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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
A GESTÃO DE SI NA REINVENÇÃO DAS NORMAS:
PRÁTICAS E SUBJETIVIDADE NO TRABALHO
Cristiane A. Fernandes da Silva
São Paulo, 2007
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Tese de doutorado – Sociologia - FFLCH/USP
Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
A GESTÃO DE SI NA REINVENÇÃO DAS NORMAS:
PRÁTICAS E SUBJETIVIDADE NO TRABALHO
Cristiane A. Fernandes da Silva
Tese de Doutorado apresentada
ao Programa de Sociologia no
Deptº de Sociologia da FFLCH-
USP, como requisito parcial
para obtenção do título de
doutora.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena Oliva Augusto
São Paulo, 2007
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Tese de doutorado – Sociologia - FFLCH/USP
Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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Ficha Catalográfica
Silva, Cristiane A. Fernandes da.
A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no
trabalho / Cristiane A. Fernandes da Silva. -- São Paulo: USP, 2007.
348 p.
Tese (Doutorado) -- Universidade de São Paulo, 2007.
1. Trabalho. 2. Operário. 3. Normas. 4. Valor. 5. Subjetividade.
I. Título.
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Aos eternos pequeninos:
Vi, Tatá, Léo e Mimi
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[As] maneiras de fazer [são] as mil práticas [das pessoas
sobre o] espaço organizado pelas técnicas de produção
sócio-cultural, operações quase microbianas que proliferam
no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu
funcionamento por uma multiplicidade de “táticas”
articuladas sobre os “detalhes” do cotidiano, [exumando]
as formas sub-reptícias que são assumidas pela
criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou
dos indivíduos
(Certeau, 1994: 41).
[Em] todo ato de trabalho, estão em jogo capacidades
singularmente adquiridas, de tendências ao uso de si para
recompensar tão infinitesimalmente quanto se desejaria
um mundo a sua conveniência: nenhuma lógica de relações
sociais domina inteiramente sem ser, em algum grau,
submetida [...] aos tipos de exigências das quais as vidas
individuais são portadoras
(Schwartz, 1992: 55).
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Agradecimentos
Esta tese afigura-se galho de uma árvore frondosa que, na ânsia de viver, seguiu
deitando rebentos e constituindo teias de relações com o ambiente em que germinou. Meio
lapidada e um tanto inacabada, teve de assumir uma configuração final. Se esse galho atingiu
seu ápice tendo alcançado um corpus que sustente sua estrutura básica, as teias que o
construíram prosseguirão, como esteio para a germinação de novas sementes.
Consagro este momento, para mim o mais terno e comovente da tese, a essas teias de
relações. Momento que algumas vezes protelei antes de lhe dar substância; razões que por
vezes umedeceram os olhos meus, ao recordar o longo percurso em que sempre contei com a
companhia e o apoio de pessoas por quem tenho apreço e de instituições de respeito.
A comoção deste instante novamente ofusca o meu olhar. É penoso rememorar a
trajetória que, intensa e apaixonante, não me preparou para seu término. As lembranças fazem
dançar em minha frente pessoas com as quais pude tecer relações importantes e construí
vínculos a que temo colocar um fim nesse átimo, pudera esse fosse mais um de tantos já
vividos, mas assume ares de ser o derradeiro. Quero consolar-me com a sábia frase de
Lavoisier: “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”.
Inicio os meus agradecimentos endereçando-os à Maria Helena Oliva Augusto, que
me dispensou orientação rigorosa e atenta, ao mesmo tempo aberta às minhas escolhas
temáticas e de abordagens. Sua constante dedicação e acuidade tornaram mais inteligíveis os
meus escritos. Sua presença imprescindível em minha trajetória não se restringiu, porém, ao
envolvimento acadêmico, pois, quando o peso dos compromissos assumidos turvavam a
minha compreensão, ela soube dirigir-me palavras de acalanto, zelando também por meu bem-
estar, com um talento que é conferido especialmente às mães, cuja sensibilidade sabem
conjugar com maestria a emoção e a razão.
Agradeço à Heloísa Helena de Souza Martins por ter me propiciado preciosa
oportunidade ao inserir-me no mundo da pesquisa. Foi ao lado dela que, em 1997, dei início às
minhas primeiras entrevistas, montei as primeiras planilhas, aprendi com sua experiência
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teórico-metodológica a analisar as informações coletadas em campo e, finalmente, esbocei
meu primeiro projeto de pesquisa sobre o trabalho. Portanto, tive a prerrogativa de alcançar a
qualificação de pesquisadora em virtude dessa pessoa iluminada, que sempre foi uma mistura
de professora, protetora e amiga.
Com Leny Sato pude descobrir mais nitidamente aquilo que dentro do tema
“trabalho” realmente me atiçava a atenção: a questão da subjetividade. A sensibilidade de suas
análises sobre os significados simbólicos do trabalho injetou sentido à dimensão subjetiva da
minha investigação sobre o trabalhador. Sou-lhe muito grata por ter compartilhado comigo o
seu universo de pesquisa e de interpretações, na disciplina ministrada na Psicologia Social.
Manifesto meus agradecimentos à Maria Inês Rosa, que me recebeu com
generosidade para discutir o projeto de pesquisa do qual foi originada esta tese, debatendo e
sugerindo pontos para aproximá-lo da abordagem ergológica. Agradeço-lhe também a
gentileza de apresentar-me ao filósofo Yves Schwartz, bem como os vários conselhos com os
quais buscava preparar-me para a convivência com a cultura francesa.
A Yves Schwartz, meu co-orientador francês, agradeço a grande oportunidade de
poder usufruir de sua erudição nas discussões consagradas tanto à minha pesquisa quanto à
compreensão da abordagem ergológica. O sentido analítico desta tese deve-se particularmente
as suas reflexões de filigrana, que completaram o sentido que eu buscava para a leitura da
subjetividade no trabalho. Minha gratidão também à forma hospitaleira com que ele e toda a
equipe do departamento de Ergologia da Université de Provence, notadamente Pierre Trinquet,
Rémy Jean, Françoise Brulet e Rosy Van Oost, me receberam, para realizar o programa de
doutorado em Aix-en-Provence.
À Vânia Noeli Ferreira Assunção, agradeço a revisão cuidadosa do projeto de
doutorado, quando sugeriu não apenas correções em nível técnico, mas também mudanças
teóricas. Apesar de sua eficiência como profissional na área, ela empenhou-se nesse trabalho
sem contrapartida financeira, brindando-me com o seu gesto de amizade que se fortaleceu a
partir daquele instante.
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Sou muito agradecida a Gilberto Carlos Sanzovo, pela disposição de também ler o
meu projeto de pesquisa e fazer sugestões para melhorar sua formatação lingüística. Agradeço
a prontidão com que sempre se dispôs a fornecer auxílio para o andamento da pesquisa,
mostrando seu cuidado incondicional.
Minha profunda gratidão à Régia Cristina Oliveira, amiga e companheira de todas as
horas. Nossa partilha de questões acadêmicas e cotidianas, desde a graduação nos anos 90,
aproximou-nos a ponto de torná-la importante referencial para o meu traçado no mundo da
pesquisa.
Agradeço à Lourdes dos Santos Pinto, amiga que, com sua escuta atenta e palpites
certeiros, desde os meus idos de secundarista, me apoiou e incentivou nos projetos de vida
acadêmica e pessoal.
À amiga Ana Cláudia Moreira Cardoso, sou muito grata pelos incontáveis momentos
compartilhados desde a nossa inserção no doutorado, em que as semelhanças de nossas
pesquisas logo afloraram e nos uniram. Seu compromisso enquanto pesquisadora – inclusive
passando-me contatos de operários –, seu vigor, sua paixão por gente e seu sorriso radiante
animaram caminhos e atalhos que tive a chance de trilhar em sua companhia, tanto no Brasil
quanto na França.
Rememorando o período vivido na França, não dá para deixar de agradecer uma
família especial que esteve presente em meu caminho. À família Veríssimo: Mariana,
Jurandir, Lucas e o pequeno André, deixo meus agradecimentos pela agradável companhia e
acolhida mineira que tornaram mais fácil suportar as saudades da nossa terra natal.
Ao casal de amigos Elizabeth dos Santos Jouve e Bertrand Jouve, agradeço a
recepção calorosa e as assistências concedidas quando cheguei à França na condição de
forasteira. O acolhimento cordial e a atenção que me dispensaram foram decisivos para o meu
estabelecimento inicial naquele país, onde tudo era novo e diferente, exigindo aprendizado
constante.
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Mormente em relação à pesquisa de campo, remeto meus mais sinceros
agradecimentos a todos os operários que compuseram esta pesquisa. A seriedade, a
solidariedade e a gentileza com que se predispuseram às entrevistas foram primordiais para a
constituição da tese. Agradeço particularmente ao Alex e à Ana, jovens operários e
universitários, que tanto forneceram seus testemunhos de grande relevância para os achados
empíricos, quanto se empenharam na busca de outros operários dispostos a participar do
trabalho de campo.
Meus agradecimentos especiais a Basilio Senko Neto e a Luiz Celoni, companheiro e
amigo, os quais, sem medir esforços, me acompanharam e me guiaram pela periferia da região
metropolitana da cidade de São Paulo durante os quatro meses de trabalho de campo. Foi
contando com a confiança e com os inúmeros amparos fornecidos por eles que esta pesquisa
ganhou força e pôde finalmente ser concluída. Sou imensamente grata ainda pelas revisões
minuciosas das transcrições das entrevistas feitas por Basilio, sem as quais eu jamais poderia
conduzir a análise.
Agradeço a meus familiares, pai, mãe e irmãos, que souberam compreender meus
afastamentos constantes quando tive de trocá-los pela leitura e pela pesquisa. Expresso meu
profundo reconhecimento à minha mãe, Neide Fernandes da Silva, que, compreendendo ou
não o meu distanciamento de quase um ano, quando estive na França, sempre me apoiou no
choro ou no sorriso, simplesmente por acreditar no caminho que escolhi.
Não posso deixar de mencionar meus agradecimentos à presteza com que Maria
Ângela Ferraro de Souza, secretária de pós-graduação do Departamento de Sociologia da
Universidade de São Paulo, me tratou, durante todos esses anos em que estive vinculada ao
programa. Graças as suas informações precisas e eficientes encaminhamentos de documentos,
consegui garantir o cumprimento burocrático e o financeiro de todo o processo acadêmico.
Finalmente, agradeço ao CNPq e a CAPES pelos importantes apoios financeiros,
com os quais pude contar tanto no Brasil quanto na França, possibilitando-me dedicação
exclusiva para assegurar o término deste trabalho.
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Entretanto, trazer à tona as contribuições de todas essas pessoas que estiveram ao
meu lado durante essa longa trajetória não significa de forma alguma fazê-las partícipes dos
desacertos que esta tese venha eventualmente a portar. Portanto, assumo como minhas todas as
falhas e incompletudes deste trabalho, que embora imbricado num coletivo, foi tecido pelos
limites de minha compreensão.
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Resumo
O chão de fábrica é constituído por operários cuja atuação cotidiana em
diferentes postos de trabalho consiste, simultaneamente, na gestão de si
próprios. Embora a fábrica seja cravejada por normas oficiais operacionais, de
segurança e de qualidade, os operários gerem todos esses elementos conforme
suas necessidades psicofísicas e escolhas valorativas possíveis. Portanto,
trata-se de uma análise, pautada tanto em veio teórico, notadamente o
ergológico, quanto, especialmente, em achados empíricos extraídos de
entrevistas efetivadas junto a operários metalúrgicos da grande São Paulo.
Ambas as esferas, teórica e empírica, comungam esforços em mostrar as
atividades de chão de fábrica em uma perspectiva distanciada daquela de pura
execução por operadores via operações padronizadas exogenamente. Essas
atividades são na realidade re-formuladas, re-conduzidas, às vezes até
reinventadas, consequentemente, apropriadas por sujeitos operários, que re-
normalizam o seu meio e, na medida do possível, singularizam seus atos de
trabalho de acordo com os seus próprios usos subjetivos, valorativos e
simbólicos.
Palavras-chave: Trabalho, operário, normas, valor, subjetividade
Abstract
The shop floor is constituted by workers whose daily performance in different
workstations consists, simultaneously, in the self-management. Although the
factory is studded by operational official norms, of safety and of quality, the
workers generate all those elements according to their needs psycho-physicals
and possible appreciated choices. Therefore, it is treated of an analysis, ruled
so much in theoretical vein, especially the ergological, as, especially, in
empiric discoveries extracted of interviews accomplished with the workers
metallurgists of the São Paulo’s metropolitan area. Both spheres, theoretical
and empiric, they take communion efforts in showing the activities of shop
floor by a distanced perspective of that of pure execution by operators
through operations standardized exogenously. These activities are in the
reality re-formulated, re-driven, sometimes until reinvented, consequently,
appropriate for subjects workers, that re-normalize their environment and,
insofar as possible, they become singular their work actions according to their
own subjective, appreciated and symbolic uses.
Keywords: Work, worker, norms, value, subjectivity
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Résumé
Le sol de l'usine est constitué des ouvriers dont la performance quotidienne
dans les différents postes de travail consiste, simultanément, en la gestion
d'eux même. Bien que l'usine soit composée par les normes officielles
opérationnelles, de sécurité et de qualité, les ouvriers gèrent tous ces éléments
conformément à leurs besoins psychophysiques et choix mise en valeur
possible. Donc, il s’agit d'une analyse, appuyée aussi dans la veine théorique,
surtout le ergologique, que, spécialement, dans les découvertes empiriques,
extraites d’interviews accomplies avec les ouvriers métallurgistes de la région
métropolitaine de São Paulo. Les deux sphères, théorique et empirique,
concentrent leurs efforts pour montrer les activités dans une perspective du sol
de l'usine, eloignée de cela de pure exécution par les opérateurs à travers
opérations standardisés exogènemente. Ces activités sont en fait re-formulées,
re-conduites, quelquefois jusqu'à réinventées, par conséquent, appropriées aux
sujets ouvriers, qui renormalisent leur environnement et, dans la mesure du
possible, singularisent leurs actions du travail d'après leurs propres usages
subjectifs, mise en valeur et symboliques.
Mots-clés: Travail, ouvriers, normes, valeur, subjectivité
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SUMÁRIO
Introdução ..........................................................................................................................................
15
1 Objetivo ................................................................................................................................................ 15
2 Justificativa .......................................................................................................................................... 19
3 Problema da pesquisa ........................................................................................................................... 23
4 Hipótese ............................................................................................................................................... 28
5 Apresentação da tese .......................................................................................................................... 30
Parte I Algumas Noções sobre a Subjetividade Operária
Apresentação ............................................................................................................................................ 34
Capítulo 1 Normas, usos e valores no trabalho
Introdução .................................................................................................................................................. 35
1.1 Considerações sobre a organização científica do trabalho................................................................. 38
1.2 Da operação ao acontecimento .......................................................................................................... 41
1.3 Normas prescritas e normas não-prescritas ..................................................................................... 43
1.4 Tipologia de transgressão às normas ................................................................................................ 50
1.5 Alguns casos empíricos de transgressão .......................................................................................... 51
1.6 Uma crítica à transgressão da ordem social? ................................................................................... 54
1.7 Para além da noção de transgredir ................................................................................................... 57
1.8 Gestão de si no trabalho .................................................................................................................... 61
1.9 Singularidades das situações de pesquisa e a ergologia ................................................................. 69
1.10 A experiência na sociologia ............................................................................................................ 73
1.11 A (inter)subjetividade para a ergologia e para a fenomenologia ..................................................... 76
Capítulo 2 Construindo o campo: técnicas e métodos em busca do vivido
Introdução .................................................................................................................................................. 83
2.1 Razão do trabalho de campo ............................................................................................................. 84
2.2 A fala e o vivido.................................................................................................................................... 86
2.3 Abordagem qualitativa ....................................................................................................................... 87
2.4 Instrumentais para a realização das entrevistas ............................................................................... 91
2.5 Estratégias de acesso aos sujeitos da pesquisa
.............................................................................. 94
2.6 Condições relacionais e ambientais da pesquisa de campo
.............................................................. 97
2.7 Transcrição e análise das informações
.............................................................................................. 102
2.8 Sujeitos da Pesquisa
.......................................................................................................................... 104
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Parte II Espaço, Tempo, Subjetividade e Valores Operários
Apresentação ............................................................................................................................................ 115
Capítulo 3 Cenário do chão de fábrica: da subjugação à apropriação
Introdução ................................................................................................................................................. 116
3.1 Relação com os chefes e com o controle fabril ................................................................................. 117
3.2 Relação com os colegas de trabalho e trocas econômico-simbólicas .............................................. 127
3.3 Perigo: histórias que assombram ...................................................................................................... 137
3.4 Apropriação do espaço fabril ............................................................................................................. 147
Capítulo 4 Normas fabris: vivências em torno do prescrito
Introdução ................................................................................................................................................. 159
4.1 Lugares de re-normalização .............................................................................................................. 159
4.2 Caracterizando as normas ................................................................................................................ 165
4.3 Plano de Operação Padrão versus produtividade ............................................................................. 171
4.4 Re-normalizar é transgredir? ............................................................................................................. 177
4.5 Modus operandi alternativo ............................................................................................................... 181
4.6 Frouxidão de normas operacionais ................................................................................................... 188
4.7 Disputas pelo controle das normas .................................................................................................... 197
Capítulo 5 Gerir o trabalho e a si mesmo
5.1 “Espaço manhoso” ............................................................................................................................. 207
5.2 Astúcia e “tempo do organismo” ......................................................................................................... 215
5.3 Solidariedade em trabalhos penosos ................................................................................................. 224
5.4 Problemas miúdos versus grandes intervenções .............................................................................. 236
5.5 Engenhoca e dispositivos: concretizando a inventividade ................................................................. 249
5.6 Dispositivos falhos ............................................................................................................................. 261
5.7 Deixar a própria marca ...................................................................................................................... 266
5.8 Controlar os rumos de suas intervenções .......................................................................................... 273
5.9 Técnicas do corpo .............................................................................................................................. 282
5.10 Batalha entre o corpo e os valores ................................................................................................. 300
À guisa de conclusão .....................................................................................................................
315
Referências Bibliográficas ..........................................................................................................
320
Anexo 1 Formulário de entrevista .......................................................................................................
333
Anexo 2 POP – Programa Operação Padrão ...................................................................................
339
Anexo 3 Inscrição em peça – Caixa de câmbio ................................................................................
346
Anexo 4 A norma e a vida ....................................................................................................................
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Introdução
O foco da pesquisa trilha o esforço de apresentar e esquadrinhar imagens sobre
a gestão de si dos operários em seu trabalho. Imagens sobre a forma como trabalham,
as idéias que arquitetam para intervir em sua atividade e os dispositivos que inventam
para melhorar e adaptar seu trabalho a suas necessidades e a suas escolhas possíveis.
Para tanto será trazida a lume uma série de situações vivenciadas por
trabalhadores, capazes de desenhar suas intervenções no ambiente de trabalho e,
notadamente, de revelarem-se como fazedores de sua própria micro-história.
1 Objetivo
O objetivo desta pesquisa consiste em analisar as práticas e valores culturais e
pessoais dos trabalhadores. Para investigar essas práticas e valores, o trabalhador é
tomado na condição de sujeito de negociação informal e cotidiana
1
de normas
2
prescritas e normas praticadas presentes no interior da fábrica.
1
- Vale esclarecer que o termo negociação é empregado aqui no mesmo sentido da pesquisa de Sato (1997), não
se referindo ao âmbito institucional sindicato-empresa, mas aos trabalhadores comuns que negociam,
cotidianamente e de maneira informal, suas condições de trabalho consigo mesmo, valendo-se de adaptações
pessoais das normas organizacionais sobre a maneira de fazerem suas atividades.
2
- A noção de norma conta com um correspondente muito próximo, regra. Inventariando as duas noções, de
forma concisa e genérica, entende-se por normas sociais: preceitos necessários para a realização de valores de
uma coletividade que regulam seus comportamentos e relações (Gallino, 2005: 460). Já regra consiste em
uma fórmula que prescreve ações a serem cumpridas (Cuvillier, 1976: 139). Tendo em vista que ambas as
noções são empregadas com sentidos análogos pelos diferentes estudiosos apresentados na tese, optou-se por
usar somente normas, uma vez que não compromete seu sentido e, sobretudo, porque elas são mais
abrangentes do que regras e tratam a dimensão dos valores de forma mais detida, portanto, atendendo o
objetivo da pesquisa. O grupo dos ergólogos e seus inspiradores (Schwartz, Clot, Oddone, Canguilhem)
utilizam o termo normas, enquanto autores vinculados à sociologia da organização, da regulação e à
psicodinâmica do trabalho (Bernoux, Reynaud, Terssac, Dejours) optam por regras. Entretanto, vale ressaltar
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Mais precisamente, busca-se examinar a interação e confronto estabelecidos
entre as normas ordenadas pela fábrica e aquelas criadas pelos próprios operários,
estas, por sua vez, estando referidas aos seus valores.
O arcabouço teórico ora proposto apóia-se, substancialmente, na linha de
pensamento de dois autores: o filósofo Yves Schwartz e o historiador Michel de
Certeau. O primeiro, abordando a existência permanente de confronto entre normas
prescritas e não-prescritas, considera que as últimas são criadas pelos indivíduos
como forma de gerirem a si próprios, na defesa de seus valores culturais e sua
subjetividade
3
. De forma complementar, Certeau, com sua teoria das práticas
cotidianas, revela que os indivíduos reinventam, permanentemente, o seu cotidiano
burlando, de modo sorrateiro, as ordens estabelecidas.
As referências teórico-metodológicas desta pesquisa vinculam-se à abordagem
fenomenológica, dada a afinidade de seus procedimentos metodológicos com os
autores nos quais nos apoiamos, especialmente com a ergologia alicerçada em
Schwartz, para tratar do tema das práticas cotidianas no trabalho.
Do mesmo modo que na perspectiva dos autores apresentados aqui, no
procedimento fenomenológico é condição sine qua non recorrer às experiências dos
sujeitos concretos para construir as explicações científicas. Por isso, inclusive, nesta
pesquisa, é conferida grande relevância à realização de trabalho de campo. É
que em reunião de trabalho com Schwartz, ele chamou a atenção para o fato de a teoria da regulação (cujo
cerne são as regras) pressupor funcionamento orgânico (homeostático, equilibrado, harmônico) de
organizações sociais, em oposição à ergologia que para tratar da “infidelidade do meio” usa o termo
“trabalhar-gerir”, por sua vez desprovido de funcionamento a priori, que consiste de uma regulação em
situação.
3
- Na acepção de Schutz, o mais conhecido representante da fenomenologia dentro da sociologia, no sentido
imediato, subjetividade “se refere exclusivamente a experiências, cogitações, motivos, etc., de um indivíduo
concreto. Em termos restritos, o significado subjetivo inerente à conduta é sempre o significado que a pessoa
que age atribui à sua própria conduta: consiste em seus motivos, isto é, suas razões para agir e seus objetivos,
seus planos imediatos ou a longo prazo, sua definição da situação e de outras pessoas, sua concepção de seu
próprio papel na situação dada, etc” (1979: 316). O autor acena também para a necessidade de o aspecto
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necessário ter contato com as explicações fornecidas pelos sujeitos pesquisados, para
só então desenvolvermos nossos argumentos sobre sua realidade.
Todavia, considerando a necessidade do construto de explicações teóricas
acerca do tema das normas no trabalho, ainda que provisórias, sustentam-se alguns
argumentos, retirados de dados secundários, que guiarão os primeiros passos da
investigação em curso.
Para a análise das práticas cotidianas e a subjetividade dos indivíduos no
trabalho, parte-se do pressuposto fundamental de que a técnica não consegue extinguir
o lugar do ser humano; desse modo, por mais automatizado que seja um processo de
trabalho, ele sempre deixará um espaço vago, ocupado pelo sujeito.
Essa ocupação das brechas no trabalho pelos indivíduos não se configura
meramente como condição de “recursos humanos”. Os indivíduos cumprem sua tarefa
4
não como se fossem expedientes, meios, recursos, feito recursos naturais, totalmente
manipulados externamente para, por seu intermédio, atingirem um dado fim. Trata-se
de pessoas que, antes de serem absolutamente manipuladas, reconfiguram seu meio em
virtude de suas próprias condições e escolhas; e não o inverso como ocorre com os
recursos naturais, que são simplesmente moldados ao meio.
Na acepção de Sato, “as pessoas continuam a ser pessoas mesmo sendo
concebidas, contratadas, e tratadas como recursos humanos” (1997: 183), já que são
intersubjetivo da subjetividade ser levado em conta, uma vez que o mundo individual não é um mundo
privado, mas atravessado pelos valores e interpretações dos outros (idem, p. 159).
4
- A Ergonomia faz uma distinção bastante precisa entre tarefa e atividade: o primeiro termo diz respeito aos
“desempenhos exigidos na situação de trabalho” e aos “procedimentos prescritos” para a realização da tarefa;
já o segundo termo se refere às atividades efetivamente realizadas pelos trabalhadores, caracterizadas
essencialmente pelos “procedimentos utilizados” e pelas “condutas inteligentes” (Montmollin, 1986: 20).
Trata-se de distinção bastante pertinente para esta pesquisa, uma vez que pode mostrar o divórcio entre
normas prescritas e normas praticadas pelos trabalhadores, ou, ainda, que várias normas são possíveis para
uma mesma atividade, acenando, assim, para o tema em discussão: a existência das maneiras singulares de
levar a termo uma tarefa.
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providas de singularidades, e que por isso mesmo, reinventam, permanentemente, o seu
cotidiano fabril.
Esse constante reinventar dos trabalhadores faz-se mediante suas práticas e
valores, culturais e pessoais; porém, considerando sua grande abrangência, elegeu-se
para esta pesquisa as normas do “como fazer as atividades fabris” como via de acesso a
essas práticas e valores. Portanto, as normas do trabalho constituem tão somente um
meio, um recurso analítico adotado para investigar as atitudes dos trabalhadores
perante as ordens relativas à maneira de exercer sua atividade.
Em outras palavras, esta pesquisa não está preocupada com as normas “em si
enquanto instruções técnicas, com sua eficácia produtiva, do trabalho, tarefa assumida
pela Engenharia ergonômica e não pela Sociologia. Focalizam-se aqui,
fundamentalmente, as maneiras de ser do trabalhador, reveladas nas maneiras de
fazer sua atividade.
São os modos de ser (perceber, interpretar, escolher) do trabalhador que o
levam a agir de dada maneira nas atitudes que assume em seu trabalho, precisamente
porque ele não é um indivíduo oco de valores. Trata-se de um sujeito que recorre a sua
história singular para tomar atitudes pessoais; estas, porém são cravejadas da presença
do outro. Mesmo em um ambiente de trabalho onde as prescrições das tarefas são mais
rigorosas, é possível que os trabalhadores exerçam sua singularidade, nos modos de
fazer sua atividade.
As maneiras singulares de ser no fazer operário constituem tema suscetível de
investigação em qualquer época, ambiente de trabalho e categoria de trabalhador.
Porém, tendo de delimitar o recorte empírico, optamos pelos operários vinculados ao
chão de fábrica, uma vez que eles lidam muito com equipamentos cujo funcionamento
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19
depende da aplicação de instruções prévias, advindas de instâncias que lhe são
externas.
Por recorrer ao uso de máquinas automatizadas ou mesmo mecânicas,
aparentemente, o trabalho na produção fabril solicita do operário maior conformação às
normas prescritas, o que torna essa categoria de trabalhador bastante convidativa para a
investigação de possíveis transgressões criativas que faz às normas organizacionais.
2 Justificativa
O nosso interesse pelo tema das maneiras de ser do trabalhador nas normas do
trabalho manifestou-se nitidamente ainda no mestrado, em 2000, quando, por sugestão
da professora Heloísa H. T. de S. Martins, freqüentei o curso “Trabalho, Subjetividade
e Saúde”, ministrado pela professora Leny Sato, no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. Apresentando resultados de sua pesquisa de doutorado,
Sato disse, durante uma aula, que: pessoas diferentes, em funções e máquinas iguais,
fazem o trabalho de um jeito diferente, mais adaptado a si mesmos
5
. Essa leitura de
Sato, definitivamente, iluminou para mim as idéias de Schwartz, às quais tive acesso,
inicialmente, por meio da leitura de Maria Inês Rosa (1998), a precursora da
abordagem ergológica no Brasil.
De acordo com Schwartz:
Toda forma de atividade em qualquer circunstância requer sempre
variáveis para serem geridas, em situações históricas sempre em parte
singulares, portanto escolhas a serem feitas, arbitragens – às vezes
quase inconscientes – portanto, o que eu chamo de “usos de si”, “usos
dramáticos de si” (1996a: 151, grifo nosso).
5
- Cf. também Sato, 1997: 121.
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20
Juntando as análises de Sato, sobre as maneiras singulares dos trabalhadores
fazerem seu trabalho, com as reflexões de Schwartz, acerca das gestões também
singulares nas atividades arbitradas pelos indivíduos que as exercem, constatei que
ambos os autores falavam a mesma linguagem e dispunham das mesmas preocupações
analíticas. Embora trabalhem com referenciais teóricos diferentes (talvez pelo fato de
Sato ser psicóloga e Schwartz filósofo, a primeira focando as discussões sobre a saúde
e o segundo, a produção de significados para a vida), suas abordagens dialogam muito
estreitamente.
Adicionalmente ao fato da compreensão dos complexos escritos filosóficos de
Schwartz consagrados ao trabalho, nosso interesse pelas maneiras singulares do
trabalhador fazer sua atividade foi despertado pelo fato de na Sociologia,
freqüentemente, serem relevadas as dimensões alienantes dos indivíduos no interior da
sociedade. Consideramos essa visão parcial porque concebemos o indivíduo na
condição de sujeito de seus atos e, sobretudo, porque na pesquisa de campo do
mestrado pudemos constatar a existência de gestões singulares que jovens operários, de
chão de fábrica, elaboram em suas atividades
6
.
Portanto, foi tanto pelo contato teórico quanto pela “observação” empírica que
nos orientamos para a escolha do tema das normas prescritas e não-prescritas,
particularmente em função delas servirem de lupa para chegarmos até certas
manifestações da subjetividade do trabalhador, reveladas nas suas maneiras de ser e
fazer seu trabalho. Por isso, propomo-nos a debruçar sobre o tema das maneiras de ser
e fazer do trabalhador, especificamente, do operário, tão criticado por sua aparente
condição de absoluta submissão à ditadura da cadência imposta pela “máquina”.
6
- Cf. Silva, 2003.
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Tomar o operário como aquele que não é mero operador de sua máquina de
trabalho, mas usa o seu jeito de ser nos modos de exercer seu fazer, tomá-lo como
aquele que não se prostra como “massa amorfa” diante das instruções sobre o exercício
de sua atividade, mas negocia nos seus modos de fazer o seu jeito de ser: essa é a
intenção desta investigação.
A existência das normas não-prescritas nos modos de fazer o trabalho,
confrontando as normas prescritas pela organização do trabalho, permite constatar que,
de alguma maneira, as experiências singulares dos trabalhadores são convocadas no
trabalho, e não completamente anuladas.
O intuito desta investigação não é o de discutir questões macrossociológicas,
como seria o caso da análise de uma organização formal. Propõe-se, antes, a examinar
as práticas cotidianas dos trabalhadores comuns, as estratégias utilizadas no seu dia-a-
dia para resolver problemas miúdos, mas que contribuem tanto para a continuidade do
trabalho quanto para atribuir sentido ao modo de fazer a tarefa e exprimir sua própria
subjetividade.
Recorrer à esfera produtiva para analisar a subjetividade, tendo o ambiente
fabril como referencial, é um recurso bastante profícuo do ponto de vista analítico, uma
vez que temas fugidios, como é o caso da subjetividade, ficam mais claros quando se
referem a uma atividade, uma prática, ou seja, a uma experiência real (Schwartz, 1992:
57).
A legitimidade da abordagem, voltada para o âmbito da subjetividade no
trabalho, ganha maior pujança, quando se leva em conta as poucas pesquisas a respeito
do tema nas relações de produção, se comparadas com o grande volume daquelas
voltadas propriamente para questões organizacionais. Sato faz alusão à existência de
poucos estudos nessa área, em especial, sobre a origem de negociações e estratégias
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dos trabalhadores para elaborarem uma maneira própria de realizar suas atividades
(1997: 37).
Dentre as poucas pesquisas brasileiras a respeito da subjetividade no trabalho,
às quais se teve acesso, mais especificamente sobre as micronegociações de normas,
destacam-se dois artigos de Rosa (1999; 2000), um livro recentemente publicado,
editado a partir de sua tese de livre docência (2004), a tese de doutorado (1997) e um
artigo (2002) de Sato. Algumas das idéias dessas autoras serão trazidas à tona na
tentativa de expandir o escopo da análise que será desenvolvida aqui.
O foco desta pesquisa são os valores culturais dos trabalhadores ao
reelaborarem as normas no trabalho e gerirem sentidos (inter)subjetivos para suas
atividades. Desse modo, o olhar é dirigido para o lugar das representações de si no
cotidiano de trabalho dos indivíduos.
Um aspecto importante apresentado pela investigação e que deve ser destacado
consiste no fato de trazer leituras de diversas áreas do conhecimento a respeito da
subjetividade no trabalho, em uma perspectiva interdisciplinar que abrange filosofia,
antropologia, história, psicologia social, ergonomia, porém tratadas pela ótica
sociológica, sempre pensando as implicações para as relações sociais. Discutindo o
papel do sociólogo, Castel nota que a sociologia
não deve ser concebida como um discurso único ou total sobre a
sociedade, mas como o conjunto de tentativas para elucidar as
diferentes configurações problemáticas ou questões sociais, que
coexistem hoje na nossa sociedade (2000: 286).
Embora não se proponha a investigar questões voltadas para a
macrossociologia, este estudo considera que a própria organização fabril é em si
composta por fatos, percepções, experiências e gestões vividos no cotidiano dos
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trabalhadores. Ou seja, o macro é produzido a partir do micro; por decorrência, tratá-lo
já significa discorrer sobre aquele e vice-versa
7
.
Comunga-se aqui a perspectiva da disfunção prática da existência a priori da
melhor maneira de fazer uma atividade, uma vez que cada atividade laboral está
intrinsecamente ligada às condições locais e culturais de uma sociedade (Streeck, 1996:
168); logo, o que se configura nos locais de trabalho são maneiras diferentes de fazer
uma mesma atividade. Portanto, busca-se investigar algumas dessas formas
singularizadas do exercício de atividades operárias, circunscritas no cotidiano dos
trabalhadores de chão de fábrica.
3 Problema da Pesquisa
Durante vivência, por um ano, como operário na linha de montagem de carros
da Citroën, Linhart (1986) relata que desfez a imagem (de pesquisador) que tinha a
respeito do funcionamento da linha com avanços seqüenciais e gestos homogêneos e
monótonos dos operários. O autor-operário testemunha:
[Ao] longo de várias semanas comecei a notar uma certa
diversidade naquilo que, à primeira vista, assemelhava-se a uma
mecânica humana homogênea: um [operário] comedido e preciso,
o outro, nervoso e suando, os avanços [na produção], os atrasos, as
minúsculas táticas de posto, os que largam suas ferramentas entre
cada carro e os que as conservam na mão, “os desligamentos” [das
máquinas] [...] [A] vida revolta-se e resiste. O organismo resiste
[...] A vida: um gesto mais rápido, um braço que [relaxa]
inoportunamente, um passo mais lento, um sopro de irregularidade
[...] tudo o que nesse irrisório reduto de resistência contra o vazio,
o eterno que é o posto de trabalho faz com que ainda haja
acontecimento, embora minúsculo, que ainda haja um tempo,
mesmo que monstruosamente prolongado (Linhart, 1986: 14 e 15,
grifo nosso).
7
- Cf. Schwartz (2003: 187).
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O autor constatou que, mesmo em ambientes de trabalho automatizados, a
atividade operária não é desprovida de certos controles por parte dos trabalhadores,
especialmente os de aceleração e desaceleração dos seus movimentos corporais sobre a
esteira, dessa forma, criando espaços vagos para poderem respirar um pouco, fumar e
até namorar (idem, p. 13 e 30).
Localizados na mesma vertente analítica de Linhart, Crozier e Friedberg
(1977), em suas reflexões acerca da relação entre ator e sistema, ponderam que, em
geral, se tem uma “imagem falsa da ação organizada”, supervalorizando a
racionalidade do funcionamento das organizações (p. 35). Além disso, confirmam que
todas as análises um pouco mais apuradas da vida real das organizações (fábricas ou
mesmo prisões ou asilos) têm revelado que os comportamentos humanos são
complexos e que “escapam do modelo simplista de uma coordenação mecânica ou de
um determinismo simples” (idem).
Os arranjos particulares e complexos, realizados pelos indivíduos no interior
das organizações, não consistem em “simples exceções ao modelo racional” imposto
pela organização, pois mesmo a aparente obediência de um indivíduo para com seu
superior é o resultado e um ato de negociação (Crozier e Friedberg, 1977: 36-37).
Pudemos registrar constatação análoga à desses autores, quando realizamos o
trabalho de campo da pesquisa de mestrado em 2001, como já mencionado acima. Dos
testemunhos dos operários que entrevistamos, emergiram relatos de maneiras
singularizadas de fazerem seu trabalho, adaptações das instruções recebidas para o
cumprimento de suas tarefas às especificidades de cada um.
Os jovens pesquisados expuseram diversas “táticas de posto”, para usar o
termo de Linhart. Recorriam a táticas como: controle da velocidade das máquinas para
aliviar a cadência do trabalho; controle da ordem no manuseio de peças pesadas e
leves; montagem de peças por blocos em vez de unitárias; redução na inspeção da
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qualidade de peças que raramente apresentavam problemas; confecção de protocolos
padrões de qualidade de peças que também quase não demonstravam defeitos;
mudanças de métodos para o encaixe de peças; alternância de posturas físicas para
amenizar articulações repetitivas de partes do corpo e até mesmo o recurso a leituras,
durante as panes no sistema produtivo; sugestões à empresa para a mudança na
constituição física de suas máquinas ou simplesmente desabafos sobre certas atitudes
antiproducentes, para a economia do tempo e para a saúde físico-mental, que tinham de
tomar em função das instruções recebidas para o exercício da tarefa
8
.
Essas personalizações das maneiras de fazer o trabalho foi o tema que mais
nos despertou a atenção naquela ocasião. Todavia, como não constituía o foco daquela
pesquisa, cujo objetivo era analisar o sentido do trabalho para os jovens operários, foi
tratado en passant, de maneira quase residual. Por isso propusemo-nos a investigá-lo
mais detidamente agora na pesquisa de doutorado, inclusive ampliando o sujeito
empírico, que não mais se restringirá a jovens, mas também atingirá adultos, cujas
experiências de trabalho são diferentes e mais extensas, o que fornecerá mais subsídios
para refletir a respeito das diferenças no uso de maneiras singulares do exercício das
tarefas operárias.
Buscamos investigar: as dificuldades que os operários enfrentam para exercer
tarefas cujos procedimentos já são prescritos por outrem; como fazem para contornar
as dificuldades encontradas; como reagem aos imprevistos/acidentes na produção; de
que maneira improvisam procedimentos novos; por que consideram necessário fazê-lo;
quais as razões e conseqüências para o fazer singular; se as adaptações às quais
recorrem os tornam mais aptos ao trabalho, mais realizados ou mais infelizes dado o
cansaço, por exemplo. Enfim, essas são algumas das questões que pudemos levantar na
pesquisa de campo junto aos trabalhadores.
8
- Cf. Silva, 2001: 140-155.
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Prosseguindo nesse rumo de levantamento de dúvidas, a seguir, apresentam-se
alguns problemas sobre o tema estudado que consideramos relevantes para reflexão e
norte da investigação, que, porém, só obtiveram respostas mais precisas ao longo da
realização da pesquisa de campo, efetuada em 2005.
¾ Se existem maneiras diferentes de trabalhadores, pertencentes a postos de trabalhos
e máquinas iguais, fazerem uma mesma atividade fabril, deve ser questionado se o
operário dispõe realmente de controle sobre esse jeito próprio de exercer sua
atividade e de que forma isso se efetiva na prática.
¾ De acordo com a literatura analisada, o desenvolvimento de maneiras melhores de
desenvolver uma atividade conta com a elaboração informal de normas para
executá-la. Mediante essa análise, o problema posto nesta investigação é o de saber
como essas normas são feitas no interior de uma fábrica: se sua decisão é
alcançada individual ou coletivamente, se há conflitos em sua formulação e prática,
e de que forma são vivenciadas entre os diferentes indivíduos.
¾ Com o intuito de compreender a variedade de maneiras pelas quais, no seu
cotidiano, cada indivíduo lida com a necessidade de reformular as normas oficiais,
são averiguadas, na medida do possível, as diferenças entre as atitudes dos
indivíduos cotejadas as suas condições de trabalho.
¾ Conforme o indivíduo busca personalizar o trabalho a sua maneira, além de
objetivar construir certo conforto físico e psíquico na execução da atividade, quais
outros significados essa atitude assume no âmbito dos seus valores e de suas
relações sociais?
¾ O problema central desta pesquisa consiste, portanto, em discernir e analisar de
que forma cada indivíduo, ao personalizar sua atividade reinventando normas para
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27
seu trabalho, desenvolve a gestão de si, de modo a respeitar seus limites pessoais e
culturais.
Por dispor de uma maneira considerada melhor, a organização do trabalho
impõe normas que tentam controlar a atividade do trabalhador, o que, por sua vez,
restringe sua liberdade “operacional”. Todavia, mesmo quando a objetivação das
normas organizacionais tenciona impor-se sobre ele, consideramos que o trabalhador
reage a essa situação. Uma das formas de contorná-la é exercer microcontroles pessoais
e coletivos sobre a velocidade das máquinas, satisfazendo, assim, suas necessidades
pessoais, sejam elas orgânicas (necessidades fisiológicas) ou culturais (princípios
morais, religiosos, pessoais).
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4 Hipóteses
Considerando que a existência de normas não-prescritas, elaboradas pelos
trabalhadores, acena para a manifestação das maneiras singularizadas deles exercerem
suas tarefas nas situações reais de trabalho, revelam-se, então, sentidos culturais e
pessoais dos trabalhadores que merecem compreensão sociológica. Tendo partido dos
problemas da pesquisa levantados acima, tenta-se, a seguir, inferir algumas explicações
“provisórias” sobre possíveis interpretações que se podem construir acerca dos sentidos
do trabalho desvelados nas maneiras singulares do fazer operário.
¾ A hipótese fundamental desta investigação é a de que o trabalhador não se porta
passivamente perante os regulamentos que gerem o modo de fazer sua atividade.
Pelo contrário, na prática, ele negocia os procedimentos operacionais do seu
trabalho. Essas micronegociações configuram-se, notadamente, nos locais de
trabalho onde as normas existentes são imprecisas no relativo ao cotidiano do
trabalhador.
¾ Também se sugere a existência de micronegociações onde há normas rigidamente
estabelecidas. Entretanto, nesse caso, as negociações são realizadas de maneira
oculta, ainda que dotada de atitude consciente, já que o trabalhador sabe que está
burlando as normas prescritas, em sua própria defesa.
¾ Supõe-se, então, que o fazer operário não seja inteiramente esquemático,
padronizado técnica e cientificamente, mesmo em uma linha de produção no chão
de fábrica. Ele é singularizado, adaptável às condições individuais e à
subjetividade dos trabalhadores mediante microcontroles que eles exercem.
¾ Essas manipulações individuais – assumidas pelos trabalhadores para adaptar a si
mesmos a maneira de fazer cada tarefa –, além de buscarem certa comodidade
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psicofísica, talvez resultem em um delineamento ou reforço de sua identificação
com a ocupação.
¾ O recurso da burla das normas formais pode permitir a compensação da opressão
no trabalho e, conseqüentemente, certo equilíbrio nas relações individuais e
sociais, especialmente nas familiares. Esta hipótese se apóia na releitura dos
resultados da nossa pesquisa de mestrado, quando se pôde perceber que alguns
recursos aos quais os trabalhadores recorriam, para amenizarem dificuldades e
sofrimentos encontrados no jeito de fazerem sua atividade, os tornavam menos
propensos a revoltas e, conseqüentemente, mais tolerantes em face das dificuldades
nas relações com chefias e até mesmo com seus familiares.
¾ Finalmente, conjectura-se, ainda, que a produção, pelos trabalhadores, de normas
não-prescritas remete à constituição da própria noção de sujeito histórico,
enquanto singularidade, e não coletividade, demonstrada na esfera do trabalho. O
fato de os trabalhadores não se amoldarem simplesmente à maneira padronizada,
pela organização, de exercerem sua atividade, mas tomarem iniciativas
reconstruindo as instruções operatórias recebidas, de modo a torná-las
singularizadas as suas maneiras possíveis de ser naquela situação de trabalho,
aponta para a insurgência do próprio indivíduo, que se coloca, antes de qualquer
coisa, como sujeito de sua história, ainda que miúda, porque cotidiana.
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5 Apresentação da tese
Embora a apresentação ocupe as primeiras laudas de uma obra, de praxe ela é
a última a ser escrita. Ao tocar os dedos sobre o teclado, tendo de rememorar e
apresentar um pedaço da minha vida que durou cinqüenta e dois meses, ou hum mil e
quinhentos e sessenta dias, a sensação é de estranhamento e de absorção. É como se
durante todo esse longo tempo eu viesse puxando o fio de um novelo de lã, que
guardava algum mistério no final e, de repente o novelo foi desfeito, mas o mistério
não se revelou.
É que o mistério não estava no final do novelo; está no ser humano, que
sempre tem algo de novo para revelar, um novo que jamais acaba. Certamente, essa é
uma missão difícil para o sociólogo: compreender indivíduos que vivem em sociedade,
e que para suportar viver sob suas coerções normativas têm de desenvolver astúcias, na
maioria das vezes enigmáticas.
Alguns fiapos desse enigma estão inscritos no curso desta tese, estratégias de
autodefesa, técnicas do corpo, controle do tempo, dispositivos, engenhocas. Todos
esses temas auxiliam a compreensão, fornecendo uma ligeira idéia da grande aventura
de viver dentro de uma fábrica. Todavia, jamais seremos capazes de esgotar e deslindar
completamente os enigmas que constituem a vida operária.
Essa impossibilidade não nos leva à sensação de impotência, de forma alguma;
muito pelo contrário, ela acena para o convite a novas pesquisas, quiçá inesgotáveis.
Um desafio realmente, pleno de revelações, belezas, surpresas, desalentos sim, mas
promessas, promessas de que ao nos aproximarmos das profundezas da subjetividade
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operária uma ética possa ser não somente anunciada, mas efetivamente creditada: a
recusa da subserviência do ser humano.
Durante esse longo percurso de pesquisa, desde as leituras feitas e refletidas,
notadamente aquelas ligadas à ergologia, mas especialmente as conversas inestimáveis
que se pôde estabelecer com os entrevistados, ficou suficientemente patente a postura
dos operários de gente que recusa, na prática, o jargão de massa-amorfa, e que tem
como compromisso reformular cotidianamente as coerções instituídas pelos outros.
Afora a introdução, que aponta o objetivo, o problema, a justificativa e as
hipóteses da pesquisa, a tese está dividida em duas partes. A primeira concerne à
análise de informações secundárias, tecidas por outros autores, portanto sinaliza o veio
teórico no qual a pesquisa busca caminhar. Já a segunda parte figura os achados
provindos do trabalho de campo acessados diretamente pela pesquisa ou, ainda, a
análise de dados primários com testemunhos vivos dos operários contatados.
O fito da primeira parte da tese foi a de construir um terreno teórico que
apontasse alguns caminhos analíticos possíveis para orientar o trabalho de campo
posterior, ainda que saibamos que este impreterivelmente cria atalhos. Assim, essa
primeira parte está constituída por três capítulos. O primeiro capítulo discute
propriamente as referências teóricas, cuja perspectiva está fortemente marcada pela
abordagem ergológica e análises afins. O segundo capítulo apresenta os registros
metodológicos da pesquisa, as técnicas e as configurações propriamente do trabalho de
campo.
Concernente às análises empíricas, a segunda parte da tese compõe-se de três
capítulos, voltados especificamente para a gestão do trabalho pelos operários. No
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terceiro capítulo a gestão do trabalho refere-se ao ambiente fabril constituído por
relações e espaço. O quarto capítulo volta-se para a caracterização das normas do
trabalho e sua constituição pelo operário, cujo traço maior se encontra em zelar pela
produção protegendo seu corpo ao mesmo tempo. Finalmente, o quinto capítulo
detém-se na gestão de si do operário pari passu a gestão do seu próprio trabalho, por
via de intervenções criando dispositivos e desenvolvendo técnicas do corpo de auto-
proteção física, psíquica e valorativa.
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33
Parte I
ALGUMAS NOÇÕES SOBRE A SUBJETIVIDADE OPERÁRIA
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Apresentação
A primeira parte da tese tem o intuito de situar a abordagem teórico-
metodológica desta pesquisa. Por isso, antes de entrar propriamente na análise das
vivências operárias, contidas na segunda parte, serão apresentadas algumas noções
sobre: gestão e normas no trabalho, sujeito, singularidade, (inter)subjetividade, valores,
pesquisa qualitativa, rede social, contexto das entrevistas e apresentação do universo
empírico.
Para sustentar as noções teóricas sobre o tema trabalho, trazemos reflexões de
diferentes áreas do conhecimento, como: ergologia (Schwartz), ergonomia
(Durrafourg), filosofia da natureza (Canguilhem), história (Certeau), psicologia
(Dejours, Clot e Sato), sociologia (Zarifian, Reynaud, Terssac e Rosa). Com relação às
referências metodológicas, recorremos basicamente à antropologia (Both) e à
sociologia (Thiollent, Schutz e Queiroz).
O foco das discussões teórico-epistemológicas que se seguem consiste em
mostrar que, embora o ambiente de trabalho seja constituído por normas prescritas por
outros, os trabalhadores sempre buscam intervir sobre elas, ainda que infimamente,
conformando-as a suas próprias necessidades e valores. Portanto, os indivíduos são
concebidos aqui na condição de sujeitos de seu próprio cotidiano fabril, meio em que
tanto os coage quanto recebe intervenções deles.
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Cap. 1 Normas, usos e valores no trabalho
Introdução
Buscando esclarecer os debates relativos às normas no trabalho, enquanto
revelação da existência de usos singulares nas atividades, trazemos análises de diversos
estudiosos empenhados em investigar as práticas cotidianas para melhor compreender
as dimensões subjetivas que constituem o mundo do trabalho, por meio das
experiências de indivíduos concretos e ativos.
De acordo com Schwartz, a gestão econômica não está apartada dos modos de
gestão de si mesmos pelos indivíduos, pois não é determinada somente pelo meio
técnico objetivo (1992: 50). Essa compreensão é complementada pelos resultados da
pesquisa de Jean Lojkine, cuja obra se intitula “Le tabou de la gestion” (1996), na qual
ressalta que, nas empresas:
Não há [...] uma única lógica gestionária ou econômica,
mas ao contrário, uma pluralidade de racionalidades que
são portadoras de diferentes visões do trabalho, do homem
e da sociedade. Sendo assim, as melhores proposições, no
domínio da razão e do conhecimento, permaneceriam letra
morta se a massa assalariada não tivesse condições de se
apropriar delas (p. 120-1).
Nesses termos, uma fábrica não é gerida única e exclusivamente pelas normas
objetivas, segundo a racionalidade técnica, mas também as normas subjetivas,
construídas pelos indivíduos no cotidiano do trabalho e seguindo racionalidades
alternativas fazem parte de sua gestão. Essas outras racionalidades são subjetivas, com
sentido voltado para as vivências dos indivíduos, em oposição à racionalidade
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instrumental, voltada unicamente para a eficácia (Dejours, 1996: 118), para a lógica da
técnica e dos sistemas organizacionais no mundo das coisas.
9
Elementos não-técnicos têm influência direta sobre a técnica. A produtividade
de uma organização depende diretamente, por exemplo, da configuração das relações
de cooperação entre as equipes de trabalhadores (Schwartz, 1992: 49). Dessa forma,
maior sincronia da equipe garante maior rentabilidade. Uma organização, portanto, dá
lugar tanto para as necessidades técnicas quanto para:
uma alquimia sempre aleatória na qual as histórias e as
vidas singulares buscam se exprimir positivamente nos
atos coletivos informais requisitados [...] [pelas] indústrias
de processo (idem).
As normas de uma organização não somente se propagam para o interior de
uma sociedade, por intermédio dos indivíduos que atuam dentro dela, como também
ela mesma é embebida pelos diferentes valores dessa sociedade. Mispelblom considera
que as situações de trabalho são intrinsecamente imbricadas com a realidade fora do
trabalho, sendo que ambas as esferas se relacionam por co-presença, e não por
interação, ou seja, a realidade externa ao trabalho constitui o próprio trabalho (1999:
240). Explicitando esse ponto de análise, o autor expõe que dentro das empresas
9
- Dejours distingue duas racionalidades, nos atos de transgressão dos indivíduos às normas no trabalho: a
racionalidade instrumental que diz respeito à relação de eficácia e a racionalidade subjetiva que concerne à
realização de si do indivíduo (1996: 118). Ao que tudo indica, as duas expressões são tomadas de empréstimo
a Habermas (pois, embora, naquele momento, ele não faça menção direta a esse autor, cita-o na bibliografia
final da coletânea), que trata de racionalidades referindo-as a quatro modos de agir diferentes, quais sejam: o
teleológico, o dramatúrgico, o regulado por normas e o comunicacional. É para os dois primeiros modos de
agir que as duas racionalidades referidas por Dejours convergem. O agir teleológico é aquele em que o
indivíduo calcula de maneira utilitarista, escolhendo meios para chegar a dado fim; sua existência encontra-se
no mundo objetivo (coisas). Já no agir dramatúrgico o indivíduo constitui sua auto-representação recorrendo à
expressão de suas próprias experiências vividas; portanto, pertence ao mundo subjetivo (vivências,
sentimentos) (Habermas, 1987: 101-2 e 116).
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[os trabalhadores] apóiam-se em valores de diferentes instituições,
por meio das quais sua subjetividade é formada: normas educativas
e competências (família e escola), espírito de equipe (esporte),
civismo (esfera política), comunicação (mídia), crenças (religião e
por vezes seitas), normas de saúde (medicina), critérios de
qualidade ecológica, etc (idem, p. 237-8).
Dessa forma, o autor acena que a própria empresa constitui uma mistura e
combinação de elementos existentes fora dela, mas geridos de acordo com objetivos
específicos que lhe são internos. Sua análise assenta-se na constatação de que as
práticas sociais sejam apenas supostamente externas ao trabalho, uma vez que,
efetivamente, constituem as próprias situações de trabalho, sendo impossível, portanto,
separar o trabalho de um lado e o social ou a sociedade de outro (idem, p. 241 e 256).
É justamente essa a questão que esta pesquisa se propõe analisar: trata-se de
avaliar a configuração dos valores sociais que os indivíduos tanto trazem para o espaço
fabril quanto dele levam, manifesta em seus atos e na maneira de fazer suas atividades.
A automatização de um processo de trabalho é sempre parcial, pois, por mais
refinados que sejam seus recursos técnicos, sempre há espaço para o imprevisto, o
aleatório, a incerteza. Deparando com essas situações, não previstas pelas normas
oficiais, na prática, os trabalhadores são obrigados a elaborar uma solução. Assim,
recorrer à criação de normas não-prescritas é condição intrínseca à produção (Reynaud,
1992: 10), inclusive para sua própria existência e continuidade.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
38
1.1 Considerações sobre a organização científica do trabalho
Para melhor explicitar o contexto histórico de onde parte o “objeto” da
pesquisa, fazem-se necessários alguns apontamentos a respeito da organização
científica do trabalho ou, mais especificamente, do taylorismo.
Na acepção taylorista, o modo de realizar o trabalho é o de execução de tarefas
pelos operários; trata-se tão somente de operar instruções previamente concebidas por
uma equipe especializada. Entretanto, foi preciso haver algumas transformações sociais
para que esse sistema de organização e método do trabalho conseguisse o acesso às
maneiras de os operários fazerem sua atividade.
Antes do sistema taylorista e sua racionalidade operacional se instalarem nos
ambientes de trabalho, os operários de ofícios ainda detinham o saber prático, relativo
à forma de trabalhar, que trouxeram das antigas corporações para as manufaturas
10
.
Esse saber prático, ao mesmo tempo em que conferia poder aos operários, enfraquecia
engenheiros e economistas que, por desconhecê-lo, ficavam impotentes no controle dos
operários, conseqüentemente do mercado de trabalho, por sua vez controlado pelos
sindicatos de ofício (Zarifian, 1995: 18).
Interessados na hegemonia desse controle, no século XIX, engenheiros
mecânicos norte-americanos criaram o taylorismo, cujo principal expoente foi de F. W.
Taylor. Para alcançar o controle dos trabalhadores, o primeiro passo dessa organização
científica do trabalho era justamente “transformar a atividade industrial ‘em
10
- O processo de racionalização operacional do trabalho, que culminou na “perda” do conhecimento do
trabalhador devida sua fragmentação, também ocorreu em setores em que a tecnologia é menos desenvolvida
e, conseqüentemente, a prescrição das normas do trabalho é menos rigorosa, como no caso da construção
civil. Kowarick trata dessa “perda de propriedades cognitivas” dos trabalhadores migrantes na construção
civil da cidade de São Paulo que, mesmo sabendo construir casas do “soalho ao telhado”, tiveram seus
conhecimentos parcializados e foram transformados em serventes de pedreiro (1979: 113).
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39
operações’” (idem). Do ponto de vista prático, utilizando o vocabulário de Zarifian,
essa transformação significava:
desenvolver, nas empresas, uma nova categoria de
trabalho, cujo objeto é precisamente... a definição e a
prescrição, sob forma de tarefas, de seqüência de
operações de trabalho [...] Essa atividade de concepção
[foi feita por] técnicos e engenheiros, que com a ajuda de
métodos analíticos aplicados de maneira sistemática, a
partir do balanço de experiência, [concretizaram]
operações e seus encadeamentos otimizados em termos de
rapidez para cada categoria de trabalho. As operações de
trabalho, uma vez objetivadas, vão retornar ao operário
sob a forma de lista de tarefas, para a realização das quais
ele será empregado (idem).
Indagando-se sobre quais foram, afinal, os meios empregados pelo taylorismo
para que os operários de ofício “aceitassem” se desprender de seus saberes e poder,
Zarifian responde: afrontamentos, demissões, contratação de imigrantes camponeses,
mas, decisivamente, a proposta de Taylor aos operários. Esta consistia em “aceitar
cumprir ‘docilmente’ as tarefas prescritas”, beneficiando-se com a participação no
aumento da produtividade mediante aumentos salariais; ou seja, “trocar o poder pelo
salário”, destaca Zarifian (idem).
Dessa maneira, o taylorismo, expropriando o savoir-faire dos operários,
separou a execução do trabalho de sua concepção, inovou a organização do trabalho,
passou a controlar a contratação de mão-de-obra e modificou a própria concepção do
trabalho. Assim “o conceito de operação de trabalho [nasceu] de um verdadeiro ‘golpe’
de força, violento, de uma violência separando dois seres: o trabalhador e o trabalho”
(idem, p. 14). Uma nova racionalidade produtiva se instaurou: a da normatização do
trabalho, que foi colocada em prática pelo conceito de operação.
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40
Operação significa trabalho objetivado, descrito e colocado sob a forma de
instruções, organizado independentemente da pessoa, visando sua adequação à
atividade de trabalho. O trabalho tornou-se, então, um objeto, “objetivado e
objetivável, [...] vinculado a um lugar: o posto de trabalho” (idem, p. 13).
Porém, como toda concepção é superável, tão logo suas falhas foram
apontadas, o modelo de operações inventado pelo taylorismo entrou em crise e teve
seus pilares desmontados.
Um dos autores que problematizou a falência desse modelo foi Georges
Friedmann. Comentando a obra desse autor, “Problèmes humains du machinisme
industriel” (1956), Canguilhem (1947) destaca que a contribuição filosófica de
Friedmann foi a de desamarrar “o destino do humanismo [...] do destino de um
racionalismo entendido como [...] método de matematização da experiência” (p. 122).
A racionalização instaurada por Taylor foi, prossegue Canguilhem, a do “homem
escravizado pela razão e não o reino da razão escravizada pelo homem”, ou ainda a de
conceber “o homem como máquina corretamente engrenado com outras máquinas e
como um ser vivo simplificado [não complexo], em seus interesses e reações relativas
ao meio” (idem).
Canguilhem destaca ainda que as insuficiências da racionalização taylorista,
tanto metodológicas quanto doutrinais, consistiam na impossibilidade de pura e
simplesmente adequar o homem à máquina, tratando-o apenas sob a ótica métrica e
quantitativa, pois “a subjetividade [do trabalhador] reaparece em todo o plano em que
se tenta negá-la” (idem, p. 123).
Outra grande contribuição trazida por Friedmann, segundo Canguilhem, foi a
constatação de “que não há uma mas as racionalizações, não há uma mas as normas”;
estando a razão de tais “pluralismos de normas” vinculada ao “pluralismo de valores”
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41
(idem, p. 132). Por conseguinte, de seu ponto de vista, ficava invalidado o
racionalismo taylorista, que defende a idéia da aplicação do melhor método (the best
way) para cada tarefa visando alcançar melhores desempenhos.
A partir da perspectiva desenvolvida por Friedmann, as investigações sobre o
meio e as normas dos indivíduos no trabalho ganharam um significado inteiramente
diferente: passou-se a considerar “o primado do humano sobre o mecânico, o primado
do social sobre o humano” (idem, p. 135). Ou, como prefere o próprio Canguilhem: “o
primado do vital sobre o mecânico, o primado dos valores sobre a vida” (idem). Assim,
o conceito de operação mudou para o de “acontecimento”, como nomeia Zarifian, ou
para “usos de si”, segundo Schwartz.
1.2 Da operação ao acontecimento
Enquanto a operação se apresenta na esfera produtiva como um movimento
objetivado, padronizado, pré-descritível, previsível e linear, o acontecimento, que
ocorre no real rompendo com a regularidade dos fenômenos, é exatamente o oposto
daquele (Zarifian, 1995: 21-22).
Para mostrar de forma mais concreta em que consiste um acontecimento,
Zarifian cita a pane como exemplo, devido a sua clareza e freqüência na vida industrial
moderna. O autor aponta cinco características do acontecimento pane:
indecifrabilidade, singularidade, imprevisibilidade, importância e imanência à situação.
No momento em que a pane ocorre, ela é indecifrável pelo fato de sua causa
ser desconhecida. Não se conhecem as razões que levaram até ela; portanto, o seu
passado é obscuro, sabe-se apenas dos seus efeitos, do seu presente. O acontecimento é
singular porque está situado fora das normas previstas. É imprevisível por romper a
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42
regularidade da situação esperada. Também é caracterizado como importante, uma vez
que os membros sociais o considerem não banal e, por isso, relevante. Assim, nota
Zarifian, para que um acontecimento ocorra no mundo objetivo, é preciso antes ocorrer
no mundo social, ou seja, a pane só é reconhecida como acontecimento no mundo das
coisas se os membros sociais, pertencentes à situação de sua ocorrência, a reconhecem
como importante, como acontecimento e não mero fato
11
. Por fim, o autor argumenta
que o acontecimento é sempre inerente a uma dada situação, aquela na qual ocorreu
(idem, p. 22-30).
Esse novo ângulo interpretativo das situações no ambiente de trabalho
problematiza a suposta linearidade das maneiras de desenvolver uma atividade e
questiona a própria concepção do trabalho. Altera-se a forma de pensar o trabalho
humano: ele “não pode mais ser resumido e objetivado em uma lista de operações
físicas (ou mesmo mentais)”, uma vez que “é uma mobilização prática da inteligência
em uma situação” (idem, p. 35).
Muito embora Friedmann tenha contribuído sobremaneira com seus estudos de
crítica ao taylorismo, superando análises mecanicistas do trabalho, Canguilhem
observa que ele não chegou a perceber que os operários só considerariam normais
aquelas condições de trabalho estabelecidas por eles mesmos e referidas aos seus
próprios valores (Canguilhem, 1947: 134).
Os operários captam o sentido do seu trabalho e situam-se [...] no
seio do novo meio [...] eles referem o meio a eles mesmos ao
11
- Tomando de empréstimo um caso referido por Dejours (1999), pode-se exemplificar a diferença entre fato e
acontecimento com a situação vivida por um engenheiro que queria uma investigação para saber quais foram
as razões que levaram uma cancela a não abaixar quando um trem passou por um cruzamento de nível.
Considerando que o caso em questão não resultou em nenhum acidente com danos físicos, a equipe do
engenheiro, recém contratado, recusou-se a mobilizar recursos para levar adiante a proposta de investigação
sobre o incidente (p. 31-33). Ou seja, a falha mecânica foi um fato constatado no mundo objetivo, pois a
cancela não abaixou para interditar a passagem de carros e de pessoas, porém não foi reconhecida como um
acontecimento pelos membros daquela equipe, uma vez que não houve vítimas e nem prejuízos; logo, foi dada
como irrelevante.
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43
mesmo tempo em que se submetem as suas exigências. O operário
deixa de sentir-se objeto em um meio de coerção para perceber-se
como sujeito em um meio de organização (idem, p. 129).
Defensor da idéia do indivíduo como sujeito de sua história, em uma frase
lapidar, Canguilhem afirma que: “Todo homem quer ser sujeito de suas normas” (p.
135). Corroborando essa linha de pensamento, Clot (1995) assegura que “aqueles que
trabalham sempre buscam dar sentido as suas vidas. Isso porque na realidade não há
atividade sem sujeito” (p. 147). Não há, portanto, normas definitivas e universais, uma
vez que o ato de fazer normas não é prerrogativa de alguém, menos ainda de uma
organização. Dessa constatação é extraída a noção do trabalhador enquanto construtor
de suas próprias normas ou, no mínimo, articulador e adaptador das maneiras de fazer
sua atividade.
1.3 Normas prescritas e normas não-prescritas
Considerando que “a melhor maneira” (the best way), designada pelo
taylorismo, se apresenta como pretensão não realizável no cotidiano fabril
12
, o que
funciona efetivamente em uma fábrica é “uma maneira melhor” (a better way), por sua
vez variável de acordo com cada local e contexto de trabalho (Reynaud, 1992: 12). Os
contrastes existentes nos diferentes locais de trabalho têm como desfecho a formulação
das mais diversas normas.
Reynaud (1992) observa que há duas fontes de normas no ambiente de
trabalho: a oficial, fornecida pela organização, e a oficiosa, nascida da própria prática,
sem elaboração por escrito. Pontuando essas diferentes normas, também comenta que
12
- Cf. Schwartz, que discorda da visão de que a maneira mais adequada de abordar a questão do sujeito em
situação de trabalho seja aquela que, ao modo taylorista, reduz o indivíduo a simples parte dos viventes. Para
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44
aparentemente se trata de algo bastante simples: a existência de dois sistemas, um
formal e o outro informal (Reynaud, 1989). O formal ou oficial é constituído pelas
normas registradas nos regulamentos, códigos internos ou definições dos postos de
trabalho; o informal consiste nas relações reais dos trabalhadores, percebidas somente
por observadores atentos e pacientes que buscam descortinar o que “realmente [está]
por detrás das ficções oficiais” (p. 103).
Apurando sua análise crítica rumo à substância desses dois sistemas de
regulação, esse autor desvela seu significado, classificando-os como real (informal) e
fictício (formal) (Reynaud, 1989).
[As] prescrições que guiam o trabalho real repousam sobre
um conhecimento das realidades da produção, uma
informação, uma análise, uma visão dos laços entre
diferentes elementos do trabalho que escaparam ao estudo
oficial. Sem esse conhecimento real das tarefas, empírico e
mal teorizado ou mal explicitado racionalmente, a
máquina “efetivamente” não funciona, a tecnologia
“moderna” não pode ser transmitida eficazmente, o
equipamento, perfeitamente no ponto, atola-se em panes e
imprevistos. A ciência que o trabalhador tem do trabalho
não tem prestígio da técnica sábia, mas ela é bem fundada,
ela é indispensável. Por trás das tarefas, definidas do alto,
em termos muito simples, esconde-se uma grande
complexidade e uma real competência (idem, p. 107-8).
O autor adverte para a necessidade de estar atento à esfera das normas reais,
pois é justamente para essa direção que o sociólogo das organizações deve voltar
cautelosamente seu olhar, afastando embustes das aparências e de teorias, buscando
desvendar as práticas reais dos indivíduos (idem, p. 103).
o autor, o indivíduo é constituído de valores sociais inscritos na história, por sua vez atravessada por
antagonismos marcados por jogos simbólicos no trabalho (1992: 58).
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45
Dada a natureza de interação social entre esses dois sistemas de normas,
Reynaud prefere tratá-los por “regulação de controle” e “regulação autônoma”: os
“‘controladores’ tentam impor suas normas aos controlados, que se esforçam para
conservar a autonomia” (1989: 106). Essa relação controle-autonomia tem caráter
bastante diversificado e faz-se presente sempre que há intervenção, de um indivíduo ou
de um grupo, no funcionamento, na organização, na atividade de outrem, situação,
aliás, muito corrente em uma organização (idem).
Na prática, as normas informais são adicionadas às formais, de modo a
complementar suas lacunas e imperfeições. Muito embora essa relação de simbiose
objetive resultados profícuos, tanto para a produção quanto para o bem-estar do
trabalhador, deflagram-se conflitos entre os trabalhadores e o corpo administrativo,
incumbido de velar pela obediência às normas prescritas (Reynaud, 1992: 12).
