightstherestrictionsputuponhimbysociety”.
117
“Ibetthat’showGodhearstheworld.MillionsofsoundsascendingatonceandmixinginHiseartobecome
anunendingmusic,unimaginabletous!(
ToSalieri
)That’sourjob!That’sourjob,wecomposers:combiningthe
innermindsofhimandhim,andherandher–thethoughtsofchambermaidsandCourtComposers–andturn
theaudienceintoGod”.
131
um perfe ito representante do esplendor apolíneo, deixa de se comportar dessa
forma.Aoperceb era nãoaceitaçãodeseusvotosporpartede Deus, elepartepa ra
atitudes execráveis. Al ém das já mencionadas, ele tenta chantagear e seduzir
Constanze(esposadeMozart),quandoelavaiasua procurapedirqueeleinterceda
porMozartjuntoàcorte.EletammtomaKatherinaCavaliericomoamante;pára
de ajudar alguns compositores e se recusa a dar as aulas que dava sem cobrar.
TambémMozartmudasuascaracterísticasaolongodahistória.Inicialmente,éum 
jovemque,apesardetalentosoedeumainfantilidadeingênua,tambéméarrogante,
excessivamente autoconfiante, atrevido, exagerad o e sem modos, ou seja, possui
toda a qualificação dos extremos dionisíacos. No entanto, após o fracasso na
apresentaçãodesuasóper as,a mortedeLeopoldMozart,a segundagravidezde
Constanze,anecessidadedemudarparaumbairropobre,semmencionarafaltade
alunosededinheiro,Mozartperde umpoucodesuavivacidadeeautoconfiança.Ele
começa,equivocadamente,averemSalieriumaliadoepareceencontrarnoantigo
desafetoqualidadesatéentãodespercebidas.
Apesar desta inegável mudança, acreditamos que cada personagem
continuacomoarepresentaçãoda sforçasapolíneasedionisíacas.Afinal,aind aque
Salieri confesse para a platéia seus mais sórdidos ardis no intuito de prejudicar
Mozart, sua imagem para os outros personagens (e toda a sociedade vienense)
permaneceinal terad a.Aindaqueparaojúrielenãosejaosenhorjusto,honesto,e
correto; o personagem funciona como a representação destas características na
peça. Observação semelhante vale para Mozart. Adespeito de seu abatimento, o
arrebatamento ,apaixãoeafaltademedidasdopersonagemacompanham no atéo
finaldapeça,portanto,eleretrataoespíritodionisíaconaobra.
Pensamos que, tantoem
Equus
quanto em
Amadeus
, Shafferconstruiu
personagensqueseconfrontam,apresentandocaracterísticasrelativasaosmodelos
deApoloeDioniso.Todavia,conformesugereopróprioShaffer,nãosetratadeuma
oposição a ser apreciada de forma maniqueísta. Não um lado correto e um
errado,masapenasladosdiferentes.Conformedenominaoprópri oShaffer(1984)
noprefáciodeAmadeus,tratasede“umacolisãoentreduasdiferentesformasdo
certo”
118
(Shaffer, 1984: ix). Segundo MacMurraughKavanagh (1998), vários
autor es vêem neste modelo de Shaffer ainfluência das teoriasde Carl Jungque,
118
“[...]acollisionbetweentwodifferentkindsofRight“.
132
grosso modo, sug erem que o equilíbri o do homem só viria a partir da paz
estabelecida entre o consciente e o inconsciente. A oposição dos personagens,
dessaforma,noslevari aarefletirsobre“orelacionamentohostilentreoconscientee
oinconsciente”
119
(MacMurraughKavanagh,1998:104),entreosuperegoeoid.
Épossível compreender essaidéiade Shaffer,apartir  do conflito entre
Salierie Mozart.Noiníciodestaseção,aomencionarmosaapr esentaçãodoconflito
de
Amadeus
, afirmamos que Salieri se dirigia à platéia como se estivesse se
dirigindo a um júri, esforçandose por convencêlo de sua te se. Pensamos que
Salieri tenta embasar sua  absolvição justi ficando suas atitudes reprováveis como
uma tentativa de escapar à injustiça divina. Ele tenta arregimentar simpatizantes
tratandooscomoiguais.Aelesespecialmentesedirige.
SALIERI: Medíocres em toda parte, agora e sempre, absolvo a todos.
Amém!
120
(Shaffer,1984:102).
Épertinentequestionarseaestratégiausada,aoi nvésdeconvencer,fazopúblico
se voltar contra o narrador. MacMurraughKavanagh (1998) sustenta que a
estratégiapodesereficiente.Elaargumentaqueopúblicoélevadoaacompanhar
suamudan çadeatitudedeumhomemhonestoecaridosoaumhomeminvejosoe
vingativo,masque somentese modificaemfacedainjustiçacomqueotalentoé
distribuído. Ele ainda simboliza alguns valores positivos como a dedicação, o
trabalho árduo e polidez, elementos com os quais costumamos nos identificar.
Mozart,umavezqu evistopelavisãodeSalieri,tammémostradocomode tentor
decaracterísticasnadapositivascomoimaturidade,arrogânciaemausmodos. No
entanto,eleétammumjovemtalentoso,vivazededicado.Acreditamosque,com
estaabordagem,Shafferrealmentepromoveemsuaspeçasoembateentreopostos
que são, ao mesmo tempo, certos e errados. Mas, será que esta abordagem é
mantidanatradução?Éoquediscutiremosaseguir.
Tal como a peça, o filme
Amadeus
é narrado por Salieri. Mas algumas
modificações foram feitas. Se na peça Salieri inicia se dirigindo à platéia, seus
“confe ssores”e“fantasmasdofuturo”,naquelequeelepensavaseroúltimodiade
sua vida; no filme esta estratégia é de certa forma alterada, com a inclusão do
personagemdopadre.Estepersonagemvaiaosanatório,lugarparaondeSalierié
119
“[...]hostiler elationshipbetweenman’sconsciousandunconscious”.
120
“SALIERI:Medi ocritieseverywhere–nowandtocome–Iabsolveyouall.Amen!”.
133
enviado,apósatentativadesuicídio.Dessaforma,éaopadrequeSaliericontaa
história desuavida,desuapai xãopelamúsicae suasrelaçõescomDeuseMozart.
Salierirecebenohospícioavisitadopadre.
Pensamos que, no caso de
Amadeus
, não há dúvidas deque estamos
falandodeumanarraçãoemprimei rapessoa.ÉSalierique,diretamente,sedirige 
ao padre contando sua vida. Para isso, o filme inteiro faz uso do recurso do
flashback
,ouseja,retornasea umtempoanterioraotempodanarrativa. Nesses
momentosemquesevol taaopassado,poucasvezespodemosperceberacâmera
operandosubjetivamentedemodoafuncionarcomoosolhosdeSalieri(focalização
visual).Pelocontrário,emváriosmomentos,temosasensaçãodeestarassistindoa
uma narração centrada nas ações externas dos personagens, portanto, com uma
focalizaçãoexterna,próximaaumanarrativaemterceirapessoa.Masnãotardao
momentoemqueumSalierijáidosoretomaapalavraenosrelembraqueeleéo
narrador.Leone(2005)explicaque,mesmodiante deum
flashback
,o espectador
tende a perceber o tempo da narrativa cinematográfica como um tempo presente,
em suas palavras, no cinema está sempre “acontecendo um acontecido” (Leone,
2006: 62). Estefenômeno, no caso dofilme que anali samos, pode fazer com que
tenhamosatendência de não perceber que, o que quer  que tenha acontecido no
passado,estásendomediadoporumnar radorqueestánopresente.Assim,ainda
que os
flashbacks
estejam, em sua maiori a, em um estilo narrativo que remete à
narraçãoemterceirapessoa,éinegávelqueoacessoatodaaquelainformação,a
todos aqueles acontecimentos, são apresentados pela visão parcial e amarga de
Salieri. Assim, o intérprete sofre influência do contexto (Salierinarrador) e, est a
influência afeta sua análise e i nterpretação. Acreditamos que esta reflexão é
essencial para perceb ermos que, a caracterização dos personagens sofrerá
infalivelmente a intervenção da visão do personagem, ainda que tentemos ao
134
máximo adotar uma postura imparcial. Partamos, finalmente, para a análise da
traduçãode
Amadeus
.
