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Educação
II
autores:
Agustí Nicolau Coll
Basarab Nicolescu
Martin E. Rosenberg
Michel Random
Pascal Galvani
Patrick Paul
organizadores:
Américo Sommerman
Maria F. de Mello
Vitória M. de Barros
Transdisciplinaridade
e
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Educação e
Transdisciplinaridade
II
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Educação e
Transdisciplinaridade
II
Direitos para a língua portuguesa reservados a
TRIOM – Centro de Estudos Marina e Martin Harvey Editorial e Comercial Ltda.
Rua Araçari, 218 – 01453-020 – São Paulo – SP – Brasil
Tel.: (11) 3168-8380 / Fax: (11) 3078-6966
E-mail: [email protected] – www.triom.com.br
Tradução: Judith Vero, Américo Sommerman,
Maria Mercês Rocha Leite e Lucia Pereira de Souza
Revisão técnica: Américo Sommerman
Revisão: Vitoria Mendonça de Barros, Maria F. de Mello e Ruth Cunha Cintra
Capa, diagramação e fotolitos: Casa de Tipos Bureau e Editora Ltda.
Conselho Editorial da UNESCO no Brasil
Jorge Werthein, Cecilia Braslavsky, Juan Carlos Tedesco,
Adama Ouane e Célio da Cunha
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
Representação no Brasil
SAS, Quadra 5 Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar
70070-914 – Brasília – DF – Brasil
Tel.: (55 61) 321-3525 / Fax: (55 61) 322-4261
USP – Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz
Pró-Reitor de Pesquisa: Prof. Dr. Luiz Nunes de Oliveira
Coordenador Científico da Escola do Futuro: Prof. Dr. Fredric M. Litto
Edição patrocinada por Revista Primeira Leitura e UNESCO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático:
1. Educação e transdisciplinaridade 370.1
2. Transdisciplinaridade e educação 370.1
Encontro Catalisador do Projeto “A Evolução Transdisciplinar na Educação” (2. :
2000 : Guarujá, SP)
Educação e transdisciplinaridade, II / coordenação executiva do CETRANS. – São
Paulo : TRIOM, 2002.
Vários palestrantes.
Vários tradutores.
Bibliografia.
ISBN 85-85-464-50-X
1. Educação – Finalidade e objetivos 2. Interdisciplinaridade e conhecimento I.
Título. II. Título: Educação e transdisciplinaridade, II.
02-3658 CDD 370.1
Sumário
PREFÁCIO.............................................................................................................................................................................. 7
INTRODUÇÃO
.............................................................................................................................................................. 9
O TERRITÓRIO DO OLHAR
– Michel Random
..................................................................................................................................................... 27
FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS PARA O
ESTUDO TRANSCULTURAL E TRANSRELIGIOSO
– Basarab Nicolescu
........................................................................................................................................... 45
AS CULTURAS NÃO SÃO DISCIPLINAS:
EXISTE O TRANSCULTURAL?
– Agustí Nicolau Coll
........................................................................................................................................ 73
A AUTOFORMAÇÃO, UMA PERSPECTIVA
TRANSPESSOAL, TRANSDISCIPLINAR E TRANSCULTURAL
– Pascal Galvani
......................................................................................................................................................... 93
A IMAGINAÇÃO COMO OBJETO DO CONHECIMENTO
– Patrick Paul
................................................................................................................................................................... 123
O RIZOMA DO XADREZ E O ESPAÇO DE FASES:
MAPEANDO A TEORIA DA METÁFORA
NA TEORIA DO HIPERTEXTO
– Martin E. Rosenberg
.................................................................................................................................... 157
ANEXOS
..................................................................................................................................................................................... 187
BIBLIOGRAFIA GERAL.......................................................... 212
Prefácio
Fredric M. Litto
Coordenador de Pesquisa Científica
Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Durante os mais de trinta anos em que ministrei um curso
de pós-graduação em procedimentos de pesquisa na Escola de
Comunicações e Artes da USP, levei até os alunos a idéia de um
dos historiadores mais importantes dos Estados Unidos no
século XX, Allan Nevins: todo historiador deveria estudar um
assunto afastado no tempo e um outro mais contemporâneo; e
ainda um afastado no espaço e outro bem perto de onde mora.
O distanciamento dos assuntos afastados em tempo e espaço
darão uma perspectiva diferente sobre os fenômenos presentes
e o estudo dos assuntos da vizinhança criará um laço importan-
te com a comunidade em que se vive.
Além disso, nunca me esqueci da mensagem que Williard
Libby, químico laureado recentemente com o Prêmio Nobel,
transmitiu numa entrevista para o jornal dos estudantes (do qual
eu era o crítico de música e teatro e, de vez em quando, restau-
rantes) no último ano do meu curso de graduação na Universi-
dade da Califórnia, Los Angeles, 1959-60, quando a instituição o
contratou como novo docente. O jornalista perguntou ao novo
professor que disciplinas ele ministraria e, se minha memória
não falha, ele respondeu: “Um seminário de pós-graduação em
questões avançadas de química e Química 101” (101 é sempre
o curso introdutório a qualquer área de conhecimento em uni-
versidades norte-americanas, destinado aos calouros). O jorna-
lista, estupefato, perguntou: “Mas por que o senhor se rebaixa-
Educação e Transdisciplinaridade II
7
ria para ministrar um curso tão elementar?” A nova resposta de
Libby foi: “Porque no Química 101 os alunos fazem perguntas
sobre os assuntos mais amplos e mais importantes da química,
os quais eu, em minha pesquisa em torno de um assunto alta-
mente específico, já esqueci. Quero voltar a ter contato com
estas grandes questões.”
O CETRANS, grupo de estudos da Escola do Futuro da
USP, atua nesta mesma linha de investigação, fazendo “as gran-
des perguntas”, a fim de nos ajudar a situar o homem e a mu-
lher contemporâneos no seu mundo. Não apenas através de
encontros que reúnem especialistas de áreas de conhecimento
diversas, que aceitam o desafio de expor suas idéias não neces-
sariamente convencionais num ambiente transdisciplinar, mas,
mais difícil ainda, trabalhando para inserir esses conceitos ino-
vadores na prática de aprendizagem de alunos brasileiros em
escolas públicas e privadas. Investigação, divulgação dos resul-
tados e aplicação desses mesmos resultados em experiências
factíveis e reais em prol do avanço da educação brasileira – são
atividades do CETRANS que têm sido bem sucedidas e repre-
sentam uma contribuição muito importante para todos os pes-
quisadores da Escola do Futuro. O presente volume é um
exemplo claro da divulgação de vários trabalhos de pesquisa-
dores que se reuniram recentemente para adicionar mais “blo-
cos de conhecimento” ao “edifício” de sabedoria transdiscipli-
nar. A esperança de todos, autores, editora, entidades patroci-
nadoras do encontro e da Escola do Futuro da USP, é que as
idéias aqui expressas sejam ponderadas, debatidas e, quando
apropriado, colocadas em prática em atividades intelectuais e
educacionais no país e afora.
São Paulo, 23 de fevereiro de 2002
Educação e Transdisciplinaridade II
8
Introdução
Maria F. de Mello
Vitória Mendonça de Barros
Américo Sommerman
Coordenadores do CETRANS
Centro de Educação Transdisciplinar da Escola do Futuro da USP
Transitude
Entre, através e além
o longe e o perto, o sem-Onde,
ontem e amanhã, o instante perene,
o movimento e o eixo, a dança.
Entre, através e além
o vidro e o ar, a transparência,
sílaba e respiração, o sabor;
o dito e o tu, a presença.
Entre, através e além
vazio e cheio, cumplicidade,
a ânfora e a argila, uma mão,
o ser e o nada, o sentido.
Jean Biès
1. Transdisciplinaridade e Conhecimento
A Transdisciplinaridade é uma teoria do conhecimento, é uma
compreensão de processos, é um diálogo entre as diferentes
áreas do saber e uma aventura do espírito. A Transdisciplinari-
dade é uma nova atitude, é a assimilação de uma cultura, é uma
Educação e Transdisciplinaridade II
9
arte, no sentido da capacidade de articular a multirreferenciali-
dade e a multidimensionalidade do ser humano e do mundo.
Ela implica numa postura sensível, intelectual e transcendental
perante si mesmo e perante o mundo. Implica, também, em
aprendermos a decodificar as informações provenientes dos
diferentes níveis que compõem o ser humano e como eles
repercutem uns nos outros. A transdisciplinaridade transforma
nosso olhar sobre o individual, o cultural e o social, remetendo
para a reflexão respeitosa e aberta sobre as culturas do presen-
te e do passado, do Ocidente e do Oriente, buscando contribuir
para a sustentabilidade do ser humano e da sociedade.
Etimologicamente, trans é o que está ao mesmo tempo entre as
disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de todas as
disciplinas, remetendo também à idéia de transcendência. O
senso comum intui que todas essas inter-relações ocorrem no
mundo e na vida. No entanto, uma vez que sempre seremos
principiantes na compreensão, na incorporação e na imple-
mentação dessas inter-relações, devido à sua imensa complexi-
dade, como levá-las à educação e à pesquisa? É para responder
a essa pergunta que, após revisitar, com respeito, rigor e inclu-
são as epistemologias, os métodos, as noções de valor, de sen-
tido, o conceito de ciência, de pesquisa, de competência, os
contextos, as estruturas e dados e percepções a respeito das
dimensões internas do ser humano, a Transdisciplinaridade traz
sua própria contribuição integradora.
A partir do I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, reali-
zado em Arrábida, Portugal, 1994, e do I Congresso Internacio-
nal, realizado em Locarno, Suiça, 1997, ambos organizados pelo
CIRET Centre International de Recherches et Etudes Transdisci-
plianaires de Paris e pela UNESCO, foram definidos os três pila-
res da metodologia transdiscipilnar: a Complexidade, a Lógica
do Terceiro Incluído e os Níveis de Realidade.
O olhar transdisciplinar nos remete a um todo significativo que
emerge de um diálogo constante entre a parte e o todo, e os três
pilares da transdisciplinaridade permitem que a transdisciplina-
Educação e Transdisciplinaridade II
10
ridade também encontre seu lugar na pesquisa e na aplicação.
O olhar transdisciplinar busca encontrar os princípios conver-
gentes entre todas as culturas, para que uma visão e um diálo-
go transcultural, transnacional e transreligioso possam emergir,
o que leva também à relativização radical de cada olhar, mas
sem cair no relativismo, uma vez que a transdisciplinaridade nos
permite encontrar o mundo comum, a concordia mundis, e o
terceiro incluído entre cada par de contraditórios.
2. Documentos da Transdisciplinaridade
Em 1986 foi elaborado o primeiro documento internacional que
faz referências explicitas à Transdisciplinaridade: A Declaração
de Veneza, comunicado final do Colóquio “A Ciência Diante
das Fronteiras do Conhecimento” organizado pela UNESCO,
em Veneza (vide anexo 1). Em 1991 realizou-se o primeiro con-
gresso internacional que traz no título a palavra Transdisciplina-
ridade: Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares
para o Século XXI, organizado pela UNESCO, em Paris, que deu
origem a um comunicado final que indica explicitamente a
necessidade de uma nova abordagem científica e cultural: a
Transdisciplinaridade (anexo 2). Em 1994, no I Congresso Mun-
dial da Transdisciplinaridade, foi formulada a Carta da Trans-
disciplinaridade, com 14 artigos (anexo 3).
Em 1996 foi publicado o Relatório para a UNESCO da Comissão
Internacional sobre Educação para o Século XXI, elaborado por
Jacques Delors, com a definição dos 4 pilares para a educação
do século XXI (aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender
a viver juntos, aprender a ser) que, acrescidos dos dois pilares
complementares (aprender a participar e aprender a antecipar)
formulados em documento elaborado por um grupo de partici-
pantes da conferência internacional de transdisciplinaridade:
Joint Problem Solving among Science, Technology and Society,
Zurique – 2000 (anexo 4), também se constituem em elementos
norteadores para o exercício efetivo da Transdisciplinaridade.
Introdução
11
Se os líderes e os educadores das últimas gerações tivessem se
norteado por parâmetros semelhantes aos expressos nesses
documentos, o cenário presente do mundo provavelmente não
seria tão ameaçador.
A transdisciplinaridade será uma expressão robusta e consisten-
te na medida em que desenvolva continuamente a reflexão teó-
rica, crie pontes entre a teoria e a prática, implemente-as nos
mais diversos campos e as avalie, pois só assim poderá corrigir
continuamente sua direção e seus parâmetros, enriquecendo-se
e encurtando os caminhos para a resolução de problemas que
digam respeito à sustentabilidade da sociedade e do ser huma-
no. Assim, apoiada na pesquisa, pura e aplicada, a transdiscipli-
naridade fomentará um diálogo constante entre a teoria e a prá-
tica. Além disso, é fundamental que os diversos núcleos de pes-
quisa e aplicação transdisciplinar no Brasil e no exterior man-
tenham uma troca constante de informação, partilhando suas
pesquisas e seus resultados, a fim de que seus olhares sejam
mutuamente corrigidos e ampliados, otimizando o processo da
Evolução Transdisciplinar na Educação.
Muitos são os desafios associados à reflexão e implementação
dessa proposta visionária. Entre elas podemos destacar a forma-
ção de formadores transdisciplinares. Essa formação deve con-
templar um processo tripolar: autoformação (a formação na re-
lação consigo mesmo), heteroformação (a formação na relação
com os outros) e ecoformação (a formação na relação com o am-
biente) (Pineau, 1997), e é fundamental que essa formação tripo-
lar inclua um olhar multidimensional sobre o sujeito e o objeto,
implícita na transdisciplinaridade, remetendo-nos assim aos dife-
rentes níveis de percepção do sujeito e aos diferentes níveis de
realidade do objeto (Nicolescu, 2001). Além disso, numa defini-
ção ampla de cultura, toda cultura apresenta três ordens ontonô-
micas, na qual se entrecruzam três níveis ou dimensões: a míti-
co-simbólica, a lógico-epistêmica e a mistérica (Coll, 2000), que
também devem ser levadas em conta no processo de formação.
Tudo isso demanda que sejam fomentadas estruturas institucio-
nais criativas e favoráveis ao exercício da Transdisciplinaridade.
Educação e Transdisciplinaridade II
12
Na Transdisciplinaridade não existe um piloto automático, pois
não há algoritmos, modelos prontos, nem um conhecimento
dogmático. Os modelos estão numa remodelação permanente
diante de cada campo de reflexão e de cada campo de aplica-
ção. Somos todos transnautas, explorando, criando e aplicando
o imaginário transdisciplinar na complexidade dos diferentes
‘territórios’, nos diferentes níveis de realidade, incluindo a intui-
ção racional, do coração, intelectiva e essencial, e também lógi-
cas não clássicas, com ênfase na lógica do terceiro incluído, pos-
sibilitando, assim, a emergência de novos cenários.
Esta tarefa é ao mesmo tempo solitária e solidária e florescerá
na medida em que nos dispusermos a dar a nossa contribuição,
trabalhando voluntariamente juntos, mas nos deixando recipro-
camente livres.
3. O Projeto do CETRANS
O Projeto Matricial e os Projetos-Piloto
Em 1998 apresentamos ao Prof. Fredric Michael Litto, coordena-
dor científico da Escola do Futuro da USP, o projeto transdisci-
plinar que elaboramos nos dois anos anteriores e que intitula-
mos “A Evolução Transdisciplinar na Educação”. O Prof. Litto
acreditou na nossa proposta e acolheu imediatamente o projeto.
Nesse mesmo ano, foi criado o Centro de Educação Transdisci-
plinar CETRANS, coordenado por nós e abrigado na Escola do
Futuro da Universidade de São Paulo, com a finalidade de im-
plementar o Projeto Matricial A Evolução Transdisciplinar na
Educação Contribuindo para o Desenvolvimento Sustentável da
Sociedade e do Ser Humano. Este Projeto Matricial, previsto ini-
cialmente para três anos, logo foi ampliado para cinco anos
(1998-2002), constituindo-se na primeira etapa da ação do
CETRANS (anexo 5). O objetivo desse Projeto Matricial é formar
40 formadores transdisciplinares, que devem criar e implemen-
tar projetos-piloto, permeados pela visão, atitude e metodolo-
gia transdisciplinares.
Introdução
13
3.1 Os membros do CETRANS
Em 1997, 1998 e início de 1999 entramos em contato com apro-
ximadamente 200 pessoas, das mais diferentes áreas do conhe-
cimento, buscando encontrar o grupo inicial dos 40 formadores
do projeto. Algumas pessoas não se interessaram pela propos-
ta veiculada nele, outras se interessaram mas a consideraram
prematura ou utópica, e aquelas que aderiram o fizeram ou por-
que nela encontraram ressonância com as atividades que já
desenvolviam e para as quais careciam de fundamentação epis-
temológica, ou porque estavam conscientes da necessidade de
uma nova abordagem formativa e educacional. A seleção dos
membros seguiu, basicamente, dois critérios: 1) ter afinidade e
comprometimento com o projeto e 2) pertencer a campos ainda
não preenchidos por membros já inscritos, uma vez que preten-
díamos formar um grupo o mais diversificado possível. No iní-
cio de 1999, o grupo inicial se constitui (anexo 6).
Inicialmente, também constituímos um grupo de 8 conselhei-
ros, igualmente das áreas mais diversas. Durante a elaboração
do Projeto e no início da ação do CETRANS, esse grupo de con-
selheiros foi muito importante, pois foram excelentes interlocu-
tores para os três coordenadores. No entanto, no final do ano
2000, foi proposta a modificação do status desse grupo, que
passou a ser o “grupo de colaboradores”. Nessa mesma época,
alguns membros do CETRANS propuseram outras duas modifi-
cações da mesma natureza: que os até então denominados 40
formadores passassem a ser chamados pesquisadores-formado-
res e que, os até então chamados experts estrangeiros, passas-
sem a ser chamados pesquisadores-formadores estrangeiros.
Após sugerida, essa mudança foi aceita por todos, inclusive
pelos estrangeiros. Esse mudança foi significativa para aproxi-
mar e aprofundar a relação entre todos.
Portanto, em 1998, os membros do CETRANS se estruturavam da
maneira seguinte: 3 coordenadores executivos, 8 conselheiros,
40 formadores. No ano 2000, 3 formadores deixaram o projeto e
5 novos entraram, de modo que o Projeto passou a ser constituí-
Educação e Transdisciplinaridade II
14
do por: 3 coordenadores executivos, 8 colaboradores e 42 pes-
quisadores-formadores. Além disso, contamos com o apoio
logístico da secretaria da Escola do Futuro e de cinco voluntá-
rios, que nos auxiliaram nas áreas de design gráfico, secretaria,
assistência administrativa e manutenção do site.
3.2 Patrocínio
De 1998 a 2002, o Projeto Matricial contou com o patrocínio da
CESP (Cia. Energética de São Paulo), da UNESCO, do Ministério
da Educação, da Mercedes-Benz e da Editora Triom para a pro-
moção de três eventos internacionais, que denominamos
“encontros catalisadores”.
3.3 Objetivos
O Projeto Matricial se propõe a criar espaços de diálogo trans-
disciplinar, oferecer cursos presenciais e a distância, produzir,
traduzir e publicar artigos e livros para a reflexão, orientar a
criação, a coordenação e implementação de projetos-piloto per-
meados pela transdisciplinaridade, desenvolver instrumentos de
investigação que possam comunicar a proposta transdisciplinar
em sua abrangência multirrefencial e multidimensional.
Até o presente momento, as etapas previstas pelo Projeto Matri-
cial foram cumpridas com sucesso, apesar das dificuldades
financeiras e dos enormes desafios que tiveram de ser enfrenta-
dos, tais como: imprimir, nas relações entre os participantes, um
diálogo de natureza transdisciplinar; criar pontes entre teoria e
prática de forma a garantir que os projetos-piloto refletissem a
metodologia transdisciplinar nos seus vários estágios de imple-
mentação; e iniciar a elaboração de uma avaliação processual de
caráter transdisciplinar.
3.4 Fundamentação teórica
O CETRANS, o Projeto Matricial e os projetos-piloto pautam
todas as suas ações nos pressupostos dos itens 1 e 2 enuncia-
dos acima.
Introdução
15
As palavras-chave do Projeto Matricial são: Transdisciplinari-
dade; Metodologia Transdisciplinar: Complexidade, Níveis de
Realidade, Lógica do Terceiro Incluído; Formação de Forma-
dores; Criação de Pontes entre Teoria e Prática; Publicação
Transdisciplinar; Transdisciplinaridade e Espaço Cibernético.
4. O trajeto do Projeto Matricial de janeiro
de 1998 a julho de 2002
4.1 Encontros catalisadores
Em seu documento inicial, o projeto A Evolução Transdisci-
plinar na Educação se propunha a realizar três encontros inter-
nacionais, chamados “encontros catalisadores”, a fim de trazer
ao Brasil alguns pensadores transdisciplinares estrangeiros ca-
pazes de contribuir para a reflexão dos aproximadamente 50
membros do CETRANS. O I Encontro ocorreu em 1999, o II En-
contro, cujo conteúdo apresentamos neste livro, ocorreu em
2000 e, em 2001, realizamos o III Encontro. Os dois primeiros
foram realizados fora de São Paulo, em lugares de grande bele-
za. O terceiro ocorreu em São Paulo, na própria USP. Deles par-
ticiparam apenas os membros do CETRANS, a fim de que eles
pudessem conviver em tempo integral, entre si e com os con-
ferencistas internacionais, durante os quatro dias. A carga horá-
ria total dos três encontros somados foi de 98 horas.
As conferências do I Encontro Catalisador realizado em Itatiba,
de 16 a 18 de abril de 1999, a respeito de temas definidos por
nós, foram as seguintes: A prática da transdisciplinaridade, por
Basarab Nicolescu; Um novo tipo de conhecimento – a transdis-
ciplinaridade, por Basarab Nicolescu; O sentido do sentido, por
Gaston Pineau; A ética universal e a noção de valor, por Paul
Taylor; Cognição e transdisciplinaridade, por Humberto
Maturana; O Belo, por Michel Random. A carga horária total do
I Encontro foi de 31 horas.
As conferências do II Encontro Catalisador realizado no Guaru-
Educação e Transdisciplinaridade II
16
já, de 8 a 11 de junho de 2000, também sobre temas definidos
por nós, foram as seguintes: Fundamentos metodológicos para
o estudo transcultural e transreligioso, por Basarab Nicolescu;
Poincaré, Bergson e Duchamp e a emergência da complexida-
de, por Martin Rosenberg; As culturas não são disciplinas:
Existe o transcultual?, por Agustí Nicolau Coll; Revelação e revo-
lução: buscando uma história das religiões, por Steven Wasser-
strom; A autoformação: uma perspectiva transpessoal, transdis-
ciplinar e transcultural, por Pascal Galvani; Teoria da metáfo-
ra na teoria do hipertexto, por Martin Rosemberg; O imaginá-
rio e a transdisciplinaridade, por Patrick Paul. A carga horária
total do II Encontro foi de 38 horas.
Os temas das 27 conferências do III Encontro Catalisador (ane-
xo 7) realizado em São Paulo, no campus da USP, de 18 a 21 de
maio de 2001, foram definidos pelos próprios conferencistas, 26
deles membros do CETRANS. A carga horária total do III En-
contro foi de 29 horas. Várias dessas conferências serão publi-
cadas dentro de um ou dois anos no livro Educação e
Transdisciplinaridade III.
4.2 Reuniões presenciais mensais
No I Encontro Catalisador os 40 pesquisadores-formadores do
CETRANS solicitaram aos três coordenadores a realização de
reuniões presenciais para que a compreensão das palestras e a
reflexão transdisciplinar sobre os seus conteúdos fosse apro-
fundada, uma vez que estas tinham sido extremamente densas.
As reuniões presenciais sobre temas centrais do pensamento
transdisciplinar passaram a fazer parte do Projeto Matricial do
CETRANS e realizaram-se por todo o ano de 1999, 2000 e 2001.
Nesses três anos, ocorreram 21 reuniões presenciais, somando
uma carga horária total de 78 horas.
4.2.1 Em 1999 foram realizadas as seguintes reuniões
presenciais:
.) Tema: O Pensamento Complexo. Palestrantes: prof. Nelson
Introdução
17
Fiedler Ferrara – Física/USP e prof. Laerthe Abreu Junior – Edu-
cação – Univ. São Francisco. Data: 19 de maio. Carga horária: 3h.
.) Tema: A Lógica do Terceiro Incluído. Palestrante: prof. Amân-
cio Friaça – Astrofísica/USP. Data: 26 de julho. Carga horária: 3h.
.) Tema: Os Diferente Níveis de Realidade. Palestrante: prof.
Marcio Lupion – Arquitetura/Mackenzie. Data: 18 de agosto.
Carga horária: 3h.
.) Tema: Cibercultura e Transdisciplinaridade. Palestrante:
profa. Brasilina Passarelli – Comunicações/USP. Data: 08 de
setembro. Carga horária: 3h.
.) Tema: Tempo e transtemporalidade. Palestrante: prof. Patrick
Paul – Medicina e Ciências da Educação/Univ. François Rabelais
de Tours – França. Data: 18 de outubro. Carga horária: 4h30.
.) Tema: a) Relatório dos projetos-piloto, b) Discussão sobre a
implementação dos projetos-piloto, c) Avaliação das atividades
do CETRANS em 1999, d) Sugestões para as atividades de 2000.
Data: 10 de novembro. Carga horária: 3h.
4.2.2 No ano 2000 foram realizadas as seguintes reuniões
presenciais:
.) Tema: Apresentação de três dos projetos-piloto do CE-
TRANS. Palestrantes: Profa. Ondalva Serrano – Engenharia Am-
biental/Instituto Florestal de São Paulo; Yara Boaventura da Silva
e Josinete Aparecida da Silva – Enfermagem – Hospital do Cân-
cer; profa. Silvia Fichmann – Educação/Escola do Futuro da USP.
Data: 21 de março. Carga horária: 3h.
.) Tema: Psicanálise e Transdisciplinaridade. Palestrante: Igna-
cio Gerber – Psicanálise e Engenharia/USP e Sociedade Brasi-
leira de Psicanálise. Data: 24 de abril. Carga horária: 3h.
.) Tema: Gödel e a Transdisciplinaridade. Palestrante: prof.
Educação e Transdisciplinaridade II
18
Ubiratan d’Ambrosio – Matemática/USP e UNICAMP. Data: 15
de maio. Carga horária: 3h.
10º.) Tema: Avaliação do II Encontro Catalisador. Palestrante:
todos os membros do CETRANS que estiveram presentes (14).
Data: 15 de agosto. Carga horária: 3h.
11º.) Tema: Avaliação do II Encontro Catalisador. Palestrante:
todos os membros do CETRANS que estiveram presentes (13).
Data: 31 de setembro. Carga horária: 3h.
12º.) Tema: Quem sou eu? Palestrante: todos os membros do
CETRANS que estiveram presentes (24). Data: 8 de outubro.
Carga horária: 4h.
13º.) Tema: Quem somos nós? Qual é a Cultura do CETRANS?
Palestrante: todos os membros do CETRANS que estiveram pre-
sentes (14). Data: 26 de novembro. Carga horária: 7h.
4.2.3 No ano 2001 foram realizadas as seguintes reu-
niões presenciais:
14º.) Tema: Reflexão sobre duas conferências do II Encontro Ca-
talisador: a) Fundamentos metodológicos para uma abordagem
transreligiosa e transcultural, b) A imaginação como objeto do
conhecimento. Palestrante: todos os membros do CETRANS que
estiveram presentes (17). Data: 01 de fevereiro. Carga horária: 7h.
15º.) Tema: reflexão sobre outra conferência do II Encontro Ca-
talisador; reflexão sobre essas duas palestras do II Encontro Ca-
talisador: A autoformação, uma perspectiva transpessoal, trans-
disciplinar e transcultural. Palestrante: todos os membros do
CETRANS que estiveram presentes (18). Data: 15 de março.
Carga horária: 3h.
16º.) Tema: A lógica clássica, as lógicas não-clássicas e a lógica
paraconsistente. Palestrante: Prof. Newton C. A. da Costa – Fi-
losofia/USP. Data: 19 de abril. Carga horária: 3h.
Introdução
19
17º.) Tema: Metodologia de pesquisa e transdisciplinaridade (I).
Palestrante: Profa. Brasilina Passareli – Comunicações/USP e
membro do CETRANS; Prof. Nelson Fiedler-Ferrara – Física/USP
e membro do CETRANS; Prof. Derli Barbosa – Educação/UNI-
FIEO. Data: 28 de junho. Carga horária: 3h.
18º.) Tema: Metodologia de pesquisa e transdisciplinaridade (II).
Palestrante: Profa. Mariana Lacombe – Filosofia/UNIFIEO e
membro do CETRANS; Prof. Luiz Prigenzi – Medicina e Biolo-
gia/UNICAMP e UNESP e membro do CETRANS; Prof. Daniel
José da Silva – Eng. Abiental/UFSC. Data: 19 de julho. Carga
horária: 3h.
19º.) Tema: Avaliação do III Encontro Catalisador (I). Palestran-
te: todos os membros do CETRANS que estiveram presentes (7).
Data: 23 de agosto. Carga horária: 3h.
20º.) Tema: Auto, hétero e ecoavaliação do III Encontro Cata-
lisador (II). Paletrante: todos os membros do CETRANS que esti-
veram presentes (6). Data: 18 de setembro. Carga horária: 3h.
21º.) Tema: Auto, hétero e ecoavaliação do III Encontro Cata-
lisador (III). Paletrante: todos os membros do CETRANS que
estiveram presentes (9). Data: 19 de outubro. Carga horária: 3h.
5. O site do CETRANS
Em 1998, no terceiro mês de existência do CETRANS, começa-
mos a criar o site do CETRANS: <http://www.cetrans.futuro.usp
.br>, que foi ao ar em novembro desse mesmo ano. Desde o
início, estava claro para nós que um site seria uma ferramenta
muito eficaz tanto para auxiliar na formação dos nossos 40 pes-
quisadores-formadores, como para divulgar as nossas ativida-
des e o pensamento transdisciplinar para o restante da socieda-
de. Para este fim, traduzimos e escrevemos inúmeros artigos
sobre temas e conceitos-chave do pensamento transdisciplinar
para o site e realizamos várias atualizações do mesmo.
Educação e Transdisciplinaridade II
20
6. Os livros traduzidos e publicados pelo
CETRANS
Juntamente com a criação do site, começamos a pensar na pu-
blicação de alguns livros que pudessem se constituir numa
bibliografia transdisciplinar básica em português, tanto para dar
subsídios aos 40 pesquisadores-formadores do CETRANS, como
para outros pesquisadores brasileiros. Para isso, contamos com
a parceria da UNESCO e da Editora Triom, que criou uma cole-
ção transdisciplinar.
6.1 Publicações que fizemos em 1999 e 2000:
O Manifesto da Transdisciplinaridade, Basarab Nicolescu.
São Paulo: Triom, 1999. Texto básico de referência para o pen-
samento transdisciplinar, no qual o autor, físico teórico do CNRS,
Universidade Paris 6, e presidente do Centro de Pesquisas e Es-
tudos Transdisciplinares (CIRET) desenvolve o histórico do apa-
recimento do pensamento transdisciplinar, define o conceito, a
epistemologia, os três pilares da metodologia transdisciplinar.
O Pensamento Transdisciplinar e o Real, Michel Random. São
Paulo: Triom, 2000. Entrevistas realizadas por Michel Random
durante o I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade em Por-
tugal, em 1994, com grandes nomes de várias áreas do conheci-
mento (Edgar Morin, Basarab Nicolescu, Gilbert Durand, entre
outros), nas quais os entrevistados falam, a partir de seus cam-
pos, sobre o olhar transdisciplinar e sua contribuição para solu-
cionar alguns dos grandes impasses da sociedade atual. Este
livro aprofunda a reflexão sobre a epistemologia e a metodolo-
gia transdisciplinares.
Educação e Transdisciplinaridade I, Maria F. Mello, Vitória
M. Barros e Américo Sommerman (orgs.). Brasília: UNESCO,
2000. Contém o texto das seis conferências do I Encontro
Catalisador organizado pelo CETRANS da Escola do Futuro da
USP em 1999.
Introdução
21
6.2 Livros publicados em 2001:
Stéphane Lupasco: O Homem e a Obra, B. Nicolescu e H.
Badescu (orgs.). São Paulo: Triom, 2001. Esta obra, que reúne
testemunhos e estudos assinados por dezenove pesquisadores
vindos de diferentes campos, é fruto do colóquio realizado em
1998 no Institut de France em homenagem a Lupasco, físico e
filósofo romeno que elaborou, a partir dos dados paradoxais da
ciência contemporânea, uma lógica quântica, não-clássica, ter-
nária, que é um dos pilares da epistemologia transdisciplinar e
tem exercido uma influência significativa, muitas vezes de
maneira marginal, no pensamento ocidental destas últimas
décadas. Este livro dá subsídios para a reflexão sobre a lógica,
em especial a do terceiro incluído, e para sua aplicação.
O Manifesto da Transdisciplinaridade, Basarab Nicolescu. 2ª
edição. São Paulo: Triom.
O Caminho do Sábio, Jean Biès. São Paulo: Triom, 2001. A
partir de 12 entrevistas com expoentes de diferentes culturas e
religiões, que falam sobre a busca de sentido, o autor descortina
um magnífico panorama de um diálogo transcultural e transreli-
gioso, pedra angular da transdisciplinaridade. Este livro mostra,
de forma clara, a possibilidade do diálogo transcultural e trans-
religioso e pode servir de subsídio para a reflexão sobre dois dos
Quatro Pilares da Educação propostos no Relatório para a UNES-
CO da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século
XXI: ‘aprender a viver em conjunto’ e ‘aprender a ser’.
6.3 Livros publicados em 2002:
Educação e Transdisciplinaridade II, Américo Sommerman,
Maria F. de Mello e Vitória M. de Barros (orgs.). São Paulo:
Triom/UNESCO, 2002. Textos das conferências do II Encontro
Catalisador organizado pelo CETRANS da Escola do Futuro da
USP em 2000.
O Homem do Futuro Um Ser em Construção. São Paulo:
Triom, 2002. Contém artigos de membros do CIRET (Centro
Educação e Transdisciplinaridade II
22
Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares – Paris):
Adonis, Basarab Nicolescu, Michel Camus, Michel Random,
Patrick Paul, René Barbier e outros, sobre suas perspectivas no
que diz respeito à sociedade e ao homem do século XXI.
6.4 Livros a serem publicados em 2003:
A Religião Após a Religião, Steven M. Wasserstrom. São
Paulo: Triom.
O Espírito da Política – Homem Político, Raimond Panikkar.
São Paulo: Triom.
Temporalidade e Formação, Gaston Pineau. São Paulo:
Triom.
Ciência do Homem e Tradição: O Novo Espírito Antropológi-
co, Gilbert Durand. São Paulo: Triom.
Práticas Médicas, Formações e Transdisciplinaridade,
Patrick Paul. São Paulo: Triom.
6.5 Livros a serem publicados em 2004:
The View from Within – First Person Aproaches to the Study
of Consciousness, Editado por Francisco Varela e Jonathan
Shear, Imprint Academic, Londres, 1999.
Stéphane Lupasco, Le Principe d’antagonisme et la logique de
l'energie, Éditions Le Rocher, Monte Carlo, 1987.
Interviews with a Mathematician, Gregory Chaitin. Singapo-
re: Springer, 2001.
7. A questão da avaliação transdisciplinar
Alguns meses antes do II Encontro Catalisador, que ocorreu em
junho de 2000, começamos a refletir mais intensamente sobre a
questão da avaliação: o que seria uma avaliação transdisciplinar?
Como um dos projetos-piloto estava começando a trabalhar um
tema correlato, pedimos que as suas coordenadoras – Silvana
Introdução
23
Cappanari e Marise Rayel – nos ajudassem a desenvolver um
processo de avaliação do II Encontro. Tivemos várias reuniões
com elas e elaboramos juntos algumas formas de alcançar esse
fim: uma avaliação permeada pela transdisciplinaridade.
Durante o II Encontro, as avaliações planejadas sofreram alguns
ajustes e modificações, devido às tensões que foram emergindo.
Uma das modificações ocorreu quando, numa das avaliações
previstas para o Encontro, alguns membros de um dos quatro
grupos nos quais foram divididos todos os presentes, manifes-
taram sua insatisfação com o pouco tempo, segundo a sua opi-
nião, para os pesquisadores-formadores se expressarem e o tem-
po excessivo para as conferências dos convidados estrangeiros.
Um dos temas centrais da reflexão do CETRANS em 2002 é a
avaliação transdisciplinar. Vários outros instrumentos foram e
serão criados e testados para a avaliação dos dois cursos sobre
o pensamento transdisciplinar que estão em andamento. Em
breve, pretendemos publicar um artigo específico sobre este
tema e ele também estará disponível no site.
8. Ações futuras
8.1 Em 2002
a) Conclusão dos dois cursos em andamento: “O Pensamento
Transdisciplinar” e “Tópicos Avançados em Transdisciplina-
ridade: a teoria de Charles S. Peirce e o pensamento contem-
porâneo”;
b) Reformulação e atualização do site;
c) Seqüência do desenvolvimento dos projetos em andamento.
8.2 Em 2003
a) Repetição dos dois cursos realizados em 2002, com os apri-
moramentos que se mostrarem necessários;
b) Atualização do site;
c) Publicação de mais alguns títulos da coleção transdisciplinar
fruto da parceria entre a Editora Triom e o CETRANS.
Educação e Transdisciplinaridade II
24
8.3 Em 2004
a) Realização de um evento internacional para fazer avançar a
pesquisa sobre a metodologia transdisciplinar e para a divul-
gação das ações transdisciplinares em andamento no mundo
b) Repetição dos dois cursos realizados nos dois anos anterio-
res, com os aprimoramentos que se mostrarem necessários;
c) Atualização do site;
d) Publicação de mais alguns títulos da coleção transdisciplinar
fruto da perceria entre o CETRANS e a Editora Triom.
Maria F. de Mello
Vitoria M. de Barros
Américo Sommerman
São Paulo, 27 de junho de 2002
Referências da Introdução
COLL, A. N. As Culturas não são Disciplinas: Existe o Transcul-
tural? In: Educação e Transdisciplinaridade II. São Paulo: Triom/
Unesco, 2002.
NICOLESCU, B. O Manifesto da Transdisciplinaridade. 2ª ed.
São Paulo: Triom, 2001.
PINEAU, G. A Autoformação no Decurso da Vida. Disponível
em: <http://www.cetrans.futuro.usp.br>. Acesso em: 27 de junho
de 2002.
Introdução
25
Palestra proferida por Michel Random por ocasião do
lançamento de seu livro O Pensamento Transdisciplinar
e o Real, Editora Triom, São Paulo, 2000, evento este que
fez parte do II Encontro Catalisador do CETRANS da Escola do
Futuro da USP
Michel Random é escritor, cineasta, fotógrafo e filósofo. Nesta
condição participou de inúmeros colóquios internacionais orga-
nizados pela UNESCO e Nações Unidas: Tsukuba (Japão, 1985),
Veneza (1986) no qual redigiu a apresentação na La Science face
aus confins de la connaissance (1987), Vancouver (1989), São
Paulo (1993), Arrabida (Portugal, 1994) e Tóquio (1995) do qual
foi o Relator. É signatário da ‘Declaração de Veneza’, da
‘Declaração de Vancouver’ e da ‘Mensagem de Tóquio’.
Em 1976, durante a realização do filme L’Art Visionnaire, foi
criado o movimento dos ‘Gravadores e pintores visionários’, ao
qual ele dedicou duas obras importantes: L’Art Visionnaire tomo
I, 1979, e tomo II, 1991.
Em 1982, Michel Random estimula os 12 primeiros números da
revista ‘Troisième Millénaire’ onde se manifesta um pensamen-
to ‘Transdisciplinar’ antecipado.
De 1983 a 1989 criou e estimulou as edições du Félin, na qual
publicou livros dedicados às ciências, aos símbolos e às
Tradições.
É autor de uns quinze livros e de vinte e cinco horas de filmes
para a televisão francesa, assim como de uma obra fotográfica
importante que foi objeto de inúmeras exposições.
26
O Território do Olhar - Michel Random
O Território do Olhar
Quem teria imaginado, por volta de 1900,
que em cinquenta anos saberíamos muito
mais e compreenderíamos muito menos?
Einstein, por volta de 1954
1. Qual é o território de nosso olhar?
Está nosso olhar limitado a nossos sentidos, a nossas ava-
liações, a nossa subjetividade? Um olhar que, infinitamente, se
refletiria em seu próprio espelho.
É possível perceber o real além do espelho? Um real glo-
bal, cósmico e subquântico, integrando, a cada bilionésimo de
segundo, a parte e o Todo? Mas, neste caso, em que nível se
situa aquilo que chamamos de realidade objetiva? Ela é inde-
pendente do observador ou, ao contrário, esta visão da unida-
de não realiza a travessia do espelho em si mesma?
Por que o território de nossos pensamentos, nossas aqui-
sições culturais, determinam em grande parte os fenômenos de
nossa vida? Em que somos dependentes ou independentes dos
fenômenos?
Como resistir ou mudar o modelo mecanicista de produ-
ção, consumo, poluição, que arrasta o planeta para o desastre?
É possível mudar nosso território cultural, para nós e para os
outros? Se a resposta é afirmativa, partindo de quais conceitos?
A descoberta da ponte entre ciência e tradição, modernidade e
sabedorias antigas, entre Oriente e Ocidente é possível?
Nosso olhar sobre a realidade determina a própria realida-
de. Mas a evolução do olhar, dos conceitos, das crenças é extre-
mamente lenta, ao passo que a situação planetária experimen-
ta, em todos os setores da tecnologia e da ciência, mas também
na deterioração da vida planetária, uma aceleração exponencial.
Avançamos ou regredimos neste último meio século? Per-
cebemos que, a despeito de todos os perigos colocados como
27
epígrafes pelos inúmeros pensadores e sábios, existe uma situa-
ção de fato, em que a destruição planetária se amplifica e a po-
breza cresce sem que surja a mínima alteração nos conceitos,
em nossa maneira de administrar nossas realidades. A crença
cega nos poderes da tecnologia apenas se reforça. O pensa-
mento mecanicista do século XIX construiu a mundo tal como
ele é. Fundamentalmente, um século depois do aparecimento
da visão quântica, a causalidade mais rígida determina conti-
nuamente nossa organização econômica e social e pouco ou
quase nada foi mudado no ensino.
Podemos nos perguntar que nova forma de pensamento
poderia mudar nossa realidade.
Como agir, como aprender a aprender? Mas, como mudar
o que quer que seja se não adquirimos estatura ou interiorida-
de suficiente para questionar o próprio território de nossos
pensamentos? Agimos individualmente e coletivamente em
relação ao sentido que atribuímos aos conceitos que formam
nossa realidade. Mas, não estamos confinados em um território
limitado? Somos capazes de enriquecer-nos com o sentido em
si, trazido pela ciência, pelas tradições e pelas grandes sabedo-
rias. Enriquecer-se de sentido não é enriquecer-se de vida?
O território do sentido é em si uma disciplina que nos leva
a olhar, a investigar o sentido, mas também nossa maneira de
ver, de interpretar o próprio sentido. Imaginando que pudésse-
mos abrir nosso cérebro e mostrar seus conceitos, sua enorme
geografia, seríamos capazes de ver suas possibilidades, suas
belezas e seus limites? Poderíamos olhar e ver como somos
fisiologicamente, mentalmente e espiritualmente constituídos?
Que tipo de ser somos nós, a que espécie espiritual pertence-
mos, que bem ou que mal somos capazes de cometer por nós
e pelos outros? Somos meros instrumentos ou seres conscientes
e atuantes na Terra e no cosmo? Este tipo de dúvida pode pare-
cer estranho. Mas, como progredir, ser apaixonadamente vivo,
se instauramos em nós uma rotina cultural e espiritual, talvez
confortável, mas repetitiva, ineficaz e enfadonha?
E o próprio cosmo, por que nos criou como somos?
Qual é o sentido de nossa vida, de nosso destino, para que
serve o homem, a natureza, o próprio cosmo e qual é sua fina-
Educação e Transdisciplinaridade II
28
O Território do Olhar - Michel Random
lidade? Colocar tais questões, parece, a priori, absurdo, pois
elas constituem o próprio território de nossa realidade. Mas
também podemos pensar, acreditar e imaginar que tudo está
ligado no cosmo, que tudo tem sentido, que “sendo as coisas o
que são”, é a imagem da ganga que contém o fruto ou a
semente e que o sentido oculto é esta semente que almeja, com
todas as suas forças, crescer e aparecer.
É quase impossível vislumbrar até que ponto nada está
separado na ordem orgânica e cósmica, em que o real é uma
interação instantânea entre o local e o global, o subjetivo e o
objetivo, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande.
Mas, o ser humano tem o privilégio de ter um cérebro e um
mental que tem o privilégio de separar, de dividir, de criar infi-
nitas disciplinas, infinitas maneiras de olhar os seres e as coisas
e de criar tantos conceitos e realidades quanto possa imaginar.
É portanto inútil tentar criar um distanciamento, olhar com
serenidade quem somos, de um ponto mais alto e mais distan-
te. Ter um recuo com qualquer tipo de bagagem cultural e espi-
ritual, usar de qualquer forma nosso cérebro para ver se ele
não é formado, como uma colcha de retalhos heteróclita, de
movimentos que o definem, de fascinações que o obcecam.
Olhar nosso cérebro como um território. Coloco esta questão
para esclarecer todos os aspectos objetivos ou subjetivos que
definem normalmente tal exame. Mas, será isso completamen-
te utópico? Não temos o privilégio de sermos conscientes de
nossa consciência. E nossa consciência ordinária não tem
vários graus ou níveis de consciência? Talvez não exista
nenhum território neste mundo para descansar a cabeça, mas
talvez exista um local sereno, uma zona do sentido em que
podemos, por um instante, ter um recuo, nos desligar do domí-
nio das idéias, dos seres, das coisas e, principalmente, de nós.
Em última análise, podemos nos recusar o enriquecimento
de sentido? Descobrir-nos um lugar, um espaço interno onde os
conceitos, as idéias, as crenças ou os paradigmas já não são
aceitos sem discriminação? A partir deste lugar podemos obser-
var se a aquisição é um território fortemente ancorado e indes-
trutível. Se não há nada a retirar, a acrescentar ou a modificar.
Talvez, nos melhores momentos assim como nos piores, possa-
29
mos viver confortavelmente sem este tipo de questionamento.
Mas o tempo da modernidade não tem equivalente na história,
pois vivemos um tempo diferente, o da grande aceleração. Não
dirigimos diariamente pacíficas charretes puxadas por cavalos,
mas bólidos a toda velocidade nas estradas. Definitivamente
existe uma relação entre a aceleração do tempo e a aceleração
do sentido. Participamos potencialmente de riquezas de infor-
mação quase ilimitadas, mas o sentido procede de uma alquimia
interna que precisa de tempo, de espaço e, acima de tudo, de
respiro. As riquezas do sentido estão aqui, elas também, abun-
dantes, a nosso alcance. Mas precisamos, a despeito da acelera-
ção do tempo, reaprender a dar tempo ao tempo, para lucrar-
mos com as inúmeras riquezas do sentido e transportá-las para
nosso território.
2. Para que serve o conhecimento?
Conhecer nossa relação com nós mesmos, com os outros?
Compreender o incognocível? O sentido e o objetivo da vida e
da energia cósmica? Chegar a níveis de realidade cada vez mais
sutis e indescritíveis? Ou simplesmente concretizar o desenvol-
vimento do ser, a harmonia, o crescimento físico e espiritual,
preservar a saúde, viver bastante?
3. As variáves veladas do ser
Se eliminarmos o conjunto dos fatores que determinam
quem somos, a hereditariedade, a cultura, a afetividade, a época
em que nascemos, os modelos religiosos e sociais, qual é a parte
‘objetiva’ do ser que não estaria sujeita ao conjunto destes mode-
los? Para a maioria dos seres humanos esta porcentagem de
objetividade é ínfima, quando não nula.
E, no entanto, existe um campo infinito no fundo de nós
mesmos, que encontramos nos sonhos, em uma emoção inten-
sa, em raros e misteriosos momentos de nossa vida. Um físico
o chamaria talvez de ‘campo das variáveis veladas’, um místico,
o sentimento da unidade infinita, o continuum fora do tempo,
a unidade perceptível do invisível dentro do visível.
Educação e Transdisciplinaridade II
30
O Território do Olhar - Michel Random
4. O salto quântico e mais além
Somos livres para perceber o universo como uma mecâni-
ca, para nos imaginar o centro e a consciência pensante do uni-
verso, para ver todas as coisas somente pela visão da ciência.
