Download PDF
ads:
TESE DE DOUTORADO
MARIA DE FÁTIMA CAMARGO DIAS FERREIRA
DA EXPRESSÃO QUE ESPANTA AO TOQUE QUE ENCANTA:
a Calatonia e a Shantala como instrumentos de intervenção no
re-significar das relações entre mães e filhos
PSICOLOGIA CLÍNICA
PUC/SP
SÃO PAULO
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
MARIA DE FÁTIMA CAMARGO DIAS FERREIRA
DA EXPRESSÃO QUE ESPANTA AO TOQUE QUE ENCANTA:
a Calatonia e a Shantala como instrumentos de intervenção
no re-significar das relações entre mães e filhos
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutora em
Psicologia Clínica, sob a orientação da
Profa. Doutora Ceneide Maria de Oliveira
Cerveny
PSICOLOGIA CLÍNICA
PUC/SP
SÃO PAULO
2006
ads:
Banca Examinadora
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
AOS FILHOS
Aos filhos da vida, da alma, da luta.
Aos filhos do ônus, da perda, da angústia.
Aos filhos que pecam, que perdoam, revivem.
Aos filhos que nascem, que crescem, que morrem.
Aos filhos que não vieram, mas foram desejados.
Aos filhos que não querem ser filhos.
Aos filhos que temem não serem filhos.
Aos filhos que buscam ser mais que filhos.
Aos filhos que sonham e se desiludem.
Aos filhos que amam mesmo quando não são amados.
Aos filhos sem risco e preconceito.
Aos filhos que poderão trazer à luz, a grande mãe protetora
que se encontra em todos nós, filhos.
Santa Ana, mãe de Nossa Senhora, junto a ela ainda menina
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Ceneide Maria de Oliveira Cerveny pela orientação na
realização desta pesquisa.
À Banca de Qualificação pelas sugestões imprescindíveis para a organização
desta pesquisa.
À Professora Mestra, assistente social Maria Lúcia Firmino de Oliveira
Carvalho pelo incansável incentivo, paciência e apoio nesta minha jornada.
À amiga professora doutora Vera Lúcia Bonato minha eterna gratidão.
Às Profas. Doutoras Ana Cristina Araújo do Nascimento, Marilza Terezinha
Soares Souza e Marluce Leão pelas contribuições e sugestões.
À Psicóloga Nalmi Cristina Rodrigues da Palma Leite pela dedicação e
inestimável colaboração na realização deste trabalho.
Ao Juiz Dr. José Montemor da Vara da Infância e Adolescência, de Taubaté,
pela atenção e apoio.
Às Assistentes Sociais do Fórum desta mesma Vara pelo apoio e colaboração.
À Secretária Aline P. Balestero Esteves, da Clínica de Psicologia da UNITAU,
pela colaboração.
Ao aluno Gabriel Macedo pela dedicação e colaboração em informática.
À Sílvia Lazzarini Monteiro pela colaboração na edição das fitas.
À aluna Michele Aline Gomes de Camargo pela contribuição nas traduções.
À Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade de Taubaté pelo apoio
financeiro.
À Secretária Vera Soares, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Clínica da PUC de São Paulo, pela atenção e respeito que sempre me tratou.
Aos funcionários da Secretaria de Alunos da Pós-Graduação da PUC de São
Paulo pela compreensão e respeito com que sempre me atenderam.
Á todas as mães e seus filhos que me permitiram a realização deste trabalho.
Aos meus familiares pelo incentivo e carinho.
À todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização desta
pesquisa.
AO PROFESSOR PËNTHO SANDOR
Embora não esteja mais em nosso convívio,
Seus ensinamentos permanecem vivos e presentes
Em minha trajetória profissional.
AOS AMIGOS GERALDO E ZÉLIA PEDRAN
A realização de ideais se conquista sempre que podemos
compartilhar com nossos amigos.
AO MEU MARIDO MÁRIO
Companheiro de lutas e glórias, apesar de todas dificuldades que
enfrentamos estamos sempre juntos.
AOS MEUS FILHOS: DIOGO E GUTO
Sementes de luz e alegria. Minha maior e mais importante
realização, meu eterno carinho.
Agradeço do fundo da minha alma a Deus por colocar no meu caminho
pessoas que me ensinam a não perder a esperança e vontade de construir uma vida
mais digna e honrada.
Muito Obrigada, e que Deus os abençoe.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................. 14
2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA, DE CARL
GUSTAV JUNG PARA O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA ............................. 24
2.1 Inconsciente coletivo/inconsciente pessoal .................................................................... 27
2.2 Ego/Self (Si-mesmo)....................................................................................................... 30
2.3 O conceito de símbolo e de elaboração simbólica ......................................................... 31
2.4 Arquétipos....................................................................................................................... 32
2.4.1 Anima/Animus.............................................................................................................. 36
2.4.2 Persona/Sombra...........................................................................................................
37
2.4.3 Arquétipo da Grande Mãe...........................................................................................
38
2.4.4 Ciclos Arquetípicos .....................................................................................................
40
2.5 Complexos....................................................................................................................... 48
2.6 Individuação ................................................................................................................... 49
2.7 Mitos .............................................................................................................................. 52
3 VIVER EM FAMÍLIA: UMA EXPERIÊNCIA DESAFIANTE, ARQUETÍPICA E
TRANSFORMADORA.................................................................................................... 56
3.1 Vivendo em lares monoparentais.................................................................................... 61
3.2 Vivendo na família com negligência e maus-tratos: conseqüência da carência e
abandono das famílias................................................................................................... 64
3.2.1 Negligência e/ou abandono..........................................................................................
64
3.2.2 Negligência precoce.....................................................................................................
66
3.2.3 Síndrome do bebê sacudido ........................................................................................
66
3.2.4 Dados estatísticos referentes a entidades sociais de atendimento...............................
69
3.3 O visível e o invisível da violência................................................................................. 75
3.4 Obstáculos políticos........................................................................................................78
3.5 Conseqüências da negligência na infância...................................................................... 79
3.6 Vivendo o desenvolvimento da família, o desafio de uma compreensão sistêmica e
analítica para a transformação........................................................................................ 86
4 CORPO: PRIMEIRA EXPERIÊNCIA CONCRETA DAS REPRESENTAÇÕES E
RELAÇÕES AFETIVAS .................................................................................................. 110
4.1 Corpo fazendo a história das civilizações....................................................................... 114
4.2 Corpo do brasileiro: de conquistas e derrotas acima de tudo um corpo resistente......... 116
4.3 O corpo: sutil, informacional e captador das sensações mais internas e dos segredos
mais íntimos................................................................................................................... 121
4.4 Evolução corporal: das bases neurofisiológicas às práticas psicomotoras...................... 124
4.5 A Psicoterapia Corporal Analítica ................................................................................. 126
4.6 Tocar fonte de prazer e medo: ambivalências imperiosas na relação com o corpo do
outro............................................................................................................................... 129
4.7 Os símbolos do corpo: registro da existência humana, expressão dos afetos................. 131
4.8 Relações corpo criança, envolvimento e construção do Ego.......................................... 133
4.9 Corpo como aspecto de Sombra nas relações e interações familiares............................ 139
5 RELAÇÃO MÃE E FILHO E O CORPO COMO INTERLOCUTOR DESTA
RELAÇÃO...................................................................................................................... 144
5.1 A tomada de consciência, formação do Ego e o surgimento de conflitos entre a
relação mãe e filhos..................................................................................................... 153
5.2 O processo transformador da consciência pelas alterações morfofisiológicas, função
do patriarcado no envolvimento do Self corpóreo e Self materno................................. 156
5.2.1 Desmame .....................................................................................................................
156
5.2.2 Higiene, postura ereta e os defectos como elementos integradores da formação do
Ego .............................................................................................................................
158
5.3 Estruturas corporais integradas aos simbolismos corpóreos, segundo Neumann........... 163
5.4 Distúrbios na fase anal e oral na relação primal ............................................................ 168
5.5 O princípio masculino positivo na construção da relação mãe e filho para aquisição
de autonomia .................................................................................................................. 173
6 OBJETIVOS...................................................................................................................... 178
6.1 Objetivo geral.................................................................................................................. 178
6.2 Objetivos específicos...................................................................................................... 178
7 MÉTODO........................................................................................................................... 179
7.1 Instrumentos.................................................................................................................... 181
7.2 Participantes.................................................................................................................... 182
7.3 Procedimento................................................................................................................... 183
7.4 Descrição do procedimento............................................................................................. 189
7.5 Ambiente......................................................................................................................... 191
7.6 Procedimento de análise de dados................................................................................... 191
7.6.1 Definição das categorias utilizadas nas tabelas .........................................................
194
7.6.2 Definição das subcategorias dos comportamentos das mães.....................................
194
7.6.3 Definição das categorias dos comportamentos das crianças.....................................
196
7.6.4 Análise dos resultados da aplicação da técnica Shantala ..........................................
208
7.6.5 Análise dos resultados das entrevistas ........................................................................
7.6.6 Análise dos padrões do ciclo do matriarcado e patriarcado dos pais das mães das
crianças.......................................................................................................................
209
223
8 ANÁLISE GERAL DOS RESULTADOS ..................................................................... 225
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 237
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 242
APÊNDICES ........................................................................................................................ 249
ANEXOS............................................................................................................................... 253
GLOSSÁRIO........................................................................................................................ 291
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 Dados referentes a Violência Doméstica de 1985 à 1997, segundo o
CRAMI ......................................................................................................
69
TABELA 2
Incidência das várias modalidades de Violência Doméstica contra
Crianças e Adolescentes no Peru - 1996 à 2000 (LACRI) ........................
70
TABELA 3 Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes (VDCA), 1996 à
2005 (LACRI) ...........................................................................................
71
TABELA 4 Os resultados do levantamento do Fórum de Taubaté sobre as
incidências de queixas entre os anos de 2004 e 2005 ..............................
72
TABELA 5 Índice de mortalidade no Brasil devido à violência contra crianças e
adolescentes (%) ...................................................................................................
73
TABELA 6 Índice de violência e maus-tratos nos Estados Unidos ............................. 73
TABELA 7 Dados coincidentes sobre os principais tipos de maus-tratos ................... 74
TABELA 8 Caso 1 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala na filha de 4
anos ...........................................................................................................
198
TABELA 9 Caso 1 – Reação da filha de 4 anos durante a 1ª. sessão de Shantala ....... 198
TABELA 10 Caso 1 – Atitude da mãe durante a sessão de Shantala na filha de 2 anos 199
TABELA 11 Caso 1 – Reação da filha de 2 anos durante a sessão de Shantala ............ 199
TABELA 12 Caso 1 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala na filha de 4
meses .........................................................................................................
200
TABELA 13 Caso 1 – Reação da filha de 4 meses durante a 1ª. sessão de Shantala ..... 200
TABELA 14 Caso 1 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala – 3 filhas ........ 201
TABELA 15 Caso 1 – Reação das 3 filhas durante a 1ª. sessão de Shantala ................. 201
TABELA 16 Caso 2 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala na filha de 4 anos ... 202
TABELA 17 Caso 2 – Reação da filha de 4 anos durante a 1ª. sessão de Shantala ....... 202
TABELA 18 Caso 2 – Atitude da mãe durante a 2ª. sessão de Shantala na filha de 4
anos ............................................................................................................. 203
TABELA 19 Caso 2 – Reação da filha de 4 anos durante a 2ª. sessão de Shantala ........ 203
TABELA 20 Caso 3 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala no filho de 3
anos ...........................................................................................................
204
TABELA 21 Caso 3 – Reação do filho de 3 anos durante a 1ª. sessão de Shantala ....... 204
TABELA 22 Caso 3 – Atitude da mãe durante a 2ª. sessão de Shantala no filho de 3
anos ...........................................................................................................
205
TABELA 23 Caso 3 – Reação do filho de 3 anos durante a 2ª. sessão de Shantala ....... 205
TABELA 24 Caso 4 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala no filho de 5
anos ...........................................................................................................
206
TABELA 25 Caso 4 – Reação do filho de 5 anos durante a 1ª. sessão de Shantala ....... 206
TABELA 26 Caso 4 – Atitude da mãe durante a 2ª. sessão de Shantala no filho de 5 anos .. 207
TABELA 27 Caso 4 – Reação do filho de 5 anos durante a 2ª. sessão de Shantala ....... 207
FERREIRA, M.F.C.D. Da expressão que espanta ao toque que encanta: a Calatonia e a
Shantala como instrumentos de intervenção no re-significar das relações entre mães e filhos.
292p. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.
RESUMO
Quando o afeto e o envolvimento são transmitidos pelo tato são com estes
significados, além do provimento de segurança através da satisfação, que o tato passará a estar
associado. A compreensão do toque entre mãe e filho promove condições para se analisar a
qualidade da relação entre ambos. O objetivo deste trabalho foi compreender a importância do
toque nas relações entre mãe e filho. É uma pesquisa qualitativa em que o método utilizado
foi estudo de caso. Os instrumentos para este estudo foram: entrevista semi-estruturada, duas
sessões de Shantala e, intercaladas entre essas sessões, quatro sessões de Calatonia em cada
uma das mães, finalizando com quatro sessões de devolutiva. Para análise das entrevistas
utilizamos a análise de conteúdos das narrativas das mães, sendo que, os conteúdos foram
interpretados baseados nos pressupostos da psicologia analítica. No caso das sessões de
Shantala construímos um instrumento de análise de observação que antes de ser aplicado foi
submetido a um grupo de quatro psicólogos doutores, juízes peritos na área para convalidar
sua consistência e adequação. O grupo participante veio encaminhado do Conselho Tutelar de
Taubaté, do Fórum desta Comarca e da Clínica de Psicologia da Universidade de Taubaté. As
queixas das crianças eram situações de negligências e maus-tratos. O número de participantes
da pesquisa foi de quatro mães com seus filhos menores de cinco anos, sendo que apenas uma
das mães tinha três filhos menores de cinco anos e as demais um filho. Os resultados
revelaram que entre a primeira sessão e a segunda sessão de Shantala houve uma mudança de
atitudes das mães na aplicação da massagem em seus filhos. Na primeira sessão encontravam-
se ansiosas e tensas, sendo que, na segunda demonstraram tranqüilidade. Assim como houve,
também, uma reação diferente nas crianças entre a primeira e a segunda sessão de Shantala
demonstrando mais aceitação e envolvimento com as mães. Estes resultados sugerem que
quando as mães também se submeteram à técnica corporal do toque, que nesta pesquisa foi a
Calatonia, houve uma expressiva e positiva modificação de suas atitudes com seus filhos,
constatando a importância do toque como procedimento de intervenção.
Palavras-Chave: Negligência, maus tratos, toque, relação mãe e filho, arquétipo materno
FERREIRA, M.F.C.D. From the expression that frightens to the touch that enchants: the
Calatonia and the Shantala as instruments of intervention in re-meaning of the relations
between mothers and children. 292p. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, 2006.
ABSTRACT
When the affection and the envolvement are transmitted by touch with these
meanings, beyond the provisions of security through the satisfaction, that is the way the touch
will start to be associated. The understanding of the touch between mother and son promoves
conditions to analyze the quality of the relation between both. The objective of this work is
to understand the importance of touch in the relations between mother and son. This
work is about a qualitative research were used a case study method. The instruments for this
study had been: half-structuralized interview, two sections of Shantala and intercalated
between these sessions, four sessions of Calatonia in each mother and four sessions of
returnable. To develop the analise interview was used the contents mother narratives, and the
contents had been interpreted based in the analytical psychology pressupposed. In the case of
Shantala’s sessions we construct an instrument of analised comment that before being applied,
was submited it to a group of four psychology doctor’s, expert in area to validate the
consistency and adequacy. The group participant were indicated by the Conselho Tutelar de
Taubaté, Taubaté’s Fórum Judicial District and the Clinic of Psychology of the University
Taubaté. The children complains were situations of negligence and maltreatment. The number
of participants in the research was four mothers with five years old lesser children, only one
of the them had three lesser children under five years and the others had one child. The
results, had disclosed between the first session and the second session of Shantala and had
changed on the mothers’ attitudes in the application the massage on their children. In the first
session they met anxious and tense, and in the second session they had demonstrated
tranquillity. As well as had a different reaction in the children between first and the second
session of Shantala, they demonstrated more acceptance and envolvement with their mothers.
The results suggests that when the mothers also were submitted to the corporal touch
technique, that in case was the Calatonia, had a expressive and positive modification in their
attitudes in relation to their children, causing the importance of intervension procced in the
touch .
Keywords: negligency, maltreatment, touch, relation between mother and son, mother
archetypes
14
1 INTRODUÇÃO
A relação humana é um vínculo sistêmico e dinâmico, possibilitador de conhecimento,
em constante movimento. Quando criança, o ser humano, para interagir e integrar-se no meio
externo, gradativamente aperfeiçoa seus gestos e expressões, adquirindo uma linguagem
corpórea cada vez mais significativa, quanto aos seus desejos de aproximação com o outro.
Com isso, torna-se uma pessoa mais equilibrada e estruturada.
Da mesma forma que o desenvolvimento geral do corpo da criança depende da
alimentação fornecida pela mãe, assim também se organiza o desenvolvimento da psique
infantil, isto é, depende da alimentação psíquica da mãe.
Segundo Neumann (1995), a disponibilidade ou indisponibilidade da mãe em
relacionar-se com a unidade biopsíquica do filho é fundamental para a formação de seu Ego,
pois a consciência independente da criança, e as formas negativas ou positivas de suas reações
egóicas estão diretamente conectadas com sua experiência corporal.
Uma das dificuldades essenciais no desenvolvimento da criança está no fato de o Ego
precisar instalar-se gradualmente no corpo único, próprio, individual da criança. Esse
processo, que caminha lado a lado com o desenvolvimento do Ego da criança, é responsável
pela extraordinária importância de toda experiência corporal, na primeira fase da infância
(NEUMANN, 1995, p.26).
15
Os conhecimentos iniciais do mundo e o desenvolvimento do corpo da criança
acontecem em ligação estreita com a mãe, não apenas com seu corpo, que fornece alimento,
calor e proteção, mas também com todo o seu amor, consciente e inconsciente, pelo filho e
pelo corpo do mesmo. Estar presente na relação implica disponibilizar gestos e expressões
que promovam a possibilidade de compreender e ser compreendido. A linguagem permanente
dessa relação transcende as ações neurofisiológica, mecânica e instintiva do corpo.
Soares (2001) indica o corpo como um traço da memória da vida. Fonte de
desassossego e de prazeres, ele revela diversos traços de sua subjetividade e de sua fisiologia.
Ao pesquisar o corpo, é nítido que não se deve separar a obra da natureza da obra realizada
pelos homens, pois o corpo é biocultural, tanto no nível genético, quanto na expressão oral e
gestual.
O corpo é a primeira forma de visibilidade humana. O sentido agudo de sua presença
invade lugares, exige compreensão, determina funcionamentos sociais, cria disciplinamentos
e desperta inúmeros interesses de diversas áreas de conhecimento (SOARES, 2001).
Considerando os aspectos abordados acima, fica evidente a importância do contato
corporal entre mãe e filho, uma vez que ambos interagem em uma participação mística, isto
é, uma relação totalitária e unitária, em Self (NEUMANN, 1995, p.41).
Dessa forma, o primeiro contato da criança com o mundo é registrado em sua pele.
Segundo Montagu (1988):
A pele é o maior órgão, mais antigo e sensível de todos os órgãos. É o nosso
primeiro meio de comunicação, nosso mais eficiente protetor. É na pele em que se
projetam todas as experiências da vida. Por onde emergem as emoções, penetram os
pesares, a beleza encontra sua profundidade. Macia, lisa, alimentando a vaidade da
juventude, a pele posteriormente enrugada atesta a passagem dos anos. Radiante na
saúde, sente um formigamento ao toque amoroso (p.24).