No quesito caracterização física, o diretor do filme usa alguns artifícios
para garantir a diferenciação dos personagens apolíneo e dioniaco, criando em
suas aparências uma extensão de sua s dimensões psicológicas e promovend o,
desta forma, uma iconização
121
das características de  suas personalidades. No
vestuário, por exemplo, a diferenciação é marcante e significativa. Para explicitar
estaafirmação,usaremosalgunsexemplos.
Era comum àquela ép oca que as pessoas, notad amente as de classes
mais abastadas, usassem perucas. Até mesmo as crianças usavam perucas,
podemosobservarissonoprópriofilme,sejanosarauoferecidopeloarcebispode
Salzburg, seja na cen a que mostra Mozart pequeno se apresentando na corte.
MozartetodososoutroscompositoresdacortedeJosephpossuemper ucas de cor,
especialmentebrancas,e/oupe nteadoselaborados.Oquese observaéocontraste
querepresentaanãoutilizaçãodaperucabrancaporpartedeSalieri,umatentativa
inequívocadedemonstr arnoâmbitovisualascaracterísticasdereserva, modéstiae
comedimentopertinentesaopersonagem.
Essas características de Salieri também são demonstradas por suas
roupas.Elesemprevesteroupasescur as,principalmentepretoemarrom,esempre
se apresenta com aparência impecável. Mesmo se compararmos sua vestimenta
comasdosoutroscompositores,quenãoMozart,suasroupassãosempreasmais
discretaseescuras,reveladorasdeumapersonalidadeafei taàsconvençõe s,pouco
ousadaequetentatransmitirseveridade.
A caracterização de Mozart, por outro lado, destaca sua personalidade
únicaenadaconvencional.Eleusaperucasbrancaseatémesmoumaperucarosa.
121
Emseulivro
Matrizesdalinguagemepensamento
,Santaella(2005)afirmaque,seatentarmospara ostipos
delinguagem(ver bal,sonoraevisual),perceberemosquealinguagemverbalésimbólica,poisarelaçãoentre
signoeobjetoestánoreinodaabstração. Alinguagemsonorateria“umpoderreferencialfragilíssimo”(2005:
19),nãopodendoseprestararepresentaralgoforadele,logo,estalinguagemestari anouniversodoicônico.
Porsuavez,alinguagemvisual,diferentementedoqueestamosacostumadosapensar,ouseja,dequeelaé
fundamentalmenteicônica,tem,narealidade,caráterindicial.Istoporqueaconexãoentreaimagemeoobjeto
queelarepresentaésica.Aautoraexplicaque“senãofosseporessafisicalidade(...)nãoteríamosmeiosde
distinguirentreo visível eoalucinado,devaneado,sonhado” (2005:196).Deformaalguma,tencionamosnos
oporàspertinentesconclusõesdaautora,aoutili zarmosotermoiconizaçãoparatratardaimagem.Oquetemos
emmenteéque,conformesustentaaprópriaSantaella,“ostrêsníveissemióticos–iconicidade,indexicalidadee
simbolicidade – estão indissoluvelmente conectados e intrincadamente urdidos” (2005: 193), e que, a
predominância do aspecto indicial da imagem figurativa não exclui, em absoluto, sua iconicidade. Conforme
lembraamesmaautora,“aiconicidadeourelaçãodesemelhançaentreumarepresentaçãovisualeaquiloque
ela representaéumrequisitofundamentalparaafiguratividadedarepresentação,ouseja,paraseupoderde
referênciaouindicaçãodealgonomundovisível”(2005:200).
135
Masadiferença do uso daperucanãoestáapenasnacor,masaindanosformatos.
As perucas dele são as mais extravagantes, diferente das de todos os outros
personagens.Assimtammsãosuasroupas,quenamaioriadascenaspossuem
coresclarasechamativas.Essacaracterizaçãoseapresentaemtodoofilme,mas
destacaremosascenasqueconsideramosasmaissignificativas.
Adistinçãodo figurinodospersonagensficamuitoclaralogoemumadas
primeir ascenasnaqualpodemosveraparticipaçãodeváriospersonagens,acena
dafestaoferecidapeloArcebispodeSalzburgemViena.Aoadentrarepercorrero
salão, Salieri, que está ali para encontrar Mozart pela primeira vez, pergunta a si
mesmoseotalentoecapacidadedeMozartsetraduziriamemumacaracterização
físicaqueodistinguissedosdemais.Arespostaàssuasindagaçõesvirámaistarde,
mas neste momentopodemosobservaraperfeitaadequaçãodapersonalidadede
Salieri e sua indumentária. De início podemos notar a cor de sua roupa, marrom
escuro, emoposiçãoàvestimentadosoutrosconvidados.Aindaquealgunstambém
usassemroupaescura,emger al,e stacorpredomi navaapenasnacasaca,aopasso
que Salieri marcava sua gravidade dos pés à cabeça. Isso porque também sua
peruca eradiversada detodos os outrosconvidados, poisestes usavam perucas
brancas,enquantoele perucacasta nha.Comuma roupa similara Salieriestavam
somente os músicos que tocavam no início da festa, informação que, em nosso
entender, reforça a tese de que Salieri deseja demonstrar humildade ao se
assemelharaosqueláestavampar atrabalhareoparasedivertir.Observemos
asfigur as:
Salierisedestacapeladiscrição.Alémdele,sóosmúsicosusamroupasescuras.
Eletamméoúnicoausarperucaescura.
136
Uma outra cena que tamm destaca bastante tanto os elementos
apolíneos e dionisíacos na caracterização física é a cena em que Mozart vai
encontraroimperadorpelaprimeiravez.Nestemomentoeleusaumaroupaliláse
perucarosa.Sua aparência,assi mcomoseus modos,é visivelmente contrastante
secomparadaaqualquerdospersonagensalipresentes,especialmenteSalierique
estádepreto,comoqueemumprenúnciodoperíododifícilqueseinstalariaemsua
vida com a chegada do virtuose na corte dos Hapsburgs. Observemos a foto de
cenaabaixo
122
.
Mozartusaroupaquesedestacapelascoresmai sclarasepoucousuais.
Fato importante a ser destacado é a paulatina transição das cores do
vestuário de Mozart ao longo do  filme. À medida em que Mozart fracassava na
aceitaçãodeseutrabalhoeperdiadinheiro,podemosperceberqueelepassaausar
cores mais escuras, em u ma tentativa clara de gerar no intérprete a idéia da
decadênciadopersonagem.Mozartperdea“cor ”,aalegriaepassaaterimagemde
pessoa apática, até mesmo doente, em uma forma de representar iconicamente
estadosmentais.
122
Fotodecenaenãofotograma.Ofotogramaéafotodapelículacinematográficaque,colocadaemseqüência
e posta em moviment o produzem imagens contínuas. A foto da cena é conseguida através de recursos dos
aparelhosdeDVDquecaptamumaimagemdofilme.
137
GradualmodificaçãonacaracterizaçãofísicadeMozart.Deumaimagemjoviale
coloridaparaumaaparênciaabatidaesemcor.
Mas,nãoésomente naformadesevestir,emqueestãoiconizadasas
características apolíneas e di onisíacas do s personagens. Também seu
comportamentoeseusmodosdenotamestadiferenciação.Osmodos de Salierisão
graves e elegantes. Ele anda sempre ereto, faz poucas expressões faciai s, sorri
quasesempredeformadiscretaetemumavozsuave.Nuncaperdeacompostura,
mesmo quando abertamente ofendido ou discretamente ironizado. Salieri está
perfeitamente ambientado nos altos salões de Viena e, ainda que tenha origem
humilde , consegue se comportar de forma impecável nos ambientes sofisticados.
