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Uma relação de forças é uma função do tipo “incitar, suscitar, combinar...” No caso das sociedades
disciplinares, dir-se-á: repartir, colocar em série, compor, normalizar. A lista é indefinida, variável
conforme o caso. O poder “produz realidades”, antes de reprimir. E também produz verdade antes
de ideologizar, antes de abstrair ou de mascarar. (...) Foucault não ignora de modo algum a repressão
e a ideologia, mas, como Nietzche já havia visto, elas não constituem o combate de forças, são
apenas a poeira levantada pelo combate. (DELEUZE, 1998: 38-39)
O sexto postulado, o da legalidade, entende que o poder do Estado sempre será
expresso na lei. Por suas vez, a lei será resultado de uma dupla ação: em certos momentos
como mantenedora de um estado de paz, construído à força bruta; em outros momentos como
resultado de uma disputa entre mais fortes e mais fracos. Sempre há, na dupla ação, uma
cessação forçada pela guerra. Neste ponto, Deleuze chama a atenção para um dado
fundamental na perspectiva de Foucault:
Um dos temas mais profundos do livro de Foucault consiste em substituir a oposição, por demais
grosseira, lei-ilegalidade por uma correlação final ilegalismo-lei. A lei é sempre uma composição de
ilegalismo, que ela diferencia ao formalizar. (...) A lei é uma gestão dos ilegalismo, permitindo uns,
tornando-os possíveis ou inventando-os como privilégio da classe dominante, tolerando outros como
compensação às classes dominadas, ou, mesmo, fazendo-os servir à classe dominante, finalmente,
proibindo, isolando e tomando outros como objeto, mas também como meio de dominação. É assim
que as mudanças na lei no século XVIII, têm como fundo uma nova distribuição dos ilegalismos, não
porque as infrações tendem a mudar de natureza, aplicando-se cada vez mais à propriedade e não
às pessoas, mas porque os poderes disciplinares recortam e formalizam de outra maneira essas
infrações, definindo uma forma original chamada “delinqüência”, que permite uma nova diferenciação,
um novo controle dos ilegalismos. Mas, o que é comum às repúblicas e às monarquias ocidentais é
terem erigido a entidade da Lei como suposto princípio do poder, para obterem uma representação
jurídica homogênea: o “modelo jurídico” veio recobrir o mapa estratégico. O mapa dos ilegalismos,
entretanto, continua a trabalhar sob o modelo da legalidade. E Foucault mostra que a lei não é nem
um estado de paz nem o resultado de uma guerra ganha: ela é a própria guerra e a estratégia dessa
guerra em ato, exatamente como o poder não é uma propriedade adquirida pela classe dominante,
mas um exercício atual de sua estratégia. (DELEUZE, 1998: 39-40)
Manuel Maria Carrilho considera que a singularidade de um filósofo está na capacidade
deste formular novos problemas a partir de sua obra. Para ele, os problemas pensados na
filosofia são da ordem da transitoriedade, da mobilidade
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, e desta forma encontram evolução
na proposição de novos problemas.
A identidade dos problemas através da história não passa de uma tese oriunda das exigências
escolares da filosofia, a que o ecletismo moderno procurou dar espessura de uma doutrina. E os
problemas constituem-se sempre através de complexas relações entre o objeto de um estudo e o
método de investigação: é deste conjunto que pode nascer, num movimento de interferências mútuas,
uma filosofia. Com Michel Foucault ela tomou um nome preciso: o de genealogia.
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“Mobilidade que é certamente o sentido fundamental do “retiro” do mundo com que H Arendt, em páginas luminosas do The
Life of Mind, caracterizou o trabalho do pensamento: o retiro como condição de acesso aos mais agitados, tumultuosos interstícios
do mundo.” (CARRILHO, 1989: 34)