Notadamente é dessa relação assimétrica entre controlador e controlado que se
produzem os conflitos no ambiente de trabalho (idem, 1989: 107).
Não obstante essa assimetria, é somente pela infração das normas prescritas
que as não-prescritas se podem desenvolver; por isso, freqüentemente, têm caráter
“clandestino”, sendo praticadas às ocultas do controle oficial.
Isso não significa que existam somente esses dois tipos de normas. Pois, além
deles, existem as normas efetivas, aquelas que realmente funcionam na prática (1992:
12). Ou seja, as normas efetivas caracterizam-se pela síntese das duas primeiras;
nascem de acordos, são elaboradas cotidiana e continuamente pelos trabalhadores.
Todavia, haja vista a extrema dificuldade em estabelecer uma fronteira precisa entre
normas não-prescritas e efetivas e para tornar nossa comunicação mais compreensível,
atribuir-se-á o mesmo sentido para normas não-prescritas, efetivas, oficiosas e
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informais; todas elas remetem, portanto, ainda que com certas nuances, às adaptações
que os trabalhadores fazem das normas prescritas.
A concepção de que o indivíduo reinventa sua maneira de trabalhar, quando
cria normas sobre o modo de fazer seu trabalho, vem questionar a idéia que prevalece
nas análises clássicas sobre as organizações, de que a atividade fabril se reduz a gestos
observáveis de indivíduos isolados do coletivo, dotados de uma forma invariável e
intercambiável (Terssac, 1992: 263). Ao contrio dessa abordagem, o que se verifica
no interior de uma fábrica, se olhada microscopicamente, é que os gestos são
adaptáveis e reinventados pelos indivíduos.
A reinvenção da maneira de fazer uma atividade laboral ocorre tanto em
função das características pessoais do indivíduo (ritmo, movimento, raciocínio,
disciplina) quanto dos imprevistos surgidos em dada tarefa e a cada momento
diferente. Devido a esses contrastes individuais e ao processo de trabalho que as
prescrições oficiais não conseguem contemplar
13
é que, na prática, o indivíduo
reformula as normas de como fazer sua atividade no trabalho.
Desse modo, as próprias deficiências deixadas pelas normas oficiais convidam
os indivíduos a subverterem as normas prescritas. A conclusão de Terssac é a de que,
progressivamente, o próprio trabalho exige “executantes” menos submissos às normas
oficiais e mais propensos à criação de normas pertinentes a cada momento (1992: 263).
Essa análise tem pleno sentido considerando-se que, dado o não funcionamento pleno
das normas prescritas, a elaboração das não-prescritas é condição para o próprio
prosseguimento do trabalho.
13
- Cf. Sato, 1997: 10.
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Tendo como parâmetro a existência dessa variabilidade de normas no interior
do espaço produtivo, ocasionada pela diversidade de interesses e práticas individuais,
Terssac também concebe o sistema social como sendo constituído por conjuntos de
valores múltiplos e mutantes, portanto, de diferentes racionalidades (1992: 267).
A identificação da existência de normas não-prescritas não significa a negação
da existência de uma ordem organizacional. Antes, trata-se de afirmar que essa é
construída, mantida e renovada pelos seus membros (Felix, 2001: 4).
Práticas aparentemente triviais e desprovidas de interesse revelam a base sobre
a qual se assenta uma organização (Felix, 2001: 4). É sobre essas práticas informais
dos trabalhadores que se sustentam a própria existência da organização fabril, o sentido
das relações sociais vividas na fábrica e, acima de tudo, o espaço para a subjetividade
do trabalhador no ambiente de trabalho.
Na acepção de Clot (1999), o indivíduo no trabalho não se reduz a um
intermediário entre uma organização prescritiva e um conjunto de constrangimentos
biológicos, mas, antes, a atividade do trabalho convoca o indivíduo por inteiro
14
. A
atividade é realizada graças a constantes negociações de normas, por parte dos
indivíduos que, ao exercer uma tarefa dotada de instruções prévias, elaboram diversas
outras normas para personalizar sua operacionalização. Trata-se, de acordo com o
autor, de um processo intenso de subjetivação, no qual, constantemente, o trabalhador
realiza uma atividade sobre si mesmo, visando a se desprender dos conflitos que os
critérios oficiais acarretam na prática.
Quem trabalha não cessa de decifrar, por trás da aparência lisa da
prescrição, a globalidade da experiência social que é soldada por
esse compromisso. É em resposta a essa atividade híbrida, cuja
tarefa prescrita é apenas uma superfície tangível, que os sujeitos do
14
- V. também Schwartz, 1992: 46.
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48
trabalho convocam sua própria experiência advinda da produção e
da vida [...] [A] forma técnica da tarefa, por meio da qual o
trabalho é realizado, é subjetivada pela dramaturgia vital onde se
integram aqueles que trabalham, antes de qualquer assimilação
especificamente cognitiva (Clot, 1995: 213).
Seguindo nessa mesma esteira de pensamento, Dejours salienta que o trabalho
é o medidor, por excelência, da relação entre sujeito e sociedade, operando as condutas
humanas e efetuando o jogo material e simbólico dos conflitos concretos entre
subjetividades singulares e relações de dominação (2000a: 329).
No trabalho, as práticas sociais constituem-se pela composição de experiências
singulares dos indivíduos e não somente pelo sofrimento ocasionado por sua cadência
e sua intensidade. O trabalho coloca-se, assim, como uma atividade social relevante, na
qual se inscreve a subjetividade do trabalhador. (Clot, 1999; 1995)
A reinvenção cotidiana e singular, pelos trabalhadores, do modo de fazer cada
atividade propicia experiências de enriquecimento por meio das tarefas realizadas e,
com isso, também desenvolve condições, a princípio individuais, de melhora para essa
realização. Conseqüentemente, burlar as normas formais consiste em prática política
que, embora, intencionalmente, não disponha desse caráter, pode colocar-se como
germe para uma futura organização política entre os trabalhadores.
No plano coletivo [...] a infração constatada de ontem pode se
tornar a regra de amanhã e fornecer a ocasião para a evolução das
[...] normas organizacionais explícitas (Girin e Grosjean, 1996: 8).
A reapropriação pelo indivíduo do jeito de fazer sua tarefa é uma estratégia
para evitar a vivência do sofrimento – seja porque a cadência dos movimentos pode
provocar afecções ósteo-musculares seja em função da própria monotonia da tarefa – e
experimentar o prazer no ato de trabalhar. Porém, não se trata de um prazer buscado
enquanto objetivo, mas alcançado secundariamente. Conforme Dejours, a experiência
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49
do prazer no trabalho é obtida por meio da transformação do sofrimento em prazer. É a
busca de uma identidade singularizada que, numa transgressão defensiva, leva o
indivíduo a elaborar normas práticas sobre seu modo de trabalhar, evitando o
sofrimento (2000a: 330).
Nesses termos, o trabalho é apresentado não como relação de dominação, na
qual somente a alienação é gerada, mas é também relação de subversão (Dejours,
2000a: 331), que pode ser percebida na criação de novas normas pelos trabalhadores,
para fazer suas tarefas de maneira menos agressiva ao seu corpo, aos seus valores e à
sua subjetividade.
Parafraseando Dejours, uma organização não funciona mediante uma lógica
implacável; é necessário que haja o consentimento das pessoas que atuam nela para
realizar ajustamentos entre as normas prescritas e as práticas. Para isso, conta-se com:
inventividade, iniciativa, habilidade, engenhosidade, em resumo
toda a inteligência humana no singular e no coletivo, sem a qual
nenhuma produção poderia sair (2000a: 333).
Girin e Grosjean também consideram que a realização efetiva de uma atividade
nunca se acomoda a uma reverência total às normas prescritas. Estas são interpretadas,
ajustadas ou até ignoradas e violadas pelos indivíduos no ambiente de trabalho. Assim,
os autores asseguram que, de acordo com numerosas observações empíricas, “a regra,
no sentido da regularidade observada, é a transgressão das normas” (1996: 65).
1.4 Tipologia de transgressão às normas
Tendo como fito uma melhor compreensão dos vários gêneros de transgressões
às normas do trabalho, Dejours constrói uma tipologia que as classifica em quatro:
inevitável, defensiva, para-si e de má-fé.
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A transgressão inevitável é concebida como aquela cometida em ambiente de
trabalho nos quais os próprios regulamentos contêm contradições e lacunas e o
indivíduo, para poder trabalhar, vê-se compelido a infringir as normas existentes e a
construir novas.
No segundo gênero de transgressão está a transgressão defensiva, em que as
normas são violadas como forma de autoproteção em relação aos males psicofísicos
que ameaçam os indivíduos no trabalho, como já citado antes.
A terceira transgressão é a transgressão para-si, que consiste na infração às
normas oficiais para realizar suas convicções e prazeres, sem intenção de causar dano a
alguém.
Finalmente, a quarta e última é a transgressão de má-fé, cujo traço é a trapaça.
É aquela que os indivíduos cometem com a intenção de, efetivamente, prejudicar
alguém (1996: 108-110).
Conforme Dejours, as pesquisas empíricas desenvolvidas em ambientes de
trabalho constatam principalmente o primeiro tipo, pois as “transgressões [...]
ordinárias no trabalho têm, geralmente, uma visão [...] estratégica: a eficácia” (1996:
116).
Não obstante a observação de Dejours sobre a transgressão inevitável, esta
pesquisa voltará o olhar para todos os tipos que se revelarem na prática, sem, portanto,
privilegiar nenhuma a priori.
1.5 Alguns casos empíricos de transgressão
Na tentativa de mostrar concretamente a tipologia apontada acima, com fatos
retirados de situações reais de trabalho, não restritos somente à apresentação de
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elaborações teóricas, trazem-se, a seguir, algumas práticas de transgressão muito
ilustrativas, extraídas das pesquisas de Poirot-Delpech (1996), Faïta & Duc (1996) e
Monjardet (1996).
Essas pesquisas abrangeram três categorias de trabalhadores e situações de
trabalho bastante diversificadas, uma de agentes de controle aéreo, outra de
trabalhadores da construção civil e a última, de policiais. Essa variedade de sujeitos e
ambientes de trabalho confirma o argumento de Schwartz, já citado, de que as gestões
singulares no trabalho fazem-se presentes em toda forma de atividade [e] em qualquer
circunstância” (1996a: 151).
A transgressão inevitável das normas, tida como condição para o indivíduo
poder trabalhar e a organização funcionar, é citada por Poirot-Delpech em sua pesquisa
a respeito do controle do tráfego aéreo. A autora destacou que a violação das normas
que prescreviam o espaçamento entre os aeroplanos era freqüentemente cometida pelos
controladores. Para garantir a fluidez dos aeroplanos, eles tinham de diminuir o
espaçamento prescrito, porém conciliando fluidez com segurança do tráfego (1996:
42).
Poirot-Delpech destaca que a transgressão dessas normas é tão necessária que,
quando os controladores precisam se mobilizar para reivindicar direitos trabalhistas,
basta que as sigam rigorosamente, praticando a chamada operação padrão, para que
ocorram com isso fortes conseqüências para o refluxo do tráfego (1996: 42).
Assim, a categoria dos controladores produz suas próprias normas, gerindo seu
tempo, a técnica e suas relações com seres e máquinas. Todavia, Poirot-Delpech
constata que essa situação de desvio das normas não lhes gera culpabilidade, do ponto
de vista subjetivo, uma vez que não a vivenciam como transgressão, pois seu quadro de
referência regulamentar é aquele imposto pelo grupo e não pela administração. As
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normas estabelecidas pelos controladores são tão decisivas que aqueles que se recusam
a segui-las são obrigados a se inserirem em outra equipe, já que cada grupo dispõe de
normas diferentes (1996: 47-7).
Quando cometida coletivamente, como no caso desses controladores aéreos, a
transgressão às normas não tem um caráter arbitrário. Ela pode ser regrada e regulada
de maneira formal, mas não menos real, devido à coesão do coletivo que constrói e
traduz um sentido para sua profissão (Poirot-Delpech, 1996: 50).
Os trabalhadores também recorrem à transgressão inevitável em outra
circunstância, não exatamente para lograr as já prescritas, mas para torná-las mais
precisas, uma vez que as normas prescritas são incompletas em vista de as próprias
condições de trabalho serem imprecisas e, notadamente, pouco reguladas por uma
tecnologia rigorosa.
Essa imprecisão das normas prescritas foi detectada por Faïta e Duc no setor da
construção civil
15
. O fato de a organização não prescrever as normas a serem seguidas
pelos trabalhadores no canteiro de obras deixava-lhes aberta a incumbência de fazê-las
na prática, conforme o savoir-faire de cada trabalhador e equipe (1996: 53).
Por dizer respeito a trabalhadores que atuam em equipe, a criação de normas –
e sua interpretação para a realização do trabalho – necessita de comunicação entre os
indivíduos, sendo crucial o papel da linguagem
16
em suas relações sociais. A função da
linguagem assenta-se na necessidade da construção dos sentidos dessas ações e de sua
objetivação por outrem. Destarte, no canteiro de obras, a linguagem é praticada como
um vetor de regulação tanto do processo quanto das relações de trabalho, permitindo
15
- Cf. também a respeito do trabalho na construção civil, a obra de Marcelle Duc (2002).
16
- Sobre a análise do discurso de práticas informais, ver o artigo de Felix, 2001. Sobre a linguagem enquanto
signo entre os trabalhadores, conferir Géraud, 2002. Acerca de alguns pontos problemáticos na relação entre
linguagem e trabalho, especialmente os impasses metodológicos, conferir ainda Schwartz, 2003: 137.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
53
controlar o contexto do trabalho, suas condições de realização, as cooperações entre os
indivíduos e os saberes individuais e coletivo (Faïta e Duc, 1996: 61-2).
Apesar de, nas organizações, haver um organograma, preciso ou não, fixando
as maneiras de proceder uma tarefa, os trabalhadores recriam uma linguagem da
situação, interpretam as instruções oficiais e “reconfiguram no real o desenvolvimento
efetivo das operações” (Schwartz, 1992: 224).
O trabalho é concebido, por Faïta e Duc, como resultado de uma relação
dialética entre o programa impreciso da administração e a lógica de apropriação das
normas buscadas, no vivido, pelos trabalhadores. Essa apropriação acaba por
configurar o canteiro de obras como um espaço de trabalho que sustenta a autonomia
de decisão dos trabalhadores sobre o modo de fazer seu trabalho e dominar a produção
(1996: 80).
Esse caráter frouxo das normas favorece a transferência de experiências
individuais para as coletivas. Dessa maneira, a coesão do grupo constrói-se, na prática,
pela implantação e transmissão de normas criadas entre os próprios trabalhadores
(idem, p. 81). Assim, o ambiente de trabalho propicia e delineia o tipo de relação social
a ser constituído.
Entrando no campo jurídico, Monjardet faz alusão a uma terceira situação de
imprecisão de normas, que leva a categoria dos policiais a recorrer à elaboração de
outras, não se pautando em sua eficácia prática – como no caso dos operários da
construção civil –, mas em uma deontologia (sistema moral) individual e coletiva
(1996: 93). A reinvenção das normas, nesse caso, caracteriza-se pela autonomia dos
indivíduos de interpretar as leis segundo seus preceitos valorativos; logo, estão
carregadas dos sentidos culturais e subjetivos daqueles que têm de interpretá-las.
Monjardet salienta que:
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54
A deontologia é que fala do silêncio dos textos quando a
lei é indecisa, contraditória, inaplicável. Ela não seria,
então, codificada, ou mais claramente, quando ela o é (sob
forma de código, decreto, regulamento) deixa ainda aberto
o lugar para uma regra informal, uma metadeontologia
(1996: 93).
As brechas das normas autorizam os indivíduos a delineá-las conforme seus
valores morais. Assim, apesar de o trabalho policial ser um dos mais constituídos por
normas, é também, paradoxalmente, o que mais requer o uso de uma deontologia,
apelando a valores que vão além das normas objetivas prescritas (Monjardet, 1996:
93).
1.6 Uma crítica à transgressão da ordem social?
Thuderoz (1996), em abordagem que tem certa nuance quando comparada
àquela apresentada por Poirot-Delpech (1996), Faïta & Duc (1996), Monjardet (1996)
e Dejours (1996), considera que é mister ir além da idéia de conceber o jogo social
como mero mecanismo de transgressão de normas. Para esse autor, as transgressões
não são mecanismos episódicos, que delimitam a relação tempo-espaço e funcionam
como reveladores de crise, mas são inerentes ao mundo social, compõem sua própria
estruturação.
Logo, a transgressão às normas, em vez de ser uma rachadura na harmonia do
tecido social, apresenta-se como “um modo permanente de regulação social, uma
maneira costumeira para a regra funcionar” (Thuderoz, 1996: 123).
Nessa perspectiva, os indivíduos não estariam transgredindo as normas, mas
renegociando continuamente a própria ordem social, levando à configuração de
múltiplos arranjos circunscritos em locais e relações sociais diversas (idem, p. 124). O
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55
autor concebe, assim, que a capacidade dos indivíduos de produzirem julgamentos e
comportamentos adequados, de acordo com cada situação, é o princípio das próprias
interações sociais (idem, p. 125). As relações sociais constituem-se, portanto, não
somente por atitudes que aderem às normas formais, mas também por aquelas que
improvisam novas normas.
Então, o mundo social no trabalho configura-se tanto por transgressão quanto
por negociação: o indivíduo transgride quando executa sua atividade de maneira
diferente da prescrita; porém, na medida em que esse ato surte um efeito profícuo para
a organização e para o indivíduo, torna-se uma negociação.
Mas, afinal, transgredir as normas para negociar o quê? Thuderoz traz a lume
uma discussão filosófica acerca do tema, apresentando a relação entre sujeito e objeto
no jogo dessas relações sociais.
Toda transgressão e negociação apóia-se em objetos, cristalizando-se neles ou
em seu nome. Por conseguinte, jogar com normas sociais significa jogar com objetos.
Todavia, não se trata somente de objetos físicos (ex.: um cartão de ponto): envolvem-
se aí também objetos conceituais (ex.: um horário de trabalho). Thuderoz recorre aos
objetos por considerá-los funcionais, no sentido de suportarem e materializarem “os
princípios éticos, os valores e as representações” (idem, p. 127).
Dessa conjunção sentido-objeto avulta a análise de que o sentido conferido ao
objeto depende das posições sociais ocupadas pelos indivíduos e da natureza de suas
interações sociais (idem). Ou, ainda, os objetos têm sentidos diferentes para cada
indivíduo, notadamente por serem definidos pela esfera subjetiva concernente às
percepções individuais e às datações históricas.
Conforme se pode depreender da fala de Thuderoz, a recusa de decisões
impostas, por parte dos trabalhadores, remete à rejeição de objetos:
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56
A relação com as coisas é uma relação de confrontamento e ela
está no princípio do confrontamento entre os homens. Assim,
contestar uma medida, tomada pela direção de uma empresa,
significa contestar, além da aplicação da regra, uma má-afeição aos
objetos, como a recusa da perda de feriados em momentos
indesejados (idem, p. 128).
No ambiente de trabalho, a ordem social também é composta pela negociação
por intermédio de objetos materiais, abstratos ou sociais; trata-se, assim, de uma ordem
negociada. Em decorrência disso, objetos, normas, acordos e valores têm uma validade
temporânea, sendo, permanentemente, convocados e negociados pelos indivíduos, nos
diferentes locais e contextos sociais, não podendo, portanto, ser transferidos (idem, p.
135).
A negociação permanente das normas deve-se à configuração heterogênea da
sociedade, constituída por experiências em que vigem diferentes lógicas geridas pelos
indivíduos. À luz do pensamento de Dubet, a experiência social é constituída da
articulação de três lógicas de ação: de integração, estratégica e de subjetivação. Na
lógica da integração, estão as pertenças sociais do indivíduo; na estratégica, está a
tentativa de realização dos seus interesses e na da subjetivação, o indivíduo coloca-se
como um sujeito crítico (Dubet, 1994: 113). Ao mesmo tempo que essas lógicas se
complementam, elas se opõem, situando-se sempre em tensão nas relações de umas
com as outras.
Muito embora, permanentemente, as experiências sociais estejam manifestando
a tensão existente entre as diferentes lógicas, isso não implica, de forma alguma, uma
existência social dilacerada. Dubet ressalta que muitas tensões são rotinizadas. Aí cabe
ao sociólogo dispor de sensibilidade metodológica para descobrir conflitos que se
escondem atrás de aparentes harmonias. O primeiro passo para possibilitar esse olhar é
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
57
conceber cada realidade de acordo com a singularidade que ela apresenta na situação
analisada.
Na vida, a automatização expõe [...] tanto grupos sociais
da empresa a se interrogarem sobre suas relações quanto a
vida subjetiva de cada trabalhador a uma “recuperação”
constante de si [...] A técnica não é um monólogo. É
preciso saber olhar “através” dos gestos dos condutores
dirigidos para a máquina e para o produto: sempre se
descobrirão sujeitos sociais e singulares que se atravessam
entre eles (Clot, 1995: 34).
1.7 Para além da noção de transgredir
Essa característica de singularidade da negociação das normas torna premente
que as pesquisas acerca do tema tenham seu enfoque voltado para as miudezas
transcorridas no espaço e no tempo do trabalho, sem se prenderem a grandes
formulações e generalizações. Reside aí a importância de recorrer a uma abordagem
microssociológica da vida cotidiana, que será apresentada no capítulo metodológico.
A apreensão do real é sempre alcançada pelo singular. A ciência só pode
chegar ao universal partindo do singular. Para Marx, “a história social do homem
nunca é senão a história de seu desenvolvimento individual” (1846: 533). Entretanto,
a base da subjetividade dos indivíduos não se encontra isolada em cada um deles, mas
no mundo social, regido por diversas formas e lógicas de funcionamento (Sève, 1989:
156). Destarte, para compreender a subjetividade no trabalho não basta tomar os
indivíduos isoladamente: há que buscar suas conexões com o mundo exterior para
compreender o seu sentido social.
Na interpretação de Schwartz, o trabalho humano é de per si coletivo; analisar
as atitudes de um indivíduo que trabalha já é analisar o coletivo presente nele. “Jamais
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58
se trabalha sozinho [...] os outros estão lá por intermédio da preparação do trabalho, da
prescrição, da avaliação” (2003: 187).
O fato de os indivíduos, em um ambiente social de trabalho, tomarem a
iniciativa de reformular suas próprias normas acena para o que Sato denomina
controle, que consiste em um processo permanente de procura de formas de adaptação
ao meio. Aqui parece despontar uma certa nuança na dimensão de controle se
comparada com aquela apresentada por Reynaud, uma vez que, para Sato, o controle
não se refere ao sistema de regulação de controle, mas ao de regulação autônoma, ou
ainda, ao controle exercido pelos ditos “controlados”. Porém se nos ativermos às aspas
que Reynaud acrescentou à palavra “controladores”, podemos inferir que, na verdade,
assim como Sato, ele está fazendo uma crítica à idéia unilateral do controle.
A existência de certo controle por parte dos indivíduos acena para sua
liberdade de julgamento e, mais precisamente, para a possibilidade de as pessoas
gerirem seus próprios mundos, sua subjetividade (Sato, 1997: 4).
É mister destacar que o controle dos indivíduos sobre as normas do seu
trabalho não consiste em um controle efetivo, com formas reconhecidas e explícitas
pela organização do trabalho. Ele tem, antes, um sentido de micromanobras,
possibilitando uma futura construção de valores e práticas, coletivas e individuais. Esse
controle apresenta-se, portanto, como uma subcultura dentro da organização do
trabalho, atuando oficiosa e astutamente (Sato, 1997: 8), embora funcione como parte
do motor da própria organização.
Assim, a negociação apresentada aqui, a respeito da reinvenção das normas no
trabalho, assenta-se principalmente na esfera do valor simbólico, pois se refere, muitas
vezes, a tecnologias mudas
17
, a maneiras de gerir o trabalho que nem sempre são
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59
visíveis ou relevadas pela organização. São mudanças freqüentemente configuradas em
objetos abstratos, não dados a ver, mas vividos pelos indivíduos e referidos aos seus
valores e à sua subjetividade.
É muito comum o trabalhador afirmar que possui um jeito próprio de fazer o
seu trabalho (Sato, 1997: 121) e, indagado acerca de qual seria esse jeito, nem sempre
consegue expressá-lo claramente; quando tenta, tropeça nas palavras
18
, tamanha é a
abstração do jeito de fazer uma atividade (ritmo, movimento, agilidade); porém, para
quem olha de fora, trata-se apenas de gestos corporais iguais em todos os indivíduos.
Apesar de Schwartz (2003) reconhecer as práticas lingüísticas como um dos
elementos essenciais de regulação da atividade individual e coletiva, uma vez que elas
servem de correia de transmissão de experiências, ele também admite as dificuldades e
a necessidade de sua explicitação.
A linguagem tem um grande papel na atividade, mas a
atividade ultrapassa [...] o que as palavras podem dizer
dela [...] Querer colocar as competências inteiramente em
palavras é uma ilusão, mas não tentar fazê-lo seria
interditar seu conhecimento (p. 131 e 132).
Discorrendo sobre as escolhas e os gestos pessoais na atividade de condutores
de trem, Schwartz explana que a gestão singular dos indivíduos é determinada pelas
singularidades da situação vivida, tais como: condições climáticas, particularidades do
17
- Fazendo referência às influências que têm as operações miúdas dos indivíduos no interior de uma
organização, Certeau toma de empréstimo o termo “tecnologias mudas” de Foucault, porém alterando seu
sentido. Em vez de considerá-lo uma extensão da própria violência da tecnologia disciplinar sobre os
indivíduos, concebe-o como revelador de formas ocultas, assumidas pelas práticas criativas e estratégicas dos
indivíduos (1994: 41).
18
- Antes da realização das entrevistas desta pesquisa, uma medida tomada foi contatar os operários, por telefone,
para apresentar o objetivo da investigação, especialmente esclarecendo que ela busca analisar as maneiras
próprias do trabalhador fazer seu trabalho, a reinvenção de normas. Como, freqüentemente, em trabalho de
campo, os operários têm se queixado de nunca terem pensado em determinado assunto abordado na entrevista,
acredita-se que essa precaução possibilitou-lhes reflexão sobre o seu cotidiano fabril trabalhando nele,
resultando em depoimentos mais fecundos.
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60
percurso, mudanças, força, prazos, seu estado físico e psíquico. São negociações de
caráter não padronizado pelos regulamentos, que dependem tanto do savoir-faire do
trabalhador quanto daquelas experiências acumuladas de acordo com os lugares, as
tradições, a história e a profissão (1992: 223).
As maneiras diferentes de fazer sua atividade não se restringem ao jeito, mas
avançam também sobre outras tecnologias, como a criação de engenhocas ou
adaptações físicas às máquinas, feitas pelos trabalhadores (Sato, 1997: 121), para
amenizar inconveniências físicas, psíquicas ou valorativas do trabalho.
A dimensão simbólica é sempre a base das mudanças no modo de fazer cada
tarefa (idem, p. 39). São os significados e os valores dos indivíduos ou da coletividade
que orientam essas mudanças, sejam elas tecnologias mudas ou concretas. O que, mais
uma vez, vem reforçar uma abordagem dirigida às percepções singulares de cada
indivíduo, para poder compreender os significados de suas negociações laborais.
Schwartz destaca que “o meio humano não é um meio ‘ecológico’, mas, antes,
um meio ‘histórico’, saturado de símbolos, valores, instituições, sentidos” (1992:
227). Valendo-se desses símbolos é que os indivíduos selecionam e dão substância aos
acontecimentos, recentrando em torno de si suas próprias normas de vida” (idem, p.
226).
Na medida em que os indivíduos reinventam suas próprias normas no trabalho,
buscam povoar o mundo objetivo e social com os sentidos do seu mundo subjetivo,
recusando, dessa forma, no seu vivido, a supremacia da racionalidade instrumental
(Sato, 1997: 162). Assim, para além da transgressão de normas, com esse ato, os
indivíduos acabam interferindo no próprio funcionamento dos processos sociais,
alterando a clássica noção de que na sociedade vigora a díade controladores-
controlados.
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61
Considerando que essa negociação de normas implica a busca de resolução de
problemas vivenciados pelos trabalhadores, sua própria presença no trabalho já revela
que ele constitui uma esfera problemática. Dada a presença da reinvenção das normas,
o trabalho manifesta-se como lugar de confronto entre duas temporalidades: a dos
valores mercantis da produtividade e a dos valores simbólicos e subjetivos (Schwartz,
2000a: 715; Rosa, 2000: 6). Logo, os estudos sobre o trabalho precisam levar em conta
a realidade conflitante das duas dimensões.
1.8 Gestão de si no trabalho
Ao modificar sua atividade, ainda que de maneira parcial, o indivíduo recria o
próprio trabalho prescrito, re-normalizando-o e re-centralizando-o por meio de
microescolhas e microdecisões, tornando-o conforme aos seus valores. Com isso,
demonstra sua insubordinação à regra formal, ao padrão, ao homogêneo (Schwartz,
2003: 185; Rosa, 2000: 3 e 6): ele se coloca, portanto, como sujeito do seu trabalho e
de sua própria história.
Na acepção de Schwartz, analisar a atividade é olhar para os indivíduos e ver
neles os “herdeiros da história e os agentes das (micro)re-normalizações dessa história”
(2000a: 719). O autor constrói suas reflexões acerca do recentramento do indivíduo no
mundo das normas, inspirando-se nas idéias do médico e filósofo Canguilhem.
Tomando pesquisas de biólogos como referência, Canguilhem argumenta que
o “meio não impõe nenhum movimento a um organismo se este já de início se coloca
no meio segundo algumas orientações próprias” (1947: 128). O indivíduo se impõe ao
meio legitimando os seus valores, tanto que o autor considera ser da vontade do ser
humano criar suas próprias normas (p. 129).
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
62
Recentramento é um objetivo permanentemente buscado pelos indivíduos para
“fazer valer suas próprias normas, ligadas aos projetos-heranças circulando entre o
microscópico dos atos e o social global” (Schwartz, 2000a: 294). Recentramento é
deslocamento de centro, realização de escolhas, articulação de sentidos e retrabalho dos
modos de fazer uma atividade. Recentrar normas em torno de si é, portanto, redesenhar
as normas prescritas conforme os seus valores; é descentralizar as normas impostas
pela administração e centralizá-las de acordo com aquelas propostas pelos próprios
indivíduos.
Na visão de Schwartz, ainda que de forma infinitesimal, sempre houve esse
recentramento, esse reajustamento das normas em torno dos indivíduos, tanto
individual quanto coletivamente (idem).
Schwartz figura o indivíduo como sujeito de si próprio: “Os atos de trabalho
não encontram o trabalhador como uma massa mole em que se inscreveria
passivamente a memória dos atos a reproduzir” (1992: 53). Entendendo que, por
maiores que sejam as limitações materiais e sociais com as quais se defrontem os
indivíduos, sempre desenvolverão suas escolhas. Dessa forma, mesmo vivenciando as
mais adversas limitações, abrir-se-ão espaços para uma “gestão diferenciada de si
mesmo” (idem, p. 47), na qual o indivíduo, recriando seus próprios usos de si,
negociará os maus usos de si
19
imputados externamente.
O trabalho sendo uso de si é lugar de tensão, um espaço de possíveis sempre
a negociar” (Schwartz, 1992: 53). Do ponto de vista do autor, compartilhado com
Zarifian, no trabalho, há uso, não execução, o indivíduo sendo convocado para além da
sua força de trabalho. Assim, o trabalho não pode ser caracterizado como mera
execução porque “o meio é infiel”; o ambiente técnico, humano e cultural do trabalho
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
63
solicita, constantemente, do trabalhador o seu agir infiel, jamais padronizado, sempre
de acordo com as situações específicas (idem, 2003: 185).
Tendo o consumidor como recorte empírico de análise, Certeau considera que
ele faz usos dos produtos de forma tática, diferenciada daquela divulgada pelos meios
midiáticos, pois entre o indivíduo (que se serve dos produtos) e os produtos
(constituídos pela ordem de uso imposta) existe uma distância “do uso que faz deles”;
por isso, deve-se “analisar o uso por si mesmo”, e não pelos modelos impostos (1994:
95). Esse uso é feito de forma tática:
Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas
particulares vão abrindo na vigilância do poder
proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue
estar onde ninguém espera. É astúcia [...] Em suma, a
tática é a arte do fraco (idem, p. 101).
Com o intento de resolver as demandas das situações de trabalho, o indivíduo é
convocado a agir, não executando fielmente, mas infielmente, recorrendo ao uso de si,
“as suas próprias capacidades, suas próprias fontes e suas próprias escolhas”
(Schwartz, 2003: 186). As insuficiências das normas antecedentes, ou os “buracos de
normas” (idem) é que provocam a infidelidade e a transgressão do indivíduo no
trabalho.
Estabelecendo um paralelo entre a dualidade referida por Zarifian, operação-
acontecimento, e a de Schwartz, execução-uso, percebe-se que ambos os autores se
encontram na mesma linha de análise. No ambiente de trabalho, o trabalhador não
executa simplesmente uma operação previsível, aplicando exatamente as instruções
recebidas externamente da empresa, como queria o taylorismo, mas também faz usos
singularizados de acontecimentos contingentes, reelaborando as orientações recebidas
19
- O autor menciona os seguintes casos de maus usos de si: exploração, desemprego e humilhação (Schwartz,
1992: 43).
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64
a partir das especificidades de cada situação, de seu estado atual e de suas limitações,
comodidades, valores e escolhas pessoais.
Schwartz subdivide o uso em uma segunda díade, uso de si por si e uso de si
pelos outros. Este resulta do fato de, em toda atividade de trabalho, haver normas de
diversos gêneros: científicas, técnicas organizacionais, gestionárias, hierárquica; todas
elas são elaboradas por outros; o trabalhador é coagido a segui-las. Já o uso de si por si
mesmo se caracteriza pela existência dos “buracos de normas”, pois embora (ou talvez
por isso mesmo) haja uma variedade de tipos de normas há, correntemente,
circunstâncias em que as instruções e conselhos são insuficientes para geri-las
adequadamente, daí a necessidade do indivíduo fazer escolhas pessoalmente (2003:
191).
Essa noção dialética dos usos de si apresenta certa semelhança com a idéia
marxiana de que “as circunstâncias fazem os homens assim como os homens fazem as
circunstâncias” (Marx, 1977: 56). O indivíduo é requisitado em seu trabalho não
somente para executar mas também para arbitrar; ou seja, ele tanto é resultado das
situações de trabalho quanto é produtor delas.
Exercer uma atividade implica a articulação permanente dos dois usos de si.
Não há como realizar qualquer tarefa sem conciliar essas duas esferas, salienta
Schwartz (2003: 191). Tal situação de dupla coerção sobre o indivíduo traz benefício
para o meio, assegura o autor, pois possibilita retirar o meio do anonimato, buscando
nele fazer valer os valores e normas do indivíduo, “suas próprias referências a um
sistema pessoal de valores” (idem). Contudo, o autor toma o cuidado de alertar que
essa tentativa de desfazer o caráter anônimo do meio implica riscos para o indivíduo,
uma vez que é possível a ocorrência do sofrimento.
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65
O sofrimento de ter de articular as pressões do uso de si por si e do uso de si
pelos outros traz para o indivíduo uma experiência dramática, na medida em que vive
esse drama constantemente e em que o uso de si pelos outros às vezes se sobrepõe ao
uso de si por si mesmo; donde o uso, pelo autor, de um terceiro termo, a saber usos
dramáticos de si. Nesse caso, o indivíduo é submetido a uma atividade mais
determinada, mais prescrita, na qual não vigora o equilíbrio, mas sobremaneira a
vontade alheia; daí a vivência da angústia, do drama no trabalho (idem).
Indo nessa mesma linha analítica, Crozier e Friedberg (1977) questionam o
determinismo de teorias sobre o comportamento dos indivíduos nas organizações:
Certamente, o modelo oficial prescritivo não é desprovido
de influência. Ele determina sim, em larga medida, o
contexto da ação e, portanto, os recursos dos atores.
Certamente, pode-se dizer que os atores jamais são
totalmente livres e que, de certa maneira, eles são
“recuperados” pelo sistema oficial. Porém, isso só é válido
se se reconhece que o sistema, ao mesmo tempo e em
contrapartida, é também influenciado e mesmo
corrompido pelas pressões e manipulações dos atores (p.
37).
Portanto, agregando as reflexões desses três autores, percebe-se que o uso no
trabalho consiste tanto no que é feito de si, quanto no que o si mesmo faz de si próprio
(Schwartz, 1992: 54). Em outras palavras, mesmo o indivíduo tendo os seus modos de
ser e estar definidos por outrem, ainda assim dispõe da liberdade e da capacidade de
julgamento e interpretação das normas, daí o uso de si para si mesmo permitir a gestão
de si.
É a capacidade de gestão de si que faz com que os trabalhadores só considerem
legitimamente normais aquelas condições de trabalho estabelecidas por eles mesmos,
ainda que parcialmente, referidas aos seus próprios valores (Canguilhem, 1947: 134).
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66
À medida que, pelo uso do fazer por si mesmo, o modo de fazer sua atividade
laboral esteja referida aos valores culturais do indivíduo, este experimenta o seu
próprio ser (Schwartz, 1992: 63). Escolher uma ou outra opção implica,
automaticamente, escolher a si mesmo, uma vez que escolhendo se escolhem modos de
vida, de relações, de projetos (idem, 2003: 187 e 189). Trata-se, pois, não meramente
de um modo de fazer o trabalho, mas de um modo de ser, de gerir a si mesmo.
Essa incessante gestão de si mostra que a história não cessa de se construir nos
fragmentos de toda configuração industrial: é por isso que
toda atividade é sempre, em parte, gestão singular de uma
situação padronizada na teoria. Esse é o eixo do “trabalho
real” [...] [oposto] ao “trabalho prescrito”, é o eixo do
engendramento da experiência, do saber-fazer, das
cooperações criadas, das composições e recomposições
coletivas, “dos projetos-heranças”, ligando dialeticamente
ideais políticos em confrontação à balança social e lutas
minúsculas fixadas no patrimônio contraditório da
empresa (1992: 224).
A gestão de si revela a atitude astuciosa e antidisciplinar dos indivíduos, no
seu cotidiano de trabalho. Todavia, como já foi aludido, essa antidisciplina não alcança
uma grande envergadura, não reside em práticas organizadas sob formas politicamente
reconhecidas pelas estruturas de poder, mas, antes, em “operações quase
microbianas”
20
, muito embora interfiram no funcionamento das organizações.
Vindo ao encontro da idéia da gestão de si, ao tratar de sua teoria das práticas
cotidianas, Certeau é avaliado primorosamente por Giard como aquele que
prende sua atenção à liberdade interior dos não-conformistas,
mesmo reduzidos ao silêncio, que modificam ou desviam a
verdade imposta [...]. [Ele crê] na liberdade gazeteira das práticas
[...]. [Percebe] as microdiferenças onde tantos outros só vêem
20
- Cf. Certeau, 1994: 41.
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67
obediência e uniformização [...] [Concentra sua] atenção nos
minúsculos espaços de jogo que táticas silenciosas e sutis
“insinuam” (Giard, 1994: 19).
Na visão de Certeau, as práticas cotidianas são constituídas de ordens
exercidas por uma arte: cumprida e burlada, simultaneamente. Nesses termos, em uma
organização, as pessoas estão apenas “supostamente entregues à passividade e à
disciplina”, pois ter o estatuto de dominado não significa ser passivo e dócil, já que “o
cotidiano se inventa com mil maneiras de ‘caça não autorizada’” (1994: 20, 37 e 38).
Crozier e Friedberg (1977) também observam que mesmo em circunstâncias de
dependência e coerção extremas (como em hospitais psiquiátricos e inclusive em
campos de concentração), os indivíduos não se adaptam de maneira passiva, mas ativa,
revertendo as coações em seu favor; o indivíduo sempre mantém um mínimo de
liberdade, que utiliza para enfrentar o sistema organizacional (p. 36-37). Nas palavras
dos autores:
É preciso afirmar com força que a conduta humana não é
assimilada em nenhuma circunstância como produto
mecânico de obediência ou de pressão dos dados
estruturais. Ela é sempre a expressão e a prática de uma
liberdade, por mínima que seja. Ela traduz uma escolha
por meio da qual o ator apanha oportunidades que se
oferecem a ele no quadro de coerções [...] Portanto, ela
jamais é previsível, pois não é determinada mas, ao
contrário, sempre contingente (idem, p. 39).
Assim, seguindo esse raciocínio, embora as organizações disponham de
normas coercitivas, os indivíduos que lhes estão submetidos criam resistências e
negociam essa subjugação. As normas prescritas pela organização são usadas pelos
trabalhadores como um jogo no qual buscam defesas de si.
Confiante na capacidade e inteligência do outro e na não existência do a priori
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
68
nas atitudes alheias, Certeau sempre percebe, na vida social, um “movimento
browniano”
[21]
nas performances operacionais dos indivíduos. Estas são constituídas
tanto por combates quanto por prazeres (1994: 47) miúdos que, embora não se revelem
facilmente a olhos vistos, estão presentes em cada atividade humana.
A cultura articula conflitos e volta e meia legitima,
desloca ou controla a razão do mais forte [...] As [...]
engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vão
desembocar então em uma politização das práticas
cotidianas (idem, p. 45)
Certeau toma os indivíduos como aqueles que usam de inúmeras e
infinetesimais maneiras de reformularem as leis de acordo com suas próprias normas.
Tendo a “cultura popular” como foco de análise, o autor defende que as práticas
cotidianas dos indivíduos “colocam em jogo uma ratio [razão] ‘popular’, uma maneira
de pensar investida em uma maneira de agir” (idem, p. 42, grifo nosso). Encontramos
nesse final de frase exatamente a tese que analisamos: as maneiras de ser dos
trabalhadores geridas e reveladas nas maneiras singulares de fazer sua atividade fabril;
é a subjetividade tomando “forma”, sendo expressa nas atitudes escolhidas para o
exercício de uma tarefa.
Logo, compete ao pesquisador desvendar “os procedimentos, as bases, os
efeitos e as possibilidades” contidas nas micro-resistências das “atividades de formiga”
que os indivíduos constroem dia a dia (idem, p. 40).
Partilhando essa teoria das práticas cotidianas de Certeau, considera-se aqui
que, no ambiente de trabalho, os indivíduos agem engenhosamente reinventando suas
normas, deslocando para si próprios a razão dos poderios estabelecidos nos
21
- Na biologia, movimento browniano significa um “movimento errático, em ziguezague, observado ao
ultramicroscópico em certas soluções e suspensões coloidais” (Ferreira, 2004).
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69
regulamentos, gerindo, assim, o seu cotidiano e a si mesmos com seus próprios
significados.
1.9 Singularidades das situações de pesquisa e a ergologia
Para tentar ter acesso às práticas cotidianas dos indivíduos, é indispensável
dispor de certas precauções teórico-metodológicas, não bastando tão-somente remeter-
lhes indagações acerca do seu cotidiano. Os conceitos são extremamente relevantes
para orientar uma investigação e impedi-la de perder-se em objetivos insuficientemente
delineados. Todavia, para tomar contato com a configuração real da situação
pesquisada, é essencial dispor dos conceitos apenas como ferramentais temporários,
falíveis e ultrapassáveis.
Se se vem à oficina armado de códigos lingüísticos pré-
elaborados, de conceitos protocolares codificados pelo
ensino universitário, prescrição de testes quantitativos não
específicos, apenas se terá do “ambiente de labuta” um
conhecimento externo, que só muito parcialmente
corresponde àquele que os atores têm (Schwartz, 1988:
213).
É necessário estar atento às condições singulares de cada situação de trabalho
para compreendê-la melhor, uma vez que, por mais apurados que sejam os conceitos
disponíveis, eles “não antecipam tudo, é preciso sempre esse olhar [atento] à atividade”
(idem, 2003: 129). Conferir aos conceitos o estatuto de verdade é fazer-nos cegos para
as variabilidades dos ambientes analisados. Há que se recorrer à calma do olhar para
conseguir enxergar no outro o que ele realmente é e não o que os conceitos de que
dispomos “querem” provar.
Um grande testemunho de que a vida social transpõe os conceitos é a presença
do trabalho não prescrito no ambiente de trabalho. Logo, para compreender as reais
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
70
práticas sociais, é insuficiente conhecer apenas as instruções dadas ao trabalhador, o
trabalho prescrito, o campo teórico da atividade.
Dotado da “missão” de analisar os indivíduos no contexto sociocultural ao qual
pertence, Schwartz faz uso da abordagem clínica, que consiste em jamais deixar de
considerar “os protagonistas da re-singularização de toda situação de trabalho” (2000a:
290).
A valorização que Schwartz faz do trabalho de campo é uma constante em suas
investigações sobre essa questão, demonstrando, assim, uma grande afinidade com
áreas como a sociologia.
Para compreender o trabalho, os saberes disciplinares são
necessários, mas é com aqueles que trabalham que se
validará o conjunto do que se pode dizer da situação em
que eles vivem (2003: 19).
Integrante e um dos fundadores da abordagem ergológica, em seus escritos,
Schwartz sempre tece discussões sobre as implicações metodológicas da pesquisa
científica. Uma de suas grandes primazias e empenho consiste em confrontar conceitos
a experiências.
O prefixo “ergo” de ergologia deriva do grego érgon, que significa “ação,
realização, efeito, trabalho”; portanto, ergologia é o estudo do trabalho, ou mais
genericamente, estudo da atividade. A ergologia assenta-se em uma posição de
desconforto intelectual em função de, continuamente, a atividade ser “recriada
mediante debates de valores” (2003: 200), enfatiza Schwartz.
Nesses debates de valores não há o perito e o investigado, não há aquele que
sabe e outro que não sabe; o que há são seres humanos portadores de valores iguais.
Ambos exercem “um retrabalho permanente de valores para viver – e todos nós somos
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71
iguais diante desse trabalho” (idem). Em outros termos, tanto o conceito quanto a
experiência social têm igual valor e só são válidos quando se unem para formar os
sentidos da realidade.
A abordagem ergológica requer do ergólogo que ele coloque,
permanentemente, em debate e em confrontação: as
experiências de vida e de trabalho e os conceitos sempre
imperfeitos, sempre provisórios, em relação às
experiências, mas indispensáveis para tentar construir algo
em conjunto a partir desses debates (idem).
Com a postura dos filósofos dos tempos antigos, fazendo frente à divisão dos
saberes, o autor propõe o compartilhamento, a cooperação interdisciplinar entre várias
áreas como a Ergonomia, a Lingüística, a Economia, a História, a Sociologia, a
Psicologia, a Filosofia e a Engenharia. Dispondo de diversas situações concretas de
trabalho, fornecidas por diferentes olhares científicos, a ergologia é capaz de construir
análises bastante refinadas da realidade do mundo do trabalho. De acordo com
Schwartz (2000a), nem a ergologia e nem a atividade pertence a nenhuma área
específica (p. 683); talvez por essa condição é que ela esteja apta à produção de
conhecimentos transdisciplinares
22
.
Zelosamente dedicado a apontar as diferentes facetas do social, Schwartz
construiu a subdivisão do uso em uso de si por si e uso de si pelos outros, conforme
discutido acima, dessa forma apresentando as contradições e a dialética das situações
de trabalho. Com essas categorias, o autor procura mostrar que, embora o indivíduo
22
- Nessa compreensão, a ergologia não é uma profissão, pois não pertence a nenhuma área particular; também
não é resultado de saberes particulares. A ergologia é uma “profissionalidade”, que pode complementar todos
os tipos de profissões. Assim, podem haver: “ergônomos ergólogos, sociólogos, juristas, tecnólogos...
ergólogos, gestionários, quadros, engenheiros, responsáveis por projeto... ergólogos, militantes sindicalistas,
responsáveis por desenvolvimento local, gestionários de saúde pública... ergólogos, acrescentando as suas
competências iniciais o aprendizado-desaprendizado de uma profissionalidade ergológica” (Schwartz, 2000:
727).
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72
faça escolhas e arbitre sobre as normas às quais está submetido, é preciso ter em conta
que vivemos em um meio pleno de coerções de terceiros e que, em absoluto, fazemos
sempre o que queremos (2003: 191).
Esse alerta teórico-metodológico para não perder as duas dimensões
socioanalíticas, a coação social e as vontades individuais, é trazido por Schwartz no
momento em que ele critica uma tendência das Ciências Sociais, de considerar somente
o uso de si pelos outros, ou, em outras palavras, de reduzir o indivíduo aos papéis
criados pela sociedade.
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73
1.10 A experiência na sociologia
Trazendo aportes sociohistóricos e crítica a essa vertente sociológica,
mencionada por Schwartz, Dubet apresenta a Sociologia da experiência como um novo
campo do conhecimento. Na obra intitulada justamente “Sociologia da experiência”, a
tese central desse autor é a dispersão do modelo clássico que vincula ator a sistema. Ele
argumenta que o ator é o próprio sistema (1994: 21), uma vez que é ele quem o
constrói por meio de suas experiências.
Deixou-se de reconhecer a unidade funcional e cultural das sociedades
nacionais e industriais, que propiciaram o surgimento da Sociologia clássica e os seus
estudos sobre os papéis sociais ligados a sistemas integrados (idem, p. 14). Essa
reconfiguração da esfera sociocultural reverte em mudanças do próprio olhar das
ciências da sociedade, que têm de repensar suas linhas de análises para melhor se
adequarem ao novo mundo social.
Situado nessa corrente analítica de defesa de pertencimento a múltiplos e
diversos papéis e grupos sociais, Schutz (1979) considera que o indivíduo não se
molda a um papel social, mas sim se envolve em diversas situações sociais tendo de
assumir, portanto, posturas diferentes fazendo valer “uma parte de sua personalidade
[...] seus desejos, ansiedade e paixões pessoais” (p. 307).
Para Dubet, o desmantelamento da homogeneidade do ator com o sistema
social acarretou o desmembramento da própria Sociologia (clássica), que não mais se
atém a uma teoria da ação segundo papéis sociais pautados em uma racionalidade
previsível, mas enfoca as experiências dos indivíduos e envolve as várias teorias da
ação, de onde emerge a Sociologia da experiência.
Num conjunto social que já não pode ser definido pela sua
homogeneidade cultural e funcional, pelos seus conflitos
fulcrais e por movimentos sociais igualmente fulcrais, os
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74
actores e as instituições deixaram de ser redutíveis a uma
lógica única, a um papel e a uma programação cultural das
condutas. A subjetividade dos indivíduos e a
objectividade do sistema separaram-se: os movimentos
sociais deixaram de ser sustentados pelas “leis da
Historia” e por “contradições fulcrais”, as organizações
surgem como construções e não como organismos
funcionais, as condutas mais banais são interpretadas
como estratégias e não como realizações de papéis (idem,
p. 15).
O autor destaca que o testemunho de a sociedade já não consistir “um sistema
organizado em torno de um centro” é o fato de os indivíduos serem impelidos a
gerirem “várias lógicas de acção” (idem, p. 259). Percebe-se aqui certa convergência
entre as abordagens de Dubet, Schwartz e Certeau, uma vez que os três concebem o
próprio indivíduo como centro de seus atos, como aquele que interpreta, age
estrategicamente e recria, no vivido, ainda que de maneira miúda, as suas próprias
normas.
Fazendo menção à concepção estratégica da ação de Crozier e Friedberg
(1977), enuncia Dubet:
O actor é orientado pelos seus interesses, pela percepção
que tem deles e pelas normas da organização. É uma
estratégia que se situa no espaço de jogo que ele não
escolhe mas que pode modificar ao jogar [...] O jogo é
possível porque o sistema jamais é total, ele reserva zonas
de incerteza que são o campo da estratégia [...] Esta
concepção estratégica da acção inscreve-se na articulação
de duas perspectivas: as estratégias são racionais e as
estruturas são culturais [...] A integração social não se
realiza nem pelas normas sociais nem pelos contratos
celebrados entre indivíduos racionais, mas pelo jogo misto
do seu encontro (1994: 86-7).
Nesse novo contexto, o autor sugere que a sociologia deva não mais tratar de
papéis, mas de experiência social, entendendo-a como as atitudes individuais e
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75
coletivas geridas por princípios heterogêneos e “pela actividade dos indivíduos que
devem construir o sentido das suas práticas no próprio seio desta heterogeneidade”
(idem).
Dubet enumera a existência de três características dessa noção: a
heterogeneidade dos princípios culturais e sociais constituída pelas condutas, a
distância subjetiva mantida pelos indivíduos com referência ao sistema
23
e, na análise
sociológica, a substituição da noção de alienação pela de experiência (idem, p. 15-17).
Portanto, a partir da perspectiva desse autor, percebe-se que a experiência é
construída pela combinação de lógicas diferentes, às vezes conflitantes, porque nelas
interagem as subjetividades
24
dos indivíduos, tornando-os não inteiramente
subservientes aos papéis criados pelos sistemas.
Baseando-se em Thompson, para construir a noção de experiência, cujo traço
principal está em considerar que os indivíduos não se reduzem ao que o sistema faz
deles, Dubet considera que em uma “perspectiva sociológica, a subjectividade é
entendida como uma actividade social gerada pela perda da adesão à ordem do mundo,
ao logos” (1994: 101). Portanto, a “subjectividade dos indivíduos e a objectividade do
sistema” são separadas (idem, p. 15), pois não existe “socialização total”, de modo que
23
- Após citar a fala de um ajustador, na tese de Schwartz, que diz: “Jamais um operário permanece diante da sua
máquina pensando: eu faço o que me pedem”, Canguilhem afirma: “Essa é uma maneira, para o trabalhador,
de dizer o que ele entende por denunciar a alienação que provoca a identificação do labor com um
comportamento estritamente racionalizado. Fazer, tomando distância do que é prescrito para fazer, é, ao pé
da letra, fazer uso de si, tomar-se por sujeito micro-participante irredutível às operações produtivas”
(Canguilhem, 1988: 21). Nesse passo, os procedimentos teóricos tanto de Canguilhem e Schwartz quanto de
Dubet têm em comum o compartilhar do reconhecimento da capacidade crítica do indivíduo em relação aos
sistemas dos quais faz parte.
24
- Dubet observa que a Sociologia da experiência social tem como objeto a subjetividade dos atores. Precisando
essa abordagem, o autor alinhava: “A sociologia da experiência tem em vista definir a experiência como uma
combinação de lógicas de acção, lógicas que ligam o actor a cada uma das dimensões de um sistema. O actor
é obrigado a articular lógicas de acção diferentes, e é a dinâmica gerada por esta actividade que constitui a
subjectividade do actor e a sua reflectividade” (1994: 107).
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76
a subjetividade do indivíduo jamais se molda simplesmente à objetividade do sistema,
as suas exigências (idem, p. 96).
Dessa feita, Dubet relaciona a experiência dos membros sociais à noção de
sujeito, uma vez que o distanciamento que tomam dos papéis sociais indica que eles
não concebem os valores dos outros como inteiramente seus.
Na medida em que a distância crítica e a reflexividade dos
actores participam plenamente na sua experiência social,
importa analisar sociologicamente este processo que
define a autonomia dos actores, que faz deles sujeitos.
Esta subjectivação remete para um mecanismo social
porque implica que os actores se não reduzam aos seus
papéis e aos seus interesses e também que eles possam
identificar-se com uma definição cultural em termos de
obstáculos a um desempenho concebido hoje em termos
de “autenticidade” (1994: 17).
Essa noção da experiência mostra-se bastante compatível com as reflexões dos
autores trazidas nesta pesquisa. A recusa de modelos como o taylorista, cujo princípio
é o de que o indivíduo apenas executa um papel pronto a partir de instruções prévias e
externas, a defesa da existência de estratégias inteligentes de gestão de si, de
subordinação do meio as suas próprias normas e a tomada do indivíduo enquanto
sujeito de sua história, dialogam bem de perto com a noção de experiência conduzida
por Dubet.
1.11
A (inter)subjetividade para a ergologia e para a fenomenologia
Uma das teses filosóficas de Schwartz é a de que em algum grau o “trabalho é
sempre uma experiência” (2000b: 1), derivando daí a importância de analisar ao
mesmo tempo essas duas dimensões, trabalho e experiência. Localizando onde,
concretamente, a experiência marca os indivíduos, o autor aponta o corpo, acentuando
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
77
que “nós trabalhamos nosso corpo [...], permanentemente, por meio de nossa
experiência de vida – e, portanto, de nossas paixões, nossos desejos [...]” (2003: 194).
Nos escritos desse autor, verifica-se o mesmo procedimento da
fenomenologia, de não tratar o fenômeno apartado do ser. Quando se refere à esfera a
que pertencem os “usos de si”, nas maneiras de cada um fazer uma atividade, no lugar
de “subjetividade”, que considera onipresente e evasiva, ele utiliza o termo “corpo-si”.
Este é o lugar concreto, em que efetivamente se situam muitas das escolhas feitas pelos
indivíduos no seu trabalho (idem, p. 192-3).
O “corpo-si” é constituído pela relação entre o ser biológico, cultural e
psíquico, ou, ainda, pelo corpo, valores e desejos/escolhas dos indivíduos.
A atividade mergulha suas raízes no mais obscuro do
corpo, no nós. Por outro, lado ela tem a ver com o que há
de mais cultural, mais histórico, mais moral [...] [Há] um
nível do si que é o corpo inserido na vida [...] [Ao] mesmo
tempo o “si” [...] [está] desde o seu nascimento no
universo da cultura, que [...] está atravessado e saturado
de valores, de histórias, de conflitos, de normas
antagônicas [...] [E] o “si” também é a história psíquica
[...] [por meio da qual o indivíduo deve] afrontar seu
desejo [...] [contra] todo tipo de normas, de normas e de
leis [...] que ele não criou (Schwartz, 2003: 197).
Essas três esferas do “corpo-si” articulam-se, permanentemente, em cada ato
de trabalho, que deve, portanto, ser considerado em todas as suas dimensões. Donde a
semelhança de abordagem com a fenomenologia: analisar o indivíduo em sua
totalidade.
Schutz também assegura que para conhecer o outro é preciso apreendê-lo a
partir do corpo: “O conhecimento da mente do outro indivíduo só é possível através de
eventos que ocorrem ou são produzidos pelo seu corpo” (1979: 160). Por conseguinte,
tanto para esse autor quanto para Schwartz, é o corpo que comporta e apresenta
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78
sistemas relativos às experiências individuais, experiências que revelam fatores não
apenas vinculados ao indivíduo em si, mas a sistemas de valores coletivos; portanto,
intersubjetivos.
Observando esse caráter intersubjetivo da subjetividade, Chauí a define como
uma estrutura de experiências significativas e significantes
que não começam nem terminam na consciência de si de um
sujeito, uma teia de sentidos tecida na relação intercorporal e
no diálogo com o outro [...] A subjetividade é um nó de
ações corporais e simbólicas originalmente intercorporais e
intersubjetivas, das quais a consciência de si enquanto
sujeito é um aspecto e não uma definição (1997: 19).
Do mesmo modo que a ergologia, a fenomenologia coloca-se em favor de uma
ciência social que detenha o seu contexto vivo em suas formulações teóricas, para
adequar o “objeto” de pesquisa aos conceitos (Smart, 1978: 179). Em outras palavras,
ambas as abordagens buscam evitar a dissociação entre o conhecimento e o sujeito que
o produz (cientista e leigo), daí resultando seu rigor científico.
25
Diversamente das Ciências Naturais, cujo rigor consiste em recorrer a uma
linguagem desprovida de ambigüidades, como é a matemática, para a análise dos
fenômenos naturais e físicos que não falam por si, o rigor das Ciências Sociais consiste
25
- Nota-se aqui um diálogo com a perspectiva weberiana que, ao contrário da durkheimiana, sustenta a validade
do saber empírico embasado em categorias subjetivas, advindas tanto dos indivíduos investigados quanto do
próprio pesquisador: “A validade objetiva de todo o saber empírico baseia-se única e exclusivamente na
ordenação da realidade dada segundo categorias que são subjetivas no sentido específico de representarem o
pressuposto do nosso conhecimento e de se ligarem ao pressuposto de que é valiosa aquela verdade que só o
conhecimento empírico nos pode proporcionar” (Weber, 1989: 125-126). Vale ressaltar ainda que não existe
apenas uma sociologia fenomenológica. A mais conhecida é a fenomenologia do mundo social de Schutz,
cuja base de pensamento foi formada pelas noções de sentidos subjetivos da ação, retiradas de Weber, e de
intersubjetividade, extraída de Husserl. Contudo, outras abordagens, como a sociologia reflexiva, a
etnometodologia e a sociologia existencial coexistem com a abordagem schutziana (Smart, 1978: 101-2;
Wagner, 1979: 3 e 10). Como o objetivo desta pesquisa não é o de apontar as semelhanças e diferenças entre
as diversas perspectivas fenomenológicas e os clássicos da sociologia (Durkheim, Marx e Weber), interessa-
nos tão somente o aspecto da intersubjetividade tratado pela fenomenologia. Restringimo-nos, então, a
apenas mencionar que, em diversos momentos, quando a fenomenologia é tratada, aparecem características
semelhantes, especialmente, à abordagem weberiana, porém também à marxiana (Sobre esta última ver
Smart, 1978 e Pacci, 1963).
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79
em deixar falar os fenômenos investigados e permitir que aflorem suas ambigüidades
26
,
que são próprias da esfera social dotada de diversidade sociocultural. Portanto, sendo
os fenômenos sociais inexatos e nuançados, o rigor das Ciências Sociais só pode provir
da ausência de exatidão (Dartigues, 1973: 38), do contrário estar-se-ia cometendo
arbitrariedade com o próprio sentido desses fenômenos.
Em consonância com essa mesma interpretação Foracchi acentua:
Deve-se [...] ter em mente que a investigação científica
jamais se fecha sôbre si mesma, como num circuito,
tornando-se definitiva mas opaca. Os resultados que
procura obter autenticam-se mais pelos horizontes que
descortinam do que pelas “verdades” que contêm
(1965: 6).
Essa constatação não implica afirmar que as ciências da sociedade sejam
desprovidas de objetividade
27
científica. Trata-se, antes, de reconhecer que a sua
objetividade, o seu rigor é diferente daquele das ciências que estudam a natureza muda,
bem porque no mundo social os sujeitos investigados falam, e falam de sentidos que
trazem em si significados simbólicos e subjetivos. Assim,
as ciências sociais intervêm no domínio da autenticidade
pessoal e da interpretação; trata-se menos de uma
objetividade realista como equivalente de uma verdade
histórica, e mais de uma objetividade como interpretação
das experiências sociais relativas ao contexto social e à
pesquisa (Valastro, 2000: 3).
26
- O caráter ambíguo dos fenômenos sociais autoriza o cientista social a forjar seus próprios recursos
metodológicos, uma vez que, se não o fizer, incorre no risco de estar modificando suas próprias
configurações (Cf. Foracchi, 1965: 11).
27
- Abordando o tema objetividade, Dartigues pontua que a ciência não apenas fala deste mundo: o próprio
cientista fala neste mundo, sendo ele não somente cientista, mas também membro do mundo cotidiano. O
autor nota ainda que a ciência não surge quando consolida os seus resultados; ela passa antes pelas operações
que a compõem, portanto, pela atividade intelectual e percepção sensível do cientista (1973: 78-9).
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80
A existência de ambigüidades nos fenômenos sociais leva a fenomenologia a
tratar os indivíduos, que os constroem, não como objetos
28
, como o faz a sociologia
convencional, mas como sujeitos, dotados da capacidade de comunicar o senso que
atribuem ao próprio fenômeno vivido. Ao contrário do que ocorre nas Ciências
Naturais, o cientista social não se relaciona com coisas
29
; por isso, não pode nomear de
“objeto” o que ipso facto interage enquanto sujeito do conhecimento, a saber, os
indivíduos concretos, consistindo no que há de “visível” e comunicável em qualquer
fenômeno social.
Conforme Smart, na acepção fenomenológica,
fatos relacionados com a sociedade e os fenômenos sociais
são constituídos intersubjetivamente por indivíduos
empenhados numa situação significativa. Por isso,
conceitos como “Estado”, “cooperativa” ou “sociedade”
podem ser interpretados como termos significativos,
constituídos intersubjetivamente [...] [e] representam os
produtos das agregações de indivíduos para atingir seus
fins ou metas específicos (1978: 111).
(30)
Para precisar mais ainda, conceitos como sociedade, um fato “objetivamente
válido”, é “subjetivamente constituído” (idem, p.164) pelas atividades intersubjetivas
dos indivíduos. O mundo social, da vida cotidiana, do senso comum, existencial, não
28
- Na vertente fenomenológica, o social não é objeto; é, antes, vivência dotada de sentidos, cabendo ao
sociólogo “descrever” sua essência (Lyotard, 1967: 89).
29
- Bem por não se relacionar com coisas é que durante a realização de pesquisa empírica, na situação de
entrevista, o cientista social vive com o pesquisado “uma relação social que exerce efeitos [...] sobre os
resultados obtidos” (Bourdieu, 1987: 694), sendo que ambos, pesquisador e pesquisado, exercem poder entre
si ao atribuírem sentidos à própria entrevista.
30
- Smart apresenta a postura de Helmut Wagner que, citando Weber acerca da constituição subjetiva pelos
indivíduos das esferas “Estado” e “cooperativa”, aponta a necessidade de não restringir a abordagem
fenomenológica às discussões apenas micro-sociológicas. Essa referência a Weber diz respeito à passagem
de “Economia e Sociedade”, onde ele menciona que determinadas formações sociais, como “Estado” e
“cooperativa”, são desenvolvidas a partir de ações de indivíduos (2000: 8-9 e 25).
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81
possui caráter privado, garante Schutz, pois não existe na mente dos indivíduos, trata-
se de uma realidade cujo caráter é intersubjetivo (1979: 159).
A relevância da intersubjetividade na fenomenologia evidencia o seu
despojamento de um caráter solipsista e mônade, ou, ainda, não se prende aos
elementos ligados puramente ao eu dos indivíduos (Benoist e Karsenti, 2001: 25-6); ao
contrário, está presa às características compartilhadas socialmente entre eles. Dessa
feita, a própria sociabilidade é uma extensão da intersubjetividade; constitui-se a partir
dela e coloca-se como uma forma de intersubjetividade última, derivando de
configurações mais básicas da consciência (idem, p. 24, 25 e 6).
Apoiando-se nas abordagens ergológica e fenomenológica, a perspectiva
analítica à qual a presente pesquisa recorre consiste num estudo com lupa, cujo olhar é
necessário para analisar os subterrâneos da gestão de si que os indivíduos elaboram a
partir da intersubjetividade construída no cotidiano fabril, por intermédio das maneiras
singulares de fazer sua atividade.
Para Schwartz, é por meio do estudo com lupa que são reveladas as “micro-
escolhas do uso de si” nos atos de trabalho, evidenciando como o “‘si’ se utiliza dele
mesmo e, por conseqüência, se forma como indivíduo em função de laços,
antagonismos, potencialidades de vida que as relações sociais engendram em sua
própria história” (1992: 59).
Seguindo a orientação das óticas ergológica e fenomenológica, não se deve
tomar como dado a primeira impressão que se tem sobre a maneira de os operários
fazerem sua tarefa, dispondo sua realização rotineira, dissociada da intersubjetividade e
maneiras de ser de cada trabalhador como um a priori. Para ultrapassar as aparências
que mais facilmente se mostram nos fenômenos, coloca-se a necessidade de recorrer
Tese de doutorado – Sociologia - FFLCH/USP
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82
não apenas a procedimentos racionalmente validados pela ciência convencional, mas
também pela intuição.
A propósito do uso da intuição em pesquisa, Queiroz (1983) observa que,
embora se acredite que os meios mecânicos, como o gravador, afastem a subjetividade
do pesquisador durante a coleta de dados, no momento em que ele se volta para
analisá-los, suas emoções afloram e, portanto, sua subjetividade, sendo, além de tudo,
cruciais para um melhor aproveitamento das informações empíricas.
Para tentar atingir a “essência” dos fenômenos é condição sine qua non ir além
das aparências das relações, notadamente das descrições psicofísicas pessoais,
supostamente desconectadas das reais experiências interindividuais. Dirigindo o olhar
especificamente para o problema proposto nesta pesquisa, ao analisar os atos dos
indivíduos realizando sua tarefa, é preciso deixar de lado a idéia preconcebida de que
as operações dos trabalhadores são mecânicas e robotizadas, para poder encontrar as
maneiras reais como produzem objetos e a si mesmos. Para tanto, há que se buscar,
nas experiências, não “verdades” pressupostas, mas sim as interpretações advindas
daqueles que vivenciam a situação analisada, dessa forma resgatando os sentidos do
sujeito social da vida cotidiana.
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83
Cap. 2 Construindo o campo: técnicas e métodos
em busca do vivido
Introdução
Nos parágrafos anteriores, fez-se uma incursão bibliográfica tratando,
especificamente, de pontos que explicitam a abordagem teórica da pesquisa, cujo
objetivo foi apontar a relação existente entre as reflexões analíticas e o tema proposto
pela investigação, a saber, as maneiras singulares de os trabalhadores fazerem suas
atividades. A seguir, discorrer-se-á acerca dos procedimentos de pesquisa de campo,
dos métodos e técnicas empregados para a localização dos pesquisados, a coleta de
informações empíricas, sua caracterização e seu tratamento analítico.
Na condição de socióloga e também compartilhando a postura metodológica dos
autores trazidos aqui, conferimos extrema relevância ao trabalho de campo, uma vez que
ele é a forma que, por excelência, traz a lume as experiências reais dos trabalhadores e
que, portanto, corrobora ou refuta os argumentos teóricos e as hipóteses da pesquisa.
Com o intuito de investigar com maior precisão as maneiras de ser do
trabalhador, no seu jeito de fazer a atividade fabril, por meio da re-configuração que
imprime às normas do trabalho que lhe são prescritas, o sujeito empírico selecionado
para esta pesquisa são trabalhadores vinculados ao chão de fábrica.