Existeminúmerosexemplosdapolidezdeseusmodos.Umdeleséacenaemque
háoencontroentreMozarteoimperador Joseph.Saliericompõeumamarchade
boasvindasquedesejatocarnaentradadeMozart.Aoserindagadopeloimperad or
se permitiria que estetocassea marcha, Salieri, aindaqueincomodado pelo fato,
nãosódeclinaservilmentedatarefaemfavordosoberano,bemcomoagradecea
“honra”detersuamúsicatocadapelarealeza.Aofimdavisita,quandoMozartestá
paraseretirar,estedecidetocaramúsicaquetinhasidofeitaparaele.Aochamar a
marchadeSal ieridemuitosimples”esugerirmodificações,Mozartdimi nuiSalieri
publicamente,maseleoperdeacomposturaeaindaagradeceassugestõesdo
famosocompositor.
UmoutromomentoquedemonstraocomportamentoeducadodeSal ierié
aquele em que Mozart procura o colega para se queixar do cancelamento das
apresentações de
As bodas de Fígaro
, uma vez que a óp era só teve nove
apresentações. Salieri explica a Mozart que ele tinha superestimado o público
vienense, premiandoo com u ma peça longa e muito elaborada. Ao sugerir que
Mozart deveria ter marcado os fi nais das músicas de forma a que o público
soubesse a hora de aplaudir, Mozart retruca que talvez Salieri pudesse lhe dar
algumas lições neste aspecto. Apesar da discreta surpresa demonstrada pelo
138
excessodesinceridadedeseucolega,Salierirespondequeosesentiadignode
ensinarqual quercoisaaMozar t.Aofinal,aindapedeaopiniãodeMozartemuma
peçadesuaautoria.Obviamente,éprecisodeixarclaroqueestecomportamentoa
quenosreferimosserefereaoSalierijovem,enãoaosenhoramargoeperturbado
dosúltimostempos.
Mozart,aocontrário,éoexemplodoexcessoedoexagerotambémem
seus modos. Sua risada é aguda e alta, parecendo com a de uma cr iança sem
modos.Seusgestossãonervososeestabanados,eleestásempr efalandoaltoede
manei raagitada.Seulinguajaréchuloeelenãosabesecomportaremambientes
maissof isticados.Podemoscitarcomoexemplosdesuainabilidadesocial amaneira
defazera reverênciaàrealeza, sempreexager ada,comoocorrenacenaemque
visita pela primeira vez o palácio. A reverência que ele faz ao imperador, seja
quandoseinclinaparasaudálo,sejaquandobeijaasuamão,sãoestapafúrdiose
desengoados.Aotersuamãobeijadacom tantainsistência,oimperadorchegaa
repreendêlo de forma branda dizendo: “menos entusiasmo, não é uma relíquia
sagrada”.Aoqueosoutrosmúsicosrespondemcomumdiscretosorriso.
OutracenaquedemonstraapoucacomposturadeMozartéaquelaem
que ele tenta convencer a corte a aprovar a encenação de
As bodas de Fígaro
,
óperacujolibretofoiinspiradoemumapeçaproibidana França.Anteanegativada
corte, Mozartperdea composturaatémesmodiantedoimperadorechegaausar
palavrasdebai xocalão.
MOZART:Digamme,sejamhonestos!Quemprefereouvir
umacabeleireiraaumHércules?
.....ouHorácio,ouOrfeu.
139
Tãosublimes,elessoamcomosecagássembolasdegude!
VANSWIETEN:Oquê?
CHAMBERLAIN:Controlesualíngua,Mozart,comose
atreve!
MOZART:Perdão,SuaMajestade.Souumhomemvulgar.
Maslhegarantoqueaminhamúsicanãoé.
Acreditamos, ainda, que o diretor enfatizou a oposição entre Salieri e
Mozart a partir de dois ele mentos relativos aos códigos visuais do cinema: a
disposição espacial e ouso doscortes.Quanto aoprimeiro aspecto, adisposição
espacial dos personagens, podemos perceber que, não raro, na disposição dos
140
personagens no  ambiente das cenas, Salieri  e Mozart estão de lados opostos do
quadro
123
.
Na cena em que Mozart vai pela primeira vez ao palácio e recebe a
encomendadaópera, podemosvernaextremaesquerdaSalirei,emsuaelegância
sóbria;nopolooposto,Mozartemsuaespontaneidadedebochada.Acreditamosque
esta cen a ilustra, como nenhuma outra, a diferença entre as personalidades dos
personagens.Entreosextremosestãotodososoutrosmúsicoseoimper ador,como
serep resent assemasnuancesentreasduascaracterizaçõesextremas.
Emumextremo,Salierivestidosobriamente,dooutrolado,Mozartemsuacaracterizaçãocolorida.
Nacenadosbastidoresde
OraptodoSerralho
,vêseMozartdeumlado
eSalierideoutro,nomeioestáKatherina,aalunaporquemSali eriéapaixonadoe
quesetorno uamantedeMozart.Inequívocareferênciaàdisputaamorosavelada.
KatherinaentreMozarteSalieri.Ambosseinteressamporela,Mozartatomacomoamante,
Salierinãorealizasuapaixão.
123
Recortedadoàimagem,ouseja,imagemdelimitadaquepercebemosnatela.ComosugereAumond(2002),
éprudentefazeradistinçãoentrequadroecampo,aindaquesejamuitocomumousodeumtermoporoutro.
Dessaforma,emnossotrabalho,distinguiremosquadrodecampo,sendoesteaimagem/espaçoimaginário,
foradoquadro,queaparentementeestamos‘vendo’equedáaocinema afalsaimpressãoderealidade.
141
Emrelaçã oaoscortes,percebemosem
Amadeus
,talcomoem
Equus
,o
usodocortesecointercalandoai magemdeSalierieMozartnosremeteàidéiade
confronto,oposição.Esterecurso foiamplamenteusadonascenasde apresentação
dasóperasenacenadaprimeiravisitadeMozartaopalácio.
Ópera
Oraptodoserralho
.
Ópera
AsbodasdeFígaro
.
Ópera:
Auxor
.
Ópera:
DonGiovanni
142
Ópera:
Aflautamágica
.
Entendemos que, este recurso não só manifesta o embate dos
personagens, como corrobora na compr eensão da divergência entre os
personagensnamaneir aemqueelessecomportamecomosentemamúsica.Na
apresentaçãode
Oraptodoserralho
,enquantoMozartregedemaneiraqueparece
dançar, Salieri se irrita com as modulaçõ es da música de Mozart, consideradas
excessivas àquele tempo. Naapresentaçãoda ópera de Salieri (
Auxor
), podemos
perceber a intensidade dos gestos rígidos de Salieri, completamente diversos da
manei raalegreeentusiasmadadeMozart.
Maneiradiferenciadadetrataramúsica.AalegriadeMozarteaseriedadedeSalieri.
Partindodessecomentáriosobreaoposição,gestosemúsica,podemos
iniciar nossas observações acerca da exploração da música em
Amadeus
,
especialmente no  que diz respeito ao embate apolíneodionisíaco. Ao discorrer
sobre a obraepropostas de Eisenstein, Leone(2005) explicaquea música deve
estarintimamente ligadaàimagemnacon struçãodanarrativadofilme.Suafunção
seriaade“opera[r]comentários,enfatiza[r] momentos,valoriza[r]imagens,gestose
movimentaçõesinternas”(Le one,2005:66),funcionandocomoumarepr esentação
icônicoindi cialdeidéiasveiculadasnofilme.
Tantoapeçaquantoofilmeestãoligadosàmúsicaede lafazemuso.E
nãopoderiaser diferente,umavez queéamúsicao núcl eodahistória.Épara e
143
pelamúsicaqueSalierieMozartvivem.Éelaqueosdistingueequefazcomque
sejam antagonistas. Os dois meios semióticos (literatura e cinema) fazem uso da
músicacomoumelementoessencialdesuasestruturas,especialmenteamúsicade
Mozart.Noentanto,esserecursofoiexplor adodemaneiramuitodiferenciada.
