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Cesare Beccaria
DOS DELITOS
E
DAS PENAS
—Ridendo Castigat Mores—
Dos Delitos e das Penas (1764)
Cesare Beccaria (1738-1794)
Edição
Ridendo Castigat Mores
Versão para eBook
eBooksBrasil.com
Fonte Digital
www.jahr.org
Copyright ©
Autor: Cesare Beccaria
Edição eletrônica:
Ed. Ridendo Castigat Mores
(www.jahr.org)
Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei sempre por conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que
paga impostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma gota do que ela me proporcionou.”
Nélson Jahr Garcia (1947-2002)
ÍNDICE
Apresentação
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Biografia do autor
Prefácio do autor
I – Introdução
II – Origem das penas e direito punir
III – Conseqüências desses princípios
IV – Da interpretação das leis
V – Da obscuridade das leis
VI – Da prisão
VII – Dos indícios do delito e da forma dos julgamentos
VIII – Das testemunhas
IX – Das acusações secretas
X – Dos interrogatórios sugestivos
XI – Dos juramentos
XII – Da questão ou tortura
XIII – Da duração do processo e da prescrição
XIV – Dos crimes começados; dos cúmplices; da impunidade
XV – Da moderação das penas
XVI – Da pena de morte
XVII – Do banimento e das confiscações
XVIII – Da infâmia
XIX – Da publicidade e da presteza das penas
XX – Que o castigo deve ser inevitável. – Das graças
XXI – Dos asilos
XXII – Do uso de pôr a cabeça a prêmio
XXIII – Que as penas devem ser proporcionadas aos delitos
XXIV – Da medida dos delitos
XXV – Divisão dos delitos
XXVI – Dos crimes de lesa-majestade
XXVII Dos atentados contra a segurança dos particulares e principalmente das
violências
XXVIII – Das injúrias
XXIX – Dos duelos
XXX – Do roubo
XXXI – Do contrabando
XXXII – Das falências
XXXIII – Dos delitos que perturbam a tranqüilidade pública
XXXIV – Da ociosidade
XXXV – Do suicídio
XXXVI – De certos delitos difíceis de constatar
XXXVII – De uma espécie particular de delito
XXXVIII De algumas fontes gerais de erros e de injustiças na legislação e, em
primeiro lugar, das falsas idéias de utilidade
XXXIX – Do espírito de família
XL – Do espírito do fisco
XLI – Dos meios de prevenir crimes
XLII – Conclusão
APÊNDICE
Respostas às “Notas e observações” de um frade dominicano sobre o livro “Dos Delitos
e das penas”
I – Acusação de impiedade
II – Acusações de sedição
Extrato da correspondência de Beccaria e de Morellet sobre o livro “Dos Delitos e das
ads:
penas”
De Morellet a Beccaria
De Beccaria a Morellet
Notas
DOS DELITOS
E
DAS PENAS
Cesare Beccaria
APRESENTAÇÃO
Nélson Jahr Garcia
“Dos delitos e das penas” é uma obra que se insere no movimento filosófico e
humanitário da segunda metade do século XVIII, ao qual pertencem os trabalhos dos
Enciclopedistas, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros.
Na época havia grassado a tese de que as penas constituíam uma espécie de vingança
coletiva; essa concepção havia induzido à aplicação de punições de conseqüências
muito superiores e mais terríveis que os males produzidos pelos delitos. Prodigalizara-se
a prática de torturas, penas de morte, prisões desumanas, banimentos, acusações
secretas.
Foi contra essa situação que se insurgiu Beccaria. Sua obra foi elogiada por intelectuais,
religiosos e nobres (inclusive Catarina da Rússia). As críticas foram poucas, geralmente
resultantes de interesses egoísticos de magistrados e clérigos. A humanidade encontrava
novos caminhos para garantir a igualdade e a justiça.
Estamos divulgando o texto por acreditarmos que deva ser lido de novo, especialmente
no Brasil. A prática de torturas, entre nós, tem sido cada vez mais freqüente. A pena de
morte, que vai sendo abolida em países mais avançados, aqui tem sido proposta por
inúmeros políticos raivosos. Crianças ficam encarceradas sob condições cruéis, às vezes
bárbaras. Juizes corruptos vivem no conforto de suas mansões. Assassinos frios, por
serem influentes, desfrutam de todas as mordomias.
Que o espírito de Beccaria nos ilumine.
BIOGRAFIA DO AUTOR
CESARE BONESANA, marquês de Beccaria, nasceu em Milão no ano de 1738.
Educado em Paris pelos jesuítas, entregou-se com entusiasmo ao estudo da literatura e
das matemáticas. Muita influência exerceu na formação do seu espírito a leitura das
Lettres Persanes de Mostesquieu e de L’Esprit de Helvétius. Desde então, todas as suas
preocupações se voltaram para o estudo da filosofia. Foi ele um dos fundadores da
sociedade literária que se formou em Milão e que, inspirando-se no exemplo da de
Helvétius, divulgou os novos princípios da filosofia francesa. Além disso, a fim de
divulgar na Itália as idéias novas, Beccaria fez parte da redação do jornal Il Caffè, que
apareceu de 1764 a 1765.
Foi mais ou menos por essa época que, insurgindo-se contra as injustiças dos processos
criminais em voga, Beccaria principiou a agitar com os seus amigos, entre os quais se
destacavam os irmãos Pietro e Alessandro Verri, os complexos problemas relacionados
com a matéria. Assim teve origem o seu livro Dei Delitti e delle Pene. Receoso de
perseguições, o autor mandou imprimir sua obra secretamente, em Livorno, e ainda
assim velando muitos pensamentos com expressões vagas e indecisas.
O tratado Dos Delitos e das Penas é a filosofia francesa aplicada à legislação penal:
contra a tradição jurídica, invoca a razão e o sentimento; faz-se porta-voz dos protestos
da consciência pública contra os julgamentos secretos, o juramento imposto aos
acusados, a tortura, a confiscação, as penas infamantes, a desigualdade ante o castigo, a
atrocidade dos suplícios; estabelece limites entre a justiça divina e a justiça humana,
entre os pecados e os delitos; condena o direito de vingança e toma por base do direito
de punir a utilidade social; declara a pena de morte inútil e reclama a proporcionalidade
das penas aos delitos, assim como a separação do poder judiciário e do poder
legislativo. Nenhum livro fora tão oportuno e o seu sucesso foi verdadeiramente
extraordinário, sobretudo entre os filósofos franceses. O abade Morellet traduziu-o,
Diderot anotou-o, Voltaire comentou-o. d’Alembert, Buffon, Hume, Helvétius, o barão
d’Holbach, em suma, todos os grandes homens da França manifestaram desde logo a
sua admiração e seu entusiasmo. Em 1766, indo a Paris, Beccaria foi alvo das mais
vivas demonstrações de simpatia. No entanto, tendo regressado a Milão, cidade que ele
não mais abandonou, teve de sofrer uma campanha infamante por parte dos seus
adversários, que ainda se apegavam aos preconceitos e à rotina para acusá-lo de heresia.
A denúncia não teve conseqüências, mas Beccaria ressentiu-se de tal forma que o receio
de novas perseguições levou-o a renunciar às dissertações filosóficas.
Em 1768, o governo austríaco, sabedor de que ele recusara as ofertas de Catarina II, que
procurara atraí-lo para São Petersburgo, criou em seu favor uma cátedra de economia
política.
Beccaria morreu em Milão, em 1794.
PREFÁCIO DO AUTOR
ALGUNS fragmentos da legislação de um antigo povo conquistador, compilados por
ordem de um príncipe que reinou doze séculos em Constantinopla, combinados em
seguida com os costumes dos lombardos e amortalhados num volumoso calhamaço de
comentários obscuros, constituem o velho acervo de opiniões que uma grande parte da
Europa honrou com o nome de leis; e, mesmo hoje, o preconceito da rotina, tão funesto
quanto generalizado, faz que uma opinião de Carpozow(1), uma velha prática indicada
por Claro(2), um suplício imaginado com bárbara complacência por Francisco(3), sejam
as regras que friamente seguem esses homens, que deveriam tremer quando decidem da
vida e fortuna dos seus concidadãos
É esse código informe, que o passa de produção monstruosa dos séculos mais
bárbaros, que eu quero examinar nesta obra. Limitar-me-ei, porém, ao sistema criminal,
cujos abusos ousarei assinalar aos que estão encarregados de proteger a felicidade
pública, sem preocupação de dar ao meu estilo o encanto que seduz a impaciência dos
leitores vulgares.
Se pude investigar livremente a verdade, se me elevei acima das opiniões comuns, devo
tal independência à indulgência e às luzes do governo sob o qual tenho a felicidade de
viver. Os grandes reis e príncipes que querem a felicidade dos homens que governam
são amigos da verdade, quando esta lhes é revelada por um filósofo que, do fundo do
seu retiro, mostra uma coragem isenta de fanatismo e se contenta em combater com as
armas da razão as empresas da violência e da intriga.
De resto, examinando-se os abusos de que vamos falar, verificar-se-á que os mesmos
constituem a sátira e a vergonha dos séculos passados, mas não do nosso século e dos
seus legisladores.
Se alguém quiser dar-me a honra de criticar meu livro, trate antes de apreender bem o
fim que me propus. Longe de pensar em diminuir a autoridade legítima, ver-se-á que
todos os meus esforços só visam a engrandecê-la e esta se engrandecerá, de fato, quando
a opinião pública for mais poderosa do que a força, quando a indulgência e a
humanidade fizerem que se perdoe aos príncipes o seu poder.
Críticos houve, cujas intenções não podiam ser honestas, que atacaram esta obra
alterando-a(4). Devo interromper-me um instante, para impor silêncio à mentira
azoinada, aos furores do fanatismo, às calúnias covardes do ódio.
Os princípios de moral e de política, aceitos entre os homens, derivam em geral de três
fontes: a revelação, a lei natural e as convenções sociais. Não se pode estabelecer
comparação entre a primeira e as duas últimas, do ponto-de-vista dos seus fins
principais; completam-se, porém, ao tenderem igualmente para tornar os homens felizes
na terra. Discutir as relações das convenções sociais não significa atacar as relações que
podem encontrar-se entre a revelação e a lei natural.
Uma vez que esses princípios divinos, embora imutáveis, foram de mil modos
desnaturados nos espíritos corruptos, ou pela maldade humana, ou pelas falsas religiões,
ou pelas idéias arbitrárias da virtude e do vício, deve parecer necessário examinar
(pondo de lado quaisquer considerações estranhas) os resultados das simples
convenções humanas, quer essas convenções tenham sido feitas realmente, quer se
suponham vantajosas para todos. Todas as opiniões, todos os sistemas de moral devem
reunir-se necessariamente nesse ponto, e nunca se louvariam bastante os louváveis
esforços tendentes a reconduzir os mais obstinados e os mais incrédulos aos princípios
que levam os homens a viver em sociedade.
Podem, pois, distinguir-se três espécies de virtudes e de vícios, cuja fonte está
igualmente na religião, na lei natural e nas convenções políticas. Jamais devem essas
três espécies estar em contradição entre si; não alcançam, contudo, os mesmos
resultados e não obrigam aos mesmos deveres. A lei natural exige menos que a
revelação, e as convenções sociais menos que a lei natural. Assim, é muito importante
distinguir bem os efeitos dessas convenções, isto é, dos pactos expressos ou tácitos que
os homens se impuseram, porque nisso deve residir o exercício legítimo da força, nessas
relações de homem a homem, que não exigem a missão especial do Ser supremo.
Pode dizer-se, portanto, com razão, que as idéias da virtude política são variáveis. As da
virtude natural seriam sempre claras e precisas se as fraquezas e as paixões humanas não
empanassem a sua pureza. As idéias da virtude religiosa são imutáveis e constantes,
porque foram imediatamente reveladas pelo próprio Deus, que as conserva inalteráveis.
Pode, pois, aquele que fala das convenções sociais e dos seus resultados ser acusado de
mostrar princípios contrários, à lei natural ou à revelação, por nada dizer a respeito?...
Se diz que o estado de guerra precedeu a reunião dos homens em sociedade, é o caso de
compará-lo a Hobbes(5), que não supõe para o homem isolado nenhum dever, nenhuma
obrigação natural?... Não se pode, ao contrário, considerar o que ele diz como um fato,
que foi tão somente a conseqüência da corrupção humana e da ausência das leis? Enfim,
não é um erro censurar um escritor, que examina os efeitos das convenções sociais, por
não admitir antes de tudo a existência mesma dessas convenções?
A justiça divina e a justiça natural são, por sua essência, constantes e invariáveis, porque
as relações existentes entre dois objetos da mesma natureza não podem mudar nunca.
Mas, a justiça humana, ou, se se quiser, a justiça política, não sendo mais do que uma
relação estabelecida entre uma ação e o estado variável da sociedade, também pode
variar, à medida que essa ação se torne vantajosa ou necessária ao estado social. se
pode determinar bem a natureza dessa justiça examinando com atenção as relações
complicadas das inconstantes combinações que governam os homens.
Se todos esses princípios, essencialmente distintos, chegam a confundir-se, não é
possível raciocinar com clareza sobre os assuntos políticos.
Cabe aos teólogos estabelecer os limites do justo e do injusto, segundo a maldade ou a
bondade interiores da ação. Ao publicista cabe determinar tais limites em política, isto é,
sob as relações do bem e do mal que a ação possa fazer à sociedade.
Esse último objeto não pode acarretar nenhum prejuízo ao outro, porque todos sabem
quanto a virtude política está abaixo das virtudes inalteráveis que emanam da
Divindade.
Repito, pois, que, se quiserem dar ao meu livro a honra de uma crítica, não comecem
por me atribuir princípios contrários à virtude ou à religião, pois tais princípios não são
os meus; em lugar de me assinalar como um ímpio ou um sedicioso, contentem-se em
mostrar que sou mau lógico ou ignorante político; não tremam a cada proposição em
que defendo os interesses da humanidade; verifiquem a inutilidade de minhas máximas
e os perigos que podem ter minhas opiniões; façam-me ver as vantagens das práticas
recebidas.
Dei um testemunho público dos meus princípios religiosos e da minha submissão ao
soberano, ao responder às Notas e Observações que se publicaram contra minha obra.
Devo guardar silêncio em relação aos escritores que doravante me opuserem as
mesmas objeções. Mas, aquele que puser em sua crítica a decência e o respeito que os
homens honestos se devem entre si, e quem tiver bastantes luzes para não me obrigar a
demonstrar-lhe os princípios mais simples, de qualquer natureza que sejam, encontrará
em mim um homem menos apressado a defender suas opiniões particulares do que um
tranqüilo amigo da verdade, pronto a confessar os seus erros.
I. INTRODUÇÃO
AS vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas entre todos os seus
membros.
No entanto, entre os homens reunidos, nota-se a tendência contínua de acumular no
menor número os privilégios, o poder e a felicidade, para deixar à maioria miséria e
fraqueza.
com boas leis podem impedir-se tais abusos. Mas, de ordinário, os homens
abandonam a leis provisórias e à prudência do momento o cuidado de regular os
negócios mais importantes, quando não os confiam à discrição daqueles mesmos cujo
interesse é oporem-se às melhores instituições e às leis mais sábias.
Além disso, não é senão depois de terem vagado por muito tempo no meio dos erros
mais funestos, depois de terem exposto mil vezes a própria liberdade e a própria
existência, que, cansados de sofrer, reduzidos aos últimos extremos, os homens se
determinam a remediar os males que os afligem.
Então, finalmente, abrem os olhos a essas verdades palpáveis que, por sua simplicidade
mesma, escapam aos espíritos vulgares, incapazes de analisar os objetos e acostumados
a receber sem exame e sobre palavra todas as impressões que se lhes queiram dar.
Abramos a história, veremos que as leis, que deveriam ser convenções feitas livremente
entre homens livres, não foram, o mais das vezes, senão o instrumento das paixões da
minoria, ou o produto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente
observador da natureza humana, que tenha sabido dirigir todas as ações da sociedade
com este único fim: todo o bem-estar possível para a maioria.
Felizes as nações (se algumas) que não esperaram que revoluções lentas e
vicissitudes incertas fizessem do excesso do mal uma orientação para o bem, e que,
mediante leis sábias. apressaram a passagem de um para o outro. Como é digno de todo
o reconhecimento do gênero humano o filósofo(6) que, do fundo do seu retiro obscuro e
desprezado, teve a coragem de lançar na sociedade as primeiras sementes por tanto
tempo infrutíferas das verdades úteis!
As verdades filosóficas, por toda parte divulgadas através da imprensa, revelaram enfim
as verdadeiras relações que unem os soberanos aos súditos e os povos entre si. O
comércio animou-se e entre as nações elevou-se uma guerra industrial, a única digna dos
homens sábios e dos povos policiados.
Mas, se as luzes do nosso século produziram alguns resultados, longe estão de ter
dissipado todos os preconceitos que tínhamos. Ninguém se levantou, senão
frouxamente, contra a barbárie das penas em uso nos nossos tribunais. Ninguém se
ocupou com reformar a irregularidade dos processos criminais, essa parte da legislação
tão importante quanto descurada em toda a Europa. Raramente se procurou destruir, em
seus fundamentos, as séries de erros acumulados desde vários séculos; e muito poucas
pessoas tentaram reprimir, pela força das verdades imutáveis, os abusos de um poder
sem limites, e fazer cessar os exemplos bem freqüentes dessa fria atrocidade que os
homens poderosos encaram como um dos seus direitos.
Entretanto, os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado à ignorância cruel e aos
opulentos covardes; os tormentos atrozes que a barbárie inflige por crimes sem provas,
ou por delitos quiméricos; o aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras, cujo
horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os infelizes, a incerteza;
tantos métodos odiosos, espalhados por toda parte, deveriam ter despertado a atenção
dos filósofos, essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas.
O imortal Montesquieu(7) ocasionalmente pode abordar essas importantes matérias.
Se eu segui as pegadas luminosas desse grande homem, é que a verdade é uma e a
mesma em toda parte. Mas, os que sabem pensar (e é somente para estes que escrevo)
saberão distinguir meus passos dos seus. Sentir-me-ei feliz se, como ele, puder ser
objeto do vosso secreto reconhecimento, oh vós, discípulos obscuros e pacíficos da
razão! Sentir-me-ei feliz se puder excitar alguma vez esse frêmito pelo qual as almas
sensíveis respondem à. voz dos defensores da humanidade!
Seria este, talvez, o momento de examinar e distinguir as diferentes espécies de delitos e
a maneira de puni-los; mas, o número e a variedade dos crimes, segundo as diversas
circunstâncias de tempo e de lugar, nos lançariam num atalho imenso e fatigante.
Contentar-me-ei, pois, com indicar os princípios mais gerais, as faltas mais comuns e os
erros mais funestos, evitando igualmente os excessos dos que, por um amor mal
entendido da liberdade, procuram introduzir a desordem, e dos que desejariam submeter
os homens à regularidade. dos claustros.
Mas, qual é a origem das penas, e qual o fundamento do direito de punir? Quais serão as
punições aplicáveis aos diferentes crimes? Será a pena de morte verdadeiramente útil,
necessária, indispensável para a segurança e a boa ordem da sociedade? Serão justos os
tormentos e as torturas? Conduzirão ao fim que as leis se propõem? Quais os melhores
meios de prevenir os delitos? Serão as mesmas penas igualmente úteis em todos os
tempos? Que influência exercem sobre os costumes?
Todos esses problemas merecem que se procure resolvê-los com essa precisão
geométrica que triunfa da destreza dos sofismas, das dúvidas tímidas e das seduções da
eloqüência.
Sentir-me-ia feliz se não tivesse outro mérito além do de ter sido o primeiro que
apresentou na Itália, com maior clareza, o que outras nações ousaram escrever e
começam a praticar.
Mas, se, ao sustentar os direitos do nero humano e da verdade invencível, contribuí
para salvar da morte atroz algumas das trêmulas vítimas da tirania ou da ignorância
igualmente funesta, as bênçãos e as lágrimas de um único inocente reconduzido aos
sentimentos da alegria e da felicidade consolar-me-iam do desprezo do resto dos
homens.
II. ORIGEM DAS PENAS E DIREITO
DE PUNIR
A MORAL política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável,
se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do coração do homem.
Toda lei que não for estabelecida sobre essa base encontrará sempre uma resistência à
qual será constrangida a ceder. Assim, a menor força, continuamente aplicada, destrói
por fim um corpo que pareça sólido, porque lhe comunicou um movimento violento.
Consultemos, pois, o coração humano; acharemos nele os princípios fundamentais do
direito de punir.
Ninguém fez gratuitamente o sacrifício de uma porção de sua liberdade visando
unicamente ao bem público. Tais quimeras só se encontram nos romances. Cada homem
só por seus interesses está ligado às diferentes combinações políticas deste globo; e cada
qual desejaria, se fosse possível, não estar ligado pelas convenções que obrigam os
outros homens. Sendo a multiplicação do gênero humano, embora lenta e pouco
considerável, muito superior aos meios que apresentava a natureza estéril e abandonada,
para satisfazer necessidades que se tornavam cada dia mais numerosas e se cruzavam de
mil maneiras, os primeiros homens, até então selvagens, se viram forçados a reunir-se.
Formadas algumas sociedades, logo se estabeleceram novas, na necessidade em que se
ficou de resistir às primeiras, e assim viveram essas hordas, como tinham feito os
indivíduos, num contínuo estado de guerra entre si. As leis foram as condições que
reuniram os homens, a princípio independentes e isolados sobre a superfície da terra.
Cansados de viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte,
fatigados de uma liberdade que a incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram
uma parte dela para gozar do resto com mais segurança. A soma de todas essas porções
de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania da nação; e aquele
que foi encarregado pelas leis do depósito das liberdades e dos cuidados da
administração foi proclamado o soberano do povo.
Não bastava, porém, ter formado esse depósito; era preciso protegê-lo contra as
usurpações de cada particular, pois tal é a tendência do homem para o despotismo, que
ele procura sem cessar, não retirar da massa comum sua porção de liberdade, mas
ainda usurpar a dos outros.
Eram necessários meios sensíveis e bastante poderosos para comprimir esse espírito
despótico, que logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos. Esses meios
foram as penas estabelecidas contra os infratores das leis.
Disse eu que esses meios tiveram de ser sensíveis, porque a experiência fez ver quanto a
maioria está longe de adotar princípios estáveis de conduta. Nota-se, em todas as partes
do mundo físico e moral, um princípio universal de dissolução, cuja ação pode ser
obstada nos seus efeitos sobre a sociedade por meios que impressionam imediatamente
os sentidos e que se fixam nos espíritos, para contrabalançar por impressões vivas a
força das paixões particulares, quase sempre opostas ao bem geral. Qualquer outro meio
seria insuficiente. Quando as paixões são vivamente abaladas pelos objetos presentes, os
mais sábios discursos, a eloqüência mais arrebatadora, as verdades mais sublimes, não
passam, para elas, de um freio impotente que logo despedaçam.
Por conseguinte, a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua
liberdade; daí resulta que cada um consente em pôr no depósito comum a menor
porção possível dela, isto é, precisamente o que era preciso para empenhar os outros em
mantê-lo na posse do resto.
O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de
punir. Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça; é um
poder de fato e não de direito(8); é uma usurpação e não mais um poder legítimo.
As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depósito da salvação pública são
injustas por sua natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for
a segurança e maior a liberdade que o soberano conservar aos súditos.
III. CONSEQUÊNCIAS DESSES
PRINCÍPIOS
A PRIMEIRA conseqüência desses princípios é que as leis podem fixar as penas
de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do
legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social.
Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com justiça infligir a
outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei; e, do momento
em que o juiz é mais severo do que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo
ao que está determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o
pretexto do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão.
A segunda conseqüência é que o soberano, que representa a própria sociedade, pode
fazer leis gerais, às quais todos devem submeter-se; não lhe compete, porém, julgar se
alguém violou essas leis.
Com efeito, no caso de um delito, duas partes: o soberano, que afirma que o contrato
social foi violado, e o acusado, que nega essa violação. É preciso, pois, que haja entre
ambos um terceiro que decida a contestação. Esse terceiro é o magistrado, cujas
sentenças devem ser sem apelo e que deve simplesmente pronunciar se um delito ou
se não há.
Em terceiro lugar, mesmo que a atrocidade das mesmas não fosse reprovada pela
filosofia, mãe das virtudes benéficas e, por essa razão, esclarecida, que prefere governar
homens felizes e livres a dominar covardemente um rebanho de tímidos escravos;
mesmo que os castigos cruéis não se opusessem diretamente ao bem público e ao fim
que se lhes atribui, o de impedir os crimes, basta provar que essa crueldade é inútil,
para que se deva considerá-la como odiosa, revoltante, contrária a toda justiça e à
própria natureza do contrato social.
IV. DA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS
RESULTA ainda, dos princípios estabelecidos precedentemente, que os juizes dos
crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela razão mesma de que
não são legisladores. Os juizes não receberam as leis como uma tradição doméstica, ou
como um testamento dos nossos antepassados, que aos seus descendentes deixaria
apenas a missão de obedecer. Recebem-nas da sociedade viva, ou do soberano, que é
representante dessa sociedade, como depositário legítimo do resultado atual da vontade
de todos.
Não se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na obrigação de executar antigas
convenções(9); essas velhas convenções são nulas, pois não puderam ligar vontades que
não existiam. Não se pode sem injustiça exigir sua execução; seria reduzir os homens a
não passar de um vil rebanho sem vontade e sem direitos. As leis emprestam sua força
da necessidade de orientar os interesses particulares para o bem geral e do juramento
formal ou tácito que os cidadãos vivos voluntariamente fizeram ao rei.
Qual será, pois o legítimo intérprete das leis? O soberano, isto é, o depositário das
vontades atuais de todos; e não o juiz, cujo dever consiste exclusivamente em examinar
se tal homem praticou ou não um ato contrário às leis.
O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação
conforme ou não à lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido
a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e
obscuro.
Nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é preciso consultar o espírito da
lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e abandonar as leis à torrente das
opiniões. Essa verdade me parece demonstrada, embora pareça um. paradoxo aos
espíritos vulgares que se impressionam mais fortemente com uma pequena desordem
atual do que com conseqüências distantes, mas mil vezes mais funestas, de um
princípio falso estabelecido numa nação.
Todos os nossos conhecimentos, todas as nossas idéias se mantêm. Quanto mais
complicadas, tanto maiores são as suas relações e resultados.
Cada homem tem sua maneira própria de ver; e o mesmo homem, em diferentes épocas,
vê diversamente os mesmos objetos. O espírito de uma lei seria, pois, o resultado da boa
ou lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou penosa, da fraqueza do acusado, da
violência das paixões do magistrado, de suas relações com o ofendido, enfim, de todas
as pequenas causas que mudam as aparências e desnaturam os objetos no espírito
inconstante do homem.
Veríamos, assim, a sorte de um cidadão mudar de face ao passar para outro tribunal, e a
vida dos infelizes estaria à mercê de um falso raciocínio, ou do mau humor do juiz.
Veríamos o magistrado interpretar apressadamente as leis, segundo as idéias vagas e
confusas que se apresentassem ao seu espírito. Veríamos os mesmos delitos punidos
diferentemente, em diferentes tempos, pelo mesmo tribunal, porque, em lugar de escutar
a voz constante e invariável das leis, ele se entregaria à instabilidade enganosa das
interpretações arbitrárias.
Podem essas irregularidades funestas ser postas em paralelo com os inconvenientes
momentâneos que às vezes produz a observação literal das leis?
Talvez esses inconvenientes passageiros obriguem o legislador a fazer, no texto
equívoco de uma lei, correções necessárias e fáceis. Mas, seguindo a letra da lei, não se
terá ao menos que temer esses raciocínios perniciosos, nem essa licença envenenada de
tudo explicar de maneira arbitrária e muitas vezes com intenção venal.
Quando as leis forem fixas e literais, quando confiarem ao magistrado a missão de
examinar os atos dos cidadãos, para decidir se tais atos são conformes ou contrários à lei
escrita; quando, enfim, a regra do justo e do injusto, que deve dirigir em todos os seus
atos o ignorante e o homem instruído, não for um motivo de controvérsia, mas simples
questão de fato, então não mais se verão os cidadãos submetidos ao jugo de uma
multidão de pequenos tiranos, tanto mais insuportáveis quanto menor é a distância entre
o opressor e o oprimido; tanto mais cruéis quanto maior resistência encontram, porque a
crueldade dos tiranos é proporcional, não às suas forças, mas aos obstáculos que se lhes
opõem; tanto mais funestos quanto ninguém pode livrar-se do seu jugo senão
submetendo-se ao despotismo de um só.
Com leis penais executadas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os
inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá
desviá-lo do crime. Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus bens; e isso é
justo, porque é esse o fim da reunião dos homens em sociedade.
É verdade, também, que os cidadãos adquirirão assim um certo espírito de
independência e serão menos escravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtude à
covardia, às fraquezas e às complacências cegas; estarão, porém, menos submetidos às
leis e à autoridade dos magistrados.
Tais princípios desagradarão sem dúvida aos déspotas subalternos que se arrogaram o
direito de esmagar seus inferiores com o peso da tirania que sustentam. Tudo eu poderia
recear, se esses pequenos tiranos se lembrassem um dia de ler o meu livro e entendê-lo;
mas, os tiranos não lêem.