16
Tecida de uma variedade de células resistentes, ela protege todo o corpo. Existem
inúmeras funções relacionadas à pele, tais como: fonte organizadora e processadora de
informações; mediadora das sensações; base dos receptores sensoriais, em que se localiza o
mais delicado de todos os sentidos, o tato, barreira entre o organismo e o ambiente externo.
A estimulação cutânea pode assumir inúmeras formas, o que significa dizer que o
contato satisfatório ou não na relação entre as pessoas se baseia sempre na sensação causada
pelo TOCAR.
Nas diferentes culturas, encontramos uma variedade de maneiras de expressão da
necessidade da estimulação tátil. É uma necessidade universal, embora possa variar, segundo
o tempo e o lugar, a forma como é satisfeita.
Na literatura sobre o estudo do comportamento humano, as referências subseqüentes
de um desenvolvimento saudável, principalmente associado à infância e meninice, estão
diretamente relacionadas aos cuidados recebidos pelo toque ou estimulação tátil.
As sensações táteis tornam-se percepções táteis segundo os significados dos quais
foram investidas pela experiência. Experiências táteis inadequadas resultarão numa falta
dessas associações e numa incapacidade de criar relacionamentos com outras pessoas.
Quando o afeto e o envolvimento são transmitidos pelo tato, são com estes
significados, além dos de provimento de segurança por meio de satisfações às quais o tato
será associado. Enfim, a simbologia corpórea expressa as raízes mais profundas do ser, sua
própria alma.
Desde os primórdios da existência humana, a pele vem recebendo inúmeras agressões
do ambiente, mas reage bravamente a todas elas. Entretanto, quando se fala da ausência do
contato ou do tato agressivo, percebe-se uma reação imediata no corpo, como se estivesse
17
vulnerável e indefeso para reagir a tal situação, e a pele começa, então, a registrar marcas que
ficam gravadas por toda a vida.
Isso significa dizer que o tato é como se fosse o condutor, o campo energético, a base
dirigível e de equilíbrio para toda e qualquer experiência humana. Por meio do tato é possível
decodificar necessidades das mais simples, como perceber um objeto áspero, um objeto mais
complexo e subjetivo, como sentir a falta de uma carícia. E a cada resposta que se registra na
pele, o corpo automaticamente se transforma e procura adaptar-se à nova sensação.
Em seus estudos, Henri Wallon (1968) verificou que a formação do caráter de uma
criança se estabelece pela integração dos aspectos afetivos e motores, e a base dessa
integração se dá pelo diálogo tônico da criança com o meio (AJURIAGUERRA, 1981).
Sendo assim, tocar em uma pessoa nada mais é do que lhe dizer que ela é reconhecida
como ser humano, que se busca uma forma de diálogo para compreendê-la e para que ela
também se faça compreendida.
As expressões e os gestos sempre denunciam as satisfações e insatisfações, as reações
de prazer ou desprazer, em todos os grupos humanos. É possível perceber isso quando se toca
uma pessoa, sentindo seu corpo, percebendo suas contrações, tensões ou mobilidades.
O modo como percebe seu corpo físico é o instrumento com o qual o indivíduo
estabelece contato consigo, com seu ambiente e com os outros. Se a pessoa internaliza
sentimentos positivos de auto-aceitação e aprovação a respeito da própria aparência e aspecto
físico, no contato com os outros sua atitude terá maior pré-disposição para ser aceito e bem
recebido. A imagem do corpo é, ao mesmo tempo, resultante e determinante do modo como
se dão as relações do indivíduo, consigo próprio, com seu ambiente e com seus semelhantes.
18
Considerando esses aspectos, esta pesquisa se propõe a compreender as diferentes
expressões e toques estabelecidos em um grupo de mães com dificuldades de interação com
seus filhos, utilizando a técnica corporal da Calatonia, nas mães, e levando-as a aplicar a
técnica da Shantala em seus filhos, para verificarmos se há mudanças nas relações dessas
mães com seus filhos, após o trabalho corporal.
O interesse no tema baseia-se em toda minha experiência pessoal e profissional, ao
longo de vários anos. Por muito tempo submeti-me à técnica da Calatonia em minha
psicoterapia, e também aplico em meus pacientes que relatam ficar com uma sensação de
leveza e o corpo relaxado. No caso da Shantala, a utilizei em meus trabalhos em instituições
de crianças carentes, e os resultados sempre foram gratificantes, era perceptível nas crianças
a postura relaxada de seus corpos e após a aplicação apresentavam uma expressão de
tranqüilidade e serenidade.
Todo esse empenho e interesse tiveram início quando me especializei no curso de
Terapia Psicomotora Analítica, no Instituto Sedes Sapientiae, em 1981, sob a coordenação do
Professor Dr. Pëntho Sandor.
Na verdade, o curso chamava-se “Práticas Corporais em diferentes abordagens”, o
qual iniciei em 1980, e o Dr. Pëntho Sandor ministrou o módulo da prática corporal na
abordagem junguiana. Devido ao grande interesse que o grupo de alunos demonstrou por esse
módulo, inclusive eu, foi sugerido ao Instituto que implantasse um curso de terapia corporal
nessa abordagem, e nasceu, então, o curso de especialização em “Terapia Psicomotora
Analítica”, coordenado pelo professor Sandor, que era como nós o chamávamos. O curso
permaneceu com esse nome até 1992, quando o professor veio a falecer; então, seus
sucessores resolveram mudar o nome, mas não a estrutura do curso, como se fosse um nome
19
patenteado. Assim, mantiveram o curso, porém reformulado, conservando a proposta original
do professor de divulgar a abordagem junguiana com trabalho corporal.
Minha trajetória profissional, desde que iniciei o curso, foi participar de grupos de
estudo com o professor, até dezembro de 1991, e de cursos de aprimoramento em expressão
corporal e técnicas corporais, dança, workshops de abordagem analítica e técnicas corporais,
além de, por longo tempo, fazer psicoterapia corporal de abordagem analítica.
Simultaneamente ao curso, trabalhava em uma instituição de crianças abandonadas e carentes,
aliás, esse foi o motivo que me impulsionou a fazer o curso de práticas corporais. À medida
que fui me entrosando com o curso, comecei a trazer minhas angústias e dúvidas sobre as
crianças que eu tratava naquela Instituição, e solicitei ao professor que supervisionasse meu
trabalho, o que ele aceitou prontamente. Foram supervisões muito enriquecedoras e
inovadoras, a tal ponto que a própria direção da Instituição concedeu-me autorização para
levar as crianças ao local da supervisão, onde, simultaneamente, eu atendia as crianças e o
professor me esclarecia sobre as atitudes das mesmas e sobre minhas intervenções, ajudando-
me a compreender cada caso, dentro do referencial teórico junguiano, isto é, da Psicologia
Analítica. Essas supervisões ocorriam semanalmente, cada uma delas com uma criança.
Nosso último encontro de supervisão individual foi em dezembro de 1991, pois o
professor veio a falecer em janeiro de 1992. Nesse encontro, conversamos longamente sobre
minha trajetória pessoal e profissional. Foi um momento muito especial, e lembro-me do que
ele me disse sobre a importância de continuar lutando e buscando construir a minha
identidade, sem medo de enfrentar os obstáculos. Desde então, venho, árdua e
insistentemente, trabalhando como terapeuta corporal analítico em todos os espaços
profissionais a que tenho acesso, procurando levar o mais importante que o professor me fez
compreender e que Delmanto apresenta em seu livro “O que ensino são como sementes que
20
vão caindo dentro de vocês. Elas se desenvolverão de diferentes formas, dependendo do
campo interno de cada um...” (SANDOR apud DELMANTO, 1997, p.16).
A riqueza dos conhecimentos adquiridos durante a convivência com o Dr. Sandor
(fundamentalmente, as técnicas dos toques sutis, e, especificamente, a “calatonia”, de sua
autoria, que consiste “[...] no condicionamento feito pelo terapeuta, que recorre a estímulos
monótonos por meio de toques leves nos pés ou nas mãos”) (SANDOR, 1974, p.92) levou-me
a mudar, profundamente, a compreensão sobre os processos intrapsíquicos do ser humano, e
construir uma visão mais integrada desses processos.
Ao lado dos efeitos terapêuticos do contato, os toques sutis utilizam o alto potencial da
sensibilidade cutânea, proporcionando uma vivência multisensorial, uma síntese de várias
particularidades perceptivas e aperceptivas, sintonizadas e sincronizadas numa configuração
singular, em cada indivíduo (SANDOR apud DELMANTO, 1997, p.20).
Em nossos grupos, o Professor ensinou-nos a técnica dos toques sutis, demonstrando
como o corpo é capaz de responder tão intensamente, mesmo que o toque seja muito suave,
sutil.
Desde aquela época, até os dias de hoje, aproximadamente vinte e cinco anos,
continuo desenvolvendo minha profissão à luz desse modelo de intervenção, com a
oportunidade de trabalhar com grupos de diferentes populações, tais como crianças carentes,
asilados, presidiários, crianças de creches, escolares, deficientes físicos, deficientes mentais,
idosos, seja nas instituições, seja no consultório.
Sinto-me segura ao desenvolver o trabalho corporal, pois ele me proporciona a
oportunidade de aproximação mais tranqüila com os clientes, maior sensibilidade para
compreender e refletir sobre seus conflitos e também para oferecer aos alunos,
academicamente, mais um modelo de intervenção para atuação em psicologia.
21
Às experiências que fui vivenciando, somou-se o conhecimento adquirido com as
questões que apareceram nos resultados da minha dissertação de mestrado. Investiguei
crianças com fracasso escolar e a organização de suas dinâmicas intrapsíquicas. Todas elas
apresentaram sérias dificuldades de organização da estrutura de Ego, tais como passividade,
imaturidade emocional, insegurança, sentimento de abandono. Em todas as anamneses havia
queixas e conflitos nas relações familiares, o que chamou a atenção da banca examinadora,
que considerou importante a possibilidade de uma investigação mais aprofundada sobre as
famílias, num contexto mais específico, relacionado as questões do êxito ou fracasso escolar
das crianças. Além desses aspectos intrapsíquicos, na análise dos desenhos da figura humana,
surgiram distorções na imagem corporal, referências de um esquema corporal comprometido,
com desorganização têmporo-espacial, além de figura bem imatura (empobrecida), inferior à
da idade cronológica do grupo. Esses fatores também foram analisados e entendidos como
impedimento para o desempenho favorável das funções cognitivas.
Esses resultados da pesquisa de mestrado e o trabalho que desenvolvi nas instituições
de crianças carentes, abandonadas e vítimas de maus-tratos, conforme relatei anteriormente
(os atendimentos eram direcionados ao trabalho na área de estimulação, com o objetivo de
organizar suas bases neuropsicomotoras, que se encontravam muito defasadas em relação à
idade cronológica), acarretaram em mim uma inquietação que não me permitiu reduzir o
trabalho a apenas exercícios de estimulação. Foi quando iniciei minhas supervisões com o
professor Sandor. Com base nos estudos sobre os processos psíquicos das crianças
institucionalizadas, comecei a investigar sobre suas famílias de origem e, nas que foram
possíveis, começamos um trabalho intenso de tentar restabelecer os vínculos entre as mães
e/ou pais que apareciam para visitar seus filhos.
A diferença entre o trabalho acima mencionado e minha pesquisa atual está no fato de
que não pretendo apenas identificar as relações dos processos maturacionais e a formação das
22
funções cognitivas atreladas à dinâmica intrapsíquica, mas também entender, ao longo da fase
de aquisição do ciclo vital familiar (CERVENY, 1997), se a situação de maus-tratos e
negligência sofrida pelas crianças pode ser melhorada com a utilização das técnicas de
Calatonia e Shantala.
A fase de aquisição compreende a formação de um novo casal e o nascimento do
primeiro filho, exigindo uma re-organização de regras, valores e papéis familiares. É um
período de adaptação, em que ambos os cônjuges procuram criar novas regras e padrões de
interação a partir dos modelos da família de origem (CERVENY, 1997, p.45).
Tomando por base minha experiência com crianças e mães, na atividade Educação
pelo Movimento, que é uma atividade acadêmica que desenvolvo há mais de dez anos, é
possível afirmar, segundo nossas observações após o trabalho corporal, dados coletados e os
relatos dos estagiários e dos clientes, que houve uma melhora sensível nas crianças e suas
mães, pois elas não mais se tocavam de maneira agressiva e descontrolada, e sim de maneira
mais carinhosa e cuidadosa.
A definição da queixa e da população investigada baseou-se em um levantamento que
fizemos no Fórum, na cidade de Taubaté, nos anos de 2004 e 2005, sobre as maiores
incidências, ou melhor, ocorrências que sucederam nessa Vara. Constatamos que as crianças
na faixa etária de três a cinco anos encontram-se em situação de abandono, mesmo no
convívio com a família nuclear
1
. Apesar de conseguirmos o levantamento sobre as queixas,
obtivemos muita dificuldade para que as mães encaminhadas pelo Fórum aceitassem o
trabalho, que detalharemos na discussão do procedimento. Sendo assim, ampliamos nosso
grupo com encaminhamentos vindo do Conselho Tutelar e também da Clínica Psicológica da
1
Família nuclear, incluindo duas gerações, com filhos biológicos (SZYMANSKI, 2002).
23
UNITAU, mas o critério do levantamento do Fórum foi mantido, e esses casos encaminhados
apresentavam como queixa a situação de negligência e abandono.
Apresentamos, no segundo capítulo deste trabalho, Os pressupostos teóricos da
Psicologia Analítica a serem abordados na pesquisa, as premissas da Psicologia Analítica e
dos conceitos básicos e fundamentais para a construção do corpo teórico, tais como:
simbologia do corpo humano, arquétipo materno, relação do Self materno e Self corpóreo nos
estágios do desenvolvimento do Ego, sombra/persona, energia psíquica, ciclo do matriarcado
e patriarcado.
No terceiro capítulo, abordamos fatores que envolvem as relações nas famílias, os
modelos e sua organização, os lares monoparentais, os fatores de negligência e maus-tratos,
desenvolvimento das famílias segundo o ciclo vital (CERVENY, 1999) e a família na
concepção da Psicologia Analítica.
Apresentamos, no quarto capítulo, um breve histórico sobre as diferentes concepções
atribuídas ao corpo ao longo da história da humanidade, a sensibilidade do corpo sutil, os
gestos e expressões como fatores de comunicação não verbal, o corpo na concepção analítica
e seus aspectos de sombra, na interação entre as pessoas.
No quinto capítulo, abordamos a relação mãe e filho, a representação corpórea e os
aspectos funcionais e disfuncionais dessa relação. Os demais capítulos referem-se à pesquisa
em si, isto é, objetivos, métodos, resultados, discussões e considerações finais.
24
2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA, DE
CARL GUSTAV JUNG PARA O DESENVOLVIMENTO DA
PESQUISA
Jung construiu uma vasta obra, que teve como base suas próprias vivências. A respeito
disso, afirma em seu livro biográfico, “Memórias, sonhos, reflexões”.
Minhas obras podem ser consideradas como estações de minha vida; constituem a
expressão mesma do meu desenvolvimento interior, pois consagra os conteúdos do
inconsciente, forma o homem e sua evolução. Minha vida é minha ação, meu
trabalho consagrado ao espírito é minha vida; seria impossível separar um do outro
(JUNG, 1963, p.194).
Uma abordagem teórica viva, na qual sua vida e sua obra encontram-se
inevitavelmente ligadas; como ele próprio afirma inseparáveis. Portanto, vida e obra
misturam-se e dão sentido uma à outra. Como resultado desses anos de estudos, desenvolveu
um vasto material sobre a psique humana e elaborou os conceitos da Psicologia Analítica.
Nasceu no dia 26 de julho de 1875, em Kesswil, Suíça. Embora pertencente a uma
família voltada para a religião protestante, ele possuía a idéia de que Deus se diferenciava,
pois não dizia respeito a Cristo, como ocorria no protestantismo. Jung comparava o que lhe
era ensinado com os acontecimentos que via, chegando à idéia de que Deus deveria ser uma
força muito poderosa que criara um mundo permeado por contradições.
25
Com relação aos estudos, vivenciou dificuldade na escolha de sua profissão, pois a ele
tudo parecia interessante. Optou por estudar medicina, especializando-se em psiquiatria. Logo
depois de formado, foi trabalhar no hospital Burgholzli, no qual teve uma carreira de sucesso.
Foi atuando nesse hospital que vislumbrou a idéia de que a psique humana possuía conteúdos
que diziam respeito à vivência da própria espécie e que se manifestavam de maneira diferente
em cada indivíduo.
Em 1907, entrou em contato com Freud, de quem foi colaborador até 1912. A partir
desse ano, começaram as divergências teóricas que os separaram.
Em 1913, após romper com o grupo psicanalítico e abandonar a carreira universitária,
Jung iniciou uma nova fase de sua vida. Passou a vivenciar intensa experiência interior, além
de sonhos e visões que muito o impressionavam. Foi assim que entrou em contato com seu
inconsciente, deixando-o emergir por meio de símbolos, aos quais tentava compreender sem
perder o contato com o exterior.
Na seqüência, apresentamos os conceitos básicos desta teoria que fundamentam este
trabalho.
Segundo Jung (1991), a natureza é extraordinariamente criativa e organizadora.
Precede e independe da vontade humana. Com a evolução da ciência, principalmente a partir
do século XVII, foi possível perceber o universo maravilhoso em que as pessoas nascem, o
qual inclui também o corpo humano.
Em sua teoria, o Eu constitui o centro da consciência. É o sujeito de todos os atos
conscientes da pessoa, um fator complexo com o qual todos os conteúdos conscientes se
relacionam. A definição do Eu estabelece os limites do sujeito, pois, empiricamente, o Eu
alcança o seu limite à medida que toca o âmbito do desconhecido. O desconhecido constitui
26
tudo aquilo que ignoramos, tudo que não possui relação com o Eu, considerado como centro
da consciência.
O Eu é constituído de duas bases, uma somática e outra psíquica. A base somática é
constituída por fatores conscientes e inconscientes. Parte da totalidade das sensações de
natureza endossomática transpõe o limiar da consciência; processa-se de modo subliminar
(inconsciente), mas também pode se transformar em processos supraliminares, ou seja, em
sensações (conscientes). Existem processos inconscientes pertencentes à totalidade do
indivíduo que não são componentes do Eu consciente. Os fenômenos inconscientes têm pouca
relação com o Eu; apesar disso, manifestam-se na conduta humana. A consciência está longe
de abranger a totalidade da psique, e muitos fatos acontecem no estado de semiconsciência e
inconsciência.
O Eu, portanto, não representa a totalidade psíquica. Ele é o centro da consciência. Na
base psíquica, o Eu se assenta, de um lado, sobre o campo da consciência global, e de outro,
sobre a totalidade dos conteúdos inconscientes. “A despeito do caráter relativamente
desconhecido e inconsciente de suas bases, o Eu é um fator consciente por excelência”
(JUNG, 1991, p.03). Constitui uma aquisição empírica individual, resultando do confronto do
fator somático com o mundo exterior e desenvolve-se em decorrência de confrontos
posteriores, tanto com o mundo exterior, como com o interior.
Assim, o Eu possui o livre arbítrio dos limites do campo da consciência; “[...] é o
sujeito de todos os esforços de adaptação na medida em que estes são produzidos pela
vontade” (Id., p.04).
Já o inconsciente não possui um centro, assim como o Eu, pois a forma de
manifestação dos fenômenos inconscientes é geralmente caótica e assistemática. Podemos
perceber isso nos sonhos, que não possuem uma forma aparente e nenhuma tendência para tal.