A escolha por operários de chão de fábrica ocorreu justamente porque sua
forte relação com as máquinas é intermediada por instruções elaboradas prévia e
independentemente das especificidades do operário em questão.
Sendo intensamente submetidos a ordens externas sobre as maneiras de fazer
sua atividade, os operários de chão de fábrica constituem, então, uma categoria de
trabalhadores muito mais ativa na negociação de normas do trabalho; por isso,
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84
representam um sujeito empírico bastante rico no fornecimento de informações sobre o
tema proposto. Apesar de haver conflitos entre as normas prescritas e as não-prescritas
ou, ainda, embora os modos singulares de fazer as atividades se coloquem em qualquer
esfera de trabalho (seja ela industrial, de serviços), como alega Schwartz (1996a: 151),
considera-se aqui que é nas tarefas de chão de fábrica que a relação entre os dois
campos de normas é submetida a maiores conflitos.
2.1 Razão do trabalho de campo
Dubet assinala que, para poder ter acesso ao patrimônio cultural da experiência
social, é preciso buscar seus códigos cognitivos coletivos que se encontram
precisamente nas palavras dos atores individuais (1994: 103). Assim, acentua para a
relevância de recorrer ao trabalho de campo para coletar os testemunhos dos
trabalhadores.
Na perspectiva do referido autor, uma vez que as diversas perspectivas de
análise já não consideram que as significações da vida social estejam assentadas no
sistema, é premente dirigir o olhar para o trabalho, a atividade dos próprios atores, pois
é nele que suas experiências são construídas.
Há que voltar [...] à subjectividade do actor, à actividade
do indivíduo envolvido em todas [as] lógicas e
confrontado com a dispersão delas. Resulta desta
representação a imagem de uma identidade social
dissociada no seu cerne e construída como um trabalho,
como um relacionação de princípios heterogéneos: como
uma actividade. É este trabalho que constitui o objecto de
uma sociologia da experiência (idem, p. 183).
O “trabalho porta testemunho da experiência”, salienta Schwartz, e “a
experiência de trabalho, como toda experiência humana, é vivida sempre no singular”.
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85
Mais adiante, ele acrescenta ainda que a experiência das forças produtivas é o
protótipo de toda experiência” (1988: 30, 61 e 241).
31
Para ter acesso às experiências dos indivíduos, buscaram-se testemunhos reais,
nos quais foram investigadas as práticas sociais a respeito de normas prescritas e
normas praticadas. Em vista disso, o trabalho de campo foi realizado com
trabalhadores.
Conforme já aludido, o universo recortado abrange operários pertencentes ao
chão de fábrica, que possuem vínculos, diretos ou indiretos, com a produção fabril. Seus
testemunhos foram coletados entre março e julho de 2005, na região metropolitana da
cidade de São Paulo. Eles dispõem de diferentes qualificações e ocupações, e atuam em
empresas de pequeno, médio ou grande porte
32
, do setor industrial metalúrgico
abrangendo diferentes sub-setores. Pertencem a gêneros, faixas etárias, estados civis
distintos e seus tempos de serviço também são diversificados.
Tal variedade de perfis, de ocupações e de sub-setores não busca fazer
simples comparações e generalizar os resultados observados, mas pretende ter acesso a
informações singulares, já que o objetivo proposto é analisar as micro-negociações
realizadas pelos próprios trabalhadores acerca das normas que lhes são impostas.
De acordo com Michelat, na pesquisa de cunho qualitativo:
É, sobretudo, importante escolher indivíduos os mais
diversos possíveis [...] [É] o indivíduo que é considerado
como representante pelo fato de ser ele quem detém uma
31
- Apresentando e situando a abordagem da tese de Schwartz, Canguilhem destaca que ela consiste na “defesa e
promoção da experiência operária”; trata-se de “não abordar o trabalho somente pela via do tecnicismo e dos
modelos racionais” (1988: 21).
32
- O porte das fábricas está referido à quantidade de funcionários que possui: a) pequeno: de 30 a 100, b) médio:
2.000 e c) grande: de 10.000 e 14.000. De acordo com o SEBRAE, uma empresa pequena possui de 20 a 99
funcionários, uma média de 100 a 499 e uma grande acima de 499. Nossa classificação coincide com esta
divisão, discrepando somente quanto a de médio porte, assim considerada por ocupar posição intermediária
entre as fábricas analisadas nesta pesquisa.
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86
imagem [...] da cultura [...] à qual pertence. Tenta-se
apreender o sistema, presente [...] em todos os indivíduos
da amostra, utilizando as particularidades das experiências
sociais dos indivíduos enquanto reveladoras da cultura tal
como é vivida (1982: 199).
Partilhando da perspectiva de Michelat e procurando atingir esse objetivo
estratégico, buscaram-se indivíduos representativos dessa diversidade de perfis,
tentando, assim, obter, dos sujeitos investigados, a expressão significativa das diversas
experiências reais relativas às maneiras operárias de fazer e ser, não nos interessando
expressar apenas um ponto de vista probabilístico.
2.2 A fala e o vivido
Partindo do foco da pesquisa que reside em perscrutar e compreender o ponto
de vista do trabalhador, especificamente sobre sua capacidade de intervir e atitude de
readequar as instruções sobre a operacionalização de sua atividade, recorreu-se a
testemunhos tecidos pelo próprio trabalhador.
Nesse passo, é a fala do trabalhador, suas experiências reveladas pelas
elaborações lingüísticas cujas imagens resgatam sua memória, que interessa ao cerne
da análise. Portanto, trata-se do vivido, porém um vivido refletido, não restrito ao
campo da descrição, mas que atinge também os valores por via de avaliações críticas
ou conformistas do seu cotidiano de labuta.
Os discursos de dirigentes, sejam do corpo administrativo ou político fabril e
sindical, não ocupam papel relevante nos objetivos em curso; ainda que interfiram nas
normas fabris, entretanto não representam o vivido e o praticado, mas antes o
organizacional, logo o prescritivo, o esperado.
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87
Importante destacar, porém, que o prescrito não está ausente da análise; é
tomado simplesmente com o fito de servir de referência para o vivido. Ou, ainda, as
normas prescritas nas atividades fabris são relevantes na medida em que servem de
ponto de partida para a compreensão das normas realmente praticadas pelos
trabalhadores.
Assim sendo, o prescrito ipsis litteris só é mostrado em anexo
33
nos Programas
de Operação Padrão, sem, entretanto, ser dissecado, tarefa cabível a uma pesquisa de
cunho fundamentalmente ergonômico e não sociológico.
O objetivo aqui consiste em penetrar no mundo vivido dos trabalhadores,
expressado por eles, aqueles que efetivamente experienciam a prescrição e as
contingências do meio fabril.
2.3 Abordagem qualitativa
Haja vista que, como é apresentado nesta sondagem, o par temático trabalho-
subjetividade conserva um caráter pouco mensurável, o objetivo de apreendê-lo em
seus pormenores, exige que se recorra a um método de pesquisa de cunho qualitativo.
Schutz destaca que:
A única fonte direta de informação subjetiva é o próprio
indivíduo observado. A aplicação de um quadro de
referência objetivo, levando em conta o ponto de vista
subjetivo, leva à análise sociológica da informação
subjetiva reunida e à interpretação subjetiva dos
fenômenos sociais (1979: 316).
33
- Veja anexo 2.
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88
Em outros termos, os construtos das Ciências Sociais devem ser de segundo
grau, “construtos dos construtos feitos pelos atores no cenário social” (idem, p. 268).
Portanto, o autor conclui que:
a exploração dos princípios gerais segundo os quais o
homem organiza suas experiências na vida diária, e
especialmente as do mundo social, é a primeira tarefa da
metodologia das Ciências Sociais (idem).
Seguindo nessa esteira de busca das interpretações dos próprios sujeitos que
vivenciam a situação investigada, é que os testemunhos reais dos operários são
tomados como essenciais para conferir sustentação aos argumentos da pesquisa.
No que tange ao montante de entrevistas efetuadas, ainda que este seja um tema
de per si pertencente ao quesito quantitativo, não foi determinada a priori uma
quantidade exata ou aproximada, visto que a projeção de mensurações relativas à
esfera da subjetividade no trabalho apresenta controvérsia em sua legitimidade
analítica.
Pesquisas que utilizam o método rede social, incorporado aqui e que será
tratado adiante, detêm livre arbítrio sobre esse critério. Assim, nesta pesquisa, buscou-
se empregar o recurso da saturação das próprias informações, ou seja, a suspensão das
entrevistas por ocasião da apresentação de informações fornecidas pelos próprios
entrevistados, marcadas por certa recorrência.
No entanto, quando na prática se tentou empregar a técnica de saturação das
informações de campo, foi possível perceber que o que efetivamente satura é a
limitação dos instrumentos empregados pelo próprio pesquisador, uma vez que
nenhuma experiência do sujeito de pesquisa é igual a outra, podendo, portanto, ser
“explorada” de inúmeros ângulos, especialmente na pesquisa qualitativa desprendida
da aplicação rígida de teorias (ex. a reformulação in situ do formulário de questões).
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89
Interrompeu-se, porém o campo (com vinte e uma entrevistas) quando se julgou
já ter acessado experiências suficientemente diversas do ponto de vista qualitativo cuja
abrangência permitia atingir o escopo da pesquisa, a saber, a compreensão da re-
normalização na atividade operária.
A respeito do caráter de saturação da análise da experiência, Michelat evoca
que, em tese, a análise é infinita, sendo
sempre possível modificar o esquema obtido, prosseguir a
interpretação descobrindo novas sobre-interpretações [...]
Entretanto, é necessário parar quando se considera que o
estado atual do modelo obtido atinge uma certa estabilidade
[...] [A] experiência mostra que, em geral, acima de trinta ou
quarenta entrevistas, as entrevistas suplementares não trazem
informação suficiente que justifique o aumento do corpus
[discursos das pessoas interrogadas] (1982: 209-210).
No fornecimento de achados acerca de suas práticas cotidianas, as informações
obtidas a partir das falas dos pesquisados são muito mais elucidativas do que os dados
estatísticos de uma população amostral representativa. Pais destaca que, em pesquisa
qualitativa, os critérios de selecção são critérios de
compreensão, de pertinência e não de representação
estatística [...] [Portanto,] as estratégias de selecção não se
orientam para a constituição de amostras estatísticas, mas
de amostras estratégicas que permitam atingir uma
saturação informativa [...] Neste sentido, a amostra do
estudo [qualitativo] pode considerar-se intencional (2001:
110).
O autor conclui, ainda, que a relevância do estudo qualitativo “não reside na
pretensão de representação de uma população com o objetivo da generalização de
resultados”, mas no aprofundamento do “nível de conhecimento da realidade cuja
singularidade é, por si, significativa” (idem).
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90
Tecendo comentários acerca de entrevistas não-diretivas, Michelat destaca que,
por meio delas, é possível buscar as manifestações dos “sistemas de valores, de
normas, de representações, de símbolos próprios a uma cultura ou a uma subcultura
[...] [e de] conteúdo sócio-afetivo” (1982: 192 e 194). Por conseguinte, a fala do
pesquisado ocupa lugar privilegiado, por ser uma das formas de externar suas
experiências, seus significados, suas representações e suas simbologias.
Justificando a escolha do método qualitativo para construir sua teoria das
práticas cotidianas, Certeau argumenta que
a estatística [...] se contenta em classificar, calcular e tabular as
unidades “léxicas”, de que se compõem essas trajetórias, mas
às quais não se reduzem, e em fazê-lo em função de categorias
e taxionomias que lhe são próprias. Ela consegue captar o
material dessas práticas, e não a sua forma; ela baliza os
elementos utilizados e não o “fraseado” devido à bricolagem,
à inventividade “artesanal”, à discursividade que combinam
esses elementos [...] a enquête estatística só encontra o
homogêneo. Ela reproduz o sistema ao qual pertence e deixa
de fora do seu campo a proliferação das histórias e operações
heterogêneas que compõem os patchworks
[34]
do cotidiano
(1994: 45-6).
Na pesquisa qualitativa, o sujeito, por ser expressão da cultura a que pertence, é
representativo em sua singularidade (Michelat, 1982: 199). Logo, ao inverso da
sondagem quantitativa que, para a tabulação dos dados, busca elementos análogos entre
os indivíduos, na investigação qualitativa, é imprescindível escolher pessoas diferentes
entre si para poder conhecer seus universos simbólicos.
35
34
- O termo patchworks significa retalhos costurados, “tecido feito com retalhos retangulares de tecidos de cores ou
estampados diferentes, cosidos entre si, ou do tecido com estampado que repete o motivo acima” (Ferreira, 2004).
35
- Faz-se necessário ponderar que as reflexões trazidas aqui, em favor da pesquisa de cunho qualitativo, não significam, de
forma alguma, uma desqualificação da pesquisa quantitativa; muito pelo contrário, considera-se que a última é
extremamente relevante quando o objetivo é mostrar comportamentos gerais de uma população.
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91
A fim de discernir as relações entre subjetividade, técnicas e tecnologias
produtivas, é necessário o afastamento do olhar panorâmico e macro-sociológico e o
mergulho na intimidade dos atos de trabalho cotidiano dos trabalhadores. Por isso, é
micro-sociológico o enfoque desta investigação ou, ainda, concentra-se nos sujeitos e não
nas instituições ou sistemas sociais
36
.
2.4 Instrumentais para a realização das entrevistas
Tendo em vista o êxito obtido, na pesquisa de campo do mestrado, com os
instrumentais utilizados para efetuar as entrevistas e as estratégias de localização dos
entrevistados e, mais ainda, que ambas as investigações, a de mestrado e a de
doutorado, têm em comum os temas “trabalho e subjetividade”, foram empregadas as
mesmas técnicas.
A coleta de informações de campo foi efetuada com a técnica de observação
direta
37
, no estabelecimento de contato imediato com os sujeitos da pesquisa mediante
entrevistas gravadas em aparelho de áudio. Esse contato direto possibilita maior
sensibilização do pesquisador para interpretar sinais não verbais emitidos pelo
pesquisado, tais como gestos corporais, além de facilitar a elaboração de novas
perguntas.
Empregou-se formulário
38
contendo indagações pertinentes à pesquisa e
classificadas em blocos temáticos e cronológicos
39
que, embora formulado
36
- É nessa mesma vertente teórico-metodológica que se localiza Schutz (Cf. Wagner, 1979: 50).
37
- Questionários, formulários “e entrevistas são considerados como técnicas de observação direta pelo fato de
estabelecerem um contato efetivo com as pessoas implicadas no problema investigado” (Thiollent, 1982: 32).
38
- Ver o formulário no Anexo 1.
39
- Cf. em Thiollent duas outras formas de estruturar um questionário: correspondente às hipóteses e arbitrária
(idem).
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92
previamente, esteve aberto para a inclusão de novos questionamentos conforme
especificidades da trajetória de vida narrada pelo pesquisado. O formulário foi, então,
desarrumado na situação de entrevista, pelo calor da hora, acolhendo reformulações e
acréscimos in situ de indagações, para que fossem mais bem apreendidas as
experiências operárias de re-normalização.
A primeira situação de desarranjo do formulário foi de caos extremo, fato
ocorrido junto ao primeiro sujeito de pesquisa. A entrevista foi truncada, com respostas
curtas, desprovidas de imagens claras sobre a re-normalização operária. Ante esse fato,
nossa primeira atitude foi desqualificar o formulário de questões. Entretanto, antes de
descartá-lo, optamos por fazer um teste com o ex-operário Alex
40
, cujo perfil de pessoa
expressiva já era conhecido na pesquisa anterior do mestrado. Nesse caso, o resultado
foi muito bom, pois foram obtidas imagens fidedignas para ilustrar o objetivo da
pesquisa. Nas entrevistas posteriores, os resultados também seguiram nesse mesmo
passo, de modo que o formulário continuou sendo manejado de acordo com a
maleabilidade exigida pelas demandas circunstanciais.
Portanto, trata-se de entrevistas semi-diretivas e/ou semi-abertas. Esse caráter da
entrevista torna a coleta de informações ao mesmo tempo dirigida para o objetivo da
pesquisa e aberta para fatos singulares de cada entrevistado. Tal procedimento, além de
dinamizar muito os resultados do trabalho de campo, avivando os caminhos teóricos
tomados pela pesquisa, pode, inclusive, trazer-lhe novas pistas analíticas.
Adicionalmente às entrevistas gravadas, foram utilizadas mais duas técnicas
complementares: o diário de campo e a ficha do informante. Conforme Queiroz, o fato
de a ficha do informante trazer os dados pessoais do entrevistado, informações
“objetivas” que independem de opiniões, subsidia indagações acerca de comparações
40
- Por motivos de discrição e de preservação do anonimato dos entrevistados, optou-se por conferir-lhes nomes
fictícios. Do mesmo modo, as designações das fábricas onde trabalham não serão reveladas.
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93
que possam ser feitas sobre os pesquisados envolvendo seus perfis; logo, propicia
possíveis achados coletivos (1983: 52-54). Já o diário de campo consta de anotações do
pesquisador a respeito das condições psicofísicas em que a entrevista foi registrada,
características dos entrevistados, relação entre pesquisador e pesquisado, observações
sobre as técnicas usadas e outros apontamentos de interesse (idem).
O diário de campo não se restringe a meros registros descritivos, uma vez que,
no momento da análise das informações de campo, o seu aproveitamento dá corpo e
substância para a análise crítica, que talvez não fosse possível sem esses registros
descritivos. Nessa mesma vereda, Queiroz nota que:
sob uma aparente descrição singela do caderno de campo,
a crítica [...] existe implícita; a segunda, a terceira leituras
do caderno de campo, juntamente com a análise do
material, fazem então com que ela aflore, suscitando um
aprofundamento das reflexões (idem, p. 55).
Foi exatamente nessa linha de interpretação aludida por Queiroz que
construímos nosso diário de campo e a ficha do informante. Esses instrumentos
auxiliaram-nos permanentemente, tanto na elaboração parcial deste capítulo
metodológico quanto na análise das falas dos entrevistados, trazendo-lhes detalhes não
audíveis porque, sendo visíveis somente em situação de campo, são porém cegos ao
gravador.
2.5 Estratégias de acesso aos sujeitos da pesquisa
Dispondo de tais técnicas, os entrevistados não foram procurados em fábricas,
na tentativa de afastar uma possível identificação entre a pesquisadora e a empresa em
que eles trabalham, buscando esquivar contenções em suas falas por receio de
retaliações dos seus empregadores. Do mesmo modo, não foram procurados em
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94
instituições formais, como sindicatos e igrejas, para evitar, na medida do possível, uma
visão enviesada
41
do perfil dos investigados.
Por tratar-se de investigação sobre a prática de normas “clandestinas”, foi
necessário realizar a pesquisa de campo fora das dependências da fábrica, sendo os
domicílios dos operários o ambiente mais conveniente
42
. Conquanto o acesso aos lares
seja uma missão árdua (Both, 1976), manifestam-se como o local mais adequado para a
efetuação das entrevistas, por ser um espaço isento das coações e vigilância fabris,
ideológico-militantes ou religiosas, que poderiam induzir diretamente certas opiniões
dos pesquisados.
Considera-se primordial a observação direta do cotidiano familiar dos
trabalhadores e a “espontaneidade” da narração de suas experiências de vida.
As
experiências narradas são sempre aquelas que o sujeito que as vivenciou considera
significativas. Schutz sublinha que o significado dessa experiência é predicado,
pretérito, retrospectivo, acabado, jamais se trata de um acontecendo, nunca está no
gerúndio (1979: 63 e 67). Sobressai aí a importância da memória para o relato das
experiências dos sujeitos sociais, que implica o reconstruir de suas vivências, de acordo
com os significados que o próprio narrador lhes atribui e dispõe no presente.
Na perspectiva de Bourdieu, investigar pessoas conhecidas garante uma
comunicação “não-violenta” devida à não objetivação das razões subjetivas do
pesquisado e da imediata compreensão dos seus sinais não verbais (1987: 697).
41
- Cf. Thiollent a respeito de fontes de viés na situação de entrevista (idem, p. 37).
42
- A única exceção de entrevista conduzida fora do domicílio do entrevistado ocorreu em condições pouco
comuns, de forma improvisada, ocupou três ambientes diferentes: primeiro um restaurante, porém logo
abandonado dado o barulho dos clientes e dos carros na rua; o segundo foi dentro do veículo do entrevistado
estacionado na rua, em uma região central da cidade de Santo André; porém, a noite chegou e ficamos
expostos aos riscos da violência urbana. Então, fomos até o estacionamento fechado e descoberto de um
supermercado perto dali e, ainda dentro do veículo, concluímos a entrevista em um terceiro momento. A
princípio esse depoimento deveria ser usado somente como teste para o formulário de questões; no entanto,
suas informações foram preciosas o bastante para passar a compor o corpus empírico da pesquisa.
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95
Destarte, existe a necessidade da escolha de um método de pesquisa que favoreça o
contato direto e uma relação mais informal com os pesquisados do que aquela que se
instaura dentro de uma fábrica. Salvo duas pessoas (Alex e Sérgio), não entrevistamos
conhecidos diretos; a grande maioria foi indicada por alguém com quem mantínhamos
contato.
Com o fito de constituir essa relação informal e destituída de laços institucionais
foi que elegemos o método rede social, definido como um "conjunto de relações que
ligam pessoas, posições sociais [...], grupos e organizações" (Johnson, 1997: 190).
Conforme Both (1976), uma das precursoras desse conceito antropológico, na
Inglaterra, a utilização de rede na pesquisa social tem sido feita tanto como um tipo de
organização social quanto como um método, e é precisamente nesse último sentido que
foi empregado nesta pesquisa.
Tomando como pressuposto que o indivíduo não é um ser isolado, mas, antes,
sociável, mantendo relações formais com instituições e informais com pessoas
próximas, Both concebe como rede “todas ou algumas unidades sociais (indivíduos ou
grupos) com os quais um indivíduo particular ou um grupo está em contato” (idem, p.
299). Nesse particular, a autora observa que os indivíduos e os grupos não subsistem
sem suas redes de relações externas. Reside aí a pertinência das redes para o estudo
sociológico, pois, embora aqui o sujeito seja o foco da investigação, ele é considerado
com todos os vínculos sociais que estabelece no interior da sociedade.
Logo, para chegar até os entrevistados, foi constituída a montagem de canais de
informações. Em vez de recorrer ao expediente “agências de contatos” (maternidades,
escolas, associações, igrejas, partidos), como fez Both, utilizou-se o de “agentes de
contatos”, ou seja, pessoas físicas, e não jurídicas ou instituições. Com esse
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96
procedimento, construíram-se contatos do modo mais informal possível, desprovidos
de influências imediatas de instituições, salvo da própria família dos entrevistados.
Basicamente, o emprego do método rede social consistiu em montar redes de
informantes cujas indicações eram provindas de amigos, colegas de faculdade e de
trabalho, parentes, conhecidos, tecendo assim malhas que possibilitassem o acesso aos
sujeitos da pesquisa. Com o emprego desse método, pouco a pouco, foram-se abrindo
leques de informantes, subsidiando e dando concretude para a pesquisa de campo.
A composição da rede social de relações se perfez por intermédio de indicações
advindas dos próprios entrevistados, iniciando com um trabalhador já contatado em
nossa pesquisa de mestrado, o Alex, uma vez que ele se havia posto à disposição para
auxílios futuros. Alex foi para essa pesquisa o que Both classifica de core person, pois,
a partir dele, constituiu-se a principal e mais densa rede de informantes, cujo montante
chegou a treze operários, mais da metade do universo pesquisado.
Idealmente, a rede social deve contar com apenas um core person, ou ainda a
pessoa informante a partir da qual a rede foi montada (Both, 1976: 301). Não obstante,
sabendo que a realidade é dinâmica e negligencia a rigidez das teorias, na prática,
comumente, as redes e suas malhas se esgarçam e para o pesquisador prosseguir em
campo ele tem de buscar novos core persons.
Nesse passo, dada a “infidelidade do meio”, para empregar um termo de
Canguilhem, tivemos de montar outra rede a fim de ter acesso a maior diversidade de
experiência de informantes, pois, embora os componentes da primeira rede tenham
fornecido informações bastante densas, eram todos pertencentes a duas grandes
montadoras, todos atuando somente na pré-montagem. Assim, mediante indicação de
uma amiga pesquisadora, foi possível montar uma segunda pequena rede de dois
integrantes diretos da linha de montagem. Diversificando ainda mais o perfil dos
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97
informantes, uma terceira rede foi construída, com cinco operários vinculados a
metalúrgicas de pequeno e de médio porte. Houve ainda no início do campo uma
tentativa de montagem de rede, cuja composição restringiu-se a apenas uma malha, ou
seja, um único operário, que, entretanto, não indicou outros para que uma rede pudesse
ser constituída.
2.6 Condições relacionais e ambientais da pesquisa de campo
Várias são as razões que levam uma rede a romper-se; por vezes, esse
resultado decorre dos próprios métodos empregados, como foi o caso aplicado nas três
redes mencionadas acima, pois é preciso tecer outra rede, se os próprios sujeitos da
pesquisa não conhecem pessoas com o novo perfil desejado. Entretanto, há casos em
que esse rompimento independe do próprio pesquisador: a rede simplesmente se
quebra porque seus últimos integrantes, por motivos diversos, não fornecem indicações
de outros informantes.
Nessa situação de quebra da constituição da rede pelo próprio informante
pode-se citar o caso da única malha rompida nesta pesquisa. Trata-se de um operário
que embora curse o ensino superior, Administração, escolheu-o sem qualquer interesse
pela área, simplesmente pelo fato de a aquisição de um diploma universitário ser uma
necessidade do mercado. Ademais, ele afirmou não gostar de estudar e que sua
freqüência ao curso se devia à proximidade da faculdade em relação a sua casa. Esse
desestímulo acadêmico provavelmente justifique seu desinteresse em contribuir para
que fosse construída uma rede, a partir de suas indicações, para o desenvolvimento
desta investigação, já que ele, mesmo mantendo uma rede considerável de amizades
operárias, tanto em fábricas quanto na faculdade, não conseguiu persuadir ninguém a
prosseguir a malha.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
98
Se a razão desse operário para a quebra da rede foi o desinteresse pela
pesquisa, detectou-se o oposto por parte especialmente dos componentes da primeira
rede. Nesta, a razão para que as pessoas aceitassem participar do trabalho foi
essencialmente o respeito pelo papel desempenhado pela pesquisa na sociedade. A
maioria dos seus integrantes manifestou admiração pelas letras e desejo de freqüentar a
pós-graduação.
Ao lado da admiração pela pesquisa, havia também uma segunda razão para
concederem entrevistas: o orgulho por poder ser entrevistado, por poder expressar seu
ponto de vista e por ele fazer valer seu lugar na sociedade. Portanto, a entrevista era
usada como um instrumento transmissor de opiniões, uma forma de externar as vozes
de uma categoria que tem interpretações acerca de sua própria experiência. Esse
motivo fez-se presente tanto na primeira quanto na terceira redes de entrevistados.
Uma terceira razão para que alguns aceitassem participar do trabalho de
campo foi a consideração por nosso conhecido em comum. Isso ocorreu na segunda
rede social, cujo core person foi um amigo nosso, tio do primeiro entrevistado dela.
Nesse caso não se configurou, pelo menos explicitamente, a admiração pela pesquisa e
quase nenhum orgulho, com exceção de um entrevistado, em ser porta-voz da
experiência operária. Esse operário, que demonstrou orgulho por fazer parte da
pesquisa, Leomar, é o mais velho entre os pesquisados; ao contrário do que se poderia
esperar, ele não evidenciou qualquer timidez diante da situação. No entanto, foi um dos
poucos que fez questão de enfatizar a sua falta de hábito em lidar com uma situação de
entrevista, o que, ao final, acabou por se anunciar como modéstia; afinal, seus 39 anos
de experiência já bastavam para tornar sua fala indispensável.
Não obstante, não se pode deixar de mencionar que nem sempre o fato de ser
conhecido de um conhecido nosso nos garante o aceite da entrevista. Houve inclusive
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99
um caso notável desse gênero de recusa. O operário em questão é cunhado do irmão do
nosso amigo. Ao ser contatado por telefone, ele respondeu-nos prontamente: “Eu gosto
do que faço [no meu trabalho], mas só enquanto trabalho; depois, não gosto nem de
ouvir falar de máquina”. Afirmação um tanto ambígua: gostar de fazer enquanto faz,
mas não gostar de falar a respeito. Há que se indagar a que gênero de gostar ele se
refere. É como se o seu gostar tivesse um espaço determinado para atuar e fora dele
configuraria a transmutação de lugar e também de sentido do mesmo objeto.
Ao final da conversa, sensibilizado e demonstrando-se solidário com a
situação, o operário acima amenizou: “Ficamos assim, então: se você precisar eu posso
fazer [a entrevista], só pra te ajudar”. Certamente preferi não recorrer novamente a ele,
primeiro por uma questão ética de respeito a sua vontade e depois porque já é sabido
que uma conversa forçada não surte efeitos pertinentes do ponto de vista das
informações concedidas. A generosidade revelada no segundo momento dessa fala
anuncia a última razão do aceite de entrevista, também constatado em outros operários.
Concordar em participar da pesquisa de campo em função da solidariedade,
pelo sentimento de ajudar o outro, no caso a pesquisadora, se fez presente em alguns
integrantes da primeira rede. Configurou-se, desse modo, uma quarta razão para a
participação. O mais interessante é que se tratou de uma sensibilização espontânea,
decidida pelo próprio operário, sem qualquer interferência explícita da pesquisadora. A
situação atual foi diferente da que ocorreu no trabalho de campo do mestrado, em que,
em alguns momentos, foi necessário recorrer a esse argumento, mostrando as
dificuldades para montar a rede e suas conseqüências para a efetivação da pesquisa.
Certamente, a prontidão em ajudar sempre vem permeada de outros significados nem
sempre tão nítidos, mas pode-se aludir ao caso da operária Jussara que não sendo, pelo
menos de modo manifesto, admiradora desse tipo de trabalho, referiu-se a sua mãe,
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100
professora doutora em uma universidade federal, que a havia aconselhado a levar a
entrevista a sério por tratar-se de algo muito importante para o conhecimento.
Em situação de campo, outro aspecto que merece atenção é a relação com o
bairro. As casas dos operários em sua grande maioria dispõem de conforto
considerável, haja vista que são pessoas cujas rendas familiares
43
ocupam lugar
mediano se comparadas com a renda média da população, porém elas sempre
margeiam bairros em que vivem populações bastante carentes. Esse cenário de pobreza
é claramente visualizado nos bairros da região da zona leste e em suas imediações, em
que morros íngremes sustentam casas bastante simples e precárias, parecendo
construções inacabadas, de tijolo à vista sem reboco, amontoadas e impedindo de se
enxergar o horizonte. No entanto, a vista que se tem lá do alto é panorâmica; de cima
dos morros é possível avistar longe e ver onde a Serra do Mar se anuncia. Assim, é
possível perder-se no olhar e ver no distante a beleza que o perto teima em esconder.
Os moradores do morro se orgulham dessa vista, não é uma aquisição ao alcance de
todos, sobretudo daqueles que tem de se encarcerar em grades em suas próprias casas
para fugirem da violência que se alastra.
Periferia e violência é um par que caminha junto. Em nossas andanças pela
periferia para encontrar as casas dos operários deparamos-nos com algumas situações
limites da insegurança que povoa a cidade. Três delas merecem destaque, todas
transcorridas na zona leste. A primeira foi em uma grande avenida, em que passávamos
em um domingo de muito sol, e do outro lado da pista, sobre a calçada, havia um
homem armado, com comportamento nervoso, apontando um revólver prateado para as
cabeças de dois homens deitados no chão. A segunda foi quando buscávamos um
caminho alternativo para chegar até a periferia de Mauá, nos perdemos e chegamos à
43
- A renda familiar média dos entrevistados está na faixa de R$ 2.501,00 à R$ 3.000,00, sendo que a média de
moradores por casa é de 3,7 pessoas. Já o salário médio do próprio operário é de R$ 1.501,00 à R$ 2.000,00.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
101
entrada de uma das favelas mais violentas da região. Hesitantes em prosseguir,
resolvemos voltar e refazer o caminho indicado pelo operário, que gentilmente veio ao
nosso encontro para nos conduzir até a sua casa; depois fomos informados de que
naquela favela houve crimes bárbaros e que os estranhos que lá entram dificilmente
retornam. Finalmente, a terceira situação ocorreu enquanto nos encontrávamos dentro
da casa de uma entrevistada: de repente, ouviu-se barulho de tiros, ninguém da casa
teve qualquer reação; quando íamos embora uma vizinha veio avisar sobre o recém
assassinato de um homem a poucos metros dali.
Todavia e paradoxalmente, o ambiente externo de perigo da periferia contrasta
com a recepção calorosa com que os entrevistados e seus familiares nos recebem. Essa
hospitalidade no tratamento não se restringia às visitas de cortesia como acabava
caracterizando aqueles que visitávamos acompanhados de um seu parente, como
ocorreu na segunda rede social. O acolhimento cordial era generalizado, embora mais
enfático nas casas mais simples, em que todos os familiares encontravam um espaço,
antes, depois ou mesmo durante a entrevista, para participar de alguma forma da
conversa, bem como para nos convidar para retornar as suas casas para visitá-los.
Um sinal bastante marcante da receptividade dos operários e de seus familiares
esteve no compartilhamento junto à mesa, que, aliás, é um traço cultural que
carregamos. Muitos foram os quitutes saborosos acompanhados de bebidas que nos
ofereceram, houve até mesmo um almoço preparado para ser compartilhado conosco
uma vez que o horário disponível pelo entrevistado (Inácio) era justamente
intercalando essa refeição.
Feitas algumas considerações sobre as condições ambientais e relacionais no
trabalho de campo vividas por pesquisadora e pesquisados, resta mencionar o
encaminhamento e tratamento das informações colhidas em campo.
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102
2.7 Transcrição e análise das informações
Concluído o trabalho de campo, fez-se necessário recorrer aos serviços de
terceiros para a transcrição das entrevistas, o que se deveu tanto ao grande volume de
gravação obtido, em torno de 50 horas, quanto ao programa de doutorado na França
44
que foi iniciado no mesmo período, agosto de 2005.
Embora transferindo a transcrição para uma empresa, o que não julgamos o
mais indicado quando se objetiva preservar a “veracidade” dos fatos, não nos
eximimos de, posteriormente, empreender pessoalmente uma revisão minuciosa para
assegurar que realmente ela havia sido concretizada ipsis verbis.
Procedendo à revisão das transcrições, a surpresa foi a constatação do seu
desserviço, ao contrário do acordado com a empresa encarregada das transcrições, estas
se revelaram repletas de interferências dos próprios transcritores: resumo de idéias,
longos trechos não transcritos, troca de palavras, inversão de sentidos.
A gravidade do desvirtuamento da comunicação “real” das falas dos
entrevistados alcançou tal dimensão que nos levou a recusar a dar início à análise das
informações contidas no material resultante, dada a sua falta de confiabilidade.
Para solucionar essa contrariedade, empenhei-me de forma pessoal,
juntamente com um pesquisador de confiança, na correção rigorosa das transcrições
das entrevistas. Tarefa árdua, que tomou quatro meses de trabalho intenso, mas que ao
final recompensou dada a fiabilidade alcançada.
44
- O programa de doutorado que realizei na França contou com a co-orientação do filósofo Yves Schwartz,
principal referência teórica desta pesquisa, professor titular na Université de Provence, no curso de
Ergologie, na cidade de Aix-en-Provence, onde permaneci envolvida com pesquisa e debates entre agosto de
2005 e julho de 2006. Mais detalhes sobre o departamento de Ergologia e sua abordagem, o único envolvido
com pesquisa pluridisciplinar sobre o tema trabalho, confrontar o site www.ergologie.com.
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103
Passada essa fase de transferência da informação oral para a escrita, entramos
na fase de organização e sistematização dos depoimentos, bem como da ficha do
informante e do diário.
As informações que as entrevistas portam sobre as experiências dos operários
detêm riqueza insubstituível, tanto é que são muitos os trechos transcritos literalmente
no transcorrer da tese. Porém, frequentemente são informações órfãs de contexto, há
sempre algum pormenor importante, a priori subentendido, mas que só é alcançado
relativamente pelas anotações que fazemos constar do diário de campo. Por isso, este
sempre permeou muitas das considerações impressas nas análises em curso.
Concomitantemente à análise das informações do campo foram surgindo um
arsenal considerável de temas e sub-temas, muitos dos quais, aqueles julgados mais
significativos para a compreensão da re-normalização operária, foram incorporados em
capítulos e, finalmente, analisados e conjugados com outras interpretações.
Pontuada, ainda que brevemente, a trajetória do campo até o tratamento das
informações nele coletadas, segue-se adiante a caracterização e o perfil sócio-
profissional dos sujeitos da pesquisa, retirados basicamente da ficha do informante,
donde brotam informações objetivas e suscetíveis de comparações. Inicia-se, assim, a
apresentação daqueles cujas falas constituirão o ponto de convergência da análise.
2.8 Sujeitos da Pesquisa
Visando estabelecer contato direto com os testemunhos das experiências e das
práticas normativas dos trabalhadores, os operários de chão de fábrica foram eleitos
como sujeitos da pesquisa, conforme já foi salientado no início deste capítulo.
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104
À categoria dos operários, posteriormente tratados de operadores e atualmente
de agentes de fabricação
45
, cabe o papel daqueles que coercitiva ou “autonomamente”
executam. Executam justamente as normas concebidas por outros, aqueles incumbidos
de desenvolver planos, seqüências, durações e modos operacionais para o cumprimento
de tarefas.
O encargo por excelência dado aos operários, de “executar” sua atividade, a
priori fortemente predeterminada por outrem, torna-os sujeitos de extrema relevância
na investigação da conjunção entre o prescrito e o praticado. É a essa categoria, mais
do que a qualquer outra, que se vincula, ainda hoje, o ranço do trabalho taylorizado.
Por mais que as novas organizações do trabalho declinem o princípio
taylorista da separação entre execução e concepção do trabalho e incorporem a
“autonomia” dos trabalhadores como requisito para a gestão do trabalho, é sobre a
categoria dos operários que a prescrição ainda detém espaço considerável. A
permanência da norma prescritiva deve-se se não aos condicionantes do meio, a certas
pressões que se configuram em ocasiões de controle externo de qualidade e, por vezes,
até de intolerância acerca do savoir-faire operário, assumida por certas categorias
como a dos engenheiros.
Essa discussão sobre controle externo e a intolerância dos engenheiros será
retomada mais detalhadamente nos capítulos vindouros. Cabe aqui somente mostrar
que o caráter ambíguo (autonomia-coerção) da categoria operária em torno do
prescritivo a torna eminentemente convidativa para a análise da prática normativa no
trabalho.
45
- De acordo com Herard, a mudança da designação de operário para operador e depois para agente de
fabricação visa esconder a clássica relação de conflito entre operário e patrão, situação que se deflagra com o
processo de automatização do trabalho e com a política de responsabilização do operário (2002: 142-143).
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105
Pertencentes ao chão de fábrica do setor metalúrgico, os operários sujeitos da
pesquisa atuam tanto em montadoras de veículos, ou seja, em indústrias de grande
porte, quanto em fábricas de autopeças de pequeno e médio porte. Conforme os
quadros a seguir, é possível notar o perfil detalhado dos entrevistados:
106
Perfil dos entrevistados
Quadro 1
Nome
Idad
e
Gêner
o Est. Civ. Profis. do/a cônjuge N. filhos Escolaridade Origem dos pais
ULISSES 30 M C Cobradora em empresa 2 Ens. Superior - 3º ano Adm. Ceará - z. urbana
ALEX 22 M S Não se aplica 0 Ens. Sup. - 4º ano Eng. Mec. Bahia
CELESTINO 36 M S Não se aplica 0 Ens. Superior - 2º ano C. Cont. Ceará - z. urbana
ANA 22 F S Não se aplica 0 Ens. Sup. - 4º ano Eng. Mec. Não informado
SÉRGIO 35 M C Professora eventual 0 Ensino Médio São Paulo - z. rural
GUILHERM
E 22 M C Dona de casa 0 Ensino Sup. Incompleto São Paulo - z. urbana
PABLO 23 M S Não se aplica 0 Ensino Sup. - 3º ano Adm. Minas Gerais - z. rural
MIRO 50 M C Dona de casa 2 Ensino Médio São Paulo - z. rural
DEMERVAL 43 M C Dona de casa 1 Ensino Fundamental São Paulo - z. rural
LEOMAR 60 M C Dona de casa 3 Ensino Médio São Paulo - z. rural
FABRÍCIO 27 M S Não se aplica 0 Ens. Sup. - 1º ano C. Sociais Alagoas - z. rural/urbana
JACK 29 M C Gerente farmacêutica 0 Ens. Sup. - 4º ano Análise Sist. Pernambuco/S. Paulo - z. rural
SONIA 44 F C
Aposentado
(metal.)/CET 1 Ensino Médio Bahia/São Paulo - z. urbana
JOÃO 53 M C Dona de casa 2 Ensino Médio Pernambuco/S. Paulo - z. rural
JÉSSICA 20 F C Metalúrgico 0 Ensino Médio - Técnico Mec. São Paulo
EMIR 21 M S Não se aplica 0 Ens. Sup. - 4º ano C. Sociais São Paulo
JUSSARA 30 F C Motorista de ônibus 2 Ensino Médio São Paulo/SP - z. urbana
INÁCIO 39 M C Dona de casa 4 Ens. Fundamental Bahia
JOSI 22 F S Não se aplica 0 Ens. Sup. - 4º ano Direito São Paulo
ZÉLIO 23 M S Não se aplica 0 Ens. Sup. - Desenho Industrial São Paulo/Pernambuco
VALÉRIA 20 F S Não se aplica 0 Ens. Sup. - 1º ano Turismo Bahia/Minas Gerais - z. rural
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107
Quadro 2
Nome Profis. do pai Profis. da mãe N. irmãos Religião Cidade 1º emprego
ULISSES Operador de máquina Dona de casa 4 Católica S. B. Campo 13 anos (flanelinha)
ALEX Aposentado (metal.) Desempregada 2 Católica/Esp./Evang. Santo André 17 (Senai)
CELESTINO Falecido Aposentada 10 Católica
São Paulo/zona
norte 20 (office boy)
ANA Aposentado (metal.) Acumputurista 1 Testemunha de Jeová Santo André 17 (Senai)
SÉRGIO Aposentado (tecelão) Dona de casa 1 Católica São Paulo/zona leste 14 (ajud. de confecção)
GUILHERM
E Metalúrg. (aposent. ativo) Dona de casa Não inf.
Testemunha de Jeová
São Paulo/zona leste 17 (Senai)
PABLO Encarregado de calderaria Dona de casa 2 Ateu Santo André 17 (Senai)
MIRO Agricultor Dona de casa 4 Católica São Paulo/zona leste 13 anos (roça)
DEMERVAL Falecido Falecida Não inf. Católica São Paulo/zona leste 7 anos (roça)
LEOMAR Metalúrgico Dona de casa Não inf. Católica/Espírita Santo André 14 anos (oficina mecâmica)
FABRÍCIO Metalúrgico Artesã de terço 3 Sem religião S. B. Campo 12 anos (fábrica de rádio)
JACK Aposentado (metal.) Dona de casa 1 Católica Mauá 13 anos (ajud. pedreiro)
SONIA Falecido Falecida 5 Católica S. B. Campo 15 anos (fábrica de alparcatas)
JOÃO Desconhecido Falecida 3 Católica Mauá 14 anos (supermercado)
JÉSSICA Metalúrgico Não informado 4 Sem religião S. B. Campo 17 anos (Senai)
EMIR Caminhoneiro Professora Ens. Fund. 2 Ateu S. B. Campo 17 anos (Senai)
JUSSARA Motorista partic. Prof. Ens. Sup. (enfermagem) Não inf. Católica São Paulo/zona leste 13 anos (aux. prof. ed. infantil)
INÁCIO Metalúrgico Dona de casa 9 Evangélica Mauá 10 anos (engraxate)
JOSI Tesoureiro Dona de casa 2 Católica Santo André 17 anos (Senai)
ZÉLIO Aposentado (Almoxarife) Voluntária em enfermagem 3 Católica Santo André 14 anos (lanchonte de escola)
VALÉRIA Metalúrgico Autônoma - vende salgados 4 Evangélica S. B. Campo 17 anos (Senai)
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Quadro 3
Nome Ocupação atual Sub-setor Tempo de trabalho no ramo Setor Porte Fábrica
ULISSES operador de estamparia estampagem de peça 10 anos Estamparia G Montadora A
ALEX analista de processos de produção carroceria 4 anos e 8 meses Pintura G Montadora A
CELESTINO preparador de carroceria carroceria 10 anos Pintura G Montadora A
ANA operadora de dinamômetro teste de motores 4 anos Qualidade G Montadora B
SÉRGIO operador e programador de torno CNC equipamentos de solda 14 anos Usinagem P Auto peças A
GUILHERME fresador ferramenteiro CNC fieira de banda de rodagem 5 anos Ferramentaria M Auto peças C
PABLO montador periféricos do motor 5 anos
Pré-
Montagem G Montadora B
MIRO torneiro mecânico (aposentado ativo) usinagem de peças diversas 30 anos Usinagem P Auto peças B
DEMERVAL torneiro mecânico equipamentos de solda 24 anos Usinagem P Auto peças A
LEOMAR ajustador mecânico (aposentado ativo) fieira de banda de rodagem 39 anos Ferramentaria M Auto peças C
FABRÍCIO montador periféricos do motor 10 anos
Pré-
Montagem G Montadora B
JACK montador periféricos do motor 11 anos
Pré-
Montagem G Montadora B
SONIA montadora cabeçote 8 anos
Pré-
Montagem G Montadora B
JOÃO operador de célula (aposentado ativo) usinagem de eixo 25,5 anos Usinagem G Montadora B
JÉSSICA operadora de máquina CNC usinagem de engrenagem 2 anos Usinagem G Montadora B
EMIR operador de máquina CNC usinagem de engrenagem 3 anos e 4 meses Usinagem G Montadora B
JUSSARA montadora motor 8 anos
Pré-
Montagem G Montadora B
INÁCIO montador painel 22 anos Montagem G Montadora A
JOSI montadora motor 5 anos
Pré-
Montagem G Montadora B
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ZÉLIO montador motor 5 anos
Pré-
Montagem G Montadora B
VALÉRIA montadora painel 2 anos Montagem G Montadora A
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109
A planta produtiva das montadoras está dividida em sete setores: estamparia,
armação, pintura, ferramentaria, usinagem, montagem final e manutenção
46
. Dentre
esses setores, dois não estiveram presentes nesta pesquisa, quais sejam: o de
manutenção e o de armação. O primeiro fez-se ausente por razões de escolha
metodológica, uma vez que se trata de um setor em que as normas prescritas exercem
menos coerção sobre o modo de os operários trabalharem. Seus instrumentos de
trabalho são menos atingidos pela cadência; logo, o espaço de re-normalização coloca-
se deliberadamente menos aprisionado ao prescrito. Já a armação não obteve
representação pelos operários analisados em função de contingências da metodologia
rede social, ou seja, entre as redes de informantes construídas pelos próprios operários,
não houve nenhuma ocorrência nesse setor.
Os setores mais representados são os de montagem, sobretudo a pré-
montagem, e de usinagem. Especialmente o setor de montagem é marcado pela coerção
tempo-espaço e meta de produção, logo constituindo um ambiente fecundo na
revelação das práticas normativas operárias. Essas mesmas práticas também são
bastante perceptíveis no setor de usinagem, em que os operários operam máquinas,
dispostas ou não em células, cujo funcionamento constantemente lhes apela para
interferirem no modo de trabalhar para que possam cumprir seu trabalho.
Além dos setores de montagem, usinagem, ferramentaria e estamparia, a
pesquisa está representada ainda pelo setor de qualidade, especificamente o sub-setor
de testes de motores. Embora não pertencente à cadeia produtiva em si, o controle de
qualidade ocupa posição importante no questionamento das normas estabelecidas.
46
- Conforme A. Cardoso, a distribuição dos trabalhadores da montadora que pesquisou é a seguinte: “19% na
armação, 9% na estamparia, 12% na ferramentaria e manutenção, 25% na montagem final, 13% na pintura e
20% na usinagem” (2007).
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110
Doravante, segue o traçado do perfil dos sujeitos da pesquisa. Com ele
desenha-se um panorama geral das características sociais, familiares e profissionais
daqueles que serão a principal fonte das informações vivas da experiência operária nos
capítulos vindouros.
Trata-se de operários, em sua maioria homens, refletindo a realidade do setor:
15 homens e seis mulheres
47
. A idade média é de 32 anos. Quase 60% é casado, dos
quais 2/3 têm filhos, em média dois. Não há nenhum caso de solteiros com filhos;
embora haja manifestação de interesse, por outro lado, há recém casados sem filhos.
Todos os casados, com uma exceção, moram em casa separada dos pais. Entre os
solteiros somente um mora sozinho, os demais moram com sua família.
Quanto à escolaridade, os operários revelam um quadro bastante preciso: 10
(quase 50%) cursam ensino superior
48
, todos pertencentes a empresas de grande porte e
dispondo de idade média de 24 anos; apenas um operário concluiu o ensino superior,
também vinculado à montadora; um operário, de empresa de médio porte, interrompeu
o curso superior por razões matrimoniais; entre os sete (33%) operários que dispõem
apenas do ensino médio: três são mulheres (duas são mães e uma é a mais jovem),
somente dois (homens) pertencem a empresas de pequeno porte, a idade média desse
grupo é de 44 anos, três são aposentados e continuam na ativa; finalmente, dois
operários (homens) dispõem somente do ensino fundamental, um de uma pequena
empresa e outro de uma grande (sendo este o que tem o maior número de filhos: 4).
47
- Há que se notar as dificuldades em conseguir mulheres para comporem o campo desta pesquisa,
especialmente acima de 30 anos de idade e com filhos. Foram três as recusas das quais duas tinham
importância estratégica para a montagem de novas redes, uma em metalúrgica de pequeno porte e outra que
trabalhava diretamente na linha de montagem.
48
- Todos os operários que cursam o ensino superior o fazem em faculdades particulares, com exceção de três que
são vinculados a uma fundação. Os cursos apresentam variações significativas: Engenharia Mecânica,
Desenho Industrial, Análise de Sistemas, Administração, Ciências Contábeis, Direito, Turismo e Ciências
Sociais.
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111
No tocante aos cursos profissionalizantes do Senai, sete (33%) operários não
o fizeram, dentre os quais somente um pertence a empresa de pequeno porte, dois
cursam ensino superior, enquanto dois têm apenas o ensino fundamental e três contam
com o ensino médio (sendo duas mulheres-mães e um tem acima de 50 anos).
A origem dos pais desses operários é praticamente metade de São Paulo e a
outra metade oriunda do nordeste. 57 % desses pais também pertenceram à categoria
operária, enquanto que entre as mães a grande maioria é de donas de casa. Somente
duas dispõem de profissão reconhecida, ambas professoras, uma do ensino
fundamental e outra de uma universidade federal (sendo esta a mãe de uma operária-
mãe que conta somente com o ensino médio).
No que se refere à religião dos operários, pouco mais de 50% é Católica, 30%
se distribui em Evangélica (Pentecostal), Testemunha de Jeová (Para-Pentecostal) e
duplicidade ou triplicidade religiosa, misturando as duas primeiras com o Espiritismo.
O que chama atenção é os 20% restantes se autoclassificarem como ateus ou sem
religião. A esse respeito não se pode deixar de notar que, entre eles, três são justamente
os únicos que freqüentam o curso superior em uma fundação, sendo dois em Ciências
Sociais.
O tempo médio de trabalho no ramo fabril dos sujeitos da pesquisa gira em
torno de 12 anos, porém variando entre 2 e 39 anos. Entraram para a vida ativa com
idade média de 14 anos. Dentre os que começaram a trabalhar mais cedo estão
justamente aqueles dois que dispõem somente do ensino fundamental, 7 e 10 anos de
idade, um na roça e outro de engraxate, respectivamente. Entre os que iniciaram a vida
ativa com 12 e 13 anos, 3 estão cursando o ensino superior e os outros têm ensino
médio (uma é mãe e o outro tem 50 anos de idade).
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112
Finalmente, suas ocupações estão distribuídas em 42% de montadores, 30%
de operadores, 10% de torneiros e o restante de fresador-ferramenteiro, ajustador,
preparador e analista de processo de produção. A grande maioria desses trabalhadores
(76%) trabalha em montadoras na região do ABC. A ênfase nas empresas de grande
porte foi uma opção teórico-metodológica, uma vez que se considera ser justamente
nesse ambiente em que as normas prescritas se colocam de forma mais prementes dada
especialmente a forte presença de equipamentos ultra-modernos. Já as fábricas de
pequeno e de médio portes, localizadas em Santo André e na zona leste da cidade de
São Paulo, são trazidas para fazer contrapontos, possibilitando tecer considerações de
analogias e de diferenças na vivência operária.
Vale sublinhar que, embora os sujeitos da pesquisa sejam essencialmente
operários vinculados ao chão de fábrica, fez-se presente um analista de processos de
produção, ocupação classificada como engenheiro. O trabalhador em questão é o Alex,
um jovem de apenas 22 anos. Embora atualmente ele atue como engenheiro, ocupava
esse cargo havia apenas oito meses, ainda guarda sua identidade com as experiências
de operário preparador de carroceria, ocupação na qual permaneceu durante quatro
anos na mesma montadora. A princípio houve hesitação em adicionar ao conjunto o
depoimento desse trabalhador por ele não pertencer ao público alvo da pesquisa.
Posteriormente, decidiu-se incluí-lo, quando se constatou que a maior parte de sua
narração se voltava para sua experiência operária e exigüamente para a de engenheiro.
Quando fez alusão à última, recorreu a reflexões críticas que contribuem de forma sui
generis para a compreensão das dificuldades de interlocução entre as duas categorias,
quais sejam operários e engenheiros, por sua vez intrincadas na vivência e na
elaboração de normas fabris.
No próximo capítulo, dar-se-á prosseguimento à caracterização dos sujeitos de
pesquisa, porém não mais apontando traços gerais que constituem seus perfis
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analisados panorâmica e “objetivamente”, mas sim investigando mais miudamente sua
relação com o ambiente fabril, físico ou relacional, trazendo à baila aspectos próprios
da experiência operária.
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Parte II
ESPAÇO, TEMPO, SUBJETIVIDADE E VALORES OPERÁRIOS
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Apresentação
A segunda parte da tese consiste em analisar as informações auferidas junto
aos operários, trata-se do chamado estado de arte da pesquisa, em que são trazidos à luz
os achados provindos das experiências vividas e narradas pelos sujeitos analisados.
O capítulo de abertura versa sobre o ambiente fabril, relações com os chefes,
os companheiros, o medo do perigo e a apropriação do espaço. No segundo
caracterizam-se as normas fabris, seus condicionantes e limitações no sistema
produtivo. No último são concretamente retratadas as relações de re-normalização
tecidas pelos operários com o tempo, os equipamentos e os seus valores.
A tese é trilhada, portanto, buscando mostrar que mediante a inoperância
gestionária oficial, o cotidiano fabril é reconstruído pelos operários, que intervêm em
diversas instâncias da fábrica, como no modus operandi, no tempo, no relacionamento
e nas ferramentas e maquinários.
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Cap. 3 Cenário do chão de fábrica: da subjugação
à apropriação
Introdução
Gerir o trabalho é uma atividade que não se restringe à produção; ela concerne
também ao clima físico e relacional e à própria subjetividade do trabalhador (R.
Carvalho, 1996: 241). É esse veio interpretativo que orientou a análise das informações
resultantes da pesquisa de campo, indo do visível, o ambiente, ao invisível, a
subjetividade, justamente porque são esferas indivisíveis.
O meio fabril é analisado aqui tendo como referência os valores presentes nas
relações dos operários, notadamente aqueles atinentes à autonomia, à sociabilidade, à
pulsão de vida e morte e à apropriação.
Trazer à baila o ambiente do chão de fábrica, tanto o físico propriamente dito
quanto as relações fomentadas entre os próprios trabalhadores e destes com os seus
chefes, permite desenhar imageticamente e dar vida para o cenário sobre o qual serão
apresentados os testemunhos dos operários na discussão a seguir.
Portanto, o núcleo deste capítulo consiste precisamente em examinar as
relações entre pessoas e destas com o espaço fabril de modo geral, sem considerar
máquinas e normas que serão tratadas nos capítulos vindouros.
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3.1 Relação com os chefes e com o controle fabril
Dentro da cadeia hierárquica fabril, a figura de alto escalão à qual os operários
estão oficialmente “subordinados” e a que têm acesso direto e mais constante é o chefe
do setor, pois o supervisor e o gerente estabelecem pouco contato com o chão de
fábrica. Os engenheiros e sua respectiva relação com os operários, no relativo
especificamente ao âmbito das normas operacionais, serão aludidos mais adiante, em
capítulo específico sobre a re-normalização operária.
A relação dos operários com os chefes revela-se diversa da antiga imagem do
algoz, contratado para vigiar e punir os operários. Sua postura dentro da fábrica ganhou
uma conotação mais amena.
Essa mudança pode ser apontada por algumas razões. A primeira delas talvez
se encontre na idéia do panóptico, discutida por Foucault (1979), em que a disciplina
foi introjetada a tal ponto no próprio corpo dos operários que eles mesmos se policiam
entre si. Quiçá, então, a razão resida na instabilidade atual presente no mercado de
trabalho, levando aqueles que fazem parte dele a prezarem o seu posto como forma de
tentar garantir sua continuidade nele. Uma terceira razão, apontada por alguns
operários, reside na alta qualificação da mão-de-obra, especialmente das grandes
montadoras, o que leva os chefes a serem, em tese, mais cordiais no trato aos operários.
[A] postura da chefia também mudou, eles mudaram o
tratamento no dia a dia, hoje eles tentam ser mais
amigáveis, mais comunicativos, antes era aquela coisa de
[...] imposição [...] isso veio também [...] pelo tipo de
pessoa que está trabalhando na fábrica hoje, porque já é
um pessoal que tem mais estudo, é mais esclarecido
(Fabrício, 27 anos, montador, Montadora B – grande)
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Somente um substantivo é empregado pelos operários para definir chefe: “o
chefe é a linha”. Isso quer dizer que o papel dele se restringe basicamente a garantir a
produção; não vem ao caso conhecer os subterfúgios usados pelos operários para que
seja atingida; o funcionando da linha é o que realmente importa.
Tem chefe que não liga [para quem faça atividades extra-
produtivas] [...] o que ele quer é que você faça produção,
ele vê que cê já saiu da produção, sabe que cê ta fazendo
aquilo, ele não liga. O que ele não quer é que cê traga
chefe pra área dele, dá problema pra vim os grandões pra
identificar que ele deixou de fazer alguma coisa ou de
apertar alguma coisa, aí ele vem apertar a gente [...] hoje
não tem muita vigilância de ficar ali direto. Ele fica ali.
Deu problema, ele está ali, não deu problema... Queira ou
não queira o chefe é a linha. Não tem jeito. A linha vai
andar e ele vai dizer pra você: “Oh, cê tem que tirar tantos
carros”. Enquanto ele sabe que a linha roda, ele corre
atrás da parte administrativa e deixa nós um pouco solto
e aí a gente faz a nossa parte. (Inácio, 39 anos, montador
da linha, Montadora A – grande)
Em pesquisa realizada na Ford de Bordeaux, Hérard analisa os operários
dentro de uma abordagem intitulada antropologia operária, que consiste basicamente
em mostrá-los como constituídos por elementos plurais acessados diretamente de suas
próprias categorias de pensamento, não podendo, portanto, serem tomados a priori.
Um dos elementos investigados concerne à avaliação feita pelos operários sobre seus
chefes, julgados como estando longe de agentes despóticos, sendo vistos como
responsáveis em gerir a relação entre operários e responsáveis pela quota de produção
(2002: 235-237).
A constatação acima é corroborada pelos operários por nós contatados, que
concebem o chefe como sinônimo da linha, porém, por vezes, acrescida de tratamento
abjeto para com os trabalhadores. O apreço pelos resultados da produção e a postura de
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119
indiferença às pessoas são narrados por Ana em circunstância aparentemente
descontraída e até diplomática, o que se justifica, conforme ela, pelo respeito ao seu
gênero feminino:
meu chefe [fala]: “cuidado com a qualidade, com a
segurança”, mas é da boca pra fora, o que ele vem te
cobrar todo dia é saber quantos motores você tirou, isso
ele pergunta todo dia [...] de manhã ele passou por mim e
[...] falou [...]: “Ana, sua cela [de teste] tá boa?”. Eu falei:
“Bom dia pra você também”. Todo mundo riu. Ele falou:
“Ah, desculpa, eu não te vi hoje”. Eu falei: “Então da
próxima vez que você passar por mim você cumprimenta,
pergunta se tá tudo bem comigo e depois pergunta da
produção”. “Não! Tá, tudo bem, desculpa, desculpa. Você
tá bem?”. “Tô”. “E a produção?” [risos] (Ana, 22 anos,
operadora de dinamômetro, Montadora B – grande)
Embora Fabrício tenha destacado o tratamento mais comunicativo dos atuais
chefes em sua fábrica, Ana, pertencente a outra montadora, portanto interagindo com
chefe diferente, permite uma interpretação que leva a denotar a comunicabilidade do
chefe com o operário como mera formalidade, ao se revelar desinteressada pela
interação com o trabalhador.
meu chefe me irrita muito [...] ele tá lá [...] faz pouco
tempo [...] não sabe nada de teste [...] ele começou a
perguntar [sobre teste de motor] [...] Só que cê tá falando
com ele e ele sai andando, larga cê falando. Isso é [...]
motivo d’eu fechar a cela e xingar [...] só não xingo pra
ele. Outro dia fiquei nervosa, eu tava falando com ele
assim... E eles andam com radinho falando com os outros
chefes, o tempo inteiro [...] de problema. Aí ele falando
comigo e saiu andando. Eu olhei pra cara do meu...
[colega] e falei: “Não acredito!”. Ele falou assim: “É
normal né, dele.” Falei: “Então, ele é louco [...] porque é
uma [...] falta de educação”. A pessoa pode tá falando
uma besteira, mas pelo amor de Deus, deixa terminar de
falar. Era uma coisa que ele me perguntou ainda, nem
terminei de responder, ele saiu andando. (Ana, 22 anos,
operadora de dinamômetro, Montadora B – grande)
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O enredo desse testemunho é um convite para interpretar o interesse que os
chefes têm em estabelecer trocas com os operários como uma suposta prática de
comunicação esvaziada de per si, ou seja, ela pode colocar-se simplesmente como um
meio para estabelecer certa proximidade com o operário visando outro fim, qual seja a
produção.
Um dos motivos da aproximação dos chefes, assinaladas por Fabrício,
concerne em legitimar a idéia de “trabalhador colaborador”. Eles aproximar-se-iam,
então, dos operários para fazê-los crer que não são somente força de trabalho, mas
também “colaboradores” da fábrica.
Em sua obra sob a forma de diário, M. Durand, um antigo operário da Peugeot
de Sochaux, onde trabalhou na cadeia produtiva durante vinte anos (décadas de 1970 e
1980), descreve o seu ponto de vista sobre essa tentativa de aproximação.
Chefe companheiro [...] uma nova estratégia refinada [...]
Grande sorriso […] sabem escutar as reclamações [...]
eles tratam os operários de “você” na maior naturalidade
[...] A bendita hierarquia se torna frouxa no novo sistema
produtivo. Não há mais O.S., nem chefe, nem varredor.
Nós somos todos agentes. Não é mais preciso considerar o
chefe como um superior hierárquico, mas como [...] um
companheiro [...] [Porém, ele golpeia por trás]. Com seu
formulário siga-qualidade. Ele estuda calmamente seus
pontos fracos em seu escritório e golpeia no momento em
que lhe parece oportuno. É assim que os operários são
demitidos. (M. Durand, 1990: 208-209)
A idéia de “trabalhador colaborador”, citada por Fabrício, coaduna com as
estratégias refinadas mencionadas por M. Durand: afrouxamento da hierarquia, escuta
dos chefes e tratamento amigável, que acompanharam o processo de reestruturação
produtiva.
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No começo dos anos de 1990, deu-se início à reestruturação produtiva nas
indústrias brasileiras que passaram a adotar técnicas japonesas de gestão e organização
do trabalho. A partir de então, passou-se a exigir do trabalhador certas características
como: participação, iniciativa, criatividade, capacidade de abstração e trabalho em
equipe (Martins, H., 2001: 62-63). Entretanto, tal idéia é avaliada por H. Martins e por
outros críticos, com a qual estamos de acordo, como discurso da reestruturação
produtiva, uma vez que esse perfil de trabalhador não é levado em conta pela formação
técnica, mas muito mais pelos princípios educacionais humanistas (idem, p. 63).
Também criticando o sentido de “participação” operária, Fabrício prossegue seu
testemunho, fazendo, antes, referência ao processo de reestruturação na fábrica em que
trabalha.
De acordo com Fabrício, o papel de “colaborador”, atribuído pela empresa ao
operário, vem vinculado ao trabalho em grupo. Ele abriu sua fala a esse respeito
explicando o contexto histórico da fábrica no qual surgiu a gestão com “participação”
operária.
Isso foi com a reestruturação produtiva que [...] começou
em 95, quando eles começaram a mudar o sistema de
trabalho [...] a implantar trabalho em célula, um operador
ao invés de operar só aquela máquina, já operava 2, 3
máquinas [...] o trabalho em grupo começou mais com o
pessoal da montagem e na parte de usinagem [...] foi
quando teve essas demissões na fábrica [...] então, [...]
tinha 3 máquinas e 3 operadores, aí passou a ter as 3
máquinas e 1 operador só [...] nessa divisão de tarefas da
linha de montagem do trabalho nosso, dentro do grupo,
nós podemos organizar do jeito que a gente quiser, mexer
as pessoas, trocar [...] uma folga, é discutido dentro do
grupo [...] a gente senta e discute e entrega a escala pra ele
[chefe] e fala: “Essa semana vai folgar fulano de tal [...]”
Férias também. (Fabrício, 27 anos, montador, Montadora
B – grande)
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Com a introdução do trabalho em grupo, os operários passaram a atuar como
“colaboradores” e, especificamente, a distribuição das tarefas e alocações de dias de
trabalho e repouso entre os integrantes ficou sob responsabilidade do próprio grupo.
Depois de tal mudança, o operário adquiriu incumbência de participar da gestão,
portanto da manutenção da produtividade. Mas, seria mesmo “participação”? Quais
sentidos os próprios trabalhadores conferem a essa dita “colaboração”?
[Com] o trabalho em grupo o chefe não tem mais aquela
tarefa de tá vigiando o trabalhador, o próprio trabalhador
tá vigiando um ao outro ali. E [no] grupo ficou faltando
uma pessoa e a gente teve que ralar pra cobrir a sua
vaga, então ele se isenta daquele papel de punir a pessoa,
o próprio grupo vai pra cima do cara. (Fabrício, 27 anos,
montador, Montadora B – grande)
Fabrício tece críticas ácidas à idéia de “participação” dos operários no trabalho
em grupo, considerando-a mera transferência de responsabilidade da chefia aos
operários para aliviar seu próprio trabalho. Adicionalmente, é criada uma situação
delicada na relação entre os trabalhadores, que são premidos a vigiarem-se
reciprocamente para poder garantir o funcionamento do trabalho em equipe,
alimentando, portanto, situações de disputas e perseguições entre camaradas e,
conseqüentemente, aliviando a carga de conflito potencial na relação com os chefes.
Permeando a gestão do trabalho em grupo, encontra-se uma outra faculdade
além da de “participação”, a saber, a “autonomia”, ambas bandeiras da reestruturação
produtiva. Antes de mostrar a avaliação de Fabrício sobre a questão da “autonomia”,
tema um tanto controverso, vale fazer um breve passeio por algumas noções teóricas a
seu respeito para melhor situá-lo conceitualmente.
Embora as novas formas de organização do trabalho afirmem a necessidade de
“mobilizar a inteligência, a iniciativa e a responsabilidade dos trabalhadores”,
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123
Durrafourg destaca que essa postura não tem de forma alguma relação com
generosidade ou reivindicação humanista (1985: 119). De fato o que ocorre é que
certas dimensões do trabalho, como a vigilância do funcionamento de maquinários,
apresentam dificuldades para serem automatizadas. Assim, a concessão de certa
“autonomia” aos operários derivam de condicionantes advindos das próprias limitações
do sistema que, funcionando somente por meio de operações repetitivas, não é capaz
de antecipar incidentes e acidentes graves, havendo, então, a necessidade da
intervenção humana.
O termo “autonomia” não é empregado isoladamente por Schwartz, que ao
utilizar a expressão “usos de si por si e pelos outros” explicita também o oposto
daquele, ou seja, a heteronomia. Em “toda situação de trabalho [...] se negociam [...]
normas hetero-e auto-determinadas [...] usos de si pelos outros e usos de si por si”
(2000a: 294). Os “dramas de si” vivenciados pelos trabalhadores residem justamente
na gestão do descompasso entre heteronomia e autonomia. Nessa perspectiva, e da qual
compartilhamos, vivendo em sociedade os indivíduos não dispõem de espaço exclusivo
para a autogestão de suas próprias normas, que são geridas pari passu com aquelas
advindas exteriormente.