Somos livres também para perceber que o universo é antes a
expressão “de um grande pensamento do que de uma grande
máquina”, como já dizia o filósofo William James, em 1930.
Podemos constatar que a observação, a análise, nos tranquili-
zam e nos impedem de perceber o todo aleatório da realidade,
sua riqueza, sua complexidade e também sua imprevisibilidade
total. O que traduzimos pelo ‘Todo diferente das partes’.
5. Quando a consciência olha a consciência
O que diferencia o homem do chimpanzé é que tanto o
chimpanzé como o homem se olha no espelho, mas o homem
possui uma dupla consciência, é consciente da consciência de
se olhar no espelho. Atrás deste primeiro nível de consciência
consciente, insinua-se uma infinidade de outras que às vezes
percebemos nos sonhos ou em estados especiais. Algumas dis-
ciplinas sufis têm como único objetivo despertar e fazer com
que o indivíduo perceba níveis de consciência cada vez mais
sutis. Assim como, à medida que avançamos numa paisagem,
mais alteradas ficam suas aparências. Portanto, aqui também
existe uma infinidade de enfoques possíveis dependendo do
lugar e da distância de onde olhamos.
6. Conhecimento e desconhecimento.
Mais de 90% das energias do universo, que chamamos ma-
téria negra, continuam totalmente desconhecidas. O mesmo se
dá com o cérebro, com o cosmo ou o DNA. Nossos conheci-
mentos, por mais extensos que aparentemente pareçam, ainda
são uma frágil balsa num oceano ilimitado de desconhecimento.
Neste universo de desconhecimento, o homem manipula a
vida através dos genes, a energia através das partículas e conce-
de a si mesmo a ilusão de dominar o incognoscível, a inacredi-
31
tável complexidade das interações, atribuindo ao imprevisível e
ao aleatório Y o status da causalidade. Ora, constatamos todos
os dias a mutação dos vírus, a ineficácia crescente dos antibió-
ticos, o aparecimento de antigas doenças e de novas, a diminui-
ção da imunidade natural, etc, porque esquecemos que o ho-
mem e o ser vivo são um único todo e pertencem juntos ao
cosmo. Ora, o Todo não se deixa reduzir pela parte.
O físico Bernard d’Espagnat observa, entre tantos outros,
que o real está velado. Heisenberg demonstrou com seu ‘Princí-
pio de Incerteza’ que o observador modifica a observação. Mas
a observação, as estatísticas e a análise continuam sendo os dog-
mas inalteráveis do pensamento científico moderno. Goëdel
enuncia que todo processo aritmético é incapaz de descrever a
realidade, mas longe de ser um instrumento de conhecimento
ou do imaginário, as matemáticas formalizam toda a realidade e
os algoritmos transformam-se no supra-sumo do mundo infor-
mático e virtual. Representamos nossos conhecimentos na su-
perfície do espelho, dando-nos a ilusão de atravessá-lo.
7. Quem dá a ordem?
Por surpreendente que seja, o território da ciência não
pode resolver a questão: por que as coisas são o que são? Os
físicos que vão até as profundezas das energias subquânticas
consideram a matéria como um campo infinito de pura vibra-
ção. Mas observam que o instrumento científico, por mais refi-
nado que seja, é incapaz de responder à questão: quem dá a
ordem? As teorias contemporâneas mais sofisticadas acessam o
Todo com fascinantes teorias, que abordaremos mais adiante,
mas uma abordagem, por sutil que seja, do real, apenas roça
nele, mesmo que momentaneamente nos faça dar um passo à
frente. Aquele que dá a ordem permanece desconhecido.
8. Aprender a aprender
O que resta a fazer, a título pessoal ou universitário, é for-
çosamente se informar e aprender. Mas, quando o território da
informação, da descrição das coisas e fenômenos se basta por
Educação e Transdisciplinaridade II
32
O Território do Olhar - Michel Random
si só, o sentido desaparece, quando não até se transforma em
inimigo. O pensamento causal detesta o sentido, porque ele é
múltiplo, complexo e desvenda processos não convencionais.
A informação torna-se um dogma que prima sobre o sentido.
O porquê e o como introduzem níveis de realidade que
questionam. O sentido escapa do território. Até o momento em
que o buscador de sentido, o filósofo ou o poeta sejam trans-
formados em diabos, todo buscador de sentido é um suspeito
de heresia.
A questão reside na separação entre a ciência, o ‘laborató-
rio’ e o sentido. Ora, os aspectos sutis e qualitativos não são nem
observáveis nem constantes. Pode-se observar a atividade do cé-
rebro quando ele pensa, age ou sonha, não se pode observar
nem o pensamento em si, nem a consciência, nem as emoções.
O que vem a ser 90% de nossa realidade. Reduzir o sentido e o
qualitativo é caminhar com uma perna só e é também privilegiar
o mecanismo do pensamento, da causalidade racional, sem con-
siderar a complexidade do mundo vivo. Decisões envolvendo os
indivíduos, a economia, a saúde, são tomadas e, quando a rea-
lidade resiste, quando o ponto de vista mecanicista desaba, o
preço a pagar é exponencial, como acaba de ser constatado em
relação aos ruminantes alimentados com proteínas animais. Este
exemplo, entre tantos outros, introduz a idéia que muitas deci-
sões que se esquivam da complexidade do ser vivo são tomadas
com o risco de um fim total ou parcial da vida planetária.
Se os dogmas e os sistemas não datam de hoje, os dogmas
modernos confirmam-se como mais ameaçadores que mil bom-
bas atômicas. Se recusamos uma atitude fatalista ou passiva, é
urgente perguntar como mudar o olhar antes que o pior engu-
la o planeta. Talvez, em algum lugar, tenham escrito que o Oci-
dente tem a missão de dominar todo o planeta com sua visão
mecanicista para fazer com que o céu desabe melhor sobre sua
cabeça. Mas, talvez, ainda haja tempo para aprender a aprender
e escapar do desastre.
9. O sentido e os sentidos
Uma escala de grandeza infinitamente grande ou pequena
33
tem sentido? O que não for representável no espírito humano
não tem sentido. É, por exemplo, uma espantosa informação
saber que o big bang inicial é calculado na escala de 10 eleva-
do a -35 por segundo, ou seja, quando o universo tinha o tama-
nho de um milésimo de bilionésimo de bilionésimo de bilioné-
simo de centímetro (10 elevado a -30).
Uma dimensão muito infinitesimal é real ou virtual? Da
mesma forma, uma partícula, cujo rastro fotográfico é detecta-
do em uma câmara de Wilson, é virtual ou real? E se o conjun-
to da matéria existente no universo for determinado pela velo-
cidade das partículas, o universo é real ou virtual?
É indiscutível que, se podemos com a tecnologia aumen-
tar e refinar o mundo de nossos cinco sentidos, todas as coisas
devem reintegrar o cérebro humano. Ora, sendo o que somos,
a questão reside menos no inconcebível do que nas faculdades
que temos de conceber. Ora, é impossível ver o que não é con-
cebível.
Einstein inúmeras vezes evocou o ‘salto conceitual’ impos-
to pelas novas teorias ou descobertas da física. Um salto que
fica maior ainda quando se trata de abordar o mundo subquân-
tico que instaura uma visão, não das propriedades de partícu-
las, mas a partir do universo das partículas: “Há muito tempo
me convenci que não se poderá encontrar esta subestrutura por
meio de uma via construtiva partindo do comportamento das
coisas físicas conhecidas empiricamente, pois o salto conceitual
necessário ultrapassaria as forças humanas”.
Existem provavelmente seres excepcionais que têm facul-
dades mais desenvolvidas que outros. Mas uma mera constata-
ção diria que não podemos ser nem melhores nem piores do
que somos. Isso quer dizer que o homem possui um campo de
visão, olhos abertos numa certa medida e que não poderá ir
além disso? Ou seja, não podemos ver, definitivamente, senão
o que nosso território mental ou conceitual permite que veja-
mos. A questão é: determinados nosso território, nossas facul-
dades mentais e nossos sentidos, a natureza exprime uma
intenção, um limite cuja ultrapassagem fica implicitamente
proibida?
Educação e Transdisciplinaridade II
34
O Território do Olhar - Michel Random
10. Como ver de outra forma?
É possível sonhar e conceber que um dia haverá uma dis-
ciplina ensinando como ver de outra forma. Imagino que seja
possível escolher um conceito ou uma palavra e, assim como
aconteceu com a roda e seu encaixe no eixo, modificar os raios
do olhar até que eles dêem uma volta completa. Suponhamos a
escolha da palavra energia tendo em vista todos os enfoques
modernos, científicos e culturais que a caracterizam, depois
aquelas legadas pela China, Japão ou ilhas do Pacífico. Veríamos
como os diferentes aspectos e níveis de realidade desta palavra
podem variar, mas perceberíamos também como esta palavra
pode assumir aspectos insuspeitos, até mesmo incompreensíveis
para nós, de outras tradições. Por exemplo a palavra Qi, que
quer dizer também energia em japonês, provocou uma situação
terrível no Colóquio Internacional de Tsukuba, em 1984. Foi o
primeiro Colóquio Oriente-Ocidente e reuniu 40 participantes.
Os japoneses usavam a todo momento esta palavra Qi, que soa-
va estranhamente ou como algo esotérico aos ouvidos dos cien-
tistas ocidentais, a ponto de no terceiro dia pedirem a suspen-
são do Colóquio. Este incidente, que não teve consequências
imediatas, cavou um abismo de incompreensão e de conse-
quências que perdura até nossos dias. O que quer dizer que
uma única palavra pode ser igual ao que diz o provérbio “Um
único grão de areia é como mil Budas” e pode refletir o Todo.
O território do sentido não é, portanto, anódino: ele fo-
menta discórdias, muitas vezes ferrenhas, entre os homens. O
homem sempre olhou a realidade através de diferentes perspec-
tivas. Exceto quando se tratava de pensamentos provenientes de
sabedorias e de tradições milenares possuidoras de uma estabi-
lidade que permitia a tradução dos conceitos na vida espiritual,
social, econômica e cultural. O pensamento moderno passou
pelas mutações, pela aceleração do tempo, e os paradigmas ou
dogmas, ou até mesmo as modas da atualidade, substituem o
pensamento e são, provisoriamente, o palco de violentos con-
frontos. Pude percebê-lo ao longo dos vários colóquios interna-
cionais dos quais participei. Os paradigmas são construções
arbitrárias nas quais acreditamos até que desmoronem, mas,
35
mesmo que passageiros, podem ser extremamente agressivos. O
território dos paradigmas lembra muito um campo de batalha.
Efetivamente, Max Planck, que sofreu muito para fazer com que,
em sua época, entendessem que uma partícula era ao mesmo
tempo corpúsculo e onda, se perguntava: qual é o melhor jeito
de convencer um adversário? Resposta: esperar que ele morra!
A luta das idéias e dos paradigmas diz respeito apenas a
nossos conceitos de realidade. A realidade pode ser concebida
como um conjunto sutil e orgânico de interações do qual faze-
mos parte, ao passo que o real nos envolve com seu manto
insondável. A ciência e a física quântica contribuem, sem dúvi-
da, em nossos dias, com esclarecimentos apaixonantes. Temos
certeza que não existe nenhum pequeno objeto fundamental. O
procedimento experimental nos assegura. No entanto, há milê-
nios, inúmeras tradições exprimiram a idéia que o universo era
constituído de pura vibração, sem que nele fosse possível des-
cobrir o menor objeto infinitesimal. É o caso, que muitas vezes
se cita, do Tao na China, mas este mesmo conceito pode ser
encontrado no pensamento xintoísta no Japão e na maioria das
tradições xamânicas.
Recuando um pouco vemos que aquilo que faz o homem
progredir não está na afirmação, mas na abertura da visão, na
tolerância e principalmente na maiêutica, que cultiva a arte so-
crática do questionamento. Existe, entre a certeza e a incerteza,
o território das variáveis onde precisamente o homem, a ques-
tão e a resposta são colocados em um mesmo processo. Pode-
mos tomar consciência, não do real, mas do tipo de realidade
fenomenológica onde estamos: em outras palavras, o fato que
a cada instante nós elaboramos nossa própria realidade. A his-
tória da física quântica torna-se, por sua vez, a das variáveis
veladas que modificam ou fazem com que nossas certezas
dêem um salto quântico ou cósmico.
11. Imaginar o imaginário
A palavra imaginário serve, ela também, em nossos dias
para que aquelas variáveis veladas apareçam, sem ser, a priori,
provocantes. Em minha juventude, o imaginário era qualificado
Educação e Transdisciplinaridade II
36
O Território do Olhar - Michel Random
de ‘imaginação’, porque nossa educação refletia a idéia que,
como a ciência trazia respostas exatas e inevitáveis, tudo o que
estivesse além delas só podia ser utopia. O imaginário era, por-
tanto, um inimigo do espírito.
Atualmente o imaginário é tolerado como criador de novos
conceitos, idéias que podem materialmente nos enriquecer num
piscar de olhos. Mas, quem nos seguiria se definíssemos a rea-
lidade como um imaginário criador que oferece um campo infi-
nito de Possibilidades? Um campo que podemos percorrer como
um jogo com casas perigosas onde podemos a cada instante cair
na armadilha. Estas casas poderiam ser chamadas de identifica-
ção, inflexibilidade mental, paradigma, etc. Aquele que previu
as armadilhas chega ao fim do percurso são e salvo. A recom-
pensa? Um novo jogo do imaginário ainda mais complexo.
O cosmo possui um imaginário tão infinito e desconcer-
tante que, em troca, nos torna conscientes dos limites de nosso
próprio imaginário. O desafio cósmico é cheio de humor: ele
dá ao homem a aparência de um universo material e coerente,
como um belo palácio que não tem nenhum alicerce. Ocupar
o palácio é assumir o risco de vê-lo desabar em cima de si
mesmo. Os antigos sábios avaliavam o grau de entropia que
reside em toda ação. Eles ensinavam a ver de longe, a manter
distância, a deixar o campo vibratório das forças se decantar,
portanto, a evitar toda ação precipitada, admitindo a possibili-
dade de agir com extrema rapidez na hora certa. O cosmo é
incognocível mas paradoxal. Ele é ao mesmo tempo ordem,
caos e aleatório, associando o contínuo e o descontínuo. O
imaginário situa-se entre estes dois aspectos, como a articula-
ção vibratória que liga os mundos.
O imaginário é a asa que surge quando a causalidade
demasiadamente opressora da dogmática mental tenta impor
uma realidade dirigista. É um espaço onde a poesia, a criativi-
dade, a expansão interior assumem seus direitos. Quando o
imaginário se deixa penetrar pela inspiração, ele se transforma
em visão. É o exemplo de Turner, dominado pela beleza da luz,
em que a pincelada de cor vibra também como uma luz. Existe
um estado de percepção, de fusão sutil entre o estado vibrató-
rio da luz e a vibração do ser que se traduz sobre a tela. É tam-
37
bém a atitude dos antigos pintores chineses que podiam con-
templar uma paisagem durante dias e reproduzi-la em seu ate-
lier. Como se o imaginário derradeiro recriando a paisagem
refletisse a essência pura da paisagem, reimaginada no interior
de si mesmo. Assim, o imaginário reveste o espaço interno do
ser e, depois de ter sido aquele joguete das circunstâncias que
abre todas as possibilidade, faz experimentar a harmonia sutil
da pura unidade.
12. Os novos conceitos que mudaram o século
Da famosa ‘Declaração de Veneza’ que foi a base da Trans-
disciplinaridade, em 1986, gostaria de reter esta frase: “O estudo
simultâneo da natureza e do imaginário, do universo e do ho-
mem, poderia assim nos aproximar mais do real e permitir que
enfrentemos melhor os diferentes desafios de nossa época”.
Frase que também poderia ser “Os desafios de nossa
época se medem pelas capacidades que nosso imaginário po-
derá colocar em ação para associar o universo e o homem”.
A física quântica abriu um imaginário inconcebível, sem
precedente, na história da ciência. Quando Max Planck desco-
briu em 1900 que a partícula é, ao mesmo tempo, corpúsculo
e onda, esta realidade com dois lados o perturbou. O mesmo se
deu com Einstein, posto diante das perspectivas fantásticas que
decorriam do famoso ‘Paradoxo de Einstein, Podolsky, Rosen-
berg’ (“dois sistemas que interagiram ou que vão interagir, não
são separáveis, mesmo que entre eles não exista nenhuma co-
nexão presente”). Mas, como conceber que uma informação
possa instantaneamente se transmitir no espaço-tempo, se ne-
nhum observador vem perturbar a observação? Como imaginar
que uma informação possa ir do passado ao futuro e do futuro
para o passado? Nos anos 30, quando o espírito positivista do-
minava, o imaginário dos físicos não podia conceber que todas
as leis da física clássica pudessem ser violadas a tal ponto. Já
em 1935, Schrödinger dizia que aceitar o Paradoxo era ‘magia’.
De forma que em 1949, o próprio Einstein retrocedeu e refutou
sua teoria.
Em 1958, Louis de Broglie, voltou à carga denunciando
Educação e Transdisciplinaridade II
38
O Território do Olhar - Michel Random
sua incompatibilidade com o espaço-tempo. Em suma, todos os
grandes homens de ciência se uniram para colocar o paradoxo
inoportuno na geladeira. Ele vinha perturbar toda a racionalida-
de de um mundo lógico observável e quantificável, abrindo o
território de um imaginário fantástico demais para admiti-lo.
Será preciso esperar 1983, para que um físico, Alain Aspect,
prove pela experimentação que Einstein estava certo: a não-
separabilidade está confirmada. “Se minhas teorias sobre o uni-
verso estiverem certas, dizia Einstein, as pessoas precisarão de
faculdades com quatro dimensões para viver neste universo.”
E poderíamos multiplicar os exemplos. O nível subquânti-
co continua apresentando surpresas para os físicos. Citemos a
teoria do Bootstrap do físico americano J. F. Chew, de onde
surgiu o conceito de autoconsistência cósmica: o fato que a
cada bilionésimo de segundo cada partícula no universo existe
levando em consideração a existência de todas as outras partí-
culas ao mesmo tempo.
Questão: As partículas são uma forma de ‘pensamento
cósmico’?
A física subquântica inaugura outros imaginários insondá-
veis que poderiam ser objeto de longas exposições.
Convém lembrar outros níveis de realidade: a realidade
implícita e explícita de David Bohm, semelhante ao bootstrap,
pois existe coerência entre as energias ou as ressonâncias, entre
o invisível (implicado) e o visível. Não se pode, efetivamente,
estudar o que quer que seja, por exemplo, a adaptação ou o
desaparecimento das espécies, sem considerar estes dois fato-
res. A lógica das aparências vem sempre recoberta por fatores
imprevisíveis em que, como tão bem explica o neurobiologista
americano Karl Pribrani: o Todo é diferente das partes.
Karl Pribrani descobriu a estrutura holográfica do neurônio.
Cada neurônio contém também a informação do Todo. O que
explica porque, mesmo com uma parte amputada, o cérebro
pode parcialmente se readaptar. Isso quer dizer que, no que diz
respeito ao neurônio ou à célula, o território local é sempre res-
ponsável, para o melhor ou para o pior, pelo Todo do organis-
mo. Por isso, cada caso é, definitivamente, sempre único.
39
13. Ciência e tradição
O Ocidente, ainda determinista e causal, está longe de ter
integrado uma visão holística do real em que a análise objetiva
integre plenamente os níveis mais subjetivos ou misteriosos do
ser. O que faz mais espontaneamente a cultura oriental, que
continuou holística desde suas origens xamânicas nas quais o
homem não estava separado da natureza e desenvolveu uma
sensibilidade e uma inteligência muitas vezes admiravelmente
adaptadas à inteligência e ao imaginário das energias naturais.
A autoconsistência do cosmo significa que nada está sepa-
rado no universo e que cada ser, cada átomo faz parte desta
unidade misteriosa. Procuramos muitas vezes um território que
ligue ciência e Tradições, Oriente e Ocidente, passado e pre-
sente e que seja também um território do futuro, aquele da
Grande Mutação, que em 1995, a ‘Mensagem de Tóquio’ lem-
brava, quando falava de uma era de luzes. Esta visão da unida-
de cósmica criadora é a pedra angular que une melhor e vai
além de todo conceito ou paradigma. Einstein, que tinha uma
clara consciência disso, dizia: “Um ser humano é uma parte do
todo que chamamos ‘Universo’, uma parte limitada pelo espa-
ço e pelo tempo. Ele mesmo observa seus pensamentos e seus
sentimentos como algo separado do resto – uma espécie de ilu-
são de ótica da consciência.”
O homem e o universo resumindo-se numa só coisa: uma
declaração aprovada doravante pelos maiores nomes da física
e que efetivamente une ciência e tradição, Oriente e Ocidente.
As bases de um novo território, fonte de uma futura união do
pensamento planetário, são erguidas.
Um obstáculo considerável permanece quanto aos fatos: a
particularidade da ciência é querer observar os fatos, sem ten-
tar, obrigatoriamente, lhes dar sentido. Um fato observável e
constante é científico, o sentido variável e aleatório não é, por-
tanto, nem observável, nem científico. Terrível dicotomia igual
àquela de um espírito mecanicista que separa o real do senti-
do. Esta separação tão desintegradora quanto uma bomba atô-
mica é o maior choque dos tempos modernos.
Durante milênios o homem viveu com a árvore do sentido.
Educação e Transdisciplinaridade II
40
O Território do Olhar - Michel Random
Existia um continuum absoluto entre o Céu e a Terra. Todos os
seus atos, gestos e pensamentos, sua relação com o visível e o
invisível tinham um sentido, uma coerência, um valor sagrado.
A perda do sentido, a dessacralização, a ruptura entre o Céu e a
Terra, entre o homem e o cosmo, faz do homem moderno um
ser desintegrado, sem parâmetros, sem unidade. Um ‘homem
fragmentado’, dizia o sociólogo Georges Friedman.
Isso nos leva a falar outra vez do Colóquio Internacional
de Veneza de 1986, que pela primeira vez tinha exatamente
escolhido como tema ‘Ciências e Tradições’. O assunto era
então, revolucionário. Eu manteria esta frase da ‘Declaração de
Veneza’: “O encontro inesperado e enriquecedor da ciência e
das diferentes tradições do mundo nos permite pensar no sur-
gimento de uma nova visão da humanidade”.
A expressão ‘uma nova visão da humanidade’ introduz uma
espécie de sonho. Imaginemos que um dia os homens parem de
ter idéias a respeito da natureza e tentem realmente entender a
inteligência da natureza. Imaginemos que já não exista Oriente
nem Ocidente mas um único planeta do sentido. Imaginemos
encontrar seres suficientemente apaixonados e competentes
para procurar o sentido exatamente onde ele esteja, na ciência,
nas tradições milenares, nas antigas sabedorias. Temo que este
sonho ainda seja acessível apenas a uma pequena minoria.
Gostaria de dar um exemplo a respeito do Japão. Um pro-
fessor e escritor japonês, Tadao Umesao, costumava dizer que
os japoneses eram tão difíceis de entender como os marcianos.
E inúmeras vezes, durante as várias viagens que fiz ao Japão,
pude ver como ele tinha razão. Tinha exatamente feito um
filme sobre a religião xintó do Japão. Se abrirmos um dicioná-
rio, a definição do xintó é: religião animista. Mas se tentarmos
entender o xintó, podemos descobrir uma extraordinária inteli-
gência da natureza e das energias cósmicas. O que faz do xintó
uma religião sempre moderna, mas inexportável, porque um
ocidental não está nem um pouco preparado para entender sua
riqueza e complexidade. E como o território do sentido é tão
diferente, é preciso um tempo de adaptação.
O que significa que, no que concerne à tradição, a busca
do sentido é árdua se não quisermos nos deixar levar pelas
41
aparências e por nossos códigos culturais de adaptação e de
tradução. Se, por exemplo, escolho a palavra Kami, que teori-
camente deveria ser traduzida por deus ou espírito, eu adapto,
na verdade a palavra Kami à nossa cultura. Se tentar realmente
defini-la, precisaríamos de muitas páginas para fazê-lo e preci-
saríamos ainda recorrer a vários graus e níveis de conhecimen-
to. Por isso nunca nenhum japonês se arriscou a explicá-la.
E este exemplo é válido para muitas outras tradições. O
que significa que o território do sentido é, apesar das aparên-
cias, de uma complexidade extraordinária. De mais a mais,
qualquer tentativa de forçar a compreensão do sentido, criará
um absurdo e a ilusão de se ter entendido. Henri Corbin e
Mircea Eliade, a quem coloquei esta dificuldade, tinham a
mesma opinião. E ouvindo J. E. Chew tentar fazer-me entender
o que é um ‘acontecimento discreto’ em física, sou forçado a
reconhecer que, mesmo em física quântica, o território do sen-
tido é protegido por mil dragões.
Devemos, então, perder a esperança de uma nova visão da
humanidade como a queriam os pensadores dos Colóquios de
Veneza ou de Tóquio? Creio que este futuro território do senti-
do, o da união entre ciência e Tradições, entre Oriente e
Ocidente é uma idéia, uma força em movimento, visto que mui-
tos cientistas, filósofos, artistas e poetas manifestaram inúmeras
vezes esta aspiração, ao longo deste último meio século. Existe
um imenso trabalho a ser feito. O planeta precisa viver, não
morrer, e com esta consciência, com esta visão unitária que rein-
tegra o homem ao sentido e à unidade visível e invisível, reside
uma energia cósmica que é uma razão de se ter esperança.
Precisamos também construir novas ciências, entre as
quais aquela de ‘aprender a aprender’, que consiste em desen-
volver serenamente a paisagem do sentido. Aquela da escuta
que integra, na vida cotidiana, os tesouros do sutil, os aspectos
quânticos e vibratórios do ser vivo. “Um homem espiritual – me
dizia um grande mestre do xintó, Yamakague – é, entre nós,
aquele que tem uma influência profunda sobre a realidade.”
Educação e Transdisciplinaridade II
42
Conferência proferida no II Encontro Catalisador do
CETRANS da Escola do Futuro da USP, realizado no Guarujá,
São Paulo, de 8 a 11 de junho de 2000
Basarab Nicolescu – Físico teórico do Centro Nacional de Pes-
quisa Científica da França (C.N.R.S.). Fundador e Presidente do
Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares
(CIRET). Autor de várias obras fundadoras do pensamento
transdisciplinar, entre as quais: O Manifesto da Transdisciplina-
ridade, 2ª ed., São Paulo, Ed. Triom, 2001; Ciência, Sentido e
Evolução, São Paulo, Ed. Attar, 1998; Nous, la particule et le
monde, Paris, ed. Le Mail, 1985.
Educação e Transdisciplinaridade II
44
Fundamentos Metodológicos
para o Estudo Transcultural
e Transreligioso
1. Introdução:
Em minha palestra do ano passado
1
, analisei a metodolo-
gia da transdisciplinaridade, que foi expressa mediante três
postulados
2
:
1. Há, na Natureza e no nosso conhecimento da
Natureza, diferentes níveis de Realidade e,
correspondentemente, diferentes níveis de percepção.
2. A passagem de um nível de Realidade para outro é
assegurada pela lógica do terceiro incluído.
3. A estrutura da totalidade dos níveis de Realidade ou
percepção é uma estrutura complexa: cada nível é o que
é porque todos os níveis existem ao mesmo tempo.
No ano passado descrevi as bases históricas destes três
postulados. Os dois primeiros tiram sua evidência experimen-
tal da física quântica, enquanto o último tem sua fundamenta-
ção não só no campo da física quântica, mas também em uma
variedade de ciências exatas e humanas.
É interessante notar que os três postulados da transdiscipli-
naridade são o equivalente dos três postulados da física moder-
na como formulados por Galileu Galilei:
1. Há leis universais, de caráter matemático.
45
1
Basarab Nicolescu, Um Novo Tipo de Conhecimento – Transdisciplinaridade, em Educação e Transdisci-
plinaridade, Brasília, UNESCO, 2000, e em http://www.cetrans.futuro. usp.br/palestra_basarab.htm
2
Basarab Nicolescu, La Transdisciplinarité, Manifeste, Le Rocher, Monaco, coll. ‘Transdisciplinarité’, 1996;
(O Manifesto da Transdisciplinaridade, Ed. Triom, São Paulo, 2ª edição, 2001).
2. Essas leis podem ser descobertas por experimentos
científicos.
3. Esses experimentos podem ser perfeitamente repetidos.
No caso da ciência moderna, a universalidade diz respei-
to às leis da física e, na transdisciplinaridade, diz respeito aos
níveis de Realidade. Contudo, a linguagem é diferente: mate-
mática, no caso da ciência moderna, e um novo tipo de lingua-
gem, de natureza simbólica, no caso da transdisciplinaridade.
As leis da física são descobertas através de experimentos
que dizem respeito apenas ao Objeto, enquanto nos níveis de
Realidade são descobertos através de experimentos envolven-
do tanto o Sujeito quanto o Objeto. A lógica da ciência moder-
na é principalmente binária, enquanto a lógica da transdiscipli-
naridade é ternária.
A reprodutibilidade se aplica em ambos os casos.
É importante notar que é possível assumir a validade dos
três postulados da transdisciplinaridade independentemente de
suas raízes históricas em algumas áreas da ciência moderna. Em
outras palavras, a transdisciplinaridade não se apoia apenas nu-
ma transferência a partir da ciência moderna: isto seria um pro-
cedimento epistemológico e filosoficamente errado. Mediante
seus aspectos mais gerais, a ciência moderna permitiu que os
três postulados da transdisciplinaridade fossem identificados,
mas, uma vez que foram formulados, eles têm uma validade
muito mais ampla do que na própria ciência moderna. Este é
precisamente o ponto de vista adotado nesta conferência, na
qual tento analisar como os postulados da transdisciplinaridade
podem nos conduzir a uma fundamentação metodológica para
o estudo transcultural e transreligioso.
O presente estudo é um trabalho ainda em andamento,
exposto pela primeira vez aqui, no encontro do CETRANS, com
a finalidade de estimular os debates e a pesquisa.
Educação e Transdisciplinaridade II
46
2. A abordagem transdisciplinar da Natureza e
do conhecimento
A abordagem transdisciplinar da Natureza e do conheci-
mento pode ser descrita pelo diagrama mostrado na Figura 1.
Figura 1: O Objeto transdisciplinar: o Sujeito transdisciplinar e o termo de
interação.
Na parte esquerda estão desenhados, simbolicamente, os
níveis de Realidade:
{ NR
n
, … , NR
2
, NR
1
, NR
0
, NR
-1
, NR
-2
, … , NR
-n
}
O índice n pode ser finito ou infinito
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
47
Aqui, o significado que damos para a palavra ‘realidade’ é,
ao mesmo tempo, pragmática e ontológica.
Entendemos por ‘Realidade’ (com R maiúsculo) primeira-
mente aquilo que resiste às nossas experiências, representações,
descrições, imagens e mesmo às formulações matemáticas.
Considerando que a Natureza participa no ser do mundo,
temos que dar uma dimensão ontológica ao conceito de Rea-
lidade. Realidade não é uma mera construção social, o consen-
so de uma coletividade ou algum acordo intersubjetivo. Tam-
bém tem uma dimensão trans-subjetiva. Exemplo: dados expe-
rimentais podem arruinar a mais bela teoria científica.
Claro que temos de distinguir as palavras ‘Real’ e ‘Realida-
de’. Real designa aquilo que é, enquanto Realidade diz respei-
to à resistência na nossa experiência humana. Por definição, o
‘Real’ está velado para sempre; enquanto a ‘Realidade’ é aces-
sível ao nosso conhecimento.
Por ‘nível de Realidade’ – noção que introduzi pela primei-
ra vez em minha obra Nous, la particule et le monde
3
e depois
desenvolvi em vários artigos
4
– designo um conjunto de siste-
mas que são invariáveis sob certas leis: por exemplo, as entida-
des quânticas estão subordinadas às leis quânticas, que são
radicalmente diferentes das leis do mundo físico. Isto é, dois
níveis de Realidade são diferentes quando, ao se passar de um
para o outro, há uma quebra nas leis e uma quebra nos concei-
tos fundamentais (como, por exemplo, a causalidade).
Os níveis de Realidade são radicalmente distintos dos ní-
veis de organização como estes foram definidos nas aborda-
gens sistêmicas. Os níveis de organização não pressupõem uma
quebra dos conceitos fundamentais: vários níveis de organiza-
ção podem aparecer em um único nível de Realidade. Os níveis
Educação e Transdisciplinaridade II
48
3
Basarab Nicolescu, Nous, la particule et le monde, Paris, Le Mail, 1985.
4
Basarab Nicolescu, Levels of Complexity and Levels of Reality, em “The Emergence of Complexity in Mathe-
matics, Physics, Chemistry, and Biology”, Atas das Sessão Plenária da Academia Pontifícia de Ciências, 27-
31 de outubro de 1992, Casina Pio IV, Vaticano, Ed. Pontifícia Academia Scientiarum, Cidade do Vaticano,
1996 (distribuído por Princeton University Press); Basarab Nicolescu, Gödelian Aspects of Nature and
Knowledge, em ‘Systems’ – New Paradigms for the Human Sciences”, Walter de Gruyter, Berlin-New York,
Ed. Gabriel Altmann and Wlater A. Koch, 1998 (Aspectos gödelianos da natureza e do conhecimento, em
www.cetrans. futuro.usp.br); Michel Camus, Thierry Magnin, Basarab Nicolescu and Karen-Claire Voss,
Levels of Representation and Levels of Representations and Levels of Reality: Towards an Ontology of Science,
em The Concept of Nature in Science and Theology (part II), Genève, Labor et Fides, 1998, pp. 94-103;
Basarab Nicolescu, Hylemorphism, Quantum Physics and Levels of Reality, em Aristole and Contemporary
Science, Vol. I, New York, Peter Lang, 2000, pp. 173-184.
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
de organização correspondem a diferentes estruturas das mes-
mas leis fundamentais. Por exemplo, a economia marxista e a
física clássica pertencem ao mesmo nível de Realidade.
O surgimento de no mínimo três diferentes níveis de
Realidade no estudo dos sistemas naturais – o nível macrofísi-
co, o nível microfísico e o espaço-tempo cibernético – é um
evento maior na historia do conhecimento. Isso pode nos levar
a reconsiderar nossa vida individual e social, a dar uma nova
interpretação ao conhecimento antigo, a explorar o conheci-
mento de nós mesmos de maneira diferente, aqui e agora.
A existência de diferentes níveis de Realidade tem sido
afirmada por diferentes tradições e civilizações, porém essa afir-
mação estava fundamentada no dogma religioso ou na explo-
ração do nosso universo interior.
No nosso século, num esforço para questionar os funda-
mentos da ciência, Edmund Husserl
5
e outros estudiosos detec-
taram a existência de diferentes níveis de percepção da Reali-
dade a partir do sujeito-observador. Contudo, esses pensadores
foram marginalizados pelos filósofos acadêmicos e mal com-
preendidos pelos físicos, com cada área tendo sido apreendida
na sua respectiva especialização. Na verdade, esses novos pen-
sadores foram pioneiros na exploração de uma realidade mul-
tidimensional e multirreferencial, na qual o ser humano é capaz
de recuperar seu lugar e sua verticalidade.
A perspectiva que estou apresentando aqui está totalmen-
te de acordo com aquela dos fundadores da mecânica quânti-
ca: Werner Heisenberg, Wolfgang Pauli e Niels Bohr.
Na verdade, Werner Heisenberg chegou muito perto, em
seus escritos filosóficos, do conceito de ‘nível de Realidade’. Em
seu famoso Manuscript of the year 1942 (publicado somente em
1984) Heisenberg, que conhecia bem Husserl, introduz a idéia
de três regiões de realidade, capaz de dar acesso ao próprio
conceito de ‘realidade’: a primeira região é aquela da física clás-
sica; a segunda, da física quântica, da biológica e dos fenôme-
nos psíquicos; e a terceira, da religião e das experiências filosó-
ficas e artísticas
6
. Essa classificação tem um fundamento sutil: a
49
5
Edmund Husserl, Méditations cartésiennes, Paris, Vrin, 1966.
6
Idem, ibidem.
conectividade cada vez maior entre o Sujeito e o Objeto.
O ponto de vista transdisciplinar nos permite considerar
uma realidade multidimensional, estruturada por múltiplos ní-
veis, ao invés do nível único, da realidade unidimensional do
pensamento clássico
Conforme a abordagem transdisciplinar, a Realidade é es-
truturada em diferentes níveis. E o fato de o número deles ser
finito ou infinito não é uma questão fundamental para as con-
siderações que farei a seguir. Para a clareza da exposição, supo-
nhamos que esse número seja infinito (ou seja, tomamos n
ϱ na Figura 1).
Dois níveis adjacentes na Fig. 1 (digamos, NR
0
e NR
1
) es-
tão conectados pela lógica do terceiro incluído, uma lógica no-
va se comparada à lógica clássica.
A lógica clássica está fundamentada em três axiomas:
1. O axioma da identidade: A é A.
2. O axioma da não-contradição: A não é não-A.
3. O axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro
termo T (‘T’ de ‘terceiro’) que é ao mesmo tempo A e
não-A.
Como expliquei no ano passado, chega-se imediatamente à
conclusão de que os pares de contraditórios mostrados pela físi-
ca quântica são mutuamente exclusivos, pois ninguém pode
afirmar a validade de uma asserção e de seu oposto ao mesmo
tempo: A e não-A.
A maior parte das lógicas quânticas
7
modificou o segundo
axioma da lógica clássica – o axioma da não-contradição – intro-
duzindo a não-contradição com vários valores de verdade no lu-
gar do par binário (A e não-A). A história dará crédito a Stépha-
ne Lupasco (1900-1988) por ter mostrado que a lógica do tercei-
ro incluído é uma lógica verdadeira, formalizável e formalizada,
polivalente (com três valores: A, não-A e T) e não contraditória
8
.
Nossa compreensão do axioma do terceiro incluído – exis-
Educação e Transdisciplinaridade II
50
7
T. A. Brody, On Quantum Logic, em Foundation of Physics, vol. 15 nº 5, 1984, pp. 409-430.
8
Stéphane Lupasco, Le Principe d’antagonisme et la logique de l’énergie, Le Rocher, Paris, 1987 (2ª edição),
prefácio de Basarab Nicolescu; Stéphane Lupasco – L’homme et l’oeuvre, coll. “Transdisciplinarité”, Le
Rocher, Mônaco, 1999 (Stéphane Lupasco – O Homem e a Obra, Ed. Triom, São Paulo, 2001).
te um terceiro termo que é ao mesmo tempo A e não-A – é
completamente clareada quando a noção de ‘níveis de Rea-
lidade’ é introduzida.
Para podermos obter uma imagem clara do significado do
terceiro incluído, representamos na Fig. 2 os três termos da no-
va lógica – A, não-A e T – e representamos a dinâmica associa-
da a eles por um triângulo no qual um vértice está situado em
um nível de Realidade e os dois outros em outro nível de
Realidade. O meio incluído é de fato um terceiro incluído. Se
permanecemos em um único nível de Realidade, toda a mani-
festação parece uma luta entre dois elementos contraditórios. A
terceira dinâmica, aquela do estado-T, é exercida em um outro
nível de Realidade, onde aquilo que percebemos como desuni-
do está de fato unido e aquilo que parece contraditório é per-
cebido como não contraditório.
Figura 2: Representação simbólica da ação da lógica do 3º incluído
É a projeção do estado-T num mesmo nível de Realidade
que produz a aparência de pares antagônicos mutuamente
exclusivos (A e não-A). Um mesmo nível de Realidade só pode
produzir oposições antagônicas. Isso é inerentemente autodes-
trutivo se for completamente separado de todos os outros
níveis de Realidade. Um terceiro termo situado no mesmo nível
de Realidade que os opostos A e não-A, não pode efetuar sua
reconciliação.
O estado-T
1
presente no nível NR
1
(ver Fig. 1) está conec-
T
A
não-A
NR
2
NR
1
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
51
tado a um par de contraditórios (A
0
e não-A
0
) num nível ime-
diatamente adjacente. O estado-T
1
permite a unificação dos
contraditórios A
0
e não-A
0
, mas essa unificação ocorre num
nível diferente do NR
0
no qual A
0
e não-A
0
estão situados. Com
isso, o axioma da não-contradição é respeitado.
Certamente há uma coerência entre os diferentes níveis de
Realidade, ao menos no mundo natural. Na verdade, parece que
uma imensa autoconsistência – um bootstrap cósmico – gover-
na a evolução do universo, do infinitamente pequeno até o infi-
nitamente grande, do infinitamente breve ao infinitamente
longo. Um fluxo de informações é transmitido de forma coeren-
te de um nível de Realidade ao outro em nosso universo físico.
A lógica do terceiro incluído é capaz de descrever esta
coerência entre esses níveis de Realidade, através de um pro-
cesso interativo definido pelos seguintes estágios: (1) um par
de contraditórios (A
0
, não-A
0
) situados em um certo nível NR
0
da Realidade é unificado por um estado-T
1
num nível contíguo
NR
1
da Realidade; (2) esse estado-T
1
está ligado, por sua vez,
a um par de contraditórios (A
1
, não-A
1
) situados em seu pró-
prio nível; (3) este par de contraditórios (A
0
, não-A
0
) é, por sua
vez, unificado por um estado-T
2
situado num terceiro nível de
Realidade NR
2
imediatamente contíguo ao nível NR
1
no qual o
ternário (A
1
, não-A
1
, T
1
) se encontra. O processo interativo
continua assim indefinidamente até que todos os níveis de
Realidade, conhecidos ou concebíveis, sejam esgotados.
Em outras palavras, a ação da lógica do terceiro incluído nos
diferentes níveis de Realidade induz a uma estrutura aberta da
unidade dos níveis de Realidade. Essa estrutura tem consequên-
cias consideráveis para a teoria do conhecimento, pois implica na
impossibilidade de uma teoria completa e auto-referente.
Com efeito, de acordo com o axioma da não-contradição,
o estado-T
1
realiza a unificação de um par de contraditórios (A
0
e não-A
0
), mas está associado, ao mesmo tempo, a um outro
par de contraditórios (A
1
e não-A
1
). Isto significa que, se come-
çarmos com um certo número de pares mutuamente exclusi-
vos, podemos construir uma teoria nova que elimina as contra-
dições num certo nível de Realidade, mas essa teoria sem con-
tradições é temporária, pois conduz inevitavelmente, sob a
Educação e Transdisciplinaridade II
52
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
pressão conjunta da teoria e da experiência, à descoberta de
novos pares de contraditórios, situados em novos níveis de
Realidade. Por sua vez, esta teoria seria substituída por outras
mais unificadas à medida que novos níveis de Realidade fossem
descobertos. Esse processo continuaria indefinidamente sem
nunca chegar a uma teoria completamente unificada. O axioma
da não contradição é reforçado durante esse processo. Nesse
sentido, sem nunca chegarmos a uma absoluta não contradi-
ção, podemos falar de uma evolução do conhecimento que
abarcaria todos os níveis de Realidade, num conhecimento para
sempre aberto.
Na esfera dos níveis de Realidade per se, o que está em ci-
ma é igual ao que está embaixo. A matéria mais fina penetra a
matéria mais densa, assim como a matéria quântica penetra a
matéria macrofísica, porem o inverso não é verdadeiro. Graus
de materialidade induzem a orientação de uma flecha traçando
a transmissão de informação de um nível ao outro. Nesse sen-
tido, o que está embaixo não é o mesmo que está em cima, as
palavras ‘em cima’ e ‘embaixo’ não têm aqui outro sentido
(espacial ou moral) do que aquele que é topologicamente asso-
ciado com o fluxo de transmissão de informação. Por sua vez,
as flechas de orientação da Fig. 1 estão associadas com a des-
coberta cada vez mais unificadora de leis gerais.
A estrutura aberta da unidade dos níveis de Realidade está
de acordo com um dos resultados científicos mais importantes
do sec. XX no que diz respeito à aritmética, o teorema de Kurt
Gödel
9
, que estabelece que um sistema suficientemente rico de
axiomas conduz inevitavelmente a resultados indecidíveis ou
contraditórios. As implicações do teorema de Gödel têm uma
importância considerável para todas as teorias de conhecimen-
to, porque não diz respeito apenas ao campo da aritmética,
mas a todas as matemáticas, incluindo a aritmética.
A estrutura godeliana da unidade dos níveis de Realidade,
associada com a lógica do terceiro incluído, implica numa
impossibilidade de construirmos uma teoria completa para des-
53
9
Ver, por exemplo, Ernest Nagel and James R. Newman, Gödel’s Proof, New York University Press, New
York, 1958; Hao Wang, A Logical Journey – From Gödel to Philosophy, Cambridge, MIT Press, Massachusetts-
London, England, 1996.
crever a passagem de um nível para o outro e, a fortiori, para
descrever a unidade dos níveis de Realidade.
Se tal unidade existe, este elo entre todos os níveis de
Realidade deverá ser necessariamente uma unidade aberta.
Para termos certeza, há uma coerência da unidade dos
níveis de Realidade, mas esta coerência está orientada numa
certa direção: como já dissemos anteriormente, existe uma fle-
cha associada à transmissão de qualquer informação de um
nível ao outro. Consequentemente, se a coerência for limitada
apenas a certos níveis de Realidade, ela se interrompe tanto no
nível mais ‘alto’ quanto no mais ‘baixo’. Se quisermos sugerir a
idéia de uma coerência que continue para além destes dois
níveis limítrofes, de modo que haja uma unidade aberta, temos
de conceber a unidade dos níveis de Realidade como uma uni-
dade que se estende a uma zona de não resistência às nossas
experiências, representações, descrições, imagens e formula-
ções matemáticas. Essa zona de não resistência corresponde ao
‘véu’ ao qual Bernard d’Espagnant se referiu como sendo ‘o véu
do Real’.
10
Tanto o nível mais ‘alto’ quanto o mais ‘baixo’ da
totalidade dos níveis de Realidade estão unidos por uma zona
de transparência absoluta. Porém, esses dois níveis são diferen-
tes e, portanto, do ponto de vista de nossas experiências, repre-
sentações, descrições, imagens e formulações matemáticas, a
transparência absoluta funciona como um véu. De fato, a uni-
dade aberta do mundo implica que aquilo que está ‘embaixo’ é
o mesmo que o que está ‘em cima’. As correspondências entre
‘em cima’ e ‘embaixo’ são estabelecida pela zona de não resis-
tência. Nessa zona não há níveis de Realidade.
A não resistência dessa zona de transparência absoluta é
devida, simplesmente, às limitações dos nossos corpos e dos
nossos órgãos sensoriais – limitações que se aplicam indiferen-
temente das ferramentas de medição que utilizamos para esten-
der esses órgãos sensoriais. A zona de não resistência corres-
ponde ao sagrado – àquilo que não se submete a nenhuma ra-
cionalização.
É importante notar que os três loops de coerência da Fig.
1 não estão situados apenas na zona em que os níveis de
Educação e Transdisciplinaridade II
54
10
Bernard d’Espagnat, Le Réel voilé – Analyse des concepts quantiques, Paris, Fayard, 1994.
Realidade estão ausentes, mas também entre os níveis de
Realidade: a zona de não resistência do sagrado penetra e cruza
os níveis de Realidade. Em ouras palavras, a abordagem trans-
disciplinar da Natureza e do conhecimento oferece uma ligação
entre o Real e a Realidade.
A unidade dos níveis de Realidade e sua zona complemen-
tar de não resistência constituem o que chamamos de Objeto
transdisciplinar.
Um novo Princípio de Relatividade emerge da coexistên-
cia entre a pluralidade complexa e a unidade aberta: nenhum
nível de Realidade é um lugar privilegiado a partir do qual se
possa compreender todos os outros níveis de Realidade. Um
nível de Realidade é o que é porque todos os outros níveis
existem ao mesmo tempo. Esse princípio de Relatividade é o
que origina uma nova perspectiva na religião, na política, na
arte, na educação e na vida social. E quando a nossa perspec-
tiva sobre o mundo muda, o mundo muda. Na visão transdisci-
plinar, a Realidade não é só multidimensional, é também mul-
tirreferencial.
Os diferentes níveis de Realidade são acessíveis ao conhe-
cimento humano graças à existência de diferentes níveis de per-
cepção, descritos diagramaticamente à direita da Fig. 1. Eles se
encontram em uma relação de correspondência com os níveis de
Realidade. Estes níveis de percepção:
{ NP
n
, … , NP
2
, NP
1
, NP
0
, NP
-1
, NP
-2
, … , NP
-n
}
permitem uma visão cada vez mais geral e unificadora da
Realidade, sem jamais esgotá-la inteiramente.
