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Paula Marchesini de Souza Mendes
A eternidade na obra de Jorge Luis Borges
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio.
Orientador: Karl Erik Schöllhammer
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610456/CA
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Paula Marchesini de Souza Mendes
A eternidade na obra de Jorge Luis Borges
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras da PUC-
Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Karl Erik Schöllhammer
Orientador
Departamento de Letras - PUC-RJ
Prof. Paulo Fernando H. Britto
Departamento de Letras - PUC-RJ
Prof. Mariluci da Cunha Guberman
UFRJ
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador(a) Setorial do Centro de
Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio
Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610456/CA
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Todos os direitos
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da
autora e do orientador.
Paula Marchesini de Souza Mendes
Graduou-se em filosofia na PUC-Rio, em 2005. Durante o
curso de graduação, trabalhou especialmente com filosofia
da linguagem, sobretudo com Ludwig Wittgenstein. Ao
longo do mestrado em literatura, cursado também na PUC-
Rio, trabalhou, especificamente, com a questão do tempo,
analisando de que maneira esta se relaciona à criação
artística.
Ficha Catalográfica
Mendes, Paula Marchesini de Souza
A eternidade na obra de Jorge Luis Borges /
Paula Marchesini de Souza Mendes; orientador: Karl Erik
Schöllhammer. – 2008.
116 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Letras)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2007.
Inclui bibliografia
1. Letras Teses. 2. Borges. 3. Eternidade. 4.
Tempo. 5. Literatura. 6. Labirinto. 7. Infinito. I.
Schöllhammer, Karl Erik. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III.
Título.
CDD: 800
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Para Apoena, por tudo.
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Agradecimentos
Ao meu pai, por todo o apoio e carinho, por ter me ensinado a pensar com clareza
e por sempre me incentivar a crescer.
À minha mãe, por estar sempre pronta a me ajudar e por me inspirar,
constantemente, com sua criatividade.
À minha avó, Olga Marchesini, por ter despertado meu interesse pela literatura.
A Karl Erik Shöllhammer, pela orientação impecável e pela paciência.
Aos membros da banca, Paulo Fernando H. Britto, pelas aulas inspiradoras e
Mariluci da Cunha Guberman, pelas sugestões que tanto enriqueceram o trabalho
e por ter me tratado de maneira tão carinhosa no dia da defesa.
À CAPES, pelo apoio financeiro, sem o qual a realização desse trabalho teria sido
impossível.
Aos colegas da PUC-Rio.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio.
Ao departamento de letras da PUC-Rio, especialmente a Chiquinha, pelo carinho
e profissionalismo.
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Resumo
Mendes, Paula M. S.; Schöllhammer, Karl Erik. A eternidade na obra de
Jorge Luis Borges. PUC-RJ, 2008. 116p. Dissertação de Mestrado -
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O presente trabalho analisa as figurações e o sentido do conceito de
eternidade na obra de Jorge Luis Borges. No primeiro capítulo, destaca os
principais símbolos borgianos atrelados ao conceito (a palavra, o nada, o eu, os
animais, etc.); no segundo, as principais refutações do tempo, encontradas nos
ensaios do autor; no terceiro e último capítulo, examina de que maneira o conceito
de eternidade se vincula ao próprio fazer literário do escritor e à sua concepção de
literatura. Tal análise quer proporcionar um novo enfoque sobre o trabalho do
autor argentino, frizando, por trás de sua obsessão por labirintos, por enigmas e
pelo problema do tempo, sua busca pelo centro, ou pela solução do enigma do
tempo, vislumbrada, através da arte literária, no conceito de eternidade. Além
disso, deseja analisar a relação ambígua que o autor mantinha com o conceito de
eternidade, que via, ora como uma quimera que o homem deve abandonar para
fazer parte do mundo, ora como um objetivo impossível que, somente através da
literatura, pode ter algum significado para os homens.
Palavras-chave
Borges, eternidade, tempo, literatura, labirinto, infinito.
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Abstract
Mendes, Paula M. S.; Schöllhammer, Karl Erik. Eternity in the Works of
Jorge Luis Borges. PUC-RJ, 2008. 116p. MSc. Dissertation -
Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The present document analyzes the figurations and the meaning of the
concept of eternity in the work of Jorge Luis Borges. In the first chapter, it points
out the main borgesian symbols linked to the concept (the word, the nothing, the I,
the animals, etc.); in the second chapter, the main refutations of time, found in the
author´s essays; in the third and last chapter, it examines in what way the concept
of eternity is related to the writer´s process of literary creation and to his very
concept of literature. Such analysis means to offer a new approach towards the
argentine author´s work, emphasizing, behind his obsession with labyrinths,
enigmas and with the problem of time, his search for the center, or for the solution
of the enigma of time, seen, through literary art, in the concept of eternity. Apart
from that, it wishes to analyze the ambiguous relation the author maintained with
the concept of eternity, seeing it at times as a dream that man should abandon to
be part of the real world and, at other times, as an impossible goal that, only
through literature, could have any meaning to men.
Keywords
Borges, Eternity, Time, Literature, Labyrinth, Infinity.
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Sumário
1. Introdução
2. Símbolos da eternidade
2.1. A palavra
2.2. O nada
2.3. A cegueira
2.4. O ponto
, o círculo, o objeto
2.5. Os animais
2.6. O eu e a memória
2.7. Os arquétipos
3. Refutações do tempo
3.1. Paradoxos
3.2. O idealismo e a eternidade do instante
3.3. A impossibilidade do p
resente
3.4. Concepções alternativas do tempo na obra de Borges
4. Eternidade e literatura
4.1. A eternidade e a literatura como atividade impossível
4.2. A eternidade e a literatura fantástica
4.3. O Espírito ou o autor impessoal
4.4. O mundo como biblioteca ou livro
5. Conclusão
6. Referências bibliográficas
10
17
17
24
27
31
38
43
51
57
57
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81
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Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo
nunca é todo presente. Esse tal verá que o passado é impelido pelo futuro e que
todo o futuro está precedido de um passado, e todo o passado e futuro são criados
e dimanam d´Aquele que sempre é presente. Quem poderá prender o coração do
homem, para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o
passado, não sendo ela nem passado nem futuro? Poderá, porventura, a minha
mão que escreve explicar isto? Poderá a atividade da minha língua conseguir
pela palavra realizar empresa tão grandiosa?
Santo Agostinho, Confissões.
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1
Introdução
Em entrevista a Carlos Cardoso Aveline, vemos Borges afirmar que a
história humana é a história das tentativas de criar esquemas e racionalizações
para interpretar a realidade externa. O presente estudo surgiu da necessidade de
definir que tipo de esquemas e racionalizações Borges elabora para interpretar esta
realidade. Queremos analisar em que medida esses esquemas relacionam-se à
questão do tempo, que Borges tantas vezes reclamou como a questão fundamental
de sua escrita.
Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires, a 24 de agosto de 1899. Aos
seis anos, estava decidido a ser escritor. Em sua juventude, após morar alguns
anos em Genebra, se mudou com sua família para Sevilha, onde tornou-se
membro de um grupo de jovens poetas vanguardistas, os ultraístas (defensores de
uma linguagem seca e sem adjetivos), que o influenciaram profundamente. Mais
tarde, voltando para Buenos Aires, desvinculou-se do ultraísmo e filiou-se ao
modernismo. Aos poucos, abandonou todos os movimentos de seu tempo,
desenvolvendo um tom próprio. A partir de 1938, passou a depender cada vez
mais de sua mãe, devido à cegueira, condição que herdou do pai e que foi
aumentando gradualmente. Em 1955, quando não podia mais ler, foi eleito
diretor da Biblioteca Nacional, passando a viver rodeado por milhares de livros.
Faleceu a 14 de junho de 1986, em Genebra, ao lado da esposa, María Kodama.
Além de escritor e poeta mundialmente reconhecido, foi ensaísta, crítico e
tradutor.
A questão do tempo permeia toda a obra de Borges. Ela contém a
dificuldade da permanência no fugaz, que tanto intrigou Borges, à qual ele
constantemente se referia citando as famosas palavras de Heráclito de que não se
pode entrar duas vezes no mesmo rio.
Este conceito fundamental da metafísica integra não só a temática da
literatura borgiana, mas é mesmo impulso criativo, constitui a própria motivação
de Borges para a criação literária. Borges escreve, dentre outras coisas para
compreender, para guiar seu pensamento e seus anseios filosóficos. Em alguns
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momentos, recorre à literatura para fazer filosofia, pois um ceticismo fundamental
o impede de estabelecer doutrinas ou de ousar a elaboração de sistemas para a
decifração do universo. Ele intui que o universo é um código ao qual jamais
teremos a chave e que qualquer filosofia que se possa forjar é tão ilusória quanto
um conto de literatura fantástica.
Em nossa pesquisa, confrontamos diversos estudos sobre Borges e notamos
uma tendência geral à valoração do múltiplo ou infinito, do labiríntico e do
enigma; queremos aqui realizar o oposto: observar a unidade, o centro do
labirinto, as resoluções. É justamente por isso que recorremos, não ao conceito de
tempo, mas ao da eternidade; este conceito que, ao longo da história da filosofia
impôs-se como resposta à questão da temporalidade e mesmo como hipótese para
a conceituação do real.
No prólogo a Fervor de Buenos Aires, escrito quarenta e seis anos depois da
obra, Borges afirma que, apesar de sentir que ele e o jovem de então eram
essencialmente o mesmo, naquele tempo procurava os entardeceres, os arrabaldes
e a desdita; agora, as manhãs, o centro e a serenidade. O que teria provocado essa
mudança? Que é o centro que Borges procura e de que maneira ele oferece um
desdobramento à questão do tempo, sua principal fonte de conflito?
Sabemos que, no início de sua carreira, Borges esteve preocupado com a
construção de uma literatura argentina e moderna. Mais tarde, afirmaria que todos
são fatalmente modernos e que, tendo vivido a maior parte de sua vida na
Argentina, ele mesmo é fatalmente argentino. Ele distancia-se destas questões e de
tudo o que se relaciona ao mundo exterior; passa a trabalhar sobretudo com
literatura fantástica e com especulações em torno dos livros que leu antes que lhe
acometesse a cegueira. Passa a viver como na eternidade de sua biblioteca, a
biblioteca que herdou do pai e da qual afirmava, ao final de sua vida, nunca ter
saído.
Seu distanciamento de questões nacionalistas e contextuais significou um
aprofundamento em especulações metafísicas, uma busca por uma realidade mais
profunda, ou por possibilidades de realidade. Mesmo em seus contos fantásticos, o
que observamos são conjeturas a respeito do universo, exposições de possíveis
explicações para a realidade.
Não queremos, de modo algum, conjeturar as crenças de Borges ou
posicioná-lo relativamente a escolas filosóficas ou literárias. Acreditamos que ele
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se importasse menos com convicções ou verdades e mais com assombros,
possibilidades. Mas o tema da eternidade se impõe, faz parte mesmo do
fundamento da literatura borgiana. Nosso trabalho aqui é analisar por que e de que
maneira isso acontece.
Nossa reflexão baseia-se, sobretudo, na leitura dos textos do autor, evitando
referências a estudos secundários ou à questões contextuais, relacionadas à
história da literatura. Seguimos, portanto, o critério de Borges, que considerava
um erro estudar historicamente a literatura. Queremos encontrar, em seus textos,
estratégias para trabalhar com a hipótese de que, em algum lugar do labirinto
borgiano, o labirinto do tempo, estava o almejado centro eterno que ele buscou e
que lhe foi tão precioso quanto o labirinto. É um centro sagrado, impossível,
inacessível para o sujeito. Mas sua presença se faz sentir e a intuição de sua
existência guia a escolha dos temas, a elaboração das personagens, a opção pela
literatura fantástica, além de funcionar como motivação fundamental para a escrita
de Borges.
Ambos, labirinto e centro, foram fontes de angústia. O labirinto por ser uma
prisão; o centro por ser impossível. O labirinto é o tempo e, para Borges, é a
condição de existência do sujeito, o material mesmo de que somos feitos. Nossa
existência só é possível na medida em que estamos inseridos no labirinto do
tempo: para que a vida seja menos terrível, devemos abraçar nossa condição
temporal, devemos louvar o labirinto. O labirinto é uma prisão porque é a única
opção para o sujeito. Em seu centro, está a eternidade, a resposta para a questão
do tempo. Ela constitui um desejo, uma intuição. Mas Borges sabe que sua
contemplação é impossível para o sujeito, que o aniquilaria. Esta aniquilação,
entretanto, não deixa de ser um alívio secreto, um desejo. A eternidade é
impossível para nós, que somos feitos de tempo e que não podemos conceber uma
realidade sem movimento e sem fugacidade. Ela não é experimentável para nós, é
inconcebível.
Se o labirinto do tempo é a única opção, é, no fundo, tão impossível quanto
o centro, porque tampouco podemos conhecê-lo: não conhecemos o passado nem
o futuro, pois não existem fora do presente; não conhecemos o presente, porque é
tão impossível quanto o inextenso ponto da geometria. Estamos perdidos no fluxo
de um rio que não podemos compreender, um rio do qual também somos feitos.
Mas, ainda que seja tão inconcebível quanto a eternidade, o tempo é um conflito
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mais próximo, é a nossa questão, temos quase por obrigação abraçá-la. Nossa
única possibilidade é aceitar o tempo, aceitar o eu e toda a angústia que os
acompanha e o melhor método para essa resignação é a criação literária.
Entretanto, a literatura não é apenas resignação: é também o que de mais
próximo à eternidade, o que possibilita um vislumbre, uma imagem menos pobre
dessa realidade inacessível. A literatura é um meio de contemplar labirinto e
centro, ainda que seja uma arte pobre como o mundo real, sujeita às regras da
temporalidade. A sucessividade das palavras impede a contemplação do todo,
mas, quando as palavras estão inseridas em uma estrutura literária, permitem que
ele seja entrevisto.
A partir do que foi dito anteriormente, organizamos o presente trabalho em
três capítulos.
No primeiro, analisamos a maneira como a eternidade está por trás da
criação de diversos símbolos típicos da literatura borgiana, símbolos que são
como possíveis respostas para o labirinto do tempo, possíveis centros: a palavra, o
nada, a cegueira, o ponto, o círculo, o objeto, os animais, o eu e os arquétipos.
No segundo, vamos buscar os textos em que Borges trata das refutações do
tempo ou de concepções alternativas do tempo. Trata-se, principalmente, dos
ensaios. Analisaremos aqui os paradoxos do tempo, o idealismo como refutação
possível para o tempo, o presente como conceito impossível e corruptor e as
concepções alternativas de tempo (tempo cíclico, tempo invertido e tempo
múltiplo).
No terceiro capítulo, veremos de que maneira o conceito de eternidade faz
parte do próprio impulso de criação literária, na obra de Borges. Queremos
mostrar como o conceito de eternidade constitui um motor para a literatura, bem
como uma motivação para a escolha do gênero fantástico. Veremos ainda de que
forma ele se liga à concepção borgiana de literatura e de mundo.
Na primeira seção deste capítulo, ensaiaremos, recorrendo a Paul Ricoeur e
Peter Salm, uma proposta para definir a estética de Borges, que pode ser exposta,
de forma resumida, nos seguintes termos:
(a) O tempo é percebido pelo artista de maneira seqüencial e fragmentada.
(b) Sua intuição lhe permite reunir, de maneira limitada, estes fragmentos
percebidos em um tempo uno, completo e transcendente ao qual não tem
acesso.
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(c) O tempo uno intuído, por ser inatingível e mesmo inconcebível, faz
nascer a necessidade de compreendê-lo a qualquer custo, criando uma
angústia intelectual que leva à produção de representações diversas, na
tentativa de construir uma imagem que, ainda que de maneira parcial,
dê conta deste tempo.
(d) A angústia criada pela necessidade de reprodução do tempo total
intuído, portanto, é uma das motivações da literatura borgiana.
Em entrevista a Maria Angélica Corrêa, Borges diz que seu tema essencial
é o do tempo e, dentro do tempo, o enigma da identidade pessoal que se mantém
apesar das mudanças. Para ele, o universo é inconcebível sem tempo, ainda que os
homens tenham inventado a palavra eternidade para tentar expressar o que não
podem conceber. Para Borges, a questão do tempo é a da permanência no fugaz:
como pode algo permanecer em meio à mudança? De que maneira podemos, ao
mesmo tempo, mudar e permanecer os mesmos? O conceito de mudança parece
ser incompatível com o de identidade e, no entanto, percebemos que ambos
ocorrem ao mesmo tempo. A identidade é também um rio que flui, ainda que o
manancial seja sempre o mesmo. Mas o que é isso que permanece? Se algo
permanece, algo sobrevive ao tempo. O eu é feito de tempo, mas ele sobrevive ao
tempo, ele é sempre o mesmo.
Compreender o tempo é compreender tudo porque é entender de que
maneira mudança e identidade sobrevivem uma à outra. É aceitar o inaceitável de
que o universo é um paradoxo, de que labirinto e centro podem conviver e que são
as duas faces do real. A mudança não aniquila o sujeito, pelo contrário, o sujeito é
constituído pela mudança. O que permanece o mesmo é constituído, não pela
eternidade, mas pelo tempo. Para ser sempre o mesmo, é necessário mudar.
Somente dentro da mudança a identidade tem sentido: a mera contemplação de
uma realidade sempiterna aniquila a identidade.
A eternidade é uma palavra, uma invenção humana para o que o se pode
conceber. É o uno, o alheio à mudança e à sucessão. Em uma dimensão eterna,
não há indivíduos, porque não há divisão entre as coisas. Há apenas o todo.
Contemplar o todo é agregar-se a ele, é deixar de existir como indivíduo. A
eternidade opõe-se ao tempo e, no trabalho de Borges, será uma força oposta ao
infinito, conceito por ele também muito explorado.
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O infinito é, para Borges, o grande conceito corruptor da realidade. Tudo o
que observamos no mundo pode ser refutado com base neste conceito: o espaço e
o tempo são ilusórios porque são infinitamente divisíveis; o eu é ilusório porque
uma rede infinita de eus, cada um sendo percebido pelo eu anterior. Do lado
oposto da multiplicidade terrível do infinito, está a terrível unidade da eternidade.
Uma eternidade de “imóveis peças de museu”, um conceito inacessível aos
homens, que deve ser posto de lado para que se possa viver.
A relação entre tempo e eternidade, entretanto, é mais complexa, não é de
mera oposição. Tempo e eternidade se entrecruzam e definem um ao outro. A
parte é parte na medida em que tem um lugar no todo. E o todo define cada
uma das partes. Uma árvore não é apenas uma árvore: ela só é uma árvore porque
aponta para todas as árvores e para todos os eventos que jamais se deram em torno
dessas árvores. Não pode haver indivíduos sem o todo. Cada coisa do universo
aponta para todas as outras. Uma parte alheia ao todo é tão inconcebível quanto o
próprio todo.
O labirinto existe na medida em que um centro e o centro é,
necessariamente, centro de um labirinto. O tempo é um caminho para o eterno, um
fluxo cujo manancial é a eternidade. A experiência do eterno é possível através
do tempo: podemos experimentar o todo, mas uma coisa de cada vez. Sabemos
que cada coisa faz parte do todo, cada coisa é o todo. Mas o percebemos dessa
maneira, através de fragmentos.
A eternidade de Borges é uma realidade inacessível que pode ser
expressa de maneira limitada, em termos poéticos; mas não é imóvel e unitária
como a de Parmênides. É uma eternidade fluida, em que todas as coisas existem e
são uma; todas as coisas são distintas mas são a mesma. Tudo é o infinito rio de
Heráclito: cada ponto é todos os pontos, cada coisa implica toda a história
universal, contém todo o tempo.
A eternidade de Borges é distinta do tempo, mas está no tempo, está em
cada coisa e na soma de tempo que contém. Engloba toda a verdade do universo,
mas cada ponto do universo contém toda a verdade. É uma eternidade múltipla e
fluida, semelhante a um panteísmo.
A eternidade de Borges é imanente, mas tão inacessível quanto a outra, a
parmenídica ou platônica. Não é o terrível museu de peças imóveis. Não é exterior
à realidade, ainda que seja inacessível. Está em cada coisa, é como o limite das
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coisas, é o limite a que tende o infinito. Talvez, por estar tão perto quanto o objeto
mais próximo, seja ainda mais angustiante e fantasmagórica que o infinito. A
eternidade o resolve nada, é também corruptora. Está sempre a um passo do
sujeito, mas um abismo que o separa desse último passo. É como a tartaruga
que Aquiles tem diante de si, que jamais consegue alcançar. A eternidade é
inalcançável, ainda que esteja ao alcance da mão, como veremos a seguir.
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Símbolos da Eternidade
Discutiremos aqui as principais formas que a eternidade assume na literatura
de Borges.
2.1
A palavra
Muitos são os textos em que Borges refere-se à palavra sagrada, a palavra
una, conhecida apenas por uma entidade divina, em que todo o universo está
escrito e que, caso fosse revelada, nos anularia como sujeitos.
Um dos exemplos mais notáveis está em A escrita do Deus”
1
(OC I, 663).
Neste conto, Tzinacan, o último sacerdote de um povo que foi dizimado,
encontra-se preso em um cárcere completamente escuro, onde sua única
companhia é um jaguar, separado dele por um muro. Sem ter o que fazer, imerso
na escuridão e sem possibilidades de escapar, ele passa a recordar tudo o que sabe;
lembra-se, então, de uma das tradições de sua religião que dizia que, no primeiro
dia da criação, seu deus realizara uma escrita, uma sentença mágica que seria
revelada a um eleito e que proferida, no fim dos tempos, conjuraria todos os
males.
Sendo o único sobrevivente, Tzinacan cogita a possibilidade de que lhe
fosse concedida a intuição de tal escrita. Ele passa, portanto, a buscar o símbolo
que, em sua concepção, teria de ser algo invulnerável, que não sofresse o desgaste
do tempo. Ele pensa nas inúmeras criações de seu deus: as montanhas, os rios, os
astros, os homens; mas percebe que nenhuma delas é incorruptível. Então recorda-
se de que o jaguar é um dos atributos do deus e que poderia se aproveitar dos
breves momentos em que dispunha de luz (quando um alçapão era aberto em sua
cela para que lhe dessem água e comida) para decorar as manchas do jaguar e
decifrar nelas a escrita que buscava.
1
“La escritura del Dios”
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18
Logo percebe, para sua infelicidade, que levar a cabo essa tarefa é
impossível. Ele tenta, portanto, fazer o caminho inverso, passando a questionar,
em primeiro lugar, que tipo de sentença elaboraria a mente absoluta. Refletindo
sobre as linguagens, ele percebe que não há, em qualquer delas, um nome que não
implique o universo inteiro. Ele se conta de que cada palavra está ligada a uma
rede infinita de eventos, que significa tudo o que há; cada tigre está
intrinsecamente relacionado a todos os tigres que o geraram, tudo o que cada um
comeu, tudo o que cada um dos bichos que devoraram comeu e assim
infinitamente. Dizer ‘tigre’ é proferir, em uma palavra, toda a série de eventos que
precedeu o tigre e que nele terá origem.
Então ele nota que a idéia de uma sentença divina era “pueril ou
blasfematória” (OC I, 665). A plenitude divina, conclui, só necessita de uma
palavra. Nossa vil linguagem humana teria tentado simulá-la com os pobres
termos ‘tudo’, ‘mundo’ e ‘universo’, mas a palavra do deus seria capaz de
articular o todo de modo explícito e imediato.
Depois de conseguir escapar de um terrível sonho, do qual jamais conseguia
acordar por estar sempre despertando para um sonho anterior, ele sente o alívio de
voltar à prisão, que se transformara em sua casa. Da aceitação de seu estado, da
comunhão com a cela, nasce a intuição da escrita, que ele se diz incapaz de
conceber ou comunicar:
Eu vi uma Roda altíssima, que não estava diante de meus olhos, nem atrás, nem
dos lados, mas em todas as partes, a um tempo. Essa Roda estava feita de água,
mas também de fogo, e era (embora se visse a borda) infinita. Entretecidas,
formavam-na todas as coisas que serão, que são e que foram, e eu era um fio dessa
trama total, e Pedro de Alvarado, que me atormentou, era outro. Ali estavam as
causas e os efeitos e me bastava ver essa Roda para entender tudo,
interminavelmente (OC I, 666).
Essa Roda permitiu-lhe, inclusive, vislumbrar a escrita do tigre: uma
fórmula de catorze palavras casuais que, se por ele proferida, o libertaria do
cárcere, daria a ele todo o poder do universo, o tornaria imortal. E ele a
pronunciaria não fosse o fato de que a mera contemplação da frase o fizera
esquecer completamente de Tzinacan.
O encarceramento de Tzinacan é emblemático, é uma metáfora recorrente
na obra de Borges. A prisão é a ignorância, a impossibilidade de um
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conhecimento total, a escuridão da vida imanente. É um labirinto do qual o se
pode sair, um labirinto que precisa ser aceito para ser compreendido. Ao
contemplar a Roda, vemos Tzinacan exclamar: “Oh, felicidade de entender, maior
que a de imaginar ou que a de sentir!” (OC I, 666).
Através da metáfora da palavra, vemos que o verdadeiro conhecimento,
almejado por Borges, está necessariamente fora da sucessividade do tempo e fora
da linguagem temporal. A palavra representa a multiplicidade na unidade, o todo
no singular que retornará em outros contos, como “O Aleph”, “O Zahir” e O
livro de areia”, para citar alguns exemplos. Mas, além disso, é a verdade última,
que justifica tudo, esclarece a origem das coisas e de cada coisa e exibe todos os
tempos ao mesmo tempo. Nesta metáfora estão inseridas questões essenciais
ligadas ao conceito de eternidade e presentes em A escrita do Deus”: a do limite
da linguagem e a da impossibilidade da experiência do todo pelo eu.
A primeira questão, do limite da linguagem, está relacionada à
temporalidade ou sucessividade essencial da escrita, à necessidade de colocar uma
palavra após a outra, ainda que se tenha por objetivo expor uma idéia indivisível,
irrepresentável. No pequeno conto “A rosa amarela” (OC II, 193), Borges relata
como o poeta italiano Giambattista Marini, em seu leito de morte, teria finalmente
visto a rosa, “como Adão pôde-la no Paraíso”, a rosa “em sua eternidade e não
em suas palavras e que podemos mencionar ou aludir mas não expressar” (OC II,
193). O poeta então percebe que os livros não podem representar o mundo; o
“uma coisa a mais acrescentada ao mundo” (193). Aqui, também, a visão do
objeto eterno é o último fato de uma vida, a anulação do tempo, da possibilidade
de outros eventos e da linguagem.
A miséria de ser escritor, como o Marini e Borges, é que se está
condenado a multiplicar o mundo, a acrescentar caos ao caos que existe. Os
livros não decifram nada, são labirintos de palavras e cada livro é eternamente
outro, pois cada leitura modifica o livro. Borges, em diversos momentos, confessa
sua aversão pelos espelhos, que duplicam o mundo sem explicá-lo. Da mesma
maneira, os livros constroem novos mundos a serem decifrados, abrem novas
bifurcações a serem percorridas.
A tarefa que o poeta se propõe, de decifrar o mundo, é impossível: ele
jamais consegue imprimir às palavras uma realidade o plena quanto a do
universo. Imaginar que pode fazê-lo é pecado digno de punição. Na “Parábola do
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palácio” (OC II, 199), o Imperador Amarelo mostra ao poeta seu palácio e o
extenso labirinto nele contido. Quase ao final da jornada, depois de passarem por
toda a multiplicidade de um mundo, o poeta recita uma breve composição: um
pequeno verso ou, talvez, uma única palavra, em que se via o palácio em todos os
seus detalhes. Ofendido, o Imperador exclama: “Arrebataste-me o palácio!” e
ordena sua morte. A escrita ideal seria uma espécie de pecado, usurparia do
mundo a complexidade que lhe é própria e a que só ele tem direito.
Peter Salm (1986) esclarece a questão da impossibilidade da escrita quando
diz que a poesia é baseada no paradoxo de querer forjar um Universal Concreto.
Ao mesmo tempo em que quer, com a totalidade de suas palavras, apontar para
um sentido maior, exterior e uno, ela necessita da multiplicidade das palavras e de
sua organização em uma forma específica para fazê-lo. Ela exibe uma imagem,
um vislumbre do eterno, mas só pode fazê-lo através de muitas palavras.
A imagem final do poema, segundo Salm, paira como em outra dimensão,
onde não tempo. Está além das palavras, ainda que se faça ver através delas.
De certa maneira, ela é um ‘resumo’ do poema, mas este resumo pode ser
transmitido através da leitura de todo o poema, não sendo, neste sentido, um
resumo propriamente dito. A imagem é intransmissível em uma palavra, pois está
tão ligada às particularidades da obra, que depende delas para existir.
A poesia, para Salm, seria uma concretização de algo que jamais pode ser
concretizado. Ela seria a radiação sensual da idéia, o corpo de um ser que não tem
corpo, pois esfora do espaço e do tempo. Em um poema, cada palavra, cada
parte é essencial, é o todo:
Ideally, every significant moment in a poetic work should be a kind of ‘center’,
symbolically containing the whole of the composition. Neither the beginning or the
ending are more important to the literary meaning than the nodal points in between
(Salm, 1986, 8).
Em muitos textos, Borges relaciona o limite da linguagem à arbitrariedade
das palavras. Em “O idioma analítico de John Wilkins”, ele analisa a tentativa do
clérigo inglês de forjar um idioma universal. Sua solução teria sido a elaboração
de uma complexa tabela que fazia corresponder às letras e às combinações de
letras, sentidos íntimos, de modo que cada palavra fosse auto-explicativa. Borges
explica como levou a cabo tal tarefa:
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Dividiu o universo em quarenta categorias ou gêneros, subdivisíveis em diferenças,
por sua vez subdivisíveis em espécies. Atribuiu a cada gênero um monossílabo de
duas letras; a cada diferença uma consoante; a cada espécie, uma vogal. Por
exemplo: de, quer dizer elemento; deb, o primeiro dos elementos, o fogo; deba,
uma porção do elemento fogo, uma chama (OC II, 93).