Shaffer admitiu que, ao finalizar a peça, percebeu que tinha produzido
umaópera.Nãonosentidodequeamúsicaseriaintroduzidacomoemumaópera,
masnosentidodequeaprópriaestruturada peçaseguiaaestruturadeumaópera.
Logonoinício,os
whisperers
124
murmurametammgritamonomedeSalieri .Esse
recurso equivaleria, em uma óp era, ao coro de abertura. Existem ainda os dois
venticelli
125
.Elesnarramparaaplatéiaumpoucodoenredoquevaisedesenvolver
e comentam os boatos acerca de Mozart e Salieri. Eles formam um dueto. Os
monól ogosdeSalieriequivaleriamàsáriasdeumaópera,ouseja,aomomentoem
queoartistacantaum
solo
.
Mas,comparandoosdoismeios,apeçafazmenosusodamúsicaeisso
seporváriosmotivos.UmdosmaisrelevantesécomentadopelopróprioShaffer
(apud Kurowska, 1998) ao afirmar que usar muita música em uma peça teatral
poderi ainterferir nodrama.Estainterferência,sedemasiada,transformariaodrama
emumconcerto,o quenãoeraintençãodoautor.
JánofilmeousodamúsicadeMozartéextensivoeessencial.Amúsica
fazpartedouniversodiegéticoeextradiegético
126
.Estánasóperaseapresentações
mostradas,naconexãodascenasedosenredos,nacabeçadeMozartedeSalieri.
A música, especialmente no filme, está longe de ser um mero ornamento,  ou um
simplesrecursoqueserveparadestacaraatmosfera,acentuaratristeza,aalegria
ouqualquerou traemoçã o”
127
(Kurowska,1998).Asóperaseasmúsicasdosdois
compositores servem como o elemento através do qual eles demon stram sua
rivalidade. Servem, ainda,para mostrar e assegurar a superioridade dahabilidade
deMozart.
Em relação à caracterização dos personagens Salieri e Mozart, o
confrontoapolíneodi onisíacosemanifestanamúsica,conformejámencionamosao
124
“Murmuradores,cochichadores,segredistas”.
125
“Ventosleves”.
126
Diegeseéumtermoque“designaouniversodaficção,o‘mundo’mostradoesugeridopelofilme”.Osom
extradiegético, ou som
off
, “emana de uma fonte invisível situada num outro espaçotempo que não o
representadonatela”(VANOYE,1994,4849).
127
“[…]underlinetheatmosphere,accentuategrief,joy,oranyotheremotion”.
144
comentarmos a peça, tanto por meio da discrepância entre as capacidades
musicais,comodaaceitaçãoecompreensãodesuasmúsicas.
No que diz respeito à discrepância entre as capacidades dos
compositores, perceb emos que no processo de tradução, para demonstrar e até
mesmo enfatizar essadiscrepânci a, usase tanto a inclusãodenovas cenas, bem
como a própria inclusão da  música como recurso cinematográfico. Para ilustrar o
exposto,descreveremosumacenaincluídanofilme.ÉacenaemqueSalieritenta
copiarodi tadoqueMozart fazdoréquiem. Opúblico nãopodeentenderoditad o
apressadodeMozart,tampoucoSalieri(peronagem),quesemostraconfusoepede
que ele dite  de forma mais lenta. À medida que Mozart fala mais len tamente,
passamosacompreenderamúsicaqueeletemnacabeça,umavezqueelapassa
aserescutadanofilme.SóentãoSaliericonsegueacompanhar oditado.Écomose
pudéssemos,talcomoSalieri,teracessoàgrandezadoprocessocriativodeMozart,
compree ndendo a magnitude de seu tal ento. Há, então, uma perfeita integração
entre os códigos sonoro e visual, pois aqui a inclusão do som(réquiem)funciona
comoumarepresentaçãodofuncionamento doprocessocriativodocompositor.É
interessantenotarqueestacenatammapontaparaoutrosinterpretantes.Mozart
está ali, abatido e doente, mas cumprindo sua sentença inescapável de gênio da
música, produzindo apaixonadamente, em seu leito de morte, o réquiem que
desconhece ter sido encomendado para seu enterro. É uma indicação precisa do
tipodeen volvimentodopersonagemcomamúsica.Amúsicaésuagrandepaixão
e, para viver esta paixão verdadeiramente,Mozartnão se entrega às convenções
estéticas vigentes. Tal como Alan Strang, Mozart vive sua paixão até as últimas
conseqüências.Sua independência épagacomsuaprópria vida.A música é seu
grandeprazer,mastambém aca usadesuamorte.
Comrelaçãoàcompreensãodotipodemúsicacomposta,énotadamente
Salieriquegozademaiorprestígio.Apósaapresentaçãodeumadesuasóp eras,
SalieriésaudadopeloimperadorJosephIIdaÁustriaquetomaapalavraeafirma
serareferidaóperaamaisbemescritaemtodosostempos.Mozartassisteatudo
deumadasfrisasdoteatroe,talcomonapeça,eleseressentedaatençãodadaa
Salieri.Porisso,nãoperdeaoportunidadeparaalfinetaraobradocoleg a.
145
MOZART: Ouvimos essas melodias e a quem
podemoslembrarsenão...Salieri!
Contudo, não é apenas neste momento que Mozart debocha das
capacidadesdeSalieri.PodemosperceberistonacenaemqueMozartsaiparase
divertircomseupai,Leopold,esuae sposa,Constanze.Emumjogodep rendas,ele
édesafiadoatocarvári oscompositores.AoimitarSalieri,ri dicularizaseustalentos
musicais,imitandoodemodoademonstraroesforçoqueSalierifazparaproduzir
música.
Umoutroaspectoque,emnossoentender,funcionacomocomprovador
daoposiçãoentreApoloeDionisonoâmbitoda música,éamaneira diferenciada
com que os compositores lidam com ela. Para Salieri, música é trabalho. Sem
possuir talento extraordinário, ele li da com ela como um trabalhador que tenta,
lentamente, e com bastante esforço, lapidála. Para demonstrar este esforço na
produçãodesuascomposições,podemosexporalgumascenas.Aprimeiradelasé
acenaemqueSaliericompõeamarchadeboasvindasparaMozart.Elededilhao
piano, testando as notas e tentando achar inspiração. Há uma tomada l ateral em
plano detalhe
128
da mão de Salieri compondo a música. Acreditamos que esta
ênfasedacâmeranamãodeSalierireforçaaidéiadeatividade,esforço,trabalhoe
diligência no cumprimento de seu dever; afinal a música o era somente prazer
paraSalieri,umavezqueeleeraumempregadodacorte.Estainterpretaçãodouso
damãoéconfirmadapelasimbologiadamesma.SegundooDicionáriodesímbolos
(ChevaliereGheerbrant,2001),entreasmaisvariadasconcepções,amãoexprime
idéiasdeatividadeetrabalho.SegundoNissa,ousodasmãostamm“épróprio
de uma natureza r acional” (apud Chevaliere Gheerbrant, 2001: 592), isto porque
elascolaboramnacomunicação,poisépormeiodelasqueohomemrepresentaas
palavrasatravésdasletras.Eleafirmaque“ ébemumadasmarcasdapresençada
razãoaexpressãoatravésdasletrasedeumacertamaneiradeconversarcomas
128
Noplanodetalhe, acâmera recorta uma pequena part e do todo,no caso, uma partedo corpo humano”
(Leone,2005:43).
146
mãos, dando aos caracteres escri tos per sistência aos sons e aos gestos” (apud
Chevalier e Gheerbrant, 2001: 592). Quem melhor  para se relacionar com a
natur ezaracionalqueSalieri?