Diante desse contexto conflituoso de constituição de normas, avulta o papel do
sujeito. Conforme R. Carvalho, o trabalhador de uma fábrica indaga-se a respeito de si
próprio, sobre quem é em sua atividade profissional e, diante das exigências das novas
organizações do trabalho, sua subjetividade se divide em três: “O ‘eu’ é solicitado, o
‘si’ responde e o ‘mim’ interroga [...]”. Trata-se, portanto, “da existência de uma
subjetividade instrumental (prescrita) e uma subjetividade ativa que seriam os dois
reversos de uma mesma moeda” (1996: 53-54). Em outros termos, mesmo o indivíduo
sendo solicitado, ele ainda é capaz de fazer auto-reflexão, buscando compreender sua
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inserção em uma sociedade ao mesmo tempo coercitiva e constituída por brechas
normativas.
Justamente fazendo essa auto-reflexão é que Fabrício endereça críticas à dita
“autonomia” existente na fábrica, ao julgá-la pró-forma e questionável dada a maneira
como é concedida aos operários.
[No] regime de trabalho em grupo, [...] a chefia fala:
“Você, hoje tem autonomia no trabalho.” O pessoal:
“Oba, a gente tem autonomia!” Mas na verdade, eles não
vêem que é uma autonomia, é uma semi autonomia, você
tem uma certa autonomia sobre o processo de trabalho,
mas os meios, você não tem como modificar os meios de
produção, algumas regras da empresa. Então eu acho que
não é autonomia. E dentro da lógica [...] [deles], eles
seguem uma lógica de querer dizer que você faz parte,
que é uma grande família, eles vendem essa idéia [...]
quando a produção tá baixa, eles deixam você mais à
vontade, quer fazer um negócio aqui, vamos fazer uma
modificação ali, agora na hora que a produção aumenta,
aí não tem conversa. (Fabrício, 27 anos, montador,
Montadora B – grande)
Tendo como parâmetro sua própria experiência na fábrica, Fabrício re-
substantiva a palavra “autonomia”, considera-a “semi-autonomia”, por ser parcial,
permitida apenas em certos aspectos, especialmente, aqueles ligados à gestão do
trabalho, nos quais a interferência operária converge com os objetivos fabris, que
inexoravelmente carecem de sua participação. Assim, a intervenção operária é restrita a
certas instâncias e obstruída em outras, por exemplo, algumas normas e dispositivos
que os operários são coibidos de mudar (como veremos no item 5.6).
Delineia-se aí a configuração de desencontros entre as considerações fabril e
operária a respeito do espaço de autonomia normativa facultado ao trabalhador, o que,
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125
certamente, acarreta conflitos na dimensão subjetiva dos operários. Em termos de
psiquismo humano, a constituição das normas pelos indivíduos significa: “a
reivindicação e o uso da liberdade como poder de revisão e de instituição” das mesmas,
todavia o não alcance dessa reivindicação pode levar à loucura (Canguilhem, 2003:
217). Certamente essa possibilidade emerge, mas antes se delineia uma série de
subterfúgios desenvolvidos pelos indivíduos para evitar o desequilíbrio. Pode-se dizer
que um destes reside na própria crítica que o indivíduo faz à idéia de liberdade
conferida pela fábrica, além dos vínculos de sociabilidade estabelecidos para
amenizarem eventuais contrariedades.
Se feita uma ponte entre a idéia de “autonomia” e a de “liberdade no trabalho”
operário, chega-se à conclusão, perante os testemunhos dos operários, que ambos são
termos demasiadamente fortes para refletirem a atividade de operários vinculados a
uma organização fabril, cujo papel é a reprodução de determinados objetos por
intermédio de ferramentais específicos.
No que concerne ao uso do jeito próprio do operário trabalhar, nas palavras de
Fabrício “não é liberdade, você [apenas] fica mais à vontade pra trabalhar” (27 anos,
montador, Montadora B – grande). Donde se entrevê a avaliação do trabalho operário
ligada à certa margem de liberdade e de autonomia, porém sempre cerceado, em
alguma dimensão, por certos limites e controles estabelecidos pela organização fabril.
Corroborando essa interpretação de controle, Rosa pondera que:
os modelos atuais sobre o trabalho e suas práticas no uso
de si [...] convocam o Ser/Si, a manifestação da presença
de um “sujeito”, para o retrabalho das normas ou para a
atividade de renormalização. Mas isto é feito tendo em
vista direcionar e controlar o [...] conhecimento e [a]
experiência [do trabalhador]. (2005: 31)
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126
Para concluir acerca do tratamento que a fábrica concede aos operários, outro
caráter aduzido no testemunho de Fabrício concerne ao fato de ele implicar um sofisma
em relação à realidade. Recorrendo ao espaço aberto para a dita participação operária
nas decisões da fábrica, os chefes tentam incutir-lhes a idéia de que fazem parte de uma
“grande família” empresarial e que, portanto, devem zelar por ela como se fosse a sua
própria família. Ironicamente, a pseudo-democracia vigente na “participação” dos
integrantes dessa “grande família” tem hora marcada para acontecer bem como para
sair de cena, já que está subordinada à lógica da produção. Se, por razões
mercadológicas, a demanda por produção está baixa, a “autonomia” é conferida a
todos; em contrapartida, se a demanda está alta, aí a gestão que antes era participativa
se transforma em monopólio dos chefes e os trabalhadores são privados de sua
participação.
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3.2 Relação com os colegas de trabalho e trocas econômico-
simbólicas
Se a relação dos operários com os chefes passa necessariamente por
formalidades e obediências à hierarquia fabril, não obstante sua tentativa de
abrandamento e de “co-participação” operária, o que costura a relação entre os
operários advém do compartilhamento do mesmo espaço e das mesmas situações.
Compartilhar espaço e situações comuns leva os operários a desenvolverem
grupos de convivência. “O convívio cotidiano no local de trabalho traz um sentimento
de apego e amizade” (M. Carvalho, 1989:121). O uso do espaço fabril mostra-se,
assim, propício e favorável para o fomento da sociabilidade operária.
Quando perquirido a respeito da melhor parte do seu trabalho, prontamente
Fabrício alude ao convívio e ao fortalecimento de relações estabelecidos com as
pessoas que trabalham no mesmo ambiente.
A melhor parte [do trabalho] eu acho que é o convívio
com as pessoas porque o trabalho em si mesmo, ele é
penoso, é um trabalho pesado, mas você trabalha 8 horas
ali com aquelas pessoas, então você vai pegando um
contato com as pessoas, você vai estreitando a relação.
(Fabrício, 27 anos, montador, Montadora B – grande)
Na mesma esteira de Fabrício, Pablo itera a relevância dos laços de amizades
constituídos no chão de fábrica como fatores que propiciam um clima de
entretenimento por meio de conversas e brincadeiras. Relações dessa ordem, voltadas
para a humanização da convivência, permitem aquebrantar, ainda que ligeiramente, a
rotina e o cansaço operados entre trabalhador e máquinas.
Os colegas é a parte boa, o pessoal até comenta: “A gente
ganha pouco, mas se diverte”. É verdade! A gente dá
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muita risada. Com o chefe tem que ter aquela relação, é
chefe, tá lá em cima, é intocável, mas até com líderes da
linha que não são nada demais […] são pessoas que
distribuem tarefas lá dentro, mas por causa de tá com uma
roupa diferente, uma capinha azul, eles já são vistos como
que meio da […] chefia, mas mesmo com eles a gente tem
total liberdade de tá conversando, de [fazer] brincadeira,
é legal. (Pablo, 23 anos, montador, Montadora B –
grande)
Discrepando dessa visão, Ulisses aponta um ambiente de relações um tanto
diverso e mesmo sombrio, no âmbito da fábrica ao circunscrever seu papel ao de
vendedor de mão de obra e não de fazedor de amizades.
Não tô lá pra ninguém gostar de mim e pra mim não
gostar de ninguém. Tem que fazer o ambiente de trabalho
legal! Agora, tem divergência com alguns amigos, com
outros, encarregado. Encarregado pra mim nenhum presta.
Então tem que fazer a sua parte e acabou. Cê não trabalha
pra eles [amigos e encarregado], trabalha pra fábrica.
Então tem que fazer a sua parte e ele faz a dele […] cê tá
lá pra ser profissional, tô lá pra vender o meu serviço,
não tô vendendo nada mais que isso. (Ulisses, 30 anos,
operador de estamparia, Montadora A – grande)
Figura enigmática, Ulisses revelou-se perturbado com o tempo tomado pela
entrevista durante toda sua fala, permeada por ambigüidades, entretanto a única certeza
aparente manifesta por ele foi a postura inexorável de defesa da fábrica. Esta foi
deificada como uma espécie de mãe, sob os auspícios da qual alcançou segurança
econômica para si e para a sua família nuclear, esposa e dois filhos. Portanto, seria um
ato herético tecer críticas à própria mãe; melhor, então, admoestar seus colegas de
trabalho.
Essa imagem assumida por Ulisses de desprezo, ao menos aparente, pelo
convívio social é trazida aqui apenas para mostrar a heterogeneidade não da
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experiência efetiva do trabalhador, mas de suas narrações expressa por via da fala.
Nesse âmbito, o que se pôde observar com os outros operários foi uma direção bem
diversa da mostrada por Ulisses, já que a maioria deles concebe a fábrica como lugar
proeminente para a criação e fortalecimento de relações sociais com seus pares.
Em pesquisa etnográfica desenvolvida em uma indústria nuclear, Trompette
analisa o universo sócio-simbólico pelo qual “os sujeitos dão sentido ao trabalho e a
sua relação com a empresa” (2003: 2). O autor parte do pressuposto – e verifica a
veracidade dele – de que as relações na fábrica não são redutíveis à troca mercantil ou
contrato de venda, mas revelam intercâmbios sociais que ultrapassam largamente a
lógica econômica e, portanto, representam, notadamente uma economia simbólica
(idem, p. 8-9). Avaliando a dimensão salarial, o autor menciona que:
a afiliação a uma instituição de trabalho ou em um
universo profissional significa fundamentalmente o
engajamento em um sistema de troca social indissociável
das concepções culturais e das construções identitárias
que definem as modalidades, os objetos e os produtos. A
troca salarial nos fala do sujeito e de sua apreensão como
fato total remetido a uma problemática de identidade que
é representada pela economia simbólica dessa relação de
trabalho. Assim, como instância central de socialização, o
trabalho une dimensões e formas de pertencimento
heterogêneas, como a filiação e o modo de existência
familiar, o espaço geográfico, a colocação social, a
comunidade profissional, etc. (2003: 7)
Prosseguindo essa diversidade de pertencimento operário no ambiente fabril,
vale passar, ainda que brevemente, pela questão do gênero e notar como as mulheres
são tratadas. Vinculada a uma grande montadora como os operários acima, porém na
qualidade de mulher em linha de montagem, Valéria traz um elemento novo se
cotejada com os homens apresentados até agora. Inicialmente, seu gênero leva-a a ter
de demarcar terreno e exigir tratamento respeitoso que considere sua condição de
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mulher, ou seja, não a englobe em brincadeiras essencialmente masculinas,
especialmente as de caráter libidinoso
49
. Depois de estabelecido esse terreno e tendo
sua dignidade assegurada, finalmente ela goza de certas prerrogativas, tais como o
amparo e as cortesias advindas voluntariamente da gentileza dos operários.
Pelo fato da gente ser mulher, a gente tem que saber se
impor, a relação de brincadeira essas coisas. Mas a partir
do momento que todo mundo já sabe como a gente é, aí já
tem aquela brincadeira, a gente que é mulher, é protegida,
é mimada. Então você não consegue encaixar uma peça
[...] já sobe [sic] três pra te ajudar, têm os senhores, os
mais velhos, chegam [...] te chamam de filha, vai fazer
café, traz café pra você, improvisa, faz uma brincadeira,
pega as tampas das caixas faz de bandeja, vem te trazer.
Você fala: “Preciso ir no banheiro não tem ninguém pra
ficar.” A pessoa faz o serviço dela, o seu. Não só com a
gente, mas com eles também entre os homens também
tem, mas a gente que é mulher, a gente é mais protegida.
(Valéria, 20 anos, montadora da linha, Montadora A –
grande)
Nota-se, assim, que as amizades permeiam as relações, tanto femininas quanto
masculinas, de forma decisiva no ambiente de trabalho. Reiterando as considerações de
Fabrício e Pablo sobre o mérito da constituição de amizades no chão de fábrica, Inácio
menciona a sua importância como recurso inteligente, utilizado pelo operário, para
amenizar seu sofrimento na jornada de trabalho e torná-la menos longa.
Do trabalho eu acho que a melhor fase […] pra mim é do
retorno da produção, que é a convivência com os colegas.
Eu acho muito interessante! Às vezes quem tá lá fora não
percebe, mas por mais difícil que seja o nosso trabalho,
sacrificante, os trabalhadores [...] se envolvem em
técnica de trabalhar durante o dia. Cê vai lá, eles tão
49
- Roy chama a atenção para o esquecimento da variável dicotômica do sexo enquanto atividade que ocupa
espaço na indústria (2006, cap. 6).
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muito alegres, eles são muito inteligentes, embora tão ali
apertando parafuso […] A convivência desenvolve
grupos entre eles. É muito interessante tá ali na produção
em volta com eles, porque cada um vem dizer uma piada,
cada um vem dizer uma coisa, cada um vem contar uma
história. Aqui é assim, desenvolve metodologia de
trabalhar pro dia passar. (Inácio, 39 anos, montador da
linha, Montadora A – grande)
A convivência construída entre os operários proporciona o cultivo de
amizades, seja forjando técnicas e inventos para assegurar a produção, seja atenuando
a tensão e a fadiga que contagiam largamente o ambiente fabril. Essa configuração é
possível por uma razão básica: embora contratado para apertar parafusos, o operário
não se contenta e não suporta restringir-se a esse papel acanhado; logo, dada sua
atitude ser fundada na capacidade criativa, inventa técnicas para cumprir seu dia de
forma mais aprazível ou menos desditosa.
Uma prática com freqüência presente nas fábricas é o rodízio de tarefas, por
sua vez favorecido pela formação de grupos de afinidades em que os integrantes se
compreendam, se aceitem e estabeleçam acordos sobre as trocas de atividades. Se não
existe essa sinergia entre os operários, se eles não se dispõem a cooperar a viabilizar o
rodízio, o grupo simplesmente não alcança êxito na realização de atos que,
essencialmente, pressupõem a conjunção harmoniosa de movimentos.
[A] gente trabalha em rodízio [...] uma semana em cada
posto [...] O serviço é dividido assim: o rapaz monta a
parte de dentro, ele coloca lá a carenagem do motor, aí ele
coloca o filtro e depois eu coloco os outros suportes [...]
[Mas] às vezes acontece que um atrasa, o outro adianta,
então a gente vai fazendo junto. Eu começo junto com ele
a parte dele, aí termina a parte dele, a gente começa a
fazer a minha parte e o negócio tá funcionando legal [...]
Mas aí depende muito do entrosamento das pessoas, tem
gente que é mais restrita, tem gente que é mais receptível
e tal, então, mais ou menos, cada um trabalha de um jeito.
(Fabrício, 27 anos, montador, Montadora B – grande)
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132
De forma similar a de Fabrício, Pablo chama a atenção para o pré-requisito da
afinidade no jeito de trabalhar entre os operários, para que a situação de rodízio
funcione plenamente. Se um prefere trabalhar adiantado, e o outro não, cria-se atrito no
interior da equipe e o rodízio não é bem sucedido.
Pra montagem de radiador precisa [...] de duas pessoas
porque é um serviço pesado. [Mas] às vezes você não vai
com a cara de fulano tal. Teve uma época que [...] as
duplas não eram escolhidas [entre os operários], tinha
um rodízio e uma hora você ia cair com a pessoa e às
vezes você não ia nem com a cara da pessoa. E às vezes
[...] você trabalha num ritmo, a pessoa trabalha no outro
[...] [O] posto de montar o radiador é o posto 5, beleza!
Mas você... sabendo que dá pra montar no posto 4, então
quer dizer, cê não sabe o que vai ocorrer, cê não sabe que
máquina vai quebrar, cê não sabe se vai faltar parafuso e
você vai ter que ir lá pegar. Então se você quer adiantar
um pouco, antes de chegar no posto 5 mesmo, ia ser legal!
a pessoa não, [...] só quer montar quando chegar ali,
no posto 5. Aí são pessoas que trabalham num ritmo
diferente, não se dá muito bem [...] É legal que faz muita
amizade [...] se diverte, mas tem esse contratempo.
(Pablo, 23 anos, montador, Montadora B – grande)
Em equipes em que há complementaridade de preferências por determinados
postos e conseqüente acordo na repartição de tarefas, ainda que não vigore o sistema de
rodízio, é possível manter a relação de afinidade entre os operários.
[Tinha] eu e o Dilton, quando ele trabalhava lá, sempre a
gente trabalhava em dois postos, às vezes era vizinho. Eu
cuidava do posto 1 e do posto 2, ele do 3 e do 4. Só que
ele tinha facilidade do posto 2 e eu do 3. Então, puxa, eu
fazia o 1 e o 3 e ele fazia o 4 e o 2. Geralmente quando a
gente trabalhava lá junto a gente conseguia fazer isso aí.
Então pros dois isso era benéfico, era bom pros dois [...] a
gente meio que mudou a seqüência das coisas, mas no
final tudo iria sair como deveria ser, mas [...] entre a
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133
gente [...] ficou melhor. (Zélio, 23 anos, montador,
Montadora B – grande)
Na distribuição das atividades submetidas ao rodízio está presente uma
conjunção especial que subtrai das particularidades de cada operário elementos
compatíveis com determinadas circunstâncias já previstas. Destarte, alguns quesitos,
como a altura do operário, por exemplo, fazem com que eles sejam destinados a atuar
em atividades do posto de trabalho que lhes sejam condizentes.
Compartilhar das mesmas atividades, distribuídas alternadamente, sobremodo
aquelas malquistas por todo o grupo, fortalece os laços que unem os operários, dado o
menor tempo de exposição de cada um às tarefas mais penosas. Consequentemente, ter
de exercer trabalhos que violentam o corpo do operário torna-se menos sofrível à
medida que podem se consolar na espera do momento seguinte.
[Quando] eu trabalhava no processo [...] como
trabalhávamos num grupo de cinco pessoas, muitas vezes
a gente fazia essa troca. Porque um determinado cara um
pouco mais alto era melhor pra ele colocar uma
determinada chapelona, então [...] a gente utilizava dos
fatores positivos que a pessoa tinha pra conseguir fazer
essas modificações, uma determinada chapelona por ser
um ponto mais alto, era colocada por um cara mais alto.
Então como cada um era determinado nesse grupo [...] e
cada um ia trabalhar num determinado posto durante a
semana, isso era muito legal [...] Então o serviço que era
complicado todo mundo fazia [...] [Era um arranjo feito]
entre a gente [...] porque essas cinco pessoas tinham
certo grau de comprometimento, tinha uma certa
preocupação em fazer o serviço bem e também trabalhar
bem e se sentir bem [...] não é à toa que tenho amizades
com essas pessoas devido a isso: de compartilhar da
mesma situação. Por mais que você soubesse que um [...]
determinado dia você ia trabalhar num lugar horrível, no
outro dia você não ia tá mais lá. Então isso partiu dos
próprios funcionários, o líder, o responsável, pra eles é
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indiferente, porque tá se fazendo o serviço, então pra eles
pouco se importam, se melhorou ou não, não tá trazendo
problema pra ele, tá ótimo. (Alex, 22 anos, analista de
processos de produção/ex-preparador de carroceria,
Montadora A – grande)
A prática sistemática do rodízio de tarefas é exercida pelos operários tanto
como um recurso para resolver o problema do absenteísmo quanto para amenizar e, por
vezes, para evitar serem acometidos por doenças do trabalho, notadamente aquelas
desencadeadas por movimentos repetitivos.
Delineiam-se, no chão de fábrica, situações desfavoráveis para os operários,
que prejudicam sua saúde e insultam sua dignidade. A manipulação, proveniente dos
controladores de velocidade da esteira é circunstância que chama a atenção a esse
respeito.
Na maioria das pesquisas sobre indústria em série, controlar a aceleração da
linha de montagem é objeto de observação. Esse controle, entretanto, não está restrito
às mãos dos que ocupam os superiores das fábricas, mas também é razão de vigilância
pelos próprios operários, como pode ser visto nos relatos dos metalúrgicos citados por
Oddone, Re e Briante (1981: 137).
A fábrica mantém sua meta de produção a qualquer custo, independentemente
do número de trabalhadores disponíveis. Assim, haja ou não ausência dos operários,
normalmente não é aumentado o tempo para produzir uma peça. Ela chega ao extremo
de diminuir esse tempo, sobrecarregando os trabalhadores.
Teve uma sexta-feira [...] é uma média de 1 minuto e 50
cada função e nesse dia foi 40 segundos [...] a gente
sente que a linha começa a dar uma mudada, você acha
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135
que não, quando você vai ver o seu serviço tá lá embaixo
e você percebe: aumentaram a velocidade da linha. Aí
tem dia que você tá correndo, fazendo rapidinho quando
você olha, você não subiu nada, você tá ali no mesmo
lugar ou então tá mais caído. (Valéria, 20 anos, montadora
da linha, Montadora A – grande)
Estrategicamente, os controladores são orientados a acelerar a esteira da linha
de montagem no período da tarde, quando o operário se encontra com o corpo
aquecido, não percebendo de imediato a aceleração forçada do relógio da linha. Atitude
que afronta corpo, mente e valores dos operários involuntariamente submetidos a essa
situação.
[Digamos que de um] grupo de 500 [operários], hoje por
motivos n’s diferentes faltou 50 pessoas. E a linha [que]
tava rodando com 500 com 1 minuto e 25 segundos [...]
vai continuar rodando com 1:25 com as 450 pessoas. É
que eu falo que é prejuízo. E se faltar um, roda com 1:25.
Se faltar 2, roda com 1:25. Se faltar 50, roda com 1:25 [...]
Vão identificar isso mais tarde: que o colega não veio e o
serviço tá saindo. Então o chefe chega e distribui o
serviço do colega pra ele [...] [e] vai distribuindo. E tem
cara, inocente, ele fica calado e vai soltando. Pra aquele
que pula logo, o chefe nem solta. Pr’aqueles que se omite,
vai apertando, vai apertando. E quando não falta ninguém
e que tem que tirar uma produção maior, de manhã cedo
a linha começa a trabalhar melhor pra ninguém
perceber, mas quando o cara já esquentou o corpo eles
começam a apertar. (Inácio, 39 anos, montador da linha,
Montadora A – grande)
Diante do conluio na manipulação do relógio da linha de montagem, que
intensifica em demasia a cadência do trabalho e causa sobrecarga aos operários,
despojando-os do controle do seu tempo, anuncia-se apenas uma saída: sua ação
conjunta.
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136
[A] linha é mexida por um relógio, então aperta o relógio
lá, aí sai de 1:25 pra 1:20... A velocidade da linha. Então
você deixa de montar o carro em 1:25 passa a rodar em
1:20, então diminuiu o tempo [...] Assim eles te apertaram
mais [...] Ela [fábrica] só roda menor se a galera começa
a gritar, achar ruim: “Oh, tem coisa errada aí!” [...] Aí se
ele sentir que ninguém reclamou, o chefe passa lá e: “Oh,
dá mais uma apertadinha”. “Ah, mas não dá”. “Rapaz, eu
não tô mandando!?” Aí ele vai lá e dá mais uma
apertadinha pra 1:19, 1:18. Enquanto a comissão e o
sindicato não descobre, essa altura já saiu 10, 15, 20
carros a mais do que deveria [...] Aí eles apertam e
quando o cara reclama a gente fala: “Oh, o que
aconteceu? A linha tinha relógio de 1:25, tô vendo aqui...”
“Ah, acho que teve um problema aí, trouxe 10
[trabalhadores] não sei da onde, trouxe 5 não sei da
onde”. É mentira! [...] Não trouxe ninguém [...] Então é
uma briga o dia inteiro sobre isso que eu acho que
errado [...] fica o sentimento de exploração. (Inácio, 39
anos, montador da linha, Montadora A – grande)
Assim, unem-se os operários, seja por afinidades de amizade ou simplesmente
para, juntos, somarem força e tentarem sanar adversidades que os atingem igualmente.
Para que a reclamação dos seus direitos alce horizontes é preciso que eles não ajam
isoladamente, donde aflora a relevância política dos laços de sociabilidade mantidos
entre os operários.
3.3 Perigo: histórias que assombram
No espaço fabril emergem perigos que assolam e fragilizam a subjetividade
dos operários, atingindo diretamente seus cotidianos e deixando marcas em seus corpos
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e imaginários. Trata-se de outra faceta da vivência dos operários, não mais referida aos
chefes nem aos colegas, mas ao medo provocado pela periculosidade do seu entorno.
Dejours salienta que o medo está presente em todos os gêneros de ocupações
profissionais, mesmo naquelas onde o perigo ocupa lugar modesto, porém a indústria
está entre aquelas cujas condições de trabalho oferecem riscos e ameaçam a integridade
física e psicológica do trabalhador (2000a: 63-64).
A fábrica é constituída por ambiente repleto de instrumentos e equipamentos
suscetíveis a usos desatentos ou a falhas de funcionamento, cujas conseqüências podem
levar à mutilação e, no limite, a pôr termo a vidas. Esse cenário prenhe de perigos
assombra os operários, que contam histórias de desventuras ocorridas com seus colegas
de trabalho.
Como alega Cru, é fato que os trabalhadores se defendem do medo
desenvolvendo procedimentos específicos contra perigos que se anunciam: “Esses
procedimentos espontâneos [porém muito elaborados] de luta contra os acidentes e [...]
contra o sofrimento [...] são em parte inconscientes, provindos do saber-fazer coletivo,
da arte da profissão, das tradições, da moral” (s/d: 2). Todavia, apesar do esforço e
astúcia dos trabalhadores na evitação de acidentes, eles sempre vêem à tona.
Imputando a causa de certos acidentes ao treinamento inadequado oferecido
pela fábrica, Ana cita o caso de um jovem que quase perdeu a mão quando testava o
cardan, uma peça responsável pela transmissão de rotação do motor. Segundo ela, esse
fato foi desencadeado pela falta de preparo do rapaz para manipular a peça, portanto,
sem conhecimento de seus limites e dos perigos que apresentava para seu corpo.
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Antigamente, quando eu entrei lá, eu fiquei uma semana
pra aprender [...] Hoje fica um dia, daqui uns dias já tá
ficando sozinho; eu acho isso muito perigoso. Isso até foi
discutido numa reunião [...] Porque o menino levou oito
pontos na mão lá, pegou a mão no cardan [...] ali ele
podia ter perdido a mão. Eu ponho a mão toda a hora, só
que eu sei o que tô fazendo, ele dois dias [de trabalho] ele
não sabe. Então é aquele negócio, eles [chefes]
reclamaram e eu acho que tá errado também, porque
precisa ser bem treinado, é uma coisa complexa, não é
simplesmente apertar um botão e manda ir embora [...]
Alguma coisa [das normas] tem que ser rígidas, não tudo
também [...] certas coisas que vai ter que seguir à risca
[...] pra sua segurança mesmo. (Ana, 22 anos, operadora
de dinamômetro, Montadora B – grande)
Treinados ou não adequadamente, o fato é que os operários têm de cumprir
sua função; todavia, em si, esse cumprimento deixa-os vulneráveis a diversas situações
cuja periculosidade leva a resultados ora menos graves, como o acima citado, e ora
devastadores, como os que serão expostos a partir de agora.
Há situações em o que os próprios operários são levados a desenvolver
intervenções e invenções sobre as normas de segurança que os expõem a riscos
constantes. Apoiando-se em pesquisa participante que realizou em uma metalúrgica, a
psicóloga M. Carvalho cita o caso do uso de luvas grossas tirarem a sensibilidade dos
ponteadores soldarem peças pequenas. Para realizarem seu trabalho de forma bem
feita, passaram, então, a cortar, nas luvas, as partes correspondentes aos dedos polegar
e indicador, procedimento que contava com o “beneplácito da chefia e da CIPA.
Afinal, a ‘invenção’ é vista como o ‘atendimento’ de uma ‘necessidade do
trabalhador’, e por extensão, da empresa.” (1989: 138).
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João, operário experiente na lida com o trabalho fabril, socorreu um jovem
que, embora usasse luvas para proteger suas mãos, elas não o resguardava
adequadamente por serem feitas de material impróprio para o equipamento que
operava. Essa inadequação resultou em grave acidente provocado por uma broca que,
também em movimento rotatório, decepou um dedo da mão direita do jovem.
[O] garoto que eu socorri, eu vi [...] na hora que o
camarada perdeu [...] o dedo direito da mão [...],
arrancou [...] [com] esse nervo aqui junto, o dedo [...]
ficou dentro da luva com pedaço de nervo [...] Cê via o
dedo lá dentro da luva e aquele macarrão branco assim
pra fora. Por que? Porque ele tava trabalhando com uma
luva que não era pra trabalhar ali [...] Acontece o
seguinte, existe a luva de PVC, que é aquela de borracha,
e tem aquela de raspa de couro, luva de soldador [...] Ele
tava trabalhando com uma luva daquelas, de soldador. O
que aconteceu? Quando a broca pegou, era... nessa parte
da luva é uma costura simples [...] só que quando chega
nos dedos, é costura dupla [...] então enquanto tava na
costura simples, ela foi abrindo, só que quando chegou na
costura dupla não conseguiu abrir [...] então arrancou tudo
[...] E... vai lá na enfermaria, põe na ambulância e leva
pro hospital [...] Perdeu [o dedo] porque [...] não levou o
dedo junto. (João, 53 anos, operador de célula, Montadora
B – grande)
Lamentável, um trabalhador jovem mutilado por displicência e inoperância da
fábrica que deveria cumprir sua obrigação de zelar pela saúde e vida dos seus
operários.
Histórias ainda mais aterrorizantes nos foram relatadas e serão mostradas nos
próximos testemunhos dos operários. Elas desenham cenas que nossa imaginação
esboça com perfeição, mas custamos aceitá-las uma vez que nossos sentimentos e valor
pela vida são violentamente tomados por imagens demasiadamente bárbaras.
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aconteceu da empilhadeira tombar em cima do peão
lá. Poom! [...] esmagou a cabeça. [Outra história, foi o]
camarada [que] trabalhava numa prensa [de 40
toneladas], em dois. Porque é aquela história você põe a
peça aqui, os botões [...] [são] bi-manual. Dois [operários]
pro lado de cá e dois pro parceiro do lado de lá [...] só
funciona se apertar os quatro [operários], não tem jeito.
Eu não sei o que aconteceu lá, na hora que o dispositivo
subiu, eles tiraram a peça e no que eles tiraram a peça
ficou uma sujeirinha num dispositivo, o cara pegou e
enfiou o braço, meio corpo pra poder tirar a sujeirinha, e
o dispositivo deu pane e desceu, a cabecinha dele ficou
assim ôh, uma folhinha de papel [...] Falaram isso daí,
agora se foi verdade, ninguém sabe. (João, 53 anos,
operador de célula, Montadora B – grande)
“A máquina está investida de signos do poder. Não só é propriedade privada,
como tem o poder de lesar, mutilar, matar” (M. Carvalho, 1989: 165). A autora
assegura que o medo do acidente fatal, sobretudo com o “esmigalhamento da cabeça na
prensa” é presente por toda a fábrica, mesmo em setores onde não há prensa,
colocando-se assim como valor metafórico “para expressar os medos que sentem
ligados ao trabalho” (idem, p. 164).
Também infundindo pavor, outra história foi narrada por Leomar, que
presenciou o esmagamento da metade superior do corpo de um colega de trabalho,
quando, procedendo a operações de rotina, foi alvo fatal da quebra do pino de um
estampo.
[Esse] rapaz [...] ele trocava de roupa vizinho do meu
armário. Tem uma máquina onde cozinha o pneu, é uma
que nem uma máquina de pressão [...] tudo sob pressão. É
redonda assim, põe o pneu dentro e tem uma parte que
desce, tudo hidráulico também, o pneu fica aqui [...] e ela
fecha que nem uma tampa, uma tampa com um
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dispositivo de fazer pneu, a borracha tá na tampa. Então
quando levanta aquele pneu [...] o funcionário tira ele lá
de dentro, solta [...] e vai numa esteira e vai embora o
pneu. Pronto. Depois o funcionário tem que passar um ar
pra tirar os resíduos pra fazer outro pneu, tirar o ar lá de
dentro [...] do estampo. Que é [sic] dois estampos, o
estampo debaixo e o estampo de cima. E teve uma
ocasião que o rapaz tava tirando o ar e parte de cima que
é super pesada, quebrou o pino de segurança e ela
desceu. Voop! [...] Nossa! Foi feio [...] [Ele] tava
embaixo. Só dava pra ver metade do corpo dele, aí eu vi,
a outra metade não dava pra ver porque a máquina tava
tampando [...] Puxa! Mas nem viu [morrer] [...] O peso,
uma temperatura de mais de 200° de caloria [...] Esse foi
um dos acidentes mais terríveis que eu vi lá dentro.
(Leomar, 60 anos, ajustador mecânico, Auto peças C –
média)
Desnecessário dizer que a imagem pavorosa desse acidente provoca um
turbilhão desmedido de mal-estar na subjetividade de quem ouve o relato e,
notadamente, na dos operários, tanto dos que viram o que sucedeu quanto dos que
ouviram e ouvirão a narração dessa história, feito uma ameaça que os cerca e os
chama para a morte.
Devido à longa trajetória fabril de Leomar, houve outro acidente fatal
presenciado por ele. Dessa vez, com um eletricista, com quem mantinha amizade.
Segundo ele, esse trabalhador tivera uma premonição sobre sua própria morte dias
antes da sua trágica morte por eletrocutamento. O eletricista havia pego emprestado
um livro seu, que lhe devolvera sem demora, sob a alegação de que, se morresse, não
queria ficar devendo a entrega.
O eletricista também, mexendo na caixa de força, tomou
uma descarga elétrica [...] Eu tinha emprestado um livro
pra ele e um dia antes ele falou pra mim: “Eu vou te
devolver o livro cara, porque de repente eu morro e não te
devolvi o livro”. Parece que tava prevendo... aconteceu
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ali, foi mexer [...] deu uma descarga elétrica e... morreu.
Não agüentou, não suportou. Ah! têm muitos acidentes lá
que eu vi. (Leomar, 60 anos, ajustador mecânico, Auto
peças C – média)
O último caso que será apresentado chama muito a atenção não apenas pela
imagem chocante da morte, mas pelo tratamento recebido da fábrica pela pessoa em
questão, tanto em vida quanto na morte. É o caso de um senhor acometido por enfarte
no miocárdio; dias antes, ele havia reclamado ao chefe para que o trocasse de posto de
trabalho, pois estava sendo submetido a excitação nervosa além do seu limite
suportável. Seu pedido foi simplesmente desdenhado, e ele teve de continuar a
trabalhar sob pressão excessiva. O resultado foi a morte; a morte solitária, ninguém viu
o fato acontecer para poder prestar-lhe o socorro devido.
Teve um senhor que morreu lá dentro [da fábrica], ele
teve um... enfarto. Ele caiu no meio das prateleiras.
não sei quanto tempo passou, aí deram por falta dele,
foram procurar, ele tava lá caído. Aí a linha inteira parou,
saiu todo mundo correndo. Aí levaram ele pra fora, ele já
[...] tava todo roxo, tava morto. Aí tinha gente chorando
já, todo mundo assim bobo com a situação [...] Ele tinha
reclamado pro chefe mudar ele de posto de trabalho
porque ele tava passando muito nervoso lá. (Josi, 22
anos, montadora, Montadora B – grande)
Muito provavelmente não foi da pessoa desse operário que sentiram falta
quando de sua morte, mas da produção do operário que foi interrompida, atrapalhando
o funcionamento completo da linha. É o anúncio da morte não pela vida perdida, mas
pelos objetos que deixaram de ser produzidos. Não é alguém que morre, mas o lucro
da fábrica que é interrompido. Isso ficou bastante evidente com a reação do chefe após
a morte desse operário.
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[Logo após a morte] o chefe [disse]: “Agora vamos todo
mundo entrar, deixa os bombeiros tentar reavivar ele”.
Não tem aquele negócio humano. Tanto que o chefe
chegou pro líder e falou: “Você vai lá e liga a linha”. O
líder falou: “Não. Se você quer você vai lá e liga”. Porque
nem ele conseguia, tanto que ele faltou os outros 3 dias.
Aí chamaram a Comissão de Fábrica e não deixaram ligar
a linha, se não tivessem feito isso, a gente ia ter que voltar
lá, transtornados e continuar trabalhando. (Josi, 22 anos,
montadora, Montadora B – grande)
Sequer um minuto de silêncio foi decretado pelo chefe do setor; seu objetivo
obcecado era somente continuar a produção, independente de qualquer ocorrência ou
mazela. Aliás, o foi fato omitido por ele, que tentava iludir os operários, transtornados
pela situação, afirmando que o operário fora socorrido ainda com vida e que, portanto,
não havia razão para interromper a sagrada produção.
“Vocês não vão avisar a família dele?” [...] [O] gerente
falou: “Não tem ninguém que mora perto dele pra avisar
a família?” Uma empresa daquele porte ter uma atitude
assim! (Josi, 22 anos, montadora, Montadora B – grande)
É revoltante [...] eu não tava lá, ela viu, o cara tava roxo,
pô o cara com o olho aberto, sabe gente, ninguém é bobo
assim. Só que aí o chefe mandou entrar [...] Chegou o
resgate lá, fazendo a massagem. Aí depois o pessoal
preocupado, amontoado lá na linha, aí veio a notícia: “Ele
foi reanimado e foi pro hospital [...] saiu daqui vivo”.
Então, você já vê que, puxa, ôh o pensamento deles!
(Zélio, 23 anos, montador, Montadora B – grande) Só pro
pessoal trabalharem ali numa boa. (Josi, 22 anos) A
intenção dele talvez nem fosse que voltasse a trabalhar no
mesmo dia, mas que: “Não façam reboliços, por favor,
vamos ficar por aqui, não levem isso a ninguém, ele foi
vivo daqui [...] A gente fica pensando: “Pô, eles fizeram
isso pra que?” Se a pessoa morre lá dentro... o custo é
maior pra empresa, se ela morre lá fora... o custo é
menor, então indenização [...] Aquilo que eu falei do
valor, não sei se é só em filme que eu vejo, mas aconteceu
uma tragédia: “Vamos todo mundo amanhã no velório da
pessoa”. (Zélio, 23 anos)
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O chefe quis eximir a fábrica até mesmo do dever moral de comunicar à
família o acontecido, atitude que sinaliza, como as falas do casal Josi e Zélio mostram,
para além do acovardamento em assumir sua cumplicidade para os familiares do
operário, entra nesse jogo o interesse em isentar a fábrica de onerar seus cofres
assumindo a culpa pela morte. Essa postura feriu os valores do casal Josi e Zélio e dos
outros operários que presenciaram o fato, pois esperavam da fábrica um tratamento de
respeito, pesar e presteza pela vida, se não do moribundo, pelo menos pelos
sentimentos das pessoas mais próximas dele.
M. Carvalho constatou a tendência ao ocultamento dos acidentes de trabalho,
justamente por estes provocarem processo criminal, revelando as suas causas, em geral
advindas “de abandono de equipamento, normas de segurança do trabalho e de
incompatibilidade geral da maquinaria com o corpo humano no trabalho” (1989: 137-
138).
Operário da mesma montadora dos jovens acima, contando, entretanto, com
pouco mais de um quarto de século de experiência fabril, João explica de uma forma
lúcida a razão da impassibilidade da fábrica perante acidentes com operários:
Acidente acontece? Acontece [...] Isso aí é aquela história,
cê tá ali pra isso [...] Cê previne, mas uma hora... aqui
não acontece, mas acontece lá em cima [...] quando você
se acidenta a empresa põe outro no seu lugar, ela não
quer nem saber, você saí e vem outro no seu lugar e você
fica lá todo torto. E aí o que você ganhou com aquilo?
Nada. (João, 53 anos, operador de célula, Montadora B –
grande)
A razão reside tão somente na descartabilidade
50
do operário; ele não é
contratado na condição de pessoa, mas de força de trabalho, equivalente a qualquer
50
- Sobre valores mercantis e experiência de operário descartado, ver Rosa, 2004: 232.
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145
outra, porque substituível. Todavia, se há essa postura da fábrica em relação à morte do
operário, ver-se-á, nos dois capítulos vindouros, que, devido à condição de viventes
dotados de astúcias para manter a fábrica funcionando com êxito, particularmente por
via dos rearranjos que desenvolvem no meio fabril, não ocorre o mesmo no que diz
respeito aos trabalhadores.
Refletindo sobre a morte do operário enfartado no chão de fábrica, Zélio
demonstra-se demasiadamente apreensivo ao dar-se conta de que eles, operários mais
jovens, poderão ter o mesmo fim, se continuarem na fábrica. Fim que, não bastasse a
tragédia do seu desfecho, ainda submete o moribundo a tratamento humilhante.
Esse senhor sempre trabalhou lá, a gente novo, vinte e
poucos anos, a gente olha pra ele e fala: “Nossa meu, se a
gente ficar aqui sempre, sempre pegando essa máquina
pesada, será que vai acontecer isso com a gente no
final?” Ele é o exemplo do que foi a [fábrica] nos últimos
35 anos [...] Só que ele sempre foi do mesmo posto,
sempre no mesmo lugar e ele acabou assim... morrer
dentro da firma. Deve ser horrível! (Zélio, 23 anos,
montador, Montadora B – grande)
As constantes narrações dessas histórias de acidentes e mortes, ocasionadas
por perigos contíguos, que rondam o chão de fábrica, parece servir de referência aos
operários, para mostrar-lhes os caminhos queo devem trilhar, ou seja: ter a cautela e,
se possível, a sorte que careceu ao outro.
Na convivência operária, as histórias de perigo e morte colocam-se como
ritual de iniciação daquilo que deve ser evitado,
resgata simbolicamente o aspecto negativo da identidade
de metalúrgico (redução da vitalidade, “entrega
assujeitada” à doença, às lesões, ao acidente com a
máquina) e insinua o positivo (“é forte”, sobrevive a
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146
“cada dia”, “renasce”, “recria” a vida, para si e para os
participantes da mesma condição), embora de forma
incipiente na construção mítica. (M. Carvalho, 1989: 191-
192).
Dispor em seus imaginários das experiências trágicas e lúgubres do outro a
fim de criar atalhos para prosseguir com sanidade dentro desse ambiente que assombra,
eis uma importante função social dessas histórias.
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147
3.4 Apropriação do espaço fabril
Adicionalmente a esse cenário perturbado pelo cansaço provocado pela
sobrecarga de trabalho penoso, histórias arriscadas e vulnerabilidade a tragédias, outros
sentimentos tomam corpo no ambiente fabril, tornando extremada a lida com esse
meio. Situação que, impreterivelmente, incita os trabalhadores a buscarem maneiras
próprias de gerir o ambiente fabril.
Uma das fontes da aflição constante desencadeada por esse meio advém da
situação de clausura à qual os operários são submetidos, avultando neles a
claustrofobia. Esse sentimento é provocado pela redução do espaço dos operários a
poucos metros quadrados, dentro dos quaiso obrigados a permanecer durante a longa
jornada de trabalho, que se repete cotidianamente.
[Aquele] tipo de operação, aquela região, aquele local
onde a gente trabalhava te enclausurava demais porque
você tinha só 2 ou 3 metros pra trabalhar. Então sua vida
se resumia em 8 oito horas dentro daqueles 2 metros,
andando de lá pra cá, de cá pra lá, de lá pra cá. Todo
aquele ambiente 3d, aquela região ali, ela te enclausurava.
Saber que você ia levantar iria ficar ali 8 horas e voltar
pra casa dava... te enclausurava. (Alex, 22 anos, analista
de processos de produção/ex-preparador de carroceria,
Montadora A – grande)
Na apreciação de Alex, nota-se que a angústia advém tanto do sentimento de
clausura vivida em tempo real, quanto, notadamente, da promessa de sua continuidade
nos dias vindouros e de sua cadente repetição indefinidamente no tempo. Labutar com
essa certeza leva os operários a recorrem à artifícios que aliviem tais sentimentos
capazes de levá-los a insanidade: “o dia inteiro ali tem que... dá pra fazer uma
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148
brincadeirinha, dá uma distraída, senão o cara fica louco ali dentro” (Fabrício, 27
anos, montador, Montadora B – grande).
A profundidade com que a subjetividade do operário é atingida pelo espaço
físico fabril mostra que ele não é de forma algum um meio isotrópico, neutro, não se
trata simplesmente de um ponto no mapa. O indivíduo concebe o espaço geográfico,
arquitetônico e objetal em intersecção com o seu próprio espaço pessoal. Com efeito,
como salienta Fisher o espaço fabril é representado, é um campo de valores que o
imaginário transporta para a realidade (1980: 134-135).
Suas muralhas, à feição de prisão que impede o olhar de lançar-se para o
horizonte distante, de perder-se nos pensamentos pelas imagens vistas, de distanciar-se
da realidade laboral que o oprime, alimenta no operário sentimentos de angústia e de
fobia pela clausura fabril. Esse entrecruzamento de valores que o sujeito lança sobre o
espaço favorece a claustrofobia. “O espaço condiciona, portanto, suficientemente a
representação do homem para que ele exprima sua loucura através dele” (idem, p. 133).
Por vezes, a clausura amoldada pela reclusão dos operários aos seus postos de
trabalho é ligeiramente quebrada por atividades secundárias, como limpeza, pintura,
separação de material, organização de objetos. Em geral, eles são encarregados desse
gênero de trabalho, desvinculado daquele para o qual foram oficialmente contratados,
em ocasiões esporádicas, como na quebra da linha, portanto, quando ocorre a
interrupção circunstancial e relativamente demorada do funcionamento da produção.
Normalmente quando a linha quebra [...] costuma
direcionar o pessoal pra fazer outros serviços: [...] vamos
varrer ou então vamos pintar aquela parte [do setor] ali
que a gente ficou de pintar e ainda não arrumou [...]
vamos jogar o lixo fora [...] vamos catar as caixinhas
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149
vazias porque tem o pessoal que recolhe essas caixas [...]
Aí a gente pega e vai fazer esses serviços [...] lá é tudo
emperiquitado [...] Então, aí eles direciona a gente pra
fazer esses serviços assim, de 5S, de melhoria [...] [que] é
aquela metodologia japonesa [...] que significa: [...]
organização, higiene, limpeza, são coisas pra tá mantendo
o ambiente melhor, mais bonito. (Pablo, 23 anos,
montador, Montadora B – grande)
Ainda que se trate de atividades atribuídas pela fábrica, os operários fazem
certo uso desse espaço voltado para a limpeza e a organização, de forma a aproximar o
aspecto da fábrica ao de sua própria casa. Eliminando elementos como a poeira e a
presença de objetos inúteis, é criada uma ambiência familiar e aconchegante. Assim, a
fábrica ganha ares semelhantes aos pertencentes ao seu espaço privado, tornando-se,
em certa medida, extensão de sua casa, um abrigo distante de perigo significativo, onde
vige a proteção.
Se nessas ações se revela a presença da casa na fábrica, por outro lado,
também ocorre o oposto, a presença da fábrica na casa; nesse caso, trata-se de uma
“presença virtual”, se é que se poder dizer assim. O ambiente fabril envolve os
operários de tal modo que é comum levarem problemas da fábrica para as suas casas, a
fim de refletir mais detidamente sobre sua solução, normalmente buscando melhorias
para o seu posto de trabalho, que depois são aplicadas na fábrica. Relativamente a esse
ponto, Valéria declara:
Queira ou não, a gente sempre acaba trazendo [problema
da fábrica para casa]. Eu passo assim pensando, aí no
outro dia, a primeira coisa que eu vou fazer [na fábrica] é
mudar alguma coisa ou fazer alguma coisa que eu achava
que devia ser melhor, que eu devia ter feito melhor.
(Valéria, 20 anos, montadora da linha, Montadora A –
grande)
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150
A atmosfera fabril está sempre presente nas vidas privadas dos operários,
mesmo em momentos nos quais suas atividades sensitivas e motoras se encontram
suspensas, como no sono e nos sonhos. Valéria prossegue seu relato, trazendo imagens
desses momentos de interrupção da vigília fabril.
A gente até brinca: quando a gente sai de férias, na
primeira semana a gente sonha só com a área que a
gente trabalha. Na primeira semana, eu ainda tava no
motor, eu dormia à noite eu sonhava com o motor
passando. A gente acaba trazendo não tem como.
(Valéria, 20 anos, montadora da linha, Montadora A –
grande)
Essa imagem – em sonhar durante uma semana inteira só com motor passando
sobre a esteira diante dos olhos – pode ser enunciada como denúncia do mal-estar
provocado pela cadência do trabalho, cadência que ultrapassa o tempo de vigília e
avança sobre o inconsciente operário. Em análise sobre o imaginário onírico, após
mencionar o caso de sonhos dos operários que durante o dia submetem seus corpos ao
ritmo da máquina, J. Martins considera que o sonho é um modo de manifestação da
“consciência da alienação, porém legítimo e denunciador: por meio dele, a alienação
aparece como mal-estar, o mal-estar da vida cotidiana e do mundo moderno” (1996:
42).
Pelas falas dos operários, percebeu-se que o seu envolvimento em atividades
secundárias abranda seu enclausuramento; todavia trata-se de atividades fixadas pela
organização fabril e, nesses termos, não se delineia diretamente com elas um
envolvimento efetivo, do ponto de vista subjetivo, de apropriação do meio. Por mais
que o empenho em relação a essas tarefas traga algum nível de contrapartida aprazível,
sua iniciativa pertence ao campo das normas que brotam da organização oficial.
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151
Conviver diariamente em ambiente cuja organização formal (seja ela técnica,
normativa ou, no caso em questão, espacial) é arbitrada oficialmente por instâncias de
decisão situada no topo da hierarquia fabril instiga o operário a desenvolver espaços
cujos significados são atribuídos por seu próprio imaginário, de forma a torná-los mais
práticos e cativos para si próprio.
Para entrar no terreno das significações sobre o espaço construídas pelos
operários, torna-se inelutavelmente convidativa a idéia de penetrar em suas
representações. A esse respeito, Moreira investiga como sujeitos, pertencentes aos
setores alimentício e de confecção, lidam com o tempo e o espaço. A autora segue o
mesmo vetor interpretativo assumido aqui, conforme se percebe em seu próprio
vocabulário:
Ao recuperar as significações que os sujeitos atribuem às
suas experiências nos espaços produtivos, evidencia-se
que estes não são conseqüência passiva de processos
econômicos que se desenrolam exteriormente a eles, mas
que agem também na representação da realidade,
contribuindo, intervindo e moldando-a ideal e
materialmente (2001: 3).
O arranjo das peças pelos operários é realizado seguindo o ponto de vista da
praticidade, sua disposição visa facilitar o manuseio, nesse âmbito; portanto, não vige
de forma alguma o valor estético, pois o que realmente conta é propiciar um ambiente
no qual os deslocamentos poupem tempo e energia. Destarte, nesse caso eles seguem a
lógica da prática-funcional.
Em contrapartida, a gestão formal da fábrica parece perseguir lógica um tanto
diversa, a da estética pura e simples. Particularmente sobre o layout referente à
disposição das peças na fábrica, os operários denunciam a atitude da logística por se
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152
voltar mais para a dimensão da beleza do que para a funcionalidade, dificultando o
acesso e o manuseio de peças pelos operários.
No nosso caso, é da logística mesmo a posição das peças,
tem peça que tá três postos pra baixo, tem peça que tá
dois postos pra cima. Isso a gente não pode mudar. Tem
hora que dá até raiva, você tá com o seu serviço lá
embaixo, aí você tem que correr cinco postos pra cima pra
pegar uma peça, descer de novo pra montar. Isso que é
ruim! A gente queria ter [...] as peças mais próximas, isso
que a gente tenta e não consegue. A gente tem que
adaptar, pega cinco pecinhas, leva, deixa lá em cima,
acaba, a gente já tem que descer pegar mais e deixar lá em
cima perto da gente. Mas é isso que a gente mais quer,
mas não pode porque é da logística e eles também seguem
a ordem, o plano [...] É o layout que a engenharia faz [...]
[que] é tudo na base da teoria, ela não vê essa parte
prática, essa parte de adaptação. Ela vê e fala: “Não, essa
caixa tem que ficar aqui porque ela tem esse tamanho e
essa tem que ficar aqui porque ela tem [aquele] tamanho.”
Mas não vê que são duas peças que vão no mesmo carro,
então eles não vêem pra que vai ser montado, só põe ali
[...] pelo layout pra ficar bonitinho. (Valéria, 20 anos,
montadora da linha, Montadora A – grande)
Entretanto, a dimensão estética do ambiente também se faz presente na
organização informal praticada pelos operários em sua relação com o meio fabril,
diferindo basicamente em um aspecto: os objetos que são alvos de suas arrumações.
Assim, tornam-se tributários e símbolos de valores estéticos objetos descartáveis,
candidatos a ocuparem entulhos e não os objetos produtivos, como as peças e
ferramentas.
Pablo, com toda a sua sensibilidade e agudeza de espírito, reaproveita
materiais advindos de embalagens descartáveis e se reapropria do espaço por meio da
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153
decoração e da coloração do ambiente fabril, tornando-o mais agradável e cativante
para si.
Vem proteção nos [...] eixos dos câmbios, umas proteções
de plástico, parece como se fosse uma luva, que vem no
eixo central dele. E aí, o que faço? Às vezes eu recolho de
todos os câmbios. E na beirada de cada embalagem do
câmbio são 4 pontas, vem um, como se fosse um [...] cano
assim, e eu pego e [...] coloco lá [...] essas luvas porque
são amarelona assim [...] chamam a maior atenção [...] Eu
acho legal! Você olha de longe assim, você vê um
negócio [...] [que] chama a maior atenção no meio de
tudo aquilo assim, que é tudo cor de aço mesmo, tudo
meio encardido, tal, aquele negócio amarelo, sabe! [...] [É
uma maneira] de ser diferente, legal! (Pablo, 23 anos,
montador, Montadora B – grande)
Uma simples embalagem amarela para qualquer passante, mas não para Pablo.
É muito mais que isso. Não é somente uma cor, é um amarelo que chama. Não é só um
objeto semelhante a uma luva, e sim um objeto re-significado. Um objeto capaz de, não
pelas propriedades aparentes que contém, mas pelos sentimentos capazes de instigar
em Pablo, atingir suas entranhas, seus recantos mais íntimos. Esse objeto-símbolo
propicia ao operário um lugar de repouso, para o olhar e para os pensamentos. Nele é
possível refugiar-se dos frios sentimentos aliados à cor do aço encardido dominante no
espaço fabril e apaziguar-se na serenidade que conseguem produzir em seu interior,
quando fita a representação desse objeto.
De acordo com a análise espacial de Fisher, a forma como os objetos estão
dispostos no espaço portam uma linguagem, que emite a imagem elaborada por aquele
que o decorou enquanto tal. “A disposição de objetos em torno de si representa um tipo
de linguagem silenciosa, uma imagem de si oferecida ou imposta de certa maneira ao
outro” (1980: 172).
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Abate-se sobre o operário a necessidade subjetiva de desligar-se dos
sentimentos que o espaço formal fabril lhe provoca, situação que se intensifica com
mais vigor nos casos, não raros, de falta de identidade do operário com a ocupação
exercida e com a área na qual atua.
[Às] vezes [...] eu não tô muito [...] o serviço que eu
fazendo [preciso] tentar meio que me desligar do fator
mecânico, de sabe, fazer só aquele aço forjado tudo, tal,
porque [...] nem da parte mecânica e nem na parte
metalúrgica eu gosto tanto assim, mas aí [...] eu fico
tentando ver [...] o quão bonito pode ser [...] todo aquele
processo [...] tudo o que tá envolvido naquilo. (Pablo, 23
anos, montador, Montadora B – grande)
Desligar-se do fator mecânico e do aço forjado e embrenhar-se pela
imaginação no processo de trabalho, esquecendo a partícula diminuta que lhe cabe,
persuadindo-se a ver em seus atos repetitivos e ínfimos, diante do gigantismo da
fábrica, a beleza que timidamente teima em se esconder – eis uma demonstração da
capacidade criativa do trabalhador.
O mesmo sentimento de Pablo perante o gigantismo fabril foi apontado por
Lautier, que cita um operário referindo-se à fábrica como um cenário teatral estendido
em torno dele, sem que o possa perceber em sua totalidade. O operário conhece alguns
detalhes, alguns espaços esgarçados, mas não consegue ligar os fragmentos a um todo.
Desconhecendo seu meio mais amplo, ele também se indaga onde está e quem é. Para
romper com esse desencontro existencial, manifesta o desejo de conhecer as pessoas e
saber o que elas fazem, de, “pelo menos uma vez, acompanhar uma de minhas peças ao
longo de todo o seu itinerário, antes dela chegar até mim e depois onde ela é montada e
talvez mais longe, até o seu usuário” (1981: 40). Enfim, reconhece que esse contato
não traria grandes mudanças, mas, ao menos, a partir dele, poderia tomar conhecimento
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do seu espaço de trabalho, o que lhe proporcionaria algum controle acerca de certas
ordens que lhe são simplesmente jogadas sem que detenha qualquer poder de réplica a
respeito.
Nesse sentido, se deslinda a identidade operária, distante dos elementos que a
afirmam, constitui-se pela ausência e pela negação. O operário reprovando o que é no
que faz, cria imageticamente uma identidade naquilo que não pode ser diretamente,
mas que somando atividade por atividade, desenvolvida por todos os outros operários,
resulta na beleza de um processo que tem sentido. No caso de Pablo, o sentido reside
em: produzir uma máquina (automóvel) com poderes mágicos capaz de encurtar a
relação tempo-espaço nas vidas das pessoas.
Por outro lado, na fábrica, a identidade também se configura pela afirmação.
Durante sua jornada de trabalho, esses operários conquistam espaços em que podem
praticar ações cujos valores são fortemente arraigados em sua cultura. A situação mais
ilustrativa a esse respeito advém da transformação da fábrica nos dias em que o Brasil
joga nas copas mundiais de futebol
51
. Nessas horas em que parcela significativa do país
se volta unicamente para o fenômeno do futebol, a fábrica literalmente pára, deixa de
ser uma organização produtiva e passa a representar um estádio que abriga torcedores
agitados.
[Na] fábrica, em época de copa do mundo [...] se tiver
jogo durante o serviço [...] Para! Ah! Na última copa, os
jogos eram de madrugada, tipo às 6:00 [horas] da manhã
[...] Por incrível que parece, só se começava a trabalhar
depois dos jogos [...] era geral [até a gerência], todo
mundo parava [...] Parava! Era um acordo que durante o
horário de jogos... imagina você colocar o pessoal pra
trabalhar durante o horário de jogos, ninguém trabalha.
51
- Sobre a importância do futebol na cultura brasileira, cf. Caldas (1986).
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156
Então a melhor coisa é [...] deixar mesmo. Porque senão
não sai! Então, são esses pontos [que] eu falo pra você
que a cultura pode influenciar [dentro da fábrica]. (Alex,
22 anos, analista de processos de produção/ex-preparador
de carroceria, Montadora A – grande)
O espaço do trabalho é re-normalizado na medida em que é apropriado de
outra forma, pelos que o ocupam e fazem dele um uso diferenciado daquele que lhe foi
atribuído em vez de espaço de produção de objetos vendáveis passa a comportar
cenário exclusivo para a prática de valores culturais.
Certamente, não se pode perder de vista que, por trás, essa concessão feita
pela fábrica tem interesse econômico; ela sabe que se os trabalhadores fossem
impedidos de assistir ao jogo, a produção cairia e os riscos de acidentes aumentariam,
uma vez que trabalhariam terminantemente desconcentrados e insatisfeitos. Assim,
concedendo-lhes esse tempo, a fábrica assegura resultados melhores depois do jogo,
inclusive podendo acelerar a velocidade da linha e intensificar o trabalho dos operários.
Entretanto, por razões econômicas ou não, o fato é que nessas circunstâncias a fábrica
ganha uma nova roupagem, aquela escolhida pelos valores dos seus integrantes.
Porém, o valor cultural do futebol não é prerrogativa brasileira. Em tempos de
copa do mundo, mesmo os operários franceses, cuja cultura é mais conhecida pela
manifestação política, reagem, interferindo na rotina diária fabril. M. Durand relata as
formas assumidas por essa reação:
Deve estar quente na Espanha neste mês de junho de
1982. Em Sochaux também, está quente. Os apaixonados
por futebol encontram-se estranhamente atingidos por
doenças diversas: fadiga, mal-estar, gripe. Todos os
sintomas do vírus do futebol. (1990: 262)
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157
M. Durand avalia o futebol como o ópio do operário, apresentando-o como
uma saída: “tendo em vista a vida que nossos patrões nos impõem, nós realmente
temos necessidade de droga” (idem, p. 263).
Se, em momentos de copa do mundo, o uso que os operários brasileiros fazem
da fábrica revela sua apropriação desse espaço, no caso dos franceses ocorre o oposto:
o valor cultural do futebol vem como razão para se afastarem desse espaço e se
recolherem em um outro de sua própria escolha. Ao alegarem doença, são afastados da
fábrica, apropriando-se, assim, do seu próprio corpo. Entretanto, a mesma razão que
afasta esses dois atos de apropriação/afastamento do espaço fabril também os une;
ambos buscam no futebol uma razão para impedirem o domínio do lugar sobre si
próprios.
Apropriando-se do espaço de trabalho, os operários não buscam ser
proprietários jurídicos dos objetos materiais desse meio, mas tentam mediante esse ato,
controlá-los impedindo que eles os dominem. Trata-se de um “contra-poder” sobre o
meio exercido por sujeitos que, mediante suas ações, se esforçam para apropriar-se
simbolicamente dos objetos.
Na acepção de Bernoux, o ato de apropriar é uma reação à dominação e não se
restringe ao ato de possuir objetos: “Possuir também é entrar em relação com o Outro
(1981: 219). Porém, o reencontro com o outro faz-se por intermédio de objetos em
torno dos quais os indivíduos constroem sua identidade, por meio da qual são
reconhecidos pelos outros. Apropriar-se implica a defesa de si ou, como coloca o autor,
a “defesa da pessoa” (idem, p. 217-219). Logo:
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158
Possuir é necessário para existir e suprimir a possessão é
mutilar a pessoa. Possuir é, portanto, uma função
indispensável: o operário semi-qualificado que se
deixasse desapropriar de todo o universo material e
organizacional que o cerca conheceria uma grave
mutilação da sua pessoa. (idem, p. 218).
O meio de trabalho é reconfigurado pelo trabalhador; há sempre um recanto,
mesmo pequeno, onde se encontram traços da identidade dos operários: a disposição
das ferramentas, a limpeza, uma mensagem, uma figura, uma flor. O operário apropria-
se dos espaços de trabalho para torná-los mais adaptados a si mesmo, nem sempre para
facilitar diretamente a rentabilidade produtiva, mas para o seu bem-estar e para suprir a
necessidade de controlar o meio, tentando impedi-lo de o subjugar e de torná-lo
anônimo.
Portanto, o espaço fabril representa o ponto de partida para os operários
desenvolverem suas habilidades na prática da re-normalização. Deter certo controle do
espaço é condição sine qua non para reinterpretarem e reinventarem as normas
vigentes sobre os objetos e o tempo.
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Cap. 4 Normas fabris: vivências em torno do prescrito
Introdução
Quando tratou de “participação” operária, o fito do capítulo três foi o de
cotejar posturas e apreciações dos operários em relação aos espaços físico-relacionais
formalmente concedidos a eles pela fábrica. Doravante, neste capítulo, o intento é o de
revelar os espaços construídos pelos próprios operários além dos que lhes são
formalmente facultados. Em outras palavras, serão apresentadas intervenções operárias
realizadas desde há muito, desprovidas ou não do conhecimento e da conformidade dos
seus superiores.
A matriz analítica enfocará os atos de re-normalização praticados pelos
operários, cuja experiência no trabalho e responsabilidades sobre o adequado
funcionamento da produção e do seu próprio corpo os levam a assumir o papel de re-
formuladores das regulações do seu meio, pela ativação de práticas individuais ou
coletivas.
4.1 Lugares de re-normalização
A re-normalização operária ocupa os mais diversos espaços e perfis
individuais. Ela é constatada em diferentes esferas fabris: em empresas de pequeno,
médio ou de grande porte; setores de ferramentaria, de usinagem, estamparia, de
pintura, de pré-montagem; de linha de montagem final ou teste de motores; em
diferentes profissões: ferramenteiro, fresador, operador de produção, torneiro,
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160
ajustador, preparador, programador, montador, analista de processo; e entre
trabalhadores jovens ou adultos, mulheres ou homens.
Certamente, existem variações, se forem comparadas a pré-montagem e a
linha de montagem final, onde a esteira funciona com muito mais cadência; a re-
normalização faz-se presente nos dois ambientes, entretanto de maneiras diferenciadas:
enquanto na pré-montagem o operário consegue trabalhar bastante “adiantado”
(podendo utilizar os intervalos da forma como lhe convém), na montagem final isso só
acontece em pequena proporção.
Serão expostas as experiências de trabalho narradas por operários e operárias,
cujos perfis, como já mencionado acima, são largamente diversificados, ainda que
todos advenham do ramo metalúrgico. A maioria (16 operários) atua em fábricas de
grande porte, em montadoras; alguns estão em médias (2 operários) e pequenas (3
operários) fábricas, fabricando peças que são exportadas e também fornecidas para as
montadoras.
Diante de tamanha variedade de operários e de fábricas nota-se que a re-
normalização, ou seja, o refazer as normas existentes, em um ambiente de trabalho
independe do lugar, pois este refazer é uma ação própria de gente, todavia recebe
limitações do meio. Por essa razão traçamos os trilhos dessa pesquisa sobre essa
diversidade de perfis operário, justamente para poder analisar as diferentes maneiras
em que mesmo premidos por condicionantes externos, os operários conseguem
desenvolver artimanhas para adequar, na medida do possível, o seu trabalho a si
próprios.
Num primeiro momento quando indagados sobre as normas na fábrica, entre
aquelas referidas pelos operários as de segurança são mais perceptíveis; elas são
aludidas como se, praticamente, fossem sinônimos de normas fabris. Somente após
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161
certo tempo de conversa, respondendo a perguntas com o mesmo teor, mas
reformuladas diferentemente de acordo com o calor da hora, é que os operários
passavam a falar propriamente de normas operacionais, sobre o seu modus operandi.
Pôde-se constatar que a re-normalização e a experiência atuam em uma
relação diretamente proporcional: são os operários mais experientes, com mais tempo
de trabalho e não necessariamente com mais idade os que, com mais freqüência,
conseguem re-trabalhar as normas, ou pelo menos, têm mais consciência e facilidade
de expressão para rememorar esse ato.
A importância da experiência na re-normalização é tão decisiva que chega,
inclusive, a questionar a tese da maior presença desse ato na pré-montagem, se
comparada à linha de montagem. O relato de Valéria menciona isso:
No meu caso eu consegui fazer mais adaptação na linha.
Só que [...] com o meu material [...] [com] as peças que
[...] uso, as ferramentas, eu consegui fazer essa adaptação.
Agora, ali na pré-montagem, eu não tinha muito o que
fazer porque vinha o motor, aí eu pegava uma peça
parafusava também e dava o torque, dava o aperto. [Não]
tinha o que mudar porque [...] as peças já tavam ali atrás
de mim, eu só virava e pegava, não tinha que buscar peça
longe, então não tinha muita coisa pra fazer; a máquina
não podia trocar, tinha que ser aquela máquina porque
tinha o torque certo. Eu consegui fazer muito mais coisa
na linha de montagem pra adaptar o meu trabalho do que
na pré. (Valéria, 20 anos, montadora da linha, Montadora
A – grande)
Na linha de montagem, Valéria conta com o dobro do tempo de experiência
que teve na pré-montagem. Durante essa experiência nesse último setor,
aproximadamente um ano, ela passou parte significativa do tempo aprendendo
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162
atividades de outros postos de trabalho, de modo que não dispôs de tempo hábil para
aprimorar idéias acerca da elaboração de técnicas e de dispositivos.
Teiger e Laville, em pesquisa sobre a sobrecarga de trabalho entre os operárias
da linha de montagem de aparelhos eletrônicos, constataram variabilidade significativa
tanto nos modos operatórios empregados pelas operárias quanto nas ordens de
operações. Detectaram 28 combinações de modos operatórios somente em um único
posto de trabalho. Nenhum modo operatório foi repetido integralmente na mesma
operação. Da mesma forma, em relação à seqüência da montagem, nenhuma foi
exercida respeitando completamente a ordem estabelecida para as operações (1972:
105 e 108).
Nesse prisma, os autores apresentam destacável variabilidade na “execução de
tarefas”, confrontando assim o estereótipo da automatização da atividade:
No trabalho, coexistem ao mesmo tempo atividades
extremamente automatizadas pelas operárias e outras que
não o são. A tarefa, aparentemente [...] homogênea, conta,
de fato, com operações que apresentam níveis de
dificuldades diferentes e essas dificuldades variam
igualmente de um círculo de trabalho para outro em uma
mesma operação. (Teiger e Laville, 1972: 111)
Outro fator que tomou bastante corpo nas falas dos operários da pesquisa que
desenvolvemos foi a correlação entre o posto de trabalho e a visibilidade das normas.