Tal linguagem, de acordo com Borges, seria profunda como uma “chave
universal” (OC II, 94), pois cada uma de suas letras é significativa. A palavra
salmão é arbitrária e imprecisa; seu vocábulo correspondente no idioma de
Wilkins, zana define “um peixe escamoso, fluvial, de carne avermelhada.” (OC II,
95).
De fato, o sistema é por demais complexo para ser posto em prática, mas
Borges diz que não devemos desistir da elaboração de esquemas não-arbitrários
provisórios. Ele explicita que, se não há, no universo, classificação que não seja
arbitrária, é porque não sabemos o que é o universo. Assim, conjeturar palavras,
definições e etimologias é aproximarmo-nos do “secreto dicionário de Deus” (OC
II, 95).
Borges lamentava o fato de que não palavras que expliquem o universo,
mas, ao mesmo tempo em que condenava os livros e os espelhos pela
multiplicação do mundo, ele tinha um declarado fascínio pelo múltiplo e dizia que
os livros são objetos sagrados, escritos pelo Espírito. Em “Outro poema dos dons”
(1964), lemos: “Quero dar graças ao divino / Labirinto dos efeitos e das causas /
Pela diversidade das criaturas / Que formam este singular universo” (OC II, 337).
Mas podemos interpretar este fascínio como proveniente de sua concepção
de que cada parte do múltiplo contém o todo. O mundo é divino porque cada parte
do mundo o contém. Como afirma Ivan Almeida em seu estudo sobre Borges
(2000, 18), o labirinto é a forma do mundo ser divino e amá-lo é garantir nossa
permanência no mundo. A imanência e a multiplicidade constituem uma prisão,
mas, como no caso de Tzinacan, precisamos gostar dessa prisão para merecê-la e
compreendê-la. Precisamos aceitar sua maneira fragmentada de exibir o divino e
mesmo louvá-la. Descobrir o absoluto é morrer, é transformar-se em nada. A
unidade total, a ausência de diversidade, a eternidade, são ilusões; só podemos
vislumbrá-las de maneira fugaz, na diversidade, nas frestas em que se revela o
rosto divino.
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Como ocorre com o mundo, cada parte do poema contém o poema. O
poema é um mundo. O fato de a parte conter o todo e de ser tão grande quanto ele,
da palavra conter o poema e o universo, era visto com grande perplexidade por
Borges. Um dos constantes paradoxos de que ele se servia para ilustrar esta
incoerência era o da série dos números transfinitos, abordado por Bertrand
Russell. Nas palavras de Borges:
(...) números finitos (a série natural dos números , 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, e
assim infinitamente). Mas logo se leva em conta outra série, a qual terá exatamente
a metade da extensão da primeira. É integrada por todos os números pares. Assim,
ao 1 corresponde o 2, ao 2 corresponde o 4, ao 3 corresponde o 6... Em seguida
consideremos outra série. Vamos escolher um número qualquer. Por exemplo, 365.
Ao 1 corresponde o 365, ao 2 corresponde o 365 multiplicado por si mesmo, ao 3
corresponde o 365 elevado à terceira potência. Temos, portanto, várias séries de
números, todos infinitos. Quer dizer, nos números transfinitos as partes não são
menos numerosas que o todo (OC IV, 235).
Após a exposição, Borges reclama: “Creio que isto foi aceito pelos
matemáticos. Mas não sei até onde nossa imaginação pode aceitá-lo” (OC IV,
235). Tal sistema é inconcebível, o infinito é inconcebível.
Se a parte é o todo, se a diversidade é divina, a Palavra, a visão simultânea
do todo, ainda que almejada, é fatal. Sua contemplação significa a morte. A
condição de vida do homem é louvar a diversidade, é idolatrar o labirinto, os
livros, a literatura. Nas palavras de Ivan Almeida, “Esa es la razón de la creación
de tantos laberintos. Es una forma de conjurar el temor a ser desposeídos de la
morada en la tierra, de recordarse que el infinito está siempre al alcance de la
mano.” (2000, 18) Mas, por vezes, o Espírito interfere na vida humana, tornando-
a tanto mais nobre. Talvez sejam esses momentos almejados que tornem tão
difícil a aceitação do labirinto: eles existem, sobretudo na vida do poeta. São
como pequenas revelações, suspensões do labirinto.
Borges considerava que, nas grandes obras, o acaso o intervém, cada
palavra é absoluta (OC IV, 193). De certa forma, todas as grandes obras foram
escritas pelo Espírito (nisso Borges concordava com Bernard Shaw), pois o
grande livro tem de ir além da “pobre coisa humana” que é a intenção do autor
(OC IV, 193). No prólogo a Elogio da sombra, Borges escreve: “A poesia não é
menos misteriosa que os outros elementos do orbe. Tal ou qual verso afortunado
não pode envaidecer-nos, porque é dom do Acaso ou do Espírito; os erros são
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nossos” (OC II, 378). A divindade condescendeu com a literatura e ditou a
Bíblia porque colocou um sentido absoluto em cada letra e levou em conta todas
as possibilidades: o número de letras e de sílabas, os possíveis jogos de palavras, o
valor numérico das letras. Tudo foi pensado e tudo contém a Palavra divina, que é
o texto em sua plenitude.
Por isso, o eterno esquecimento e a falência do ‘eu’ que resultariam da
contemplação da Palavra não deixam de ser almejados por Borges. Em “O
despertar”, ele clama: “Ah! Se aquele outro despertar, a morte / Deparasse-me um
tempo sem memória / Do nome meu e do que eu tenho sido! / Ah! Se nessa
manhã houvesse olvido!” (OC II, 295). Os pequenos contatos com o Espírito o
divinos, mas sempre curtos. A fusão total só seria possível através da morte.
O esquecimento é um tipo de comunhão com o todo, uma espécie de
eternidade ou de escape da sucessividade. Em alguns textos, Borges comunica seu
desejo de ser outro, de não ser Borges ou de ser nada. Ele elogia os poetas
menores, cuja obra foi apagada pelo tempo. Em “A um poeta menor da antologia”
(1964), ele escreve: “Por entre os asfódelos da sombra, tua sombra / pensará
que os deuses foram avaros. // Porém os dias são uma rede de triviais misérias, / e
haverá melhor sorte que a cinza / de que está feito o olvido?” (OC II, 272). O
poeta esquecido não tem sua obra diminuída pela glória: seu trabalho permanece
aberto, sem soluções pré-fixadas. Deste poeta podemos saber que, em algum
momento, vislumbrou o eterno: “de ti nós sabemos, obscuro amigo, / que
ouviste o rouxinol
2
, uma tarde” (OC II, 272).
Ser esquecido, morrer, é escapar aos limites do eu. Não ter limites é ser
tudo, é ser eterno. Na palestra “A imortalidade” (OC IV, 198), Borges condena
Miguel de Unamuno por, diante da opção da imortalidade, querer continuar sendo
Unamuno e declara: “eu não quero continuar sendo Jorge Luis Borges, quero ser
outra pessoa. Espero que minha morte seja total, espero morrer de corpo e alma.”
(OC IV, 198). Percebemos que morrer, aqui, é deixar de ser Borges. Borges é um
peso que Borges é obrigado a carregar. Em “Borges e eu”, o ‘eu’ se queixa de que
tudo o que faz passa a ser de Borges, adquire os limites que a personalidade
impõe. A personalidade congela a escrita: ler um texto de Borges como sendo um
2
A figura do rouxinol, como veremos adiante, é freqüentemente utilizada pelo autor para
representar a eternidade.
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texto de Borges, é limitá-lo. Um texto aberto, sem autor, é mais complexo,
engloba mais significados.
A imortalidade é temida porque significa, não a eternidade, mas a infinita
permanência no tempo e no sujeito e toda a opressão que esta impõe. Não a
conhecer a Palavra, mas embaralha todas as palavras, de todas as línguas, a ponto
de se perder a linguagem, como acontece no conto “O imortal”. O excesso de
conhecimento, o conhecimento infinito, é um embrutecimento, pois, ao longo do
tempo, as certezas se anulam, até que nada pode ser considerado verdadeiro.
Todos os atos do homem imortal o indiferentes, estão perdidos entre
“infatigáveis espelhos” (OC I, 593). Seu destino é insignificante.
A Palavra é sagrada também por conceder a morte, o olvido. Conhecê-la é
prescindir da existência. É abrir o da individualidade e da temporalidade a ela
inerentes. É participar do eterno.
2.2
O nada
A questão do nada remete sempre ao niilismo nietzschiano. Dentro de um
trabalho sobre Borges, a referência torna-se ainda mais evidente, já que o escritor
argentino tanto reverenciava o pensador alemão. No contexto do niilismo, o nada
tem caráter pejorativo, é um envenenamento da alma que se torna totalmente
apática à vida. Na obra de Borges, ao contrário, o nada terá, em determinados
momentos, um caráter positivo, significando a pura potência, a multiplicação das
possibilidades.
Em dois textos, Borges relaciona o nada à ausência de tempo. São eles “De
alguém a ninguém” e Everything and nothing”. Em ambos, a negatividade
representa a potência total, a infinidade de possibilidades ou a ausência de limites.
Em outros textos, de maneira menos evidente, a eternidade terá a ausência como
atributo (a ausência da palavra, do sujeito, etc.).
Em “De alguém a ninguém”, Borges começa indicando que, no início da
Escritura, Deus é descrito como um ser concreto, dotado de características
humanas: é definitivamente um Alguém. Elohim, o Deus, é concreto e chama-se
Jeová. Logo nos primeiros textos percebemos essa concretude, quando lemos que
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Deus caminha na brisa do dia, arrepende-se de ter criado o homem, declara-se
ciumento ou confessa a própria ira.
Mais tarde, querendo caracterizar Deus, os teólogos O definem como
onipotente, onipresente e onisciente, adjetivos que, segundo Borges, transformam-
nO em “um respeitável caos de superlativos inimagináveis” (OC II, 126).
Borges aponta que tais nomenclaturas limitam a divindade e que, como
afirma o oculto autor de Corpus Dionysiacum, “a Deus não convém nenhum
predicado afirmativo” (OC II, 127). Não podemos afirmar nada de Deus: d´Ele
podemos negar. A verdadeira teologia, como pensou Schopenhauer, não possuiria
conteúdo. Seria literalmente uma exploração do vazio.
Para Borges, conceber Deus como nada é decorrência do sentimento de que
ser nada é mais que ser alguém. Ser alguém é escolher e quem escolhe perde a
infinita gama de possibilidades. O nada primordial do creatio ex nihilo seria o
abismo em que tiveram origem os arquétipos e mais tarde os seres concretos. A
eternidade que precedeu o tempo, o qual surgiria com a criação do universo. O
nada é a plena possibilidade, a pura potência, a ausência de definição.
Cabe aqui uma observação: quando a tradição de misturar ciência e
misticismo teve seu fim, com Kepler e Newton, as ciências exatas se fecharam,
tornando-se mais compartimentalizadas, enquanto a metafísica se tornou cada vez
mais metafórica, abrindo mão dos recursos lógicos e matemáticos que outrora
utilizava. Muitas das imagens por ela forjadas entraram no âmbito da literatura e
foram se transformando em outras, transparecendo no próprio fazer técnico da arte
literária, isto é, na forma e no estilo dos escritores. Isto, unido ao fato de o
pensamento metafísico, a partir do século XVII, tornar-se cada vez mais
pessimista, acabou substituindo a antiga correspondência entre “eternidade e
tudo” pela ligação entre “eternidade e nada”. À medida que a eternidade deixa de
ser stica, ela se esvazia e deixa transparecer sua impossibilidade em termos
negativos. em Pensamentos de Pascal, lemos sua opinião de que o infinito é
aniquilado na presença do infinito e se torna pura ausência.
Borges considera que esse processo de “magnificação ao nada” (OC II,
127) não é aleatório, sendo comum a todos os cultos. Mesmo o culto a
Shakespeare deve-se ao fato de ele, sendo intimamente nada, ter sido todos os
homens. Borges explica esse processo nas seguintes palavras: “Ser uma coisa é
inexoravelmente não ser todas as outras; a confusa intuição dessa verdade induziu
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os homens a imaginar que não ser é mais que ser algo e que, de certo modo, é ser
tudo” (OC II, 128).
Aqui também, vemos a já apontada contraposição entre o sujeito e o eterno:
ser um eu é ter limites, é estar irremediavelmente destacado do todo.
A eternidade é impossível para o sujeito: ser tudo é ser nada, é não ser. Na
palestra “O tempo” (OC IV, 231), Borges afirma que se todo o ser nos fosse dado,
seríamos aniquilados. Ele vai além e diz que é justamente para isso que o tempo
existe: o tempo é um dom da eternidade que permite experimentar sucessivamente
o que, apresentado de uma vez, seria nosso fim. “A totalidade do ser é
impossível para nós. Assim, dão-nos tudo, mas de forma gradual” (OC IV, 234).
As coisas só existem, o cognoscíveis em sua individualidade, na medida em
que destacam-se, através da sucessividade, do eterno. A eternidade é o nada,
transforma-nos em nada.
Sendo eterno, Deus não pode ter atributos que O limitem e que O tornem
cognoscível ou reconhecível ao homem. Todos os Seus atributos são
inconcebíveis para nós: devemos nossa existência à esta impossibilidade. Ele não
é bom, é muito mais que bom; não é justo, mas infinitamente justo. Por serem
infinitas, Suas características anulam-se umas às outras, o que faz dEle um ser
essencialmente vazio.
Em “Everything and nothing”, Borges trabalha mais de perto a questão da
personalidade. Ele relata o drama de um homem que decide ser ator para simular
que é alguém, que é essencialmente ninguém. Sua felicidade, então, passa a
durar o tempo de suas apresentações, pois, fora das personagens que interpretava,
voltava instantaneamente a ser nada. Ao fim da vida, decide viver a personagem
de um empresário aposentado e quando, em face da morte, percebe-se diante de
Deus, confessa, angustiado, seu desejo de ser um eu. Sua vontade, entretanto, é
arrebatada pela resposta divina, que também Ele, também Deus, é ninguém: “Eu
tampouco o sou; sonhei o mundo como sonhaste tua obra, meu Shakespeare, e
entre as formas de meu sonho estás tu, que como eu és muitos e ninguém” (OC II,
202).
Novamente aqui, a figura de Shakespeare é trazida à tona para a
representação do Ninguém que é Todos, do ser vazio e ilimitado que é plena
possibilidade. Por conhecer tudo, por estar tão perto do nada, Shakespeare
assemelha-se a Deus, à potência total do vazio. O todo é dado ao seu
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conhecimento porque, sendo ninguém, seu sujeito não corre o risco de se
desintegrar diante da revelação. Ele conhece o nada porque é nada. Conhece o
todo porque faz parte dele.
A questão da subjetividade em Borges está ligada à eternidade de duas
maneiras.
Primeiramente, como o eu é possível no tempo, na sucessividade, sendo
aniquilado por qualquer forma da totalidade e, como o tempo é uma dádiva da
eternidade, o eu é uma dádiva do eterno, é como um presente de Deus para que
possamos experimentar a diversidade do mundo.
Em segundo lugar, o eu é possível através da memória, que o tempo e
o sujeito são como o rio de Heráclito, estando em constante e eterno fluxo. A
memória é, para Borges, uma espécie de eternidade, em que confluem presente,
passado e futuro; é a permanência no fugaz que possibilita que o eu seja sempre o
mesmo, ainda que esteja sempre mudando.
Ambas as questões serão analisadas em maior detalhe quando falarmos do
Eu.
2.3
A cegueira
Sabemos que Borges herdou de seu pai a terrível condição que, a partir de
1955, impossibilitou-o de ler e escrever
3
. Coincidentemente, no mesmo ano,
Borges aceitou o cargo de diretor da Biblioteca Nacional e passou a trabalhar
rodeado por novecentos mil volumes, dos quais “mal conseguia decifrar as capas”
(OC III, 313). Por conta deste episódio, ele escreveu o famoso “Poema dos dons”:
“Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite / Esta declaração da maestria / De Deus,
que com magnífica ironia / Deu-me a um tempo os livros e a noite(OC II,
313).
No ensaio “A cegueira”, Borges descreve o mundo do cego como um
mundo incômodo de cores indefinidas e de neblina e diz que a cegueira é um
3
A cegueira se adiantou em conseqüência de um acidente sofrido por Borges na véspera do Natal
de 1938, após a morte de seu pai, que lhe causou uma septicimia e quase lhe custou a vida. O
acidente é narrado no conto “O sul”.
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modo de vida que não é inteiramente feliz” (OC III, 321). Mas logo acrescenta
“Segundo a sentença socrática, quem pode conhecer-se mais que um cego?” e
“Para a tarefa do artista, a cegueira o é de todo uma desgraça: pode ser um
instrumento” (OC III, 322).
Então ele continua para recordar diversos mestres da literatura que foram
cegos, como Milton e Joyce, bem como a sugestão de Oscar Wilde de que a
intuição de que Homero teria sido cego serviria como uma lembrança de que a
poesia não deve ser visual, mas auditiva.
Também agradece às dádivas que sua condição lhe trouxe. Foi a cegueira
que lhe impôs a necessidade de ensinar literatura e de transmitir aos outros o amor
que sentia pelos livros que havia lido enquanto podia ver. A partir de então,
passou a estudar o anglo-saxão, o escandinavo e a literatura medieval, escreveu
diversos livros que não teria escrito e recebeu o carinho e a assistência dos
amigos. No prólogo de A rosa profunda”, ele conclui: “A cegueira é uma
clausura, mas é também uma libertação, uma solidão propícia às invenções, uma
chave e uma álgebra” (OC III, 90).
No poema “Elogio da sombra” (1969), Borges vai mais longe em sua
defesa:
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade
(OC II, 419).
Esta é uma das poucas ocasiões em que Borges estabelece uma relação
direta entre cegueira e eternidade, mas esta relação aparecerá implícita e muitos
textos. A cegueira se parece à eternidade porque elimina a multiplicidade, bem
como as evidências da passagem do tempo. Ainda em “Elogio da sombra”, Borges
escreve “as mulheres o aquilo que foram tantos anos” (OC II, 419). Fora da
sucessividade e alheio à mudança, o cego pode pensar, pode seguir as instruções
de Parmênides, o inventor da eternidade: “Não siga os olhos estúpidos, não siga o
ouvido ruidoso ou a língua, mas examine tudo somente com a força do
pensamento” (Souza, 2000a, 132).
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O que há de comum entre cegueira e eternidade, portanto, é a aparente
unidade que a ausência da visão impõe ao mundo; não ver é não ver as mudanças,
os sinais do tempo. Não queremos afirmar que o elogio da cegueira, como
amenização da multiplicidade e simuladora da eternidade, seja uma garantia de
que Borges desejasse ou tenha desejado o eterno.
Se a relação de Borges com a cegueira é ambígua, é tão ambígua quanto sua
relação com a eternidade. Em “História da eternidade”, ele considera o conceito
de eternidade “um jogo ou uma fatigada esperança” (OC I 387) e compara o
mundo das idéias platônico a um “imóvel e terrível museu” (OC I, 390). Em outro
momento, ele afirma que a eternidade está tão fora do mundo dos homens que não
devemos pensar nela e que devemos focar na questão do tempo, que é o nosso
conflito e cuja resolução nos mostraria quem somos (OC IV, 240). O labirinto dos
homens, o tempo, a multiplicidade, é o que existe, é a nossa garantia de existência
e devemos louvá-lo.
Sob este aspecto, a cegueira torna-se um sofrimento, pois torna invisível a
diversidade, a multiplicidade de cores e formas que o homem deve aprender a
amar. Em “O cego” (1972): “(...) Sou o lento / prisioneiro de um tempo sonolento
/ Que o marca sua aurora nem seu ocaso. / É noite. Não outros. / Com o
verso / Devo lavrar meu insípido universo” (OC III, 115).
No entanto, no prólogo à “História da eternidade”, Borges corrige o horror
ao eterno:
Não sei como pude comparar a ´imóveis peças de muse as formas de Platão e
como o entendi, lendo Schopenhauer e Erígena, que estas são vivas, poderosas e
orgânicas. O movimento, ocupação de diferentes lugares em diferentes momentos,
é inconcebível sem tempo; também o é a imobilidade, ocupação de um mesmo
lugar em diferentes momentos de tempo. Como pude não sentir que a eternidade,
almejada com amor por tantos poetas, é um artifício esplêndido que nos livra,
mesmo que de maneira fugaz, da intolerável opressão da sucessividade? (OC I,
385).
A eternidade aqui é um “artifício esplêndido”, uma resposta, ainda que
limitada, para o terrível conflito da sucessividade temporal. E, se é almejada pelos
poetas, é porque são eles que sabem entrevê-la, é através da literatura que ela se
manifesta, ainda que de modo fugaz.
Em outros textos, como o poema “Baltasar Gracián” (1964), Borges
também exalta a superioridade da eternidade com relação ao labirinto:
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“Labirintos, antíteses, emblemas, / Trabalhosa e fria quinquilharia / Foi para este
jesuíta a poesia, / Reduzida por ele a estratagemas.” E depois: “Que sentiria ao
ver-se face a face / Com os Arquétipos e os Esplendores? / Talvez chorasse, ao
dizer-se os pendores: / sombras e erros eu sorvi rapace” (OC II, 282). No
mesmo poema, a visão dos Arquétipos relaciona-se à cegueira: Que sucedeu
quando o Sol implacável, / A Verdade de Deus, fogo lançou? / A luz de Deus,
quem sabe, é que o cegou / Na metade da glória interminável” (OC II, 283).
Se, por um lado, a cegueira se assemelha à eternidade, a contemplação da
eternidade implica a cegueira. O eterno é complexo demais para a visão humana,
aniquila qualquer possibilidade de visão.
Em “Elogio da sombra” (1969), Borges louva a escuridão e diz, das coisas
que conheceu: “Breve posso esquecê-las. Chego a meu centro, / a minha álgebra e
minha chave, / a meu espelho. / Breve saberei quem sou” (OC II, 419). Mas, em
um poema posterior, “Um cego”, ele lamenta não poder ver seu rosto ao espelho:
“Penso que se me visse a face clara / Saberia quem sou na tarde rara” (OC III,
116). A cegueira é boa porque aproxima o homem do centro; é ruim porque
afasta-o do labirinto. Aproximar-se do eterno é perder o tempo, perder o sujeito;
essas perdas são, simultaneamente, castigo e alívio.
Paradoxalmente, se a cegueira aproxima o homem da eternidade, também
aproxima-o da questão do tempo, na medida em que afasta-o da observação do
que está inserido no espaço, fazendo-o atentar apenas para a sucessividade de sua
própria consciência. Em determinados momentos, Borges considera o espaço uma
questão menor. Ele argumenta que um universo sem espaço, por exemplo, um
universo de consciências e de música, pode ser concebido, enquanto um universo
sem tempo é inimaginável (OC IV, 231). O que o cego contempla, o que lhe
parece mais real, é o fluxo da consciência e a sucessão que implica. Este
movimento é mais lento e mais sutil do que as mudanças do mundo visível, mas
não desvencilha o homem do tempo. Talvez o aproxime.
Em “A penúltima versão da realidade”, Borges escreve:
Imaginemos que todo o gênero humano se abastecesse de realidades mediante a
audição e o olfato. Imaginemos anuladas assim as percepções oculares, táteis e
gustativas e o espaço que estas definem. Imaginemos também – seqüência lógica
uma percepção mais afinada do que a que os outros sentidos registram. A
humanidade – a nosso ver tão assombrada por essa catástrofe – continuaria urdindo
sua história. A humanidade se esqueceria de que houve espaço. A vida, em sua não
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opressiva cegueira, em sua incorporeidade, seria tão apaixonada e precisa quanto a
nossa. Não quero dizer que essa humanidade hipotética (não menos plena de
vontades, de ternuras, de imprevistos) entraria na casca de noz proverbial: afirmo
que estaria fora e ausente de todo espaço (OCI, 212).
O universo visível, segundo o autor, não é fundamental para a vida. É
supérfluo, podemos imaginar a vida sem ele. A única condição de existência é o
tempo, o universo sem tempo é inconcebível. A cegueira é um dom na medida em
que afasta o homem do tempo e uma desgraça na medida em que torna-o ainda
mais presente.
2.4
O ponto, o círculo, o objeto
Acreditamos que o exemplo mais interessante de um ponto exterior ao
tempo, na obra de Borges, esteja em “O Aleph”.
Não por acaso, o conto tem início com uma morte. Na manhã em que morre
Beatriz Viterbo, o narrador, Borges, lamenta a renovação de um anúncio de
cigarros na praça Constitución, pois percebe que “o incessante e vasto universo
se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita” (OC I,
686). Como em outros casos, já recordados aqui, esta agonia relacionada à morte e
ao esquecimento será como um conflito que terá fim com a descoberta de algo que
não cede à passagem do tempo (no caso, o Aleph).
Borges então decide que “Mudará o universo mas eu não” e passa a visitar a
família de Beatriz todos os anos, na data do seu aniversário, para manter sua
memória viva. encontra sempre seu pai e seu primo-irmão, Carlos Argentino
Daneri. Seus encontros tornam-se cada vez mais demorados e no décimo segundo
encontro Borges pede a Daneri que declame um poema em que está trabalhando.
O poema entitula-se “A terra” e quer ser uma descrição minuciosa do
planeta. Como não poderia deixar de ser, o poema é patético e Borges percebe que
“o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na invenção de razões para que a
poesia fosse admirável; naturalmente, esse ulterior trabalho modificava a obra
para ele, mas não para outros” (OC I, 689).
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A incompetência de Daneri representa, mais do que um motivo para ironizar
ou imprimir humor ao texto, a própria insuficiência da linguagem para a
representação de algo que se dá a um só tempo, como a Terra. Seu texto é patético
pois, afora sua mediocridade como poeta, o próprio empreendimento que se
propõe é ingênuo.
Alguns meses depois de ter ligado para Borges para, grosseiramente,
queixar-se de que este se recusara a pedir ao famoso crítico Álvaro Melián que
prefaciasse sua obra, Daneri o interpela pedindo ajuda contra os donos da
confeitaria contígua à sua casa, que a querem demolir para expandir seu
estabelecimento.
Borges imediatamente toma o partido de Daneri, ressentido com a hipótese
da demolição de uma casa que lhe fora tão preciosa: completados os quarenta
anos, qualquer mudança é um símbolo detestável da passagem do tempo” (OC I,
692). Mas algo curioso acontece que desvia Borges desta primeira preocupação:
Daneri confessa que a casa era essencial para o término de seu poema, que,
oculto no porão, havia um Aleph.
Borges sai imediatamente para ver, por si mesmo, o que Daneri afirmava ser
“o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos
os ângulos” (OC I, 693).
À medida que vai se aproximando da casa, vai concluindo que a única
explicação possível para o que acabara de ouvir era que Daneri era um louco e que
imaginara tudo. Como dar por verdadeira a afirmação da existência de um ponto
que contém todos os outros? Mas, para seu espanto, quando deita no chão do
porão e olha, conforme as instruções de Daneri, para o décimo nono degrau da
escada, ele o Aleph: “Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos
ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o
mesmo ponto, sem superposição e sem transparência” (OC I, 695). O que
contemplou, foi a totalidade dos eventos unidos pela ausência de tempo, não
inseridos em uma seqüência temporal que os fragmentasse.
Antes de tentar descrever o que experimentou, ele avisa: “O que viram meus
olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é” (OC I,
695). Mais uma vez aqui, é apontado o limite da linguagem na expressão do todo.
Ainda assim, ele decide registrar algo. Citaremos aqui parte deste trecho para
comentá-lo a seguir:
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Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de quase
intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse
movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava.
O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico
estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos)
era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi
o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada
teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres),
vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho (...)vi o
Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no
Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei,
porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural cujo nome
usurpam os homens, mas que nenhum deles olhou: o inconcebível universo (OCI,
695-6).
Não há, neste relato, uma imagem que não esteja inserida no instante da
observação, isto é: Borges não vê, no Aleph, imagens do passado ou do futuro.
Todas as visões estão no presente e o espanto vem do fato de que são percebidas
simultaneamente. Portanto, não podemos supor que os momentos convergem no
Aleph, mas apenas que ele contém todo o espaço ou que é uma parte que contém
todas as partes, uma parte que é o todo.
O desafio aqui é, novamente, o da relação entre as partes e o todo: a
multiplicidade se justifica ontologicamente se cada uma de suas partesou ao
menos uma de suas partes contiver o todo. Se admitirmos que cada coisa é
essencialmente diversa de cada uma das outras, não podemos postular que
possuam uma origem comum, então o universo torna-se injustificável. A origem
comum, o sentido do universo, depende da unidade das coisas.
Devemos observar que o houve, neste caso, a desintegração do sujeito,
que poderíamos prever após a contemplação do Aleph. O Aleph não é a verdade
do universo, apenas sobrepõe tudo o que está no presente. Não fala do passado ou
do futuro. Ao contrário da Roda, contemplada por Tzinacan em A Escrita do
Deus, que exibia “todas as coisas que serão, que são e que foram” e, mostrando a
infinita rede de causas e efeitos, permitia “entender tudo, interminavelmente” (OC
I, 666), o Aleph não explica nada, apenas mostra. Ao longo do texto citado acima,
lemos, o tempo todo “vi (...), vi (...)”. O narrador apenas vê. O Aleph mostra
também que tudo o que há existe em um pequeno ponto do que há.
O eterno aqui o é um ponto alheio à linha seqüencial do tempo: é o
instante. Está inserido no tempo, mas é como uma dimensão paralela que permite
a observação de todo esse momento do tempo como se estivesse fora do tempo.
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No tempo, as coisas são vistas de maneira seqüencial: primeiro isto, depois aquilo.
No Aleph tudo é visto ao mesmo tempo; é como a contemplação do tempo em
estado puro, um presente pleno, sem a sucessividade das mudanças espaciais.
No “Pós-escrito de primeiro de março de 1943”, Borges tenta conjeturar a
natureza do Aleph. Ele inicia explicando que o Aleph é a primeira letra do
alfabeto da língua sagrada que, para a Cabala, significa En Soph ou “a ilimitada e
pura divindade” (OC I, 697). Também é figurada por um homem que aponta para
o céu e para a terra, indicando que o mundo imanente é o espelho do
transcendente. Uma última interpretação é a do Grundzüge der Mengenlehre, o
livro alemão sobre a teoria dos conjuntos, que considera o Aleph o símbolo dos
números transfinitos, nos quais qualquer das partes é tão extensa quanto o todo.