27
Os conteúdos inconscientes dividem-se em três grupos: conteúdos reproduzidos
voluntariamente (subliminares), conteúdos que não podem ser reproduzidos voluntariamente e
conteúdos incapazes de se tornarem conscientes.
2.1 Inconsciente coletivo/inconsciente pessoal
A princípio, o conceito de inconsciente limitava-se a designar o estado dos conteúdos
reprimidos ou esquecidos. O inconsciente, em Freud
2
, apesar de já aparecer – pelo menos
metaforicamente – como sujeito atuante, nada mais é do que o espaço de concentração desses
conteúdos esquecidos e recalcados, adquirindo um significado prático graças a eles. Assim
sendo, segundo Freud, o inconsciente é de natureza exclusivamente pessoal, muito embora ele
tenha chegado a discernir as formas de pensamento arcaico-mitológicas do inconsciente.
O Inconsciente é dividido em coletivo e pessoal. O primeiro é a camada mais
profunda do inconsciente, é desligado do inconsciente pessoal e totalmente universal, e
seus conteúdos podem estar em toda parte. Possui imagens primordiais (arquétipos), que
existiram efetivamente na história do espírito humano e que foram ativas por milhares de
anos. Jung (1991) considerou que há muito tempo o cérebro humano está impregnado
dessas idéias, por isso estão no inconsciente de todos, e somente requerem certas
condições para vir à tona. E o segundo é o inconsciente pessoal – as camadas mais
superficiais do inconsciente, com fronteiras imprecisas com o consciente. Contém
lembranças perdidas, reprimidas, conteúdos que não amadureceram e que possuem pouca
carga energética para alcançar a consciência.
2
Freud modificou seu ponto de vista fundamental, aqui indicado em trabalhos posteriores: a psique instintiva foi por ele
designada “id”, e o “superego” corresponde ao consciente coletivo, em parte consciente e em parte inconsciente (reprimido
pelo indivíduo). Obras Completas, vol. XIV, 1996.
28
Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal,
denominada de inconsciente pessoal. Este, porém, repousa sobre uma camada mais profunda,
que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada
mais profunda é o que chamamos de inconsciente coletivo, portanto um substrato psíquico
comum, de natureza psíquica suprapessoal, que existe em cada indivíduo.
A camada mais profunda que conseguimos atingir na mente inconsciente é aquela
em que o homem perde a sua individualidade particular, mas onde sua mente se
alarga mergulhando na mente da humanidade (JUNG apud FARAH, 1995, p.403).
Jung (1991) optou pelo termo coletivo pelo fato de o inconsciente não ser de natureza
individual, mas universal, isto é, contrariamente à psique pessoal, ele possui conteúdos e
modos de comportamento, os quais são os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos, e
são idênticos em todos os seres humanos.
Sendo assim, o inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de
um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não
sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído
essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e que desapareceram da consciência,
por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca
estiveram na consciência; portanto, não foram adquiridos individualmente, e devem sua
existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior
parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído de arquétipos.
Esse fato confere ao inconsciente o aspecto histórico característico, ao mesmo tempo
em que constitui a conditio sine qua non de uma determinação do futuro. Enquanto pensamos
em períodos de anos, o inconsciente pensa e vive em períodos de milênios (JUNG, 2000,
p.273).
29
Para Jung, o ser humano torna-se equivocado ao pensar que é moderno. Esta é a prova
da juventude da consciência humana, que ignora seus antecedentes históricos.
Quando o inconsciente se encontra em estado de dormência, pode parecer que essa
região nada contém; no entanto, o pensamento que irá surgir, a ação que será realizada e o
destino que amanhã será lamentado já estão inconscientes no hoje.
O aspecto geral das manifestações inconscientes é geralmente caótico e irracional,
apesar de apresentar sintomas de inteligência e propósito. É como uma personalidade nunca
desperta e nem consciente de uma vida vivida, sem continuidade própria.
Na medida em que nenhum ser humano nasce como uma invenção totalmente nova,
mas repete sempre o último degrau de desenvolvimento atingido, contém inconscientemente,
como um dado apriorístico, toda a estrutura psíquica desenvolvida pouco a pouco, em um
sentido ascendente ou descendente, através de sua ancestralidade.
O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele
consiste de formas preexistentes, arquétipos que só secundariamente podem tornar-se
conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência.
Do inconsciente emanam influências determinantes, as quais, independentemente da
tradição, conferem semelhança a cada indivíduo singular, e até identidade de experiências,
bem como da forma de representá-las imaginativamente.
O inconsciente também não é constituído de conteúdos que foram casualmente
privados de consciência, pois apresenta conteúdos completamente diversos da consciência, ou
seja, sua natureza é totalmente desconhecida, diferentemente do material neurótico, que é
humanamente compreensível. Por esta razão, não se pode compreender o material psicótico,
que é de cunho inconsciente. Nesses casos, o inconsciente assume o papel do Eu:
30
As conseqüências dessa inversão acarretam insanidade e confusão, pois o
inconsciente não é uma segunda personalidade com um funcionamento organizado e
centralizado, mas provavelmente uma soma descentralizada de processos psíquicos.
Na verdade nada do que o espírito humano produz está fora do ambiente psíquico
(JUNG, 2000, p.271).
2.2 Ego/ Self (Si-mesmo)
Segundo Jung (1982), o Ego é um complexo formado por uma percepção geral de
nosso corpo e existência, e também pelos registros da memória. É o Ego que atrai os
conteúdos do inconsciente. E ele chama também as impressões do exterior que se tornam
conscientes ao seu contato. A ectopsique relaciona os conteúdos da psique com os fatos e
dados colhidos do meio ambiente, o que ocorre por meio das funções sensoriais. A
consciência é definida pela relação dos conteúdos psíquicos com o Ego.
A meta do desenvolvimento psíquico, segundo Jung (1991), é o Si-mesmo. A
aproximação em direção a ele não é linear, mas circular, antecipada, na psique, por símbolos
espontâneos e autônomos. É representado pelos símbolos da quaternidade e das mandalas, que
surgem nos sonhos e se expandem nos monumentos históricos de inúmeros povos e épocas.
O Si-mesmo constitui um fator subjetivo que se defronta com o sujeito. Situa-se além
dos limites pessoais e, quando se manifesta, é somente sob a forma do mitologema
3
religioso.
Como exemplo, Jung elucida Cristo para representar o Si-mesmo.
Self ou Si-mesmo, para Jung, refere-se à “totalidade consciente e inconsciente” (1982,
p.21), é o centro da totalidade psíquica, assim como o Ego é o centro da consciência.
3
Mitologemas "histórias divinas" passadas de geração para geração e adquiriam um aspecto religioso tornando-se mitos ao
assumirem um caráter atemporal e eterno, por dizerem respeito aos conflitos e anseios de qualquer Ser Humano de qualquer
tempo ou local. Os mitologemas são núcleos arquetípicos mitológicos.
31
Byington (1987), complementando o pensamento de Jung, observa que o Self, além
dessa totalidade, é a adaptação ao mundo e a modificação mais ou menos inteligente dele. Ao
mesmo tempo, é a diferenciação progressiva da consciência, por meio de padrões
arquetípicos. “O que for captado pelos dados sensoriais é operacionalizado à noite sob a
forma de sonhos e de dia como fantasias para organizar a consciência com os fatores
objetivos e subjetivos que a estruturam” ( p.15).
O Ego tem o papel de representar os interesses da totalidade (Self), havendo, na
primeira metade da vida, predomínio da Psicologia do Ego e da Consciência. Na segunda
metade da vida, ocorre o processo de individuação, com o deslocamento do foco do Ego para
o Self.
2.3 O conceito de símbolo e de elaboração simbólica
Todas as representações que operam no campo psíquico são símbolos. A diferença
entre símbolo e função simbólica é que um é coisa, e a outra é função. Em “Invejo o livro que
meu colega escreveu”, o livro é símbolo, a inveja é função simbólica (Byington,1987).
Dizemos que o arquétipo é universal e imutável, e que o símbolo o expressa dentro da
história e do aqui e agora, que se dirige, de uma determinada maneira, para o futuro. O
arquétipo é somente inconsciente, enquanto o símbolo e a função simbólica incluem, sempre,
entre suas polaridades, o consciente – inconsciente. O símbolo e a função simbólica são as
formas de expressão dos arquétipos. A função simbólica sempre se expressa por meio de
símbolos.
A patologia psicológica, dentro da psicologia simbólica, é compreendida como uma
variante do processo normal de estruturação simbólica, e será formada por aqueles símbolos
que, por inúmeras razões, não podem ser expressos, nem pela via de estruturação normal da
32
consciência, nem pela sombra normal, e passam a ser expressos por meio de defesas
neuróticas, psicopáticas ou psicóticas, na sombra patológica. A psicopatologia simbólica lida,
então, com os mesmos símbolos que estruturam normalmente a consciência. As defesas que
caracterizam a vivência patológica dos símbolos têm duas funções principais: uma é não
permitir que os símbolos entrem na consciência, e outra é que eles sejam vivenciados, ainda
que de forma relativamente indiscriminada e, por isso, existencialmente inadequada. Isso faz
com que os símbolos funcionem, na patologia, com seu processo de discriminação incompleto
e até mesmo deformado.
2.4 Arquétipos
O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da idéia do
inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas, na psique, que estão
presentes em todo tempo e lugar.
A dinâmica e o efeito do arquétipo manifestam-se, entre outros, por processos
energéticos no interior da psique, processos esses que operam, tanto no inconsciente, como
entre o inconsciente e a consciência. Esse efeito aparece, por exemplo, em emoções negativas
e positivas, em fascinações e projeções e também no medo. Aparece, ainda, no sentimento de
que o Ego está sendo subjugado e nos estados maníacos e de depressão. Cada um desses
estados, quando se apodera da personalidade, representa o efeito dinâmico de um arquétipo,
independentemente do fato de esse efeito ser aceito ou rejeitado pela consciência humana, de
permanecer inconsciente, ou de alcançar a consciência.
O simbolismo do arquétipo é a maneira como ele se manifesta sob a forma de imagens
psíquicas específicas, que são percebidas pela consciência e que são peculiares a cada
arquétipo. Há que se considerar que os vários aspectos de um arquétipo aparecem também em
33
imagens diferentes. Dessa forma, o aspecto assustador do arquétipo manifesta-se por meio de
outras imagens, as quais não correspondem às de seu aspecto vivificante e “bondoso”.
Contudo, o aspecto assustador de um arquétipo, por exemplo, a Mãe Terrível, manifesta-se
também nos símbolos de algum outro arquétipo, como o do Pai Terrível.
Compreendemos, por componente material do arquétipo, seu conteúdo significante
apreendido pela consciência. Quando, porém, dizemos que um conteúdo arquetípico do
inconsciente é elaborado ou assimilado, essa elaboração, se descontarmos o teor emocional do
arquétipo, diz respeito ao seu componente material.
A estrutura do arquétipo, por outro lado, é a complexa estrutura da organização
psíquica, que abrange seu dinamismo, seu simbolismo e seu conteúdo significante, e cujo
centro e fator unificador inapreensíveis são o próprio arquétipo.
Os arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens similares.
Permitem compreender por que, em lugares distantes, aparecem temas idênticos, como nos
contos de fada, nos mitos, nas produções do inconsciente, tanto nos sonhos de pessoas
normais, como nos delírios de loucos. Os arquétipos não têm conteúdo determinado, só têm
conteúdo a partir do momento que se tornam conscientes e são preenchidos pelo material de
experiência consciente.
Portanto, aliado à constelação de um arquétipo, sempre existe um estado de comoção
biopsíquica, a qual pode desencadear uma modificação das pulsões e dos instintos, e também
da paixão e da afetividade, e, num nível mais elevado, da tonalidade afetiva da personalidade,
sobre a qual atua o arquétipo. A atuação dinâmica do arquétipo estende-se mais além da
reação instintiva inconsciente, e desenvolve-se como uma determinação inconsciente da
personalidade, que irá influenciar de maneira definitiva sua disposição, suas inclinações e
34
suas tendências e, por fim, suas opiniões, suas intenções e seus interesses, bem como sua
consciência e a forma e direção específicas do seu intelecto.
Quando o conteúdo atuante do inconsciente é reconhecido, impõe-se à consciência,
assumindo a forma simbólica de uma imagem. Pois “[...] qualquer coisa anímica pode ser um
conteúdo consciente, isto é, pode ser representado, mas somente se for capaz de representação
e se possuir a qualidade de uma imagem (JUNG, 2000, p.54).
Por esse motivo, até os instintos, dominantes no psiquismo, dentre todos os conteúdos
inconscientes os de mais ampla significação para a totalidade psicológica, parecem estar
ligados às representações de imagens. A função do caráter simbólico da imagem na psique é
sempre agir profundamente sobre a consciência, de forma tão eficaz quanto possível, para
que, obrigatoriamente, a impressão lá permaneça. Assim, uma imagem psíquica cuja
finalidade é suscitar a atenção da consciência para provocar fuga, por exemplo, deve surtir um
tal impacto que o seu efeito seja infalível. O grau de impressionabilidade, de significação, de
carga energética e de numinosidade do símbolo de imagem arquetípica corresponde, portanto,
ao valor original do instinto de sobrevivência do indivíduo.
Designamos por “numinoso” o efeito de entidades e de forças que a consciência dos
homens primitivos vivenciou como fascinantes, terríveis e avassaladoras, e que, por esse
motivo, foram atribuídas a uma fonte com um vago caráter transpessoal e divino.
A representação dos instintos na consciência, ou seja, sua manifestação em imagens, é
uma das condições primordiais da consciência em geral, e a gênese da consciência como
órgão psíquico vital está decididamente vinculada a esse reflexo do processo psíquico
inconsciente que ocorre naquele órgão. Essa constelação fundamental é, em si mesma, um
produto do inconsciente, que assim constela a consciência, e não apenas uma “atividade” da
própria consciência.
35
Sendo assim, na psicologia analítica o Ego é considerado um produto da atividade
criativa e coordenadora do arquétipo central. Este é, geneticamente aparelhado com uma
sabedoria genial, que aproveita todas as situações da vida, inclusive as mais prazerosas e
frustrantes. Também considera Deus um dos grandes símbolos do arquétipo central, portanto
a gênese começa a estruturar a consciência no nível mitológico e religioso, com o
ensinamento sobre a própria formação, o que significa que não existe oposição entre religião e
ciência. Essa junção proporciona uma estruturação da consciência, por meio dos arquétipos.
Jung (1991) e seus seguidores não divinizaram os processos inconscientes; pelo contrário,
perceberam, em tais processos, padrões que estruturam e coordenam as atividades da
consciência humana, até mesmo as religiões e as descobertas científicas (BYINGTON, 1987).
A gênese nos ensina que o arquétipo central organiza a consciência através do
processo de discriminação, ou seja, de separação das coisas, processo este que,
aliado à memória, permite a formação contínua da consciência do “eu” da identidade
(criação e batismo das coisas) (BYINGTON, 1987, p. 10).
2.4.1 Anima / Animus
Jung (1982) denominou de Anima a configuração feminina que corresponde a uma
personificação arquetípica no inconsciente do homem, partindo de suas próprias experiências,
por meio de suas fantasias.
Ele afirma que a primeira portadora da imagem da alma é sempre a mãe, depois serão
as mulheres que estimularem o sentimento do homem, tanto no sentido positivo, quanto no
negativo. A Anima corresponde ao Eros materno. No filho, o fator determinante que forma as
projeções é idêntico à imago materna e, por isso, esta é tomada como sendo a verdadeira mãe.
A projeção só pode ser desfeita quando o filho percebe que existe um imago da mãe
no âmbito de sua psique, e não só o imago da mãe, como também da filha, da irmã e
da amada e da deusa... e que toda mãe e amada é, ao mesmo tempo, a portadora e
geradora desses reflexos inerentes à natureza do homem (JUNG, 1982, p.10).
36
Esta imago da mulher pertencente ao homem é fidelidade, a compensação absoluta, o
consolo, mas também a grande sedutora, a geradora de ilusões, em relação aos seus aspectos
racionais e utilitários e em relação “[...] a seus paradoxos e às suas ambigüidades terríveis em
que contrabalançam o bem e o mal, o êxito e os fracassos, a esperança e o desespero” (JUNG,
1982, p.11); sendo assim seu maior perigo, ela exige o máximo do homem.
Segundo Jung (1982), assim como o homem é compensado pelo feminino, a mulher é
compensada pelo masculino. Ele denominou Animus a natureza masculina no inconsciente da
mulher, significando razão ou espírito.
O pai é o primeiro receptáculo do fator determinante de projeções em relação à filha, e
corresponde ao Logos paterno. Como característica de Animus, sua tendência é argumentar.
Dessa forma, o pai desempenha um grande papel na argumentação da mulher. Quando
dominada por Animus, a mulher não cede a nenhuma lógica, por mais amável que seja seu
Eros.
O consciente da mulher é caracterizado mais pela vinculação ao Eros do que pelo
caráter diferenciador e cognitivo do Logos... No homem o Eros que é a função de
relacionamento, via de regra aparece menos desenvolvido que Logos. Na mulher,
pelo contrário, o Eros é expressão de sua natureza real, enquanto que Logos muitas
vezes constitui um incidente deplorável (JUNG, 1982, p.12).
O Animus é também um intermediário entre o consciente e inconsciente e uma
personificação do inconsciente. Da mesma forma que a Anima se transforma em um Eros da
consciência, mediante a integração, o Animus se transforma em um Logos, conferindo
capacidade de reflexão e conhecimento.
2.4.2 Persona / Sombra
A Persona consiste numa soma de fatos psíquicos sentidos como pessoais, exclusivos
de cada pessoa. A máscara usada pelo autor significa o papel a desempenhar.
37
[...] uma máscara da psique coletiva, máscara que aparenta uma individualidade,
procurando convencer aos outros e a si mesma que é uma individualidade, quando,
na realidade, não passa de um papel, no qual a psique coletiva [...] na realidade nada
tem de real; ela representa um compromisso do indivíduo e a sociedade, acerca
daquilo que alguém parece ser (JUNG, 1981, p.146).
A Sombra é constituída dos traços obscuros do caráter, isto é, das inferioridades do
indivíduo. “A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade de
Eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência dessa realidade sem despender
energias morais” (JUNG, 1982, p.6).
A tomada de consciência da sombra requer um conhecimento dos aspectos obscuros
da personalidade. Esses aspectos possuem uma natureza emocional, de certa autonomia, e,
conseqüentemente, do tipo possessivo. Num estágio mais profundo, as emoções são quase que
descontroladas, e o indivíduo comporta-se mais primitivamente, como vítima abúlica de seus
afetos (total falta de vontade), e revela incapacidade de julgamento moral.
2.4.3 Arquétipo da Grande Mãe
Quando a psicologia analítica se refere à imagem primordial, ou ao arquétipo da
Grande Mãe, não se refere à existência de uma imagem concreta existindo com tempo e
espaço, mas a uma imagem interior em operação na psique humana. A expressão simbólica
desse fenômeno psíquico são as figuras a as imagens da Grande Deusa, reproduzidas nas
criações artísticas e nos mitos da humanidade.
O aparecimento desse arquétipo, assim como seu efeito, pode ser observado ao longo
de toda a história da humanidade, porquanto estão presentes nos rituais, nos mitos e nos
símbolos desde os primórdios do homem, e igualmente nos sonhos, nas fantasias e nas
realizações criativas de indivíduos enfermos e sadios.