V. DA OBSCURIDADE DAS LEIS
SE a interpretação arbitrária das leis é um mal, também o é a sua obscuridade, pois
precisam ser interpretadas. Esse inconveniente é bem maior ainda quando as leis não são
escritas em língua vulgar(10).
Enquanto o texto das leis não for um livro familiar, uma espécie de catecismo, enquanto
forem escritas numa língua morta e ignorada do povo, e enquanto forem solenemente
conservadas como misteriosos oráculos, o cidadão, que não puder julgar por si mesmo
as conseqüências que devem ter os seus próprios atos sobre a sua liberdade e sobre os
seus bens, ficará na dependência de um pequeno número de homens depositários e
intérpretes das leis.
Colocai o texto sagrado das leis nas mãos do povo, e, quanto mais homens houver que o
lerem, tanto menos delitos haverá; pois não se pode duvidar que no espirito daquele que
medita um crime, o conhecimento e a certeza das penas ponham freio à eloqüência das
paixões.
Que pensar dos homens,, quando se reflete que as leis da maior parte das nações estão
escritas em línguas mortas e que esse costume bárbaro ainda subsiste nos países mais
esclarecidos da Europa?
Dessas últimas reflexões resulta que, sem um corpo de leis escritas, jamais uma
sociedade poderá tomar uma forma de governo fixo, em que a força resida no corpo
político e não nos membros desse corpo; em que as leis não possam alterar-se e destruir-
se pelo choque dos interesses particulares, nem reformar-se senão pela vontade geral.
A razão e a experiência fizeram ver quantas tradições humanas se tornam mais
duvidosas e mais contestadas, à medida que a gente se afasta de sua fonte. Ora, se não
existe um momento estável do pacto social, como resistirão as leis ao movimento
sempre vitorioso do tempo e das paixões?
Vê-se por aí, igualmente, a utilidade da imprensa, que pode, ela, tornar todo o
público, e não alguns particulares, depositário do código sagrado das leis.
Foi a imprensa que dissipou esse tenebroso espírito de cabala e de intriga, que, não pode
suportar a luz e que finge desprezar as ciências somente porque secretamente as teme.
Se agora, na Europa, diminuem esses crimes atrozes que assombravam nossos pais, se
saímos enfim desse estado de barbárie que tornava nossos antepassados ora escravos ora
tiranos, é à imprensa que o devemos.
Os que conhecem a história de dois ou três séculos e do nosso podem ver a humanidade,
a generosidade, a tolerância mútua e as mais doces virtudes nasceram no seio do luxo e
da indolência. Quais foram, ao contrário, as virtudes dessas épocas que, tão sem
propósitos, se chamam séculos da boa fé e da simplicidade antiga?
A humanidade gemia sob o jugo da implacável superstição; a avareza e a ambição de
um pequeno número de homens poderosos inundavam de sangue humano os palácios
dos grandes e os tronos dos reis. Eram traições secretas e morticínios públicos. O povo
encontrava na nobreza opressores e tiranos; e os ministros do Evangelho, manchados
na carnificina e as mãos ainda sangrentas, ousavam oferecer aos olhos do povo um Deus
de misericórdia e de paz.
Os que se levantam contra a pretensa corrupção do grande século em que vivemos não
acharão ao menos que esse quadro abominável possa convir-lhe.
VI. DA PRISÃO
OUTORGA-SE, em geral, aos magistrados encarregados de fazer as leis, um direito
contrário ao fim da sociedade, que é a segurança pessoal; refiro-me ao direito de prender
discricionariamente os cidadãos, de tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos, e,
por conseguinte de deixar livres os que eles protegem, mau grado todos os indícios do
delito.
Como se tornou tão comum um erro tão funesto? Embora a prisão difira das outras
penas, por dever necessariamente preceder a declaração jurídica do delito, nem por isto
deixa de ter, como todos os outros gêneros de castigos, o caráter essencial de que só a
lei deve determinar o caso em que é preciso empregá-la.
Assim, a lei deve estabelecer, de maneira fixa, por que indícios de delito um acusado
pode ser preso e submetido a interrogatório.
O clamor público, a fuga, as confissões particulares, o depoimento de um cúmplice do
crime, as ameaças que o acusado pode fazer, seu ódio inveterado ao ofendido, um corpo
de delito existente, e outras presunções semelhantes, bastam para permitir a prisão de
um cidadão. Tais indícios devem, porém, ser especificados de maneira estável pela lei, e
não pelo juiz, cujas sentenças se tornam um atentado à liberdade pública, quando não
são simplesmente a aplicação particular de uma máxima geral emanada do código das
leis.
À medida que as penas forem mais brandas, quando as prisões não forem a horrível
mansão do desespero e da fome, quando a piedade e a humanidade penetrarem nas
masmorras, quando enfim os executores impiedosos dos rigores da justiça abrirem os
corações à compaixão, as leis poderão contentar-se com indícios mais fracos para
ordenar a prisão.
A prisão não deveria deixar nenhuma nota de infâmia sobre o acusado cuja inocência foi
juridicamente reconhecida. Entre os romanos, quantos cidadãos não vemos, acusados
anteriormente de crimes hediondos, mas em seguida reconhecidos inocentes, receberem
da veneração do povo os primeiros cargos do Estado? Porque é tão diferente, em nossos
dias, a sorte de um inocente preso?
É porque o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta aos nossos espíritos a
idéia da força e do poder, em lugar da justiça; é porque se lançam, indistintamente, na
mesma masmorra, o inocente suspeito e o criminoso convicto; é porque a prisão, entre
nós, é antes um suplício que um meio de deter um acusado; é porque, finalmente, as
forças que defendem externamente o trono e os direitos da nação estão separadas das
que mantêm as leis no interior, quando deveriam estar estreitamente unidas.
Na opinião pública, as prisões militares desonram bem menos do que as prisões civis.
Se as tropas do Estado, reunidas sob a autoridade das leis comuns, sem contudo
dependerem imediatamente dos magistrados, fossem encarregadas da guarda das
prisões, a mancha de infâmia desapareceria ante o aparato e o fausto que acompanham
os corpos militares; porque, em geral, a infâmia, como tudo o que depende das opiniões
populares, se liga mais à forma do que ao fundo.
Mas, como as leis e os costumes de um povo estão sempre atrasados de vários séculos
em relação às luzes atuais, conservamos ainda a barbárie e as idéias ferozes dos
caçadores do norte, nossos selvagens antepassados.
Os nossos costumes e as nossas leis retardatárias estão bem longe das luzes dos povos.
Ainda estamos dominados pelos preconceitos bárbaros que nos legaram os nossos avós,
os bárbaros caçadores do norte.
VII. DOS INDÍCIOS DO DELITO E DA
FORMA DOS JULGAMENTOS
EIS um teorema geral, que pode ser muito útil para calcular a certeza de um fato e,
principalmente, o valor dos indícios de um delito:
Quando as provas de um fato se apoiam todas entre si, isto é, quando os indícios do
delito não se sustentam senão uns pelos outros, quando a força de várias provas depende
da verdade de uma só, o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai à
probabilidade do fato: merecem pouca consideração, porque, destruindo a única prova
que parece certa, derrubais todas as outras.
Mas, quando as provas são independentes, isto é quando cada indício se prova à parte,
quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável será o delito, porque a
falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes.
Não se admirem de ver-me empregar a palavra probabilidade ao tratar de crimes que,
para merecerem um castigo, devem ser certos; porque, a rigor, toda certeza moral é
apenas uma probabilidade, que merece, contudo, ser considerada como uma certeza,
quando todo homem de bom senso é forçado a dar-lhe o seu assentimento, por uma
espécie de hábito natural que resulta da necessidade de agir que é anterior a toda
especulação.
A certeza que se exige para convencer um culpado é, pois, a mesma que determina
todos os homens nos seus mais importantes negócios.
As provas de um delito podem distinguir-se em provas perfeitas e provas imperfeitas.
As provas perfeitas são as que demonstram positivamente que é impossível que o
acusado seja inocente. As provas são imperfeitas quando não excluem a possibilidade da
inocência do acusado.
Uma única prova perfeita é suficiente para autorizar a condenação; se se quiser, porém,
condenar sobre provas imperfeitas, como cada uma dessas provas não estabelece a
impossibilidade da inocência do acusado, é preciso que sejam em número muito grande
para valerem uma prova perfeita, isto é, para provarem todas juntas que é impossível
que o acusado não seja culpado.
Acrescentarei ainda que as provas imperfeitas, às quais o acusado nada responde de
satisfatório, embora deva, se é inocente, ter meios de justificar-se, se tornam por isso
mesmo provas perfeitas.
É, todavia, mais fácil sentir essa certeza moral de um delito do que defini-la exatamente.
Eis o que me faz encarar como sábia a lei que, em algumas nações, ao juiz principal
assessores que o magistrado não escolheu, mas que a sorte designou livremente; porque
então a ignorância, que julga por sentimento, está menos sujeita ao erro do que homem
instruído que decide segundo a incerta opinião.
Quando as leis são claras e precisas, o dever do juiz limita-se à constatação do fato. Se
são necessárias destreza e habilidade na investigação das provas de um delito, se se
requerem clareza e precisão na maneira de apresentar o seu resultado, para julgar
segundo esse mesmo resultado, basta o simples bom-senso: guia menos enganador do
que todo o saber de um juiz acostumado a procurar culpados por toda parte e levar
tudo ao sistema que adotou segundo os seus estudos.
Felizes as nações entre as quais o conhecimento das leis não é uma ciência.
Lei sábia e cujos efeitos são sempre felizes é a que prescreve que cada um seja julgado
por seus iguais; porque, quando se trata da fortuna e da liberdade de um cidadão, todos
os sentimentos inspirados pela desigualdade devem silenciar. Ora, o desprezo com o
qual o homem poderoso olha para a vitima do infortúnio, e a indignação que
experimenta o homem de condição medíocre ao ver o culpado que está acima dele por
sua condição, são sentimentos perigosos que não existem nos julgamentos de que falo.
Quando o culpado e o ofendido estão em condições desiguais, os juizes devem ser
escolhidos, metade entre os iguais do acusado e metade entre os do ofendido, para
contrabalançar assim os interesses pessoais, que modificam, mau grado nosso, as
aparências dos objetos, e para só deixar falar a verdade e as leis.
Igualmente justo é que o culpado possa recusar um certo número dos juizes que lhe
forem suspeitos, e, se o acusado gozar constantemente desse direito, exercê-lo-á com
reserva; porque de outro modo pareceria condenar-se a si mesmo.
Sejam públicos os julgamentos; sejam-no também as provas do crime: e a opinião, que é
talvez o único laço das sociedades, porá freio à violência e às paixões. O povo dirá: Não
somos escravos, mas protegidos pelas leis. Esse sentimento de segurança, que inspira a
coragem, eqüivale a um tributo para o soberano que compreende os seus verdadeiros
interesses.
Não entrarei em outros pormenores sobre as precauções que exige o estabelecimento
dessas espécies de instituições. Para aqueles aos quais é necessário tudo dizer, tudo eu
diria inutilmente.
VIII. DAS TESTEMUNHAS
É IMPORTANTE, em toda boa legislação, determinar de maneira exata o grau de
confiança que se deve dar às testemunhas e a natureza das provas necessárias para
constatar o delito.
Todo homem razoável, isto é, todo homem que puser ligação em suas idéias e que
experimentar as mesmas sensações que os outros homens, poderá ser recebido em
testemunho. Mas, a confiança que se lhe der deve medir-se pelo interesse que ele tem de
dizer ou não dizer a verdade.
É, pois, por motivos frívolos e absurdos que as leis não admitem em testemunho nem as
mulheres, por causa de sua franqueza, nem os condenados, porque estes morreram
civilmente, nem as pessoas com nota de infâmia, porque, em todos esses casos, uma
testemunha pode dizer a verdade, quando não tem nenhum interesse em mentir.
Entre os abusos de palavras que tiveram certa influência sobre os negócios deste mundo,
um dos mais notáveis é o que faz considerar como nulo o depoimento de um culpado
condenado. Graves jurisconsultos fazem este raciocínio Este homem foi atingido por
morte civil; ora, um morto não é capaz de nada... Muitas vítimas se sacrificaram a
essa metáfora: e muitas vezes se tem contestado seriamente à verdade santa o direito
de preferência sobre as formas judiciárias.
Sem dúvida, é preciso que os depoimentos de um culpado condenado não possam
retardar o curso da justiça; mas porque, após a sentença, não conceder aos interesses da
verdade e à terrível situação do culpado alguns instantes ainda, para justificar, se
possível, ou aos seus cúmplices ou a si próprio, com depoimentos novos que mudam a
natureza do fato?
As formalidades e criteriosas procrastinações são necessárias nos processos criminais,
ou porque não deixam nada à arbitrariedade do juiz, ou porque fazem compreender ao
povo que os julgamentos são feitos com solenidade e segundo as regras, e não
precipitadamente ditados polo interesse; ou, finalmente, porque a maior parte dos
homens, escravos do hábito, e mais inclinados a sentir do que raciocinar, fazem assim
uma idéia mais augusta das funções do magistrado.
A verdade, muitas vezes demasiado simples ou demasiado complicada, tem necessidade
de certa pompa exterior para merecer o respeito do povo.
As formalidades, porém, devem ser fixadas, por leis, nos limites em que não possam
prejudicar a verdade. De outro modo, seria uma nova fonte de inconvenientes funestos.
Disse eu que se podia admitir em testemunho toda pessoa que não tem nenhum interesse
em mentir. Deve, pois, conceder-se à testemunha mais ou menos confiança, à
proporções do ódio ou da amizade que ela tem ao acusado e de outras relações mais ou
menos estreitas que ambos mantenham.
Uma testemunha não basta porque, negando o acusado o que a testemunha afirma,
não nada de certo e a justiça deve então respeitar o direito que cada um tem de ser
julgado inocente(11).
Deve dar-se às testemunhas um crédito tanto mais circunspecto quanto mais atrozes são
os crimes e mais inverosímeis as circunstâncias. Tais são, por exemplo, as acusações de
magia e as ações gratuitamente cruéis. No primeiro caso, é melhor acreditar que as
testemunhas mentem, porque é mais comum ver vários homens caluniarem de concerto,
por ódio ou por ignorância, do que ver um homem exercer um poder que Deus
recusou a todo ser criado.
Da mesma forma, não se deve admitir com precipitação a acusação de uma crueldade
sem motivos, porque o homem é cruel por interesse, por ódio ou por temor. O
coração humano é incapaz de um sentimento inútil; todos os seus sentimentos são o
resultado das impressões que os objetos causaram sobre os sentidos.
Deve, igualmente, dar-se menos crédito a um homem que é membro de uma ordem, ou
de uma casta, ou de uma sociedade particular, cujos costumes e máximas são em geral
desconhecidos, ou diferem dos usos comuns, porque, além de suas próprias paixões,
esse homem tem ainda as paixões da sociedade da qual faz parte.
Enfim, os depoimentos das testemunhas devem ser quase nulos, quando se trata de
algumas palavras das quais se quer fazer um crime; porque o tom, os gestos e tudo o que
precede ou segue as diferentes idéias que os homens ligam a suas palavras, alteram e
modificam de tal modo os discursos que é quase impossível repeti-los com exatidão.
As ações violentas, que constituem os verdadeiros delitos, deixam traços notáveis na
maioria das circunstâncias que as acompanham e efeitos que das mesmas derivam; mas,
as palavras não deixam vestígio e subsistem na memória, quase sempre infiel e
muitas vezes influenciadas, dos que as ouviram.
É, pois, infinitamente mais fácil fundar uma calúnia sobre discursos do que sobre ações,
pois o número das circunstâncias que se alegam para provar as ações fornece ao acusado
mais recursos para justificar-se; ao passo que um delito de palavras não apresenta, de
ordinário, nenhum meio de justificação.
IX. DAS ACUSAÇÕES SECRETAS
AS acusações secretas são um abuso manifesto, mas consagrado e tornado necessário
em vários governos, pela fraqueza de sua constituição. Tal uso torna os homens falsos e
pérfidos. Aquele que suspeita um delator no seu concidadão nele logo um inimigo.
Costumam, então, mascarar-se os próprios sentimentos; e o hábito de ocultá-los a
outrem faz que cedo sejam dissimulados a si mesmo.
Como os homens que chegaram a esse ponto funesto são dignos de piedade!
Desorientados, sem guia e sem princípios estáveis, vagam ao acaso no vasto mar da
incerteza, preocupados exclusivamente em escapar aos monstros que os ameaçam. Um
futuro cheio de mil perigos envenena para eles os momentos presentes. Os prazeres
duráveis da tranqüilidade e da segurança lhes são desconhecidos. Se gozaram.,
apressadamente e na confusão, de alguns instantes de felicidade espalhados aqui e ali
sobre o triste curso de sua desgraçada vida, bastarão para consolá-los de ter vivido?
Será entre tais homens que encontraremos soldados intrépidos, defensores da pátria e do
trono? Acharemos entre eles magistrados incorruptíveis, que saibam sustentar e
desenvolver os verdadeiros interesses do soberano, com uma eloqüência livre e
patriótica, que deponham ao mesmo tempo aos pés do monarca os tributos e as bênçãos
de todos os cidadãos, que levem ao palácio dos grandes e ao humilde teto do pobre a
segurança, a paz, a confiança, e que dêem ao trabalho e à indústria a esperança de uma
sorte cada vez mais doce?... É sobretudo este último sentimento que reanima os Estados
e lhes dá uma vida nova.
Quem poderá defender-se da calúnia, quando esta se arma com o escudo mais sólido da
tirania: o sigilo?...
Miserável governo aquele em que o soberano suspeita um inimigo em cada súdito e se
vê forçado, para garantir a tranqüilidade pública, a perturbar a de cada cidadão!
Quais são, pois, os motivos sobre os quais se apoiam os que justificam as acusações e as
penas secretas? A tranqüilidade pública? A segurança e a manutenção da forma de
governo? É mister confessar que estranha constituição é aquela em que o governo, que
tem por si a força e a opinião, ainda mais poderosa do que a força, parece todavia temer
cada cidadão!
Receia-se que o acusador não esteja em segurança? As leis são, então, insuficientes para
defendê-lo, e os súditos são mais poderosos do que o soberano e as leis.
Desejar-se-ia salvar o delator da infâmia a que se expõe? Seria, então, confessar que se
autorizam as calúnias secretas, mas que se punem as calúnias públicas.
Apoiar-se-ão na natureza do delito? Se o governo for bastante infeliz para considerar
como crimes certos atos indiferentes ou mesmo úteis ao público, terá razão: as
acusações e os julgamentos, nesse caso, jamais seriam bastante secretos.
Pode haver, porém, um delito, isto é, uma ofensa à sociedade, que não seja do interesse
de todos punir publicamente? Respeito todos os governos; não falo de nenhum em
particular e sei que circunstâncias em que os abusos parecem de tal modo inerentes à
constituição de um Estado, que não parece possível desarraigá-los sem destruir o corpo
político. Mas, se eu tivesse de ditar novas leis em algum canto isolado do universo,
minha mão trêmula se recusaria a autorizar as acusações secretas: julgaria ver toda a
posteridade responsabilizar-me pelos males atrozes que elas acarretam.
o disse Montesquieu: as acusações públicas são conformes ao espírito do governo
republicano, no qual o zelo do bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos. Nas
monarquias, em que o amor da pátria é muito fraco, pela própria natureza do governo, é
sábia a instituição de magistrados encarregados de acusar, em nome do público, os
infratores das leis. Mas, todo governo, republicano ou monárquico, deve infligir ao
caluniador a pena que o acusado sofreu, se ele for culpado.
X. DOS INTERROGATÓRIOS
SUGESTIVOS
NOSSAS leis proíbem os interrogatórios sugestivos, isto é, os que se fazem sobre o
fato mesmo do delito; porque, segundo os nossos jurisconsultos, se deve interrogar
sobre a maneira pela qual o crime foi cometido e sobre as circunstâncias que o
acompanham.
Um juiz não pode, contudo, permitir as questões diretas, que sugiram ao acusado uma
resposta imediata. O juiz que interroga, dizem os criminalistas, deve ir ao fato
indiretamente, e nunca em linha reta.
Se se estabeleceu esse método para evitar sugerir ao acusado uma resposta que o salve,
ou por que foi considerada coisa monstruosa e contra a natureza um homem acusar-se a
si mesmo, qualquer que tenha sido o fim visado com a proibição dos interrogatórios
sugestivos, fez-se cair as leis numa contradição bem notória, pois que ao mesmo tempo
se autorizou a tortura.
Haverá, com efeito, interrogatório mais sugestivo do que a dor? O celerado robusto, que
pode evitar uma pena longa e rigorosa, sofrendo com força tormentos de um instante,
guarda um silêncio obstinado e se vê absolvido. Mas, a questão arranca ao homem fraco
uma confissão pela qual ele se livra da dor presente, que o afeta mais fortemente do que
todos os males futuros.
E, se um interrogatório especial é contrário à natureza, obrigando o acusado a acusar-se
a si mesmo, não será ele constrangido a isso mais violentamente pelos tormentos e as
convulsões da dor? Os homens, porém, se ocupam muito mais, em sua norma de
conduta, com a diferença das palavras do que com a das coisas.
Observemos, finalmente, que aquele que se obstina a não responder ao interrogatório a
que é submetido merece sofrer uma pena que deve ser fixada pelas leis.
É mister que essa pena seja muito pesada; porque o silêncio de um criminoso, perante o
juiz que o interroga, é para a sociedade um escândalo e a justiça uma ofensa que cumpre
prevenir tanto quanto possível.
Mas, essa pena particular não é necessária quando o crime foi constatado e o
criminoso convencido, pois nesse caso o interrogatório se torna inútil.
Semelhantemente, as confissões do acusado não são necessárias quando provas
suficientes demonstraram que ele é evidentemente culpado do crime de que se trata.
Este último caso é o mais ordinário; e a experiência mostra que, na maior parte dos
processos criminais, os culpados negam tudo.
XI. DOS JURAMENTOS
OUTRA contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado o
juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em calá-la. Como se o
homem pudesse jurar de boa fé que vai contribuir para sua própria destruição! Como se,
o mais das vezes, a voz do interesse não abafasse no coração humano a da religião!
A história de todos os séculos prova que esse dom sagrado do céu é a coisa de que mais
se abusa. E como a respeitarão os celerados, se ela é diariamente ultrajada pelos homens
considerados mais sábios e mais virtuosos?
Os motivos que a religião opõe ao temor dos tormentos e ao amor à vida são quase
sempre fracos demais, porque não impressionam os sentidos. As coisas do céu estão
submetidas a leis inteiramente diversas das da terra. Porque comprometer essas leis
umas com as outras? Porque colocar o homem na atroz alternativa de ofender a Deus,
ou perder-se? É não deixar ao acusado senão a escolha de ser mau cristão ou mártir do
juramento. Destrói-se dessa forma toda a força dos sentimentos religiosos, único apoio
da honestidade no coração da maior parte dos homens; e pouco a pouco os juramentos
não são mais do que uma simples formalidade sem conseqüências.
Consulte-se a experiência e se reconhecerá que os juramentos são inúteis, pois não
juiz que não convenha que jamais o juramento faz o acusado dizer a verdade.
A razão faz ver que assim deve ser, porque todas as leis opostas aos sentimentos
naturais do homem são vãs e conseguintemente funestas.
Tais leis podem ser comparadas a um dique que se elevasse diretamente no meio das
águas de um rio para interromper-lhe o curso: ou o dique é imediatamente derrubado
pela torrente que o leva, ou se forma debaixo dele um abismo que o mina e o destrói
insensivelmente.
XII. DA QUESTÃO OU TORTURA
É uma barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um
acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele a confissão do crime, quer
para esclarecer as contradições em que caiu, quer para descobrir os cúmplices ou outros
crimes de que não é acusado, mas do qual poderia ser culpado, quer enfim porque
sofistas incompreensíveis pretenderam que a tortura purgava a infâmia.
Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade
lhe pode retirar a proteção pública depois que ele se convenceu de ter violado as
condições com as quais estivera de acordo. O direito da força pode, pois, autorizar
um juiz a infligir uma pena a um cidadão quando ainda se duvida se ele é inocente ou
culpado.
Eis uma proposição bem simples: ou o delito é certo, ou é incerto. Se é certo, deve
ser punido com a pena fixada pela lei, e a tortura é inútil, pois já não se tem necessidade
das confissões do acusado. Se o delito é incerto, não é hediondo atormentar um
inocente? Com efeito, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se provou.
Qual o fim político dos castigos? o terror que imprimem nos corações inclinados ao
crime.
Mas, que se deve pensar das torturas, esses suplícios secretos que a tirania emprega na
obscuridade das prisões e que se reservam tanto ao inocente como ao culpado?
Importa que nenhum delito conhecido fique impune; mas, nem sempre é útil descobrir o
autor de um delito encoberto nas trevas da incerteza.
Um crime já cometido, para o qual já não há remédio, só pode ser punido pela sociedade
política para impedir que os outros homens cometam outros semelhantes pela esperança
da impunidade.
Se é verdade que a maioria dos homens respeita as leis pelo temor ou pela virtude, se é
provável que um cidadão prefira segui-las a violá-las, o juiz que ordena a tortura expõe-
se constantemente a atormentar inocentes.
Direi ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si
mesmo, e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos, como se essa verdade
residisse nos músculos e nas fibras do infeliz! A lei que autoriza a tortura é uma lei que
diz: “Homens, resisti à dor. A natureza vos deu um amor invencível ao vosso ser, e o
direito inalienável de vos defenderdes; mas, eu quero criar em vós um sentimento
inteiramente contrário; quero inspirar-vos um ódio de vós mesmos; ordeno-vos que vos
tomeis vossos próprios acusadores e digais enfim a verdade ao meio das torturas que
vos quebrarão os ossos e vos dilaceração os músculos... ”
Esse meio infame de descobrir a verdade é um monumento da bárbara legislação dos
nossos antepassados, que honravam com o nome de julgamentos de Deus as provas de
fogo, as da água fervendo e a sorte incerta dos combates. Como se os elos dessa corrente
eterna, cuja origem está no seio da Divindade, pudessem desunir-se ou romper-se a cada
instante, ao sabor dos caprichos e das frívolas instituições dos homens!
A única diferença existente entre a tortura e as provas de fogo é que a tortura prova o
crime quando o acusado quer confessar, ao passo que as provas queimantes deixavam
uma marca exterior, considerada como prova do crime.
Todavia, essa diferença é mais aparente do que real. O acusado é tão capaz de não
confessar o que se exige dele quanto o era outrora de impedir, sem fraude, os efeitos do
fogo e da água fervendo.
Todos os atos da nossa vontade são proporcionais à força das impressões sensíveis que
os causam, e a sensibilidade de todo homem é limitada. Ora, se a impressão da dor se
torna muito forte para ocupar todo o poder da alma, ela não deixa a quem a sofre
nenhuma outra atividade que exercer senão tomar, no momento, a via mais curta para
evitar os tormentos atuais.
Dessa forma, o acusado não pode deixar de responder, pois não poderia escapar às
impressões do fogo e da água.
O inocente exclamará, então, que é culpado, para fazer cessar torturas que não pode
suportar; e o mesmo meio empregado para distinguir o inocente do criminoso fará
desaparecer toda diferença entre ambos.
A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o
celerado robusto. É esse, de ordinário, o resultado terrível dessa barbárie que se julga
capaz de produzir a verdade, desse uso digno dos canibais, e que os romanos, mau grado
a dureza dos seus costumes, reservavam exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes
de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado.
De dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados, aquele que for mais
corajoso e mais robusto será absolvido; o mais fraco, porém, será condenado em virtude
deste raciocínio: “Eu, juiz, preciso encontrar um culpado. Tu, que és vigoroso, soubeste
resistir à dor, e por isso eu te absolvo. Tu, que és fraco, cedeste à força dos tormentos;
portanto, eu te condeno. Bem sei que uma confissão arrancada pela violência da tortura
não tem valor algum; mais, se não confirmares agora o que confessaste, far-te-ei
atormentar de novo”.
O resultado da questão depende, pois, de temperamento e de cálculo, que varia em cada
homem na proporção de sua força e sensibilidade; de maneira que, para prever o
resultado da tortura, bastaria resolver o problema seguinte, mais digno de um
matemático do que de um juiz: “Conhecidas a força dos músculos e a sensibilidade das
fibras de um acusado, achar o grau de dor que o obrigará a confessar-se culpado de
determinado crime”.
Interrogam um acusado para conhecer a verdade; mas, se tão dificilmente a distinguem
no ar, nos gestos e na fisionomia de um homem tranqüilo, como a descobrirão nos
traços descompostos pelas convulsões da dor, quando todos os sinais, que traem às
vezes a verdade na fronte dos culpados, estiverem alterados e confundidos?
Toda ação violenta faz desaparecer as pequenas diferenças dos movimentos pelos quais
se distingue, às vezes, a verdade da mentira.
Resulta ainda do uso das torturas uma conseqüência bastante notável: é que o inocente
se acha numa posição pior que a do culpado. Com efeito, o inocente submetido à
questão tem tudo contra si: ou será condenado, se confessar o crime que não cometeu,
ou será absolvido, mas depois de sofrer tormentos que não mereceu.
