
É significativa a presença do padre capelão Francisco Gonçalves Lopes, organizador
dos espetáculos santificadores de sua protegida e protetora. O sacerdote, muito conhecido
em Minas Gerais, onde teve os primeiros contatos
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com Rosa, levava a alcunha de Xota-
Diabos devido à sua eloqüente, enérgica e impressionante maneira de, aos berros e com
gestos ameaçadores, exorcizar demônios nas regiões onde exerceu sacerdócio. O padre
será, no decorrer do contato com Rosa, um dos maiores transmissores de elementos
apocalípticos incorporados ao imaginário contido nas visões de sua ex escrava.
É evidente, desde já, seu papel como contribuidor de um corpus temático religioso
de tradição católica entregue a Rosa Egipcíaca. Até mesmo o sobrenome dado por ele a
Rosa, a Egipcíaca, irá trazê-la ao rol dos personagens santificados, adequando sua condição
bastante “mundana” de ex escrava e ex praticante do meretrício, às graças da conversão e
beatificação em uma vida penitente. Egipcíaca é uma alusão a Maria Egipcíaca, mulher da
vida que apaixonou-se pelo cristianismo e tornou-se santa muito bem conhecida e
respeitada da hagiografia medieval
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. Rosa também foi uma prostituta como Maria
Egipcíaca, e, depois de ter se enamorado das festas, procissões, liturgias, personagens da
religião católica, chegou a fundar um convento que abrigava mulheres enjeitadas pela
sociedade, em especial madalenas arrependidas como ela.
Não poderíamos deixar de abrir o parêntese acima, já que essa condição representa
um dos esforços de santificação de Rosa, ainda em vida, como circunstância notável de
persuasão se imaginarmos que, naquela época, e até mesmo hoje, uma pessoa negra, ex
escrava, ex prostituta, mulher, sofredora de freqüentes ataques epiléticos
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, não tinha muitas
vantagens a seu favor para conseguir qualquer destaque que fosse perante a sociedade. No
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“O citado padre Francisco desempenhará, a partir deste encontro fortuito, papel fundamental na vida de
Rosa: será seu anjo da guarda. Este velho presbítero, então com 54 anos, lhe fará os primeiros exorcismos,
será seu introdutor no caminho da santidade, seu primeiro devoto e confessor. Será também seu proprietário e
lhe dará a carta de alforria. Mais tarde, no Rio de Janeiro, há de ser o capelão do recolhimento da Madre Rosa
e o grande divulgador de seus poderes e predestinação celestial”. MOTT, Luiz, op. cit., p. 54.
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Também ex prostituta, Maria Egipcíaca recebeu tratamento de santa ao se afastar da humanidade. Por volta
de 270, ano do Senhor, passou 47 anos no deserto e conseguiu a salvação por meio de uma vida penitente,
casta, humilde e frugal. Adoradora da Santa Cruz, encontrou-se com um abade chamado Zózimo, que
procurava, no deserto, por um santo eremita. Achou-o, sem duvidar por um instante, desde as primeiras
palavras e gestos, na pessoa de Maria Egipcíaca. Ver com maiores detalhes sobre a vida de Maria Egipcíaca a
Legenda Áurea: vidas de santos, de Jacopo Varazze, com tradução do latim, apresentação, notas e seleção
iconográfica de Hilário Franco Júnior, pela Companhia das Letras, São Paulo, 2003, p. 352-354.
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Ataques epiléticos e outras manifestações nervosas foram interpretadas desde Hipócrates e do Código de
Hamurabi, até recentemente, como manifestação sobrenatural, quer das forças do bem, quer dos espíritos
malignos: de qualquer forma, eram vistas como doenças sagradas.