38
Como todo arquétipo, o materno tamm possui uma variedade incalculável de
aspectos, tais como: a própria mãe e a avó; a madrasta e a sogra; uma mulher qualquer com a
qual nos relacionamos. Em sentido mais amplo, a igreja, a universidade, a cidade ou país, o
céu, a terra, a floresta, o mar e as águas quietas, a pia batismal, a flor com recipiente, o útero,
a Virgem Maria, as Deusas (Demeter, Core, Sofia), o forno, o caldeirão, e animais, como a
vaca, o coelho. Todos esses símbolos podem ter sentido positivo, favorável ou sentido
negativo, nefasto. Símbolos nefastos são bruxas, dragões ou qualquer animal devorador, o
túmulo, a profundidade da água, a morte, o pavor infantil.
Além desses, poderíamos relacionar muitas outras representações simbólicas do
arquétipo materno; entretanto, o que devemos compreender são os atributos que lhe são
concedidos:
[...] maternal, a mágica autoridade do feminino, a sabedoria e a elevação espiritual
além da razão; o bondoso; o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as
condições de crescimento, fertilidade, e alimento, renascimento, o sedutor, o oculto,
o mundo dos mortos, o devorador, o venenoso, o apavorante e fatal [...] (JUNG,
2000, p.92).
Para o autor, no inconsciente de cada homem está oculta uma personalidade feminina,
ou seja, uma forma feminina inconsciente que, em geral, não tem a menor consciência. Essa
personalidade oculta, Jung denominou-a Anima. Essa figura aparece geralmente em sonhos.
Há também uma personalidade masculina oculta em cada mulher, chamada Animus. Outra
figura importante é a Sombra, que também aparece como a Anima, na projeção sobre as
pessoas adequadas. A Sombra coincide com o inconsciente pessoal, pois personifica tudo o
que o sujeito não reconhece em si e que sempre o importuna direta ou indiretamente, por
exemplo, traços inferiores de caráter e outras tendências incompatíveis.
Quando se estuda atentamente as personalidades arquetípicas e seu comportamento
através de sonhos, fantasias e delírios dos pacientes tem-se uma profunda impressão
do relacionamento tão vasto como direto com as idéias mitológicas que a muito, o
leigo se esqueceu. Elas constituem uma espécie de entidades bizarras, que
gostaríamos de dotar de uma consciência do ‘eu’; elas quase aparecem capazes
disso. No entanto esta idéia não é provada por fato algum (JUNG, 2000, p.279).
39
As personalidades arquetípicas costumam ser fragmentárias, dissimuladas,
fantasmagóricas, isentas de problemas, ausentes de auto-reflexão, sem conflitos, sem dúvidas,
sem sofrimento, assim como deuses, que não têm qualquer filosofia. Por serem estranhas ao
mundo da consciência, são intrusas e indesejáveis, saturando a atmosfera com premonições
sinistras ou com medo da loucura.
Os símbolos arquetípicos constelam-se em etapas evolutivas, a que Byington (1987)
denominou de ciclos arquetípicos.
2.4.4 Ciclos arquetípicos
O conceito de ciclo arquetípico expressa, por um lado, a implantação progressiva de
um determinado padrão de funcionamento da consciência; por outro lado, mantém a ação
criativa do inconsciente coletivo durante toda a vida, por intermédio do arquétipo regente, que
coordena cada ciclo. São eles: matriarcal, patriarcal, de alteridade e cósmico.
Os quatro ciclos arquetípicos foram escolhidos em função da importância dos
arquétipos que os regem (arquétipo da Grande Mãe – ciclo matriarcal, arquétipo de pai – ciclo
patriarcal, arquétipo da Anima e do Animus – ciclo de alteridade, arquétipo central –
coniunctio quaternário – ciclo cósmico) e do aparecimento evolutivo de padrões de
funcionamento da consciência durante sua diferenciação dos processos inconscientes.
Em cada ciclo arquetípico a forma da elaboração simbólica se dá tipicamente. No
dinamismo matriarcal, a imitação é predominante, e no patriarcal encontramos a sublimação
como a forma mais comum de transformação simbólica. No ciclo de alteridade, o “encontro
(Auseinandersetzung, de Jung) tem papel central nessa transformação, e no dinamismo
cósmico temos a generalização desempenhando basicamente essa função.
40
Os ciclos arquetípicos apresentam a posição passiva e ativa do Eu em relação ao
Outro, durante o seu desenrolar. Durante a posição passiva, o Eu tem papel secundário, e o
Outro, preponderante. Durante a posição ativa, o papel do Eu se torna preponderante, em
relação ao Outro.
O desenvolvimento evolutivo da personalidade é geralmente feito cronologicamente,
acompanhando a maturação do sistema nervoso da criança, do seu crescimento físico e da
complexificação progressiva de suas atividades sociais. Esse roteiro habitual não será seguido
aqui, pois, como depreenderemos do estudo dos ciclos arquetípicos, o desenvolvimento da
personalidade não é sempre o mesmo, e se torna muito diferente, em função da dominância do
ciclo arquetípico na cultura e na família em questão.
Por isso, torna-se importante compreendermos o funcionamento da consciência nos
ciclos arquetípicos, para depois aplicarmos essas noções aos símbolos do desenvolvimento. O
complexo de Édipo, tornado por Freud o símbolo central do desenvolvimento do Ego, por
exemplo, é a descrição do casal parental dentro do dinamismo patriarcal. Esse mesmo símbolo
do casal parental, vivenciado pela família dentro do dinamismo matriarcal ou de alteridade,
não só torna muito diferente o funcionamento da família, como também muda a estruturação
da identidade da criança.
Não existe hierarquização sobre os ciclos arquetípicos, assim como, em nosso país, em
que somos essencialmente um povo mestiço formado por culturas provenientes das quatro
raças da humanidade, também não se pode considerar que haja uma hierarquização de cultura
na população, considerando-se que dois desses grupos culturais – índios e negros –
apresentem uma dominância do dinamismo matriarcal, e outros dois – as culturas luso-
européia e japonesa – expressam, historicamente, uma dominância patriarcal, na sua
formação. Julgarmos o dinamismo patriarcal melhor que o matriarcal poderia introduzir um
41
preconceito racista e etnocêntrico colonialista, nesta teoria simbólica, o que a indiscriminaria
por completo.
O fato de a mulher, historicamente, ter sido depositária do dinamismo matriarcal, e o
homem, do patriarcal, leva-nos, hoje, a rever esse problema e buscar, na identidade de cada
homem e de cada mulher, o grau e a maneira como se combinam os dinamismos matriarcal e
patriarcal.
Byington (1987) alerta sobre o risco do preconceito entre dinamismo matriarcal e
dinamismo patriarcal. Nossas raízes acadêmicas, tradicionalmente européias, têm forte
tendência a subavaliar o dinamismo matriarcal e, em função disso e de todo o traumatismo
matriarcal e histórico colonialista, muitos cientistas do Terceiro Mundo tendem a subavaliar,
reativamente, o dinamismo patriarcal.
A - Ciclo matriarcal
O dinamismo matriarcal caracteriza-se por uma consciência que opera muito próxima
do inconsciente. O dinamismo matriarcal é o mais arcaico da consciência.
No desenvolvimento individual da consciência, a observação do início da vida da
criança evidencia um mundo regido pela sensualidade, pelo princípio do prazer e da
fertilidade, em meio à intensa proximidade afetivo-corporal, características centrais do
dinamismo matriarcal. Como a consciência matriarcal opera próxima aos processos
inconscientes, torna-se difícil a sua compreensão, uma vez que a formação cultural é
dominantemente patriarcal.
A condição essencial para empatizar com o dinamismo patriarcal é a capacidade da
personalidade de imergir e de se deixar ficar na inconsciência. Intuição
4
(Jung, 1981) é a
4
Intuição: apreensão da atmosfera onde se movem os objetos, de onde vem e qual o possível curso de seu desenvolvimento
(JUNG, 1981).
42
função consciente de apreender a realidade através do inconsciente, e permanecer no
inconsciente é uma característica do dinamismo matriarcal que, depois, emerge para operar
em qualquer uma das funções.
Essa imersão no inconsciente permanece à disposição do desejo e do princípio da
fertilidade, que propiciam a sobrevivência e o desenvolvimento do ser, por meio da
sensualidade: sexo, comidas, bebidas, danças, cores e odores, procriação, dedicação,
expressão corporal abundante, chuva, sol, marés, luar, animais, orvalho, fezes, suor, saliva,
lágrimas, criatividade exuberância, morte, putrefação, renascimento, fervor, religiosidade,
fantasias, esperteza, inveja, ciúmes, vaidade e ódio, vidência e magia.
Um padrão anárquico de funcionamento da consciência: a coerência do dinamismo
matriarcal é apreendida através da fé, da exuberância e da alegria de viver. A coerência
existencial advém da identidade profunda do ser, da identidade que podemos chamar de
ontológica, pois expressa a ligação da consciência com o arquétipo central. No caso do
dinamismo matriarcal, a coerência e a identidade operam por meio do arquétipo da Grande
Mãe.
O dinamismo matriarcal subdesenvolvido pode apresentar Eros de forma grotesca,
como talvez nenhum outro. Um outro caso de Eros subdesenvolvido é o da mulher-objeto,
mas o contrário também é verdadeiro, ou seja: Eros, no dinamismo matriarcal diferenciado,
pode atingir suas formas mais belas e sofisticadas. É o caso do guerreiro indígena cujas costas
são laboriosamente decoradas com jenipapo (preto) e urucum (vermelho), para uma luta
esportiva durante o Quarup
5
, ou dos cocares de caciques e pajés, verdadeiras obras de arte,
5
Quarup: entre os índios da região do Xingu,a morte de um chefe marca o início de um ritual funerário que inclui danças e
lutas. Essa cerimônia é conhecida como QUARUP, palavra que significa "tronco de árvore". Em torno de um tronco de
árvore acontecem as danças, que vão do anoitecer ao amanhecer do dia seguinte. Os índios acreditam que a alma do morto
se liberta do tronco pela manhã. Nesse momento, o principal da cerimônia, eles rolam o tronco para dentro do rio,
revivendo a lenda da criação do mundo.
43
combinando a forma e as cores das penas de aves diversas. A organização coletiva de
dominância matriarcal pode também ser extraordinariamente eficiente, por exemplo, uma
escola de samba reunindo milhares de pessoas dos pontos mais diversos da cidade para
comparecer, na hora certa, todos subordinados a um só ritmo e motivados, unicamente, pelo
prazer de dançar e desfilar.
A proximidade consciente-inconsciente permite à consciência matriarcal a prática da
magia, recorrendo à inversão das polaridades ou ao deslocamento dos símbolos de uma
dimensão para outra. O mesmo acontece com o fenômeno do animismo, no qual se fala com
árvores e peixes e se invoca o auxílio dos espíritos que neles habitam.
A possessão é a entrada no inconsciente para vivenciar símbolos de grande força e
com grau acentuado de componentes inconscientes. Ela ocupa posição de destaque na
elaboração simbólica matriarcal, e ocorre em muitas religiões de forma ritualística, como no
candomblé ioruba-nagô, no qual o iniciado vivencia a presença numinosa do seu orixá.
Denominar esse fenômeno de histeria é patologizar, de forma defensiva e mutiladora, a
vivência religiosa central de uma cultura. Tal mutilação equivale a rotular a comunhão
católica de regressão infantil oral. Outras situações de possessão são determinadas revelações
mediunísticas, como muitos casos de vidência e psicografia. A possessão histérica ocorre
quando a vivência simbólica da possessão se dissocia da consciência, pela presença de um
mecanismo de defesa.
B - Ciclo patriarcal
A lógica patriarcal não passa pelo inconsciente; a elaboração de seus símbolos busca
estender sua coerência por todo o campo consciente, formando um grande sistema que
subordina idéias e determina ações deduzidas de planejamentos apriorísticos. Seu grande
princípio de funcionamento não é mais o desejo e a fertilidade, e sim o dever, a tarefa e a
44
coerência, expressos moralmente pela valorização extraordinária da palavra dada e do seu
mantenimento, formando o complexo fenômeno da honra, da vergonha e da culpa patriarcal.
Essa busca de coerência dá origem ao culto do nome familiar, ligado à transmissão da posse
da propriedade privada, por meio da herança e da repetição profissional dos descendentes,
como era o caso de famílias européias de ferreiros, sapateiros, alfaiates e armeiros, que se
orgulhavam de ter a mesma profissão durante muitas gerações.
Enquanto a repetição tradicionalista no dinamismo matriarcal dominante ocorre
naturalmente, em função dos costumes, no dinamismo patriarcal ela é “patrocinada” e
protegida pelas leis. É fácil imaginar que a tendência de a família patriarcalmente dominante
cultuar o sobrenome do pai e a tradição familiar, inclusive profissional, é muito estimulada
pela confiança no nome e na tradição e pelas leis de herança da propriedade. Essas
características históricas e sociais, contudo, não determinam, necessariamente, nem a
existência, nem o funcionamento do dinamismo patriarcal, que, por ser arquetípico, se
manifesta em muitos outros contextos, além de estar presente na tradição social histórica
patriarcal de determinada cultura.
A discriminação das polaridades dos símbolos pelo dinamismo patriarcal é assimétrica
e hierarquizante, e a maneira como é elaborada e estruturada é uma das grandes
características do ciclo patriarcal. O maior afastamento da polaridade consciente-inconsciente,
que permitirá à consciência a abstração necessária para a elaboração patriarcal dos símbolos,
acontece por meio do arquétipo do pai, que delimita a discriminação, privilegiando
sistematicamente um dos pólos das polaridades.
A elaboração discriminadora assimétrica e hierarquizante dos símbolos coordenada
pelo arquétipo do pai não se faz sem um grande esforço estruturante, que podemos denominar
sublimação. Segundo Jung (1991), a sublimação não é oriunda da repressão, como a
45
considerava Freud (1996), mas de uma força exercida sobre o conteúdo psíquico que o fará se
transformar, não no seu oposto, mas naquilo que ele já é em potencial, exatamente como no
processo alquímico. Enquanto a proximidade matriarcal consciente-inconsciente permite à
psique discriminar um símbolo e estruturar a consciência, por meio da imitação, a maior
distância dessa polaridade, no dinamismo patriarcal, propicia uma delimitação a distância (às
vezes até mesmo “a ferro e fogo”), a qual pode ser conseguida pela tensão inerente à
sublimação. Essa elaboração a distância se expressa nas características impositivas inerentes
ao dinamismo patriarcal, as quais são exercidas dogmaticamente, em função de algo que
transcende a vivência imediata.
O esforço da discriminação patriarcal, por meio da sublimação ou de qualquer outra
função, dá ao poder, nesse dinamismo, uma importância tão grande quanto tem a sensualidade
no dinamismo matriarcal. Por isso, no dinamismo patriarcal os símbolos componentes das
demais dimensões são elaborados principalmente na dimensão ideativa, daí sua grande
valorização da ideologia com conotação absoluta: é o corpo sujeito a mil provações, para
obter um recorde; é o exército treinado para a parada ou para a guerra; é o domínio ascético
das emoções; é a exploração e o domínio da natureza, independentemente dela.
C - Ciclo da alteridade
Segundo Byington (1987), nesse ciclo o Eu caminha para atingir seu potencial pleno
de relacionamento com o Outro e também sua própria individualidade. Com isso, a psique
retira o máximo de potencial simbólico e a polaridade Eu-Outro procura centrar-se na
consciência, exercendo uma interação de mutualidade dialética criativa junto com as demais
polaridades, inclusive a polaridade consciente-inconsciente.
No nível individual, refere-se ao encontro dialético e à participação mútua de troca
com o Outro, na relação homem-mulher, pais-filhos, Eu-corpo, Eu-idéias e emoções. Em
46
relação ao coletivo, a meta é a busca do estado democrático, em relação criativa povo-
governo, das classes entre si e da sociedade com a natureza. Enfim, ele propicia a busca do
desenvolvimento simbólico pleno da consciência em direção ao apogeu da criatividade, de
maneira global.
Ele é coordenado pelos arquétipos da Anima e do Animus, que, como já mencionado,
representam os símbolos femininos na personalidade do homem (Anima) e os símbolos
masculinos na personalidade da mulher (Animus). Pelo fato de Jung (2000) caracterizar esses
arquétipos como a essência da inter-relação diferenciada das polaridades, Byington ampliou
essa conceituação, incluindo entre os símbolos desses arquétipos a bipolaridade plena do
masculino-feminino.
D - Ciclo cósmico
O ciclo cósmico está em relação direta com o arquétipo central. Nesse ciclo, as
polaridades e o padrão quartenário são transcendidos, e a consciência retorna ao padrão
unitário. Quem o atinge plenamente não necessita mais de outros dinamismos arquetípicos,
posto que se relaciona diretamente com o arquétipo central.
Os símbolos que expressam o ciclo cósmico se referem à vivência unitária do
processo, ao seu significado global e último. “Não se trata de entender se algo é certo ou
errado; bom ou mau; justo ou injusto. Transcendem-se as polaridades, e a vivência é do
sentido global do todo, daí sua característica de luz permanente” (BYINGTON, 1987, p.82).
De acordo com o exposto até o momento, concluímos que a consciência origina-se de
uma psique inconsciente, embora existam conteúdos conscientes que se tornam novamente
inconscientes, em virtude da repressão, por exemplo. Também o centro do Eu emerge de uma
profundidade escura em que esteve contido, de alguma forma.
47
Muitas vezes os motivos inconscientes se sobrepõem às decisões conscientes,
principalmente quando se trata de questões principais da vida. Assim, o destino de cada um
depende, em grande parte, dos fatores inconscientes.
As decisões conscientes dependem do funcionamento da memória, e os conteúdos
inconscientes nela interferem. A memória funciona de forma automática, fazendo
associações; porém, muitas vezes não consegue detectar como certas lembranças chegam à
consciência, e, por isso, não se pode descartar a hipótese de tratar-se de uma atividade
espontânea do inconsciente.
Sendo assim, uma existência psíquica só pode ser reconhecida pela presença de
conteúdos passíveis de serem conscientizados. Só podemos falar, portanto, de um
inconsciente na medida em que comprovarmos os seus conteúdos. Os conteúdos do
inconsciente pessoal são principalmente os complexos de tonalidade emocional, que
constituem a intimidade pessoal da vida anímica.
Jung (1991) afirma que o inconsciente pessoal contém lembranças perdidas,
reprimidas, evocações dolorosas, percepções que não ultrapassam o limiar da consciência
(subliminares), isto é, percepções dos sentidos que, por falta de intensidade, não atingiram a
consciência, e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência, o que ele chamou
de representação da sombra.
Os materiais do inconsciente pessoal são de natureza eminentemente da própria
pessoa, pois se caracterizam, em parte, por aquisições derivadas da vida individual e, em outra
parte, por fatores psicológicos que também poderiam ser conscientes. São partes integrantes
da personalidade, pertencem a seu inventário e sua perda produziria na consciência, de um
modo ou de outro, uma inferioridade”. (JUNG, 1991, p.125)
48
2.5 Complexos
O Complexo é constituído de um elemento central e de um grande número de
associações secundariamente consteladas. No núcleo central constam dois componentes: um
fator determinado pela experiência, ou seja, por um acontecimento vivido e ligado àquilo
casualmente, que o cerca: e de um fator determinado pelas disposições internas e imanentes
ao caráter do próprio indivíduo. O núcleo caracteriza-se pela sua tonalidade afetiva, pela
acentuação dos afetos. Essa acentuação é, energeticamente, uma quantidade de valor.
Subjetivamente, é possível avaliar a quantidade de maneira mais ou menos aproximada, na
medida em que o elemento central seja consciente. Quando o núcleo é todo inconsciente, uma
avaliação subjetiva é impossível, e torna-se necessária a utilização do método de avaliação
indireta. Esse método baseia-se em um fato: o elemento central gera automaticamente um
complexo, por ser portador de uma carga afetiva.