O culpado, ao contrário, tem por si um conjunto favorável: será absolvido se suportar a
tortura com firmeza, e evitará os suplícios de que foi ameaçado, sofrendo uma pena
muito mais leve. Assim, o inocente tem tudo que perder, o culpado só pode ganhar.
Essas verdades são sentidas, afinal, embora confusamente, pelos próprios legisladores;
mas, nem por isso suprimiram a tortura. Limitam-se a achar que as confissões do
acusado pelos tormentos são nulas se não forem em seguida confirmadas pelo
juramento. Se, porém, recusar-se a confirmá-las, será torturado de novo.
Em alguns países e segundo certos jurisconsultos, essas odiosas violências não são
permitidas mais do que três vezes; em outros, porém, e segundo outros doutores, o
direito de torturar fica inteiramente à discrição do juiz.
É inútil fundamentar essas reflexões com os inumeráveis exemplos de inocentes que se
confessaram culpados no meio de torturas. Não povo, não século que não possa
citar os seus.
Os homens são sempre os mesmos: vêem as coisas presentes sem preocupar-se com as
conseqüências. Não há homem que, elevando suas idéias além das primeiras
necessidades da vida, não tenha ouvido a voz interior da natureza chamá-lo a si e não
tenha sido tentado a se lançar de novo nos braços dela. Mas, o uso, esse tirano das almas
vulgares, o comprime e o retém no erro.
O segundo motivo, pelo qual se submete à questão um homem que se supõe culpado, é a
esperança de esclarecer as contradições em que ele caiu nos interrogatórios que o
fizeram sofrer. Mas, o medo do suplício, a incerteza do julgamento que vai ser
pronunciado, a solenidade dos processos, a majestade do juiz, a própria ignorância,
igualmente comum à maior parte dos acusados inocentes ou culpados, são outras tantas
razões para fazer cair em contradição, não a inocência que treme como o crime que
procura ocultar-se.
Poder-se-ia crer que as contradições, tão ordinárias no homem, ainda mesmo quando
este tem o espírito tranqüilo, não se multiplicarão nesses momentos de perturbação, nos
quais a idéia de escapar a um perigo iminente absorve toda a alma?
Em terceiro lugar, submeter um acusado à tortura, para descobrir se ele é culpado de
outros crimes além daquele de que é acusado, é fazer este odioso raciocínio: “Tu és
culpado de um delito; é, pois, possível que tenhas cometido cem outros. Essa suspeita
me preocupa; quero certificar-me; vou empregar minha prova de verdade. As leis te
farão sofrer pelos crimes que cometeste, pelos que poderias cometer e por aqueles dos
quais eu quero considerar-te culpado”.
Aplica-se igualmente a questão a um acusado para descobrir os seus cúmplices. Mas, se
está provado que a tortura não é nada menos do que um meio certo de descobrir a
verdade, como fará ela conhecer os cúmplices, quando esse conhecimento é uma das
verdades que se procuram?
É certo que aquele que se acusa a si mesmo mais facilmente acusará a outrem.
Além disso, será justo atormentar um homem pelos crimes de outro homem? Não
podem descobrir-se os cúmplices pelos interrogatórios do acusado e das testemunhas,
pelo exame das provas e do corpo de delito, em suma, por todos os meios empregados
para constatar o delito?
Os cúmplices fogem quase sempre, logo que o companheiro é preso. a incerteza da
sorte que os espera condena-os ao exílio e livra a sociedade dos novos atentados que
poderia recear deles; ao passo que o suplício do culpado que ela tem nas mãos
amedronta os outros homens e os desvia do crime, sendo esse o único fim dos castigos.
A pretensa necessidade de purgar a infâmia é ainda um dos absurdos motivos do uso das
torturas. Um homem declarado infame pelas leis se torna puro porque confessa o crime
enquanto lhe quebram os ossos? Poderá a dor, que é uma sensação, destruir a infâmia,
que é uma combinação moral? Será a tortura um cadinho e a infâmia um corpo misto
que deponha nele tudo o que tem de impuro?
Em verdade, abusos tão ridículos não deveriam ser tolerados no século XVIII.
A infâmia não é um sentimento sujeito às leis ou regulado pela razão. É obra exclusiva
da opinião. Ora, como a tortura torna infame aquele que a sofre, é absurdo que se queira
lavar desse modo a infâmia com a própria infâmia.
Não é difícil remontar a origem dessa lei estranha, porque os absurdos adotados por uma
nação inteira se apoiam sempre em outras idéias estabelecidas e respeitadas nessa
mesma nação. O uso de purgar a infâmia pela tortura parece ter sua fonte nas práticas da
religião, que tanta influência exerce sobre o espírito dos homens de todos os países e de
todos os tempos. A nos ensina que as nódoas contraídas pela fraqueza humana,
quando não mereceram a cólera eterna do Ser supremo, são purificadas em outro mundo
por um fogo incompreensível. Ora, a infâmia é uma nódoa civil; e, uma vez que a dor e
o fogo do purgatório apagam as manchas espirituais, porque os tormentos da questão
não tirariam a nódoa civil da infâmia?
Creio que se pode dar uma origem mais ou menos semelhante ao uso que observam
certos tribunais de exigir as confissões do culpado como essenciais para sua
condenação. Tal uso parece tirado do misterioso tribunal da penitência, no qual a
confissão dos pecados é parte necessária dos sacramentos.
É dessa forma que os homens abusam das luzes da revelação; e, como essas luzes são as
únicas que iluminam os séculos da ignorância, a elas é que a dócil humanidade recorreu
em todas as ocasiões, mas para fazer as aplicações mais falsas e mais infelizes.
A solidez dos princípios que expusemos neste capítulo era conhecida dos legisladores
romanos, que submetiam à tortura os escravos, espécie de homens sem direito algum
e sem nenhuma parte nas vantagens da sociedade civil. Esses princípios foram adotados
na Inglaterra, nação que prova a excelência de suas leis pelos seus progressos nas
ciências, pela superioridade do seu comércio, pela extensão de suas riquezas, por seu
poder e por freqüentes exemplos de coragem e de virtude política.
A Suécia, igualmente convencida da injustiça da tortura, não permite o seu uso. Esse
infame costume foi abolido por um dos mais sábios monarcas da Europa(12), que
elevou a filosofia ao trono e que, legislador benévolo, amigo dos súditos, os tornou
iguais e livres sob a dependência das leis; única liberdade que homens razoáveis podem
esperar da sociedade; única igualdade que esta pode admitir.
Enfim, as leis militares não admitiram a tortura; e, se esta pudesse existir em alguma
parte, seria sem dúvida nos exércitos, compostos em grande parte da escória das nações.
Coisa espantosa para quem não refletiu sobre a tirania do uso! São homens endurecidos
nos morticínios e familiarizados com o sangue que dão aos legisladores de um povo em
paz o exemplo de julgar os homens com mais humanidade!
XIII. DA DURAÇÃO DO PROCESSO E
DA PRESCRIÇÃO
QUANDO o delito é constatado e as provas são certas, é justo conceder ao acusado
o tempo e os meios de justificar-se, se lhe for possível; é preciso, porém, que esse tempo
seja bastante curto para não retardar demais o castigo que deve seguir de perto o crime,
se se quiser que o mesmo seja um freio útil contra os celerados.
Um mal entendido amor da humanidade poderá condenar logo essa presteza, a qual,
porém, será aprovada pelos que tiverem refletido sobre os perigos múltiplos que as
extremas procrastinações da legislação fazem correr à inocência.
Cabe exclusivamente às leis fixar o espaço de tempo que se deve empregar para a
investigação das provas do delito, e o que se deve conceder ao acusado para sua defesa.
Se o juiz tivesse esse direito, estaria exercendo as funções do legislador.
Quando se trata desses crimes atrozes cuja memória subsiste por muito tempo entre os
homens, se os mesmos forem provados, não deve haver nenhuma prescrição em favor
do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga. Não é esse, todavia, o caso dos delitos
ignorados e pouco consideráveis: é mister fixar um tempo após o qual o acusado,
bastante punido pelo exílio voluntário, possa reaparecer sem recear novos castigos.
Com efeito, a obscuridade que envolveu por muito tempo o delito diminui muito a
necessidade do exemplo, e permite devolver ao cidadão sua condição e seus direitos
com o poder de torná-lo melhor.
posso indicar aqui princípios gerais. Para fazer sua aplicação precisa, é mister
considerar a legislação existente, os usos do país, as circunstâncias. Limito-me a
acrescentar que, para um povo que reconhecesse as vantagens das penas moderadas, se
as leis abreviassem ou prolongassem a duração dos processos e o tempo da prescrição
segundo a gravidade do delito, se a prisão provisória e o exílio voluntário fossem
contados como uma parte da pena merecida pelo culpado, chegar-se-ia a estabelecer
assim uma justa progressão de castigos suaves para um grande número de delitos.
Mas, o tempo que se emprega na investigação das provas e o que fixa a prescrição não
devem ser prolongados em razão da gravidade do crime que se persegue, porque,
enquanto um crime não está provado, quanto mais atroz, menos verossímil é ele. Será
preciso, pois, às vezes, reduzir o tempo dos processos e aumentar o que se exige para a
prescrição.
Esse princípio parece, à primeira vista, contraditório em relação ao que estabeleci mais
acima, e segundo o qual podem aplicar-se penas iguais para crimes diferentes,
considerando como partes do castigo o exílio voluntário ou a prisão que precedeu a
sentença. Procurarei explicar-me com mais clareza.
Podem distinguir-se duas espécies de delitos. A primeira é a dos crimes atrozes, que
começa pelo homicídio e que compreende toda a progressão dos mais horríveis
assassínios. Incluiremos na segunda espécie os delitos menos hediondos do que o
homicídio.
Essa distinção é tirada da natureza. A segurança das pessoas é um direito natural; a
segurança dos bens é um direito da sociedade. Há bem poucos motivos capazes de levar
o homem a abafar no coração o sentimento natural da compaixão que o desvia do
assassínio. Mas, como cada um é ávido de buscar o seu bem-estar, como o direito de
propriedade não está gravado nos corações, sendo simples obra das convenções sociais,
há uma porção de motivos que induzem os homens a violar tais convenções.
Se se quiser estabelecer regras de probabilidade para essas duas espécies de delitos, é
preciso colocá-las sobre bases diferentes. Nos grandes crimes, pela razão mesma de que
são mais raros, deve diminuir-se a duração da instrução e do processo, porque a
inocência do acusado é mais provável do que o crime. Deve-se, porém, prolongar o
tempo da prescrição.
Por esse meio, que acelera a sentença definitiva, tira-se aos maus a esperança de uma
impunidade tanto mais perigosa quanto maiores são os crimes.
Ao contrário, nos delitos menos consideráveis e mais comuns, é preciso prolongar o
tempo dos processos, porque a inocência do acusado é menos provável, e diminuir o
tempo fixado para a prescrição, porque a impunidade é menos perigosa.
É mister, igualmente, notar que, se não se atender a isso, essa diferença de processo
entre as duas espécies de delitos pode dar ao criminoso a esperança da impunidade,
esperança tanto mais fundada quanto o crime for mais hediondo e, portanto, mais
verossímil. Observemos, porém, que um acusado solto por falta de provas não é nem
absolvido nem condenado; que pode ser preso de novo pelo mesmo crime e submetido a
novo exame, se se descobrirem novos indícios do seu delito antes de terminar o tempo
fixado para a prescrição, segundo o crime cometido.
Tal é, pelo menos ao meu ver, o critério que se poderia seguir para preservar ao mesmo
tempo a segurança dos cidadãos e a sua liberdade, sem favorecer uma em detrimento da
outra. Esses dois bens são igualmente patrimônio inalienável de todos os cidadãos; e
ambos estão cercados de perigos quando a segurança individual é abandonada ao
capricho de um déspota e quando a liberdade é protegida pela desordem tumultuosa.
Cometem-se na sociedade certos crimes que são ao mesmo tempo comuns e difíceis de
constatar. Desde então, pois é quase impossível provar tais crimes, a inocência é
provável perante a lei. E, como a esperança da impunidade contribui pouco para
multiplicar essas espécies de delitos, que têm todos causas diferentes, a impunidade
raramente é perigosa. Nesse caso, podem, pois, diminuir-se igualmente o tempo dos
processos e o da prescrição.
Mas, segundo os princípios aceitos, é principalmente para os crimes difíceis de provar,
como o adultério, a pederastia, que se admitem arbitrariamente as presunções, as
conjecturas, as semiprovas, como se um homem pudesse ser semi-inocente ou semi-
culpado, e merecer ser semi-absolvido ou semi-punido!
É sobretudo nesse gênero de delitos que se exercem as crueldades da tortura sobre o
acusado, sobre as testemunhas, sobre a família inteira do infeliz de quem se suspeita,
segundo as odiosas lições de alguns criminalistas, que escreveram, com fria barbárie,
compilações de iniqüidades que ousam apresentar como regras aos magistrados e como
leis às nações.
Quando se reflete sobre todas essas coisas, é-se forçado a reconhecer com amargura que
a razão quase nunca tem sido consultada nas leis que se deram aos povos. Os crimes
mais hediondos, os delitos mais obscuros e mais quiméricos, e portanto os mais
inverossímeis, são precisamente os que se consideram constatados sobre simples
conjecturas e indícios menos sólidos e mais equívocos. Dizer-se-ia que as leis e o
magistrado sóm interesse em descobrir um crime, e não em procurar a verdade; e que
o legislador não que se expõe constantemente ao risco de condenar um inocente,
pronunciando-se sobre crimes inverossímeis ou mal provados.
À maioria dos homens falta essa energia que produz igualmente as grandes ações e os
grandes crimes, e que traz quase sempre juntas as virtudes magnânimas e os crimes
monstruosos, nos Estados que se mantêm pela atividade do governo, pelo orgulho
nacional e pelo concurso das paixões pelo bem público.
Quanto às nações cujo poderio é consolidado e constantemente sustentado por boas leis,
as paixões enfraquecidas parecem mais capazes de manter a forma de governo
estabelecida do que de melhorá-la. Daí resulta uma conseqüência importante: que os
grandes crimes nem sempre são a prova da decadência de um povo.
XIV. DOS CRIMES COMEÇADOS;
DOS CÚMPLICES; DA IMPUNIDADE
SE BEM que as leis não possam punir a intenção, não é menos verdadeira que uma
ação que seja o começo de um delito e que prova a vontade de cometê-lo, merece um
castigo, mas menos grande do que o que seria aplicado se o crime tivesse sido cometido.
Esse castigo é necessário, porque é importante prevenir mesmo as primeiras tentativas
dos crimes. Mas, como pode haver um intervalo entre a tentativa de um delito e a sua
execução, é justo reservar uma pena maior ao crime consumado, para deixar àquele que
apenas começou o crime alguns motivos que o impeçam de acabá-lo.
Deve seguir-se a mesma gradação nas penas, em relação aos cúmplices, se estes não
foram todos executantes imediatos.
Quando vários homens se unem para enfrentar um perigo comum, quanto maior é o
perigo, tanto mais procurarão torná-lo igual para todos. Se as leis punissem mais
severamente os executantes do crime do que os simples cúmplices, seria mais difícil aos
que meditam um atentado encontrar entre eles um homem que quisesse executá-lo,
porque o risco seria maior, em virtude da diferença das penas. Há, contudo, um caso em
que a gente deve afastar-se da regra que formulamos, e é quando o executante do crime
recebeu dos cúmplices uma recompensa particular; como a diferença do risco foi
compensada pela diferença das vantagens, o castigo deve ser igual.
Se tais reflexões parecerem um tanto rebuscadas, reflita-se que é importantíssimo que as
leis deixem aos cúmplices da ação o mínimo de meios possível para que se ponham
de acordo.
Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um grande crime que trair os
seus companheiros. Esse expediente apresenta certas vantagens; mas, não está isento de
perigos, de vez que a sociedade autoriza desse modo a traição, que repugna aos próprios
celerados. Ela introduz os crimes de covardia, bem mais funestos do que os crimes de
energia e de coragem, porque a coragem é pouco comum e espera apenas uma força
benfazeja que a dirija para o bem público, ao passo que a covardia, muito mais geral, é
um contágio que infecta rapidamente todas as almas.
O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime mostra que se pode
encobrir esse crime, pois que ele não o conhece; e as leis descobrem-lhe a fraqueza,
implorando o socorro do próprio celerado que as violou.
Por outro lado, a esperança da impunidade, para o cúmplice que trai, pode prevenir
grandes crimes e reanimar o povo, sempre apavorado quando crimes cometidos sem
conhecer os culpados.
Esse uso mostra ainda aos cidadãos que aquele que infringe as leis, isto é, as convenções
públicas, já não é fiel às convenções particulares.
Parece-me que uma lei geral, que prometesse a impunidade a todo cúmplice que revela
um crime, seria preferível a uma declaração especial num caso particular: preveniria a
união dos maus, pelo temor recíproco que inspiraria a cada um de se expor sozinho aos
perigos; e os tribunais já não veriam os celerados encorajados pela idéia de que há casos
em que se pode ter necessidade deles. De resto, seria preciso acrescentar aos
dispositivos dessa lei que a impunidade traria consigo o banimento do delator.
É, porém, em vão que procuro abafar os remorsos que me afligem, quando autorizo as
santas leis, fiadoras sagradas da confiança pública, base respeitável dos costumes, a
proteger a perfídia, a legitimar a traição. E que opróbrio para uma nação, se os seus
magistrados, tornados infiéis, faltassem à promessa que fizeram e se apoiassem
vergonhosamente em vãs sutilezas, para levar ao suplício aquele que respondeu ao
convite das leis!...
Esses monstruosos exemplos não são raros; eis porque tanta gente na sociedade
política uma máquina complicada, na qual os mais hábeis ou os mais poderosos
governam as molas ao seu capricho.
Eis também o que multiplica esses homens frios, insensíveis a tudo o que encanta as
almas ternas, que experimentam sensações calculadas e que, todavia, sabem excitar
nos outros os sentimentos mais caros e as paixões mais fortes, quando estas são úteis
aos seus projetos; semelhantes ao músico hábil que, sem nada sentir ele próprio, tira do
instrumento que domina sons tocantes. ou terríveis.
XV. DA MODERAÇÃO DAS PENAS
AS VERDADES até aqui expostas demonstram à evidência que o fim das penas não
pode ser atormentar um ser sensível, nem fazer que um crime não cometido seja
cometido.
Como pode um corpo político, que, longe de se entregar às paixões, deve ocupar-se
exclusivamente com pôr um freio nos particulares, exercer crueldades inúteis e
empregar o instrumento do furor, do fanatismo e da covardia dos tiranos? Poderão os
gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do passado, que não volta mais, uma
ação cometida? Não. Os castigos têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo
futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da senda do crime.
Entre as penas, e na maneira de aplicá-las proporcionalmente aos delitos, é mister, pois,
escolher os meios que devem causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais
durável, e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado.
Quem não estremece de horror ao ver na história tantos tormentos atrozes e inúteis,
inventados e empregados friamente por monstros que se davam o nome de sábios?
Quem poderia deixar de tremer até ao fundo da alma, ao ver os milhares de infelizes que
o desespero força a retomar a vida selvagem, para escapar a males insuportáveis
causados ou tolerados por essas leis injustas que sempre acorrentaram e ultrajaram a
multidão, para favorecer unicamente um pequeno número de homens privilegiados?
Mas, a superstição e a tirania os perseguem; acusam-nos de crimes impossíveis ou
imaginários; ou então são culpados, mas somente de terem sido fiéis às leis da natureza.
Não importa! Homens dotados dos mesmos sentidos e sujeitos às mesmas paixões se
comprazem em julgá-los criminosos, m prazer em seus tormentos, dilaceram-nos com
solenidade, aplicam-lhes torturas e os entregam ao espetáculo de uma multidão fanática
que goza lentamente com suas dores.
Quanto mais atrozes forem os castigos, tanto mais audacioso será o culpado para evitá-
los. Acumulará os crimes, para subtrair-se à pena merecida pelo primeiro.
Os países e os séculos em que os suplícios mais atrozes foram postos em prática, são
também aqueles em que se viram os crimes mais horríveis. O mesmo espírito de
ferocidade que ditava leis de sangue ao legislador, punha o punhal nas mãos do
assassino e do parricida. Do alto do trono, o soberano dominava com uma verga de
ferro; e os escravos só imolavam os tiranos para possuírem novos.
À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, a alma, semelhante aos fluidos que se
põem sempre ao nível dos objetos que os cercam, endurece-se pelo espetáculo renovado
da barbárie. A gente se habitua aos suplícios horríveis; e, depois de cem anos de
crueldades multiplicadas, as paixões, sempre ativas, são menos refreadas pela roda e
pela força do que antes o eram pela prisão.
Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar, basta que o mal que causa
ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime. Devem contar-se ainda como parte do
castigo os terrores que precedem a execução e a perda das vantagens que o crime devia
produzir. Toda severidade que ultrapasse os limites se torna supérflua e, por
conseguinte, tirânica.
Os males que os homens conhecem por funesta experiência regularão melhor a sua
conduta do que aqueles que eles ignoram. Suponde duas nações entre aquelas em que as
penas são proporcionais aos delitos. Sendo a escravidão perpétua o maior castigo em
uma, e o suplício o maior em outra, é certo que essas duas penas inspirarão em cada
uma igual terror.
E, se houvesse uma razão para transportar para o primeiro povo os castigos mais
rigorosos estabelecidos no segundo, a mesma razão conduziria a aumentar para este a
crueldade dos suplícios, passando insensivelmente do uso da roda para tormentos mais
lentos e mais requintados, em suma, para o último refinamento da ciência dos tiranos.
A crueldade das penas produz ainda dois resultados funestos, contrários ao fim do seu
estabelecimento, que é prevenir o crime.
Em primeiro lugar, é muito difícil estabelecer uma justa proporção entre os delitos e as
penas; porque, embora uma crueldade industriosa tenha. multiplicado as espécies de
tormentos, nenhum suplício pode ultrapassar o último grau da força humana, limitada
pela sensibilidade e a organização do corpo do homem. Além desses limites, se
surgirem crimes mais hediondos, onde se encontrarão penas bastante cruéis?
Em segundo lugar, os suplícios mais horríveis podem acarretar às vezes a impunidade.
A energia da natureza humana é circunscrita no mal como no bem. Espetáculos
demasiado bárbaros podem ser o resultado dos furores passageiros de um tirano, e
não ser sustentados por um sistema constante de legislação. Se as leis são cruéis, ou
logo serão modificadas, ou não mais poderão vigorar e deixarão o crime impune.
Termino por esta reflexão: que o rigor das penas deve ser relativo ao estado atual da
nação. São necessárias impressões fortes e sensíveis para impressionar o espírito
grosseiro de um povo que sai do estado selvagem. Para abater o leão furioso, é
necessário o raio, cujo ruído só faz irritá-lo. Mas, à medida que as almas se abrandam no
estado de sociedade, o homem se torna mais sensível; e, se se quiser conservar as
mesmas relações entre o objeto e a sensação, as penas devem ser menos rigorosas.
XVI. DA PENA DE MORTE
ANTE o espetáculo dessa profusão de suplícios que jamais tornaram os homens
melhores, eu quero examinar se a pena de morte é verdadeiramente útil e se é justa num
governo sábio.
Quem poderia ter dado a homens o direito de degolar seus semelhantes? Esse direito
não tem certamente a mesma origem que as leis que protegem.
A soberania e as leis não são mais do que a soma das pequenas porções de liberdade que
cada um cedeu à sociedade. Representam a vontade geral, resultado da união das
vontades particulares. Mas, quem pensou em dar a outros homens o direito de tirar-
lhe a vida? Será o caso de supor que, no sacrifício que faz de uma pequena parte de sua
liberdade, tenha cada indivíduo querido arriscar a própria existência, o mais precioso de
todos os bens?
Se assim fosse, como conciliar esse princípio com a máxima que proíbe o suicídio? Ou
o homem tem o direito de se matar, ou não pode ceder esse direito a outrem nem à
sociedade inteira.
A pena de morte não se apoia, assim, em nenhum direito. É uma guerra declarada a um
cidadão pela nação, que julga a destruição desse cidadão necessária ou útil. Se eu
provar, porém, que a morte não é útil nem necessária, terei ganho a causa da
humanidade.
A morte de um cidadão pode ser encarada como necessária por dois motivos: nos
momentos de confusão em que uma nação fica na alternativa de recuperar ou de perder
sua liberdade, nas épocas de confusão, em que as leis são substituídas pela desordem, e
quando um cidadão, embora privado de sua liberdade, pode ainda, por suas relações e
seu crédito, atentar contra a segurança pública, podendo sua existência produzir uma
revolução perigosa no governo estabelecido.
Mas, sob o reino tranqüilo das leis, sob uma forma de governo aprovada pela nação
inteira, num Estado bem defendido no exterior e sustentado no interior pela força e pela
opinião talvez mais poderosa do que a própria força, num país em que a autoridade é
exercida pelo próprio soberano, em que as riquezas podem, proporcionar prazeres e
não poder, não pode haver nenhuma necessidade de tirar a vida a um cidadão, a menos
que a morte seja o único freio capaz de impedir novos crimes.
A experiência de todos os séculos prova que a pena de morte nunca deteve celerados
determinados a fazer mal. Essa verdade se apoia no exemplo dos romanos e nos vinte
anos do reinado da imperatriz da Rússia, a benfeitora Izabel(13), que deu aos chefes dos
povos uma lição mais ilustre do que todas as brilhantes conquistas que a tria
alcança ao preço do sangue dos seus filhos.
Se os homens, a quem a linguagem da razão é sempre suspeita e que se rendem à
autoridade dos antigos usos, se recusam à evidência dessas verdades, bastar-lhes-á
interrogar a natureza e consultar o próprio coração para testemunhar os princípios que
acabam de ser estabelecidos.
O rigor do castigo causa menos efeito sobre o espírito humano do que a duração da
pena, porque a nossa sensibilidade é mais fácil e mais constantemente afetada por uma
impressão ligeira, mas freqüente, do que por um abalo violento, mas passageiro. Todo
ser sensível está submetido ao império do hábito; e, como é este que ensina o homem a
falar, a andar, a satisfazer suas necessidades, é também ele que grava no coração do
homem as idéias de moral por impressões repetidas.
O espetáculo atroz, mas momentâneo, da morte de um celerado é para o crime um freio
menos poderoso do que o longo e contínuo exemplo de um homem privado de sua
liberdade, tornado até certo ponto uma besta de carga e que repara com trabalhos
penosos o dano que causou à sociedade. Essa volta freqüente do espectador a si mesmo:
“Se eu cometesse um crime, estaria reduzido toda a minha vida a essa miserável
condição”, essa idéia terrível assombraria mais fortemente os espíritos do que o
medo da morte, que se apenas um instante numa obscura distância que lhe
enfraquece o horror.
A impressão produzida pela visão dos suplícios não pode resistir à ação do tempo e das
paixões, que logo apagam da memória dos homens as coisas mais essenciais.
Por via de regra, as paixões violentas surpreendem vivamente, mas o seu efeito não
dura. Produzirão uma dessas revoluções súbitas que fazem de repente de um homem
comum um romano ou um espartano. Mas, num governo tranqüilo e livre, são
necessárias menos paixões violentas do que impressões duráveis.
Para a maioria dos que assistem à execução de um criminoso, o suplício deste é apenas
um espetáculo; para a minoria, é um objeto de piedade mesclado de indignação. Esses
dois sentimentos ocupam a alma do espectador, bem mais do que o terror salutar que é o
fim da pena de morte. Mas, as penas moderadas e contínuas produzem nos
espectadores o sentimento do medo.
No primeiro caso, sucede ao espectador do suplício o mesmo que ao espectador do
drama; e, assim como o avaro retorna ao seu cofre, o homem violento e injusto retorna
às suas injustiças.
O legislador deve, por conseguinte, pôr limites ao rigor das penas, quando o suplício
não se torna mais do que um espetáculo e parece ordenado mais para ocupar a força do
que para punir o crime.
Para que uma pena seja justa, deve ter apenas o grau de rigor bastante para desviar os
homens do crime. Ora, não homem que possa vacilar entre o crime, mau grado a
vantagem que este prometa, e o risco de perder para sempre a liberdade.
Assim, pois, a escravidão perpétua, substituindo a pena de morte, tem todo o rigor
necessário para afastar do crime o espírito mais determinado. Digo mais: encara-se
muitas vezes a morte de modo tranqüilo e firme, uns por fanatismo, outros por essa
vaidade que nos acompanha mesmo além do túmulo. Alguns, desesperados, fatigados da
vida, vêem na morte um meio de se livrar da miséria. Mas, o fanatismo e a vaidade
desaparecem nas cadeias, sob os golpes, em meio às barras de ferro. O desespero não
lhes põe fim aos males, mas os começa.
Nossa alma resiste mais à violência das dores extremas, apenas passageiras, do que ao
tempo e à continuidade do desgosto. Todas as forças da alma, reunindo-se contra males
passageiros, podem enfraquecer-lhes a ação; mas, todas as suas molas acabam por ceder
a penas longas e constantes.
Numa nação em que a pena de morte é empregada, é forçoso, para cada exemplo que se
dá, um novo crime; ao passo que a escravidão perpétua de um único culpado põe sob os
olhos do povo um exemplo que subsiste sempre, e se repete.