Convém lembrar que a simbologia da mão pode  levar a interpretações
diferenciadas e até mesmo opostas. Zilocchi (2001), ao discutir o processo de
semiose, utilizando a imagem do afresco
A criação do homem
, de Michelangelo,
atentaparaofatodequenoRenascimento,areferidaimagemrepresentouodom
deDeus,ouseja,“acriaçãocomodomdivi no–eacriaçãosefaz[endo]pelasmãos”
(2001:190).ElacitaoartistaeteóricoGiorgioVasariparajustificarsuaafi rmação,
pois,segundooautor,“oartista,aquelequetemodomdoengenho,dadoporDeus,
expressa idéias pelas mãos” (apud Zilocchi, 2001: 190). Contudo, esta é apenas
umadasmuitassimbologiasrelacionadascomasmãose,aindaquesejaumadas
maisconhecidas,nãopodemosdefen dêlanainterpretaçãode
Amadeus
.Nofilme,
o personagem tocado pelo do m do engenho é Mozart; è ele o personagem
verdadeiramentetalentoso.Noentanto,nãosãosuasmãosquesãoinsistentemente
enquadradas em plano aproximado
129
(próximas ou tocando seu rosto) ou plano
detalhe, mas as mãos de Salieri. Daí defendermos a interpretação anteriormente
exposta, as mãos, neste caso, indicam não o dom divino, mas a atividade, o
trabalho.
AsmãosdeSalieritrabalham.
AsmãosdeMozartsedivertem.
129
Planoaproximadooupróximoéaqueleque“recortaopersonagemdacinturaparacimaedápoucaênfaseao
espaçoeaocenário”(Leone,2005:43).
147
Mozart, por outro lado, tem com a música uma relação de prazer. A
música está em sua mente e de  l á jorra em profusão. Ele costuma compor com
grandefacilidade eemgrandequantidade.Emváriosmomentosdofilmeosoutros
personagenssesurpreendemco marapidezcomqueelecompõe.Umacenaque
ilustraistoéaquelaemqueMozartcompõeasvariaçõesdamarchadeboasvindas,
ele improvisa ao piano criando uma melodia ao mesmo tempo elaborada e
agradável. Para Mozart, a música, como fonte de prazer, está tamm ligada a
outrasatividadesdedeleite,comocantar,dançarebe ber.NacenaemqueMozart
saiparasedivertircom LeopoldeConstanze,elecanta,dança,brincaebebe,além
de tamm tocar. Nesta cena, Mozart se diverte bri ncando de correr ao redor de
cadeirasenquantoamúsicatocavaaofundo.Aqueleq uenãoconseguissesesentar
emumacadeirapagariaumaprenda.Nacena,acâmerafazumgiropanorâmi cona
horizon tal,emplanoaproximado,acompanhandoomovimentocirculardaspe ssoas
quedançam,emumarelaçãoicônicaeindi cialcomomovimentodospersonagens.
Esta movimentaçãotransporta paraoespectadora sensaçãodos participantesdo
jogo, permiti ndo que ele compartilhe da alegria, entusiasmo, vertigem e êxtase.
Comoemumcultodioniaco,hápaixão,arrebatamentoefaltademedidas.Todos
ospar ticipantesdafestausammáscaras.
Mozart,ConstanzeeLeopoldMozartusammáscaras.
Câmeragiranopróprioeixo.Tentativadedestacarsensaçãodevertigem.
148
ArelaçãodeMozart com a música também se diferenciadamúsicade
Salieripelarelaçãocomseuintuito.ParaSalierieparaosoutrosmúsi cosdacorte,a
óperanãodeviaseprestaradivertirsomente,mastammcelebraro quehaviade
eterno no homem. Por isso, era bastante comum o uso de lendas e mitos como
objeto dos libretos elaborad os à época. A óper a deveri a, portanto, enobrecer os
homens.Obviamente,havianassalasdeteatro menosnobresumgrandenúmero
deespetáculos,etambémdeblico, queassistiaaóperascômicas,
vaudeville
e
atéóperasbufa.Masestetipodeóperanãoer aaquecostumavaserencomendada
pelacorte.Mozartcompôsóperasqueestavammaisr elacionadasàvidadohomem
comum, e eram situações comuns que afloravam sua i nspiração. A história de
O
raptodoserralho
sepassaemumharém.
AsbodasdeFígaro
foiinspiradaemuma
peçafrancesa,definida,nofilme,comoumafarsavulgar.
DonGiovanni
foiinspirada
emhistórias medievais e nã o em mitos gregos.
A flauta mágica
foi encomendada
paraserexibidaemumteatropopular.
Em duas cenas do filme, podemos ver traduzia a importância da vida 
“real”,oumelhor,davi dadohomemcomum,comoobjetodeinspiraçãodeMozart.
Em uma cena de
Don Giovanni
, o Comendador, já morto, aparece para acusar o
personagemtítulo.SalierireconhecealiahistóriadaprópriavidadeMozart.Leopold
Mozartmorreinsatisfeitocomavidaqueofilholevavaeassim,comoSalierisuger e
no filme, Leopold é como o Comendador, que volta dos mortos para fazer uma
acusação. A hipótese de Salieri  é reforçada pela car acterização do fantasma do
Comen dador. O fantasma usa uma máscara muito similar à máscara usada por
Leopold MozartnodiaemquesaiparafestejarcomseufilhoeConstanze. Outro
momento, que ilustra os assuntos e fatos que i nspiram Mozart na composição de
suas obras, éa cena em que ele procuraa mãede Constanze, depoisdeela ter
viajadoparaum
spa
emBaden.Daimagemdorostoedosomdosgritosagudosda
senhora Weber passase para a encenação da famosa ária da ópera
A flauta
mágica
:
Arainhadanoite
.Apartirdorecursoutilizado,ficamoscomasensaçãode
que,apartirdaquelemomentocorriqueirodavidafamiliardocompositor,elepode
criarumadesuasmaisbelasobras.Nesteúltimoexemplo,éimportantedestacaro
bomusodorecursosonoronofilme.SeatransiçãodasimagensdasenhoraWeber
paraopalcodoteatroéfeitaporumcorte,atransiçãodosomdosgritoseparaodo 
cantoéfeitadeformaque,aosesobreporumpelooutro,nãoháidéiadequebra,de
ruptura, mas de fluidez. Acreditamos que esta cena funciona de maneira a
149
simbolizar a espontaneidade com que Mozart compunh a. Esta estratégia dos
realizadores de unir os enredos que cativavam Mozar t e aspectos de sua vida
pessoal no filme se r evela bastante en genhosa. Em primeiro lugar este artifício
consegue aliarnão somente suamúsicaeaspecto s de suavida,mas tambémas
característicasdospersonagensdasobrasedo spersonagensdofilme.Mas,quala
relaçãoentreestefatoeascaracterísticasdionisíacasdeMozart?Acimadetudo,o
caráte rdamúsicaproduzidapelocompositorqueeraelaborada,mas inspi radano
cotidiano e, por isso, mais apreciada pelas camadas populares, tal como o ritual
dionisíaco.
LeopoldMozartnoaltodaescadaenafoto.Grandesemelhança
comofantasmadoComendadorem
DonGiovanni
.
MozartescutaosgritosdaSenhoraWeber.Avozestridentedesuasograéjustaposta,edepois
substituída,peladasopranoquecantaaária
Arainhadanoite
.
150
AlgunsoutrosaspectosenfatizamoconfrontoentreSalierieMozart,por
exemplo,orespeitoaospadrõessoci aisvigenteseasexualidade.
Reiterad amente confirmamos a dificuldade que Mozart tinha de se
adequaraoqueseesper avadele.Elenãoseguiuocaminhodesejadoporseupai,
elenãogostavadamúsicaproduzidaemseutempoeserecusavaacomporpeças
ao gosto da nobreza, mas, acima de tudo, não respeitava as regras sociais. Em
vários momentos do filme, Mozart procedeu inconvenientemente, mas em três
episódios,elerealmenteextrapolatodasasregrasdebomsenso.Noprimeirodeles,
após a apresentação da ópera
O rapto do serralho
, o imperador acredita que a
ópera tem “muitas notas” e sugere que Mozart corte algumas. Irritado com o
comentáriodeJosephII,equerendoexporos poucosconhecimentos musicaisdo
soberano,Mozartpedequeoimperadorindiquequaisasnotasqueeledevecortar.
