povo é pouco apropriada para outro. A causa disso é manifesta, pelo menos para as regiões afastadas: só
há quatro espécies de homens que fazem viagens de longo curso: os marinheiros, os comerciantes, os
soldados e os missionários. Ora, não se pode esperar que as três primeiras forneçam bons observadores;
e, quanto aos da quarta, ocupados com a vocação sublime que os chama, quando não estivessem sujeitos
a preconceitos de estado como todos os outros, devo-se crer que não se entregariam de boa vontade a
pesquisas que parecem de pura curiosidade e que os desviariam dos trabalhos mais importantes aos quais
se destinam. Aliás, para pregar utilmente o Evangelho, não é preciso senão zelo, dando Deus o resto;
mas, para estudar os homens, é preciso ter talentos que Deus não se compromete a dar a ninguém e que
nem sempre confere aos santos. Não se abre um livro de viagens em que não se encontrem descrições de
caracteres e de costumes; fica-se, porém, admirado de ver que as pessoas que descrevem tantas coisas só
tenham dito o que todos já sabiam, só tenham percebido, no outro extremo do mundo, o que só a elas
seria dado notar sem sair da sua rua, e de que esses traços verdadeiros que distinguem as nações, e que
impressionam os olhos feitos para ver, tenham quase sempre escapado aos seus. Daí veio o belo adágio
de moral, tão repetido pela turba filosófica, de que os homens são os mesmos em toda parte, tendo em
toda parte as mesmas paixões e os mesmos vícios, sendo bastante inútil procurar caracterizar os
diferentes povos. Ora, isso é raciocinar quase tão bem como se se dissesse que não se poderia distinguir
Pedro de Tiago, porque ambos têm nariz, boca e olhos.
Será que não veremos mais renascer esses tempos felizes em que os povos não se metiam a filosofar,
mas em que os Platão, os Tales, e os Pitágoras, tomados de um desejo ardente de saber, empreendiam as
maiores viagens unicamente para se instruírem, indo sacudir longe o jugo dos preconceitos nacionais,
aprender a conhecer os homens pelas suas conformações e pelas suas diferenças, e adquirir esses
conhecimentos universais que não são os de um século ou de um país exclusivamente, mas que, sendo de
todos os tempos e de todos os lugares, são, por assim dizer, a ciência comum dos sábios?
Admira-se a magnificência de alguns curiosos que fizeram ou mandaram fazer, com grandes despesas,
viagens ao Oriente, com sábios e pintores, para aí desenhar pardieiros e decifrar ou copiar inscrições;
mas, custa-me conceber como, num século em que todos se jactam de belos conhecimentos, não se
encontrem dois homens bem unidos, ricos, um de dinheiro, outro de gênio, ambos amando a glória e
aspirando à imortalidade, que sacrifiquem, um vinte mil escudos de sua fortuna, e o outro, dez anos de
sua vida, numa célebre viagem ao redor do mundo, para estudar, nem sempre pedras e plantas, mas, por
uma vez; os homens e os costumes, e que, depois de tantos séculos empregados em medir e considerar a
casa, se lembrem enfim de procurar conhecer os seus habitantes.
Os acadêmicos que percorreram as partes setentrionais da Europa o meridionais da América tinham
por objeto visitá-las mais como geômetras do que como filósofos. Entretanto, como ao mesmo tempo
eram uma coisa e outra, não se podem olhar como absolutamente desconhecidas as regiões que foram
vistas e descritas pelos La Condamine e os Maupertuis. O joalheiro Chardin, que viajou como Platão,
nada deixou que dizer sobre a Pérsia. A China parece ter sido bem observada pelos jesuítas. Kempfer dá
uma idéia passável do pouco que viu no Japão. Excetuadas essas narrativas, não conhecemos os povos
das Índias orientais, freqüentados unicamente por europeus mais curiosos de encher as suas boinas do
que as suas cabeças. A África inteira e os seus numerosos habitantes, tão singulares pelo caráter como
pela sua cor, estão ainda por examinar; toda a terra está coberta de nações das quais só conhecemos os
nomes, e nos metemos a julgar o gênero humano! Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um
Diderot, um Duclos, um d'Alembert, um Condillac, ou homens dessa têmpera viajando para instruir seus
compatriotas, observando e descrevendo, como sabem fazer, a Turquia, o Egito, a Barbaria, o império de
Marrocos, a Guiné, - o país dos cafres, o interior da África e suas costas orientais, os malabares, a
Mongólia, as margens do Ganges, os reinos do Sião, de Pegú, e de Ava, a China, a Tartária e,
principalmente, o Japão; depois, no outro hemisfério, o México, o Peru, o Chile, as terras magelânicas,
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