Jung (1991) observa que os complexos são fragmentos psíquicos cuja divisão se deve
a influências traumáticas ou a tendências incompatíveis. Eles interferem na intenção da
vontade e perturbam o desempenho da consciência. Quando ativados, colocam a pessoa em
estado de não liberdade, e ela tem pensamentos obsessivos e age compulsivamente.
Para ele, a relação entre consciência e inconsciente, por um lado, e o processo de
individuação, por outro lado, são problemas que surgem geralmente nas etapas finais do
processo analítico. “Considero analítico todo procedimento que se confronta com a existência
do inconsciente [...] É um preconceito supor que algo nunca pensado possa não ter existência
dentro da psique” (JUNG, 2000, p.269).
Não se pode presumir que em algumas mentes existam elementos que não estão
contidos de forma alguma em outras. A capacidade de o inconsciente tornar-se autônomo é
provavelmente peculiar a todo ser humano. A autonomia começa onde se originam as
49
emoções, que são reações instintivas e involuntárias (afetos). Os afetos não se dão por meio
da vontade, eles acontecem. Às vezes a consciência do Eu é posta de lado por conteúdos
autônomos, antes inconscientes. Quanto mais violento for o afeto, mais ele se aproxima do
patológico.
2.6 Individuação
Não podemos dominar o consciente, esperando dominar o inconsciente. Os dois não
constituirão uma totalidade, quando um é reprimido e dominado pelo outro. Eles precisam
combater-se abertamente, como também deve existir uma colaboração mútua. “É
aproximadamente a isso que denomino ‘processo de individuação’. Como o nome sugere,
trata-se de um processo ou percurso de desenvolvimento produzido pelo conflito de duas
realidades anímicas fundamentais” (JUNG, 2000, p.281).
Todo o processo já citado possibilita ao ser humano desenvolver-se, formando Ego,
Sombra e Persona. Ao mesmo tempo, a existência dos outros arquétipos, como
Animus/Anima, também vai se consolidando como características de comportamento, e todos
eles advêm do arquétipo central, o qual torna possível a movimentação na psique, ou o seu
comando.
A partir da meia idade, denota-se, no indivíduo, uma predominância em repensar seus
valores. A Sombra, que são os conteúdos negados ou reprimidos pela pessoa, começa a
emergir à consciência, propiciando um processo que Jung classificou como alquímico. Trata-
se de um momento doloroso e conflitante na vida da pessoa, já que ela precisa entrar em
contato com tais conteúdos. É o momento de entrar em contato com a destrutividade e a
culpa; no entanto, esse é um movimento que tem a capacidade de transcender o ser, pois
50
ocorre a união dos opostos, a possibilidade única de realizar a individuação e garantir a
integridade do ser.
O mais importante a se compreender, a respeito do embate entre o consciente e o
inconsciente, é a simbologia desse processo, tanto prática, como teoricamente.
A formação simbólica possui afinidade com representações alquímicas. A
harmonização dos dados conscientes e inconscientes se dá em um processo de vida irracional
expresso em determinados símbolos. É neles que ocorre a união dos conteúdos conscientes e
inconscientes. Essa é a união dos opostos, ou “função transcendente”.
As noções apresentadas acima nos dão uma idéia de uma construção da organização
intrapsíquica no homem, a qual lhe propicia o processo de individuação.
Uso o termo “individuação” no sentido do processo que gera um “individuum”
psicológico, ou seja, uma unidade indivisível, um todo. Presume-se que em geral
que a consciência representa o todo do indivíduo psicológico. A soma das
experiências, explicáveis apenas recorrendo a hipóteses de processos psíquicos
inconscientes, faz-nos duvidar que o eu e seus conteúdos sejam de fato idênticos ao
“todo” (JUNG, 2000, p.269).
Esse processo se dá no meio da vida, ocasionando uma crise que:
[...] foi interpretada por Jung como a necessidade de diferenciação do coletivo, uma
transformação arquetípica da personalidade que, se bem aproveitada, leva o
indivíduo a se diferenciar dos papéis sociais e a atingir a plenitude de seu potencial
existencial (BYINGTON, 1987, p.7).
No entanto, a individuação como processo pode ser observada em várias fases da vida
e em épocas de crise, como adolescência e meia idade.
Quando ocorre o processo de individuação, a combinação do consciente e do
inconsciente leva à assimilação do Ego numa personalidade mais ampla, descrita como Self.
Assim, a individuação integra o consciente e o inconsciente, e, ao longo de nossas vidas,
passamos por uma série de mudanças.
51
Na primeira metade da vida, o bebê, embora não tendo atingido o estágio de se
reconhecer como uma pessoa distinta, como Eu, está ciente de que algo se passa a sua volta.
A consciência não é contínua na vida da criança, em vigília. Há ilhas de consciência e,
durante anos, há uma inconsciência de si mesma como indivíduo. No final da adolescência,
ocorre uma diferenciação de Ego. Com o passar dos anos, ao se atingir a meia idade, a vida
subjetiva é ampliada, pois o indivíduo se desenvolveu, produziu uma atitude madura em
relação à vida, e a imaturidade da consciência do Ego deu lugar a uma aceitação natural do
coletivo da vida.
Os objetivos da segunda metade da vida são diferentes dos da primeira. Passamos a
primeira metade da vida desenvolvendo um Ego saudável, para podermos agir de maneira
satisfatória no mundo exterior. Só depois de concluída essa tarefa, na segunda metade da vida,
o indivíduo afasta-se do mundo exterior, para poder encontrar o Eu mais profundo, ou seja,
para tornar-se um “indivíduo”. A individuação requer que ele vença ambos os estágios com
sucesso.
2.7 Mitos
Segundo Jung (1964), os mitos são principalmente fenômenos psíquicos que revelam a
própria natureza da psique. Resultam da tendência incoercível do inconsciente para projetar as
ocorrências internas, que se desdobram invisivelmente no seu íntimo, sobre os fenômenos do
mundo exterior, traduzindo-as em imagens. Assim, não basta aos primitivos ver o nascer e o
pôr do sol; esta observação será ao mesmo tempo um acontecimento psíquico: o sol
representará o destino de um deus ou herói que, em última análise, habita na alma do homem.
Os mitos condensam experiências vividas repetidamente, durante milênios,
experiências típicas pelos quais a humanidade passou e ainda passa. Em virtude disso, temas
idênticos são encontrados em lugares distantes e diversos. A partir desses materiais básicos,
52
tanto sacerdotes, quanto poetas, elaboram os mitos, embora com roupagens diferentes, além
de épocas e culturas diferentes, o que constitui, assim, uma releitura de um mito já existente, e
não o surgimento de novos mitos.
Na Grécia antiga, o mito era um meio utilizado pelo homem para compreender o
mundo em que se encontrava, abrangendo também os fenômenos naturais (como o vento, o
sol, a chuva, o dia, a noite). Conforme ocorriam, esses fenômenos eram considerados castigos
ou recompensas. Todos esses acontecimentos eram relacionados com os deuses, com a
satisfação ou não de seus desejos.
Cada deus possuía sua própria morada, mas quando eram solicitados compareciam
ao palácio de Zeus, considerado o pai dos deuses. Neste local os deuses discutiam
assuntos referentes ao céu e à terra, enquanto saboreavam néctar, ambrosia e ouviam
a música tocada por Apolo (deus da música) e cantada pelas musas (divindades
capazes de cantar). Os deuses tinham cada qual a sua história, que relatava sua
criação e suas vivências, sendo que até mesmo “o pai dos deuses” tinha um princípio
(CAMPBELL, 1990, p.35 )
Sua história ligava-se a seus pais, Cronos e Réia, que faziam parte da raça dos Titãs:
“[...] os cataclismas através dos quais a Terra preparava-se para tornar-se um lugar propício,
onde se estabelecerá a vida dos humanos” (CHEVALIER, 2005, p.886).
Os mitos não são apenas histórias antigas que trazem explicações acerca do mundo
primitivo e de seus fenômenos; eles existem em todos os tempos e culturas, têm relação direta
com a maneira do ser humano compreender sua realidade física e psíquica. Eles expressam as
experiências vividas pela espécie humana ao longo de sua história, de modo que todo homem
deverá passar por elas, pois são vivências típicas da espécie (arquetípicas), e constituirão
material de inconsciente coletivo (JUNG, 1981).
O fato de ser coletivo, portanto comum a toda espécie humana faz com que os mesmos
temas reapareçam em locais muito distantes e em contextos bastante diferentes, seja nos
contos de fadas, nos mitos religiosos, seja nas manifestações artísticas, seja na filosofia.
53
Assim como nos contos de fadas, os mitos são recursos que servem de expressão aos
processos inconscientes, pois, ao serem narrados, fazem com que tais processos se revitalizem
e promovam a conexão entre consciente e inconsciente.
Os mitos, para Campbell (1990) – professor, escritor, pesquisador, uma das maiores
autoridades no que diz respeito à compreensão dos mitos –, seriam pistas que levariam às
experiências interiores, constituindo-se numa maneira de o homem entrar em acordo com o
mundo e adaptar-se à realidade, de forma a entrar em harmonia com ela. “São sonhos do
mundo, são sonhos arquetípicos, e lidam com os magnos problemas humanos. [...] O mito me
fala a respeito, de como reagir diante de certas crises de decepção, maravilhosamente,
fracasso ou sucesso. Os mitos me dizem onde estou” (CAMPBELL, 1990, p.16).
Mitos são histórias que ensinam o que se encontra por trás da literatura, das artes,
enfim, são histórias sobre sabedoria de vida. Seus temas são atemporais, cabendo à cultura sua
inflexão. Independentemente de onde seja o mito, suas imagens são sempre as mesmas, falam
dos mesmos problemas, apenas se encontram com roupagens diferentes, que têm relação com
as diferentes épocas em que surgem.
As imagens do mito jamais podem ser uma representação direta do segredo total da
espécie humana, mas apenas o propósito de uma atitude, o reflexo de uma posição,
uma postura de vida, uma maneira de jogar o jogo. E onde as regras ou formas de tal
jogo são abandonadas dissolve-se – e, com a mitologia, a vida (CAMPBELL, 1995, p.
414).
Os mitos ajudam a ler as mensagens do mundo, a integrar o indivíduo na sociedade e
esta na natureza, é uma força harmoniosa que une a natureza do mundo com a natureza do
indivíduo. Coloca-o além do conceito de realidade, transcende o pensamento, fornecendo um
canal de comunicação com o mistério que cada um é, pois se destinam à instrução espiritual.
Para Campbell (1990), o ser humano estaria em busca de uma experiência de estar
vivo que fizesse com que as experiências físicas encontrassem ressonância no interior do
54
próprio ser. Contudo, chegar a essa experiência seria possível apenas por meio da leitura dos
mitos de outros povos, pois, dessa forma, compreender-se-ia a mensagem dos símbolos, o que
dá o significado às experiências vividas; daí a importância de se conhecer os mitos antigos.
Os mitos antigos foram criados com o objetivo de harmonizar a mente e o corpo do ser
humano, pois a primeira pode divagar através de caminhos estranhos e almejar que o corpo
siga o rumo da vida de acordo com o rumo que a natureza aponta. Assim, os mitos vão
apontar a forma como outros percorreram esse caminho, e como o próprio indivíduo pode
fazê-lo. Falam das belezas do caminho e ajudam o indivíduo a aceitar o seu fim. Quando o
homem chega à meia idade, o corpo já atingiu seu poder máximo, e começa a declinar; nesse
momento, as pessoas geralmente se identificam com as perdas do corpo, em vez de considerá-
lo um veículo da consciência, pois assim essas perdas seriam aceitas mais naturalmente,
seriam previsíveis. Atingida essa fase, a consciência pessoal evolui para uma consciência
cósmica.
Quando uma sociedade não possui uma mitologia poderosa, encontra-se
desritualizada, e seus membros não se reconhecem como pertencentes a um mesmo grupo e,
para sobreviver, criam seus próprios mitos, que têm como referência suas atuações. Assim,
eles se perdem, pois não sabem como se comportar em sociedade, o que gera a violência, que
hoje pode ser presenciada cada vez que se assiste a um noticiário ou se lê um jornal, entre
outros tipos de problemas do mundo moderno.
A humanidade precisa de mitos que a identifiquem com o planeta, e não apenas com
sociedades, pois atualmente as fronteiras não existem mais. Assim, o mito que está por vir
será referente ao planeta. Continuará lidando com os mesmos aspectos dos anteriores (o
desenvolvimento do indivíduo, de sua infância à idade adulta) e englobará a maturidade, a
morte e a maneira de se relacionar com a sociedade e o mundo da natureza e os cosmos, pois,
55
para Campbell (1990), o ser humano busca uma maneira de experimentar o mundo que o abra
ao transcendente, para encontrá-lo verdadeiramente, adquirindo, assim, um tipo de
aprendizagem que lhe possibilitará experienciar a presença divina.
56
3 VIVER EM FAMÍLIA: UMA EXPERIÊNCIA DESAFIANTE,
ARQUETÍPICA E TRANSFORMADORA
Neste capítulo trataremos de algumas abordagens teóricas que discutem e estudam a
família, com o intuito de possibilitar a compreensão de alguns padrões comportamentais e
psicológicos que se manifestam nesse grupo os quais vêm determinando padrões
socioculturais, ao longo dos séculos.
Segundo Cerveny (1992), a família constrói a sua história a partir da história
compartilhada por seus membros. De uma relação muito dependente nos períodos iniciais de
sua vida, o indivíduo, vai gradativamente construindo formas mais independentes de se
relacionar com os membros da família, e, na fase adulta, se espera-se esteja estabelecido um
padrão de relações mais equilibrado.
Ao longo desse processo, os afetos, as percepções dos papéis e funções de cada um, a
dinâmica das relações e o investimento emocional tamm estão em constante mudança e
reorganização, fazendo com que, em cada período, o significado que o sistema familiar
adquire na vida particular de cada indivíduo seja diferenciado. Assim, “a subjetividade
individual é construída a partir da subjetividade do sistema, da mesma forma que esta é
construída pelas subjetividades individuais” (CERVENY, 2002, p.22).
57
Para Szymanski (2002), compreende-se como família uma associação de pessoas que
escolhe conviver por razões afetivas e que assume um compromisso de cuidado mútuo e, se
houver, com crianças, adolescentes e adultos. Essa consideração abrange um grande número
de possibilidades que, há séculos, já vêm sendo vividas pela humanidade, tais como:
1. Família nuclear incluindo duas gerações, com filhos biológicos;
2. Famílias extensas, incluindo três ou quatro gerações;
3. Famílias adotivas temporárias;
4. Famílias adotivas, que podem ser bi-raciais ou multiculturais;
5. Casais;
6. Famílias monoparentais, chefiadas por pai ou mãe;
7. Casais homossexuais com ou sem crianças;
8. Famílias pluricompostas: reconstituídas depois do divórcio;
9. Várias pessoas vivendo juntas sem laços legais, mas com forte compromisso mútuo.
As trocas afetivas na família imprimem marcas que as pessoas carregam a vida toda,
definindo direções no modo de ser com os outros, afetivamente, e no modo de agir com as
pessoas. Esse ser com os outros, aprendido com as pessoas significativas, prolonga-se por
muitos anos e, freqüentemente, projeta-se nas famílias que se formam posteriormente.
Numa família, a linguagem, a metalinguagem, o modo de compreensão das
experiências vividas e as disposições afetivas predominantes orientam um ser com o outro que
irá se configurar de diferentes maneiras. Esse modo de agir das famílias refere-se, numa
perspectiva existencial ao cuidado, ou solicitude que pode ser vivido tanto de modo
deficiente, como de modo autêntico. Solicitude com existência do outro e não para “o que” ele
cuida; ele salva o outro para torná-lo transparente a si mesmo em seu cuidar e para torná-lo
58
livre para si. A solicitude, nessa perspectiva é orientada pela consideração, respeito, paciência,
tolerância e esperança. Mas pode, também, orientar-se na forma deficiente, pela
desconsideração, impaciência, intolerância ou negligência, para a qual a indiferença abre
caminho. Aqui o ser “com” assume as formas de ser “contra” o outro e “sem” o outro
(HEIDEGGER apud SZYMANSKI, 2002, p.12-13).
Há também um outro modelo de família, segundo Szymanski (2002): aquele que tem
como constância uma forma de solicitude tão intensamente controladora, em vista de um ideal
de socialização, que abafa as expressões individuais dos seus membros mais jovens. Por outro
lado, a preocupação excessiva com a segurança e o bem-estar dos filhos pode, também, criar
um modo de ser na dependência e uma compreensão de mundo que desvela apenas o seu
aspecto hostil e pouco da sua condição provedora.
A solicitude, entretanto, depende da maneira como o mundo em torno e a função de
cada um na família são interpretados, em especial por parte dos adultos. Essa é a base sobre a
qual a criança construirá sua identidade e desenvolverá futuros relacionamentos com objetos,
idéias e pessoas, sem desconsiderar que esse processo continua pela vida toda e que comporta
modificações advindas das experiências nos outros “mundos” em que se vive.
[...] ações contínuas e habituais, realizadas pelos membros mais velhos da família,
nas trocas intersubjetivas, com sentido de possibilitar a construção e apropriação de
saberes, práticas e hábitos sociais pelos mais jovens, trazendo, em seu interior, uma
compreensão e uma proposta de ser-no-mundo com o outro (SZYMANSKI, 2001,
p.87 Id. 2002).
Considerando os aspectos acima a autora, baseando-se em trabalhos de outros
pesquisadores, indica que os modos de agir e sentir que predominam nas diferentes camadas
sociais, no que se refere às punições físicas são mais intensas nas camadas empobrecidas
(MCLOYD, 1990, 1998; NUNES, 1994; KASLOW, 2001 apud SZYMANSKI, 2001), e que
59
podem ser compreendidos, tanto à luz das condições estressantes da vida a que são
submetidas, como na reprodução da ideologia autoritária e conseqüente subalternidade.
Entretanto, cabe ressaltar que nos tempos atuais, a questões sobre violência, deve ser
amplamente discutida, devido à diversidade de situações em que ela se faz presente, portanto,
segundo os pesquisadores, não se pode determinar certas condutas sociais como padrão de
uma classe social. Os mesmos pesquisadores, no entanto, observam que a classe social é um
dos elementos definidores dos modos de relacionamento interpessoal, por seus membros
carregarem culturas próprias, por compartilharem uma história, pelas experiências que
vivenciaram, pelas oportunidades educacionais que receberam e pelas condições de vida que
experimentaram.
Uma família em crise, por exemplo, é tema para inúmeras reflexões, no entanto, para
compreendermos essa crise, que aspecto tem e que problemas apresentam, temos primeiro que
contextuá-la.
Segundo a abordagem analítica, quando se fala em crise fala-se da família patriarcal
tradicional, isto é, do modelo vigente de padrão de comportamento do grupo familiar, reporta-
se ao padrão dessa família em sustentar suas tradições, herança, culto ao sobrenome, repetição
de valores e leis (BYINGTON, 1987).
Esse modelo se fortalece amplamente, segundo Azevedo (1994), a partir dos séculos
XVIII e XIX quando se formou a chamada família burguesa, e se expressa num movimento
da consciência coletiva em que o arquétipo do pai passa a ser preponderante, com
características bastante claras, o que podemos observar ao estudarmos a sua história.
Ao se pensar na família hoje, devem-se considerar as mudanças que ocorrem em nossa
sociedade, como estão se construindo as novas relações humanas e de que forma as pessoas
60
estão cuidando de suas vidas familiares. As mudanças que ocorrem no mundo afetam a
dinâmica familiar e, de forma particular, cada família conforme sua composição, história e
pertencimento social.