Como já dissemos, a questão da eternidade passa necessariamente pela da
unidade. Se, como Borges especula na palestra “O tempo”, o tempo é um dom da
eternidade, tudo o que está inserido no tempo tem também sua origem no eterno.
Então cada ponto da realidade aponta para a eternidade: a eternidade pode ser uma
espécie de ponto para o qual convergem todos os pontos, pode ser um Aleph.
A eternidade como ponto é discutida no livro Pinpoint of eternity, de Peter
Salm. Ele afirma que o desejo de estar em contato com tudo ao mesmo tempo
pode ser interpretado como um aspecto do que Albert Camus denominava a
“demanda metafísica por unidade”. Ele considera ainda que a transcendência
temporal representada pela convergência de todos os momentos do tempo no
presente, pode ser parte mesmo do impulso criador.
Segundo Salm, a escolha do ponto como representação da eternidade do
instante surge com a abstração da geometria euclidiana que definiu o ponto como
o locus adimensional da interseção de linhas. Quinhentos anos mais tarde, Plotino
combinaria a ausência de dimensão do ponto central da esfera com a infinitude da
periferia para criar o símbolo de uma unidade que tudo encompassasse. Este
símbolo era uma série infinita de círculos concêntricos que, quanto mais distantes
do centro, a fonte primária e eterna de luz, menos luz possuíam, tendo de refletir a
luz dos círculos anteriores (Salm, 1986, 28). A partir de então, círculo, esfera e
ponto (ou centro) se tornaram figuras insuperáveis para a eternidade e o infinito
do universo.
Das figuras circulares que Borges usa para a representação da eternidade, já
citamos aqui a Roda contemplada por Tzinacan em A escrita do Deus”, que
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figurava a um tempo todas as coisas: o que foi, é e será. Em “A esfera de
Pascal”, Borges redige um ligeiro relato cronológico da representação de Deus e
do universo como esfera, dizendo que “Talvez a história universal seja a história
da vária entonação de algumas metáforas” (OC II, 15). Ele afirma que, ao longo
do tempo, o que antes representava uma segurança e uma revelação para os
homens, isto é, a consideração de que o universo era uma esfera cujo centro estava
em toda parte e a circunferência em nenhuma, foi se tornando umpesadelo. Esse
pessimismo se deu, segundo Borges, porque os homens perceberam que afirmar
que o centro da esfera estava em toda a parte era como dizer que não estava em
nenhuma; era afirmar que o homem estava solto no espaço absoluto, infinito,
preso em um terrível labirinto.
Similarmente, no conto “O Zahir, o objeto circular assume um aspecto
trágico. Como “O Aleph”, o conto é iniciado por uma morte, a de uma famosa
dama argentina, Teodelina Villar. Descrevendo a vida de Teodelina, o narrador
comenta que ela buscava o “absoluto no momentâneo” (OC I, 656). tentando
estabelecer uma regra para cada situação, por mínima que fosse. O desespero
interior que a perfeição de sua vida lhe causava, unido à perda de sua fortuna, que
tornaria sua arte do esnobismo impraticável, teriam sido as causas de sua morte.
Saindo do enterro da dama, o narrador caminha pelas ruas e, em uma das
esquinas, um armazém aberto em que três homens jogam truco. A imagem era
tão oposta à elegância de Teodelina que o narrador obriga-se a entrar. Ele pede
uma aguardente, paga e, de troco, recebe o Zahir. No primeiro parágrafo do conto,
o narrador explicara que o Zahir era, em Buenos Aires, uma moeda comum, de
vinte centavos. Mas algo o intriga neste Zahir em particular. Olhando-o, ele se
conta de que “não existe moeda que não seja símbolo das moedas que
resplandecem interminavelmente na história e na fábula” (OC I, 657).
Então ele inicia uma reflexão sobre o dinheiro:
Pensei que não existe nada menos material que o dinheiro, que qualquer moeda
(uma moeda de vinte centavos, digamos) é, a rigor, um repertório de futuros
possíveis. O dinheiro é abstrato, repeti, o dinheiro é tempo futuro. Pode ser uma
tarde nos arredores, pode ser música de Brahms, pode ser mapas, pode ser xadrez,
pode ser café, pode ser as palavras de Epicteto, que ensinam o desprezo pelo ouro;
é um Proteu mais versátil que o da ilha de Faros (OC I, 658).
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Vemos aqui que o conflito do objeto é também o da materialidade: como
afirmar que algo é material, se aponta para realidades abstratas, para
possibilidades futuras? Como podemos atribuir realidade a um objeto se não
podemos distingui-lo de outros objetos? Se cada Zahir é todas as moedas que
existiram, reais ou fantásticas, então o Zahir é um objeto eterno, exterior ao
tempo, que não existe em sua particularidade.
O Zahir passa a inquietá-lo cada vez mais, a que ele decide perdê-lo.
Então ele sai, dá algumas voltas e, em uma esquina distante, compra com a moeda
uma aguardente, voltando para casa satisfeito.
Depois disso, alguns meses de trabalho em um conto fantástico o distraem
da imagem da moeda e, por um tempo, ele pensa ter se libertado dela. Mas logo
percebe-se incapaz de esquecê-la... Ele comenta: “Noites houve em que me
acreditei tão seguro de poder esquecê-la que voluntariamente a recordava. O certo
é que abusei desses momentos; dar-lhes início resultava mais fácil que lhes dar
fim” (OC I, 659).
Um livro que ele encontra por acaso em uma livraria lhe revela o mal que o
estava afligindo: explica que Zahir, em árabe, significa evidente ou visível e, neste
sentido, é um dos noventa e nove nomes de Deus; explica, ainda, que a plebe
muçulmana chama-o de “os seres ou coisas que têm a terrível virtude de ser
inolvidáveis e cuja imagem acaba por enlouquecer as pessoas” (OC I, 660). De
fato, a lembrança do Zahir domina a mente do narrador a ponto de torná-lo
insensível a todas as coisas. Mesmo a morte de Teodelina perde o sentido para ele.
Ele vai desenvolvendo cada vez mais a imagem do Zahir, até poder ver os
dois lados da moeda ao mesmo tempo. Prevendo sua loucura, seu esquecimento
de si mesmo, ele diz: “Qualificar de terrível esse futuro é uma falácia, já que
nenhuma de suas circunstâncias terá significado para mim” (OC I, 662). Ele
considera que cada objeto do mundo contém todo o mundo, já que “não existe
fato, por humilde que seja, que não implique a história universal(OC I, 661). e
que compreender um objeto é compreender a nós mesmos, o universo, Deus. Ele
chega a expressar certo alívio, dizendo: “de milhares de aparências, passarei a
uma” (OC I, 662).
Como em “A escrita do Deus”, a contemplação do sagrado aniquila o
sujeito. Mas o sagrado aqui é um objeto material. O que anula o sujeito, neste
caso, é a percepção de que a materialidade deste objeto concreto é questionável, já
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que, em primeiro lugar, o nada que possa comprovar que ele é
essencialmente diverso de todas as outras moedas que já existiram e, em segundo
lugar, ele não é nada em si, porque é pura potência ou tempo futuro, como afirma
Borges.
Em diversos momentos, Borges expressa sua perplexidade com a ausência
de critérios para afirmar que objetos da mesma classe sejam diferentes entre si.
Em “O rouxinol de Keats”, ele diz concordar com Schopenhauer quando este
observa que:
Perguntamo-nos com sinceridade se a andorinha deste verão é outra que não a do
primeiro e se realmente o milagre de tirar algo do nada ocorreu milhões de vezes
entre as duas para ser fraudado outras tantas pela aniquilação absoluta. Quem me
ouvir assegurar que este gato aqui brincando é o mesmo que saltitava e traquinava
neste lugar há trezentos anos pensará de mim o que quiser, mas loucura mais
estranha é imaginar que é fundamentalmente outro (OC II, 105).
A loucura de Borges em “O Zahir”, deriva da percepção de que ele tem
diante de si um objeto que, por um lado, é percebido pelos sentidos, está próximo,
e, por outro, está fora do tempo, é irreal. A existência do Zahir é impossível,
invalida a realidade. Todos os zahir estão no Zahir e, com eles, todos os eventos
que giraram em torno deles, a história do universo. Pensar nele, é pensar em tudo,
é compreender tudo. Sua imagem é suficiente, tornando desnecessárias todas as
outras.
O Zahir é visível ou evidente porque carrega em si todos os outros objetos.
Ser visível é, aqui, o contrário de ser real: é tornar visível o que não se manifesta
de maneira explícita, isto é, que todos os objetos estão em cada objeto. O Zahir
não oculta a terrível verdade de que os objetos que julgamos materiais são tão
irreais quanto os da imaginação, que a materialidade não oferece suporte para a
realidade e que é apenas mais um dos paradoxos do tempo. A materialidade não
prende os objetos no tempo, pelo contrário: por trás da moeda, o objeto que está
inserido no tempo, está sua face eterna, seu verdadeiro significado que corrompe
sua realidade e a torna incompreensível a ponto de enlouquecer quem a veja.
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38
2.5
Os animais
Em “A penúltima versão da realidade”, Borges analisa o texto de Francisco
Luis Bernárdez
4
sobre o livro The manhood of humanity, do filósofo americano
Alfred Korzybski. Ele inicia transcrevendo o texto de Bernárdez que quer resumir
a filosofia de Korzybski: para este, a vida teria três dimensões (comprimento,
largura e profundidade); a primeira corresponderia à vida vegetal, a segunda à
animal e a terceira à humana; o vegetal vive em longitude, os animais em latitude
e os homens em profundidade.
Borges inicia sua crítica a tal filosofia assinalando que todas as sabedorias
que se fundam sobre uma comodidade classificatória são suspeitas e não bastam
para dar conta da complexidade do real: o real não é classificável; as coisas se
interpenetram a ponto de ser impossível classificá-las. Depois ele volta ao texto de
Bernárdez, no qual este explica a opinião de Korzybski de que, enquanto a
diferença substantiva entre a vida vegetal e a animal reside na noção de espaço
(que os animais possuem e as plantas não), a diferença entre o animal e o homem
reside na noção de tempo, que só o homem possui.
Esta afirmação implicaria o que muitos, como Steiner, Schopenhauer e
Mauthner, teriam dito anteriormente, que “os animais estão na pura atualidade
ou eternidade e fora do tempo” (OC I, 210). Por serem desprovidos da noção de
sujeito, os animais estão em comunhão com o todo e cada animal é todos os
outros animais de sua espécie, não havendo distinção fundamental entre o
cachorro que agora vive e o que viveu há milhares de anos.
Três animais, na obra de Borges, merecem atenção especial: o tigre, o
rouxinol e o gato.
vimos que, em “A escrita do Deus”, o jaguar é um dos atributos divinos e
o sentido do universo é revelado a Tzinacan através da contemplação de uma
Roda eterna que lhe revelou a escrita do tigre. Nas manchas do jaguar, ele o
sentido do universo e a impressão que as palavras têm sobre ele é tão forte que
aniquila sua existência como sujeito.
4
Poeta argentino do século XX.
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39
Na palestra “A cegueira”, Borges recorda que, quando criança, havia duas
jaulas no zoológico diante das quais se demorava: a do tigre e a do leopardo. Ele
diz que “o ouro e o negro” (OC III, 311) do tigre o fascinavam e que era muito
grato ao fato de o amarelo ser uma das únicas cores que ainda podia ver.
No poema “O ouro dos tigres” (1972), ele conta como, depois daqueles
momentos no zoológico, em que contemplava o tigre verdadeiro atrás das barras,
vieram outros tigres, os da literatura:
Até a hora do ocaso amarelo
Quantas vezes terei contemplado
O poderoso tigre de Bengala
Ir e vir pelo predestinado caminho
Por detrás das barras de ferro,
Sem suspeitar que eram seu cárcere.
Depois viriam outros tigres,
O tigre de fogo de Blake;
Depois viriam outros ouros,
O metal amoroso que era Zeus,
O anel que a cada nove noites
Engendra nove anéis e estes, nove,
E não há um fim.
Com os anos foram me deixando
As outras belas cores
E agora só me restam
A vaga luz, a inextrincável sombra
E o ouro do princípio.
Oh, poentes, oh, tigres, oh, fulgores
Do mito e da épica,
Oh, um ouro mais precioso, teus cabelos
Que estas mãos almejam
(OC II, 555).
Observamos neste poema que o tigre de Borges não é apenas o tigre real de
sua infância, que o encantava de trás das grades, sem noção de tempo ou de que
estava preso. É também o tigre simbólico, único, exterior ao tempo, cuja
contemplação significa o contato com uma realidade superior. Este tigre
inalcançável, o tigre poético que, de certa forma, encompassa todos os tigres, é
um “ouro mais precioso”, é um tigre eterno que contém toda a realidade de sua
espécie. Este tigre está distante dos que Borges contemplava em sua infância, é
irreal e, no entanto, Borges quer tocá-lo com suas mãos, quer vislumbrá-lo sem
deixar de ser Borges, ainda que saiba que isto é impossível.
Em “O tigre”, vemos que Borges não faz distinção entre o tigre real e o
simbólico. Assim como todos os tigres reais são o mesmo, eles não se distinguem
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dos tigres da literatura. Todos são como o mesmo animal, o tigre platônico que os
define. Como o Zahir, de que falamos previamente, o tigre é uma figura cuja
repetição anula o tempo:
Ia e vinha, delicado e fatal, repleto de infinita energia, do outro lado das firmes
barras e todos nós o olhávamos. Era o tigre dessa manhã, em Palermo, e o tigre do
Oriente e o tigre de Blake e de Hugo e de Shere Khan, e os tigres que foram e que
serão e também o tigre arquetípico, já que o indivíduo, em seu caso, é toda a
espécie. Pensamos que era sanguinário e belo. Norah, uma menina, disse: ‘Está
feito para o amor’ (OC III, 190).
Por não ter consciência de si mesmo, o tigre não é um indivíduo, não possui
sujeito e, portanto, equivale à espécie. Cada tigre é o tigre platônico, que é o tigre
das literaturas. Não distinção essencial entre eles e, portanto, como afirmou
Schopenhauer, é loucura admitir que sejam fundamentalmente distintos.
Apenas quando Borges quer chamar atenção para a insuficiência da
linguagem, ele contrapõe o tigre real ao ideal. Em “O outro tigre” (1960), lemos:
Corre a tarde em minha alma e pondero
Que o tigre vocativo de meu verso
É um tigre de símbolos e de sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias de enciclopédia,
Não o tigre fatal, jóia nefasta
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
Sua rotina de amor, de ócio e de morte.
A esse tigre dos símbolos opus
O verdadeiro, o de sangue quente,
O que dizima uma tribo de búfalos
E hoje, 3 de agosto de 59,
Estende sobre o prado uma pausada
Sombra, mas só o fato de nomeá-lo
E de conjeturar sua circunstância
Torna-o ficção da arte e não criatura
Animada das que andam pela terra
(OC II, 225).
O tigre real, que está fora do poema, na eternidade de sua condição de
animal sem individualidade, não pode ser expresso pela linguagem sucessiva do
poema, que apenas deixa ver um animal fictício e irreal. Borges sabe que o tigre
que es“além dessas mitologias” é indizível, mas confessa que persevera “Em
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procurar pelo tempo da tarde / O outro tigre, o que não está no verso” (OC II,
224).
Se, por um lado, o animal está essencialmente fora da linguagem, por outro,
a tentativa de dizê-lo é, em si, motor para a construção literária. O tigre é
indizível, mas é este fato que estimula a busca pela melhor maneira de dizê-lo. A
literatura é o desafio de dizer o que não pode ser dito. Isto fica mais evidente
quando Borges fala do rouxinol, que para ele, em alguns momentos, é uma
figuração da inspiração poética: contemplar a eternidade do rouxinol é a condição
para escrever poesia.
Em “O rouxinol de Keats”, Borges afirma que o poeta inglês teria composto
sua “Ode a um rouxinol” depois de ouvir “o eterno rouxinol de Ovídio e de
Shakespeare” (OC II, 104). Ele critica Sidney Colvin, Bridges, F. R. Leavis,
Garrod e Amy Lowell por defenderem que Keats, ao compor o poema, incorreu
no erro básico de confundir o indivíduo com a espécie: “Cinco pareceres de cinco
críticos atuais e passados recolhi (...), mas nego a oposição que (...) se postula
entre o efêmero rouxinol dessa noite e o rouxinol genérico” (OC II, 105). Ele diz
que afirmar tal absurdo é conseqüência de uma limitação da mente britânica, que
seria essencialmente aristotélica, ou nominalista, considerando as classes meras
generalizações: para Borges, se não diferença fundamental entre os indivíduos,
se não há individualidade, cada indivíduo equivale à espécie.
Segundo Borges, a chave da questão do rouxinol é oferecida no segundo
volume de O mundo como vontade e representação, quando Schopenhauer
insinua que, ainda que pareça loucura dizer que o gato que tinha à sua frente era o
mesmo que brincava trezentos anos no mesmo lugar, loucura maior é crer que
o gato era essencialmente outro. Ele diz que, não tendo lido nada de filosofia e
desconhecendo mesmo o sentido da palavra ‘arquétipo’, Keats chegara ao
rouxinol platônico por intuição. Assim, Borges parece querer afirmar que não é
necessário ter muita cultura para que se chegue à verdade fundamental por trás
dos indivíduos, isto é, de que são o mesmo, de que são o todo. Basta ter olhos para
ver que o diferença entre um rouxinol e outro. É uma verdade simples e
irrefutável. O rouxinol eterno não está em um outro mundo, está em cada rouxinol
do nosso mundo.
A intuição de uma figura eterna garantiria a eternidade do próprio Keats,
segundo Borges. Como se a contemplação de um objeto eterno, tornando
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incoerente a passagem do tempo, o libertasse de suas amarras. No poema “A John
Keats” (1972), Borges escreve: “(...) Oh, sucessivo / E arrebatado Keats, que o
tempo cega, / O alto rouxinol e a urna grega / Serão tua eternidade, oh, fugitivo. /
Foste o fogo. Na pânica memória / Hoje não és as cinzas. És a glória” (OC II,
507).
Borges quase sempre invocará a figura de um animal por conta de sua
ausência de individualidade e conseqüentes idealidade e eternidade. Em “A um
gato” (1972), podemos verificar: “Teu dorso condescende à morosa / Carícia de
minha mão. Sem um ruído, / Da eternidade que ora é olvido, / Aceitaste o amor
dessa mão receosa. / Em outro tempo estás. Tu és o dono / De um espaço cerrado
como um sonho” (OC II, 551). O gato também aparecerá em “O sul”, sendo
acariciado por Dahlmann, que se assusta com o fato de o animal estar quase em
outra dimensão, no puro presente.
Compreendemos a esta altura, o que Borges mesmo chegou a afirmar em
entrevista, que, para ele, a questão do tempo está intimamente relacionada ao do
sujeito. O tempo existe na medida em que sua passagem é experimentada pelo
sujeito; a eternidade é uma espécie de olvido, pois implica a ausência de
individualidade. A eternidade é um todo que não permite fragmentação: é um todo
que se manifesta em si mesmo, para si mesmo, é, por definição, incognoscível,
pois sua cognoscibilidade exigiria um indivíduo observador. Um estudo mais
detalhado do eu na obra do autor, portanto, torna-se fundamental para uma
abordagem mais completa da eternidade e é o que queremos tentar a seguir.
Para encerrar a seção sobre animais, transcrevemos aqui, a tulo de
curiosidade, o micro relato Argumentum ornithologicum”, em que Borges
ironicamente infere a existência de Deus da observação de um bando de pássaros
no céu:
Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo, talvez
menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido seu número? O
problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido,
porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido,
porque ninguém conseguiu fazer a conta. Neste caso, vi menos de dez pássaros
(digamos) e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou
dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco,
etcétera. Esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus existe (OC II, 184).
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2.6
O eu e a memória
O imortal” é um dos contos em que a inserção do sujeito no tempo e sua
conseqüente mortalidade aparecem como condições fundamentais de sua
existência.
O texto tem início com a alegação de que a história que será relatada é um
manuscrito encontrado no último tomo da Ilíada de Pope, oferecido à princesa de
Lucinge pelo antiquário Joseph Cartaphilus, um homem misterioso que misturava
diversas línguas ao falar. A necessidade de fundamentar contos fantásticos em
documentos que o leitor jamais pode saber se existem de fato ou não, é uma das
características da escrita borgiana. Entraremos nesta questão no terceiro capítulo,
quando discutirmos a relação entre literatura fantástica e eternidade. Por ora,
diremos apenas que essa necessidade aponta para um ceticismo fundamental do
autor, a quem pouco importa a distinção entre realidade e fantasia.
O suposto manuscrito começa com a decisão do personagem-narrador,
Cartaphilus, de sair em busca da Cidade dos Imortais, no século III. Um cavaleiro
chega a ele uma noite, ferido e à beira da morte e lhe explica onde fica a Cidade.
Então ele sai com duzentos soldados e alguns mercenários para procurá-la.
No meio da viagem, no entanto, os soldados começam a enlouquecer e a
tramar a morte de Cartaphilus, então este foge com alguns soldados fiéis que
acabam se perdendo dele quando ele é atingido por uma flecha e começa a rodar à
deriva sobre seu cavalo. Por sorte, ele desperta ao lado de um nicho de pedras,
perto da Cidade, na comunidade dos trogloditas. Ele bebe a água escura de um rio
que está a sua frente e passa a delirar. A partir deste momento, não sabemos o que
é delírio e o que não é. Mais uma vez aqui, notamos a tendência borgiana de
misturar realidade e delírio, como se ambos, por serem igualmente injustificáveis,
tivessem o mesmo significado.
Recuperando-se, aos poucos, Cartaphilus mendiga e rouba para sobreviver
e, em pouco tempo, abandona os trogloditas para continuar sua busca. Chegando
finalmente ao muro da Cidade, ele descobre uma pequena entrada subterrânea
com nove portas que dão para labirintos e câmaras, praticamente indistinguíveis.
Depois de muito penar pelos inúmeros caminhos, ele encontra, em um dos
labirintos, uma subida para a Cidade e chega a um pátio circundado por um
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edifício. Era um estranho palácio, de arquitetura indecifrável, que lhe provocou
horror intelectual:
No palácio, que imperfeitamente explorei, a arquitetura carecia de fim. Abundavam
o corredor sem saída, a alta janela inalcançável, a aparatosa porta que dava para
uma cela ou para um poço, as inacreditáveis escadas inversas, com os degraus e a
balaustrada para baixo. (...) Esta Cidade’, pensei, ‘é tão horrível que sua mera
existência e perduração, embora no centro de um deserto secreto, contamina o
passado e o futuro e, de algum modo, compromete os astros (OC I, 598).
Neste trecho, observamos outra marca de Borges: a de criar realidades que,
por serem incompreensíveis, ainda que completamente ocultas, invalidam todo o
universo. Para ele, todas as partes do universo m de compartilhar da mesma
lógica para que o mesmo faça sentido. Um único objeto deslocado, que tenha
origem distinta, é o suficiente para invalidar todos os outros e para enlouquecer os
homens.
Apavorado, Cartaphilus sai às pressas do palácio e voluntariamente se
esquece do que viu. Do lado de fora, um dos trogloditas, que o seguira, ainda
estava ali. Ele sente-se feliz com o que parecia ter sido uma espera fiel, como a de
um cão, e decide ensiná-lo a reconhecer e a falar. Ele o batiza Argos, recordando-
se do cão de Ulisses. No entanto, logo percebe, com desgosto, que suas tentativas
de ensinar qualquer coisa ao troglodita eram inúteis. Ele parecia viver em outro
universo, sem memória e sem tempo, como o dos animais.
Anos depois, uma chuva revigorante cai sobre a tribo e todos os trogloditas
saem para apreciá-la. É então que o inesperado acontece: como que desperto pela
chuva, Argos balbucia: “Argos, cão de Ulisses”. Então o narrador pergunta a ele o
que sabe da Odisséia e ele responde: Muito pouco (...) Menos que o rapsodo
mais pobre. Já terão passado mil e cem anos desde que a inventei” (OC I, 601).
Então Argos explica tudo. Diz que os trogloditas são os Imortais e que o
palácio irracional teria sido o último símbolo a que eles condenscenderam. Depois
dele, teriam decidido viver somente em pensamento, na especulação pura. Por isso
se esqueceram de tudo e quase perderam toda a percepção do mundo físico. Eles
voltavam à vida quando algum estímulo, como uma chuva poderosa, os
despertava.
O narrador então percebe que ser imortal é insignificante e que todas as
criaturas com a exceção do homem o são, já que ignoram a morte. O terrível é
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saber-se imortal. Ao longo do tempo infinito de que estes homens dispõem, todas
as possibilidades se realizam e como se anulam. A cada homem ocorrem todas as
coisas; cada homem é todos os homens. Todos os atos do homem imortal tornam-
se indiferentes, pois são compensados por outros, infinitamente. O destino torna-
se insignificante:
A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por
sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não rosto
que não esteja por dissolver-se como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais,
tem o valor do irrecuperável e do inditoso. Entre os Imortais, ao contrário, cada ato
(e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem
princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão até a
vertigem. Não há coisa que não esteja como que perdida entre infatigáveis espelhos
(OC I, 603).
Ao final do conto, o narrador opta pela morte, bebe das águas do rio dos
mortais e fica feliz quando percebe que, novamente, é semelhante ao resto dos
homens.
Esse conto expressa a maravilha e a dor de ser humano: a mortalidade
oprime os homens, queremos vencer os limites do tempo, mas, caso fôssemos
capazes de fazê-lo, nos tornaríamos trogloditas, seres nulos perdidos na linha do
tempo. O tempo e a percepção do limite que sua passagem impõe, a mortalidade,
são condições de existência, dão sentido à vida. Viver como humano só faz
sentido quando o homem abraça sua condição de ser temporal.
O tempo é nossa maior questão; é também nossa única maneira de existir.
Sem um limite de tempo, o homem torna-se inexpressivo, perde a capacidade de
se comunicar, pois os símbolos se transformam em convenções estúpidas e
contingentes. A identidade dissolve-se entre os intermináveis eventos e os homens
se igualam, pois todos passam por todas as coisas: Argus é Homero, pois todos os
homens são Homero, todos viveram o que Homero viveu. Não há nada que
justifique a distinção entre as personalidades.
Ser imortal é possível para os animais ou para os seres desprovidos de
consciência. Saber-se imortal é terrível, pois torna os homens indiferentes ao
mundo: tudo é aceito, porque tudo é reversível. Saber que se tem todo o tempo do
mundo é sempre um consolo, uma resignação. Atos memoráveis podem ser
realizados sob a pressão do tempo.
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A imortalidade faz da felicidade uma idéia insípida: a mera existência do
palácio terrível que abusa das contradições e da ausência de sentido, torna a
felicidade impossível. Não se pode ser feliz quando o conhecimento tende ao
infinito. A felicidade depende da ignorância e da consciência de que somos
finitos.
A especulação pura, que fora o sonho dos filósofos gregos, não torna os
homens melhores ou mais divinos: transforma-os em trogloditas. A sabedoria em
excesso é terrível como a ignorância, o excesso de recordações é como o
esquecimento. Todas as coisas que tendem ao infinito afastam o homem de sua
condição humana e aproximam-no, não dos deuses, mas dos animais.
Mas o problema dos trogloditas não é o esquecimento em que estão
mergulhados: são os breves lapsos de memória que, vez por outra, os despertam.
O terrível é saber-se imortal. O esquecimento puro é um alívio, é justamente o que
Cartaphilus busca ao final do conto, quando opta por tornar-se mortal novamente.
A condição do imortal não é de esquecimento, mas de diluição e de perda de
sentido. Sem limite de tempo, os atos e as palavras perdem força, tudo se perde
entre espelhos. O terrível da imortalidade não é a ausência, mas a multiplicação.
O horror causado pela imortalidade manifesta-se em outros textos e é
explicitamente declarado por Borges na palestra “A imortalidade”. A condição de
imortal, no entanto, de maneira alguma é sinônimo de eternidade. Relaciona-se à
permanência indefinida do sujeito no tempo e ao peso de permanecer sempre
vivo, de não ter descanso ou esquecimento; enquanto a eternidade está relacionada
à diluição do sujeito.
O eu existe por conta da memória. Mas uma memória infinita como a dos
trogloditas, é semelhante ao esquecimento, pois as informações se anulam e o
excesso de vivências expande a identidade a ponto de anulá-la. A identidade
existe dentro de um limite preciso: algo muda e algo permanece o mesmo. Não
pode haver um número de mudanças tão grande que dilua a parte que permanece a
mesma. As mudanças têm de ser limitadas, têm de dar espaço para a permanência.
É famoso o conto Funes, o memorioso”, em que a personagem principal
não tinha a habilidade de pensar, por ser incapaz de esquecer. O esquecimento é o
que torna os homens capazes de generalizar e de compreender: lembrar-se de cada
gato impossibilita a postulação do Gato universal, arquetípico, necessário ao
reconhecimento dos diversos gatos. A memória perfeita, infinita, anula o sujeito,
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torna-o uma coleção de imagens particulares. Se a memória é a condição do eu,
também é o esquecimento. Na palestra “O tempo”, Borges afirma que: Nós
somos feitos, em boa parte, de nossa memória. Essa memória, em grande parte, é
feita de esquecimento” (OC IV, 233).
A imortalidade abarca uma memória sem fim, um eu ilimitado e nulo, que
deixa de ser um eu. A morte e o esquecimento também implicam o fim do eu, mas
constituem a única possibilidade, para o homem, de tocar o eterno, de fundir-se
com ele. O meio termo é o eu, a aceitação do tempo e a vivência dentro do limite
que ele impõe; é uma memória porosa, competente apenas o bastante para que a
identidade seja mantida.
Na palestra “O tempo”, Borges defende que o tempo é o principal
questionamento da metafísica por que, ao contrário dos outros, que o abstrações
puras e exteriores ao mundo que observamos, o tempo é o nosso conflito, é o
conflito que, caso resolvido, nos revelaria nossa verdadeira identidade.
Segundo ele, o tempo está ligado à identidade porque, à medida que passa,
somos outros, mas permanecemos os mesmos. Como o tempo, o eu é também o
rio de Heraclito, está em fluxo constante. permanecemos os mesmos por conta
da memória. A memória é o que possibilita nossa existência enquanto sujeitos,
mas é também o que nos prende ao tempo.