Se é mister que os homens tenham sempre sob os olhos os efeitos do poder das leis, é
preciso que os suplícios sejam freqüentes, e desde então é preciso também que os crimes
se multipliquem; o que provará que a pena de morte não causa toda a impressão que
deveria produzir, e que é inútil quando julgada necessária.
Dir-se-á que a escravidão perpétua é também uma pena rigorosa e, por conseguinte, tão
cruel quanto a morte. Responderei que, reunindo num ponto todos os momentos
infelizes da vida de um escravo, sua vida seria talvez mais horrível do que os suplícios
mais atrozes; mas, esses momentos ficam espalhados por todo o curso da vida, ao passo
que a pena de morte exerce todas as suas forças num só instante.
A vantagem da pena da escravidão para a sociedade é que amedronta mais aquele que a
testemunha do que quem a sofre, porque o primeiro considera a soma de todos os
momentos infelizes, ao passo que o segundo se alheia de suas penas futuras, pelo
sentimento da infelicidade presente.
A imaginação aumenta todos os males. Aquele que sofre encontra em sua alma,
endurecida pelo hábito da desgraça, consolações e recursos que as testemunhas dos seus
males não conhecem, porque julgam segundo sua sensibilidade do momento.
É somente por uma boa educação que se aprende a desenvolver e a dirigir os
sentimentos do próprio coração. Mas, embora os celerados não possam perceber os seus
princípios, nem por isso deixam de agir segundo um certo raciocínio. Ora, eis mais ou
menos, como raciocina um assassino ou um ladrão, que só se afasta do crime pelo medo
do poder ou da roda:
“Quais são, afinal, as leis que devo respeitar e que deixam tão grande intervalo entre
mim e o rico? O homem opulento recusa-me com dureza a pequena esmola que lhe peço
e me manda para o trabalho, que eu jamais conheci. Quem fez essas leis? Homens ricos
e poderosos, que jamais se dignaram de visitar a miserável choupana do pobre, que não
viram repartir um pão grosseiro aos seus pobres filhos famintos e à sua mãe desolada.
Rompamos as convenções, vantajosas somente para alguns tiranos covardes, mas
funestas para a maioria. Ataquemos a injustiça em sua fonte. Sim retornarei ao meu
estado de independência natural, viverei livre, provarei por algum tempo os frutos
felizes da minha astúcia e da minha coragem. À frente de alguns homens determinados
como eu, corrigirei os enganos da fortuna e verei meus tiranos tremer e empalidecer
quando virem aquele que o seu fausto insolente punha abaixo dos cavalos e dos cães.
Talvez venha uma época de dor e de arrependimento, mas essa época será curta; e por
um dia de sofrimento, terei gozado vários anos de liberdade e de prazeres”.
Se a religião se apresentar então ao espírito desse infeliz, não o intimidará; diminuirá
mesmo aos seus olhos o horror do último suplício, oferecendo-lhe a esperança de um
arrependimento fácil e da felicidade eterna que é seu fruto. Mas aquele que tem diante
dos olhos um grande número de anos, ou mesmo a vida inteira que passar na escravidão
e na dor, exposto ao desprezo dos seus concidadãos, dos quais fora um igual, escravo
dessas leis pelas quais era protegido, faz uma comparação útil de todos os males, do
êxito incerto do crime e do pouco tempo que terá para gozar.
O exemplo sempre presente dos infelizes que ele vê vítimas da imprudência
impressiona-o muito mais do que os suplícios, que podem endurecê-lo, mas não corrigi-
lo.
A pena de morte é ainda funesta à sociedade, pelos exemplos de crueldade que aos
homens.
Se as paixões ou a necessidade da guerra ensinam a espalhar o sangue humano, as leis,
cujo fim é suavizar os costumes, deveriam multiplicar essa barbaria, tanto mais horrível
quanto dá a morte com mais aparato e formalidades?
Não é absurdo que as leis, que são a expressão da vontade geral, que detestam e punem
o homicídio, ordenem um morticínio público, para desviar os cidadãos do assassínio?
Quais são as leis mais justas e mais úteis? São as que todos proporiam e desejariam
observar, nesses momentos em que o interesse particular se cala ou se identifica com o
interesse público.
Qual é o sentimento geral sobre a pena de morte? Está traçado em caracteres indeléveis
nesses movimentos de indignação e de desprezo que nos inspira a simples visão do
carrasco, que não é contudo senão o executor inocente da vontade pública, um cidadão
honesto que contribui para o bem geral e que defende a segurança do Estado no interior,
como o soldado, a defende no exterior.
Qual é, pois, a origem dessa contradição? E porque esse sentimento de horror resiste a
todos os esforços da razão? É que, numa parte recôndita da nossa alma, na qual os
princípios naturais ainda não foram alterados, descobrimos um sentimento que nos grita
que um homem não tem nenhum direito legítimo sobre a vida de outro homem, e que só
a necessidade, que estende por toda parte o seu cetro de ferro, pode dispor da nossa
existência.
Que se deve pensar ao ver o sábio magistrado e os ministros sagrados da justiça fazer
arrastar um culpado à morte, com cerimônia, com tranqüilidade, com indiferença? E,
enquanto o infeliz espera o golpe fatal, por entre convulsões e angústias, o juiz que
acaba de o condenar deixa friamente o tribunal para ir provar em paz as doçuras e os
prazeres da vida, e talvez louvar-se, com secreta complacência, pela autoridade que
acaba de exercer. Não será o caso de dizer que essas leis são apenas a máscara da
tirania, que essas formalidades cruéis e refletidas da justiça são simplesmente um
pretexto para imolar-nos com mais confiança, como vítimas sacrificadas ao despotismo
insaciável?
O assassínio, que nos aparece como um crime horrível, nós o vemos cometer friamente
e sem remorso. Não poderemos autorizar-nos com esse exemplo? Pintavam-nos a morte
violenta como uma cena terrível, e é apenas questão de um momento. Será menos ainda
para aquele que tiver coragem de ir-lhe ao encontro e de poupar-se desse modo tudo o
que ela tem de doloroso. Tais são os tristes e funestos raciocínios que perdem uma
cabeça disposta ao crime, um espírito mais capaz de se deixar conduzir pelos abusos
da religião do que pela religião mesma.
A história dos homens é um imenso oceano de erros, no qual se sobrenadar uma ou
outra verdade mal conhecida. Não me oponham, pois, o exemplo da maior parte das
nações, que, em quase todos os tempos, aplicaram a pena de morte contra certos crimes;
esses exemplos nenhuma força têm contra a verdade que é sempre tempo de reconhecer.
Nesse caso, aprovar-se-iam os sacrifícios humanos, porque estiveram geralmente em
uso entre todos os povos primitivos.
Mas, se descubro alguns povos que se abstiveram, mesmo durante um curto espaço de
tempo do emprego da pena de morte, posso prevalecer-me disso com razão; pois o
destino das grandes verdades é não brilhar senão com a duração do relâmpago, no meio
da longa noite de trevas que envolve o gênero humano.
Ainda não chegaram os dias felizes em que a verdade eliminará o erro e se tornará
apanágio de maioria, em que o gênero humano não será iluminado somente pelas
verdades reveladas.
Sinto quanto a voz fraca de um filósofo será facilmente abafada pelos gritos
tumultuosos dos fanáticos escravos do preconceito. Mas, o pequeno número de sábios
espalhados pela superfície da terra saberá entender-me; seu coração aprovará meus
esforços; e se, mau grado todos os obstáculos que a afastam do trono, a verdade pudesse
penetrar até aos ouvidos dos príncipes, saibam eles que essa verdade lhes leva os votos
secretos da humanidade inteira; saibam que, se protegerem a verdade santa, sua glória
ofuscará a dos mais famosos conquistadores e a eqüitativa posteridade colocará seus
nomes acima dos Titos(14), dos Antoninos(15) e dos Trajanos(16).
Feliz o gênero humano, se, pela primeira vez, recebesse leis! Hoje, que vemos elevados
nos tronos da Europa príncipes benfeitores, amigos das virtudes pacíficas, protetores das
ciências e das artes, pais dos seus povos, e cidadãos coroados; quando esses príncipes,
consolidando sua autoridades, trabalham para a felicidade dos seus súditos, quando
destroem esse despotismo intermediário, tanto mais cruel quanto menos solidamente
estabelecido, quando comprimem os tiranos subalternos que interceptam os votos do
povo e os impedem de chegar até ao trono, onde seriam escutados; quando se considera
que, se tais príncipes deixam subsistir leis defeituosas, é porque são premidos pela
extrema dificuldade de destruir erros acreditados por uma longa série de séculos e
protegidos por um certo número de homens interessados que punem: todo cidadão
esclarecido deve desejar com ardor que o poder desses soberanos ainda aumente e se
torne bastante grande para permitir-lhes a reforma de uma legislação funesta.
XVII. DO BANIMENTO E DAS
CONFISCAÇÕES
AQUELE que perturba a tranqüilidade pública, que não obedece às leis, que viola as
condições sob as quais os homens se sustentam e se defendem mutuamente, esse deve
ser excluído da sociedade, isto é, banido.
Parece-me que se poderiam banir aqueles que, acusados de um crime atroz, são
suspeitos de culpa com maior verossimilhança, mas sem estar plenamente convencidos
do crime.
Em casos semelhantes, seria mister que uma lei, a menos arbitrária e a mais precisa
possível, condenasse ao banimento aquele que pusesse a nação na fatal alternativa de
fazer uma injustiça ou de temer um acusado. Seria mister, igualmente, que essa lei
deixasse ao banido o direito sagrado de poder a todo instante provar sua inocência e
recuperar os seus direitos. Seria mister, enfim, que houvesse razões mais fortes para
banir um cidadão acusado pela primeira vez do que para condenar a essa pena um
estrangeiro ou um homem que já tivesse sido chamado à justiça.
Mas, deve aquele que se bane, que se exclui para sempre da sociedade de que fazia
parte, ser ao mesmo tempo privado dos seus bens? Essa questão pode ser encarada sob
diferentes aspectos.
A perda dos bens é uma pena maior que a do banimento. Deve, pois, haver casos em
que, para proporcionar a pena ao crime, se confiscarão todos os bens do banido. Em
outras circunstâncias, será despojado de uma parte de sua fortuna; e, para certos
delitos, o banimento não será acompanhado de nenhuma confiscação. O culpado poderá
perder todos os seus bens, se a lei que pronuncia o banimento declara rompidos todos os
laços que o ligavam à sociedade; porque desde então o cidadão está morto, resta
somente o homem; e, perante a sociedade, a morte política de um cidadão deve ter as
mesmas conseqüências que a morte natural.
Segundo essa máxima, dir-se-á talvez que é evidente que os bens do culpado deveriam
reverter para os herdeiros legítimos, e não para o príncipe; não é nisso, porém, que me
apoiarei para desaprovar as confiscações.
Se alguns jurisconsultos sustentaram que as confiscações punham um freio às vinganças
dos particulares banidos, tirando-lhes o poder de ser nocivos, é que não refletiram que
não basta uma pena produzir algum bem para ser justa. Uma pena é justa quando
necessária. Um legislador não autorizará nunca uma injustiça útil, se quer prevenir as
invasões da tirania, que vela sem cessar, que seduz e abusa pelo pretexto falaz de
algumas vantagens momentâneas, e que faz deperecer em pranto e na miséria um povo
cuja ruína prepara, para espalhar a abundância e a felicidade sobre uma minoria de
homens privilegiados.
O uso das confiscações põe continuamente a prêmio a cabeça do infeliz sem defesa, e
faz o inocente sofrer os castigos reservados aos culpados. Pior ainda, as confiscações
podem fazer do homem de bem um criminoso, pois o levam ao crime, reduzindo-o à
indigência e ao desespero.
E, além disso, não espetáculo mais hediondo que o de uma família inteira coberta de
infâmia, mergulhada nos horrores da miséria pelo crime do seu chefe, crime que essa
família, submetida à autoridade do culpado, não poderia prevenir, mesmo que tivesse os
meios para tanto.
XVIII. DA INFÂMIA
A INFÂMIA é um sinal da improbação pública, que priva o culpado da
consideração, da confiança que a sociedade tinha nele e dessa espécie de fraternidade
que une os cidadãos de um mesmo país.
Como os efeitos da infâmia não dependem absolutamente das leis, é mister que a
vergonha que a lei inflige se baseie na moral, ou na opinião pública. Se se tentasse
manchar de infâmia uma ação que a opinião o julga infame, ou a lei deixaria de ser
respeitada, ou as idéias aceitas de probidade e de morai desapareceriam, mau grado
todas as declamações dos moralistas, sempre impotentes contra a força do exemplo.
Declarar infames ações indiferentes em si mesmas, é diminuir a infâmia das que
efetivamente merecem ser designadas desse modo.
Bem necessário é evitar que se punam com penas corporais e dolorosas certos delitos
fundados no orgulho e que fazem dos castigos uma glória. Tal é o fanatismo, que só
pode ser reprimido pelo ridículo e pela vergonha.
Se se humilhar à orgulhosa vaidade dos fanáticos perante uma grande multidão de
espectadores, devem esperar-se felizes efeitos dessa pena, pois que a própria verdade
tem necessidade dos maiores esforços para se defender, quando é atacada pela arma do
ridículo.
Opondo assim a força à força e a opinião à opinião, um legislador esclarecido dissipa no
espírito do povo a admiração que lhe causa um falso princípio, cujo absurdo lhe foi
dissimulado com raciocínios especiosos.
As penas infamantes devem ser raras, porque o emprego demasiado freqüente do poder
da opinião enfraquece a força da própria opinião. A infâmia não deve cair tão pouco
sobre um grande número de pessoas ao mesmo tempo, porque a infâmia de um grande
número não é mais, em breve, a infâmia de ninguém.
Tais são os meios de harmonizar as relações invariáveis das coisas e de atender à
natureza, que, sempre ativa e jamais sujeita aos limites do tempo, destrói e revoga todas
as leis que se afastam dela. Não é nas belas-artes que é preciso seguir fielmente a
natureza: as instituições políticas, ao menos aquelas que têm um caráter de sabedoria e
elementos de duração, se fundam na natureza; e a verdadeira política não é outra coisa
senão a arte de dirigir para o mesmo fim de utilidade os sentimentos imutáveis do
homem.
XIX. DA PUBLICIDADE E DA
PRESTEZA DAS PENAS
QUANTO mais pronta for a pena e mais de perto seguir o delito, tanto mais justa e
útil ela será. Mais justa. porque poupará ao acusado os cruéis tormentos da, incerteza,
tormentos supérfluos, cujo horror aumenta para ele na razão da força de imaginação e do
sentimento de fraqueza.
A presteza do julgamento é justa ainda porque, a perda da liberdade sendo uma pena,
esta só deve preceder a condenação na estrita medida que a necessidade o exige.
Se a prisão é apenas um meio de deter um cidadão até que ele seja julgado culpado,
como esse meio é aflitivo e cruel, deve-se, tanto quanto possível, suavizar-lhe o rigor e a
duração. Um cidadão detido deve ficar na prisão o tempo necessário para a instrução
do processo; e os mais antigos detidos têm direito de ser julgados em primeiro lugar.
O acusado não deve ser encerrado senão na medida em que for necessário para o
impedir de fugir ou de ocultar as provas do crime. O processo mesmo deve ser
conduzido sem protelações. Que contraste hediondo entre a indolência de um juiz e a
angústia de um acusado! De um lado, um magistrado insensível, que passa os dias no
bem-estar e nos prazeres, e de outro um infeliz que definha, a chorar no fundo de uma
masmorra abominável.
Os efeitos do castigo que se segue ao crime devem ser em geral impressionantes e
sensíveis para os que o testemunharam; haverá, porém, necessidade de que esse castigo
seja tão cruel para quem o sofre? Quando os homens se reuniram em sociedade, foi para
se sujeitarem aos mínimos males possíveis; e não país que possa negar esse
princípio incontestável.
Eu disse que a presteza da pena é útil; e é certo que, quanto menos tempo decorrer entre
o delito e a pena, tanto mais os espíritos ficarão compenetrados da idéia de que não
crimes sem castigo; tanto mais se habituarão a considerar o crime como a causa da qual
o castigo é o efeito necessário e inseparável.
É a ligação das idéias que sustenta todo o edifício do entendimento humano. Sem ela, o
prazer e a dor seriam sentimentos isolados, sem efeito, tão cedo esquecidos quanto
sentidos. Os homens sem idéias gerais e princípios universais, isto é, os homens
ignorantes e embrutecidos, não agem senão segundo as idéias mais vizinhas e mais
imediatamente unidas. Negligenciam as relações distantes, e essas idéias complicadas,
que se apresentam ao homem fortemente apaixonado por um objeto, ou aos espíritos
esclarecidos. A luz da atenção dissipa no homem apaixonado as trevas que cercam o
vulgar. O homem instruído, acostumado a percorrer e a comparar rapidamente um
grande número de idéias e de sentimentos opostos, tira do contraste um resultado que
constitui a base de sua conduta, desde então menos incerta e menos perigosa.
É, pois, da maior importância punir prontamente um crime cometido, se se quiser que,
no espírito grosseiro do vulgo, a pintura sedutora das vantagens de uma ão criminosa
desperte imediatamente a idéia de um castigo inevitável. Uma pena por demais
retardada torna menos estreita a união dessas duas idéias: crime e castigo. Se o suplício
de um acusado causa então alguma impressão, e somente como espetáculo, pois se
apresenta ao espectador quando o horror do crime, que contribui para fortificar o horror
da pena, já está enfraquecido nos espíritos.
Poder-se-ia ainda estreitar mais a ligação das idéias de crime e de castigo, dando à pena
toda a conformidade possível com a natureza do delito, a fim de que o receio de um
castigo especial afaste o espírito do caminho a que conduzia a perspectiva de um crime
vantajoso. É preciso que a idéia do suplício esteja sempre presente no coração do
homem fraco e domine o sentimento que o leva ao crime.
Entre vários povos, punem-se os crimes pouco consideráveis com a prisão ou com a
escravidão num país distante, isto é, manda-se o culpado levar um exemplo inútil a uma
sociedade que ele não ofendeu.
Como os homens não se entregam, a princípio, aos maiores crimes, a maior parte dos
que assistem ao suplício de um celerado, acusado de algum crime monstruoso, não
experimentam nenhum sentimento de terror ao verem um castigo que jamais imaginam
poder merecer. Ao contrário, a punição pública dos pequenos delitos mais comuns
causar-lhe-á na alma uma impressão salutar que os afastará de grandes crimes,
desviando-os primeiro dos que o são menos.
XX. QUE O CASTIGO DEVE SER
INEVITÁVEL. – DAS GRAÇAS
NÃO é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a certeza
do castigo, o zelo vigilante do magistrado e essa severidade inflexível que é uma
virtude no juiz quando as leis são brandas. A perspectiva de um castigo moderado, mas
inevitável causará sempre uma forte impressão mais forte do que o vago temor de um
suplício terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade.
O homem treme à idéia dos menores males, quando a impossibilidade de evitá-los;
ao passo que a esperança, doce filha do céu, que tantas vezes nos proporciona todos os
bens, afasta sempre a idéia dos tormentos mais cruéis, por pouco que ela seja sustentada
pelo exemplo da impunidade, que a fraqueza ou o amor do ouro tão freqüentemente
concede.
As vezes, a gente se abstém de punir um delito pouco importante, quando o ofendido
perdoa. É um ato de benevolência, mas um ato contrário ao bem público. Um particular
pode bem não exigir a reparação do mal que se lhe fez; mas, o perdão que ele concede
não pode destruir a necessidade do exemplo.
O direito de punir não pertence a nenhum cidadão em particular; pertence às leis, que
são o órgão da vontade de todos. Um cidadão ofendido pode renunciar à sua porção
desse direito, mas não tem nenhum poder sobre a dos outros.
Quando as penas se tiverem tornado menos cruéis, a demência e o perdão serão menos
necessários. Feliz a nação que não mais lhes desse o nome de virtudes! A demência, que
se tem visto em alguns soberanos substituir outras qualidades que lhes faltavam para
cumprir os deveres do trono, deveria ser banida de uma legislação sábia na qual as penas
fossem brandas e a justiça feita com formas prontas e regulares.
Essa verdade parecerá dura apenas aos que vivem submetidos aos abusos de uma
jurisprudência criminal que concede a graça e o perdão necessários em razão mesmo da
atrocidade das penas e do absurdo das leis.
O direito de conceder graça é sem dúvida a mais bela prerrogativa do trono; é o mais
precioso atributo do poder soberano; mas, ao mesmo tempo, é uma improbação tácita
das leis existentes. O soberano que se ocupa com a felicidade pública e que julga
contribuir para ela exercendo o direito de conceder graça, eleva-se então contra o código
criminal, consagrado, mau grado seus vícios, pelos preconceitos antigos, pelo
calhamaço impostor dos comentadores, pelo grave aparelho das velhas formalidades,
enfim, pelo sufrágio dos semi-sábios, sempre mais insinuantes e mais escutados do que
os verdadeiros sábios.
Sendo a clemência virtude do legislador e não do executor das leis, devendo manifestar-
se no Código e não em julgamentos particulares, se se deixar ver aos homens que o
crime pode ser perdoado e que o castigo nem sempre é a sua conseqüência necessária,
nutre-se neles a esperança da impunidade; faz-se com que aceitem os suplícios não
como atos de justiça, mas como atos de violência.
Quando o soberano concede graça a um criminoso, não será o caso de dizer que
sacrifica a segurança pública à de um particular e que, por um ato de cega benevolência,
pronuncia um decreto geral de impunidade?
Sejam, pois, as leis inexoráveis, sejam os executores das leis inflexíveis; seja, porém, o
legislador indulgente e humano. Arquiteto prudente, por base ao seu edifício o amor
que todo homem tem ao próprio bem-estar, e saiba fazer resultar o bem geral do
concurso dos interesses particulares; não se verá, assim, constrangido a recorrer a leis
imperfeitas, a meios pouco refletidos que separam a cada instante os interesses da
sociedade dos cidadãos; não será forçado a elevar sobre o medo e a desconfiança o
simulacro da felicidade pública. Filósofo profundo e sensível, terá deixado aos seus
irmãos o gozo pacífico da pequena porção de felicidade que o Ser supremo lhes
concedeu nesta terra, que não é mais do que um ponto no meio de todos os mundos.
XXI. DOS ASILOS
SERÃO justos os asilos? E será útil o uso estabelecido entre as nações de
permutarem entre si os criminosos?
Em toda a extensão de um Estado político, não deve haver nenhum lugar fora da
dependência das leis. A força destas deve seguir o cidadão por toda a parte, como a
sombra segue o corpo.
Há pouca diferença entre a impunidade e os asilos; e, como o melhor meio de impedir o
crime é a perspectiva de um castigo certo e inevitável, os asilos, que representam um
abrigo contra a ação das leis, convidam mais ao crime do que as penas o evitam, do
momento em que se tem a esperança de evitá-los.
Multiplicar os asilos é formar pequenas soberanias, porque, quando as leis não têm
poder, novas potências se formam de ordem comum, estabelece-se um espírito oposto
ao do corpo inteiro da sociedade.
Vê-se, na história de todos os povos, que os asilos foram a fonte de grandes revoluções
nos Estados e nas opiniões humanas.
Pretenderam alguns que, cometido um crime num lugar, isto é, um ato contrário às leis,
teriam estas em toda parte o direito de punir. Será a qualidade de súdito, nesse caso, um
caráter indelével? Será o nome de súdito pior que o de escravo? E admitir-se-á que um
homem habite um país e seja submetido às leis de outro país? que suas ações fiquem ao
mesmo tempo subordinadas a dois soberanos e a duas legislações muitas vezes
contraditórias?
Ousou-se dizer, assim, que um crime cometido em Constantinopla podia ser punido em
Paris, porque aquele que ofende uma sociedade humana merece ter todos os homens por
inimigos e deve ser objeto da execração universal. No entanto, os juizes não são
vingadores do gênero humano em geral; são os defensores das convenções particulares
que ligam entre si um certo número de homens. Um crime deve ser punido no país
onde foi cometido, porque é somente aí, e não em outra parte, que os homens são
forçados a reparar, pelo exemplo da pena, os funestos efeitos que o exemplo do crime
pode produzir.
Um celerado, cujos crimes precedentes não puderam violar as leis de uma sociedade da
qual não era membro, pode bem ser temido e expulso dessa sociedade; mas, as leis não
podem infligir-lhe outra pena, pois são feitas somente para punir o mal que lhe é feito, e
não o crime que não as ofende.
Será, pois, útil que as nações permutem reciprocamente entre si os criminosos?
Certamente, a persuasão de não encontrar nenhum lugar na terra em que o crime possa
ficar impune seria um meio bem eficaz de preveni-lo. Não ousarei, porém, decidir essa
questão, até que as leis, tornando-se mais conformes aos sentimentos naturais do
homem, com penas mais brandas, impedindo o arbítrio dos juizes e da opinião,
assegurem a inocência e preservem a virtude das perseguições da inveja; até que a
tirania, relegada ao Oriente, tenha deixado a Europa sob o doce império da razão, dessa
razão eterna que une com um laço indissolúvel os interesses dos soberanos aos
interesses dos povos.
XXII. DO USO DE PÔR A CABEÇA A
PRÊMIO
SERÁ vantajoso para a sociedade pôr a prêmio a cabeça de um criminoso, armar
cada cidadão de um punhal e fazer assim outros tantos carrascos?
Ou o criminoso saiu do país, ou ainda está nele. No primeiro caso, excitam-se os
cidadãos a cometer um assassínio, a atingir talvez um inocente, a merecer suplícios.
Faz-se uma injúria à nação estrangeira, espezinha-se-lhe a autoridade, autoriza-se que se
façam semelhantes usurpações entre os próprios vizinhos.
Se o criminoso ainda está no país cujas leis violou, o governo que põe sua cabeça a
prêmio revela fraqueza. Quando a gente tem força para defender-se não compra o
socorro de outrem.
Além disso, o uso de pôr a prêmio a cabeça de um cidadão anula todas as idéias de
moral e de virtude, tão fracas e tão abaladas no espírito humano. De um lado, as leis
punem a traição; de outro, autorizam-na. O legislador aperta com uma das mãos os laços
de sangue e de amizade, e com a outra recompensa aquele que os quebra. Sempre em
contradição consigo mesmo, ora procura espalhar a confiança e animar os que duvidam,
ora semeia a desconfiança em todos os corações. Para prevenir um crime, faz nascer
cem.
Semelhantes usos convêm às nações fracas, cujas leis servem para sustentar por
um momento um edifício de ruínas que todo se esboroa.
Mas, à medida que as luzes de uma nação se difundem, a boa e a confiança recíproca
se tornam necessárias, e a política é, enfim, constrangida a admiti-las. Então,
desmancham-se e previnem-se mais facilmente as cabalas, os artifícios, as manobras
obscuras e indiretas. Então, também, o interesse geral sai sempre vencedor dos
interesses particulares.
Os povos esclarecidos poderiam buscar lições em alguns séculos de ignorância, nos
quais a moral particular era sustentada pela moral pública.
As nações serão felizes quando a moral estiver estreitamente ligada à política.
Mas, leis que recompensam a traição, que acendem entre os cidadãos uma guerra
clandestina, que excitam suspeitas recíprocas, opor-se-ão sempre a essa união tão
necessária da política e da moral; união que daria aos homens segurança e paz, que lhes
aliviaria a miséria e que traria às nações mais, longos intervalos de repouso e concórdia
do que aqueles de que até ao presente gozaram.
XXIII. QUE AS PENAS DEVEM SER
PROPORCIONADAS AOS DELITOS
O INTERESSE de todos não é somente que se cometam poucos crimes, mais ainda
que os delitos mais funestos à sociedade sejam os mais raros. Os meios que a legislação
emprega para impedir os crimes devem, pois, ser mais fortes à medida que o delito é
mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais comum. Deve. pois, haver uma
proporção entre os delitos e as penas.
Se o prazer e a dor são os dois grandes motores dos seres sensíveis; se, entre os motivos
que determinam os homens em todas as suas ações, o supremo Legislador colocou como
os mais poderosos as recompensas e as penas; se dois crimes que atingem
desigualmente a sociedade recebem o mesmo castigo, o homem inclinado ao crime, não
tendo que temer uma pena maior para o crime mais monstruoso, decidir-se-á mais
facilmente pelo delito que lhe seja mais vantajosos; e a distribuição desigual das penas
produzirá a contradição, tão notória quando freqüente, de que as leis terão de punir os
crimes que tiveram feito nascer.
Se se estabelece um mesmo castigo, a pena de morte por exemplo, para quem mata um
faisão e para quem mata um homem ou falsifica um escrito importante, em breve não se
fará mais nenhuma diferença entre esses delitos; destruir-se-ão no coração do homem os
sentimentos morais, obra de muitos séculos, cimentada por ondas de sangue,
estabelecida com lentidão através mil obstáculos, edifício que se pode elevar com o
socorro dos mais sublimes motivos e o aparato das mais solenes formalidades.
Seria em vão que se tentaria prevenir todos os abusos que se originam da fermentação
contínua das paixões humanas; esses abusos crescem em razão da população e do
choque dos interesses particulares, que é impossível dirigir em linha reta para o bem
público. Não se pode provar essa asserção com toda a exatidão matemática; pode-se,
porém, apoiá-la com exemplos notáveis.