Numa cultura que valoriza o homem como o poderoso provedor da família, é
desconcertante a situação em que a mulher, ou mesmo os filhos adolescentes consigam
trabalho e remuneração mais facilmente do que o “chefe” da família. A “solução” encontrada
por um desses homens, desempregados crônicos, foi proibir a mulher de trabalhar, mas que
fechavam os olhos a sua desobediência, velada, realizando pequenos “bicos” para conseguir
dinheiro para a subsistência da família “[...] a mudança na hierarquia de poder dentro da
família a partir deste deslocamento da pessoa que está ganhando mais pode causar
problemas difíceis de serem antecipados[...]” (SZYMANSKI, 1988, p.38 Id. 2002).
A transformação das formas da vida conjugal manifesta-se pelo aumento da
monoparentalidade (predominantemente feminina) e da taxa de divórcios e re-casamentos,
com a conseqüente recomposição do casal. Isso resultou numa desinstitucionalização do
casamento, segundo autores citados acima (p.59). Trata-se, entretanto, de uma transformação
na instituição familiar, pois o que se observa é o surgimento de novos modos de ser entre
homens e mulheres e seus filhos, partilhados por muitos casais contemporâneos. Esses novos
modos de ser terminarão por constituir novas regras.
Essas transformações, segundo Szymanski (2002), não constituem uma necessidade de
rejeição à vida familiar, mas em um questionamento sobre como o casamento está definido,
por séculos, e sua representatividade como instituição social. De acordo com algumas
realidades das pessoas, o lar oferece, num mundo difícil, um abrigo, uma proteção, um pouco
de calor humano, e o que elas desejam é conciliar as vantagens da solidariedade familiar com
as da liberdade individual.
61
Os modos de vida nas famílias contemporâneas vêm se transformando, num tempo
histórico e social, criando novas articulações de gênero e gerações, elaborando novos códigos
e, ao mesmo tempo, mantendo certo substrato básico de gerações anteriores. A condição de
pobreza crescente acarreta a utilização de novas estratégias, as quais são, por sua vez,
atravessadas por fatores como as relações de gênero e geração. Assim, ao mesmo tempo em
que ocorrem essas mudanças, observa-se uma escalada na violência doméstica, ou, na
verdade, há maior visibilidade para um fenômeno que se mantinha entre quatro paredes, em
nome da privacidade da vida familiar. Este tornar público um fenômeno escondido
possibilitará não só seu estudo como também o desenvolvimento de procedimentos de
intervenção (ALDRIGHI, 2001).
A questão da violência doméstica muitas vezes está associada ao alcoolismo e
consumo de drogas, que têm efeitos devastadores nas famílias e que não podem ser analisados
fora de um quadro de referência da sociedade mais ampla. Igualmente a escalada do crime e
da violência tem espalhado o terror e é responsável pela maior parte das mortes entre crianças
e jovens nas camadas empobrecidas da população.
Em decorrência desses aspectos muitos lares são desfeitos. A mulher acaba sendo
abandonada, ou resolve abandonar o lar, por ele não ser mais a referência de proteção e
abrigo, e passa a constituir um novo modelo de composição familiar, o monoparental.
3.1 Vivendo em lares monoparentais
Os lares monoparentais são aqueles em que vivem um único progenitor com os filhos
que não são ainda adultos, e que diante de tantas transformações sociais foi se tornando cada
vez mais comum (VITALE, 2002).
62
A expressão “famílias monoparentais” foi utilizada, por “Nadine Lefaucher na França,
desde a metade dos anos setenta, para designar as unidades domésticas em que as pessoas
vivem sem cônjuge, com um ou vários filhos com menos de 25 anos e solteiros” (Vitale,
2002, p.47). Ainda, segundo a autora francesa elas viam a utilização desta noção um meio de
elevar os lares, nos quais o chefe de família era uma mulher, e que esta também passa a ser
uma condição de reconhecimento da existência de uma família.
As mulheres chefes-de-família costumam ser também “mãe-de-família”, acumulam
uma dupla responsabilidade, ao assumir o cuidado da casa e das crianças juntamente com o
sustento material de seus dependentes. Essa dupla jornada de trabalho geralmente vem
acompanhada de uma dupla carga de culpa por suas insuficiências tanto no cuidado das
crianças quanto na sua manutenção econômica.
As famílias chefiadas por mulheres, no Brasil, segundo IBGE (2000) correspondem a
11,1 milhões de famílias. Uma em cada quatro famílias brasileiras é chefiada por mulheres.
Nesse universo, a maioria das mulheres responsáveis pelo domicílio está em situação
monoparental. Os dados do Censo 2000 revelam também que, enquanto cresce a proporção
das famílias monoparentais femininas ou matrilineares – de 15,1 em 1992 para 17,1% em
1999 – diminui a proporção daquelas compostas apenas pelo casal com filhos. As famílias
monoparentais masculinas são significativamente menores que as femininas.
A noção de monoparentalidade tem ficado associada não só a sexo, mas também à
pobreza, ainda na referência do Censo 2000 aponta que a média da renda dos homens chefes
de família é de R$ 827,00, enquanto a das mulheres é R$ 591,00. Mas para 5,5 milhões de
mulheres chefes de família o rendimento mensal não ultrapassa R$ 276,00. Dentro destes
dados, o percentual de mulheres que ganham até dois salários e que são responsáveis pelos
cuidados domiciliares de crianças entre a faixa etária de 0 a 6 anos é de 56,6%.
63
A dimensão da pobreza se aprofunda quando vinculamos monoparentalidade, sexo e
etnia. Famílias monoparentais femininas e pobreza acabam, de um lado, por construir outro
estigma, o de que as mulheres são menos “capazes” para cuidar de suas famílias ou para
administrá-las sem um homem. De outro, é apontado que as mulheres, hoje, ganharam maior
independência e, portanto, podem assumir suas famílias. No entanto, enquanto houver a
associação maciça entre monoparentalidade e pobreza – e os dados do Censo 2000
confirmam, em especial quando distribuída por regiões do país – acaba por fortalecer-se
muito mais a adjetivação dessas famílias como vulneráveis ou de risco do que como
potencialmente autônomas.
Tratar das famílias monoparentais é, portanto, abordar seus vínculos, suas relações
com uma rede familiar que não coincide necessariamente com as fronteiras da casa.
Nesta perspectiva, Vitale (2002), focaliza a dimensão dos laços de criação e argumenta
sobre a circulação de crianças que emerge não só em decorrência da situação socioeconômica,
mas também, como uma prática cultural enraizada entre os pobres. Nas famílias
monoparentais a circulação de crianças pode ocorrer no desenrolar de suas existências.
As crianças destas famílias podem ser criadas entre dois lares, elas vão e voltam entre
o lar de origem e o lar de acolhimento, não há uma ruptura dos laços, mas sim, uma dualidade
de vínculo e de estada; outras crianças, no entanto, ficam por um longo tempo em lares de
parentes; outras são doadas para famílias substitutas. Assim, a circulação de crianças pode
aparecer tanto em momentos em que a mãe está só com os filhos ou quando encontra um
companheiro que não que os filhos da antiga relação.
No contexto da rede familiar, quando a mulher assume a chefia da família,
principalmente na situação matrilinear, há uma redefinição das relações de autoridade na
família. Isto pode significar a ausência do pai ou o enfraquecimento com os laços paternos,
64
mas outras figuras masculinas da rede familiar podem assumir o papel de autoridade moral. A
monoparentalidade tem sido problematizada até aqui no quadro das relações de redes
familiares. Convém enfatizar que a rede social e as trocas intergeracionais, ou seja, as
solidariedades familiares ajudam a existência destas famílias, entretanto na ausência do apoio
seja ele, da família extensa ou de redes públicas, a estas mães, deparamos com um índice
elevado de denúncias, principalmente, no setor do poder judiciário sobre as precárias
condições em que as crianças se encontram.
3.2 Vivendo na família com negligência e maus tratos: conseqüência da carência e
abandono das famílias
A conceituação, segundo o dicionário do Ministério da Educação e Cultura (1983)
negligência corresponde a: desleixo, descuido, desatenção, incúria, preguiça, desídia... Nos
estudos científicos internacionais a negligência de crianças e adolescentes, no plano
doméstico, se define de diferentes maneiras:
3.2.1 Negligência e/ou abandono
É quando o adulto permanece junto ao filho, privando-lhe parcialmente e em grau
variável de atenção adequada e necessária. Esta desatenção pode provocar quadros de
desnutrição de segundo e terceiro graus (sem que haja a princípio nenhum fator orgânico
determinante), descuido frente a situações perigosas e acidentes freqüentes, imunizações
incompletas, deserções escolares, desconhecimento de atividades extra-familiares,
desinteresse e outras.
Segundo Humpherys (2000), a maneira como os pais se relacionam determina a
maneira como se relacionarão com os filhos. Quando não demonstram cuidado um com o
65
outro, ou são violentos entre si, os filhos repetem os mesmos padrões, isto quer dizer que os
padrões de negligência continuam. Classificando-os da seguinte maneira:
1. Relacionamento entre os pais: Conflito físico ou verbal freqüente; possessividade
entre o casal ignorando outros relacionamentos; desinteresse pela independência e/ou
individualidade dos filhos; ênfase em aspectos materiais, sem expressão de sentimentos;
freqüente uso de bebidas alcoólicas ou drogas ilegais.
2. Relacionamento dos pais com os filhos: Negligência do bem estar físico (abuso de
drogas, alimentação pobre, abuso de álcool; excesso de peso, excesso de fumo; isolamento,
retraimento, negligência do desenvolvimento de comportamentos mais responsáveis).
3. Relacionamento dos filhos com os pais: os filhos assumem o papel de protetores
dos pais, desde os cuidados de higiene pessoal, cuidados com a casa, até o controle no uso de
drogas ilícitas na tentativa de serem de alguma forma protegidos e aceitos, pelos pais.
4. Relacionamento entre os filhos: desenvolvem um comportamento hostil entre si;
agressivos, dominadores, e quando responsáveis em cuidar de irmãos menores desenvolvem
muita raiva, colocando esses irmãos em situação de risco.
O autor coloca também que ao se trabalhar os conflitos de negligência dentro de uma
família, deve-se levar em conta que esta família precisa rever vários níveis de conflito e
compreendê-lo, tais como:
- conflito interior de ódio e rejeição do eu dos pais;
- conflito entre os dois pais infelizes;
- conflitos internos não resolvidos provavelmente oriundos de suas famílias de
origem;
- conflitos da família atual, colocando em risco os membros da família;
- conflitos internos dos filhos relativos aos seus sentimentos de rejeição e sua
necessidade não satisfeita de amor e reconhecimento.
66
3.2.2 Negligência precoce
A Negligência, subentendida como Negligência Precoce, é o ato de omissão do
responsável pela criança ou adolescente em prover as necessidades básicas para seu
desenvolvimento. Vamos considerar Negligência Precoce a situação onde não há uma
interação satisfatória entre mãe e filho durante uma fase crítica na vida da criança. Essa
ocorrência caracteriza uma das condições capazes de interferir no desenvolvimento infantil.
Dependendo da dimensão psicológica e neurológica dessa Negligência Precoce, mesmo que a
criança tenha recebido cuidados materiais e físicos adequados, mas, tenha sido esse
relacionamento, emocionalmente indiferente ou carente, os danos causados podem ser
permanentes.
3.2.3 Síndrome do bebê sacudido
Esta síndrome se refere à lesões de gravidade variáveis, que ocorrem quando uma
criança, geralmente um lactente, é severa ou violentamente sacudida. Podem ocorrer em
conseqüência:
1. Cegueira ou lesões oftalmológicas;
2. Atraso no desenvolvimento;
3. Convulsões;
4. Lesões da espinha;
5. Lesões cerebrais;
6. Morte.
A situação onde não há uma interação satisfatória entre mãe e filho durante uma fase
crítica na vida da criança. Essa ocorrência caracteriza uma das condições capazes de
interferir no desenvolvimento infantil.
67
Os estudos sobre a formação do vínculo afetivo do recém nato não se limitam a
humanos. Alguns etologistas constataram que chimpanzés também têm um atraso no
desenvolvimento quando privados do contato materno adequado.
Outro ponto relevante é que as alterações conseqüentes da Negligência Precoce não
costumam ser apenas psicológica. Harry Chugani, neurologista do Children´s Hospital de
Michigan (apud BALLONE, 2004), comparando tomografias funcionais (SPECT) do cérebro
de oito crianças (romenas) aparentemente saudáveis e adotadas por norte-americanos, com
tomografias funcionais de um grupo de crianças educadas em circunstâncias normais, notou
que, aparentemente, as oito crianças apresentam evidências de metabolismo anormal numa
área específica do lobo temporal do cérebro.
Os cientistas acreditam que esta área do lobo temporal cerebral estaria envolvida no
funcionamento social. Para Chugani essas alterações podem representar alguma coisa
relacionada à Negligência Precoce, a uma falta de interação entre mãe e filho durante uma
fase crítica do desenvolvimento infantil. Embora faltem bons estudos fisiológicos a respeito
desta questão, pode-se suspeitar que as alterações no desenvolvimento conseqüentes à
Negligência Precoce não sejam apenas devido a falta de nutrição e/ou higiene, mas
principalmente, a falta de estímulos e contatos emocionais e afetivos. Esse sim parece ser o
fator mais importante no atraso do desenvolvimento de certos sistemas cerebrais, segundo o
autor supracitado.
Ele também considera que entre os casos que podem ser considerados Negligência
Precoce, o abandono é a forma mais grave e são vários os estudos sobre os efeitos deletérios
de um abandono precoce da criança e da insuficiência vínculo mãe-filho para o bom
desenvolvimento afetivo e neurológico.
68
Trata-se de uma situação onde a criança está privada, cronicamente, das necessidades
básicas para seu desenvolvimento pleno e normal.
Spitz (1979) desenvolveu estudos sobre o abandono em fases precoces do
desenvolvimento infantil. Esse autor demonstrou claramente, prejuízos no desenvolvimento
físico e psíquico das crianças vítimas de abandono. Um exemplo desses efeitos nocivos, é a
chamada Depressão Anaclítica, descrita por Spitz, e traduzida por um quadro de perda
gradual de interesse pelo meio, perda ponderal, comportamentos estereotipados (tais como
balanceios) eventualmente, até a morte.
Ribble (apud AJURIAGUERRA, 1981), em sua pesquisa com bebês que foram
retirados abruptamente do seio materno ou sofreram graves distúrbios emotivos nos primeiros
meses de nascimento e desenvolvem a síndrome psicomotora precoce, onde a motricidade se
manifesta sob a forma de espamus nutans (crianças passivas, rosto inexpressivo, imóveis,
movimentos bizarros nos dedos lembrando movimentos catatônicos).
Em crianças precoces há uma sucessão de eventos que ocorrem depois de
abandonadas, denominado de Reação de Abandono ou, por outros autores de Reação de
Aflição prolongada, que é específica das situações onde falta a figura materna ou de um
cuidador afetivamente adequado que se caracteriza moral e juridicamente, como um tipo de
violência onde o agressor é passivo, e a agressão acontece justamente pela falta de ação;
portanto é muitas vezes tida como menos importante. A mãe ou pai negligente é culpado mais
pelo que não fez.
69
3.2.4 Dados Estatísticos referentes a entidades sociais de atendimento
TABELA 1 - Dados referentes à Violência Doméstica de 1985 à 1997, segundo o CRAMI
6
AGRESSÕES 1.985 a 1.997 %
Agressão Física 1.717 50,1
Negligência/Abandono 737 21,5
Maus tratos Psicológicos 397 11,6
Improcedente 577 16,8
Total 3.644 100,0
No Estatuto da Criança e do Adolescente, (ECA) cabe aos profissionais da saúde a
obrigatoriedade de notificar os maus-tratos cometidos contra crianças e adolescentes. Para que
este preceito legal seja cumprido, é preciso sensibilizar e conscientizar os profissionais da
área para o problema; fornecer maior conhecimento sobre o tipo de atendimento a ser dado às
vítimas desses agravos; disponibilizar informação e capacitação para o diagnóstico e a
intervenção; promover medidas preventivas; e aperfeiçoar o sistema de informação sobre o
perfil de morbimortalidade por violência infantil, seja ela qual for.
“Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado,
por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Assim preconiza o artigo 5° do ECA.
O LACRI
7
há mais de 10 anos, realiza curso denominado telecurso de especialização
em Infância e Violência Doméstica, com o objetivo de preparar profissionais da área da saúde
nas mais diferentes regiões.
6
CRAMI: Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na infância. É uma Instituição de defesa da criança e do adolescente
que existe desde 1985, na cidade de Campinas e que já atendeu, mais de 16 mil casos.
7
Laboratório de Estudo da Criança da USP.
70
A seguir apresentaremos dados estatísticos referentes às questões de violência na
infância e na adolescência feitas no Peru e no Brasil, pelo LACRI.
TABELA 2 - Incidência das várias modalidades de Violência Doméstica contra Crianças
e Adolescentes no Peru - Resultados cumulativos até 2000
Atividade
1998
Quantidade
(
N = 47)
%
2000
Quantidade
(N = 58)
%
Uso para gratificação sexual adulta 42 89,4 53 91,4
Abandono 41 87,2 53 91,4
Espancamento por pai ou responsável 36 76,6 51 87,9
Negligência física 37 78,7 51 87,9
Abuso em lar adotivo 31 66,0 49 84,5
Espancamento por um adulto 33 70,2 48 82,8
Prostituição infantil 34 72,3 48 82,8
Abuso em creche 30 63,8 48 82,8
Abuso em contexto escolar 30 63,8 47 81,0
Abuso emocional 33 70,2 46 79,3
Abuso em atendimento psiquiátrico 25 53,2 42 72,4
Crianças de rua 22 46,8 39 67,2
Abuso psicológico 27 57,4 39 67,2
Abuso em contexto prisional 24 51,1 39 67,2
Drogadicção por parte dos pais -- -- 38 65,5
Forçar uma criança a mendigar 29 61,7 37 63,8
Forçar a trabalho integral 31 66,0 31 53,4
Infanticídio feminino / Circuncisão 21 44,7 31 53,4
Abuso por menor de idade 22 46,8 32 55,2
Falha no crescimento 20 42,6 26 44,8
Doença mental afetando a criança -- -- 25 43,1
Outra -- -- 4 6,9
71
TABELA 3 - Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes, no Brasil
8
(VDCA).
Modalidade de VDCA - Incidência Pesquisada
Violência
Física
Violência
Sexual
Violência
Psicológica
Negligência
Violência
Fatal
Total de casos
notificados
Ano
Qtd % Qtd % Qtd % Qtd % Qtd % Qtd %
1.996 525 44,0% 95 8,0% 0 0,0% 572 48,0% 0 0,0% 1.192 100,0%
1.997 1.240 60,1% 315 15,3% 53 2,6% 456 22,1% 0 0,0% 2.064 100,0%
1.998 2.804 22,2% 578 4,6% 2.105 16,7% 7.148 56,6% 0 0,0% 12.635 100,0%
1.999 2.620 39,3% 649 9,7% 893 13,4% 2.512 37,6% 0 0,0% 6.674 100,0%
2.000 4.330 38,9% 978 8,8% 1.493 13,4% 4.205 37,7% 135 1,2% 11.141 100,0%
2.001 6.675 32,9% 1.723 8,5% 3.893 19,2% 7.713 38,1% 257 1,3% 20.261 100,0%
2.002 5.721 35,8% 1.728 10,8% 2.685 16,8% 5.798 36,3% 42 0,3% 15.974 100,0%
2.003 6.497 31,3% 2.599 12,5% 2.952 14,2% 8.687 41,9% 22 0,1% 20.757 100,0%
2.004 6.066 31,0% 2.573 13,2% 3.097 15,8% 7.799 39,9% 17 0,1% 19.552 100,0%
2.005 5.109 26,5% 2.731 14,2% 3.633 18,9% 7.740 40,2% 32 0,2% 19.245 100,0%
Total 41.587 32,1% 13.969 10,8% 20.804 16,1% 52.630 40,6% 505 0,4% 129.495 100,0%
Pela leitura destes dados podemos observar que:
a. houve um crescimento de notificações de 1996 a 2005, especialmente no que
tange a casos de violência física e sexual;
b. quanto à negligência houve oscilação, ou seja, anos em que as notificações
subiram muito, decrescendo posteriormente e subiram sensivelmente;
c. a violência fatal apareceu mais recentemente, uma vez que este dado não era
colhido em anos anteriores a 2000;
d. até mesmo a violência psicológica, tão difícil de detectar, foi surgindo nestas
estatísticas;
e. ao se verificar o número total de casos notificados em todos estes anos (1996 a
2005), pode-se observar que a negligência ocupou o primeiro lugar, seguida pela
violência física e por aquela de natureza psicológica.