Quanto mais solitário é um posto de trabalho, mais livres são as normas operacionais,
portanto mais invisível a prescrição, como podemos perceber nas afirmações do
fresador ferramenteiro e da operadora de dinamômetro:
[Não] é um serviço que tem manual, que tem um meio
que te fala exatamente o que é, como faz, é a prática
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
163
mesmo que vale ali. Então foi passado por esse senhor
que trabalha comigo há vários anos. (Guilherme, 22 anos,
fresador ferramenteiro CNC, Auto peças C – média)
Meu serviço é bem individual. Eu tenho a minha cela, [...]
trabalho como [...] quero, tem alguns procedimentos
padrões que [...] vou ter que seguir, mas lá dentro eu faço
o que eu quero. Se [...] quiser parar e lavar a cela na hora
em que [...] quiser eu lavo, ninguém vai ter que falar nada
[...] Acho que onde eu trabalho é mais flexível com
relação a isso. (Ana, 22 anos, operadora de dinamômetro,
Montadora B – grande)
Diferentemente, no trabalho em equipe, com freqüência as normas mais
visíveis que nele vigoram são justamente elaboradas coletivamente pelos próprios
trabalhadores. Por conseqüência, em trabalho de equipe, especialmente na linha de
montagem e mesmo na pré-montagem, há mais coletivização de idéias entre os
trabalhadores do que na usinagem. Comentando se a solução para problemas
encontrados no trabalho é encontrada de forma individual ou coletiva, Valéria certifica:
Geralmente são as pessoas que trabalham na função [...]
ali próximo, que nem no meu caso [...] sou eu e a outra
menina [...] eu tenho uma idéia [...] Aí [ela] vai e me
ajuda. Ela tem a idéia de fazer alguma coisa [...] aí eu vou
e ajudo ela [sic.]. Porque [...] como a gente reveza, um dia
eu fico, outro dia ela fica, então tem que ser que dê para
as duas, que seja bom às duas. (Valéria, 20 anos,
montadora da linha, Montadora A – grande)
Essa interação direta e constantemente estabelecida entre os operários
favorece e facilita a transmissão do modus operandi. Raramente são escritas as normas
às quais têm acesso para gerir o seu trabalho. Embora elas existam, a que realmente
vigora no cotidiano fabril é a falada, transmitida oralmente de um trabalhador mais
antigo da casa para os aprendizes. Em que pese o fato de a grande maioria desses
operários disporem de formação técnica pelo Senai (quatorze sobre vinte e um), eles
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
164
consideram que esse aprendizado é genérico, como pode ser notado pelo depoimento
abaixo:
[Eu] aprendi a trabalhar com uma moça [...] ela trabalha
muito bem, porém eu não sei se [...] por medo [...], eu
entrei ela falou: “Oh! eu vou mostrar duas vezes pra você
como é que monta o motor na cela e depois o computador
te explica, é mais fácil. Aí na terceira vez você monta”.
Até aí tudo bem [...] Cê montar uma mangueira aqui uma
mangueira ali, apertar, qualquer um faz. Aí na hora de ver
o vazamento, nunca tinha visto um motor na minha vida
direito, tinha visto no SENAI um tipo de motor, lá tem 10
mil tipos de motor. Eu não sabia o que era uma biela, não
sabia o que era um retentor que podia vazar, não sabia o
que podia vazar o que não podia vazar [...] Então quando
entrei lá, era muito engraçado, ela falou: “Você dá uma
olhadinha em volta do motor, aí se não tiver vazando
alguma coisa, tá bom”. (Ana, 22 anos, operadora de
dinamômetro, Montadora B – grande)
Muito embora o modus operandi seja transmitido na prática e com isso haverá
uma miríade de formas diferentes de operacionalização de uma mesma atividade, por
vezes os operários afirmam haver um único jeito certo de trabalhar. Contudo, à medida
que sua fala se estende, fica explícito que esse jeito é aquele transmitido oralmente em
tempo real por outro trabalhador e que funciona eficazmente na prática. Não se trata,
portanto, do modo prescrito, padronizado, formalizado pela fábrica, já que em geral
eles desconhecem o seu conteúdo. Simplesmente, é o jeito certo porque dá certo.
Quem me ensinou foi o meu líder [...] Ele fez o primeiro
processo, [...] o processo dele, aí se eu quiser mudar o
meu processo [...] não lógico que possa prejudicar o que
eu tô montando, mas eu fui no processo dele porque eu
achei melhor. [...] por isso que eu falo, se você não seguir
o processo certinho, dá errado. (Sônia, 44 anos,
montadora, Montadora B – grande)
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
165
4.2 Caracterizando as normas
Para compreender melhor em que consistem as normas no interior do espaço
fabril é condição sine qua non caracterizá-las concretamente, especificando a que se
referem, para que servem e, especialmente, de que maneira elas se relacionam com os
operários e os seus teorizadores.
Na fábrica, a norma-matriz realçada em todas as falas operárias e que
orquestra as demais, imperando sobre todas e subjugando-as, com abrangência absoluta
na fábrica, é a da produção. Quando questionados sobre as normas fabris, os operários
jamais falam espontaneamente das normas relativas ao modus operandi; contudo,
expressam prontamente que, para a fábrica, o que importa são os fins, a produção, não
os meios utilizados para atingi-los. Indagados a respeito da existência do controle do
chefe e da fábrica sobre o modo de operar sua atividade, os operários testemunham:
[A fábrica] não controla não. Fazendo a produção, fazendo o que
tem de ser feito, tá bom. (Ulisses, 30 anos, operador de
estamparia, Montadora A – grande)
[Tem] tanta coisa pra ver [...] [que o chefe] mal fica exatamente
na área onde ele trabalha. Só quando aparece um problema. [...]
Parou de produzir, aí ele aparece. Porque é esse o conceito:
produtividade, não necessariamente qualidade. (Alex, 22 anos,
analista de processos de produção/ex-preparador de carroceria,
Montadora A – grande)
A obra coletiva de Clot, Rochex e Schwartz, cujo fito é compreender as
solicitações subjetivas feitas aos operários pelos sistemas automatizados de produção,
está assentada nessa vertente: mostrar que o interesse da indústria automobilística está
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166
direcionado para os resultados e não para as operações, (1990: 27). Os autores
comentam:
O papel de cada um [operário] se define, não mais como
dever de cumprir determinada gama de operações, mas
por direito, simultaneamente dado e retomado, de fazer
valer um conjunto de suas capacidades para alcançar os
objetivos prescritos. Essa discordância entre a
desregulamentação operatória e a codificação mais clara
dos objetivos do conjunto parece-nos necessário seja
levada a sério. Certamente, esse desacordo é a fonte de
uma solicitação nova de regulações subjetivas. (idem, p.
124-125)
A prescrição dos objetivos, aferida pelos autores, consiste na otimização do
sistema técnico por via das exigências de defeito zero, pane zero, estoque zero, porém
todas “comandadas pela norma global do número de carros [a produzir] por dia” (idem,
p. 103), reinando, assim, a norma da produção.
Nesse passo, Jean avalia o crescimento da prescrição dos objetivos com o
declínio do sistema de organização taylorista:
Se, de modo geral, a prescrição taylorista das operações
do trabalho declina, assiste-se a um aumento do poder da
prescrição dos objetivos econômicos por intermédio de
uma política de permanente comunicação. Objetivos
econômicos, orçamentos, margens, taxas de
produtividade, comparação com a concorrência são
amplamente divulgados aos assalariados, em múltiplas
reuniões e publicações das empresas, que acompanham
sistematicamente as evoluções socioorganizacionais.
(2002: 109)
52
52
- Cf. também Jean, 1997: 55.
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167
Compartilhando dessa avaliação, Bartoli reescreve a análise ergológica ao
considerar os operários “cada vez mais geridos, governados por objetivos” e menos
pela maneira de trabalhar (2001: 147).
Importante sublinhar o fato de que essa prescrição da subjetividade, assumida
pelas novas organizações produtivas, não necessariamente coincide com os “usos de
si” tratados por Schwartz. Se as modernas organizações do trabalho recorrem a certas
capacidades dos operários em seu modo de trabalhar, como autonomia, iniciativa,
participação e criatividade, entre outras, é possível questionar como todos esses
aspectos ligados a sua subjetividade são possibilitados aos operários, mas, depois,
cobrados deles. Em síntese, o uso ergológico, a re-normalização, ou ainda o re-
centramento a que nos referimos, feitos pelo sujeito em sua atividade consiste em ação
praticada independentemente de qualquer solicitação advinda da organização oficial do
trabalho; sendo ou não requerida oficialmente essa forma de gestão é inerente ao ser
vivente, ao ser humano.
Quem se embrenhe no cotidiano fabril, percebe que vinculadas ou
subordinadas à produtividade, há outras normas aludidas pelos operários, que
consistem necessariamente na tríade segurança, assiduidade e qualidade.
O cumprimento do horário e o não absenteísmo são exigidos como condição
indispensável para o alcance da meta de produção e a garantia do emprego. Já a
segurança é uma mera formalidade exigida pela legislação, de certa forma tendo de ser
seguida pela fábrica simplesmente para manter seu direito de exploração sobre a mão-
de-obra e a continuidade de seu negócio.
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168
Por fim, a norma de qualidade, por ora aludida pelos operários, aparece quase
como um mal necessário, assumido pela fábrica somente para cumprir os programas
ISO (Organização Internacional de Normalização) e com isso assegurar a manutenção
de sua clientela no mercado. Tanto isso é fato, que os produtos fabricados para
exportação, cujos consumidores são considerados mais exigentes, são de melhor
qualidade do que os nacionais. A fala de Ana permite vislumbrar isso:
[O] melhor motor que tem [na fábrica onde trabalho] é o
motor que praticamente é só [para] exportação, vai para os
EUA, [...] [é] um motor muito bom, não vaza, dá sempre
potência. (Ana, 22 anos, operadora de dinamômetro,
Montadora B – grande)
Além dessa característica pró-forma, tendo em vista as propriedades do objeto
produzido, há outra problemática presente na própria acepção do termo “qualidade”.
Essa questão é trazida por Sato, que constata em pesquisa na indústria alimentícia a
polissemia relativa ao termo “qualidade” nos diversos argumentos dos sujeitos, às
vezes, inclusive, apresentando significados opostos. A autora detalha que, para alguns,
qualidade significa “economia de tempo, de pessoas e de matérias-primas”, ao passo
que, para outros, remete a “diminuir o ritmo de funcionamento das máquinas (2002:
1152).
Dado o caráter pouco sólido dessas três normas – qualidade, assiduidade e
segurança – faz-se necessário retornar à primeira entre todas, a da produção, que
efetivamente ocupa lugar de destaque no chão de fábrica. Sua força é tão marcante na
fábrica que ela chega mesmo a inviabilizar e neutralizar as outras que foram aludidas.
Essa afirmativa pode ser observada na fala de Jussara, ao avaliar as normas fabris:
Perfeitas [as normas] não são. Elas até têm um padrão,
[...] só que [...] é ineficiente. Aquelas normas de
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169
segurança [...] eles colocam que não pode fazer isso, não
pode fazer aquilo, mas não funcionam porque depende,
tem normas de segurança [que] funciona quando se tem
um padrão de montagem, quando se tem uma meta. Eles
fazem aquela norma, aquela meta quando cê tá numa
produção x, quando tá em alvoroço, alta velocidade [...]
aqueles padrões [de segurança] não funcionam (Jussara,
30 anos, montadora, Montadora B – grande)
É possível notar, pelo testemunho acima a fragilidade presente na
padronização de normas: a padronização normativa foi planejada para uma meta
produtiva específica, que é alterada e sofre constantes variações, em virtude da
demanda do mercado, inviabilizando o cumprimento das próprias normas antecedentes.
No entanto, visando o efetivo cumprimento da produção, por intermédio dos
engenheiros, a fábrica elabora normas para cronometrar o tempo despendido pelo
“trabalhador médio” para realizar cada atividade. Esse gênero de normas é intitulado
“norma do tic-tac”, como aparece no testemunho de Zélio:
[Todo] o lado você tem um tempo, no começo ficou um
cara com um reloginho [...] aí cronometrou com a pessoa
montando [...] só que o tempo vai passando, as peças vão
mudando, vão acrescentado peças, [e] [...] não tem esse
trabalho novamente, então você vai acumulando trabalho
para a pessoa que tá lá e a pessoa ela sempre dá uma
forma de fazer. Então quando eu falo que ela nos dá
regras, ela dá essa regra, tic tac que a gente fala: você tem
um tempo para fazer uma peça, ela coloca mais uma
porcentagem de fadiga [...] Só que no final das contas, [...]
vão mudando os processos [...] [e] ela não dá depois esse:
“Ah, mudou a peça, vamos cronometrar de novo, vamos
ver quanto que dá agora?” [...] [porque] isso aqui não é
mais o tempo de antigamente, mudou. (Zélio, 23 anos,
montador, Montadora B – grande)
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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O cronômetro, um instrumento de precisão para mensurar o tempo,
informando inclusive os décimos de segundos, é o símbolo do domínio sobre o
trabalho dos operários montadores. Assim, é por meio da “norma do tic-tac” que a
fábrica mantém o trabalhador sob controle para garantir a meta de produção.
Primordial enfatizar, conforme é possível inferir da fala de Zélio, a fábrica se preocupa
em cronometrar o tempo de trabalho somente quando é necessário reduzir esse tempo;
já quando há acúmulo de tarefas e, por conseqüência, aumento do tempo,
automaticamente o próprio trabalhador tem de adequar seus movimentos para o relógio
acelerado.
A “norma do tic-tac” coloca-se, então, no chão de fábrica, como um recurso
utilizado pela engenharia somente para normatizar e, consequentemente, poder zelar
pela produção. É esta que importa, por isso àquela não é concedida tanta cautela, uma
vez que os resultados são alcançados em virtude das adaptações próprias dos operários,
como fica patente nas palavras de Zélio. Dada essa “norma do tic-tac” configurar-se
simplesmente como um meio normativo para atingir a produção, era de esperar que a
normatização impusesse procedimentos rigorosos a serem seguidos pela
operacionalização das tarefas, ou seja, o modus operandi.
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4.3 Plano de Operação Padrão versus produtividade
Na indústria metalúrgica, o modus operandi é materializado no Plano de
Operação Padrão (POP), que prescreve a maneira de fazer, a duração e a seqüência dos
procedimentos em cada operação. Trata-se de um documento impresso, presente em
cada posto de trabalho, em versões diferentes conforme as especificidades das tarefas
determinadas.
De acordo com os operários, esse plano é encontrado somente nos postos de
trabalho relativos à montagem de veículos; ele é desconhecido em outras funções,
mesmo localizadas dentro das montadoras, como operação de máquina e usinagem.
Na linha de montagem tem [...] [o] POP – Plano de
Operação Padrão, o jeito que você tem que montar: o
parafuso tal. Tudo com a folhinha... Cada posto de
trabalho tem tipo de um livrinho e você vê lá como é que
monta. Mas [...] imagina você [...] sem ter conhecimento
do serviço de montagem, [...] com a linha rodando,
acelerada, você vai parar pra olhar lá no livrinho? [...]
Não dá [tempo] porque se você para pra ler, aí o serviço
passa e atrasa, a linha para. Se ela pára, o chefe já vem em
cima “Oh por que é que parou? Não pode parar.” Então
[...] você sabe que é aquele torque [aperto], que é aquele
parafuso, que é aquela ferramenta, mas é um
conhecimento que você adquire no dia a dia. (Fabrício, 27
anos, montador, Montadora B – grande)
Apesar de ocupar espaço obrigatório em cada posto de trabalho, em geral, o
operário considera o POP ineficaz, pois o processo total de montagem não lhe é
apresentado quando chega à fábrica pela primeira vez e sua aprendizagem se restringe
a olhar um outro operário montar uma única peça em uma única vez, sendo que a
próxima peça será ele sozinho quem a montará sobre a esteira em pleno
funcionamento. Dessa forma, efetivamente não há tempo para ler o POP, nem antes,
nem durante e nem depois do processo de montagem.
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172
Os operários ainda acrescentam que: a produção não sairia mesmo se eles
tivessem tempo de lê-lo e segui-lo, porque o POP não racionaliza adequadamente os
intervalos de tempo e os procedimentos de cada operação. Por conseqüência, a grande
maioria das informações nele contidas é pró-forma, já que, são submetidas à norma
maior da fábrica, a produção, que, conforme já assinalado, deve sair não importando o
meio utilizado no processo operacional.
[Se] você [...] segui aquilo lá [o POP], do jeito que tá...
primeiro que não ia dar produção, não ia sair o motor do
jeito que eles querem, porque é muito complexo e
segundo que você ia ficar nervoso porque você sabendo
que você pode fazer o negócio de um jeito que vai
funcionar melhor e você não poder, além da pressão que
já tem no dia a dia normal, acho que ia gerar uma
insatisfação, uma certa revolta. (Fabrício, 27 anos,
montador, Montadora B – grande)
Coincidentemente e para nosso júbilo, Jack, um jovem montador bastante
ativo e ávido pelo aprendizado, tanto no trabalho quanto nos estudos e na vida, tinha
um POP
53
e cedeu-nos uma cópia dele, quando estivemos uma segunda vez em sua
casa para entrevistar seu pai. Certamente, antes, ele tomou o cuidado de retirar as
páginas orientadas pela fábrica como sendo de cunho sigiloso; porém, o documento
continua sendo preciso para ajudar-nos a interpretar o que era prescrito e o re-
normalizado na fábrica.
A fábrica cedera a cópia de um POP aos montadores, para que eles o
reexaminassem e sugerissem alterações. Do nosso ponto de vista, essa é uma forma de
fazer o trabalhador empenhar-se no trabalho mesmo estando em casa e, sobretudo, de
tentar mostrar-lhe que o quer como coadjuvante dos objetivos da empresa. Porém,
53
- Ver anexo 3.
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173
trata-se de parceria que visa atingir somente as metas de uma das partes, a da fábrica;
se também contribui para o emprego, isso é mera conseqüência.
Quanto ao POP na posse de Jack, ele explica:
Esse é um POP [...] Por exemplo, aqui é o posto 1 de
trabalho [...] o cara vai lá apertar o suporte, vai gastar 1
minuto; colocar o óleo, 1 minuto e 2 segundos; colocar o
parafuso [...] olha só a seqüência que eles colocaram:
apertar [...] dois suportes [...] [ou seja,] dois parafusos. Aí,
colocar o óleo [...] ele vai colocar uma mangueirinha para
colocar o óleo. Colocar os parafusos [...] aqui na frente,
no câmbio [...] vai 16 parafusos [...] pegar o gancho e
acoplar [...] pegar a talha, pegar o câmbio, levar até o
motor, acoplar e apertar os parafusos. Só que [...] Para o
cara matar tudo isso daí, o que ele faz? Ele coloca a coisa
para encher [de óleo], que é automático [...] Aí que ele
começa... conta os parafusos, [...] enquanto isso tá
enchendo lá, ele coloca os parafusos: aperta, quando ele
termina de apertar o óleo já encheu. [...] Então ele ia
gastar 2 minutos e 44 [segundos], ele gastou 1 minuto e
40 [...] Isso que a gente faz. O POP tá aí, tem o que você
tem que fazer. Todo mundo sabe o que tem que fazer,
porque é uma rotina [...] tem que [colocar] óleo, tem que
colocar parafuso, tem que apertar, tem que colocar o
câmbio no motor, só que eu não preciso fazer nessa
ordem. (Jack, 29 anos, montador, Montadora B – grande)
O propósito do POP é estabelecer passo a passo os procedimentos para a
execução de uma tarefa, normas que talvez pudessem ser aproveitadas de alguma
forma se o trabalhador dispusesse de tempo para lê-lo. No entanto, como a transmissão
do conhecimento via oral entre os trabalhadores é mais producente, é essa a via
privilegiada pela própria fábrica para o treinamento de sua mão de obra.
De acordo com os operários, o POP é um texto tão circunscrito, teórico e ao
mesmo tempo excessivamente pormenorizado, porém alheio à variabilidade constante,
que acaba não sendo útil para a operacionalização de suas atividades.
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174
[O POP] não deixa brechas [...] pra a pessoa que tá
trabalhando criar o próprio jeito [...] é uma receitinha de
bolo. Tá ali: você tem que quebrar o ovo, depois bater a
clara, depois misturar a gema com a clara. Ninguém fala
que se você bater tudo na batedeira e bater tudo de uma
vez [...] Então o Pop não deixa isso aberto. Acho que o
Pop deveria falar assim: você vai apertar o parafuso com a
mão direita, se você for destro e achar que é melhor com a
esquerda, faz com a esquerda, não importa se você é
destro ou canhoto. (Jack, 29 anos, montador, Montadora
B – grande)
Fabrício segue na mesma linha crítica de Jack, apontando as desvantagens
específicas do POP para o cotidiano do operário.
Eu acho que esse plano de operação, ele engessa a
pessoa, se a pessoa for seguir, ela não tem... porque
enquanto a gente tá trabalhando [...] comigo acontece
isso, eu já fico pensando num jeito do negócio funcionar
melhor pra ir mais rápido pra eu ter um tempinho a mais
pra tomar um fôlego, ir no banheiro, fazer alguma coisa e
eu trabalho já pensando nisso e durante o trabalho eu vou
fazendo o teste (Fabrício, 27 anos, montador, Montadora
B – grande)
A prescrição normativa do POP “engessa a pessoa”, frase notável. No sentido
figurativo utilizado por ele, engessar significa restringir os movimentos, o raio de ação.
O POP tenta imobilizar e enquadrar os operários, todavia o mal-estar que isso lhes
causa fazem-nos reagir, desenvolver e controlar seu próprio raio de ação.
Contraditório é o fato de embora seja exigido que o POP exista, quando ele é
seguido literalmente pelos operários, a produção simplesmente diminui, entrando em
conflito ácido com as normas de montagem e de meta produtiva. A situação de
inoperância da prática precisa das normas é denominada “‘greve do zelo’, que consiste
em fazer estritamente aquilo que os regulamentos solicitam” (Morgan, 1996: 170).
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É necessário indagar, afinal de contas, para que servem efetivamente as
normas prescritas pelo POP.
[O] plano de ação, tem vários nomes. Eu li, mas são
coisas que nem a ordem de apertar o parafuso: 1º, 2º, 3º.
Ou então coisas o mais detalhadas possível: pega o
parafuso na caixa tal, com a máquina tal, aperte o local
tal, aí pegue a peça na caixa tal, a peça de número tal.
Então é tudo esmiuçado, é tudo detalhado. É tipo [...]:
virar, pegar a peça e voltar, eles dividem isso em 4
tópicos, é tudo bem divididinho [...] Dá [pra seguir o
POP], mas [...] a produção cai, o serviço cai. Dá para
fazer, mas fica muito complicado porque é muito teórico
e fazer tudo certinho [...] [A] gente tem que fazer do
nosso jeito porque a gente sabe qual o melhor jeito de
trabalhar pra sair, pra fazer fluir a produção porque se
for ali [no POP], não sai, não tem jeito. [...] Então a
gente, basicamente, quase ninguém lê. Lê assim, uma vez
ou outra, quando chega [risos] a auditoria pra saber. Mas
é cada um do seu jeito mesmo porque o plano não dá.
(Valéria, 20 anos, montadora da linha, Montadora A –
grande)
Na fala reveladora de Valéria, podemos compreender a razão para a existência
do POP: ela chama-se auditoria. Quando a fábrica recebe auditoria externa, sempre
avisada previamente aos trabalhadores, o chão de fábrica se transfigura: ganha
“disciplina”, a fábrica é tomada por brilho e limpeza adicional em seus objetos e pisos,
até os trabalhadores são orientados a se trajarem de forma mais apresentável e o POP,
finalmente, mostra a razão de sua existência, pois os operadores têm de segui-lo.
O caráter ilusório das auditorias é salientado aqui por tratar-se de um momento
não somente esperado pela fábrica com data precisa, como também treinado pelos
operários feito um exame vestibular. Emir retrata com clarividência o caráter de
engodo assumido por esse tipo de controle de qualidade: “tem auditoria interna, que na
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176
verdade é preparação pras outras auditorias [...] de segurança, de normas [...] de ISO
[...], de qualidade” (Emir, 21 anos, operador de máquina CNC, Montadora B – grande).
Pablo ratifica essa consideração nos seguintes termos:
Eu acho que o fato deles passarem essas instruções [POP],
a metodologia do trabalho certinha, é pra você não ter
problema quanto à auditoria, porque normalmente quando
tem auditoria ISO 9000, ISO 14000, ISO... todas essas
ISO, o pessoal [auditores] costuma vim a você e
perguntar [...]: “O que que você faz?” “Ah! Eu faço isso e
isso” “Onde tá escrito que você precisa fazer isso?” Aí
você mostra para a pessoa. “Que torque você usa aqui?”
“Ah! Eu uso o torque de 80” “Onde tá escrito que você
precisa usar o torque de 80?” “Ah! Tá aqui no manual
escrito que parafuso tal usa o torque de 80”. (Pablo, 23
anos, montador, Montadora B – grande)
É nesse dia que os POPs, já amarelados pelo tempo de não uso, são retirados
de seus esconderijos, ficando à mostra para os auditores de qualidade, que indagam aos
operários sobre os procedimentos que prescrevem, conferindo em seus atos a
coincidência ou não com aquelas normas. Assim, nesse dia, pela obrigação de inspeção
externa, é preciso que, diante dos auditores, o operário demonstre que conhece e segue
esse manual, desnecessário em seu cotidiano de trabalho.
Afora os poucos dias de visita da auditoria de qualidade, o cotidiano fabril
segue normatizado, sim, porém pelas adaptações práticas criadas pelos próprios
operários.
Eles [empresa] não ficam no pé, falando pra você [...]:
“Segue exatamente o que tá aí, monta isso tal e tal”. Você
tem liberdade de seguir o seu caminho de [...] tá fazendo o
que você quer. (Pablo, 23 anos, montador, Montadora B –
grande)
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Embora exigindo normatização prescrita para legitimar-se, especialmente por
meio da “norma do tic-tac”, paradoxalmente, a produção só é alcançada com a ausência
de normas rígidas de operacionalização. Mencionando-se o fato aludido por Valéria, da
queda da produção nos dias de auditoria, quando a orientação é justamente seguir as
normas padrão.
4.4 Re-normalizar é transgredir?
O período em que o modus operandi era rigidamente prescrito pertence em
tese ao velho taylorismo; entretanto, apesar de a nova organização do trabalho
sustentar a concessão de “autonomia” e de “decisão” ao trabalhador, essa autonomia é
condicionada. Isso quer dizer que a cada um é permitido re-normalizar sua tarefa desde
que a meta de produção seja garantida no final do processo de trabalho.
Everaere condiciona a autonomia aos resultados estritos da produção,
argumentado que ela se restringe aos meios empregados pelos trabalhadores, sendo-
lhes vedada a participação sobre os fins:
autonomia não significa [...] necessariamente um
afrouxamento das coerções, longe disso. Ela reside na
capacidade de interpretar o grau de coercitividade das
coerções e na capacidade (no sentido de aptidão e
habilitação) em ajustar a prática aos meios para alcançar
os objetivos que só podem permanecer no domínio das
prerrogativas da direção. (1999: 259)
Todavia, como já aludido, há um momento mais preciso em que a re-
normalização é interditada, caracterizando transgressão por parte da empresa; então,
entra em cena o fantasma do taylorismo. É quando a fábrica recebe os inspetores
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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externos de qualidade e a administração fabril faz com que os operários, ainda que a
toque de caixa, tomem conhecimento do modus operandi prescrito no POP e o
pratiquem diante dos olhos dos inspetores; por conseqüência, a produção cai.
Embora a análise de Dejours (1996) tipificando as transgressões às normas
tenha-nos servido como instrumento analítico para o ponto de partida teórico da
pesquisa, auxiliando-nos a compreendê-la conforme os objetivos (lacuna normativa,
autodefesa, prazer, má-fé) do trabalhador ao transgredir, em si, a configuração e os
sentidos da noção de transgressão revelados na prática não ganham contornos tão
definidos.
Tomando, pois, por base as situações concretas de trabalho contatadas por nós
bem como por outras pesquisas, podemos anunciar que o caráter da transgressão é
extensamente maleável e ambíguo, já que ocupa lugar plástico e camaleônico,
conformando-se não exatamente ao ambientesico da fábrica, mas à temporalidade da
presença ou ausência dos auditores. Não são a fábrica e seus dirigentes diretos quem
impõe ao operário constrangimentos normativos do modus operandi, mas figuras não
ambientadas ao chão de fábrica.
A transgressão das normas é, então, convencionada à medida que a própria
fábrica cria e favorece espaço para a sua prática. Assim, ela não contém elementos que
realmente transgridam o prescrito cotidianamente, mas tão somente propicia a
representação dos operários, ou seja, perante os auditores, eles simplesmente encenam
o cumprimento das normas padrão. Entretanto, isso não significa que transgridam essas
normas na ausência dos auditores, pois como não têm a mínima relevância e influência
no seu cotidiano, elas são simplesmente desvalorizadas de comum acordo, pelos
integrantes da fábrica, inclusive os dirigentes.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
179
Os operários têm consciência de que as reformulações que imprimem às
normas não têm o teor de resistência, seja contra o as ordens estabelecidas seja contra a
autoridade fabril. Isso pode ser constatado tanto no depoimento de Ana, que trabalha
em uma cela individual, quanto no de Pablo, que atua na pré-montagem, ambos
caracterizando a elasticidade normativa em seu trabalho.
lá cê tem uma certa flexibilidade, eles falam: cê tem que
ligar tantas mangueiras em tantos lugares, agora como cê
liga o problema é seu [...] Mas não está batendo de frente
com ninguém por causa disso. (Ana, 22 anos, operadora
de dinamômetro, Montadora B – grande)
lá ninguém impõem nada: “Precisa ser desse jeito”, então
eu acho que não é um caso de resistência, eu acho que é
um caso tipo: livre arbítrio de você poder tá escolhendo a
melhor maneira de você poder fazer o seu serviço, não é
nada imposto. (Pablo, 23 anos, montador, Montadora B –
grande)
Tendo em vista que as normas prescritas não são impostas pela fábrica, que a
norma matriz é garantir a meta de produção e essa só é alcançada a contento quando o
operário re-normaliza os procedimentos para gerir mudanças que, constantemente,
assolam o ambiente fabril, logo, a transgressão só se poderia caracterizar enquanto tal
se fosse direcionada à infração da produção.
Portanto, para compreender o sentido de transgressão é necessário indagar o
que é transgredido. Uma vez que os operários devem mais obediência aos dirigentes
fabris do que aos auditores propriamente ditos e que aqueles concordam com a
reformulação de normas operacionais e, mesmo, de segurança desde que a produção
esperada seja atingida, significa, então, talvez, que se houver transgressão de normas
seja cometida pela própria empresa em relação aos auditores e não dos operários.
O ergonomista Hubault recorre a uma frase que ilumina a descontinuidade
considerada fundadora da ergonomia francesa e que ajuda a compreender a contradição
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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posta acima. Essa descontinuidade consiste naquela que leva a ergonomia à “distinguir
‘o que se pede’ ao Homem (a tarefa) e o que ‘esta lhe pede’ ao realizá-la” (1995: 79).
Ou seja, embora as normas antecedentes instruam os trabalhadores a fazerem sua tarefa
de um jeito padronizado e pré-estabelecido, a ergonomia admite que a atividade em
tempo real, portanto imersa em contexto variável e contingente, solicita-lhes a re-
normalização. Donde surge o descompasso e o fosso separando as normas prescritas
daquelas efetivamente praticadas.
Durrive trilha o mesmo caminho ao enunciar que uma dupla mensagem é
endereçada aos operadores: “faça como a gente te diz” e “não faça como a gente te
diz”, pois ao mesmo tempo que há procedimentos regulamentares antecipando a
realidade, essas instruções são assumidas como meros conselhos pela gestão inteligente
da tarefa (2006: 296).
Assim, pode-se afirmar que a reformulação de normas pelos operários tem
caráter de desobediência consentida pelos dirigentes dada as solicitações das
circunstâncias. Dessa feita, poder-se-ia considerar que o operário não transgride
normas, ele tão simplesmente as re-normaliza, contextualizando-as e adequando-as não
somente à meta produtiva, mas aos imprevistos e aos seus limites, necessidades e
anseios possíveis.
4.5 Modus operandi alternativo
A existência do prescrito, concretizada pelo POP, estando inteiramente
vinculada à presença dos auditores, fica atestado que a fábrica simplesmente dispõe de
normas para cumprir com a obrigação jurídica que as exige.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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Os operários testemunham que as normas operacionais fornecidas pela fábrica
servem apenas ligeiramente como orientação para suas atividades, pois são
demasiadamente genéricas para serem seguidas rigidamente.
Eu acho que a maioria das informações que eles dão,
novas, [...] são muito genérico, não tem nada que... seja
mais específico que vá fundo ali no seu serviço adequado,
(Guilherme, 22 anos, fresador ferramenteiro CNC, Auto
peças C – média)
Poderia parecer radical inferir dos testemunhos desses operários que as normas
operacionais fabris são pró-forma, porém se mesmo dirigindo nosso olhar para a
transmissão de experiências vemos que no modus operandi é praticamente exclusiva a
passagem oral do conhecimento, dos mais velhos aos aprendizes, podemos lançar então
uma segunda interpretação para a sua existência: servir de referência e controle relativo
sobre a mão-de-obra.
As normas fabris precisam existir para a fábrica assegurar, ainda que
parcialmente, o controle do conhecimento dos trabalhadores. Esse conhecimento foi-
lhe subtraído pelos teorizadores e engenheiros desde o tempo de Taylor, mas não
conseguiu ser completamente enquadrado nas normas. A empresa, porém mantém o
registro das normas para poder ter o mínimo controle dos atos de sua mão-de-obra e
saber, ainda que tangencialmente, de que forma ela atua no trabalho.
Fato consideravelmente corrente é os operários questionarem o POP
expressando a inadequação das normas que apresenta, sejam de ordem operacional, de
qualidade ou de segurança, e sugerirem, na prática, outras formas que os levem a
melhores resultados. Conquanto tal evento esteja vinculado à produção, nem sempre
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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ele é comunicado à direção da fábrica, sobretudo porque os operários sabem que ela
não está efetivamente interessada no assunto.
Têm [...] coisas que... você vê que não é bem daquele
jeito, que [se] você seguir a seqüência mesmo muitas
vezes não dá certo. Quanto às próprias ferramentas, tá
escrito lá que você deve usar ferramenta articulada pra
apertar parafuso do cilindro. Só que você vê que aquela
articulada, por ser muito comprida, fica difícil. Aí você
acaba vendo que uma menorzinha é muito melhor pra
você apertar, ela não vibra, sabe, ela é bem mais fixa.
Então [...] cê acaba adaptando o processo produtivo pra
melhor, pra ser melhor pra você, pra ser mais rápido, ser
mais fácil. (Pablo, 23 anos, montador, Montadora B –
grande)
Diante desse quadro, entrevê-se que o operário faz o seu trabalho de um outro
jeito não em razão direta de uma imposição organizacional. Na maioria das situações
contatadas por nós, o prescrito não é formalizado claramente nem exigido do operário,
salvo a exceção do dia de auditoria, como já referido.
Logo, se cotidianamente não há formalização do ponto de vista do operário,
também não há prescrição efetiva pela fábrica; não havendo prescrição, não pode haver
transgressão. Por conseguinte, a re-normalização operária não se configura como uma
transgressão, mas como um modus operandi alternativo, é o fazer de um outro modo.
O refazer as normas operacionais é próprio do trabalho humano, isso ocorre
tão comumente que o próprio trabalho seria impraticável se quem o efetua tivesse de
seguir com rigor orientações prévias.
Salermo precisa com outras palavras essa característica intrínseca de re-
normalização pelo trabalho humano. Para ele, as informações recebidas pelos humanos
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são tratadas diferentemente do tipo “sinal-resposta”, que se verifica nas máquinas.
Destaca-se a “pesquisa ativa da informação, guiada pela experiência, a antecipação do
resultado que seria obtido por uma ação antes de efetuá-la, o controle do resultado real
em comparação ao pretendido” (1991: 137).
Uma das variáveis, um tanto trivial, mas que interfere diretamente nas normas
operacionais, são as características físicas do trabalhador. Por exemplo, o canhoto é
premido à re-normalizar para cumprir sua atividade com êxito. É o caso de Emir, que
deixa de seguir a norma de usar a mão direita, dada sua maior força e habilidade com a
mão esquerda.
Tem uma peça que às vezes é um pouquinho mais pesada
do que a outra, cê tá pegando ela com a mão direita […] e
coloca na máquina, com a mão [esquerda] cê bate o […]
dispositivo do […] ar [comprimido] […] Então até […]
por ser canhoto acho que eu tenho mais força com a mão
esquerda, mas é a precisão também pra bater o ar lá na
máquina. Então acabo usando a direita pra pegar a peça e
às vezes se a peça é um pouco pesada […] eu começo a
mudar, por exemplo, pegar a peça com a mão esquerda e
coloco lá, eu bato o ar, coloco no lugar e pego com a mão
esquerda […] porque começa a doer o braço. (Emir, 21
anos, operador de máquina CNC, Montadora B – grande)
Tendo essa imagem de readequação de normas praticada por Emir para
enfrentar problemas de conjunção corpo-ambiente, é possível utilizar a comparação
feita por Canguilhem entre a sua abordagem e a de Marx. Conforme seu argumento, se,
para Marx, a humanidade só cria aqueles problemas que é capaz de resolver, para
Canguilhem, ao contrário, “a vida multiplica, de antemão, soluções para os problemas
de adaptação que poderão surgir” (2006: 227). De todo modo, o ponto comum entre as
duas idéias reside em que, no final das contas, os indivíduos sempre acabam tendo
condições de resolver os problemas com os quais se deparam.
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Como pontua Rosa, a multiplicação de soluções é propiciada pela “pulsão de
saber” dos operários que os leva à superação de dificuldades quando se dedicam às
atividades de trabalho. Dessa maneira, o sujeito desafia as normas impostas pelos
modelos de organização do trabalho. Esse enfrentamento nos modos de trabalhar é
realizado de forma silenciosa, porém “real” e plural por resultar do “pluralismo de
valores e conhecimentos”, modificando, “mesmo que [...] parcialmente, o modo de
trabalhar prescrito” e criando, assim, novas normas. (Rosa, 2005: 32)
Imaginando-se em situação de trabalho em que lhe fosse interditado o uso de
seu próprio jeito de realizar sua atividade, Pablo recorre a uma metáfora bastante
ilustrativa do ato de trabalhar de outro modo, diferente daquele prescrito.
Eu acho que ia me prejudicar muito porque [...] eunão
gosto muito de receber ordem [...] [...] obedecendo
aquela linha retilínea [...] Acho que não ia ser legal. Não
ia ser bom não. (Pablo, 23 anos, montador, Montadora B –
grande)
Se essa metáfora fosse transportada para a representação gráfica de um plano
cartesiano disposto em dois eixos, o eixo x sendo o tempo e o eixo y, a ordenação das
operações fabris, nos quais são plotados os planos das tarefas operárias, resultaria uma
linha retilínea , que mostraria a seqüência tempo/ato de cada operação prescrita. Estaria
pressuposta a existência de pontos fixos, previamente estabelecidos, e a invariabilidade
dos elementos que compõem os pontos.
Todavia, considerando que a abstração desenhada pela estatística e pela
geometria é bastante diversa da realidade social, por sua vez cravejada de
interferências, logo de imprevisibilidades, é necessário recorrer à representação de
linhas polimorfas e plásticas, que traduzem a multiplicidade de novas configurações
que pululam no cotidiano.
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Fazendo alusão às variáveis que habitam o meio, por sua vez exigindo
posturas elásticas dos indivíduos, Canguilhem ressalta:
A vida não é [...], para o ser vivo uma dedução monótona,
um movimento retilíneo; ela ignora a rigidez geométrica,
ela é debate ou explicação [...] com um meio em que há
fugas, vazios, esquivamentos e resistências inesperadas.
(Canguilhem, 2006: 149)
Na mesma direção de Pablo, Sérgio atrela à idéia de normas rígidas o
aprisionamento do operário, situação avaliada por ele como impossível de suportar,
dadas as limitações que provoca, tanto em sua vida, quanto no seu relacionamento com
os colegas de trabalho.
Não ia render [...] Você trabalhar embaixo de regras que
eles determinassem pra mim, eu ia ficar muito amarrado,
limitado, eu não gosto quando alguém me prende a fazer
só aquilo, eu gosto de sempre tá tendo a liberdade de [...]
fazer como [...] achar melhor. [...] Com os colegas ali,
seria muito monótono, sem poder dar uma idéia, sem
ajudar com idéias novas, você ia ficar muito limitado. É
bom você ter uma liberdade de poder tá usando seu
conhecimento e alguma idéia nova que surgir. Não ia ser
legal o convívio não. (Sérgio, 35 anos, operador e
programador de torno CNC, Auto peças A – pequena)
Fabrício aprofunda essa avaliação, ao apreciar, com certo zelo pelas qualidades
operárias, a relevância considerável do seu papel dentro da fábrica que não se restringe,
de forma alguma, somente ao trabalho braçal, mas se trata de atividade que lhe exige o
uso da inteligência, na busca contínua de um outro jeito de trabalhar.
É bom pensar que você não tá... não é só o trabalho
braçal em si, é um trabalho é braçal, mas você tá usando
também um pouco do seu raciocínio, da sua inteligência
para pensar uma forma diferente de fazer o trabalho.
Pensar: “Eu não tô aqui só pra ficar apertando parafuso
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não.” (Fabrício, 27 anos, montador, Montadora B –
grande)
Importante levar em conta os condicionantes do ambiente de trabalho, tais como
os limites encontrados nas margens de manobras permitidas pelas máquinas aos
operários. De acordo com eles, mesmo as máquinas e ferramentas mais modernas
precisam da constante intervenção operária para torná-las adequadamente funcionais,
tarefa alcançada por meio do desenvolvimento de adaptações, geralmente
improvisadas, mas que passam a fazer parte do processo. Impressiona a clareza com
que os operários tratam esse assunto:
A gente tem que tá [...] sempre inventando alguma coisa,
porque por mais modernas que cheguem as ferramentas
lá, você tem que tá improvisando alguma coisa, fazendo
alguma coisa, porque tudo que precisar você não vai
mandar o cara comprar, então algum dispositivo, a gente
tá inventando lá pra prender a peça, fazer uma segunda
operação, sempre, sempre é fundamental [...] sempre
usando a criatividade pra [...] operação em geral [...] isso
daí sempre tem... sempre vai ter [...] É... coisa de você tá
bolando um dispositivo [...] uma gambiarra, que os caras
falam, sempre vai ter, não tem jeito. (Sérgio, 35 anos,
operador e programador de torno CNC, Auto peças A –
pequena)
Quando a máquina não é automatizada, cê tem mais o
seu jeito de trabalhar [...], quando ela é automatizada cê
tem que seg... é mais difícil pra você usar seu jeito, não
que ele é mais ruim. Mas [...] mesmo assim, tudo tem o
seu jeitinho de adaptar, isso é com o tempo [...] Sempre
tem um segredinho. (Miro, 50 anos, torneiro mecânico,
Auto peças B – pequena)
Alex, tecendo elogios a esses segredinhos operacionais ou ajustes nas normas
fabris feitos pelos operários, assevera que devido às circunstâncias variáveis do
ambiente, é permitida ao operário a realização de adaptações normativas: “tem muitos
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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fatores que mudam, então nada melhor do que permitir que o operador se adapte a
isso” (Alex, 22 anos, analista de processos de produção/ex-preparador de carroceria,
Montadora A – grande).
Do ponto de vista fabril, pouco importa se as operações dos trabalhadores não
seguem seu plano cartesiano e tenham suas trajetórias representadas em uma linha
retilínea, parabólica, elíptica ou aleatória; o que conta realmente é o ponto de chegada:
o cumprimento da produção. O percurso ou os meios utilizados durante o processo
produtivo não retêm a atenção dos dirigentes da fábrica, seus olhos voltam-se para o
resultado, o quantum produzido.
O refazer das normas é requisito da maleabilidade que habita não somente o
funcionamento do corpo, da mente e dos valores do trabalhador, mas também é
solicitado para o bom êxito da produção e da gestão dos objetos.
4.6 Frouxidão de normas operacionais
A luz das reflexões de Canguilhem, apreende-se que as normas sociais não são
tão definidas quanto as orgânicas, que delimitam de forma inteligível as fronteiras entre
saúde e doença. Nesse passo, o autor lembra que, longe de dependerem de simples
observação, as normas sociais precisam ser inventadas.
Se as normas sociais pudessem ser percebidas tão
claramente quanto as normas orgânicas, seria loucura dos
homens não se conformarem com elas. Como os homens
não são loucos e como não existem sábios, segue-se que
as normas sociais têm de ser inventadas, e não
observadas. (2006: 221)
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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Dispondo dessa perspectiva como referência, a pesquisa em curso busca
apontar o quanto os limites e as dinâmicas físico-sociais que compõem o ambiente fabril
levam os operários à reinvenção de novas normas.
Inquirido a respeito do alcance do controle fabril sobre os imprevistos que
surgem na fábrica, Alex enuncia uma frase lapidar: “a previsão supre os problemas
grandes, os pequenos acabam sendo depois administrados pelo próprio processo, pela
própria produção” (Alex, 22 anos, analista de processos de produção/ex-preparador de
carroceria, Montadora A – grande). O processo e a produção, enunciado um tanto
elíptico, porém, deixando subentendida a ação operária capaz de gerir imprevistos,
portanto, de re-normalização da ordem pré-estabelecida, que não detém controle total
sobre a interferência de variáveis não calculadas.
Dada a presença constante de variações, é habitual e copiosamente patente nas
narrações operárias o refazer de normas por meio de mudanças no jeito de trabalhar,
desenvolvidas pelos operários, seja corrigindo falhas causadas pelo desgaste das
máquinas, seja fazendo manutenção ou mesmo criando dispositivos. Portanto, a
frouxidão das normas operacionais prescritas coexiste com o trabalho operário,
presente em qualquer fábrica e em todos os postos de trabalho. Há que se relembrar,
porém, que essa frouxidão só interessa quando converge com os interesses da
produção, a grande norma – que não é frouxa.
A fábrica, por intermédio dos seus dirigentes, tem consciência da inviabilidade
de aplicar normas rígidas sobre o trabalhador, que produzirá mais ou melhor se tiver a
possibilidade de contorná-las. Também é sabido que se o trabalhador for submetido a
normas apertada, tendo restringido seu corpo e sua mente, ele padecerá, adoecerá e
pode até morrer. Entretanto, sua força de trabalho e sua vida são necessárias para fazer
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funcionar e para gerir as imprevisibilidades fabris. Logo, as normas são afrouxadas não
para impedir a morte do trabalhador, mas do negócio, que, não por acaso, é sustentado
e garantido pela saúde e sanidade possíveis e pela vida do trabalhador.
A diversidade que está presente na fábrica em todos os níveis – em relação à
matéria-prima, às ferramentas, ao ambiente, ao clima, aos trabalhadores e às relações de
trabalho, à demanda de produção, à organização – parece ser o ponto primordial a
inviabilizar a normatização nos procedimentos fabris. Todos esses elementos se
articulam e entrelaçam das mais variadas formas apresentando numerosas disposições a
partir de seus conjuntos e subconjuntos.
Portanto, além da variabilidade própria de cada elemento, acrescentam-se as
mudanças devidas à sua combinação, em condições e momentos distintos, de modo que
no final de cada situação se configura uma realidade diferenciada, cuja
imprevisibilidade, mesmo sendo mínima, se reflete no objeto produzido, somente o ser
humano sendo capaz de geri-la adequadamente.
Conforme Daniellou, Durrafourg e Guérin, é o ser humano que possui a
habilidade de gerir as variações causadas por fatores imprevisíveis; com sua
capacidade de raciocínio e inteligência apurada, somente ele consegue resolver
problemas que concorrem no cotidiano de trabalho.
[A] antecipação das variações da tarefa e a compensação
dos seus efeitos são uma parte intrínseca do trabalho dos
operadores. Elas se opõem notadamente à rigidez das
coerções do tempo e à padronização dos modos
operacionais. (Daniellou, Durrafourg e Guérin, 1982: 50)
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Assim, nenhum outro ser vivo, muito menos uma máquina, possui a aptidão
para gerir, por antecipação, contingências que podem comprometer os resultados de
uma atividade futura.
Sônia demonstra a capacidade do operário de agir antecipadamente,
planejando o desempenho da própria produção, de forma a evitar as paradas da linha
por falta de peças adequadas.
Eu me planejo porque eu sou no final [da linha], então [...]
já sei o que vai entrar, eu já fico preparada né, pr’aquilo.
Se não tem alguma peça, eu já vou lá nos que fazem a
programação [...] eu falo “Oh, [...] vai faltar essa peça”.
Ele fala: “Poh! Então vou ter que mudar a seqüência”.
Senão para a linha. (Sônia, 44 anos, montadora,
Montadora B – grande)
Para sinalizar a premência do ser humano no processo produtivo, Daniellou,
Durrafourg e Guérin sublinham que, por mais automatizada que seja uma instalação,
sempre está presente nela um ser humano trabalhando (1982: 47). Isso ocorre
justamente porque o processo de trabalho é continuamente atingido por flutuações do
meio, cuja gestão é conduzida pela inteligência humana, hábil em construir
representações sobre o tempo e o espaço da situação de trabalho, em curso e ainda por
vir (idem, 123 e 132).
Na pesquisa de Clot, Rochex e Schwartz, um eloqüente testemunho,
possibilita vislumbrar o imprescindível papel ocupado pelo operário na automação da
indústria automobilística (Peugeot): “O robô faz a solda [...] mas [...] nós, nós estamos
lá, digamos para fazê-lo funcionar permanentemente. É preciso que a gente tenha o
nariz em todo lugar” (1990: 108). Ou seja, ainda que grande parte das funções dos
antigos operários tenha sido automatizada e substituída pela robótica, sempre é
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necessário que haja gente para vigiá-la e garantir o seu pleno funcionamento, pois, no
processo de produção, há dimensões inatingíveis pela lógica mecânica e algorítmica
dos maquinários e dos sistemas informacionais.
Também concernente ao mesmo setor industrial, Durrafourg reporta-se aos
robôs de colagem de carroceria concebidos para apresentarem gestos repetitivos,
independentemente de qualquer variação do meio. Todavia, os trabalhadores sabem
que, por exemplo, a consistência da cola varia conforme a temperatura da fábrica, bem
como a temperatura da chapa nunca é constante. Esse meio dinâmico leva os
trabalhadores a adaptarem procedimentos de forma jamais idêntica, pois são movidos
por raciocínios complexos, forjados por combinações de gestos concomitantes aos
acontecimentos em curso (1985: 124).
A fábrica é viva: a matéria-prima sofre alterações decorrentes do meio, como
da temperatura, uma peça da mesma escie é diferente da outra, o desgaste de
equipamentos e ferramentas também ocorre de maneira diferenciada. Considerando
esse traço, Teiger e Laville alertam:
[As tarefas] jamais se apresentam ao executante de
maneira estritamente idêntica: as ferramentas, as peças, os
elementos do trabalho variam de um ciclo ao outro; o
operador em si é submetido às próprias variações internas;
por outro lado, seu grau de aprendizagem, seu estado de
fadiga modificam os processos colocados por ele em jogo
para executar seu trabalho. Ele deve, portanto, adaptar de
maneira incessante suas mudanças às modificações do
trabalho e isso em limites de tempo fixos. (1972: 115)
Há variantes tão amplas e distintas que só uma pessoa hábil para gerir
imprevisibilidades é capaz de intervir no meio e encontrar uma solução pari passu à
ocorrência do problema.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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São vários problemas que podem acontecer [na fábrica]
[…] aí que entra também a questão do planejamento. Eles
[planejadores] acham que você [operário] vai pegar a
peça, vai colocar lá e vai dar start, só que são [sic] uma
infinidade de problemas que podem ocorrer ali e você vai
aprendendo com o tempo […] tem bastante dificuldade,
há sempre situações novas […] [O] trabalhador […] se
adapta ali ao meio de trabalho e adapta o meio de
trabalho a ele também […] cada um tem um ritmo de
trabalho, uma forma de trabalhar, de repente um limpa
mais, o outro limpa menos a peça; um olha uma coisa, o
outro não olha. Então […] não é exato assim né, sempre
tem as diferenças, que é próprio do homem, cada um tem
as suas subjetividades. (Emir, 21 anos, operador de
máquina CNC, Montadora B – grande)
Antes mesmo de fazer qualquer consideração sobre a primorosa fala de Emir,
cumpre chamar a atenção para a sua inserção social. Filho de professora e
caminhoneiro autônomo, embora trabalhando em uma metalúrgica, o jovem operário é
estudante do curso universitário de Ciências Sociais, em uma Fundação, conhecida por
sua abordagem marxista. Trata-se de uma pessoa crítica, manifesta não ter nenhuma
opção partidário-religiosa, posiciona-se politicamente à esquerda, porém tece críticas
ácidas às organizações cuja expressão é similar. Apresenta-se como admirador da luta
por justiça liderada pelo Movimento Sem Terra (MST); no entanto, julga-o com
objetivos semelhantes aos dos capitalistas: ter propriedade e nesse ponto não concorda
com ele.
Nada na sociedade vem para ele como um simples dado, tudo é suscetível de
crítica. Esse papel é também assumido durante nossas mais de três horas de conversa,
em que o tempo todo ele fazia questão de fazer falar o cientista social muito mais do
que o operário dentro dele. Se é que podemos separar essas duas dimensões de uma
pessoa!
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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A fala de Emir é realmente merecedora de respeito. Sua avaliação dos elos
entre seres humanos e o meio, mostra que a vida fabril apresenta situações inusitadas,
que são geridas pela habilidade humana, que não apenas se submete a adaptações, mas
também as desenvolve.
Nessa linha de interpretação, os operários são ajustados pelo meio ao mesmo
tempo que o produzem, e suas formas de intervenção variam em função de suas
diferentes subjetividades, das diferenças que apresentam quanto à forma de lidar com o
corpo e com os valores.
Durrive, refletindo sobre a frouxidão normativa, assinala que a labilidade das
normas propicia a sua eficácia e, simultaneamente, é “essa labilidade, esse jogo de
normas que permite a emergência das individualidades” (2006: 301).
Além das contingências e variações do meio, entremeio e intra-meio, um
elemento particular que inviabiliza, em grande medida, o êxito da padronização
normativa reside na linguagem. Seus sentidos nunca são unívocos; pelo contrário,
possibilitam uma miríade de interpretações que dificultam o estabelecimento de
normas constantes no processo produtivo.
Boutet, lingüista empenhada em analisar a linguagem no trabalho, discute os
antagonismos dessa esfera. Conforme suas considerações, embora a linguagem seja um
sistema que apresenta estruturas exteriores aos sujeitos, cada um deles exprime sua
experiência de forma única, conforme os sentidos que atribui às palavras que emprega.
Com relação especificamente ao ambiente de trabalho, a autora sublinha a escassez de
Tese de doutorado – Sociologia - FFLCH/USP
Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
194
material semiótico
54
, pois as fontes coletivas lingüísticas empregadas no trabalho nem
sempre servem para expressar a experiência singular de cada trabalhador (1993: 3-4).
Diz ela:
que as palavras faltem ou sejam inadequadas para dizer o
conteúdo do trabalho tem a ver com a distinção
estabelecida entre trabalho prescrito e trabalho real. O
trabalho prescrito está em relação direta com a linguagem,
inclusive sob a forma escrita: regulamentos, instruções,
esquemas de utilização, modos de operação. Em
contrapartida, o trabalho real [...] é o lugar do saber-fazer
incorporado mais que verbalizado. Ele é lugar do não
dito, do secreto, do que não pode ser expresso já que ele é
o lugar aonde [cada um] se conduz diferentemente do que
[...] é prescrito a fazer (idem, p. 4)
A complexidade e as nuances da linguagem podem ser entrevistas na
experiência relatada por Alex em sua atuação como engenheiro recém-contratado:
A linguagem verbal e a escrita pro processo produtivo
nunca é clara, nunca é exata. Você pode falar [...] A
mesma pessoa que lê isso [...] não vai interpretar do
mesmo jeito que você intencionou, [...] que você disse. A
linguagem escrita e a linguagem verbal.... nem... a visual é
a melhor [...] nunca é cem por cento clara. Eu tive um
problema com [...] identificação da carroceria, tem um bar
code [...] é uma chapinha que vai no carro [...] cada carro
tem um número. Eu falei: “Olha vai vir um determinado
código nessa barra.” [...] Eles distorceram a informação
de um tamanho... de um jeito que eu falei: “Eu, eu errei
em passar a informação?” [...] E qual foi o meu erro? Eu
peguei essa informação e passei pro líder e o líder passou
pro funcionário. [...] Aí onde deu toda essa confusão. Aí a
culpa foi minha por não ter sido claro [...] Eu falei: “Não,
não... [...] meu erro não foi [não] ter sido claro, meu erro
foi não ter falado com o peão [...] da linha [...] Aí foi
onde eu mudei [...] eu falei: “Não! É lá que eu vou
54
- “Em oposição à lingüística, que se restringe ao estudo dos signos [...] da linguagem, a semiologia tem por
objeto qualquer sistema de signos (imagens, gestos, vestuários, ritos, etc)” (Ferreira, 2004).
Tese de doutorado – Sociologia - FFLCH/USP
Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
195
conversar”. Aí parou depois que eu fui conversar com [...]
o operador [...] eu fiquei besta [...] Só faltava aparecer
uma segunda chapinha e eu falei só um código, daqui a
pouco o carro ia aparecer como uma árvore de natal, cheio
de identificação. (Alex, 22 anos, analista de processos de
produção/ex-preparador de carroceria, Montadora A –
grande)
Dadas as dificuldades para controlar as distorções das informações, sejam elas
transmitidas pela linguagem escrita, falada ou visual, especialmente em função do
longo canal hierárquico que percorrem engenheiro-encarregado-líder-operário, Alex
decidiu encurtar o caminho. Criou um atalho, indo falar diretamente com o operário,
facilitando a compreensão do que dizia. Porém, frequentemente, ele encontra muitas
resistências da parte do corpo dos engenheiros e dos intermediários, pois, com sua
atitude, questiona o poder hierárquico, a tradição da profissão técnica e até a
necessidade da manutenção de certas funções que a sustentam.
Jean chama a atenção para o fato de o engenheiro
55
estar mais habilitado para
lidar com a realidade dos objetos do que para compreender a realidade dos homens,
situação que dificulta a gestão das situações novas que a organização do trabalho faz
emergir, envolvendo fatores tecnológicos e econômicos até ecológicos e sociais (1997:
218-217). O autor cita um antigo engenheiro da Renault, apontando para a dificuldade
de os engenheiros gerirem o aspecto social, especialmente o da comunicação com os
operários:
Para a maioria dos meus colegas, as questões de comando,
de relação com os subordinados, de relações humanas
eram consideradas como uma calamidade e todos eles
sonhavam em viver exclusivamente na técnica fazendo
55
- Cf. Castejon & Jean (1998) e Jean (1997), que trata sobre a gestão de situações de trabalho contemporâneas
por parte dos engenheiros.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
196
abstração do resto, enquanto que toda técnica passava por
relações com gente. (idem, p. 218)
A linguagem é o principal instrumento para o estabelecimento de relação entre
as pessoas, porém é em si mesma constituída por ambigüidades que dificultam a
compreensão entre as partes.
O filósofo e crítico literário russo Bakhtine analisa a linguagem dentro do
universo de signos, todavia desneutralizando-a. Conforme o autor, um signo não
somente faz parte da realidade: ele tanto a reflete quanto refrata uma outra realidade,
Para ele, “Todo signo é submetido aos critérios de avaliação ideológica (quer dizer:
verdadeiro, falso, correto, justificado, bom? etc.) [...] Tudo o que é ideológico possui
um valor semiótico” (1977: 27). Assim, concebe a “palavra como fenômeno ideológico
por excelência” (idem, p. 218).
Imbuída da dimensão ideológica, e ao mesmo tempo subjetiva daqueles que
(re)transmitem o, sentido, da linguagem, escrita ou falada, a comunicação revela
atividade demasiadamente complexa.
Diante de toda complexidade contida no trabalho praticado – variabilidade do
ambiente, da matéria, da demanda, da linguagem, do operário – o objetivo de
aprisioná-lo a normas rígidas seria tão irrealizável quanto “descrever o soar de um
clarinete” (Ehn, apud Salermo, 1991: 131).
4.7
Disputas pelo controle das normas
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
197
Na medida em que teorizadores e gestores trabalham com tipos ideais: peças
normais, matéria-prima determinada e mão-de-obra padrão, mesmo acrescentando
certa margem de desvios a esses elementos, jamais conseguem formalizar os
procedimentos práticos dos operários. Estes, ao contrário, empregam no seu dia a dia
ferramentas modificadas singularmente tanto pelo desgaste quanto por suas próprias
adaptações, já que aquelas padronizadas não lhes convêm às demandas do trabalho
cotidiano (Oddone, Re e Briante, 1981: 111).
Bebendo em fonte de reflexão análoga, Salermo complementa que “os
projetistas trabalham com modelos de equilíbrio [...] e com modelos-padrão de
matéria-prima, as condições de operação etc”. Consequentemente, a representação de
que dispõem, sobre as condições de operação tende a considerá-las estáveis, enquanto a
dos operadores tende a percebê-las como instáveis e incertas (1991: 139), gerando,
assim, uma representação ativa em gerir contingências.
Por conhecerem essa capacidade de gerir imprevisibilidades e sua própria
dificuldade para prever certas situações fortuitas é que os dirigentes tomam distância
do modus operandi dos trabalhadores, das formas como operacionalizam suas
atividades.
No entanto e paradoxalmente, isso também é razão de disputas acirradas de
poder por parte dos gestores e teorizadores das normas fabris, como os engenheiros,
que se sentem invadidos pelas idéias, dispositivos e engenhocas criadas pelos “peões”.
A forte divisão hierárquica que separa o status dos engenheiros e o papel de operador
dos “peões” cria atritos e dificuldades de relacionamento entre eles quando esses
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198
ocupam o papel daqueles e, ainda pior, sendo mais bem sucedidos em seus inventos, o
que, na prática, questiona a capacidade e atributos dos primeiros.
É freqüente os operários denunciarem o desprezo dos engenheiros por suas
sugestões para o processo produtivo. Alex, ex-preparador de carroceria, narra como se
traduz esse desdém, que chega a ser insensibilidade, em relação aos reclamos de
desconforto físico pelos operários:
Tinha um posto de trabalho que eu trabalhava lá que tinha
que usar umas chaves de fenda para colocar umas
buchinhas [...] pequenininhas que... ficava batendo. [...] o
cara tinha que colocar 20 por carroceria, passavam
trezentas carrocerias por dia, então imagina o cara fazer
esse movimento [...]. Então, a gente pensou em fazer... até
entrou em contato na época com os engenheiros
responsáveis, porque [é] obrigação deles desenvolver,
você dá idéia para ver se eles conseguem desenvolver. E
acabou não dando em nada, porque a pessoa fez pouco
caso praticamente e, não [...] desenvolveu uma ferramenta
em que você parasse de [...] usar o próprio punho como
martelo na chave de fenda. Então, isso não foi feito [...]
Ficou muito mais barato manter o braço do operador
como martelo. (Alex, 22 anos, analista de processos de
produção/ex-preparador de carroceria, Montadora A –
grande)
Segundo os trabalhadores, é financeira a principal razão para situações dessa
ordem, de indiferença as suas sugestões. A fábrica calcula o custo-benefício,
desconsiderando as razões do trabalhador e, inevitavelmente, opta pelo que for mais
lucrativo. Criticando o fato de a fábrica fazer o aspecto quantitativo prevalecer sobre os
outros aspectos produtivos, Clot cita um operário que ironicamente comenta: “Na
Peugeot [...] qualidade se escreve Q.U.A.N.T.I.D.A.D.E.” (1992b: 24).
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199
Porém, essa é a razão da fábrica, resta saber qual é a dos engenheiros, que
pertencendo a uma categoria bem definida no ambiente fabril, com freqüência assume
postura diferenciada em relação à dos dirigentes.
Os engenheiros foram identificados pelos operários como indivíduos
corporativistas, que rejeitam o savoir-faire
56
dos operários. Há casos, inclusive, em que
o engenheiro, sentindo-se ameaçado, ignora o invento do operário, arquiva sua
sugestão e criação e, depois de algum tempo, registra a patente em seu próprio nome
sem fazer qualquer menção ao verdadeiro criador. Esse fato pode ser testemunhado na
fala reveladora de Inácio, que sugeriu importante modificação no trambulador, peça
fundamental entre o câmbio e as engrenagens da transmissão, e teve sua idéia e invento
furtados:
O carro tinha 4 e 5 marchas. Então eu montava [...] [o]
trambulador. [...] ele tinha uma pecinha [...] chamava
mancal
[57]
do trambulador. Conforme eu fui trabalhando,
fui descobrindo que era possível com aquelas buchas
montar o 4 e o 5. [...] A gente vai eliminar esse mancal 4
marchas. E vai colocar o 5 marchas pra todos eles [...] se
eliminar isso aí vai eliminar o custo da empresa [...] Aí dei
a idéia pra ela eliminar tanto a bucha como o mancal. [...]
(Inácio, 39 anos, montador da linha, Montadora A –
grande)
56
- Na realidade se formos fazer valer o termo “savoir-faire”, o fato é que o operário não dispõe somente do
saber-fazer, mas também do fazer-saber, ou seja, do “faire-savoir”, à medida que sempre se lança em atividades
de re-normalização. É justamente desse “faire-savoir” que os engenheiros temem, pois, no limite, é um
conhecimento prático de engenharia, visto por eles como razão para derrubá-los, destroná-los, em vez
de
motivo de união. A respeito de “faire-savoir”, ver R. Carvalho (1996: 361).
57
- Mancal é um: “Dispositivo, em geral de ferro ou de bronze, sobre o qual se apóia um eixo girante, deslizante
ou oscilante, e que lhe permite o movimento com um mínimo de atrito” (Ferreira, 2004).
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200
A experiência do trabalhador, que convive dia a dia com os problemas e
limites em seu trabalho, em muitos momentos propicia o desenvolvimento de
mais habilidades do que a bagagem alcançada pelo engenheiro que se debruça
sobre teorias e abstrações. Prosseguindo o relato sobre seu invento,
orgulhosamente, Inácio compara seu talento com o do engenheiro:
[O] engenheiro, eu não sabia, ele tava fazendo mudança
no trambulador. [...] E não tava dando certo [...] ele já tava
trabalhando um ano e pouco nisso [...] E eu uma meia
hora lá sentado pensando como é que montava isso...
(Inácio, 39 anos, montador da linha, Montadora A –
grande)
Como é de praxe entre os operários, Inácio contou apenas com a ajuda e
confiança de companheiros de trabalho para poder montar a nova peça que criou
e desenvolveu, fazendo tudo às escondidas dos chefes, inclusive o próprio teste
no carro. Depois do teste concluído e da modificação no câmbio avaliada pelos
operários como de melhor desempenho do que os modelos tradicionais,
finalmente, Inácio toma coragem e decidiu comunicar o fato ao seu chefe:
[Eu] chamei o chefe e expliquei tudo [...] [Ele] chamou a
engenharia. Inclusive a engenharia vinha ali [...] trouxe
um monte de peça, desenho, um monte de coisa, aquela
frescura toda. [...] Quando eles chegaram, o chefe
apresentou a minha peça pra eles [...] O povo ficou assim:
um ficava olhando pro outro, ficava sem graça porque o
chefe também veio junto [...] Só que o chefe [...] era
alemão então ele não entendeu muito bem [...] ou ele
achava que [o invento] já era dos caras [engenheiros] [...]
Anotaram tudo que eu falei e foram embora. (Inácio, 39
anos, montador da linha, Montadora A – grande)
A intrepidez, o orgulho e o entusiasmo em ter criado algo tão importante
para a engenharia automobilística, que deixou boquiaberta uma platéia de
engenheiros, dirigentes e patrões, pouco a pouco foram sendo substituídos por
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201
expectativas, depois sentimento de abandono e, por fim, a percepção de ter sido
vítima de golpe.
Aí sumiu o processo deles e o meu. Ficou um tempo
sumido. Aí me trocaram de setor [...] Um dia um colega
me chamou, - “Olha rapaz, mudou tudo aqui agora, a peça
que tão montando foi a peça que você deu idéia naquela
época lá.” Eu falei: - “Não acredito” [...] Só que a idéia
foi cooptado
[sic]. A idéia apareceu um ano depois, diz
que foi um avanço da empresa de não fabricar mais o [...]
mancal nem a borracha 4 marcha porque o 5 marcha
servia pra todos. (Inácio, 39 anos, montador da linha,
Montadora A – grande)
Esse fato revela com expressiva clareza a forma como as normas alteradas e os
inventos que delas resultam dentro de uma fábrica são tradicionalmente atribuídos aos
engenheiros, diplomados ou não
58
, porém titulares de atributos da engenharia.
Conforme os operários, a grande maioria dos engenheiros jamais aceita
compartilhar idéias com operários, iletrados nas artes da engenharia, e muito menos
ainda admite que, em certos momentos, seja superada por aqueles que não dispõem do
status e do título.
Às vezes os engenheiros, essas pessoas, os planejadores,
eles têm, não [...] sei se vergonha, mas eles não querem
aceitar a opinião de quem não tem [...] o estudo, o
conhecimento teórico que eles têm [...] quando eles
sentam pra discutir, eles têm a teoria toda ali, mas não
têm a prática. Então eu acho que nessa questão de ter a
prática e a teoria, casar os dois, acho que seria essencial.
(Fabrício, 27 anos, montador, Montadora B – grande)
Operários exercerem o papel, que, de direito, pertence aos engenheiros, é
considerado por estes como um ato de lesa-majestade. Assim, a depender de sua
58
- Jean constatou que também na França há engenheiros sem o título formal de engenharia (1997: 20).
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202
vontade, conceber normas operacionais é responsabilidade tradicionalmente conferida
a sua categoria, não havendo espaço para a participação operária.