Como no caso dos níveis de Realidade, a coerência dos
níveis de percepção pressupõe uma zona de não resistência à
percepção. Nessa zona não há níveis de percepção.
A unidade dos níveis de percepção e sua zona comple-
mentar de não resistência constituem o que chamamos de
Sujeito transdisciplinar.
Para que o Sujeito e Objeto transdisciplinares se comuni-
quem, as zonas de não resistência de ambos deverão ser idênti-
cas. O fluxo de consciência que passa coerentemente através
dos diferentes níveis de percepção deve corresponder ao fluxo
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
55
de informações que atravessa coerentemente os diferentes níveis
de Realidade. Os dois fluxos estão interligados porque compar-
tilham a mesma zona de não resistência.
O Conhecimento não é nem exterior nem interior: é simul-
taneamente exterior e interior. Os estudos do universo e do ser
humano se sustentam um ao outro. A zona de não resistência
tem o papel do terceiro secretamente incluído que permite a
unificação do Sujeito transdisciplinar e do Objeto transdiscipli-
nar, preservando, ao mesmo tempo, sua diferença.
A unidade aberta entre o Objeto e Sujeito transdisciplinar
é dada pela orientação coerente do fluxo de informação, descri-
to pelos três loops orientados da Fig. 1, que atravessam os níveis
de Realidade, e pelo fluxo de consciência, descrito pelos três
loops orientados que atravessam os níveis de percepção.
Esta orientação coerente dá um sentido novo e mais pro-
fundo ao fato simples da verticalidade humana no mundo. Ao
invés da verticalidade humana individual regida pela lei univer-
sal da gravidade, o ponto-de-vista transdisciplinar propõe uma
verticalidade consciente e cósmica, atravessando os diferentes
níveis de Realidade e de percepção. Na visão transdisciplinar, é
essa verticalidade cósmica que constitui a base de qualquer
projeto social viável.
Os arcos de informação e consciência têm de se encontrar
ao menos num ponto X, a fim de assegurar a transmissão coe-
rente de informação e consciência por toda parte das regiões
visíveis e invisíveis do Universo. De certo modo, o ponto X é a
fonte de toda Realidade e percepção. O ponto X e os loops de
informação e consciência que lhe estão associados descrevem
o terceiro termo do conhecimento transdisciplinar: o termo de
Interação entre o Sujeito e Objeto, que não pode ser reduzido
nem ao Sujeito nem ao Objeto.
Esta divisão ternária {Sujeito, Objeto, Interação} difere radi-
calmente da divisão binária {Sujeito, Objeto} que define a meta-
física moderna. A transdisciplinaridade estabelece uma ruptura
profunda com a metafísica moderna. É graças a essa ruptura
que a transdisciplinaridade é capaz de oferecer uma base meto-
dológica para a transcultura e para a transreligião.
O problema Sujeito/Objeto foi central para os ‘pais funda-
Educação e Transdisciplinaridade II
56
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
dores’ da mecânica quântica. Pauli
11
, Heisenberg e Bohr, assim
como Husserl, Heidegger e Cassirer, refutaram o axioma básico
da metafísica moderna: a distinção clara entre Sujeito e Objeto.
Nossas considerações aqui se inscrevem na mesma estrutura.
3. Disciplinas acadêmicas, culturas e religiões
As disciplinas acadêmicas estudam fragmentos de níveis
de Realidade. Há varias disciplinas associadas a um único nível
de Realidade.
As disciplinas acadêmicas estão conectados exclusivamen-
te ao Objeto, isto é, a apenas uma das três zonas descritas no
diagrama da Fig. 1. Baseadas no modelo mecanicista da ciência
clássica, elas correspondem a um conhecimento in vitro: o
conhecimento disciplinar CD (vide Tabela 1). Elas são fortemen-
te orientadas para a dominação do mundo exterior. Por defini-
ção, essas disciplinas são supostamente neutras, isto é, seu estu-
do tem de ser realizado de uma maneira independente de qual-
quer sistema de valores.
Porém, de acordo com o diagrama da Fig. 1, todos estes
aspectos são de fato ad hoc, artificiais e ilusórios, pois o Objeto
está sempre interagindo com o Sujeito, através do terceiro ter-
mo, o termo de Interação.
O conhecimento pleno é um novo tipo de conhecimento
– o conhecimento transdisciplinar CT, que corresponde a um
conhecimento in vivo. Esse novo conhecimento concerne à
correspondência entre o mundo externo do Objeto e o mundo
interno do Sujeito. O conhecimento CT é, na verdade, o conhe-
cimento do terceiro. Por definição o conhecimento CT inclui
um sistema de valores.
É importante ressaltar que o conhecimento disciplinar e o
conhecimento transdisciplinar não são antagônicos, mas com-
plementares. A metodologia de ambos está fundada na atitude
científica.
57
11
Wolfgang Pauli, Writings on Physics and Philosophym, Berlin-Heidelberg, Germany, Springer Verlag, 1994;
K.V. Laurikainen, Beyond th Atom – The Philosophical Thought of Wolfgang Pauli, Berlin-Heidelberg, Germany,
Springer Verlag, 1988.
Tabela 1. Comparação entre o conhecimento disciplinar CD e conhecimento
transdisciplinar CT
As considerações acima explicam, de certo modo, a afirma-
ção paradoxal de que o conhecimento transdisciplinar é capaz
de trazer uma nova visão, não apenas sobre as disciplinas aca-
dêmicas, como também sobre as culturas e as religiões.
A diferença crucial entre as disciplinas acadêmicas de um
lado e as culturas e religiões do outro, podem ser lidas no dia-
grama da Fig. 1. As culturas e religiões não dizem respeito ape-
nas a fragmentos de níveis de Realidade: elas envolvem simul-
taneamente um nível de Realidade, um nível de percepção e
fragmentos da zona de não resistência do sagrado. Em outras
palavras, as culturas e religiões correspondem a uma seção
horizontal bem definida do diagrama da Fig. 1.
A resistência implicada pelos níveis de Realidade está
conectada com um determinado território no qual determinada
cultura ou religião aparece, com os eventos históricos corres-
pondentes pelos quais passou determinada coletividade e com
a mistura de diferentes hábitos culturais e religiosos portados
por essa coletividade cruzando o território determinado através
dos tempos.
A resistência implicada pelos níveis de percepção está liga-
CONHECIMENTO CT
in vivo
Correspondência entre o
mundo externo (Objeto)
e o mundo interno (Sujeito)
Compreensão
Um novo tipo de inteligência
– harmonia entre mente,
sentimentos e corpo
Orientado para o
deslumbramento e a partilha
Lógica do terceiro incluído
Inclusão de valores
CONHECIMENTO CD
in vitro
Mundo externo - Objeto
Conhecimento
Inteligência analítica
Orientado para o poder
e a posse
Lógica binária
Exclusão de valores
Educação e Transdisciplinaridade II
58
da a uma determinada prática espiritual e a hábitos culturais, as-
sociados a uma determinada teologia, uma determinada doutri-
na religiosa ou a um determinado conjunto de personalidades
culturais e seus ensinamentos através dos tempos históricos.
A zona de não resistência do sagrado é, de fato, comparti-
lhada por todas as culturas e religiões. Esse fato pode explicar
porque há um desejo inextinguível de universalidade, mais es-
condido ou menos escondido, em qualquer cultura ou religião,
apesar de elas afirmarem uma especificidade absoluta.
As polêmicas contemporâneas a respeito, por exemplo, do
status de uma disciplina acadêmica como a história das religiões
e o violento debate sobre a vida e a obra de seu fundador, Mir-
cea Eliade, são explicadas de maneira simples através do diagra-
ma da Fig. 1. Pede-se à história da religião duas condições mu-
tuamente exclusivas: ser neutra, como qualquer outra disciplina
acadêmica, e estudar um fenômeno não-neutro – as religiões.
Em outras palavras, pede-se à história da religião que pertença
exclusivamente ao lado esquerdo do diagrama da Fig. 1 e, ao
mesmo tempo, que pertença ao lado direito do diagrama. É cla-
ro que isso é impossível na estrutura da metodologia e da lógi-
ca do conhecimento disciplinar. Em minha opinião, a única saí-
da é aceitar a metodologia e a lógica da lógica transdisciplinar.
Como Eliade previu, o problema crucial é o status do sa-
grado.
4. A atitude transreligiosa e a presença do
sagrado
O problema do sagrado, entendido como a presença de
algo de irredutivelmente real no mundo, é inevitável para qual-
quer abordagem racional do conhecimento. Podemos afirmar
ou negar a presença do sagrado no mundo e em nós, mas para
a elaboração de um discurso coerente sobre a Realidade, é obri-
gatório fazer referência a ele.
O sagrado é aquilo que conecta. O sagrado liga, como
indica a raiz etimológica da palavra ‘religião’ (religare – ‘tornar
a ligar’), porém essa habilidade não é atributo de uma religião.
Mircea Eliade disse numa entrevista: “O sagrado não implica na
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
59
crença em Deus, em deuses ou em espíritos. É... a experiência da
realidade e a fonte da consciência de existir no mundo.”
12
O
sagrado é, antes de mais nada, uma experiência que é transmi-
tida por um sentimento – o sentimento ‘religioso’ – do que liga
seres e coisas e, consequentemente, induz, no mais profundo
do ser humano, a um absoluto respeito para com os outros aos
quais ele está ligado por partilhar uma vida em comum na
mesma Terra.
A abolição do sagrado levou à abominação de Auschwitz
e aos 25 milhões de mortos do stalinismo. O respeito absoluto
pelos outros foi substituído por uma pseudo sacralização de
uma raça ou de um novo homem, encarnados por ditadores
elevados ao posto de divindades.
A origem do totalitarismo está fundamentada na abolição
do sagrado. Enquanto experiência do real irredutível, o sagra-
do é realmente, como disse Eliade, o elemento essencial na
estrutura da consciência e não apenas um etapa na história da
consciência. Quando violamos, desfiguramos, mutilamos esse
elemento, a história torna-se criminosa. Nesse contexto, a eti-
mologia da palavra ‘sagrado’ é muito instrutiva: deriva do Latim
sacer, que quer dizer ‘aquilo que não poder ser tocado sem
macular’, mas também ‘aquilo que não pode ser tocado sem ser
maculado’. Sacer indica o culpado, o que foi consagrado aos
deuses infernais. Ao mesmo tempo, por causa de sua raiz indo-
européia sak, sagrado está ligado a ‘santo’. Esse significado
duplo de sacer – sagrado e mau – é o duplo sentido da própria
História, com sua gagueira, suas contorções e suas contradições
que muitas vezes dão a impressão que a História é um conto de
um homem louco.
É precisamente a noção de sagrado que nos dias de hoje
é violentamente criticada nos círculos acadêmicos. Por exem-
plo, Daniel Dubuisson considera herética a posição de Eliade.
13
De maneira mais sutil, Antoine Faivre considera o sagrado
como uma simples suposição que deve ser submetida ao crité-
rio popperiano da refutação. Para Faivre, o sagrado é apenas
Educação e Transdisciplinaridade II
60
12
Mircea Eliade, L’Épreuve du labyrinthe, Paris, Pieerre Belfond, 1978, p. 175.
13
Daniel Dubuisson, Mythologies du XX
e
siècle – Dumézil, Lévi-Strauss, Eliade, Presses Universitaires de Lille,
1993, p. 250; L’Occident et la religion – Mythes, science et idéologie, Paris, Éditions Complexe, 1998.
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
um fenômeno histórico.
14
Não é de modo algum claro que o
critério popperiano, que já é duvidoso nas ciências exatas, deva
ser aplicado a uma ciência humana como a historia das reli-
giões. Alguns historiadores da religião, obcecados pela neutra-
lidade, objetividade e refutação, parecem-me estar na posição
dos físicos do sec. XIX. Uma visão muito mais aberta foi toma-
da por Brian Rennie num livro muito bem documentado: Re-
constructing Eliade.
15
O tema polêmico do sagrado será discu-
tido num workshop que ocorrerá em breve.
16
É paradoxal e significativo que o mais dessacralizado pe-
ríodo da História – o nosso – gerou, no entanto, uma das mais
profundas reflexões sobre a questão do sagrado fora dos círcu-
los acadêmicos. O problema inevitável do sagrado atravessa a
obra dos mais diversos pensadores e autores do século XX, dos
mestres do pensar aos mestres do viver.
O modelo transdisciplinar da Realidade traz uma nova luz
ao significado do sagrado.
Em termos gerais, movimento é o cruzamento simultâneo
dos níveis de Realidade e dos níveis de percepção. Esse movi-
mento coerente é associado simultaneamente a dois significados,
a duas direções: um significado ascendente (que corresponde a
uma ‘subida’ através dos níveis de Realidade e de percepção) e
um significado descendente (que corresponde a uma ‘descida’
através desses níveis). A zona de não resistência absoluta do
sagrado surge como a origem desse duplo movimento, que é
simultâneo e não-contraditório, subindo e descendendo pelos
níveis de Realidade e de percepção. A não-resistência absoluta é
claramente incompatível com a atribuição de uma única direção
– de subir ou descer – precisamente porque é absoluta.
Essa zona está ‘além’ dos níveis de Realidade e de percep-
ção, no entanto, é um ‘além’ que está conectado aos níveis. A
zona de resistência absoluta é o espaço da coexistência da
trans-ascendência e trans-descendência. Como trans-ascendên-
61
14
Antoine Faivre, L’Ambiguïté de la nation de sacré chez Mircea Eliade (L’ambiguità della nozione di sacro
in Mircea Eliade), in Confronto con Mircea Eliade – Archetipi mitici e identitá storica, Milano, Jaca Book,
1998, pp. 363-374.
15
Bryan S. Rennie, Reconstructing Eliade – Making sense of Religion, Albany-New York, State University of
New York Press, 1996.
16
International Association for the History of Religions (IAHR), Durban, South Africa, 5-12 agosto de 2000
– Symposium Mircea Eliade’s Vision and Our present Understanding of Religion, convocado por Bryan S.
Rennie.
cia, essa zona está ligada ao conceito filosófico de transcendên-
cia (que vem de transcendere = escalar além). Como trans-des-
cendência, está ligada ao conceito de imanência. Assim, a zo-
na de não resistência é ao mesmo tempo uma imanência trans-
cendente e uma transcendência imanente, a primeira acen-
tuando a transcendência e a segunda a imanência. Portanto,
esses dois termos são inadequados para designar a zona de não
resistência, que aparece como irredutivelmente real e que não
pode ser reduzida nem à imanência transcendente nem à trans-
cendência imanente. A palavra sagrado é apropriada para de-
signar essa zona de não resistência, do mesmo modo que o ter-
ceiro incluído reconcilia a imanência transcendente e a trans-
cendência imanente. O sagrado permite o encontro entre o mo-
vimento ascendente e o movimento descendente da informa-
ção e da consciência através dos níveis de Realidade e dos
níveis de percepção. Esse encontro é uma condição insubstituí-
vel para a nossa liberdade e a nossa responsabilidade. Nesse
sentido, o sagrado aparece como a última fonte de nossos valo-
res. Ele é o espaço de unidade entre o tempo e o não-tempo,
o causal e o acausal.
De uma forma ou de outra, as diferentes religiões, bem
como as correntes agnósticas e ateístas, são definidas em ter-
mos da questão do sagrado. A experiência do sagrado é a ori-
gem da atitude transreligiosa.
A transreligião designa a abertura de todas as religiões
para aquilo que as atravessa e as transcende.
A transreligião não significa uma religião única, mas a uni-
dade aberta, transcendente de todas as religiões. É o sagrado
que permite que essa unidade seja efetiva, mesmo que a trans-
religião nunca seja formulada em termos de uma teologia. A
transreligião seria a ‘religião após a religião’, este belo oxímoro
que é o titulo de um livro do Prof. Steven Wasserstrom.
17
A transdisciplinaridade não é religiosa nem não-religiosa,
é transreligiosa. É a atitude transreligiosa que emerge da vivên-
cia transdisciplinar que nos permite aprender a conhecer e
apreciar a especificidade das tradições religiosas ou não religio-
Educação e Transdisciplinaridade II
62
17
Steven M. Wasserstrom, Religion after Religion – Gershom Scholem, Mircea Eliade, and Henry Corbin at
Eranos, Princeton-New Jersey, Princeton University Press, 1999 (Religião após a Religião, Ed. Triom, 2003).
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
sas que nos são estranhas, para podermos reconhecer melhor
as estruturas comuns que as fundamentam e, com isso, chegar
a uma visão transreligiosa do mundo.
A atitude transreligiosa não está em contradição com ne-
nhuma tradição religiosa e com nenhuma corrente agnóstica ou
ateísta, quando essas tradições e correntes reconhecem a pre-
sença do sagrado. Na verdade, a presença do sagrado é a nos-
sa transpresença no mundo. Se fosse difundida, a atitude trans-
religiosa tornaria impossível qualquer guerra religiosa.
O conceito de transreligião que estou formulando aqui é
bem próximo ao que o grande poeta árabe Adonis chama de
misticismo da arte: um movimento em direção ao lado escon-
dido da Realidade, uma experiência vivida, uma viagem perpé-
tua ao coração do mundo, uma unificação dos contraditórios, a
infinidade e o desconhecido como aspirações, liberdade em re-
lação a qualquer sistema filosófico ou religioso, criação espon-
tânea num estado transracional.
18
De fato, toda a obra de Ado-
nis tem uma natureza transcultural e transreligiosa, como mos-
tra o livro recente de Michel Camus.
19
A atitude transreligiosa é também muito próxima do que o
grande teólogo e filosofo cristão Raimon Panikkar chama de
diálogo intra-religioso: um diálogo que acontece no mais ínti-
mo de qualquer ser humano.
20
A atitude transreligiosa não é apenas um projeto utópico –
ela está gravada nas profundezas de nosso ser. Através do
transcultural, que conduz ao transreligioso, a guerra entre cul-
turas – uma ameaça crescente em nossos dias – não tem mais
razão de existir. Se a atitude transcultural e transreligiosa con-
seguisse achar seu lugar na modernidade, a guerra entre civili-
zações jamais ocorreria.
5. Podemos reconciliar as duas culturas?
No começo da história humana a ciência e a cultura eram
inseparáveis. Eram fomentadas pelas mesmas questões, aquelas
63
18
Adonis, La Prière et l’épée – Essais sur la culture arabe, Paris, Mercure de France, 1993, pp. 143-146.
19
Michel Camus, Adonis, le visionnaire, Monaco, Le Rocher, 2000.
20
Raimon Panikkar, Entre Dieu et le cosmos, Paris, Albin Michel, 1998.
sobre o sentido do universo e o sentido da vida.
No Renascimento esse elo ainda não havia sido quebrado.
Como o próprio nome indica, a primeira universidade era dedi-
cada ao estudo do universal. O universal estava encarnado na-
queles que deixariam sua marca na historia do conhecimento.
Cardan, o inventor dos números imaginários e do sistema de
suspensão que leva seu nome, foi matemático, médico e astró-
logo: a mesma pessoa que estabeleceu o horóscopo de Cristo
foi o autor da primeira exposição sistemática do cálculos de
probabilidades. Kepler foi ao mesmo tempo astrônomo e astró-
logo. Newton foi simultaneamente físico, teólogo e alquimista.
Ele era tão fascinado pela Trindade quanto pela geometria e
gastou mais tempo em seu laboratório alquímico do que na ela-
boração de sua Philosophiae Naturalis Principia Mathematica.
O germe da ruptura entre ciência e sentido, entre sujeito e
objeto, estava certamente presente no sec. XVII, quando a
metodologia da ciência moderna foi formulada, porém ela só se
tornou definitiva a partir do sec. XIX.
A ruptura foi consumada nos nossos tempos. Ciência e
cultura não tinham mais nada em comum, por isso falamos de
ciência e cultura. A ciência não tem acesso à nobreza da cultu-
ra e a cultura não tem acesso ao prestígio da ciência.
Podemos compreender o grito de indignação emitido pe-
lo conceito de duas culturas – cultura cientifica e cultura
humanista – introduzido há algumas décadas por C. P. Snow,
romancista e cientista. A ciência é sem dúvida parte da cultura,
mas a cultura científica é completamente separada da cultura
humanista. As duas culturas são vistas como antagonistas. Cada
um desses mundos – o mundo científico e o mundo humanis-
ta – está hermeticamente fechado em si mesmo.
Em tempos recentes, os sinais de uma reconciliação entre
as duas culturas estão se multiplicando, principalmente no diá-
logo entre ciência e arte, que é o eixo fundamental do diálogo
entre a cultura científica e a cultura humanista.
Será que esta reconciliação é possível?
Como pode ser lido na Fig. 1, a cultura científica está situa-
da completamente no lado esquerdo do diagrama, enquanto a
cultura humanista atravessa os três termos representados no
Educação e Transdisciplinaridade II
64
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
diagrama. Essa assimetria entre essas duas culturas demonstra
toda a dificuldade para a reconciliação, reconciliação esta que
só ocorrerá quando houver uma conversão da ciência em dire-
ção aos valores e em direção ao sagrado, isto é, quando a cul-
tura científica se tornar uma verdadeira cultura. Essa conversão
passa inevitavelmente pela conversão dos próprios cientistas.
Esse processo já é visível no mundo inteiro, porém os hábitos
antigos da mente ainda têm um poder muito forte.
A transdisciplinaridade oferece uma base metodológica
para a reconciliação das duas culturas artificialmente antagonis-
tas por elas serem sobrepostas pela unidade aberta da cultura
transdisciplinar.
O encontro entre diferentes níveis de Realidade e diferentes
níveis de percepção engendra diferentes níveis de representação.
Imagens correspondentes a um certo nível de representação têm
uma qualidade diferente das imagens associadas com um outro
nível de representação, pois cada qualidade está associada com
um determinado nível de Realidade e um determinado nível de
percepção. Cada nível de representação aparece como um ver-
dadeiro muro, aparentemente intransponível devido a sua rela-
ção com as imagens engendradas por outro nível de representa-
ção. Por isso, esses níveis de representação do mundo sensível
estão conectados com os níveis de percepção do criador, do
cientista ou do artista. A verdadeira criação artística ergue-se co-
mo uma ponte entre vários níveis de percepção ao mesmo tem-
po, engendrando uma transpercepção. A transpercepção permi-
te um entendimento global e não diferenciado da totalidade dos
níveis de percepção. A transrepresentação e a transpercepção
poderiam explicar as similaridades surpreendentes entre os mo-
mentos de criação artística e cientifica, brilhantemente demons-
tradas num livro do grande matemático Jacques Hadamard.
21
6. O transcultural e o espelho do Outro
Contemplar a cultura do sec. XX é, ao mesmo tempo, des-
concertante, paradoxal e fascinante.
65
21
Jacques Hadamard, Essai sur la psychologie de l’invention dans le domaine mathématique, Paris,
Gauthier-Villars, 1978.
Desde tempos imemoriais, imensos tesouros de sabedoria
e de conhecimento vêm sendo acumulados e, mesmo assim,
continuamos a nos matar uns aos outros.
É verdade que os tesouros de uma cultura são virtualmen-
te incomunicáveis à outra: os níveis de Realidade e de percep-
ção são descontínuos. Essa descontinuidade explica porque
não podemos traduzir uma cultura nos termos de outra cultu-
ra. As culturas emergem do silêncio entre as palavras e esse
silêncio não pode ser traduzido. Não importa a sua carga emo-
cional, as palavras do dia a dia são dirigidas mais à razão, o ins-
trumento concedido aos seres humanos para sua sobrevivência.
Porém, as culturas emergem da totalidade do ser humano numa
determinada área geográfica e histórica, contendo todos os seus
sentimentos, esperanças, crenças e questionamentos.
Os avanços prodigiosos dos meios de transporte e de co-
municação fizeram com que as culturas se intermesclassem.
Esse mesclar-se recíproco das culturas é caótico. Eis a prova: as
inúmeras dificuldades que são concomitantes à ‘integração’ de
diferentes culturas minoritárias em vários países do mundo. Sob
que bandeira essa integração fantasmagórica pode ser apresen-
tada? Nem o Esperanto, nem o Volapuk, nem o mais elevado
nível de computadorização poderão garantir uma tradução
entre culturas. Paradoxalmente, hoje tudo está aberto e fechado
ao mesmo tempo.
Os avanços avassaladores da tecnociência só serviram para
aumentar o abismo entre as culturas. A esperança do sec. XIX
de uma cultura única na sociedade mundial, fundada na felici-
dade trazida pela ciência, ruiu há muito tempo. Ao invés disso,
testemunhamos, de um lado, a completa separação entre ciên-
cia e cultura e, de outro, uma fragmentação cultural no interior
de cada cultura. No outro extremo, testemunhamos o perigo de
uma cultura homogênea, única e de baixo nível, como possível
resultado da acelerada globalização. O Ocidente tem uma gran-
de responsabilidade: evitar a desintegração cultural resultante
do avanço desenfreado da tecnociência.
A fragmentação cultural é sentida no âmago de cada cul-
tura. O big-bang disciplinar tem seu equivalente no big-bang
dos modos culturais, baseado na perda de memória do sagra-
Educação e Transdisciplinaridade II
66
do: qualquer coisa vale. Como resultado da inevitável perda
dos quadros de referência num mundo cada vez mais comple-
xo, um modo de pensamento é descartado pelo seguinte com
uma velocidade cada vez mais rápida. Há já algum tempo, me-
diante a intervenção de computadores, a velocidade das mu-
danças dos modos culturais pode chegar à velocidade da luz.
Atualmente, a cultura parece uma espécie de lata de lixo mons-
truosa, na qual defesas estranhas contra o terror do contra-sen-
so proliferam. É claro que, como sempre, o novo está oculto no
antigo, no entanto, vai nascendo lenta mas concretamente. Essa
mistura ainda informe do novo com o antigo é fascinante, pois
por trás de todos os modos culturais diferentes, um novo cami-
nho cultural de ser está tomando forma.
Apesar de sua aparência caótica, a modernidade leva a
uma reconciliação entre as culturas. Com uma intensidade infi-
nitamente maior do que nas épocas anteriores, a modernidade
traz consigo um ressurgimento da necessidade de unir o ser ao
mundo. O potencial para o nascimento de uma cultura de espe-
rança é precisamente equivalente ao potencial para a autodes-
truição que é engendrado pelo abismo do contra senso.
O multicultural mostra que o diálogo entre culturas dife-
rentes é enriquecedor, mesmo se sua meta não é a comunica-
ção real entre culturas. O estudo da civilização chinesa foi cer-
tamente frutífero para aprofundar a compreensão da cultura
européia. O multicultural nos ajuda a descobrir a face da nossa
própria cultura, tendo como espelho uma outra cultura.
O intercultural é claramente assistido pelo desenvolvi-
mento dos transportes e das comunicações e pela globalização
econômica. O aprofundamento das descobertas sobre culturas
antes pouco conhecidas ou desconhecidas, faz com que poten-
cialidades insuspeitas eclodam em nossa própria cultura. A in-
fluência da arte africana contribuiu para o surgimento do Cubis-
mo – esse é um exemplo eloquente de como o contato inter-
cultural pode interferir no desenvolvimento de uma determina-
da cultura. A face do Outro nos permite conhecer melhor nossa
própria face.
Obviamente, o multicultural e o intercultural por si mes-
mos não garantem o tipo de comunicação entre todas as cultu-
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
67
ras, já que isso pressupõe uma língua universal baseada em va-
lores compartilhados, mas certamente constituem passos im-
portantes em direção ao ato da comunicação transcultural.
O transcultural designa a abertura de todas as culturas
para aquilo que as atravessa e as transcende.
A realidade de uma abertura como essa é provada, por
exemplo, pela pesquisa conduzida por um quarto de século
pelo diretor Peter Brook com sua companhia: Centre Interna-
tional de Créations Théâtrales.
22
Os atores são de nacionalida-
des diferentes e, assim, estão imersos em culturas diferentes.
Mesmo assim, durante a atuação revelam qualidades que atra-
vessam e transcendem as culturas, usando um material amplo,
que vai do Mahabarata à Tempestade de Shakespeare, da Con-
ferência dos Pássaros à ópera Carmen. O sucesso popular des-
sas performances em diferentes países do mundo nos mostra
que essa abordagem transcultural pode ser tão acessível aos
diferentes públicos quanto sua própria cultura.
A percepção do que atravessa e transcende as culturas é,
antes de mais nada, uma experiência que não pode ser mera-
mente reduzida a uma questão teórica, mas ela é rica em ensi-
namentos para a nossa vida diária e para as nossas ações no
mundo. Isso indica, de maneira concordante com o Princípio
da Relatividade da transdisciplinaridade, que nenhuma cultura
constitui um lugar privilegiado a partir do qual se pode julgar
outras culturas. Cada cultura é a atualização de uma potencia-
lidade do ser humano, num lugar específico da terra e num mo-
mento específico da história. Lugares diferentes no mundo e
momentos diferentes na história atualizam potencialidades dife-
rentes do ser humano, isto é, culturas diferentes. É a totalidade
aberta do ser humano que constitui o ‘lugar sem lugar’ do que
atravessa e transcende as culturas.
A percepção do transcultural é antes de mais nada uma
experiência, pois diz respeito ao silêncio de diferentes atualiza-
ções. O espaço entre os níveis de percepção e os níveis de
Realidade é o espaço desse silêncio; é o equivalente, no espa-
ço interior, daquilo que é chamado de vácuo quântico no espa-
Educação e Transdisciplinaridade II
68
22
Brook, Les Voies de la création théâtrale XIII, Paris, Editions du CNRS, 1985.
Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcultural e Transreligioso – Basarab Nicolescu
ço exterior. É um silencio pleno, estruturado em níveis. Há tan-
tos níveis de silêncio quanto há correlação entre níveis de per-
cepção e níveis de Realidade. E, além de todos esse níveis de
silêncio, há outra qualidade de silêncio, esse lugar sem lugar
que o poeta e filósofo francês Michel Camus chama de nossa
ignorância luminosa.
23
Esse núcleo de silêncio aparece para
nós, pois é a roda insondável do conhecimento e é luminoso
porque ilumina a própria estrutura do conhecimento. Os níveis
de silêncio e os níveis da nossa ignorância luminosa determi-
nam a nossa lucidez.
Se houver uma língua universal, ela vai além das palavras,
pois ela diz respeito ao silêncio que há entre as palavras e o
silêncio insondável que é expresso por cada palavra. A língua
universal não é uma língua que possa ser capturada num dicio-
nário; é a experiência da totalidade do nosso ser, finalmente
reunida para além de suas dez mil formas. É, por sua própria
natureza, uma translíngua.
Pela perspectiva física, os seres humanos são iguais: são
constituídos pela mesma matéria, acima e além de suas diver-
sas estruturas físicas. Os seres humanos são iguais do ponto de
vista biológico: os mesmos genes geram diferentes cores de
pele, diferentes expressões faciais, qualidades, defeitos. O
transcultural sugere que os seres humanos são também iguais
do ponto de vista espiritual, além das diferenças enormes que
existem entre as várias culturas. O transcultural é expresso atra-
vés da leitura simultânea de todos os níveis de silêncio, através
de uma multidão de culturas. “O resto é silêncio”, conforme as
últimas palavras de Hamlet.
Ele é o Sujeito que forja a translinguagem, uma linguagem
orgânica, que captura a espontaneidade do mundo, além da ca-
deia infernal de abstração seguida de abstração. O evento de ser
é tão espontâneo e súbito quanto um evento quântico. Ele é a
sequência de eventos de ser que constitui a verdadeira atualida-
de, a qual, ai!, não recebe atenção alguma da nossa mídia. E, no
entanto, esses eventos são o núcleo da verdadeira comunicação.
Finalmente, o que está no centro do transcultural é o pro-
69
23
Michel Camus, Proverbes du silence et de l’émerveillement, Paris, Lettres Vives, 1989, p. 27.
blema do tempo. O tempo é a medida de mudança de diferen-
tes processos. Como resultado disso, o tempo é sempre pensa-
do no passado e no futuro. É o campo do Objeto. Por outro la-
do, o tempo vivido na espontaneidade de um evento do ser, o
instante presente, é impensável. Como observou Charles San-
ders Peirce, um dos grandes precursores da transdisciplinarida-
de, o momento presente é um ponto no tempo no qual ne-
nhum pensamento pode ocorrer e nenhum detalhe pode ser
separado.
24
O momento presente é tempo vivido. Diz respeito ao Sujei-
to; mais precisamente, diz respeito àquilo que conecta o Sujeito
ao Objeto. O instante presente é, estritamente falando, um não
tempo, uma experiência do terceiro, da relação entre Sujeito e
Objeto; assim, contém em si, potencialmente, o passado e o fu-
turo, o fluxo total de informação que atravessa os níveis de
Realidade e o fluxo total de consciência que atravessa os níveis
de percepção. O tempo presente é verdadeiramente a origem
do futuro e a origem do passado. Diferentes culturas, presentes
e futuras, têm extensão no tempo da história, que é o tempo de
mudança de estado de ser dos povos e das nações. O transcul-
tural diz respeito ao tempo presente na transhistória, noção
introduzida por Eliade, que diz respeito ao impensável, ao não
pensado e à epifania.
O transcultural é a ponta de lança da cultura transdiscipli-
nar. Culturas diferentes são facetas diferentes do ser humano. O
multicultural permite a interpretação de uma cultura por outra,
o intercultural permite a fertilização de uma cultura por outra e
o transcultural assegura a tradução de uma cultura em várias
outras culturas, mediante a decifração do sentido que as une e,
ao mesmo tempo, vai além delas.
Educação e Transdisciplinaridade II
70
24
Charles S. Peirce, Écrits sur le signe, Paris, Seuil, 1978, p. 22.
Conferência proferida no II Encontro Catalisador do projeto
“A Evolução Transdisciplinar na Educação” do CETRANS
da Escola do Futuro da USP, que ocorreu no Guarujá,
São Paulo, de 8 a 11 de junho de 2000
Agustí Nicolau Coll – Intercultura
(Centro para o diálogo intercultural da Catalunha)
Nota do Autor – Mesmo sendo o único responsável pelo con-
teúdo deste artigo, desejo, no entanto, demonstrar meu reco-
nhecimento a Raimon Panikkar, filósofo catalão-hindu que me
fez voltar para o intercultural e também a Robert Vachon, dire-
tor da revista Interculture, do Institut Interculturel de Montréal,
e Kalpana Das, diretora deste instituto, pedagoga do intercultu-
ral e minha mãe adotiva. São eles os inspiradores deste texto.
Educação e Transdisciplinaridade II
72
As Culturas não são Disciplinas:
Existe o Transcultural?
Introdução
Minha intenção, neste artigo, é mostrar que o transcultural,
se ele existir, tem uma natureza completamente diferente do
transdisciplinar, considerando as diferenças fundamentais entre
as ‘disciplinas’ e as ‘culturas’.
Para fazê-lo, vou debruçar-me primeiramente sobre as
diferenças fundamentais entre as culturas e as disciplinas, para,
em seguida, de forma mais precisa, analisar a noção de cultu-
ra, identificando os elementos que a compõem em toda sua
complexidade. Em terceiro lugar, abordarei os elementos bási-
cos do pluralismo cultural e um método para o intercultural.
Com todos estes elementos, talvez tenhamos a possibilida-
de de começar a responder a questão: “O transcultural existe?”
1. As culturas não são disciplinas
Penso que não podemos colocar em um mesmo nível de
realidade, ou se vocês preferirem, de coerência, as culturas e as
disciplinas, pelo próprio fato de que tanto sua natureza consti-
tutiva quanto sua articulação e desenvolvimento são profunda-
mente diferentes. Exatamente por isso, a transculturalidade, se
ela for possível, terá uma natureza completamente diferente da
transdisciplinaridade. Para usar as palavras de Panikkar, “(…) as
culturas não são espécies de um gênero metacultural”
1
, porque
cada cultura é uma galáxia em si mesma.
Uma disciplina científica é sempre uma visão dirigida para
uma parte do Real, do Todo, visão aleatória em sua amplitude
e profundidade, que depende da própria natureza de cada dis-
ciplina. Uma disciplina é uma construção metodológica particu-
lar que pretende conhecer da melhor maneira possível uma
73
1
Cf. Panikkar 1998.
parte do Real, seja no nível do cosmo, seja no nível antropoló-
gico.
Uma disciplina nunca tem uma natureza ontológica em si
mesma, no sentido de que talvez, para existir, nem a Realidade
nem os humanos necessitem das disciplinas; o que não signifi-
ca que sua existência seja inútil e perniciosa em si. A segmen-
tação disciplinar é a maneira que a cultura ocidental moderna
desenvolveu para conhecer melhor o Real, com todas as luzes
e sombras que esta segmentação comportou e ainda comporta.
Contudo, pode haver uma vida humana plena sem a existência
das disciplinas.
Por outro lado, uma cultura, no sentido global do termo
que especificaremos mais à frente, é sempre um olhar sobre a
totalidade do Real, do Todo, mesmo que sempre o veja apenas
em parte. Uma cultura não é uma simples criação aleatória, mas
uma dimensão ontonômica do Real, que faz parte da própria
estrutura da realidade, pelo menos humana. Em outras pala-
vras, não existe vida humana possível sem cultura, uma vez
que a verdadeira natureza humana é cultural.
Aliás, em qualquer cultura sempre há uma ‘cultura do
conhecimento’ ou, se preferirmos, uma ‘cultura científica’, que
pode ou não ser disciplinar. Em relação a uma cultura, uma dis-
ciplina é sempre parcial, não somente por ser uma visão parcial
sobre o Real, mas também por ser uma concretização, entre
outras, da cultura científica ou do conhecimento, que, por sua
vez, é uma dimensão importante mas parcial de toda cultura.
A segmentação disciplinar, devido à sua própria natureza
forçada e artificial, exige uma correção interdisciplinar e trans-
disciplinar. Podemos aplicar a mesma reflexão à diversidade
cultural? Penso que não, pois este não é o resultado de uma
segmentação do Todo em partes, mas a expressão de diferen-
tes olhares sobre o Todo, que são parciais, mas que, no entan-
to, participam do Todo, mesmo que apenas em parte.
2
Para compreender melhor a complexidade da noção de
Educação e Transdisciplinaridade II
74
2
Não se deve cair na armadilha de estabelecer um paralelismo entre a passagem do multidisciplinar ao inter-
disciplinar e transdisciplinar (consideradas como três etapas sucessivas) e uma suposta passagem do multi-
cultural ao intercultural e transcultural. Como veremos adiante, o ‘lugar’ do interdisciplinar e do transdisci-
plinar em relação às disciplinas não é de modo algum o mesmo daquele do transcultural e do intercultural
em relação às culturas, devido ao fato que assinalei da natureza diferente entre culturas e disciplinas.
cultura vamos explorar diferentes elementos que definem e
constituem uma determinada cultura.
2. A noção de cultura: para além dos
reducionismos
A noção de cultura foi e ainda é uma das mais problemá-
ticas e controvertidas no campo das ciências sociais e humanas.
Seja para negar a ela toda importância ou, ao contrário, para
colocá-la no centro de todas as abordagens, atualmente a
noção de cultura não deixa ninguém indiferente no campo das
ciências sociais e humanas.
3
Nossa intenção aqui, é trabalhar
com uma noção global de cultura, que especificaremos mais
adiante, a fim de ultrapassar os limites impostos pelos usos
reducionistas que se fazem dessa noção.
2.1 Três reducionismos que precisam ser ultrapassados
Em nossa opinião, são três os reducionismos que habitual-
mente afetam a noção de cultura:
Reducionismo artístico e folclórico
Reducionismo intelectual
Reducionismo dos valores e crenças
a) Cultura como folclore e arte
Um primeiro reducionismo muito comum é aquele que re-
duz a cultura a um conjunto de manifestações folclóricas e artís-
ticas, no sentido amplo do termo. É o uso mais popular do ter-
mo e, em minha opinião, o mais difundido neste nível, ainda
que as ciências sociais e humanas não o utilizem.
b) Cultura como produção intelectual
Um segundo reducionismo, não menos importante, é o de
considerar como cultura somente ou, principalmente, a produ-
As Culturas não são Disciplinas: Existe o Transcultural? – Agustí Nicolau Coll
75
3
Nos limites deste artigo não entraremos nesta controvérsia, por interessante que possa ser, o que não con-
firma uma falta de posicionamento a este respeito, como o leitor poderá constatar pessoalmente. Para uma
visão do conjunto histórico do uso da noção de cultura nas ciências humanas, ver Cuche, 1996, mesmo que
não concordemos com algumas de suas considerações.
ção intelectual, sobretudo a abstrata. Cultura e produção inte-
lectual seriam então quase sinônimos.
c) Cultura como sistema de valores
Um terceiro reducionismo é o de considerar como cultural
o campo dos valores e das crenças, considerando-o como fun-
damental para o resto da realidade cultural, mas, muitas vezes,
sem estabelecer realmente quais são as relações existentes
entre os dois.
Os conteúdos destas três noções são conteúdos da noção
de cultura, mas conteúdos parciais que deixam de lado outras
dimensões como a política, a econômica, a jurídica, a religiosa,
a educacional, etc. Acreditamos, então, que para falar de diver-
sidade cultural, do intercultural e, se for possível, do transcul-
tural, nenhuma das noções que acabamos de ver pode nos ser-
vir, devido ao reducionismo com que enfocam a realidade cul-
tural. Somos obrigados a utilizar então uma noção mais global,
não redutora, que não deixe de lado nenhuma dimensão da
realidade.
2.2 Uma noção global de cultura
Sem pretender nenhuma exclusividade, propomos uma
compreensão da cultura que leve em conta os diferentes níveis
e esferas da vida em sociedade e, portanto, cultura “é o conjun-
to de valores, crenças, instituições e práticas que uma sociedade
ou grupo humano desenvolve num certo momento do tempo e do
espaço, em diferentes campos da realidade, a fim de assegurar
sua sobrevivência material e a plenitude espiritual, tanto indivi-
dual como coletivamente”.
Esta perspectiva não nos permite reservar uma dimensão
específica para a cultura separada do resto da realidade. Ela
não nos permite estabelecer dualismos do tipo ‘a cultura e a
ciência’, ‘a cultura e a educação’, ‘a cultura e a política’, ‘a cul-
tura e o econômico’, ‘a cultura e o jurídico’, etc, mas nos obri-
ga a trabalhar com uma concepção completamente diferente
que assume que no fundo há, em toda cultura, no sentido glo-
bal que acabamos de propor, uma cultura política, uma cultura
Educação e Transdisciplinaridade II
76
científica
4
, uma cultura educacional, uma cultura econômica,
uma cultura jurídica, etc.
3. Os diferentes níveis e dimensões de toda
cultura
Toda cultura é, portanto, uma realidade muito complexa,
na qual diferentes níveis e dimensões se interrelacionam. Neste
artigo vamos nos deter mais em dois deles:
As três ordens ontonômicas
A dimensão cosmoteândrica
3.1 As três ordens ontonômicas de toda cultura
Toda cultura apresenta três ordens ontonômicas
5
, diferen-
ciadas mas articuladas, que a modelam em seu caráter global.
Trata-se da ordem mítico-simbólica, da ordem lógico-epistêmica
e da ordem mistérica.
6
É impossível aqui, levar em considera-
ção toda a complexidade inerente a estas três ordens e precisa-
remos nos limitar a esboçar apenas os contornos dos elemen-
tos mais importantes. Para uma visão do conjunto destes ele-
mentos e suas articulações respectivas, pode-se consultar o
esquema elaborado por Robert Vachon.
7
a) A dimensão mítico-simbólica
A dimensão mítico-simbólica refere-se não ao que habi-
tualmente, numa perspectiva moderna, designa-se como irreal,
ficção, fantasia, imaginário, mas [refere-se] justamente ao que
“(…) nos coloca em contato com a realidade” (Panikkar 1975:
46). Trata-se de um nível mais profundo do que aquele que nos
é oferecido no campo da razão reflexiva, conceitual e lógica,
pois se este último pode ser definido como verbum mentis, a
As Culturas não são Disciplinas: Existe o Transcultural? – Agustí Nicolau Coll
77
4
Com referência ao que mencionamos acima, a segmentação disciplinar seria uma metodologia adequada
para a cultura científica de orgiem ocidental moderna, mas não seria, em si, um universal cultural, pois em
outras culturas científicas podemos encontrar outras metodologias tão válidas e eficientes que não passam
pela segmentação disciplinar.
5
Utilizamos o termo ontonômica para significar que se trata de ordens que fazem parte da própria estru-
tura da Realidade, ou, ao menos, se referem diretamente a ela.
6
Inspiro-me profundamente aqui no trabalho de Robert Vachon apresentado em VACHON 1995.
7
Este esquema se encontra no final do texto.
ordem mítico-simbólica pode ser definida como o verbum entis.
Trata-se de uma forma particular da consciência que nos permi-
te, ela também, tornar a realidade inteligível.
A dificuldade com esta dimensão encontra-se no fato de
que ela não pode ser definida nem explicitada, em última ins-
tância, pela razão, pois trata-se precisamente daquilo que não
é definido, nem pensado, nem dito, mas que é tão real quanto
o que percebemos com a razão. Para o homem moderno, co-
nectar-se novamente com sua dimensão mítico-simbólica é uma
coisa muito difícil, porque ele “(…) não parece ter consciência
de que a própria modernidade está baseada num mito, o da
razão e da história. Ele recusa-se, até mesmo categoricamente,
a falar da história e da razão científica como sendo mitos entre
outros, ou mesmo mitos. Mais ainda, ele está tão convencido de
que só o que é racional, lógico e definido é real, que recusa o
caráter de realidade a tudo o que não o seja. Advém daí a sua
resistência e aversão profundas em relação a toda consciência
dita mítica e a toda dimensão mítica da realidade.” (Vachon
1995: 37)
A natureza do mito e da consciência mítica provém de uma
camada muito profunda da realidade e da própria consciência
humana. É por este motivo que não podemos conceitualizá-lo,
defini-lo, objetivá-lo, mas apenas vivê-lo profundamente, dire-
tamente, sem intermediários. Em última análise, podemos dizer,
como Panikkar, que “O mito é aquilo em que acreditamos, sem
saber que nele acreditamos” (Panikkar 1974: 279), sem, com
isso, confundi-lo nem com a fé – pois ele é antes o que permi-
te a esta se exprimir – nem muito menos com a crença – que é
a articulação da fé.
O mito é aquilo que é evidente, que não precisa ser expli-
citado, porque o consideramos como adquirido, escapando à
consciência intelectual. Mais que indizível e impensável, ele
seria não-dito (pois não dizível) e não pensado (porque não
pensável). Em última análise ele é “(…) o que faz ver, mas não
pode ser visto. Como a luz.” (Panikkar 1987: 76)
Ele seria também o horizonte derradeiro da inteligibilidade,
porque ele se encontra “(…) na origem do pensamento, não no
sentido de fornecer o alimento para o pensamento, mas no sen-
Educação e Transdisciplinaridade II
78
tido de purificar o pensamento, contorná-lo, ou melhor, atraves-
sá-lo, para que o não-pensado emerja e que o intermediário
desapareça.” (Panikkar 1979: 4-5)
Ele dirige nosso pensamento e nossa ação para determina-
da direção, levando-nos a escolher um caminho e não outro.
Por exemplo, como disse Robert Vachon, “o mito do logos e da
história orientará as ações para as definições e para os projetos
nesta vida ou na outra. O mito do círculo (por outro lado), o
orientará a encontrar e tomar seu lugar no círculo da vida,
etc.” (Vachon 1995: 42)
A linguagem do mito articula-se sobre o relato mítico, mas
também sobre o símbolo (instrumento do mito), a fé (veículo
do mito), as crenças (articulação da fé), o rito/culto (o mito em
ação, expressão do mito).
Cada cultura e também cada civilização, repousa e funda-
menta-se em mitos próprios que não são redutíveis uns aos ou-
tros, o que não impede que possam existir semelhanças. Numa
perspectiva transcultural, penso que é no nível dos mitos que
devemos trabalhar, primeiramente para ver se há elementos
com valor transcultural e, depois, independentemente desta
constatação, mas levando-a em consideração, explorar como
podemos entrar em comunhão mítica a partir de nossos respec-
tivos mitos, sem abandoná-los.
b) A dimensão lógico-epistêmica
A dimensão ou ordem lógico-epistêmica é aquela domi-
nante em nossa sociedade moderna contemporânea. Para resu-
mi-la em poucas palavras, podemos dizer que esta dimensão
compreende ‘tudo o que pode ser pensado’ e, em última aná-
lise, a verdade correspondente a uma realidade conceitual.