Obviamente,oimperadornãopoderiafazêlo.Umoutromomentoéaqueleemque
Mozart tenta convencer o imperador de aceitar a apresentação de
As bodas de
Fígaro
. Dian te dos argumentos e das insistentes negativas da corte,Mozart, para
espantodetodos,usaumasériedepalavrasdebaixocalãonafrentedo imperador.
TambémpodemosilustraroqueafirmamospelacenaemqueMozartérepreendido
peloarcebispodeSalzburg.Apóstertidoseupedidodeafastamentorecusadopelo
arcebispoe sidoexpulsodasala,Mozart,jádoladodefora,recebeoaplauso do
público. Aborrecido com o arcebispo e na tentativa de afrontálo, abre a porta da
salaemqueoarcebisposeencontranointuitodeforçáloaperceberoquantoel eé
admiradoportodos.Aofim,aindanãosatisfeito,fazumareverênciaaopúblico,de
costasparaoarcebispo,emumgestodetotaldesrespeitoparacomeste.Emtodos
estes exemplos, percebemos a necessidade e prazer de Mozart em desafiar o
estabelecido, em uma atitude típica dos adoradores dionisíacos. Suas atitudes
representam, indicialmente, sua relação comascaracterísticas atribuídas ao deus
grego.
151
MozartserelacionamalcomoarcebispodeSalzburgesecomportadeformaatrevida.
Finalmente, o último elemento que, em nosso entender, colabora para
caracterizarasdiferen çasentreApoloeDionisonofilme,dizrespeitoaomodocomo
ospersonagensvivenciam suasexualida de.Apeça trazestadiferença muito bem
delimitada. Salieri vive um casamento sem paixão e transfere suas frustrações e
desejosparaacomida.T endoprometidoumavida exemplar,incluindoacastidade,
paraDeus,vêsecompelidoasublimarseusdesejoscarnaisemnomedamúsica.
Mozarté,aocontrário,insaciável.Apesardecasado,tomouváriasdesuasalunas
como amantes. No processo tradutório, houve uma inegável suavização na
abordagemdasexualidadedeMozarteistoafeta,semdúvida,suacaracteri zação
dionisíaca,qu edeveriaapresentarexagerotammnesteaspecto.Nofilme,Mozart
nãopossuiamantes.Alémdaesposa(Constanze),eletemapenasumenvolvimento
com uma mulher. Este envolvimento se dá com a aluna de Sali eri, Katherina
Cavalieri,eistoocorreantesdeseucasamento.Salieritem,nofilme,suacastidade
valorizad a, uma vez que sequer é casado. Acreditamos que esta ênfase em sua
privaçãomuitodestacaseuempenhoededicaçãonocumprimentodapromessae,
emconseqüênci a,fortalecesuacaracterizaçãoapolínea.
Uma cena que deixa clara a oposição dos personagens em relação a
liberdade/repressã o sexualéacenaemqu e Salieriencontra Mozartpela primeira
vez.Nafestadoarcebispo,Sali erientraemumdossalõesparasefartardedoces.
Quando está tentando satisfazer um dos poucos desejos permitidos por sua
promessa,vêseinterrompidopelosjoguinhosamorososdeMozarteConstanzeque
rolamnochão,dizemobscenidadesetrocamcarinhosexplícitos.Aentradaabrupta
de Mozartnasalarepresentasimbolicamente aentradadele na vidade Salieri.A
partir daquele momento, graças à r epentina interrupção de Mozart, Salieri o
poderámaisseservirdasgulosei masqueestãoàmesa.Suaspoucaschancesde
satisfação e prazer, daquele momento em diante, passam a desaparecer, pois
152
Mozartestáaliparalhelembrar,mesmoqueinvoluntariamente,queeleopassa
deummúsicomedíocre.Elelhetomaoprazerdeviver.
Com base nos elementos apresentados,quetraduziram paraas telas a
obradeShaffer,acreditamosque,deformageral,ascaracterísticastan todeApolo,
quando de Dioniso, foram amplificadas em ambos os textos cinematográficos.
Entretanto,parecenosqueaabordagemdascaracterísticasapol íneasedionisíacas
se desenvolveu de maneira distinta , tendo cada um dos filmes destacado,
diversamente, os recursos cinematográficos utilizados, o que colaborou na
construçãodeobrastãodiversas.
Acreditamos haver dois grupos de diferenças entr e os filmes
Equus
e
Amadeus
. Em um plano mais geral, podemos destacar a distinção de concepção
dos dois filmes, pois, ainda que ambos sejam filmes produzidos por estúdi os de
Hollywood, é inegável  que
Equus
é um filme maisintimista, enquanto
Amadeus
é
umasuperproduçãotrabalhada,emsuaorigem,paraati ngirumagran debilheteria.
Além deste aspecto, tamm distinções relativas a elementos tipicamente
cinematográficos.
Asustentarasdistinçõesdoprimeirogrupo,háaformacomqueShaffer
trabalhou o roteiro. O roteiro de
Equus
foi um roteiro anterior ao de
Amadeus
.
Shaffer,essencialmenteumdramaturgo,adespeitodesuasincursõespelomundo
radiofônico, televisivo e até cinematográfico, não conseguiu adaptar a obra de
manei raaenfatizarasdi ferençasentreosmeios(literaturaecinema).Oroteirode
Equus
é muito similar à peça, exi stem diálogos inteiros que são transcritos
ipsis
litteris
. A narrativa é lenta, a temática muito densa e algumas cenas são
excessivamente“teatr ais”,ouseja,algumas
performances
dosatorespodemtersido
um pouco exager adas. Isto sem falar na  polêmica negativa gerada nos Estados
Unidospelacenadeataqueaoscaval os.Oroteirode
Amadeus
,diferentemente,foi
um roteiro pensado e trabalhado para atingir grandes públicos. Ele foi escrito a
quatr omãoscomodiretorMilosForman,aindaque Sha ffertenhaficadocomtodoo
destaquederoteiristapremiado. Asmodificaçõesno  roteirodeixaramofilme mais
brando, leve, por vezes até mesmo cômico. Enquanto
Equus
pouco mudou em
relaçãoaosdiálogos,personagensede senvolvimentodahistóri
Amadeus
introd uz
novos personagens (Padre, Le opold Mozart, Arcebispo de Salzbur g, Senhora
Weber), retira ou substitui outr os, acrescenta pequenas tramas e novos diálogos.
Além disto, temática do filme é aparentemente” bem mais “ palatável” que a de
153
Equus
.Superficialmente,atemáticade
Amadeus
ésomenteainveja,enquantoem
Equus
háloucura,adoração,sexualidadeetc.Éfacilmenteperceptívelestadistinção
do roteiro no que diz respeito, por exemplo, ao tratamento dos personagens. Em
Equus
(filme) , Shaffer não abranda as características negativas dos personagens,
tanto Dysart quanto Alan Strang são  conflituosos e intensos. Em
Amadeus
, ainda
que sustentemos que o filme amplie as possibilidades na caracterização dos
aspectos apolíneos e dionisíacos dos personagens, há uma suavização de suas
características. Mozart e Salieri não são tão vis, a questão sexual é bem menos
enfocadaetc.
Quantoaosrecursosdocinema,asdiferençasmaisacentuadasestãona
caracterizaçãofísicadospersonagens,nousodamúsicaedailuminação.
Com relação à caracterização física e ao uso da música, é inequ ívoco
que, em
Amadeus
, por se tratar de um filme de época que aborda a vida de um
músicoerudito,esteselementospuderamserbastanteexplorados.Ofigurinoeas
interpretaçõesforambastantedestacadoseseconstituíramemaspectosessenciais
na definição dos personagens. O uso da música foi igualmente funda mental na
construção e entendimento da rivalidade entre os co protagonistas. Por sua vez,
Equus
,principalmenteemfacedanaturezadoenredo,opodeexplorardeforma
tão abrangente os dois recursos. No entanto, vale ressaltar uma das funções da
música no  filme, qual seja,adefuncionar como a ligação entre os episódios que
revelamasori gensdoproblemadeAlan.