Imbricada nessa disputa pelo direito de fazer e refazer as normas revela-se,
portanto, a questão do poder exercido pelos engenheiros e a resistência praticada pelos
operários. Sato discute esse ponto nos seguintes termos:
Apesar de o corpo gerencial conceber a atividade de
planejamento e concepção como procedimento de
natureza estritamente técnica e conduzida unilateralmente
por ele, no “chão de fábrica”, as pessoas, através do
conhecimento construído na prática, o replanejam para
então executá-lo, tanto com a finalidade precípua de
amenizar os esforços do trabalho, como para manifestar a
resistência política ao poder e controle gerenciais ou
ainda, para tornar factível aquilo que foi planejado por
outrem. (2002: 1148)
Buscando uma saída para resolver o impasse da dissonância entre engenheiro
e “peão”, na formulação de normas, Ana sugere que o engenheiro deveria passar pela
atividade operária, antes de atuar como tal.
O ideal na minha área seria um [engenheiro] que
trabalhou muito tempo como peão... fez engenharia. Não
tô falando no meu caso... porque eu também não ia querer
trabalhar como engenheira ali não. Mas, fez engenharia,
então tem um conhecimento técnico muito forte, e está
atuando como engenheiro ali. Seria o ideal, porque é uma
pessoa que vai poder melhorar... ele tem um
conhecimento técnico e conhece [o] processo. (Ana, 22
anos, operadora de dinamômetro, Montadora B – grande)
Portanto, para ela, a solução para a melhora do relacionamento e das
condições de trabalho, ligadas aos operários e engenheiros, seria a presença de um
engenheiro-operário. Para a nossa satisfação, deparamo-nos com o tipo ideal apontado
por Ana. Trata-se de uma rara exceção entre os engenheiros, e conhece-la despertou-
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203
nos imediatamente a vontade de entrevistar a pessoa em questão, ainda que seu perfil
destoasse do de operários definidos como corte para a pesquisa.
É preciso, antes de tudo, salientar que, sendo a sociedade marcada pela
heterogeneidade dos sujeitos e experiências, jamais poderíamos sustentar que todos os
engenheiros recusem a participação operária no desenvolvimento de suas técnicas e
tecnologias. Por essa razão, consideramos legítima a introdução do testemunho do
recém engenheiro Alex que, além, de marcar sua diferença de concepção em relação ao
trabalho tradicional do engenheiro, sinaliza certa esperança de que, talvez um dia,
teorizadores e “executantes” trabalharão juntos, tendo igual reconhecimento e respeito
em seu papel na fábrica.
Alex trabalhava como operário na mesma fábrica havia quatro anos, ocupando
a função de preparador de carroceria. Já nessa época criticava o trabalho rotineiro e
robotizado de operário e, sempre questionador e sensível às condições humanas,
recusava a alienação e o embrutecimento que causava sobre as pessoas. Dada essa
postura questionadora, de insatisfação com o papel que ocupava na fábrica, já sendo
estudante de engenharia, prestou um concurso no mesmo setor da fábrica em que
trabalhava e foi aprovado para ocupar o cargo de analista de processos de produção, ou
seja, tornou-se um dos engenheiros incumbidos de desenvolver melhorias na produção.
Tal promoção, que em princípio deveria representar o começo da realização de
um sonho antigo, o de “engenheiro-cidadão” (Charriaux & Jean,1997: 228),
trabalhando junto com os trabalhadores para favorecer um ambiente de trabalho mais
humano e de integração entre teorizadores e realizadores, resultou no aprofundamento
de um pesadelo.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
204
O que mais perturba Alex na convivência com os engenheiros são as atitudes
desrespeitosas e intolerantes com que tratam os outros, especialmente os trabalhadores
menos experientes:
Um dia, um rapaz, que também tinha começado na mesma
época que eu a trabalhar, [...] cometeu um erro [...] [O
engenheiro] com quem eu trabalho [...] foi extremamente
grosso [...] tratou o cara como se fosse um lixo [...] só
faltou humilhar o cara [...] Eu vi a situação, achava que
não precisava de tudo aquilo, que o problema era
extremamente pequeno, para ter todo aquele tipo de
discussão [...] eu vi que depois o cara [que foi agredido]
ficou meio chateado, [...] constrangido [...] Então [...] esse
tipo de coisa eu não quero pra mim. Quando tiver que
resolver o problema, vamos resolver [...] da maneira mais
pacífica do mundo, sem desrespeitar ninguém, porque
esse ponto dos valores, principalmente em se tratando
com pessoas, é o que realmente me incomoda. (Alex, 22
anos, analista de processos de produção/ex-preparador de
carroceria, Montadora A – grande)
Em relação à sociabilidade na fábrica, o jovem engenheiro sente nostalgia de
seu tempo de operário, quando ocorriam brincadeiras entre colegas, que mesmo
trabalhando com seriedade, espaireciam o ambiente com um clima de gracejos e
zombarias, tornando o trabalho e a convivência mais descontraídos. Já atualmente,
freqüentando um ambiente mais formal, lastima a vigência de relações agressivas, em
que ocorrem disputas por poder e hipocrisia:
As pessoas não sabem respeitar como as outras [...] são,
independente do trabalho, se elas gostam ou não, se [...] é
ranzinza ou não [...] Muitas vezes as pessoas que se dão
bem são aquelas [...] mais amenas [...], aquelas [...] que
conseguem ponderar com todo o tipo de gente [...] [Elas]
não conseguem separar o perfil, a personalidade que as
pessoas tem, porque ninguém é igual a ninguém, só que as
pessoas não tem o direito de serem elas mesmas, de falar a
verdade. Então muitas vezes as pessoas que são elas
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205
mesmas e que falam a verdade [...] já começam a ser
colocadas de lado pelo grupo (Alex, 22 anos, analista de
processos de produção/ex-preparador de carroceria,
Montadora A – grande)
Para além das desavenças ligadas às atitudes e posturas pessoais dos
engenheiros, Alex também lamenta a hierarquia existente entre eles e os trabalhadores
do chão de fábrica, impedindo-o de manter contato direto com os operários para
discutir com eles a busca de melhorias em seu trabalho, cujas normas e técnicas é
encarregado de desenvolver. Ele critica enfaticamente o tradicionalismo do trabalho de
gabinete do engenheiro que, mergulhado em teorias e abstrações, não recorre ao
operário para ajustar, aprofundar, aperfeiçoar e até gerar idéias novas para
modificações no processo de produção.
Muitas vezes você tem que conversar com o líder
primeiro para depois [ele] conversar com o operador, você
não pode encurtar esse caminho. Então eu perco muito
tempo notificando o líder, notificando o responsável, em
vez de ir direto [...] se o peão for responsável por cada
coisa que ele faz, não irá precisar de líder, nem do
supervisor. A coisa vai ser peão e diretor, peão e gerente,
não vai precisar desse monte de gente no meio do
caminho, que atrapalha, só atrapalha, só atrapalha. (Alex,
22 anos, analista de processos de produção/ex-preparador
de carroceria, Montadora A – grande)
O jovem engenheiro-operário tenta intervir nesse hábito despótico dos
engenheiros, sugerindo o diálogo direto e constante com os operários; entretanto, dada
sua condição de engenheiro inexperiente, suas idéias, sobretudo as que destoam da
prática habitual e centenária dos mais antigos, são simplesmente desconsideradas.
Os operários, de modo geral, denunciam o desinteresse dos chefes por suas
sugestões, mesmo aquelas de caráter operacional que visam resolver problemas
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técnicos da fábrica. Denunciam ainda seu grande apreço pelas máquinas e o desdém
pelos trabalhadores, pelo humano, que vai da humilhação à indiferença pela vida
alheia.
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207
Cap. 5 Gerir o trabalho e a si mesmo
“[Cada um tem um jeito próprio de
trabalhar] porque cada um de nós tem um
modo de pensar e um modo de agir [...] em
todos os locais tem isso [...] o jeitinho [...]
pra você se adequar ao trabalho”.
(João, operador de célula, 53 anos)
5.1 “Espaço manhoso”
Manha é um substantivo recorrente no vocabulário dos operários para
narrarem as práticas ardilosas que desenvolvem, conquistando espaços físicos e
simbólicos nos quais transitam no interior da fábrica.
A constituição desse “espaço manhoso”, dotado de astúcias, frequentemente
só visível entre os operários (e por vezes nem mesmo entre eles), já que se aperfeiçoam
em habilidades ilusionistas, inclusive revelando no próprio corpo marcas da verdade
que querem mostrar especialmente para o engenheiro. Um exemplo ilustrativo dessas
habilidades é apresentado por M. Durand (1990): no momento em que um operário
estava sendo cronometrado em seu tempo de trabalho, empenhou-se em tal
complexidade de movimentos, normalmente desnecessária, simulando grande esforço e
produzindo suor sobre o corpo.
M. Durand deixa patente a oposição operária à cronometragem de seu
trabalho:
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Os cronometristas são os piores aborrecedores. Seu
trabalho consiste em roubar aos poucos o tempo sobre
cada operação, quer dizer, em nos fazer trabalhar mais
rápido. Contra eles, de fato é preciso tapear. Se os insultar
abertamente, eles te sobrecarregam nos tempos mortos,
então é preciso enganá-los suavemente. A arte de se fazer
cronometrar consiste em dificultar, mas dando a
impressão de trabalhar rápido de modo a fazer crer que
nós temos uma sobrecarga de trabalho. Nós encadeamos
tantos gestos complicados e lentos para uma operação que
na verdade só mereceria um gesto rápido e vivo. (1990:
99-100)
Experiência análoga é descrita por Roy, que, trabalhou como operário de
usinagem, no final da primeira metade do século passado, durante seu trabalho
sociológico de observação participante de onze meses em uma metalúrgica norte-
americana. Ele escreve:
Quando se trata de estudo de tempo, o comportamento de
vadiagem não é fácil de distinguir do “respeito à cota”,
mesmo para um outro operador do seu grupo. Um dia, eu
observei que Tony, operador de uma furadeira de grande
velocidade, “perdia seu tempo”, e eu lhe perguntei se ele
já se tinha livrado da cota. Tony era meu vizinho, mas
sem as informações que ele tinha me dado, eu não saberia
que ele vadiava em função do estudo do tempo e que ele
estava prestes a relaxar depois de ter alcançado a cota.
Para identificar o comportamento de um operário “que
não faz nada”, a observação ocasional não é suficiente; é
preciso ter informações suplementares. (Roy, 2006: 65)
O engenheiro foi apontado por alguns operários desta pesquisa como a “figura
do mal”, cuja função consiste em lesar o operário, cronometrando seu tempo de
trabalho e inventando técnicas e ferramentas para reduzir cada vez mais a necessidade
do operário dentro da fábrica, portanto destruindo suas possibilidades de trabalho.
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209
Quando indagados sobre a existência de pessoas que tenham feito algo com o
objetivo de prejudicar colegas de trabalho ou a própria empresa, parte significativa
desses operários rememora casos de querelas pessoais entre os próprios trabalhadores.
Inácio, porém, assumiu uma postura destacadamente diversa:
Eles [dirigentes da fábrica] exigem [...] desse pessoal da
engenharia de processo que eles façam normas e medidas
e que desenvolvam técnicas que eles consigam empregar
menas [sic] gente e que saia mais produção. É onde eu
vejo que tem a questão de prejudicar o profissional,
prejudicar o trabalhador. Tipo [...] quando eu entrei lá [...]
15 anos atrás, eu tinha que montar essa peça, por
exemplo, em dois minutos, então ela [fábrica] foi
buscando técnica junto à engenharia lá pra que eu mais
tarde desenvolvesse o dobro dessa produção em menos
minuto. Tipo [...] eu tinha dois minutos para montar 100
peças, hoje eu tenho um minuto para montar 100 peças.
[...] Eu acho q isso aí é o grande prejuízo pra gente.
(Inácio, 39 anos, montador da linha, Montadora A –
grande)
Essa visão crítica de Inácio deve-se ao fato de ele ser um operário engajado na
causa do trabalhador, o que é compreensível a partir de sua trajetória de ativista
sindical, quando atuou em cargos de representante da comissão de fábrica.
Muito embora o engenheiro de processo tenha a meta de cronometrar o tempo
que o trabalhador despende para produzir/montar uma peça, freqüentemente se depara
com testemunhos de operários que desenvolvem estratégias astuciosas para interferir
nessa situação.
A despeito do poder da engenharia de estabelecer normas sobre o tempo dos
operários, no desenvolvimento de suas atividades estes gestam outro espaço dentro
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
210
desse espaço coercitivo e obedecem as suas próprias normas. Certeau analisa a
constituição desse espaço, nas “maneiras de fazer” por via de ações estilizadas:
[Os] estilos de ação [como produzir] intervêm num campo
que os regula num primeiro nível (por exemplo, o sistema
da indústria), mas introduzem aí uma maneira de tirar
proveito dele, que obedece outras regras e constitui como
um segundo nível imbricado no primeiro [...] por essa
combinação, cria para si um espaço de jogo para maneiras
de utilizar a ordem imposta do lugar [...] Sem sair do
lugar onde tem que viver e que lhe impõe uma lei, ele
[usuário do espaço] aí instaura pluralidade e criatividade
[...] uma arte antiga de “fazer com”. (2004: 92-93)
Os operários mais experientes e conscientes, como é o caso de Inácio, de que é
preciso tomar certas precauções para não ser completamente dominado pelo tempo da
produção, constroem o que eles chamam de “espaço manhoso”. Esse espaço consiste
no controle e no uso que o trabalhador faz do seu tempo de trabalho quando está sendo
cronometrado.
Por mais dificultoso que seja, tem aqueles [trabalhadores]
que conseguem desenvolver técnicas. Então, a empresa
sempre trabalha num padrão de te apertar. Mas sempre
[...] quando ela vem, a gente deixa [...] ou aquele que é
bastante manhoso ou aquele que tá aprendendo, tá ali no
médio porte [...] se ela pegar pelo melhor [...] o resto tá
ferrado, ai ela vai escravizar mesmo. Eles desenvolvem a
técnica deles e nós as nossas. Então [...] a gente também
consegue criar esse espaço manhoso. (Inácio, 39 anos,
montador da linha, Montadora A – grande)
Concretamente, esse espaço manhoso, buscado para manter o controle sobre a
matemática da racionalização do tempo de produção, efetiva-se por meio das técnicas
de avançar ou retardar o ritmo dos movimentos, seja da máquina, medida em RPM
(Rotação por Minuto) ou do próprio corpo do operário.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
211
Então você desenvolve técnica para retardar ou avançar,
geralmente o trabalhador sempre trabalha numa técnica
de avançar e aí você consegue ganhar corpo. Então,
trabalha no outro dia mais sossegado, se avançar e ter
tempo pra respirar. Cê vai lá... vai tomar café, ou corre
no banco [monetário] que é ali pertinho ou corre ali no
bebedouro ou você vai lá no colega encher as paciências
dele e volta. Cê consegue desenvolver algumas técnicas
pra você ganhar tempo. (Inácio, 39 anos, montador da
linha, Montadora A – grande)
No decorrer deste capítulo serão acrescidas considerações e testemunhos de
alguns delegados operários da Fiat de Turim, cujas falas estão registradas em uma obra
inspiradora para a constituição da abordagem ergológica. Originalmente intitulada
Esperienza operaia, concienza di classe e psicologia del lavoro, de Ivar Oddone,
Alessandra Re e Gianni Briante. Trata-se de uma publicação relativamente antiga,
datada de 1977; porém, as experiências nela narradas conservam notável
correspondência com o atual cotidiano operário
59
.
Avaliando a relação de seu trabalho com o tempo, um desses operários
exprime-a com certo brio: “eu me considero um bom operário já que eu consigo
59
- Vale fazer alguns esclarecimentos acerca do método empregado por Oddone, Re e Briante (1981) em sua
obra, mais precisamente aquele contido no capítulo três, dedicado a recuperar a experiência operária e
considerado por nós o mais significativo por sua considerável afinidade com a pesquisa em curso. O método
utilizado é o de histórias individuais, narradas pelos delegados operários, cujos testemunhos foram coletados
durante a participação em seminários de 150 horas, propiciados pela convenção coletiva da Metalurgia, que
lhes concedia esse direito. Cada delegado operário dirigia-se a um professor, seu suposto sósia a quem o
delegado era incumbido de fornecer instruções sobre como ele se deveria comportar em seu próprio posto de
trabalho. Salvo breves apresentações, o capítulo está escrito em primeira pessoa justamente por apresentar
transcrições literais das falas de operários, todavia devidamente recortadas e concernentes a cinco temas,
quais sejam: relação com a tarefa, com os camaradas, com a hierarquia, com o sindicato e com o
aprendizado. Os autores justificam seu método como um recurso para fazer o próprio operário resumir,
reestruturar e formalizar sua experiência informal, tornando-a transmissível, assim produzindo subsídio para
que a psicologia do trabalho ultrapasse uma abordagem puramente analítica; portanto, abrindo espaço de
expressão direta para o próprio sujeito da pesquisa (idem, p. 58). Eles assinalam ainda que não se trata de
uma técnica que traga resultados definitivos já que, com ela, não se acessa o comportamento real dos
operários, e sim sua imagem, representação feita por eles sobre seu próprio comportamento (idem, p. 57).
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212
ganhar minutos consideráveis sobre o tempo imposto pelo gabinete de métodos”
(Oddone, Re e Briante, 1981: 66). Ele prossegue, exemplificando a destreza de seus
movimentos no trabalho com a prensa:
Quando eu trabalho, eu utilizo o pé esquerdo para
apoiar sobre o pedal [...] Todo o meu peso está
sustentado pelo pé direito [...] O que acontece é que eu
sincronizo diferentes movimentos. Os outros
[operários] em geral apóiam o pé direito sobre o pedal.
Mas essa maneira de proceder exige uma tensão bem
maior, pois se deve esperar retirar a mão antes de
apoiar, senão se corre o risco de ter o braço decepado
entre as duas partes da grade de proteção. Meu método
reduz todo o movimento a uma simples operação
mecânica. Quando a grade está prestes a fechar-se,
minha mão também está prestes a ser retirada. Dessa
forma, reduz-se o tempo de trabalho de forma
considerável. E esse método, não podem roubar de
mim, porque quando o cronometrista está lá, eu
trabalho como todo mundo.” (Oddone, Re e Briante,
1981: 65)
Vinculado ao método de trabalho criado por esse operário existe na mesma
proporção o risco. Ele emprega movimentos precisos, jamais aconselhados a um
operário leigo; para ele, no entanto, trata-se somente de uma mecânica harmonizada e
incorporada pelos movimentos sincrônicos do seu corpo. Há riscos, mas são
controlados pela larga experiência do operário, pelo menos, aparentemente, enquanto
não haja alguma falha advinda do próprio maquinário.
Para quem olha de fora certos atos arriscados dos operários, a primeira
impressão é de imprudência; todavia é preciso levar em conta que são ações repetidas
infinitas vezes, que permitem ao corpo, pela prática, alcançar movimentos hábeis e
vigilantes. Aferindo sua própria pesquisa na construção civil com aquela realizada por
Franqui, Trinquet, especialista em segurança do trabalho, cita a diferença entre a
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imagem estática prescrita da segurança e a representação do risco em situação de
trabalho:
A segurança prescrita é estabelecida em referência a uma
imagem estática do risco, enquanto que as decisões da
ação dos operadores são tomadas em referência à
representação global e dinâmica que eles fazem do
trabalho a realizar. (Trinquet, 1996: 232)
Em Dassault-Mérignac, um metalúrgico também expôs para Schwartz uma
solução astuciosa que emprega para controlar o tempo, intervindo nesse poder
concedido oficialmente somente ao cronometrista. A técnica, também verificada entre
os operários que entrevistamos, consiste em sobrepor várias peças para serem furadas
simultaneamente, com isso ganhando tempo, pois se fosse seguido o prescrito apenas
uma delas deveria ser furada por vez. Entretanto, essa astúcia só é empregada na
ausência do cronometrista; diante dele, é seguido o prescrito, portanto “sempre há
escolhas a fazer” (Schwartz, 1988: 481). Tal atitude visa impedir a prescrição da
sobrecarga de trabalho, deixando aos operários certa margem de manobra para
configurar seu tempo conforme seu próprio uso.
Vê-se, assim, que o operário detém certo controle da situação de trabalho,
apesar de, comumente, seu trabalho ser concebido como estando aprisionado por
normas rígidas, sejam as de segurança, de qualidade, de operação e, mormente, aquelas
referentes ao tempo necessário para cumprir cada operação, especialmente na linha de
montagem onde a importância do tempo é majorada.
Poder participar da condução e controle do tempo do trabalho fortalece o
trabalhador e, sobremaneira, a categoria à qual pertence, como alude Inácio: “ganha
corpo” à medida que consegue desenvolver aquela técnica esperta”. Para ele, “ganhar
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corpo” significa evitar a perda do trabalhador e não “apertar” o tempo de quem ficou
na fábrica, o que só é possível por intermédio de certa “malícia”.
Assim, os operários controlam a sobrecarga de trabalho manipulando o
próprio corpo, cuidando do avanço da máquina e da gestão de riscos, buscando o maior
equilíbrio possível entre a intensidade de trabalho, a produção, a segurança e o “tempo
livre”.
Por trás desses espaços de auto-proteção que são criados pelos operários,
ciosos dessa relativa liberdade, esconde-se o que M. Durand chama de jogo:
Jogar, jogar sempre. Atenuar a fadiga física e nervosa
ocasionada pelo trabalho, jogando. Utilizar tudo para o
jogo. Reinventar a cada instante. Permanecer criativo.
Não se dobrar ao ritmo da máquina. Manter sua
personalidade. Colocar força no jogo. Deixar transbordar
toda repressão acumulada pelo trabalho embrutecedor.
Dizer não à rotina [...] (1990: 90)
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5.2 Astúcia e “tempo do organismo”
Conta-nos a cosmologia da antigüidade clássica grega que a astúcia era uma
virtude pertencente exclusivamente à deusa Mêtis, a primeira esposa de Zeus, rei dos
deuses e dos homens. Segundo Vernant, estudioso da vida na Grécia, mêtis significa
uma forma inteligente de conquistar o poder, sem jamais ser surpreendido e
desorientado e “nunca abrir flanco para um ataque inesperado” (2003: 39). Temendo
ser destronado por um filho seu, ainda no ventre de Mêtis, Zeus ironiza o poder que ela
tem, de metamorfosear-se em gota d’água; no momento em que ela demonstra essa
habilidade, é engolida por ele. Assim, tendo em seu regaço Mêtis e sua filha Atenas,
Zeus concentra dentro de si toda a astúcia do mundo, encarnando “no fluxo temporal,
essa presciência ardilosa [a astúcia] que permite desfazer antecipadamente os planos de
qualquer um que tente surpreendê-lo ou derrotá-lo” (idem, p. 40).
Muito embora seja Hefesto, filho de Zeus com Hera, o deus da metalurgia,
dada sua excepcional habilidade artesã, é a virtude da deusa Mêtis que os operários
incorporam no interior da fábrica. De forma análoga à atitude de Zeus, os operários
também empregam astúcias visando conquistar certo poder, não o poder sobre o
cosmo, mas sobre o seu próprio corpo – o controle dos seus possíveis e desejos.
À feição da astúcia grega, a astúcia operária busca antever as reações advindas
de planos elaborados externamente, sob cuja influência se encontram, elaborando
artimanhas e combinando de antemão procedimentos, providências cujo intuito é
impedir sua submissão a situações que desaprovem.
O protagonista da trama que envolve o trabalhador na fábrica é o tempo. Os
operários se esforçam por tentar controlá-lo, para gerir seu cotidiano de trabalho.
Entrementes, uma vez que se constata a discordância existente entre “aqueles que
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organizam o tempo e aqueles que o gerem” (Oddone, Re e Briante, 1981: 132), os
operários têm de recorrer a estratagemas, desenvolvendo habilidades semelhantes às
virtudes da deusa grega.
Uma das astúcias empregadas pelos operários em seu ambiente de trabalho
consiste em adaptar, na medida do possível, o ritmo da produção à pulsão do seu
próprio corpo, ao tempo do seu organismo.
Eu procurava [...] fazer as coisas da maneira que não me
desse problema físico, minha preocupação sempre foi
essa: que eu não me desgastasse muito [...] Eu aprendi que
me desesperar não resolvia. Então, comecei a usar do
tempo do meu, do meu organismo pra [...] [manter] o
ritmo da produção, a batida da produção, pra conseguir
ter o mínimo de problemas físicos. Conseguir cumprir o
que tinha que fazer, sem muitos problemas. (Alex, 22
anos, analista de processos de produção/ex-preparador de
carroceria, Montadora A – grande)
Essa fala eloqüente mostra que Alex utiliza o seu tempo corporal para cumprir
o ritmo da produção e não o contrário; a produção não tem o controle total do seu
corpo, que é quem, de fato, assume certo papel de maestro para reger a batida da
produção. A produção marca o tempo, porém o tempo em si é do trabalhador; portanto,
o tempo não é apropriado pela produção, mas é usado pelo trabalhador que sempre
busca respeitar seus limites pessoais.
Efetivamente, a astúcia de tentar reger o ritmo da produção pelo tempo
subjetivo do operário concretiza-se pela antecipação da produção, deixando períodos
vazios entre as etapas de trabalho, utilizados de acordo com suas necessidades físicas e
subjetivas. Como já foi dito, há mais margem de manobra para o uso dessa estratégia
em setores como a pré-montagem e a usinagem; por sua vez, a recorrência é menos
intensa na linha de montagem, onde o tempo é objeto de maior controle externo.
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217
Os operários da pré-montagem e da usinagem conseguem acumular operações
montando ou produzindo objetos em número superior ao exigido para um dado
momento, ou mesmo, depois, acelerar o trabalho para cumprir a meta de produção.
Pablo, um operário da pré-montagem, um tanto inquieto, cheio de energia e
curiosidade borbulhante, não suporta trabalhar de acordo com o ritmo indicado nos
pedidos oficiais para a montagem de câmbio, a que se dedica. Seu lema é trabalhar
adiantado, justamente para tentar assenhorear-se do tempo fabril, transformando-o em
seu próprio tempo.
Acho que cada um acaba instituindo a maneira melhor
pra trabalhar [...] Eu trabalho adiantado, o outro trabalha
só com as etiquetas que vão sair mesmo [...] Eu costumo
sempre tá pré-montando os [câmbios] que costumam sair
mais, por exemplo [...] [o] GU 53 [...], se não tem câmbio
nenhum pra montar, eu vou e encho o carrinho de GU 53,
[...] monto uns 5 [...] quando sair a etiqueta [...] eu já
tenho o câmbio montado, é só ir lá e colar a etiqueta. É
nisso que eu vou me adiantando. Agora, tem [...] gente
[que] deixa os carrinhos vazios [...] eu prefiro deixar
todos [...] já abastecidos [...] trabalhar adiantado (Pablo,
23 anos, montador, Montadora B – grande)
Ele chega ao ponto de adiantar a produção não apenas se baseando em
estimativas que derivam de sua experiência no dia a dia, isto é, da quantidade e
modelos de câmbios normalmente produzidos, mas também faz prognósticos
antecipando situações ocorridas em tempo real.
Toda vez que eu posso, que eu vejo que o meu serviço tá
adiantado [...] eu [...] vou dar uma olhada [...] antes
mesmo da pintura pra ver o que tá saindo, [...] desço na
linha aérea [...] falo [penso]: esse aqui eu já montei, já
montei. Aí eu vou até a área da Ana, [...] porque é de lá
que saem os motores que vão vir pra gente, aí eu vejo o
que tá saindo, [...] vai sair esse; esse sou eu que monto tal,
anoto no papelzinho. Aí vou pra lá, já começo a adiantar
[...] os que são mais difíceis [...], já peço pro empilhador
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218
[...] a hora que sai a etiqueta, já está pronto. (Pablo, 23
anos, montador, Montadora B – grande)
Impressiona o afinco com que esse operário se empenha na previsão dos
seus atos. Contudo, sua conduta torna-se facilmente compreensível se
comparamos sua atitude no trabalho com o seu comportamento fora dele. Pablo é
um jovem super ativo; sua energia parece inesgotável. Não suportaria esperar por
determinações superiores para só então começar a sua atividade. Para atenuar a
ansiedade pelo futuro próximo, ele necessita do controle antecipado desse porvir.
É assim que ele vive, é assim que trabalha.
Essa postura de antecipação do porvir lembra a noção de “colonização do
futuro”, introduzida por Giddens (1994). Refletindo sobre as conseqüências da
modernidade, o autor revela uma nova relação estabelecida pelos indivíduos com a
dimensão temporal, a de colonizar o futuro. Trata-se de antecipar, cognitivamente, o
que poderá ocorrer; assim, pelas ações presentes, o indivíduo invade o futuro buscando
planejá-lo e torná-lo previsível.
Para que, afinal, trabalhar adiantado? Quais são efetivamente os objetivos do
operário quando se empenha em refazer, conforme lhe convém, o tempo previamente
distribuído pela fábrica para a feitura de cada objeto?
As razões de Pablo podem ser compreendidas se levarmos em conta sua
avidez de conhecimento pelo funcionamento da fábrica, pelas formas como seus
colegas fazem seu trabalho em outros postos e sua fascinação pela troca de idéias.
Todavia, a opção por trabalhar adiantado não satisfaz apenas caprichos pessoais. Es
em jogo a luta por tornar-se um trabalhador polivalente, que saiba atuar em todas as
funções da fábrica, e que também seja eficiente cumprindo a meta produtiva. Indagado
sobre o porquê de trabalhar adiantado, ele enumera várias razões:
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
219
Ajuda a não tá atrasando a linha [...] Às vezes [...] você
não tá tão disposto pra trabalhar, mas [...] [como] já tá
adiantado [...] cê pode ir lá lavar o rosto pra tentar
acordar [...], pode tomar café ou às vezes você tem
alguma coisa, que nem agora eu vou precisar fazer
relatório de estágio [...] [pra] faculdade [de
Administração]. E [...] se eu deixei adiantado fica mais
fácil d’eu ir até lá em cima na sala do chefe pra [...]
explicar pra ele, ou então falar com o meu supervisor ou
com o líder [...] e mesmo pra tar saindo dali, indo
conhecer o serviço que os outros colegas tão fazendo, ver
como [...] que funciona [...], ajudar o pessoal [que tá
atrasado] também. (Pablo, 23 anos, montador, Montadora
B – grande)
Isso é fisicamente possível justamente porque esse jovem operário trabalha
sobre uma bancada fixa. Sendo ele que se movimenta sobre ela, dispõe de espaço para
estabelecer quão rápida ou lentamente poderá montar uma peça, segundo as limitações
impostas pela meta de produção e também as pessoais.
Em sua pesquisa com operários semi-qualificados, também em uma
montadora, precisamente na linha de usinagem, Bernoux observou a re-divisão do
tempo de trabalho praticada pelos operários, contrariando o regulamento. Enquanto
este previa o fracionamento do trabalho hora a hora, eles o reconfiguravam
sobrecarregando-se no primeiro terço da jornada, não fazendo pausa, produzindo o
máximo possível; no segundo terço, o ritmo seguia normal e, no último, menos pessoas
trabalhavam (1979: 77). Essa mesma re-divisão foi constatada junto aos entrevistados
desta pesquisa: eles aumentam o ritmo de trabalho na primeira parte da jornada,
deixando a última menos sobrecarregada, preparando seus corpos para, aos poucos,
interromperem os movimentos de labuta.
No intuito de manter o controle do tempo, eles desenvolveram uma técnica
cujo objetivo é a redução dos deslocamentos durante sua jornada de trabalho. Trata-se
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220
da técnica da “bolsinha”, extensamente praticada entre os operários de setores fabris
onde são usadas peças leves.
Ordinariamente, o operário que utiliza vários tipos de parafusos e arruelas
recorre à técnica da “bolsinha” a tiracolo, dividida internamente em várias partes, e
formada por bolsos verticais, dentro dos quais depositam separadamente cada tamanho
e espessura de parafusos, arruelas ou outros materiais de pvc (
policloreto de vinila).
Alex menciona o uso que faz dela, justamente para transportar, junto ao seu
corpo e de uma só vez, as peças plásticas necessárias para a montagem de carrocerias
de carro:
Eu onde trabalhava como preparador de carroceria, além
de vedar, eu tinha que colocar uma chapelona, é do tipo
matérias de plástico pvc, pra proteger certas regiões da
carroceria [...] [Eu] usava uma sacolinha com todas as
chapelonas que eu precisava dentro [dela] [...] Então [...]
em invés d’eu ter que ir até a caixa e tinha que voltar, eu
ia uma vez só, colocava tudo dentro da sacola, pegava
todas que eu precisava e colocava na carroceria. [...] por
cada carro que [...] fazia eu ia, pegava as chapelonas
que [...] precisava e voltava, colocava no carro. E andava
sempre com essa sacolinha [...] Não era pesado, capelonas
bem, bem leves. (Alex, 22 anos, analista de processos de
produção/ex-preparador de carroceria, Montadora A –
grande)
Nessa mesma direção, Inácio circunscreve a experiência do montador também
de carroceria, avaliado como um trabalho penoso em razão dos longos trajetos
percorridos na busca dos suprimentos necessários:
você trabalha num serviço que ele é tanto penoso, [que]
durante o dia a gente vai buscando [...] coisas tipo [...] se
ele monta [...] [a] parte de parafuso da carroceria e cada
parafuso fica na caixinha num canto. Então passa o pára-
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choque ele vai precisar do parafuso de 10, ele vai lá pega
o parafuso e aplica ali, quando ele tá terminando já tem
que ter o parafuso de 5. Então ele corre lá, pega um
parafuso. Ah, aí não! Tem que ser esperto. Você vai lá, e
é a técnica que eu falo, pega faz uma bolsa (às vezes a
fábrica reluta muito essas questões pra não riscar o carro).
[...] na bolsa cada uma tem um bolsinho [...] e todo
parafuso ali. Então fica estagnado ali na posição [porque]
com essa andança dá dor nas pernas, já tá em pé e
andando piorou. Então ele busca várias técnicas durante
o dia pra [...] andar o menos possível. (Inácio, 39 anos,
montador da linha, Montadora A – grande)
A fala de Inácio demonstra a autoria e inventividade do próprio trabalhador na
criação desse objeto a tiracolo, cujo hábito em uso visa reduzir o cansaço causado pelas
andanças dentro da fábrica em busca de suprimentos. No decorrer do dia e com o
passar dos meses, são quilômetros que deixaram de ser percorridos, bem como foram
poupadas várias curvaturas da coluna vertebral e articulações diversas, quando foi
diminuído o esforço de abaixar para pegar os materiais depositados em caixas no chão.
Rosa constatou situação semelhante no depoimento de um operador universal
e preparador de máquina, comparando as mudanças ocorridas na disposição física da
cadeia produtiva que antes era reta e depois, com a nova organização do trabalho,
ganhou a forma de U. A última disposição (em células) foi avaliada positivamente pelo
operador por ocupar menor espaço; em conseqüência, poupava seu tempo de
deslocamento entre as máquinas e os postos de trabalho para discutir problemas
atinentes ao trabalho com os colegas vizinhos. A autora sublinha o fato de o operador
demarcar “a temporalidade das normas pela alusão às palavras ‘antes’ e ‘hoje’ [...] ele
destaca as diferenças das modalidades do uso de si, em termos do dispêndio de tempo
[...]” (2005: 28 e 2004: 173).
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Também fica patente na fala de Inácio uma outra menção à temporalidade,
referente à reflexão do seu tempo interior, vislumbrada em sua inquietude de
pensamento. Enquanto trabalha, o operário reflete sobre sua atividade, pondera-a e
elabora projetos mentalmente se não para sanar, ao menos para diminuir abrandar o
emprego de movimentos julgados dispensáveis, ampliando, dessa forma, o tempo
disponível.
O montante de “tempo livre” alcançado pela prática da técnica da “bolsinha”
permite ao trabalhador usufruir de ocases e momentos re-significados por ele,
dedicando-se ao relaxamento, ou à convivência social ou, mesmo, à introspecção e
permitindo pausas para amealhar forças para prosseguir a labuta.
Na mesma linha de interpretação, Bernoux condiciona a intensificação
voluntária da cadência do trabalho, efetuada no primeiro terço da jornada, ao aumento
dos intervalos de tempo disponíveis, por sua vez usufruídos na apropriação individual e
coletiva do espaço fabril (1979: 77).
Entrementes, não se pode passar ao largo da experiência de Celestino, também
preparador de carroceria, não obstante sua experiência e opinião acerca da técnica da
“bolsinha” destoar das arroladas acima.
Tem uns que não tem habilidade, eles usam mesmo essa
sacolinha a tiracolo porque como é muita pecinhas
minúsculas [...] lá tem três tipos de chapelona [...]
pequena, média e grande. Você não vai poder levar todas
na mão, aí quem não tem muita habilidade, usa a sacola.
Eu mesmo, eu nunca usei sacola. E não é que eu quero
dizer que eu sei, é porque [...] eu sempre trabalhei na
seqüência, e eu sei à medida que vão as primeiras peças,
[...] eu levo uma, levo outra. Tudo bem! Você caminha
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mais [...] (Celestino, 36 anos, preparador de carroceria,
Montadora A – grande)
Marcando um contraponto com a necessidade do uso da técnica, Celestino ao
menos nesse quesito de “transporte de chapelonas”, coaduna sua opção, com a
sequência prescrita pela fábrica, lançando-se, portanto, em caminhadas diárias, na
busca dos materiais depositados em caixas relativamente distantes. Seguir em certos
aspectos a seqüência prescrita também pode ser interpretado como uma maneira de
optar pela melhor forma de trabalhar para si próprio, pois ele alega a recompensa do
bem-estar proporcionado pelas caminhadas, por meio das quais acaba exercitando o
seu corpo.
Oddone, Re e Briante apresentam análise importante sobre as astúcias
operárias, cuja tônica reside em concebê-la como uma heurística
60
de controle do
tempo de descanso, ausente nas normas fabris, e como uma afronta à organização do
trabalho:
Pode-se considerar as astúcias operárias como um
procedimento heurístico não sistemático, visando
melhorar uma seqüência gestual a fim de ganhar tempo de
repouso não previsto pelas normas. Mas é preciso dizer
que elas são apenas a primeira etapa de uma abordagem
heurística bem mais complexa, que tende a afrontar em
seu conjunto o problema central da organização do
trabalho. (Oddone, Re e Briante, 1981: 183)
Embora recorrendo às reflexões desses autores, que revelam em filigrana os
significados das astúcias praticadas pelos operários, é preciso não perder de vista que,
no contexto histórico do qual os operários sujeitos desta pesquisa fazem parte, os
60
- Fischer contrapõe a “lógica algorítmica” dos engenheiros com a “lógica heurística” dos operários; ao
contrário daquela, esta não é programável e, embora de pequeno alcance, resulta de invenções contínuas, e é
baseada no saber operário, em suas informações sensoriais e em seus valores (1980:188).
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224
enfrentamentos que lançam sobre a organização do trabalho não chegam a atingir
envergadura estrutural e oficial, mas aparecem na forma de intervenções de alcance
apenas cotidiano, malgrado sua ocorrência persistente e decisiva.
5.3 Solidariedade em trabalhos penosos
Em setores onde são usadas peças pesadas, como na linha de montagem de
câmbios e motores, a realidade se apresenta bastante distinta da desenhada por Inácio,
por Alex e Pablo. Nesse caso, a técnica da “bolsinha” é inviabilizada e o acúmulo de
peças pelo operário não é possível, justamente pelo impedimento que decorre da
organização espacial. Ele trabalha sobre uma bancada que está em movimento
contínuo, obrigando-o a montar as peças que passam por ele apenas naquele exato
momento.
Por conseguinte, a situação da linha de montagem toma feição bem mais
adversa se cotejada com a pré-montagem e outros setores onde cada qual trabalha
relativamente isolado. Por isso esse cenário instiga e atiça a atenção, notadamente pelo
fato de, não obstante tudo, os operários conseguirem interstícios de tempo livre
enquanto a esteira está em pleno funcionamento.
Surge, em conseqüência, a indagação inevitável: O que acontece com as peças
em movimento na esteira, quando o operário que deveria manuseá-las está ausente de
seu posto de trabalho quando elas passam por ele?
A despeito das limitações contidas na linha de montagem, pôde-se constatar
que elas não implicam, de forma alguma, a resignação e a lamentação dos operários
sobre sua triste sorte de ter de trabalhar dentro de padrões, ritmo e tempo herméticos.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
225
Pelo contrário, eles são tomados por constante inquietação e pela predisposição
decisiva para enfrentar e superar os obstáculos.
Essa inquietação provém do próprio fato de viver, adverte Canguilhem. Viver,
muito mais que vegetar e se conservar, é “enfrentar riscos e triunfar sobre eles”, valor
forte para o animal e decisivo para o ser humano (2003: 215).
Premidos pelas circunstâncias, esses trabalhadores arquitetaram solução
inteligente para isso: a organização coletiva e oficiosa. O recurso utilizado
coletivamente é a solidariedade, que assegura a construção de intervalos de tempo que
amenizem o cansaço e a fadiga do trabalho rotineiro.
Esse tipo de organização coletiva e oficiosa constitui a chamada ECRP
(Entidades Coletivas Relativamente Pertinentes), tratadas por Schwartz. O autor lembra
que a redução do tamanho das fábricas e sua descentralização enfraqueceram as
entidades coletivas fortes que existiam, como a que estruturava o movimento operário
até 1968. Diante do novo cenário, constituíram as ECRPs, que, como o próprio nome
diz são entidades de cunho coletivo, cuja pertinência é apenas relativa por serem
frágeis, ainda assim representando “um lugar de transição entre a política e o trabalho”
(Schwartz, 2003: 156). A ECRP “aloja a eficácia coletiva no trabalho, mas também os
valores socialmente partilhados” (idem). Esses valores estão aderidos às normas que
balizam o “bem-comum” estabelecido por essa coletividade no trabalho.
Roy traz uma série de imagens que podem ilustrar a ECRP. Em meados do
século passado, época em que se engajou em uma metalúrgica norte-americana, os
operários ganhavam por peça produzida. Todavia, ao contrário do que a empresa
esperava, eles não ultrapassavam a meta máxima estabelecida pela fábrica, justamente
para evitar uma conseqüência certa e danosa para eles: a queda no preço pago por peça.
Uma das imagens dessas entidades pode ser entrevista abaixo:
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A falta de respeito para com a norma informal, que
impunha “livrar-se” das tarefas submetidas a cotas, não
levava a penalidades pesadas como as que acompanhavam
a violação da norma proibidora de ultrapassar a máxima
estabelecida, mas era fácil observar que os operadores
tinham um ar nervoso, ou envergonhado, quando eles não
conseguiam se livrar dos trabalhos por cota (Roy, 2006:
82)
O sentido do “‘livrar-se’ dos trabalhos por cota” é que o operário cumpra a
meta exigida pela fábrica em menos tempo para, depois poder usufruir o tempo
excedente da forma como lhe aprouver:
“livrar-se da tarefa” queria dizer reduzir o número de
interações com o mestre [...] Por outro lado, assim que o
operador tivesse produzido sua cota, ele era mestre do seu
tempo [...] [dispunha de] horas de liberdade [...] que ele
podia passar agradavelmente em companhia dos outros
operários fazendo coisas habituais (Roy, 2006: 80)
Momentos de muita beleza e emoção foram vividos por esta pesquisadora ao
poder ouvir deles mesmos como os operários constroem saídas coletivas que lhes
permite manter o controle sobre seu corpo e sua mente, a suportar continuar
trabalhando e, no limite, vivendo. Valéria, uma das operárias da linha de montagem,
expressou isso com considerável veemência.
De manhã eu preciso de 10 minutos [...] fora do horário
do banheiro, o monitor [...] já vem e fica no meu lugar
[...] À tarde não é tanto tempo porque eu volto 12h30 do
almoço e 2h50 já paro de trabalhar [...] Agora, de manhã
que são 5 horas seguidas, a gente para pro café as 8h30, aí
por volta de 10h00 eupreciso sair porque eu já começo
a ficar agoniada, eu tenho que sair, dar uma volta. [...]
Todo dia eu tenho que fazer isso porque senão não
agüento. Eu vou no banheiro, lavo o rosto, deito no
banco, estico, respiro fundo, aí eu levanto e vou
trabalhar de novo. Mas eu tenho que parar [...] Porque se
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eu ficar ali direto não dá, não consigo, o serviço começa
a cair não dou conta da produção [...] Eu saio, fico do
lado de fora, tem bastante árvore ali, saio ou então sento
ali, ou então vou pro vestiário, lavo o rosto. A maioria do
pessoal faz isso, que é o que dá para fazer durante o
serviço. (Valéria, 20 anos, montadora da linha, Montadora
A – grande)
Interessante notar, quando se está cansado ou sonolento, lavar o rosto é um ato
quase litúrgico, sempre destacado pelos operários, como se exercesse efeito de cura
sobre os males psicofísicos que se abatem sobre eles no ambiente fabril. Esses
trabalhadores também têm intenção de lavar a alma, com a água que lhes lava o rosto, e
buscando amenizar a cadência e o sofrimento causados pela situação de trabalho.
Conforme enunciava essas imagens, era possível perceber no semblante de
Valéria a aflição que a acometia ao rememorar o sofrimento causado pela cadência do
trabalho. Seu rosto expressava a tragédia cotidiana vivenciada naquele ambiente. Os
movimentos rotineiramente repetidos centenas de vezes deixavam-na aturdida. Para
evitar a alucinação, ela recorria à ajuda do outro.
O rigor das condições de trabalho é de tal ordem que, para enfrentá-las, os
trabalhadores atingem limite difícil de imaginar para quem não tem intimidade com o
ambiente fabril: a parada da linha pelos próprios operários. Em cada posto de trabalho,
há um botão ou uma corda: “quando não dá [para o monitor ficar no meu lugar] é que
é ruim, porque tenho que puxar a cordinha. Vou ao banheiro correndo lavo o rosto e
volto, não dá tempo de fazer mais nada [...]”
(Valéria, 20 anos, montadora da linha,
Montadora A – grande). Essas cordas ou botões são puxados em momentos de
emergência para emitir um sinal sonoro de pedido de socorro, não somente para
desobstruir a produção, mas também pela sanidade e pela vida equilibrada.
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Valéria alude ao monitor encarregado de suprir a ausência do(a) operário(a),
evidentemente para que a produção não seja interrompida. Isto é, aí não há uma relação
efetiva de compartilhamento do infortúnio alheio; trata-se somente de um auxílio
forjado destinado a cumprir as metas fabris. Porém, essa mesma prática é corrente entre
os trabalhadores, que se auxiliam alternadamente no cotidiano fabril.
Enquanto o monitor faz-se presente na montadora onde Valéria trabalha, em
outra montadora, onde está Fabrício, figura similar, denominada de volante, há tempos
deixou de existir, o que criou a necessidade de os operários se organizarem, para
suprirem as ausências daqueles que precisam afastar-se da produção, por alguns
momentos.
Um ajuda o outro, quando não dá tempo de segurar até o
horário do intervalo, dá uma adiantada, fala: “Dá uma
olhada aí que eu vou no banheiro, rápido”. Enquanto vai
no banheiro, o outro dá uma ajuda. Na verdade, na linha
de montagem deveria ter, hoje em dia não tem mais, o
que a gente costumava chamar de volante, que era uma
pessoa que ficava a mais na linha, sobrando, sempre que
alguém precisasse sair pra ir no banheiro, no médico,
comprar um lanche, alguma coisa, essa pessoa cobria.
Mas hoje em dia já não tem mais, já cortaram. Então a
gente tem que dar um jeitinho, tem que ir se virando.
(Fabrício, 27 anos, montador, Montadora B – grande)
Partindo de sua experiência como montador, Fabrício afirmava a primazia da
solidariedade nas relações entre os operários do setor da linha de montagem. Conforme
é possível deduzir de suas palavras, a solidariedade é condição sine qua non para que
sejam atingidos resultados profícuos e para que os operários suportem o cansaço.
Em linha de montagem tem que rolar essa solidariedade,
senão o trabalho não funciona. Não funciona porque
sempre tem alguém que [...] ou tá mais cansado ou tá mais
nervoso, não tá conseguindo trabalhar direito. Então a
gente vai ajudando um ao outro pra não piorar mais
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ainda a situação. E linha é aquilo, se um for pro buraco,
os outros... a gente costuma falar valeta quando o cara tá
com o serviço atrasado, se um for pra a valeta [...] os
outros depois dele vai tudo, porque ele tem que terminar a
parte dele pro outro [...] começar. Então tem que ter essa
ajuda. Pro negócio funcionar, pra gente não sofrer [...]
mais do que a gente já sofre normalmente, para dar uma
aliviada. (Fabrício, 27 anos, montador, Montadora B –
grande)
A solidariedade presente entre os operários é de tipo cooperativo. Dejours
define cooperação por laços construídos, voluntariamente, entre agentes que objetivam
realizar uma obra comum, edificada por sua interação e pelo “contexto subjetivo, social
e material do trabalho” (1993: 41). Apesar de cultivada por iniciativa dos operários,
sem qualquer obrigação proveniente de seu posto de trabalho, a cooperação advém da
necessidade de melhor gerir a organização cotidiana do trabalho:
Os laços de cooperação solicitam iniciativas individuais,
tendo em vista preencher lacunas da organização do
trabalho na definição e na descrição das tarefas, por um
lado; eles também têm por vocação regular as diferentes
modalidades de ajustamento colocadas em prática pelos
diferentes operadores [...], por outro lado. É para poder
coordenar suas ações singulares que os agentes tentam
estabelecer laços unificadores entre si.
Em outros termos, esses laços tomam fundamentalmente a
forma de “regras do trabalho”, construídas pelos agentes
de um coletivo para fazer face ao que não é dado pela
organização prescrita do trabalho. (Dejours, 1993: 43)
Do mesmo modo que o montador Fabrício, Celestino menciona as estratégias
utilizadas para favorecer a relação de cooperação que emerge no cotidiano fabril dos
operários. Embora não esteja diretamente ligado à linha de produção, ele faz menção a
esse setor, baseando-se em experiências narradas por colegas de trabalho:
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Na linha [...] tem a quantidade certa pra rodar a produção,
[se] um precisa de ir no banheiro, não tem ninguém [para
cobri-lo], não pode parar a produção. Então [...] se tem 5
[operários] assim próximos ao posto de trabalho [dele],
[...] a gente fala: “Você vai, a gente combina aqui, cada
um faz a sua parte”. Aí eu faço o meu trabalho e faço
metade do trabalho dele. “Vamos todos colaborar porque
não pode parar a produção [...] se pára, a chefia vem em
cima”. E se não tem ninguém pra ocupar o lugar dele, a
gente tem [de] fazer duplicidade: faz o serviço da gente e
faz metade do dele. Aí assim dá pra controlar. (Celestino,
36 anos, preparador de carroceria, Montadora A – grande)
A prática da duplicidade de posto de trabalho, que não é remunerada, permite
ao trabalhador controlar o andamento bem sucedido da produção. As frases de
Celestino citadas acima destacam certo tom de caudilho de linha, que ele assume na
fábrica. Tendo sido monitor por alguns mandatos, ele preza sempre ser um trabalhador
exemplar. Sua postura incansável e zelosa é tão firme, que ele jamais cochila durante o
horário de descanso, como fazem alguns dos seus colegas.
Todavia, Celestino levanta uma ressalva para o exercício da duplicidade de
trabalho: o limite físico. Alega não ser possível suportar esse acúmulo de função por
uma hora. Nesse caso, quando a pessoa substituída sai para uma consulta médica, por
exemplo, é preciso chamar o líder para providenciar um substituto em tempo integral.
Já para ir ao banheiro ou ao caixa eletrônico, os próprios operários se organizam para
gerir as atividades da pessoa que deixa seu posto provisoriamente vacante.
Prolongando a conversa com Celestino, pôde-se vislumbrar que a necessidade
de cooperação dos operários, fortalecendo laços de solidariedade, ultrapassa o mero
cumprimento do dever junto aos chefes:
a gente [operários] quando conversa […] acha melhor
ajudar o outro e não parar a produção, porque se […]
parar […] vai ser chamado atenção do encarregado e […]
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ele […] vai chamar a comissão de fábrica. Aí cai...
pronto! Começa todo aquele atrito e dá um mal-estar
mesmo nos operadores [...] pra não ter esses atrito bobo,
a gente acha melhor conversar e ser solidário: faz o seu
serviço e divide o serviço do outro que saiu. (Celestino,
36 anos, preparador de carroceria, Montadora A – grande)
Evitar o mal-estar do operário, eis uma razão que atinge diretamente os
valores dos trabalhadores. Interromper o trabalho por qualquer razão resultante do
malogro do operário no exercício de sua atividade, ainda que seja de caráter de gestão,
termina por afetar o orgulho do seu savoir-faire. Oficialmente, a gestão do trabalho não
é concedida ao operário, mas sabe-se que a produção só funciona com êxito devido à
presença dos laços de solidariedade que a permeiam. Especialmente na linha de
montagem, a solidariedade é utilizada como forma de gestão, por meio da qual os
operários corrigem as disfunções acarretadas pela divisão e pela cadência do trabalho
fabril.
Além do mal-estar acarretado pelo “descumprimento” do trabalho, outro valor
que aparece na experiência dos operários é a prática da filantropia. Praticante da seita
Testemunhas de Jeová, Ana fala sobre a necessidade de ajudar o próximo:
sempre tento fazer da melhor maneira possível pra poder
ajudar os outros. Às vezes acabo me prejudicando por
causa dos outros [...] perco tempo do meu serviço – sendo
que eu poderia tar tirando um motor a mais pra poder
adiantar o meu serviço – [...] [para] ir ajudar a outra
pessoa que está com dificuldade. Já aconteceram várias
vezes. Só que depois cê dá uma agilizada e consegue
recuperar o tempo perdido. Acho que quando cê tá
ajudando os outros o tempo é sempre ganho, nunca
perdido. (Ana, 22 anos, operadora de dinamômetro,
Montadora B – grande)
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Querendo patentear o vínculo de solidariedade operária, Jussara compara as
formas de controle do tempo exercidas pelas duas categorias operárias, montagem e
pré-montagem:
o pessoal da linha [...] tem horários para ir no banheiro,
[...] paradas específicas [...] É claro que você não vai no
banheiro só na hora que a linha pára [...] Você quer ir, [...]
seu serviço não tem como [...] [Você fala pra alguém do
lado:] “Dá pra você ficar aqui no meu lugar um
pouquinho enquanto eu vou no banheiro?. Funciona
assim. Agora, na pré-montagem não precisa disso. Na
pré-montagem [...] eu tenho algum tempo, eu tenho o
tempo das peças (Jussara, 30 anos, montadora, Montadora
B – grande)
Na pré-montagem, o operário tem o tempo das peças. Dessa frase,
pronunciada por Jussara, emana o sentido de apropriação do tempo, um tempo fabril
que pertence ao operário. Sabe-se que a meta produtiva, a quantidade de objetos a
serem produzidos em um tempo específico, é imposta pela fábrica; porém, conforme
dito por ela mesma, a distribuição do tempo empenhado para produzir cada peça é de
domínio do próprio operário da pré-montagem.
Ainda seguindo o mesmo raciocínio, na linha de montagem, em contrapartida,
o tempo não pertence aos operários; porém, ainda assim, eles desenvolvem astúcias
para, juntos, somando esforços, construírem uma saída. Atingidos pela mesma
situação, pressionados pelo tempo, os operios se solidarizam tentando amenizar o
sofrimento que é de todos.
Na parte de [teste de] motores [...] eu posso dar uma
saidinha [...] que não vai prejudicar. O que a gente
costuma fazer é pra não perder tempo, eu ligo o motor e
deixo lá, o operador do lado [...] só olha lá pra ver se não
vaza, que tem um tempo que vou ficar literalmente parada
olhando, analisando os valores, aí olhar mais a
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temperatura [...] eu não tô medindo nada ainda. Então [...]
uma pessoa que olha pra mim, tá ali do lado ele olha o
dele, olha o meu, sem problema nenhum. Então isso
acontece com freqüência lá. Eu falo: “Oh! Dá uma
olhadinha pra mim que vou no banheiro. (Ana, 22 anos,
operadora de dinamômetro, Montadora B – grande)
A solidariedade, portanto, é uma das armas mais eficientes, utilizada pelos
operários em todos os setores de chão de fábrica, dentro ou fora da linha de montagem.
Se colocar a peça aqui em cima, tá doendo os ombros, tá
tendo bursite começa a trabalhar com a peça na parte de
baixo pra não doer, troca com colega, fica 10 minutos, o
outro fica 20 minutos, uma hora, e assim vai. Pra toda
hora dá dor nas costas, então o colega vem e fica de pé e
ele fica dentro do carro agachado montando de perto, aí
mais tarde o colega volta [...] Então vai fazendo isso,
várias manias que vai aprendendo entre nós mesmo pra
melhorar o dia, o cansaço das dor [sic], porque queira ou
não queira tem muita dor. (Inácio, 39 anos, montador da
linha, Montadora A – grande)
Somente recorrendo à ajuda mútua é que os operários conseguem amenizar o
sofrimento causado pela cadência do trabalho. Mesmo aqueles que já foram
acometidos por graves doenças contraídas no exercício profissional, como é o caso
trágico da jovem montadora Jussara, com hérnia de disco, juridicamente intitulada
“compatível”, conciliam as limitações que a fábrica imprimiu sobre o seu corpo com as
trocas que pode estabelecer com suas colegas de trabalho.
Eu alterno [...] eu me adeqüei a bastantes coisas [...]: tem
coisas que é pra você ficar muito tempo de pé,
automaticamente eu sento pra fazer se eu [...] conseguir
uma oportunidade [...] Se [...] a peça tá no alto, eu tiro as
caixas do alto e ponho aqui embaixo pra montar [...] E
tem coisas que eu não consigo fazer, têm peças que eu
monto, aí eu peço pra alguém me ajudar. Essa moça que
trabalha do meu lado, ela monta uma peça, eu falo: “Olha,
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Joana eu vou te ajudar a montar, mas na hora de apertar,
você aperta”. Ela que vai usar a parafusadeira, a máquina
em si pra mim não sentir a vibração. Eu monto o manual
[...], depois [...] tem que apertar as peças tudo com a
máquina [...] A gente faz isso, a gente tenta administrar
assim. (Jussara, 30 anos, montadora, Montadora B –
grande)
Devido à patologia de Jussara, oficialmente lhe é permitido atuar somente em
certas funções restritas, que não agravem o seu quadro físico. Porém, para manter o
brio e não usar o problema de saúde como razão para se eximir das atividades fabris,
ela tem de recorrer a uma divisão especial de tarefas, desenvolvida e compartilhada
com sua colega de trabalho. A questão da saúde no trabalho, especialmente no sentido
de um valor fortemente prezado pelo operário, será retomado, em item vindouro, onde
será analisado mais detidamente. Por hora, nosso olhar está dirigido com mais atenção
para o tema da solidariedade laboral.
Um operário da pesquisa de Oddone, Re e Briante evoca a intervenção do
operário na divisão das tarefas tendo como fito melhorar o desempenho da conjugação
trabalhador-atividade, inclusive reformulando a própria divisão estabelecida
oficialmente:
A gente chega a modificar até oito ou dez operações no
seio do grupo para que o trabalho seja mais bem repartido
e para que a gente possa aproveitar as nossas astúcias...
Acontece até mesmo de a gente modificar a repartição da
carga de trabalho fixada pelo cronometrista (Oddone, Re
e Briante, 1981: 138).
Mesmo que a solidariedade seja estratégia decisiva para a sociabilidade no
ambiente fabril, como em qualquer outro ambiente de convivência social, há aqueles
que encontram grandes dificuldades em gerir esse tipo de vínculo pessoal. Trata-se de
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operários cuja personalidade é marcada pela reserva e pelo isolamento, por isso não
conseguindo adaptar-se à sociabilidade solidária, sendo coagidos pelas circunstâncias a
se transferirem de setor.
Porque tudo o que a gente precisa ali tem que trabalhar
com ajuda [...] tem gente que tenta se isolar e não
consegue porque são várias operações seguidas, se a
operação do cara de cima deu errada, você vai ter que
conversar com ele, explicar o que aconteceu. E tem muita
gente que muda [de função] por causa disso, aquela
pessoa fechada, emburrada, aquele cara mal humorado,
que não gosta de gente que tá ali no meio de um monte de
gente e que não gosta, ele acaba mudando [ou] acaba se
adaptando porque senão não tem jeito. Porque se [...]
acontecer algum problema, ele não pode deixar passar, ele
vai ter que pedir socorro pra alguém, então tem que ter
essa relação nesse ambiente. (Valéria, 20 anos, montadora
da linha, Montadora A – grande)
Recorrer à ajuda dos colegas de trabalho é condição para permanecer em
certos setores da fábrica. Trata-se de estabelecer trocas, estratégia, que constantemente,
põe em prática formas inteligentes para o exercício da atividade de cada um, cujo fim é
impedir que sejam alvos dos malefícios dos movimentos repetitivos.
As estratégias desenvolvidas pelo trabalhador são maneiras de tentar combater
a cadência do trabalho e evitar a brutalidade e os prejuízos que ela causa sobre o seu
corpo. Consiste em uma via de mão dupla: além de permitir que o trabalhador cumpra
a meta de produção, favorece certo equilíbrio à sua saúde, podendo evitar problemas
osteo-musculares e até mesmo a neurose. Canguilhem menciona o risco da loucura do
indivíduo quando ocorrem impossibilidades eventuais de revisar e instituir normas
(2003: 217).
É fundamental, portanto, destacar que essas atitudes astuciosas do operário
para controlar o ritmo do seu trabalho, de forma que lhe sobre tempo para empregar em
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atividades extra-produtivas, não é de forma alguma malandragem que vise burlar a
produção. Pelo contrário, trata-se de estratégia que o ser humano desenvolve para
continuar a própria produção e, indubitavelmente, defender-se do stresse e do cansaço
do trabalho.
5.4 Problemas miúdos versus grandes intervenções
O cotidiano fabril é cravejado de problemas ditos pequenos: desgaste de
ferramentas, quebra de peças, falta de manutenção, interferência da temperatura na
matéria-prima, inadequação de dispositivos. Aparentemente miúdos, eles interferem no
bom desempenho da produção e só são sanados graças à intervenção constante e
“compromissada” dos trabalhadorres. A automação e a informatização, mesmo
contribuindo muito para a eficiência dos processos, ainda não são capazes de resolvê-
los, por sua particularidade e diversidade.
Oddone, Re e Briante compartilham essa visão e dizem, “devido à intervenção
direta e não programada [do operário] que se remediam as disfunções do sistema”
(1981: 59). Os autores ainda acrescentam: o operário “se dá conta que entre [...] o
modelo teórico e o modelo prático (de produção) existe uma distância, um fosso, que
só é preenchido por sua intervenção” (idem).
Em seu depoimento, Pablo destaca que as condições da temperatura interferem
até mesmo na produção, justamente por modificar a consistência do óleo lubrificante,
utilizado para abastecer o reservatório do câmbio. Essa alteração afeta diretamente seu
tempo de vazão do óleo, influindo no tempo de montagem do câmbio.
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Até na produção do dia às vezes isso [o clima] atrapalha,
quando tá muito frio [...] o óleo [...] fica grosso, então ele
demora pra abastecer o câmbio, assim 10 minutos às
vezes pra abastecer o câmbio. E quando tá muito calor,
nessa época assim... aí flui pra caramba o óleo, enche
rapidinho o câmbio, se você ficar conversando de boca
aberta, derrama tudo no chão, aí tem que fazer pra limpar.
(Pablo, 23 anos, montador, Montadora B – grande)
Situação como essa não depende de uma execução automática, exigindo a
presença de alguém, que permaneça em observação constante e possa rapidamente
detectar a interferência do ambiente sobre o material manipulado para poder refletir e
decidir em tempo real sobre a melhor forma de intervenção para solucionar o
problema.
Quando o operário suspeita que haja algum problema com a máquina, ele
também controla o seu avanço, trabalhando mais lentamente. Agindo assim, evita
desperdícios da matéria prima e desgaste dos equipamentos, ademais, afasta possíveis
danos a si próprio, como acidentes.
Reticente quanto às respostas de sua máquina, todas as manhãs Jéssica inicia
seu trabalho, sempre com muita cautela. Paulatinamente, vai aumentando a aceleração
da máquina, à medida que avalia positivamente seu desempenho e sua segurança.
Quando eu chego na máquina... de manhã [...] eu já olho
tudo... porque [no] dia-a-dia a gente decora os valores
[comandos numéricos computadorizados] que têm. Então
eu olho, vejo o que tá certo, [...] o que eu desconfio [...]
Aí eu procuro fazer a primeira peça com avanço mais
baixo, fecho o avanço dela, faço ela um pouco mais
devagar pra ver se não vai acontecer nada de errado.
(Jéssica, 20 anos, operadora de máquina CNC, Montadora
B – grande)
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Produzir a primeira peça com rotação baixa é uma atitude ponderada e
inteligente em duplo sentido: impede a produção de várias peças com um mesmo
defeito, que muitas vezes não podem mais ser retrabalhadas (erros incorrigíveis), assim
como minimiza as chances de uma falha na máquina atingir o operário, seja por meio
de algum objeto lançado em alta velocidade ou porque possibilita que partes do corpo
do trabalhador sejam tragadas pela máquina.
Enquanto trabalha, o operário exerce outra atividade tangencial, porém crucial
para a fábrica, a prevenção. A todo instante, ele está extremamente envolvido, atento a
possíveis eventualidades que possam ocorrer. Se for percebido algum sinal de que um
acidente ou falha possa ocorrer, ele já está preparado para tomar atitudes capazes de
minimizar ou até erradicar efeitos danosos.
A gente próprio vai se virando. Ou [...] trocamos uma
parte dela [da ferramenta] ou a gente lubrifica, ou a gente
mesmo vai dia a dia... o próprio montador-trabalhador vai
fazendo isso aí. Se é [sic] pequenos problemas nós
mesmos resolvemos (Inácio, 39 anos, montador da linha,
Montadora A – grande)
O operário conhece bem a máquina com a qual trabalha, seus ruídos, vibração,
desempenho; por isso, é o primeiro a detectar os primeiros indícios de problemas que
ela apresente. Do mesmo modo, é ele quem primeiro diagnostica e intervém, seja por
seus próprios meios seja comunicando a ocorrência a um serviço mais especializado.
Trata-se de um momento crucial: é a triagem, feita graças à habilidade do trabalhador
comum, que poupa perdas onerosas, tanto materiais quanto humanas, e garante à
produtividade da fábrica no decorrer dos anos.
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A profundidade das intervenções varia conforme as condições e o espaço de
cada ambiente de trabalho. Em postos onde o operário manuseia especificamente uma
máquina, seja o torneiro, o ajustador, o fresador, o ferramenteiro, ou, simplesmente, o
operador, as intervenções são mais diretas e intensas.
Registrado como torneiro mecânico em uma pequena fábrica, porém
efetivamente atuando em atividades de torneiro ferramenteiro (prática corrente nas
fábricas de todos os portes, que assim se eximem de pagar salários maiores conforme a
qualificação do operário), Demerval considera-se habilitado a resolver praticamente
todos os problemas que possam atingir sua máquina.
Eu resolvo: fazer a peça da máquina, se for um fusível eu
vou lá e mexo na máquina; se for engrenagem, uma
chaveta, eu faço a engrenagem. Não espero ninguém
fazer por mim, eu mesmo faço, engrenagem, tudo o que
for relacionado à máquina, eu já faço, eu faço
manutenção. Eu sou torneiro ferramenteiro, eu faço tudo,
[...] se tiver de soldá, eu soldo também [...] Se tem uma
peça que é cara, “ah, vai vir só daqui 3 dias”, eu vou lá e
faço, [...] a firma vai agradecer não vai? [...] É lucro pra
ele e pra empresa também, não é pra mim que tenho que
me virar e fazer outra peça. (Demerval, 43 anos, torneiro
ferramenteiro, Auto peças A – pequena)
Integrando o chão de fábrica de uma grande montadora de carros, Jéssica
também se empenha em intervir em máquina, quando necessário. Certamente, dada a
sua ocupação bem diferenciada da de Demerval, enquanto operadora de uma máquina
de comando numérico computadorizado, ela intervém de forma mais moderada, se
comparada com a daquele que produz as peças necessárias. No entanto, ambas as
intervenções são tão necessárias quanto determinantes para cada posto de trabalho.
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240
Você tem que analisar o problema. Por exemplo, às vezes
é um parafuso que quebra e a peça desloca [...] uma
ferramenta também que já tá desgastada e acaba
deslocando. Às vezes o operador não coloca a peça na
posição certa e desloca. Tem que ver os vários motivos.
Mas o problema da máquina [...] é mais dispositivo,
ferramenta [...] Às vezes, dá probleminha, por exemplo,
falta de óleo, aí a gente vai lá e coloca [...] dá algum
problema [...] no sensor da porta da máquina [...], aí dá
pra resolver com umas batidinhas e não precisa chamar
a manutenção, porque se chamar a manutenção a máquina
fica parada por bastante tempo. (Jéssica, 20 anos,
operadora de máquina CNC, Montadora B – grande)
A lista de problemas diagnosticados é consideravelmente volumosa: queima
de fusíveis, engrenagens gastas, solda, usinagem de peças, quebra de parafusos,
desgaste de ferramentas, peças mal-encaixadas, falta de óleo, mau contato.
Entrementes, via de regra, os operários se auto-avaliam como solucionadores de
“probleminhas”.
O uso do diminutivo para expressar a existência de problemas não deve ser
interpretado como forma de reduzir a importância da intervenção, haja vista não se
tratar de um trabalho isolado, mas coletivo, e que qualquer interferência repercute em
cadeia para toda a fábrica. Todos os operários, cada qual atuando sobre pontos
restritos, terminam por evitar a ocorrência de grandes problemas na produção; em
conseqüência, somadas, essas intervenções atingem envergadura considerável, como
veremos no caso coqueliquot.