Trata-se do verbum mentis, o ‘logos do pensamento’. Segundo
Robert Vachon (Vachon 1995: 62-63), é possível identificar qua-
tro níveis subsequentes:
•O logos em si mesmo, identificado ao pensamento
•O conceito/signo/termo que é um instrumento do logos
•A razão, que é um veículo do logos
•A ciência, como expressão do logos
As Culturas não são Disciplinas: Existe o Transcultural? – Agustí Nicolau Coll
79
A dimensão lógico-epistêmica é a interpretação da expe-
riência a partir do logos, sendo um produto do intelecto. Esta
constatação não significa subtrair-lhe seu valor, mas delimitar o
terreno de sua ação e, principalmente, seu alcance interpretati-
vo da Realidade.
c) A dimensão mistérica
Em terceiro lugar, há o que chamo de dimensão mistérica,
que não deve ser confundida com um enigma, nem com qual-
quer estado psicológico que seja. Ela corresponde ao que não
é definível, nem mesmo pensável; corresponde ao impensável,
ao indizível e, em última análise, à liberdade da Realidade. Não
pode, principalmente, ser reduzida a um enigma que deve ser
resolvido, mas, como seu nome indica, a um mistério que deve
ser descoberto e ao qual todas as culturas dirigem seu olhar.
3.2 A dimensão cosmoteândrica de toda cultura
A dimensão mítico-simbólica, que vimos mais acima, apre-
senta, por sua vez, uma tripla dimensão constitutiva que, como
Panikkar definiu
8
, é cosmoteândrica. Nesta dimensão oculta,
não-reflexiva de toda cultura que é a dimensão mitológica, po-
demos sempre encontrar e identificar três realidades mítico-sim-
bólicas mais precisas que são o homem, o cosmo e o divino.
9
Definitivamente, toda cultura e civilização possuem, veicu-
lam e são veiculadas por uma determinada concepção do hu-
mano, do cósmico e do divino.
Podemos dizer que se trata aqui de um invariante huma-
no, pois o encontramos em todas as culturas e civilizações no
curso da história e também na atualidade. Mesmo no caso em
que seja negada uma destas dimensões – como ocorre em gran-
de parte da cultura ocidental moderna, que nega a dimensão
divina – não podemos permanecer calados diante dela, temos
que negá-la. Assim como podemos considerar como transcultu-
Educação e Transdisciplinaridade II
80
8
Cf. Panikkar 1993.
9
É preciso tomar as palavras homem, cosmo, divino, não como conceitos, mas como símbolos, principal-
mente o terceiro, que poderia ser também denominado de outra forma: “abissal derradeiro, ao mesmo
tempo transcendente e imanente, infinitamente inesgotável, de mistério, de liberdade, de caráter não fini-
to (ou seja, infinito), de sempre mais, de sempre melhor” (Panikkar 1993: p. 61).
rais as três ordens ontonômicas (mito, logos, mistério), também
a dimensão cosmoteândrica pode sê-lo, na medida em que não
pretendemos que exista um único sistema de relação entre as
três polaridades, nem que exista uma única concepção possível
do humano, do cosmo ou do divino. A estrutura em si pode ser
transcultural, mas o conteúdo e a configuração de seus elemen-
tos constituintes não.
4. Pluralismo e diversidade cultural
Para além do que acabamos de assinalar como invariantes
humanos que se encontram presentes em todas as culturas, a
realidade cultural do mundo é múltipla e diversa. Se quisermos
realmente aceitar e viver essa realidade da diversidade cultural,
seremos obrigados a encarar seriamente o desafio do pluralis-
mo em si e mais concretamente do pluralismo cultural. Não é
fácil definir ou, pelo menos, delimitar os contornos do pluralis-
mo, já que ele é mais da ordem do mito do que do logos.
Contudo vamos tentar apresentar certos elementos que deve-
riam nos permitir percebê-lo, pelo menos o seu espírito.
10
4.1 Para além da pluralidade de objetos
Em primeiro lugar, o pluralismo é o reconhecimento de
que as culturas não são objetos, mas fundamentalmente sujei-
tos, o que implica e exige que se desperte para elas não como
objetos de inteligibilidade que possam ser conhecidos, mas
como fontes de conhecimento e de autocompreensão. Em últi-
ma análise, trata-se de um Tu irredutível a qualquer definição
ou conceitualização.
Mas é muito importante não confundir pluralismo com
relativismo cultural, pois o pluralismo, em última análise, afir-
ma a relatividade radical de todas as coisas. Se o relativismo
afirma que tudo é válido e que não há critério de verdade ou
As Culturas não são Disciplinas: Existe o Transcultural? – Agustí Nicolau Coll
81
10
Este capítulo foi fortemente inspirado na conferência dada por Robert Vachon “Le mythe émergent du
pluralisme et de l’interculturalisme de la réalité” (O mito surgindo do pluralismo e do interculturalismo da
realidade) no primeiro seminário sobre Pluralismo e Sociedade: Discursos altenativos à cultura dominante
(Pluralisme et Societé. Discours alternatifs à la culture dominante), organizado pelo Institut Interculturel de
Montréal (15 de fevereiro de 1997). Cf. Vachon 1997.
de julgamento a respeito das coisas, a relatividade afirma que o
sentido das coisas surge e se manifesta na relacionalidade radi-
cal. Em outras palavras, se o relativismo defende a autonomia
das culturas face à heteronomia das atitudes colonialistas e
homogeneisantes, a relatividade destaca o valor da ontonomia
das culturas. No entanto, a relatividade radical não afirma ape-
nas que “(…) tudo seja relacional, mas também que o próprio
‘todo’ é relacional, que a realidade não é um caos de mônadas
‘caídas’ ou uma gigantesca mônada única e imutável, nem um
Absoluto, mas um conjunto de núcleos ônticos de uma rede,
com uma visibilidade ontológica aos nossos olhos, mas também
com uma consistência metafísica – se nos for permitido um uso
idiossincrático dessas palavras veneráveis.” (Panikkar 1998: 29)
Para compreender o pluralismo cultural neste sentido é,
sem dúvida, necessário reconhecer os limites da razão e, princi-
palmente, não confundi-los com os limites do Ser, o que equiva-
leria colocar no mesmo pé de igualdade o Pensamento e o Ser.
4.2 Nem multiplicidade inteligível,nem redução à unidade
Em segundo lugar, é preciso levar em consideração que o
pluralismo enquanto atitude básica e, consequentemente, o
pluralismo cultural, não pretende reduzir o Todo a uma soma
inteligível de suas partes. Isto significa que o pluralismo não
procura reduzir as diferentes culturas a uma unidade artificial
ou formal, porque aceita como algo positivo a irredutibilidade
das culturas.
Se de um lado podemos compreender racionalmente a
pluralidade de culturas, não podemos, com isso, compreender
o pluralismo de uma forma completamente coerente. Mas, no
fundo, o pluralismo cultural não tem necessidade de ser com-
preendido para existir, pois ele é em si. Podemos tentar conse-
guir o máximo de inteligibilidade do pluralismo, desde que não
procuremos uma inteligibilidade total deste. Uma atitude de
aceitação completa do pluralismo cultural não exclui a raciona-
lidade, mas abandona todo racionalismo pretensamente oni-
compreensivo. O pluralismo se ergue contra o totalitarismo do
pensamento que nos propõe tratar as questões fundamentais da
Educação e Transdisciplinaridade II
82
realidade tão somente a partir das definições, conceitos e teo-
rias claramente estabelecidas.
4.3 Não se opõe nem à unidade, nem à pluralidade
O pluralismo não se opõe nem à unidade (monismo), nem
à pluralidade (dualismo), mas procura ir além deles, mantendo-
se equidistante tanto do monismo quanto do dualismo, sem que
haja uma oscilação dialética entre os dois. No fundo uma atitu-
de pluralista nunca afirmaria que a verdade é una ou múltipla,
mas sim que a verdade é pluralista.
Podemos dizer que, diante do esforço para estabelecer a
unidade apesar das diferenças, o pluralismo procura a harmo-
nia nas e por causa das diferenças. Ele procura a coesão e o
equilíbrio em vez da coerência e da unidade.
No que diz respeito à diversidade cultural, o pluralismo nos
convida a não considerar nosso sistema de pensamento e nossa
cultura como absolutos e não julgar de maneira absoluta os
outros, considerando-os absolutamente falsos e nocivos. O plu-
ralismo opõe-se ao absolutismo, não em nome de um antiabso-
lutismo (que sem dúvida se tornaria absoluto), mas pela contex-
tualização de todas as posições no tecido da Realidade.
Em última análise, uma atitude pluralista diante da diversi-
dade cultural implica e exige uma confiança profunda na
Realidade inteira, uma confiança cósmica. Como Panikkar nos
diz: “O pluralismo nos torna conscientes de nossa contingência
e de nossos limites e nos mostra como compor com a ausência de
segurança e de certeza completa e como viver com nossa vulne-
rabilidade. A experiência começa a nos convencer que uma
escalada das defensivas de todo tipo e a proliferação da suspeita
têm um efeito contrário. No pluralismo assumimos posição e
arriscamos a vida.” (Prahbu 1996: 255)
5. Um método para a interculturalidade
Levando em consideração tudo o que acabamos de esbo-
çar a respeito do pluralismo, podemos agora iniciar algumas
reflexões sobre um método para a interculturalidade. Podemos
As Culturas não são Disciplinas: Existe o Transcultural? – Agustí Nicolau Coll
83
considerar a interculturalidade como uma outra maneira com-
plementar de denominar o pluralismo cultural, como Robert
Vachon nos propõe: “Enquanto o pluralismo cultural acentua
a diferença e a irredutibilidade das culturas sem cair na plura-
lidade, no ecletismo, no exclusivismo e no gueto, a intercultura-
lidade acentua a relatividade (não-relativismo), a intercone-
xão, a relacionalidade, a não-dualidade entre as culturas, sem
cair na homogeneidade, no denominador comum ou no inclu-
sivismo; ele acentua a harmonia, não apesar, mas no seio e por
causa das diferenças culturais.” (Vachon 1997: 29)
5.1 A interculturalidade, um imperativo da Realidade
Seria um erro entender a exigência intercultural como sen-
do uma exigência que nasce do logos como ideologia, quer da
mestiçagem, da comparação ou integração das diferentes cultu-
ras numa metacultura. A interculturalidade situa-se além dos
conceitos, das ideologias e das definições, pois ela pertence
mais ao campo do mito do que do logos; é mais um imperativo
da Realidade do que fruto de uma decisão humana. “O impera-
tivo intercultural não é um simples imperativo ético ou episte-
mológico (seria bom ou inteligente estabelecer diálogo, abordar
as questões numa perspectiva intercultural). Não é uma simples
responsabilidade histórica de nosso tempo ou uma simples deci-
são humana. Não provém, sobretudo, de nenhum projeto do
Homem. Não é o resultado de alguém, em algum lugar, que
decidiu – sozinho ou em conjunto – montar uma teoria ou um
projeto que recebe o nome de intercultural. É uma exigência
mítica que decorre da própria natureza da realidade. A reali-
dade em si é pluralista por natureza. Ninguém, portanto, tem o
seu monopólio, nem a sua definição. Não se trata de uma sim-
ples elaboração do pensamento humano, do resultado de algu-
ma opção livre ou de alguma moda.” (Vachon 1997: 32)
A consciência intercultural é a que nos lembra que toda
cultura é fundamentalmente aberta à fecundação por outras
culturas e, ao mesmo tempo, sede de uma aspiração a tornar-
se toda a realidade.
Em última análise, para compreender o que somos, o que
Educação e Transdisciplinaridade II
84
o Homem é, precisamos da co-implicação da realidade inteira.
Conseguir a plenitude humana não pertence a uma única cul-
tura nem religião e é por isso que precisamos de uma solidarie-
dade integral entre todos os seres.
5.2 Abordagem diatópica
11
A interculturalidade exige que se ultrapasse a abordagem
dialética que procura uma síntese final, através da abordagem
diatópica que exige um posicionamento completamente dife-
rente. Esquecemos com muita frequência que a distância que
precisamos vencer entre diferentes culturas não é apenas fac-
tual (interpretação morfológica) ou temporal (interpretação dia-
crônica), mas principalmente espacial. Ou seja, muitas vezes
estamos em topoi diferentes, com postulados de base radical-
mente distintos, pois não desenvolveram seus respectivos
modos de inteligibilidade com base em uma mesma tradição
histórica comum ou por uma influência recíproca.
Assim a distância a ser vencida não é somente factual em
um contexto homogêneo, pois não se trata de examinar um
texto (cultura) através da analogia, explicitação, explicação,
comparação, indo do passado ao presente, como se faria para
revelar a riqueza de uma tradição a alguém que não a conheça
(interpretação morfológica). Tampouco trata-se de ir do presen-
te para o passado, tentando ultrapassar os anacronismos e o
fosso temporal que nos separa, tomando consciência da hete-
rogeneidade do contexto para melhor integrá-lo, a fim de com-
preender melhor as diferenças (interpretação diacrônica).
Precisamos ir um pouco mais longe, assumindo que nos-
sas respectivas formas de pensar, nossos critérios, nossos pos-
tulados fundamentais e ainda as questões formuladas não são
os mesmos. Quando tentamos entender um texto (cultura) que
se acha forçosamente fora de nossa própria cultura, não pode-
mos pretender que as normas que governam a interpretação do
texto sejam as mesmas que as de nossa cultura. Precisamos,
portanto, examinar profundamente nossos postulados, nossas
As Culturas não são Disciplinas: Existe o Transcultural? – Agustí Nicolau Coll
85
11
Nos pontos 5-2, 5-3 e 5-4 retomo o essencial de Robert Vachon, 1995.
estruturas mentais e nossos mitos mais profundos para ver se
são ou não os mesmos. Para compreender outras culturas, não
basta ter consciência da originalidade de seus processos e lógi-
cas (sistemas e estruturas próprios), mas também seus horizon-
tes e visões, ou seja, os mitos de seus próprios topoi.
A interpretação diatópica é a que procura entender as cul-
turas em suas diferenças, reunindo-as (mas não justapondo-as)
em um diálogo que facilita a emergência de um novo horizon-
te de inteligibilidade, sem que por isso este horizonte seja
exclusivamente o de uma única cultura (dia-tópica, que atra-
vessa os topoi para chegar ao mito do qual eles são a expres-
são). A interpretação diatópica é aquela que procura entender
a textura do contexto para vencer a distância, não do presente
em relação ao passado, ou do passado em relação ao presen-
te, mas do presente em relação ao presente.
5.3 Abordagem dialogal
Além de uma abordagem diatópica, precisamos também
de uma abordagem dialogal, no sentido de uma superação da
forma moderna de compreensão da realidade baseada na con-
ceitualização, considerando que um conceito só é válido no
lugar onde foi concebido. A abordagem dialogal é aquela que
atravessa o logos para chegar a um terreno comum que o logos
sozinho nunca poderá exprimir e que, como já vimos, é o mito.
A interculturalidade não deve permanecer prisioneira do
totalitarismo do logos e, para consegui-lo, precisamos atingir, a
partir do interior de cada cultura – relacionado a uma comu-
nhão mítica pessoal – os mitos profundos que sustentam e ali-
mentam as outras culturas, deixando-nos interpelar pessoal-
mente por estes e pelo que transcende, impregna, distingue e
relaciona as diferentes culturas.
O abordagem dialogal repousa sobre o postulado de que
ninguém isoladamente (quer se trate de uma pessoa ou de uma
cultura) possui a capacidade de alcançar o horizonte universal
da experiência humana e que somente se as regras do diálogo
não forem postuladas unilateralmente, o Homem poderá atin-
gir uma inteligência mais profunda e mais universal de si
Educação e Transdisciplinaridade II
86
mesmo, para assim alcançar sua própria realização.
Se considerarmos as outras culturas como simples objetos
de conhecimento, como fatos históricos quantificáveis, qualifi-
cáveis, objetiváveis, analisáveis, conceitualizáveis e mesmo inte-
ligíveis, estaremos mutilando-as, pois elas são muito mais do
que isso. Trata-se de realidades existenciais, pessoais, sagradas,
míticas, alguma coisa de infinita para os que a vivem. As cultu-
ras, vamos repetir uma vez mais, não se situam somente no
campo do logos, mas também no campo do mito, ou seja, no
campo de diferenças derradeiras e fundamentais, que não são
dialéticas (sem, por isso, serem anti-dialéticas).
Poderemos compreender realmente as outras culturas na
medida em que formos conquistados por seu coração mítico,
que é a intencionalidade última, a alma que assegura sua exis-
tência. Esta intencionalidade encontra-se enraizada no mito,
mesmo no caso da cultura ocidental moderna baseada no mito
da supremacia da razão e da ciência.
Isso significa que o tratamento dialético dos sociológos,
etnógrafos, etnólogos, antropólogos, ainda que necessário,
continua nitidamente insuficiente para perceber as culturas
naquilo que elas são existencialmente, pois elas escapam a uma
análise exclusivamente objetiva, lógica, teórica que pode mes-
mo tornar-se uma profanação se se pretender auto-suficiente e
não se fizer acompanhar de uma comunhão mítica.
Com efeito, podemos atingir o outro somente descobrin-
do-o, não somente como um simples objeto de inteligibilidade
(aliud), mas como alguém em si mesmo (alius). Devemos per-
ceber o que o outro pensa e acredita de si mesmo e não ape-
nas o que pensamos e acreditamos a respeito dele.
A abordagem dialogal não é uma simples fonte de informa-
ção, mas um caminho para chegar, a partir do interior, a uma
compreensão e uma realização mais profundas do outro e de si
mesmo. É um diálogo no qual permitimos que o outro e sua
verdade nos interpele a partir de nossa própria vida e em nos-
sos valores pessoais. Podemos conhecer profundamente somen-
te aquilo (ou aquele) em que acreditamos pessoalmente, com
uma fé pessoal, vivendo pessoalmente uma comunhão mítica.
As Culturas não são Disciplinas: Existe o Transcultural? – Agustí Nicolau Coll
87
6. O transcultural existe?
Depois deste percurso bastante condensado e rápido
sobre alguns elementos que constituem a cultura, tentaremos
responder à questão do início: “O transcultural existe?”
Pessoalmente acredito que podemos falar de transcultural
somente no que diz respeito a determinadas estruturas funda-
mentais da cultura, tal como vimos no que diz respeito às três
dimensões ontonômicas (mito, logos, mistério) ou à dimensão
cosmoteândrica. O transcultural corresponderia então à partilha
de certas invariantes humanas que estão presentes em todas as
culturas como elementos estruturantes destas, mas não em seus
conteúdos e explicitações.
Contrariamente ao que deixaria entender o próprio título
de um artigo de Michel Cazenave
12
, não acho que a passagem
a fazer seja do intercultural ao transcultural, mas, precisamen-
te, pelo que acabo de dizer, do transcultural ao intercultural. É
por existirem certas dimensões transculturais que podemos pre-
tender um diálogo intercultural como realidade plausível, não
para chegar ao estabelecimento de uma transcultura ou meta-
cultura, mas para que as diferentes culturas possam chegar a
ser mais completas em todas suas dimensões, para serem mais
plenamente o que já são.
Neste sentido eu me permito, a título de exemplo, falar de
uma experiência pessoal. Como cristão procuro um diálogo e
um conhecimento do budismo, não para tornar-me budista
(sem com isso excluir tal possibilidade) e menos ainda para
fazer uma síntese superior. Meu objetivo é descobrir, em conta-
to com o budismo, a dimensão búdica (não confundir com
budista) de meu cristianismo. Da mesma forma que um budis-
ta pode iniciar um contato e um diálogo com o cristianismo que
lhe permitirá perceber melhor a dimensão crística (que não
deve ser confundida com cristã) do budismo
13
, continuando a
Educação e Transdisciplinaridade II
88
12
De l’Interculturel au transculturel (Do Intercultural ao Transcultural), Cf. Cazenave 1997. Mas não acho
que seja esta a intenção do autor em seu artigo, que contém inúmeras reflexões com as quais compartilho
plenamente.
13
Do mesmo modo que nem o cristianismo nem o Cristo têm a exclusividade da experiência crística, o
Buda e o budismo também não têm a exclusividade da experiência búdica. Nos dois casos, experiência crís-
tica e experiência búdica precedem suas respectivas concretizações históricas mais importantes que nunca
chegarão a esgotá-las, ainda que possam ser suas expressões privilegiadas, mas não únicas.
ser budista.
Aliás, também não penso que o transcultural se desenvol-
va na unidade da questão colocada
14
, embora aceite a diversi-
dade de respostas fornecidas. Além do fato de que seja possí-
vel partilhar certas questões, às vezes acontece que as questões
fundamentais das diferentes culturas e civilizações sejam funda-
mentalmente diferentes. Com nos lembra Panikkar:
“ (…) cada língua é um mundo (…) cada cultura é uma galá-
xia com seus próprios critérios de bondade, beleza e verdade.
Mencionamos que a verdade, devido ao fato de ser ela própria
relação, é pluralista, se se entende por pluralismo a consciência
da incompatibilidade das diferentes visões do mundo, bem
como a consciência da impossibilidade de julgá-las imparcial-
mente, uma vez que ninguém se encontra acima de sua própria
cultura que lhe fornece os elementos para o julgamento.”
(Panikkar 1998: 29)
O intercultural nos faz descobrir que o jogo entre o Um e
o Múltiplo se desenrola precisamente e em primeiro lugar no
interior de cada cultura, que é ao mesmo tempo completa e
incompleta, ponto de chegada e ponto de partida. Em última
análise, acredito que podemos conceber o transcultural como
horizonte de nossas respectivas experiências culturais, na medi-
da em que não esqueçamos que ninguém nunca esteve no
horizonte.
Finalmente, não acho que cada cultura seja um instrumen-
to de uma sinfonia
15
, mas antes uma sinfonia em si mesma que,
certamente, através da escuta atenta e amorosa de outras sinfo-
nias, com outros ritmos e outros instrumentos, pode enriquecer
a maneira de tocar sua partitura.
As Culturas não são Disciplinas: Existe o Transcultural? – Agustí Nicolau Coll
89
14
Cf Cazenave 1997, idem, ibidem, p. 91.
15
De l’Interculturel au transculturel (Do Intercultural ao Transcultural), Cf. Cazenave 1997, p. 95.
Educação e Transdisciplinaridade II
90
DIAGRAMA V
(de Robert Vachon)
Dupla dimensão (mítico-lógica) de cultura
ORDEM MÍTICO-SIMBÓLICA
O SÍMBOLO verbum entis
CONSCIÊNCIA MÍTICO-SIMBÓLICA
A REALIDADE E A VERDADE SIMBÓLICA
O IMPENSADO / O NÃO-DEFINIDO
A DIMENSÃO MÍTICA DA CULTURA INCLUI:
O mito (englobado)
(a origem, a matriz, o não-pensado, o não-dito)
(mitema)
O símbolo (instrumento do mito)
A fé (veículo do mito)
As crenças/convicções (articulam a fé) credita
(pistema-ta)
O rito/culto (mito em ação)
(expressão do mito)
EXPERIÊNCIA
EXPRESSÃO
DA EXPERIÊNCIA
(logos do ser)
verbum entis
MYTHOS
(sentido
primeiro)
LOGOS
explicação,
acolhimento
e celebração
do mito
As Culturas não são disciplinas: existe o Transcultural? Augustí Nicolau Coll
91
ORDEM LÓGICO-EPISTÊMICA
O SIGNO verbum mentis
CONSCIÊNCIA EPISTEMOLÓGICA/GNÓSTICA
A VERDADE E A REALIDADE CONCEITUAL
O PENSAMENTO / O DEFINIDO
O NÃO-DEFINIDO
O IMPENSADO
A DIMENSÃO LÓGICA INCLUI:
(sentido restrito)
O logos: pensamento
O conceito/signo/termo (instrumento do logos)
A razão (veículo do logos)
A ciência (expressão do logos) (cognita, noema-ta)
(gnosis)
O IMPENSÁVEL / O INDIZÍVEL /
A LIBERDADE DA REALIDADE
Mysterium conjunctionis
N.B. O mito é o veículo do mysterium (R. P. 1, 41)
INTERPRETAÇÃO
DA EXPERIÊNCIA
(logos do pensamento)
verbum mentis
(produto do intelecto)
N.B. O mistério não é redutível a um enigma
N.B. Mysterium aqui não significa algo que se refira
a tipo algum de estado psicológico, como visões, etc.
(sentido
segundo)
PNEUMA
BIBLIOGRAFIA CITADA
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chologie de la motivation, nº 23, pp. 84-95.
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Betancourt (Hrsg.) Unterwegs zur interkulturellen Philosophie.
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le Philosophie. IKO - Verlag fur Interkulturelle Kommunikation.
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VACHON Robert, 1997. Le Mythe émergent du pluralisme et de linter-
culturalisme de la réalité, conferência dada no seminário Plura-
lisme et Société. Discours alternatifs à la culture dominante, or-
ganizado pelo Institut Interculturel de Montréal, em 15 de feve-
reiro de 1997.
Educação e Transdisciplinaridade II
92
Conferência proferida no II Encontro Catalisador do CETRANS
da Escola do Futuro da USP, que ocorreu no Guarujá,
São Paulo, de 8 a 11 de junho de 2000
Pascal Galvani – Mestre de Conferências associado. Universi-
dade François Rabelais, Tours, França. Desde 1979, trabalhou
nas periferias urbanas com jovens marginalizados e, no meio
rural, com a formação profissional. Após um período de for-
mação em ruptura com as instituições escolares, retomou, a
partir de 1988, uma formação universitária paralela à sua ativi-
dade profissional.
Educação e Transdisciplinaridade II
94
A Autoformação,
uma perspectiva transpessoal,
transdisciplinar e transcultural
A questão que nos reúne, abrir as portas para uma forma-
ção transdisciplinar, é portadora de uma grande responsabilida-
de. Essa responsabilidade está diretamente ligada a dois desa-
fios vitais: a perturbação dos equilíbrios ecológicos, devidos à
busca incessante do lucro, e a crise antropológica aberta pelo
aumento da população e pelas trocas transculturais. Esses dese-
quilíbrios são herdados diretamente de uma visão ocidental de
mundo, datada do século XIX. Essa visão de mundo se carac-
teriza pelo materialismo, pela redução do real apenas ao nível
de realidade material, pela divisão do conhecimento em disci-
plinas especializadas que recortam a realidade, pela redução do
ser humano ao indivíduo racional, egocêntrico ou econômico,
pela divisão das culturas e pela ideologia nacionalista. O campo
da educação se encontra assim confrontado com a supremacia
dessa ideologia cientificista
1
que se impõe mundialmente, em
nome de referências científicas ultrapassadas, com o apoio das
tecnologias ocidentais da informação. Face a esses desafios,
não podemos deixar de nos sentir individualmente muito fra-
cos. Como a educação e a formação podem contribuir para
uma mutação dessa visão destruidora do mundo?
Para tentar abrir uma pista de trabalho nessa imensa ques-
tão, parece-me que deveríamos inverter completamente o eixo
da ação educativa para desenvolver uma abordagem interior da
educação: a autoformação. Esta comunicação pretenderia mos-
trar que a autoformação implica, por um lado, numa abordagem
transdisciplinar, para considerar a pluralidade de níveis de rea-
lidade desses dois conceitos: autos (si) e formação. E, por outro
lado, que a autoformação é um processo antropológico que
implica numa abordagem transcultural. A abordagem apresenta-
da aqui é em parte proveniente da minha experiência de forma-
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
95
1
Basarab Nicolescu, O Manifesto da Transdisciplinaridade, Ed. Triom, São Paulo, 2ª ed., 2001.
dor no campo da educação permanente na França, bem como
do meu percurso de pesquisador prático no âmbito do labora-
tório de ciências da educação e da formação no qual eu traba-
lho com Gaston Pineau na formalização de uma abordagem bio-
cognitiva da autoformação. Além disso, esta abordagem foi mui-
to inspirada nos aprendizados transculturais que vivi no contex-
to americano com meus amigos Shoshones (estado de Idaho,
EUA) e Ilnu (norte da província de Quebec, Canadá).
I. O trajeto antropológico da autoformação
A autoformação não é concebida aqui como um processo
isolado. Não se trata da egoformação propalada por uma visão
individualista. A autoformação é um componente da formação
considerada como um processo tripolar, pilotado por três pólos
principais: si (autoformação), os outros (heteroformação), as
coisas (ecoformação).
Um processo tripolar
A formação: um processo vital e permanente de morfogêneses e metamorfo-
ses emergindo das interações entre a pessoa e o meio ambiente físico e social
O processo de formação conduzido pelo pólo hétero inclui
a educação, as influências sociais herdadas da família, do meio
social e da cultura, das ações de formação inicial e contínua, etc.
Essa heteroformação é definida e hierarquizada de maneira
heterônima pelo meio ambiente cultural.
A formação conduzida pelo pólo eco se compõe das in-
fluências físicas, climáticas e das interações físico-corporais que
dão forma à pessoa. Ela inclui também uma dimensão simbóli-
S-1 S-2
S-3
AUTOFORMAÇÃO
Meio-Ambiente
Pessoa
HETEROFORMAÇÃO
ECOFORMAÇÃO
Educação e Transdisciplinaridade II
96
ca. O meio ambiente físico em todas as suas variedades (flores-
tas, desertos, países temperados, metrópoles urbanas, etc) pro-
duz uma forte influência sobre as culturas humanas, bem como
sobre o imaginário pessoal, que organiza o sentido dado à
experiência vivida.
Nesse esquema, a autoformação é representada por três
processos conduzidos pelo sujeito. Os processo S.1 e S.2 sim-
bolizam as tomadas de consciência e as retroações da pessoa
sobre as influências físicas e sociais recebidas. Essas assimila-
ções formadoras correspondem ao conceito de acoplamentos
estruturais de Varela
2
. O processo S.3 simboliza a tomada de
consciência do sujeito sobre seu próprio funcionamento, que
Varela chama de fechamento operacional. Essas três dinâmicas
de autoformação são processos de tomada de consciência e de
retroação da autos sobre si mesma e sobre suas interações com
o meio ambiente físico e social. Essas retroações e tomadas de
consciência são indissociáveis das interações que as fizeram
nascer. A autoformação é um processo paradoxal que se ali-
menta de suas dependências. Ela é constituída pela tomada de
consciência e de retroação sobre as influências heteroformati-
vas e ecoformativas. Assim, a autoformação ultrapassa, inte-
grando-os, os limites da educação entendida transmissão-aqui-
sição de saberes e de comportamentos.
Um triplo movimento de tomada de consciência reflexiva
Esse triplo movimento de tomada de consciência e de
tomada de poder da pessoa sobre sua formação parece ser a
base de uma definição conceitual da autoformação. A autofor-
mação aparece aqui como o surgimento de uma consciência
original na interação com o meio ambiente. A autoformação se
caracteriza pelo imbricamento da reflexividade e da interação
entre a pessoa e o meio ambiente.
3
Não é possível pensar a autoformação sem articular o aco-
plamento interativo pessoa/meio ambiente e a tomada de cons-
ciência reflexiva. Sem essa articulação, só existiriam acopla-
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
97
2
Francisco Varela, Autonomie et connaissance: essai sur le vivant, Paris, Seuil, 1989.
3
Pascal Galvani, Quête de sens et formation, Anthropologie du blason et de l’autoformation, L’Harmattan,
Paris, 1997.
mentos reflexos e condicionantes sem nenhuma possibilidade
de autonomização do sujeito. A autoformação se declina então
em três processos de retroação: retroação de si sobre si (subje-
tivação), retroação sobre o meio ambiente social (socialização)
e retroação sobre o meio ambiente físico (ecologização).
A interação e a retroação reflexiva se entremesclam como
hierarquias imbricadas. A combinação da retroação reflexiva da
autos e das interações tripolares da formação constitui a base
de uma concepção antropológica da formação. Essa dinâmica
de morfogênese e de metamorfose das representações foi ana-
lisada por Gilbert Durand como trajeto antropológico, “isto é, a
troca incessante que existe no nível do imaginário entre as pul-
sões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que
emanam do meio cósmico e social”.
4
Para avançar numa abordagem transdisciplinar da autofor-
mação, teremos em vista primeiro a pluralidade dos níveis de
consciência reflexiva da autos, para em seguida abordar a plu-
ralidade dos níveis de interação que compõem a formação.
II. Pluralidade dos níveis de consciência
reflexiva da autos
O círculo reflexivo da autos não designa apenas o indiví-
duo ou o eu psicológico, mas também a pessoa, concebida co-
Interação com os
elementos formadores do
ambiente físico ou social
(acoplamento estrutural)
Tomada de consciência
e retroação de si sobre si
e sobre as interações
com meio ambiente
(fechamento operacional)
O duplo círculo imbricado da autoformação
Educação e Transdisciplinaridade II
98
4
Idem, ibidem.
mo lugar de relação, e o sujeito consciente. A reflexividade da
autos remete a uma pluralidade de níveis de consciência e de
atualização da originalidade pessoal. Poderíamos definir provi-
soriamente a autos como uma consciência original emergindo e
retroagindo sobre os processos que a fizeram nascer. A autos,
ou si, não é uma realidade substancial e localizável, mas uma
emergência, uma originalidade em relação.
5
O prefixo auto re-
mete não apenas ao eu psicológico, mas a uma pluralidade de
níveis que podem ser enunciados conforme os diferentes regi-
mes do trajeto antropológico.
6
Regime diurno do trajeto antropológico:
a autoformação como manifestação de si
A autoformação começa com as primeiras oposições do su-
jeito face aos determinantes herdados do meio ambiente. O re-
gime diurno da autoformação corresponde a esse nível de rea-
lidade no qual o sujeito emerge de maneira heróica opondo-se
aos determinismos.
7
Nesse nível, a autoformação se atualiza
como uma egoformação. A atualização heróica e diferenciadora
do sujeito se exprime pela afirmação do eu
8
, pela autodireção
das aprendizagens
9
, ou ainda pela manifestação de um sujeito
social que aprende
10
.
Mas, correndo o risco de cair no autismo, o trajeto antro-
pológico da autoformação deve, necessariamente, passar da
oposição a uma cooperação entre o sujeito e o meio ambiente.
Regime noturno sintético do trajeto antropológico:
a autoformação como desenvolvimento cooperativo com o
meio ambiente
Uma outra dimensão da autoformação se encontra num
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
99
5
Francisco Varela, L’Inscription corporelle de l’esprit: sciences congnitives et expériences humaines, Paris,
Seuil, 1993.
6
Pascal Galvani, Quête de sens et formation, Anthropologie du blason et de l’autoformation, L’Harmattan,
Paris, 1997.
7
Idem, ibidem, cap. 3.1.
8
Michel Lacroix, Le Développement personnel, Paris, Flammarion, col. Dominos, 2000.
9
Carre P., Moisan A., Possion D., L’Autoformation: psychopédagogie, ingénierie, sociologie, Paris: PUF, 1997.
10
Joffre Dumazedier, La Méthode d’entraînement menstal, em Sorel, Pratiques nouvelles en éducation et en
formation, Paris, L’Harmattan, 1994, pp 79-94 et Georges Le Meur, Les Nouveaux autodidactes: néoautodi-
daxie et formation, Lyon: Chronique Sociale, 1998.
regime noturno organizado por leis de complementaridade do
sujeito e do objeto para desenvolver-se no tempo
11
. Esse nível
de atualização da autoformação se dá a partir de cooperações.
Ele se regula mais numa dinâmica de desenvolvimento gradual
no tempo que numa dinâmica de manifestação. Muitas aborda-
gens da autoformação atualizam de maneira dominante esse
regime: as prática de autoformação recíprocas
12
, ou os grupos
de praxiologia
13
.
Regime místico do trajeto antropológico:
a autoformação como consciência fusional de uma
participação no ser
O último regime do trajeto antropológico identificado por
Gilbert Durand é o da fusão do sujeito e do objeto. Esse regi-
me se caracteriza pela interiorização fusional do meio ambien-
te
14
numa consciência participante que transgride todas as sepa-
rações do sujeito e do objeto. Essa integração é um processo de
individuação, ou, dito de outro modo, de dissolução das frag-
mentações engendradas pela consciência egocêntrica. É a expe-
riência de Si
15
na mística ou na poesia. É a experiência visioná-
ria na criação científica e artística
16
.
O paroxismo do regime noturno místico se realiza quando
a transação entre a pessoa e o meio ambiente não é mais
suportada nem por uma intencionalidade nem por representa-
ções. Ela é literalmente sem formas e sem idéias
17
. Ela corres-
ponde às abordagens de dissolução do ego nas práticas de
desenvolvimento pessoal
18
. Ela é vivida na presença total do
ato
19
, na participação do jorrar do instante
20
, ou ainda na cons-
Educação e Transdisciplinaridade II
100
11
Pascal Galvani, Quête de sens et formation anthropologie du blason et de l’autoformation, L’Harmattan,
Paris, 1997, cap 3.2.
12
Marc et Claire He, Echanger les savoirs, Paris: Desclée de Brouwer, 1992.
13
Payette A. & Champagne C., Le Groupe de codéveloppement professionnel, Presses d l’Université du
Québec, 1997; St-Arnaud Yves, Connaître par l’action, Montréal, Les presses de l’Université de Montréal,
1992; Alexandre Lhotellier, «Action, praxéologie et autoformation», dans L’Autoformation en chantiers, revue
Education Permanente nº 122, 1995, pp: 233-243.
14
Galvani Pascal, 1997, idem, ibidem, cap. 3.3.
15
Louis Gardet & Olivier Lacombe, L’Expérience du soi, Paris, Desclée de Brouwer, 1981.
16
Michel Ramdon, L’Art visionaire, Paris: Philippe Lebaud éditeur, 1991.
17
François Jullien, Une Sage est sans idée, ou l’autre de la philosophie, Paris, Seuil, 1998.
18
Michel Lacroix, Le Développement personnel, Paris: Flammarion, col. Dominos, 2000.
19
Louis Lavelle, La Conscience de soi, Paris, Grasset, 1933.
20
Gaston Bachelard, L’Intuition de l’instant, Paris, Gauthier, 1932, (Stock 1992).
ciência meditativa purificada de toda a intencionalidade
21
.
Hierarquias imbricadas dos níveis de consciência da autos
A autos pode se referir ao eu, mas pode se referir também
ao sujeito, ou ainda à originalidade viva de cada pessoa, que
não necessariamente egocêntrica. Assim, o prefixo auto não
pode ser traduzido simplesmente por sujeito, ego, self, si, etc.
Uma perspectiva transdisciplinar, abrindo para os diferentes ní-
veis de realidade, permite que consideremos que esse prefixo
remete a diferentes níveis de consciência, cada um dos quais
tendo suas próprias leis e sua própria coerência. No seu livro
La Conscience de soi, o filósofo existencialista Luis Lavelle de-
senvolveu detalhadamente como os níveis de consciência do
sujeito são heterogêneos e ao mesmo tempo ligados por hierar-
quias imbricadas. Uma citação, um pouco longa, do seu Ma-
nuel de méthodologie dialectique, se justifica aqui tanto pela sua
pertinência quanto pela dificuldade que se tem de encontrar
essa obra. “A consciência deve ser definida pela relação inter-
na entre o sujeito psicológico, o sujeito transcendental e o sujei-
to absoluto. A palavra sujeito (…) não designa nada mais senão
o centro em relação ao qual examinamos o real considerado
em sua totalidade. O sujeito psicológico é o centro de toda pers-
pectiva individual; o sujeito transcendental, o centro de toda
perspectiva em geral; o sujeito absoluto, o centro sem perspecti-
va, consequentemente, não mais o centro abstrato de todas as
perspectivas particulares, mas o centro concreto que as abole ao
mesmo tempo que as fundamenta. Ora, onde está a consciên-
cia? (…) A consciência resulta, poderíamos dizer, de uma cir-
culação entre esses três aspectos do mesmo sujeito. O sujeito psi-
cológico reconhece sua própria individualidade no momento
em que ele percebe sua limitação, isto é, no momento em que o
sujeito transcendental o toma como objeto e o ultrapassa; o su-
jeito transcendental, por sua vez, só pode ser definido pela limi-
tação do caráter perspectivo, em geral, que faz com que ele seja,
mas que o obriga a se ultrapassar. O que, numa linguagem
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
101
21
Jidhu Krishnamurti, Journal, Paris, Buchet-Chastel, 1992.
mais elementar, implica que a consciência sempre resulta da
relação viva que se estabelece em cada um de nós entre o indi-
víduo, o homem (ou, mais precisamente, o ser finito em geral) e
o ser absoluto, sem que seja possível atribui-lo a nenhum dos três
termos senão em sua relação com os outros dois (…)”. (Lavelle
1962, p. 59) Não pode haver sujeito puramente psicológico,
pois ele deve ter do sujeito transcendental a consciência que
ele tem de si mesmo. Eu só tenho consciência de mim mesmo
porque um nível superior (sujeito transcendental) me permite
me pensar como eu entre outros eus e, portanto, integrar a pos-
sibilidade de outros centros de perspectiva sobre o real. Mas,
além disso, essa possibilidade de todas as perspectivas sobre o
real só se justifica pelo sujeito absoluto estranho a todas as
perspectivas e que contém a todas.
22
A autoformação deve ser apreendida a partir dos níveis bio-
lógicos, psicológicos e sócio-antropológicos (Morin, 1986), que
são níveis de resistência correspondentes a leis diferentes, embo-
ra estando ligados por um fluxo de informação transpessoal que
obriga a postular uma zona de não-resistência absoluta
23
. O ob-
jetivo deste artigo não é desenvolver uma conceitualização mais
precisa dos níveis de consciência da autos, mas reconhecer a
pluralidade desses níveis, bem como seu imbricamento ligado
aos processos de tomada de consciência, de interiorização e de
descentração.
A pesquisa sobre os níveis de realidade da autos, que per-
manece pouco desenvolvida no Ocidente, se beneficiará dos
aportes das outras culturas. A autoformação na perspectiva con-
fuciana insiste, por exemplo, na necessidade de harmonização
ética dos diferentes níveis de atualização do si físico, psíquico,
pessoal, social e cósmico.
24
III. Pluralidade dos níveis de realidade da formação
Como a autos, a formação também diz respeito a vários
níveis de realidade. A formação pode ser definida como a his-
Educação e Transdisciplinaridade II
102
22
Louis Lavelle, La Conscience de soi, Paris: Grasset, 1933.
23
Basarab Nicolescu, O Manifesto da Transdisciplinaridade, Ed. Triom, São Paulo, 2ª ed., 2001.
24
Kyung Hi Kim, 2000, Learning for What: a Confucian Persuit of Self-Learning, communication au second
symposium mondial sur l’autoformation à Royaumont.
tória dos acoplamentos estruturais (ou interações) de um ser
com seu meio ambiente físico e social
25
. São esses acoplamen-
tos estruturais que dão forma à pessoa e que fazem com que as
representações que ela constrói do mundo, dos outros e dela
mesma se manifestem. Ela é a manifestação (morfogênese) e a
transformação (metamorfose) das formas que estruturam a pes-
soa na sua interação com o meio ambiente. Ora, a epistemolo-
gia genética e a antropologia cognitiva nos mostram que as
representações se constróem em diferentes níveis de interação
com o meio ambiente. Assim, podemos considerar que a forma-
ção comporta vários níveis de realidade constituídos por dife-
rentes níveis de interação entre a pessoa e o meio ambiente.
Podemos citar provisoriamente três níveis de interação for-
madora entre a pessoa e o meio ambiente: o nível prático do
gesto, o nível simbólico do imaginário e o nível epistêmico do
conceito. Esses três níveis de interação correspondem a três
níveis de representação e de manifestação do sentido: a ima-
gem (o sentido como percepção), o gesto (o sentido como
orientação) e o conceito (o sentido como significação).
O nível das interações simbólicas corresponde a uma ra-
zão sensível. Ele é composto pelas formas, pelas imagens e pe-
los símbolos com os quais entramos em ressonância, que nos
colocam em forma e com os quais produzimos sentido.
O nível das interações práticas corresponde a uma razão
Pessoa
Meio ambiente
HETERO
FORMAÇÃO
ECO
FORMAÇÃO
AUTOFORMAÇÃO
Interações simbólicas:
imagens
Interações práticas:
gestos
Interações epistêmicas:
conceitos
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
103
25
Galvani Pascal, 1997, idem, ibidem, cap.1.
experiencial. Ele é composto pelos gestos, pelos esquemas
operatórios físicos e mentais que nos estruturam e também nos
permitem interagir com o meio ambiente.
O nível das interações epistêmicas corresponde a uma
razão formal. Ele é composto pelos saberes formais e pelos
conceitos que nos estruturam nas trocas com o meio ambiente
social e cultural.
Esses diferentes níveis da formação não estão separados,
mas estão ligados entre si como os níveis da autos. Para a psi-
cologia genética, os esquemas de interação sensório-motores se
interiorizam em imagens, depois em linguagem. A abordagem
antropológica das representações mostra que os conceitos da
razão epistêmica são cristalizações convencionais dos gestos e
das imagens simbólicas
26
. A abordagem ecossistêmica do laço
social
27
mostra que ela se estrutura pela interação de três ope-
radores: o rito (nível operatório dos gestos), o mito (nível ima-
ginário dos símbolos) e episteme (nível racional dos conceitos).
Seguindo a ordem de primazia antropogenética, a autofor-
mação seria definida pela interiorização (tomada de consciência,
descentração, abstração) dos níveis de interação entre a pessoa
e o meio ambiente:
nível prático das interações sensório-motoras: a autofor-
mação se atualiza como tomada de consciência dos es-
quemas de interação operatórias gestuais e também
intelectuais, sociais, afetivas;
nível simbólico das interações imaginária e mitopoética:
a autoformação se atualiza como tomada de consciência
das formas simbólicas (Galvani 1997) e dos relatos his-
tóricos
28
. Neste nível, a autoformação é a tomada de
consciência das histórias, lendas e hábitos pessoais, fa-
miliares, sociais e culturais que nos formaram e nós for-
mamos e transformamos;
Educação e Transdisciplinaridade II
104
26
Durand, 1969, Alleau 1982, Jousse 1974.
27
Miermont, 1993.
28
Gaston Pineau, Temporalités en formation. Vers de nouveaus synchroniseurs, Paris, Anthropos, 2000.
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
105
nível da linguagem conceitual epistêmica: neste nível, a
autoformação é o processo de análise e de produção de
significados a partir de sua experiência. Este nível é par-
ticularmente desenvolvido na formação experiencial
com predominância racional e científica. Trata-se de co-
locar à distância, de analisar, de confrontar o saber sub-
jetivo com a análise e a coerência lógico-formal.
Apesar da importância dos níveis simbólico e prático, a
maioria dos trabalhos sobre a autoformação ainda está centrada
no nível epistêmico dos saberes formais. Esse desequilíbrio se ex-
Simbólico:
Conhecimento
(Legroux 1981)
Saber-gnose
(Lerbet 1992)
Mitos
(Miermont 1993)
Fantasia
(Bachelard 1989)
Mitopoético:
Razão sensível
(Denoyel 1999)
Processo de
inferência do
sentido por
transdução
Participativo:
Por ressonâncias
mitopoéticas
das formas
da experiência
da imaginação
ativa e criadora
Noturno Místico
Esquema: fusão
das polaridades
Prático:
Saber
(Legroux 1981)
Saber-interface
(Lerbet 1992)
Ritual
(Miermont 1993)
Experiencial:
Razão experiencial
(Denoyel 1999)
Processo de
inferência do
sentido por
indução/abdução
Interativo:
Semi-consciente
por combinações
de reflexos e de
reflexão na e
sobre a ação
Noturno Sintético
Esquema:
articulação e
complemen-
taridade dos pólos
no tempo
Epistêmico:
Saberes formais,
corpos de
conhecimentos
reconhecidos
numa determinada
sociedade:
Informação
(Legroux 1981)
Saber-episteme
(Lerbet 1992)
Episteme
(Miermont 1993)
Semiótico:
Razão formal
(Denoyel 1999)
Processo de
inferência
do sentido
por dedução
Refletido:
Por tomada de
consciência e de
distância pela
analise reflexiva
Diurno
Esquema:
distinção,
oposições das
polaridades
(sujeito-objeto)
Níveis de realidade
ou de interação
entre a pessoa e
o meio ambiente
Níveis de
representação
e tipos de razões
Níveis de
consciência
Regime do trajeto
antropológico da
formação
plica tanto pelo domínio do imaginário social tecnocientífico
quanto pelo peso predominante dos financiamentos de pesquisas
ligadas aos dispositivos formais de formação. No entanto, os tra-
balhos antropológicos mostram que o nível epistêmico provavel-
mente é o mais superficial. A episteme social instituída é profun-
damente estruturada tanto pelo imaginário simbólico, que é sua
origem instituinte
29
, quanto pelo sentido prático que forma a pes-
soa e a cultura no cotidiano
30
.