Como mencionamos, o uso da iluminação em
Equus
foi bem mais
expressivoqueem
Amadeus
.Conformedemonstramos,aoposiçãoclaro/escurofoi
fundamentalnaênfasedascaracterísticasdosperson agens.
Amadeus
nãoutilizao
referido recurso da mesma maneira, nem com a mesma intensidade, apesar de
havermos detectado uma transição entre primavera (início do filme) até o inverno
(finaldofilme),comas respectivasmudançasde luz entreasestaçõespossuindo
umsignificadonavidadospersonagens.
Porfim,valeapontaralgumassemelhançasentreosfilmesnosusodos
recursoscinematográfi cos.Ambosuti lizaramamontagemeseuscortes,bemcomo
amovimentaçãodecâmerademaneirabastantesignificativa,especialmentenoque
tangeaoobjetodean álisedestapesqui sa,ouseja,naconstruçãodacaracterização
apolíneaedionisíacadospersonagens.
154
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nestapesqui saanalisamosatraduçãocinematográficadeduasobrasdo
escritor e dramaturgo inglês Peter Shaffer: as pe ças
Equus
e
Amadeus
. Nossa
análiseseconcentr ou,contudo,emumaspectofundamentaldaobradoconhecido
autor ,ouseja,aabordagemdeseuspersonagenscentraisapartirdecaracterísticas
apolíneas e dionisíacas. Shaffer,inspirado pela obra e pensamento do Nietzsche,
acreditaquesomosinfluenciadosporduasforçasquesedebatemcontinuamente.
Asforçasapolíneasestãovinculadasàscaracterísticasderacionalidadeassociadas
ao deus Apolo, o deus da luz e dos segredos da vida e da morte. As forças
dionisíacas, por sua vez, estão normalmente relacionadas à passionalidade, ao
excesso e ao êxtase próprios de  Dioniso, o deus da vegetação e do vinho. No
trabalho de Shaffer, a temática do confronto entre Apolo e Dioniso é sempre
desenvolvidapor meio de uma dupla de personagens, encerrandocada um deles
umafacedoconflito.
Nossa intenção foi verificar como os roteiristas e diretores trataram na
adaptaçãofílmicadaspeças
Equus
e
Amadeus
ascaracterísticasdospersonagens
apolíneos(MartinDysarteSalieri)edioni síacos(AlanStangeMozart).Analisamos
quais foram as estratégias utilizadas para demarcar a oposi ção entre os
personagens e como elas foram transformadas, seja porque foram ampliadas,
suprimidas e/ou atualizadas. Ao final, pudemos fazer as observações que se
seguem.
Noquetangeàtraduçãodapeça
Equus
,pudemosper ceberqueodiretor
usou uma série de recursos do cinema para en fatizar as características dos
personagens. A iluminação, a movimentação de câmera e a mon tagem foram os
elementos mais utilizados no enfoque das características apolíneas (Dysart) e
dionisíacas(Alan).
Na iluminação, o contraste claro (apolíneo) e escuro (dionisíaco) foi
amplamenteusadonãosomenteparaexporasdiferençasentreasper sonalidades
de DysarteAlan,mas também para marcar o conflitodeDysart. Como exemplos
desse contraste, a cena em que se realiza o ritual de Alan (que ocorre na
penumbra),acenaemqueAlaneJillestã onocinema,ouaindaacenaemqueos
jovensestãonoestábulo,apósr etornaremdocinema.Emtodosestesmomentos,a
155
iluminação débilcolaboranacon struçãodeumambientequesereportaaatividades
quesefazemàsescondidas,aati vidadesproibidas,oquenospe rmitevinculálas
aoladodionisíaco.
Como mencionamos,aoposi çãoluzxsombratambémestápresentena
explicitaçãodoconflitode Dysart.Opsiqui atra,aosedepararcomocasodeAlane
sua forma particular e visceral de adoração, passa a se questionar sobre sua
profissão,oumelhor,passaasequestionarseseutrabalhoérealmenteútilparaas
pessoas. Durante seus monólogos, com a câmera muito próxima a seu rosto, a
iluminação  faz com que parte de  seu rosto fique na penumbra, enquanto a outr a
metade fica iluminada, demonstrando o embate que as forças apolíneas e
dionisíacastravamemseuinterior.
Com relação à movimentação da câmera, podemoscitar o afastamento
dacâmeranosmonólogosdeDysart,queositua memsuasalae,emconseqüência
disto,emsuaposiçãodemédico,permitindonosvislumbrarseu verdadeiropapelna
história,  ou seja, o de representante da racionalidade apolínea. Há também o
momentoemqueAlanpassaaseronarrador,tendoacâmerafuncionandocomo
seus “olhos”. Este recurso assinala a impor tância da primeira vez em que ele
cavalga, marcando as sensações de aleg ria e êxtase experimentadas. O recurso
tamm oferecer ao espectador a chance de comungar da  experiência do
personagem.
Damontagem,érelevantedestacar,dentreoutrascenas,aquelasemque
se intercalam o segundo monólogo de Dysart, no qual ele narra um sonho
recorrente,e as cenas de suarotina,em uma clara vinculação entre o sonhoea
vida do person agem. Este elemento cinematográfico nos permite identificar
imediatamenteaorigemdaangústiadeDysart.
Em
Amadeus
, de todos os artifícios do cinema par a enfatizar as
característicasapolíneasedionisíacas,acreditamosqueamaisbemtrabalhadafoia
dofi gurino eadotrabalhodosatores.Ofigurinodospersonagensénotadamente
diferente,funcionandocomoumaextensãodesuascaracterísticaspsicológicas.As
atitudes e modos dos personagens também demarcam claramente as diferenças
entre os dois: Mozart é espontâneo, alegre, passional, inconveniente e arrogante;
Salieriédiscret o,educado,convencional,reprimidoeinvejoso.
Um outro elemento que se sobressaiu na adaptaçãode
Amadeus
foi a
música.Elafoi relevantenademarcaçãodascaracterísticasapolíneasedionisíacas
156
na medida em que sustentava a diferença das personalidades dos personagens,
constituindose como aspecto fundamental na compreensão da rivalidade entre
MozarteSalieri.
Existem, ainda, outros recursos do meio cinematográfico que foram
usados, colaborando para demonstrar a luta entre os personagens. Podemos
elencarcomoexemplosousodoscortes,quecontrapunhamosdoispersonagens
(principalmentenascenasdasapresentaçõesdasóperas), aocupaçãodosespaços
físicos(MozartemoposiçãoaSalierinosenquadramentos)eousoda mera,que
oradestacaossentimentosdeMozart(cenadafestademáscaras),oradestacaos
deSalieri(cenasdesuaslembranças).Issosemfalar notratamentoda do àmusica,
quemarcaenormementeasdi feren çasdashabilidadesmusicaisdospersonagens.
Dessa maneira, entendemos que nas traduções das peças, os
realizadoresfi zeramusode várioselementos docinema queajudarama realçara
natur eza apolínea e dioni síaca dos personag ens, reforçando, e até mesmo
amplian do,ascaracterísticasdosmesmosemrelaçãoaobraliterária.
Impo rta ressaltar, entretanto, que o resultado das traduções das peças
(filmes) foi bastante diferenciado, apesar  de terem sido ambas roteirizadas por
Shaffer.Oroteirode
Equus
foipoucomodificadoemrelaçãoaotextodapeça,oque
resultouemumfilmedenso,difícil,lento.Demododiverso,oroteirode
Amadeus
,
emqueShaffercontoucomacolaboraçãodeMilosForman,envolveuumasériede
mudançasquelevaramemconsideraçãoopóloreceptordaobra,ouseja,ogrande
público de cinema. Assim, personagens for am introd uzidos, tramas e cenas
inseridaseascaracterizaçõesdospersonagensprincipaissuavizadas.