Jéssica menciona a curiosa intervenção, porém tão conhecida mesmo em
ambientes domésticos, de lançar tapas leves sobre as máquinas. Trata-se de prática
freqüente entre os operários para a resolução de pequenas panes. No caso, quase
sempre são problemas de mau contato entre os fios, reconectados quando as máquinas
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241
são agitadas. Assim, a produção continua, sem a necessidade de ser interrompida para
que a máquina passe por manutenção demorada.
Com referência propriamente ao jeito de trabalhar, é importante frisar que se
trata de algo impreciso e fugidio, dado seu caráter subjetivo, sutil e dificilmente
percebido pelo olhar exterior, notadamente daquele que não opera aquelas máquinas.
Um jeito ilustrado por João consiste no balanceamento manual da ferramenta, por meio
de movimentos delicados e absolutamente precisos, mas que são cruciais para garantir
a qualidade da peça fabricada. Segundo ele, cada máquina tem sua manha, e para lidar
com esse caráter ardiloso da máquina é preciso que o trabalhador desenvolva um jeito
próprio em seus movimentos corporais, para poder manejá-la adequadamente.
O sistema pra você trabalhar, [...] às vezes tem [...] peça
que você tem que colocar ela e dar uma segurada
puxando pra direita. Porque você coloca a peça e tem o
fixador que vai prender a peça. Então você coloca ela e dá
uma puxadinha pra direita, aquela puxadinha pode ser 2
décimos, 5 décimos [...] O dispositivo, na hora que vai
fixar, às vezes ele tá desbalanceado, então ele fixa meio
torto, aí na hora que ele vai fixando, cê dá um tapinha
nele, ele equilibra e tah. Então isso daí cê aprende tudo; é
no dia a dia [...] (João, 53 anos, operador de célula,
Montadora B – grande)
O resultado desse pequeno ato do operário, no caso na usinagem, pode parecer
insignificante e desimportante para a produção, mas, na realidade, propicia a produção
de objetos desprovidos de defeitos. O procedimento evita o retrabalho e o desperdício
fabril, haja vista que, por exemplo, um furo usinado com poucos milímetros fora do
padrão impossibilitaria o encaixe da peça usinada dentro do diâmetro previsto. Assim,
vê-se que o controle de qualidade já é tarefa exercida, pelo próprio operário que a
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fabrica, no processo de fabricação da peça, desonerando, portanto, os cofres fabris,
porém sem acrescentar nada ao seu próprio salário.
Os sentidos apurados dos operários constituem ferramentas cruciais para a
construção de diagnósticos precisos sobre o seu entorno. A audição, em especial, é o
sentido mais solicitado nesse ambiente barulhento; não obstante, cada barulho tem um
significado distinto para esses profissionais que aprenderam a decifrá-los com um
talento assombroso.
João, já aposentado, porém ainda atuando no setor de usinagem da mesma
montadora como operador de célula, dá mostras de sua acuidade e habilidade para
interpretar a miríade de barulhos que brotam do chão de fábrica:
[O trabalhador] que vem [...] do Senai [...] não vai
conhecer o barulho de uma ferramenta quando quebra, o
barulho de um barramento que tá sem lubrificação, uma
broca que não tá afiada adequada [...] [pra] fazer um
furo perfeito. Então tudo isso a pessoa vai pegando no
decorrer do tempo [...] quando você conhece todo o
processo, toda a malícia [...] Às vezes são 18 brocas, uma
cê escuta que o barulho não tá normal, tá:
“quiquiquiquiqui...”, aí cê fala: “Oh! Tem uma broca
ruim”. Aí cê aperta o botão... olha as 18, aí cê acha a
broca, tira, pronto, coloca [...] Às vezes a ferramenta não
tá indo a água de refrigeração porque o cano entope, aí
você põe lá e liga e nem percebe [...] aí quando cê pensa
que não, olha lá, a peça tá com acabamento ruim,
queimou a ferramenta, aí cê tem que fazer tudo de novo.
Então tudo isso aí são manhinhas que você vai pegando
[...] cê vai aprendendo com o decorrer do tempo. Pelo
barulho cê vê se tá indo refrigeração, se tem ferramenta
quebrada, se falta óleo de lubrificação. (João, 53 anos,
operador de célula, Montadora B – grande)
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243
Conviver com a variedade, ainda que sutil, de tipos de ruídos leva o
trabalhador a desenvolver uma espécie de tipologia dos barulhos emitidos pelas
máquinas, como se estas se exprimissem por uma linguagem, que lhe permite decifrar
exatamente a razão de cada som. É como se os ruídos falassem, contando-lhe por que
vieram, e assim ele pode intervir para resolver os diversos problemas que atingem as
máquinas.
O reconhecimento dessa linguagem aproxima-se, em certo sentido, da imagem
tecida por Bertold Brecht em seu poema Canto das Máquinas, cujo segundo trecho
61
enuncia:
[...] escutem quem canta para nós...
As máquinas cantam.
[...] estes são nossos cantores [...]
Eles não cantam bonito, mas cantam no trabalho
Enquanto fazem luz para vocês eles cantam
Enquanto fazem roupas, fogões e discos
Cantam.
[...]
Com sua voz que todos entendem.
As máquinas repetem seu canto.
Isto não é o vento nas árvores [...]
Não é uma canção para a estrela solitária
É o bramido selvagem da nossa labuta diária
[...] é a voz de nossas cidades
É a canção que em nós cala fundo
É a linguagem que entendemos
Em breve a língua-mãe do mundo.
Se retido o sentido de a máquina cantar um canto que todos entendem, pode-se
fazer uma analogia com a situação investigada aqui. Se “todos” sabem lidar com as
61
- Não querendo fragmentar o poema, tomando o cuidado de expor o contexto de sua primeira parte, não
transcrita aqui, cabe informar que nela Brecht deixa entrever as dificuldades de comunicação lingüística
entre os países separados das Américas pelo Oceano Atlântico.
Na segunda parte, acima, aponta a solução
para essa distância: a difusão das máquinas, que bradam o mesmo canto em qualquer parte do mundo.
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máquinas transcontinentais, os operários vêem as máquinas fabris em suas
peculiaridades. A maioria das pessoas percebe os ruídos que emitem, mas, aos ouvidos
dos que lidam com elas diretamente, esse ruído soa como canto, cuja melodia
comunica sentidos.
Esquadrinhando a inteligência prática dos trabalhadores, Dejours menciona
que sua dimensão psíquica esteja enraizada no corpo. Ajustes cruciais na organização
do trabalho e na prevenção de acidentes são possibilitados por percepções e sensações
que passam primeiramente por seu corpo.
Um barulho, uma vibração, um cheiro, um sinal visual
podem chamar a atenção do sujeito, mas antes chama a
atenção do corpo desse sujeito, desde que este tenha
vivido previamente a experiência, em uma situação
qualquer de trabalho normal. (Dejours, 2004: 282)
Trata-se de habilidade não alcançada por qualificação formal ensinada em
bancos escolares, mas desenvolvida in loco, exclusivamente durante o ato de trabalho,
justamente por ser sensibilidade decorrente da prática cotidiana, que não pode ser
inteiramente transmitida se não houver experiência concreta que a faça emergir.
O tipo de barulho denuncia a natureza do problema; quando o ruído sai do
normal é preciso ficar em estado de alerta para tomar atitudes rápidas, sobretudo de
autodefesa física. Quando se é pouco experiente na função, os operários aconselham o
estado de atenção constante e a mão já preparada para interromper o funcionamento da
máquina em momentos mais críticos, como no caso de ligá-la.
Do lado do start tem um botãozinho vermelho, qualquer
coisinha que acontece, a gente aperta ali que ela [a
máquina] para. Não é um botão de emergência, é um
botãozinho que ela sóstop na operação. Vamos supor,
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245
pra quem vai trabalhar lá eu falo: “Quando você der o
start, você fica já com a mão perto do botão vermelho
porque se acontecer alguma coisa você aperta” [...] eu já
não faço isso porque eu sei que a máquina tá boa, eu
conheço a máquina, agora pra quem tá chegando não, é
melhor não arriscar, não virar as costas pra máquina [...]
Também não precisa ser seguido [as instruções] ali, à
risca, se a pessoa fica [...] 3 meses na máquina não precisa
ficar todo dia ali, porque ela acaba conhecendo. (Jéssica,
20 anos, operadora de máquina CNC, Montadora B –
grande)
Para o operário inexperiente, o olho é o órgão quase exclusivo utilizado para
decifrar a máquina; logo, com essa limitação de sentidos ele sempre deve estar de
frente para ela. Só é permitido ao operário voltar as costas para a máquina quando a
conhece tão bem a ponto de não precisar vê-la para compreendê-la, bastando ouvi-la e
senti-la. Isso demanda experiência e convivência com as respostas da máquina em cada
situação, seja relativa à matéria-prima, ao clima, ou ao desgaste.
Dispor da capacidade de lidar em tempo real com sentidos apurados é um
atributo essencial que diferencia o ser humano da máquina. Enquanto esta
simplesmente executa operações previamente programadas, o ser humano sendo um
homo totale trabalha com a integralidade e simultaneidade dos seus sentidos, quais
sejam: visão, audição, olfato, gosto e tato. Todos o auxiliam a raciocinar e a buscar as
várias saídas possíveis para cada circunstância imprevista que surge inesperadamente
no ambiente de trabalho.
Em seu belíssimo artigo intitulado “Um robô, o trabalho e os queijos”, escrito
quando de sua vinda ao Brasil, em 1997, para participar de seminários do DIEESE,
Duraffourg apresenta análise pertinente sobre a relevância dos sentidos do operário.
Dentre outras imagens, talvez a mais sedutora das mencionadas por ele seja,
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246
justamente, da fábrica de queijos. Um engenheiro em automação narrou-lhe o seguinte
fato: fora-lhe solicitado, por um produtor de queijos, um robô, para executar o controle
de qualidade na fase de refinamento dos queijos. A encomenda foi realizada de modo
que o mecanismo resultante tivesse a precisão e a delicadeza necessárias para a tarefa.
Entretanto, mesmo funcionando perfeitamente, a clientela começou a reclamar,
acusando a perda de qualidade do produto. Buscando solucionar o problema, o
engenheiro visitou outras fábricas, onde constatou que os trabalhadores tateavam e
sentiam o odor de cada peça antes de decidir pela aprovação ou pela reprovação de sua
qualidade (Duraffourg, 1987: 3-4).
“Lá onde só se via mão e músculo, havia sentido tátil, sentido olfativo”
(Duraffourg, 1987: 4), bem como cultural
62
e profissional, enredados na complexidade
da transmissão do saber-fazer, portanto um trabalho apenas antecipável parcialmente.
Nesse passo, o robô queijeiro representava somente “trabalho morto, cristalizado na
repetição mecânica da pequena parte conceitualizável do trabalho humano” (idem).
Invariavelmente, o operário elabora pequenas e constantes melhorias na
fábrica, o que é possibilitado, em grande medida, por sua vivência diária junto às
máquinas, que lhe permite inventar e pôr em prática técnicas novas.
Conseqüentemente, os operários também gestam o aperfeiçoamento das próprias
técnicas.
Mencionando as noções de “trabalho prescrito” e “trabalho real” tratadas pelo
ergônomo Daniellou, Sato salienta que não é raro o “trabalho real” acarretar tanto
maior conforto aos trabalhadores quanto mais economia (de investimento e de gestos) e
62
- Talvez nunca seja demais ressaltar a importância do queijo na arte culinária francesa, aspecto cultural que
confere aos franceses habilidades seculares inimitáveis por movimentos cadentes da robótica.
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aperfeiçoamento do processo produtivo, contemplando assim pari passu os seus
interesses e os do capital (2002: 1148).
Essa estreita interação entre os operários e o aperfeiçoamento de técnicas pode
ser ilustrada de forma lapidar pelo caso coquelicot
63
. Trata-se de um modelo de carro
que já ocupou uma fatia significativa do mercado automotivo nacional brasileiro, cuja
montagem, paradoxalmente, em plena era da robótica, continua artesanal.
Conforme Inácio, um operário que já montou muitos carros desse modelo, a
permanência do caráter artesanal em sua montagem deve-se à incapacidade da fábrica
conseguir desenvolver uma tecnologia que substitua as manhas do trabalhador.
[A fábrica] iniciou montando “a coquelicot” [...] a
maioria das técnicas desenvolvidas [nela] foi o próprio
trabalhador que inventou [...] quando chegou a tecnologia
de ponta [...] Quando veio os carros de fora, da Ásia, do
Japão [...] [a fábrica] quis [...] tirar de linha a “coquelicot”
[...] [mas] não saiu [...] por causa da necessidade de
mercado [...] Mas desde o início [...] tem mais [do
trabalhador] na montagem desse carro do que da
fábrica, ele desenvolve muitas pequenas coisas, que
termina a empresa sabendo disso. E ela faz vista grossa
porque ela nunca desenvolveu tecnologia pra substituir as
manhas do trabalhador para montar o carro dela [...] lá
na frente, o carro saía pronto e com qualidade [...] É uma
linha esquecida. É uma área esquecida. Então acho que
[...] ela viu [...] essas manhas... [e] nem cobra muito.
(Inácio, 39 anos, montador da linha, Montadora A –
grande)
63
- Tendo em vista a opção metodológica e compromisso ético para com os entrevistados de não revelarmos
nomes de pessoas, nem de empresas e marcas, para fazer menção a um certo modelo de carro empregaremos
ficticiamente o epíteto “coquelicot”. A escolha desse nome é homenagem que calorosamente prestamos a
uma flor selvagem e delicada, de cor rubra, de beleza deslumbrante, encontrada sobretudo em meio aos
campos de trigais das regiões mediterrâneas.
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A montagem da coquelicot só é possibilitada por meio de normas criadas
pelos próprios operários. Aqui, curiosamente, parece não haver re-normalização já que
o prescrito é ainda mais inviável nesse setor, onde imperam as técnicas desenvolvidas
pelos operários. Dessa feita, o que antes fora somente gestão de problemas miúdos
avolumou-se em uma grande intervenção: a montagem completa do carro.
Portanto, sua fabricação evidencia uma situação limite, que põe às claras o
alcance e o poder das intervenções dos operários dentro do chão de fábrica. São
técnicas que foram sendo aperfeiçoadas pela maestria de suas operações inventivas e
astutas. Paulatinamente, elas ganharam espaço, tendo como conseqüência a obtenção
de uma tecnologia intransferível precisamente por estar assentada em normas práticas
gestadas pelo corpo, pelas escolhas e pela subjetividade operárias e não somente em
normas abstratas da engenharia.
5.5 Engenhoca e dispositivos: concretizando a inventividade
Prosseguindo no mesmo registro analítico, no entanto, buscando agora
conferir mais concretude ao tema das intervenções operárias, é importante explorar
outro gênero de improvisação e habilidade, de alcance significativo, expresso nos
dispositivos e engenhocas inventados pelos operários.
Trata-se de quaisquer aparelhos e mecanismos criados pela engenhosidade dos
operários, para resolver dificuldades encontradas em seu trabalho, não resolvidas pela
administração, que incomodam seu bem-estar e os impedem de atingir a meta de
produção.
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Buscando solucionar problemas referentes à organização do trabalho ou que
lhes provoquem desconforto físico ou psíquico, os operários desempenham o papel de
teorizadores, engenheiros, médicos e psicoterapeutas. Trata-se, portanto, de momentos
em que a criatividade aflora e concretamente se materializa em objetos.
Mesmo havendo desaprovação e criação de empecilhos por parte dos
engenheiros dentro da fábrica, os operários, de forma encoberta, sempre ocupam
espaço da engenharia e ainda que não sejam reconhecidos oficialmente, criam seus
inventos.
Na situação analisada, não poucas vezes são outras pessoas, os engenheiros
que assumem as glórias da criação das engenhocas operárias. No caso aferido, para
obterem outro status, mais sofisticado basta que percam autoria original e
simplesmente recebam um toque em seu layout e design; isso bastaria para, finalmente,
deixarem de ser vistos como inventos “fáceis”.
Importante, pois, colocar acento nas condições em que as engenhocas e os
dispositivos são feitos pelos operários, para tentar sentir o nível das “facilidades
encontradas. Comumente as circunstâncias em que surgem são um tanto adversas. Na
maioria das vezes, para produzirem os objetos imaginados, os que os concebem não
podem contar com a primorosa ajuda de operários de outros setores, como a
ferramentaria, já demasiadamente atarefados com suas próprias atividades. Não sendo
possível encaixar esse tipo de atividade em sua jornada de trabalho normal, os
operários inventores também têm de renunciar a seu tempo de descanso, indo até a
fábrica, aos domingos, fazer hora-extra não remunerada, para só então conseguir
materializar os dispositivos e engenhocas.
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Tem a ferramentaria lá, só que ela tá tão “sobrecarregada”
entre aspas, [que] esse tipo de trabalho já não vira
prioridade pra ser feito. Então a gente faz, a gente dá um
jeito, às vezes uma hora extra, a gente fala “A gente
precisa fazer isso aqui” [...] A gente já combina “vem
domingo fazer isso aí”, a gente vem no domingo, faz entre
a gente ali. (Josi, 22 anos, montadora, Montadora B –
grande)
A fabricação desses dispositivos é realizada às ocultas, não por ser proibida,
mas porque a empresa não lhe dá o apoio formal e financeiro. Para ter o apoio patronal,
essas práticas têm de passar antes pelo crivo da morosidade burocrática: montagem de
projeto por escrito pelos operários, aprovação pela engenharia e concessão de
proventos, o que os faz perder o estímulo. Outra razão para o desânimo é a forma
deplorável de pagamento do invento.
[Tem] todo um processo deles terem que chamar um outro
setor pra vim avaliar, tem um engenheiro pra vim... –
Depois tem outro pra aprovar, outro para liberar a verba. –
É complicado [...] tinha plano de sugestões [...]
antigamente [...] você tinha uma porcentagem dos lucros
[...] hoje existe, mas você ganha vale para o Extra
[supermercado]. [...] Então, […] desincentivou mais. –
[…] o pessoal fala: “Eu vou dar idéia pra empresa lucrar
nas minhas costas?” (Zélio, 23 anos e Josi, 22 anos,
montadores, Montadora B – grande)
Não podendo contar com o apoio da fábrica e nem da ferramentaria,
novamente os operários fazem uso de uma arma muito eficiente: a solidariedade.
Juntos e empenhados em resolver um mesmo problema, eles amealham esforços e os
conhecimentos de cada um e acabam materializando a criação dos dispositivos.
A gente deu sorte lá porque tinha um rapaz que tinha
experiência em soldagem, ele trabalhou com isso, ele
tinha feito Senai, então ele sabia, então [...] a gente
começou a fazer. (Zélio, 23 anos, montador, Montadora B
– grande)
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Além desses obstáculos, eles ainda enfrentam a penúria de material. Não
dispondo de materiais apropriados, têm de recorrer à criatividade e reaproveitar as
sobras do que encontram em seu próprio setor e nos dos seus companheiros. Prestam,
assim, louvável contribuição ao meio ambiente, reciclando e evitando o acúmulo de
entulhos.
Nessas condições, portanto, variam os tipos de materiais utilizados pelos
operários em suas invenções, conforme o que usam no dia a dia: aço, ferro, borracha,
plástico, isopor, camurça, fita crepe, esparadrapo.
A metodologia de trabalho dele [operário] é ele mesmo
que tem que se virar, então ele busca com esses
dispositivos. Então, uma ferramenta, uma máquina aí até
que se desenvolva [pela própria fábrica] uma técnica
melhor [...], ele vai buscando, ou esparadrapo, ou isopor,
borracha pra não machucar muito a mão, ele vai
desenvolvendo várias coisas ali na ferramenta. (Inácio, 39
anos, montador da linha, Montadora A – grande)
Tem essas coisinhas, essas gambiarras que a gente faz, às
vezes o soquete
[64]
tá gasto, então a gente põe aquela
camurcinha pra ele entrar mais e durar um pouco mais.
(Zélio, 23 anos, montador, Montadora B – grande)
A bateria, tem umas maquininhas lá que são tão velhas
que não tem mais a travinha que segura, você vai lá põe a
fita crepe. (Josi, 22 anos, montadora, Montadora B –
grande)
Na falta [...] de chapelona a gente tem que colocar fita...
crepe. Porque a fita crepe dá pra substituir uma chapelona
pra não ir sujeira massa pra não prejudicar na montagem
final [da carroceria do carro]. (Celestino, 36 anos,
preparador de carroceria, Montadora A – grande)
64
- Soquete é uma ferramenta utilizada para reposição e extração de porcas.
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Diante das falas acima, é possível notar que os operários não se deixam abater
pela ausência de material adequado para seguir sua tarefa com êxito; eles são
incansáveis e industriosos criadores de mecanismos solucionadores de problemas
miúdos, porém constantes, que estão presentes no chão de fábrica.
Entrando propriamente no campo dessas invenções, será trazida a seguir uma
breve mostra do arsenal desse gênero de objetos, criados pela habilidade do
trabalhador. Eles são tão presentes no ambiente fabril que a conversa com um operário,
o Leomar, que permanece na mesma fábrica há 39 anos, permite concluir que, se todas
essas criações fossem pintadas em cores diferentes, a fábrica perderia sua cor cinza e
ganharia traços fortemente carnavalescos, pois ela está ancorada sobre essas
“pequenas” invenções. “Na oficina [...] tudo lugar que você olha tem coisa que eu fiz,
que eu adaptei” (Leomar, 60 anos, ajustador mecânico, Auto peças C – média).
Muito embora o transporte de materiais pesados para dentro da fábrica seja
feito pelas máquinas empilhadeiras, que desempenham função crucial estocando-os em
depósitos, é o operário quem, muitas vezes, tem de retirá-los para fazer a reposição na
linha de montagem, como é o caso de Zélio. No decorrer de um dia, semanas e meses,
o esforço despendido é tamanho que os operários acabam por desenvolver meios para
minimizar seu sofrimento, inventaram, então, uma engenhoca:
as embalagens vinham de empilhadeira, tirava do
caminhão [e] ficava num pulmão fechado, [como] era
chamado, que era onde ficavam estocadas as peças [em]
[...] caixas fechadas. Aí acabou uma peça na linha, você ia
lá trocar a caixa: tira a vazia e põe a cheia. Vinha a caixa
no chão, [...] às vezes precisava deslocar a caixa, então
tinha que empurrar, fazer força. Aí na nossa área a gente
começou a fazer uns carrinhos, lá tem bastante tubo de
aço, então a gente juntou um pessoal lá e fizemos um
carrinho de estruturinha de aço, colocamos umas
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rodinhas e ficou mais fácil pra locomover essas caixas.
(Zélio, 23 anos, montador, Montadora B – grande)
Dentre os dispositivos criados, os suportes estão entre os mais presentes no
cotidiano fabril. Em geral, tem a função de apoiar ou suportar alguma ferramenta ou
peça demasiadamente pesada ou desajeitada, que, se continuasse sendo segurada
diretamente pelo trabalhador, lhe causaria desconforto, dor e até doenças.
Tem muita maquininha que cê usa, por exemplo essa junta
[dos dedos da mão] aqui oh é maior do que essa, as vezes
tá redonda, eu trabalhei muitos anos, não fui trocado [em
sistema de rodízio], ninguém ia pro serviço na época, era
no começo. Eu gostava e não percebi, trabalhava com
maquininha pneumática e tinha que apertar ela, é um
revolver pra apertar o parafuso, [...] apertava ela 1.400
vezes por dia [...] começou a doer [os dedos] com o
tempo [...] Quando eu chegava no serviço e começava a
doer, então péra aí! O que eu fazia? Eu colocava a
maquininha lá parada num canto, eu próprio arrumei um
dispositivo [que] ficava no gatilho dela, então em vez de
usar o dedo assim, eu apertava ela com a mão, botei um
suporte na mesa e prendi ela [máquina pneumática].
Falava: “em vez d’eu levar ela no parafuso, vou levar o
parafuso até ela”. Aí eu colocava o parafuso lá e
apertava, ao contrário. Então são coisas que você vai
desenvolvendo [...] a gente vai auxiliando e vai melhorado
a dor da gente. (Inácio, 39 anos, montador da linha,
Montadora A – grande)
Em geral, antes o operário encontra um problema nos equipamentos e depois
inventa uma solução para ele. As invenções têm, portanto, acima de tudo, caráter
prático-funcional; são feitas com o intuito preciso de combate às dificuldades
existentes no cotidiano fabril, por se traduzirem pelo mal-estar do corpo e dos
pensamentos do operário. O trabalhador, atingido pela dor tendo de continuar seu
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trabalho a despeito do que sente, inventa um outro jeito para cumprir sua atividade, em
que não a sinta.
Após visita à Renault-Billancourt, Schwartz observa que, deparando com
certas dificuldades em seu posto de trabalho, os operários praticam a “recomposição
imprevista das tarefas a partir das características biológicas singulares de cada um”
(1988: 457).
O porte físico do operário, especialmente sua estatura, é fator gerador de
obstáculos para o estabelecimento da altura adequada tanto de bancadas quanto de
máquinas. Vários são os reclamos atinentes a esse aspecto. Um deles, citado por João,
apelidado de “Chocolate”, refere-se a um colega seu, alcunhado de “Amendoim”, cuja
altura de 1,50 metro, que não alcançando os botões da máquina para operá-la, teve de
requisitar cuidados especiais. Um estrado de dez centímetros eliminou o problema.
Agora, ele só precisa realizar um esforço a mais, se comparados com os outros
operários: tem de subir ou descer um degrau todas as vezes que tem de operar ou
deixar sua máquina. O diferencial vantajoso dessa adaptação é que foi feita em uma
máquina de uso exclusivo desse operário, logo não acarretou problemas para
trabalhadores de estaturas diferentes da sua. Esse tipo de dispositivo seria inviável em
um sistema de rodízio de máquinas entre operários de diferentes estaturas, já que
haveria necessidade de removê-lo a cada troca de turno.
Encontram-se também situações inversas: operários demasiadamente altos
realizando atividades em condições completamente desproporcionais a sua estatura, o
que acaba por levá-los a contrair doenças ligadas às articulações e às vértebras.
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Contudo, é preciso notar que a fábricao apresenta apenas situações trágicas;
também há circunstâncias engraçadas que, de certa forma, ironizam a respeito das
condições de trabalho. É o caso contado por João, vivenciado por um operário de 1,75
metro, cujo apelido é “Porquinho”. Para operar uma máquina de usinagem, ele tinha de
fazer curvatura dorsal expressiva a fim de alcançar o seu painel; intrigado e indignado
com o exagero da displicência ergonômica, registrou denúncia junto aos representantes
da segurança do trabalho. Chegando ao posto de trabalho em questão para averiguar o
fato e tomar as providências cabíveis, depois de obterem informações dos operários do
setor, esses representantes foram surpreendidos, quando constataram que, na realidade,
a dita máquina era a que fora adequada a “Amendoim”, em férias naquele momento.
Embora esse caso tenha certo tom cômico, uma vez que a interpretação dada
por esse trabalhador à adaptação feita para atender especificidades físicas de outro, foi
de haver falha ergonômica na máquina que fora designada, não se pode perder de vista
o desrespeito de que foi vítima, uma vez que, sendo substituto, teve de trabalhar
sentindo desconforto e dor durante uma jornada inteira de trabalho. O fato é que a
fábrica, ao escolher operário(s) substituto(s), em geral não considera as condições de
trabalho que ele(s) encontrará(ão). Já o revezamento acordado pelos próprios operários
leva em conta o compartilhamento e a adequação de dispositivos entre eles:
“geralmente, quando você faz isso (adaptação em posto de trabalho), é porque o
camarada que tá revezando com você tem a mesma estatura” (João, 53 anos, operador
de célula, Montadora B – grande).
É importante notar que essa alteração específica dos estrados para adaptar a
altura do maquinário à do operário, especificamente contada por João, trata-se de
Tese de doutorado – Sociologia - FFLCH/USP
Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
256
construção não diretamente feita pelos próprios trabalhadores, mas pela carpintaria da
fábrica, todavia seguia suas recomendações, que fora pensadas por eles.
Ainda ligado à questão da altura, é bom comentar que Jussara passou por fato
da mesma natureza. Para realizar a pré-montagem de peças, ela precisava usar uma
ferramenta de ar comprimido, que, segundo prescrição das normas de segurança, deve
ser localizada em regiões altas da parede. Encontrando dificuldades para alcançar a
ferramenta, a operária tinha de dar saltos estendendo os braços na direção a dela. O
freqüente incômodo doloroso que esse exercio lhe causava levou-a a reclamar pelo
rebaixamento da ferramenta, que, a partir de então, foi encaixada em um novo
dispositivo, uma carretilha, de onde ela passou a poder puxá-la sem esforços.
Voltando aos dispositivos efetivamente produzidos pelos operários, há
também o gênero dos calços e dos encaixes, que ocupam lugar decisivo no chão de
fábrica e têm como função melhorar a posição e o equilíbrio das ferramentas.
[Sobre a] colocação de um dispositivo: às vezes você tem
uma mesa que coloca os dispositivos e [...] ele fica plano,
só que pra você trabalhar plano [...] pra medir uma peça
não fica bom, aí você vai lá levanta ele, coloca um
calcinho por trás ele fica na posição adequada. Às vezes
um... pra colocar também uma ferramenta numa
bancada, a ferramenta fica solta, um passa, bate e
derruba, outro passa e derruba, aí você pega e faz um
quadradinho dentro daquele, naquele quadradinho você
faz o encaixe. Aí você coloca a ferramenta, [que] fica
encaixadinha ali dentro, a pessoa bate e ela não cai. São
melhorias que você faz por si mesmo [...] Então isso daí a
gente faz! Coisinhas simples... (João, 53 anos, operador
de célula, Montadora B – grande)
Tarefa árdua eleger um dispositivo em meio à profusão das que foram criadas
por Leomar, durante sua longa trajetória de quase 40 anos de trabalho fabril.
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257
Decidimos então, escolher um tipo de dispositivo diferente daqueles apresentados
pelos outros operários. Trata-se de um reservatório, que foi criado para armazenar o
óleo, que escorre da fresa, sujando o chão e tornando possíveis os acidentes.
Principalmente nessa fresa, ela vem com um problema
[...]: vaza muito óleo. Por exemplo, tava vazando óleo,
então eu adaptei, eu fiz uma espécie de uma bandejinha
com um bujãozinho. Então, quer dizer que, ao invés do
óleo cair no chão, cai naquela bandejinha, quando enche
a bandejinha, eles colocam... um negócio lá pro óleo cair
lá dentro e aquele óleo vai, leva pro lugar certo pra ser re-
utilizado de outra forma ou jogado fora. (Leomar, 60
anos, ajustador mecânico, Auto peças C – média)
Calço que possibilita medir melhor uma peça, encaixe para evitar a queda de
uma ferramenta; reservatório para evitar o derramamento de substância: três simples
gêneros de dispositivos ou três consideráveis formas de iniciativas operárias? A
envergadura de tais invenções, quando repercutem em toda a fábrica, desperta atenção,
admiração e interesse, além de exigir que se reflita a respeito.
O sentido prático dessas medidas consiste, tanto no caso do calço quanto do
reservatório, em conter o desperdício de material; controlar a qualidade da peça e evitar
acidentes de trabalho, provocados seja pela queda de alguma ferramenta/peça ou
potencial ferimento dos trabalhadores atingidos, seja impedindo escorregões perigosos
no óleo derramado. Medidas de profundo comprometimento com a importância do
espaço em que trabalham, tanto pelo que nele produzem quanto pelas vidas nele
envolvidas. São atitudes que, somadas às de centenas de outros trabalhadores,
garantem o funcionamento equilibrado da brica, mas que se forem mensuradas a
partir dos atos de um operário isolado, são avaliadas como “coisinhas simples”.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
258
No dia a dia, o simples torna-se essencial para que o trabalho prossiga. É só a
intervenção persistente e diária do trabalhador que torna isso possível, na medida em
que, ao mesmo tempo, exerce sua atividade e faz projeções e previsões para o bom
andamento das tarefas a executar, considerando sua saúde e a dos colegas, a qualidade
do produto sob sua responsabilidade e a produtividade do conjunto.
Práticas simples, pequenas, insignificantes, infinitesimais, sim, porém ativas e
contínuas; logo, determinantes não apenas no processo produtivo, mas também na vida
e na subjetividade dos envolvidos. Seguindo a perspectiva de Schwartz, por mais
humilde que seja, um “gesto industrioso” sempre questiona o aprisionamento e a
padronização da atividade humana, mostrando que o “aparente automatismo dos usos
de si” é, além de ilusório, “não vivível” e “impossível” para a própria vida (1988: 808).
Todas essas invenções constituem um rol significativo de dispositivos que são
incorporados pela fábrica; são frutos das sugestões e obras dos operários, por sua vez
brotadas de suas experiências no cotidiano fabril.
Antigamente você montava determinadas peças não tinha
um dispositivo pra você encaixar a peça [...] na posição
direitinho pra você poder usar a ferramenta
adequadamente, [...] agora já tem. Agora você vai montar
uma determinada peça tem lá um dispositivo que você põe
ela, [...] colocada certinha, você aperta [...] direitinho sem
danificar a peça, sem danificar o seu braço, entre aspas
[...] (Jussara, 30 anos, montadora, Montadora B – grande)
São coisas [dispositivos] que você vai desenvolvendo.
Depois mais tarde a própria fábrica adota. Então ela
vem, chega uma hora que ela vê, o pessoal da
ferramentaria e engenharia, [...] aquilo ali e fica [...]
analisando e vai desenvolvendo dispositivo. (Inácio, 39
anos, montador da linha, Montadora A – grande)
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259
Entrevê-se, portanto, que, ao longo da convivência operária na fábrica, a
melhoria de qualidade de sua própria vida é engendrada e favorecida, graças a seu
esforço, inventividade e compromisso.
Cabe ressalvar que, quando a fábrica investe em gastos dessa natureza,
atinente ao fator humano, busca obter alguma contrapartida. Não é por compaixão ou
cuidado pelos operários, mas por ser uma forma de, simultaneamente, garantir e, às
vezes, acrescer a produção e a qualidade de seus produtos.
Verossímil ou não, o fato é que os operários alegam o desconhecimento da
fábrica em relação a um arsenal significativo de suas invenções. Essa parece ser reação
relativamente confortável da direção da fábrica, que, na visão de seus trabalhadores se
exime de arcar com os custos de inventos que julgue pouco lucrativos, como já foi
apontado anteriormente.
Tem certas mudanças nas máquinas, no dispositivo local,
que o trabalhador [...] fez há 10 anos, e a firma não sabe.
Ele próprio faz muita técnica lá dentro que a empresa
nunca descobriu; ela nem sabe por que ela não tem gente
pra ficar vigiando aquilo ali. Às vezes você [...] acha que
é insignificante, [mas] [...] é significante pra empresa, e
ela nunca aprendeu aquilo (Inácio, 39 anos, montador da
linha, Montadora A – grande)
Muito embora também assinalem que esse desconhecimento dos seus inventos
deriva da falta de pessoal que vigie em detalhes o que ocorre, tal vigilância não é
efetivada em razão da desimportância atribuída a eles. Afinal, tornar públicas
invenções construídas precariamente implicaria ter de assumir ela mesma os custos de
enquadrar esses dispositivos às normas legais.
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260
Com ou sem o apoio financeiro da fábrica, os operários seguem imaginando e
criando. Os dispositivos que elaboram, embutidos nas máquinas ou nas ferramentas,
acabam também por exigir e criar novas normas, pois trazem consigo a necessidade de
colocar em prática formas inovadoras de exercício de seu trabalho. Tais normas dizem
respeito tanto à operacionalização propriamente dita da atividade e aos procedimentos
de segurança quanto à qualidade dos produtos e, mesmo, da convivência social.
As “atividades de formiga”
65
que fazem, alicerçam a estrutura de
funcionamento da indústria, pois constituem adaptações cotidianas e persistentes que
têm por objetivo dar suporte mais sólido das suas atividade. São muitos os problemas
encontrados no dia a dia sanados pela inteligência operária, inteligência que até agora
nenhuma máquina ou programa conseguiu suprir.
Longe de simplesmente executar tarefas, com os movimentos prescritos por
outros, quando está trabalhando, o operário usa sua inteligência conceitual e artesanal
para melhorar o ambiente que o circunda.
Não pode ficar só olhando aquilo lá [...] eu gosto de
analisar as coisas [...] De pensar de uma forma melhor,
sempre [...] se eu faço um serviço, eu sempre tô pensando
numa forma pra melhorar aquilo. (Leomar, 60 anos,
ajustador mecânico, Auto peças C – média)
Criando dispositivos e engenhocas, os operários acabam por dominar na
prática, de forma vultosa e apreciável, os segredos da engenharia. Como M. Durand
afirma: “todos nós [operários] somos mecânicos-engenheiros em potencial” (1991: 88).
Brincando de construir gambiarras acabam por ser engenheiros práticos.
65
- Cf. Certeau, 1994: 40.
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261
5.6 Dispositivos falhos
Nem todos os dispositivos urdidos pelos operários e mesmo pela fábrica são
utilizados. Existe uma gama de situações que levam à não concretização de outros
dispositivos, por serem considerados disfuncionais, depois de construídos ou mesmo
antes, quando são idealizados.
Há certas categorias de dispositivos em que os operários não podem intervir.
Por vezes, implicam processos anteriores a sua atuação ou não dispõem de meios e
espaço para testar e efetivar suas idéias.
Essa situação deixa clara a incompletude das noções de autonomia e liberdade
propiciada ao operário, pelas novas organizações do trabalho, pois, empregando termo
usado por Fisher, trata-se de uma “liberdade intersticial” (1980: 186), em grande
medida a serviço da própria produção.
Nesses casos, eles vêem-se premidos a comunicar sua sugestão aos dirigentes
e, muitas vezes, além de desautorizados, também têm suas idéias menosprezadas.
Tem uma peça que eu trabalho [...] as varetas de óleo [...]
do balancim, eu já pedi várias vezes pra ser adaptada [...]
Ela é usinada, feita dentro da [montadora] [...] ela vem
numa caixa e como [...] O contato da peça com ela, ela já
começa a oxidar, então [...] ela tem que ser banhada com
óleo [...] Eu fico com a luva constantemente cheia de óleo.
Por que? Porque quando você vai enfiar a mão na caixa
pra pegar as varetas, [...] tão nadando no óleo. Então eu
pedi [...] umas peneiras […] que deixasse já nas caixas
[…] então [...] eu pedi, ninguém tomou conhecimento.
(Jussara, 30 anos, montadora, Montadora B – grande)
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
262
As razões fornecidas por Jussara para a introdução da peneira para escoar o
excesso de óleo eram: evitar manchas nas peças, redução do gasto de óleo e economia
de luvas. Trocando em miúdos, são justificativas pautadas não somente pela busca por
maior conforto, pela diminuição da necessidade de tocar peças sujas de óleo, mas
também pelo objetivo de racionalização dos custos da empresa. No entanto, muito
embora jamais tenha sugerido a eliminação do uso do óleo, sua idéia foi simplesmente
descartada, os gestores da empresa alegam que a ausência do óleo provocaria a
oxidação das peças.
Por outro lado, também os trabalhadores assumem atitudes de desprezo com
relação a alguns dispositivos desenvolvidos pela fábrica. Duas categorias dessa ordem
foram mencionadas quando do nosso contato: a dos dispositivos inúteis e a dos
dispositivos em desuso.
Na primeira categoria, a dos dispositivos sem utilidade, estes são
desenvolvidos pela fábrica, sem a participação operária, e enviados ao setor de destino,
mas, por razões diversas eles não são utilizados. Dentre os motivos para isso, foram
destacados: a) a já existência de outro dispositivo feito pelos trabalhadores, o chamado
“quebra-galho”, por sinal mais eficiente do que o desenvolvido pelos engenheiros, e b)
a transmissão oral de experiência que, com o passar do tempo, acaba não aglutinando
os novos dispositivos implantados como parte da operacionalização da atividade. As
citações que seguem exemplificam o que foi dito:
Às vezes ela [a fábrica] lança um dispositivo, e manda
pra’quele setor, a gente nunca usou, a gente usava algum
quebra galho lá atrás [...] E vai pra 4, 5, 6, 10 anos. [...] E
tá ali no quebra galho. Quebra galho mesmo. (Inácio, 39
anos, montador da linha, Montadora A – grande)
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263
Uma pecinha [...] que tinha lá, meu deus, eu achava
assim horrível de apertar aquilo, escapava da mão. Aí
teve um dia que eu fui cobrir o posto de uma [...] pessoa
[...] que [...] tinha faltado. Aí veio uma outra pessoa
trabalhar no meu posto, [...] ela foi montar essa peça e
não montou lá, montou num outro lugar, eu não conhecia,
tava lá o dispositivo, eu não sabia pra que servia, ela
colocou lá, apertou, eu: “ah! pra isso que serve!” [...] [A
pessoa que me ensinou] Não usava, eu acho que ela nem
sabia... (Josi, 22 anos, montadora, Montadora B – grande)
Necessário, pois, sublinhar que, no caso citado por Josi, o dispositivo foi
considerado sem utilidade, não por ser desimportante ou já substituído por outro, mas
simplesmente por ser desconhecido por alguns operários, como aquele que a ensinou a
trabalhar naquele posto de trabalho e ela mesma.
A segunda categoria, a de dispositivos em desuso, refere-se a invenções
ultrapassadas pelo tempo. Comparados com a primeira categoria, o diferencial é que
sua criação foi obra justamente dos operários e de suas necessidades e, paulatinamente,
mudanças de maquinário e a própria experiência, levaram-nos a descartar o invento.
Uma ilustração desse segundo tipo está na caixinha de peças levada pelo
trabalhador durante o percurso em que segue o movimento da esteira. A caixinha de
peças foi uma adaptação realizada pelos operários para resolver o problema do
descompasso entre o movimento da esteira e a localização das peças na estante. Porém,
com o passar do tempo eles passaram a controlar com mais precisão o seu próprio
tempo de montagem de modo a fazê-lo coincidir com a velocidade da linha. Em outras
palavras, os operários passaram a acompanhar e a manter cada peça da esteira paralela
e próxima à peça depositada na estante. Então, o dispositivo da caixinha passou a não
mais ser usado, pois a prateleira com peças estava ao alcance de suas mãos.
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264
No caso, eu teria que andar com aquela caixinha das
peças, só que como eu mantenho o meu trabalho perto de
uma das prateleiras, onde fica a maioria das peças, eu
largo a caixinha de lado. Eu sinto mais liberdade, eu não
fico arrastando a caixinha, eu já viro, já pego a peça, já
coloco de volta [...] a caixa é justamente pra gente manter
as peças todas juntas ali, pra tipo: vai subindo o serviço
você já tá levando as peças com você. Mas como a linha
tá numa velocidade determinada, eu consigo manter o
meu serviço ali perto, não tem necessidade d’eu ficar indo
com a caixinha. [...] Mas até a caixinha foi uma
adaptação que a gente fez e essa de pegar direto é
adaptação da adaptação. (Valéria, 20 anos, montadora da
linha, Montadora A – grande)
Diante do universo que nos foi possível acessar, resta ainda uma terceira
categoria de dispositivos falhos, a dos dispositivos reprovados. Submetidos a testes
iniciais, seus resultados não convenceram e repousam no vazio, sem resolver o
problema que os fez surgir e incomoda o operário que, comumente, continua
arquitetando alternativas ainda que no plano das idéias.
A minha máquina [...] fura, [...] no final do furo, ela cria
uma rebarbinha. [...] ela sai da minha máquina e vai pra
uma furadeira manual, não sou eu que opero a furadeira,
[...] pra tirar essa rebarbinha dela [...] Então [...] eu pensei
assim: tirar a peça e virar ela ao contrário e escarear ali
logo na máquina [...] só que também não deu certo. Eles
tão pensando em outra coisa, em uma ferramenta nova.
(Jéssica, 20 anos, operadora de máquina CNC, Montadora
B – grande)
Com base nessas categorias construídas, simplesmente como ferramental de
análise, nota-se que o fato de os dispositivos caírem em desuso à medida que o tempo
passa é algo inerente à própria história dos mecanismos, cuja criação resulta de
demanda, que, superada, acaba por abortá-los. Trocando em miúdos, esse é um
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265
processo “natural” de término da utilidade dos mecanismos, não derivando, portanto,
de fatores que exijam correção para evitá-lo.
Já no que tange aos dispositivos sem utilidade, é possível dizer que essas
espécies falhas resultam de problemas de comunicação. A sugestão da peneira que não
foi nem mesmo discutida com a operária, a introdução de dispositivo quando já havia
um “quebra-galho” funcionando de forma mais eficiente, a manutenção de um
dispositivo não acompanhado das devidas instruções de uso, todas essas situações
mostram a necessidade de que sejam estabelecidas comunicação e troca de informações
entre operários e gestores da fábrica, para haver algum acordo e superação das falhas.
5.7 Deixar a própria marca
A comunicação é uma das formas utilizadas pelos seres humanos para
alcançar a visibilidade, não necessariamente do seu corpo, mas utilizando-o como meio
de transmissão de suas escolhas, histórias e valores.
Não é incomum encontrar operários, mesmo de grandes fábricas, que fazem
esforço para deixarem sua marca sobre os objetos que fabricam. Com grande talento
poético, Certeau descreve as práticas criativas dos trabalhadores que, aproveitando as
sobras da fábrica, fazem artes para si:
com suas máquinas e graças aos seus resíduos, pode-se
desviar o tempo devido à instituição; fabricar os objetos
textuais que significam uma arte e solidariedades; jogar
esse jogo do intercâmbio gratuito, mesmo que castigado
pelos patrões e pelos colegas, quando não se limitam a
“fechar os olhos”; inventar os traçados de conivências e
gestos [...] subverter assim a lei que, na fábrica científica,
coloca o trabalho a serviço da máquina e, na mesma
lógica, aniquila progressivamente a exigência de criar [...]
(2004: 90).
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266
Indagado sobre possível identificação com sua função, propiciada por seu jeito
de trabalhar, o montador Pablo confirma que o fato de dispor de espaço para exercer
sua atividade conforme o jeito que considera melhor para si mesmo torna-o mais
identificado com a sua função.
Sua identificação com seu modo de trabalhar não reside somente em
elementos abstratos e invisíveis, como o controle do tempo, o ritmo do movimento, a
seqüência de montagem e também não se refere à criação de mecanismos, como
engenhocas e dispositivos. Não se trata de elemento funcional visando diretamente à
produção. Pablo sustenta uma forma de identificação um tanto particular, porém não
fora do comum. Ela é gestada da necessidade que o ser humano tem de se diferenciar
das coisas, mas por intermédio das coisas; da necessidade de se afirmar como um
animal sim, porém emocional. Essa necessidade pertence ao mundo sensível da arte.
Eu... acho que eu me identifico mais [...] acaba ficando
mais parecido com as coisas que eu costumo fazer [...] até
quando [...] eu tou bem disposto [...] Até memo [sic]
brincadeira [...] voacaba fazendo em cima do [...]
câmbio [...] então eu faço dentro da carcaça, porque [...]
ninguém vai ver, vai acoplado no motor [...] Ficava um
espaço vago assim na carcaça, aí eu ficava escrevendo no
negócio [...] Eu escrevo um monte de coisa, tipo: verso
que eu gosto [...] pedaços de oração [...] Só que eu
escrevia tudo junto, com a letra tudo igual e sem separar,
aí quando chegava na linha, todo mundo ficava tentando
ler, aí o pessoal: “Oh, o que que você escreveu aí no
cambio?” [...] “Eu não posso dizer, se eu disser perde a
graça”. Aí que eles ficavam tentando ler [...] (Pablo, 23
anos, montador, Montadora B – grande)
Escrever versos e frases bíblicas no interior do câmbio
66
foi uma forma
encontrada por Pablo para expressar-se, reafirmando sua subjetividade e negando o
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
267
papel de simples reprodutor de objetos-massa. A inscrição de frases nas peças torna-as
singulares, não por um capricho do operário em relação ao objeto, mas em relação a si
próprio. Com esse ato, o operário busca demonstrar o que é. Por pequena que seja, a
singularização que as escolhas de frases possibilitam e representam alcança a
posteridade, transportada na peça que os caminhões carregarão continente afora.
Arendt considera a poesia como a arte mais humana e menos mundana, que
detém sua durabilidade por meio da linguagem e sua recordação pela memória viva.
Todavia, embora sendo pouco mundana, para perdurar ela precisa ser escrita, tornar-se
tangível em coisas para não perecer (Arendt, 1987: 183). É nesse prisma que Pablo
registra seus versos em linguagem escrita, não para essa arte em si perdurar, mas para
ele mesmo perdurar por meio dela.
Examinados mais detidamente, os critérios que ele utiliza para escolher as
sentenças que registra nos câmbios, demonstram algo curioso: as frases de cunho
religioso que escreve neles vêm questionar sua postura atéia. Diante da contradição,
Pablo reage de súbito desapontado e inconformado com a observação:
Não, não! Não é isso! É só uma frase assim, tipo: tem
frase que eu acho bonita, não que eu acredite tal! Mas tem
frase que eu acho legal, acho bonita. Aí eu colocava [...]
(Pablo, 23 anos, montador, Montadora B – grande)
Como se percebe, ele justifica a escolha das frases pelo critério da estética e
não da ideologia; não são, portanto, sentenças nas quais ele acredita, mas frases que
admira pela beleza, o encadeamento das palavras, quaisquer que sejam os sentidos
portados por elas.
66
- Cf. anexo 3.
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Percebe-se aí um valor diferenciado conferido à escrita, sua importância
desvinculada da mensagem em si; no caso a primazia é dada ao papel de
comunicadora de feitos entre seres humanos. Comunicar não o sentido do que é
escrito, mas o sentido que o ato da escrita pode deixar manifesto, fazendo com que o
leitor pense a esse respeito. Não se trata de uma simples brincadeira de provocar a
decifração de palavras, mas de deixar expostas marcas de seres racionais e emotivos
que precisam de visibilidade e de singularidade, por trás das peças aparentemente
idênticas.
Ver os caminhões transitarem pelas ruas e imaginá-los sua obra, sobretudo,
marcados por frases que brotaram de suas mãos e de sua escolha, leva Pablo a um
estado de grande satisfação.
Cada um [câmbio] tem sua marca registrada. [O caminhão
vai passando e eu penso:] será que eu escrevi nesse? Eu
fico imaginando [...] um dia parar na oficina e os caras
tiverem desmontando um câmbio e eu pegar o câmbio lá,
e o escrito ali nas frases e escrito o meu nome. Nossa! Eu
montei, realmente! (Pablo, 23 anos, montador, Montadora
B – grande)
Os sinais registrados no câmbio vêm testemunhar seu trabalho, parecem
necessários para fazê-lo acreditar que ele mesmo o produziu. É a prova inquestionável
do orgulho que sente em deixar parte de sua singularidade marcada no campo do
visível.
Fisher nota que atividades desse gênero, como marcar, construir fronteiras ou
colecionar objetos na fábrica, deixam traços de cada um e criam pontos de referência
no espaço, de tal modo que, por meio delas, o “espaço se inscreve na personalidade do
indivíduo como um laço de identidade” (1980: 181). Marcar objetos de sua produção é
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um meio de afirmação de si, pois o objeto marcado por seu criador expressa o vínculo
afetivo entre o sujeito e a sua obra.
As inscrições poéticas e religiosas feitas por Pablo também estão presentes nos
paletes, embalagens de madeira que transportam os câmbios. Ele dá preferência
àqueles advindos de fornecedoras e que a elas retornarão com suas inscrições, para
atiçar a reflexão dos operários a respeito.
O operário marca os objetos que fabrica como se eles fossem uma obra de
arte, e, de certo modo, sente-os dessa forma, pois deposita neles suas qualidades de
autor singular, uma vez que ninguém trabalha igual a outrem. Assim, ele “ganha um
espaço, assina aí sua existência de autor” (Certeau, 2004: 94).
Destacando a impossibilidade de os métodos oficiais apreenderem e
reproduzirem a precisão e a variabilidade dos gestos astutos dos operários, de forma
lapidar, um operário, apresentado por Oddone, Re e Briante, sublinha: “mesmo que o
patrão, observando os gestos do operário e a harmonia de seus movimentos, roube
certa quantidade de suas astúcias, será impossível esgotá-las inteiramente” (1981: 65).
O caráter singular do trabalho também foi mencionado por Alex referindo-se à
atividade de pintura de carro. Ele destacou tratar-se de um trabalho artesanal, que cada
operário realiza de forma particular e inimitável. A ênfase dada por Alex para a
singularidade dessa atividade ganha tal envergadura que ele reporta a impossibilidade
de documentar sua operacionalização.
Isso [maneiras de trabalhar] seria uma coisa que não seria
documentada, não seria uma coisa que pudesse ser
registrada [...] pelo menos no processo de vedação [e
pintura] do carro [...] a percepção de como pode ser feito
o carro, a maneira de cada operador poder fazer é muito
sutil [...] Pintura [...] É uma massa, você normaliza, é um
trabalho artesanal. Vai pintar a porta, o cara tem um
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jeito, ele tem uma jogada de braço pra conseguir fazer.
Os pintores, eles têm uma habilidade pra poder fazer isso.
Por que? Porque uma pistola, ela abre um leque, imagina
a tinta saindo nessa posição, você não pode parar no meio.
Se você parar aqui, aí vai ter mais tinta nessa região, vai
formar uma mancha, um escorrido. O pintor vai ter [de]
conhecer o perfil da porta [...] Então inconscientemente
ele vai fazendo esses movimentos [...] se torna uma
característica do pintor. Não é à toa que todo pintor ele
tem uma assinatura, ele assina o carro [...] (Alex, 22
anos, analista de processos de produção/ex-preparador de
carroceria, Montadora A – grande)
O jeito do pintor está gravado na textura do carro que pinta, pintura tão
singular que traz a marca do seu artista. Pode-se interpretar a necessidade da assinatura
do pintor como um controle feito pela fábrica, para saber exatamente quem cometeu
eventuais falhas. Certamente isso é fato
67
. Porém, isso não retira da assinatura sua
áurea artística, pois evidencia a inexeqüibilidade estética de um pintor conseguir
reparar uma incorreção cometida por outro.
Todo o processo de atribuição de características subjetivas do operário aos
objetos que fabrica acarreta realidade gestada por trabalhador-sujeito e não por
trabalhador-massa.
A orientação teórica desta tese assenta-se na perspectiva abordada por
Canguilhem, que confere à noção de sujeito a experiência do indivíduo normativo. Le
Blanc, um grande especialista em Canguilhem, apresenta de forma esclarecedora a
constituição do sujeito no trabalho:
O sujeito é [...] o movimento da normatividade social. O
indivíduo se torna sujeito quando ele acresce, na
sociedade, seu poder de viver, quando ele produz novas
possibilidades que interrogam a individualidade inicial
67
- Cf. Oddone, Re e Briante, 1981: 135.
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[determinada pelos outros] [...] A variedade de normas
individuais, conseqüência de uma normatividade
essencialmente inventiva, permite a cada um se constituir
como sujeito de seu meio [...] A reflexibilidade do sujeito
na atividade produtiva constitui uma autêntica relação
consigo mesmo. (Le Blanc, 1998: 98-100)
Cotejando as marcas pessoais superpostas aos objetos pelos operários com a
acepção de Canguilhem sobre o sujeito normativo, interventor no seu meio por via dos
usos que dele faz e, consequentemente, das normas que inventa, tem-se que os objetos
que adquirimos não carregam somente matéria morta; eles portam vestígios de gente
que, trabalhando, gere coisas e se gesta pelas coisas. Alex fornece uma frase primorosa
a esse respeito, enunciando que fábrica e cliente, quando adquirem os objetos
produzidos pelo operário: “vai ter o funcionário agregado ao carro e não só a marca do
carro” (Alex, 22 anos, analista de processos de produção/ex-preparador de carroceria,
Montadora A – grande).
Essa característica de singularidades impressas nos objetos produzidos no
chão de fábrica surpreende, sobremaneira, aos menos íntimos desse ambiente e que,
normalmente, o concebem como lugar de pura reprodução em massa de produtos,
feitos por operadores mecânicos. Como se pode notar pelos testemunhos trazidos aqui,
essa é uma visão parcial dos fatos, uma visão que não se permite penetrar no cotidiano
da fábrica para se obter vislumbres das, ao mesmo tempo, reveladoras e enigmáticas
contingências e habilidades ali escondidas.
A presença dessa necessidade de deixar sua marca, sobre as coisas que são
produzidas pelas próprias mãos, sinaliza um leque de sentidos tão amplo que, para ser
tratado à exaustão, necessitaria de horizontes mais amplos do que os limites presentes
na análise em curso.
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272
Todavia, para o que constituí o cerne desta pesquisa, é importante destacar o
fato de essa necessidade revelar a assunção de sua condição de sujeitos pelos operários.
Sujeitos que, incansavelmente, zelam por escrever, pintar e montar sua própria micro-
história, marcando por onde passam, mostrando que um objeto não é constituído
somente por matéria-prima e operações padronizadas, mas também indica a presença
de gente, de jeitos próprios de trabalhar, de re-normalização, de escolhas, de valores,
de usos.
5.8 Controlar os rumos de suas intervenções
Para além das práticas funcionais e estéticas, materializadas na criação de
dispositivos e nas inscrições, as práticas interventivas dos operários também
concernem a uma terceira esfera, cujo teor pertence exclusivamente à espécie humana:
a política, a arte de governar os homens.
Arendt apóia-se no pensamento grego para sustentar que o “homo est
naturaliter politicus, id est, socialis (‘o homem é, por natureza, político, isto é social’)”
(1987: 32). Para a autora, a condição humana é constituída por três elementos: labor
(ligado a processos biológicos), trabalho (ligado ao artificialismo/artefatos da
existência humana) e ação (ligado ao pluralismo entre os homens). “Todos os aspectos
da condição humana têm alguma relação com a política; mas [a] pluralidade é
especificamente a condição [...] de toda vida política” (idem, p. 15).
Utilizando o mesmo foco de Arendt, Morgan resgata Aristóteles para sustentar
a política como constituinte da ordem social. Estudando as organizações do trabalho,
ela sustenta que a realidade política constitui elemento vital da vida organizacional. A
própria racionalidade é apresentada pela autora como portadora de cunho político,
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273
porém sendo usada pela organização como “um recurso [neutro] para perseguir
intenções políticas” (Morgan, 1996: 200).
A seguir serão mostradas intervenções políticas realizadas por alguns
operários, ao perceberem a profundidade da penetração de determinadas ações suas e
da fábrica sobre a vida coletiva dos trabalhadores.
Munidos de uma longa ou intensa trajetória de trabalho, especialmente os
operários dotados de experiência político-sindical, eles sabem mensurar em detalhes as
conseqüências de suas intervenções no trabalho. Essas conseqüências podem atingir
tanto a realidade de um único indivíduo quanto de toda a categoria operária e, de uma
forma ou outra, são alvos da reflexão dos operários acerca dos próprios procedimentos.
Uma informação digna de admiração, sobre a trajetória de dois operários
vinculados à militância, reside na razão que os levou a participar de organizações de
interesse dos trabalhadores, aproximando-se do meio sindical devido às amargas
experiências e desavenças que tiveram com seus patrões. Como forma de vingança,
passaram a atuar politicamente para ficar vis-à-vis com o poder do patronato.
Nos idos dos anos 1980, Inácio indignava-se com as injustiças cometidas por
seu chefe, que, na falta de argumentos, xingava os operários, humilhando-os e
destratando-os. Conforme seu depoimento, na época, os encarregados eram
distinguidos pela marca “feitor” que traziam no peito, termo que o ofendia
profundamente, pois aprendera que essa denominação era dada àqueles que
espancavam e martirizavam os negros, durante o período escravista. Dessa
inconformidade que tinha relação direta com as atitudes toscas de seu chefe, ele teve
despertado seu interesse pelas idéias da comissão de fábrica e da CIPA (Comissão
Interna de Prevenção à Acidentes) e passou a integrá-las para defender os trabalhadores
contra seus algozes, amparado-se na força jurídica do seu papel de ativista.
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274
Outro operário, o jovem Fabrício, depois de uma cirurgia de hérnia, retornou
ao trabalho apresentando ao chefe as restrições que tinha para exercer certas tarefas. A
reação que teve em troca foi tirânica: foi acusado pelo chefe de não querer trabalhar e
estar escolhendo serviço; além disso também passou a sofrer perseguição e a ser
questionado em tudo o que fazia fora da produção. O jovem, inclusive, recebeu
advertência por ter solicitado dispensa de trabalho por uma jornada. Depois disso,
Fabrício passou a integrar a CIPA e o grupo de jovens do sindicato dos metalúrgicos,
também como forma de legitimar sua luta pelos direitos trabalhistas.
Se a razão inicial para participar desses órgãos trabalhistas foi pessoal, a
desforra da chefia, depois, atuando nos encontros e discutindo questões de interesse
dos trabalhadores, tomaram gosto e continuaram na militância por convicção
ideológica.
É importante ressaltar uma de nossas opções metodológicas, a exclusão das
entrevistas com sindicalistas desambientados do chão de fábrica. Os dois operários
mencionados não são representantes que gozem do direito de afastamento da fábrica
para a atuação sindical, já que não fazem parte da diretoria executiva do sindicato.
Há ainda a presença de um terceiro operário cuja postura política merece
menção. Trata-se do jovem Emir. Apesar de ser sindicalizado por conveniência
econômica, ele acusa o sindicato dos metalúrgicos de reformista, economicista,
assistencialista e pelego: “Eu acho que o sindicato é pelego no sentido de que amortece
conflito entre as classes” (Emir, 21 anos, operador de máquina CNC, Montadora B –
grande). A postura de Emir reflete tendências socialistas; ele considera que a difusão
de suas opiniões políticas o obrigue a doar-se muito para a construção de uma
sociedade, cujo modelo ideal ainda não existe, mas na qual os meios de produção
pertenceriam aos trabalhadores.
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Dada a bagagem político-organizacional desses três trabalhadores – Inácio,
Fabrício e Emir –, suas atitudes dentro da fábrica são marcadas por estratagemas que
visam fortalecer o lado do trabalhador, nunca o da fábrica. A partir das narrações
desses operários, é possível inferir que a atitude política dos ativistas não é
absolutamente distinta da postura dos outros operários não iniciados na militância;
simplesmente ela é menos ingênua e mais consciente, enquanto que a atitude do
operário comum parece ser mais acanhada e menos explícita.
A divisão do trabalho estabelece que o montador monte peças e o trabalhador
da manutenção se encarregue do conserto das máquinas. Servindo-se dessa norma,
Fabrício, que é montador, justifica sua não intervenção nas panes que ocorrem na linha
de montagem. Com isso emprega seu tempo em atividades “livres” dentro da fábrica,
até que a anormalidade seja resolvida pelo especialista encarregado. Ao mesmo tempo,
quando percebe a tentativa de interferência dos operários mais novos e inexperientes,
empenha-se em convencê-los a esperarem por providências alheias.
[Quando acontece uma pane geral na linha] [...] O pessoal
novo corre, quer consertar [...] eu já tenho uma certa
malandragem, já vou lá e falo: [...] “precisa chamar
alguém”. Aí nesse vai chamar alguém você ganha um
tempinho, né... É malandragem e o pessoal novo não tem,
já quer consertar: “Não! Vamos ver, vamos abrir aqui”. Aí
tem que usar da malandragem com eles também, falar:
“Oh! Sabia que pra mexer aí, você tem que ter autorização
dos bombeiros e tal?” [...] “É memo?” [...] “Você pode ser
advertido [...]É! Aí já a pessoa fica mais amena.
Porque o pessoal [novo] tem vontade de querer
permanecer na fábrica, então eles querem resolver tudo,
então você tem que usar de malandragenzinha aí pra eles
ficarem mais calmos. (Fabrício, 27 anos, montador,
Montadora B – grande)
O que Fabrício denomina “malandragenzinha” nesse caso nada mais é do que
seguir as normas estabelecidas pela própriabrica, de respeito à divisão do trabalho.
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276
Em outros termos, praticar a “operação padrão” ou “greve do zelo”, como os franceses
denominam (Morgan, 1996: 170).
São brechas nas normas que ele acaba usando para obter momentos de
relaxamento. Não sem antes tentar conduzir outros operários a cooperarem nessa
cultura astuta, de uso estratégico das regras estabelecidas. Trata-se, portanto de um uso
duplamente político: reapropriação do tempo e mobilização da ajuda de colegas mais
desavisados.
Os operários refletem acerca das possíveis repercussões ocasionadas por suas
sugestões no trabalho. No caso de poder implicar-lhes prejuízos, em qualquer nível,
agem astuciosamente conservando tais sugestões somente para si mesmos. Guardá-las,
entretanto, não remete a descartar a idéia e deixar de pô-la em prática; isso não ocorre,
de modo algum: elas são preservadas e efetivamente utilizadas. Todavia, trata-se de um
uso estratégico, cujos procedimentos são, ao mesmo tempo, praticados e ocultados,
jamais deixando que sejam percebidos por seus superiores.
Nesse contexto, talvez possamos arriscar afirmar que exista transgressão
operária no ato de re-normalizar, pois, de fato, o trabalhador mantém em sigilo sua
própria maneira de trabalhar, escondendo inclusive possíveis objetos frabricados. É do
seu interesse não torná-la pública; então, transgride para defender-se e poder propagar
as necessidades pelas quais demanda. Isso ficará menos nebuloso com o exemplo que
será trazido, adiante, sobre a experiência de Inácio.
Antes de expor mais longamente o testemunho dele, vale passar pela fala do
Emir, que afirma ter como missão prejudicar a fábrica, não criando problemas
diretamente, mas deixando de facilitar suas soluções. Essa atitude faz parte de sua
postura política de luta contra o capitalismo e manifesta-se, especificamente, nas
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possíveis sugestões que poderia fornecer à fábrica para melhorar a condução do
trabalho:
no meu caso, eu não tenho por que falar [sugestões] pra
eles: “Oh! Faz isso porque vai melhorar”. A não ser que
vá melhorar pra mim também. Mas uma coisa que fique
mais confortável, mas uma coisa que vá melhorar o
processo e tal, eu não costumo... A gente [operários]
comenta entre a gente: “[...] Aqui se os caras fizessem
isso, meu e tal, seria melhor e tal”. Mas não costumo
passar [...] pra mestria. (Emir, 21 anos, operador de
máquina CNC, Montadora B – grande)
Além da postura política, assumida em virtude do ambiente crítico, que
conduz Emir, o curso de ciências sociais e a convivência com seu irmão, profissional
da mesma área que o influenciou a segui-lo, também está presente a politização do
operário, ocasionada por experiências pessoais desagradáveis dentro do chão de
fábrica, caso do Inácio.
Dada a prática habitual de os trabalhadores terem idéias e criação de
dispositivos que criaram apropriados pela engenharia, que desconsidera sua autoria,
estrategicamente, eles passaram a assumir posturas de defesa, tanto de seu invento
quanto de sua própria existência.
Há certos tipos de dispositivos cujo uso resulta na eliminação de postos de
trabalho, noutras palavras, no enxugamento da mão de obra, às vezes não
necessariamente dentro da própria fábrica onde foram concebidos, mas no corpo de
trabalhadores vinculados aos fornecedores externos. Esse efeito, que consideram
destrutivo, alerta os operários acerca dos limites, fragilidades e riscos de os
dispositivos que criam serem divulgados. Assim, os mais conscientes, antes de
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exporem suas idéias, analisam, meticulosamente, a repercussão política que poderão
ter.
Um trabalhador apresentado por Oddone, Re e Briante enfatiza que as
conseqüências nocivas decorrentes da divulgação e concretização das sugestões dos
operários os alertaram a retê-las para si mesmos:
aproveita-se do progresso técnico para suprimir certas
tarefas. O operário que se dá conta dessas modificações
introduzidas pela Fiat, resguarda-se de sugerir outras que
sua experiência o faz descobrir, porque ele teme por seu
emprego, ele tem medo de contribuir para a sua própria
perda. (Oddone, Re e Briante, 1981: 83)
Previamente à comunicação aos dirigentes fabris, sobre uma sugestão de
modificação em sua atividade, Inácio, ex-representante sindical dentro da fábrica,
reflete e discute, com o sindicato dos metalúrgicos, o alcance que pode ter suas
conseqüências, inclusive em termos do caráter coletivo que abrange a categoria
operária.
Inicialmente, como já referido, a experiência de Inácio nesse aspecto teve um
preço bastante alto, e trouxe-lhe desapontamento e risco; referimo-nos ao dispositivo
no mancal do trambulador. O invento foi apropriado pelos engenheiros da fábrica e
adotado, sem que a autoria dele fosse mencionada e sem retribuição de qualquer
natureza. Tendo tomado conhecimento do ocorrido, o sindicato contatou Inácio para
explicar a gravidade política e o alcance de sua invenção sobre uma parcela da
categoria dos operários:
o sindicato me chamou e falou: - “Inácio, [...] se mudar
essa peça aí, lá na fábrica que produz a borracha esse
segmento de borracha vai parar de fazer [...] meia dúzia
de trabalhador vai perder o emprego”. Então eu não quis
levar pra frente por causa disso. (Inácio, 39 anos,
montador da linha, Montadora A – grande)
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Passada essa experiência dolorosa, sentindo-se cúmplice por possível
desmontagem da categoria de operários, decorrida de uma sugestão e adaptação que
criou, ele tornou-se mais cuidadoso e meticuloso. Desse momento em diante, suas
sugestões passaram a ser mais bem conduzidas e a focalizar objetivos precisos.