IV. A exploração dos níveis de retroação
reflexiva da autoformação
A partir dessa base de definição conceitual da autoformação
como consciência original emergente dos três níveis de interação
com o meio ambiente, podemos tentar abrir uma pista metodo-
lógica para ‘trabalhar em formação’
31
. Essa pista me parece ser a
exploração intersubjetiva dos níveis de autoformação. Ela se en-
raíza para mim numa prática de animação de ateliês de práticos
32
que integra várias abordagens teóricas e metodológicas
33
.
Para levar em conta os diferentes níveis de realidade da
formação, a exploração da autoformação deve se fazer segun-
do formas diferentes em função do nível de interação ao qual
ela se aplica.
As práticas de exploração intersubjetivas da autoformação
se distinguem conforme o nível de realidade que elas privile-
giam, em função do qual elas constróem suportes diferentes e
produzem níveis de representação diferentes cujos critérios de
validade são heterogêneos. No entanto, elas estão interligadas
pelo terceiro incluído da dinâmica de interiorização e de retroa-
ção da autos que lhes dá uma estrutura comum:
organizar um retorno reflexivo sobre a experiência a par-
Educação e Transdisciplinaridade II
106
29
Cornelius Castoriades, L’Institution imaginaire de la societé, Paris, Seuil, 1975.
30
Edward T. Hall, La Dimension cachée, Paris, Seuil, 1971; Marcel Jousse, L’Anthropologie du geste, Paris,
Gallimard, 1974; François Jullien, Traité de l’efficacité, Paris, Grasset, 1996.
31
Bernard Honore, Vers l’œuvre de formation: l’ouverture à l’existence, Paris: L’Harmattan, 1992.
32
Pascal Galvani, Accompagner l’autoformation, une démarche et ses variantes didactiques, pratique et sym
bolique, em Nouvelle Revue de l’AIS, ed. Centre National de Suresnes, 2000-a.
33
As práticas listadas aqui não pretendem ser exaustivas, mas são citadas a título de ilustração. Ademais,
algumas dessas abordagens apresentam variantes que respondem a vários níveis de autoformação que seri-
am muito longos para detalhar aqui.
tir de um suporte metodológico cuja orientação pode
ser: epistêmica, prática ou simbólica;
solicitar uma produção pessoal para um suporte coeren-
te com o nível de formação visado (análises críticas, rela-
tos de práticas, histórias de vida, elaboração do brasão,
simbolização, etc);
articular o pessoal e o coletivo numa troca socializada a
partir das produções pessoais;
• mediatizar o cruzamento e a troca das produções pes-
soais para: pluralizar os pontos de vista, ativar a tomada
de consciência das diversas construções da realidade,
produzir efeitos emancipadores de tomada de consciên-
cia dos a priori, dos hábitos, dos etnométodos, etc.
Portanto, trabalhar na formação consiste em:
fazer um lugar para a autoformação das pessoas: reco-
nhecê-la e reunir as artes do fazer cotidianas da forma-
ção
34
;
propor abordagens e suportes de formalização;
criar mediatizações entre a autoformação, a co-formação
e os saberes formalizados (científicos, técnicos, poéticos,
filosóficos, espirituais, mitológicos, etc) numa perspecti-
va transdisciplinar.
Todas essas abordagens de exploração intersubjetiva da au-
toformação se caracterizam por um retorno reflexivo sobre a ex-
periência, por uma exploração coletiva e pelo cruzamento inter-
pessoal e intercultural das produções de saber. Essas abordagens
têm em vista a tomada de consciência e de poder das pessoas so-
bre sua própria autoformação em suas diferentes dimensões.
Dito de outro modo, os diferentes níveis de autoformação
não devem ser vistos como uma topografia horizontal que sepa-
ra as práticas em espaços delimitados. Trata-se de uma plurali-
dade vertical de níveis que compõem a autoformação de manei-
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
107
34
Michel de Certeau, L’Invention du quotidien, 1. Arts de faire, Paris, Gallimard, 1990.
Abordagens
Objetivos
dominantes
Práticas de
exploração
intersubjetiva
da autoformação
Nível
epistêmico
Reflexão
intelectual
analítica aplicada
à experiência.
Teorização da
prática.
Conscientização
das
conceitualizações
implícitas.
Produção de
saberes críticos
autorizando os
sujeitos a
participar no
debate intelectual.
Transformação da
prática pelo
contorno reflexivo
teórico.
Arrebatamento
mental
(Dumazedier
1994);
Aprendizagem
experiencial (Kolb
dans Courtois et
Pineau 1991);
Autobiografia
refletida e
conselho
metodológico para
a produção de
saberes de
pesquisadores
práticos (Desroche
1990; Chartier &
Lerbet 1993).
Nível prático
Exploração e
conscientização
dos modos de
interação pessoa,
meio ambiente.
Conscientização
dos saberes de
ação.
Desenvolvimento
da habilidade na
interação.
Transferência e
transformação dos
modos operativos.
Ateliê de práticos
reflexivos e de
praxiologia
(Schön 1994;
St-Arnaud 1992;
Lhotellier 1995);
Formação
experiencial
(Courtois &
Pineau 1991);
Co-desenvolvi-
mento profissional
(Payette &
Champagne 1997);
Conversações
de explicitação
(Vermersch 1994).
Nível simbólico
Hermenêutica
instaurativa do
sentido simbólico
da experiência.
Conscientização
das simbolizações
pessoais e
culturais da
formação.
Histórias de vida
em formação
(Pineau 2000);
Ateliê de explora-
ção do imaginário
em formação pelo
brasão (Galvani
1997);
Ateliês de Haïkus
em formação
(Lhotellier 1991).
Educação e Transdisciplinaridade II
108
ra concomitante e coerente. Como os níveis quântico e macro-
físico que compõem o real conforme ordens de realidade hete-
rogêneas mas interligadas por um terceiro incluído
35
, a formação
faz referência a níveis de representação com leis heterogêneas,
embora interligadas pela atualização da autoformação e pela di-
nâmica do terceiro incluído simbólico.
V. Por uma exploração transcultural da
autoformação
Para operar a passagem para uma abordagem transcultural
da formação, é necessário levar em conta a dimensão simbóli-
ca. A imaginação simbólica é o terceiro incluído de toda repre-
sentação humana. O modo de representação do símbolo pelo
seu caráter transdutivo é, de fato, ao mesmo tempo transpessoal,
transdisciplinar e transcultural. O imaginário simbólico funciona
por interferência transdutiva do sentido. O sentido passa do sin-
gular a outro singular sem passar por uma lei, por um princípio
ou por um conceito geral. As formas, os gestos e as imagens ar-
tísticas, por exemplo, produzem um sentido que coloca em res-
sonância as experiências singulares de cada um através da ima-
gem, da música ou da canção. Portanto, o símbolo é transdisci-
plinar, no sentido em que ele jamais limita o sentido a um único
nível de realidade. Assim, toda imagem simbólica é essencial-
mente multirreferencial. O símbolo do círculo, por exemplo, po-
de tanto remeter a significações geométricas quanto a significa-
ções metafísicas, ou ainda a significações éticas. O símbolo nos
orienta para ordens de realidade múltiplas (moral, poética, espi-
ritual, etc), sem ser limitado a designar um referente particular
tirado da experiência comum.
O símbolo tem a capacidade de significar uma mesma
idéia conforme todas as ordens possíveis de realidade, pois
nenhuma delas é, a priori, designada como ordem de referên-
cia objetiva. Consequentemente, a perspectiva referencial do
símbolo não é fixada a priori nem é unívoca: ela é “essencial-
mente múltipla (…) é, no fundo, considerar a significação do
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
109
35
Basarab Nicolescu, idem, ibidem.
símbolo como essencialmente potencial; em outras palavras, o
símbolo é, em sua essência, uma potencialidade semântica”
36
.
Essa potencialidade semântica do símbolo assegura uma aber-
tura para o real. Como diz René Alleau: “a realidade não exige
de nós que a reduzamos aos limites do nosso pensamento: ela
nos convida, antes, a nos fundirmos na ausência dos seus [limi-
tes]. Assim, a palavra sempre velada do símbolo pode nos prote-
ger do pior dos erros: o da descoberta de um sentido definitivo e
último das coisas e dos seres.”
37
A imaginação simbólica como matriz transcultural da
formação
Assim, o símbolo é a fonte de todo o conhecimento huma-
no. Desse ponto de vista, as representações epistêmicas científi-
cas, as representações gestuais e ritualísticas, bem como as repre-
sentações míticas de cada cultura nada mais são que cristaliza-
ções da potencialidade semântica inesgotável do símbolo. Então,
o imaginário não é uma faculdade local do psiquismo humano,
mas sim a matriz de todos os processos de conhecimento.
A imaginação simbólica comporta uma dimensão transcul-
tural porque seu modo de significação se funda nas homologias
antropológicas entre as formas humanas e as formas do meio
ambiente cósmico. Não há dúvida de que cada símbolo também
se encontra numa história cultural que lhe dá uma coloração e
um valor específico, mas seu modo de significação não é funda-
mentalmente convencional como aquele do signo semiótico. O
modo de significação do símbolo é prioritariamente experien-
cial, fundado na experiência humana do mundo. Assim, para
Gilbert Durand, é justamente pelo fato do ser humano ser um
ser vertical, cuja experiência do mundo constituiu-se pela postu-
ra ereta, que ele organiza seu conhecimento diurno sobre o es-
quema da verticalidade e da oposição heróica entre as trevas
ctonianas e as luzes celestes. Os símbolos da ascensão, sempre
associados à busca da luz, sempre significam um mais de huma-
nidade e isso qualquer que sejam as culturas enfocadas (de fa-
Educação e Transdisciplinaridade II
110
36
Jean Borella, Le Mystère du signe, Paris, Maisonneuve et Larose, 1982, p. 224.
37
René Alleau, 1982, idem ibidem, p. 21.
to, nenhuma cultura considera o ato de rastejar como um ato po-
sitivo). O símbolo, devido à ressonância entre as formas huma-
nas e cósmicas, é uma dimensão transcultural. Assim, é muito
fácil traduzir os contos e as lendas, pois eles se expressam mais
por meio de gestos experienciais (subir uma montanha, descer
num abismo, combinar os opostos, etc) do que por meio de
conceitos ou de noções convencionais.
Condições de uma hermenêutica transcultural da formação
Isso posto, em que condições podemos desenvolver uma
exploração transcultural da formação? Sem ter a pretensão de
responder completamente a uma questão tão imponente, nos
contentaremos em destacar os pontos chaves para uma aborda-
gem que poderíamos resumir assim:
abrir círculos de palavra transculturais e
explorar a experiência da formação
a partir de uma hermenêutica instaurativa
que privilegia mais o sentido experiencial antropológico
do símbolo do que suas cristalizações culturais.
Abrir círculos de palavra transculturais para explorar a
formação humana
Nas culturas ameríndias, o círculo de palavra é o espaço
onde o grupo estabelece o conselho. Não se trata de um deba-
te polêmico, mas de um lugar de exploração coletiva do sentido
da experiência vivida. Nos contextos multiculturais contemporâ-
neos, as diferentes abordagens de autoformação (histórias de vi-
da, brasão, grupo de praxiologia, etc) poderiam servir de base
para a abertura de círculos de palavra transculturais. Tratar-se-ia
então de abrir uma exploração transpessoal, transdisciplinar e
transcultural da antropoformação. Podemos imaginar a reunião
de grupos multiculturais para a exploração da autoformação no
que concerne a questões fundamentais. Como nos tornamos um
ser humano? O que é o caminho do ser humano? Qual é o lugar
do sonho, do pensamento, da ação, da experiência, etc, nesse
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
111
processo de formação?
Tratar-se-ia de desenvolver uma antropologia transcultural
da formação suscetível de provocar uma transformação interna
pela confrontação das visões do mundo que ela supõe. Aborda-
gem implicadora, pois ela obriga a se descentrar, ao relativizar
seus próprios valores culturais herdados.
“Longe de ser uma disciplina que pode ser estudada ‘do ex-
terior’, a antropologia cultural da educação passa por ‘cami-
nhos que levam para o interior’, como dizia Novalis a respeito
da poesia, e implica, de uma maneira ou de outra, no questio-
namento da constelação das representações e dos hábitos do
sujeito, pela aquisição de conhecimentos e pela produção, mais
que a reprodução, de um saber necessariamente complexo.
38
Para René Barbier, a antropologia da educação, pelo encon-
tro de outras culturas, obriga a um descentramento em relação
aos hábitos e valores herdados e coloca a questão da transforma-
ção da “existencialidade interna como constelação dinâmica de
valores, de símbolos, de mitos, de visões do mundo, que um su-
jeito põe em ação no seu cotidiano e que tece assim um banho
de sentido relativamente estruturado”.
39
Essa existencialidade in-
terna corresponde, por Barbier, à imaginação sacra. Ela necessi-
ta de uma antropologia poética da educação “que visa o estudo
dos processos das relações humanas, das formas de sociabilida-
de e dos sistemas de valores, especialmente das culturas distan-
tes ou ‘outras’, em suas relações com a sensibilidade simbólica
ou mítica do ser humano considerado como um ser que apren-
de através da educação permanente”.
40
O interesse da antropo-
logia do imaginário é, então, apreender melhor o processo de
formação em sua dimensão pessoal e existencial.
Aliás, o caráter vital do processo de formação é que pede
uma abordagem antropológica. Mesmo que a dimensão cultural
deva ser levada em conta numa abordagem comparativa, nós
não nos prendemos a uma comparação dos sistemas educativos
e de socialização, mas antes às variações e às constantes do pro-
Educação e Transdisciplinaridade II
112
38
René Barbier, L’Anthropologie culturelle et existentielle de l’education à l’université, Biennale de l’éduca-
tion et de la formation, Paris: Sorbonne, 1994, document ronéoté, p. 1.
39
René Barbier, idem, ibidem.
40
René Barbier (sous la direction de), Le Devenir du sujet en formation: l’influence des cultures “autres”
qu’occidentales Pratiques de formation nº 21-22, Université Paris VIII, 1991.
cesso de interação imaginária entre a pessoa e o meio ambien-
te (físico e social). Essa perspectiva antropológica foi desenvol-
vida por Gilbert Durand a partir dos trabalhos de Piaget para a
psicologia genética, dos trabalhos de Gaston Bachelard sobre o
imaginário dos elementos, bem como dos aportes da antropolo-
gia do sagrado (M. Eliade, H. Corbin).
A experiência vivida numa outra cultura é a base da antro-
pologia cultural clássica, cuja dificuldade principal é sair dos
preconceitos etnocentristas. Com efeito, o próprio projeto de
um discurso científico (proveniente dos quadros conceituais his-
tóricos de uma determinada sociedade) que se impõe a outra
sociedade permanece uma clara violência simbólica. Também é
preciso tentar uma antropologia do interior, que exploraria a
experiência vivida da troca transcultural.
Talvez tenha chegado o momento da antropologia se voltar
para o interior. Antes de estudar os outros, é urgente explorar-
mos nossa visão do mundo e suas transformações, com as con-
sequências filosóficas, socioeconômicas, ecológicas e espirituais
que elas implicam. Uma antropologia da intercompreensão da
experiência vivida deve ser inventada, pois hoje em dia todos
são conduzidos a viver a experiência transcultural. As trocas
transculturais contemporâneas com as culturas tradicionais (ame-
ríndias, asiáticas, africanas, etc) podem assim abrir o mundo oci-
dental para uma visão do mundo muito antiga. Uma visão que
privilegia mais a experiência e a tomada de consciência do que
uma descrição do real. Uma visão que assume que todas as des-
crições (racionais ou simbólicas) são construções do imaginário
visionário, que nos ligam ao real, mas que são infinitamente
ultrapassadas pelo real.
Nas culturas ameríndias, é a experiência que ensina direta-
mente. Se os índios não explicam, não é por gosto do segredo,
mas porque a experiência é mais rica do que todas as palavras
que qualquer pessoa coloca a respeito dela. Ninguém possui a
legitimidade de impor sua representação limitada do real a
quem quer que seja. A experiência ameríndia do mundo, como
a de todas as culturas xamânicas, partilha com a perspectiva
científica transdisciplinar uma atenção para o que é trans, isto é:
entre, além e através de todas as formulações, quer elas sejam
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
113
culturais, religiosas, filosóficas ou poéticas.
41
Encontramos aqui
um dos princípios da transdisciplinaridade que “reconhece a
multiplicidade de vias de conhecimento que representa um tal
diversidade para a humanidade inteira. Nesse sentido, ela abre
para o nascimento de uma visão aberta (…). Ao invés de excluir,
a abordagem transdisciplinar nos revela o jogo das inclusões.
42
Essa visão não está completamente ausente nem é estra-
nha ao patrimônio ocidental, mas ela foi marginalizada. Hoje,
ela entra em ressonância com a abordagem transdisciplinar das
ciências as mais contemporâneas
43
. Dar a cada coisa a atenção
que lhe é devida, viver a experiência como uma prova de sen-
tido a decifrar, perceber a multiplicidade dos níveis de realida-
de e dos níveis de consciência, são outros tantos elementos
constitutivos das culturas primeiras e da visão transdisciplinar.
Foi assim que a experiência de vida num contexto ameríndio
me abriu para as dimensões antropológicas, existenciais e sim-
bólicas de toda formação humana.
44
Para muitos observadores as culturas primeiras (amerín-
dias, australianas, africanas, asiáticas ou siberianas), são cultu-
ras do porvir. Elas são portadoras de respostas essenciais às
questões e aos problemas ecológicos, filosóficos e espirituais
mundiais com os quais temos de nos confrontar. Como diz o
antropólogo Jean Malaurie:
A história tem dessas ironias! O colonizador ocidental e nor-
te-americano, materialista, sem espiritualidade, indiferente
à infelicidade dos desempregados que sua indústria roboti-
zada gera, será cada vez mais chamado, nos momentos de
dúvida, a se voltar para esses povos primeiros, ontem despre-
zados. Num primeiro movimento, ele é animado por um fer-
vor ecológico. Em seguida, surpreende-se por descobrir ho-
mens e mulheres vivendo conforme uma filosofia na qual o
acúmulo de bens não é considerada a virtude principal. (…)
Educação e Transdisciplinaridade II
114
41
Basarab Nicolescu, 2001, idem, ibidem; e Le Cercle des Anciens des hommes médecine du monde entier
autour du Dalaï Lama, 1998, sous la direction de Van Eersel et Grosreym, Albin Michel, cap. 10.
42
Edgar Morin em Le Cercle des Anciens des hommes médecine du monde entiert autour du Dalaï Lama,
1998, sous la direction de Van Eersel et Grosrey, Albin Michel, p. 387.
43
Basarab Nicolescu, 2001, idem, ibidem.
44
Pascal Galvani, 1997, idem, ibidem.
Os colonizados de ontem, vindos das profundezas, se acre-
ditamos nos relatos míticos, serão chamados, amanhã, a se-
rem contados entre os nossos mestres espirituais? Sem dúvi-
da é preciso repensar a complexidade plural entre as cren-
ças do sagrado. A unidade transcendente das religiões é
uma obrigação ardente, enquanto no Ocidente nós sempre
afirmamos que a verdade só podia ser única e a via estreita.
(Jean Malaurie, em Rostkowoski, 1998-19)
Numa época de comunicação globalizada, na qual todas
as culturas e tradições espirituais se esbarram, a capacidade das
culturas primeiras (particularmente das culturas ditas xamâni-
cas) em se centrar na experiência mais do que nas formulações
verbais, é um recurso do porvir. As práticas pós-modernas de
exploração intersubjetiva da formação (histórias de vida, bra-
sões, etc) encontram um paradigma ‘não moderno’ que se tra-
duz por um interesse crescente pelas culturas outras
45
orientais,
africanas e ameríndias. (Galvani, 1997 e 2000-b)
… com uma hermenêutica instaurativa
A hermenêutica instaurativa é uma maneira de compreen-
der e de interpretar o símbolo pelas associações e ressonâncias
que remetem de uma imagem à outra. Não se trata de impor
uma grade de leitura para o símbolo, mas de explorar a si mes-
mo pelas significações múltiplas que ele instaura em si. Pode-
mos ilustrar essa abordagem hermenêutica através de qualquer
obra de arte. Diante dessa obra, a hermenêutica instaurativa não
consiste em buscar uma significação causalista que ‘explicaria’ a
aparição da obra, mas, ao contrário, em expressar as significa-
ções necessariamente infinitas que ela instaura ou que ela pro-
duz naqueles que a contemplam. É fácil compreender que só
esse tipo de hermenêutica é coerente com uma abordagem
transcultural.
Num círculo de palavra transcultural, não se trata de bus-
car a causa ou a explicação de um símbolo ou de um mito. Não
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
115
45
René Barbier, (sous la directin de), 1991, idem, ibidem.
se trata de explicar porque tal pessoa ou tal cultura o produziu.
Trata-se, ao contrário, de explorar os diferentes significados
que ele revela aos participantes. Cada imagem simbólica, ex-
plorada em sua pluralidade, revela novos sentidos e nos reve-
la para nós mesmos. É então o símbolo que, de uma certa ma-
neira, ‘interpreta’ o hermeneuta. A hermenêutica instaurativa
opera uma inversão epistemológica. Em sua inversão epistemo-
lógica, a hermenêutica instaurativa torna-se, no sentido próprio,
uma abordagem existencial.
Na exploração transpessoal e transcultural, nenhum dos
participantes pode ser detentor de um sentido a aplicar às pro-
duções dos outros. Ao contrário, a exploração transcultural im-
plica que os significados produzidos pelos símbolos de uns e de
outros entre em ressonância a partir do ancoramento histórico e
cultural de cada um (Galvani, 1997, cap. 2). Nessa perspectiva,
não há análise interpretativa das produções de cada um por uma
pessoa ou pelo grupo, que tentaria, do exterior, extrair o seu
sentido. A hermenêutica instaurativa se propõe a explorar o le-
que de significações sugeridas pelos símbolos, conforme o mé-
todo da convergência. Num círculo de palavra transcultural, a
análise coletiva dos brasões ou das histórias de vida é uma par-
tilha, uma exploração coletiva das significações, que cada parti-
cipante descobre por si mesmo em suas produções ou nas dos
outros. A confrontação das hermenêuticas instaurativas pessoais
faz então aparecer quanto as significações recebidas por cada
um, embora diversas, ordenam-se ao redor de um feixe arquetí-
pico coerente. É a ocasião de tomar consciência da dimensão
transcultural do símbolo.
VI. A autoformação como objeto transpessoal,
transdisciplinar e transcultural
Quero insistir aqui sobre a importância de interligar esses
diferentes níveis de realidade da autoformação tanto no plano
teórico quanto nas práticas de acompanhamento da autoforma-
ção. A autoformação supõe, por um lado, diferentes níveis de
pilotagem do processo: por si (autos), pelos outros (hétero), pe-
las coisas (eco); e, por outro lado, diferentes níveis da interação
Educação e Transdisciplinaridade II
116
pessoa-meio ambiente: prática, simbólica, epistêmica. Então, pa-
rece necessário desenvolver uma abordagem transdisciplinar,
transcultural e transpessoal da formação, sublinhando que a rea-
lidade designada pelo conceito de autoformação deve ser situa-
da além, através e entre as disciplinas, as culturas, as pessoas.
Uma disciplina é um campo do saber que se define pelos
níveis de realidade que resistem às representações. Nessa pers-
pectiva, podemos definir as ciências da educação e da forma-
ção como o que resiste às diferentes representações teóricas e
pedagógicas. Ora, o que resiste aos discursos pedagógicos se
não a autoformação? Dito de outro modo, os discursos e deba-
tes teóricos da educação e da formação não passam de tentati-
vas sempre imperfeitas de dar conta exatamente do que resiste
a eles: a autorregulação da morfogênese e da metamorfose dos
conhecimentos. O que resiste às representações dos filósofos,
dos pedagogos e dos pesquisadores, é a autoformação ou a
ação da pessoa sobre a morfogênese e a metamorfose de suas
representações.
Um dos pontos essenciais da abordagem transdisciplinar é
considerar que há muitos níveis de realidade. Quando se fala de
níveis de realidade, designa-se uma ruptura do conjunto dos
conceitos e das leis que funcionam e regem os diferentes níveis
(por exemplo, os níveis quântico e macrofísico). Esses diferentes
níveis de realidade, irredutíveis entre si, estão no entanto interli-
gados por um fluxo de informação. Eles funcionam de maneira
coerente, mas as leis que regem cada um dos níveis são radical-
mente diferentes. A hipótese adiantada aqui é que a autoforma-
ção é um objeto transdisciplinar porque ela se refere a uma plu-
ralidade de níveis de realidade. Com efeito, os níveis práticos,
simbólicos e epistêmicos da representação se referem a critérios
de validade heterogêneos, do mesmo modo que os níveis indi-
vidual, pessoal e transpessoal da autos. Mesmo eles estando em
interação constante, os níveis da autoformação se definem por
conjuntos de leis (finalidade, critérios de validade, modalidade,
relação com o tempo, etc) irredutíveis uns aos outros.
A autoformação necessita uma abordagem e uma metodo-
logia transdisciplinares no sentido definido por B. Nicolescu,
pois ela se refere a muitos níveis de representação correspon-
A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
117
dentes a outros tantos níveis de realidade da formação, bem
como a diferentes níveis de consciência da autos.
A exploração intersubjetiva da autoformação, trabalhando
a partir de uma abordagem mais fenomenológica, situa-se
numa perspectiva transdisciplinar caracterizada pela: interação
entre o sujeito e o conhecimento, consideração de causalidades
sistêmicas e complexas e seus imbricamentos numa lógica do
terceiro incluído.
Conceber a autoformação como um processo vital e per-
manente obriga a ultrapassar as perspectivas pedagógica ou so-
ciológica da educação, para entrar numa perspectiva antropo-
lógica. Um processo vital e permanente deve concernir todos
os seres humanos e ter uma dimensão transcultural. Portanto, a
abordagem transdisciplinar da autoformação é potencialmente
transcultural, no sentido em que ela abre a possibilidade de ex-
plorar a experiência da formação abrindo-se para o que está
entre, além e através de todas as culturas.
Educação e Transdisciplinaridade II
118
VII.
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A Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural – Pascal Galvani
121
Conferência proferida no II Encontro Catalisador do CETRANS
da Escola do Futuro da USP, no Guarujá, São Paulo, de 8 a 11
de junho de 2000
Patrick Paul, doutor em medicina, doutor em ciências da educa-
ção, mestre em ciências (microbiologia), especialização em
antropologia médica, ex-pesquisador do Instituto Pasteur, pro-
fessor associado da Universidade François Rabelais de Tours
(França) no Laboratório de Ciências da Educação e da Formação
e na Faculdade de Medicina, encarregado de cursos sobre medi-
cina tradicional chinesa na Universidade Paris XIII, professor
convidado na Escola de Saúde Pública de São Paulo.
A Imaginação
como Objeto do Conhecimento
1. INTRODUÇÃO
A história das ciências mostra uma contradição flagrante
no conceito da imaginação. Se até o século XVI ela era uma fer-
ramenta do conhecimento que funcionava baseando-se no
princípio da semelhança, a partir do século XVII transformou-
se, segundo M. Foucault
1
, na expressão da loucura, da fantasia
e da ilusão.
Esta contradição sobrevive ainda hoje, pois o conceito do
imaginário é valorizado nas sociedades não ocidentais, enquan-
to é desvalorizado na nossa. A abordagem antropológica é tes-
temunha da importância do imaginário, dos mitos e dos sonhos
nas culturas tradicionais.
Aliás, no seio da atividade científica, a imaginação, embo-
ra fazendo parte integrante da pesquisa, vê seu campo de apli-
cação depreciado em proveito exclusivo da racionalidade.
Num plano pessoal, uma pesquisa que estou desenvolven-
do e que se apoia no mundo onírico, mostra que o sonho não
é simples recalque neurótico, mas participa da antropoforma-
ção e, de certa maneira, de uma auto-iniciação. Mas não abor-
daremos diretamente aqui esta pesquisa, a fim de nos dedicar-
mos mais particularmente ao conceito do imaginário como um
fio condutor implícito histórico, dividido em três períodos.
Este questionamento nos levará, em primeiro lugar, a nos
interrogarmos a respeito do processo da hominização na pré-
história, de maneira que, com isso, possamos perceber melhor
as relações entre imaginação e cognição. Os mitos e sua natu-
reza prolongarão nossa reflexão, na medida em que eles pare-
cem participar do funcionamento mais íntimo do espírito e da
socialização. Esta proposta será ilustrada pelo mito bíblico da
criação de Adão e Eva, a fim de clarificar os fundamentos da
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
123
1
Foucault M, Les Mots et les choses, une archéologie des sciences humaines, nrf, Gallimard, 1966.
imagem e da sua participação no processo de nominação.
Em segundo lugar, depois de Adão e Eva terem sido
expulsos do paraíso, nos interrogaremos sobre a história da
ruptura entre uma epistemologia do semelhante e uma episte-
mologia da diferença, ruptura que se consumou entre os sécu-
los XIII e XIX. Esta separa a gnose holista e, depois, a Natur-
philosophie, das epistemologias dualista e positivista. Embora
durante todo esse período a reflexão sobre o conceito da bil-
dung, no sentido da imaginação formadora e da busca de si
mesmo, tenha sido minoritária, nos meios onde essa reflexão
ocorreu o imaginário manteve um status mais positivo do que
nos meios predominantes.
Por fim, a abordagem transdisciplinar parece poder nos
fornecer o quadro teórico e prático capaz de responder à pro-
blemática atual da imaginação, ao mesmo tempo multidiscipli-
nar, multi-referencial, complexa e paradoxal.
Três pontos podem resumir esta intervenção:
• Oferecer ao imaginário um novo status: o de possível
‘objeto do conhecimento’ para o sujeito que, em sua sin-
gularidade, imagina.
Confirmar a importância da imaginação nas ciências da
educação, principalmente pela noção de bildung.
• Ilustrar nas ciências humanas, de forma mais ampla, a
metodologia transdisciplinar, na medida em que o ima-
ginário pode ser concebido precisamente como intera-
ção entre os diferentes níveis de realidade do Objeto e
os diferentes níveis de percepção do Sujeito.
2. A HOMINIZAÇÃO: PRÉ-HISTÓRIA E MITO
2.1 A pré-história
A hominização, desde a pré-história mais remota, é com-
Educação e Transdisciplinaridade II
124
preendida como um processo complexo, ao mesmo tempo natu-
ral, ambiental, biológico, genético, psicológico, social e cultural,
que manifesta bem a relação não antagônica natureza/cultura.
A etologia nos mostra a organização social e tribal do mun-
do animal e seus meios de comunicação. Já não podemos dar,
atualmente, ao Homo Sapiens, o crédito da invenção da ferra-
menta, da linguagem e da cultura que são, portanto, insuficien-
tes para caracterizar o humano. Um processo de adaptação à na-
tureza criou, progressivamente, a cultura e o homem, que, por
sua vez, retroativamente, o desenvolve.
2
A hominização pressupõe diferentes etapas na origem da
cultura humana. A grosso modo, a pré-história se desenrolou
em três tempos:
Inicialmente, Australopitecus, grande macaco bípede, vi-
veu de dois a quatro milhões de anos atrás. Para os an-
tropólogos e os historiadores da pré-história, suas capa-
cidades cognitivas eram aparentemente próximas às dos
chimpanzés de hoje: ele possuía uma inteligência técni-
ca, pois fabricava camas de galhos, usava bastões e pe-
dras e tinha uma inteligência social proveniente da capa-
cidade de se proteger em grupo e de criar estratagemas.
Como os chimpanzés, dispunha, sem dúvida, de repre-
sentações mentais (do território, por exemplo) e de uma
consciência de si. O Australopitecus usava, portanto, as
ferramentas, mas não as fabricava.
O gênero Homo surge há cerca de dois milhões de
anos, justamente fabricando suas ferramentas, ao inven-
tar a pedra talhada. Esta aptidão pressupõe uma capaci-
dade imaginativa e técnica. Hoje, nos interrogamos so-
bre a possível existência de uma proto-linguagem capaz
de permitir a formulação de designações simples, como
ocorre com as crianças de um a dois anos, mas sem a ar-
ticulação de sons, pois a laringe só apareceu claramen-
te com o Homo sapiens sapiens, há aproximadamente
cinquenta mil anos.
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
125
2
E. Morin, 1974, p. 275.
Com o Homo sapiens sapiens aparece, portanto, a lin-
guagem falada, indício da percepção de um ambiente
(como já tinha o Australopitecus), da aptidão para ima-
ginar um objeto e para talhar (como já tinha o Homo),
mas manifestando, além disso, o surgimento de símbo-
los abstratos e da sintaxe, que permite a construção das
sequências completas, permitindo o aparecimento das
diversas manifestações da cultura simbólica: as vesti-
mentas, a arte, as sepulturas, os ritos sagrados.
O surgimento do imaginário fora de um mundo apenas
interior é a originalidade do Homo sapiens. Como os pássaros,
os mamíferos ou os primatas, nós sonhamos. No homem, esta
exteriorização do sonho na cultura constrói o mito, os rituais
fúnebres, a arte e a palavra.
3
O que caracteriza as duas fases de
desenvolvimento do humano, é a projeção do imaginário na
capacidade técnica, em primeiro lugar com o gênero Homo,
depois numa atitude mais abstrata com o mito, o rito, a arte e
a palavra com o Homo sapiens sapiens.
Contudo, o gênio da abstração pode transformar-se rapida-
mente em delírio, se não ocorrer o ancoramento na realidade
exterior, se a imagem permanecer para si ao invés de se dar ao
outro. Retomando E. Morin, o Homo é, ao mesmo tempo,
sapiens e demens, indício de sua alta complexidade.
O cérebro é, de fato, o fruto de um processo genético
lento, mas efetivo, através das eras. Para M. Jouvet
4
, o determi-
nismo genético, que agiria no sono paradoxal e nos sonhos,
seria uma espécie de pré-programa para o desenvolvimento
psíquico e cognitivo que se desenvolveria na temporalidade.
Portanto, o desenvolvimento cognitivo resultaria, pelo menos
em parte, da produção dos sonhos ao longo da vida. Haveria
então uma relação possível entre informação genética, imagina-
ção onírica e linguagem. Esta última é, ao mesmo tempo, fruto
e motor da inteligência simbólica e do imaginário, e essa evo-
lução co-adaptativa – entre genética, imaginação e linguagem –
Educação e Transdisciplinaridade II
126
3
Dortier J. F., Comment classer le monde?, p. 16-21, em Revue Sciences Humaines Nº 102 fevereiro de 2000,
p. 21.
4
Jouvet M., Le Sommeil et le rêve, Odile Jacob – Sciences, 1992.
teria permitido a explosão cultural do homem de Cro-Magnon.
Produziu-se, então, a fusão entre diferente formas de compe-
tências sob a forma de uma inteligência geral meta-representa-
cional manifestando plenamente o pensamento simbólico, defi-
nido por I. Tattersal
5
como “uma aptidão para produzir símbo-
los mentais complexos e para manipulá-los conforme combina-
ções novas. É o próprio fundamento da imaginação e da criati-
vidade, dessa capacidade única em seu gênero que os seres
humanos têm de criar um mundo em sua mente e de recriá-lo
no mundo real, fora de si-mesmos.”
6
Vemos, então, que aquilo que, desde o Cro-Magnon até
nossos dias, construiu nosso cérebro, devido justamente à sua
complexidade, pressupõe uma dinâmica aberta que colocaria a
relação entre individual e coletivo, entre interior e exterior,
entre criação e destruição, entre Homo sapiens e Homo demens,
entre deus e diabo no homem. Mas falta-nos uma teoria dos
fenômenos oníricos e noológicos capaz de dar conta dessa
complexidade aberta.
2.2 Os mitos e sua natureza
A teoria atual da hominização estabelece uma estreita rela-
ção entre a imaginação, o pensamento simbólico, a linguagem
e o surgimento, a exteriorização desta aptidão imaginal no
mundo exterior da cultura, elaborando o mito, o culto, o rito, a
arte, a comunicação verbal.
Entre os inúmeros objetos da reflexão antropológica, o mun-
do dos mitos e dos sonhos apresenta um interesse particular.
No nível biológico, sabemos atualmente que um sono sem
sonhos não é reparador, que a supressão reiterada do sono
paradoxal de um animal pode provocar a sua morte. Portanto,
sonhar é necessário para a sobrevivência do organismo bioló-
gico. Ora, algumas características dos mitos os assemelham aos
sonhos.
7
Poderíamos, então, perguntar-nos se o mito não seria,
para o pensamento desperto ou para o organismo sociocultu-
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
127
5
Citado por J. F. Dortier, idem, ibidem, p.22.
6
Tattersal Il, L’Émergence de l’homme – Essai sur l’évolution et l’unicité humaine, Gallimard, 1999.
7
Smith Pl, “La Nature des mythes”, em L’Unité de l’homme – T3 – Pour une anthropologie fondamentale,
obra coletiva sob a direção de E. Morin e M. Piattelli-Palmarini, Points-Seuil, 1974, p. 248.
ral, o que os sonhos são para o sono e para o corpo biológico.
Em outras palavras, os sonhos são tão essenciais ao organismo
biológico quanto os mitos para o organismo social.
Os sonhos e os mitos parecem participar do funcionamen-
to mais íntimo do espírito. O problema é compreender seu sig-
nificado essencial.
É claro que os pontos de vista são opostos na história das
ciências. Assim, se a teoria animista proposta por E. B. Tylor no
século XIX considera o sonho como uma ilusão, a crença nas
almas e nos espíritos também é considerada como uma ilusão
e os mitos são considerados como fruto de crenças resultantes
de uma análise mais confusa ou menos confusa da realidade.
Esta hipótese, inscrita no quadro das teorias evolucionistas da
época, considera os mitos, para citar Frazer, como resultado de
um pensamento primitivo, pré-lógico, irracional e ‘embrioná-
rio’, que buscava explicar grosseiramente o mundo.
Um estado de espírito bastante próximo a este construiu a
teoria psicanalítica, na qual o sonho é considerado como fruto
de um recalque neurótico.
O século XIX foi o período que introduziu a passagem do
mito ao logos, concebida como passagem da ilusão fabulatória
ao rigor e à verdade; o que contrasta com a linguagem do
Renascimento, por exemplo, na qual a mitologia era, ao contrá-
rio, uma fonte inspiradora.
As pesquisas etnológicas de campo durante o século XX
não puderam satisfazer-se com tais interpretações. Muitos olha-
res sobre os mitos, opostos ou complementares, expressaram-
se então.
Para Malinowski e os funcionalistas, o discurso mitológico
deve ser apreendido tendo como referência o contexto social.
Os mitos reforçam, justificam, codificam as práticas e as crenças
da organização social. No entanto, esta justificativa a posteriori
da ordem social reduz consideravelmente a realidade mítica,
mas outras pesquisas, como as de M. Griaule, assumem a con-
tra-corrente dessa postura valorizando o alcance iniciático dos
mitos, em detrimento da realidade social.
Levi-Strauss estabelece a ponte entre o pensamento ‘selva-
gem’, que funciona de acordo com suas próprias leis nos mitos
Educação e Transdisciplinaridade II
128
e nos sonhos, e o pensamento ‘domesticado’, que, vigiado pela
consciência, orienta em direção a uma eficácia analítica. Para
ele
8
, os mitos das diferentes sociedades constituem séries ilimi-
tadas de variantes organizadas ao redor das mesmas estruturas,
manifestando uma relação íntima com o espírito humano.
A análise dos mitos mostra que esta armadura não é tanto
o resultado do aspecto diacrônico das ações evocadas, quanto
o resultado de uma ordem sincrônica subjacente aos relatos e
que, na verdade, os organizaria.
O mito serve para inscrever alguma coisa do espírito no
gênero coletivo: de um certo ponto de vista, uma cultura (ou,
nas civilizações complexas, uma sub-cultura) “só consegue se
definir melhor por meio da coletividade das pessoas que parti-
lham os mesmos mitos”.
9
As formas de pensar que inscrevem os mitos na mente,
encarnam-se em nomes e personagens que são, na maioria das
vezes, apenas conceitos, categorias, sínteses de elementos, ale-
gorias de noções morais.
10
Sem seus mitos, uma sociedade seria
como o amnésico que não consegue se lembrar de sua identi-
dade. O pensamento mítico constrói os modelos do que não é
perceptível.
Se há um mito fundamental na cultura ocidental, é o da
criação bíblica de Adão. O texto do Gênesis apresenta a gran-
de vantagem de evocar a relação entre o homem e a imagem.
E esta nossa reflexão é a respeito disso.
2.3 Um drama que se desenrola no céu?
O mito da criação de Adão e Eva oferece a oportunidade
de uma interrogação que podemos supor meta-histórica e sin-
crônica a respeito do homem, a temporalidade da história hu-
mana manifestando diacronicamente o mesmo processo.
Sabemos, através do Livro do Gênesis (I, 27), que Adão,
criado inicialmente macho e fêmea, carrega em seu seio uma
questão implícita (Gênesis, I, 26). Elohîm diz a Si mesmo: “Fa-
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
129
8
Levy-Strauss, Mythologiques, IV, L’Homme nu, Paris, Plon, 1971, p. 571.
9
Smith P., “La Nature des mythes”, em L’Unité de l’homme – T3 – Pour une anthropologie fondamentale,
obra coletiva sob a direção de E. Morin e M. Piattelli-Palmarini, Points-Seuil, 1974, p. 257.
10
Idem, Ibidem, p. 258.
remos Adão à nossa imagem, conforme a nossa semelhança?”
Em seguida ele estabelece, afirmando sua resposta: “Elohim
cria Adão à sua imagem, à imagem de Elohim ele o cria, macho
e fêmea, ele os cria” (Gênesis, I, 27).
Esta última frase se mostra interessante. Se Adão foi criado
em primeiro lugar segundo a imagem, a Imago Dei verdadeira
sugere duas polaridades macho e fêmea, que convém reconhe-
cermos em nossa natureza humana.
Esta dinâmica criativa supõe que, como há uma dimensão
masculina e feminina, haja o casamento com a integralidade da
imagem antes de pretender uma possível semelhança, este últi-
mo termo apreendido etimologicamente como expressão de
uma similitude com o divino, incitando a uma ontologia integral.
Então, duas questões imbricadas uma na outra se colocam:
O que é criar? O que é chamado de imagem?
Em hebraico, na ótica de uma reflexão simbólica sobre as
palavras, o verbo ‘criar’, Bara, evoca, por suas letras, tanto uma
dualidade por projeção das forças divinas, como uma constru-
ção vinda do centro, tendo como resultado uma produção ativa.
Esta primeira análise coloca em evidência o movimento ao
mesmo tempo dual e unitivo que se desenrola dos dois lados da
letra ‘Reish’, que simboliza a cabeça. Criar evoca a ação de ir de
um lugar a outro, de ir e de vir, ou ainda o nascimento e o devir,
imagens que não deixam de sugerir nosso moderno conceito de
espaço-temporalidade. Sem entrar no detalhe da simbólica que
sustenta esta análise, saibamos que ‘criar’
11
, compõe, com suas
duas últimas letras, o radical de um verbo significa ‘ver’
12
, evo-
cando também a relação com a luz, ‘Ra’.
No Gênesis (I, 1) o verbo ‘criar’ é usado pela primeira vez
no primeiro versículo, “Bereshit Bara Elohim”, que é habitual-
mente traduzido por “No princípio” ou “No começo, Deus cria”.
Mas é evidente que ‘criar’, Bara, remete diretamente à pri-
meira palavra Bereshit, que é composta por seis letras, das
quais as três primeiras compõem precisamente o verbo ‘criar’.
As letras seguintes de Bereshit, ‘Shit’, oferecem, por sua vez,
uma palavra chave derivada, ‘Shin-iod’, que evoca o ‘falar’, o
Educação e Transdisciplinaridade II
130
11
Virya V, Kabbale et destinée, Présence, 1986, p. 99.
12
Idem, Ibidem, p. 244.
cantar, ou ainda ‘entreter-se’, ‘orar’, ‘meditar’ e ‘lamentar-se’.
Esta maneira de jogar com as palavras, ainda que possa chocar
algumas pessoas, é classicamente utilizada nas práticas cabalís-
ticas judaicas.
O início principial se declinaria então nesse jogo das letras
como a relação diferenciada e conjugada do ‘ver’ (Ra) e do ‘fa-
lar’ (Shi) entre o começo (Beith) e o fim (Tav) do ato criador e,
nesse ato de criação, o ver precede o falar, o último estando no
entanto indissoluvelmente ligado ao primeiro. Este mito confir-
ma o que foi descrito acima sobre o processo de hominização:
a imaginação precede a palavra, sem que haja, no entanto,
separação radical entre elas.
A segunda questão que vamos colocar é a da imagem.
Qual é então a imagem de Deus? Podemos supor que esta,
andrógina, macho e fêmea, seja análoga ao ‘ver’ e ao ‘falar’. A
criação de Adão, nós o sabemos, é representativa da criação do
humano. Esta criação à ‘imagem’ não descreve um modelo
antropomórfico, mas refere-se ao princípio da criação tal como
é expresso pelo ‘Bereshit’ e os sete dias da Gênese, o universo
microcósmico humano sendo semelhante ao grande universo
macrocósmico do qual fala a primeira parte do Livro do Gêne-
sis. Em outras palavras – e, aliás, este foi o tema de nossa inter-
venção no ‘Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinarida-
de’
13
–, a Gênese bíblica oferece um modelo, uma representa-
ção macrocósmica da qual Adão, como ‘homem global’, carre-
ga a imagem. Esse processo, em duas etapas, cosmogenética
depois ontogenética, reproduz as duas fases do ‘Bereshit’.
‘A imagem’, Tselem em hebraico, é Tsel, ‘a sombra’, a pro-
fundeza obscura, o abismo, as águas ‘Mem’, necessariamente
múltiplas como os muitos níveis de realidade.
Quando o tentador, oferecendo o fruto proibido (Gênesis,
III, 5), diz: “vossos olhos se abrirão e sereis como Elohim”, pro-
messa de um porvir dependendo de uma visão, a ordem origi-
nal se inverte. A esperteza proposta pela serpente consiste em
dizer ao princípio feminino para suplantar o masculino interior
e inverter a ordem, graças a uma suposta aptidão para atingir
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
131
13
Paul P., Communication au Premier Congrés Mondial de la Transdisciplinarité, Arrabida, 1994; publicado
em Transdisciplinarity – Transdisciplinarité, obra coletiva, Hugin éditeur, Lisboa, 1999.
diretamente a semelhança (“como Elohim”), sem a mediação
do ‘ver’, da luz não-dual, pelo simples poder da palavra torna-
da dual. A serpente torna-se barreira às bodas do esposo e da
esposa pela negação do ‘ver’ original, criando a ilusão de uma
possível unidade que a dispensaria. Eva, como sujeito atuante,
como palavra que permanece no pensamento, possui uma vir-
tude imanente que procura um acesso direto à transcendência
pela dualidade da língua serpentina e pela mera intelectualida-
de, que simboliza o consumo do fruto proibido, que sabemos
permitir o conhecimento do bem e do mal. A falta consiste em
comer um fruto cuja Árvore, colocada no centro do Paraíso,
supõe, como o ato criador, aptidões integradoras e unificadoras
subentendidas por uma dualidade operativa que Eva não pos-
sui. Esse conhecimento, inicialmente contraditório, portado
pelo ‘ver’, com o exílio do Paraíso, passa a ser sustentado pelo
princípio de não-contradição que separa o bem e o mal, um
excluindo o outro. O feminino absorve a dualidade, que passa
a ser juiz, racionalizando em bem e em mal, sem passar previa-
mente pela integração, pela unificação do ‘ver’. O lado sombra,
na imagem, perverte-se, querendo ter acesso diretamente à uni-
dade, à semelhança, falando a ‘linguagem da serpente’, ao
invés de usar conjuntamente a ‘linguagem dos pássaros’ não-
dual, intimamente associada à visão simbólica. Desposar a ima-
gem supõe, ao contrário, unificar a totalidade das águas, aque-
las do ‘ver’, masculino – sugerindo, etimologicamente, a capa-
cidade para recordar, em hebraico –, e aquelas do ‘falar’ femi-
nino – como matriz, como realização do ‘ver’ em parábola.
Uma terceira questão resulta das outras duas, fundando os
diferentes níveis de realidade. Depois de ter comido o fruto,
Deus faz a seguinte pergunta surpreendente a Adão: “Adão,
onde estás?” (Gênesis, III, 9), o que deixa entrever várias inter-
pretações, entre as quais a primeira sugere que Adão já não
estava diretamente acessível ao olhar de Deus. Um e outro já
não se vêem. Podem apenas se ouvir (Gênesis, III, 8). Mas
fazendo esta pergunta: “Onde estás?”, Deus leva também Adão
a se questionar sobre o seu ser, sobre o significado de seu ato,
sobre a essência de sua pessoa. A transgressão faz perder um
lugar, uma topologia edênica, para atingir um outro lugar, onde
Educação e Transdisciplinaridade II
132
Adão está desde então.