Lançai os olhos sobre a história, e vereis crescerem os abusos à medida que os impérios
aumentam. Ora, como o espírito nacional se enfraquece na mesma proporção, o pendor
para o crime crescerá em razão da vantagem que cada um descobre no abuso mesmo; e a
necessidade de agravar as penas seguirá necessariamente igual progressão.
Semelhante à gravitação dos corpos, uma força secreta impele-nos sempre para o nosso
bem estar. Essa impulsão é enfraquecida pelos obstáculos que as leis lhe opõem.
Todos os diversos atos do homem são efeitos dessa tendência interior. As penas são os
obstáculos políticos que impedem os funestos efeitos do choque dos interesses pessoais,
sem destruir-lhes a causa, que é o amor de si mesmo, inseparável da humanidade.
O legislador deve ser um arquiteto hábil, que saiba ao mesmo tempo empregar todas as
forças que podem contribuir para consolidar o edifício e enfraquecer todas as que
possam arruiná-lo.
Supondo-se a necessidade da reunião dos homens em sociedade, mediante convenções
estabelecidas pelos interesses opostos de cada particular, achar-se-á um progressão de
crimes, dos quais o maior será aquele que tende à destruição da própria sociedade. Os
menores delitos serão as pequenas ofensas feitas aos particulares. Entre esses dois
extremos estarão compreendidos todos os atos opostos ao bem público, desde o mais
criminoso até ao menos passível de culpa.
Se os cálculos exatos pudessem aplicar-se a todas as combinações obscuras que fazem
os homens agir, seria mister procurar e fixar uma progressão de penas correspondente à
progressão dos crimes. O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou
da escravidão da humanidade ou da maldade de cada nação.
Bastará, contudo, que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição
das penas proporcionadas aos delitos e que, sobretudo, não aplique os menores castigos
aos maiores crimes.
XXIV. DA MEDIDA DOS DELITOS
JÁ observamos que a verdadeira medida dos delitos é o dano causado à sociedade.
Eis uma dessas verdades que, embora evidentes para o espírito menos perspicaz, mas
ocultas por um concurso singular de circunstâncias, são conhecidas de um pequeno
número de pensadores em todos os países e em todos os séculos cujas leis conhecemos.
As opiniões espalhadas pelos déspotas e as paixões dos tiranos abafaram as noções
simples e as idéias naturais que constituíam sem dúvida a filosofia das sociedades
primitivas. Mas, se a tirania comprimiu a natureza por uma ação insensível, ou por
impressões violentas sobre os espíritos da multidão, hoje, enfim, as luzes do nosso
século dissipam os tenebrosos projetos do despotismo, reconduzindo-nos aos princípios
da filosofia e mostrando-no-los com mais certeza.
Esperemos que a funesta experiência dos séculos passados não seja perdida e que os
princípios naturais reapareçam entre os homens, mau grado todos os obstáculos que se
lhes opõem.
A grandeza do crimeo depende da intenção de quem o comete, como erroneamente o
julgaram alguns: porque a intenção do acusado depende das impressões causadas pelos
objetos presentes e das disposições precedentes da alma. Esses sentimentos variam em
todos os homens e no mesmo indivíduo, com a rápida sucessão das idéias, das paixões e
das circunstâncias.
Se se punisse a intenção, seria preciso ter não só um Código particular para cada
cidadão, mas uma nova lei penal para cada crime.
Muitas vezes, com a melhor das intenções, um cidadão faz à sociedade os maiores
males, ao passo que um outro lhe presta grandes serviços com a vontade de prejudicar.
Outros jurisconsultos medem a gravidade do crime pela dignidade da pessoa ofendida,
de preferência ao mal que possa causar à sociedade. Se esse método fosse aceito, uma
pequena irreverência para com o Ser supremo mereceria uma pena bem mais severa do
que o assassínio de um monarca, pois a superioridade da natureza divina compensaria
infinitamente a diferença da ofensa.
Outros, finalmente, julgaram o delito tanto mais grave quanto maior a ofensa, à
Divindade. Sentir-se-á facilmente quanto essa opinião é falsa, se se examinarem com
sangue-frio as verdadeiras relações que unem os homens entre si e as que existem entre
o homem e Deus.
As primeiras são relações de igualdade. a necessidade faz nascer; do choque das
paixões e da posição dos interesses particulares, a idéia da unidade comum, base da
justiça humana. Ao contrário, as relações que existem entre o homem e Deus são
relações de dependência, que nos submetem a um ser perfeito e criador de todas as
coisas, a um senhor soberano que somente a si reservou o direito de ser ao mesmo
tempo legislador e juiz, somente ele pode ser a um tempo uma e outra coisa.
Se ele estabeleceu penas eternas para aquele que infringiu suas leis, qual será o inseto
bastante temerário que ousará vir em socorro de sua justiça divina, para empreender
vingar o ser que se basta a si mesmo, que os crimes não podem entristecer, que os
castigos não podem alegrar e que é o único na natureza a agir de maneira constante?
A grandeza do pecado ou da ofensa para com Deus depende da maldade do coração; e,
para que os homens pudessem sondar esse abismo, ser-lhes-ia preciso o socorro da
revelação. Como poderiam eles determinar as penas dos diferentes crimes, sobre
princípios cuja base lhes é desconhecida? Seria arriscado punir quando Deus perdoa e
perdoar quando Deus pune.
Se os homens ofendem a Deus com o pecado, muitas vezes o ofendem mais ainda
encarregando-se do cuidado de vingá-lo.
XXV. DIVISÃO DOS DELITOS
HÁ crimes que tendem diretamente à destruição da sociedade ou dos que a
representam. Outros atingem o cidadão em sua vida, nos seus bens ou em sua honra.
Outros, finalmente, são atos contrários ao que a lei prescreve ou proíbe, tendo em vista
o bem público.
Todo ato não compreendido numa dessas classes não pode ser considerado como crime,
nem punido como tal, senão pelos que descobrem nisso o seu interesse particular.
Por não se ter sabido guardar esses limites é que se vê em todas as nações uma oposição
entre as leis e a moral, e muitas vezes uma oposição entre aquelas mesmas. O homem de
bem está exposto às penas mais severas. As palavras vício e virtude não passam de sons
vagos. A existência do cidadão envolve-se de incerteza; e os corpos políticos caem
numa letargia funesta, que os conduz insensivelmente à ruína.
Cada cidadão pode fazer tudo o que não é contrário às leis, sem temer outros
inconvenientes além dos que podem resultar de sua ação em si mesma. Esse dogma
político deveria ser gravado no espírito dos povos, proclamado pelos magistrados
supremos e protegido pelas leis. Sem esse dogma sagrado, toda sociedade legítima não
pode subsistir por muito tempo, porque ele é a justa recompensa do sacrifício que os
homens fizeram de sua independência e de sua liberdade.
É essa opinião que torna as almas fortes e generosas, que eleva o espírito, que inspira
aos homens uma virtude superior ao medo e os faz desprezar essa miserável
maleabilidade que tudo aprova e que é a única virtude dos homens bastante fracos para
suportar constantemente uma existência precária e incerta.
Percorram-se, com visão filosófica, as leis e a história das nações, e se verão quase
sempre os nomes de vício e virtude, de bom e mau cidadão, mudarem de valor segundo
o tempo e as circunstâncias. Não são, porém, as reformas operadas no Estado ou nos
negócios públicos que causarão essa revolução das idéias; esta será a conseqüência dos
erros e dos interesses passageiros dos diferente legisladores.
Muitas vezes se verão as paixões de um século servir de base à moral dos séculos
seguintes, e formar toda a política dos que presidem às leis. Mas, as paixões fortes,
filhas do fanatismo e do entusiasmo, obrigam a pouco e pouco, à força de excessos, o
legislador à prudência, e podem tornar-se um instrumento útil nas mãos da astúcia ou do
poder, quando o tempo as tiver enfraquecido.
Foi do enfraquecimento das paixões fortes que nasceram entre os homens as noções
obscuras de honra e virtude; e essa obscuridade subsistirá sempre, porque as idéias
mudam com o tempo, que deixa sobreviver os nomes às coisas, que variam segundo os
lugares e os climas; é que a moral esta submetida, como os impérios, a limites
geográficos.
XXVI. DOS CRIMES DE LESA-
MAJESTADE
OS crimes de lesa-majestade foram postos na classe dos grandes crimes, porque são
funestos à sociedade. Mas, a tirania e a ignorância, que confundem as palavras e as
idéias mais claras, deram esse nome a uma multidão de delitos de natureza inteiramente
diversa. Aplicaram-se as penas mais graves a faltas leves; e, nessa ocasião como em mil
outras, o homem é muitas vezes vítima de uma palavra.
Toda espécie de delito é nociva à sociedade; mas, nem todos os delitos tendem
imediatamente a destruir. É preciso julgar as ações morais por seus efeitos positivos e
ter em conta o tempo e o lugar. a arte das interpretações odiosas, que é
ordinariamente a ciência dos escravos, pode confundir coisas que a verdade eterna
separou por limites imutáveis.
XXVII. DOS ATENTADOS CONTRA A
SEGURANÇA DOS PARTICULARES
E, PRINCIPALMENTE, DAS
VIOLÊNCIAS
DEPOIS dos crimes que atingem a sociedade, ou o soberano que a representa, vêm
os atentados contra a segurança dos particulares.
Como essa segurança é o fim de todas as sociedades humanas, não se pode deixar de
punir com as penas mais graves aquele que a atinge.
Entre esses crimes, uns são atentados contra a vida, outros contra a honra, e outros
contra os bens. Falaremos antes dos primeiros, que devem ser punidos com penas
corporais.
Os atentados contra a vida e a liberdade dos cidadãos estão no número dos grandes
crimes. Compreendem-se, nessa classe, não somente os assassínios e os assaltos
cometidos por homens do povo, mas, igualmente as violências da mesma natureza
exercidas pelos grandes e pelos magistrados: crimes tanto mais graves quanto as ações
dos homens elevados agem sobre a multidão com muito mais influência e os seus
excessos destroem no espírito dos cidadãos as idéias de justiça e de dever, para
substituir as do direito do mais forte: direito igualmente perigoso para quem dele abusa
e para quem o sofre.
Se os grandes e os ricos podem escapar a preço de dinheiro às penas que merecem os
atentados contra a segurança do fraco e do pobre, as riquezas, que, sob a proteção das
leis, são a recompensa da indústria, tornar-se-ão alimento da tirania e das iniqüidades.
Não mais existe liberdade todas as vezes que as leis permitem que em certas
circunstâncias um cidadão deixe de ser um homem para tornar-se uma coisa que se
possa pôr a prêmio. Vê-se, então, a astúcia dos homens poderosos ocupada
completamente com o aumento de sua força e dos seus privilégios, aproveitando todas
as combinações que a lei lhes torna favoráveis. Eis o mágico segredo que transformou a
massa dos cidadãos em bestas de carga; foi assim que os grandes acorrentaram escravos.
É por isso que certos governos, que têm todas as aparências de liberdade, gemem sob
uma tirania oculta. É pelos privilégios dos grandes que os usos tirânicos se fortificam
insensivelmente, depois de se terem introduzido na constituição, por vias que o
legislador negligenciou fechar.
Os homens sabem opor diques bastante fortes à tirania declarada; mas, muitas vezes,
não vêem o inseto imperceptível que mina sua obra e que abre por fim, à torrente
devastadora, uma estrada tanto mais segura quanto mais oculta.
Quais serão, pois, as penas reservadas aos crimes dos nobres, cujos privilégios ocupam
tão grande lugar na legislação da. maior parte dos povos? Não examinarei se essa
distinção hereditária entre plebeus e nobres é útil ao governo, ou necessária às
monarquias; nem se é verdade que a nobreza é um poder intermediário próprio para
conter em justos limites o povo e o soberano; nem se essa ordem isolada da sociedade
não tem o inconveniente de reunir num círculo estreito todas as vantagens da indústria,
todas as esperanças e toda a felicidade: como essas ilhotas encantadoras e férteis que se
encontram no meio dos desertos terríveis da Arábia.
Quando fosse verdade que a desigualdade é inevitável e mesmo útil na sociedade, é
certo que só deveria existir entre os indivíduos e em virtude das dignidades e do mérito,
mas não entre as ordens do Estado; que as distinções não devem permanecer. num
lugar, mas circular em todas as partes do corpo político; que as desigualdades sociais
devem nascer e desaparecer a cada instante, mas não perpetuar-se nas famílias.
Seja qual for a conclusão de todas essas questões, limitar-me-ei, a dizer que as penas das
pessoas de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as do último dos cidadãos. A
igualdade civil é anterior a todas as distinções de honras, e de riquezas. Se todos os
cidadãos não dependerem igualmente das mesmas leis, as distinções deixarão de ser
legítimas.
Deve supor-se que os homens, renunciando à liberdade despótica que receberam da
natureza, para se reunirem em sociedade, disseram entre si: “Aquele que for mais
industrioso obterá as maiores honras, a glória do seu nome passa aos seus
descendentes; mas, não obstante as honras e as riquezas, não receará menos do que o
último dos cidadãos a violação, das leis que o elevaram acima dos outros”.
É verdade que não assembléia geral do gênero humano em que se tenha aprovado
semelhante decreto; este se funda, porém, na natureza imutável dos sentimentos do
homem.
A igualdade perante as leis não destrói as vantagens que os príncipes julgam retirar da
nobreza: apenas impede os inconvenientes das distinções e torna as leis respeitáveis,
tirando toda esperança de impunidade.
Dir-se-á, talvez, que a mesma pena, aplicada contra o nobre e contra o plebeu, torna-se
completamente diversa e mais grave para o primeiro, por causa da educação que
recebeu, e da infâmia que se espalha sobre uma família ilustre. Responderei no entanto,
que o castigo se mede pelo dano causado à sociedade, e não pela sensibilidade do
culpado. Ora, o exemplo do crime é tanto mais funesto quanto é dado por um cidadão de
condição mais elevada.
Acrescentarei que a igualdade da pena pode ser exterior, e não pode ser
proporcionada ao grau de sensibilidade, que é diferente em cada indivíduo.
Quanto à infâmia que cobre uma família inocente, o soberano pode facilmente apagá-la
com demonstrações públicas de benevolência. Sabe-se que tais demonstrações de favor
têm foros de razão no povo crédulo e admirador.
XXVIII. DAS INJÚRIAS
AS injúrias pessoais, contrárias à honra, isto é, a essa justa porção de estima que todo
homem tem o direito de esperar dos seus concidadãos, devem ser punidas pela infâmia.
Há uma contradição notória entre as leis, ocupadas sobretudo com a proteção da fortuna
e da vida de cada cidadão, e as leis do que se chama a honra, que preferem a .opinião a
tudo.
A palavra honra é uma daquelas sobre as quais se fizeram os mais brilhantes raciocínios,
sem ligar-se a nenhuma idéia fixa e precisa. Tal é a triste condição do espírito humano,
que conhece melhor as revoluções dos corpos celestes do que as verdades que o tocam
de perto e que importam em sua felicidade. As noções morais que mais o interessam lhe
são incertas; as entrevê cercadas de trevas e flutuando ao sabor do turbilhão das
paixões.
Esse fenômeno deixará de causar espanto quando se considerar que, semelhantes aos
objetos que se confundem aos nossos olhos, porque estão próximos demais, as idéias
morais, perdem a clareza por estarem demasiado ao nosso alcance.
Apesar de sua simplicidade, discernimos com dificuldade os diversos princípios de
moral e julgamos, muitas vezes sem conhecê-los, os sentimentos do coração humano.
Quem observar com alguma atenção a natureza e os homens, não se admirará de todas
essas coisas; pensará que, para ser feliz e tranqüilo, o homem talvez não tenha
necessidade de tantas leis, nem de tão grande aparato moral.
A idéia da honra é uma idéia complexa, formada não somente de várias idéias simples,
mas também de várias idéias complexas por si mesma. Segundo os diferentes aspectos
sob os quais a idéia da honra se apresenta ao espírito, algumas vezes ela encerra e outras
exclui certos elementos que a compõem, conservando nessas diferentes situações um
pequeno número de elementos comuns, como várias quantidades algébricas admitindo
um divisor comum. Para achar esse divisor comum das diferentes idéias que os homens
fazem da honra, lancemos um rápido olhar sobre a formação das sociedades.
As primeiras leis e os primeiros magistrados originaram-se da necessidade de impedir os
abusos que teria ocasionado o despotismo natural de todo homem mais robusto do que o
vizinho. Foi esse o objeto do estabelecimento das sociedades e essa a base real ou
aparente de todas as leis, mesmo as que encerram princípios de destruição.
Mas, a aproximação dos homens e os progressos dos seus conhecimentos fizeram nascer
em seguida uma infinidade de necessidades e ligações recíprocas entre os membros da
sociedade. Nem todas essas necessidades tinham sido previstas pela lei, e os meios
atuais de cada cidadão não lhe bastavam para satisfazê-las. Começou então a
estabelecer-se o poder da opinião, por meio da qual podem obter-se certas vantagens
que as leis não podiam proporcionar, e evitar males de que elas não podiam preservar.
É a opinião que constitui, muitas vezes, o suplício do sábio e do medíocre. É ela que
concede às aparências da virtude o respeito que recusa à própria virtude. É a opinião que
de um vil celerado faz um missionário ardente, quando esconde seu interesse nessa
hipocrisia.
Sob o reinado da opinião, a estima dos outros homens não é somente útil, mas
indispensável a quem permanecer ao nível dos seus concidadãos. O ambicioso procura
os sufrágios da opinião que lhe serve os projetos; o homem vão mendiga-os, como um
testemunho do próprio mérito; o homem de honra exige-os, porque não pode dispensá-
los.
Essa honra, que muita gente prefere à própria existência, foi conhecida depois que os
homens se reuniram em sociedade; não pode ser posta no depósito comum. O
sentimento que nos liga à honra não é outra coisa senão uma volta momentânea ao
estado de natureza, um movimento que nos subtrai por um instante a leis cuja proteção é
insuficiente em certas ocasiões.
Segue-se daí que, na extrema liberdade política, como na extrema dependência, as idéias
de honra desaparecem ou se confundem com outras idéias.
Num estado de liberdade ilimitada, as leis protegem tão fortemente que não se tem
necessidade de buscar os sufrágios da opinião pública.
No estado de escravidão absoluta, o despotismo, que anula a existência civil, deixa a
cada indivíduo uma personalidade precária e momentânea.
A honra é, pois, um princípio fundamental nas monarquias temperadas, onde o
despotismo do senhor é limitado pelas leis. A honra produz quase, numa monarquia, o
efeito que produz a revolta nos Estados despóticos. O súdito entra por um momento no
estado de natureza e o soberano tem a recordação da antiga igualdade.
XXIX. DOS DUELOS
A HONRA, que não é senão a necessidade dos sufrágios públicos, deu nascimento
aos combates singulares, que só puderam estabelecer-se na desordem das más leis.
Se os duelos não estiveram em uso na antigüidade, como algumas pessoas o crêem, é
que os antigos não se reuniam armados com um ar de desconfiança, nos templos, no
teatro e entre os amigos. Talvez também, sendo o duelo um espetáculo muito comum
que vis escravos davam ao povo, os homens livres tivessem receio de que os combates
singulares não bastassem para que eles fossem considerados homens honrados.
Seja como for, é em vão que se experimentou entre os modernos impedir os duelos com
pena de morte. Essas leis severas não puderam destruir um costume fundado numa
espécie de honra, mais cara aos homens do que a própria vida. O cidadão que recusa um
duelo vê-se presa do desprezo dos seus concidadãos; é forçado a levar uma vida
solitária, a renunciar aos encantos da sociedade, ou a expor-se constantemente aos
insultos e à vergonha, cujos repetidos golpes o afetam de maneira mais cruel do que a
idéia do suplício.
Por que motivo serão os duelos menos freqüentes entre os homens do povo do que entre
os grandes? É somente porque o povo não traz espada, é porque tem menos necessidade
de sufrágios públicos do que os homens de condição mais elevada, que se observam
entre si com mais desconfiança e inveja.
Não é inútil repetir aqui o que se disse certa vez: que o melhor meio de impedir o
duelo é punir o agressor, isto é, aquele que deu lugar à querela, a declarar inocente
aquele que, sem procurar tirar a espada, se viu constrangido a defender a própria honra,
isto é, a opinião, que as leis não protegem suficientemente, e mostrar aos seus
concidadãos que pode respeitar as leis, mas que não teme os homens.
XXX. DO ROUBO
UM roubo cometido sem violência deveria ser punido com uma pena pecuniária.
É justo que quem rouba o bem de outrem seja despojado do seu.
Mas, se o roubo é ordinariamente o crime da miséria e do desespero, se esse delito é
cometido por essa classe de homens infortunados, a quem o direito de propriedade
(direito terrível e talvez desnecessário) só deixou a existência como único bem, as penas
pecuniárias contribuirão simplesmente para multiplicar os roubos, aumentando o
número dos indigentes, arrancando o pão a uma família inocente, para dá-lo a um rico
talvez criminoso.
A pena mais natural do roubo será, pois, essa espécie de escravidão, que é a única que se
pode chamar justa, isto é, a escravidão temporária, que torna a sociedade senhora
absoluta da pessoa e do trabalho do culpado, para fazê-lo expiar, por essa dependência,
o dano que causou e a violação do pacto social.
Se, porém, o roubo é acompanhado de violência, é justo ajuntar à servidão as penas
corporais.
Outros escritores mostraram, antes de mim, os inconvenientes graves que resultam do
uso de aplicar as mesmas penas contra os roubos cometidos com violência e contra
aqueles em que o ladrão empregou a astúcia. Fez-se ver quanto é absurdo pôr na
mesma balança uma certa soma de dinheiro e a vida de um homem. O roubo com
violência e o roubo de astúcia são delitos absolutamente diferentes; e a política deve
admitir, ainda mais do que as matemáticas, o axioma certo de que entre dois objetos
heterogêneos, há uma distância infinita.
Essas coisas foram ditas; mas, é sempre útil repetir verdades que jamais se puseram em
prática. Os corpos políticos conservam por muito tempo o movimento recebido; é,
porém, moroso e difícil imprimir-lhes um novo movimento.
XXXI. DO CONTRABANDO
O CONTRABANDO é um verdadeiro delito, que ofende o soberano e a nação, mas
cuja pena não deveria ser infamante, porque a opinião pública não empresta nenhuma
infâmia a essa espécie de delito.
Porque, pois, o contrabando, que é um roubo feito ao príncipe, e por conseguinte à
nação, não acarreta a infâmia sobre aquele que o exerce? É que os delitos que os
homens não consideram nocivos aos seus interesses não afetam bastante para excitar a
indignação pública. Tal é o contrabando. Os homens, sobre os quais as conseqüências
remotas de um ato produzem impressões fracas, não vêem o dano que o contrabando
pode causar-lhes. Chegam mesmo, às vezes, a retirar dele vantagens momentâneas. Não
vêem senão o mal causado ao príncipe, e, para recusarem estima ao culpado, só têm uma
razão premente contra o ladrão, o falsário e alguns outros criminosos que podem
prejudicá-los pessoalmente.
Essa maneira de sentir é conseqüência do princípio incontestável de que todo ser
sensível só se interessa pelos males que conhece.
O contrabando é um delito gerado pelas próprias leis, porque, quanto mais se aumentam
os direitos, tanto maior é a vantagem do contrabando; a tentação de exercê-lo é também
tão forte quanto mais fácil é cometer essa espécie de delito, sobretudo se os objetos
proibidos são de pequeno volume, e se são interditos numa tão grande circunferência de
território que a extensão deste torne difícil guardá-lo.
O confisco das mercadorias proibidas, e mesmo de tudo o que se acha apreendido com
objetos de contrabando, é uma pena justíssima. Para torná-lo mais eficaz, seria preciso
que os direitos fossem pouco consideráveis; pois os homens só se arriscam na proporção
do lucro que o êxito possa proporcionar-lhes.
Será, porém, o caso de deixar impune o culpado que não tem nada que perder? Não. Os
impostos são parte tão essencial e tão difícil numa boa legislação, e estão de tal modo
comprometidos em certas espécies de contrabando, que tal delito merece uma pena
considerável, como a prisão e mesmo a servidão, mas uma prisão e uma servidão
análogas à natureza do delito.
Por exemplo, a prisão de um contrabandista de fumo não deve ser a do assassino ou a do
ladrão; e, sem dúvida, o castigo mais conveniente ao gênero do delito seria aplicar à
utilidade do fisco a servidão e o trabalho daquele que pretendeu fraudar-lhe os direitos.
XXXII. DAS FALÊNCIAS
O LEGISLADOR que percebe o preço da boa fé nos contratos, e que quer proteger a
segurança do comércio, deve dar recurso aos credores sobre a pessoa mesma dos seus
devedores, quando estes abrem falência. Importa, porém, não confundir o falido
fraudulento com o que é de boa fé. O primeiro deveria ser punido como o são os
moedeiros falsos, porque não é maior o crime de falsificar o metal amoedado, que
constitui a garantia dos homens entre si, do que falsificar essas obrigações mesmas.
Mas, o falido de boa fé, o infeliz que pode provar evidentemente aos seus juizes que a
infidelidade de outrem, as perdas dos seus correspondentes, ou enfim contratempos que
a prudência humana não poderia evitar, o despojaram dos seus bens, deve ser tratado
com menos rigor. Por que motivos bárbaros ousar-se-á mergulhá-lo nas masmorras,
privá-lo do único bem que lhe resta na miséria, a liberdade, e confundi-lo com os
criminosos e forçá-lo a arrepender-se de ter sido honesto? Vivia tranqüilo, ao abrigo de
sua probidade, e contava com a proteção das leis. Se as violou, é que não estava em seu
poder conformar-se exatamente a essas leis severas, que o poder e a avidez insensível
impuseram e que o pobre aceitou seduzido pela esperança que subsiste sempre no
coração do homem e que o faz acreditar que todos os acontecimentos felizes serão para
ele e todas as desgraças para os outros.
O medo de ser ofendido predomina geralmente na alma sobre a vontade de prejudicar; e
os homens, entregando-se às suas primeiras impressões, amam as leis cruéis, se bem que
seja do seu interesse viver sob leis brandas, pois eles próprios estão submetidos a elas.
Mas, voltemos ao falido de boa fé: não o desobriguem de sua dívida senão depois que
ele a tiver pago inteiramente; recusem-lhe o direito de subtrair-se aos credores sem o
consentimento destes, e a liberdade de levar adiante sua indústria; forcem-no a empregar
seu trabalho e seus talentos no pagamento do que deve, proporcionalmente aos seus
lucros. Mas, sob nenhum pretexto legítimo, não se poderá fazê-lo sofrer uma prisão
injusta e inútil aos credores.
Dir-se-á, talvez, que os horrores da prisão obrigarão o falido a revelar as trapaças que
ocasionaram uma falência suspeita de fraude. É bem raro, porém, que essa espécie de
tortura seja necessária, se se fizer um exame rigoroso da conduta e dos negócios do
acusado.
Se a fraude do falido for muito duvidosa, será melhor optar por sua inocência. uma
máxima geralmente certa em legislação, segundo a qual a impunidade de um culpado
tem graves inconvenientes; mas, a impunidade é pouco perigosa quando o delito é
difícil de constatar-se.
Alegar-se-á também a necessidade de proteger os interesses do comércio, assim como o
direito de propriedade, que deve ser sagrado. Mas, o comércio e o direito de propriedade
não são o fim do pacto social, são apenas meios que podem conduzir a esse fim.
Se se submeterem todos os membros da sociedade a leis cruéis, para preservá-los dos
inconvenientes que são as conseqüências naturais do estado social, isso será faltar ao
fim procurando atingi-lo; e esse é o erro funesto que perde o espírito humano em todas
as ciências, mas sobretudo na política(17).
Poder-se-ia distinguir a fraude do delito grave, mas menos odioso, e fazer uma diferença
entre o delito grave e a pequena falta, que seria preciso separar também da perfeita
inocência.
No primeiro caso, aplicar-se-iam ao culpado as penas aplicáveis ao crime de falsário. O
segundo delito seria punido com penas menores, com a perda da liberdade. Deixar-se-ia
ao falido inteiramente inocente a escolha dos meios que desejasse empregar para
estabelecer os seus negócios; e, no caso de um delito leve, dar-se-ia aos credores o
direito de prescrever esses meios.
Mas, a distinção entre faltas graves e leves deve ser obra da lei, que é a única imparcial;
seria perigoso abandoná-la à prudência arbitrária de um juiz. É tão necessário fixar
limites na política quanto nas ciências matemáticas, porque o bem público se mede
como os espaços e a extensão.
Seria fácil ao legislador previdente impedir a maior parte das falências fraudulentas e
remediar a desgraça do homem laborioso, que falta aos seus compromissos sem ser
culpado. Possam todos os cidadãos consultar a cada instante os registros públicos, nos
quais se terá uma nota exata de todos os contratos; e que contribuições sabiamente
repartidas entre os comerciantes felizes formem um banco, do qual se tirem somas
convenientes para socorrer a indústria infeliz. Tais estabelecimentos poderão ter
vantagens numerosas, sem inconvenientes real.