Borges defende que, tendo saído do eterno, o tempo quer voltar ao eterno.
Também o eu quer voltar ao eterno e isto significa sua aniquilação. A morte é um
desejo, mas enquanto está vivo, o homem tem de aceitar sua condição, louvá-la.
Ao mundo do eu corresponde o labirinto: tudo o que está inserido no tempo
é um mistério, implica a contradição da permancia no fugaz. Paradoxalmente,
ao mesmo tempo em que quer encontrar a porta do labirinto e lamenta a
impossibilidade de fazê-lo, Borges tem o labirinto por forma sagrada, que deve ser
louvada. Escolhemos alguns poemas para ilustrar essa posição ambígua. De um
lado temos o lamento:
Aqui são excessivas as estrelas.
O homem é excessivo. As gerações
Inúmeras de aves e de insetos,
Do jaguar constelado e da serpente,
De galhos que se tecem e entretecem,
Do café, da areia e das folhas
Oprimem as manhãs e nos prodigam
Seu minucioso labirinto inútil.
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Talvez cada formiga que pisamos
Seja única ante Deus, que a define
Para a execução das regulares
Leis que regem Seu curioso mundo.
Não fosse assim, o universo inteiro
Seria um erro e um oneroso caos
(OCII, 527).
O lamento corresponde ao desejo de morte e de eternidade, que são um
possível alívio. A morte é o esquecimento completo, o fim do eu, do indivíduo. A
morte é uma aventura incógnita, uma experiência mística:
Eu que agora sou quem está cantando
Amanhã serei o morto, o iniciado
Habitante de um orbe despovoado,
Mágico, sem depois, antes ou quando.
Assim afirma a mística. Indigno
Me julgo, quer do Inferno, quer da Glória,
Mas nada profetizo. Nossa história,
Como as de Proteu, muda formas, signos.
Que errante labirinto, que brancura
Cega de resplandor ser-me-á a sorte,
Ao entregar-me ao fim desta aventura
A experiência incógnita da morte?
Quero beber seu cristalino Olvido,
Ser para sempre; mas jamais ter sido
(OCII, 317).
Do outro lado, temos o júbilo, a alegria rara de ser humano e de estar
inserido no tempo. Ser um eu é a única maneira de observar o universo e seria
uma ingratidão desperdiçar essa oportunidade. Se a divindade criou a
multiplicidade, ela também é divina e devemos louvá-la. O múltiplo é um dom do
eterno e cada uma de suas partes é um todo em si:
Quero dar graças ao divino
Labirinto dos efeitos e das causas
Pela diversidade das criaturas
Que formam este singular universo,
Pela razão, que não cessará de sonhar
Com um plano de labirinto,
Pelo rosto de Helena e pela perseverança de Ulisses,
Pelo amor, que nos deixa ver os outros
Como os vê a divindade,
Pelo firme diamante e pela água solta,
Pela álgebra, palácio de precisos cristais,
Pelas místicas moedas de Ângelo Silésio,
Por Schopenhauer,
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Que talvez tenha decifrado o universo
(OC II, 337).
Ou a resignação. Deixar de ser um eu é tornar-se um objeto, é fazer parte do
todo. Diluído, o eu é absorvido pela totalidade das coisas, se deixa permanecer no
presente, o precisa mais ser fugidio como o tempo. É como uma pedra que
sobrevive ao desgaste do tempo:
Não necessito falar
nem mentir privilégios;
bem me conhecem aqueles que aqui me rodeiam,
bem sabem minhas penas e minha fraqueza.
Isso é alcançar o mais alto,
o que talvez nos dará o Céu:
não admirações nem vitórias
mas simplesmente ser admitidos
como parte de uma Realidade inegável,
como as pedras e as árvores
(OC I, 40).
Resignar-se é uma outra maneira de comungar com o todo. A dor vem da
estranheza, quando desconfiamos do eu, quando nos destacamos da realidade
através da personalidade. Ser um eu pode ser cômodo como ser uma árvore ou
uma pedra. Mas a resignação, como o júbilo, é rara, é sempre vencida pelo
desespero de estar preso em um labirinto e, pior, de ser um labirinto. Em “O
labirinto” (1969): “Zeus não poderia desatar as redes / de pedra que me cercam.
Olvidado / dos homens que antes fui; sigo pelo odiado / caminho de monótonas
paredes / que é meu destino” (OC II, 389). A única maneira de dar conta do
desespero é o olvido, a comunhão com o todo eterno, com o que está fora do
tempo, a morte do eu.
Lamento, júblio, resignação. Viver é a maravilha de pensar, de contemplar o
labirinto; mas também o desespero de não resolver nada, de não encontrar a porta.
Eu e tempo são a mesma questão, o mesmo labirinto. A solução para o eu é o
esquecimento ou a morte, para o tempo, a eternidade. Morte e eternidade são o
mesmo desejo, são o centro do labirinto. Mas esse centro é tão inalcançável, tão
inconcebível, que deixa de ser uma resposta. É mais uma parte do labirinto. Não
resposta: somente a rara resignação e o ocasional júbilo de ser um eu, de estar
no tempo.
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A questão do eu também aparece quando Borges discute o tempo cíclico.
Em A doutrina dos ciclos”, Borges novamente expressa seu horror à
imortalidade, quando cita a visão nietzschiana de que, entre dois ciclos de nossa
existência, nenhum tempo decorre e que “Se falta um eu, a infinidade pode
equivaler à sucessão”: estamos como que presos à “lucidez atroz de uma insônia”
(OC I, 430). Entre nossa morte e o recomeçar de nossa vida, não passa tempo
algum, porque não sujeito para experimentar a passagem do tempo. A morte
não é descanso, mas um lapso tão curto quanto um piscar de olhos. De acordo
com a doutrina do eterno retorno, existimos eternamente, mas, nesse caso, a
eternidade não é o almejado esquecimento, mas uma terrível insônia, um despertar
incessante.
Neste quadro terrível do eu que precisa aceitar e mesmo amar sua condição,
o budismo aparece como salvação. Ele seria a única maneira de escapar do terrível
ciclo de reencarnações, o único esquecimento possível. Na palestra “O budismo”,
Borges explica que a única maneira de escapar do eu sem recorrer a atos
apaixonados como o suicídio, é compreender que o eu não existe, que, como todas
as outras coisas, é uma ilusão. Não passa de uma série de estados mentais. Borges
elucida que: “Quando compreendermos que o eu não existe, o pensaremos que
o eu pode ser feliz ou que nosso dever é fazê-lo feliz. Chegaremos a um estado de
calma” (OC III, 282).
Ao fim da palestra, Borges pede desculpas pela maneira fragmentária de sua
fala e justifica-a dizendo que não queria expor uma doutrina à qual se dedicou por
anos como quem mostra uma peça de museu: Para mim o budismo não é uma
peça de museu: é um caminho de salvação” (OC III, 283).
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2.7
Os arquétipos
5
Na obra de Borges, os arquétipos aparecerão constantemente e terão,
basicamente, dois significados: a unidade que perdura além da multiplicidade e
que a justifica e as idéias perfeitas que só são dadas à contemplação após a morte.
Ambos aspectos, o da unidade e o da relação entre morte e eternidade foram
analisados em seções anteriores. Já vimos que Borges trata os animais como
arquétipos, como exemplos multiplicados da mesma idéia impessoal. Vimos
também o poema “Baltasar Gracián”, em que o poeta, após dedicar-se a labirintos
inúteis ao longo da vida, teria chorado ou ficado cego ao contemplar os
Arquétipos.
Queremos analisar, nesta seção, a postura ambígüa de Borges para com a
doutrina platônica. De fato, a leitura de sua obra o nos permite afirmar seu
posicionamento com relação à mesma. Não sabemos se é realista ou nominalista,
pois sua opinião parece fluir de um extremo ao outro, como veremos a seguir.
Em “A história da eternidade”, Borges justifica seu estudo da eternidade
dizendo que, para questionar o tempo, é necessário conhecer seu arquétipo eterno.
A eternidade seria a idéia perfeita e divina da qual o tempo não passaria de cópia
incompleta. No mesmo texto, ele se refere ao mundo platônico como um imóvel
e terrível museu dos arquétipos” (OC III, 390). E acrescenta: “Não sei se foi visto
por olhos mortais (fora da intuição visionária ou do pesadelo) ou se o grego
remoto que o concebeu chegou a representá-lo alguma vez, mas pressinto nele
algo de museu: quieto, monstruoso e classificado” (OC I, 390).
Nesse texto Borges declara-se materialista e critica os platonistas por
considerarem a matéria ilusória e a espécie ou forma, real. Então acrescenta que,
apesar de inconcebível, este critério é continuamente aplicado pelos filósofos e
que algumas ilustrações podem levar-nos a tolerar a tese platônica, como:
“Miriam Hopkins é feita de Miriam Hopkins, não dos princípios nitrogenados ou
minerais, hidratos de carbono, alcalóides e gorduras neutras que formam a
5
Os arquétipos aqui se assemelham às formas platônicas; não estabelecem nenhuma relação direta
com o pensamento jungiano. São idéias e formas eternas e não componentes do inconsciente
coletivo.
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substância transitória desse fino espectro de prata ou essência inteligível de
Hollywood” (OC I, 391). Aqui, a tese platônica é um erro apenas tolerável.
Ele cita também as concepções de Keats, de Stevenson e de Schopenhauer
de que os animais são sempre o mesmo animal, mas desta vez critica as mesmas
dizendo que, se realmente acreditássemos nisso, teríamos de dizer que também
todos os homens são o mesmo homem, mas não o fazemos porque nosso eu
“prefere derramá-lo sobre o eu dos outros” (OC III, 392). Diz ainda que todos os
arquétipos são “comodidades do pensamento elevadas a formas” e que “homem
algum as poderá intuir sem o auxílio da morte, da febre ou da loucura” (OC I,
392). A eternidade seria, portanto, mais um arquétipo que abrange a todos e os
exalta” (OC I, 392). Um erro da filosofia que não passa de um recurso poético.
Então Borges termina sua argumentação contra a doutrina platônica:
Ignoro se meu leitor precisa de argumentos para descrer da doutrina platônica.
Posso fornecer-lhe muitos: um, a incompatível agregação de vozes genéricas e de
vozes abstratas que coabitam sans gêne na dotação do mundo arquetípico; outro, a
reserva de seu inventor sobre o procedimento que as coisas utilizam para participar
das formas universais; outro, a conjetura de que esses mesmos arquétipos
assépticos padecem de mistura e variedade. Não são insolúveis: são tão confusos
como as criaturas do tempo. Fabricados à imagem das criaturas, repetem essas
mesmas anomalias que querem resolver. A Leonidade, digamos, como prescindiria
da Soberba e da Ruividade, da Jubidade e da Garridade? A essa pergunta não
resposta e não pode haver: não esperemos do termo leonidade uma virtude muito
superior à que tem essa palavra sem o sufixo (OC I, 393).
Se levarmos em conta tudo o que foi dito nas seções anteriores, podemos
extrair dessas afirmações a postura contraditória, que mencionamos, do escritor
com relação à eternidade. Parece-nos que, de acordo com ele, por ser impossível,
a eternidade deve ser esquecida, ainda que permaneça um desejo insuperável e
sobretudo um maravilhoso artifício para a literatura fantástica. Ainda na “História
da eternidade”, Borges escreve: “Lemos no Timeu de Platão que o tempo é uma
imagem móvel da eternidade; e isso é apenas um acorde que a ninguém distrai da
convicção de ser a eternidade imagem feita da substância de tempo” (OC I, 397).
Observamos aqui que, o que Borges quer enfatizar é que nos é impossível
conceber a eternidade como substância alheia ao tempo: só a concebemos como
semelhante ao tempo, feita da mesma substância. Por um lado, isto é uma verdade
lógica de que Borges se valeu, como vimos, em muitos outros contos. Por outro, o
desejo de conceber a eternidade, o que seria um fim ao conflito fundamental da
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escrita de Borges o do tempo permanece e se manifesta em textos posteriores
como se, aos poucos, Borges fosse perdendo o medo de desejar e de utilizar como
recurso, um conceito que ele sabe impossível.
A “História da eternidade” é escrita em 1936; em seu Prólogo, escrito em
1952 (ver citação na página 20), Borges critica sua postura anterior. Ao longo do
conto, ele enfatiza que a única maneira de estudar a eternidade, é partindo do
conceito de tempo e não vice-versa como acreditou Plotino (que estudou o tempo
a partir da eternidade). A eternidade aqui é uma invenção humana, útil apenas
para os religiosos e os loucos. Mas, no prólogo, notamos uma mudança de
postura: a eternidade é “almejada com amor” pelos poetas, é um “artifício
esplêndido”; os arquétipos são formas “vivas, poderosas e orgânicas”; a
eternidade é inconcebível, mas não mais que o tempo e, se admitimos a existência
do tempo, é porque o mundo observável só faz sentido dentro dos seus limites.
Na palestra “O tempo”, a concepção de eternidade é totalmente diversa,
ainda que Borges mantenha, em alguns momentos, uma postura mais crítica,
como quando diz:
Ou seja, o tempo é um problema essencial. O que eu quero dizer é que não
podemos prescindir do tempo. Nossa consciência está continuamente passando de
um estado a outro, e isto é o tempo: a sucessão. Creio que foi Henri Bergson quem
disse que o tempo era o problema capital da metafísica. Se tivéssemos resolvido
esse problema, teríamos resolvido tudo. Felizmente, creio não haver o menor
perigo de que seja resolvido; ou seja, prosseguiremos sempre ansiosos (OC IV,
232).
O fato de sermos incapazes de solucionar a questão do tempo, é, neste
trecho, considerado uma felicidade: a hipótese de que seja resolvido é um
“perigo”. Mas, em muitos outros, essa incapacidade é tortura e prisão, como
mencionamos. O que de positivo nesta impossibilidade, é que elas nos permite
ser sempre humanos, permite a longevidade do eu e de seus conflitos. Dar fim às
aporias do tempo seria liquidar o eu e, por um lado, o eu é uma alegria, é nossa
única possibilidade de existir e de observar o mundo.
No início da palestra “O tempo”, Borges nota que, passados vinte ou trinta
séculos de meditação, o homem quase nada avançou no problema do tempo. No
entanto, algumas soluções foram propostas, como as de Platão, Plotino e
Agostinho. Todas elas lidaram com o que agora Borges chama uma das mais
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belas invenções do homem”, a eternidade. De fato, Borges jamais deixa de
considerá-la uma invenção do homem; jamais passa a acreditar que seja uma
entidade real. Mas, aos poucos, Borges se permite adorá-la como conceito e
artifício fantástico. Sabemos que Borges se interessa menos pelo real que pelo
assombro. A eternidade deixa de ser mera invenção” para ser um maravilhoso
artifício.
Em alguns momentos, a eternidade é também consolo. Em “A nova
refutação do tempo”, lemos:
“And yet, and yet... Negar a sucessão temporal, negar o eu, negar o universo
astronômico são desesperos aparentes e consolos secretos. Nosso destino (ao
contrário do inferno de Swedenborg e do inferno da mitologia tibetana) não é
terrível por ser irreal; é terrível porque é irreversível e férreo. O tempo é a
substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é
um tigre que me despedaça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas
eu sou o fogo. O mundo, infelizmente, é real; eu, infelizmente, sou Borges” (OCII,
166).
O eterno é uma maneira de dissolver o eu e isso desespera, mas também
consola. A eternidade é um artifício para escapar do real, o olvido é um desejo
secreto. Ainda em “O tempo”, Borges afirmará de maneira mais explícita seu
desejo pelo eterno e, como conseqüência, sua condenação anterior da doutrina
platônica é amenizada:
E agora, passemos à solução dada, primeiramente, por Platão, que parece arbitrária,
mas que não o é, como espero provar. Platão disse que o tempo é a imagem móvel
da eternidade. Ele começa pela eternidade, por um ser eterno, e este eterno quer
projetar-se em outros seres. E não pode fazê-lo em sua eternidade: tem de fazê-lo
sucessivamente. O tempo vem a ser a imagem móvel da eternidade (...) Se a nós
nos dessem todo o ser.. O ser é mais que o universo, mais que o mundo. Se nos
mostrassem o ser de uma vez, ficaríamos aniquilados, anulados, mortos (...) Por
sua vez, o tempo é a dádiva da eternidade. A eternidade nos permite todas essas
experiências de um modo sucessivo (OC IV, 233-4).
Percebemos que a teoria de Platão não é mais considerada como uma
arbitrariedade, digna apenas de loucos. É respeitada, é vista como uma tentativa
digna de resolver o problema do tempo.
Depois de frisar que os paradoxos de Zenão ainda não foram
competentemente resolvidos e que, portanto, não temos bases sólidas para
acreditar no tempo e no movimento e que, além disso, não temos argumentos para
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defender que existe apenas uma rie temporal, como quis Newton, Borges
retorna ao problema dos arquétipos:
O eterno é o mundo dos arquétipos. No eterno, por exemplo, não há triângulos. Há
um único triângulo, que não é eqüilátero, nem isósceles, nem escaleno. Esse
triângulo é as três coisas ao mesmo tempo e nenhuma delas. O fato de que esse
triângulo seja inconcebível não importa: esse triângulo existe (OC IV, 238).
Aqui, realmente, ficamos sem saber se Borges de fato acredita que o
triângulo arquetípico existe, ou se ainda está comentando a doutrina platônica. Ou,
ainda, se está dizendo que o fato de uma idéia ser inconcebível não é argumento
para negá-la como realidade. Esse parágrafo é introduzido bem depois de ele ter
encerrado a discussão sobre Platão. No parágrafo seguinte, ele parece afirmar,
como conclusão para o que foi dito, sua visão própria de que: “Logo, esse
absoluto quer manifestar-se, e manifesta-se no tempo. O tempo é a imagem da
eternidade” (OC IV, 238).
Ele acrescenta que esta concepção ajuda a entender por que o tempo é
sucessivo: O tempo é sucessivo porque, tendo saído do eterno, quer voltar ao
eterno. Ou seja, a idéia de futuro corresponde a nosso anseio de voltar ao
princípio” (OC IV, 238). Borges insiste nesta concepção, que retorna no último
parágrafo do texto, mais uma vez de maneira desconexa, após uma pequena
discussão sobre identidade: “A idéia do futuro viria a justificar aquela antiga idéia
de Platão, de que o tempo é a imagem móvel do eterno. Se o tempo é a imagem do
eterno, o futuro viria a ser o movimento da alma rumo ao futuro. O futuro seria,
por sua vez, a volta ao eterno” (OC IV, 240).
Borges parece assumir aqui, de maneira mais positiva, a possibilidade da
eternidade e dos arquétipos, ainda que sejam inconcebíveis. Parece defender que,
de fato, nosso mundo seria mais facilmente compreendido se fosse conseqüência
da existência de um mundo superior.
Daniel Freidemberg também percebe a postura ambígua de Borges quando
observa que, ainda que fosse profundamente cético na prática, o escritor baseava
sua atividade literária principalmente no contato com uma realidade que sabia
inacessível: “‘Contacto con lo absoluto’, podría decirse: a esa aspiración
romántica se acerca mucho la utopía en que funda su escritura ese antirromántico
radical que en la práctica es Borges.”
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O próprio Borges se justifica quando afirma, no epílogo de Outras
inquisições que sua tendência a avaliar idéias religiosas ou filosóficas por seu
valor estético ou pelo que encerram de singular e de maravilhoso” (OC II, 171)
seja talvez indício de um ceticismo essencial. É o próprio ceticismo que o permite
considerar todas as hipóteses. Não ter uma postura definida o deixa livre.
Uma frase de Borges, em História da eternidade”, também pode justificar
seu procedimento, aparentemente contraditório. Ele diz: o estilo do desejo é a
eternidade” (OC I, 401). Em nossas mentes, as expectativas mais distintas
convivem sem problemas, assim como, em nossa memória, todas as imagens, por
vezes, se confundem em uma (todos os poentes que vimos são um poente). O
desejo não distingue particularidades, seu objeto é necessariamente uno, eterno.
Queremos sempre algo que se apresenta como universal, absoluto.
A eternidade é o estilo do desejo e é um desejo. Desejamos o que
permanece, o que está fora do tempo e é incorruptível, como os arquétipos. E os
arquétipos não podem ser contemplados pelo eu. Desejamos sempre o impossível;
por isso a vida é uma angústia constante. Em “Everness” (1964), lemos:
Só não há uma coisa. É o esquecer.
Deus, que salva o metal, salva a escória
E cifra em Sua profética memória
As luas que já foram e as que há de ser.
Tudo está aí: visões multiplicadas
Que entre esses dois crepúsculos do dia
Tua face foi deixando e as refletia
E as que ela irá deixando-as espelhadas.
E tudo é uma parte do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
Jamais têm fim seus árduos corredores
E a ti fecham-se as portas com descaso;
Somente do lado oposto do ocaso
Verás os Arquétipos e os Esplendores
(OC II, 328).
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3
Refutações do Tempo
Examinaremos, a seguir, os principais ensaios em que Borges argumenta
possíveis refutações do tempo.
3.1
Paradoxos
Em alguns textos, Borges chama atenção para o fato de que os paradoxos
fundados por Zenão, membro da escola eleática e adepto do monismo,mais de
dois mil anos, para argumentar a favor do caráter ilusório dos conceitos de tempo
e de mudança, ainda não tiveram uma solução séria. Analisaremos aqui, dois
deles: “A perpétua corrida de Aquiles e da tartaruga” e “Avatares da tartaruga”.
No primeiro texto, Borges compara o segundo paradoxo de Zenão, o de
Aquiles e da tartaruga, a uma jóia, por ser, simultaneamente, delicado e
impenetrável. Vinte e três séculos de decisivas refutações não teriam sido o
suficiente para desbancá-lo e “já podemos saudá-lo como imortal” (OC I, 261). O
autor, então, propõe-se a apresentá-lo e recorre a duas versões.
A primeira seria a do Diccionario hispanoamericano, em sua forma de
notícia incontestável: “O movimento não existe: Aquiles não poderia alcançar a
preguiçosa tartaruga” (OC I, 261). Borges condena-a por ser apressada demais e
passa à segunda, mais cautelosa, de G. H. Lewes:
Escrevo assim sua exposição: Aquiles, símbolo de rapidez, tem de alcançar a
tartaruga, símbolo de morosidade. Aquiles corre dez vezes mais rápido que a
tartaruga e lhe dez metros de vantagem. Aquiles corre esses dez metros, a
tartaruga corre um; Aquiles corre esse metro, a tartaruga corre um decímetro.
Aquiles corre esse decímetro, a tartaruga corre um centímetro; Aquiles corre esse
centímetro, a tartaruga um milímetro; Aquiles o milímetro, a tartaruga um décimo
de milímetro, e assim infinitamente, de modo que Aquiles pode correr para sempre
sem alcançá-la. Tal é o paradoxo imortal (OC I, 261-2).
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Depois de expor o paradoxo, Borges passa às “chamadas refutações” (OC I,
262), apenas para refutá-las. A primeira que cita, é a de Stuart Mill, que, segundo
ele, englobaria as mais antigas de Aristóteles e Hobbes. Mill assinala que o
problema, para ele, seria apenas um exemplo da falácia de confusão” (OC I,
262). Ele aponta que na solução do sofisma, para sempre significaria “qualquer
lapso de tempo imaginável”, enquanto nas premissas, “qualquer número de
subdivisões do tempo” (OC I, 262). Com isso, Mill quer dizer que um tempo (ou
espaço) finito pode ser dividido infinitamente, mas não dura infinitamente.
Para Borges, esta refutação o passa de uma exposição do paradoxo. Se
estabelecêssemos a velocidade de Aquiles como sendo de um segundo por metro,
veríamos que o tempo de que necessita (10 + 1 + 1/10 + 1/100 + 1/1000 +
1/10000...) é necessariamente infinito, pois ainda que o limite da soma desta
progressão geométrica infinita seja doze, ele jamais é alcançado. A noção de
limite, portanto, que foi considerada por muito tempo a solução do paradoxo, é
inútil.
Para Borges, a corrida é infinita, já que “sua eternidade o verá o término
de doze segundos” (OC I, 262). Aquiles e a tartaruga estão como congelados em
um tempo, não infinito, mas eterno. O fato disso ser inconcebível não importa:
todo o movimento que observamos é mera ilusão, não corrida que aconteça.
Pior ainda, não tempo que passe, pois antes de um minuto, deve decorrer meio
minuto, antes de meio, quinze segundos e assim infinitamente.
Outra tentativa de refutação foi a de Bergson, no Ensaio sobre os dados
imediatos da consciência. Após notar que o próprio título do livro é uma petição
de princípios, Borges expõe a refutação do filósofo: podemos dividir um objeto,
mas não um ato; o paradoxo só existe porque aplicamos o ato à linha que percorre,
solidificando-o. Não podemos, segundo Bergson, confundir o movimento e o
espaço percorrido: o movimento não é composto por partes; se fosse, a corrida
seria de fato impossível. Os passos de Aquiles são atos simples, indivisíveis, por
isso ele ultrapassa a tartaruga.
Borges diz que o erro de Bergson é considerar que o espaço seja
infinitamente divisível e negar que o tempo o seja; essas noções de tempo e
espaço seriam incompatíveis. Para percorrer um espaço mais e mais curto,
levamos cada vez menos tempo. Tempo e espaço o necessariamente correlatos
em sua divisibilidade. Borges o se demora muito em sua crítica a Bergson e
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logo vai ao que considera a única refutação “de inspiração condigna do original,
virtude que a estética da inteligência está reclamando” (OC I, 264), isto é, a
elaborada por Bertrand Russell.
Para Russell, contar é necessariamente equiparar duas séries. Borges
explica: “Por exemplo, se os primogênitos de todas as casas do Egito foram
mortos pelo Anjo, salvo os que moravam em casa com um sinal vermelho na
porta, é evidente que se salvaram tantos quantos sinais vermelhos havia” (OC I,
264). Não precisamos ter um número definido para equiparar as duas séries; uma
corresponde necessariamente à outra, ainda que impliquem um número infinito.
Assim, na infinita série dos números naturais, tantos números ímpares quanto
pares, que ao 1 corresponde o 2, ao 3 o 4 e assim infinitamente. O que é ainda
mais complexo: há tantos múltiplos de três mil e dezoito quantos números há, pois
ambas as séries são infinitas. Todas as séries, portanto, são infinitas: as partes são
tão extensas quanto o todo.
Bertrand Russell definiu que uma coleção infinita é uma cujos membros
também se desdobram em séries infinitas. Em um metro do universo, tantos
pontos quantos no universo. A relação desta teoria com o paradoxo de Aquiles
é difícil de compreender. Borges a explica assim:
Cada lugar ocupado pela tartaruga guarda proporção com outro ocupado por
Aquiles, e a minuciosa correspondência, ponto por ponto, de ambas as séries
simétricas, basta para declará-las iguais. Não nenhum remanescente periódico
da vantagem inicial dada à tartaruga; o ponto final de seu trajeto, o último no
trajeto de Aquiles e o último do tempo da corrida, são termos que matematicamente
coincidem (OC I, 265).
O que parece estar sendo afirmado aqui é que não podemos analisar a
corrida de Aquiles e da tartaruga comparando cada corrida individual com a série
implícita do tempo. Não podemos dizer que Aquiles não alcança a tartaruga
porque cai em um abismo infinito de subdivisões do tempo. A corrida faz
sentido quando a enxergamos como duas séries correspondentes; Aquiles corre
em relação à tartaruga e a tartaruga em relação a Aquiles. Por isso Aquiles
ultrapassa a tartaruga: o ponto final da corrida é o ponto da série em que Aquiles
está na frente da tartaruga, na linha de chegada. Contar é comparar duas séries.
Não importa se entre o 1 e o 2 um intervalo infinito de subdivisões, mas a
maneira como estes números se inserem em uma série determinada.
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Borges diz concordar com James quando este, ainda reconhecendo o
brilhantismo de Russell, acusa o mesmo de pressupor que a corrida foi realizada e
de se preocupar apenas em equilibrar os trajetos. James afirma que Russell evita a
categoria crescente do infinito, que é a fundamental do paradoxo, e considera
apenas a estável. Borges acrescenta que nem mesmo são necessários dois
corredores, pois o trajeto de cada um é impossível, sendo o tempo, por si
mesmo, infinitamente divisível. “O mero lapso”, diz ele, “de tempo vazio implica
a dificuldade” (OC I, 265). Não se pode alcançar uma meta quando um intervalo
prévio se apresenta a cada instante, impossibilitando a execução do percurso.
Borges termina o texto com a declaração de que este paradoxo continua a
ser um atentado contra a realidade do tempo e do espaço. O conceito de infinito
seria o grande vilão do pensamento, que impossibilita os acontecimentos, torna
tudo virtual e ilusório. Ele expõe, por fim, sua visão pessoal do problema:
Zenão é incontestável, a menos que confessemos a idealidade do espaço e do
tempo. Aceitemos o idealismo, aceitemos o crescimento concreto do que
percebemos, e eludiremos a pululação de abismos do paradoxo.
E tocar em nosso conceito do universo por esse pedacinho de treva grega?,
perguntará meu leitor (OC I, 266).
O paradoxo de Zenão, para Borges, especialmente o fato de ser
aparentemente irrefutável, é um dos argumentos para a aceitação do idealismo,
isto é, da doutrina de que as coisas só existem na medida em que são percebidas e
que não podemos postular, a partir de uma percepção, um estatuto ontológico para
o objeto ou evento observado. O mundo é um sonho, uma ilusão dos sentidos, não
obedece à lógica. O paradoxo de Zenão aponta para a fragilidade do real.
existe o que percebemos e nada existe fora de nós (a o ser que seja percebido
por um Deus).
O idealismo é a única doutrina que torna o movimento possível, que
justifica a corrida de Aquiles e da tartaruga e mesmo a passagem do tempo. Se a
corrida acontece, tempo e espaço são ilusões mentais. Se tempo e espaço existem,
a corrida é uma ilusão. A existência de uma coisa contradiz a da outra: não
devemos postular realidades, aquilo que percebemos e as percepções não
têm justificativas lógicas. O idealismo é a única saída possível para o paradoxo,
pois é a única explicação para a passagem do tempo: a passagem do tempo é
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impossível, é uma percepção sem estatuto ontológico, uma idéia percebida;
podemos aceitá-la se admitirmos que é um sonho, uma ilusão dos sentidos.