Esta questão apresenta um paradoxo. Adão, evidentemen-
te, está onde ele está. Mas se Deus faz esta pergunta é porque
a relação está cortada, é porque Adão se perdeu. A declaração
divina inaugura a interrogação sobre si mesmo como aborda-
gem paradoxal do “quem sou eu?”, questão ligada necessaria-
mente ao “onde estou eu?” A busca ontológica do sujeito, pelo
consumo do fruto da árvore, não pode se dissociar da procura
de níveis de realidade, ela mesma relacionada com os níveis de
conhecimento, pois, desde então, distinguem-se pelo menos
três níveis: 1) o de Deus, 2) o do Paraíso e de sua terra celeste
(‘Adamah’) e, por fim, 3) o da natureza terrestre sustentada por
‘Erets’, a terra seca da manifestação física.
No novo lugar de exílio, a busca de si mesmo de Adão
consistirá, desde então, em uma dupla interrogação: saber
quem somos torna-se indissociável de saber onde estamos. Esta
nova atividade cognitiva, consequência da passagem de um
lugar a outro, faz sair de si mesmo, esquecer-se de si mesmo
para esperar, talvez, reencontrar-se.
Todo o problema consiste, então, no discernimento dos
lugares: um interior, que especificaria a identidade; outro exte-
rior, que manifestaria a identificação, a falsa identidade.
A autobiografia, o “conhece-te a ti mesmo”, a busca iniciá-
tica, levam à interrogação simultânea a respeito dos dois luga-
res de nossa morada, um pertencendo ao universo exterior e o
outro às divindades interiores. Todavia, para essa busca não
basta uma reflexão sobre a nossa vida, não basta escrevermos
os eventos [da nossa vida], pois isso só manifesta uma das duas
faces indispensáveis desse questionamento.
Se em seu ato de separação o casal das forças anímicas dei-
xa de ver Deus, ainda pode escutá-lo (Gênesis III, 8). A visão in-
terior está cortada, mas a escuta interior da Palavra ainda é pos-
sível, com a condição de que ela seja distinguida da palavra da
serpente. Subtraída à visão divina, tornada inconsciente, a dupla
face do homem – confundida, no ato da separação, com o corpo
de pele, com a irreversibilidade do futuro temporal, com a morte
e com o despertar da consciência dual – traz em seu interior ape-
nas virtualmente a plenitude de uma ontologia integral.
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
133
O drama no Céu coloca o mistério da visão da natureza
celeste e do conhecimento real que torna-se, desde então, o da
relação entre gnose e episteme. Inicialmente, a serpente se
opõe à ordem divina de não comer o fruto da Árvore, sugerin-
do (Gênesis III, 5), ao contrário, o consumo do fruto, “pois
Elohim sabe que no dia em que dele comerdes, vossos olhos se
abrirão e sereis como Elohim”.
Em sua esperteza, que ao mesmo tempo é uma certa sabe-
doria, a serpente mente ou diz a verdade? Adão descobre que
está nu e é conhecedor. Portanto, seus olhos estão bem aber-
tos: a serpente disse a verdade. Mas, simultaneamente, a visão
interior e a sabedoria divina fecharam-se. Então a serpente tam-
bém mentiu. Esse paradoxo (parecido com o do Cretense) só
pode ser respondido se associado a uma lógica de distinção
entre níveis de realidade diferentes e com a condição de se per-
ceber a reviravolta provocada pela natureza feminina que cada
um dos humanos tem.
A tentação sugerida pela serpente não se dirige ao mesmo
nível que aquele de onde Deus fala no Paraíso. Ela tem como
consequência o dualismo não ontológico entre visão e voz ine-
rente ao exílio da terra original, dualismo no qual a voz toma a
dianteira em relação à visão, invertendo a ordenação inicial.
Separando-se da Imago Dei, depois da imagem em si, o
homem espera resolver seu sofrimento por meio do conheci-
mento do mundo que o cerca e que o remete a si mesmo.
Resta-lhe escutar a voz, ‘Shema Israël’, no silêncio que reorien-
ta para a Terra prometida, para o Oriente das Luzes teofânicas.
Coloca-se então um duplo problema, o do nosso solilóquio e o
da nossa imaginação, o da natureza do nosso discurso e o da
natureza das nossas visões. Quem fala? Quem vê? Onde? Em
qual lugar de nós mesmos nós vemos, nós escutamos? Qual é
o lugar da palavra e da visão?
A tentação é da ordem do consciente, como o conheci-
mento objetivo de fora, da episteme. A Imagem, a Forma verda-
deira, o Nome, estão selados em nossas profundezas como o
conhecimento de dentro, a gnose.
O adversário, a serpente, dirige-se a Isha, a esposa, a parte
que está desperta enquanto Adão dorme. Na verdade, lembran-
Educação e Transdisciplinaridade II
134
do Bachelard ou Durand, há um ser diurno e um ser noturno.
O problema é o acesso ao ser noturno ou, mais exatamente, à
relação entre um e outro. Se o exílio neste mundo é um nasci-
mento existencial, o ato que renova a aliança com a nossa pola-
ridade noturna é um ‘segundo nascimento’, não-dualidade, exí-
lio do exílio, retorno ao mundo das visões, acesso ao mundo
imaginal (para retomar uma expressão cara a H. Corbin). Nes-
se nível, masculino e feminino podem realizar de novo, como
primeiro nível de androgenia, o mistério do nascimento para a
unidade ontológica não-pluralizável.
A questão que então se coloca é perceber o processo de
separação e de relação entre o consciente e o inconsciente,
entre uma episteme da dualidade e uma gnose da não-dualida-
de. É preciso poder apreender o que é o Mesmo, o semelhan-
te, e o que é o Outro, o diferente, a fim de distinguir e religar
as duas faces de nossa natureza humana.
3. A HISTÓRIA DE UMA RUPTURA
3.1 Imaginar a similitude ou analisar a diferença
Se o mito, o sonho, o pensamento simbólico, a imaginação
parecem poder articular as relações entre o mundo de dentro e
o de fora, entre as condutas individuais e os comportamentos
coletivos, não é menos verdade que o conceito da imaginação
ainda está vago em nossos dias. Podemos ao menos supor que
o drama que se desenrolou ‘no céu’ necessariamente manifes-
tou-se na terra.
Compreendê-lo impõe uma volta, na história das idéias (e
à história da ciência que dela decorre), ao período entre os
séculos XIII e XVII.
Para autores como L. Dumont, D. Le Breton, H. Corbin ou
G. Durand, uma ruptura epistemológica começou em torno do
século XIII. As primícias do aparecimento do indivíduo tornam-
se então perceptíveis, pois até então as sociedades holistas
valorizavam a totalidade social e subordinavam a individualida-
de humana ao todo. Essas primícias manifestam-se através do
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
135
papel crescente do comércio e dos bancos, que começam a de-
sempenhar um papel econômico e social de primeira importân-
cia. O comerciante e o banqueiro tornam-se os protótipos do
indivíduo moderno, o ‘burguês’ assumindo o lugar do ‘nobre’
(em cuja etimologia há ‘gno’, conhecer).
Foi naquele momento que, para H. Corbin ou G. Durand,
a adoção pelo Ocidente do modelo de Averrois o separa da tra-
dição órfica e platônica do “Conheçe a ti mesmo e conhecerás o
universo e os deuses”, o qual “ti mesmo” sem dúvida não se
referiria à individualidade psicológica mas a um pertencer ao
cosmo e às divindades. Essa ruptura tem como consequência,
para os autores acima citados, separar a função do conheci-
mento e a função da revelação, cognição e gnose deixando
então de estar ligadas. Uma lógica binária corpo-espírito vem
substituir o sistema ternário corpo-alma-espírito, negando a
importância de uma necessária mediação imaginativa e aními-
ca entre significado e significante, espírito e corpo.
Os trabalhos de J. Piaget
14
e de M. Foucault
15
parecem ilus-
trar bem nossas proposições. Sem entrar nos detalhes do es-
quema dos estágios gerais da atividade representativa na crian-
ça de Piaget, é contudo notável constatar nele uma ordenação
das etapas muito próxima daquela do processo de hominiza-
ção. Relembrando:
O primeiro período é o da atividade sensório-motora
(pegar um objeto, mudá-lo de lugar, sacudi-lo, etc). A
criança então não fala, mas liga-se às percepções, entre
elas a visão, para conhecer.
O segundo período, o da atividade representativa, está
dividido em dois estágios, o do pensamento pré-concei-
tual e o do pensamento intuitivo. A atividade represen-
tativa começa quando o objeto não é apenas percebido
e apanhado, mas quando é apreendido como podendo
ser apanhado, embora ainda não o seja. A defasagem
Educação e Transdisciplinaridade II
136
14
Piaget J., La Formation du symbole chez l’enfant, initiation, jeu et rêve, image et représentation,
Delachaux et Niestlé, Paris/Neuchâtel, 1968, 5º ed., 1970, p. 310.
15
Foucault M., Les Mots et les choses, une archéologie des sciences humaines, nrf, Gallimard, 1966.
entre evocação e percepção permite evocar o objeto
ausente com um jogo de significados ligando-o aos ele-
mentos presentes. A conexão específica entre significan-
tes e significados constitui a particularidade da função
simbólica e do pensamento pré-conceitual
16
, que torna
possível a aquisição posterior da linguagem. Portanto, a
função imaginativa cria um espaço de representação
colocando a diferenciação entre o significante e o signi-
ficado. Ela torna possível a atividade manual, técnica, a
utilização de instrumentos e o desenho. Mas aqui o fun-
cionamento do pensamento é mais frequentemente imi-
tativo, não chegando nem às inclusões hierárquicas nem
à individualidade. É quando entra nesse estágio que a
criança começa a falar.
O terceiro período, o da atividade representativa de
ordem operatória, transforma o jogo simbólico no senti-
do de uma adequação progressiva dos símbolos à reali-
dade simbolizada; em outras palavras, de uma redução
do símbolo a imagem simples.
É precisamente desse processo redutor, que faz passar da
sincronia fora do tempo para a temporalidade diacrônica por
volta dos sete-oito anos, que trata Michel Foucault no Les Mots et
les choses, une archéologie des sciences humaines
17
. Seu objeto
de estudo é diferente, não há dúvida, pois ele evoca a história do
pensamento. Mas a relação é evidente, os estágios de Piaget na
criança manifestando no desenvolvimento cognitivo aquilo que
o tempo histórico parece ter elaborado progressivamente.
Mais precisamente, a ruptura epistemológica que começou
a partir do século XIII consumou-se plenamente no século
XVII. Para M. Foucault, o estudo da cultura ocidental no sécu-
lo XVI representa a realização de um modo de conhecimento
baseado num espaço de representação intermediária (a alma, o
mundo imaginal) colocando a relação entre o corpo e o espí-
rito, o exotérico e o esotérico, o significante e o significado.
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
137
16
Piaget J., idem, ibidem, p. 292.
17
Foucault M., idem ibidem.
Para Foucault quatro figuras articulam o saber da similitu-
de (da semelhança) até o século XVI. Esta funciona, então,
como categoria do conhecimento, que pode ter as seguintes
formas: ‘aemulatio’, ‘sympathia’, ‘convenientia’ e ‘analogia’.
Sem entrar nos detalhes dessa categorização, saibamos
que esse conjunto cria uma linguagem de signos que se tornam
interpretáveis, fazendo as coisas comunicarem-se entre si de
acordo com leis sincrônicas de ressonância. Significando e sig-
nificado permitem descobrir, na assinatura visível, a configura-
ção escondida, determinando a forma do conhecimento.
Até o século XVI os homens superpunham semiologia e
hermenêutica na forma da similitude. Aqui, procurar o sentido
é trazer à luz o que se assemelha, descobrir o que é semelhan-
te, aquilo através do qual as coisas se comunicam. Para o ho-
mem da Idade Média e do Renascimento, a procura de sentido
é uma busca daquilo que se parece conosco e que nos une.
Porém, no século XVII, tal saber pareceu ao mesmo tempo
pletórico e pobre, colocando limites à abordagem das similitu-
des. As identidades e as diferenças do ‘Outro’ acabaram por
prevalecer e os signos e similitudes do ‘Mesmo’ passam a ser
associados a uma idade da loucura, da imaginação fantasiosa,
das quimeras, da loucura institucional, da ilusão.
Com Descartes, a nova episteme recusa a similitude e o ato
de comparação do qual a imagem é portadora. Mas a imagina-
ção criadora, ainda que reduzida por acomodação, não é total-
mente excluída do pensamento racional e se reintegra na inte-
ligência analítica.
O que vai mudar essencialmente no século XVII é a repre-
sentação do signo. A análise substitui a analogia, a atividade da
mente deixa de aproximar as coisas entre si e passa, ao contrá-
rio, a diferenciá-las e distingui-las. O saber rompe com a adivi-
nhação e o divino, o signo deixa de ser preliminar à atividade
cognitiva, como uma linguagem pré-inscrita que alcançaria
quem pudesse reconhecê-la: a adivinhação como ato de rela-
ção, por meio do signo, entre as coisas ou campos de ordem
diferente já não encontra lugar para existir. A partir deste
momento é no interior do conhecimento, no próprio objeto,
sem relação entre o aparente e o escondido, sem diferenciação
Educação e Transdisciplinaridade II
138
em níveis de realidade, que o signo se significa.
Antes o signo reunia o que estava disperso, em primeiro
lugar o da dupla origem do homem: celeste e terrestre. Depois
ele passou a dispersar, no mesmo nível, terrestre, devendo ser
distinguido, separado, para ser analisado. O signo, no pensa-
mento clássico, não apaga as distâncias e não elimina o tempo,
ao contrário, ele permite que sejam desenvolvidos e percorri-
dos passo a passo. A diacronia, a separação, penetra no signo,
que deixa de ser natural e passa a ser arbitrário e convencional.
A relação do significante com o significado se aloja então
num espaço onde nenhuma figura intermediária assume mais o
encontro. Ela é, no interior do conhecimento, o laço estabele-
cido entre a idéia de uma coisa e a idéia de outra, a coisa que
representa e a coisa representada
18
. O signo transforma-se em
uma representação desdobrada, uma dualidade. A disposição
binária do signo no século XVII substitui uma organização que,
de maneiras diferentes, sempre tinha sido ternária desde os
estóicos e os primeiros gramáticos gregos. Já não há sentido
anterior ou exterior ao signo, nenhuma presença mediadora a
ser restituída. Toda análise do signo é, diretamente e com ple-
nos direitos, decifração do que ele quer dizer, sem elemento
intermediário dirigindo o conteúdo. Os signos estão no interior
da representação, no interstício da idéia. Contudo, a imagina-
ção e a similitude não podem ser totalmente rejeitadas. Elas tor-
nam-se as bordas indispensáveis, sempre presentes mas ocul-
tas, tornando-se o fundo indiferenciado, instável, sobre o qual
o conhecimento pode estabelecer suas relações
19
, sem o que as
impressões se sucederiam na diferença mais completa, sem
possibilidade de relações.
Depois do dualismo do século das Luzes, o positivismo de
Comte do século XIX acentua ainda mais a ruptura. No entan-
to, os limites do reducionismo epistemológico, depois das inú-
meras e brilhantes vitórias do método, fazem-se sentir desde o
começo do século XX. Um dos pontos mais litigiosos e que a
física quântica soube colocar novamente em questão, é o desa-
parecimento do sujeito na ciência clássica em favor de uma
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
139
18 Foucault M., idem, ibidem, p. 78.
19 Foucault M., idem, ibidem, p. 83.
objetividade tão ilusória quanto fora, anteriormente, a imagina-
ção para a ciência positivista. A revalorização da imaginação e
a importância reafirmada do sujeito, através de uma nova psi-
cossociologia da ciência e graças a uma pedagogia da ruptura
epistemológica, oferecem as bases de um ‘novo espírito cientí-
fico’. Este, através da fenomenologia e das diversas epistemolo-
gias construtivistas, revaloriza as ciências humanas até então
consideradas menos rigorosas.
3.2 O entre-dois imaginal da bildung
Gaston Bachelard, numa conversa intitulada ‘Adormecidos
despertos’, gravada em 1954, anuncia que “muitas vezes a filoso-
fia esquece que antes do pensamento há o sonho, que antes das
idéias claras e estáveis há as imagens que brilham e que passam”.
O homem em sua integridade, quer abordemos o processo de
hominização, os trabalhos de Piaget com a criança, o mito de
Adão e Eva ou as propostas de Bachelard, é um ser que não só
pensa e fala, mas que primeiro imagina.
A completude do ser humano impõe, portanto, a distinção
e a reunião, através da imaginação, do ser noturno primeiro e do
ser diurno segundo, tentando encontrar os dinamismos que cons-
tróem os dois pólos entre sonho e pensamento. Se a imaginação
foi muitas vezes considerada como potência secundária, sabemos
presentemente que ela é a função dinâmica maior do psiquismo
humano. A imaginação gera a ação e a cognição. Para agir é pre-
ciso antes imaginar. Aliás, Bachelard afirma nosso ‘pertencer’ ao
mundo das imagens como sendo mais forte, mais constitutivo de
nosso ser que nosso ‘pertencer’ ao mundo das idéias. O mundo
das imagens é o espelho de nosso ser profundo, ‘o duplo do nos-
so ser escondido’, a ‘consciência do nosso inconsciente’. A imagi-
nação dá aqui, como nos pré-historiadores, aulas sobre a origem
da linguagem, mas também, como podemos ver nos trabalhos de
H. Corbin que, em sua dimensão imaginal, ela dá aulas sobre a
origem da mente, oferecendo-se para desempenhar a função de
entre-dois, entre psiquismo e espiritualidade.
Este espaço das mediações entre nossa natureza física e
nossa natureza espiritual passa, para H. Corbin, pelo Anjo das vi-
Educação e Transdisciplinaridade II
140
sões teofânicas, que se torna o hermeneuta mais essencial. Esse
nível das visões, considerado como ‘mundo imaginal’ (Mundus
imaginalis) é definido pelo autor de ‘L’Homme et son Ange’ co-
mo “o mundo no qual se espiritualizam os corpos e se corporifi-
cam os espíritos”.
20
Contudo, para que ele se torne consciente, é
necessário o desenvolvimento de um órgão de percepção, o
‘sensorium interno’, a Imaginação ativa. A problemática da bil-
dung no sentido da ‘Imaginação de si’, do ‘trabalho sobre si’, de
‘cultura de seus talentos’ tendo em vista fazer da individualidade
uma totalidade, constitui a contribuição específica do romantis-
mo alemão, apropriada para responder nossa interrogação con-
temporânea sobre a hipótese imaginal.
Esta palavra, para G. Lerbet, está associada à experiência
21
.
Ela é traduzida como ‘imaginação formadora’ em P. Galvani
22
,
tornando-se esta “a experiência de um sujeito em sua busca de
si” em M. Fabre
23
. Mas é antes de tudo a grande corrente da ‘vis
imaginativa’ que desde a Idade Média até nossos dias, no
Ocidente, mostra a persistência dessa via, a origem desta pala-
vra remontando, sem dúvida, a Mestre Eckhart. O homem tra-
ria então em sua alma a Imagem (Bilt) de Deus sobre o fundo
de uma ‘entbildung’, presença real além da imagem.
A bildung, como imagem implícita do divino (Imago Dei),
desenvolve representações que Corbin qualificaria de bom grado
como angeofânicas e teofânicas. Elas estabelecem a mediação
entre a originalidade e a singularidade de cada homem que traz
em sua alma a Imagem singular segundo a qual foi originalmen-
te criado e que transita pela imaginação formadora ligando o in-
dividual e o universal. Por sua própria origem, essa Imagem im-
põe tanto valores de universalidade quanto de singularidade.
A bildung designa então o processo temporal e histórico
tanto quanto meta-histórico pelo qual indivíduo e sociedade ad-
quirem uma cultura, uma forma, estabelecendo a relação entre,
de um lado, um centro universal imóvel, pivô polar e, de outro,
a multiplicidade singular de cada um dos pontos móveis, meta-
foricamente circumpolares, manifestados e geradores de espaço-
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
141
20
Corbin H., Le Paradoxe du Monothéisme, L’Herne, reeditado: Le Livre de Poche, nº 4167, 981, 120.
21
Lerbet G., Bio-cognition, formation et alternance, L’Harmattan, 1995, p. 7.
22
Galvani P., Quête de sens et formation, L’Harmattan, 1997, p. 22.
23
Fabre M., Penser la formation, PUF, 1994, p. 149.
temporalidade.
A mediação entre singular e universal impõe que o ho-
mem seja tomado como uma totalidade particularizada que ul-
trapassa a oposição entre indivíduo e sociedade, no cruzamen-
to das problemáticas biológicas, históricas, psicológicas, psicos-
sociais, sociológicas, religiosas e culturais, o conjunto cons-
truindo, de uma forma ou de outra, a antropologia.
Esta pesquisa impõe que se resista à tentação fácil de uma
mediação que seria selada por uma simplificação grosseira ou
por uma mutilação apressada. Cada elemento deve poder ao
mesmo tempo distinguir-se e ligar-se através de integrações
sucessivas e combinatórios múltiplos, sujeito e objeto, persona-
lização e socialização, remetendo-se um ao outro no paradoxo
do indivíduo imaginal. Este jogo relacional do um e do múlti-
plo desemboca na questão dos valores éticos e espirituais.
A bildung como imagem singular, imaginação formadora,
trabalho sobre si mesmo, recompõe e oferece à experimentação
o caminho que separa e reúne nossas duas naturezas, responden-
do possivelmente ao questionamento do “Quem sou eu?” Mas em
sua acepção contemporânea ela parece insuficiente para oferecer
uma resposta à segunda interrogação: “Onde estou?”, questão
esta que supõe a distinção de níveis diferentes de realidade.
Com efeito, diante desse questionamento sempre houve
uma resposta que ancorava a busca no processo gnóstico e ini-
ciático ao qual, implicitamente, a bildung se refere. Mas há
muito tempo iniciação e gnose abandonaram o curso de edu-
cação e de formação.
A abordagem transdisciplinar atual, no entanto, e sem
entrar nas etapas de seu surgimento, “parece fornecer o quadro
teórico mais poderoso para integrar no coração do porvir os
dados conceituais desses entre-dois transicionais”
24
oferecendo,
ao mesmo tempo, um novo quadro de referências apropriado
para escorar os nossos questionamentos.
4. A abordagem contemporânea: imaginário e
transdisciplinaridade
Haveria, então, uma relação possível entre imaginação e
Educação e Transdisciplinaridade II
142
transdisciplinaridade, cada uma evocando, a seu modo, um
entre-dois transicional atuando em vários níveis. Conhecemos o
papel da imaginação na poesia (Bachelard), no social (Castoria-
dis, Morin) ou ainda na história das religiões (Eliade), bem co-
mo na biologia e na genética pelo sonho interposto (Jouvet). En-
fim, apreciamos sua importância na psicologia e na psicanálise
(Freud, Jung). Laço psíquico e laço social, não precisamos abso-
lutamente de longas referências para apreendermos seu papel
na criatividade e na arte. O imaginário é uma função essencial
da potência de vida individual, da vida em sociedade e da vida
das sociedades. Ele está em toda parte, mesmo onde não o espe-
ramos, como nas operações mentais mais racionais, como assi-
nala o historiador das ciências G. Holton
25
. O imaginário prece-
de e engloba o racionalismo. Todo o real é repensado simboli-
camente para ser ao mesmo tempo apresentável coletivamente
e servir como espelho para a ‘imagem’ interior. No entanto, o
real social coletivo, o real psicológico individual e o real imagi-
nal geram entre eles semelhança e dessemelhança.
O sonho, em nossa pesquisa, permite que a trajetória
antropológica e os diferentes regimes especificados por G.
Durand sejam recompostos. Ele apresenta uma identidade com
o imaginário. Mas, se o sonho pode ser definido como uma
modalidade particular de expressão do imaginário, inversamen-
te a relação não é simétrica: todo imaginário não é onírico. Por
outro lado, encontramos no fenômeno onírico as mesmas dife-
renciações que aquelas propostas habitualmente pelos autores
que exploram o imaginário.
Em um plano fenomenológico é conveniente diferenciar,
nas imagens psíquicas, diferentes categorias, provenientes tanto
da atividade cerebral consciente como da inconsciente, gerada
pelo sono.
Se o local do sentido é a imaginação, a poética, o sonho,
o mito, o desconhecido, convém compreender os círculos entre
as partes distintas e o todo aberto. O fenômeno do imaginário
pode aqui ser interrogado por uma análise multirreferencial
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
143
24
Pineau Gl, En Marche… dans quelles marges, vers quels coeurs?, 1999, p. 8.
25
Holton G., L’Imagination scientifique, Gallimard, 1981.
(Ardoino) capaz de criar pontes, mas que não dissociaria os
diferentes ângulos de observação possíveis e que valorizaria
uma possível leitura em vários níveis de realidade. Sem poder
entrar no quadro específico que tal análise exigiria, oferecere-
mos o quadro a seguir que resume uma parte de nosso traba-
lho de pesquisa. Outros autores poderiam, sem dúvida, estar
presentes aqui, como por exemplo, S. Lupasco e suas ‘três ma-
térias’, mas eles ultrapassariam o quadro mais estritamente ‘ima-
ginal’ que pretendemos desenvolver aqui.
- revelada/
material
Imaginação
suprasensível
- oculta/
imaterial
Imaginário
mítico
(coletivo)
Imaginário
Sagrado
Regime
noturno
sintético
Jabarût
Mundo
das
Inteligências
Inteligência
e visão
Rubedo
ou
Monúnculo
Mundo do Espírito
Faculdades
de
representação
reprodutiva
e derivada
Imaginação
transcendente
Formas
transcendentes
produzidas
fora da
presença do
objeto
Imaginário
noturno
(individual
onírico)
Imaginário
mítico
(coletivo)
Imaginário
pulsional
Imaginário
social
Regime
diurno
heróico
Regime
noturno
místico
Molk
alma humana
sonho
Malakût
Anjo/visão
Mundo
da Alma
Nigredo
Albedo
Mundo Sensível do Corpo
- percepções
sensoriais
Imaginação
reprodutora
- representa-
ções mentais
Imaginário
diurno
(literário)
Imaginário
pulsional
Regime diurno
heróico
Molk
alma humana
inteligência
Nigredo
Mundo Sensível do Corpo
WUNENBURGER
AUGÉ
BARBIER
DURAND
CORBIN
ALQUIMIA
Educação e Transdisciplinaridade II
144
No que diz respeito à Grande Obra alquímica e às suas
três fases, Nigredo (Obra em Negro), Albedo (Obra em Branco)
e Rubedo (Obra em Vermelho), e sem entrar nos detalhes dos
diferentes trabalhos, de suas possíveis semelhanças e diferen-
ças, podemos fazer com que emerjam categorizações que per-
mitam, com algumas superposições, a diferenciação de três
níveis sucessivos do imaginário.
O primeiro nível é o do mundo empírico psicocorporal e
da Nigredo. As palavras-chave que o diferenciam estão em con-
sonância com o individualismo, com a ambiguidade, com a
dualidade, com a polêmica, com o conflito, com a atividade. A
sua dominância é consciente e diurna e ele é caracterizado pela
heterogeneização, pelo princípio de exclusão, de não-contradi-
ção, de identidade, pela capacidade de discriminação, de distin-
ção. Esse ponto de vista vê o criatural como sendo o manifes-
to, o aparente, o exotérico e percebe o divino como sendo o
oculto, o esotérico. É a visão da criatura sem ver o divino, este
último sendo o espelho que revela a criatura.
O segundo nível manifesta o mundo sutil da alma e da Al-
bedo, é individual e coletivo, não-dual, receptivo, com uma do-
minância inconsciente e noturna, com palavras-chave como ho-
mogeneização, princípio contraditório, inclusão, confusão, coin-
cidentia oppositorum, analogia e similitude. Essa capacidade de
unificação vê o divino como visível e manifesto e, por outro la-
do, vê o criatural como estando oculto. É a visão do divino sem
ver a criatura, sendo o criatural o espelho da divindade.
O terceiro nível caracteriza o mundo das inteligências e da
Rubedo, que não é nem individual nem coletivo, nem cons-
ciente nem inconsciente, nem diurno nem noturno, nem ativo
nem receptivo, mas que ultrapassa e engloba as diferenças e a
similitudes, através das palavras-chave como equilíbrio, harmo-
nia, unita-multiplex, mysterium conjunctionis, integração da
integração, princípio dialógico não-contraditório e contraditó-
rio, ou melhor, nem contraditório nem não-contraditório. Ele
possui ao mesmo tempo e contraditoriamente a capacidade da
inteligência discriminativa e da visão unitiva. Aqui, dois espe-
lhos se refletem um no outro, a divindade na criatura e o cria-
tural na divindade, recompondo uma unidade múltipla na
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
145
‘Unitude’ que se teofaniza.
No primeiro grau, é importante diferenciar, o que exige
uma separação que coloca o objeto fora de si mesmo. Essa
exteriorização objetiva constrói as epistemologias científicas
dualistas e positivistas e a irreversibilidade dos sistemas.
No segundo grau, convém integrar, o que pede uma fusão
que coloca o objeto em si mesmo, posição de interiorização sub-
jetiva que funda as epistemologias construtivistas e a fenomeno-
logia. Este nível, através da experiência do ‘segundo nascimen-
to’, abre para a noção de reversibilidade dos sistemas vivos.
No terceiro grau, surge a possibilidade de restaurar a visão
integral que reconhece, sem opô-las, as duas fases precedentes,
colocando-se acima no jogo contraditório das forças causais. Es-
sa postura funda, com pontos de vista diferentes, a posição
gnóstica e a epistemologia transdisciplinar como ‘sistema dos
sistemas’. Realmente, duas características distinguem gnose e
transdisciplinaridade, que no entanto se reúnem em suas finali-
dades. A gnose procede da revelação ‘do alto’, enquanto a trans-
disciplinaridade é concebida como proveniente da atividade
científica e, além disso, baseada na física quântica e na sistêmi-
ca. Ademais, a gnose é uma soteriologia, uma via de salvação
individual, enquanto a transdisciplinaridade desenvolve-se
como atividade científica, metodologia reprodutível de resolu-
ção dos problemas complexos.
Portanto, há realmente no universo da imaginação diferen-
tes níveis de conhecimento que respondem à questão coloca-
da a Adão: “Onde estás?” e nos quais a resistência oferecida
pelo objeto deve ser penetrada pela imaginação cognitiva do
sujeito, de acordo com as modalidades próprias a cada um dos
níveis de realidade. O pensamento dualista, mediante seu prin-
cípio de razão suficiente, operando por dedução, pretende
reduzir imediatamente a diferenciação de níveis distintos a uma
alternativa entre ilusão e exclusão quando aborda o imaginário.
Ele (o pensamento dualista) cria uma separação entre duas
determinações, o verdadeiro e o falso que dividem o campo
dado. Nessa alternativa, o verdadeiro necessariamente rejeita a
imaginação. Por outro lado, o pensamento complexo e a lógi-
ca do terceiro incluído consideram vários níveis de percepção
Educação e Transdisciplinaridade II
146
ou de imaginação. A transdisciplinaridade permite o desenvol-
vimento de uma nova metodologia de resolução dos problemas
que esclarece as situações ao mesmo tempo complexas e para-
doxais do imaginário, recompondo e renovando as relações
delicadas entre episteme, mística e gnose que se observam em
nosso estudo e que, de uma maneira ou de outra, compõem a
realidade vivida da experiência humana.
Mas ela não responde completamente à arbitragem dos va-
lores antagônicos que observamos no pensamento dualista, na
medida em que a metodologia transdisciplinar, com o terceiro
incluído, mantém um estado de tensão energética dos contrários,
capaz de responder ao mysterium conjunctionis, mas não é ope-
rativa para suscitar o processo de passagem cognitiva entre o ní-
vel da realidade dual, o da ‘Nigredo’, portado pelo antagonismo,
e o nível da realidade não-dual, o da ‘Albedo’, que repousa na
coincidentia oppositorum. Na experiência interior, a mediação
entre os extremos nessa passagem entre Nigredo e Albedo não
provém de um terceiro secretamente incluído, mas ela é torna-
da possível por uma ‘metanóia’, uma reviravolta do princípio
separador portado pela imagem e pela palavra pervertidas. Todo
ser que sofre deseja o bem, a justiça, a verdade, o amor, o que
pede a conversão da sombra em luz, a inversão, por um ato vo-
luntário, da tendência passiva ou reativa que nos faz sofrer a
vida. A busca de sentido como preliminar ou como consequên-
cia de nossas alegrias e de nossas dores, de nossas ações, de
nossos sonhos e de nossas palavras, ou ainda de nossos sofri-
mentos, é uma das características das ciências humanas que, ao
contrário das ciências exatas, repousa na subjetividade, na histo-
ricidade e nos métodos primeiramente fenomenológicos e her-
menêuticos. Esse princípio de conversão positiva nessa ótica é
de um grande alcance ético, pois afirma o livre arbítrio funda-
mental que temos diante das nossas escolhas. Esse processo, co-
mo princípio de retificação e de regeneração, ou ainda como ló-
gica dialética invertendo a antítese não em favor da tese, nem
mesmo de uma síntese, mas abrindo, devido à sua dinâmica de
transformação, para um meta-nível, distingue-se do ‘estado T’,
do qual é o complementar não-simétrico. A função essencial
desse processo é quebrar a separação entre o ser psicocorporal
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
147
e sua dimensão espiritual. Ele torna possível a inteligibilidade da
relação e da transição do Mesmo e do Outro, do si-mesmo como
um outro e do próximo como si-mesmo; ele articula as relações
entre o Uno singular e o Uno universal permitindo a mudança
de quadro epistemológico, que se torna subentendida por uma
lógica do contraditório. Esta, por sua vez, deve ser abandonada
se queremos ter acesso ao nível superior, aberto, regido por
valores de beleza, de liberdade e de indecidibilidade.
Esse processo particular apresenta, em suas consequências,
o postulado de vários níveis possíveis de realidade, cada meta-
nível sendo o lugar da integração dos contrários do nível prece-
dente. Mas o número dos níveis não é indeterminado. Os mo-
delos antropológicos são bastante convergentes a este respeito.
Cada nível, experimentado pela imaginação, apresenta diferen-
ças de ordem lógica, mas também epistemológica em relação ao
outro, assim como leis de passagem entre eles que variam de
um estágio para outro. De forma mais específica, o Uno singu-
lar e o Uno universal não pertencem ao mesmo nível, o espaço
por excelência das mediações – como terceiro nível intermediá-
rio e integrador – manifesta-se através de uma propriedade es-
sencial: nele o universal torna-se singular e o singular universal,
característica precisamente do mundo imaginal e de sua face du-
pla. O problema, alquimicamente falando, é o do duplo, simbo-
lizado por Mercúrio. Se o nível inferior porta os princípios de
não-contradição, de identidade e de terceiro excluído, a passa-
gem para o nível superior impõe, se quisermos experimentá-lo,
uma inversão do negativo, da sombra, de modo que essa con-
versão para positivo possa permitir o estabelecimento de uma
ressonância cognitiva com o nível de realidade de cima. Só essa
relação, que recompõe uma mesma identidade de um lado e do
outro do espelho imaginal, pode restabelecer o diálogo do ho-
mem e de seu anjo, para retomar H. Corbin.
Assim, o espaço específico dessa mediação não deve ser
concebido como espaço de transição ‘horizontal’, espécie de en-
tre-dois que, a partir do branco e do negro faria aparecer o cin-
za, não como ‘estado T’ não-contraditório e paradoxal que man-
teria a tensão antagônica num metanível entre o preto e o bran-
co, mas podendo posicionar o homem em seu status de ‘verti-
Educação e Transdisciplinaridade II
148
calidade’, com a condição de que o preto, tornado branco, pro-
duza um “branco mais branco que o branco”.
Mais precisamente, a redescoberta do ‘mundo imaginal’ é
uma injunção transdisciplinar fundamental, na medida em que
esta ilustra, por excelência, a dinâmica da passagem entre a hu-
manidade terrestre e sua realidade celeste. Graças à imaginação
ativa, o transcendente pode ser experimentado em termos de
vestígios no imanente, que, pelo jogo do espelho, manifesta o
caminho para o transcendente. O imaginal, como lugar mesmo
dessa comunhão, impõe que se encontre antes a realidade de
um corpus spiritualis contraditório e paradoxal, significado pela
fecundação virginal. A tradição alquímica, que pontuou nossos
próprios sonhos, assim como a gnose islâmica, cara a Corbin, ou
ainda o ponto de vista indiano, budista, chinês, judaico e mes-
mo cristão são particularmente claros sobre este ponto. Mas nos-
so olhar se direcionou de tal forma para a exterioridade que es-
quecemos nossas raízes e daí o drama da nossa sociedade. O es-
pelho imaginal e seu duplo oferecem-se a nós como possível
‘visão reversa’ (vision retournée) (Schipper) ou interior, para ci-
tar uma expressão taoísta. Esse olhar voltado para dentro permi-
te o acesso à nossa Forma verdadeira, que deve suas proprieda-
des imaginais às duas faculdades, espiritual e material, que a
encerram.
Postular níveis de realidade diferentes e distinguíveis por
leis que lhes são próprias supõe uma epistemologia da ruptura
que impõe o desenvolvimento de uma sensorialidade diferen-
te dos nossos meios de percepção habituais. Trata-se de recu-
perar nossos sentidos não apenas externos, mas também os
internos, a fim de submetê-los, por sua vez, a critérios de cien-
tificidade que ainda precisam ser, em grande parte, definidos.
Essa percepção sutil foi particularmente sugerida pelos traba-
lhos de Henri Corbin. Nesse contexto, a descoberta de níveis
no seio do vasto repertório das imagens recompõe uma feno-
menologia da cognição e um caminho de ontogênese graças ao
qual o ser poderia tornar-se manifesto como epifania. Esse per-
curso, que em certa medida nossa sociedade moderna parece
ter perdido, mas que a gnose pôde testemunhar outrora, impõe
ao pesquisador um ‘labor’ sobre si mesmo e não somente sobre
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
149
o objeto de sua pesquisa. À medida que as mudanças de per-
cepção e de representação ocorrem, o conhecimento evolui e
se metamorfoseia mediante a transformação do eu e do autoco-
nhecimento. O mesmo objeto é descoberto sob enfoques dife-
rentes. Mais precisamente, a (re)descoberta dos mundos que
compõem o imaginário, ligada a modos de percepção diferen-
tes, surge como um dos maiores desafios do século XXI.
Compreendemos que um lento processo cognitivo parece
ativo tão logo examinamos as etapas da hominização, as da his-
tória das ciências ou as diferentes fases do mito da criação de
Adão. Cada uma delas parece necessária. Mais precisamente,
uma episteme da similitude e uma episteme da diferença já pon-
tuaram a história. A questão que se apresenta atualmente é
saber como criar uma ponte entre unidade e dualidade, simili-
tude e diferença que não seja sacrificada pela eliminação de um
dos dois termos em favor do outro.
Com efeito, como primeira etapa convém dessacralizar o
dualismo cartesiano entre um sujeito misterioso e objetos cog-
noscíveis, a partir do qual se instituiu o conhecimento positivo.
O paradigma da complexidade acaba de contestar o valor da ob-
jetividade da fragmentação dos conhecimentos que fundamenta
a epistemologia clássica. Mas tampouco se trata de retornar à si-
militude, pois a análise crítica mostrou sua riqueza, mas também
seus limites. A bildung, reincorporando o sujeito e, mais preci-
samente, seu imaginário, no conhecimento que ele produz e do
qual ele é o produto, supõe, como o constatamos, a importân-
cia do círculo recursivo e de níveis de realidade diferentes. É
preciso também um pensamento dialógico, para citar E. Morin
(La Méthode), que reuna, dissociando-as, a unidade e a diversi-
dade, a Unitas multiplex, o duplo pensamento do Mythos e do
Logos ou ainda o do ‘ver’ e do ‘falar’. Assim a imaginação, e o
pensamento que lhe é associado, deve estabelecer fronteiras e
atravessá-las, abrir os conceitos e fechá-los, ir do todo unitário às
partes e das partes ao todo, a fim de harmonizar a contradição.
Esta postura, talvez paradoxal, é insustentável tanto para
os partidários da similitude quanto para os partidários da dife-
rença. Mas também não basta se deixar seduzir pelo pensamen-
to dialógico; é preciso integrá-lo concretamente. Anunciamos
Educação e Transdisciplinaridade II
150
que a mudança de consciência impõe a experimentação de um
caminho: numa primeira etapa, imaginal, ligado a uma inver-
são; numa segunda etapa, levando a outro nível de experiência,
capaz de fazer brotar ‘a integração da integração’. O mundo
novo pede um indivíduo renovado que não privilegia nem um
deus em detrimento do homem, nem o homem em detrimento
da natureza, nem a sociedade, nem o indivíduo. Ética, liberda-
de e conhecimento tornam-se as referências interiores a partir
do momento que a pessoa integral é restaurada pela imagina-
ção criadora. Esta restituição inverte a tendência niilista con-
temporânea, assim como toda e qualquer busca espiritual sem
essa mediação não passa de crença ou dogma.
Todavia, não se trata aqui de adentrarmos em sendas peri-
gosas de uma absolutização do saber ou da experiência, o que
seria contrário à abordagem transdisciplinar que postula a coe-
xistência de cada um dos níveis e, em última instância, uma
realidade aberta. Com efeito, ela tende para uma ‘integração da
integração’, mas de maneira livre e respeitando as diferenças e
as singularidades, bem como a complexidade e a universalida-
de. Pois a epistemologia transdisciplinar, tanto quanto a expe-
riência imaginal, postula um relativismo não absoluto e não sin-
crético baseado na idéia de que nenhum dos modos de conhe-
cimento pode abarcar toda a realidade: episteme, mística e
gnose são necessárias para se pretender caminhar em direção
a uma ‘unidade aberta’ pluralizável. Assim, a busca de unidade
se dá não tanto através do conflito entre não-contraditório e
contraditório, mas através da tensão-relação entre diabólico e
simbólico, através de correlação e cristalização de imagens ou
de ideologias antagônicas e da busca de metaníveis integrado-
res que, por definição, incluem as oposições do nível prece-
dente. Trata-se de encontrar um modo de tratamento global,
holista, não redutor dos problemas, que não exclui o reducio-
nismo analítico. Trata-se também de, em cada espaço de tran-
sição, encontrar a postura interna adequada para dar liberdade
ao pensamento.
A Imaginação como Objeto do Conhecimento – Patrick Paul
151
5. CONCLUSÃO
Constatamos que de alguns séculos para cá a imaginação
foi muito mais qualificada de fantasia, de ilusão, de fantasma-
goria, de alucinação ou de recalque neurótico do que de apti-
dão ao conhecimento e espelho de revelação.
No entanto, descobertas recentes vêm confirmar os mitos
antigos, demonstrando que a imaginação é anterior em relação
à linguagem e à cognição. Da superposição mórbida e patoló-
gica das representações confusas, pode, no entanto, brotar a
imaginação criadora, colocando-nos em contato com a realida-
de mais sutil. Muito mais, no novo paradigma que emerge do
pensamento das epistemologias construtivistas e da transdisci-
plinaridade, a imaginação torna-se um método de conhecimen-
to particularmente privilegiado nas ciências humanas, pois sem
ela a hipótese de ‘níveis de realidade’ conjugados a níveis de
subjetividade torna-se dificilmente observável. A questão trans-
cultural que não podemos desenvolver aqui também encontra
respostas por intermédio dela (imaginação). Além disso, o pos-
sível diálogo entre artes, ciências, tradições e religiões sugerido
pela Carta da Transdisciplinaridade elaborada em 1994 em
Arrabida
26
encontra, com os diferentes níveis do imaginário,
uma possibilidade de concretização real.
Em todas estas situações, parece importante redefinir o
conceito do imaginário como lugar dos acontecimentos da his-
tória e da meta-história, assim como campo cognitivo e experi-
mental, ou seja, como objeto do conhecimento do sujeito, no
seio de uma ciência da particularidade que estabeleceria a rela-
ção entre indivíduo e cultura e que renovaria a ponte entre o
conhecimento de fora, a episteme científica, e o conhecimento
de dentro, tradicional. É preciso deixar ao homem a possibili-
dade de pensar e de se pensar tecnicamente e filosoficamente,
mas também e de novo, de imaginar e de se imaginar simboli-
camente.
Educação e Transdisciplinaridade II
152
26
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Educação e Transdisciplinaridade II
154154
Conferência proferida no II Encontro Catalisador
do CETRANS da Escola do Futuro da USP, no Guarujá,
São Paulo, de 8 a 11 de junho de 2000
Martin E.Rosenberg é professor assistente de Comunicação, dire-
tor de The Rhizome Hypertext Project no Business and Industrial
Management Department da Kettering University, tendo desen-
volvido estudos relacionados a crítica literária e literatura de lín-
gua inglesa. Há alguns anos defendeu, na Universidade de Mi-
chigan, uma tese na cadeira de Crítica Teórica e da Literatura do
Século XX, com o título Being and Becoming: Physics, Hegemo-
ny, Art and the Nomad in the Works of Ezra Pound, Marcel
Duchamp, Samuel Beckett, John Cage and Thomas Pynchon.
É músico, tendo estudado composição clássica, Arranjos e
Apresentações de Jazz. Faz estudos interdisciplinares usando os
conhecimentos e a prática musical juntamente com a literatura,
as artes e as ciências em geral.
O RIZOMA do Xadrez
e o Espaço de Fases:
Mapeando a Teoria da Metáfora
na Teoria do Hipertexto
Introdução
O RIZOMA do Xadrez é um hipertexto que construí para
explorar – ultrapassando as fronteiras disciplinares – o alcance
das referências do jogo, do tabuleiro, de suas peças, de suas
regras e da função peculiar que o tempo desempenha no pro-
cesso de desdobramento do próprio jogo (Fig. 1). O método que
configura o desenho do RIZOMA do Xadrez foi desenvolvido
com base no trabalho de Gilles Deleuze no que diz respeito à
falsa criação que forja as ligações circunstanciais entre as disci-
plinas científicas, filosóficas ou artísticas com o propósito de
conduzir investigações epistemológicas. O objetivo deste proje-
to é explorar a metáfora (ou tropos
NT1
, de uma forma geral) co-
mo um espaço para o estudo interdisciplinar. Especificamente,
O RISOMA do Xadrez explora a natureza instável da Teoria Me-
tafórica Constitutiva (TMC)
NT2
, em inglês Theory Constitutive Me-
thaphor (TCM), de Richard Boyd, como base para a crítica epis-
temológica, mapeando a lógica dos desvios do tropo do xadrez
que atravessam as fronteiras disciplinares, com a finalidade de
tornar visível a função cultural destes desvios. As três lógicas
específicas que este projeto de hipertexto procura modelar são:
1. Genealógica: é o desvio causal de um tropo de um
usuário para outro.
2. Ingênua: é o uso opaco ou desinteressado de um tropo
em particular com a aceitação plena de sua bagagem
epistemológica.
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases:
Mapeando a Teoria da Metáfora na Teoria do Hipertexto – Martin E. Rosenberg
157
NT1
Tropos: figuras de linguagem e de pensamento
NT2
Theory Constitutive Methaphor (TCM), a tradução sugere que é a metáfora que constitui a teoria e será
representada neste texto sempre com a sigla TCM.
Figura 1. Mapa de navegação de O RIZOMA do Xadrez. As disciplinas acadê-
micas estão distribuídas nas extremidades exteriores, enquanto que os autores
de todas as disciplinas que usam metáforas, assim como a lista de conexões en-
tre eles, estão agrupados no espaço mais interior, a fim de poder representar vi-
sualmente que a investigação do uso que eles fazem da metáfora fica em uma
região que perpassa ou é subjacente às disciplinas tomadas individualmente.
3. Irônica: é o uso transparente e consciente de um tropo
qualquer com uma perspectiva cética de sua bagagem
epistemológica.
Mais tarde, ainda neste ensaio, debaterei os três tópicos
acima como uma metodologia para um estudo interdisciplinar
das ciências.