Mas essas leis fáceis, a um tempo tão simples e tão sublimes; essas leis que esperam
apenas o sinal do legislador para espalhar sobre as nações a abundância e a força; essas
leis que seriam motivo de reconhecimento eterno de todas as gerações, são
desconhecidas ou rejeitadas. Um espírito de hesitação, idéias estreitas, a tímida
prudência do momento, uma rotina obstinada, que teme as inovações mais úteis: tais são
os móveis ordinários dos legisladores que regulam o destino da fraca humanidade.
XXXIII. DOS DELITOS QUE
PERTURBAM A TRANQÜILIDADE
PÚBLICA
A TERCEIRA espécie de delitos que distinguimos compreende os que perturbam
particularmente o repouso e a tranqüilidade pública: as querelas e o tumulto de pessoas
que se batem na via pública, destinada ao comércio e à passagem dos cidadãos, e os
discursos fanáticos que excitam facilmente as paixões de uma populaça curiosa e que
emprestam grande força da multidão dos auditores e sobretudo um certo entusiasmo
obscuro e misterioso, com poder bem maior sobre o espírito do povo do que a tranqüila
razão, cuja linguagem a multidão não entende.
Iluminar as cidades durante a noite à custa do público; colocar guardas de segurança nos
diversos bairros das cidades; reservar ao silêncio e à tranqüilidade sagrada dos templos,
protegidos pelo governo, os discursos de moral religiosa, e as arengas destinadas a
sustentar os interesses particulares e públicos às assembléias da nação, aos parlamentos
aos lugares, enfim, onde reside a majestade soberana: tais são as medidas próprias para
prevenir a perigosa fermentação das paixões populares; e são esses os principais objetos
que devem ocupar a vigilância do magistrado de polícia.
Mas, se esse magistrado não age segundo leis conhecidas e familiares a todos os
cidadãos; se pode, ao contrário, fazer ao seu capricho leis que julga serem necessárias,
abre assim a porta à tirania, que ronda sem cessar em torno das barreiras que a liberdade
pública lhe fixou e que só procura transpô-las.
Creio não haver exceção à regra geral de que os cidadãos devem saber o que precisam
fazer para serem culpados, e o que precisam evitar para serem inocentes.
Um governo que tem necessidade de censores, ou de qualquer outra espécie de
magistrados arbitrários, prova que é mal organizado e que sua constituição não tem
força. Num país em que o destino dos cidadãos está entregue à incerteza, a tirania oculta
imola mais vítimas do que o tirano mais cruel que age abertamente. Este ultimo revolta,
mas não avilta.
O verdadeiro tirano começa sempre reinando sobre a opinião; quando é senhor dela,
apressa-se a comprimir as almas corajosas, das quais tem tudo que temer, porque se
apresentam com o archote da verdade, quer no fogo das paixões, quer na ignorância dos
perigos.
XXXIV. DA OCIOSIDADE
OS governos sábios não sofrem, no seio do trabalho e da indústria, uma espécie de
ociosidade que é contrária ao fim político do estado social: quero falar de certas pessoas
ociosas e inúteis que não dão à sociedade nem trabalho nem riquezas, que acumulam
sempre sem jamais perder, que o vulgo respeita com uma admiração estúpida e que são
aos olhos do sábio um objeto de desprezo. Quero falar de certas pessoas que não
conhecem necessidade de administrar ou aumentar as comodidades da vida, único
motivo capaz de excitar a atividade humana, e que indiferentes à prosperidade do
Estado, se inflamam com paixão por opiniões que lhes agradam, mas que podem ser
perigosas.
Austeros declamadores confundiram essa espécie de ociosidade com a que é fruto das
riquezas adquiridas pela indústria. Cabe exclusivamente às leis, e não à virtude rígida
(mas fechada em idéias estreitas) de alguns censores, definir a espécie de ociosidade
punível.
Não se pode encarar como ociosidade funesta em política aquela que, gozando do fruto
dos vícios ou das virtudes de alguns antepassados, contudo pão e existência à
pobreza industriosa, da troca dos prazeres atuais que recebe desta e que põe o pobre na
contingência de travar a guerra pacífica que a indústria sustenta contra a opulência e que
sucedeu aos combates sangrentos e incertos da força contra a força.
Essa espécie de ociosidade pode mesmo tornar-se vantajosa, à medida que a sociedade
aumenta e que o governo deixa aos cidadãos mais liberdade.
XXXV. DO SUICÍDIO
O SUICÍDIO é um delito que parece não poder ser submetido a nenhuma pena
propriamente dita; pois essa pena poderia recair sobre um corpo insensível e sem
vida, ou sobre inocentes. Ora, o castigo que se aplicasse contra os restos inanimados do
culpado não poderia produzir outra impressão sobre os espectadores senão a que estes
experimentariam ao verem fustigar uma estátua.
Se a pena é aplicada à família inocente, ela é odiosa e tirânica, porque não
liberdade quando as penas não são puramente pessoais.
Os homens amam demasiado a vida; estão ligados a ela por todos os objetos que os
cercam; a imagem sedutora do prazer e a doce esperança, amável feiticeira que mistura
algumas gotas de felicidade ao licor envenenado dos males que ingerimos a grandes
tragos, encantam muito fortemente os corações dos mortais, para que se possa temer que
a impunidade contribua para tornar o suicídio mais comum.
Se se obedece às leis pelo temor de um suplício doloroso, aquele que se mata nada tem
que temer, pois a morte destrói toda sensibilidade. Não é, pois, esse motivo que poderá
deter a mão desesperada do suicida.
Mas, aquele que se mata faz menos mal à sociedade do que aquele que renuncia para
sempre à sua pátria. O primeiro deixa tudo ao seu país, ao passo que o outro lhe rouba
sua pessoa e uma parte dos seus bens.
Direi mais. Como a força de uma nação consiste no número dos cidadãos, aquele que
abandona o seu país para entregar-se a outro causa à sociedade o dobro do prejuízo que
lhe pode causar o suicida.
A questão reduz-se, pois, a saber se é útil ou perigoso à sociedade deixar a cada um dos
membros que a compõem uma liberdade perpétua de afastar-se dela.
Toda lei que não é forte por si mesma, toda lei cuja execução pode ser impedida em
certas circunstâncias, jamais deveria ser promulgada. A opinião, que governa os
espíritos, obedece às impressões lentas e indiretas que o legislador sabe dar-lhe; resiste,
porém, aos seus esforços, quando são violentos e diretos; e as leis inúteis, que logo são
desprezadas, comunicam seu aviltamento às leis mais salutares, que costumam ser vistas
antes como obstáculos a vencer do que como a salvaguarda da tranqüilidade pública.
Ora, como a energia dos nossos sentimentos é limitada, se se quiser obrigar os homens a
respeitar objetos estranhos ao bem da sociedade, eles terão menos veneração pelas leis
verdadeiramente úteis.
Não me deterei no desenvolvimento das conseqüências vantajosas que um sábio
dispensador da felicidade pública poderá tirar desse princípio; procurarei apenas provar
que não é necessário fazer do Estado uma prisão.
Uma lei que tentasse tirar aos cidadãos a liberdade de abandonar seu país, seria uma lei
inútil; porque, a menos que rochedos inacessíveis ou mares impraticáveis separem esse
país de todos os outros, como guardar todos os pontos de sua circunferência? Como
guardar os próprios guardas?
O imigrante que leva tudo o que possui não deixa nada sobre que as leis possam fazer
cair a pena com que o ameaçam. Seu delito não pode ser punido, desde que foi
cometido; e infligir-lhe um castigo antes que ele seja consumado, é punir a intenção e
não o fato, é exercer um poder tirano sobre o pensamento, sempre livre e sempre
independente das leis humanas.
Tentar-se-á punir o fugitivo com o confisco dos bens que ele deixa? Mas a conclusão,
que não se pode impedir por pouco que se respeitem os contratos dos cidadãos entre si,
tornaria esse meio ilusório. Além disso, semelhante lei destruiria todo comércio entre as
nações; e, se se punisse o emigrado, no caso dele regressar aos país, isso significaria
impedi-lo de reparar o prejuízo que causou à sociedade e banir para sempre aquele que
uma vez se tivesse afastado da pátria.
Enfim, a proibição de sair de um país faz aumentar, em quem o habita, o desejo de
abandoná-lo, ao passo que desvia os estrangeiros de nele se estabelecerem. Que se deve,
pois, pensar de um governo que não tem outro meio senão o temor, para reter os homens
em sua pátria, à qual eles estão naturalmente ligados pelas primeiras impressões da
infância?
A maneira mais certa de fixar os homens em sua pátria é aumentar o bem-estar
respectivo de cada cidadão. Do mesmo modo que todo governo deve empregar os
maiores esforços para fazer pender a seu favor a balança do comércio, assim também o
maior interesse do soberano e da nação é que a soma de felicidade seja maior do que
entre os povos vizinhos.
Os prazeres do luxo não são os principais elementos dessa felicidade: embora
impedindo as riquezas de se reunirem numa mão, eles se tornam um remédio
necessário à desigualdade, que toma mais força à medida que a sociedade faz mais
progressos(18).
Mas, os prazeres do luxo são a base da felicidade pública, num país em que a segurança
dos bens e a liberdade das pessoas dependem exclusivamente das leis, porque então
esses prazeres favorecem a população; ao passo que se tornam um instrumento de
tirania para um povo cujos direitos não são garantidos. Assim como os animais mais
generosos e os livres habitantes dos ares preferem as solidões inacessíveis e as florestas
longínquas, onde sua liberdade não corre risco, aos campos alegres e férteis, que o
homem, seu inimigo, semeou de armadilhas, assim também os homens evitam o próprio
prazer, quando este lhes é oferecido pela mão dos tiranos(19).
Está, pois, demonstrado que a lei que prende os cidadãos ao seu país é inútil e injusta; e
o mesmo juízo deve ser feito sobre a que pune o suicídio.
Trata-se de um crime que Deus pune após a morte do culpado, e somente Deus pode
punir depois da morte.
Não é, porém, um crime perante os homens, porque o castigo recai sobre a família
inocente e não sobre o culpado.
Se me objetarem que o medo desse castigo pode, contudo, deter a mão do infeliz
determinado a morrer, responderei que quem renuncia tranqüilamente à doçura de viver
e odeia bastante a existência terrena para preferir-lhe uma eternidade talvez infeliz, não
se comoverá decerto com a consideração remota e menos forte da vergonha que o crime
atrairá sobre sua família.
XXXVI. DE CERTOS DELITOS
DIFÍCEIS DE CONSTATAR
COMETEM-SE na sociedade certos delitos que são bastante freqüentes, mas que é
difícil provar. Tais são o adultério, a pederastia, o infanticídio.
O adultério é um crime que, considerado sob o ponto de vista político, só é tão freqüente
porque as leis não são fixas e porque os dois sexos são naturalmente atraídos um pelo
outro(20).
Se eu falasse a povos ainda privados das luzes da religião, diria que uma grande
diferença entre esse delito e todos os outros. O adultério é produzido pelo abuso de uma
necessidade constante, comum a todos os mortais, anterior à sociedade; ao passo que os
outros delitos, que tendem mais ou menos à destruição do pacto social, são antes o
efeito das paixões do momento do que das necessidades da natureza.
Os que leram a história e estudaram os homens podem reconhecer que o número dos
delitos produzidos pela tendência de um sexo para outro é, no mesmo clima, sempre
igual a uma quantidade constante. Se assim é, toda lei, todo costume cujo fim fosse
diminuir a soma total dos efeitos dessa paixão, seria inútil e até funesta, porque o efeito
dessa lei seria sobrecarregar uma porção da sociedade com suas próprias necessidades e
com as dos outros. O partido mais sábio seria, pois, seguir até certo ponto o declive do
rio das paixões e dividir-lhe o curso num número de regatos suficientes para impedir em
toda parte dois excessos contrários, a seca e as enchentes.
A fidelidade conjugal é sempre mais segura à proporção que os casamentos são mais
numerosos e mais livres. Se os preconceitos hereditários os conciliam, se o poder
paterno os forma e os impede ao seu capricho, a galanteria quebra-lhes secretamente os
laços, mau grado as declamações dos moralistas vulgares, sempre ocupados em gritar
contra os efeitos, omitindo as causas.
Mas, essas reflexões são inúteis para aqueles que os motivos sublimes da religião
mantêm nos limites do dever, que o pendor da natureza os leva a transpor.
O adultério é um delito de um instante; envolve-se de mistério; cobre-se de um véu que
as próprias leis se empenham em conservar, véu necessário, mas de tal modo
transparente que faz aumentar os encantos do objeto que oculta. As ocasiões são tão
fáceis, as conseqüências tão duvidosas, que é bem mais fácil ao legislador preveni-lo
quando não foi cometido do que reprimi-lo quando já se estabeleceu.
Regra geral: em todo delito que, por sua natureza, deve quase sempre ficar impune, a
pena é um aguilhão a mais. Nossa imaginação é mais vivamente excitada e se empenha
com mais ardor em perseguir o objeto dos seus desejos, quando as dificuldades que se
apresentam não são insuperáveis e quando não têm um aspecto bastante desencorajador,
relativamente ao grau de atividade que se tem no espírito. Os obstáculos se tornam, por
assim dizer, tantas barreiras que impedem nossa imaginação caprichosa de afastar-se
delas, e que continuamente a forçam a pensar nas conseqüências da ação que medita.
Então a alma se apega bem mais fortemente aos lados agradáveis que a seduzem do que
às conseqüências perigosas cuja idéia se esforça por afastar.
A pederastia, que as leis punem com tanta severidade e contra a qual se empregam tão
facilmente essas torturas atrozes que triunfam da própria inocência, é menos o efeito das
necessidades do homem isolado e livre do que o desvio das paixões do homem escravo
que vive em sociedade. Se às vezes ela é produzida pela sociedade dos prazeres, é bem
freqüentemente o efeito dessa educação que, para tornar os homens úteis aos outros,
começa por torná-los inúteis a si mesmos, nessas casas em que uma juventude
numerosa, viva, ardente, mas separada por obstáculos intransponíveis do sexo, do qual a
natureza lhe pinta fortemente todos os encantos, prepara para si uma velhice antecipada,
consumindo de antemão, inutilmente para a humanidade, um vigor apenas
desenvolvido.
O infanticídio é ainda o resultado quase inevitável da cruel alternativa em que se acha
uma infeliz, que cedeu por fraqueza, ou que sucumbiu sob os esforços da violência.
De um lado a infâmia, de outro a morte de um ser incapaz de sentir a perda da vida:
como não havia de preferir esse último partido, que a rouba à vergonha, à miséria,
juntamente com o desgraçado filhinho!
O melhor meio de prevenir essa espécie de delito seria proteger com leis eficazes a
fraqueza e a infelicidade contra essa espécie de tirania, que só se levanta contra os vícios
que não se podem cobrir com o manto da virtude.
Não pretendo enfraquecer o justo horror que devem inspirar os crimes de que acabamos
de falar. Eu quis indicar suas fontes e penso que me será permitido tirar daí a
conseqüência geral de que não se pode chamar precisamente justa ou necessária (o que é
a mesma coisa) a punição de um delito que as leis não procuraram prevenir com os
melhores meios possíveis e segundo as circunstâncias em que se encontra uma nação.
XXXVII. DE UMA ESPÉCIE
PARTICULAR DE DELITO
OS QUE lerem esta obra se aperceberão sem dúvida de que não falei de uma espécie de
delito cuja punição inundou a Europa de sangue humano.
Não descrevi esses espetáculos espantosos em que o fanatismo elevava constantemente
fogueiras, em que homens vivos serviam de alimento às chamas, em a que multidão
feroz se comprazia em ouvir os gemidos abafados dos infelizes, em que cidadãos
corriam, como a um espetáculo agradável, a contemplar a morte dos seus irmãos, no
meio dos turbilhões de negra fumaça, em que os lugares públicos ficavam cobertos de
destroços palpitantes e de cinzas humanas.
Os homens esclarecidos verão que o país onde habito, o século em que vivo e a matéria
de que trato não me permitiram examinar a natureza desse delito. Seria, aliás, empresa
demasiado longa e que me desviaria muito do meu assunto, querer provar, contra o
exemplo de várias nações, a necessidade de uma inteira conformidade de opinião num
Estado político; procurar demonstrar como certas crenças religiosas, entre as quais
podem achar-se diferenças sutis, obscuras e muito acima da capacidade humana, podem
contudo perturbar a tranqüilidade pública, a menos que somente uma seja autorizada e
todas as outras proscritas.
Seria preciso fazer ver ainda como algumas dessas crenças, tornando-se mais claras pela
fermentações dos espíritos, podem fazer nascer do choque das opiniões a verdade, que
então sobrenada depois de ter aniquilado o erro, ao passo que outras seitas, pouco firmes
em suas bases; têm necessidade, para manter-se, de se apoiarem na força.
Seria demasiado longo, igualmente, mostrar que, para reunir todos os cidadãos de um
Estado numa perfeita conformidade de opiniões religiosas, é preciso tiranizar os
espíritos e constrangê-los a vergar sob o jugo da força, embora essa violência se oponha
à razão e à autoridade que mais respeitamos(21), que nos recomenda a doçura e o amor
dos nossos irmãos, embora seja evidente que a força faz hipócritas e, portanto, almas
vis.
Deve-se crer que todas essas coisas estarão demonstradas e conformes aos interesses da
humanidade, se houver em alguma parte uma autoridade legítima e reconhecida que as
ponha em prática.
Quanto a mim, falo aqui dos crimes que pertencem ao homem natural e que violam o
contrato social; devo silenciar, porém, sobre os pecados cuja punição mesmo temporal
deve ser determinada segundo outras regras que não as da filosofia.
XXXVIII. DE ALGUMAS FONTES
GERAIS DE ERROS E DE
INJUSTIÇAS NA LEGISLAÇÃO
E, em primeiro lugar, das falsas idéias de utilidade
AS FALSAS idéias que os legisladores fizeram da utilidade são uma das fontes mais
fecundas de erros e injustiças.
É ter falsas idéias de utilidade ocupar-se mais com inconvenientes particulares do que
com inconvenientes gerais; querer comprimir os sentimentos naturais em lugar de
procurar excitá-los; impor silêncio à razão e dizer ao pensamento: “Sê escravo”.
É ter ainda falsas idéias de utilidade sacrificar mil vantagens reais ao temor de uma
desvantagem imaginária ou pouco importante.
Não teria certamente idéias justas quem desejasse tirar aos homens o fogo e a água,
porque esses dois elementos causam incêndios e inundações, e quem soubesse
impedir o mal pela destruição.
Podem considerar-se igualmente como contrárias ao fim de utilidade as leis que
proíbem o porte de armas, poisdesarmam o cidadão pacífico, ao passo que deixam o
ferro nas mãos do celerado, bastante acostumado a violar as convenções mais sagradas
para respeitar as que são apenas arbitrárias.
Além disso, essas convenções são pouco importantes; há pouco perigo em infringi-las e,
por outro lado, se as leis que desarmam fossem executadas com rigor, destruiriam a
liberdade pessoal, tão preciosa ao homem tão respeitável aos olhos do legislador
esclarecido; submeteriam a inocência a todas as investigações, a todos os vexames
arbitrários que só devem ser reservados aos criminosos.
Tais leis servem para multiplicar os assassínios, entregam o cidadão sem defesa aos
golpes do celerado, que fere com mais audácia um homem desarmado; favorecem o
bandido que ataca, em detrimento do homem honesto que é atacado.
Essas leis são simplesmente o ruído das impressões tumultuosas que produzem certos
fatos particulares; não podem ser o resultado de combinações sábias que pesam numa
mesma balança os males e os bens; não é para prevenir os delitos, mas pelo vil
sentimento do medo, que se fazem tais leis.
É por uma falsa idéia de utilidade que se procura submeter uma multidão de seres
sensíveis à regularidade simétrica que pode receber uma matéria bruta e inanimada; que
se negligenciam os motivos presentes, únicos capazes de impressionar o espírito
humano de maneira forte e durável, para empregar motivos remotos, cuja impressão é
fraca e passageira, a menos que uma grande força de imaginação, que se se encontra
num pequeno número de homens, supra o afastamento do objeto, mantendo-o sob
relações que o aumentam e o aproximam.
Enfim, também podem chamar-se falsas idéias de utilidade as que separam o bem geral
dos interesses particulares, sacrificando as coisas às palavras.
Há, entre o estado de sociedade e o estado de natureza, a diferença de que o homem
selvagem só faz mal a outrem quando nisso descobre alguma vantagem para si, ao passo
que o homem social é às vezes levado, por leis viciosas, a prejudicar sem nenhum
proveito.
O déspota espalha o medo e o abatimento na alma dos seus escravos, mas esse medo e
esse abatimento voltam-se contra ele próprio, logo lhe enchem o coração e o tornam
presa de males maiores do que os que ele causa.
Aquele que se compraz em inspirar o terror corre poucos riscos, se teme apenas a
própria família e as pessoas que o cercam. Mas, quando o terror é geral, quando fere
uma grande multidão de homens, o tirano deve tremer. Receie a temeridade, o
desespero; receie sobretudo o homem audacioso, mas prudente, que souber com
habilidade sublevar contra ele os descontentes, tanto mais fáceis de serem seduzidos
quando se despertarem em suas almas as mais caras esperanças e quando se tiver o
cuidado de mostrar-lhes os perigos da empresa repartidos entre um grande número de
cúmplices. Juntai a isso que os infelizes dão menos valor à sua existência na proporção
dos males que os afligem.
Eis, sem dúvida, porque as ofensas são quase sempre seguidas de ofensas novas. A
tirania e o ódio são sentimentos duráveis, que se sustentam e tomam novas forças à
medida que se exercem; ao passo que, em nossos corações corruptos, o amor e os
sentimentos ternos se enfraquecem e se extinguem na ociosidade.
XXXIX. DO ESPÍRITO DE FAMÍLIA
O ESPIRÍTO da família é outra fonte geral de injustiças na legislação.
Se as disposições cruéis e os outros vícios das leis penais foram aprovados pelos
legisladores mais esclarecidos, nas repúblicas mais livres, é que se considerou o Estado
antes como uma sociedade de famílias do que como a associação de um certo número de
homens.
Suponha-se uma nação composta de cem mil homens, distribuídos em vinte mil famílias
de cinco pessoas cada uma, inclusive o chefe que a representa; se a associação é feita
por famílias, haveria vinte mil cidadãos e oitenta mil escravos; se é feita por indivíduos,
haveria cem mil cidadãos livres.
No primeiro caso, seria uma república composta de vinte mil pequenas monarquias; no
segundo, tudo respirará o espírito de liberdade, que animará os cidadãos, não somente
nas praças públicas e nas assembléias nacionais, mas ainda sob o teto doméstico, onde
residem os principais elementos de felicidade e de miséria.
Se a associação é feita por famílias, as leis e os costumes, que são sempre o resultado
dos sentimentos habituais dos membros da sociedade política, serão obra dos chefes
dessas famílias; ver-se-á em breve o espírito monárquico introduzir-se aos poucos na
própria república, e os seus efeitos encontrarão obstáculos na oposição dos interesses
particulares, porque os sentimentos naturais de liberdade e de igualdade já terão deixado
de viver nos corações.
O espírito de família é um espirito de minúcia limitado pelos mais insignificantes
pormenores; ao passo que o espírito público, ligado aos princípios gerais, os fatos
com visão segura, coordena-os nos lugares respectivos e sabe tirar deles conseqüências
úteis ao bem da maioria.
Nas sociedades compostas de famílias, as crianças ficam sob a autoridade do chefe e são
obrigadas a esperar que a morte lhes uma existência que depende das leis.
Habituadas a obedecer e a tremer, na idade da força, quando as paixões não são ainda
refreadas pela moderação, espécie de temor prudente que é o fruto da experiência e da
idade, como resistirão elas aos obstáculos que o vício opõe constantemente aos esforços
da virtude, quando a velhice decrépita e medrosa tirar-lhes a coragem de tentar reformas
ousadas, que aliás as seduzem pouco, porque não têm a esperança de recolher-lhes os
frutos?
Nas repúblicas, em que todo homem é cidadão, a subordinação nas famílias não é efeito
da força, mas de um contrato; e os filhos, uma vez saídos da idade em que a fraqueza e a
necessidade de educação os mantêm sob a dependência natural dos pais, tornam-se
desde então membros livres da sociedade: se ainda se submetem ao chefe da família, é
apenas para participar das vantagens que esta lhes oferece, do mesmo modo que os
cidadãos se sujeitam, sem perder a liberdade, ao chefe da grande sociedade política.
Nas repúblicas compostas de famílias, os jovens, isto é, a parte mais considerável e mais
útil da nação, ficam à discrição dos pais. Nas repúblicas de homens livres, os únicos
laços que submetem os filhos ao pai são os sentimentos sagrados e invioláveis da
natureza, que convidam os homens a ajudar-se mutuamente em suas necessidades
recíprocas e que lhes inspiram o reconhecimento pelos benefícios recebidos.
Esses santos deveres são muito mais alterados pelo vício das leis, que prescrevem uma
submissão cega e obrigatória, do que pela maldade do coração humano.
Essa oposição entre as leis fundamentais dos Estados políticos e as leis de família, é
fonte de muitas outras contradições entre a moral pública e a moral particular, que se
combatem continuamente no espírito de cada homem.
A moral particular só inspira a submissão e o medo, ao passo que a moral pública anima
a coragem e o espírito da liberdade.
Guiado pela primeira, o homem limita seu bem-estar ao círculo estreito de um pequeno
número de pessoas que ele nem mesmo escolheu. Inspirado pela outra, procura estender
a felicidade sobre todas as classes da humanidade.
A moral particular exige que cada qual se sacrifique continuamente a um falso ídolo que
se chama o bem da família e que muitas vezes não é o bem real de nenhum dos
indivíduos que a compõem. A moral pública ensina a procurar o bem-estar sem ferir as
leis; e, se às vezes excita um cidadão a imolar-se pela pátria, recompensa-o pelo
entusiasmo que lhe inspira antes do sacrifício e pela glória que lhe promete.
Tantas contradições fazem que os homens desdenhem de praticar a virtude, que não
podem reconhecer no meio das trevas de que a cercaram e que lhes parece distante,
porque está envolta nessa obscuridade que oculta aos nossos olhos os objetos morais
como os objetos físicos.
Quantas vezes o cidadão que reflete sobre suas ações passadas não se terá admirado de
achar-se um mau homem?
A medida que a sociedade cresce, cada um dos seus membros torna-se uma parte menor
do todo, e o amor do bem público se enfraquece na mesma proporção, se as leis deixam
de fortificá-lo. As sociedades políticas têm, como o corpo humano, um crescimento
limitado; não poderiam estender-se além de certos limites, sem que sua economia fosse
perturbada.
Parece que a grandeza de um Estado deve estar na razão inversa do grau de atividade
dos indivíduos que a compõem. Se essa atividade crescesse ao mesmo tempo que a
população, as boas leis achariam um obstáculo, para prevenir os delitos, no próprio bem
que tivessem podido fazer.
Uma república muito vasta pode escapar ao despotismo subdividindo-se num certo
número de pequenos Estados confederados. Mas, para formar essa união, seria preciso
um ditador poderoso, que tivesse a coragem de Sila(22), com tanto gênio para fundar
quanto Sila o teve para destruir.
Se tal homem for ambicioso, poderá esperar uma glória imortal. Se for filósofo, as
bênçãos dos seus concidadãos o consolarão da perda de sua autoridade, mesmo sem
pedir-lhes reconhecimento.
Quando os sentimentos que nos unem à nação principiam a enfraquecer-se, os que nos
ligam aos objetos que nos cercam adquirem novas forças. Assim, sob o despotismo
feroz, os laços da amizade são mais duráveis; e as virtudes de família (virtudes sempre
fracas) se tornam, então, as mais comuns, ou antes, são as únicas que ainda se praticam.
Após todas essas observações, pode julgar-se quanto foram curtas e limitadas as
opiniões da maioria dos nossos legisladores.
XL. DO ESPÍRITO DO FISCO
HOUVE um tempo em que todas as penas eram pecuniárias. Os crimes dos súditos
eram para o príncipe uma espécie de patrimônio. Os atentados contra a segurança
pública eram objeto de lucro, sobre o qual se sabia especular. O soberano e os
magistrados achavam seu interesse nos delitos que deveriam prevenir. Os julgamentos
não eram, então, nada menos do que um processo entre o fisco que percebia o preço do
crime, e o culpado que devia pagá-lo. Fazia-se disso um negócio civil, contencioso,
como se se tratasse de uma querela particular, e não do bem público. Parecia que o fisco
tinha outros direitos que exercer além da proteção da tranqüilidade pública, e o culpado
outras penas que sofrer além das que a necessidade do exemplo o exigia. O juiz,
estabelecido para apurar a verdade com ânimo imparcial, não era mais do que o
advogado do fisco; e aquele que se chamava o protetor e o ministro das leis era apenas o
exator dos dinheiros do príncipe.
Nesse sistema, quem se confessasse culpado se reconhecia, pela própria confissão,
devedor do fisco; e, como era esse o fim de todos os processos criminais, toda a arte do
juiz consistia em obter essa confissão da maneira mais favorável aos interesses do fisco.
É ainda para esse mesmo fim fiscal que tende hoje toda a jurisprudência criminal, pois
os efeitos permanecem por muito tempo depois de cessadas as causas.