Veremos, no próximo capítulo, a importância do idealismo na obra de
Borges, quando discutirmos sua complexa noção de realidade. Voltemos, por ora,
à discussão dos paradoxos de Zenão.
O ensaio “Avatares da tartaruga” tem início com uma terrível afirmação que
se deixou entrever no ensaio anterior: um conceito que corrompe e
transtorna os outros. Não falo do Mal cujo limitado império é a ética; falo do
infinito” (OC I, 273). Borges afirma que o segundo paradoxo de Zenão (o de
Aquiles e da tartaruga) pertence de algum modo a uma ilusória biografia do
infinito, que ele tenta desenvolver de maneira breve nesse ensaio.
Ele retoma, então, com leves modificações, a exposição do paradoxo que
mencionamos e cita a refutação de Aristóteles, a primeira, que ele havia posto de
lado no ensaio anterior. Ele diz que esta refutação é de uma “brevidade talvez
desdenhosa” (OC I, 274), mas que a lembrança do paradoxo inspira a Aristóteles
outro argumento que recorre à regressão infinita, o argumento do terceiro homem.
Este destina-se a refutar a doutrina platônica do mundo das idéias,
mostrando que, se o indivíduo e sua forma arquetípica correspondente, possuem
características comuns, o que é fato, então precisa-se postular outro arquétipo que
contenha os dois e assim sucessivamente até o infinito.
Desta maneira, o mesmo recurso – a regressão infinita – é usado, por Zenão,
para negar o movimento e a multiplicidade e, por Aristóteles, para condenar o
mundo eterno das idéias fixas. O fim do conflito causado pelo infinito, segundo
Zenão, estaria na aceitação do mundo das idéias: mas também este mundo, como
mostrou Aristóteles, está corrompido pelo infinito.
Outro avatar de Zenão seria o de Agripa, o Cético, que dizia que nada pode
ser provado que toda prova exige uma prova anterior. Como ele, Sexto
Empírico disse que as definições são inúteis, porque m de ser definidas; suas
definições também precisam ser definidas, o que implica um regresso eterno. Em
Tomás de Aquino, o regressus in infinitum não serve mais à negação, mas para a
afirmação da existência de Deus: sendo cada causa efeito de uma série infinita de
causas anteriores; se o mundo é, deve haver uma causa primeira, que só pode ser a
divindade.
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Borges cita outros avatares do paradoxo, que não exporemos aqui. Ao final
do texto ele conclui que o regressus in infinitum talvez possa ser aplicado a todos
os temas e que devemos nos perguntar se é um mau hábito ou um instrumento
legítimo de investigação. Em todo caso, a única explicação para o universo parece
novamente ser o idealismo:
‘O maior feiticeiro’ (escreve memoravelmente Novalis) ‘seria o que se enfeitiçasse
até o ponto de ver suas próprias fantasmagorias como aparições autônomas. Não
seria esse o nosso caso?’ Presumo que sim. Nós (a indivisa divindade que opera em
nós) sonhamos o mundo. Nós o sonhamos resistente, misterioso, visível, ubíquo no
espaço e firme no tempo; mas aceitamos em sua arquitetura tênues e eternos
interstícios de desrazão para saber que é falso (OC I, 278).
Podemos pensar, a partir do que foi dito até aqui, que, para Borges, a
resposta à questão do tempo não é a eternidade, mas o idealismo. A passagem do
tempo é impossível e isto não significa que a realidade do tempo seja a eternidade,
mas que sonhamos o tempo. Em certa medida, podemos dizer que Borges pensa
assim, como ele mesmo afirmou em diversos textos. Mas, por outro lado, em
“Nova refutação do tempo”, vemos Borges inferir, da própria doutrina idealista,
que não pode haver mais que um instante eterno. O idealismo oferece uma
explicação para a questão do tempo em termos, porque afirma que o tempo é uma
ilusão. Mas afirmar que o tempo é uma ilusão também implica a eternidade, a
eternidade como presente: se não tempo, se o tempo não transcorre, se tudo o
que há são percepções, há apenas o momento das percepções, as coisas existem na
medida em que são percebidas, que se inserem no presente. Analisaremos, a
seguir, a conceão da eternidade como presente e sua relação com a doutrina
idealista.
3.2
O idealismo e a eternidade do instante
Em nota preliminar ao ensaio “Nova refutação do tempo”, Borges observa
que o argumento contra o tempo que está prestes a iniciar não passa de um
“precário artifício de um argentino extraviado na metafísica” (OC II, 150) e que
sua única originalidade é que aplica a este fim o idealismo.
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O ensaio é constituído de dois textos, sendo o segundo uma revisão do
primeiro. Borges explica que decidiu manter as duas versões devido ao fato de
que a leitura de dois textos análogos certamente facilitará a compreensão de um
tema tão complexo.
Logo no início do primeiro texto, Borges afirma que sua refutação do
tempo, da qual ele mesmo descrê, é como um pressentimento que o assombra
continuamente e que, de certa forma está presente em todos os seus livros. Dois
argumentos o teriam levado a ela: o idealismo de Berkeley e o princípio dos
indiscerníveis, de Leibniz.
De acordo com o idealismo, nada do que podemos experimentar
(pensamentos, paixões, imaginações e sensações) pode existir sem a mente. Não
podemos, portanto, a partir da percepção de uma mesa (através da visão e do tato,
por exemplo), afirmar que ela existe. Não podemos dizer de coisa alguma que ela
existe de forma absoluta; as coisas existem na medida em que são percebidas.
podemos acreditar que as coisas existem quando o estamos olhando, se
postularmos um Espírito Eterno que as perceba. Para Berkeley, de fato, a
existência de Deus era necessária, era a única garantia para a realidade das coisas.
Borges mostra que entender esta doutrina é bem mais fácil que viver dentro
de seus limites. Ele afirma que o próprio Schopenhauer teria cometido erros
graves, quando considerou a mão que toca a terra menos ilusória que a terra.
Podemos aceitar que a vida seja um sonho, que nossas percepções não
correspondam a uma realidade, mas cairemos sempre em contradição ao tentar
prová-lo.
Outro idealista, Hume, mais lógico que Berkeley, negou a existência do
Deus em cuja mente tudo existe, que justificaria a existência exterior das coisas;
refutou também a identidade pessoal, tornando cada homem uma coleção de
percepções sucessivas.
Berkeley e Hume negaram o espaço absoluto, mas ambos os filósofos
mantiveram que o tempo existe: para o primeiro, ele seria a sucessão de idéias que
engloba todos os seres e, para o segundo, a sucessão de momentos indivisíveis.
Borges assinala que o mundo do idealismo é instável e quase inconcebível:
Um mundo de impressões evanescentes; um mundo sem matéria nem espírito, nem
objetivo nem subjetivo; um mundo sem a arquitetura ideal do espaço; um mundo
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feito de tempo, do absoluto tempo dos Principia; um labirinto incansável, um caos,
um sonho (OC II, 154).
No entanto, continua ele, uma vez aceito este mundo, é inevitável a
refutação do tempo, já que, depois de negar o sujeito, a matéria e o espaço
absoluto, que são continuidades, “não sei que direito nós temos a essa
continuidade que é o tempo” (OC II, 155). Se as coisas não estão localizadas em
um espaço absoluto, também não podem estar inseridas em uma linha temporal;
se, fora da percepção, nada existe, o tempo não pode existir fora do momento
presente, pois só o presente é percebido.
Como dizer que alguém esteve aqui ontem, se não o percebemos? Nada
existe fora da percepção; isso implica que nada existe fora do presente. Passado e
futuro não podem ser percebidos. existe o instante. Afirmando isto, Borges
quer negar, com argumentos do próprio idealismo, a série temporal que ele
admite.
Ele acrescenta que, se não encadeamento dos fatos em um único tempo,
tampouco pode haver eventos simultâneos. Não podemos dizer que, enquanto
estamos aqui, outras pessoas fazem tal e tal coisa, porque não percebemos o que
acontece longe de nós. O instante, portanto, é eterno, mas não abarca tudo:
infinitos instantes eternos que compõem realidades distintas umas das outras:
Cada instante é autônomo. Nem a vingança, nem o perdão, nem as prisões, nem
sequer o esquecimento podem modificar o invulnerável passado. Não menos vãos
parecem-me a esperança e o medo, que sempre se referem a fatos futuros; ou seja,
a fatos que não ocorrerão conosco, que somos o minucioso presente. Dizem-me
que o presente, o specious present dos psicólogos, dura entre alguns segundos e
uma ínfima fração de segundo; isso dura a história do universo. Ou melhor, não
existe tal história, como não existe a vida de um homem, nem sequer uma de suas
noites; existe cada momento que vivemos, não seu imaginário conjunto. O
universo, a soma de todos os fatos, é uma coleção não menos ideal que a de todos
os cavalos sonhados por Shakespeare um, muitos, nenhum? entre 1592 e 1594.
Acrescento: se o tempo é um processo mental, como podem compartilhá-lo
milhares de homens, ou mesmo dois homens distintos? (OC II, 156).
Como não pluralidade, somente o instante de cada um, matar uma
multidão é o mesmo que matar um homem; milhões de pessoas padecendo são o
mesmo que uma só. As experiências o podem ser somadas, são sempre
instantâneas e individuais.
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A ausência de um tempo absoluto tem uma conseqüência ainda mais
perturbadora: a repetição de um instante que, segundo Borges, podemos
facilmente postular não é mera semelhança entre um instante presente e um
passado; quando um instante se repete, estamos vivendo o mesmo instante. Se não
existe tempo, dois atos idênticos são indistinguíveis; a única coisa que poderia
diferenciá-los seria o fato de que um foi praticado no tempo X e outro no tempo
Y. Borges pergunta: Não basta um único termo repetido para desbaratar e
confundir a série do tempo?” (OC II, 157).
Borges chega a esta conclusão através do princípio da identidade dos
indiscerníveis, de Leibniz. Trata-se de um princípio ontológico que declara que
dois (ou mais) objetos são idênticos, isto é, são o mesmo, quando possuem
predicados idênticos. Se tomarmos isso por verdadeiro, dois momentos que
possuem as mesmas características, constituem o mesmo momento.
Ao final do primeiro texto da “Nova refutação do tempo”, Borges transcreve
seu relato “Sentir-se em morte”, dizendo que talvez forneça uma idéia mais clara
do eterno e do intemporal, que mal se mostraram na complexa argumentação
anterior. Este relato já havia sido transcrito na “História da eternidade” e Borges o
considera sua própria teoria da eternidade.
O relato registra uma noite em que Borges, saindo para uma caminhada sem
rumo, acabou chegando às imediações do bairro de sua infância. O fato de o lugar
não mostrar diferenças aparentes, fez com que Borges acreditasse que era
essencialmente o mesmo, que o tempo não havia passado ali:
Senti-me morto, senti-me um percebedor abstrato do mundo; indefinido temor
imbuído de ciência, que é a melhor claridade da metafísica. Não acreditei; não, ter
remontado às presumíveis águas do Tempo; antes, suspeitei-me possuidor do
sentido reticente ou ausente da inconcebível palavra eternidade (OC II, 159).
A situação em que se encontrava não era meramente semelhante à anterior:
era a mesma. A indiscernibilidade entre dois momentos desintegra o tempo, torna
aparente o fato de ele ser uma ilusão. Borges conclui que a vida é pobre demais
para não ser também imortal” (OC II, 160) e que o tempo não é refutável no plano
intelectual da mesma maneira que é no sensitivo pelo fato da sucessão ser
imprescindível ao pensamento. O tempo é uma ilusão e isto se faz ver quando
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uma repetição de eventos. existe o instante e dois instantes idênticos são o
mesmo.
No segundo texto da “Nova refutação do tempo”, que, como já
mencionamos, é uma revisão do primeiro, Borges afirma que:
Negar o tempo é duas negações: negar a sucessão dos termos de uma série, negar o
sincronismo dos termos de duas séries. De fato, se cada termo é absoluto, suas
relações se reduzem à consciência de que as relações existem. Um estado precede o
outro quando se sabe anterior; um estado de G será contemporâneo a um estado de
H quando souber de sua contemporaneidade. (...) cada fração de tempo não
preenche simultaneamente o espaço inteiro, o tempo não é ubíquo (OC II, 164).
Ele acrescenta que, ao contrário de Sexto Empírico e de Bradley, que negam
as partes do tempo para negar o todo, ele rejeita o todo para exaltar cada uma das
partes: se não há uma extensão temporal, só existimos no presente. Ninguém pode
viver no passado ou no futuro. O presente é a única forma de existir, é tudo o que
há.
Se o presente é a única forma de existir, é, todavia, inconcebível. Na
palestra “O tempo”, Borges ressalta que, por extraordinário que seja, dos três
tempos, passado, presente e futuro, o mais inapreensível é o presente. Não
podemos imaginá-lo como o ponto, desprovido de extensão, pois assim teremos
de admitir que ele não existe: “temos de imaginar que o presente aparente viria a
ser um pouco o passado e um pouco o futuro” (OC IV, 239). Mas isto é também
inconcebível, mais ainda que a sucessão. O presente precisa existir como presente,
por isso não conseguimos imaginá-lo. Como Borges observa, “o presente não é
um dado imediato de nossa consciência” (OC IV, 239). O presente é uma entidade
tão abstrata quanto a eternidade e assemelha-se a ela.
Em “J. W. Dunne e a eternidade”, Borges explica a tese de Dunne que,
segundo ele, seria “tão atraente que sua demonstração é desnecessária; sua mera
probabilidade basta para encantar-nos” (OC IV, 465).
Dunne declara que já estamos em posse da eternidade e que podemos
percebê-lo claramente quando analisamos nossos sonhos, em que confluem
passado imediato e futuro imediato. Nos sonhos, coordenamos as visões dos
diversos tempos e construímos uma história. Em vida, estamos em plena
eternidade, mas só percebemos quando sonhamos; na morte, aprenderemos a
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manejar a eternidade que já é nossa e, recuperando todos os instantes de nossa
vida, combinaremos os mesmos como quisermos.
Talvez o tempo não exista, seja uma ilusão; talvez já estejamos em plena
eternidade, ainda que sejamos incapazes de percebê-lo. Nossa eternidade é o
presente, que também é uma prisão. Podemos nos movimentar no espaço, mas não
no tempo. O tempo não pode ser percorrido, manejado: nos apenas uma opção;
o presente. Fora dele nada existe, tudo é ilusório.
No poema Todos os ontens, um sonho” (1985), lemos: “O passado é argila
que o presente / lavra à vontade. Interminavelmente” (OC III, 553). Não temos
outro passado que aquele que nós mesmos fabricamos no presente. O passado é
uma ilusão: não fabrica o presente, mas é fabricado por ele. Nossa identidade é
fruto de nossa memória, mas nossa memória existe no presente e é
constantemente fabricada por nós. O mundo é como um sonho, uma mistura de
todos os tempos em um só, a eternidade que é o presente.
3.3
A impossibilidade do presente
Em La eternidad de lo efímero, Juan Araña afirma que Borges não
ambicionava uma eternidade como as que prometem as religiões, posterior à
morte, mas a eternidade que estaria entranhada na existência humana, na
efemeridade de sua experiência (2000, 135-6) Uma eternidade imanente que nos
livrasse, ainda em vida, de nosso desterro no tempo. Ela não seria tanto uma
negação do tempo, como observa Araña, mas uma totalização do mesmo. (2000,
136)
A idéia borgiana de eterno funda-se em uma ânsia por plenitude: todos os
tempos em um tempo, todos os pontos do espaço em um ponto. Se essa
plenitude é impossível para o sujeito, como vimos, é o impossível quanto o
presente. Como a eternidade, o presente também fratura a distensão infinita do
contínuo (Araña, 2000, 146) São dois conceitos impossíveis para nossa
imaginação, cuja índole é fundamentalmente sucessiva.
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O presente, como a eternidade, pode ser pensado como um escape para a
terrível sucessão temporal e uma que parece estar mais próxima de nós, que,
teoricamente, a estamos sempre experimentando, ainda que de maneira fugaz.
Para Daniel Freidemberg, a eternidade almejada por Borges é tangível e se
caracteriza por um contato direto, sem intermediações, com as coisas. A atividade
poética seria uma maneira de tentar este contato que, no entanto, é essencialmente
impossível. A realidade está sempre além do nosso alcance. Em A Rosa, Borges
escreve:
A rosa,
A inacessível rosa que não canto,
A que é peso e fragrância,
A do negro jardim na alta noite,
A de qualquer jardim e qualquer tarde,
A rosa que ressurge da tênue
Cinza pela arte da alquimia,
A rosa dos persas e de Ariosto,
A que está sempre só,
A que sempre é a rosa das rosas,
A jovem flor platônica,
A ardente e cega rosa que não canto,
A rosa inalcançável
(OC I, 23).
Ainda que esteja diante de nós, a rosa é inalcançável, porque a rosa está no
presente e nós estamos na fugacidade do tempo. Não podemos compreender a
rosa, sua unidade e profunda comunhão com o universo. São entidades
completamente distintas de nós, estão fora da seqüencialidade temporal.
No conto “O sul”, temos o famoso trecho em que Dahlmann, o personagem
principal, pensa, enquanto acaricia um gato, que “aquele contato era ilusório e que
estavam como que separados por uma vidraça, porque o homem vive no tempo,
na sucessão, e o mágico animal, na atualidade, na eternidade do instante” (OC I,
586).
A realidade é possível para quem vive no presente, mas os homens, seres
dotados de sujeito, estão fora da realidade, imersos na idealidade do tempo. O
presente é impossível para nós. Ele é ainda mais terrível que a eternidade
transcendente, porque temos a sensação de que está perto de nós. Mas não está;
está tão afastado de nós quanto o gato que Dahlmann acariciava.
Na palestra “O tempo”, Borges expressa seu assombro diante deste fato:
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Que extraordinário pensar que dos três tempos em que dividimos o tempo o
passado, o presente, o futuro o mais difícil, o mais inapreensível seja o presente!
O presente é tão inapreensível como o ponto. Porque, se o imaginarmos sem
extensão, ele não existe; temos de imaginar que o presente aparente viria a ser um
pouco o passado e um pouco o futuro. Quer dizer, sentimos a passagem do tempo.
Quando eu me refiro à passagem do tempo, estou falando de algo que todos vocês
sentem. Se eu falo do presente, estou falando de uma entidade abstrata. O presente
não é um dado imediato de nossa consciência (OC IV, 239).
O presente não se detém; o presente puro seria nulo, somos incapazes de
imaginá-lo se não pensarmos que é composto de uma partícula de passado e outra
de futuro. Mais ainda, nós também não nos detemos, somos outros a cada instante,
somos feitos da mesma substância do presente. Compreendê-lo seria compreender
a nós mesmos e aniquilar-nos. Como o presente, também somos inacessíveis a nós
mesmos.
Plotino e Agostinho disseram - e Borges recordou - que três tempos e os
três são o presente. Um é o presente atual, o momento em que estamos, outro o
presente do passado (a memória) e outro o presente do futuro, que é nossa
expectativa do que virá a acontecer. Fora do presente não nada. O problema é
que mal sabemos o que é o presente. A dificuldade de compreendê-lo é, em certa
medida, a dificuldade de compreender tudo. O presente é nossa única
possibilidade, mas é impossível. Em “O instante”, lemos: “O hoje fugaz é tênue e
é eterno; / Nem outro céu esperes, nem Inferno” (OC II, 318).
Por isso a memória é essencial: de alguma maneira, ela é o presente
almejado, o ponto em que passado e futuro se unem em uma substância. Mas
ela também possui um caráter paradoxal: por um lado, é somente através dela que
o eu pode existir, pois é nossa memória que nos faz crer que, ainda que sejamos
sempre outros, somos os mesmos; por outro, é justamente por sermos um eu que
somos alheios ao presente, pois a condição mesma de estar em comunhão com o
presente é a aniquilação do eu. O gato existe, está em plena realidade, em pleno
presente, porque não há um eu entre ele e a realidade. Seu contato com as coisas é
imediato, sem intermediações. O eu é como um muro que se insere entre nós e o
presente; nesse sentido, a memória é a grande vilã de nossa existência e a grande
sabedoria é almejar o esquecimento total, a morte.
O próprio conceito de presente exclui a consciência humana, à qual o fluxo,
a sucessão, é imprescindível. Um presente que pudesse ser vivido por s seria
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simultaneamente terrível e divino, como o destino de Hladik em “O milagre
secreto”.
Este conto tem início com o relato de um sonho de Jaromir Hladik, autor do
livro místico Vindicação da eternidade. Ele sonhou com um extenso xadrez
disputado por duas famílias ilustres ao longo dos séculos em uma torre secreta. O
prêmio ao vencedor da jogada havia sido esquecido, mas especulava-se que era
enorme, talvez infinito. No sonho, Hladik era o primogênito de uma das famílias
que, correndo em direção à torre, esquecia-se das figuras e das leis do xadrez.
Neste momento, ele desperta com os barulhos da invasão de Praga pelo Terceiro
Reich.
Denunciado às autoridades como judeu, Hladik foi detido e conduzido a um
quartel. Incapaz de desfazer as acusações, ele é condenado à morte. Ele seria
morto no dia vinte e nove de março, às nove da manhã. Primeiramente, ele fica
aterrorizado com sua sentea: morreria fuzilado. Imaginou a cena de sua
execução em todas as suas possibilidades e chegou a desejar que o momento
chegasse logo, pois a antecipação o consumia. Mas na véspera de sua morte, algo
maravilhoso e irônico acontece: ele concebe, em uma imagem, o drama Os
inimigos e pensa que aquele seria o livro que, se ele tivesse tempo de escrever, o
redimiria como escritor. Considerava sua obra medíocre; a vida inteira ansiara
pela inspiração que lhe acabava de ocorrer.
Conseguiu, na noite da véspera, escrever o primeiro ato e algumas cenas do
terceiro. Mas logo foi vencido pelo sono e, antes de dormir, pediu a Deus:
‘Se de algum modo existo, se não sou uma de tuas repetições e erratas, existo como
autor de Os Inimigos. Para levar a termo esse drama, que pode justificar-me e
justificar-te, requeiro mais um ano. Outorga-me esses dias, Tu de Quem são os
séculos e o tempo´ (OC I, 570).
Ele dorme e sonha que o tempo lhe é, milagrosamente, outorgado. No
momento da execução, percebe que seu sonho fora uma revelação e que, de fato,
Deus realizara seu pedido... mas de um modo inusitado: o tempo que ganhou não
era tempo sucessivo, ele não foi aliviado de sua senteça; o que ocorreu foi que o
tempo simplesmente parou; o universo físico se deteve. Hladik tentou gritar,
mexer a mão, mas logo percebeu que estava paralisado. O tempo que lhe foi
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concedido foi tempo mental. O presente se deteve logo depois de o sargento gritar
a ordem final.
Depois de dois dias de profunda agonia, em que cogitou estar no inferno,
Hladik compreendeu e aceitou com gratidão a oportunidade que lhe fora
concedida. Terminou, em sua mente, a obra:
Não dispunha de outro documento senão da memória; a aprendizagem de cada
hexâmetro que adicionava impôs-lhe um afortunado rigor que não suspeitam os
que aventuram e esquecem parágrafos interinos e vagos. Não trabalhou para a
posteridade, nem ainda para Deus, de cujas preferências literárias pouco sabia.
Minucioso, imóvel, secreto, urdiu no tempo seu alto labirinto invisível. Refez o
terceiro ato duas vezes. Eliminou algum símbolo demasiado evidente: as repetidas
badaladas, a música. Nenhuma circunstância o importunava. Omitiu, abreviou,
amplificou; em certos casos, optou pela versão primitiva. Chegou a querer o pátio,
o quartel; um dos rostos diante dele modificou sua concepção do caráter de
Roemerstadt. Descobriu que as árduas cacofonias que tanto alarmaram Flaubert são
meras superstições visuais: debilidades e moléstias da palavra escrita, não da
palavra sonora... Pôs fim a seu drama: não lhe faltava resolver senão um único
epíteto. Encontrou-o; a gota de água resvalou em sua face. Iniciou um grito
enlouquecido, moveu o rosto, o quádruplo disparo o derrubou (OC I, 572).
O tempo concedido a Hladik foi como um presente puro; esse presente
durou um ano, mas esse ano o passou, pois, ao final do conto, somos
informados de que Hladik morre exatamente às nove horas da manhã do dia vinte
e nove de março. O presente puro que viveu foi, no início, terrível, mas, depois
que ele se acostumou à paralisia, foi mais pleno que o tempo sucessivo. Durante
aquele tempo, sua concentração foi total; esse estado foi o que possibilitou a ele a
escrita de sua grande obra. Não pensou na posteridade, não se preocupou em
escrever as palavras, não pensou na sucessividade da escrita; apenas escreveu, sua
escrita foi plena como o presente.
O prêmio que lhe foi concedido, isto é, a execução mental de uma obra
perfeita, foi maior que a imortalidade que lograria com a realização física do livro.
No início do conto, o sonho com o xadrez pode ser interpretado como a angústia
de Hladik por sentir que talvez não fosse imortalizado por seu trabalho. A escrita
é como um xadrez, jogado ao longo dos séculos e o objetivo, em parte, é ganhar o
jogo. Paralisado, Hladik está fora do jogo, escreve plenamente, por escrever. É
como se a sucessividade do tempo, a existência do escritor em uma linha temporal
em que este vem precedido por outros tantos escritores, fosse uma prisão.
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A plenitude do presente é uma paralisia, é a ausência total de movimento.
Ainda que a mente continue funcionando de acordo com o tempo, na fluência
sucessiva dos pensamentos, sem o movimento das coisas ela é outra, como se a
paralisia a libertasse para sua existência plena. A mente flui, mas sua fluência não
está tão presa ao tempo quanto a do movimento físico: na mente, como na
memória, presente, passado e futuro confluem, as imagens se misturam de
maneira mais lógica. A inteligência não impõe ao fluxo mental a mesma
necessidade de ordem que impõe ao universo físico.
3.4
Concepções alternativas do tempo na obra de Borges
Além das refutações do tempo propostas por Borges, encontramos, em
muitos de seus textos, a consideração de tempos alternativos, como o tempo
cíclico, o tempo múltiplo e o tempo que regride. Essas possibilidades são
consideradas com seriedade por Borges e, através delas, ele quer mostrar que, de
fato, não podemos saber muito sobre o tempo, não podemos ter nenhuma certeza a
seu respeito.
Na palestra “O tempo”, Borges observa que, antes de Newton estabelecer a
idéia de um tempo uno, que flui uniformemente do passado para o futuro, ela era
um consenso entre os homens. Ele nota que não motivos para aceitarmos essa
concepção, que ela é tão fantástica quanto qualquer outra.
A primeira alternativa ao tempo newtoniano que comentaremos e a que
mais se assemelha a uma possível concepção de eternidade – é a do tempo
circular. Em “A doutrina dos ciclos”, Borges formula-a assim:
O número de todos os átomos que compõem o mundo é, embora desmedido, finito,
e capaz, como tal, de um número finito (embora também desmedido) de
permutações. Num tempo infinito, o número de permutações possíveis deve ser
alcançado, e o universo tem de se repetir. Novamente nascerás de um ventre,
novamente chegará esta mesma página às tuas mãos iguais, novamente percorrerás
todas as horas até a de tua morte inacreditável (OC I, 425).
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Borges confessa que o sabe se é capaz de refutar a tese. Ainda que as
combinações de átomos sejam assombrosas, não são infinitas ou, ao menos, não
podemos postular que sejam.
Borges diz que a refutação de Cantor (que baseia-se em sua teoria dos
conjuntos e afirma que, mesmo em um metro do universo infinitos pontos e,
como as partes do universo são o infinitas quanto o universo, as combinações
das partículas o também infinitas e, portanto, não se repetem) é, de fato, mortal
para a doutrina dos ciclos. Mas é também inconcebível. É tão inconcebível quanto
a doutrina.
Borges lembra que a doutrina dos ciclos é muito antiga, tendo nascido com
os pitagóricos, e que passou a ser questionada na Idade Média, quando Santo
Agostinho a repeliu argumentando que toda a dignidade dos atos especialmente
da morte de Cristo na cruz era perdida quando imaginávamos que se repetiam
infinitamente.
Mesmo assim, a doutrina sobrevive a Nietzsche que, estranhamente,
declara-se seu inventor, ainda que soubesse de sua tradição. Borges diz que
Nietzsche faz isso porque o estilo profético não permite o emprego das aspas
nem a erudita citação de livros e autores” (OC I, 430). Nietzsche é inventor da
doutrina porque a descobre por si mesmo, em uma de suas caminhadas. A idéia
vem a ele em estado puro.
Borges acrescenta ainda que, antes de Nietzsche, a imortalidade pessoal era
um projeto confuso; com ele, ela se transforma em dever. A grande obrigação dos
homens passa a ser a de suportar a imortalidade. Devemos querer o eterno retorno
e a eternidade de nossa existência; é a única forma de escapar do terror que
causam. Mauthner argumentou que acreditar nisso era negar o eterno retorno,
porque implicaria que cada retorno seria diferente. Mas, para Nietzsche, a
formulação da doutrina era necessária justamente para libertar os homens.
Para explicar a origem do tempo, Nietzsche recorre, como os teólogos, à
Eternidade Anterior. Borges condena esta idéia, dizendo que é mero reflexo de
nossa incapacidade de conceber o início do tempo e que “Sofremos da mesma
incapacidade no que se refere ao espaço, de modo que invocar uma Eternidade
Anterior é tão decisivo como invocar uma Infinidade à Mão Direita” (OC I, 432).
Para Borges, ao menos nesse texto, a Eternidade Anterior o pode ter nada a ver
com o tempo real decorrido, ela não explica nada.
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Borges finaliza o texto com a asserção de que, ainda que aceitemos a tese de
Nietzsche, não poderemos afirmar que os ciclos o vários: dois ciclos idênticos
se aglomeram em um. Os infinitos ciclos, se são idênticos, não passam de um.
Portanto a tese de Nietzsche é contraditória: não retorno, apenas um
processo se desenrolando infinitamente. Ou seja, a repetição não significa retorno,
apenas o mesmo ciclo se desenrolando: dois processos idênticos são o mesmo
processo.