Le
Lionnais
Ficção
DramaPoesia
Música Artes Visuais
História da Arte
John T. Irwin
Umberto Eco
Hubert Damish
Crítica Literária
Joseph
Beuys
Thomas
Pynchon
John
Cage
Edgar Allan Poe
Vladimir NabokovRaymon Queneau
Jorge Luís Borges
T. S.
Eliot
Samuel
Beckett
Ezra Pound
Marcel
Duchamp
Ítalo Calvino
Georges
Perec
Sacvan BercovitchGilles Deleuze e Félix GuatariWalter Benjamin
Metáfora
Jacques Derrida
Oswald Spengler
Richard Boyd
Hayden White
Richard Feynman
Alegoria
Introdução ao
RIZOMA do Xadrez
Modelo
Clark MaxwellIngênuaIrônicaHenri Poincaré
Ilya Prigogine
História
Ferdinand de
Saussure
História e Teoria
do Xadrez
Ludwig
Wittgerstein
Matemática
Filosofia
Mack
McPhail
Henri
Bergson
Claude
Shannon
Física
John
Holland
John von
Neumann
Mao Tse Tung
Ciência Política
Ciência Militar
ComunicaçãoTermodinâmica
Ciência da
Computação
Linguística
Teoria do Jogo
Educação e Transdisciplinaridade II
158
Outras indagações fundamentais sobre o papel das metá-
foras e outros tropos na formação da epistemologia no âmago
das práticas científicas precisam ser feitas. Ao mesmo tempo,
também devemos nos questionar sobre como empréstimos tró-
picos que migram das ciências para tropos que estão fora das
ciências propriamente ditas acabam se tornando envolvidos por
elas e são seduzidos por estas epistemologias. Em outras pala-
vras: como aqueles que se encontram fora do círculo da ciên-
cia carregam a bagagem ideológica e epistemológica que de-
pois é transferida para outras áreas por estes tropos? Até que
ponto eles estão conscientes desta bagagem?
Para que possamos entender o que é possível saber em
um momento histórico particular, Gilles Deleuze fala especifica-
mente da necessidade de criar links (elos, ligações) entre con-
ceitos filosóficos, construções artísticas e funções científicas. Ele
ainda argumenta que a criação destes links exige uma certa fle-
xibilidade, para que a mobilidade das conexões envolvidas
reflita as circunstâncias do momento histórico em que as rela-
ções estão sendo estabelecidas. Chamo esse espaço conceitual
onde esses links podem ser forjados de ‘campo de imanência
interpretativa’, e este espaço deve ser definido quanto a estes
links em si mesmos e quanto aos momentos históricos especí-
ficos em que diferentes áreas de conhecimento se cruzam. Este
campo pode ser concebido em termos das estruturas de estabi-
lidade variada que poderiam ser forjadas com a finalidade de
interpretação (estruturas geralmente descritas a partir de refe-
rência a formas geométricas). Como alternativa, alguém pode-
ria imaginar este campo em termos de fluxos no tempo perpas-
sando essas estruturas (fluxos que geralmente são descritos a
partir de referências ao funcionamento reversível de máquinas,
ou a processos irreversíveis, como os dos sistemas auto-regulá-
veis). Estes fluxos indicam um processo de circulação significa-
tiva que atravessa as fronteiras disciplinares e é possível graças
à criação dessas correspondências. O desvio genealógico ou
causal de um tropo é um dos exemplos óbvios de como o
campo pode ser concebido como um ‘fluxo’.
Alguns temas que emergem de um questionamento da
natureza deste campo de imanência interpretativa são: o pro-
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
159
blema da estabilidade de estruturas forjadas entre as fronteiras
disciplinares e que atuam como estruturas de referências; e o
problema de identificar a ‘lógica’ que governa os fluxos de sig-
nificado através dessas estruturas em um dado momento histó-
rico. Isto significa que os problemas causados pela prática de
criar falsos links (de forma a possibilitar a criação de estruturas
para viabilizar fluxos significativos) tornam-se visíveis quando
confrontamos a estabilidade desses links com relação a este
dado momento histórico. Isto é especialmente pertinente quan-
do imaginamos que este momento está carregado de pressu-
postos epistemológicos e ideológicos que acabam envolvendo
aqueles links e este momento de um modo complexo. Por
exemplo, podemos nos apropriar da bagagem epistemológica
de um tropo de forma inocente ou irônica.
O que chamo de ‘campo’ possui as propriedades tanto de
estruturas sedentárias quanto de fluxos no tempo, pois estou
tentando me manter consciente dos tropos que estou utilizando.
Estes tropos, por sua vez, se referem às formas em que a geo-
metria não-Euclidiana, como aquela inventada por Riemann,
tem sido utilizada para a representação desta variedade de pro-
cessos e estruturas:
1. Formas geométricas estáticas atemporais.
2. Trajetórias causais de objetos em 4 dimensões que podem
ser mapeadas com precisão.
3. Sistemas dinâmicos complexos, incapazes de serem re-
duzidos a estas trajetórias precisas, representados em es-
paço de fases.
Estou relevando minha própria tropologia para que os lei-
tores possam ver como estou me baseando no trabalho de
Deleuze e Guattari, de forma a teorizar sobre a metodologia
deles. Meu conceito sobre ‘campo da imanência interpretativa’
se parece muito com as noções de Deleuze e Guattari de ‘plano
consistente’ ou ‘plano de imanência’. Quando me refiro a estru-
turas e fluxos de comunicação também estou repetindo a distin-
Educação e Transdisciplinaridade II
160
ção entre espaços estriados e lisos do trabalho de Deleuze e
Guattari Corpo sem Órgãos.
A partir dessa perspectiva, elaborei um experimento men-
tal para mostrar como certos tropos podem estar implícitos em
certas epistemologias científicas e não em outras. Será que é
possível mostrar um padrão de como certos tropos migram
entre as fronteiras disciplinares e realizam certos tipos de traba-
lho cultural, para tornar visíveis as formas pelas quais metáfo-
ras como o jogo de xadrez podem se tornar sintomas de hipó-
teses epistemológicas fundamentais que percorrem um leque
de disciplinas? E, como muitos pensadores utilizaram o xadrez
como uma poderosa metáfora para descrever perspectivas bási-
cas em um leque de disciplinas, enfoquei os tropos gerados
pelo jogo de xadrez para realizar esse experimento.
Um ambiente de hipertexto me parece ideal para realizar
este tipo de experimento mental. Mas um certo número de espe-
culações sobre a natureza do espaço e tempo hipertextual nos
levaram a debates similares sobre a função de metáforas na des-
crição de ambientes cibernéticos. Assim, tendo em mente a ima-
gem da tira de Moebius, deixarei em primeiro plano o problema
adicional do uso de um tropo derivado das ciências para repre-
sentar estruturas e processos de pensamento no hipertexto, mo-
delando hipertextualmente o problemático papel da metáfora na
ciência interdisciplinar em si. Em outras palavras: eu gostaria de
mapear a problemática da teoria da metáfora nas ciências trans-
ferindo-a para a questão da metáfora na teoria do hipertexto.
1
As Propriedades Sedentária e Aleatória do
Hipertexto
A retórica dos teóricos de hipertexto foi amplamente copia-
da da avant-garde literária e artística da era modernista. Entretan-
to, meus antigos trabalhos sobre hipertexto e sua extensão glo-
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
161
1
Estou utilizando o termo ‘hipertexto’ por hábito. Não há dúvida de que o termo ‘cybertexto’, de Espen
Aarseth, suplanta o velho termo ‘hipe’, precisamente porque capta as propriedades macroscópicas da inter-
face cibernética e o alcance de sua textura visual, verbal e aural precisamente da forma que estou propondo
aqui. Mas Aarseth não explora as bases científicas da topologia que propõe. (1-2. 94-95) Gostaria de expres-
sar meus agradecimentos a Aarseth por seus úteis comentários, bem como por seu convite para apresen-
tar parte deste projeto na Conferência de Artes Digitais e Cultura na Universidade de Bergen, Noruega de
24 a 26 de novembro de 1998.
bal através da World Wide Web (Rosemberg, Invisibility, Portals,
Physics; Rosemberg e Killingsworth, Icon, Evolution) ofereceram
uma crítica epistemológica às afirmações de que o hipertexto for-
necia uma liberação artística e pedagógica. Ao analisar retorica-
mente as origens culturais e científicas dos tropos utilizados por
teóricos do hipertexto, eu esperava tornar visível a inexorável
geometricalidade do hipertexto, enquanto situava as afirmações
de vários teóricos de hipertexto contra a invasão vanguardista do
século XX na própria dominação geométrica da consciência hu-
mana. No início deste século, Henri Poincaré na matemática e
Henri Bergson na psicologia e na filosofia, apresentaram críticas
importantes sobre a dominação geométrica das estruturas cogni-
tivas.
2
A crítica de Bergson ao manifesto de Kant, que dizia que
a mente era determinada culturalmente, e a crítica de Poincaré
quanto ao fato de a própria geometria ser um constructo social
na moldagem de ocorrências da física, tornaram-se úteis para
os artistas de vanguarda que procuravam destronar estas estru-
turas. Embora os teóricos do hipertexto tivessem reabilitado as
mesmas geometrias que sua retórica liberal criticava, é possível
conceber de novo o hipertexto em termos de outros espaços
não-sedentários.
Tanto as estruturas estáticas quanto os processos de pensa-
mento disciplinar podem ser formatados em hipertextos exata-
mente porque, até mesmo no nível de cognição, a mente huma-
na pode recorrer a propriedades sedentárias da geometria como
um princípio estruturador primário.
3
Tanto as estruturas geomé-
tricas quanto o esquema cognitivo são sintomas daquilo que
Deleuze e Guattari chamaram de arbóreo ou em formato de
árvore – ou seja: a formação linear e determinista como um dos
modelos epistemológicos mais bem aceitos no pensamento
Ocidental. Qualquer articulação do pensamento dentro de uma
disciplina deve necessariamente refletir a natureza arbórea
deste pensamento disciplinar – sua estrutura conceitual hierár-
Educação e Transdisciplinaridade II
162
2
Podemos encontrar referências sobre isto na produção artística da vanguarda do começo do século vinte
(Marcel Duchamp), na teoria literária e na filosofia contemporânea (Giles Deleuze), bem como na teoria de
sistemas complexos aplicados tanto à física quanto às ciências cognitivas (Ilya Prigogine, Francisco Varela).
3
As afirmativas de Lakoff, Johnson e Turner a respeito da natureza espacial/temporal dos esquemas
metafóricos que estruturam a resposta fenomênica da mente aos estímulos externos, são sintomas dessas
propriedades sedentárias. Suas afirmativas sobre “o corpo na mente” não explicam suficientemente a
bagagem cultural pressuposta nestes esquemas metafóricos.
quica e o processo heurístico sequencial – não só nas represen-
tações entre as relações associadas entre fragmentos de infor-
mação, mas também nos procedimentos de criação de um sis-
tema de informação estável para esses fragmentos. Por exem-
plo: o melhor sistema de hipertexto StorySpace de Jay David
Bolter, Michael Joyce e John B. Smith, tem uma função de
mapeamento que pode traduzir até os links mais associativos e
impressionistas entre lexias na forma de uma árvore do tipo
divisão-classificação, independentemente do fato de quanto
esta tradução possa ser inadequada. A inexorável geometria do
hipertexto pode se tornar indeterminada por dois aspectos que
sugerem que a natureza sedentária da formação arbórea não é
a única formação possível entre estruturas e processos de pen-
samento representados no sistema de hipertexto. Estas caracte-
rísticas exemplificam as propriedades aleatórias do hipertexto:
ícones instáveis e trajetórias contingentes que parecem transfor-
mar aquilo que de outra maneira poderiam ser árvores ordena-
das em labirintos rizomáticos.
Como Deleuze e Guattari argumentaram consistentemente,
as características rizomáticas do pensamento encurtam o cami-
nho de estruturas arbóreas e processos. Um rizoma é um aglo-
merado de elementos conectados que têm a capacidade de se
agregar através de divisão simples, como nos extensos sistemas
de raiz de grama de pasto no prado, que produzem uma cole-
tividade viva que é independente das lâminas de grama indivi-
duais a partir das quais as raízes tiveram sua origem. Enquanto
o pensamento de Deleuze e Gattari (exemplificado em seu tra-
balho de colaboração, Mil Platôs) ilustra as propriedades do
rizoma, esta propriedade pode ser observada até mesmo no
recente modo de conceber as bolsas de estudo interdisciplina-
res no mundo acadêmico. O mapa da teoria cognitiva de Vare-
la, Thompson e Roch, por exemplo, oferece um modelo possí-
vel de rizoma interdisciplinar que atravessa as estruturas arbó-
reas das disciplinas acadêmicas tradicionais por situar uma va-
riedade de profissionais das ciências cognitivas que se juntam
por seus pressupostos epistemológicos e suas disciplinas de
origem (Varela et al. 7). Este mapa também constitui um mode-
lo da atividade de investigação da pesquisa das transdisciplinas
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
163
como uma propriedade emergente: um fluxo não-linear no
tempo, que leva à agregação de estruturas híbridas de informa-
ção e aos processos paralelos heurísticos. Sugiro que podemos
visualizar esta pesquisa da transdisciplina através do hipertex-
to, já que os sistemas de hipertexto parecem ‘naturais’ para exi-
bir as propriedades que podem exemplificar um rizoma como
um princípio estrutural para uma nova formação de um novo
conhecimento e processos inovadores do pensar.
Entretanto, apesar da distinção proveitosa entre as caracte-
rísticas arbóreas e rizomáticas do hipertexto, a retórica rizomáti-
ca mais popular entre os teóricos do hipertexto deve ser analisa-
da com cautela. As reivindicações feitas ao hipertexto sobre a
‘não-linearidade’, a ‘contingência’ e o ‘deslocamento’ devem ser
caladas diante das características de extrema sedução de sua geo-
metria léxica. Cada passagem através de um link marcado por
um ícone é capaz de trazer o navegador de volta ao eterno retor-
no da mesma velha geometria – cujas propriedades continuam a
estruturar nosso conhecimento e nossos processos cognitivos.
Até agora, as tentativas feitas por teóricos e praticantes do hiper-
texto para demonstrar estas propriedades cognitivamente subver-
sivas continuam sendo demasiadamente impressionistas. No
mínimo essas características de ruptura criam um problema de
design para os usuários. Em primeiro lugar, as interfaces de
hipertexto são caracterizadas por ícones instáveis que conectam
aleatoriamente espaços textuais e visuais, os quais podem ser
estáticos ou contingencialmente sequenciais. Segundo, as trajetó-
rias de e para estes ícones estão longe de ser previsíveis e, na
verdade, chegam a um tal nível de complexidade que fica prati-
camente impossível navegar e mapear com alguma segurança e
as operações cognitivas do usuário ficam longe de serem triviais.
Meu primeiro projeto de hipertexto para fazer o levanta-
mento de modelos de procedimentos lógicos e associativos do
pensamento na argumentação (RHIZOME [1989-1992], no
Hypercard, com Tom Ellis, projeto ao qual Johnson-Eilola e
Selber se agregaram em 1991) fracassou justamente porque não
conseguimos predizer todas e quaisquer possibilidades da tra-
jetória de navegação dos usuários alunos, que reclamavam esta-
rem perdidos. Meus alunos sonhavam com um espaço trans-
Educação e Transdisciplinaridade II
164
cendente onde eles pudessem parar o mundo hipertextual,
podendo assim sair e descobrir onde se encontravam, a partir
de uma perspectiva global de seus deslocamentos locais. E ape-
sar disto, o valor pretendido deste programa foi definido pela
sua capacidade de guiar os estudantes fenomenológicamente
através de passos sequenciais do pensamento associativo e
lógico – passos estes marcados por ícones que servem de por-
tais a sequências lineares ou recursivas.
Em 1995, M. Jimmie Killingsworth e eu descrevemos da
seguinte maneira os problemas com o projeto e a documentação
de interfaces guiadas por ícones com os quais os programadores
de hipertexto se confrontam: “Como podemos representar as tra-
jetórias recursivas múltiplas e lineares possíveis de um dado
ponto (que para nossos propósitos frequentemente significam
um ícone) e voltar a este ponto outra vez, para que os usuários
não tenham que tropeçar nas possibilidades de uso deste progra-
ma?” (Ícone, 220). Assim como uma função-signo de Peirce
semelhante a um ponto no espaço de fases (notem minha invo-
cação desta metáfora da física), o ícone adquire propriedades
contingentes simplesmente por tornar-se embutido em sequên-
cias diferentes, dependendo da direção de onde e para onde o
usuário está navegando. Nós colocamos isto de outra forma:
É fácil representar ícones e funções quando estes pontos e suas
potenciais trajetórias, que indicam a função do usuário, se
mantêm fixos e estáveis. Mas qualquer ícone precisa se manter
necessariamente instável em um programa complexo. O ícone
instável é um ponto aleatório no campo cibernético fluxional:
é um espaço de fases que é perpetuamente circunstancial, já
que fica envolvido em uma ou outra cadeia crescentemente
complexa de caminhos e destinos possíveis, incluindo o link
visual daquilo que parece ser o mesmo ícone.
(220)
Cada ícone pode ser pensado como um signo para uma
ocorrência da cibernética que está em uma sequência de nave-
gação que tem link com outras ocorrências da cibernética.
Podemos, inclusive, usar o que na física é chamado de um ‘cone
de ocorrências’ para mapear antigas e novas ocorrências-ícone
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
165
possíveis que podem ter uma relação sequencial causal ou de
navegação com uma determinada ocorrência-ícone no presente.
É claro que a presente ocorrência-ícone é a primeira tela dispo-
nível para o usuário, a qual oferece uma série de opções para
futuros caminhos através do hipertexto, bem como a possibilida-
de de reverter a trajetória. A ‘Zona Desconhecida’
NT3
marca ocor-
rências; e, por analogia, ocorrências-ícone, que não podem ser
causadas por ocorrências anteriores ou futuras. (Fig. 2)
Figura 2. Um Cone de ocorrências que mapeia as possibilidades de sequên-
cias causais a partir de uma ocorrência passada para uma ocorrência futura,
através da mediação da ocorrência presente
Se a complexidade de um evento exigir simultaneamente
um mapeamento de múltiplas dimensões, poderemos então en-
tender como um evento presente tem uma maior amplitude de
banda de causalidade do que pode ser representado por um
único espaço bidimensional. A partir de um evento qualquer,
nunca podemos realmente dizer o que é impossível, tanto na
física quanto na previsão das possibilidades de navegação para
O Evento
Presente
Eventos
Zona
Neutra
Zona
Neutra
Eventos
O Futuro
Educação e Transdisciplinaridade II
166
NT3
No vocabulário brasileiro de informática, ‘Zona Desconhecida’ é a denominação que aparece no canto
direito inferior da tela quando esta ainda não acabou de ser aberta mas está prestes a ser desvendada.
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
167
os usuários de hipertexto.
O domínio virtual da pesquisa interdisciplinar pode ser de-
finido como “um campo complexo e imanente que compreen-
de a interseção dos planos da formação disciplinar que seriam
impossíveis de se representar com precisão absoluta”. Este en-
saio procura explicar minuciosamente o que Killingworth e eu
queremos significar com ‘espaço de fases cibernético’ e propor-
cionar uma experiência mental, especificamente para descrever
as propriedades da pesquisa interdisciplinar em um nível de
metáfora que pode ser mapeado nesse espaço determinado. Se
alguém girar o mapa de um cone de ocorrências em 45º, o con-
junto de pontos do quadrante superior direito vai proporcionar
um visual tosco análogo para o diagrama do espaço de fases e
com a previsão de que o ponto não irá mais se referir a uma
simples ocorrência, mas sim a um flagrante instantâneo da
situação em que se encontra todo o sistema no tempo. Meu
argumento é o de que cada evento-ícone do sistema de hiper-
texto deve ser concebido exatamente assim como um instantâ-
neo de todo o sistema no tempo e não apenas como uma tela
única e isolada, com simples links para outras telas.
A Metáfora do Espaço de Fases
Espaços de fases são modelos visuais do comportamento
temporal de sistemas dinâmicos complexos. Os diagramas dos
espaços de fases
4
também podem ser usados, por analogia, para
modelar a sensação do usuário do campo imanente de interfa-
ces do hipertexto expandido – para mapear a interseção da for-
mação disciplinar no nível metafórico. Se os simples eixos ‘x-y’
da geometria Euclidiana podem representar sistemas e eventos
em termos de um único campo geométrico, então, depois de
certo ponto, quanto mais complexo ficar um sistema, maior será
4
Diagramas de espaço de fases mapeiam o acúmulo de um conjunto de pontos que representam uma gama
de vizinhanças, que não podem ser reduzidas à matriz da horizontal do espaço e da vertical do tempo. Este
irredutível “conjunto de pontos” descreve o conceito de conjuntos em espaço de fases que são utilizados
para descrever a larga escala de comportamentos de sistemas complexos que são incapazes de ser mapea-
dos de maneiras precisamente deterministas por causa do papel inerente que a contingência tem no com-
portamento destes sistemas. Os termos ‘ergódico’, ‘quase-ergódico’ e ‘não-ergódico’ (usados amplamente
por Espen Aarsech para descrever ambientes cibernéticos) referem-se a descrições de tais ambientes.
Quando há uma gama de resultados possíveis no tempo para o comportamento de um sistema, há maior
necessidade de representar graficamente esta gama em vez da localização e trajetória de cada elemento
individual contido no próprio sistema.
a possibilidade de variação que pode acontecer, no futuro, em
qualquer ocorrência desse sistema. Consequentemente, a capa-
cidade da geometria Euclidiana para mapear com precisão a ex-
tensão destas variações das trajetórias de causa-efeito entrará em
colapso. Segundo Ilya Prigogine, este problema de identificar as
relações causais em um sistema complexo, sem recorrer à pre-
cisão do conhecimento da situação original daquele sistema
(sua condição inicial) foi solucionada até certo ponto pela teo-
ria de conjuntos de Gibs-Einstein (Prigogine e Stengers 247-53).
É então que o espaço de fases tenta representar o estado de um
sistema em qualquer número de dimensões dadas. Este sistema
se transforma, segundo as palavras de Prigogine, “em um con-
junto de pontos – ou seja, os pontos correspondentes aos vários
estados dinâmicos compatíveis com a informação que temos
referente ao sistema” (247). O espaço de fases representa as cir-
cunstâncias futuras possíveis para esse sistema. Neste sistema, o
objeto individual, com seu próprio tema e com uma gama de
trajetórias possíveis, acaba ficando envolvido em uma rede de
complexos relacionamentos com outros objetos, cada qual com
sua própria trajetória. (Fig. 3) Cada ponto do espaço de fases
representa não um objeto, mas sim uma determinada condição
de todo o sistema, a qual tem uma certa densidade de relacio-
namento com outros pontos que representam outras situações.
Cada um destes outros pontos serve como uma possível alter-
nativa de destino para esse sistema, de tal modo que o espaço
de fases realmente mapeia uma série de futuros eventualmente
possíveis.
A teoria dos conjuntos de Gibs-Einstein e sua representa-
ção matemática e gráfica do espaço de fases permitem a inte-
gração bastante útil e precisa de duas estruturas de referência
aparentemente incompatíveis:
1. As leis da dinâmica, precisas e reversíveis, são apresen-
tadas como se pudessem ser reduzidas a uma estrutura
geométrica que pode mapear o passado e o futuro de um
sistema com certeza absoluta.
Educação e Transdisciplinaridade II
168
Figura 3. Conjunto de Gibbs. Cada ponto representa uma situação futura dife-
rente para o sistema como um todo. Por analogia, no espaço de fases hiper-
textual, cada ícone representa uma linha de extensão conceitual diferente e
também uma entidade estatística em uma estrutura de informação.
2. O ponto de vista estatístico, exemplificado por processos
estocásticos irreversíveis e uma série de outros sistemas
complexos.
Enfim, como uma forma geométrica, o espaço de fases
proporciona um caminho para mapear aquilo que Prigogine e
Stengers chamam de “sistemas randômicos instrínsecos” – ou
seja, sistemas complexos que abrangem ocorrências que envol-
p
q
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
169
vem posicionamentos subjetivos de entidades distribuídas em
um número potencialmente infinito de dimensões. Cada dimen-
são, por sua vez, exige uma representação em sua própria
estrutura geométrica de referência, sendo que uma série de
dimensões somente pode ser representada por meio de geome-
trias não-euclidianas.
Monadologia, Nomadologia e o
Posicionamento Subjetivo de Designers e
Usuários de Hipertexto
Aqui estou repetindo o uso que Deleuze faz do conceito
de ‘mônada’ de Leibniz e do conceito de ‘nômade’ de
Nietzsche, a fim de conceituar a dificuldade de dar conta de um
a um dos posicionamentos subjetivos de cada uma das entida-
des de cada dimensão de uma fase momentânea em particular.
Enquanto o conceito de ‘mônada’ refere-se à visão de mundo
articulada (e à trajetória de espaço-tempo) de uma única enti-
dade em seu posicionamento subjetivo dentro de um sistema
dinâmico, o conceito de ‘nômade’ refere-se à condição circuns-
tancial no comportamento dessa única entidade dada a impos-
sibilidade de mapear seu comportamento futuro. Este é o
momento em que a analogia do espaço de fases já pode ser
aplicada. Enquanto pode ser necessário para qualquer progra-
mador conceber toda e qualquer trajetória de qualquer usuário
em particular em qualquer lugar do programa, especialmente
no que diz respeito à história da participação deste usuário na
extensão da capacidade deste programa, este tipo de controle
é impossível. Enquanto parecer necessário que algum progra-
mador imagine todos os caminhos possíveis de todos os usuá-
rios em particular (caminhos que podem ser criados a partir de
qualquer ponto do programa, especialmente no que diz respei-
to à história da participação desse usuário na amplitude daqui-
lo que este programa é capaz) este controle sobre sua utiliza-
ção é impossível. Assim, enquanto o web designer pode tentar
mapear todas as possibilidades lineares e recorrentes para
movimentos sequenciais, o que o usuário vivencia de um
momento para o outro é, na verdade, um complexo enevoado
Educação e Transdisciplinaridade II
170
de caminhos possíveis – em outras palavras: é mais uma textu-
ra do espaço de fases do que um emplotamento linear. Existem
inúmeros exemplos de sistemas que destacam em primeiro
plano os aspectos circunstanciais envolvidos na história de
qualquer uma das unidades no interior deste sistema. Estas cir-
cunstâncias vão desde o problema em três tempos de Poincaré
até as órbitas das estrelas de todo um sistema galático; desde os
fenômenos das oscilações químicas dos pergaminhos, como na
reação de Beloushov-Zaboutinski (BZ), até catálises não-linea-
res ou sínteses auto-geradas; e vão mais além, até sistemas
complexos sobre o comportamento humano e sistemas de
invenções humanas, como ambientes cibernéticos. Em toda e
qualquer circunstância – da astronomia solar à galática, da
mecânica quântica até processos químicos longe de serem
equilibrados – há uma rejeição formal do mapeamento causal
preciso de cada caminho que possa ser criado.
O tropo do espaço de fases nos permite pensar sobre a
natureza inexoravelmente geométrica da interface do usuário
gráfico de sistemas de hipertexto de uma forma completamen-
te nova: não simplesmente em termos de estruturas estáticas e
caminhos causais precisos, mas também em termos de um
campo que seja capaz de descrever uma série de possibilidades
eventuais para navegação disponíveis em qualquer ponto-ícone
no funcionamento desse sistema. Assim, a tela do espaço de
fases representa a experiência do posicionamento subjetivo de
usuários individuais em termos de suas interações entre pontos
como se fossem ícones, sendo que cada ícone representa linhas
individuais de flights em relação a condições futuras, interações
que permanecem resistentes a qualquer previsão, mas que con-
tinuam a ser descobertas pelo usuário. Para os web designers de
programas sofisticados que contêm uma infinidade de ícones
ou pontos aleatórios através dos quais os caminhos dos usuá-
rios podem ser traçados, a tarefa não é, de fato, mapear cada
caminho criado (pois isto seria impossível), mas sim conceituar
plenamente as lógicas de navegação que regem as relações
entre esses pontos aleatórios. Quando estas lógicas são familia-
res (como acontece nas formatações em árvore ou nas divisões
e classificações), as formas de pensamento e os procedimentos
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
171
de pensar modelados no hipertexto também serão familiares.
Como estamos falando sobre ícones que, por serem estru-
turas e processos de pensamento, são influenciados por siste-
mas de hipertexto por analogia a processos complexos da físi-
ca e da ciência cognitiva, pode ser que seja útil, neste ponto
(de nossa exposição), fazer referência ao trabalho de Henri
Poincaré. Poincaré construiu uma analogia semelhante a esta
com a finalidade de descrever processos de criatividade que
estavam fora dos limites dos padrões de referência habituais
nas disciplinas de matemática e física. Seu modelo de criativi-
dade nos ajuda a conceituar o que este hipertexto tenta visua-
lizar no que diz respeito à pesquisa interdisciplinar.
Os Átomos Dependurados de Epicuro:
a Metáfora Estendida de Poincaré
Usando a linguagem da termodinâmica e tomando como
referência os átomos dependurados de Epicuro, Poincaré escre-
ve a respeito do estágio de criatividade que ele denomina ‘ilu-
minação’: “durante um período de aparente repouso, mas de
trabalho inconsciente, alguns desses átomos desligaram-se da
parede e puseram-se em movimento. Eles irrompem abrindo
caminho pelo espaço em todas as direções, como as moléculas
gasosas, na teoria cinética dos gases.” Poincaré descreve o
modo de pensar habitual como se este estivesse ancorado em
um molde inercial representado por uma metáfora espacial de
paredes nas quais os pensamentos estariam dependurados.
Descrevendo o pensamento liberado como sendo o produto de
um momento de ‘iluminação’ que dá início a processos de pen-
samento entrópicos capazes de realizar reordenações espontâ-
neas, desde que estes pensamentos estejam desatrelados, ele
caracteriza a substância do pensamento em termos das proprie-
dades físicas de sistemas reversíveis e irreversíveis. Poincaré
queria aplicar estas referências físicas como tropos do pensa-
mento navegando através de fronteiras do sistema conceitual.
Enquanto dizia “Minha comparação é muito crua, mas não
posso ver outra forma de explicar meu pensamento” (Science
and Method, 61), a sua expectativa era a de que seus leitores
Educação e Transdisciplinaridade II
172
considerassem seriamente essa correspondência figurada. Esta
tática é especialmente fascinante uma vez que ele deduz que os
tropos constituem um limite linguístico para sua habilidade de
explicar algo crucial sobre seu próprio modo de pensar. Mais
ainda, ele acreditava que estes pensamentos flutuantes tinham
a capacidade de se auto-organizar de uma forma irreversível,
prevenindo a volta daqueles pensamentos-átomos à sua posi-
ção original nas paredes. Estes enxames podem realmente
dominar as estruturas que os contêm; podem até mesmo exigir
a reorganização das estruturas sedentárias das próprias paredes.
Poincaré descreve, assim, como pode ser criado um novo
campo de conhecimento, como é o caso da ciência cognitiva,
como sugerem as referências prévias a Varela, Thompson e o
mapa de Rosch.
O mapeamento do espaço de fases de ícones aleatórios e
os ‘passeios aleatórios’ de uma Teoria Metafórica Constitutiva
como no xadrez, acontecem simultaneamente em trajetórias de
cruzamento disciplinar, sendo que cada uma delas representa
uma linha de investigação no trabalho cultural da metáfora
(como em Moebius). Se formos ver o hipertexto como um meio
de explorar a forma de pensar verdadeiramente interdisciplinar,
então deveríamos enfatizar justamente esta circunstância bifur-
cando perpetuamente as áreas como um espaço privilegiado
dentro do qual os estudantes poderiam achar os próprios cami-
nhos labirínticos para novas soluções para problemas que for-
malmente residem em velhas cidades muradas. Por causa da
natureza altamente circunstancial das estruturas hipertextuais e
da natureza aleatória de seus ícones de link como funções-
signo, poderíamos imaginar novas formas de organizar infor-
mações que são contrárias à rigidez disciplinar. A Teoria
Metafórica Constitutiva do xadrez representa uma de uma série
de tropos para os quais estas relações aleatórias podem ser
mapeadas e O RIZOMA do Xadrez representa uma destas pers-
pectivas. Espero poder indicar formas específicas para seguir a
investigação interdisciplinar na ciência, na filosofia e nas artes.
Talvez através da modelagem hipertextual, de campos concei-
tuais não-sedentários, não-lógicos que se formam contingen-
cialmente entre as disciplinas e que subjazem as disciplinas,
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
173
poderemos identificar certas propriedades formais do compor-
tamento conceitual que são tanto passíveis de serem aplicadas
quanto de serem repetidas: ou seja, passíveis de serem traduzi-
das para uma variedade de investigações interdisciplinares. Este
efeito pode ser criado até mesmo com os elementos mais bási-
cos da linguagem de programação de hipertexto. Vamos agora
explorar as propriedades formais de uma investigação interdis-
ciplinar específica sobre uma metáfora específica.
O Xadrez como Metáfora, Modelo e Alegoria
O tabuleiro de xadrez tanto representa visualmente um
tropo quanto modela dinamicamente pressupostos sobre rever-
sibilidade temporal que estão subjacentes nos cálculos de
Newton e Leibnitz. O jogo de xadrez tem sido empregado por
físicos e matemáticos (Richard Feynman, Henri Poincaré,
François, le Lionnais, John von Neumann), linguistas (Ferdinand
de Saussure), teóricos da informação (Claude Shannon), cientis-
tas da computação (John Holland), filósofos e críticos (Ludwig
Wittgenstein, Walter Benjamin, Gilles Deleuze e Félix Guattari),
artistas (Marcel Duchamp, Joseph Beuys), personalidades literá-
rias (Ezra Pound, T. S. Eliot, Samuel Beckett, Jorge Luis Borges,
Vladimir Nabokov, Thomas Pynchon), músicos (John Cage) e
muitos outros como uma metáfora constitutiva da teoria que se
está procurando ilustrar. Até mesmo o tabuleiro em si simboliza
o pressuposto de um ‘Ser’ subjacente platônico atemporal que
está por detrás do encadeamento causal de acontecimentos vio-
lentos que este ‘esporte dos reis’ retrata de uma forma abstrata.
Os jogadores de xadrez são capazes de façanhas prodigio-
sas com a memória, façanhas que até os matemáticos inveja-
riam. Assim como o cálculo, o xadrez também molda a cultura
do controle das possibilidades circunstanciais de causa e efeito.
Isto acontece congelando os eventos em uma série de estrutu-
ras estáticas (mais como uma única imagem de cinema de uma
série do que um quadro). Estas estruturas são pensadas pelos
jogadores que estão tentando manipular o jogo para a sua
sequência preferida de causa e efeito, que os levará à vitória em
um determinado ponto no futuro. Nos momentos que se
Educação e Transdisciplinaridade II
174
seguem a cada movimentação do jogo, o tempo pára, deixando
uma gama silenciosa de futuras possibilidades em resposta aos
possíveis movimentos esquematizados na mente dos jogadores.
Embora estes silenciosos futuros pareçam ser um enevoado de
opções para aqueles que estão observando o jogo, os jogadores
devem manter a ilusão de um mapa determinista. Mas não
importa quem ‘vença’ através das regras e das consequências do
embate da guerra: o xadrez também expressa a alegoria do con-
ceito histórico da termodinâmica clássica de que a civilização
encontra-se a si mesma, automaticamente fazendo desaparecer
inevitavelmente (em favor de um equilíbrio cultural) o final do
jogo entrópico da morte acalorada de sistemas naturais e cultu-
rais fechados e o fim do jogo para os dois Reis. Enquanto uns
utilizam o xadrez como um modelo para modelar o mecanismo
da história com referência à alegoria termodinâmica que rege o
processo de declínio cultural, para outros, como Marcel
Duchamp, o tabuleiro se transforma também em um local para
uma atividade alegórica criativa. Para Duchamp, a arte se tornou
um evento distribuído, a ser mapeado contra o campo estriado
da cultura moderna obcecada com a alegoria da dissipação da
cultura e o xadrez visualiza fenômenos virtuais e intersubjetivos
que são exemplificados por relações de cumplicidade entre o
artista e o patrocinador no espaço concreto de um museu.
Ao oferecer estas metáforas, padrões e alegorias, o jogo de
xadrez parece carregar uma considerável bagagem de dois
grandes pressupostos da física. Primeiro, as leis que governam
a dinâmica do jogo são simétricas no que diz respeito ao tempo
e espaço e permanecem simples, assim como imutáveis.
Segundo, suas peças formam, no conjunto, um tipo de maqui-
naria e se comportam de uma forma análoga ao sistema fecha-
do termodinâmico, como um motor movido a calor que vai
chegando ao equilíbrio gradualmente. O controle – ou seja, o
mapeamento e a atuação de relações causais – tem suas limita-
ções e impotências diante das circunstâncias históricas e não
importa qual alegoria estamos construindo para mediar a incer-
teza que sentimos por causa desta impotência. O xadrez envol-
ve uma grande narrativa gerada por uma cultura de controle no
sobretempo. Esta narrativa tem como premissa a habilidade
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
175
que as regras do jogo apresentam para reduzir as contingências
inerentes à história deste sistema fechado no estriamento dos
futuros projetados – circunstâncias que podem ser mapeadas
com precisão, mas que também continuam sempre ameaçadas
pelo possível final do jogo com a morte das peças principais. A
partir desta vantagem, podemos agora direcionar a relação
entre a metáfora e a epistemologia nos sistemas de conheci-
mento que construímos para nós mesmos.
O Xadrez como uma Metáfora que Constitui a
Teoria
Richard Boyd argumenta a favor do papel central da metá-
fora na ciência pura, notando que a metáfora serve como “um
entre os vários artifícios que estão disponíveis para que a co-
munidade científica realize a tarefa de acomodação da lingua-
gem à estrutura causal do mundo” (Boyd, 483). Aqui ele pres-
supõe que a linguagem pode denotar a realidade, que nossas
categorias linguísticas “cortam o mundo nas suas articulações”
(483). Thomas Kuhn desafiou Boyd neste ponto ao questionar
se “as sucessivas teorias cientificas providenciam claras e suces-
síveis aproximações com a natureza”. Isto permite a Pylyshyn
comentar ironicamente o fato de alguns cientistas fazerem refe-
rência às metáforas ‘literais’ e ‘figurativas’. Seguindo a tradição
de Poincaré e de Bergson, Pylyshyn mostra a retificação da
geometria na ciência Ocidental como exemplo de como as me-
táforas podem se tornar literais simplesmente pelo modo como
os cientistas fazem os pressupostos básicos dessa metáfora se
tornarem invisíveis para si mesmos. Ele vai mais longe ainda
quando provoca as tropologias que subjazem no paradigma
computadorizado da inteligência artificial dizendo que elas são
a mais recente manifestação desta dimensão ‘literal’ de forma-
ção de analogia – este paradigma está exemplificado no mais
recente ensaio de Claude Shannon, cujo título é ‘A Chess-
Playing Machine’ (Uma Máquina que Joga Xadrez).
Além disso, Gentner e Jaziorski narram o momento histó-
rico dos primórdios da modernidade, quando a cultura prolífi-
ca das ‘metáforas mistas’ (472) que seguiam determinados
Educação e Transdisciplinaridade II
176
métodos especulativos alquímicos, foi cedendo aos poucos a
abordagens muito mais circunspectas da formação de analogias
exemplificadas pelas comparações tomadas uma a uma, repre-
sentando a pesquisa científica clássica.
5
Mais recentemente, o
historiador e teórico da metáfora James Bono enfatizou a im-
portância das tradições vitoriana e neo-nietzscheana nas ciên-
cias humanas, que destacaram a irredutibilidade da metáfora
para o estudo cultural da ciência. Estes links entre a teoria lite-
rária, a retórica e a filosofia da ciência deveriam adicionar um
nível de rigor aos recentes debates sobre o valor dessas inves-
tigações de práticas científicas realizadas por aqueles que estão
por fora das características das ciências.
No entanto, o que eu gostaria de trazer para uma discus-
são a respeito da Teoria Metafórica Constitutiva de Boyd é pre-
cisamente a tentativa de Deleuze de se deslocar para além das
diferenças epistemológicas entre a profusão interdisciplinar do
discurso alquímico e das cuidadosas formações de analogia do
tipo ‘uma por uma’ das práticas científicas clássicas. O concei-
to da Teoria Metafórica Constitutiva continua válido exatamen-
te por causa das controvérsias que cria e que podem esclarecer
o trabalho cultural do jogo de xadrez. Quando lemos Boyd cui-
dadosamente, achamos que a TCM é instável, pois paira entre
duas utilizações contraditórias:
1. como constitutiva de pressupostos da área da qual ela é
proveniente; e
2. como um portal que abre novas áreas em potencial.
Dizer que o tabuleiro de xadrez vale como um tropo visual
e dizer, por analogia, que o pressuposto de um ser subjacente,
platônico e atemporal está por detrás da cadeia causal das ocor-
rências trágicas, faz com que fique visível um certo pressuposto
epistemológico fundamental que está operando tanto no traba-
lho pesado quanto nas ciências humanas. Esta hipótese, des-
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
177
5
Eles fazem isto para enfatizar as condições culturalmente poéticas de onde surge a prática científica – uma
abordagem ao estudo da ciência exemplificado por Fernand Hally em seu The Poetic Structure of the World,
estudo magistral sobre as bases trópicas para a formação de hipóteses no trabalho de Copérnico e Kepler.
construída recentemente pelo trabalho de Ilya Prigogine e Isa-
belle Stengers, vê o tempo simplesmente como uma função ma-
temática reversível. Como todas as ocorrências podem ser redu-
zidas a uma grade geométrica espacialmente reversível, pressu-
põe-se que leis simples e imutáveis possam explicar todos os
fenômenos complexos, simplesmente mapeando com precisão
os links de causalidade. Claro: de acordo com Prigogine e Sten-
gers, o tempo é simultaneamente irreversível e irredutível.
Portanto, o valor do xadrez como ilustração da primeira função
da Teoria Metafórica Constitutiva está na capacidade de revelar
seus diversos modos de apropriação ingênua ou irônica.
Trajetória Genealógica
Os usuários do RIZOMA do Xadrez podem explorar a deri-
va genealógica do xadrez através das disciplinas. Por exemplo:
Marcel Duchamp alcançou o status de mestre no jogo interna-
cional de 1925 e foi co-autor, junto com Vitaly Halberstadt, de
um trabalho sobre a teoria da oposição e o final do jogo: Op-
position et les cases conjugées sont reconciliées (1932). Naquele
ano Duchamp jogou, em um torneio da cidade de Paris, contra
François le Lionnais, um matemático, teórico do jogo e futuro
fundador do movimento vanguardista ‘OULIPO’, de poesia e fic-
ção. Duchamp ganhou o Torneio de Paris, em 1933, e traduziu
a obra prima de Znosko-Borovski sobre os movimentos de aber-
tura “How to Play Chess Openings” (1934). Duchamp também jo-
gou xadrez com Samuel Beckett durante nove anos enquanto
morava em Paris entre as duas guerras mundiais. Beckett escre-
veu Endgame, onde a relação formal de oposição entre os per-
sonagens pode ser analisada de acordo com as regras do trata-
do de xadrez de Duchamp. Duchamp também ensinou John
Cage a jogar xadrez quando eles moraram em Nova Iorque nos
anos cinquenta. Cage organizou eventos de xadrez em que
havia uma gravação em fita que era disparada eventualmente
em meio aos movimentos das peças no tabuleiro e, tanto o
tabuleiro quanto as peças, estavam ligados a uma tomada. Mar-
cel Duchamp foi um dos jogadores da primeira performance;
sua mulher, Teeny Duchamp, jogou na última performance, lo-
Educação e Transdisciplinaridade II
178
go após a morte de seu marido em 1968. Duchamp também jo-
gou xadrez com Vladimir Nabokov, que escreveu o livro The
Defense, modelado segundo um jogo de xadrez. Foi Nabokov
também que ensinou literatura e escrita criativa a Thomas Pyn-
chon, cujo livro Gravity’s Rainbow faz inúmeras referências ao
xadrez, assim como também a um personagem chamado ‘Mar-
cel, o robô jogador de xadrez’ (Rosenberg, Invisibility, Portals).
Porém, a genealogia que representa fluxos que se propagam
através dos campos da imanência interpretativa é apenas uma
das lógicas trópicas mapeadas por O Rizoma do Xadrez.
A página de Duchamp (Fig. 4) tem um link direto (como
todas as demais) com o mapa de navegação, que provê acesso
à visão transcendente de O RIZOMA do Xadrez com o objetivo
de orientar e oferecer perspectivas. No alto da página, há ícones
que (neste estágio do projeto) levam a três trabalhos primordiais:
A pintura The Chess Game de 1910.
Uma transcrição da partida entre Duchamp e le
Lionnais no Torneio de Paris em 1932.
O tratado de xadrez Opposition et les cases conjugeés
sont réconciliées.
À esquerda, podemos encontrar uma variedade de links de
navegação (representados por colunas verticais ao invés de um
aglomerado) organizados nas duas categorias lógicas mais rele-
vantes para o uso do xadrez como Teoria Metafórica Constituti-
va segundo Duchamp: a Genealógica e a Irônica. É importante
observar que a função de justaposição da TCM é utilizada por
diferentes autores, inclusive Duchamp, de tal forma que as pes-
soas podem imaginar metáforas irônicas que se multiplicam ge-
nealogicamente. À direita, há ícones que permitem o link com
telas que representam como esta metáfora em particular pode
funcionar dentro de disciplinas acadêmicas específicas. Mas aqui
a chave é que a pessoa pode seguir uma pesquisa de relações
estritamente genealógicas como um plano de imanência inter-
pretativa, ou outro plano qualquer de mudança de direção, e
pesquisar as utilizações ingênuas ou irônicas da TCM. Estas lógi-
cas podem se justapor de tal forma que os diversos planos de
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
179
imanência interceptados nos caminhos tornam difícil a represen-
tação em três dimensões.
Figura 4: A página de Duchamp
Trajetória Ingênua
Outra lógica trópica mapeada por O RIZOMA do Xadrez é
a trajetória da apropriação ingênua. Por exemplo, Richard
Feynman usa o tropo do xadrez indiscriminadamente para des-
Marcel Duchamp
Jogo de Xadrez
Jogo nº 11:Torneio Parisiense de Masters
Oposição e Quadrados
Tópicos de Lógica Disciplinas
Genealógica: História da Arte
• Beckett História
• Bergson
• Beuys Crítica Literária
• Cage
• Damisch Matemática
• Derrida
• Le Lionnais * Geometria
• Poincaré Não-Euclidiana
• Pynchon
Outros Usos Física
Irônicos da Teoria Artes Visuais
Metafórica
Constitutiva
• Beckett
• Benjamin
• Cage
• Deleuze
• Guattari
• McPhail
• Nabokov
• Prigogine
• Pynchon
• Wittgenstein
De volta à Teoria
Metafórica Constitutiva
de Boyd
Mapa do Rizoma do Xadr
ez
Educação e Transdisciplinaridade II
180
(Os usuários do RIZOMA do Xadrez
podem usar este espaço para notas)
crever as suposições reducionistas que governam a busca das
leis simples que determinam a natureza reversível e simétrica
de interações da partícula na eletrodinâmica quântica. Em
outras palavras, para Feynman, as leis que governam o movi-
mento das peças de xadrez no arranjo simétrico das casas do
tabuleiro captam precisamente as regras que governam as mul-
tiplicações e colisões de ondas sub-atômicas e partículas inde-
pendentemente da direção do tempo. Ferdinand de Saussure
utiliza as regras do xadrez para descrever as leis gerais (langue
– língua), que governam a perspectiva sincrônica e diacrônica
de um discurso particular (parole – palavra) na linguística estru-
tural. Claude Shannon usa um computador que joga xadrez
para evidenciar as leis precisas, lineares e sequenciais que pro-
gramam o paradigma computacional da inteligência artificial.
Estes pensadores aceitam sem questionar a hipótese reducionis-
ta e a perspectiva reversível da causalidade estrita e esta aceita-
ção atravessa fronteiras disciplinares de uma forma que se
torna visível precisamente porque eles parecem compartilhar
uma aceitação acrítica da capacidade do tropo do xadrez
(como uma Teoria Metafórica Constitutiva) para “destrinchar o
mundo em suas articulações”. Por recorrer à mesma apropria-
ção ingênua do tropo do xadrez, estes pensadores demonstra-
ram, com respeito à física, à linguística e às ciências da compu-
tação, que compartilham de um conjunto de pressupostos
sobre a natureza do tempo e da causalidade.