O acusado que recusa confessar-se culpado, embora convencido por provas certas,
sofrerá uma pena mais leve do que se tivesse confessado; não lhe será aplicada a tortura
pelos outros crimes que poderia ter cometido, precisamente porque não confessou o
crime principal de que está convencido. Mas, se o crime é confessado, o juiz apodera-se
do corpo do culpado; dilacera-o metodicamente; e faz dele,. por assim dizer, um fundo
do qual tira todo o proveito possível.
Uma vez reconhecida a existência do delito, a confissão do acusado se torna prova
convincente. Acredita-se tornar essa prova menos suspeita, arrancando a confissão do
crime pelos tormentos e pelo desespero; e se estabeleceu que a confissão não basta para
condenar o culpado, se esse culpado é calmo, se fala desembaraçadamente, se não está
cercado das formalidades judiciárias e do aparato aterrador dos suplícios.
Excluem-se cuidadosamente da instrução de um processo as investigações e as provas
que, esclarecendo o fato de maneira a favorecer o acusado, poderiam prejudicar as
pretensões do fisco; e, se às vezes se poupam alguns tormentos ao culpado, não é nem
por piedade para com a desgraça, nem por indulgência para com a fraqueza, mas porque
as confissões obtidas são suficientes para os direitos do fisco, esse ídolo que não
passa de uma quimera e que a mudança das circunstâncias nos torna inconcebível.
O juiz, quando exerce suas funções, não é mais do que o inimigo do culpado, isto é, de
um infeliz curvado ao peso das cadeias, minado pelo sofrimento, que os tormentos
esperam e que o futuro mais terrível cerca de horror e de assombro. Não é a verdade o
que ele procura; quer descobrir no acusado um culpado; prepara-lhe armadilhas, parece
que tem tudo que perder e que teme, se não puder convencer o acusado, diminuir a
infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas.
O juiz tem o poder de determinar por que indícios se pode encarcerar um cidadão. E
declarar que esse cidadão é culpado, antes de poder provar que é inocente. Não se
parecerá tal informação com um procedimento ofensivo? E eis, todavia, a marcha da
jurisprudência criminal, em quase toda a Europa, no século XVIII, em plena luz. Mal se
conhece nos tribunais o verdadeiro processo das informações, isto é, a investigação
imparcial do fato, prescrita pela razão, seguida nas leis militares, empregada mesmo por
esses déspotas da Ásia, nos assuntos que só interessam os particulares.
Nossos descendentes, sem dúvida mais felizes do que nós, terão dificuldade em
conceber essa complicação torturosa dos mais estranhos absurdos, e esse sistema de
iniqüidades incríveis, que o filósofo poderá julgar possível, estudando a natureza do
coração humano.
XLI. DOS MEIOS DE PREVENIR
CRIMES
É MELHOR prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve
procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a
arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os
sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta
vida.
Mas, os meios que até hoje se empregam são em geral insuficientes ou contrários ao fim
que se propõem. Não é possível submeter a atividade tumultuosa de uma massa de
cidadãos a uma ordem geométrica, que não apresente nem irregularidade nem confusão.
Embora as leis da natureza sejam sempre simples e sempre constantes, não impedem
que os planetas se desviem às vezes dos movimentos habituais. Como poderiam, pois,
as leis humanas, em meio ao choque das paixões e dos sentimentos opostos da dor e do
prazer, impedir que não haja alguma perturbação e algum desarranjo na sociedade? É
essa, porém, a quimera dos homens limitados, quando têm algum poder.
Se se proíbem aos cidadãos uma porção de atos indiferentes, não tendo tais atos nada de
nocivo, não se previnem os crimes: ao contrário, faz-se que surjam novos, porque se
mudam arbitrariamente as idéias ordinárias de vício e virtude, que todavia se proclamam
eternas e imutáveis.
Além disso, a que ficaria o homem reduzido, se fosse preciso interdizer-lhe tudo o que
pode ser para ele uma ocasião de praticar o mal? Seria preciso começar por tirar-lhe o
uso dos sentidos.
Para um motivo que leva os homens a cometer um crime, mil outros que os levam a
ações indiferentes, que só são delitos perante as más leis. Ora, quanto mais se estender a
esfera dos crimes, tanto mais se fará que sejam cometidos. porque se verão os delitos
multiplicar-se à medida que os motivos de delitos especificados pelas leis forem mais
numerosos, sobretudo se a maioria dessas leis não passarem de privilégios, isto é, de um
pequeno número de senhores.
Quereis prevenir os crimes? Fazeis leis simples e claras; fazei-as amar; e esteja a nação
inteira pronta a armar-se para defendê-las, sem que a minoria de que falamos se
preocupe constantemente em destruí-las.
Não favoreçam elas nenhuma classe particular; protejam igualmente cada membro da
sociedade; receie-as o cidadão e trema somente diante delas. O temor que as leis
inspiram é salutar, o temor que os homens inspiram é uma fonte funesta de crimes.
Os homens escravos são sempre mais debochados, mais covardes, mais cruéis do que os
homens livres. Estes investigam as ciências; ocupam-se com os interesses da nação;
vêem os objetos sob um ponto de vista elevado, e fazem grandes coisas. Mas, os
escravos, satisfeitos com os prazeres do momento, procuram no ruído do deboche uma
distração para o aniquilamento em que se vêem mergulhados. Toda sua vida está
cercada de incertezas, e, como para eles os delitos não estão determinados, não sabem
quais serão suas conseqüências: e isso empresta nova força à paixão que os leva a
praticá-los.
Num povo que o clima torna indolente, a incerteza das leis entretém e aumenta a inação
e a estupidez.
Numa nação voluptuosa, mas ativa, as leis incertas fazem que a atividade dos cidadãos
se limite a pequenas cabalas e intrigas, surdas, que semeiam a desconfiança. Então, o
homem mais prudente é aquele que sabe melhor dissimular e trair.
Num povo forte e corajoso, a incerteza das leis é forçada por fim e substituir-se por uma
legislação precisa; isso, porém, acontece depois de revoluções freqüentes, que
conduziram esse povo, alternativamente, da liberdade à escravidão e da escravidão à
liberdade.
Quereis prevenir os crimes? Marche a liberdade acompanhada das luzes. Se as ciências
produzem alguns males, é quando estão pouco difundidas; mas, à medida que se
estendem, as vantagens que trazem se tornam maiores.
Um impostor ousado (que não pode ser um homem vulgar) faz-se adorar por um povo
ignorante e só é objeto de desprezo para uma nação esclarecida.
O homem instruído sabe comparar os objetos, considerá-los sob diversos pontos-de-
vista e modificar os próprios sentimentos pelos dos outros, porque nos seus
semelhantes os mesmos desejos e as mesmas aversões que agem sobre o seu coração.
Se prodigalizardes luzes ao povo, a ignorância e a calúnia desaparecerão diante delas, a
autoridade injusta tremerá, as leis permanecerão inabaláveis, todo-poderosas; e o
homem esclarecido amará uma constituição cujas vantagens são evidentes, uma vez
conhecidos seus dispositivos, e que bases sólidas à segurança pública. Poderá ele
lamentar essa inútil partícula de liberdade de que se privou, se a comparar com a soma
de todas as outras liberdades que os seus concidadãos lhe sacrificaram, e se pensar que,
sem as leis, estes últimos poderiam armar-se e unir-se contra ele?
Dotado de uma alma sensível, verifica-se que, sob boas leis, o homem só perdeu a
funesta liberdade de praticar o mal, forçado a bendizer o trono e o soberano que o
ocupa para proteger.
Não é verdade que as ciências sejam nocivas à humanidade. Se às vezes deram maus
resultados, é que o mal era inevitável. Multiplicando-se os homens sobre a superfície da
terra, viram-se nascer a guerra, algumas artes grosseiras, e as primeiras leis, que não
eram senão convenções momentâneas e que pereciam com a necessidade passageira que
as produziria. Foi então que a filosofia começou a aparecer; seus primeiros princípios
foram pouco numerosos e sabiamente escolhidos, porque a preguiça e a pouca
sagacidade dos primeiros homens os preservam de muitos erros.
Mas, multiplicadas as necessidades juntamente com a espécie humana, foram
necessárias impressões mais fortes e mais duráveis para impedir as voltas freqüentes, e
cada dia mais funestas ao estado selvagem. Foram, pois, um grande bem para a
humanidade (digo um grande bem sob o aspecto político) os primeiros erros religiosos
que povoaram o universo de falsas divindades e que inventaram um mundo invisível de
espíritos encarregados de governar a terra.
Foram benfeitores do gênero humano esses homens audaciosos que ousaram enganar
seus semelhantes para servi-los e que arrastaram a ignorância temerosa ao dos
altares. Apresentando aos homens objetos fora do alcance dos sentidos, interessaram-
nos na investigação desses objetos, que fugiam diante deles à medida que os julgavam
mais próximos; forçaram-nos a respeitar o que não conheciam bem e souberam
concentrar para esse único fim, que os impressionava fortemente, todas as paixões que
os agitavam.
Tal foi a sorte de todas as nações que se formaram da reunião de diferentes povoações
selvagens. Foi a época da formação das grandes sociedades; e as idéias religiosas foram
sem dúvida o único laço que pode obrigar os homens a viverem constantemente sob leis.
Não falo desse povo que Deus escolheu. Os milagres mais extraordinários e os favores
mais assinalados que o céu lhe prodigalizou substituíram a política humana.
Mas, como os erros podem subdividir-se ao infinito, as falsas ciências que tais erros
produziram fizeram dos homens uma multidão fanática de cegos, perdidos no labirinto
em que se encerraram e prestes a chocar-se a cada passo. Então, alguns filósofos
sensíveis lamentaram o antigo estado selvagem; e foi nessa primeira época que os
conhecimentos, ou antes, as opiniões, tornaram-se funestos à humanidade.
Pode considerar-se como uma época mais ou menos semelhante o momento terrível em
que é preciso passar do erro à verdade, das trevas à luz. O choque terrível dos
preconceitos úteis a um pequeno número de homens poderosos contra as verdades
vantajosas para a multidão fraca, e a fermentação de todas as paixões sublevadas,
causam males infinitos aos infelizes humanos.
Percorrendo a história, cujos principais acontecimentos, após certos intervalos, se
reproduzem quase sempre, detenhamo-nos na passagem perigosa, mas indispensável, da
ignorância à filosofia, e portanto da escravidão à liberdade; e veremos quantas vezes
uma geração inteira é sacrificada à felicidade da que deve suceder-lhe.
Quando, porém, a calma está restabelecida, quando está extinto o incêndio cujas
flamas purificaram a nação, livrando-a dos males que a oprimiam, a verdade, que
primeiro se arrastava com lentidão, precipita os passos, senta-se nos tronos ao lado dos
monarcas e, por fim, nas assembléias das nações, sobretudo nas repúblicas, obtém culto
e altares.
Poder-se-á acreditar, então, que as luzes que esclarecem a multidão são mais perigosas
do que as trevas? E que filósofo se persuadirá de que o conhecimento exato das relações
que unem os objetos entre si possa ser funesto à humanidade?
Se o semi-saber é mais perigoso do que a ignorância cega, porque aos males que produz
a ignorância acrescenta ainda os erros inumeráveis que resultam inevitavelmente de uma
visão limitada aquém dos limites da verdade, sem dúvida o dom mais precioso que um
soberano pode conceder à nação e a si mesmo é confiar o depósito sagrado das leis a um
homem esclarecido. Acostumado a ver a verdade sem temê-la, acima dessa necessidade
geral dos sufrágios públicos, necessidade que nunca está satisfeita e que tão
freqüentemente faz sucumbir a virtude; habituado a tudo considerar sob os pontos de
vista mais elevados, ele a nação como uma família, os seus concidadãos como
irmãos; e a distância que separa os grandes do povo lhe parece tanto menor quanto sabe
envolver com o olhar maior massa de homens.
O sábio tem necessidades e interesses que o vulgo desconhece; é para ele uma
necessidade não desmentir, em sua conduta pública, os princípios que estabeleceu nos
seus escritos e o hábito que adquiriu de amar a verdade por si mesma.
Tais homens fariam a felicidade de uma nação; mas, para tornar essa felicidade durável,
é preciso que boas leis aumentem de tal forma o número dos sábios que quase não
seja possível fazer uma escolha errônea.
Outro meio de prevenir os delitos é afastar do santuário das leis a própria sombra da
corrupção, interessando os magistrados em conservar em toda a sua pureza o depósito
que a nação lhes confia.
Quanto mais numerosos forem os tribunais, tanto menos se poderá temer que violem as
leis, porque, entre vários homens que se observam mutuamente, a vantagem de
aumentar a autoridade comum é tanto menor quanto menor a parcela de autoridade de
cada um e muito pouco considerável para contrabalançar os perigos da empresa.
Se o soberano dá muito aparato, pompa e autoridade à magistratura; se ao mesmo tempo
fecha todo acesso aos lamentos justos ou mal fundados do fraco, que se julga oprimido;
se acostuma os súditos a temer os magistrados mais do que as leis, aumentará sem
dúvida o poder dos juizes, mas somente à custa da segurança pública e particular.
Podem ainda prevenir-se os crimes recompensando a virtude; e pode-se observar que as
leis atuais de todas as nações guardam a esse respeito um profundo silêncio.
Se os prêmios propostos pelas academias aos autores das descobertas úteis alargaram os
conhecimentos e aumentaram o número dos bons livros, imagine-se que recompensas
concedidas por um monarca benfeitor o multiplicariam também as ações virtuosas. A
moeda da honra, distribuída com sabedoria, jamais se esgota e produz sempre bons
frutos.
Afim, o meio mais seguro, mas ao mesmo tempo mais difícil de tornar os homens
menos inclinados a praticar o mal, é aperfeiçoar a educação.
O assunto é vasto demais para entrar nos limites que me prescrevi. Ouso, porém, dizer
que está tão estreitamente ligado com a natureza do governo que será apenas um campo
estéril e cultivado somente por um pequeno número de sábios, até chegarem os séculos
ainda distantes em que as leis não terão outro fim senão a felicidade pública.
Um grande homem, que esclarece os seus semelhantes e que é por estes perseguido,
desenvolveu as ximas principais de uma educação verdadeiramente útil(23). Fez ver
que ela consistia bem menos na multidão confusa dos objetos que se apresentam às
crianças do que na escolha e na precisão com as quais se lhes expõem.
Provou que é preciso substituir as cópias pelos originais nos fenômenos morais ou
físicos que o acaso ou a habilidade do mestre oferece ao espírito do aluno.
Ensinou a conduzir as crianças à virtude, pela estrada fácil do sentimento, a afastá-las do
mal pela força invencível de necessidade e dos inconvenientes que seguem a má ação.
Demostrou que o método incerto da autoridade imperiosa deveria ser abandonado, pois
só produz uma obediência hipócrita e passageira.
XLII. CONCLUSÃO
DE tudo o que acaba de ser exposto, pode deduzir-se um teorema geral utilíssimo,
mas conforme ao uso, que é o legislador ordinário das nações:
É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser
essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas
circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.
APÊNDICE
RESPOSTAS ÀS “NOTAS E OBSERVAÇÕES” DE UM FRADE DOMINICANO
SOBRE O LIVRO “DOS DELITOS E DAS PENAS”
ESSAS Notas e Observações não passam de uma coleção de injúrias contra o autor
do livro Dos Delitos e Das Penas, que é chamado fanático, impostor, escritor falso e
perigoso, satírico desenfreado, sedutor do público. É acusado de distilar o fel mais
amargo, de juntar a contradições vergonhosas os traços pérfidos e ocultos da
dissimulação e de ser obscuro por perversidade. O crítico pode estar certo de que não
responderei às personalidades.
Representa ele o meu livro como uma obra horrível, virulenta e de uma licença
venenosa, infame, ímpia. Encontra nele blasfêmias impudentes, insolentes ironias,
pilhérias indecentes, sutilezas perigosas, motejos escandalosos, calúnias grosseiras.
A religião e o respeito devido aos soberanos são o pretexto para duas das mais graves
acusações que se acham nessas Notas e Observações. Serão estas as únicas às quais me
julgarei obrigado a responder. Comecemos pela primeira.
I – Acusação de impiedade
1. “O autor do livro Dos Delitos e das Penas não conhece essa justiça que tem origem
no legislador eterno, que tudo vê e prevê”.
Eis mais ou menos o silogismo do autor das Notas.
“O autor do livro Dos Delitos não aprova que a interpretação da lei dependa da vontade
e do capricho de um juiz. Ora, aquele que não quer confiar a interpretação da lei à
vontade e aos caprichos de um juiz não crê numa justiça emanada de Deus. O autor
não admite, pois, uma justiça puramente divina... ”
2. “Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas, a Escritura santa contém
imposturas”.
Em toda a obra Dos Delitos e das Penas, se trata da Escritura santa uma única vez; é
quando, a propósito dos erros religiosos, no capítulo XLI. eu disse que não falava desse
povo eleito de Deus, para o qual os milagres mais extraordinários e as graças mais
assinaladas substituíram a política humana.
3. “Toda a gente sensata encontrou no autor do livro Dos Delitos e das Penas um
inimigo do cristianismo, um mau homem e um mau filósofo”.
Pouco me importa parecer ao meu crítico bom ou mau filósofo; os que me conhecem
asseguram que não sou mau homem.
Serei, então, inimigo do cristianismo, quando insisto para que a tranqüilidade dos
templos seja assegurada sob a proteção do governo, e quando digo, ao falar da sorte das
grandes verdades, que a revelação é a única que se conservou em sua pureza, em meio
às nuvens tenebrosas com que o erro envolveu o universo durante tantos séculos?
4. “O autor do livro Dos Delitos e das Penas fala da religião como se se tratasse de
uma simples máxima política”.
O autor do livro Dos Delitos e das Penas chama à religião “um dom sagrado do céu”.
Será provável que ele trate como simples máxima política o que lhe parece um dom
sagrado do céu?
5. – “O autor é inimigo declarado do Ser supremo”.
Peço de todo meu coração que esse Ser supremo perdoe a todos os que me ofendem.
6. Se o cristianismo causou algumas desgraças e alguns morticínios, ele exagera-os e
silencia sobre os bens e as vantagens que a luz do Evangelho espalhou sobre todo o
gênero humano”.
Não se encontrará um único lugar no meu livro que faça menção aos males causados
pelo Evangelho; não citei mesmo um só fato que com isso se relacione.
7. “O autor profere uma blasfêmia contra os ministros da religião, ao dizer que suas
mãos sujaram-se de sangue humano”.
Todos os que escreveram a história, desde Carlos Magno(24) até Otão-o-Grande(25), e
mesmo depois desse príncipe, proferiram muitas vezes a mesma blasfêmia. Ignorar-se-á
que, durante três séculos, o clero, os abades e. os bispos não tiveram escrúpulo algum
em marchar para a guerra? E não será o caso de dizer, sem blasfemar, que os
eclesiásticos que se achavam no meio das batalhas e que participaram da carnificina
sujavam as mãos de sangue humano?
8. “Os prelados da Igreja católica, tão recomendáveis por sua doçura e sua
humanidade, passam, no livro Dos Delitos e das Penas, por ser os autores de suplícios
tão bárbaros quanto inúteis”.
Não tenho culpa de ser obrigado a repetir mais de uma vez a mesma coisa. Não se citará
na minha obra uma só frase que diga que os prelados inventaram suplícios.
9. “A heresia não pode chamar-se crime de lesa-majestade divina, segundo o autor do
livro Dos Delitos e das Penas”.
Não em todo o meu livro uma palavra que possa dar lugar a tal imputação. Propus-
me apenas tratar Dos Delitos e das Penas, e não dos pecados.
Eu disse, falando do crime de lesa-majestade, que somente a ignorância e a tirania, que
confundem as palavras e as idéias mais claras, podem chamar por esse nome e punir
como tais, com o último suplício, delitos de natureza diferente. O crítico talvez ignore
quanto se abusa da palavra lesa-majestade nos tempos de tirania e de ignorância,
aplicando-a a delitos de gênero inteiramente diverso, pois não conduziam
imediatamente à destruição da sociedade. Consulte a lei dos imperadores Graciano(26),
Valentiniano(27) e Teodósio(28); observe como são considerados criminosos de lesa-
majestade aqueles que ousam duvidar da bondade da escolha do imperador, quando este
conferia algum emprego. Uma outra lei de Valentiniano, de Teodósio e de Arcácio(29)
ensinar-lhe-á que os moedeiros falsos também eram criminosos de lesa-majestade. Era
preciso um decreto do Senado para livrar da acusação de lesa-majestade aquele que
tivesse fundido estátuas dos imperadores, embora velhas e mutiladas. Somente depois
de um edito dos imperadores Severo(30) e Antonino é que se deixou de intentar a ação
de lesa-majestade contra os que vendiam as estátuas dos imperadores; e esses príncipes
baixaram um decreto que proibia a perseguição por esse crime daqueles que acaso
tivessem lançado uma pedra contra a estátua de um imperador. Domiciano(31)
condenou à morte uma dama romana, por se ter despido diante de sua estátua. Tibério
(32) mandou matar, como criminoso de lesa-majestade, um cidadão que vendera uma
casa em que se achava a estátua do imperador.
Em séculos menos distantes do nosso, verá Henrique VIII(33) abusar de tal modo das
leis que fez perecer por um suplício infame o duque de Norfolk, sob o pretexto de crime
de lesa-majestade, porque ele juntara as armas da Inglaterra às de sua família. Esse
monarca chegou a declarar culpado do mesmo crime quem quer que ousasse prever a
morte do príncipe; daí resultou que, na sua última moléstia, os seus médicos recusaram
adverti-lo do perigo em que se achava.
10. “Segundo o autor do livro Dos Delitos e das Penas, os hereges anatematizados
pela Igreja e proscritos pelos príncipes são vítimas de uma palavra”.
Todas essas interpretações são forçadas. Limitei-me a falar do crime de lesa-majestade
humana; e a palavra lesa-majestade serviu muitas vezes de pretexto à tirania, sobretudo
ao tempo dos imperadores romanos. Toda ação que tivesse a desgraça de desagradar-
lhes tornava-se logo um crime de lesa-majestade. Suetônio(34) diz que o crime de lesa-
majestade era o delito dos que não tinham cometido delito algum. Se eu disse que a
ignorância e a tirania deram esse nome a delitos de natureza diferente e tornaram os
homens vítimas de uma palavra, não fiz senão falar segundo a história.
11. “Não será uma horrível blasfêmia sustentar, com o autor do livro Dos Delitos e
das Penas, que a eloqüência, a declamação e as mais sublimes verdades são um freio
demasiado fraco para reter por muito tempo as paixões humanas?”
Não penso que a acusação de blasfêmia recaia sobre o que eu disse da eloqüência e da
declamação. O acusador quis, de certo, referir-se à insuficiência que eu atribuo às mais
sublimes verdades. Pergunto-lhe se julga que na Itália se conhecem essas sublimes
verdades, isto é, as da fé. Sem dúvida, responder-me-á que sim. Mas serviram tais
verdades de freio às paixões humanas na Itália? Todos os oradores sacros, todos os
juizes, todos os homens, numa palavra, assegurar-me-ão o contrário. É um fato, pois,
que as sublimes verdades são, para as paixões humanas, um freio que as não refreia ou
que logo se parte; e, enquanto houver num país católico, juizes criminosos, prisões e
castigos, estará provada a insuficiência das sublimes verdades.
12. “O autor do livro Dos Delitos e das Penas escreve imposturas sacrílegas contra a
Inquisição”.
Meu livro não faz nenhuma menção, nem direta, nem indireta, da Inquisição. Pergunto,
porém, ao meu acusador se lhe parece bem conforme ao espírito da Igreja a condenação
de homens à morte nas fogueiras. Não é do seio mesmo de Roma, sob os olhos do
vigário de Jesus Cristo, na capital da religião católica, que se cumprem hoje, para com
protestantes de qualquer nação, todos os deveres de humanidade e hospitalidade? Os
últimos papas, e sobretudo o atual, receberam e recebem com a maior bondade os
ingleses, os holandeses e os russos; esses povos, de seitas e religiões diferentes, têm em
Roma toda a liberdade passível, e ninguém está mais certo do que eles de gozar ali da
proteção das leis e do governo.
13. “O autor do livro Dos Delitos e das Penas representa, sob cores odiosas, as ordens
religiosas e sobretudo os frades”.
Seria difícil citar um lugar do meu livro que faça menção de ordens religiosas ou de
frades, a menos que se interprete arbitrariamente o capitulo em que falo da ociosidade.
14. “O autor do livro Dos Delitos e das Penas é um desses escritores ímpios, para os
quais os eclesiásticos não passam de charlatães, os monarcas de tiranos, os santos de
fanáticos, a religião de impostura, e que nem mesmo respeitam a majestade do Criador,
contra o qual vomitam blasfêmias hediondas”.
Passemos às acusações de sedição.
II – Acusações de sedição
1. “O autor do livro Dos Delitos e das Penas considera todos os príncipes e todos os
soberanos do século como tiranos cruéis”.
uma vez falei no meu livro dos soberanos e dos príncipes que reinam atualmente na
Europa; e eis o que digo: “Feliz o gênero humano, se, pela primeira vez, recebesse leis!
Hoje, que vemos elevados nos tronos da Europa, etc.” (Ver o fim do cap. XVI).
2. “Não podem deixar de espantar a confiança e a liberdade com que o autor do livro
Dos Delitos e das Penas se volta furioso contra os soberanos e os eclesiásticos”.
A confiança e a liberdade não são um mal. Qui ambulat simpliciter, ambulat
confidenter; qui autem depravat vias suas, manifestus erit(35).
Se aprovei nos súditos certo espírito de independência, foi na medida que se
submetessem às leis e fossem respeitosos para com os primeiros magistrados. Desejo
mesmo que os homens, não tendo que temer a escravidão, mas gozando de sua liberdade
sob a proteção das leis, se tornem soldados intrépidos, defensores da pátria e do trono,
cidadãos virtuosos e magistrados incorruptíveis, que levem ao do trono os tributos e
o amor de todas as ordens da nação e que espalhem nas cabanas a segurança e. a
esperança de uma sorte cada vez mais doce. Já não estamos nos séculos de Calígula(36),
de Nero(37), de Heliogábalo(38); e o crítico faz muito pouca justiça aos príncipes
reinantes acreditando que os meus princípios possam ofendê-los.
3. “O autor do livro Dos Delitos e das Penas sustenta que o interesse do particular
supera o de toda a sociedade em geral ou dos que a representam”.
Se houvesse tal absurdo no livro Dos Delitos e das Penas, não creio que o meu
adversário tivesse feito um livro de 191 páginas para refutá-lo.
4. “O autor do livro Dos Delitos e das Penas contesta aos soberanos o direito de punir
com a morte”.
Como não se trata aqui nem de religião nem de governo, mas somente da justeza de um
raciocínio, meu acusador tem toda a liberdade de julgar o que quiser. Reduzo o meu
silogismo desta forma:
Não se deve infligir a pena de morte, se esta não é verdadeiramente útil e necessária;
Mas, a pena de morte não é necessária nem verdadeiramente útil;
Não deve, pois, infligir-se a pena de morte.
Não é este o lugar para uma dissertação sobre os direitos dos soberanos. O crítico não
quererá, certamente, sustentar que se deva infligir a pena de morte, mesmo quando ela
não é verdadeiramente útil, nem necessária. Proposta tão cruel e escandalosa não pode
sair da boca de um cristão. Se a segunda parte do silogismo não é exata, tratar-se de
um crime de lesa-lógica e nunca de lesa-majestade. Podem, aliás, escusar-se os meus
pretensos erros; assemelham-se eles àqueles em que incidiram tantos cristãos zelosos da
primitiva Igreja(39); assemelham-se àqueles em que incorreram os frades da época de
Teodósio-o-Grande, no fim do IV século. Nos seus Anais da Itália, diz Muratori(40)
que, no ano 389, Teodósio fez uma lei pela qual ordenava aos frades que
permanecessem nos conventos, porque levavam a caridade pelo próximo ao ponto de
arrancar os criminosos das mãos da justiça, não querendo que se mandasse matar
ninguém”. Minha caridade não vai tão longe e convirei de bom grado que a daquele
tempo se conduzia por falsos princípios. Uma ação violenta contra a autoridade pública
é sempre criminosa.
Restam-me ainda duas palavras que dizer. Haverá no mundo uma lei que proíba dizer-se
ou escrever-se que um Estado pode existir e conservar a paz interna sem empregar a
pena de morte contra qualquer culpado? Conta Deodoro(41) (liv. I, cap. LXV) que
Sabacão, rei do Egito, fez-se admirar como modelo de demência, porque comutou as
penas capitais nas da escravidão e porque deu um emprego feliz à sua autoridade
condenando os culpados aos trabalhos públicos. Estrabão(42) (liv. XI) informa-nos que
havia, perto do Cáucaso, algumas nações que não conheciam a pena de morte, mesmo
quando o delito merecia os maiores suplícios, nemini mortem irrogare, quamvis pessima
merito(43). Essa verdade é consignada na história romana, na época da lei Pórcia, que
proíbe que se tire a vida de um cidadão romano, se a sentença de morte não for revestida
do consenso geral de todo o povo. Tito Lívio(44) fala dessa lei (liv. X, cap. IX).