Em O tempo circular”, Borges define os três modos fundamentais do
Eterno Regresso.
O primeiro é o de Platão. De acordo com ele, os sete planetas sempre
voltam à posição inicial e cada retorno constitui um ano perfeito”. A partir desta
proposição, um astrólogo teria formulado que, a cada ciclo, a história universal
necessariamente se repete. Aqui, evidencia Borges, o argumento é astrológico.
O segundo modo da teoria é o que foi divulgado por Nietzsche e defendido
por Le Bom e por Blanqui. Afirma que um número finito de forças (para
Nietzsche), átomos (para Le Bom) ou corpos simples (para Blanqui) é passível de
um número finito de combinações e que, portanto, a história se repete
ciclicamente. Borges concorda com a refutação de Bertrand Russell para este
modo, segundo a qual a repetição do mesmo ciclo é impossível; se dois ciclos são
idênticos, não há repetição de nada, há apenas um ciclo.
O terceiro modo é, para Borges, o “menos pavoroso e melodramático, mas
também o único imaginável” (OC I, 435-6). É a concepção dos ciclos
semelhantes, mas não idênticos. De acordo com ela, os muitos destinos
individuais são análogos, o como ciclos semelhantes; nada se repete, pois não
vida no passado, a única forma de vida é o presente e fora dele não nada.
Não podemos dizer que estamos vivendo novamente porque não podemos dizer
que vivemos no passado. Cada homem, ainda que viva apenas uma hora, vive
tudo o que para viver, que é o presente. Isso pode parecer um empobrecimento
do mundo, mas não é, porque as pequenas diferenças entre os diversos ciclos
garantem a diversidade.
Em “Os quatro ciclos”, Borges aplica uma tese análoga à literatura. “Quatro
são as histórias.”, diz ele (OC II, 542). A primeira, a mais antiga, seria a de uma
cidade forte que é defendida por homens valentes; estes, por sua vez, sabem que a
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batalha é inútil e que a cidade será perdida. É o caso da história de Aquiles, que
desde o início sabe que vai morrer antes da vitória.
A segunda, seria a de um regresso, como a de Ulisses, por exemplo. A
terceira é a de uma busca e é uma variante da anterior. Essa busca pode ser
venturosa ou estar destinada ao fracasso. A última história é a do sacrifício de um
deus, como a de Cristo. “Quatro são as histórias. Durante o tempo que nos resta,
continuaremos a narrá-las, transformadas” (OC II, 543).
Em muitos textos, Borges defende que escapar das repetições (ainda que
elas contenham leves variações) é impossível: em “A nova refutação do tempo”,
lemos “Essas tautologias (e outras que calo) são minha vida inteira. Naturalmente,
elas se repetem sem precisão; diferenças de ênfase, de temperatura, de luz, de
estado fisiológico geral” (OC II, 157); no prólogo a O informe de Brodie, “Alguns
argumentos perseguiram-me ao longo do tempo; sou, decididamente, monótono”
(OC II, 424); em “O sul”, “A realidade gosta das simetrias e dos leves
anacronismos; Dahlmann havia chegado à clínica num carro de praça e agora um
carro de praça o levava à estação Constitución (OC I, 585); em A trama”,
Borges relembra o assassinato de César, de que participou seu protegido Bruto e,
argumentando que “Ao destino agradam as repetições, as variantes, as simetrias”
(OC II, 191), acrescenta que, dezenove séculos depois, um gaúcho morre nas
mãos de seu afilhado somente para repetir uma cena.
Em outros textos, Borges argumenta que a história universal é a história das
transformações das mesmas metáforas: em A esfera de Pascal”, lemos “Talvez a
história universal seja a história de algumas metáforas” (OC II, 12); Em “In
memoriam J.F.K.”, “Esta bala é antiga (...) No alvorecer do tempo foi a pedra que
Caim atirou em Abel e será muitas coisas que hoje sequer imaginamos” (OC II,
253).
Como vimos, a repetição, em Borges, é também um meio de refutar o
tempo. Se as circunstâncias de dois eventos são as mesmas, não repetição; é o
mesmo evento que está ocorrendo. Pequenas diferenças circunstanciais não
parecem abalar esta crença. A bala que matou J.F.K. foi “outras coisas, porque a
transmigração pitagórica não é própria apenas dos homens(OC II, 253). A bala
foi os cravos que feriram Cristo e foi a cicuta que Sócrates bebeu. Não
novidade no mundo, apenas pequenas variações circunstanciais. O fato de um
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rouxinol ser levemente diferente do outro, não importa: os rouxinóis servem
sempre ao mesmo fim, são sempre o mesmo. Todas as rosas são uma rosa, a Rosa.
Compreendemos, portanto, que a repetição, em Borges, está ligada à
identidade. Duas coisas idênticas são a mesma; dois eventos idênticos são
indiscerníveis. Não pode haver multiplicidade onde igualdade. Não muitos
rouxinóis, há apenas um, ainda que observemos muitos. As coisas estão como que
multiplicadas por espelhos, a multiplicidade é ilusória e a ilusão é conseqüência
do sujeito. As coisas o são tão delimitadas quanto nossa percepção faz parecer:
a bala que matou J.F.K. é uma transmutação de outras armas que existiram e que
existirão sempre. A fluidez que permeia os limites da realidade, a unidade
implícita que simplifica o mundo, estão por trás do interesse borgiano pelo tempo
circular: a repetição indefinida dos eventos como que reforça a fluidez, transforma
tudo na mesma massa indefinida, todas as coisas passam a ser leves variações do
todo.
Não podemos dizer que o homem essempre voltando a existir através do
Eterno Retorno, mas que o homem é imortal, que existe indefinidamente, no
presente. E que o homem, sendo parte desse processo que se repete eternamente, é
todos os homens e todas as coisas. Tudo é um. Não o tempo é circular, cada
objeto inserido no tempo, cada homem, está sujeito à circularidade, à repetição.
Vislumbramos um certo panteísmo nesta crença: cada coisa é única, mas é
todas as outras coisas; as partes são tão extensas quanto o todo. No prólogo a O
informe de Brodie, lemos: Tentei, não sei com que resultados, a redação de
contos diretos. o me atrevo a afirmar que são simples; não na terra uma
única página, uma única palavra que o seja, que todas postulam o universo”
(OC II, 423). Cada coisa é todo o universo e todo o tempo; cada coisa é um Aleph
que tudo contém. Tudo vem implicado por uma infinita rede causal precedente.
A repetição é inevitável, mas, de fato, não há repetição. Há apenas um único
evento que se desenrola e que mostra, aqui e ali, pequenas variantes que, de modo
algum, o tornam outro. A repetição é mais uma ilusão, uma blasfêmia, como o
tempo.
A idéia de que todas as coisas constituem uma unidade fundamental
assemelha-se à de eternidade, na medida em que, se todas as coisas são a mesma,
o tempo o existe. a passagem do tempo poderia fabricar diversidade; se
todas as coisas são a mesma, não há diversidade e, portanto, o tempo é uma ilusão
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que quer distrair-nos da unidade e da simplicidade do cosmo. As pequenas
diferenças com que o tempo mascara os eventos são ilusões.
De acordo com outra interpretação, as possibilidades são tantas que se
anulam. As pequenas diferenças são variáveis cuja soma tende a zero. O que
importa é o fato ocorrido e o seus detalhes. Em “A lenda”, Caim e Abel se
encontram depois da morte de Abel; Caim pede que o irmão o perdoe por seu
crime e Abel responde “Tu me mataste ou eu te matei? (...) não me lembro;
aqui estamos juntos como antes” (OC II, 415).
Além do Eterno Retorno, Borges considera a possibilidade de um tempo
múltiplo, composto, não por uma única rie que flui em uma direção
determinada, mas por muitas, talvez infinitas série.
Em “O tempo”, ele cita a hipótese do metafísico inglês Bradley:
Podemos supor a existência de diversas séries de tempo dizia ele o
relacionadas entre si. Teríamos uma rie que poderíamos chamar de ‘a’, ‘b’, c’,
‘d’, ‘e’, ‘f’... Estes dados se relacionam entre si: um é posterior a outro, um é
anterior a outro, um é contemporâneo de outro. Mas poderíamos imaginar outra
série, com alfa, beta, gama... Poderíamos imaginar outras séries de tempos (OC IV,
238).
Ele defende que, ainda que esta hipótese seja difícil de imaginar, o temos
motivos para defender a existência de uma rie única de tempo. Ele diz que
podemos pensar, também, o que é ainda mais complexo, que a vida de cada um
constitua uma série temporal distinta e independente das outras: É uma idéia
possível; ela nos daria um mundo mais vasto, um mundo muito mais estranho que
o atual” (OC IV, 238). Ele compara essa idéia às doutrinas da física moderna, que
diz não conhecer muito bem.
Em “O tempo e J. W. Dunne”, Borges resume a concepção de tempo do
engenheiro aeronáutico e teórico inglês. Este teria extraído da regressão infinita
uma doutrina “bastante assombrosa do sujeito e do tempo” (OC II, 23).
Os tratados de Dunne se baseiam no anteriormente professado argumento
de que o sujeito não pode conhecer a si mesmo, pois seu conhecimento tornaria
necessária a existência de outro sujeito conhecedor e assim infinitamente. Para
Dunne, esses inumeráveis sujeitos não cabem nas três dimensões do espaço, mas
nas também inumeráveis dimensões do tempo.
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Borges afirma que “o procedimento de Dunne para a obtenção imediata de
um número infinito de tempos é menos convincente e mais engenhoso” que o de
outros filósofos (OC II, 24). Ele postula a preexistência do futuro, para o qual flui
o rio do tempo absoluto; mas esse fluir também exige tempo: teremos, portanto,
um tempo segundo para o traslado do primeiro; um terceiro para o traslado do
segundo, e assim até o infinito...” (OC II, 25). Em cada um desses tempos, mora
cada um dos sujeitos que o outro regressus implica.
Borges zomba da complexa teoria de Dunne, afirmando, em sua típica
ironia:
Não sei qual será a opinião de meu leitor. Não pretendo saber que coisa é o tempo
(nem mesmo se é uma ‘coisa’), mas intuo que o curso do tempo e o tempo são um
único mistério, e não dois. Dunne, suspeito, comete um erro semelhante ao dos
distraídos poetas que falam (digamos) da lua que mostra seu rubro disco,
substituindo assim uma indivisa imagem visual por um sujeito, um verbo e um
complemento, que não é outro senão o próprio sujeito, ligeiramente mascarado...
Dunne é uma vítima ilustre desse mau hábito intelectual denunciado por Bergson:
conceber o tempo como uma quarta dimensão do espaço. Postula que o futuro
existe e que devemos trasladar-nos a ele, mas esse postulado basta para transformá-
lo em espaço e para requerer um tempo segundo (que também é concebido sob
forma espacial, sob a forma de linha ou de rio) e depois um terceiro e um
milionésimo (OC II, 25).
observamos como Borges, em diversos momentos, priorizou o tempo
como questão metafísica, considerando o espaço como uma questão menor.
Conceber o tempo como dimensão do espaço é, para ele, perder o essencial do
problema. O tempo deve ser pensado em termos de tempo, ainda que isso o torne
ainda mais misterioso e inacessível.
Na ficção, o principal conto que tem por tema o tempo múltiplo é “O jardim
de veredas que se bifurcam”. O livro de Ts´ui Pen é infinito, pois cada vez que um
homem se defronta com alternativas, opta simultaneamente por todas: Cria,
assim, diversos futuros, diversos tempos que também proliferam e se bifurcam”
(OC I, 531). A personagem Stephen Albert explica que o grande tema do livro de
Pen é o tempo e que este é “uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo
tal como concebia Ts´ui Pen” (OC I, 532). De acordo com ele, Pen não acreditava
em um tempo uniforme e absoluto, mas em tempos divergentes, convergentes e
paralelos, uma rede multidimensional de tempo que abrange todas as
possibilidades.
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Esta concepção de tempo aponta para a complexidade da própria questão do
tempo. Como dizer que todos os eventos que se desenrolam estão inseridos em
uma única série temporal? Se tudo é diverso e múltiplo, como podemos postular
que o tempo é uno e absoluto? A própria ausência de critérios absolutos, a
observação da multiplicidade do mundo, parecem implicar um tempo menos
uniforme, mais de acordo com a realidade que determina. Não há nada que
comprove que a concretização de um evento elimine as possibilidades de que ele
se dê de outra forma.
Ainda que de maneira resumida, Borges também propõe outra concepção de
tempo: o tempo invertido, que flui do futuro para o passado. Novamente em “O
tempo”, Borges diz que duas teorias sobre o tempo: a que, como a maioria dos
homens, o tempo como um rio que flui do passado para o presente e a de
Bradley, que diz que tudo acontece ao contrário, fluindo do futuro para o passado.
Borges diz que situar o manancial do tempo no passado ou no futuro no
mesmo” (OC IV, 236). O que importa é que estamos sempre diante de um rio que
flui. Tanto faz se a origem do tempo está no passado, no futuro ou em um ponto
fora do tempo – a eternidade – como quiseram Platão e os teólogos.
Concluímos que, justamente por ser essencialmente cético, Borges se
permite considerar hipóteses completamente diversas a respeito do tempo, sem se
sentir na obrigação de optar por uma ou por outra e utilizando todas elas como
recursos para a composição de contos fantásticos ou de ensaios. O que interessa
para ele, são as possibilidades e o assombro de imaginá-las.
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4
Eternidade e Literatura
Examinaremos, neste capítulo, a relação, na obra de Borges, entre o
conceito de eternidade e sua visão da literatura.
4.1
A eternidade e a literatura como atividade impossível
Na obra de Borges, a literatura será, em alguns momentos, vista como
atividade impossível ou irrealizável de maneira plena. Borges atribuirá essa
impossibilidade a duas características básicas da atividade literária: a
temporalidade da linguagem, que exige que uma palavra seja posta depois da
outra, impedindo que o todo seja plenamente comunicado e a irrealidade ou
virtualidade das palavras, que, por serem símbolos arbitrários, jamais podem fazer
ver algo que seja, de fato, real, que tenha uma conexão intrínseca e evidente com
o universo.
Essa dupla impossibilidade da literatura, em Borges, aparecerá ligada ao
conceito de eternidade: primeiro, porque só se pode imaginar que o empecilho que
é a sucessividade da linguagem seja abolido em um espaço hipotético e sagrado
em que o tempo seja anulado e todas as palavras se aglomerem em uma única
palavra sagrada, que profira tudo ao mesmo tempo; segundo, porque a comunhão
visada entre linguagem e realidade aponta para um desejo do escritor de fazer do
espaço literário um espaço sólido, composto por arquétipos imunes ao tempo e a
escolhas contingentes.
Ao mesmo tempo em que o objetivo último da literatura desvencilhar-se
das barreiras do tempo e produzir algo pleno e real é impossível, a literatura,
para Borges, é a forma mais eficaz de se fazer vislumbrar o eterno inconcebível.
De alguma maneira, a eternidade se deixa ver através da linguagem literária ou da
organização da linguagem em um poema ou texto narrativo. Estudaremos esse
caráter contraditório da literatura que é enfatizado por Borges em prólogos,
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ensaios e poemas (além de influenciar indiretamente a escrita de seus contos)
paralelamente às propostas teóricas de Peter Salm e de Paul Ricoeur, a respeito da
literatura.
Em Time and narrative, Paul Ricoeur observa que, apesar de o tempo,
aparentemente, ser desprovido de ser (já que o passado não é mais, o presente não
tem duração e o futuro ainda não é), a linguagem fala a respeito dele como se ele
tivesse ser. Isto é: ainda que não saibamos precisamente de que maneira o tempo
existe, a linguagem aponta o tempo todo para sua existência. Dizemos que, no
futuro as coisas serão, que elas são no presente e que foram no passado, apesar
disso não fazer sentido ontologicamente. Portanto, é precisamente o uso da
linguagem que oferece argumento contra a tese do o-ser do tempo e é somente
inserido em nossa fala que o tempo tem sentido para nós.
Todavia, não sabemos explicar por que falamos sobre o tempo com tanta
certeza de que ele existe. Nossa impotência para explicar sua existência, faz com
que ponhamos a própria linguagem em questão: se a linguagem utiliza, com tanta
desenvoltura, um conceito cuja realidade desconhece, devemos desconfiar dela.
Mas, ainda que desconfiemos sempre da linguagem, ela permanece sendo o único
artifício capaz de tratar do tempo de modo a torná-lo humano, de fazer com que
seja compreendido como uma experiência humana.
Ricoeur quer mostrar que a relação entre tempo e narrativa é circular, isto é,
que o tempo se torna humano na medida em que é organizado em uma narrativa e
que esta, em contrapartida, atinge seu sentido último na medida em que retrata
a temporalidade da experiência humana.
Ricoeur defende, dessa maneira, que a especulação em torno do tempo é
uma reflexão a que somente a atividade narrativa pode responder, ainda que não
responda a este questionamento de maneira teórica; ela só pode responder de
maneira poética e esta é a única resolução possível (1984, 5). Para ele, somente a
transfiguração poética da pergunta sobre o tempo que a resposta é
inalcançável – pode chegar perto de libertá-la da falta de sentido que ela engendra.
E isso ocorre porque, através da poesia, o tempo se aproxima da eternidade, ainda
que de maneira limitada. Essa aproximação, no entanto, jamais se completa. Em
suas palavras: “Peregrination and narration are grounded in time´s approximation
of eternity, which, far from abolishing their difference, never stops contributing to
it” (1984, 29).
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82
A narrativa, portanto, não abole a diferença entre tempo e eternidade, mas
contribui constantemente para que seja abolida. Ricoeur acredita que a
organização de eventos em uma narrativa forma um todo coerente que se
relaciona com suas partes de maneira harmônica, de modo que cada parte passa a
ter um sentido dentro do todo. Os eventos dentro de uma narrativa jamais são
contingentes, estão sempre relacionados ao todo da obra. como uma lei, uma
necessidade que rege as particularidades da narrativa. Daí a sensação de que ela
contribui para a resolução da questão do tempo: a união de eventos aparentemente
distantes, o estabelecimento de uma lógica por trás de acontecimentos arbitrários,
tem como efeito uma suspensão da linearidade temporal, das relações usuais de
causa e efeito: “The ‘logic’ of emplotment discourages any consideration of time,
even when it implies concepts such as beggining, middle and end, or when it
becomes involved in a discourse about the magnitude or the length of the plot”
(Ricoeur, 1984, 52). Assim, a seqüencialidade das palavras se torna menos
evidente em uma narrativa, deixando transparecer menos sua temporalidade,
porque há uma “lógica” por trás, algo que amarra o texto e lhe confere unidade.
Daí o paralelo que Ricoeur estabelece entre metáfora e narrativa. Para ele,
apesar de a metáfora pertencer tradicionalmente à teoria das figuras de linguagem
e a narrativa à dos gêneros literários, o sentido ou efeito produzidos por cada uma
pertencem ao mesmo fenômeno básico da inovação semântica.
Na metáfora, a inovação aparece na produção de uma nova pertinência
semântica por meio de uma atribuição impertinente: a metáfora vive contanto que
percebamos, por trás do novo sentido, a resistência do uso ordinário das palavras
e, portanto, sua incompatibilidade no nível da interpretação literal da frase. Mas,
segundo Ricoeur, o deslocamento no sentido das palavras não constitui o todo da
metáfora: é uma parte do processo que ocorre com toda a frase, cuja função é
resguardar o novo sentido ameaçado pela incongruência literal da atribuição.
na narrativa, a invenção semântica reside na invenção de outra síntese – o
enredo (plot). Assim como a metáfora, a narrativa sintetiza o heterogêneo e a
compreensão do seu sentido depende da percepção de um novo uso da linguagem,
que resulta da congruência inédita da organização dos eventos.
Para Ricoeur, a mudança de distância entre os termos, no espaço lógico, é
que constitui o trabalho da produção imaginativa. A metáfora produz novas
espécies lógicas através da assimilação predicativa, apesar da resistência de nossas
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categorizações usuais da linguagem. A narrativa faz o mesmo, unindo eventos
múltiplos e esparsos, esquematizando a significação inteligível ligada à narrativa
vista como um todo.
Mas Ricoeur enfatiza que o paralelo entre metáfora e narrativa vai mais
além: a suspensão da função referencial direta é o lado inverso de uma função
referencial mais oculta do discurso, que é liberada pela suspensão do valor
descritivo das proposições. O discurso poético traz à linguagem aspectos,
qualidades e valores de realidade que não são acessíveis à linguagem descritiva e
que podem ser proferidos através do jogo complexo entre a proposição
metafórica e a transgressão regrada do sentido usual das palavras. Para Ricoeur,
há, além do sentido metafórico, uma referência metafórica. Esta consistiria no
poder da proposição metafórica de descrever uma realidade inacessível à
descrição direta. O “ver-como” revela um “ser-como” no nível mais profundo da
ontologia. É como se, através da transgressão, a linguagem se tornasse menos
suspeita para abordar o tempo.
Segundo Ricoeur, há, nas narrativas, um meio privilegiado através do qual
reconfiguramos nossa confusa experiência temporal. É justamente na capacidade
da composição poética de reconfigurar a experiência temporal, que reside a
função referencial do enredo. A narrativa realiza isso imitando a ação através da
linguagem poética. Ou seja, a função mimética da narrativa origem a um
conflito paralelo ao da referência metafórica. É, de fato, uma aplicação da mesma
à esfera da ação humana. A mímesis, segundo Ricoeur, ocorre em três etapas:
primeiro, há uma referência à ordem da ação; depois, entra-se no âmbito da
composição poética; por último, há uma nova configuração, por meio da
refiguração poética, da ordem da ação.
Peter Salm não chega a postular uma função referencial da narrativa, mas
também aponta para o caráter absoluto do texto literário, isto é, para sua
propriedade de, sendo constituído por partes, simular um todo congruente. No já
citado Pinpoint of Eternity, ele aponta que o grande paradoxo da literatura é ser
ela uma arte temporal visando a uma presença instantânea nas mentes do escritor e
do público:
Literature is irrevocably a temporal art. The notion that sentences, acts of a drama
and entire novels may have or ought to have an instantaneous presence in the
minds of both writer and his public, may at first seem strained and quixotic. Yet
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along with the succession of events which form the skeletal structure of a fiction, it
is possible to perceive in it – surrounding and suffusing the chronology – an
instantaneous and concentrated form of a meaningful presentness (1986, 3).
De acordo com ele, a empresa literária, em última instância, sempre
fracassa, ainda que consiga um sucesso relativo. É, por definição uma arte trágica,
que parte do princípio de que jamais atingirá seu objetivo último: o de romper a
ligação humana com o tempo seqüencial.
Borges parece concordar com Salm quando enfatiza a insuficiência das
palavras para a comunicação do todo. Em “Mateus 25, 30” (1953), lemos: “E
desde o centro de meu ser, uma voz infinita / Disse estas coisas (estas coisas, não
estas palavras, / Que o minha pobre tradução temporal de uma única palavra)”
(OC II, 275). No mesmo poema, o eu lírico se queixa de que, ainda que o mundo
inteiro lhe tenha sido dado, toda a variedade divina das coisas, não logrou a
realização de um poema que se igualasse a estas coisas em divindade: “Gastaste
os anos e te gastaram, / E, contudo, não escreveste o poema” (OC II, 275).
Para Borges, o escritor não quer falar de uma rosa qualquer, desta ou
daquela rosa; quer chegar à Rosa, única e inacessível, que está fora do tempo e do
espaço. Por isso sua tarefa é impossível. O sagrado não pode ser expresso na
linguagem, ainda que possa ser vislumbrado através da literatura, como defende
Ricoeur. Assim, quando Borges não consegue se expressar em argumentos lógicos
(ainda que se valha de uma lógica metafísica), recorre ao texto literário: em “Nova
refutação do tempo”, depois de diversas páginas de argumentação filosófica, ele
transcreve o conto “Sentir-se em morte”, justificando-se nas seguintes palavras:
“toda linguagem é de índole sucessiva; não é apta para pensar o eterno, o
intemporal. Aqueles que tenham acompanhado com desagrado a argumentação
anterior talvez prefiram esta página de 1928” (OC II, 158).
Peter Salm explica que a literatura permite o vislumbre de uma imagem
universal que se assemelha ao eterno. Ele acrescenta que, ainda que nem toda a
literatura queira a mesma coisa, mesmo em romances em que não observamos
nenhuma preocupação especial com a sucessividade ou com a simultaneidade,
como Madame Bovary de Flaubert ou Crime e castigo de Dostoevsky, os autores
precisam organizar suas ficções em conformidade com a progressão do tempo e
que, na medida em que os trabalhos dos mesmos incorporam significados
atemporais que pairam sobre a sucessividade dos eventos da trama, eles partilham
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da contradição entre “universal” e concreto” que mencionamos anteriormente
(Salm, 1986, 126).
Como Borges, Salm reconhece, diretamente, a transcendência temporal ou a
visão de uma convergência do tempo no presente, como um dos próprios impulsos
da literatura. A metáfora, sem a qual torna-se difícil de conceber a atividade do
escritor, seria, para Salm, uma união de termos díspares e, conseqüentemente, a
abolição do espaço e do tempo que existe entre eles; uma sublimação da linha que
os separa. Ou, nas palavras de Salm:
When we in turn think of ‘the eternal moment’, ‘the maximum in the minimum’, or
‘the all-encompassing center’ – to mention only a few such expressions – it can be
verified that the closest possible pairing of extreme polarities is their constant
characteristic. While it is indisputable that the reconciliation of such polarities is
beyond human reach, the attempt to achieve it is the substance of many religious
and poetic endeavors (1986, 8).
Para Ricoeur, na metáfora, como no enredo, o novo brota na linguagem: na
primeira, através de uma nova pertinência na predicação; no segundo, por meio de
uma nova congruência na organização dos eventos. Ele observa que as narrativas
não resolvem a questão do tempo, mas são um meio privilegiado que nos permite
reconfigurar nossa confusa e não formada experiência temporal, através de uma
nova função referencial (1984, X-XI).
Ricoeur aponta que o que está em jogo no caso da identidade estrutural da
função narrativa, bem como na prerrogativa de verdade de todo trabalho narrativo,
é o caráter temporal da existência humana. O mundo desdobrado por todo
trabalho narrativo é um mundo temporal. O tempo torna-se tempo humano na
medida em que é organizado em uma narrativa; em contrapartida, a narrativa faz
sentido na medida em que retrata aspectos da experiência temporal. Mas ainda que
dê sentido ao questionamento do tempo, a narrativa não dá fim a ele:
Speculation on time is an inconclusive rumination to which narrative activity alone
can respond. Not that this activity solves the aporias through substitution. If it does
resolve them, it is in a poetical and not theoretical sense of the word (1984, 6).
A mera transfiguração poética do problema do tempo, portanto, liberta a
aporia de sua ausência de sentido. Dando sentido à questão, o escritor não
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encontra a resposta, mas compreende melhor o problema, o que causa alguma
satisfação intelectual.
Ricoeur defende que todo o questionamento da linguagem, típico dos
escritores, envolve um questionamento do tempo. Observamos isso na famosa
meditação de Santo Agostinho, em que afirma que só sabe o que é o tempo
quando não o perguntam. O desafio não é saber o que é o tempo, mas ter de
responder, com palavras, à questão do tempo. O tempo é vivido, mas não pode ser
proferido sem que se abra um novo questionamento a respeito da linguagem. Faz
parte de cada gesto, cada palavra, mas não pode ser posto em palavras: a não ser
que re-configuremos as palavras, de maneira que, distantes de seu uso comum,
possam dizer alguma coisa a respeito do tempo. Essa re-configuração pode
acontecer através da re-descrição metafórica ou por meio da mímesis da narrativa.
Mas Ricoeur salienta que essas duas maneiras de transgressão da linguagem usual
estão tão ligadas que podemos misturar as expressões e falar do valor mimético do
discurso poético e do poder de re-descrever do discurso narrativo. A partir daí,
desdobra-se uma vasta esfera poética que inclui a sentença metafórica e o discurso
narrativo e que se mostra mais adequada para tratar do tempo, justamente porque
se afasta da questão do tempo, parece resolvê-la porque aproxima-o da eternidade.
Peter Salm postula que, muitas vezes, será a impossibilidade da tarefa
proposta pela literatura, de criar uma nova realidade desprendida do tempo, o
critério para a valoração da obra artística: pode-se considerar que o autor bem-
sucedido é o que convence o leitor de que realizou o impossível. A madeleine de
Proust, por exemplo, reúne em si os seis volumes da Recherche, sendo como o
centro eterno da circunferência que é a obra.
A literatura é, para Salm, como o meio do caminho entre a sucessividade
temporal e as idéias universais e absolutas. Nem os conceitos nem as palavras em
seqüência existem como entidades separadas. O enredo se configura em função de
uma idéia e, concomitantemente, a idéia emerge da padronização dos eventos que
constituem o enredo. Por isso, nem o resumo do enredo nem a idéia por trás do
trabalho podem transmitir o sentido de uma obra. O trabalho literário não
significa, mas é (Salm, 1986, 11).
Borges aponta que o fato estético é tão evidente, imediato e indefinível
quanto “o amor, o sabor da fruta, a água (OC III, 289). Ele acrescenta que
“Sentimos a poesia como sentimos a proximidade de uma mulher, ou como
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sentimos uma montanha ou uma baía” (OC III, 289). A poesia, como o mundo, é
uma realidade cujas partes são o todo. É nesse sentido que a poesia, em parte,
supera a sequencialidade das palavras: as palavras não existem sem o todo; a
poesia não pode ser entendida como uma seqüência de palavras, mas como um
ser, cujas partes não existiriam sem o todo e vice-versa.
Escrever é delimitar, em um todo, um particular que o exprima. O particular
deve acusar o todo ao qual pertence, dando ao leitor a sensação de que ele
constitui um todo em si. Quer a obra tenda para um ou para o outro eixo, o leitor é
sempre capaz de traduzir o que experimentou em algo com significado universal.