Trajetória Irônica
Contrastando com isso, Marcel Duchamp tenta visualizar e
ironizar as implicações culturais do xadrez como uma metáfora
constitutiva da perspectiva reversível, proveniente da física. O
seu tratado de xadrez a respeito do jogo final explora com iro-
nia manifesta as formas pelas quais os jogadores de xadrez
mapeiam os eventos para controlar a futura trajetória do sistema
de xadrez. Ele faz isto isolando as condições iniciais através das
quais as circunstâncias eventuais e as circunstâncias irreversíveis
do erro mental se esgueiram inevitavelmente para um ritual
superdeterminado para evitar a derrota retardando o fim do jogo
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
181
o máximo possível. Ludwig Wittgenstein também utiliza o xa-
drez ironicamente em The Rejection of Logical Atomism para dis-
farçar a inadequação de qualquer sistema de regras que tente
explicar atos comunicativos sem levar em consideração o fato
de que estes atos ocorrem em um sistema que não é atemporal
e silencioso, mas sim no tempo irreversível do mundo.
Walter Benjamin refere-se ao xadrez e às suas leis ironica-
mente como sendo uma analogia do ceticismo que está subja-
cente na teoria marxista da história:
A estória conta que um autômato foi construído de tal
maneira que ele sabia jogar um jogo de xadrez que sempre
vencia, respondendo cada movimento de um oponente
com um contra-movimento. Uma marionete vestida à
moda turca, trazendo na boca um “hookah”, sentou-se
diante de um tabuleiro colocado sobre uma grande mesa.
Um sistema de espelhos criava a ilusão de que essa mesa
era transparente de todos os lados. Na verdade, um cor-
cundinha que era um excelente jogador de xadrez, estava
sentado dentro da marionete e guiava a mão dela por meio
de fios. Pode-se imaginar o lado filosófico desse truque. A
marionete, chamada de ‘materialismo histórico’ vai
ganhar o tempo inteiro. Isto bem que poderia ser um jogo
para qualquer pessoa que contasse com a ajuda da teolo-
gia, que hoje, como sabemos, de tão enrugada, tem que se
manter longe de nossas vistas. (Iluminations, 253)
Em seu livro mais recente, Mark Lawrence McPhail desen-
volveu o tropo do xadrez ironicamente como uma analogia para
as relações entre raças. Em três seções denominadas The Open-
ing, The Middlegame e The Endgame, McPhail desafia a retórica
da oposição no que ele chama de “uma epistemologia da essên-
cia subjacente à retórica das táticas de oposição ao negro” que
funciona em cumplicidade com o discurso da dominação bran-
ca. Finalmente, cada um em seus respectivos campos, tanto De-
leuze e Guattari quanto Thomas Pynchon, enfatizam os vieses
das superimposições hierarquizadas em contingências mundiais
com referência ao xadrez e Pynchon, estende sua analogia tam-
Educação e Transdisciplinaridade II
182
bém à eletrodinâmica quântica. A seguir, estes pensadores explo-
ram de forma transgressiva as implicações trópicas em outros jo-
gos e outras regras, tais como o Go
NT4
, que utilizam o xadrez co-
mo uma teoria metafórica constitutiva com o objetivo de visuali-
zar e questionar esses mesmos pressupostos fundamentais sobre
tempo, causalidade e certeza. Eles também utilizam o xadrez co-
mo um trampolim para buscar, por contraste, outros modelos tró-
picos para abrir um novo portal para novas e competitivas hipó-
teses a respeito do papel do tempo no processo físico e cultural.
6
Conclusão
Seguindo o exemplo de seu título, O RIZOMA do Xadrez
passará por uma evolução contínua por meio de agregações
que perpassam inúmeras ‘dimensões’. O RIZOMA do Xadrez
envolverá, em nível básico, todos os principais materiais por
meio dos quais iremos pesquisar (com outros materiais textuais,
gráficos e visuais) possibilidades que permitam oferecer níveis
de comentários em forma de artigos publicados e capítulos
que, de alguma forma, ampliem a ênfase sobre o xadrez como
metáfora, modelo e alegoria. Ele também oferecerá espaços
escritos para reunir novos materiais e para anotações que darão
destaque para o hipertexto tanto como um ambiente de pesqui-
sa como uma experiência de pensamento na modelagem da
investigação interdisciplinar.
O objetivo de O RIZOMA do Xadrez é empregar o hiper-
texto como um ambiente onde as divisórias dos espaços con-
ceituais possam se tornar permeáveis e, quem sabe, até instá-
veis. O objetivo é dar possibilidades ao usuário para testemu-
nhar como é que os agentes desta instabilidade, de ordem
metafórico-constitutiva, passam de forma nômade através das
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
183
NT4
Go = jogo de origem chinesa com mais de 4 mil anos, o Go (no Japão) ou baduk (na Coréia) é o jogo
de estratégia mais popular da Ásia, podendo ser comparado ao xadrez no Ocidente. (conf. Revista da Folha,
26/05/2002, São Paulo)
6
Cinco anos antes do aparecimento do J’accuse de Sokal e Bricmont em relação aos empréstimos de impos-
tores intelectuais franceses, critiquei (usando precisamente a mesma abordagem) os tropos reversíveis e
irreversíveis subjacentes à diferença de Deleuze e Guatarri entre o xadrez e o Go como referências estru-
turais epistemológicas de competição. Este ensaio ilustra como ultrapassei minha crítica anterior, apesar de
notar que Sokal e Bricmont citam meu trabalho mais como um exemplo de seguidores que caíram na
impostura de Deleuze e Guatarri, do que uma antecipação plenamente concebida de sua crítica ‘vitoriosa’.
Este tipo de citação ilustra a desonestidade intelectual de sua abordagem.
matrizes disciplinares, formando rizomas que atravessam as
fronteiras disciplinares – e, neste processo, formam novos tipos
de estruturas.
Ao mesclar as táticas epistemológicas de Gilles Deleuze
com a teoria da metáfora de Richard Boyd, pude mapear três
lógicas distintas que governam a exploração da tendência de
deriva do tropo através das fronteiras disciplinares:
1. Genealógica
2. Epistemologicamente ingênua
3. Epistemologicamente subversiva
Atualmente, com meu colega Cary Hazlewood, do Brea
College, estou fazendo experiências com diferentes interfaces
de hipertexto, ao mesmo tempo em que estou tentando
mapear, da mesma forma, uma série de outras lógicas trópicas.
Cada lógica trópica pode ser pensada analogamente como se
fosse uma linha de fuga conceitual projetada em um plano geo-
métrico particular, sendo que a interseção destes planos é im-
possível de ser visualizada, a não ser através dos recursos da
geometria não-Euclidiana. Mas, como argumentei, se mantiver-
mos em mente a perspectiva (nomadológica) do usuário ao
invés da perspectiva do olho-de-Deus (monadológico) do
designer, as trajetórias potenciais destas diferentes lógicas trópi-
cas continuam sendo passíveis de serem mapeadas, usando
como recurso uma forma hipertextual de análise do espaço de
fases. Ao considerar a investigação através das disciplinas desta
forma mais rigorosa, talvez possamos impedir que o estudo in-
terdisciplinar seja apenas uma fase da moda acadêmica.
Educação e Transdisciplinaridade II
184
Trabalhos Citados
Aarseth, Espen. Cybertext, Baltimore: John Hopkins University Press.
Benjamin, Walter. Illuminations, Ed. Hannah Arendt, New York,
Schocken, 1969.
Bergson, Henri. Creative Evolution, 1907. Trans. Arthur Mitchell, New
York, Holt, 1911.
Matter and Memory, 1908. Trans. Nancy Margareth Paul and W.
Scott Palmer, New York, Zone, 1988.
No War Machine, in Reading Matters: Narratives in the New
Media Ecology, Ed. Joseph Tabbi and Michael Wutz, Ithaca,
Cornel University Press, 1997, 269-92.
Nicolis, Gregoire and Ilya Prigogine. Exploring Complexity: An
Introduction, W. H. Freeman, New York, 1989.
Ortony, Andrew, ed. Metaphor and Thoughts, 1979; Cambridge
University Press, New York, 1993.
Poincaré, Henri. On the Foundations of Geometry, Monist 9 (1898), 1-43.
Science and Hypothesis (1903). Trans. William John Greenstreet;
Dover, New York, 1952.
Science and Method (1908). Trans Francis Mairland, 1914; Dover,
New York, 1952.
Prigogine, Ilya. From Being to Becoming: Time and Complexity in the
Phisical Sciences, Freeman, 1980.
Prigogine, Ilya and Isabelle Stengers. Order Out of Chaos: Men’s New
Dialogue with Nature, Pantam, New York, 1984.
Pyiyshyn, Zenon W. “Metaphorical Imprecition and the ‘Top Down’
Research Strategy”, in Ortony, ed., Metaphor and Thoughts,
543-60.
Pynchon, Thomas. Gravit’s Rainbow, 1973. Penguin, New York, 1987.
Rosenberg, Martin E. “Invisibility, the War Machine and Prigogine:
Physics, Philosophy and the Threshold of Historical Conscious-
ness in Pynchon’s Zone”. Pynchon Notes 30-31 (1992): 91-138.
“Portals in Duchamp and Pynchon”. Pynchon Notes 34-35 (1994):
148-75
“Physics and Hipertext: Liberation and Complicity in Art and
Pedagogy”. In Landow, ed., Hyper/Text/Theory, 265-98.
“Dynamic Thermodynamic Trap of the Subject in Freud and in
Deleuze and Guattari”. Post Modern Culture vol. 4, Setembro
de 1995, 43 paragraph.
Rosenberg, Martin E., e M. Jimmie Killingsworth. “The Icon as a Pro-
O RIZOMA do Xadrez e o Espaço de Fases – Martin E. Rosenberg
185
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Consensual Domains in Thechnical Rhetoric.” E.E.E. Trans-
actions on Professional Communication 38.4 (1995): 216-27.
“The Evolution of Document Design since 1985 A Response to
Richard E. Mayer’s Structural Analyses of Scientific Prose”. The
Journal of Computer Documentation 19:3 (1995): 31-35.
Sussure, Ferdinand de. Course in General Linguistics. Ed. Charles
Bally and Albert Sechehaye. Trans. Wade Baskin, McGraw Hill,
New York, 1996.
Turner, Mark. Reading Minds: The Study of English in the Age of Cog-
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Shannon, Claude. “A Chess Playing Machine”. Em The World of Ma-
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Schuster, 1956. 4:2124-33.
Varela, Francisco, Evan Thompson, e Eleanor Rosch. The Embodied
Mind: Cognitive Science and Human Experience. Cambridge:
MIT Press, 1991.
Wittgenstein, Ludwig. “The Regection of Logical Atomism”. The Witt-
genstein Reader. Ed. Anthony Kenny. Cambridghe: Blackwell,
1994. 33-50.
Educação e Transdisciplinaridade II
186
Anexo 1
DECLARAÇÃO DE VENEZA
Comunicado final do Colóquio
“A Ciência diante das Fronteiras do Conhecimento”
Veneza, 7 de março de 1986
Os participantes do colóquio “A Ciência diante das Fron-
teiras do Conhecimento”, organizado pela UNESCO, com a co-
laboração da Fundação Giorgio Cini (Veneza, 3-7 de março de
1986), animados por um espírito de abertura e de questiona-
mento dos valores de nosso tempo, ficaram de acordo sobre os
seguintes pontos:
1. Somos testemunhas de uma revolução muito importante
no campo da ciência, provocada pela ciência fundamental
(em particular a física e a biologia), devido à transforma-
ção que ela traz à lógica, à epistemologia e, também, atra-
vés das aplicações tecnológicas, à vida de todos os dias.
Mas, constatamos, ao mesmo tempo, a existência de uma
importante defasagem entre a nova visão do mundo que
emerge do estudo dos sistemas naturais e os valores que
ainda predominam na filosofia, nas ciências do homem e
na vida da sociedade moderna. Pois estes valores baseiam-
se em grande parte no determinismo mecanicista, no posi-
tivismo ou no niilismo. Sentimos esta defasagem como for-
temente nociva e portadora de grandes ameaças de des-
truição de nossa espécie.
2. O conhecimento científico, devido a seu próprio movi-
mento interno, chegou aos limites onde pode começar o
diálogo com outras formas de conhecimento. Neste senti-
do, reconhecendo as diferenças fundamentais entre a ciên-
cia e a tradição, constatamos, não sua oposição, mas sua
complementaridade. O encontro inesperado e enriquece-
Anexo 0
187
dor entre a ciência e as diferentes tradições do mundo per-
mite pensar no aparecimento de uma nova visão da huma-
nidade, até mesmo num novo racionalismo, que poderia
levar a uma nova perspectiva metafísica.
3. Recusando qualquer projeto globalizante, qualquer siste-
ma fechado de pensamento, qualquer nova utopia, reco-
nhecemos ao mesmo tempo a urgência de uma procura
verdadeiramente transdisciplinar, de uma troca dinâmica
entre as ciências ‘exatas’, as ciências ‘humanas’, a arte e a
tradição. Pode-se dizer que este enfoque transdisciplinar
está inscrito em nosso próprio cérebro, pela interação
dinâmica entre seus dois hemisférios. O estudo conjunto
da natureza e do imaginário, do universo e do homem,
poderia assim nos aproximar mais do real e nos permitir
enfrentar melhor os diferentes desafios de nossa época.
4. O ensino convencional da ciência, por uma apresentação
linear dos conhecimentos, dissimula a ruptura entre a ciên-
cia contemporânea e as visões anteriores do mundo.
Reconhecemos a urgência da busca de novos métodos de
educação que levem em conta os avanços da ciência, que
agora se harmonizam com as grandes tradições culturais,
cuja preservação e estudo aprofundado parecem funda-
mentais. A UNESCO seria a organização apropriada para
promover tais idéias.
5. Os desafios de nossa época: o desafio da autodestruição
de nossa espécie, o desafio da informática, o desafio da
genética etc., mostram de uma maneira nova a responsa-
bilidade social dos cientistas no que diz respeito à iniciati-
va e à aplicação da pesquisa. Se os cientistas não podem
decidir sobre a aplicação da pesquisa, se não podem deci-
dir sobre a aplicação de suas próprias descobertas, eles
não devem assistir passivamente à aplicação cega dessas
descobertas. Em nossa opinião, a amplidão dos desafios
contemporâneos exige, por um lado, a informação rigoro-
sa e permanente da opinião pública e, por outro lado, a
Educação e Transdisciplinaridade II
188
criação de organismos de orientação e até de decisão de
natureza pluri e transdisciplinar.
6. Expressamos a esperança que a UNESCO dê prossegui-
mento a esta iniciativa, estimulando uma reflexão dirigida
para a universalidade e a transdisciplinaridade. Agradece-
mos a UNESCO, que tomou a iniciativa de organizar este
encontro, de acordo com sua vocação de universalidade.
Agradecemos também a Fundação Giorgio Cini por ter
oferecido este local privilegiado para a realização deste
fórum.
Signatários
Professor D. A. Akyeampong (Gana), físico-matemático,
Universidade de Gana. Professor Ubiratan D’Ambrosio (Brasil),
matemático, coordenador geral dos Institutos, Universidade Es-
tadual de Campinas. Professor René Berger (Suiça), professor
honorário, Universidade de Lausanne. Professor Nicolo Dalla-
porta (Itália), professor honorário da Escola Internacional dos
Altos Estudos em Trieste. Professor Jean Dausset (França), Prê-
mio Nobel de Fisiologia e de Medicina (1980), Presidente do
Movimento Universal da Responsabilidade Científica (MURS
França). Senhora Maîtraye Devi (Índia), poeta-escritora. Profes-
sor Gilbert Durand (França), filósofo, fundador do Centro de
Pesquisa sobre o Imaginário. Dr. Santiago Genovés (México),
pesquisador no Instituto de Pesquisa Antropológica, acadêmico
titutlar da Academia Nacional de Medicina. Dr. Susantha
Goonatilake (Sri Lanka), pesquisador, antropologia cultural.
Prof. Avishai Margalit (Israel), filósofo, Universidade Hebraica
de Jerusalém. Prof. Yujiro Nakamura (Japão), filósofo-escritor,
professor na Universidade de Meiji. Dr. Basarab Nicolescu
(França), físico, C.N.R.S.. Prof. David Ottoson (Suécia), Presi-
dente do Comitê Nobel pela fisiologia ou medicina, Professor e
Diretor, Departamento de Fisiologia, Instituto Karolinska. Sr.
Michel Random (França), filósofo, escritor. Sr. Jacques G. Ri-
chardson (França-Estados Unidos), escritor científico. Prof.
Abdus Salam (Paquistão), Prêmio Nobel de Física (1979), Dire-
Anexo 1 – Declaração de Veneza
189
tor do Centro Internacional de Física Teórica, Trieste, Itália, re-
presentado pelo Dr. L. K. Shayo (Nigéria), professor de mate-
máticas. Dr. Rupert Sheldrake (Reino Unido), Ph.D. em bioquí-
mica, Universidade de Cambridge. Prof. Henry Stapp (Estados
Unidos da América), físico, Laboratório Lawrence Berkeley,
Universidade da Califórnia Berkeley. Dr. David Suzuki (Cana-
dá), geneticista, Universidade de British Columbia.
Educação e Transdisciplinaridade II
190
Anexo 2
Ciência e Tradição: Perspectivas
Transdisciplinares para o Século XXI
Paris, UNESCO, 2-6 de dezembro de 1991
Comunicado final
Os participantes do Congresso “Ciência e Tradição: Pers-
pectivas Transdisciplinares para o Século XXI” (Paris, UNESCO,
2-6 de dezembro de 1991), etapa preparatória para futuros tra-
balhos transdisciplinares, estiveram de acordo a respeito dos
seguintes pontos:
1. Em nossos dias, estamos assistindo a um enfraquecimento
da cultura. Isso afeta de diversas maneiras tanto os países
ricos como os países pobres.
2. Uma das causas disso é a crença na existência de um úni-
co caminho de acesso à verdade e à Realidade. Em nosso
século, essa crença gerou a onipotente tecnociência: “tudo
o que puder ser feito será feito”. Com isso, o germe de um
totalitarismo planetário se tornou presente.
3. Uma das revoluções conceituais deste século veio, parado-
xalmente, da ciência, mais particularmente da física quân-
tica, que fez com que a antiga visão da realidade, com seus
conceitos clássicos de continuidade, de localidade e de de-
terminismo, que ainda predominam no pensamento políti-
co e econômico, fosse explodida. Ela deu à luz uma nova
lógica, correspondente, em muitos aspectos, a antigas lógi-
cas esquecidas. Um diálogo capital, cada vez mais rigoro-
so e profundo, entre a ciência e a tradição, pode então ser
estabelecido a fim de construir uma nova abordagem cien-
tífica e cultural: a transdisciplinaridade.
Anexo 0
191
4. A transdisciplinaridade não procura construir sincretismo
algum entre a ciência e a tradição: a metodologia da ciên-
cia moderna é radicalmente diferente das práticas da tradi-
ção. A transdisciplinaridade procura pontos de vista a par-
tir dos quais seja possível torná-las interativas, procura
espaços de pensamento que as façam sair de sua unidade,
respeitando as diferenças, apoiando-se especialmente nu-
ma nova concepção da natureza.
5. Uma especialização sempre crescente levou a uma separa-
ção entre a ciência e a cultura, separação que é a própria
característica do que podemos chamar de “modernidade”
e que só fez concretizar a separação sujeito-objeto que se
encontra na origem da ciência moderna. Reconhecendo o
valor da especialização, a transdisciplinaridade procura
ultrapassá-la recompondo a unidade da cultura e encon-
trando o sentido inerente à vida.
6. Por definição, não pode haver especialistas transdisciplina-
res, mas apenas pesquisadores animados por uma atitude
transdisciplinar. Os pesquisadores transdisciplinares imbuí-
dos desse espírito só podem se apoiar nas diversas ativida-
des da arte, da poesia, da filosofia, do pensamento simbó-
lico, da ciência e da tradição, elas próprias inseridas em sua
própria multiplicidade e diversidade. Eles podem desaguar
em novas liberdades do espírito graças a estudos transhis-
tóricos ou transreligiosos, graças a novos conceitos como
transnacionalidade ou novas práticas transpolíticas, inaugu-
rando uma educação e uma ecologia transdisciplinares.
7. O desafio da transdisciplinaridade é gerar uma civilização
em escala planetária que, por força do diálogo intercultural,
se abra para a singularidade de cada um e para a inteireza
do ser.
Comitê de redação: René Berger, Michel Cazenave,
Roberto Juarroz, Lima de Freitas e Basarab Nicolescu.
Educação e Transdisciplinaridade II
192
Anexo 3
Carta da Transdisciplinaridade
(Elaborada no Primeiro Congresso Mundial da
Transdisciplinaridade, Convento de Arrábida,
Portugal, 2-6 de novembro de 1994)
Preâmbulo
Considerando que a proliferação atual das disciplinas aca-
dêmicas conduz a um crescimento exponencial do saber que
torna impossível qualquer olhar global do ser humano;
Considerando que somente uma inteligência que se dá
conta da dimensão planetária dos conflitos atuais poderá fazer
frente à complexidade de nosso mundo e ao desafio contempo-
râneo de autodestruição material e espiritual de nossa espécie;
Considerando que a vida está fortemente ameaçada por
uma tecnociência triunfante que obedece apenas à lógica assus-
tadora da eficácia pela eficácia;
Considerando que a ruptura contemporânea entre um
saber cada vez mais acumulativo e um ser interior cada vez
mais empobrecido leva à ascensão de um novo obscurantismo,
cujas consequências sobre o plano individual e social são incal-
culáveis;
Considerando que o crescimento do saber, sem preceden-
tes na história, aumenta a desigualdade entre seus detentores e
os que são desprovidos dele, engendrando assim desigualdades
crescentes no seio dos povos e entre as nações do planeta;
Considerando simultaneamente que todos os desafios
Anexo 0
193
enunciados possuem sua contrapartida de esperança e que o
crescimento extraordinário do saber pode conduzir a uma muta-
ção comparável à evolução dos hominídeos à espécie humana;
Considerando o que precede, os participantes do Primeiro
Congresso Mundial de Transdisciplinaridade (Convento de Arrá-
bida, Portugal 2-7 de novembro de 1994) adotaram o presente
Protocolo, entendido como um conjunto de princípios funda-
mentais da comunidade de espíritos transdisciplinares, consti-
tuindo um contrato moral que todo signatário deste Protocolo faz
consigo mesmo, sem qualquer pressão jurídica e institucional.
Artigo 1:
Qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma mera
definição e de dissolvê-lo nas estrutura formais, sejam elas quais
forem, é incompatível com a visão transdisciplinar.
Artigo 2:
O reconhecimento da existência de diferentes níveis de
realidade, regidos por lógicas diferentes, é inerente à atitude
transdisciplinar. Qualquer tentativa de reduzir a realidade a um
único nível regido por uma única lógica não se situa no campo
da transdisciplinaridade.
Artigo 3:
A transdisciplinaridade é complementar à aproximação
disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas dados
novos que as articulam entre si; oferece-nos uma nova visão da
natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o
domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de
todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa.
Artigo 4:
O ponto de sustentação da transdisciplinaridade reside na
Educação e Transdisciplinaridade II
194
unificação semântica e operativa das acepções através e além
das disciplinas. Ela pressupõe uma racionalidade aberta,
mediante um novo olhar sobre a relatividade das noções de
‘definição’ e de ‘objetividade’. O formalismo excessivo, a rigidez
das definições e o absolutismo da objetividade, comportando a
exclusão do sujeito, levam ao empobrecimento.
Artigo 5:
A visão transdisciplinar é resolutamente aberta, na medida
em que ela ultrapassa o campo das ciências exatas devido ao
seu diálogo e sua reconciliação, não somente com as ciências
humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a
experiência espiritual.
Artigo 6:
Com a relação à interdisciplinaridade e à multidisciplinari-
dade, a transdisciplinaridade é multirreferencial e multidimen-
sional. Embora levando em conta os conceitos de tempo e de
história, a transdisciplinaridade não exclui a existência de um
horizonte transhistórico.
Artigo 7:
A transdisciplinaridade não constitui nem uma nova reli-
gião, nem uma nova filosofia, nem uma nova metafísica, nem
uma ciência das ciências.
Artigo 8:
A dignidade do ser humano é também de ordem cósmica
e planetária. O surgimento do ser humano sobre a Terra é uma
das etapas da história do Universo. O reconhecimento da Terra
como pátria é um dos imperativos da transdisciplinaridade.
Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, a títu-
lo de habitante da Terra, ele é ao mesmo tempo um ser trans-
nacional. O reconhecimento pelo direito internacional de uma
Anexo 3 – Carta da Transdisciplinaridade
195
dupla cidadania – referente a uma nação e à Terra – constitui
um dos objetivos da pesquisa transdisciplinar.
Artigo 9:
A transdisciplinaridade conduz a uma atitude aberta em
relação aos mitos, às religiões e àqueles que os respeitam num
espírito transdisciplinar.
Artigo 10:
Não existe um lugar cultural privilegiado de onde se pos-
sa julgar as outras culturas. A abordagem transdisciplinar é ela
própria transcultural.
Artigo 11:
Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração
no conhecimento. Deve ensinar a contextualizar, concretizar e
globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intui-
ção, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão
dos conhecimentos.
Artigo 12:
A elaboração de uma economia transdisciplinar está basea-
da no postulado de que a economia deve estar a serviço do ser
humano e não o inverso.
Artigo 13:
A ética transdisciplinar recusa toda atitude que se negue ao
diálogo e à discussão, seja qual for sua origem – de ordem ideo-
lógica, científica, religiosa, econômica, política ou filosófica. O
saber compartilhado deveria conduzir a uma compreensão com-
partilhada, baseada no respeito absoluto das diferenças entre os
seres, unidos pela vida comum sobre uma única e mesma Terra.
Educação e Transdisciplinaridade II
196
Artigo 14:
Rigor, abertura e tolerância são características fundamen-
tais da atitude e da visão transdisciplinar. O rigor na argumen-
tação, que leva em conta todos os dados, é a melhor barreira
contra possíveis desvios. A abertura comporta a aceitação do
desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é
o reconhecimento do direito às idéias e verdades contrárias às
nossas.
Artigo final:
A presente Carta Transdisciplinar foi adotada pelos partici-
pantes do Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade,
que não reivindicam nenhuma outra autoridade exceto a do seu
próprio trabalho e da sua própria atividade.
Segundo os procedimentos que serão definidos de acordo
com as mentes transdisciplinares de todos os países, esta Carta
está aberta à assinatura de qualquer ser humano interessado em
promover nacional, internacional e transnacionalmente as me-
didas progressivas para a aplicação destes artigos na vida coti-
diana.
Convento de Arrábida, 6 de novembro de 1994
Comitê de Redação: Lima de Freitas, Edgar Morin e
Basarab Nicolescu.
Anexo 3 – Carta da Transdisciplinaridade
197
Anexo 4
Uma visão mais ampla de Transdisciplinaridade
Ponderando sobre a Conferência Transdisciplinar Interna-
cional realizada em Zurique de 27 de fevereiro a 01 de março,
os signatários decidiram chamar a atenção de todos os partici-
pantes da Conferência e de outras audiências para a nossa con-
vicção da necessidade de colocar o ser humano, em seus dife-
rentes níveis de realidade, no centro dos propósitos da Trans-
disciplinaridade na ciência e na sociedade.
Além disso, nós signatários enfatizamos que:
a) os princípios fundamentais da transdisciplinaridade abar-
cam tanto o desenvolvimento interior quanto exterior do
indivíduo, a saber:
– competência no campo da real vocação do indivíduo,
– ética: compromisso, responsabilidade e respeito,
– espiritualidade no sentido amplo: como conceituada na
Carta da Transdisciplinaridade adotada no Primeiro Con-
gresso Mundial de Transdisciplinaridade em Arrábida, Por-
tugal, 02 a 07 de novembro de 1994; e
b) as declarações fundamentais sobre educação transdiscipli-
nar são:
– abrir a educação em direção a uma educação integral do
ser humano que transmita a busca pelo sentido;
– fazer com que a Universidade evolua em direção ao es-
tudo do Universal no contexto de uma aceleração sem
precedentes do conhecimento fragmentado;
Educação e Transdisciplinaridade II
198
– revalorizar o papel da intuição, do imaginário, da sensi-
bilidade e do corpo como profundamente enraizados na
transmissão do conhecimento, conforme estabelecido na
conclusão do 2º Congresso Internacional “Que Universida-
de para o Amanhã? Em direção à Evolução Transdisciplinar
da Universidade” em Locarno, 1997.
A seguinte Declaração: UMA VISÃO MAIS AMPLA DE
TRANSDISCIPLINARIDADE, foi elaborada para ampliar as con-
clusões da Conferência:
1. Acreditamos que a visão transdisciplinar oferece um con-
ceito ativo e aberto da natureza e do ser humano que, em-
bora não exaustivo, pode ser usado para a realização do
propósito da sobrevivência humana e da justiça de manei-
ra mais eficaz do que qualquer definição ou qualquer redu-
ção a uma estrutura formal. Esta visão transcende os cam-
pos individuais das ciências exatas, humanas e sociais e as
encoraja a se reconciliarem entre si e com a arte, a literatu-
ra, a poesia e a experiência espiritual e validarem suas res-
pectivas percepções.
2. A epistemologia, a atitude e a prática Transdisciplinar im-
plicam no reconhecimento da utilidade metodológica dos
conceitos dos três pilares da transdisciplinaridade – a com-
plexidade, a lógica do terceiro incluído e os níveis de rea-
lidade – os quais emergem dos dados da ciência moderna
(física quântica), do diálogo com outras culturas e do cor-
pus cognitivo de todas as grandes tradições de conheci-
mento do presente e do passado. Portanto, a epistemolo-
gia, a atitude e a prática transdisciplinar demandam um
espírito de rigor e de abertura e tolerância para todos os
outros pontos de vista e um compromisso pela resolução
transdisciplinar das dificuldades. Para resolver problemas
com eficiência, é necessário adotar a compreensão trans-
disciplinar da complexidade e de sua descrição, como na
teoria sistêmica e na cibernética de 2ª ordem.
Anexo 4 – Uma visão mais ampla de Transdisciplinaridade
199
3. É esta metodologia e epistemologia: a complexidade, a ló-
gica do terceiro incluído e os níveis de realidade, explora-
da por diferentes métodos, que é necessária para a com-
preensão do mundo e do ser humano. Tal metodologia é
essencial para contribuir para assegurar mudanças reais na
sociedade, incluindo novas formas sociais, econômicas e
organizacionais e tornar possíveis avanços críticos na reso-
lução de problemas.
4. A Transdisciplinaridade, no sentido descrito acima, pode
permitir a elaboração [de uma Declaração] dos Valores Hu-
manos, baseando a deontologia Transdisciplinar nos direi-
tos inalienáveis e nos valores interiores do ser humano. Pa-
ra fazer uma sociedade decidida a objetivar a sustentabili-
dade e baseada em soluções implicadas por tal metodolo-
gia transdisciplinar, aqueles que decidem devem assumir
novas responsabilidades, comprometendo-se com esta
deontologia transdisciplinar.
5. A Conferência pediu por uma abordagem transdisciplinar
de resolução das verdades contraditórias da tríade Demo-
cracia – Ciência – Economia de Mercado, no nível da rea-
lidade social. Contudo, num nível mais elevado de realida-
de intelectual, a tríada Metafísica – Epistemologia – Poesia
são co-participantes na dinâmica de desenvolvimento do
novo conhecimento do espaço, tempo, causalidade, verda-
de e contradição, e proporciona novas e necessárias per-
cepções a respeito da relação entre o real e o imaginário.
Uma completa abordagem transdisciplinar para a resolu-
ção de problemas demanda a integração das percepções
desses dois níveis.
6. A criação e a experiência artística são uma instância da in-
tegração transdisciplinar. Estão relacionadas a um amplo
espectro de capacidades da mente humana, engajando
funções sensoriais, cognitivas, emocionais e lógicas, embo-
ra corporificando expressivamente e representando social-
mente uma rica variedade de construtos mentais em uma
Educação e Transdisciplinaridade II
200
gestalt concreta. Os padrões artísticos de interpretação e
seus modos de interatividade comunicativa numa fábrica
de valores sociais proporciona uma riqueza de conheci-
mento tácito como fonte de enriquecimento criativo e de
inovação na ciência, permitindo a transgressão para novas
formas de ciência e arte.
7. O relatório da UNESCO “Commission internationale sur l’é-
ducation pour le vingt et unième siècle” enfatiza firmemen-
te quatro pilares para um novo tipo de educação: aprenden-
do a conhecer, aprendendo a fazer, aprendendo a viver em
conjunto e aprendendo a ser. Sugerimos acrescentar: apren-
der a antecipar – uma vez que não podemos mais nos per-
mitir aprender pela destruição – e aprender a participar atra-
vés de envolvimento – uma vez que soluções para os pro-
blemas não podem ser encontradas em “torres de marfim
do aprender” sem envolver a massa crítica da sociedade.
8. A sustentabilidade de cada ser humano e o desenvolvi-
mento de suas sociedades é uma questão central para os
signatários desta Declaração. Na nossa opinião, os princí-
pios, a lógica e a metodologia da Transdisciplinaridade
fornecem a estrutura para a compreensão das bases onto-
lógicas e éticas da Sustentabilidade:
– na compreensão deles [desses princípios, dessa lógica e
dessa metodologia] como parte da dinâmica da natureza;
– na visão da interdependência complexa dos indivíduos,
instituições e comunidades, implicando no seu comprome-
timento crescente pelo benefício sustentável tanto para o
indivíduo quanto para a sociedade;
– num modelo para uma forma humana de globalização,
indo da sociedade de conhecimento visando o lucro para
uma sociedade que revele e use o conhecimento num
contexto de respeito mutuo, confiança e responsabilidade
pela ação.
Anexo 4 – Uma visão mais ampla de Transdisciplinaridade
201
Nós, os signatários, conclamamos todas as pessoas de boa
vontade a considerar esta Declaração no contexto de seu pró-
prio conceito de Transdisciplinaridade e a se engajar em um
diálogo continuado entre ambos.
Joseph E. Brenner, Ph.D., Les Diablerets, Suiça; Paulius
Kulikauskas, Byfornyelse Danmark, Dinamarca e Lituânia; Maria
F. de Mello, Coordenadora do CETRANS (Centro de Educação
Transdisciplinar) – Escola do Futuro, Universidade de São Pau-
lo, Brasil; K.V. Raju, de Anand, Índia; Américo Sommerman, edi-
tor, coordenador do CETRANS – Escola do Futuro – Universi-
dade de São Paulo, Brasil; Dr. Nils-Göran Sundin, docente,
Collegium Europaeum, Estocolmo, Suécia.
Educação e Transdisciplinaridade II
202
Anexo 5
A Evolução Transdisciplinar na Educação:
Contribuindo para o Desenvolvimento
Sustentável da Sociedade e do Ser Humano
Resumo do Projeto 1998 - 2002
1. Objetivo
Durante os seus quatro anos de duração, o Projeto se pro-
põe a:
1. Criar um Centro de Educação Transdisciplinar, CETRANS,
que vise a contribuir para o desenvolvimento sustentável
da Sociedade e do Ser Humano.
2. Promover três encontros catalisadores, de três dias cada
um, sendo um por ano, com espaço para 64 membros (3
coordenadores executivos, 7 conselheiros, 12 pesquisado-
res-formadores estrangeiros e 40 pesquisadores-formado-
res brasileiros e latino-americanos) de grande densidade,
seja ela acadêmica, artística, empresarial, espiritual, de
comunicação e outras.
3. Acompanhar a elaboração e a implementação dos 40
Projetos-Piloto que serão elaborados pelos 40 pesquisado-
res-formadores e implementados em suas respectivas áreas
de atuação.
4. Dar continuidade à discussão dos temas abordados nos
encontros catalisadores em reuniões presenciais mensais,
em lista de discussão na Internet para os 64 participantes
do Projeto e veiculando o resultado desse trabalho no site
CETRANS.
Anexo 0
203
5. Produzir três Painéis na TV sobre: A Cultura Transdisci-
plinar na Educação e sua Vivência Prática
6. Elaborar e publicar um Documento Tópico sobre A
Evolução Transdisciplinar na Educação: Contribuindo para
o Desenvolvimento Sustentável da Sociedade e do Ser
Humano.
Os três encontros catalisadores enfocarão três grupos de
temas. O primeiro será sobre:
1) A Ética Universal e a Noção de Valor
2) O Belo
3) O Sentido do Sentido
4) A Transdisciplinaridade e sua Vivência Prática
5) A Cognição e a Transdisciplinaridade
O segundo será sobre:
1) Fundamentos Metodológicos para o Estudo Transcul-
tural e Transreligioso
2) As Culturas não são Disciplinas: o Transcultural existe?
3) A Imaginação como Objeto de Conhecimento
4) A Autoformação, uma perspectiva tripolar
5) A Teoria do Hipertexto
6) Humanismo Contínuo: Revelação, Revolução e Realida-
de
O terceiro será sobre:
1) A Transpolítica
2) A Transnação
3) O Respeito e o Deleite pelas Diferenças
4) A Educação e a Comunidade
5) A Educação e a Consciência Global
Através desses temas e da contribuição competente de
cada participante do Projeto, serão apresentados, para posterior
investigação, desenvolvimento e implementação:
Os sete eixos básicos da Evolução Transdisciplinar na
Educação e Transdisciplinaridade II
204
Educação, ou seja,
1) A Educação Intercultural e Transcultural
2) O Diálogo entre Arte-Ciência
3) A Educação Inter-religiosa e Transreligiosa
4) A Integração da Revolução Informática na Educação
5) A Educação Transpolítica
6) A Educação Transdisciplinar
7) A Relação Transdisciplinar: os Educadores, os Alunos e
as Instituições
O novo sistema de referência:
1) Os Diferentes Níveis de Realidade
2) A Lógica do Terceiro Incluído
3) A Complexidade
Os pilares da Educação no séc. XXI propostos no Relatório
Delors/UNESCO:
1) Aprender a Conhecer
2) Aprender a Fazer
3) Aprender a Viver em Conjunto
4) Aprender a Ser
2. Justificativa
A atual civilização está enraizada em diversas rupturas epis-
temológicas. Uma ruptura fundamental ocorreu entre o fim da
Idade Média e o começo do Renascimento, quando houve uma
profunda separação entre o sujeito e o objeto, entre a cultura
humanística e as ciências experimentais e quando se passou de
uma visão tradicional ternária do homem, tido como sendo
composto de corpo, alma e espírito, para uma visão binária cor-
po e espírito (que se implantou claramente com Descartes), na
qual o elemento mediador, a alma, foi suprimido. Essa ruptura
acabou desembocando em uma outra, que se consumou no sec.
XIX, cuja teoria do conhecimento se apoiava em uma visão me-
canicista, separativista e cientificista, que reduziu o real a um
único nível e o homem a apenas sua dimensão física, enquanto
sujeito ou objeto.
Anexo 5 – A Evolução Transdisciplinar
205
Embora a ciência contemporânea tenha mostrado que essa
concepção mecanicista do universo tenha deixado de ser de-
fensável, mesmo sob o ponto de vista estritamente científico, a
Educação contemporânea privilegia, em geral, a concepção da
antropologia individualista e mecanicista. A finalidade da Cul-
tura Transdisciplinar é integrar esses diferentes níveis, mais fla-
grantemente dicotômicos no mundo dominante, uma vez que a
crise da modernidade se origina dessas rupturas e é nutrida por
elas. É imperativo buscar as leis fundamentais da Vida e a valo-
rização de uma consciência social, ecológica, planetária e espi-
ritual própria da antropologia globalizante, a que Michel Camus
(Congresso de Locarno – CIRET – UNESCO, 1997) chamou de
“… rescentralização do ser humano em sua própria riqueza
interior e sua reorientação em direção a uma simplicidade de
ser cada vez mais viva, consciente e integrada”. O Projeto vivi-
fica a dimensão da Esperança, enraiza-se na demanda concreta
da Educação, no espírito de Responsabilidade perante nosso
Planeta e na aspiração genuína pela evolução contínua da
sociedade e da dimensão global do ser Humano.
3. Breve Histórico
Na visão aristotélica, o saber inscrevia-se em três áreas: nas
ciências práticas, nas ciências poéticas e nas ciências teóricas
(Matemática, Física e Teologia). Na Idade Média, as disciplinas
foram separadas em duas vias: o quadrivium, constituído pela
matemática (a Aritmética, a Música, a Geometria e a Astrono-
mia); e o trivium, constituído pelas disciplinas lógicas e linguís-
ticas (a Gramática, a Dialética e a Retórica). No início do sec.
XVII, surge o método cartesiano de investigação, predominante
até nosso dias, o qual preconiza a busca da verdade através da
ciência, dando origem à primeira proliferação de disciplinas,
uma vez que se baseia na decomposição do todo, na sujeição à
repetição e à dedução de leis pragmáticas para cada uma de
suas partes.
A Disciplinaridade permitiu o exercício da Pluridisciplina-
ridade, também chamada Multidisciplinaridade, que diz respei-
to ao estudo de um objeto de uma única disciplina por diversas
Educação e Transdisciplinaridade II
206
disciplinas ao mesmo tempo e da Interdisciplinaridade, que diz
respeito à transferência de métodos e conceitos de uma discipli-
na à outra. Tanto a Multidisciplinaridade como a Interdisciplina-
ridade, mesmo quando exercidas com extrema competência e
sucesso – o que é necessário, louvável e de grande importância
à Sociedade e ao Ser Humano, porém jamais suficiente –, inscre-
vem-se em um nível de linearidade disciplinar e dizem respeito
a um único nível de realidade. Citando Basarab Nicolescu, físi-
co quântico da Universidade de Paris e presidente do CIRET:
“Entendo por realidade aquilo que resiste a nossas experiências,
representações, descrições, imagens. (…) É preciso entender,
por nível de Realidade, um grupo de sistemas que permanece
invariável sob a ação de certas leis.”
A Transdisciplinaridade engloba e transcende o que passa
por todas as disciplinas, reconhecendo o desconhecido e o ines-
gotável que estão presentes em todas elas, buscando encontrar
seus pontos de interseção e um vetor comum. A palavra Trans-
disciplinaridade foi usada pela primeira vez em 1970, por Piaget,
quando, em um colóquio sobre Interdisciplinaridade, disse: “…
esta etapa deverá posteriormente ser sucedida por uma etapa
superior transdisciplinar”. Em seguida, em 1972 e em 1977, Pia-
get volta a utilizar o termo. Tanto a Pluridisciplinaridade como
a Interdisciplinaridade não mudam a relação homem/saber, uma
vez que sujeito e objeto continuam dicotomizados, por estarem
reduzidos a um único nível de realidade e estruturados pela
noção de integração, enquanto a Transdisciplinaridade reconhe-
ce vários níveis de realidade e remete ao sentido de interação.
Os locais onde o processo educacional se realiza são espa-
ços privilegiados para o exercício Transdisciplinar, que respei-
ta, endossa, louva e pede a prática competente da Disciplinari-
dade, da Pluridisciplinaridade e da Interdisciplinaridade, bem
como define sua amplitude e limitação. Fala-se claramente da
necessidade da Evolução Transdisciplinar na Educação; no en-
tanto, seu exercício efetivo e o “Como?”, só poderão ser encon-
trados com o trabalho conjunto de indivíduos devotados ao
inesgotável questionamento a respeito do homem e de sua
existência, na Sociedade e neste imenso, inescrutável Universo.
Se a Multidisciplinaridade enriquece a exploração do objeto e
Anexo 5 – A Evolução Transdisciplinar
207
a Interdisciplinaridade, além de enriquecer a exploração do
objeto, desvenda e encontra soluções, propicia o surgimento de
novas aplicabilidades, disciplinas ou epistemologias, o exercí-
cio da Transdisciplinaridade estará contribuindo para que seja
restituído ao Sujeito a sua integridade, facilitando a interação e
colaborando com a missão da Educação de recriar sua vocação
de universalidade.
A Transdisciplinaridade, em uma rápida explanação, é um
modo de conhecimento, é uma compreensão de processos, é
uma ampliação da visão do mundo e uma aventura do espíri-
to. Transdisciplinaridade é uma nova atitude, uma maneira de
ser diante do saber. Etimologicamente, o sufixo trans significa
aquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através
das diferentes disciplinas e além de toda disciplina, remetendo
à idéia de transcendência. Transdisciplinaridade é a assimilação
de uma cultura, é uma Arte no sentido da capacidade de arti-
cular. Por isso após revisitar, com grande respeito, rigor e inclu-
são, o conhecimento, a noção de valor, o contexto, a estrutura,
a pesquisa, a competência, a oferta, o método e o ser humano,
traz sua própria contribuição integradora e globalizante.
A implementação do Projeto permitirá gerar conhecimen-
to e o colocar em ação.
Obs.: Este resumo está sujeito a ajustes progressivos míni-
mos. Existe uma versão que inclui maior quantidade de dados.
Prof. Dr. Fredric M. Litto
Coordenador de Pesquisa Científica
Escola do Futuro
Maria F. de Mello
Vitória Mendonça de Barros
Américo Sommerman
Coordenação Executiva
CETRANS
Educação e Transdisciplinaridade II
208
Anexo 6
A Evolução Transdisciplinar na Educação: Contribuindo para o Desenvolvimento
Sustentável da Sociedade e do Ser Humano
Lista dos integrantes do projeto em 2000:
Conselheiros Coordenadores Experts estrangeiros Assistentes
Boris Tabacof Américo Sommerman Agustí Nicolau Coll Katia Cruz
Crodowaldo Pavan Maria F. de Mello Basarab Nicolescu Tereza Abucham
Fredric Michael Litto Vitória Mendonça de Barros Gaston Pineau Valéria Menezes
Gabriel Rodrigues Humberto Maturana
Luiz Nassif Martin Rosenberg
Luiz Prigenzi Michel Random
Ubiratan D’Ambrosio Pascal Galvani
Victor F. B. de Mello Patrick Paul
Paul Taylor
Steven Wasserstrom
Anexo 6
209
Formadores/Nome Área de Atuação Local de Atuação
Almir Paraca Cardoso Política Prefeitura de Paracatú
Amâncio Friaça Astrofísica USP
Amauri de Almeida Machado Matemática Universidade de Pelotas
Arnaldo Esté Filosofia Venezuela/Fac. Medicina
Brasilina Passarelli Comunicação USP
Celso Schenkel Meio Ambiente UNESCO/Brasília
Cristiano Rodrigues de Mattos Física UNESP
Dora Freiman Blatyta Linguística UNICAMP
Dora Schnitmann Psicologia Argentina/Univ. de Buenos Aires
Ecleide Furlanetto Educação UNICID/Col. Lourenço Castanho
Edith Rubinstein Psicopedagogia Consultora e Terapeuta
Elizabeth Mesquita André História Colégio Mackenzie
Esdras Guerreiro Vasconcelos Psicologia Social USP
Fábio Simonini Língua e Lit. Portuguesa Colégio Pueri Domus
Fernando Rebouças Stucchi Engenharia USP/Empresa
Ignácio Gerber Psicanálise Terapeuta
Ivani Fazenda Educação PUC-SP
Isabel Cristina Santana Filosofia C.E.F.C
Jean Bartoli Recursos Humanos Empresa
João Nelci Brandalise Pró-Reitoria de Graduação Universidade de Pelotas
Kátia Canton Monteiro Crítica de Arte - USP Museu de Arte Contemporânea
Laerthe Abreu Jr. Educação Universidade São Francisco
Educação e Transdisciplinaridade II
210
Luiz Eduardo V. Berni Psicologia Terapeuta/Consultor
Luiza Alonso Educação Faculdade de Uberaba
Mabel Mascarenhas Wiegand Fisiologia Universidade de Pelotas
Mara Eliana Tossin Meio Ambiente Prefeitura de São Paulo
Maria Esperanza Martinez Saúde Pública Venezuela/Fac. Medicina
Mariana Lacombe Filosofia UNIFIEO (Universidade Osasco)
Marta Rodriquez Gastroenterologia Venezuela/Fac. Medicina
Miquel Requena Fisiologia Venezuela/Reitor Fac. Medicina
Márcio Lupion Arquitetura Universidade Mackenzie
Nelson Fiedler Ferrara Física USP
Norma Nunez Epidemiologia Venezuela/Fac. Medicina
Oldair Soares Ammom Artes Cênicas/Teatro São Paulo
Ondalva Serrano Meio Ambiente São Paulo
Renata C. Lima Ramos Desenvolvimento Humano Centro de Estudos Triom
Renata M. G. R. Jacuk Comunicação USP
Silvana Cappanari Psicologia Consultório
Rodolfo Ernesto Gonzales Saúde Pública Venezuela/Fac. Medicina
Sílvia Fichman Educação e Tecnologia USP
Yara Boaventura da Silva Enfermagem-Oncologia Fundação Antônio Prudente
Yadira Córdova Odontologia Venezuela/Fac. Medicina
Anexo 6
211
Anexo 5
Bibliografia Geral
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