8
Entre 1996 e 2005:
a. Número de municípios pesquisados: 142;
b. Número de Estados brasileiros onde se localizam estes municípios: 19.
Para maiores esclarecimentos, consulte-se a home page do L
ACRI: www.usp.br/ip/laboratórios/lacri na qual é possível
através do ícone Estatísticas Brasileiras fazer-se a consulta ampla do documento aqui analisado.
72
TABELA 4 - Os resultados do levantamento do Fórum de Taubaté sobre as incidências
de queixas entre os anos de 2004 e 2005:
A – Negligência B – Abandono de Incapaz
Faixa Etária Masculino Feminino Faixa Etária Masculino Feminino
de 0 a 3 anos 6 7 de 0 a 3 anos 1 1
mais de 3 a 8 anos 5 3 mais de 3 a 8 anos 1 1
mais de 8 a 12 anos 0 2 mais de 8 a 12 anos
mais de 12 a 15 anos 3 4 mais de 12 a 15 anos
mais de 15 a 18 anos 1 0 mais de 15 a 18 anos
mais de 18 anos 0 1 mais de 18 anos
C – Violência Física D– Violência Sexual
Faixa Etária Masculino Feminino Faixa Etária Masculino Feminino
de 0 a 3 anos 2 2 de 0 a 3 anos
mais de 3 a 8 anos 5 3 mais de 3 a 8 anos 3 3
mais de 8 a 12 anos 1 4 mais de 8 a 12 anos 2
mais de 12 a 15 anos 2 4 mais de 12 a 15 anos
mais de 15 a 18 anos 2 mais de 15 a 18 anos
mais de 18 anos 1 mais de 18 anos
E – Situação de Risco F – Abandono
Faixa Etária Masculino Feminino Faixa Etária Masculino Feminino
de 0 a 3 anos 1 de 0 a 3 anos 3 0
mais de 3 a 8 anos 1 mais de 3 a 8 anos 2 1
mais de 8 a 12 anos 2 1 mais de 8 a 12 anos 1 0
mais de 12 a 15 anos 1 mais de 12 a 15 anos 1 0
mais de 15 a 18 anos mais de 15 a 18 anos 0 0
mais de 18 anos mais de 18 anos 0 0
G – Conflito Familiar H – Cautelar de Busca e Apresentação*
Faixa Etária Masculino Feminino Faixa Etária Masculino Feminino
de 0 a 3 anos de 0 a 3 anos 1
mais de 3 a 8 anos mais de 3 a 8 anos
mais de 8 a 12 anos mais de 8 a 12 anos
mais de 12 a 15 anos 1 mais de 12 a 15 anos
mais de 15 a 18 anos 1 mais de 15 a 18 anos
mais de 18 anos mais de 18 anos
* Cautelar de Busca e Apreensão: Ato forense ou processo intentado por uma pessoa para prevenir, conservar
ou defender direitos. Medida que visa assegurar a eficácia futura do processo principal com que se acha
relacionada ação imediata de proteção em risco, independente da apuração do ato.
I – Conduta J – Prostituição
Faixa Etária Masculino Feminino Faixa Etária Masculino Feminino
de 0 a 3 anos de 0 a 3 anos
mais de 3 a 8 anos mais de 3 a 8 anos
mais de 8 a 12 anos mais de 8 a 12 anos
mais de 12 a 15 anos 1 mais de 12 a 15 anos
mais de 15 a 18 anos mais de 15 a 18 anos
mais de 18 anos mais de 18 anos
** Conduta: Problemas disciplinares, não respeita ordem, regras, limites e disciplina na relação país/filhos.
73
K – Desabrigamento
Faixa Etária Masculino Feminino
de 0 a 3 anos 1
mais de 3 a 8 anos 2
mais de 8 a 12 anos
mais de 12 a 15 anos
mais de 15 a 18 anos
mais de 18 anos
TABELA 5 - Índice de mortalidade no Brasil devido à violência contra crianças e adolescentes
A - Índice de mortalidade no Brasil devido a
violência contra crianças e adolescentes (%)
De 1 a 4 anos 22,6
De 5 a 9 anos 48,2
De 10 a 14 anos 56,3
De 15 a 19 anos 72,2
FONTE: Rev. Arquivos de Ciências da Saúde. Maus-tratos contra crianças e adolescentes: revisão da literatura
para profissionais da saúde.V. 12, N.1, Jan/Mar 2005. PIRES, Ana L. D.; MIYAZAKI, Maria C. O S.
TABELA 6 - Índice de violência de maus-tratos nos Estados Unidos
FONTE: American association for Protecting Children (AAPC). Hilihts of Official Child Neglect and Abuse
Reporting. 1986 apud Pires & Miyazaki, 2005.
Índice de violência nos
Estados Unidos da América
1986
22,6% a cada 1000
crianças
1994
16% a cada 1000
crianças
2001
12,4% a cada 1000
crianças
Principais tipos de maus-tratos nos Estados
Unidos da América
Negligência 55%
Abuso físico 19%
Abuso Sexual 10%
Abuso Psicológico 8%
Outros 8%
74
TABELA 7 - Dados de alguns países que coincidem sobre os principais tipos de maus-tratos
FONTE: LACRI apud Pires & Miyazaki, 2005.
Hoje em dia, quando as separações entre mães e filhos são partes dos problemas da
vida moderna e, independentes da orfandade, seja pelas necessidades do trabalho feminino,
seja pela alta incidência de mães solteiras sem possibilidades de ficar com o filho, seja por
acontecimentos catastróficos internacionais (guerras, terremotos e outros), torna-se necessário
saber mais sobre o que acontece com essas criaas cujos laços afetivos se romperam.
Fora a questão dos orfanatos, que parece ser pior, alguns terapeutas arriscam teorias
segundo as quais, mesmo as creches, especialmente quando não são de boa qualidade, assim
como a volta da mãe ao trabalho alguns meses após o parto, são fatores de grande risco para o
desenvolvimento de desordens do vínculo. Pode-se, possivelmente, considerar as crianças
pequenas que passam muitas horas em creches de baixa qualidade, e/ou que têm um grupo
irregular de substitutos maternos durante seus primeiros anos de vida como fator fortemente
agravante.
Dados coincidentes sobre os principais tipos de maus-tratos (%)
Austrália 34,0
Canadá 41,0
Inglaterra 39,0
Rio de Janeiro 41,0
Negligência
e
Abandono
Brasil 41,0
Austrália 28,0
Canadá 25,0
Inglaterra 19,0
Rio de Janeiro 27,0
Abuso Físico
Brasil 38,0
Austrália 10,0
Canadá 9,0
Inglaterra 10,0
Rio de Janeiro 15,0
Abuso Sexual
Brasil 9,5
Austrália 34,0
Canadá 25,0
Inglaterra 18,0
Rio de Janeiro 17,0
Abuso Psicológico
Brasil 15,5
75
3.3 O visível e o invisível da violência
A atitude dos profissionais frente à abordagem dos maus-tratos cometidos contra a
criança e o adolescente se encontra intimamente relacionada com a visibilidade ou não que o
problema assume em seu cotidiano. A reflexão sobre os conceitos dos diferentes tipos de
maus-tratos e as idéias a eles associadas contribui para se entender os possíveis
encaminhamentos que esses profissionais dão a tais casos quando identificáveis. Assim, a
efetivação de um atendimento depende da possibilidade de ser capaz de identificar a presença
ou a suspeita da violência nos diferentes casos atendidos. Por outro lado, ter ou não
visibilidade depende, dentre outros aspectos, da escuta e do olhar ampliados que o
profissional consegue imprimir em seu atendimento.
A negligência, entendida como omissão em termos de cuidados básicos, por parte do
responsável pela criança ou adolescente (SBP/Fiocruz/MJ, 2001)
9
, oscila entre os aspectos
visível e invisível da violência, o que acaba por originar dúvidas em sua identificação. Ela se
destaca em todos os depoimentos de todas as categorias profissionais. Diferentes situações
caracterizam a negligência: o fato de o responsável não visitar no hospital a criança, de não
acompanhá-la quando vão para casa, situações em que a criança é deixada em casa sozinha
e se acidenta; crianças que aparecem malcuidadas, com marcas de impetigo maltratadas e os
pais, de forma discrepante, são bem-cuidados; criança desnutrida em péssimas condições
higiênicas; a mãe não segue o tratamento, ou então ela está sonegando alguma informação.
Paralelamente ao fato de se constatar o abandono ou o estado em que a criança se
encontra, há um outro indicador de negligência para os profissionais: a família não leva para
tomar a vacina.
9
SBP/Fiocruz/MJ 2001 - Sociedade Brasileira de Pediatria/ Fundação Oswaldo Cruz/Ministério da Justiça, s/d. Guia de
atuação frente a maus-tratos na infância e na adolescência, 40p. http://www.scielo.br/scielo.php.
76
Contrapondo a visibilidade dos critérios de diagnóstico apontados, a negligência
também traz um aspecto invisível. Essa invisibilidade se traduz, principalmente na fala das
assistentes sociais, pelo fato de nem sempre ser possível diferenciar o que é a negligência pura
e simplesmente de uma negligência por falta de condições de vida, porque há os abandonos
que não aparecem escrito no papel. O lado não tangível da negligência também se traduz
quando um profissional utiliza uma expressão física, logo visível, para alertar sobre as suas
graves conseqüências: o abandono eu acho, é como tivesse levado uma pancada.
Ainda sobre a invisibilidade que a negligência assume, ressalta-se o fato de alguns
profissionais, estabelecerem maneiras diferentes de considerarem a negligência e os chamados
maus-tratos. Às vezes, um profissional, num primeiro momento, faz uma categorização
excludente quando diz que a negligência infantil é bem mais freqüente do que os maus-tratos
propriamente ditos, e em seguida arremata que a negligência é um ato, um tipo de maus-
tratos. Às vezes expressam aqueles maus-tratos e aquelas negligências, como se fossem
coisas diferentes ou também considerar como violência ou violência sexual, ou violência
física. Por último, há aqueles que incluem a negligência nos maus-tratos sob certas condições,
ao dizer que quando as mães abandonam, deixam de tratar, e que esta é uma forma de
maltratar.
Junto a essa dificuldade de se lidar com o conceito de maus-tratos psicológicos, os
profissionais se atêm a alguns critérios para sua identificação. Assim, pode existir esse tipo de
maus-tratos quando: mãe passa dupla mensagem, ao expressar seu sentimento contrariamente
ao que diz; um adolescente se sente coagido de alguma forma; crianças são trancafiadas em
casa ou sofrem algum tipo de tortura; crianças têm medo de sair; a mãe considera a criança
como se fosse uma carga nas costas dela, não cria um vínculo, não procura estimular a
criança.
77
Por último, outro tipo de ocorrência de maus-tratos mencionado pelos profissionais é a
síndrome de “Münchausen por procuração”, definida como a situação na qual a criança é
trazida para cuidados médicos devido a sintomas e/ou sinais inventados ou provocados pelos
seus responsáveis (SBP/Fiocruz/MJ, 2001). Segundo os profissionais são doenças até
provocadas por familiares, que às vezes podem ocorrer quando uma mãe submete a criança a
vários exames o tempo inteiro. Esse tipo de ocorrência de maus-tratos, de um lado, pode se
apresentar como algo invisível por ser difícil você chegar a esse diagnóstico porque você fica
tentando montar uma síndrome clínica quando às vezes o mal está sendo provocado. Por
outro lado, na fala de outro profissional, essa síndrome assume certa visibilidade, uma vez que
conseguiu identificar dois casos, a partir do fato de sentir, perceber a situação principalmente
quando há uma relação difícil entre a mãe e a criança ou uma história mirabolante que a
mãe conta que não é compatível com o estado da criança.
No balanço da visibilidade e da invisibilidade que os diferentes tipos de maus-tratos
assumem no cotidiano dos profissionais, aspectos sociais surgem ou como cenário para se
explicar a ocorrência dos maus-tratos ou de forma a concorrer para a dificuldade de se
diagnosticar o problema, particularmente nos casos de negligência.
A fala de uma entrevistada é bastante elucidativa para trazer o cenário onde se gesta a
violência. Diz ela que, devido a uma mãe ser agredida pela falta de condições
socioeconômicas, conseqüentemente acaba maltratando o seu filho. Outra entrevistada sugere
que situações de vida muito precárias levam a uma série de coisas situações de maus-tratos.
Assim, no senso comum, seriam pais que “apanham” da vida e acabam “batendo” nos filhos.
Saindo da perspectiva socioeconômica e se deslocando para a dimensão sociocultural,
um profissional chama atenção para o caso de envolvimento de adolescentes em relações
sexuais com pessoas mais velhas, que em si se constitui crime, mas que pode ser explicado
78
por se viver num mundo que tem um apelo sexual muito forte, com o início da atividade
sexual muito cedo e com isso esse argumento da questão legal praticamente não existe.
Os aspectos sociais, segundo a ótica dos entrevistados, concorrem de forma decisiva
para configurar um quadro de abandono das crianças e dos adolescentes por parte dos pais.
Nesse sentido, o país não consegue dar alternativa para as pessoas fazendo com que pais não
tenham proteção social nenhuma e assim não consigam cuidar de seus filhos adequadamente.
Entretanto, mudar isso é difícil, pois tinha que mudar a estrutura social.
3.4 Obstáculos políticos
Dentre estes, alguns merecem comentários especiais. É o caso, por exemplo, da
famosa hierarquização entre os problemas da infância em dificuldade. Segundo essa visão
falaciosa, a infância pobre seria mais importante que a infância vitimizada no lar e mereceria,
portanto, uma atenção privilegiada. É fácil entender que essa grosseira mistificação tem a ver
com o diferencial de visibilidade das duas problemáticas.
O outro grande obstáculo é o que poderíamos chamar de Síndrome do SOS: em vez de
uma focalização prioritária na prevenção primária, a ênfase recai quase sempre nos níveis
secundário e terciário. Sem negar a importância destes últimos, o LACRI tem defendido a
postura de que é preciso chegar antes que uma criança se torne um prontuário médico, um
boletim policial, um processo judicial, um dossiê psicossocial, uma notícia de jornal ou um
corpo no necrotério. Coerente com esse lema, desenvolveu um original programa de
prevenção primária da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes, assentado na
sinergia entre pesquisa, capacitação profissional e conscientização comunitária, referindo-se
as questões da juventude e violência.
79
3.5 Conseqüências da Negligência na Infância
A questão da negligência não deve ser atribuída exclusivamente à pobreza material
dos pais. O não proporcionar recursos materiais devido à pobreza, não caracteriza a
Negligência, mas sim a carência, uma vez que tais recursos seriam providos caso houvesse.
Negligência é a atitude omissa, seja materialmente, seja afetivamente (Negligência Material e
Negligência Emocional). Inúmeros trabalhos mostram que o apoio afetivo, o carinho e o amor
são tanto ou mais essenciais para o desenvolvimento da pessoa quanto a mesa farta.
A Violência Física (espancamento) é a agressão mais comum, sendo que alguns
agressores chegam a amarrar as crianças com cordas ou correntes e espancá-las com objetos
como cinto, vassoura, panelas, martelos.
A Violência Física engloba ainda outros atos de verdadeiro sadismo, como por
exemplo, queimaduras com pontas de cigarro, água fervendo, privação de comida e água. A
atitude de agredir, covardemente prevalecida da maior força física dos pais pode resultar em
severos traumatismos. São casos onde adultos que batem com a cabeça ou atiram a criança
contra a parede. Muitas vezes essas atrocidades levando à morte.
Além das marcas físicas, a violência doméstica costuma causar tamm sérios danos
emocionais. Normalmente é na infância que são moldadas grande parte das características
afetivas e de personalidade que a criança carregará para a vida adulta.
As crianças aprendem com os adultos, normalmente e primeiramente dentro de seus
lares, as maneiras de reagirem à vida e viverem em sociedade. As noções de direito e respeito
aos outros, a própria auto-estima, as maneiras de resolver conflitos, frustrações ou de
conquistarem objetivos, tolerar perdas, enfim, todas as formas de se portar diante da
80
existência são profundamente influenciadas durante a idade precoce. É assim que muitas
crianças abusadas, violentadas ou negligenciadas na infância se tornam agressoras na idade
adulta.
Alguns indícios de mau desenvolvimento de personalidade podem ser observados em
idade precoce. Algumas dessas características podem ser manifestadas por dificuldades para
se alimentar, dormir, concentrar-se. Essas crianças podem começar a se mostrarem
exageradamente introspectivas, tímidas, com baixa auto-estima e dificuldades de
relacionamento com os outros, outras vezes mostram-se agressivas, rebeldes ou, ao contrário,
muito passivas.
Crianças que estão atravessando problemas domésticos relacionados à violência
invariavelmente apresentam problemas na escola e no grupo social ao qual pertencem.
Podem, não obstante se recusarem a falar sobre esses problemas, quer com o adulto que
cometeu a agressão, quanto com familiares e professores. Falta-lhes confiança nos adultos em
geral.
Os tipos de abuso, segundo Azevedo e Guerra (1995), são descritos pelas
conseqüências físicas, emocionais e morais geradas, que têm como fatores preditores do grau
de severidade do caso, a freqüência, intensidade e simultaneidade com que ocorrem.
A Sociedade Brasileira de Pediatria, em estudo publicado em 2004, demonstra que a
violência doméstica concretiza-se através da violência física, violência sexual, violência
psicológica e da negligência e, que cada tipo de abuso desencadeia sintomatologia
diferenciada, assim:
81
- Violência física é a forma mais comum e mais fácil de diagnosticar, pois está
geralmente associada a uma forma de punição ou disciplina, e com freqüência se encontra a
marca do instrumento utilizado na agressão.
- Abuso sexual é definido como qualquer interação, contato ou envolvimento da
criança ou adolescente em atividades sexuais (voyeurismo, estupro, incesto, prostituição
infantil) que ela não compreende, não consente, violando assim regras sociais e legais.
- Abuso emocional está presente em todas as formas de violência, embora possa
ocorrer isoladamente e variar, desde a desatenção ostensiva até a rejeição total. Por não deixar
sinal visível, é difícil ser diagnosticado, é por isso responsável pelo menor número de
notificações.
- Negligência é uma falha dos pais ou responsáveis na assistência e no provimento das
necessidades básicas da criança: saúde, alimentação, respeito, afeto e educação. Algumas
vezes a pobreza extrema pode ser confundida com a negligência, mas são questões
completamente distintas e separadas. As manifestações de negligência são incontáveis, e
podem ser percebidas nos cuidados inadequados na nutrição, no abandono (esta é a forma
mais grave de negligência), evasão escolar, falta de vigilância com crianças menores de três
anos que correm maiores riscos, sendo expostas a acidentes e intoxicações freqüentes. Essas
crianças normalmente apresentam uma higiene precária, as roupas são sujas e constantemente
têm assaduras e problemas de pele, apresentando tamm histórico de hospitalizações
freqüentes.