Este efeito não está ligado a uma nem à outra tendência estilística. Ainda que esta
tradução seja complicada, por vezes – como em textos contemporâneos em que os
autores tentam, ao máximo, afastar-se de representações metafóricas,
aproximando-se do eixo metonímico – é ela que o leitor buscará e que o permitirá
avaliar a obra. O texto literário tem sentido ainda que seja a representação da
ausência de sentido, do absurdo da vida. Mesmo nestes casos, a sucessividade das
palavras, frases e parágrafos, é permeada pelo senso atemporal da ausência de
sentido. Todo texto literário possui uma imagem universal.
Para Borges, a imagem do poema é universal porque é algo que preexiste.
Ele diz que o dever do poeta é, meramente, encontrá-la (OC III, 288). Revelando a
maneira como escreve, ele diz: “Parto de um conceito geral; sei mais ou menos o
princípio e o fim, e depois vou descobrindo as partes intermediárias, mas não
tenho a sensação de inventá-las, não tenho a sensação de que elas dependem de
meu arbítrio; as coisas são assim” (OC III, 288). Assim, para ele, a poesia parte de
uma idéia geral, que preexiste; ao entrar em contato com essa idéia, ao descobri-
la, o poeta vai sendo levado a descobrir também partes individuais que, juntas,
expressem a idéia inicial. Borges afirma que é justamente por conta dessa idéia
preexistente que, quando lemos um bom poema, sentimos que também nós
poderíamos tê-lo escrito; o poema preexiste em nós.
Ricoeur uma relação entre a experiência vivida, em que a discordância
vence a concordância, e a experiência verbal, em que a concordância emenda a
discordância (1984, 31). Para ele, a narrativa fornece uma imagem universal e
eterna porque estabelece uma ordem que une os termos díspares. Esta ordem
distancia-se do conceito de tempo porque não é uma estrutura temporal; é um
todo, uma estrutura lógica com início, meio e fim, que se distancia do tempo. A
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organização dos eventos em uma narrativa exprime o universal e o possível e não
o particular e atual (1984, 40). Conceber uma conexão causal entre os eventos,
fazer o inteligível brotar do acidental, são espécies de universalização (1984, 41).
Ricoeur faz um paralelo entre o questionamento agostiniano do tempo e a
análise aristotélica da poética. Para ele, o conceito de Aristóteles de muthos (a
organização dos eventos em uma narrativa), oferece uma resposta à fragmentação
da alma sofrida por Agostinho. A alma fragmenta-se em três presentes: a presença
do passado (a memória), o momento presente e a presença do futuro (a
expectativa). A organização dos três tempos em uma narrativa ameniza essa
fragmentação, permite a intuição do tempo como um todo coerente. O enredo é
uma imitação da ão (mímesis), mas, através dele, ela é elevada ao nível do
universal e da possibilidade; pois a estrutura do enredo é lógica e não temporal.
Essa estrutura lógica distancia-se do tempo. Através dela, cria-se um todo que não
é copiado da realidade, mas passa a ser imposto a ela, passa a explicá-la. Apesar
de os fatos da trama não serem universais, a relação entre eles, as conexões
internas à ação, são universais.
O fazer da muthos é sempre um fazer universalizante. Fazer uma muthos é
justamente fazer o inteligível brotar do acidental, o universal do singular, o
necessário do episódico. O poeta é um imitador da ação. Ainda que trabalhe com
um fato real, ele o abordará como fato provável. Mesmo os imprevistos, em um
enredo, parecem acontecer por desígnio. Tornando necessários os incidentes, a
trama os purifica.
Borges argumenta que a poesia é como uma realidade, tão divina e
incompreensível quanto as coisas que compõem a natureza e que somente um
deus poderia decifrar (OC III, 289). Em um poema, cada palavra aponta para o
todo e o todo aponta para cada palavra. Mais do que isso: cada palavra é o todo e
o todo é cada palavra. Se analisarmos uma palavra em si, destacada do todo,
veremos que ela não tem fundo, que é vazia. Mais uma vez aqui, o fascínio
borgiano pela relação entre as partes e o todo: vemos que sua visão de mundo e
sua visão de literatura se assemelham sob este aspecto. O que torna o mundo e a
literatura divinos é a complexa relação, que podemos encontrar em ambos, entre
as partes e o todo.
Salm explica que o acesso que temos à verdade é parcial e se através de
representações simbólicas. Assim, a compreensão do símbolo é necessariamente
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ingênua, pois ele cria algo novo, que não pode ser verbalizado, que é apenas
contemplado. É impossível conhecer o símbolo: trabalhamos com ele, a partir
dele, mas jamais o deciframos a não ser por outros símbolos indecifráveis. Isto
porque a faculdade que interpreta o símbolo é a intuição pura e ela se inibe cada
vez que a consciência interfere. Borges diz algo parecido a respeito da beleza:
“Tenho para mim que a beleza é uma sensação física, algo que sentimos com todo
o corpo. Não é o resultado de um juízo, não chegamos a ela por meio de regras;
sentimos a beleza ou não a sentimos(OC III, 299). A beleza, como a rosa, não
tem porquê, apóia-se no vazio.
Neste sentido, a própria linguagem é poesia, forjando, em seus constituintes,
o concreto e o abstrato. Borges chamou atenção para este fato, principalmente nos
prólogos de seus livros: no de “O outro, o mesmo”, ele escreveu:
A raiz da linguagem é irracional e de caráter mágico. O dinamarquês que articulava
o nome de Thor e o saxão que articulava o nome de Thunor não sabiam se essas
palavras significavam o deus do trovão ou o estrépito que sucede ao relâmpago. A
poesia quer voltar a essa antiga magia. Sem leis prefixadas, opera de modo
vacilante e ousado, como se caminhasse na escuridão. Xadrez misterioso a poesia,
cujo tabuleiro e cujas peças mudam como em um sonho e sobre o qual me
inclinarei depois de morto (OC II, 258).
No ensaio A poesia”, Borges observa que, se a literatura é feita de
palavras, “a linguagem é também um fenômeno estético” (OC IV, 285). Por isso,
podemos avaliar os idiomas esteticamente, dizendo, por exemplo, que o espanhol
é sonoro e que o latim possui uma dignidade singular. Podemos também,
comparar a mesma palavra em diversas línguas e avaliar qual delas melhor se
aplica à realidade que quiseram representar: por exemplo, Borges afirma que, para
representar a lua, moon é melhor que luna, que é uma palavra mais lenta, mais
redonda e mais simples, pois possui uma única sílaba.
Para Ricoeur, a eternidade é a idéia limite de acordo com a qual a
fragmentação da alma em presente, passado e futuro recebe a marca negativa de
uma falta ou defeito no ser. A eternidade é uma falta sentida no coração da
experiência temporal. Por isso Santo Agostinho transforma a análise da questão
do tempo em lamentação. O tom da busca pela eternidade é o da lamentação, o da
criatura que se lamenta para o criador. Buscando sua origem, a criatura se
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conta de sua diferença com relação ao criador. Desprovida da inércia do eterno
presente, a alma se despedaça nos três tempos (1984, 26-27).
Na medida em que busca a eternidade, o poeta almeja um estado de
ingenuidade primária, a ignorância de sua diferença com relação ao universo ou
de sua fragmentação nos três tempos. A aproximação deste estado lhe permiti
vislumbrá-la o de perto, que a única solução, ao retornar ao mundo do tempo,
será colocá-la em palavras, ainda que as saiba insuficientes.
Em diversos poemas, Borges menciona a condição de Adão, na eternidade
do Jardim, como a ideal para a composição poética. Em “O golem” (1958):
E, feito de consoantes e vogais,
Nome terrível há de haver, que a essência
Cifre de Deus e que a Onipotência
Guarde em letras e sílabas cabais.
Adão e os astros tê-lo-ão achado
No Jardim. A ferrugem do pecado
O apagou (os cabalistas contaram):
E as gerações por vir o extraviaram
(OCII, 286).
Ainda que diferentes, as concepções de literatura de Borges, Salm e Ricoeur
assemelham-se ao considerar a atividade literária como um recurso para a
suspensão impossível e ilusória da experiência temporal e a produção de uma
realidade que é mais que mera representação do mundo.
Veremos, a seguir, de que maneira o gênero fantástico se insere dentro da
relação entre eternidade e literatura.
4.2
A eternidade e a literatura fantástica
Para Tzvetan Todorov, o fantástico é “a hesitação experimentada por um ser
que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento sobrenatural” (1992, 31).
Isto é: o fantástico aparece quando, em um mundo que é precisamente como o
nosso, regido pelas mesmas leis, produz-se um acontecimento que o é
explicável através dessas leis, obrigando à decisão se o que está em questão é uma
ilusão dos sentidos ou se é um acontecimento real que dita que a realidade é
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regida por leis desconhecidas. O fantástico ocorre quando essa dupla
possibilidade. Se uma ou outra resposta é escolhida, o fantástico é posto de lado e
substituído por um gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso.
No prólogo à Antologia de la literatura fantástica, Adolfo Bioy Casares,
organizador do livro ao lado de Borges e de Silvina Ocampo, afirma que apesar de
a literatura fantástica ter surgido como gênero mais ou menos definido no
século XIX, as ficções fantásticas são velhas como o medo e, provavelmente,
anteriores à escrita. Elas estariam, segundo ele, na Bíblia, em Homero, nas Mil e
Uma Noites e mesmo nos livros de filosofia. O fantástico pode aparecer em
qualquer gênero, que a realidade é indefinível. Para ele, o conto fantástico não
possui leis, pois, ainda que haja leis gerais que organizem os contos em tipos,
cada conto possui leis particulares que o escritor vai descobrindo ao longo da
escrita.
No caso de Borges, essas leis tornam-se ainda menos comuns no âmbito da
literatura fantástica
1
. Talvez possamos dizer, como Bráulio Tavares, que os contos
fantásticos de Borges o fantásticos não por desobedecerem às leis do mundo,
mas por imporem um rigor racional que não existe na realidade (2005, 248). O
que observamos, de maneira geral, é que Borges quer tornar o fantástico uma
possibilidade do real.
Os argumentos racionais que utiliza em seus ensaios, para tratar de temas
conhecidos, reaparecerão em seus contos fantásticos, mas sem a exigência de
certeza ou de rigor que aparece na análise das idéias de outros autores. Em “Tlön,
Uqbar, Orbis tertius”, por exemplo, como veremos logo a seguir, tudo depende de
uma versão da Enciclopédia Britânica, que não podemos saber se existe ou não.
Se a versão existir, o conto não é fantástico; se não existir, é. O fantástico está em
uma brecha do real. Não se distancia tanto do real que, ainda que seu ponto de
partida seja irreal, seu desenvolvimento se fará de acordo com uma lógica
perfeita, quase irrefutável. Não podemos provar que o povo de Tlön tenha
existido, mas se admitirmos que isto seja verdade, tudo o que é dito a partir disso
está em perfeita harmonia.
Ao longo da leitura da obra de Borges, observamos, aqui e ali, indícios de
uma defesa do assombro e das possibilidades do real em oposição à postulação de
1
Ressaltamos que apenas parte da obra de Borges pode ser caracterizada como fantástica.
Especialmente os contos. Grande parte de seus poemas e ensaios não entram neste gênero.
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uma verdade única, eterna e inacessível. Disso resulta uma visão distinta da
realidade, uma realidade tão rica em possibilidades quanto os sonhos, na qual
fatos e ficções se misturam a ponto de não sabermos mais o que é e o que o é
invenção de Borges.
Em seu exame de teorias filosóficas, por exemplo, notamos que Borges não
se interessa tanto em refutações ou provas lógicas, mas muito mais pelos aspectos
intrigantes e fantásticos que se fazem ver. No epílogo de Outras inquisições,
Borges admite que tem uma certa tendência para “avaliar as idéias religiosas ou
filosóficas por seu valor estético e até pelo que encerram de singular e de
maravilhoso” (OC II, 171). Ele se justifica afirmando que “talvez isso seja indício
de um ceticismo essencial” (OC II, 171). Borges parece, com isso, querer dizer
que, que a realidade é inacessível para os homens, podemos inventá-la e
relatar verdades possíveis. Se a eternidade está necessariamente além de nossa
experiência, ela é um recurso fantástico como qualquer outro. Se o verdades
fixas, as possibilidades são tantas que facilmente compreendemos a preferência de
Borges pelo gênero fantástico.
Mesmo os filósofos mais respeitados do ocidente, para Borges, não fazem
mais que os escritores fantásticos. Em Notas, Borges escreve:
Compilei certa vez uma antologia da literatura fantástica. Admito que essa obra é
uma das pouquíssimas que um segundo Noé deveria salvar do dilúvio, mas
confesso a condenável omissão dos insuspeitos e maiores mestres do gênero:
Parmênides, Platão, João Escoto Erígena, Alberto Magno, Spinoza, Leibniz, Kant,
Francis Bradley. De fato, o que são os prodígios de Wells ou de Edgar Allan Poe
uma flor que nos chega do futuro, um morto submetido à hipnose confrontados
com a invenção de Deus, com a teoria laboriosa de um ser que de algum modo é
três e que solitariamente perdura fora do tempo? O que é a pedra bezoar diante da
harmonia preestabelecida, quem é o unicórnio diante da Trindade, quem é Lúcio
Apuleio diante dos multiplicadores de Budas do Grande Veículo, o que são todas
as noites de Scherazade perto de um argumento de Berkeley? (OC I, 303-4).
O homem não pode saber, só pode imaginar. Todas as invenções da filosofia
são ficções: o pensamento racional o salva as teorias da ilusão. Nada pode ser
salvo. Se, por um lado, isto, como mencionamos, é uma fonte de angústia para
Borges, por outro, é um esplêndido artifício para a literatura. Tudo o que o
homem escreve é tão verdadeiro e tão ilusório quanto o que há no mundo.
Daí a confusão tipicamente borgiana, a mistura de autores reais com outros
fictícios, a validação das teorias com base na capacidade que têm de maravilhar o
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leitor. Comentando a teoria de J.W. Dunne a respeito da eternidade, Borges
comenta: “A tese que propõe, no entanto, é o atraente, que sua demonstração é
desnecessária; sua mera probabilidade basta para encantar-nos” (OC IV, 465).
Uma teoria não precisa ter compromisso com a verdade; o importante é que seja
possível e que sua possibilidade nos encante.
Se, por um lado, a filosofia é medida pelo que tem de fantástico, por outro, a
literatura fantástica também se apóia em argumentos filosóficos autênticos ou
inventados. Filosofia é fantasia e vice-versa. Não limite entre os gêneros. Para
tornar seus contos verossímeis, Borges recorre a fatos e teorias reais. Ao longo da
leitura de seus textos, nos perguntamos constantemente o que é real e o que é
ficção. Esta é a atitude típica do leitor de Borges. Mas o que Borges quer nos fazer
sentir é que não importa distinguir a realidade e a ficção. Todas as coisas são
possibilidades, devem ser lidas com a mesma atitude.
Em “Tlön, Uqbar, Orbis tertius”, observamos claramente esta mistura. O
conto trata de um misterioso país chamado Uqbar e de um mundo imaginário
chamado Tlön, cuja descrição é a principal preocupação dos escritores de Uqbar.
Tlön seria uma espécie de concretização do idealismo de Berkeley e o conto tenta
examinar o funcionamento de tal mundo.
No início do conto, Borges diz que o descobrimento de Uqbar lhe foi
concedido pela conjunção de um espelho e de uma enciclopédia, em uma chácara
da rua Gaona, na cidade de Ramos Mejía. Uma discussão sobre o aspecto terrível
dos espelhos teria levado o amigo de Borges, Bioy Casares, a citar uma
declaração de um dos heresiarcas de Uqbar, que dizia que os espelhos, como a
cópula, são abomináveis porque multiplicam os homens. Borges pergunta onde
Bioy lera tal sentença e este responde que estava na enciclopédia, The Anglo-
American cyclopaedia. Coincidentemente, havia um exemplar da obra na chácara
e ambos recorrem a ele para procurar o artigo.
Antes de prosseguirmos com a história, cabe notar que, de fato, Bioy
Casares era amigo de Borges; até aqui, nada de ficção. Outro fato é que a Anglo-
American cyclopaedia existe e que é, como Borges afirma, uma reimpressão
literal e tardia da Encyclopaedia Britannica de 1902.
Procurando o verbete na enciclopédia, os dois escritores são incapazes de
encontrá-lo: nas últimas páginas do volume XLI, havia um artigo sobre Upsala;
nas primeiras do XLVII, um sobre Ural-Altaic languages isto também é fato.
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Borges começa a pensar que Bioy inventara o país e o heresiarca para justificar a
frase sobre os espelhos... Mas, no dia seguinte, o amigo telefona dizendo que tinha
o artigo em mãos, no volume XXVI da enciclopédia.
Conferindo o volume, Borges percebe que a única diferença dele com
relação ao que estava na chácara, era que, ao invés de 917 páginas, possuía 921.
As quatro páginas adicionais correspondiam justamente ao artigo sobre Uqbar.
Algo de curioso acontece aqui: a Anglo-American cyclopaedia possui, como diz
Borges, 917 páginas. Borges insere seu país fictício em um intervalo da realidade.
Ainda que encontrássemos a enciclopédia e o volume referido, jamais poderíamos
saber se o fato de o artigo sobre Uqbar não estar presente significa que é invenção
do autor. Podemos sempre pensar que o artigo está presente em outra edição;
jamais podemos desmenti-lo.
Descrevendo o artigo, Borges diz que este menciona, como bibliografia,
quatro volumes, que ele não foi capaz de encontrar, apesar de o primeiro ser do
teólogo alemão Johannes Valentinus Andreä (que De Quincey cita como possível
fundador da Ordem Rosa Cruz) e de o terceiro figurar em uma livraria conhecida.
Procurando na Biblioteca Nacional, Borges e Bioy não encontram quaisquer
vestígios de que alguém jamais tivesse estado em Uqbar...
O mistério permanece sem solução até que, em 1937, Herbert Ashe, amigo
do pai de Borges, morre, deixando um pacote que recebera do Brasil em um bar.
Seis meses depois, Borges encontra o pacote e espanta-se ao ver que se tratava do
volume XI de uma enigmática A first encyclopaedia of Tlön. O volume não
indicava data ou lugar, apenas a inscrição Orbis Tertius na primeira página.
Borges diz que é possível que os outros tomos da enciclopédia de Tlön
existam e que ela seja a obra de uma sociedade secreta de “astrônomos, de
biólogos, de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas,
de moralistas, de pintores, de geômetras... dirigidos por um obscuro homem de
gênio” (OC I, 479). Mas ele acrescenta que é difícil crer nesta hipótese, já que
“Muitos são os indivíduos que dominam essas disciplinas diversas, mas não os
capazes de invenção e menos os capazes de subordinar a invenção a um rigoroso
plano sistemático” (OC I, 479). Aqui, parece-nos que Borges entrega o seu
próprio método: inventar, fantasiar, mas valendo-se de um sistema detalhado, tão
detalhado quanto os sistemas que descrevem a realidade. A ilusão deve ter a
especificidade do real, não pode ser inverossímil.
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Depois passa a descrever Tlön. Diz que suas nações são congenitamente
idealistas. Tudo nelas – linguagem, religião, letras, metafísica – pressupõe o
idealismo. O mundo, para seus habitantes, seria uma rie heterogênea de atos
independentes; temporal, mas não espacial. As coisas acontecem para cada ser de
maneira sucessiva, mas não um espaço absoluto que una todos os seres; o
espaço é o que cada um observa. Descrentes do espaço, estes seres elaboraram
uma linguagem sem substantivos, composta por verbos impessoais e sufixos
monossilábicos de valor adverbial (no hemisfério austral) ou por adjetivos (no
boreal).
Se compararmos este trecho com textos previamente analisados, veremos
que as crenças de Tlön correspondem às especulações borgianas a respeito do
tempo e do espaço. Em “A penúltima versão da realidade”, por exemplo, ele
afirma que o espaço não constitui um verdadeiro problema da metafísica e que o
único problema real é o tempo; ele acrescenta que podemos facilmente imaginar
um universo sem espaço, mas jamais prescindimos do tempo. A própria
consciência, sendo sucessiva, pressupõe o tempo.
É como se as especulações que Borges relatasse nos ensaios fossem postas
em prática nos contos. Primeiro, ele descreve uma teoria, divaga em torno dela,
faz especulações. Depois a transporta para o plano fictício, desprende-a
completamente de seu compromisso com a realidade, transforma suas
possibilidades em imagens, personagens. Bráulio Tavares afirma que “sua ficção
recria, com imagens nítidas e situações memoráveis, uma série de conceitos (da
filosofia, da matemática e da ciência) que têm inesgotáveis aplicações” (2005,
285). Ele acrescenta que talvez a idiossincrasia de Borges consista em uma
“intuição lúcida e exaustivamente imaginada de todas as implicações contidas em
conceitos básicos sobre o tempo e o espaço (...) conceitos que, uma vez
formulados podem ser explorados em qualquer situação humana, real ou fictícia”
(2005, 285).
Voltando ao conto, Borges argumenta que o idealismo de Tlön invalida a
ciência, pois “Explicar (ou julgar) um fato é uni-lo a outro; essa vinculação, em
Tlön, é um estado posterior do sujeito, que não pode afetar ou iluminar o estado
anterior” (OC I, 481). Mas que, paradoxalmente, as ciências existem em
“inumerável número” em Tlön: “O fato de que toda filosofia seja de antemão um
jogo dialético, uma Philosophie des Als Ob, contribuiu para multiplicá-las.
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Sobram os sistemas inacreditáveis, mas de arquitetura agradável ou de tipo
sensacional” (OC I, 481).
Mais uma vez, percebemos que Borges parece esclarecer aqui sua própria
visão da filosofia: é uma espécie de literatura fantástica sistematizada. Os
metafísicos de Tlön o mais honestos que os nossos, que “não procuram a
verdade nem sequer a verossimilhança: procuram o assombro. Julgam que a
metafísica é um ramo da literatura fantástica. Sabem que um sistema o é outra
coisa que a subordinação de todos os aspectos do universo a qualquer um deles”
(OC I, 481). O mero fato de organizar pensamentos em um sistema não os torna
mais verdadeiros. Um sistema é como um jogo e pode ser edificado ludicamente
por qualquer um. Existem infinitos sistemas e nenhum é mais ou menos
verdadeiro que os outros.
As diversas doutrinas de Tlön, citadas como curiosidades neste conto, são
analisadas em ensaios e atribuídas a filósofos como Hume, Spinoza, Leibniz, etc.
Borges parece defender a literatura fantástica como único gênero acessível aos
homens. Tlön é superior por sabê-lo. Nós, habitantes do mundo real, ainda
cremos, ingenuamente, na possibilidade de se chegar a uma verdade absoluta.
Não podemos saber se Borges era, de fato, idealista. Não encontramos
afirmações definitivas em sua obra, apenas análises de textos, especulações. Mas
sabemos que ele se identificava com o idealismo e isso pode ser explicado
também pelo “ceticismo essencial” que reclama. Se não verdades, o mundo é
sonho. Não podemos saber se estamos acordados ou sonhando, não podemos
saber se somos o sonho de um Deus. Tudo o que fazemos é tão vago, irreal e
inexplicável quanto os sonhos.
O sonho também aparece na definição borgiana de literatura. No prólogo a
O informe de Brodie, Borges escreve: “Afinal de contas, a literatura o é outra
coisa que um sonho dirigido” (OC II, 424).
Podemos sonhar qualquer coisa e este sonho será tão crível e tão enigmático
quanto a realidade, se soubermos dirigi-lo com astúcia. Que importa se Herbert
Quain existiu na realidade? Sua obra pode ser analisada em detalhes; basta
imaginação, conhecimento geral e disciplina. E que melhor artifício para discutir
doutrinas e fazer especulações que a invenção de um autor fictício? Em “Exame
da obra de Herbert Quain”, lemos:
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Flaubert e Henry James acostumaram-nos a supor que as obras de arte são
infreqüentes e de realização penosa; o século XVI (recordemos a Viagem do
Parnaso, recordemos o destino de Shakespeare) não compartilhava dessa
desconsolada opinião. Herbert Quain, tampouco. Parecia-lhe que a boa literatura
era bastante comum e que são poucos os diálogos de rua que não a atingem.
Parecia-lhe também que o fato estético não pode prescindir de certo elemento de
assombro e que assombrar-se de memória é difícil. Deplorava com sorridente
sinceridade ‘a servil e obstinada conservação’ de livros pretéritos... Ignoro se sua
vaga teoria é justificável; sei que seus livros desejam em demasia o assombro (OC
I, 511-2).
Que melhor artifício para não se comprometer com suas opiniões, que a
invenção de um autor que as profira? Borges não queria se definir, não queria
limites para suas especulações. Sabemos que era ateu, mas, com raras exceções,
não trata disso em seus textos; trata, sim, de temas religiosos como o Céu, o
Inferno, a Trindade. Ele não queria se comprometer com nada, para que sua
especulação permanecesse livre. Acreditar em algo não é importante; o importante
é interessar-se pelas possibilidades. A hipótese interessante é sempre válida, não
precisa de argumentos que a provem ou refutem. Em Notas, Borges escreve, não
sem ironia: “Não sei o que o leitor vai pensar de tais conjeturas semi-teosóficas.
Os católicos (...) acreditam num mundo ultraterreno, mas notei que não se
interessam por ele. Comigo ocorre o contrário; me interessa e não acredito” (OC I,
305). Pode, à primeira vista, parecer paradoxal que um ateu opte pela literatura
fantástica. Mas não ferramentas mais úteis a este gênero que a ausência de
crenças estabelecidas e o pensamento livre. Talvez a postulação de uma verdade
seja um impecilho à imaginação.
Imaginar é mais importante que validar; conjeturar, que estabelecer.
Estabelecer é inútil: ainda que toda a verdade estivesse em um único livro e o
encontrássemos, cada um teria dele uma interpretação diversa. Borges demostra,
em diversas ocasiões, que é contra a fixação das coisas. Tudo é móvel como o rio
de Heráclito. Pierre Menard pode copiar o Quixote e nem por isso estará
plagiando. Copiar é reescrever. Atribuir um livro clássico a outro autor é abri-lo,
salvá-lo de sua respeitosa imobilidade. Cada leitor reescreve o livro.
Devemos nos perguntar, a esta altura, de que maneira isso tudo se relaciona
ao conceito de eternidade. mencionamos o conflito borgiano, o fato de Borges
saber-se incapaz de sair do labirinto da existência temporal. Ao mesmo tempo, ele
reconhecia indiretamente que, se a eternidade nos fosse revelada, a questão do
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tempo seria resolvida; toda a diversidade do mundo seria compreendida, o
labirinto imediatamente seria derrubado. Por outro lado, ele sabia que as
probabilidades de que isso um dia acontecesse eram mínimas: o mistério
fatalmente permaneceria. O que resta, então, senão apontar para a irrealidade das
coisas? Se o tempo é indecifrável, temos ao menos o conforto de poder utilizar
tudo o que ele contém (toda a existência) e que jamais conheceremos, como
artifícios para a criação; se o tempo é insuperável, podemos, ao menos, imaginar
um mundo em que não o fosse, um mundo de Alephs, Palavras sagradas, Livros
intermináveis, etc.
Borges afirmou, com razão, que seu tema essencial era o tempo. Toda a sua
obra gira em torno dos mistérios que este conceito compreende. Se o tempo é uma
ilusão e se somos feitos de tempo, também somos ilusões. Tudo é ilusão e nossa
única saída é vivê-la, tirar proveito dela. A literatura fantástica é o gênero que,
paradoxalmente, alguma credibilidade para nossa condição; na pior das
hipóteses, sua defesa nos torna dignos de nossa irrealidade, humildes o suficiente
para, como os habitantes de Tlön, ao menos merecê-la.
Como última observação, apontamos que, se a literatura fantástica está no
pólo da aceitação e da celebração do labirinto e das possibilidades que ele oferece,
a eternidade está no da impossibilidade e no da melancolia. Estamos presos e
temos, de fato, recursos para tirar proveito disso... Mas, vez por outra, ressoa a
pergunta inevitável: como seria se pudéssemos escapar? As muitas possibilidades
por vezes oprimem e Borges se perguntando se não é inevitável que uma ou
outra esteja mais próxima da realidade das coisas. Como na “Biblioteca de
Babel”, em que a mera possibilidade da existência do Livro enlouqueceu os
homens.
4.3
O Espírito ou o autor impessoal
No prólogo a Elogio da sombra, vemos Borges fazer a seguinte afirmação:
“A poesia não é menos misteriosa que os outros elementos do orbe. Tal ou qual
verso afortunado não pode envaidecer-nos, porque é dom do Acaso ou do
Espírito; os erros são nossos” (OC II, 377). Em outros textos, ele corroborará a
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idéia de que toda a literatura é obra de um ser eterno, impessoal que como ‘usa’ os
escritores para transmitir o que quer dizer.
Em “A flor de Coleridge”, Borges invoca observações de Paul Valéry,
Concord e Shelley, que afirmam que todos os autores são um, para explicar as
mutações que a figura da flor sofre, a partir da obra de Coleridge, com Wells e
Henry James. Ele tenta mostrar que é estranho que as mesmas figuras se repitam
na literatura e que, se for verdade que todos os autores são um, isto é
perfeitamente explicável. Ele diz que essa concepção não é absurda, que não se
diferencia tanto da visão classicista, segundo a qual a pluralidade de autores quase
não importa. “Para as mentes clássicas, a literatura é essencial, não os indivíduos”
(OC II, 18). Os escritores clássicos confundem-se com a literatura:
Aqueles que copiam minuciosamente um escritor fazem-no de modo impessoal,
fazem-no por confundir esse escritor com a literatura, fazem-no por supor que se
afastar dele em um ponto é afastar-se da razão e da ortodoxia. Durante muitos anos,
eu acreditei que a quase infinita literatura estava em um homem. Esse homem foi
Carlyle, foi Johannes Becher, foi Whitman, foi Rafael Cansinos-Asséns, foi De
Quincey (OC II, 18).
Em entrevista, Borges conta que, ao sofrer, em 1938, o terrível acidente que
lhe causou uma septicemia e quase lhe custou a vida, passou meses no hospital,
temendo a perda de suas capacidades intelectuais. Depois de um tempo, quando
começou a sentir-se melhor, decidiu escrever alguma coisa para testá-las. Então
pensou que não tentaria escrever um poema, que a poesia não depende das
faculdades intelectuais, mas da musa; tampouco escreveria um ensaio, que o
fracasso em realizá-lo o desmotivaria completamente; decidiu então, fazer o que
nunca fizera, escrever um conto. O conto que escreveu foi Pierre Menard, autor
do Quixote”; feliz com o resultado, ele se convenceu de que estava em posse de
sua inteligência.