E aí eu falei [pra mim mesmo]: - “Não! As idéias que tive
[...] eu próprio não desenvolvi mais nenhuma [...] Porque
eu sei que as idéias só faz isso: [...] ajudava a melhoria,
mas também tirava emprego. Então preferia ficar na
minha e buscar fazer o meu pra melhorar o meu dia a dia,
pra desenvolver uma técnica melhor, pra mim ganhar
fôlego, desenvolver minha função bem [...] e mais
tranqüilo. Até hoje faço isso. Tudo o que eu puder fazer
pra melhorar o meu local de trabalho e ganhar tempo
pra eu fazer [trabalhar] legal e ter tempo pra ler o
jornal, pra ir voar eu faço. Idéia pra ela não! Se alguém
quiser dar que dê. Eu não faço não. Faço pra melhorar
meu dia [...], o dela não. (Inácio, 39 anos, montador da
linha, Montadora A – grande)
Sua meta, então passou a ser empenhar-se bastante para, depois de trabalhar
bem, ganhar tempo, tempo para ser usufruído no cultivo da cultura e do relaxamento:
ler jornal e voar com a imaginação. Manter os pés no chão, estando inteirado dos fatos
comunicados pela mídia, mas também, ao mesmo tempo, ter a cabeça nas nuvens para
relaxar e sonhar enquanto descansa por alguns minutos do ritmo desatinado do seu
trabalho. Poder voar e sonhar livremente, sem carregar a culpa de uma ação sua,
concretizada em um dispositivo qualquer, que, sendo produzido e divulgado, contribua
para que a vida dos trabalhadores seja ainda mais desditosa.
Melhorar o próprio dia de trabalho, jamais o da fábrica, eis o objetivo tanto de
Inácio quanto de Emir. Isso pode até ser interpretado como atitude puramente
individualista, porém demonstra também certa revolta contra a empresa que,
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desemprega impiedosamente, e, sobretudo, concerne a tomar partido da gestão de si
mesmo no trabalho. Se multiplicada pelos milhares de operários, essa ação atingiria
envergadura considerável, ainda que feita de forma reduzida, em ações individuais.
Com o auxílio dos elementos expostos até aqui, percebe-se quanto é
insuportável para os operários, principalmente os que desenvolveram consciência
política, a percepção de não poderem controlar as interferências derivadas de suas
intervenções, sobre os trabalhadores e sobre eles mesmos. Em decorrência disso,
apesar de se empenharem em re-normalizar sua atividade para melhorar seu cotidiano
fabril, estabelecem certos limites éticos: não viabilizar para si melhora diminuta
quando esta implica ameaça à existência de sua categoria ou, simplesmente, acréscimo
aos cofres fabris sem render contrapartidas, especialmente qualitativas, como a
solidariedade pela manutenção do posto de trabalho de outrem.
Donde, a gestão do próprio trabalho, feita pelos operários que os direciona, na
medida do possível, de forma a não negar suas próprias escolhas, enuncia a gestão de
si. No mesmo tipo de pensamento, Durrive salienta que:
[as normas] formam-se ao mesmo tempo que permitem à
subjetividade de se formar. E o futuro permanece aberto a
todos os possíveis sob a condição de reconhecer o poder
normativo do homem coletivo e individual e de renunciar
a violência dos sistemas que negam essa normatividade.
(2006: 325)
5.9 Técnicas do corpo
Com a âncora dos achados que os testemunhos dos operários permitiram vir à
tona, desenha-se a impossibilidade de que eles consigam viver sob a regência de
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normas, cuja autoridade lhes seja absolutamente exterior. Essa tese é confirmada pelas
técnicas do corpo desenvolvidas no cotidiano fabril, como o trabalho adiantado e a
sincronização da linha de montagem ao ritmo do próprio corpo.
Foi possível reforçar a existência dessas técnicas em âmbitos que ultrapassam
a produção propriamente dita, no ato de trabalho; elas avançam em direção a outros
âmbitos no cotidiano fabril. Na luta por uma vida salutar, os operários aprimoram as
técnicas, cujos usos sejam essencialmente relevantes para seu próprio corpo e apenas
secundariamente contribuam para a produção.
Embora o emprego do termo “técnicas do corpo” tenha germinado nesta
pesquisa a partir do próprio vocabulário dos operários que a informam, especialmente
de Inácio, vale passar pelas reflexões de Mauss, que inclusive escreveu capítulo
versando sobre o mesmo tema. Conforme esse autor, o corpo constitui o primeiro e
mais natural instrumento utilizado pelo homem. Antes mesmo de ele inventar e
dominar as técnicas, com instrumentos, o corpo já era usado como objeto técnico por
meio de um conjunto de técnicas corporais (1974: 217-218). O autor enumera um rol
de técnicas corporais, algumas das quais são tratadas neste item e ao longo da tese, tais
como: atividade e movimento, sono, vigília, cuidados corporais e outras (idem, p. 221).
O aprimoramento das técnicas do corpo, efetivado pelos operários de chão de
fábrica, manifesta-se em uma miríade de formas. Algumas delas apareceram durante o
trabalho de campo listadas abaixo, juntamente com as falas dos trabalhadores.
Basicamente, elas podem ser reunidas em cinco grupos diferentes, quais
sejam: exercício, interação, entretenimento, introspecção e terapia. Com o recurso a
esses “tipos”, certamente não se pretende desenvolver teorias a respeito dos usos que
os operários fazem do corpo, mesmo porque já se parte do princípio de que a realidade
é inesgotável também pelo fato de, em certa medida, ser enigmática. Assim, almeja-se
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simplesmente tecer linhas de raciocínio que possibilitem a melhor compreensão das
informações analisadas.
No primeiro grupo dos usos de técnicas do corpo estão os exercícios físicos
realizados durante os interstícios de trabalho, visando a aliviar dores e desconfortos
provocados por movimentos repetitivos.
Tinha umas pessoas [...] na área [de pintura] [...] que eu
trabalhava que [...] adoravam fazer um alongamento [...]
[nas] horas de intervalo [...] mas isso [...] porque eles
queriam isso. Porque é uma área que eles tinham muitos
problemas de [...] coluna [...] Então eles próprios
começaram a fazer esse tipo de alongamento [...] de
flexões pra conseguir fazer com que os músculos não
sofressem tanto. Sofrer sofria, mas não tanto. Não é à toa
que boa parte que trabalhava na área tinha problema de
joelho, problema de coluna [...] Graças a Deus eu saí de
sem ter nenhuma seqüela desses tipos de doença, de L.E.R
(lesão por movimento repetitivo). (Alex, 22 anos, analista
de processos de produção/ex-preparador de carroceria,
Montadora A – grande)
Diante dos efeitos dolorosos provocados pela cadência do trabalho, afetando
sobremaneira as regiões das articulações dos joelhos e das vértebras, os operários
tomam a iniciativa de praticarem atividades físicas, proporcionando ao seu corpo
relaxamento muscular e maior resistência para continuar a jornada de trabalho.
Os espaços do “não trabalho” dentro da fábrica, normalmente concebidos para
o descanso, são re-significados pelos operários que os re-normalizam, mantendo-se em
atividade por meio de movimentos bem distribuídos pelo corpo em vez daqueles que
forçam, às vezes de forma violenta, certas partes deles.
As outras técnicas utilizadas estão desvinculadas do âmbito propriamente
físico do corpo do trabalhador, concernindo, portanto, exclusivamente a sua dimensão
psíquica e cultural.
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A interação pertence ao segundo grupo de técnicas corporais encontradas.
Nela o ato mais praticado pelos operários consiste nas conversas com os colegas. Seus
temas versam sobre os mais variados assuntos, desde os problemas do trabalho a
brincadeiras que os distraem. Potencializa os espaços existentes para o cultivo de
amizades, trocas de idéias ou simplesmente a prática de mexericos.
E pra aliviar um pouco, pro dia passar mais rápido [...]
como as máquinas são muito perto, a gente fica
conversando, tô aqui então eu converso com o outro que
tá ali, ou então com a menina que trabalha perto de mim.
(Jéssica, 20 anos, operadora de máquina CNC, Montadora
B – grande)
Conforme a literatura, a introdução de células no ambiente fabril, mediante a
disposição de máquinas em semicírculos e não mais em uma única linha, veio com o
intuito de a organização do trabalho interferir, prejudicando a capacidade político-
organizativa dos operários, coibindo-os espacialmente à medida que desfaz sua
aglomeração (Morgan, 1996: 178). Todavia, a prática do rodízio de tarefas, exercida
dentro das células, levou os operários a desenvolverem uma outra prática paralela: o
rodízio para papear:
A comunicação nossa lá, nós temos [...] liberdade pra
trabalhar [...] às vezes eu tô trabalhando aqui, eu paro
[...] eu vou troco uma idéia com o camarada lá pra poder
sair [...] um pouco [...] daquele ambiente. Às vezes você
não tá legal, então você tá trabalhando [...] vai aqui, vai
ali e tal, o próprio colega dá seqüência no seu serviço.
Então você tem aquele ambiente [...] rotativo entre amigos
[...] converso com um ali, depois vou pra lá, converso
com outro e o serviço sai normalmente, não precisa ficar:
“Tem que trabalhar! Tem que trabalhar! Eu não posso sair
da máquina!”. Não! Você sai normal [...] Aí depois você
volta e [o] outro vai lá papear e faz aquele rodízio também
pra papear. Da mesma forma que rodízio pra trabalho,
faz o rodízio pra conversar: “Oh! Fulano faz a minha aí
que eu vou dar um rolé lá em cima”. O sujeito fica
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trabalhando ali normal, o cara vai lá [...] na enfermaria
[...] no departamento pessoal [...] fazer o seguro do carro
[...] trocar uma idéia com o fulano pra ver se o
Corinthians contratou algum cara lá. Você vai papeia ali,
volta, o outro vai. Então, cê fica aquela rotina normal de
conversa aqui, conversa lá. Mas só que [...] tem que ser
com qualidade e produtividade, não pode deixar cair.
(João, 53 anos, operador de célula, Montadora B –
grande)
Um operário da pesquisa de Oddone, Re e Briante utiliza de um recurso
legítimo para manter suas amizades e inteirar-se dos fatos que ocorrem na fábrica.
Quando lhe falta uma ferramenta, necessária para exercer seu trabalho de montagem,
ele faz questão de ir pessoalmente procurá-la: “isso me permite ver os camaradas que
trabalham em outras equipes, falar com uns e com outros, manter-me um pouco a par
do que se passa por toda a fábrica. Quando eu encontro o que procuro, retorno ao meu
lugar” (Oddone, Re e Briante, 1981: 108).
A prática de rodízio com os colegas, efetivada pelo controle do tempo e
resultando na sobra de alguns minutos para desfrutar na convivência com os seus pares,
pode significar pouco do ponto de vista quantitativo, porém, simbolicamente, alcança
dimensão considerável, como nota Dejours.
Simbolicamente, o grupo de trabalhadores venceu o ritmo,
as velocidades e os tempos impostos [...] todos
aproveitam, participando também dessa brincadeira
simbólica de grande valor significativo, tanto em relação à
vitória sobre a hierarquia como em relação à solidariedade
que une os trabalhadores neste instante (2000a: 74).
Com certa freqüência, a prática de conversas durante o trabalho assume
também significado quantitativo. Salermo retrata um fato caricatural em que a conversa
de operárias é erroneamente interpretada pelo analista fabril.
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Numa empresa de montagem eletrônica [...] havia uma
bancada com três operárias em cada lado, e o prescrito era
que cada operária realizasse uma parte da inserção de
componentes e passasse a placa para a colega ao lado. Um
analista notou que havia muita conversa com as operárias
que estavam do outro lado da mesa, além de mistura das
placas entre os postos. Ao invés de verificar porquê,
colocou um anteparo na mesa para impossibilitar a
conversa, para que o método prescrito fosse seguido. A
produtividade caiu, pois a “conversa” que se queria
eliminar era a coordenação de uma redivisão do trabalho
com vistas a diminuir os tempos de transporte e de
preparação das placas para inserção (Salermo, 1991: 135-
136).
Outra prática advinda das técnicas do corpo no chão da fábrica ocorre por
intermédio do chiste mesclado com as brincadeiras. Os risos e as gargalhadas
produzidos pelos gracejos feitos entre os trabalhadores alimentam a descontração das
relações e quebram a austeridade do ambiente.
Eu [...] dou risada o dia inteiro. Como a gente tem sala
separada, às vezes um entra na sala do outro faz uma
piadinha, zoa pra poder descontrair, sabe? Com quem cê
tem mais amizade assim, dá pra brincar um pouco. (Ana,
22 anos, operadora de dinamômetro, Montadora B –
grande)
Saudoso dos tempos em que era operário, havia menos de um ano, Alex
rememora o ambiente descontraído por situações hilárias, ausentes, atualmente, entre
seus colegas engenheiros:
o clima de trabalho […] era outro: a brincadeira, o
ambiente era muito mais favorável pra criação de uma
amizade, criação de certo comprometimento […] O clima
era mais engraçado, você trabalhava e o pessoal [...] tem
muitas brincadeiras comuns, por exemplo, tá passando
um cara, aí um grita só pra ver aquele cara olhar pra trás e
ficar como um idiota procurando quem gritou. Mas o
clima em si era muito bom [...] um clima agradável.
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(Alex, 22 anos, analista de processos de produção/ex-
preparador de carroceria, Montadora A – grande)
A brincadeira tem lugar e tempo. Esse lugar até pode ser no trabalho, porém
não em qualquer posto e nem a qualquer momento. Postos que possuem alguma
peculiaridade, como máquinas novas em experimentação e chefes mais controladores,
são mais vigiados; por isso, são ambientes mais formais, onde a brincadeira é
reprimida.
Paradoxalmente, Dejours constatou a prática de brincadeiras em um meio
rigidamente controlado e composto por equipamentos ultra-modernos, mas onde elas
ocupavam lugar às escondidas. O ambiente em questão era a sala de controle de uma
petroquímica em que os operadores supervisionavam os procedimentos executados
pelo “piloto automático”. Dado o grau terrível de monotonia, os operários elegeram
uma brincadeira que pudesse ser jogada coletivamente: palavras cruzadas.
Aparentemente uma façanha perigosa porque passível de acidentes; revelou-se, porém,
fundamental para a sua prevenção em função da calma que introjeta nos operários, da
liberdade que lhes permite ir e vir para observar seu trabalho enquanto jogam, bem
como do silêncio que vige durante as partidas, possibilitando-lhes perceber qualquer
barulho anormal nos equipamentos (Dejours, 2004: 283-285).
Essa conjunção entre o ato de trabalhar e o ato de arriscar-se só é possível em
função de uma habilidade, cujo domínio o ser humano detém de forma apreciável.
Trata-se de gestão aludida por Trinquet nos seguintes termos: “a gestão da segurança
pelos operadores faz parte integral da gestão do seu trabalho. Para os operadores, não
há separação artificial, entre a produção a realizar e a segurança” (1996: 229).
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
287
Dessa feita, percebe-se que há entre os operários normas implícitas que
indicam de quais brincadeiras podem participar. No caso aludido por Dejours, o
compromisso de zelar pelo bom funcionamento do trabalho é tão prioritário que eles
chegam mesmo a surpreender na escolha da brincadeira: deixam de jogar baralho, jogo
preferido pelos operários franceses, para jogarem uma modalidade originariamente
norte-americana, palavras cruzadas sobre um tabuleiro (Dejours, 2004: 285). Nesse
caso, o valor cultural é sobreposto pelo valor profissional; troca-se a identidade da
nação pela do trabalho.
Prosseguindo, na terceira técnica do corpo, verificada entre os operários da
pesquisa, o controle externo é mais ameno, uma vez que sua prática ocorre
individualmente, logo, sem pressupor brincadeira ou reunião de pessoas. Essa técnica é
o entretenimento, por sua vez possibilitado pela música, pelo canto e pelo assobio.
O gênero musical está dividido aqui em música e canto, por encerrar aspectos
diversos, tanto em sua definição quanto na recepção fabril. A música refere-se à
composição e execução musical externa, portanto apenas ouvida pelo operário,
normalmente por meio de um aparelho portátil, o walkman. Por outro lado, o canto e o
assobio consistem em sons melódicos produzidos pela própria voz do trabalhador. A
pela música ouvida no walkman é interditada na fábrica porque o uso do fone auricular
atrapalha a utilização do protetor auricular pelo operário; a prática do canto, ao
contrário, não encontra impedimentos.
Eu ouvia música [rock, mpb, rádio-notícias]. É comum,
sabia, é comum mesmo [...] não ouvia walkman o dia
inteiro, tinha os meus horários que eu gostava de ouvir
[...] Então [...] direcionava [...] um pouquinho da minha
revolta, minha raiva pra música [...] [ouvindo] música
[eu] permitia [...] que a minha mente se desligasse um
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
288
pouco do que eu tava fazendo pra conseguir... fazia as
minhas obrigações normais, mas eu tirava o enfoque,
direcionava o enfoque pra música e não pro trabalho em si
[...] Eu usava [...] um protetor auricular de concha maior,
então eu colocava o fone de ouvido pra dentro e colocava
o de concha na cabeça [...] Me protegia do som do barulho
da área, mas estava com o walkman no ouvido [...]
colocava o macacão [...] e só ficava dois fiozinhos do
fone. Aí ninguém [...] sabia que eu tava ouvindo música.
(Alex, 22 anos, analista de processos de produção/ex-
preparador de carroceria, Montadora A – grande)
Como já tivemos ocasião de mostrar na dissertação de mestrado (Silva, 2003),
quando operário, Alex enfrentava grandes dificuldades devido a sua aversão ao
andamento provocado pela função que exercia. Uma das medidas que usou para
mitigar sua revolta era justamente refugiar-se na música, que lhe permitia a criação de
um entorno imaginário, distinto daquele, concreto, no qual ele não conseguia interferir
plenamente. Essa atividade constitui uma forma sui generis de re-centramento, em que
o meio desenvolvido para abafar o entorno é provido de caráter virtual, porém não
menos eficiente.
Ao mesmo tempo que é proibido o uso de walkman durante a jornada de
trabalho, esse recurso é utilizado justamente para amenizar o barulho produzido pela
fábrica, que, paradoxalmente, interdita e incita esse uso.
Dependendo da tolerância dos chefes, há uma outra forma de os operários
ouvirem música em certos setores fabris. Pelo rádio, ao alcance da audição de todos.
Nesse caso, eles praticam o canto acompanhado pela música.
Pra aliviar a tensão, quando eu tô muito tenso [...] então pra
evitar... eu às vezes eu canto. Tem um rádio lá que põe e
começa cantar [...] consegue trabalhar e [...] fica cantando lá
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
289
à vontade. (Celestino, 36 anos, preparador de carroceria,
Montadora A – grande)
O canto, técnica corporal que recorre às cordas vocais, é prática corrente entre
os operários desacompanhado do rádio. A emissão de melodias que brotam do
exercício vocal serve de válvula de escape para eles fazerem adormecer o estresse e
manter a estabilidade do seu organismo.
Eu canto enquanto eu trabalho, o dia inteiro. E não sou
só eu, tem muita gente que canta. Eu dou muita risada
onde eu trabalho, porque tem um pessoal que é muito
engraçado [...] Antes [...] colocavam rádio. Proibiram! [...]
Se você ficar diretamente naquilo, cê fica estressado,
realmente [...] vai ficando... meio nervoso [...] E não
adianta [...] é uma máquina, vai ter que saber lidar com
ela. [...] Eu canto mais [...] quando tô sozinha dentro da
cela [...] mas tem gente que canta o dia inteiro do meu
lado [...] o relacionamento tem toda essa parte de
preconceito [por ser mulher num ambiente masculino] [...]
mas ao mesmo tempo tem a parte de descontração, tamém
[sic], tem sempre um contando piada, cê dá risada, porque
se não tiver isso não agüenta. (Ana, 22 anos, operadora de
dinamômetro, Montadora B – grande)
Intercalado ao canto, aflorou um “tipo” singular, cujo uso é complemente
diferenciado. Trata-se do canto político, um canto que não visa afrouxar as rédeas do
ambiente e do corpo retesado, mas serve de comunicação secreta entre os operários
para despistar o controle da chefia.
[O] meu chefe é [...] novo lá, o pessoal chama ele de zero
zero […] é engenheiro civil e não sabe nada de mecânica
[...] [E] quando alguém tá fazendo alguma coisa errada,
porque é assim, os peão [...] se ajuda [...] [Lá] tiraram a
internet, então tem um intranet em alguns computadores.
Cê não deve ficar mexendo [na intranet] na hora do
serviço, só porque eles não querem, porque todo mundo
mexe na empresa inteira. Aí se tá... algum [...] cara
mexendo na hora do serviço, aí [...] ele [chefe] entra, o
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
290
pessoal deu um toquinho pro cara parar, faz alguma coisa
pro cara se tocar e parar [...] eles […] cantam a música do
[filme do] 007. É engraçado! Mas é, porque ninguém vai
entender. (Ana, 22 anos, operadora de dinamômetro,
Montadora B – grande)
O penúltimo grupo das técnicas do corpo concerne à introspecção. Essa
prática é um recurso ao qual o operário recorre buscando a reserva e o insulamento,
não cabendo, portanto, o compartilhamento com os colegas. O coletivo revela-se
insuficiente para suprir suas necessidades interiores, são necessários momentos de
solidão.
Na introspecção estão presentes basicamente dois elementos: o primeiro dele
revela um aspecto cultural um tanto sintomático da sociedade brasileira: a crença
religiosa. A respeito da religiosidade brasileira, Pierucci e Prandi, (1996) apresentam o
panorama da dimensão sagrada dessa sociedade, analisando a conversão religiosa
como via encontrada pelos indivíduos para suprirem tudo aquilo que o mundo profano
não é capaz de prover, bem como superar situações de infortúnio, entre elas
insegurança, desemprego e morte.
Buscando proteção dos perigos aos quais estão susceptíveis na fábrica, bem
como praticando a fé na tentativa alcançar sossego em seu interior, os operários
recorrem à reza. A reza silenciosa surge no ambiente fabril como apaziguadora dos
desencontros, angústias e perturbações, que o compartilhamento coletivo não consegue
amenizar.
Quando eu tô num lugar... no posto de trabalho sozinho,
eu prefiro ficar orando, fico orando silenciosamente, aí
vai passando aquele stress, aquelas coisas. (Celestino, 36
anos, preparador de carroceria, Montadora A – grande)
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A gente vê bastante [...] gente que faz o sinal da cruz
antes de começar a trabalhar, gente orando. (Valéria, 20
anos, montadora da linha, Montadora A – grande)
Surpreendentemente, o segundo elemento presente no grupo da introspecção é
a leitura. A prática da leitura sobre a bancada é algo um tanto comum no meio
operário, notadamente nas grandes montadoras. Tanto os de nível superior quanto os
que apenas completaram o ensino fundamental, trabalhadores debruçam-se sobre
textos, especialmente jornais.
Notória nessa prática é a sua realização pari passu ao próprio ato de trabalhar,
situação possibilitada pela acentuada cadência do trabalho, que acarreta certa
“automatização” vigilante dos movimentos do operário, portanto, possibilitando-lhe
exercer outra atividade paralela.
Por meio da estratégia de ler não livros, mas jornais, mais fáceis de manusear
e acompanhar suas frases com sentenças e raciocínios curtos, Inácio desenvolve técnica
de marcação de texto para não se perder na leitura enquanto trabalha.
A gente quer ler um jornal, a gente põe o jornal na
bancada, tem muita informação, vem muito jornal da
empresa, do sindicato. Então ninguém quer ler jornal
quando vai pra casa ou no ônibus, quer dormir no ônibus.
Então o que ele faz? Lê durante o dia, uns quer ler na
hora do almoço, uns quer ler outros não querem então
deixa lá. Pega a caneta, vou ler até aqui e risca, tá
adiantado [no trabalho] e volta, lê aquele pedaço e vai lá
e depois volta e vou ler mais 10 linhas, vai lá adiante
corre [no trabalho] e lê de novo. Na hora do almoço, ele
corre pra dormir. Então têm essas manhas que a gente vai
desenvolvendo, os caras fica cada vez mais prático pra
ganhar esse corpo. Aquele que não consegue, esse sofre,
não tem tempo pra nada, vive correndo o coitado. Mas
tem uns que conseguem desenvolver algumas técnicas e
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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torna o seu dia mais [...] tranqüilo. (Inácio, 39 anos,
montador da linha, Montadora A – grande)
Emir também pratica a leitura de jornais e revistas. Seu intuito é desviar os
pensamentos daquilo que está fazendo em seu trabalho, tentando com isso obstruir a
possibilidade de ser acometido pela neurose.
[Eu] consigo [ler enquanto trabalho]; não levo livro
porque […] fica mais complicado, […] mais visível e é
uma coisa que […] já exige um comprometimento maior
[…] do que você tar lendo um jornalzinho do sindicato
que têm trechos assim, então você lê um trecho e tal, é
mais tranqüilo. Agora, um livro eu acho que fica mais
pesado, então eu leio mais o jornalzinho, uma revista. E
às vezes […] eu escrevo também, o que eu tô pensando
em alguma coisa, fico escrevendo lá. Mas não é muito
bom assim com relação à chefia, eles não gostam muito.
Então eu procuro sempre […] por aí […] você se distrai
com outra coisa, senão você fica doido, por isso que a
gente brinca […] pra distrair mesmo. (Emir, 21 anos,
operador de máquina CNC, Montadora B – grande)
O recurso à leitura, enquanto trabalha normalmente e também nos intervalos, é
utilizado pelo operário como outra forma de extravasar o estresse do trabalho repetitivo
e monótono.
Quando eu trabalhava como preparador de carroceria eu
ficava teimando comigo: [...] “eu não vou ficar burro, eu
não vou ficar ignorante, não [vou] ficar um cara alienado,
eu não vou ficar um cara que não sabe tocar a própria
vida”. Então [...] muitas vezes [...] o trabalho repetitivo
para mim me estressava, o trabalho em si a mesma rotina.
Então eu procurava adiantar meu serviço, sentava na
minha cadeira e lia [...] Eu [também] tinha os meus
intervalos [...] e nos horários de banheiro [...], geralmente
era às 9 horas da manhã e às 2 da tarde, eu aproveitava
[...] justamente pra aliviar um pouco desse estresse
mental, de procurar fazer com que o meu cérebro
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293
produzisse mais, não só movimentos, mas... e não só
pensamentos vagos. Porque isso acontece muito, você tá
trabalhando, fazendo o mesmo tipo de processo [...], como
diz o meu pai “cabeça vazia morada do diabo”, passa um
monte de coisa e muitas vezes não é [sic] coisas que têm
nexo são coisas que... são pensamentos vazios [...] (Alex,
22 anos, analista de processos de produção/ex-preparador
de carroceria, Montadora A – grande)
Do mesmo modo que na música, ressurge com a prática da leitura um
subterfúgio para extravasar a realidade da fábrica e ganhar um outro mundo desenhado
pelas letras. Portanto, afastar-se do cotidiano fabril, pela via da imaginação permitida
pelos devaneios na leitura, é uma das condições psicofísicas para o operário suportar
continuar a viver nesse ambiente.
Assim, a idéia de uma bancada fabril como local para apoiar somente
ferramentas e peças mostrou-se estereotipada quando foram ouvidos os operários. A
bancada também é lugar para apoiar a cultura da leitura, ancora as notícias da cidade e
da categoria contidas nos jornais e revistas, permitindo-lhes interagirem com os
acontecimentos, ao mesmo tempo quebrando, ainda que ligeiramente, a rotina e a
monotonia do trabalho fabril.
Finalmente, o derradeiro “grupo” das técnicas do corpo reside em um ato
coletivo de desatino, quando, muito embora as outras técnicas já tenham sido
utilizadas, não foram alcançados os resultados pretendidos. Destarte, todos os operários
de um prédio da fábrica, de súbito e concomitantemente, porém sem qualquer
organização prévia, bradam por socorro. Um socorro que embora soado em voz muito
forte, é incognocivelmente pronunciado. Esse socorro é o grito coletivo. Última técnica
do corpo constatada entre eles, também último recurso praticado para evitar a perda de
controle do corpo.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
294
A definição de grito consiste em “vozes inarticuladas emitidas por quem sente
dor, alegria, espanto” (Ferreira, 2004). Esses sentimentos envolvem os operários
durante seu cotidiano embrutecedor de trabalho; todavia, eles sabem que não podem
praticar o grito isoladamente, pois seriam tachados de loucos, enquanto coletivamente
ele ganha outros sentidos: de brincadeira, desabafo ou mesmo desvario, contudo
aceitáveis.
Jack narrou uma situação de grito coletivo, vivida por ele juntamente com seus
colegas de trabalho:
é uma fuga de escape pra todo mundo lá, na hora que
um... [...] é legal na hora que acontece porque é assim, um
grita com outro daqui, aí o outro grita já de lá “Ah eh,
aieh!”. Nem sabe o que é, aí todo mundo começa “Aieh!
Aieh! gritar, aí [...] já começam a buzinar, quando você
pensa que não o prédio inteiro tá a maior festa, gritando.
pronto! Calma! Todo mundo sossegado, volta a
trabalhar, descarregou todo mundo, saiu o estresse.
Pronto! Ninguém nem sabe o que aconteceu. Que nem a
gente que fica lá atrás, a gente de vez em quando escuta
“Ah eh aieh, bibi” aí a gente estica o pescoção lá, vê o que
tá acontecendo e pronto, nem sabe o que aconteceu lá,
mas beleza. (Jack, 29 anos, montador, Montadora B –
grande)
Do diário de M. Durand apreende-se que embora em algumas circunstâncias
os operários cantem harmonicamente o coro a capela, como o hino nacional francês, há
outras em que, frequentemente, se contentam com sons menos elaborados, transpirando
em dobro dada a atividade extra na qual se empenham. Assim, eles exercem uma
técnica do corpo que recorre à cacofonia, análoga ao grito coletivo. Trata-se da
recorrência a uma espécie de mugido coletivo praticado pelos operários para imitarem
gritos de animais diversos (1990: 46).
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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Gritos ou mugidos coletivos, sua função é a de extravasar a tensão acumulada,
provocada pelo trabalho na fábrica. Os operários lançam-se a essas técnicas apoiando-
se nelas como uma forma terapêutica de cura da iminência da neurose.
As técnicas do corpo visam ir além da conquista do bem-estar físico; é
também forma utilizada pelos operários para coibir o adoecimento e o
enlouquecimento.
Se você não consegue desenvolver uma técnica do teu
corpo, vai ser uma coisa que não é tua, eu acho que
quando não há uma doença física, há uma doença mental
porque você não consegue desenvolver, você tá oprimido,
tá fazendo o que o outro quer, não o que tu quer. Então,
fica difícil. Quando não adoece de um canto adoece de
outro […] quando cê fica preso cê vai trabalhar forçado,
vai adoecer. Então, o médico vai te afastar […] não é bom
[…] você ir por esse caminho. Acho que as empresas até
dá essa liberdade por causa disso mesmo […] Tudo que
trabalha no pensamento da técnica, não no pensamento
da prática, acho que não vai muito longe. (Inácio, 39
anos, montador da linha, Montadora A – grande)
Portanto, o valor da defesa da saúde dos operários consiste em algo que,
efetivamente, os une, tornando suas falas unissonantes e sincrônicas. Não importa se
um se coloque como defensor do capital e o outro dos direitos humanos; o valor da
saúde sela a união dessa categoria, freqüentemente exposta a condições desfavoráveis e
insalubres de trabalho.
Essa postura pode ser prontamente compreendida, se tomarmos de empréstimo
as concepções de valor e de vida desenvolvidas por Canguilhem, de acordo com Le
Blanc:
O sujeito coloca nas normas os valores imanentes à vida.
Não se opera separação entre a vida e o valor, pois a vida
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
296
é valor. Entretanto, enquanto a vida é posição
inconsciente de valor, o sujeito ético coloca
conscientemente seus valores [...] O modo de ser ético
constitutivo da forma-sujeito é uma resposta às
possibilidades negativas que a vida pode afirmar: dor,
doença, morte. (Le Blanc, 1998)
Seguindo essa linha de pensamento, a vida constitui um valor de per si, uma
vez que todos os seres vivos, ao se empenharem em viver, prezam pelo valor da vida.
Vida e valor somam uma única dimensão, na qual não é possível estabelecer fronteiras.
A diferença, porém, entre um vivente qualquer e o vivente humano é que este assume
conscientemente o valor vida, ou, melhor dizendo, concebe-a eticamente por meio de
normas sociais.
Portanto, o empenho contundente dos operários em intervir em seu ambiente
de trabalho, re-normalizando-o para deixá-lo em consonância com suas necessidades e
escolhas, advém do esforço “imemorial” dos seres vivos, cujo sentido de vida consiste
em modificar o seu meio a fim de torná-lo o melhor possível para o seu corpo.
Canguilhem questiona a tese filosófica de que o valor seja algo restrito àquele
que fala, ou, ainda, ao ser humano. Para o autor, o fato de o ser vivo, pertencente a
qualquer espécie, reagir a uma doença ou a uma disfunção orgânica qualquer significa
que ele assume inconscientemente posição de valor pela vida. De acordo com sua
visão, “a vida é, de fato, uma atividade normativa”, uma vez que sempre institui
normas; desse modo, “não existe absolutamente vida sem normas” (2006: 86 e 175).
Certamente, Canguilhem não nega a existência de normas exclusivas dos seres
humanos; o que ele ressalta é que a existência germinal das normas vitais já pertencia
aos seres vivos antes mesmos dos seres humanos existirem.
Os matizes básicos de sua análise concernem ao vínculo da normatividade do
ser humano com sua capacidade espontânea de interferir no meio e organizá-lo
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297
conforme seus valores de defesa da vida. Explicando o sentido da medicina, ele
distingue o normal do patológico a fim de mostrar o valor da vida, constatado na
relação normativa do ser humano com o meio:
O homem é são, na medida em que é normativo em
relação às flutuações de seu meio [...] Ao contrário, o
estado patológico expressa a redução das normas de vida
toleradas pelo ser vivo [...] As constantes patológicas têm
valor repulsivo e estritamente conservador [...] É a vida
em si mesma, e não a apreciação médica, que faz do
normal biológico um conceito de valor, e não um conceito
de realidade estatística [...] [Portanto, a] medicina
encontra seu sentido [...] no esforço espontâneo do ser
vivo para dominar o meio e organizá-lo segundo seus
valores de ser vivo. (
Canguilhem, 2006: 176)
Se os operários elaboram subterfúgios para salvaguardarem suas vidas
utilizando técnicas corporais é porque são compelidos por uma força que antecede a
sua própria constituição humana. Antes de agirem eticamente pelo valor à vida, o que
os move advém de uma razão herdada dos seus ancestrais muito remotos, bem
anteriores aos primatas.
As práticas astuciosas, como as desenvolvidas nas técnicas do corpo, são
caracterizadas por Certeau como pertencentes à “arqueologia multimilenar”,
remontando a tempos imemoriais:
Talvez respondam a uma arte imemorial, que não apenas
atravessou as instituições de ordens sócio-políticas
sucessivas, mas remonta bem mais acima que nossas
histórias e liga com estranhas solidariedades o que fica
aquém das fronteiras da humanidade. Essas práticas
apresentam com efeito curiosas analogias, e como
imemoriais inteligências, com as simulações, os golpes e
manobras que certos peixes ou certas plantas executam
com prodigiosa virtuosidade. Os procedimentos desta arte
se encontram nas divisões estratégicas das instituições
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298
históricas, mas também no corte instaurado pela própria
instituição da consciência. Garantem continuidades
formais e a permanência de uma memória sem linguagem,
do fundo dos mares até as ruas de nossas megalópoles.
(2004: 104)
“Práticas astuciosas” pelos “usos de si” encontradas nas “técnicas do corpo”
são heranças que os humanos trazem de seus ancestrais milenares. Entrementes, os
valores sociais que aqueles portam imprimem certas diferenças em suas práticas que os
tornam únicos nesse reino gerido por viventes, onde está presente a coerção do meio.
5.10 Batalha entre o corpo e os valores
Muito embora a marca de reformular as normas que regem o seu meio
ambiente seja inerente ao ser vivo, no caso aqui investigado é notadamente atribuível
ao ser humano que constrói com habilidade seus próprios instrumentos de trabalho.
Entretanto, é também preciso levar em linha de conta a existência de circunstâncias nas
quais o indivíduo é resolutamente tolhido da capacidade de re-normalizar ou, ainda, de
recorrer a essas práticas astuciosas sobre as quais vimos falando.
No ambiente de trabalho, a saúde ganha um significado diferenciado, daquele
da lógica médica, da ausência de doença. Para explicar a relação saúde-trabalho, Clot
recorre a figuras de linguagem, uma das quais, apesar de muito ilustrativa, não
encontra correspondente na língua portuguesa. A palavra é “désoeuvré” e significa
“aquele que foi despojado de sua obra”. Tendo como esteio a perspectiva de
Canguilhem, Clot deixa claro que, quando os fatos ocorrem independentemente dos
sujeitos que os vivem, estes são destituídos, despojados de sua obra (2005: 11).
Anuncia-se assim, a:
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
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“anemia” ordinária do trabalho, que mina a saúde de
muitos assalariados e os expõem tanto à doença do corpo
quanto à do espírito. Pois, o homem não pode, sem danos
profundos, somente viver em um contexto. Ele tem de
poder criar um contexto para viver. Privado dessa
possibilidade, ele é amputado da história coletiva da qual
ele poderia fazer parte. (idem)
Circunstâncias adversas estão presentes em certas situações de trabalho fabril,
comumente acarretando doença e invalidez para o corpo do trabalhador. Sua exposição
a substâncias tóxicas, cujos efeitos colaterais às vezes são pouco conhecidos ou, pelo
menos, não divulgados dentro da fábrica, deixa clara a sombria realidade à qual muitos
operários e operárias estão expostos.
A operadora de dinamômetro, Ana, trabalha no teste de motores e es
constantemente exposta aos danos provocados por uma substância chamada
etilenoglicol. Trata-se de um produto químico largamente empregado pelas indústrias,
cujos efeitos colaterais são apontados como sendo extremamente danosos à saúde
humana e que, porém, continua sendo usado sem precauções adequadas, pondo em
risco a saúde e a vida daqueles que o manipulam.
As raríssimas informações que os operários possuem a respeito dessa
substância foram conseguidas por eles mesmos, que, preocupados com sua saúde, se
organizaram durante expediente de trabalho para obtê-las.
Para situar brevemente do que se trata, o etilenoglicol é um fluido muito
tóxico que, se ingerido, é venenoso. Basicamente, os sintomas de envenenamento são
semelhantes à intoxicação por álcool, ele atinge o sistema nervoso central, provocando
o aumento de acidez e o desenvolvimento de cristais no sangue (acidose metabólica).
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300
Dependendo da quantidade ingerida e o tempo de exposição a essa substância “podem
ocorrer falência renal, insuficiência cardíaca congestiva, lesão cardíaca e morte”
68
.
De acordo com o IMETRO (Instituto de Pesos e Medidas do Estado de São
Paulo), o etilenoglicol, utilizado para o controle do sistema de arrefecimento do motor
de automóvel, ou ainda para evitar o superaquecimento ou o congelamento da água,
tem as mesmas funções e propriedades do propilenoglicol, que não é tóxico
69
.
Ana explica as propriedades e os danos causados pelo Etilenoglicol, presente
nos motores de carro em que realiza testes. Inconformada com seus efeitos lesivos,
considera que, embora no caso dos motores, a substância esteja diluída, o que
teoricamente, ameniza seus efeitos, como a exposição dos operários é diária, passa a
haver intoxicação cumulativa, o que é temido por ela.
Etilenoglicol é um produto que vai em muitos motores,
principalmente pra exportação [...] A temperatura de fusão
dele é maior que da emulsão, se o motor fundir [...] ele
agüenta [...] Eu não posso mexer com Etilenoglicol, sou
mulher [...] Só que não tá provado ainda, tá sendo
estudada [...] Além disso ele é um produto químico que
[...] tem um teor alcoólico alto, e pessoas se ingere pode
morrer. Isso que eu não me conformo! [...] O manual que
o fabricante [...] fala: “Mulheres em idade fértil, pode
perder a fertilidade” [...] Tem muita mulher lá que mexeu
com isso já [...] Nossa! A hora em que eu vi o relatório
fiquei horrorizada: “Meu Deus!” Porque tá lá assim em
termo de funções [...] renais, sistema nervoso central,
pode atingir. Eu falei: “Por isso que é todo mundo louco
lá”. Porque é uma coisa muito forte, e a pessoa que
trabalha com o Etilenoglicol... porque [como] ele sai
aquela fumaça [...] aquele vapor, o pessoal falou: [...] “Se
68
- Cf. a enciclopédia do site: http://www.agendasaude.com.br/ Acessado: 5/03/07
69
- Cf. http://www.inmetro.gov.br/consumidor/produtos/aditivos.asp Acessado: 5/03/07
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301
fizer assim ô [lamber os lábios], você sente o doce [...]
[dele] na boca” (Ana, 22 anos, operadora de
dinamômetro, Montadora B – grande)
Assustados com as conseqüências do fluido constatadas na internet, algumas
das quais já percebidas em seus corpos, seja com o doce que deixa na boca, o amarelo
nas mãos, as disfunções renais e a ameaça à fertilidade feminina, os operários
procuram os chefes e responsáveis pela segurança do trabalho para providenciarem
uma solução a respeito.
Os peão foi atrás, eles começaram a desconfiar, porque os
homens começaram a ficar com a mão tudo amarela
mexendo com Etilenoglicol: “Por que isso acontece?” Aí
começaram a pesquisar na internet, aí viram que pode
dar câncer, pode dar problema de disfunção renal. Têm
algumas pessoas que [estão com] problema de rim, foi
acumulando. O pessoal foi pra cima do chefe e agora tem
uma engenheira química estudando o produto [...] nunca
ninguém foi atrás, a gente mesmo que trabalha que ficou
fazendo uma pesquisa [...] Aí começou a bater de frente
com os gerentes [...]: “Ô! E aí! Não vai fazer nada com
relação a isso?” [...] Então [...] eles fizeram o teste ni
mim, pra ver o quanto eu tô exposta [...] [e] pediram pras
mulheres não trabalharem com o Etilenoglicol. (Ana, 22
anos, operadora de dinamômetro, Montadora B – grande)
Todavia, embora o mercado disponibilize um produto similar e não nocivo à
saúde, essa fábrica não se propôs a substituir o produto, e sequer se pronunciou
definitivamente a respeito. Além disso, exime-se do monitoramento constante da
função renal e dos níveis de etilenoglicol presentes no sangue dos operários sujeitos à
substância.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
302
A dramaticidade da situação traça um quadro sombrio em que operários e
operárias vivem a iminência de um desastre. Embora não se resignem e pressionem os
responsáveis, têm de permanecer à espera de uma solução que, na realidade, pelo
menos em curto prazo, independe deles. Até que ocorra uma providência externa, eles
estão reféns de sua própria sorte, impotentes diante da situação que não podem re-
normalizar e, o mais sinistro, correndo riscos de certa forma acordada, ainda que
indesejada.
Perfilado e a reboque desse mesmo gênero de drama, está o sofrimento
psicofísico dos operários literalmente atormentados por suas condições de trabalho,
particularmente aquelas advindas de ambiente rudimentar e precário ergonomicamente.
Dentre os operários entrevistados no trabalho de campo, o caso mais
ilustrativo, dado o fato de sua experiência ser carregada de consternação, amargura, dor
e humilhação, é aquele vivido pela jovem-mãe Jussara.
Antes de mergulhar nessa história desoladora, vale retomar a noção de “maus
usos de si” desenvolvida por Schwartz (1992: 43). Todas as experiências arroladas
aqui, derivadas de doenças provocadas por contaminação tóxica, por movimentos
repetitivos, equipamentos inadequados, tratamentos humilhantes, em relação aos quais
o operário não dispõe de meios de evitação e de re-normalização e, por isso, acaba
sendo forçado a submeter-se – são todas situações que expressam os “maus usos de si”
provocados ou cometidos pelos outros ou ainda forçados pela convivência com os
outros.
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
303
Na flor da idade, aos 27 anos, a jovem Jussara foi vitimada por doença de
trabalho no chão de fábrica de uma grande montadora, dada as condições precárias às
quais teve de submeter-se. Ela começou a trabalhar lá em 1997, com 22 anos de idade,
trabalhando diariamente sem talha para erguer peças muito pesadas. Cinco anos depois
descobriu que já havia contraído uma doença.
Eu fazia movimentos muito pesados, porque no começo
eu levantava 14 quilos do chão [...] praticamente [...] até
a bancada e em ritmo acelerado porque eu trabalho numa
linha de motores, então você tem uma [...] meta diária.
[...] são 13, 14 quilos de 3 em 3 minutos [...] 80 motores,
120 motores [...] [por turno] eu nunca trabalhei com
talha. [...] você monta, põe a peça no carrinho, você tira a
peça de dentro da caixa, a sua posição pra poder tirar a
peça é inadequada, a peça está numa embalagem
inadequada, você levanta os 13 quilos acima do seu
ombro, isso tudo você faz diariamente [...] eu sempre
dobrei os joelhos, você acostuma, só que às vezes nem
dobrando o joelho todo o dia você consegue, tem uma
hora que a sua coluna não agüenta, coluna, braço, punho,
tudo vai. Eu tenho problema no ombro e na coluna, hoje
em dia. (Jussara, 30 anos, montadora, Montadora B –
grande)
Clinicamente, a patologia que acometeu Jussara é considerada grave e de
difícil intervenção cirúrgica. Assolada por desalento profundo, ela relata seu flagelo,
mencionando as terríveis e insuportáveis dores que sente nas partes em que o seu
corpo foi arruinado pela displicência e desumanidade das condições do seu trabalho.
O dia inteiro também eu sinto o meu braço [direito] doer,
meu braço doer [...] A minha coluna, quando ela começa
a doer, a minha perna esquerda repuxa [...] total [...]
tenho hérnia de disco [...] em dois pontos da coluna L4 e
L5 [...] e tenho tendinite no ombro direito. (Jussara, 30
anos, montadora, Montadora B – grande)
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304
Diante desse cenário de dor e constatada a patologia, teve início um
processo burocrático moroso de perícia. Somente depois de dois anos, a fábrica
assumiu oficialmente sua responsabilidade. Durante esse longo período de espera, o
quadro agravou-se e tornou-se crônico.
O ponto culminante, que exigiu reconhecimento da responsabilidade por
parte da fábrica ocorreu quando certo dia, enquanto trabalhava, Jussara sofreu uma
crise muito intensa na coluna, que a deixou curvada tamanha era a dor. Nessa
posição, ela caminhou lentamente até o ambulatório da fábrica, onde chegou depois
de muito custo e sofrimento. Ela só queria um remédio para amenizar sua dor e
poder voltar ao trabalho; todavia recebeu tratamento de extrema brutalidade por
parte de um médico, ao que tudo indica, comprometido com as divisas da fábrica e
não com a ética médica.
Teve um dia que eu não tava agüentando de dor nas
costas [...] eu entrei no ambulatório morrendo de dor [...]
tava andando devagar até [...] [O médico] tirou
radiografia da minha coluna: “Ah! Não tem nada”. Ele
[...] prescreveu a medicação e falou: “Você compra tanto
na farmácia”, e não me deu nada [de medicamento], só
que ao mesmo tempo ele me [...] mandou voltar a
trabalhar. Mas ele me indicou fisioterapia. [...] Quando a
fisioterapeuta [da fábrica] viu minha fisionomia [...] eu
falei pra ela: “Eu não tô mentindo, eu tô morrendo de dor
nas costa, eu não tô agüentando [...] só queria remédio
só”. Aí ela falou: “Já te falaram que você tem desvio na
coluna, o médico falou alguma coisa pra você?” Eu falei:
“Não” [...] Ela me pôs na parede, marcou meu ombro, eu
tenho um ombro mais alto que o outro por desvio de
coluna. Ela falou: “Olha! Se eu fosse você, eu ia procurar
um outro médico” [...] Eu consegui fazer a avaliação [com
ela] e de imediato [...] eu fui pra um aparelho de
fisioterapia e fiquei [...] mais ou menos [...] quase umas
duas horas sem trabalhar, foi o que amenizou a minha dor
naquele dia. Depois eu cheguei em casa, eu tomei o
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305
remédio que ele mandou e fui procurar [outro] médico.
Aí eu comecei a fazer o tratamento [...] como tava, toda
hora eu tinha dor, ele me dava remédio, não tava
melhorando, ele mandou eu fazer um exame médico
específico porque tava ficando crônico né, a minha dor
[...] ele mandou [...] fazer ressonância [...] Aí [...] na
ressonância deu que eu tenho hérnia de disco. (Jussara,
30 anos, montadora, Montadora B – grande)
O retrato desolador dessa experiência revela o quanto a doença do trabalho é
tratada com desprezo por um médico de fábrica, cuja postura omite a existência da
patologia e, sobretudo, age feito um algoz, que ignora e prolonga o sofrimento do
outro, aviltando e descumprindo seu compromisso ético em minimizar a dor alheia.
Refletindo sobre as precauções que tomou durante todo o seu tempo de
trabalho fabril, Jussara chama a atenção para a ironia do seu destino, pois sempre usou
os EPIs (equipamentos de proteção individual), como óculos de proteção, luvas,
protetor auricular, uniforme, inclusive em ambientes desnecessários, como banheiro e
escritório. Entretanto, a proteção essencial de que precisava – a talha para içar as peças
pesadas do chão até a bancada – estava ausente em seu posto. A fábrica também foi
muito negligente quando alocou uma mulher num posto que exigia muita força física.
Parcialmente invalidada pela doença do trabalho, Jussara teve seu título de
trabalhador alterado juridicamente para “compatível”, o que consiste, teoricamente, na
restrição de desempenho de certas tarefas cujos movimentos ultrapassam suas
limitações físicas.
Eu sou compatível, doença profissional [...] Eu trabalho
num serviço mais leve porque [...] eu tenho restrição a
peso e a determinadas ferramentas e a trabalhar com os
braços acima do ombro. (Jussara, 30 anos, montadora,
Montadora B – grande)
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Silva, Cristiane A. Fernandes da. A gestão de si na reinvenção das normas: práticas e subjetividade no trabalho
306
Não obstante essas restrições, a realidade dos deveres a ela atribuídos dentro
da fábrica é bem diversa dos direitos assegurados em lei. Solicitada por seu chefe,
indiferente ao seu estado, Jussara acaba preenchendo funções de postos vacantes, cujas
tarefas lhe exigem exercer movimentos que lhe estão interditados. Nem mesmo o
rodízio de tarefas sana esse problema, uma vez que a maioria das trabalhadoras do seu
setor já foi atingida por doença do trabalho.
Eu saí [daquele posto] porque constatou o problema, mas
[...] a partir do momento que você trabalha naquele
posto, você sabe trabalhar, faltou um funcionário? “Dá
pra você ficar lá uma hora, um dia?”, [o chefe pede]. Você
fica. [...] A pessoa fazer revezamento de serviço [...]: eu,
você e outra pessoa, só que você olha ali, eu não posso
carregar peso, você não pode a outra pessoa também não
pode. Então quem reveza, aonde? Não existe isso. A
empresa implantou trabalho em grupo, tem um grupo de
trabalho, no grupo que eu trabalho, quase todos os
elementos do grupo têm doença profissional, não têm
restrições [...] você não fica fixo naquilo [...] Pra você
não negar serviço, você fica. E sempre com aquela
alegação: “É só hoje. É só um pouquinho”. E assim você
vai ficando. (Jussara, 30 anos, montadora, Montadora B
grande)
O atributo do rótulo de “compatível” revela-se tão somente como uma
máscara utilizada pela fábrica para ludibriar o controle de certificação. Pois, a despeito
da legislação trabalhista, efetivamente, as circunstâncias fabris obrigam os operários a
trabalharem sem quaisquer restrições de tarefas.
[A] pessoa que tem doença profissional dentro de uma
empresa [...] tem limitações [...] se você for olhar no meu
prontuário na empresa: [...] eu não posso levantar peso
acima de 5 quilos, eu não posso trabalhar com máquinas
vibratórias, eu não posso trabalhar com os braços acima
do ombro; e é o que eu [faço] o dia inteiro [...] Se você
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307
falar sempre: “Não vou ficar [nesse posto de trabalho],
não dá”, você é tachado como vagabundo, você não quer
trabalhar [...] Então, [o termo compatível é] Fachada,
seguindo normas [...] dentro da empresa que eu trabalho e
dentro de qualquer empresa também, [isso] só deve
funcionar pra certificações, ISO qualquer coisa, boa
qualidade, deve funcionar. Respeito ao ser humano, não
existe, numa linha de montagem, numa fábrica, não
existe! (Jussara, 30 anos, montadora, Montadora B –
grande)
Atrelado ao título de compatível, vem o pejorativo de “vagabundo”. Nesse
momento, entra em cena um segundo gênero de sofrimento, desmedido, não mais
afetando o corpo físico, mas atingindo diretamente a psique do operário. Em situações
como essa é corrente o trabalhador descuidar de sua saúde física, exercendo tarefas que
lhe estão interditadas, para poder zelar por sua saúde psicológica, prezando seu título
de trabalhador.
Nunca fui de reclamar. Eu nunca usei a minha doença pra
mim não fazer serviço [...] não é do meu feitio, não é da
minha índole fazer esse tipo de coisa [...] uma pessoa que
tem uma atividade, ela de repente [...] ter a sua atividade
praticamente zerada, acho que causa um
constrangimento pra você mesmo. Não tô me importando
pra o que os outros falam, se os outros vão me chamar de
vagabunda, mas você não se sente bem. Eu geralmente...
eu não me sinto bem porque [...] na minha rotina diária,
eu sempre fui uma pessoa que sempre fiz tudo os meus
serviços, eu nunca [tive] faxineira, eu nunca precisei de
ninguém pra carregar as minhas filhas no colo, fazer isso,
fazer aquilo e eu ultimamente eu ando restrita. Então pra
mim [...] já não é bom, agora, ainda vou ficar [...] pôr na
minha cabeça, me caracterizar uma pessoa incapaz? [...]
tem pessoa que usa esse tipo de coisa [a doença] pra não
fazer nada, porque ela tem capacidade de fazer uma coisa
ou outra, devagar, com limitações [...] Dentro da empresa
tem um monte de gente que faz isso, prejudica os outros
porque [...] você fica tachado como vagabundo, como
aconteceu comigo. Então, [...] Tem gente que não faz jus
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ao problema que tem e generaliza todo mundo que fazem
isso. (Jussara, 30 anos, montadora, Montadora B –
grande)
De vítima do trabalho, o operário passa a delinqüente, cujo delito consiste em
não querer trabalhar, portanto descumprir o contrato de trabalho assumido junto à
fábrica. Porém, por trás dessa atitude às avessas esconde-se um álibi: a ideologia fabril
que mascara sua culpa. M. Carvalho analisa esse ponto de forma lúcida:
A doença é vergonhosa, sobretudo porque ela se
manifesta pelos sinais do corpo [...] o trabalhador doente
[...] é a denúncia constante do sistema opressor e imoral.
Se ele é categorizado como “delinqüente”, a chefia e o
sistema estão “a salvo” do julgamento, a opressão fica
“escondida”. E o “delinqüente” deve ser punido; a
punição máxima na fábrica, a demissão. (M. Carvalho,
1989: 147)
Um trabalhador doente fisicamente vive situação ainda pior em seus valores,
como o orgulho: impossibilitado de trabalhar bem, ele desafia sua saúde para
desempenhar-se como se estivesse em plena condição. Tudo isso para assegurar um
trabalho “bem feito” e evitar ser chamado de ocioso.
Deflagra-se aí uma árdua batalha de valores, em que diversas vezes o valor
“saúde” perde espaço para o valor “orgulho”. O corpo do operário acaba se
submetendo ao valor “orgulho” de ser trabalhador para impedir a desonra do viver
coletivo fabril. Destarte, a situação sugere dois impasses: os limites físicos que o
trabalhador apresenta afrontam a moral do bom profissional, ao mesmo tempo, essa
mesma moral combate suas limitações. Donde aflora o mal-estar e o suplício no
trabalho.
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309
Aventando a discussão do cuidado de si, M. Carvalho tece comentário um
tanto sinistro acerca dessa ambigüidade de valores saúde-doença no trabalho.
Conforme a autora, quando se entrega à doença originada no trabalho, o trabalhador o
faz porque essa foi a única maneira que encontrou para “cuidar de si, cuidando de sua
doença” (1989: 158).
É inevitável passar pelo crivo da perspectiva foucaultiana ao tratar do cuidado
de si
70
. O pensamento de Foucault é considerado como desconcertante pelos
significativos deslocamentos epistemológicos que assumiu em sua trajetória filosófica.
Conhecido como aquele que anunciou a “morte do sujeito” ao vinculá-lo à docilização
dos corpos pelo poder disciplinar das instituições, no final da vida, dedicou-se à
hermenêutica de si. O autor transitou da prática coercitiva para a prática da constituição
de si do sujeito, fazendo emergir a importância do cuidado de si, um cuidado efetivado
como prática de liberdade, porém ética. Esse cuidado de si consiste no trabalho de si
sobre si mesmo para elaborar um modo de ser. Embora esse modo de ser seja
alcançado pela prática da liberdade, esta se encontra ontologicamente assentada na
ética, ou ainda em valores coletivos (1994: 709). Justificando essa mudança, o autor
argumenta:
eu diria que se agora eu me interesso de fato pela maneira
como o sujeito se constitui de forma ativa pelas práticas
de si, entretanto, essas práticas não são algo que o
indivíduo invente por ele mesmo. Elas são esquemas que
ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos,
70
- Cf. a análise de Rosa sobre a concepção de norma em Foucault, confrontada com a do seu orientador
Canguilhem. A autora avalia serem incompatíveis as duas abordagens por considerar a foucaultiana
assentada na idéia de média, logo excluída do “tempo criador” do sujeito (2004: 124-131). A propósito dessa
diferenciação, alguns ergólogos brasileiros, como Athayde e Brito (2003), preferem empregar o termo
(re)normatizar, em vez de (re)normalizar, justamente para diferenciar da abordagem de Foucault (1999), que
trata do poder normalizador das instituições de homogeneizar os indivíduos. Porém, do ponto de vista
etimológico, tanto português quanto francês, o sentido dos dois termos são análogos, por isso não fizemos
distinção no emprego dos mesmos.
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310
sugeridos, impostos por sua cultura, sua sociedade e seu
grupo social. (idem, p. 719, grifo nosso)
Tendo a sociedade grega clássica como referência, Foucault aduz ainda que o
cuidado de si coincide com o cuidado do outro, porém o cuidado de si tem primazia
ética, uma vez que a relação consigo mesmo tem prioridade ontológica (1994: 715).
Não obstante, vivendo em uma sociedade extremamente complexa, na qual valores e
subjetividades se entrelaçam e se desacordam, no caso de Jussara, o que se verifica é
inversão ontológica desse cuidado.
Mesmo tendo limitações físicas e sofrendo consternações morais, Jussara não
se resigna. Sendo mãe de duas meninas pequenas, uma de 5 e outra de 4 anos de idade,
ela teve de reaprender a lidar com seu cotidiano, tanto fabril quanto doméstico e
familiar. Assim, desenvolveu técnicas de organização do meio e intervenções
condizentes com a nova configuração do seu corpo.
Por causa do braço, da dor, você vai aprendendo a mexer
com as suas limitações, mas não só no serviço, em casa
também eu aprendi, tive que me adequar também [...] os
meus varalzinhos são baixos [...] Eu não faço várias
coisas de serviço de casa [...] que eu fazia antigamente
porque eu sinto o meu braço doer muito [...] eu não pego
criança de colo [...] peso, eu não pego porque eu não
agüento [...] deixei de ser sedentária também, eu faço
ginástica, eu faço hidroginástica, mas em tudo que eu faço
eu tenho limitações [...] É complicado, mas você tem que
aprender a lidar com o seu problema, cada um tem um
problema, você tem que aprender, eu aprendi a lidar com
a minha [doença] (Jussara, 30 anos, montadora,
Montadora B – grande)
Com a vida cercada por restrições, tanto de ordem profissional quanto
familiar, além de ser depreciada e considerada ociosa no trabalho, ela também teve de
renunciar a importantes práticas que ajudam a selar os laços maternais, como dar colo a
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suas filhas. Certamente, a patologia laboral limitou sua vida privada e pública; no
entanto, ela não aceita o título de inválida, e por isso pratica exercícios físicos,
readequou seu espaço doméstico, re-normalizou sua relação com as filhas, estabeleceu,
na medida do possível, trocas de tarefas em seu trabalho fabril, enfim reinventou sua
vida por completo para poder continuar.
Essa história de vida, apesar de poder provocar desalento em quem toma
conhecimento dela, deixa uma grande lição ao enunciar que mesmo sendo complicado
é preciso que cada um aprenda a lidar com o seu problema. Essa mensagem, que
incentiva a lutar com e pela vida recorda muito a lida no campo, belissimamente
retratada em duas canções por dois admiráveis cantores, compositores-poetas
brasileiros, um violonista e outro violeiro:
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Meu pai chegou aqui
Num fim de dia
Há muito tempo [...]
Com minha mãe
[...] semeou o milho
E semeou os filhos
E semeou o amor
De sol a sol
O braço do trabalho
Foi como um laço [...]
Não era fácil a lida
Mas valia
Porque um homem
Precisa lutar [...]
Eu me enterrei
De alma na viola
Onde plantei tristezas
E colhi canções
(Renato Teixeira. “Sina de violeiro”)
Penso que cumprir a vida seja simplesmente
Compreender a marcha, e ir tocando em frente
Como um velho boiadeiro levando a boiada,
Eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou,
De estrada eu sou
Todo mundo ama um dia todo mundo chora,
Um dia a gente chega, no outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua história,
E cada ser em si, carrega o dom de ser capaz, e ser feliz.
(Renato Teixeira e Almir Sater. “Tocando em Frente”)
Compor a sua própria história, apesar das adversidades às quais se é
submetido, carregar consigo o mérito de construir um mundo cotidiano, em que seja
possível para alguém efetivamente intervir no meio para torná-lo o mais condizente
possível aos seus limites e aos seus valores. Eis o sentido das trajetórias de vida que se
pôde apreender dos testemunhos dos operários e das operárias aqui apresentadas,
trajetórias que revelam situações de júbilo, de sofrimento, de aprendizagem, de
criatividade, de desventura, enfim, dramas. Dramas dos quais eles e elas fazem usos
mediante escolhas operacionais e valorativas advindas de si e dos outros. Assim, eles
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constituem seu meio ao mesmo tempo que constituem a si mesmos, reinventando o seu
trabalho e o seu próprio corpo físico, psíquico e social.
Parafraseando Clot: “Na vida, a automatização tanto expõe os grupos sociais à
reelaboração dos sentidos de suas trocas, quanto expõe a vida subjetiva de cada
trabalhador a uma ‘recuperação’ constante de si. Nada eclipsa o sujeito” (1992a: 59).
Por mais que a automatização de movimentos, de operações e de maquinários
lance em torno dos indivíduos uma realidade fabril cujo funcionamento lhes pareça
fugidio e distante, a gestão singular de si que faz aflorar, que desencadeia é de per si
convidativa e persuasiva para a transformação do indivíduo em sujeito, compositor de
sua própria história cotidiana.
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À guisa de conclusão
Nas linhas insuficientes e no estreito espaço-tempo disponível para a
montagem dessa pesquisa, pôde-se pinçar somente parcela restrita da “real” riqueza das
experiências operárias. Mesmo sabendo que a grandeza das experiências pertence
somente à realidade, ainda que diminutamente, buscou-se trazer a lume achados
instigantes que nos foram tornados acessíveis, de forma privilegiada.
Quando transportada para palavras escritas, a beleza da experiência vivida não
consegue manter sua aura cintilante. Entretanto, o importante é que tenha sido
registrada, tornando possível a reflexão pública a seu respeito e, eventualmente, sendo
potencializadora de mudanças.
Ao final das reflexões que a investigação permitiu e que, todavia, continuarão
a orientar nosso trabalho, resta unir os fios e explicar algumas considerações finais,
cuja tônica será voltada para a retomada das análises feitas no curso do trabalho,
buscando mostrar que, se a sociedade moderna normaliza, os indivíduos a re-
normalizam.
Com sua alta densidade demográfica e complexidade sócio-político-
econômica, a sociedade moderna busca normalizar os indivíduos, coibindo sua
possibilidade de ação e esperando deles determinado tipo de comportamento,
“impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a ‘normalizar’ os seus
membros, a fazê-los ‘comportarem-se’, a abolir a ação espontânea ou a reação
inusitada” (Arendt, 1987: 50). Não obstante essa tendência da sociedade, os sujeitos se
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insurgem contra a padronização de comportamento, ainda que de forma sub-reptícia,
com micro-negociações e micro-decisões cotidianas.
Numerosas pesquisas realizadas nas mais diversas áreas do conhecimento –
história, psicologia, sociologia, antropologia, engenharia, filosofia, ergologia –
constatam o caráter insurgente dos indivíduos em seu dia-a-dia. Essas constatações não
são restritas ao plano teórico, mas efetivamente verificadas na prática por meio da
escuta, da observação e da participação junto aos sujeitos alvos de normas sociais,
notadamente no trabalho.
De forma elucidativa, Sato resume a realidade da gestão normativa oficial no
trabalho e sua repercussão para a saúde do trabalhador:
A depender da forma como o processo de trabalho é
organizado, o cotidiano no local de trabalho é configurado
por contextos nos quais os modos de se trabalhar, de se
relacionar, de lidar com o tempo, com o espaço e com os
equipamentos são sabidamente danosos à saúde (2002:
1147).
Visando defenderem-se dos danos causados pela abstração e desenraizamento
da prática, que a organização do trabalho apresenta, sejam eles diretamente vinculados
à saúde ou à cultura dos operários, estes não somente questionam em ato essa
organização como criam no dia-a-dia formas que, ao mesmo tempo, garantam a
produção e zelem por seus valores.
Ao longo dos testemunhos dos operários, ficou patente em suas ações, mesmo
miúdas, sua persistência inconformista em re-normalizar e gerir, jamais em executar.
Gerir por intermédio do refazer de normas implica necessariamente a gestão de si
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mesmo. À medida que o operário toma iniciativas e elabora adaptações no ambiente
fabril, ele está fazendo escolhas; ainda que limitadas ou, às vezes, mesmo
condicionadas, não deixam de ser escolhas.
Escolhas não são traduzidas em ações mecânicas e previsíveis, mas realizadas
por seres reflexivos, que colocam em questão não apenas fatores econômicos, mas
também sociais e afetivos, portanto, pondo em jogo elementos que constituem sua
subjetividade e seus valores.
Pudemos vislumbrar parte da interferência da subjetividade do operário sobre
a forma que atua, ao confrontarmos as escolhas do modo de trabalhar com os traços
pessoais do trabalhador. Por exemplo, Inácio, cuja trajetória de ativista sindical o
tornou mais precavido quanto a comunicar à empresa sugestões que pudessem ser
nocivas a sua categoria, assumindo, portanto, uma atitude política que visa proteger a
coletividade. Outro caso ilustrativo é o de Pablo que, dada sua personalidade super
ativa, adianta a produção indo até os setores que o antecedem, criando dessa forma
novos intervalos de tempo de não-trabalho produtivo.
Entrevê-se, assim, que cada história, prenhe de valores, decepções, paixões,
constitui e diferencia a forma como cada operário desenha e exerce a sua atividade, a
despeito dos padrões formalmente estabelecidos.
Sob a égide da singularidade, o modus operandi prescrito passa a ser
alternativamente diversificado e variável. É próprio do ser humano não suportar o
homogêneo, a mesmice, a reprodução. Sua máxima é a inventividade, o re-normalizar,
o refazer perene conforme as contingências do meio e de si próprio.
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Esse refazer é possibilitado em função de o meio ser proponente de uma gama
significativa de soluções para problemas, porém é ao ser vivo que cabe a escolha entre
as alternativas disponíveis que, certamente, será diversificada por ancorar-se em
possibilidades, necessidades e desejos, logo, em valores diferenciados (Canguilhem,
2003: 181-2).
A prática reinventiva operária envolve a recusa por seu distanciamento da
elaboração das normas fabris. Em seu ato de trabalho, o operário sempre busca
conformar o meio a si mesmo, re-centrando-o entorno de suas escolhas possíveis.
Uma das formas visíveis do re-centramento é a manipulação e apropriação dos
objetos, adequando-os as suas necessidades funcionais e estéticas, seja uma engenhoca
ou a inscrição de um verso sobre uma peça. A reinvenção operária de sua atividade não
significa apenas mudanças práticas, pontuais e objetivas que imprimem sobre os
objetos e instrumentos de sua lida diária. Reinventando suas formas de trabalhar, o
operário reinventa a si mesmo.
Com sua perspicácia sagaz, Alex proferiu uma frase grandiloqüente que sela
essa idéia: quando se adquire um automóvel, não é apenas esse objeto que se obtém; o
trabalhador também está agregado nele.
Trabalhando, o operário de certa forma injeta um pouco de si no objeto que
fabrica. A situação mais emblemática para concretizar essa assertiva, é a forte imagem
resgatada por Pablo. Desejoso de fazer parte, fisicamente, do câmbio que monta e de
fazer sua história transcender os muros da fábrica, ele desenha em partes escondidas da
peça frases que admira e que permanecerão como marcas perenes de sua singularidade.
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Trabalhar requer o confronto contínuo dos operários com as normas alheias,
indigestas às suas práticas, seus valores e sua subjetividade. Trabalhar, ainda, remete a
gerir situações fortuitas por intermédio da re-criação de ferramentas, de técnicas, do
espaço, do tempo e de si mesmos. Trabalhar, portanto, implica produzir objetos físicos
ou conceituais, mas ao mesmo tempo inventar formas de trabalhar, modos de vida,
jeitos de ser.
Tese de doutorado – Sociologia - FFLCH/USP
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