Finalmente, o exemplo recente de um reinado de vinte anos, no mais vasto império do
mundo, a Rússia, atesta ainda essa verdade: a imperatriz Isabel, morta alguns anos,
jurou, ao subir ao trono dos czares, que não faria morrer nenhum culpado sob o seu
reinado. Essa augusta princesa nunca deixou de cumprir o feliz compromisso que
assumira, sem interromper o curso da justiça criminal e sem prejudicar a tranqüilidade
pública. Se esses fatos são incontestáveis, será, então verdade dizer que um Estado pode
subsistir e ser feliz sem punir de morte nenhum criminoso.
EXTRATO DA CORRESPONDÊNCIA DE BECCARIA E DE MORELLET
SOBRE O LIVRO "DOS DELITOS E DAS PENAS"
De Morellet(45) a Beccaria
Paris, fevereiro de 1766.
Senhor:
Sem ter a honra de conhecer-vos, julgo-me no direito de endereçar-vos um exemplar da
tradução que fiz de vossa obra Dei Delitti e delle Pene. Os homens de letras o
cosmopolitas e de todas as nações; estão ligados por laços mais estreitos do que os que
unem os cidadãos de um mesmo país, os habitantes de uma mesma cidade e os membros
de uma mesma família. Julgo, pois, poder entrar convosco num comércio de idéias e de
sentimentos que me será bastante agradável, se não vos recusardes ao entusiasmo de um
homem que vos estima sem conhecer-vos pessoalmente, mas que adquiriu esses
sentimentos por vós na leitura do vosso excelente trabalho.
Foi o sr. de Malesherbes(46), com quem tenho a honra de conviver, que me empenhou
em fazer passar vosso livro para a nossa língua. Eu não tinha necessidade, para tanto, de
esforçar-me muito. Era-me uma ocupação agradável tornar-me, para minha nação e para
o país em que nossa língua está difundida, o intérprete e o órgão das idéias fortes e
grandes e dos sentimentos de benevolência de que vossa obra está cheia. Parecia-me que
me associaria ao bem que fazíeis aos homens e que poderia igualmente pretender certo
reconhecimento da parte dos corações sensíveis, aos quais são caros os interesses da
humanidade.
Faz hoje oito dias que minha tradução apareceu. Eu não quis escrever-vos mais cedo,
porque julguei dever esperar que pudesse instruir-vos sobre a impressão causada por
vossa obra. Ouso, pois, assegurar-vos, Senhor, que o êxito é universal e que, além da
atenção despertada pelo livro, se formaram pelo autor sentimentos que podem lisonjear-
vos ainda mais, isto é, a estima, o reconhecimento, o interesse, a amizade. Estou
particularmente encarregado de apresentar-vos os agradecimentos e os cumprimentos do
sr. Diderot(47), do Sr. Helvétius(48), do Sr. de Buffon(49). conversamos muito com
o sr. Diderot sobre vossa obra, que é bem capaz de pôr fogo a uma cabeça tão quente
como é a dele. Terei algumas observações que vos comunicar, que são o resultado das
nossas conversas. O sr. de Buffon serviu-se das expressões mais fortes para
testemunhar-me o prazer que vosso livro lhe causou; e pede-vos aceiteis os seus
cumprimentos. Levei também vosso livro ao Sr. Rousseau(50), que está em Paris de
viagem para a Inglaterra, aonde vai estabelecer-se, e que parte por estes dias. Ainda não
posso dizer-vos sua impressão, porque não tornei a vê-lo. Talvez possa conhecê-la hoje
por intermédio do Sr. Hume(51), com quem irei jantar; estou, porém, certo da impressão
que ele terá. O sr. Hume, que vive tempos conosco, encarregou-me, igualmente, de
dizer-vos mil coisas de sua parte.
A essas pessoas, que conheceis por sua reputação, acrescento um homem infinitamente
estimável que as reúne em sua casa, o Sr. barão d’Holbach(52), autor de excelentes
trabalhos impressos, de química e de história natural, e de muitos outros que não foram
publicados; filósofo profundo, juiz esclarecidíssimo de todos os gêneros de
conhecimentos, alma sensível e aberta à amizade. Não posso exprimir-vos a impressão
que vosso livro lhe causou, nem quanto ele ama e estima a obra, e o autor. Como
passamos a vida em casa dele, seria preciso que o conhecêsseis primeiro, porque, se
pudermos ter a honra de atrair-vos a Paris, esta casa se a vossa. Envio-vos, pois,
igualmente, os seus agradecimentos e as suas saudações. Não vos falo do Sr. d’Alembert
(53), que vos escreveu e me disse que queria juntar ainda uma palavra à minha carta.
Deveis conhecer sua opinião sobre vossa obra. Quanto à tradução, compete-lhe dizer-
vos se ficou satisfeito...
Não vos ocultarei a mais forte razão que me determinou a tratar de vos dar alguma boa
opinião de mim: a esperança de que me perdoareis mais facilmente a liberdade que
tomei de fazer algumas modificações na disposição de algumas partes do vosso
trabalho. Apresentei no prefácio as razões gerais que me justificam: convosco, porém,
devo alongar-me um pouco a esse respeito. Para o espírito filosófico que se torna senhor
da matéria, nada mais fácil do que apreender o conjunto de vosso tratado, cujas partes se
ligam estreitamente e dependem todas do mesmo princípio. Mas, para os leitores
vulgares e menos instruídos, e sobretudo para os leitores franceses, julgo ter seguido um
caminho mais regular e em tudo mais conforme ao gênio de minha nação e à feição dos
nossos livros.
A única objeção que posso temer é a censura de ter diminuído a força e o calor do
original, pelo restabelecimento mesmo dessa ordem. Eis minhas respostas: Sei que a
verdade tem a maior necessidade da eloqüência e do sentimento. Seria absurdo pensar o
contrário, e sobretudo não seria convosco que se poderia avançar tão estranho paradoxo.
Mas, se não é preciso sacrificar o calor à ordem, creio não ser preciso tão pouco
sacrificar a ordem ao calor; e tudo irá bem se se puderem conciliar essas duas coisas a
um tempo. Resta, pois, examinar, se me saí bem nessa conciliação.
Se minha tradução tem menos calor do que o original, seria preciso atribuir essa falha a
muitas outras causas, e não à diferença da ordem. Seria ou a fraqueza do estilo do
tradutor, ou a natureza mesma de toda tradução, que deve ficar abaixo do original,
sobretudo nas coisas de sentimento.
Não devo dissimular-vos outra objeção que me fizeram. Disseram-me que um autor
poderia chocar-se ao ver em sua obra modificações mesmo úteis. Mas, Senhor, essa
maneira de ver não poderia ser a vossa. Assim pelo menos o julguei. Um homem de
gênio, que fez uma obra admirável, cheia de idéias novas e fortes, e excelente pelo
fundo, deve poder ouvir dizer friamente que o seu livro não tem toda a ordem de que era
suscetível. Deve ir mesmo até à adoção das modificações feitas, se forem úteis e
baseadas em boas razões. Eis Senhor, a coragem que espero de vós. Rejeitai, dentre as
modificações feitas por mim, aquelas que vos parecem mal-entendidas; conservai as que
estiverem bem, e acreditai que tereis feito aumentar vossa reputação. Sois digno de
que eu use para convosco dessa confiança, e me lisonjeio de que o aproveis.
Terminarei minha justificativa citando-vos grandes autoridades que aplaudiram a
liberdade por mim tomada. O sr. d’Alembert permite-me que vos diga ser essa a sua
opinião. O sr. Hume, que leu com muito cuidado o original e a tradução, é do mesmo
parecer. Eu poderia citar-vos ainda numerosas pessoas instruídas que assim também o
julgaram.
A avidez com a qual o público recebeu aqui vossa obra faz-me acreditar que a nossa
primeira edição breve estará esgotada e que, antes de um mês, será preciso fazer outra.
Se, na disposição que apresentei, separei idéias que devam estar ligadas, ou fiz
aproximações que vos pareçam prejudicar o sentido, peço-vos que a respeito me
participeis vossas observações, e, numa nova edição, não deixarei de conformar-me com
vossas opiniões...
Termino, Senhor, esta longa carta, rogando-vos que me considereis como um dos vossos
maiores admiradores e como um dos homens que mais vivamente desejam participar de
vossa estima e de vossa amizade. Muito me afligiria a idéia de não vô-lo poder dizer um
dia a vós mesmos. Estou ansioso por ter vossas notícias, conhecer vosso juízo sobre a
minha tradução, saber se continuais a marchar na bela estrada que vos abristes e a
ocupar-vos com o bem da humanidade.
É com tais sentimentos de respeito, de estima e de amizade que tenho a honra de ser,
etc.
Morellet.
De Beccaria a Morellet
Milão, maio de 1766.
Permiti-me, Senhor, que empregue convosco as fórmulas usadas na vossa língua, como
mais cômodas, mais simples, mais verdadeiras, mais dignas por isso de um filósofo
como vós. Permiti-me, igualmente, que me sirva de um copista, por ser a carta que vos
escrevi muito pouco legível. A mais profunda estima, o maior reconhecimento, a mais
terna amizade, são os sentimentos que fez nascer em mim a carta encantadora que vos
dignastes escrever-me. Eu não saberia exprimir-vos quanto me honra ver minha obra
traduzida na língua de uma nação que esclarece e instrui a Europa. Tudo devo, eu
mesmo, aos livros franceses. Foram eles que desenvolveram em minha alma os
sentimentos de humanidade sufocados por oito anos de educação fanática. Eu
respeitava vosso nome pelos excelentes artigos que inseristes na obra imortal da
Enciclopédia(54); e foi para mim a mais agradável surpresa saber que um homem de
letras da vossa reputação dignava-se de traduzir o meu tratado Dos Delitos. Agradeço-
vos, de todo o meu coração, o presente que me fizeste de vossa tradução, assim como
vossa atenção em satisfazer o interesse que eu tinha em lê-la. Li-a com um prazer que
não posso exprimir-vos, e achei que embelezastes o original. Protesto-vos com a maior
sinceridade que a ordem que seguistes parece-me, a mim mesmo, mais natural e
preferível à minha, e que lamento que a nova edição italiana esteja quase terminada,
porque do contrário eu me poria inteira ou quase inteiramente de acordo com o vosso
plano.
Minha obra nada perdeu de sua força em vossa tradução, exceto nos lugares em que o
caráter essencial a uma e a outra língua estabeleceu certa diferença entre vossa
expressão e a minha. A ngua italiana é mais maleável e dócil, e talvez, por ser menos
cultivada no gênero filosófico, possa adotar expressões que a vossa recusaria empregar.
Não vejo solidez na objeção que vos fizeram, de que a mudança da ordem poderia fazer
perder a força. A força consiste na escolha das expressões e na aproximação das idéias;
e a confusão só pode prejudicar esses dois efeitos.
O receio de ferir o amor-próprio do autor não devia deter-vos mais. Primeiro, porque,
como vós mesmo o dissestes com razão em vosso excelente prefácio, um livro em que
se defende a causa da humanidade, uma vez tornado público, pertence ao mundo e a
todas as nações; e, relativamente a mim em particular, eu teria feito muito poucos
progressos na filosofia do coração, que coloco acima da do espírito, se não tivesse
adquirido a coragem de ver e amar a verdade. Espero que a quinta edição, que deve
aparecer breve, esteja logo esgotada; e asseguro-vos que na sexta observarei
inteiramente, ou quase inteiramente, a ordem de vossa tradução, que maior relevo às
verdades que tratei de coligir. Digo quase inteiramente, porque, segundo uma leitura
única e rápida que fiz até este momento não posso decidir-me com inteiro conhecimento
de causa sobre as particularidades como já o fiz sobre o conjunto.
A impaciência que meus amigos têm de ler vossa tradução forçou-me, Senhor a deixá-la
sair de minhas mãos logo depois de a ter tido, e sou obrigado a dar em outra carta a
explicação de certas passagens que julgastes obscuras. Devo dizer-vos, porém, que tive,
ao escrever, os exemplos de Machiavelli(55), de Galileu(56) e de Giannone ante os
meus olhos. Ouvi o ruído das cadeias firmar a superstição, e os gritos de fanatismo
abafar os gemidos da verdade. A visão desse espetáculo medonho determinou-me,
algumas vezes, a envolver a luz de nuvens. Quis defender a humanidade sem ser mártir.
Essa idéia, de que eu devia ser obscuro, tornou-me às vezes tal, sem necessidade.
Acrescentai a isso a inexperiência e a falta de hábito de escrever, perdoáveis num autor
que tem apenas vinte e sete anos e que somente cinco anos entrou na carreira das
letras.
Ser-me-ia impossível pintar-vos, Senhor, a satisfação com a qual vejo o interesse que
tomais por mim, e quanto me comovem as demonstrações de estima que me dais, e que
não posso aceitar sem ser vão, nem rejeitar sem fazer-vos injúria. Recebi com o mesmo
reconhecimento e a mesma confusão as coisas lisonjeiras que me dissestes da parte
desses homens célebres que honram a humanidade, a Europa e a sua nação. D’Alembert,
Diderot, Helvétius, Buffon, Hume, nomes ilustres que não se pode ouvir pronunciar sem
ficar comovido, assim como vossas obras imortais, são minha leitura contínua, o objeto
de minhas ocupações durante o dia e de minhas meditações no silêncio da noite. Cheio
das verdades que ensinais, como poderia eu incensar o erro e aviltar-me ao ponto de
mentir à posteridade?...
Minha única ocupação é cultivar em paz a filosofia, e contentar assim três sentimentos
muito vivos em mim: o amor à reputação literária, o amor à liberdade e a compaixão
pelas desgraças dos homens, escravos de tantos erros. Data de cinco anos a época de
minha conversão à filosofia, e devo-a à leitura das Cartas Persas(57).
A segunda obra que completou a revolução do meu espírito foi a do sr. Helvétius. Foi
ele quem me lançou com força no caminho da verdade e quem primeiro despertou
minha atenção para a cegueira e as desgraças da humanidade. Devo à leitura do Espírito
(58) uma grande parte de minhas idéias...
O Sr. conde Firmiani regressou a Milãovários dias, mas está muito ocupado, e ainda
não pude vê-lo. Ele protegeu meu livro, e é a ele que devo minha tranqüilidade.
Remeter-vos-ei breve algumas explicações das passagens que achastes obscuras e que
não pretendo justificar, porque não escrevi para não ser entendido. Rogo-vos
encarecidamente me envieis vossas observações e as dos vossos amigos, para que eu as
aproveite numa sexta edição. Comunicai-me, sobretudo, o resultado de vossas palestras,
sobre meu livro com o sr. Diderot. Desejo vivamente saber que impressão teve de mim
essa alma sublime...
Tenho a honra de ser, etc.
Beccaria
Notas
(1) – Jurisconsulto alemão, do começo do século XVII.
(2) – Jurisconsulto piemontês, falecido em 1575.
(3) Jurisconsulto italiano, famoso por sua crueldade, falecido em Roma em 1618.
Deixou uma obra em treze volumes.
(4) Alusão ao frade Vincenzo Facchinei di Gorfri, do convento de Vallombrosa, que
escreveu Notas e Observações cuja resposta vem publicada as Notas e Observações cuja
resposta vem publicada no Apêndice deste volume.
(5) Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês autor do Leviatan, obra em que
defende o materialismo em filosofia, o egoísmo em moral e o despotismo em política.
(6) Alusão a Jean-Jacques Rousseau, de cuja autoria são os livros: Discursos sobre as
Ciências e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade.
(7) Charles de Secondat, barão de Montesquieu (1689-1755), grande escritor francês,
autor das Cartas Persas e dos livros Grandeza e Decadência dos Romanos e O Espírito
das Leis.
(8) – “Observe-se que a palavra direito não contradiz a palavra força. O direito é a força
submetida a leis para vantagens da maioria. Entendo por justiça os laços que reúnem de
maneira estável os interesses particulares. Se esses laços se quebrassem, não haveria
sociedade. É mister que se evite ligar à palavra justiça a idéia de uma força física ou de
um ser existente. A justiça é pura e simplesmente o ponto de vista sob o qual os homens
encaram as coisas morais para o bem-estar de cada um. Não pretendo falar aqui de
justiça de Deus, que é de outra natureza, tendo relações imediatas com as penas e as
recompensas de uma vida futura”.
(9) – “Se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade, a sociedade tem
igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão, pois a natureza de um contrato
consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes. Essa cadeia de obrigações
mútuas, que desce do trono até à cabana e que liga igualmente o maior e o menor dos
membros da sociedade, tem como único fim o interesse público, que consiste na
observação das convenções úteis à maioria. Violada uma dessas convenções, abre-se a
porta à desordem. A palavra obrigação é uma das que se empregam mais
freqüentemente em moral do que em qualquer outra ciência. Existem obrigações a
cumprir no comércio e na sociedade. Uma obrigação supõe um raciocínio moral,
convenções racionadas; não se pode, porém, emprestar à palavra obrigação uma idéia
física ou real. É uma palavra abstrata que precisa ser explicada. Ninguém pode obrigar-
vos a cumprir obrigações sem saberdes quais são tais obrigações”. Nota de Beccaria.
(10) – Isto é, em vernáculo e não em latim.
(11) “Entre os criminalistas, ao contrário, a confiança que merece uma testemunha
aumenta em proporção da atrocidade do crime. Apoiam-se eles neste axioma de ferro,
ditado pela mais cruel imbecilidade: In atrocissimis leviores conjecturae sufficiunt, et
licet judici jura transgredi. Traduzamos essa máxima hedionda, para que a Europa
conheça ao menos um dos revoltantes princípios e tão numerosos aos quais está
submetida quase sem o saber: “Nos delitos mais atrozes, isto é, menos provável, bastam
as mais ligeiras circunstâncias, e o juiz pode pôr-se acima das leis.” Os absurdos em uso
na legislação são muitas vezes o resultado do medo, fonte inesgotável das
inconseqüências e dos erros humanos. Os legisladores, ou antes, os jurisconsultos, cujas
opiniões são consideradas após sua morte como espécies de oráculos, e que, como
escritores vendidos ao interesse, se tornaram árbitros soberanos da sorte dos homens, os
legisladores, repito, receosos de ver condenar inocentes, sobrecarregaram a
jurisprudência de formalidades e exceções inúteis, cuja exata observação colocaria a
desordem e a impunidade no trono da justiça. Outras vezes, assombrados com certos
crimes atrozes e difíceis de provar, acharam que deviam desprezar essas formalidades
que eles próprios estabeleceram. Foi assim. que, dominados ora por um despotismo
impertinente, ora por temores pueris, fizeram dos julgamentos mais graves uma espécie
de jogo abandonado ao acaso e aos caprichos do arbítrio”.
(12) Refere-se Beccaria a Gustavo III (1746-1792), que subiu ao trono da Suécia, em
1771, tendo feito um governo liberal e posto em prática numerosas idéias defendidas
pelos enciclopedistas franceses. Morreu assassinado aos 46 anos de idade, vítima de
uma conspiração dos aristocratas.
(13) Isabel Petrovna (1709-1762), filha de Pedro-o-Grande, tendo subido ao trono da
Rússia em 1741.
(14) Tito, filho de Vespasiano, imperador romano de 76 a 81, cognominado a delícia
do gênero humano, em virtude dos grandes benefícios feitos ao povo. “Perdi o dia”
(Diem perdidi), costumava ele dizer quando se passava um dia sem que tivesse tido
ocasião de praticar alguma ação generosa.
(15) Antonino o Piedoso foi um dos sete imperadores romanos (Nerva, Trajano,
Adriano, Antonio, Marco Aurélio, Vero e Cômodo) que reinaram de 96 a 192. Seu
governo, de 138 a 161, caracterizou-se por um notável espírito de moderação e de
justiça.
(16) – Um dos sete imperadores antoninos, excelente organizador. Reinou de 98 a 117.
(17) –Nas primeiras edições desta obra, eu mesmo cometi esse erro. Ousei dizer que o
falido de boa devia ser guardado como penhor de sua dívida, reduzido ao estado de
escravidão e obrigado a trabalhar por conta dos credores. Envergonho-me de ter escrito
essas coisas cruéis. Acusaram-me de impiedade e de sedição, sem que eu fosse
sedicioso nem ímpio. Ataquei os direitos da humanidade, e ninguém se levantou contra
mim...”
(18) O comércio ou a troca dos prazeres do luxo não deixa de ter inconvenientes.
Esses prazeres são preparados por muitos agentes, mas partem de um pequeno número
de mãos e se distribuem a um pequeno número de homens. A maioria só raramente pode
prová-los numa pequena proporção. Eis porque o homem se lamenta quase sempre de
sua miséria. Mas, esse sentimento é apenas o efeito da comparação e nada tem de real”.
(19) Quando a extensão de um país aumenta em proporção maior do que a
população, o luxo favorece o despotismo, porque a indústria particular diminui à medida
que os homens estão mais dispersos, e, quanto menos indústria houver, mais os pobres
dependerão dos ricos, cujo fausto os faz subsistir. Torna-se, então, tão difícil para os
oprimidos reunirem-se contra os opressores, que as insurreições deixam de ser temidas.
Os homens poderosos obtém com muito mais facilidade a submissão, a obediência, a
veneração e essa espécie de culto que torna mais sensível a distância que o despotismo
estabelece entre o homem poderoso e o infeliz. Os homens são mais independentes
quando são menos observados, e são menos observados quando são em maior número. –
Por outro lado, quando a população aumenta em maior proporção do que a extensão do
país, o luxo torna-se, ao contrário, uma barreira contra o despotismo. Anima a
indústria com a atividade dos cidadãos. O rico encontra em torno de si bastantes
prazeres para entregar-se completamente ao luxo de ostentação, o único capaz de firmar
no espírito do povo a idéia de sua dependência. E pode observar-se que nos Estados
vastos, mas fracos e despovoados, o luxo de ostentação deve prevalecer, se outras
causas não o impedem; ao passo que o luxo de comodidade tenderá a diminuir cada vez
mais a ostentação nos países mais populosos do que extensos”.
(20) “Essa atração se parece em muitas coisas com a gravitação universal. A força
dessas duas causas diminui com a distância. Se a gravitação modifica os movimentos
dos corpos, a atração natural de um sexo para outro afeta todos os movimentos da alma,
enquanto durar sua atividade. Essas causas diferem pelo fato de que a gravitação se põe
em equilíbrio com os obstáculos que encontra, ao passo que a paixão do amor adquire
com os obstáculos mais força e vigor”.
(21) – O Evangelho.
(22) Ditador romano, nascido em 136 a. C. Companheiro e mais tarde rival de Mário,
cônsul em 88, vencedor de Mitridates, chefe do partido aristocrático e depois senhor de
Roma e da Itália. Proscreveu os adversários, reformou a constituição romana em sentido
favorável ao Senado e conseguiu enorme influência. Abdicou inesperadamente em
pleno fastígio e morreu no ano seguinte (80 a. C.).
(23) Referência à obra Emilio ou Da Educação (1762), romance filosófico em que
Jean-Jacques Rousseau propõe um sistema de educação baseado no princípio de que “o
homem é naturalmente bom” e de que, sendo a educação dada pela sociedade,
conviria estabelecer “uma educação negativa, como a melhor, ou antes, como a única
boa”. A despeito de certos paradoxos, esse livro teve influência salutar sobre a educação
daquela época.
(24) Carlos Magno ou Carlos I (742-814), rei dos Francos e imperador do Ocidente,
era filho de Pepino-o-Breve, do qual sucedeu em 768. Político profundo e hábil
organizador, estimava e protegia as letras, criando escolas, rodeando-se de homens
eminentes e governando com sabedoria o seu imenso império.
(25) – Otão I, o Grande (912-973), imperador da Alemanha desde 936, tendo governado
com grande habilidade.
(26) – Imperador romano de 375 a 383.
(27) Imperador romano de 364 a 375, cujo governo foi assinalado por grande
severidade e intolerância religiosa.
(28) Teodósio I, o Grande (346-395), imperador romano que contribuiu para o triunfo
do cristianismo sobre o paganismo.
(29) – Arcádio (376-408), filho de Teodósio, imperador do Oriente desde 395.
(30) – Alexandre Severo (208-235), imperador romano, sucessor de Heliogábalo.
(31) Imperador romano de 81 a 96, filho de Vespasiano e de Tito, célebre por sua
crueldade. Morreu assassinado, sendo cúmplice do crime sua própria mulher. Foi o
último dos doze Césares.
(32) – Segundo imperador romano, de 14 a 37, famoso por sua desumanidade.
(33) Henrique VIII (1491-1547), rei da Inglaterra desde 1509, rompeu com a Igreja
católica e fundou o anglicanismo. Instruído, artista, mas cruel e libertino.
(34) – Historiador latino, autor da obra Os doze Césares, coleção de anedotas de imenso
interesse documental.
(35) “Quem caminha livremente, caminha com confiança; quem, porém, se desvia do
seu caminho, será descoberto”.
(36) Calígula (12-41), imperador romano desde 37. Famoso por sua crueldade,
desejava que o povo romano tivesse uma cabeça para decepá-la de um golpe. Sua
insensatez chegou ao ponto de dar o titulo de cônsul ao seu cavalo Incitatus.
(37) – Imperador romano de 54 a 68, que se celebrizou por sua crueldade.
(38) Imperador romano de 218 a 222 e que se tornou famoso por suas loucuras e
crueldades.
(39) “Podem consultar-se os santos padres e, entre outros, Tertuliano na sua Apolog.,
cap. XXXVII, onde ele diz que os cristãos tinham por máxima sofrer ante a própria
morte do que dá-la a alguém. E, no seu Tratado de Idolatria, caps. XVII e XXI, condena
ele toda espécie de cargos públicos, como interditos aos cristãos, porque não era
possível exercê-los sem que, às vezes, fosse obrigado a pronunciar a pena de morte
contra os criminosos”.
(40) – Lodovico Antonio Muratori (1672-1750), historiador Italiano.
(41) – Deodoro da Sicília, autor de uma Biblioteca Histórica.
(42) – Geógrafo grego, autor de uma preciosa Geografia. Morreu sob Tibério.
(43) – “Não condenar ninguém à morte, nem mesmo pelo pior delito”.
(44) – Tito Lívio (59 a. C. – 19 d. C.), historiador latino, nascido em Pádua. Deixou, sob
o título de Décadas, uma história romana, mais notável pelo estilo do que pela
autenticidade dos fatos.
(45) – André Morellet (1727-1819), abade, literato e economista francês, colaborador da
Enciclopédia.
(46) Chrétien-Guillaume de Lamoignon de Malesherbes (1721-1794), magistrado de
grande reputação, ministro sob Luiz XVI, que ele defendeu perante a Convenção.
Morreu no cadafalso.
(47) Denis Diderot (1713-1784), filósofo francês, ardente propagandista das idéias
filosóficas do século XVIII, um dos fundadores da Enciclopédia. Deixou várias obras
importantes.
(48) – Claude-Arien Hélvetius (1715-1771), literato e filósofo francês, autor do livro Do
Espírito.
(49) Georges-Louis Leclerc de Buffon (1707 1778), naturalista e escritor francês,
autor da História Natural.
(50) Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e escritor francês, nascido em
Genebra, autor da Nova Heloísa, do Contrato Social, do Emilio ou Da Educação,
Confissões e Discursos sobre as Ciências e as Artes e sobre a Origem da Desigualdade.
(51) David Hume (1711-1776), filósofo e historiador inglês, criador da filosofia
fenomenista, autor de um célebre Ensaio sobre o Entendimento Humano.
(52) Paul-Henri Holbach (1723-1789), barão, filósofo materialista francês, amigo e
protetor dos Enciclopedistas
(53) Jean le Rond d’Alembert (1717-1783), célebre escritor, filósofo e matemático
francês, um dos fundadores da Enciclopédia.
(54) Publicação monumental, dirigida por d’Alembert e Diderot, que foi uma
verdadeira máquina de guerra posta ao serviço das doutrinas filosóficas do século XVIII
(1751-1772).
(55) Nicolau Machiavelli (1469-1527) político e historiador italiano, autor das
Décadas sobre Tito Lívio e do Príncipe.
(56) Galileu Galilei (1564-1642), ilustre matemático, físico e astrônomo italiano,
nascido em Pisa. Proclamou, partilhando a teoria de Copérnico, que o Sol, e não a Terra,
é o centro do mundo planetário, e que a Terra gira em torno de si mesma e tem também,
como os outros planetas, um movimento de translação ao redor do Sol. Foi por isso
denunciado como herege e obrigado pela Inquisição a abjurar de joelhos as suas
afirmações (1633). Depois dessa abjuração, que o livrou da fogueira, foi condenado ao
cativeiro e morreu cego alguns anos mais tarde. É famosa sua frase: E pur si muove! (E
contudo se move!), que teria proferido ao ser obrigado a abjurar.
(57) Cartas satíricas que Montesquieu publicou em 1721, sob o anônimo. É uma
correspondência imaginária de dois persas chegados à Europa, Rica e Uzbek, dirigida
aos seus amigos da Pérsia e na qual o autor passa em revista, com plena liberdade, a
política, a religião e toda a sociedade francesa de sua época.
(58) Obra publicada em 1758 e na qual Helvétius aconselha o materialismo, tendo
provocado os mais vivos protestos.
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