No próprio “Pierre Menard”, Borges deixa ver sua concepção de literatura
na conclusão, quando diz que Menard enriqueceu a arte da leitura, através da
técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas: “Essa técnica de
aplicação infinita nos leva a percorrer a Odisséia como se fosse posterior à Eneida
e o livro Le Jardin du Centaure de Madame Henri Bachelier como se fosse de
Madame Henri Bachelier” (OC I, 498).
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100
Esta concepção relaciona-se à visão borgiana de livro, como um objeto não
fixado, que se renova a cada leitor e a cada leitura. A época em que um livro foi
escrito importa menos que aquela em que foi lido. No início da palestra “A
poesia”, Borges deixa isso bem claro:
O panteísta irlandês Escoto Erígena disse que a Sagrada Escritura encerra um
número infinito de sentidos e comparou-a coma plumagem furta-cor do pavão.
Séculos depois, um cabalista espanhol disse que Deus fez a Escritura para cada um
dos homens de Israel e que, por conseguinte, tantas Bíblias quanto leitores de
Bíblia. O que é admissível se pensarmos que Ele é autor da Bíblia e do destino de
cada um de seus leitores. Pode-se pensar que essas duas sentenças, a da plumagem
furta-cor do pavão de Escoto Erígena e a de tantas Escrituras quanto leitores do
cabalista espanhol, são duas provas, da imaginação celta a primeira e da
imaginação oriental a segunda. Mas ouso dizer que são exatas, não apenas em
relação à Escritura, mas em relação a qualquer livro digno de ser relido (OC III,
284).
Na mesma palestra, Borges refere-se novamente à inspiração como
condição da escrita. Ele também conta sua aversão à análise histórica da literatura:
Fui professor de literatura inglesa na Faculdade de Filosofia e Letras da
Universidade de Buenos Aires e tentei prescindir na medida do possível da história
da literatura. Quando meus alunos me pediam bibliografia, eu lhes dizia: ‘A
bibliografia não importa; afinal, Shakespeare não soube nada de bibliografia
shakespeariana (OC III, 288).
A literatura precisa ser estudada em seu fato estético, que não está na
história, mas em cada texto. Além disso, estudar a literatura nos limites da história
impede-nos de fazer dialogar escritores de diferentes épocas: “no Oriente, em
geral, a literatura e a filosofia não são estudadas historicamente. (...) Estuda-se a
história da filosofia como dizendo Aristóteles discute com Bergson, Platão com
Hume, tudo simultaneamente” (OC III, 297).
Este diálogo se torna mais fácil à medida que aceitamos que todos os
autores são o mesmo, já que todo grande livro é escrito pelo espírito. Se
Aristóteles e Bergson escreveram em função do Espírito, nada mais natural que
pô-los em diálogo; o fato de estarem separados por séculos não faz diferença, são
a mesma mão eterna que escreve. Em matéria de literatura e de filosofia, o tempo
não interfere. Só há um grande livro e um autor.
Na palestra “O livro”, lemos:
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101
Certa vez perguntaram a Bernard Shaw se ele acreditava que o Espírito Santo havia
escrito a Bíblia. Ele respondeu: ‘Todo livro que vale a pena reler foi escrito pelo
Espírito.’ Quer dizer, um livro tem de ir além da intenção de seu autor. A intenção
do autor é uma pobre coisa humana, falível, mas no livro tem de haver mais. O
Quixote, por exemplo, é mais que uma sátira aos livros de cavalaria. É um texto
absoluto, no qual para nada, absolutamente, intervém o acaso (OC IV, 192).
À primeira vista, parece estranho que Borges, em suas ficções grande
defensor das possibilidades e do acaso, venha a defender que, em uma obra de
valor, o acaso não pode intervir. Mas compreendemos quando percebemos,
novamente, o conflito entre labirinto e eternidade presente em sua obra. O grande
livro seria em tudo diferente do labiríntico livro de Ts´ui Pen em “O jardim de
veredas que se bifurcam”.
O livro de Ts´ui Pen é um labirinto de símbolos, um “invisível labirinto de
tempo” (OC I, 529). em que todas as possibilidades ocorrem simultaneamente:
“Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas
alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextrincável Ts´ui
Pen, opta simultaneamente por todas (OCI, 531). Neste livro, que é uma
charada sobre o tempo, possibilidades; nada é necessário. Onde tempo,
contingências, imprevisibilidades. Uma obra digna de ser relida não pode ser
escrita ao acaso, nem se desenrolar conforme as possibilidades. Ela é como ditada
por um ser eterno, é eterna. E é sempre a mesma; todas as obras clássicas são a
mesma obra, escrita pelo mesmo autor.
A anulação do tempo aglomera todos os autores em um. Para Borges
podemos afirmar que Cervantes foi influenciado por Nietzsche. Ele argumenta
que o simples fato de não serem contemporâneos o garante que não tenham
intuído as mesmas idéias, através do Espírito. Nietzsche está em Cervantes; todos
os escritores estão em cada escritor. Novamente, a eternidade se com a
anulação do sujeito, na impessoalidade do atemporal.
Além disso, quem conhece Nietzsche, não poderá deixar de reconhecê-lo na
leitura de alguns de seus predecessores. Em “Kafka e seus Precursores”, Borges
escreve: O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica
nossa concepção do passado, como de modificar o futuro. Nessa correlação,
não importa a identidade ou a pluralidade dos homens” (OC II, 98). O fato de
reconhecermos traços kafkianos em Kierkegaard, não significa que este precedeu
aquele, pois, se Kafka não tivesse existido, não o teríamos reconhecido. Kafka
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102
também criou Kierkegaard, ainda que o tenha sucedido historicamente. A
influência acontece dos dois lados.
Não os escritores estão fora do tempo; as histórias também são sempre a
mesma. Já citamos Os quatro ciclos”, em que Borges diz que só há quatro
histórias com pequenas variações. Em outros textos, Borges percorrerá um
conceito ou uma metáfora ao longo do tempo, dizendo que toda história universal
não passa das diversas intonações da mesma metáfora.
Parece paradoxal que Borges, simultaneamente, afirme que todas as
histórias são a mesma e faça uma defesa do fato estético ou da unicidade de cada
texto. Em “A metáfora”, ele argumenta, de um lado, que tudo foi dito e que
todas as relações metafóricas foram estabelecidas; de outro, que as
possibilidades são ilimitadas, que pequenas variações de palavra mudam tudo.
Este é o típico conflito borgiano, entre semelhança e diferença, mesmidade e
outridade: pequenas diferenças influem na identidade de dois objetos? Dois gatos
não são o mesmo gato, ainda que possuam manchas diferentes? Borges quer, ao
mesmo tempo, o todo e todas as variações que o tornam múltiplo. Quer todos os
gatos e, neles, o Gato.
Para encerrarmos esta discussão, queremos notar que a impessoalidade é
também uma marca da escrita de Borges. Jamais sabemos o que é Borges e o que
é citação. Borges usa as citações como se fossem suas: ele não as transcreve, mas,
como Pierre Menard, as reescreve. Na palestra “A poesia”, ele diz: "Sou quase
incapaz de pensamentos abstratos, vocês devem ter notado que estou
continuamente me apoiando em citações e lembranças" (OC III, 298).
Percebemos que o autor impessoal e a especificidade do fato estético estão
intimamente relacionados: por que reescrever algo que o Espírito já disse tão
bem? Não devemos pensar que a mera reformulação de uma frase a torna nossa:
todas as frases que foram ditas são também nossas. Cada vez que as lemos, as
reescrevemos.
Nos textos de Borges, mesmo nas ficções, notamos seu bito de pensar
através do pensamento de outros. Mas o que faz, na realidade, é apresentar seu
próprio pensamento. Mesmo em seus contos fantásticos, suas concepções fazem
parte do enredo. Parte do enigma borgiano está aí. Em “Tlön, Uqbar, Orbis
tertius”, lemos, sobre o planeta imaginário de Tlön:
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Nos hábitos literários é também todo-poderosa a idéia de um sujeito único. É raro
que os livros estejam assinados. Não existe o conceito de plágio: estabeleceu-se
que todas as obras são obra de um único autor, que é intemporal e anônimo. A
crítica costuma inventar autores: escolhe duas obras dissímiles o Tao Te King e
as Mil e Uma Noites, digamos atribui-as a um mesmo escritor e logo determina
com probidade a psicologia desse interessante homme de lettres... (OC I, 484).
O que é Tlön e o que é Borges? Não podemos saber. Podemos apenas
conjeturar, com base em outros textos do autor. Neste caso, parece-nos que Tlön é
como uma desculpa literária para que o autor exponha suas opiniões em um conto
fantástico. Se não fronteira entre os autores, nem entre os livros, também não
haverá entre os gêneros. Por que não expor conceitos filosóficos e literários em
um conto fantástico? Por que não misturar realidade e ficção? As coisas são
móveis, são parte de um fluxo. Não há por que fixar os gêneros e os autores.
As coisas são eternas justamente por não serem fixas. Quando comparou o
mundo das idéias a um terrível museu, talvez Borges estivesse buscando uma
idéia menos dura de eternidade, uma eternidade que fosse também uma
multiplicidade. Todos os autores são o Espírito, mas o Espírito também é todos os
autores. unidade e multiplicidade e elas se entrecruzam. O máximo está no
mínimo e o mínimo no máximo.
Borges denomina de “panteísmo idealista” a doutrina de Tlön. Talvez sua
doutrina seja algo que possa ser expresso em termos semelhantes. Todas as coisas
são divinas, cada coisa é divina; cada coisa é única e total. Ao mesmo tempo, as
coisas não são rígidas, são ilusórias. existem enquanto percepções. A
eternidade também está nessa fluidez. Todos os sujeitos são um, são o mesmo
‘eu’; mas a cada sujeito só é dado perceber o que está a seu alcance; cada sujeito é
também limitado. Como se todas as percepções e toda variedade tendessem para a
eternidade. o múltiplo porque o único; o único só existe por causa do
múltiplo. Eternidade e tempo são dois lados da mesma moeda.
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4.4
O mundo como biblioteca ou livro
Em entrevista a Carlos Cardoso Aveline, vemos Borges confessar:
Não me lembro de uma época em que não soubesse ler e escrever. Se me dissessem
que estas são condições inatas, inerentes ao homem desde o seu nascimento, eu
acreditaria, baseado na minha experiência pessoal. Criei-me na biblioteca do meu
pai, composta em grande parte por livros ingleses. Li os contos dos irmãos Grimm,
li Kipling e mais tarde os contos de Andersen. Criei-me lendo.
E, logo depois:
Eu tenho este culto ao livro. Posso dizê-lo de um modo que pode parecer patético e
não quero que seja patético; quero que seja como uma confidência que faço a cada
um de vocês; não a todos, mas a cada um de vocês, porque todos é uma abstração e
cada um é verdadeiro. Eu sigo brincando de não ser cego, sigo comprando livros,
sigo enchendo a minha casa de livros. Outro dia deram-me uma edição de 1966 da
Enciclopédia de Brokhause. Senti a presença desse livro em casa, senti-a como
uma espécie de felicidade. Aí estavam vinte e tantos volumes com uma letra gótica
que não posso ler, com os mapas e gravuras que não posso ver e, no entanto, o livro
estava ali. Sentia como que uma gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é
uma das possibilidades de felicidade que temos, os homens.
Os livros, para Borges, são, além de objetos sagrados, um meio de
conhecimento, o único meio. Não são representações da realidade: a realidade é
semelhante ao livro e não o contrário. Não é à toa que Borges afirma, com
quase oitenta anos: “Apesar de ter percorrido o mundo todo, tenho a impressão de
nunca haver saído da biblioteca do meu pai.” O mundo é a biblioteca de sua
infância. A verdade é que cresci num jardim, atrás das grades com lanças, e
numa biblioteca de inumeráveis livros ingleses” (OC I, 103). Esta é uma das suas
justificativas para ter deixado de lado a ambição de produzir literatura argentina:
sua vida se passou em uma Biblioteca, não em um país. A questão nacionalista lhe
pertencia muito menos que o que descobrira nos livros:
Palermo do punhal e da guitarra andava (me afirmam) pelas esquinas, mas os que
habitavam minhas manhãs e trouxeram agradável horror às minhas noites foram o
corsário cego de Stevenson, agonizante sob as patas dos cavalos, e o traidor que
abandonou seu amigo à luz da lua e o viajante do tempo, que trouxe do futuro uma
flor murcha, e o gênio, durante séculos encarcerado no cântaro salomônico, e o
profeta velado do Kurassan, que, por trás das pedras e da seda, ocultava a lepra
(OC I, 103).
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105
Além disso, Borges se deu conta de que ser argentino era inevitável, que
podia escrever sobre qualquer coisa que sua nacionalidade se faria presente. E que
o nacionalismo era um mal terrível, que tinha originado o nazismo e que deveria
ser evitado de qualquer maneira.
A biblioteca, para Borges, é um espaço alheio ao tempo e ao mundo
exterior. Uma espécie de centro do universo, a partir do qual todos os eventos se
desenrolavam. Como o mundo, os livros encerram todas as possibilidades, tudo o
que pode acontecer e o que já aconteceu está ou será narrado em algum livro.
As leituras que Borges realizou antes que lhe acometesse a cegueira, eram
seu alicerce, eram o próprio Borges
2
. Ele jamais falava sem fazer citações e os
autores eram quase sempre os mesmos: Schopenhauer, Emerson, James... Não
podemos dizer com que citações Borges concorda ou de quais discorda; não é
questão de concordar ou discordar: Borges pensa através delas.
A obsessão de Borges pelos livros aparece em alguns contos; entre eles, “O
livro de areia” e a “Biblioteca de Babel”.
Em “O livro de areia”, Borges início à narrativa com uma visita fictícia
que recebe de um vendedor de Bíblias. O narrador logo tenta desanimá-lo,
mostrando que possui todos os tipos e versões de bíblias e que o precisa de
mais uma. O vendedor, no entanto, diz que não vende apenas bíblias, mas também
um livro sagrado que adquiriu em Bikanir.
Abrindo o estranho livro, o narrador percebe que os números das páginas
estão desordenados e que cada página, depois de lida, transformava-se em outra,
jamais podia ser lida novamente. O vendedor diz que o livro chama-se Livro de
Areia, que, como a areia, não possui princípio ou fim. Entre a capa do livro e a
primeira folha, sempre se interpunham outras, infinitas folhas, que brotavam do
livro. O mesmo ocorria à última folha.
Pensando em voz alta, o vendedor afirma: “Se o espaço é infinito, estamos
em qualquer ponto do espaço. Se o tempo é infinito, estamos em qualquer ponto
do tempo” (OC III, 81). Em um livro infinito, as páginas podem ter qualquer
número, a localização de cada uma na série é irrelevante.
2
Depois que ficou cego, a mãe de Borges passou a ler para ele, em voz alta. Isto é, ele não
perdeu o contato com os livros. Mas os livros que leu antes de ficar cego eram sua base principal.
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Intrigado, o narrador compra o livro, em troca do montante de sua
aposentadoria e da Bíblia de Wiclif. Mas não consegue por o livro na estante; sua
presença torna-se ameaçadora, perturbadora. Ele esconde o livro atrás dos
volumes de As mil e uma noites e tenta dormir; em vão... De madrugada, levanta-
se e vai examinar o livro novamente. O temor de que o roubassem ou de que não
fosse realmente infinito o enlouquece. Então compreende a monstruosidade do
Livro e decide perdê-lo: “Senti que era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena
que infamava e corrompia a realidade” (OC III, 82). Ele perde o livro entre os
novecentos mil exemplares da Biblioteca Nacional.
O livro de areia é terrível como o Zahir, mas sua monstruosidade o está,
como neste último, na unidade, mas na multiplicidade. O Zahir é o objeto eterno
que substitui todos os outros, porque nele estão passado, presente e futuro; o livro
de areia é o livro que equivale ao mundo, à terrível multiplicidade das coisas e à
fugacidade do tempo. O que o torna intrigante é que não se pode voltar a uma
mesma página, que cada página, depois de lida (como cada segundo vivido), está
perdida para sempre.
A questão do livro de areia é a da fugacidade das coisas que estão inseridas
no tempo. Também a realidade é fugaz; não podemos pensar no passado sem nos
darmos conta de que algo de infinito foi perdido. Um lugar não pode ser visitado
duas vezes, porque a segunda visita é sempre diferente: o lugar é outro e nós
somos outros. O fato das coisas serem infinitas é, talvez, menos perturbador que o
fato de cada coisa ser infinita.
Além disso, está neste conto também, implicitamente, a própria concepção
borgiana de livro, como objeto cambiante, recriado a cada leitura. Todos os livros
são livros de areia. Jamais podemos reler um livro: o mesmo livro será sempre
outro.
Em “Biblioteca de Babel”, o caso é inteiramente diverso. O narrador-
personagem, à beira da morte, conta como os homens percorreram os infinitos
hexágonos da Biblioteca em busca do livro que contivesse a palavra divina e que
justificasse o caos que compunha o universo. Este livro certamente existia, que
a Biblioteca continha todas as combinações possíveis dos vinte e cinco símbolos
ortográficos e uma delas era, necessariamente, o verbo divino.
De fato, todos os livros, cada um deles, era obra de um deus, pois toda a
Biblioteca parecia ter sido construída por uma entidade superior. O narrador
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observa: “Para perceber a distância que há entre o divino e o humano, basta
comparar esses rudes símbolos trêmulos que minha falível mão gratuja na capa de
um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas”
(OC I, 517).
Mas os bibliotecários tinham a certeza de que algum livro esclarecia “os
mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo” (OC I,
520). Eles especularam que esses mistérios eram, necessariamente explicáveis em
palavras, que “se não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca
produzirá o idioma inaudito que se requer e os vocabulários e gramática deste
idioma” (OC I, 520).
A certeza de que o livro total existia causou uma onda de desespero e
confusão. Muitos se suicidaram, outros passaram a queimar todos os livros
inúteis, os livros que agravavam o caos da Biblioteca. O narrador roga aos deuses
que, ao menos a um homem, qualquer que fosse, se concedesse o privilégio de
consultar o livro, para que a Biblioteca se justificasse.
O conto tem fim com a intrigante suspeita do narrador de que a espécie
humana se extinguirá, enquanto a “Biblioteca perdurará: iluminada, solitária,
infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível,
secreta” (OC II, 522).
O que está em questão aqui, é o Livro que sentido às coisas, ao contrário
do livro de areia, que as corrompe. A tortura se dá por conta da certeza da
existência do Livro, concomitante à de que encontrá-lo é praticamente impossível.
Temos, portanto, de um lado, o livro infinito, que a tudo corrompe e, do
outro,o livro eterno, que tudo justifica, mas que é inacessível. O mundo é terrível
por ser infinito e também por ser incognoscível. Infinito e eternidade são dois
horrores da existência, duas impossibilidades para o sujeito. Ambos enlouquecem,
acabam por aniquilar os homens.
Toda a obra de Borges flutuará entre o pólo do infinito e o do eterno. O
infinito é o conflito que não compreendemos; o eterno, a solução inacessível. O
infinito é tudo, está em todas as coisas, em cada coisa, pois cada coisa é uma série
infinita, tão infinita quanto o universo. A eternidade é nada, escompletamente
fora das coisas, é o outro lado do infinito. A eternidade se torna possível fora
do infinito; é um ponto que comprime todas as séries, todo o universo.
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Tempo e eternidade: problema e solução são impossíveis. O problema do
tempo, como disse Agostinho, é também o fato de desconhecermos o problema do
tempo: “Ai de mim, que nem ao menos sei o que ignoro!” (2000, 333)
Conhecer o tempo é impossível; resolvê-lo é tão distante que esta
possibilidade deve ser descartada, pode trazer desespero. O tempo é
suficientemente desesperador. Somos feitos de tempo, como diz Borges, o tempo
é a nossa questão. A incapacidade de compreendê-lo e a de compreender a nós
mesmos são uma só.
Enquanto houver o universo, enquanto houver tempo e sujeito, haverá
desespero. “Enquanto não soubermos, nossa alma arderá como a de Agostinho”
(OC IV, 240). O homem está como esmagado entre duas impossibilidades: a do
infinito e a do eterno.
As soluções são tão pobres quanto a realidade: a do tempo é a impossível
eternidade; a do sujeito, o terrível nada.
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Conclusão
Podemos ver, na refutação do tempo, a forma comum de todas as paixões
humanas. Todo desejo é guiado pelo remorso deixado por um conhecimento
perdido, que precisa ser recuperado a qualquer custo. Assim, a consciência
humana é uma consciência de ausência: pensar naquilo que ela compreende a leva
a pensar naquilo que lhe escapa.
Nossa consciência é limitada, está condenada a experimentar uma coisa de
cada vez. Ao mesmo tempo, ela contém algo de infinito e quer sempre ultrapassar
o que compreende. Sente, a todo tempo, seus limites e estes apontam para algo de
ilimitado, algo que está além dela mesma.
A grande ambição humana é superar esta ausência, é tornar todas as coisas
presentes ao mesmo tempo, é superar a seqüencialidade da consciência. A
presentificação do todo, seria uma fuga da fragmentação temporal, uma
participação no eterno que, para nós, é impossível. O eterno não pode ser
concebido por nós sob outra forma que a da ausência. A eternidade está além de
nossa compreensão porque nossa condição de existência é o tempo: não é uma
promessa divina, mas um sonho desesperado. A negação do tempo é impossível,
ainda que possa ser vislumbrada através da atmosfera irreal da literatura
fantástica. A recusa do tempo só pode engendrar sonhos, desejos irrealizáveis e
incompatíveis com o mundo.
Mas a eternidade não é mero resultado de um sonho. É também uma
exigência racional. A mente não pode conceber a mudança. Também não é capaz
de imaginar o início ou o fim das coisas, não pode supor que algo surja do nada ou
que deixe de existir. Nossa razão precisa sempre encontrar, no seio da mudança, a
permanência. podemos compreender a mudança através das repetições e dos
retornos, que revelam que o tempo pode ser regido pelo eterno.
A eternidade é a condição primordial do pensamento: a própria percepção se
baseia em uma crença na permanência das coisas e na unificação das propriedades
que formam cada objeto. A razão requer a negação do tempo, pois o tempo separa
as coisas. As relações de causa e efeito não conectam os eventos, pois jamais
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contemplamos a mudança: podemos contemplar os estados distintos que
resultam da mudança.
A eternidade é a condição do pensamento, mas, por isso mesmo, o pode
ser pensada, está além do pensamento. O pensamento precisa crer na permanência
para funcionar e para engendrar a ação; mas jamais pode questionar por que
funciona dessa maneira; tem de aceitar que essa é sua condição de existência para
agir. A eternidade está sempre um pouco antes do pensamento, este não pode
abarcá-la. Para agir, nossa consciência precisa renunciar ao eterno, o que significa,
simultaneamente, aceitá-lo como exigência racional. A busca pelas origens do
pensamento está fadada ao fracasso, porque o pensamento não pode pensar sobre
si mesmo. O pensamento é um labirinto sem saída e o eu está preso neste
labirinto. Sair do labirinto significa não mais ser um eu, não ter mais percepção,
não pensar. O labirinto é a forma de existência do pensamento: ele existe a partir
do centro eterno e jamais pode encontrá-lo, porque encontrá-lo significa diluir-se,
escapar ao labirinto.
Nossa tarefa é, sobretudo, conformar-nos com o fato de que a eternidade
jamais pode ser objetivo, é somente o ponto de partida. O espírito é aquilo a partir
do qual se conhece : é, por definição, incognoscível. Para sobrevivermos como
homens e essa é a única possibilidade de existência que temos precisamos
aceitar que a eternidade não pode ser conquistada, que está além das
possibilidades do eu. Ela é o que está por trás da máscara do eu, o que jamais
pode vir à tona sem dissolvê-lo.
Para viver, é preciso aceitar a irreversibilidade da morte: uma vida infinita,
eterna, não seria uma vida, resultaria em uma incapacidade de realizar uma ação
que fosse. A eternidade estaria diante de nós, mas precisamos que ela seja posta
para trás, para que possamos nos voltar para o tempo, aceitar que ele passa e que é
preciso que estejamos inseridos nele. A eternidade não pode ser a finalidade da
ação porque a finalidade da ação precisa ser pensada e o que é transcendente não
pode ser pensado.
Por um lado, o tempo é uma prisão, sua negação é inconcebível e somos
obrigados a viver dentro dos seus limites. Nossas paixões e desejos apontam para
uma realidade menos fugaz e múltipla. A prisão do tempo é também a prisão do
eu, ambas resultando em uma mesma angústia. A eternidade, neste caso, é uma
ilusão, uma liberdade almejada, mas impossível. É um maravilhoso artifício de
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que os homens podem lançar mão e que aparece, em Borges, especialmente nos
poemas.
Por outro lado, temos a exigência racional da unidade e os paradoxos que
implicam o caráter ilusório do tempo. O tempo não é cognoscível racionalmente, a
eternidade é uma verdade necessária, sem a qual o universo é um caos que não
pode ser compreendido. Ainda que seja a única resposta, a eternidade é
impossível, é mais uma fonte de angústia. Este aspecto aparecerá como
fundamento de diversos contos e será analisado, mais explicitamente, nos ensaios
de Borges.
Como síntese das duas etapas anteriores, temos a aceitação do tempo e a
renúncia ao eterno. Se tempo e eternidade são impossíveis, a eternidade é ainda
mais distante que o tempo; é uma verdade exterior aos homens, algo
essencialmente incognoscível pelo sujeito. Se a questão do tempo é insolúvel, ela
não deixa de ser o nosso desafio, aquele que contém o do sujeito, que nos contém.
O tempo, como defendeu Ricoeur, torna-se humano através da narrativa. Aceitar o
tempo é a única maneira de viver como sujeito, é a única saída possível. Em “A
escrita do Deus”, Tzinacan recebe os segredos do universo quando aceita sua
prisão. Aceitar nossa condição é a melhor maneira de decifrá-la. Daí a supremacia
do labirinto, do enigma sobre a solução.
Sabemos que Borges filosofava através de sua escrita, de seus personagens e
de sua estética. A literatura, para ele, foi uma forma de aceitar e compreender o
enigma do tempo; foi também a maneira menos pobre de vislumbrar a
inconcebível eternidade. E, portanto, as facetas do desejo de eternidade
configuraram também sua produção literária: refutar o tempo concreto e virar-se
para a eternidade ilusória; buscar o eterno e torná-lo uma exigência racional ou
um fim digno para o problema do tempo; aceitar o tempo como enigma e
renunciar ao todo inalcançável.
Não é à toa que sua relação com a eternidade tenha sido tão ambígua: o
desejo de eternidade, paradoxalmente, inclui a renúncia ao conceito.
Simultaneamente, o mais perto que podemos chegar do eterno é aceitando nossa
temporalidade. O eterno está no efêmero, está ao alcance de nossas mãos. Cada
ponto do múltiplo contém o todo, a unidade está na multiplicidade. Esta é a única
forma de compreender o universo sem recorrer à fantasmagoria de um mundo das
idéias. As coisas estão aqui, são imanentes, mas são também transcendentes,
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porque são indefinidas: não podemos tocar uma coisa sem tocar todo o universo.
A eternidade é um desejo que só se completa com a renúncia à eternidade.
Podemos pensar que infinito e eternidade são dois inimigos que bem ou mal
convivem na obra de Borges. O infinito é o corruptor da realidade, é o que torna
tempo e espaço ilusórios, o que torna o eu incognoscível; a eternidade é o que
fundamenta a realidade, o que justifica o tempo e o espaço, o que dá fim à questão
do eu.
Mas podemos também pensar que o eterno está no infinito, porque, na série
infinita de Borges, todos os termos são o mesmo. Cada termo implica todos os
outros, a origem de tudo é comum. O fato de estarmos destacados desse todo, de
percebermos as coisas de maneira fragmentada, constitui a ilusão própria da
subjetividade. A eternidade está no infinito, está no labirinto, é o centro que atrai
todo o resto.
Labirinto e centro são duas faces da mesma moeda. Compreender isso é
renunciar à eternidade, é aceitar o tempo. O tempo é a imagem móvel da
eternidade, flui em direção ao eterno. Nós caminhamos para a morte, para a eterna
contemplação dos arquétipos. Mas a existência do sujeito precisa também ser
aproveitada, ainda que seja uma fonte de angústia. O tempo é a única maneira que
o sujeito tem de conhecer o eterno. É uma eternidade pobre e fragmentada, mas é
a única possível e se torna menos opressiva quando a aceitamos.
O tempo é, sob todos os aspectos, ilusório. Passado, presente e futuro são
tão incompreensíveis quanto a eternidade. Viver no tempo é como viver em um
sonho em que nada é necessário, tudo é fruto do acaso e da contingência. Mas isso
pode ser uma liberdade: podemos pensar sem compromisso, podemos escrever
tratados filosóficos na forma de contos fantásticos, analisar textos apócrifos.
A ausência de uma verdade, o fato de a eternidade ser incognoscível, é um
alívio. O homem está solto, sua imaginação não é menos incrível que a realidade.
Pode dizer tudo e tudo o que disser será tão verdadeiro e tão falso quanto o
universo.
Por isso também, a melhor maneira de decifrar o universo é a literatura.
Ambos, literatura e universo, são inexplicáveis e impossíveis, ambos são
contingentes e inúteis. A linguagem realiza no plano humano o que é o universo
no plano divino. Cria um todo em que cada parte contém o todo, ainda que
prescinda do resto para contê-lo. Não objeto no mundo que o possa substituir;
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nem palavra em um texto que o valha. Mas, inserido no todo, o objeto torna-se um
todo, assim como a palavra.
Se a palavra não pode explicar o universo, pode multiplicá-lo. A
multiplicidade é terrível porque não explica, mas é também maravilhosa, é a
condição de nossa existência, o que nos torna vivos, o que nos faz pertencer ao
mundo.
Borges ama e rejeita o labirinto, ama e rejeita a eternidade; também ama e
rejeita o sujeito, os livros, as palavras. Amar e rejeitar constituem a relação
possível com as coisas. São os dois lados do paradoxal desejo que fundamenta a
ação humana: o de eternidade.
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