Além de apresentar nossa análise da tradução dessas duas obras de
PeterShaffer,focandoemumadesua stemáticasmaispresentes,esperamosqu e
estapesquisatenhacontribuídoparaasreflexõessobreaadaptaçãofílmicaemuma
perspectiva mais ampla, como a da adaptação como uma tradução entre meios
semióticos diferentes.Emfacedisso,aadaptaçãon ãodevesercompree ndidacomo
o resultado de um procedimento que visa a mera reprodução de um trabalho
anterior, pautandose em um concei to de fidelida de à obra original, mas um
processoquetr ansfor maeredimensionaumtextoprévio,desenvolvendoumaobra
autônoma.
157
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196,2001.
161
REFERÊNCIASDO
CORPUS
FILMES
AmadeusdePeter Shaffer
,1984.
OrionPictures,158min.
Dirão:MilosForman.
Roteiro:PeterShaffereMilosForman.
Produção:SaulZaentz.
Música:ConduçãodeNevilleMarriner.OrquestrabritânicaeAcademiadeStMartin
intheField.
Elenco:F.MurrayAbraham(AntonioSalieri)
TomHulce(WolfgangAmadeusMozart)
ElizabethBerridge(ConstanzeMozart)
SimonCallow(EmanuelSchikaneder)
RoyDotrice(LeopoldMozart)
ChristineEbersole(KaterinaCavalieri)
JeffreyJones(ImperadorJosephII)
CharlesKay(CondedeOrsiniRosenberg)
BarbaraBryne(FrauWeb er)
RoderickCook(CondeVonStruck)
Equus
,1977.
MGM,137min.
Dirão:SidneyLumet.
Roteiro:PeterShaffer.
Produção:DenisHolt,Elli ottKastnereLesterPersky.
Música:Richa rdRodneyBennett
Elenco:RichardBurton(MartinDysart)
Peter Firth(AlanStrang)
ColinBlakely(FrankStrang)
JoanPlowright(DoraStrang)
EileenAtkins(HestherSalomon)
JennyAgutter (JillMason)
HarryAndrews(Mr.Dalton)
PEÇAS
SHAFFER,P.
Amadeus.
London:Longman,1984.
______.Equus.In:
Threeplays.
London:Penguin,1976.
162
ANEXOS
163
ANEXO I
Modelodefichamentodeobraliterária
EQUUS
(PeterShaffer,1973)
PRIMEIROATO
PRÓLOGO:introduçãodoproblema
1. Primeiro monólogo de Martin Dysart em que ele apresenta de maneira aind a
poucoclaraoimpactodocasoemAlanStrangemsuavida.
2.ApresentaçãodamagistradaHestherSalomon.EladiscutecomDysartocasode
Alan,explicandoanaturezadocrimequeelecometeu.Hestherpedesuaajuda.
3.Depoisdarecusainicial,DysartaceitatratardeAlan.
ALANSEAPRESENTA
4.ChegadadeAlannohospital.
5.PrimeirocontatoentreAlaneDysart.
6.DysarttentaconversarcomAlanenquantoestecantajingles.Dysartpercebea
pouca vontade de Alan em colaborar e resol ve não insistir. Dysart o dispensa,
sugerindoqueeleváparaoquartodele.
INQUIETAÇÕESDEDYSART
7.SegundomonólogodeDysart.ElecontaumsonhoqueeletemsobreaGrécia
homérica,emqueeleéumsace rdotequesacrificacrianças.
8.Dysartconversa comsua amigaHesthersobre osonhoeoolhardeAlan.Ele
acreditaqueAlantemumolharacusadorequeodeixaperturbado.
9. Dysart ta mbém comenta com Hesther os pesadelos de Alan e a proibição
impostapelopaidele(FrankStrang).Frank,umhomemdeconvicçõessocialistas,
nãoaceitaqueAlanassistatelevisão.
10.Dysartmenciona, ainda,ofervorreligiosodeDoraStrang (mãedeAl an),eo
fatodamãetertidograndeinfluê ncianaeducaçãodofilho.
11.Dysar tdescreveparaHestheratensãodafamíliaStrang(paixmãe).
DYSARTINVESTIGA
12.DysartfazumavisitaafamíliaStrang.Eletenta investigararaizdoproblemade
Alan.
13. Dora fala da predileção de Alan por cavalos e da surpresa que seu crime
causou.
14.DorafaladapassagemdolivrodeJóqueAlanadorava.Elatambémcomenta
queconsentiaqueofilhoassistisseTV,mesmosemaanuênciadeseumarido.
15.FrankStrangchega.Pelaconversaquetemco momédico,ficaclaroqueelee
DoradiscordamemmuitascoisasarespeitodaeducaçãodeAlan,comoreligiãoe
estudos,entreoutros.
16.F ranke DoradiscutemnafrentedeDysart.
ALANEDYSART:primeirassessões
17.Dysar ttentaconver sarcomAlan,masestefaztudoparairritálo.
164
ANEXO II
Modelodefichamentodefilme
EQUUS
(SidneyLumet,1977)
PRÓLOGO
1.Punhal com caradecavalo.Acâmera vaigirandoeseaproximandoatéparar
com um
close
na boca do cavalo. Punhal transformase em boca de cavalo de
verdade.
2.Surgeumjovem(AlanStrang)abraçadoaumcavalo.Umavozaofundo(vozde
Dysart)fazanarração.
3.Dysartrefletesobreosde seosdocavalo.Quedesejosseriamestes?Procriar?
Saciarse? Nãosermaisumcavalo?Queutilida detematristezaparaumcavalo?
Acabaporconluir queestáperdido.
4.
Close
norostode Dysart(escuroemumdosladosdaface).Eleconfessaestar
atreladoavelhaslinguagensesuposições,nãotemforçaparasairdoconvencional.
Aospoucosa câmeravaiseafastandoeasalaondeeleestávaificandomai sclara.
Dysartpededesculpaspornãosefazerentender.
INTRODUÇÃO–a apresentãodoproblema
5. Fachada do hospital. Depoi s, cenas do interior do prédio. Série de cenas que
demonstram a  rotina de Dysart em seu trabalho. Crianças brigando e Dysart as
separando. Dysart em sessão de análise com paciente. Terapia em grup o. No
refeitó rio,Dysart conversae bri nca com crianças.Dysart tentaexami nar paciente
quenãocoopera.
6.Dysartcomeçaacontarahistóriaquecomeçouhásetemesescomavisitade
Hesther.Hesthercontaquerapazcegou6cavaloscomu mafoiceemumestábulo9
ondeeletrabalhavanosfinaisdesemana.EmumprimeiromomentoDysartnega,
masHestherinsiste.Elacontaqueháalgodeextraordinárionorapaz.
7. Imagem da fachada do ho spital. Chega o adolescente, Alan Strang,
acompanhadodeduaspessoas.Aofundo,avozdeDysartfalaqueesperamuito
poucodaquelecasomédico.
8.Nocorredordohospital(câmeraatrás)alguémdizparaAlanqueoquartoédele
e que ninguém entrará lá se ele não quiser. A enfermeira diz que é uma das
melho ressalasdo lugar.
9.Alanentranoquarto(bastanteiluminado)esentanacama.Fechamaporta.
10. Dysart atende uma criança em sua sala. A menina sai. Enquanto as cenas
aparecemavozdeDysart(narrador)dizqueaculpadessasituaçãoédeHesther.
Depoisconcluiqueaquelecasofoiapenasagotad’água.
11.Alanchegaparaa1ªsessão.Entraabruptamenteenãocumprimentaomédico.
Dysartdizquelhefaráapenasalgumasper guntasesugerequ eelesesente,mas
Alanoresponde,apenasolhaasala.Dysartfazperguntas( câmeranorostode
Alan),masAlannãoresponde.Comorostodemonstrandonervosismo,começaa
cantar
jingles
.
12. Dysart tenta, com atitude conciliadora, explicar para Alan que ali não é um
hospitalpsiquiátrico,equese ele quisercontinuarláteráquese comportarbem.
Pede que Alan seja pontual e per gunta qual de seus pais o permite que ele
assistaT V.
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