Apesar das características peculiares de cada modalidade de violência, apresenta-se
comum sua ocorrência dentro da residência da família da vítima, confirmando que o abusador
é pessoa conhecida, isto é, padrasto, avô ou parente próximo. Porém dentre estes, tendo em
82
vista a estrutura familiar das sociedades em geral e, em particular da brasileira, em que cabe à
mulher a função de educar e cuidar das crianças torna-se compreensível o apontamento
estatístico referente à figura da mãe enquanto um dos principais agentes perpetradores de
maus tratos, tendo como cenário o espaço da relação mãe-criança
10
.
Os dados colhidos a partir do levantamento da natureza das incidências registradas no
Fórum do Município de Taubaté, local onde foi realizado o nosso estudo, entre abril de 2004 e
o mesmo período de 2005, vêm de encontro a esta colocação. A maioria dos casos registrados
corresponde à negligência, que assim como a violência física apresenta características
observáveis através da alteração de comportamento regular, a própria aparência da criança
pode ser um indicador para suspeitar/evidenciar sua ocorrência, como exemplo, demonstrando
falta de alimentação adequada, falta de asseio e higiene (nem sempre decorrente da condição
econômica).
Além dos aspectos acima abordados, no artigo de Pires & Miyazaki (2005),
encontramos uma classificação que consideram como condições que predispõem as crianças
em situação de maus-tratos:
Condições associadas ao agressor: a dependência de drogas, alcoolismo,
história de abuso, baixa auto-estima, prostituição, imaturidade e transtornos de
conduta, psiquiátricos ou psicológicos.
Condições associadas à vítima: sexo diferente do desejado, dependência
própria da infância, condições de saúde que exigem maiores cuidados
(prematuridade, doenças neurológicas, doenças graves, distúrbios psicológicos,
10
Centro de Referência às Vítimas de Violência do Instituto Sedes Sapientiae, 1998.
83
do sono, da alimentação e dos esfíncteres) história de abusos anteriores,
criança não desejada.
Fatores de risco associados ao meio social e comunidade: incluem falta de leis
de proteção, desigualdade social, marginalidade, desemprego, analfabetismo,
ambientes conflituosos e alta aceitação de violência. A pobreza constitui um
persistente fator de risco, sendo o abuso físico e a negligência, mais comuns
em famílias que vivem na pobreza.
Fatores associados à família: incluem pais jovens (adolescentes), gravidez não
desejada, cuidados pré-natais inadequados, famílias uniparentais
(monoparentais), conflituosas, substitutas e exposição à violência.
No caso de minha pesquisa estes aspectos são de grande relevância uma vez que a
negligência e os maus-tratos foram os problemas mais comuns enfrentados pelas crianças
carentes desta região, com base nos dados que colhi do Fórum do Município de Taubaté, entre
2004/2005.
Encontramos também em outro artigo, elaborado pela equipe do LACRI (Laboratório
de Estudos da Criança), da USP, publicado em janeiro/2005, de autoria de Viviane Nogueira
de Azevedo Guerra e Betina Leme, sobe as questões das condições de maus-tratos e situação
de risco:
padrão de comportamento constante e um estado inadequado da
paternagem/maternagem quando comparada às normas da comunidade (FELDMAN et
al., 1993);
84
grave omissão que coloque em risco o desenvolvimento da criança (ÉTHIER et al.,
1995);
consiste em falha ao cuidar das necessidades de uma criança, falha raramente
proposital, tratando-se de uma inabilidade de comportamento dos pais (BAILY et al.,
1985);
quando os pais deixam crianças muito novas sem supervisão por extenso período de
tempo, fornecem cuidados e alimentação inadequados para a criança (CHAFFIN et al.,
1996);
uma situação na qual o responsável pela criança, seja deliberadamente, seja por
total falta de atenção, permite que ela experimente sofrimento e/ou ainda não consegue
preencher para ela requisitos geralmente considerados essenciais para o
desenvolvimento das capacidades físicas e emocionais de um ser humano
(MOUZAKITIS et al., 1985).
Segundo as autoras, outros estudiosos identificam a negligência nas manifestações
apresentadas pelas crianças, tais como: atraso no desenvolvimento global, aspectos de
desnutrição, enfermidades freqüentes, desde infecções de ouvido, garganta chegando
inclusive a disfunções neurológicas.
Diante de todos os pontos supracitados pelas autoras dos dois artigos acima, inúmeras
configurações podem apresentar a negligência, em decorrência de um quadro de variáveis que
interagem entre si, tais como: isolamento dos pais em termos de vizinhança, da sua
comunidade; dificuldades da família de uma rede de apoio formal ou informal; dependência
química ou problemas e saúde mental dos pais; experiências sofridas pelos pais durante suas
infâncias que tenham incluído algum tipo de violência doméstica; famílias monoparentais ou
85
que há constante troca de parceiros; desconhecimento total dos pais sobre desenvolvimento da
criança; desconhecimento do papel parental como um todo; problemas de personalidade dos
pais; stress; a pobreza.
Um outro ponto abordado na pesquisa das autoras Guerra e Leme (LACRI, 2005),
refere-se às modalidades de negligências que as crianças sofrem:
médica (incluindo a dentária);
educacional: evasão escolar devido à falta de incentivo dos pais;
higiênica: condições precárias de cuidados com o corpo;
supervisão: a freqüência constante em que as crianças são deixadas sozinhas, com
os riscos de acidentes e perigos permanentes;
física: ausência de cuidados com as roupas, alimentação insuficiente, acarretando
inclusive graus de comprometimento de moderados a severos no processo de
desenvolvimento da criança. Moderados quando os recursos oferecidos às crianças
são escassos e precários, severos quando se identifica uma total falta de recursos
provedores ao mínimo que a criança necessita, fator muito comum em lares que os
pais são usuários de drogas muito pesadas ou doentes mentais, segundo as autoras.
Embora o Centro de Referência às Vítimas de Violência do Instituto Sedes Sapientiae
(1998), aponte a figura da mãe enquanto um dos principais agentes perpetradores de maus
tratos, tendo como cenário o espaço da relação mãe-criança, segundo as pesquisas de Guerra
(2005), este é um aspecto muito polêmico, pois na verdade é preciso que também se considere
as situações adversas que a grande maioria das mães passam, antes de julgá-las responsáveis
pelos problemas enfrentados na relação com seus filhos.
86
Nos estudos desta autora verificou que este fenômeno na verdade revela as
desigualdades sociais e de gênero. Culpabilizar a mulher pela ocorrência deste problema, nada
mais é do que deslocar a questão, que tem um fundo social muito mais expressivo do que
restrito ao plano individual ou no limite familiar. Segundo esta mesma autora esta colocação
se justifica pelas dificuldades encontradas nas mulheres americanas, que se inserem no
mercado de trabalho e necessitam de recursos que lhes garantam proteção e segurança aos
filhos enquanto se ausentam dos lares, por exemplo, a escassez de creches, além também em
se tratando dos homens, na sua função de provedor, não se inclui cuidados diretos à criança.
Ela também constatou em sua pesquisa, que no Brasil pouco se aborda sobre a questão
da negligência, no contexto da violência doméstica na criança. O maior destaque vem para a
violência física e o abuso sexual, que em sua maioria é praticada pelos parceiros das mães.
Entretanto se analisarmos o contexto e as circunstâncias em que estes tipos de
violência à criança se incidem, certamente constataremos que a negligência, seja em qualquer
tipo de modalidade citada pela autora, já é um aspecto que determina as condições de maus
tratos ou violência doméstica que a criança se encontra exposta.
3.6 Vivendo o desenvolvimento da família, o desafio de uma compreensão sistêmica e
analítica para a transformação das relações parentais.
Embora encontremos uma vasta literatura reportando-se aos estudos sobre a família e
também sobre a família brasileira, nossa fundamentação teórica sobre os aspectos de
desenvolvimento, organização e estrutura das famílias, basear-se-ão nos trabalhos e pesquisas
de Cerveny (2002), que com clareza, transparência e muita riqueza de conteúdo, nos transmite
conhecimentos e reflexões sobre formas, padrões e arranjos dentro do núcleo familiar que nos
87
permite com seguridade apresentarmos pontos determinantes sobre os aspectos psicológicos
que envolvem as famílias.
Sem a pretensão de escrever um trabalho dentro da linha sistêmica, embora me
considere uma profissional dinâmica e aberta à compreensão do ser humano, dentro da sua
totalidade individual e coletiva, os pontos abordados por Cerveny (2002), na concepção
sistêmica em muito contribuiu para ampliar meus conhecimentos sobre a dinâmica psíquica
das famílias, com suas complexidades e diversidades no campo bio-psico-social.
A autora considera que no Brasil, baseado em seus estudos e em sua prática
profissional no atendimento às famílias, não exista “família brasileira”, mas sim as “famílias
brasileiras”, caracterizado pela sua diversidade cultural, passando por características da vida
contemporânea, seja ela urbana ou rural, que provocam no núcleo familiar adaptações e
transformações em constante movimento de adequação funcional.
A preocupação, segundo Cerveny, sobre a família brasileira, vem de longa data, sendo
que em seu livro “Visitando a Família ao longo do Ciclo Vital” (2002) faz uma ampliação
teórica de seus estudos e conceitos sobre o Ciclo Vital (1997), em que analisa a família
paulista de classe média de dois centros urbanos, interior e capital, contextualizando seus
resultados a este tipo de população e sua aplicabilidade a grupos culturais congêneres.
A família é compreendida como um sistema de relações que opera de acordo com
certos princípios básicos e que evolui no seu desenvolvimento, de modo particular e
complexo determinado por inúmeros fatores. A autonomia e a individualidade não
podem ser reconhecidas separadas de um sistema plurigeracional onde o indivíduo é
ao mesmo tempo uma parte e um todo de um sistema maior que por sua vez
pertence a sistemas maiores, num processo contínuo de comunicação e integração
(CERVENY, 2002, p.17).
Dentro do sistema familiar se estabelecem padrões interacionais, rituais, segredos,
rotinas como critérios de estabilidade e continuidade de uma geração a outra, protegendo
88
assim o sistema familiar. “Por sua longa duração e pelo seu nível de inter-relação, pode ser
considerado o mais importante na vida dos indivíduos” (CERVENY, 2002, p.18).
Ao olhar-se uma família é possível identificá-la como uma estrutura mais ou menos
delineada considerando-se suas qualidades de regras, aspectos hierárquicos, seu delineamento
de papéis assim como tantos outros aspectos estruturais. É possível também nesta mesma
família compreender seu funcionamento e dinâmica, bem como seu desenvolvimento, isto é
seus padrões evolutivos. Sendo este olhar, o olhar sobre o desenvolvimento da família, que
Cerveny amplia seus estudos, no sentido de compreender cada etapa em que a família se
encontra, dentro da nossa realidade. Ciclo vital familiar para a autora:
É o conjunto de etapas ou fases definidas sob alguns critérios (idade dos pais, dos
filhos, tempo de união de um casal entre outros) pelos quais as famílias passam,
desde o início da sua constituição em uma geração até a morte do ou dos indivíduos
que a iniciaram”... “etapas evolutivas do desenvolvimento da vida familiar, ou seja,
fases que a família vivencia enquanto sistema, movendo-se através do tempo
(CERVENY, 2002, p.21).
Tendo em vista a importância de se estudar a família inserida no seu contexto e
refletindo os aspectos sócio-econômicos-culturais do mesmo, Cerveny propõe em 1995 uma
caracterização de ciclo vital diferente do disponível na literatura estrangeira, proposta esta
comprovada e analisada através de pesquisa desenvolvida em 1996/1997 por ela e seus
colaboradores. Esta caracterização coloca a família ao longo do ciclo vital em 4 etapas não
rigidamente circunscritas que são:
- Família na Fase de Aquisição:
Engloba o nascimento de uma família – pela união formal ou informal. É a conquista
de viver uma relação que envolve diferenças, medos, esperança, criação de vínculos. Cada um
dos parceiros traz sua bagagem de histórias construídas com as famílias de origem e também
89
às vezes em relações anteriores e o processo inicial da união exige um afastamento dessas
histórias anteriores para planejar o futuro, estabelecer metas, adaptar-se à mudança.
A vida a dois inicialmente gera estranheza e insegurança, uma vez que passam a
dividir o mesmo espaço, sentimentos de incerteza quanto a perda da individualidade
constituída em situações anteriores.
Desenvolve-se uma nova dinâmica com intuito de se estabelecer critérios para
administrar novos conflitos que surgem desta relação planejamento sobre decisão de ter ou
não ter filhos, romper com padrões e rituais e modelos adquiridos da família de origem, enfim
aquisição de modo geral, seja de patrimônio, seja de novas formas de relacionamento, e pela
reorganização do sistema em função da definição e adoção de novos papéis de cada um de
seus membros, ampliação de redes sociais, o “adquirir”.
Os cônjuges re-negociam valores e regras de relacionamento, em um processo de
construir o modelo particular de família que desejam construir; a independência da família de
origem, o padrão objetivado de vida. Podem durar muitos anos, em especial para casais que
adiam a decisão de ter filhos e as vivências desta fase se revestem de características peculiares
em função de aspectos como idade dos cônjuges, estilo de vida e contexto social no qual o
novo núcleo familiar esta inserido.
Com a chegada do primeiro filho estabelece-se o marco da primeira grande mudança
no sistema conjugal, em que o casal necessita ajustar-se para a situação triangular que se
forma, é o que Cerveny chamou de “vida revolucionada”, sendo a imagem que muitos casais
fazem sobre a chegada do primeiro filho. A partir daí e a chegada de outros filhos o casal
busca descobrir seu espaço tendo que rivalizar com o espaço de seus filhos. A família é
praticamente organizada em função dos filhos e das tarefas geradas desta parentalidade.
90
- Família na Fase Adolescente, “Reajustando as lentes”:
Fase em que os pais e filhos estão reconfigurando suas relações, vivendo a
adolescência – compreendida como um período de profundas transformações pessoais e
relacionais de pais, mães e filhos.
Caracteriza-se pelo questionamento de crenças, regras e valores. Período em que a
família percebe o filho crescido, um ser ambivalente que exige atenção e cuidados e ao
mesmo tempo fecha-se num mundo só seu. O relacionamento torna-se difícil, os padrões vão
sendo rompidos e os modelos reavaliados.
A preocupação está na dúvida de não ter cumprido bem a parentalidade, pois a mesma
resultou num filho que é diferente do esperado. Há o sentimento de decepção por não atingir o
diálogo pretendido. Neste momento é exigida a revisão de metas, a conciliação das diferenças,
dos planos individuais e da família como um todo. Uma das estratégias utilizadas é tentar
ficar próximo dos interesses dos filhos adolescentes o que não é difícil para os pais, pois se
encontram na virada da vida, sendo atingidos também pela ânsia de mudança pessoal.
Os filhos estão em um período de transição e mudança para a fase adulta e os pais,
normalmente, estão vivenciando a chamada “crise do meio da vida”, na qual revêem as
experiências passadas, reavaliam suas vidas, vivendo o que os autores chamam “segunda
adolescência”: preocupando-se com a aparência, saúde e envelhecimento. O sistema familiar
nessa fase altera-se; as relações são revistas e readaptadas e, portanto, são mudanças de
segunda ordem na organização familiar que permitem prosseguir seu desenvolvimento.
91
- Família na Fase Madura:
Estrutura-se quando os filhos atingem a idade adulta e a família, então, passa a
vivenciar o período da maturidade por diversos fenômenos, tais como: “Remodelando as
relações” – neste momento há a “despedida dos filhos” e o “deixar partir” dos pais, com a
tarefa de mudar os relacionamentos entre pais e filhos, que agora são iguais em independência
e capacidade de gerenciar as próprias vidas.
É uma fase caracterizada por transições importantes, nas quais os conflitos e as
ambigüidades estão presentes, em especial no que se refere à saída do filho de casa e na
reestruturação do sistema conjugal e é necessário dimensionar os sentimentos e ao mesmo
tempo rever a parentalidade.
Os filhos adultos jovens desafiam os pais a rever suas metas de vida, agora que os
mesmos não demandam cuidados e conquistam um estilo de vida próprio. Paralelamente, pais
e mães têm que resolver questões pessoais que é um outro fenômeno definido como
“Ressignificação da Relação Conjugal”, neste momento a díade tem que olhar para o
casamento, reavaliá-lo, revendo acertos e erros; redescobrir o outro, o prazer de estar com o
outro, a transformação do ideal romântico numa relação de companheirismo, cumplicidade e
compatibilidade.
Com o casamento dos filhos, os pais têm também que se adaptar à entrada de novos
membros na família extensa e, mais uma vez, re-negociar regras de convivência e padrões de
relacionamento, estabelece-se um novo fenômeno que é a “Adaptação às mudanças”; os
padrões vão ser redefinidos e os valores familiares consolidados, pois começam a ser
transmitida a terceira geração. As relações hierárquicas novamente são redimensionadas. O
casal passa a viver sentimentos ambivalentes de continuidade e finitude.
92
Os rituais se fortalecem como forma de identidade às novas gerações das experiências
de gerações anteriores, fortalecendo a parentalidade. Presente e futuro se mesclam nesta fase
onde o empenho em ainda cuidar aproveitando a experiência adquirida, a libertação de alguns
compromissos, sentimento de dever cumprido, convivem com as expectativas de desenvolver
novas atividades, acompanhar o desenvolvimento da nova geração e de construir uma herança
a ser passada, concomitante a uma reestruturação econômica estabelecida pela aposentadoria.
Considerada por Cerveny, como a mais longa do Ciclo Vital, chegando às vezes a compor
quatro gerações (p.169).
- Família na Fase Última:
Organiza-se também por alguns fenômenos sendo o primeiro “Fazendo a
Retrospectiva”, que dentro dos estudos Cerveny é centrada em três pontos principais: a
conjugalidade: realização ou insatisfação nas relações conjugais: a parentalidade: satisfação
pelas realizações conquistadas pelos filhos, e a realização profissional, pois muito apesar do
envelhecimento são ativos profissionalmente, conseguindo novas realizações profissionais no
campo artístico bem como cultural, valendo ressaltar a enorme contribuição social que
desenvolvem nos serviços sociais voluntários.
De pais se transformam em avós, e novos reajustes familiares se estabelecem. Estes
avós, então idosos, desenvolvem um papel de acolhedor e muitas vezes de intermediário entre
os adolescentes e seus pais, tendo em vista a diplomacia oriunda das experiências vividas, a
flexibilidade adquirida com as inúmeras mudanças na estrutura familiar.
Considerando-se que, em nossa cultura, o velho não tem papel valorizado – ao
contrário do que ocorre em muitas outras culturas, em especial nas orientais, muitas vezes a
família confronta-se, nessa fase da vida, com a tarefa de como viver com os pais idosos. É
93
normalmente nessa fase que um dos cônjuges fica viúvo e, além de questões práticas como
com quem morar e como se manter financeiramente, o idoso tem ainda que resolver questões
pessoais de adaptação às novas condições emocionais de perda de funções e papéis.
O outro fenômeno é “Fechando o Ciclo”, em que a díade da fase de aquisição
encontra-se agora vivendo sua última fase ou juntos ou na condição de viúvos. A plenitude
dessa fase depende do balanço intergeracional. Quando as relações foram bem resolvidas nas
fases anteriores, geralmente o sistema familiar consegue se adaptar às novas demandas que a
fase última da vida apresenta. Porém, conflitos trazidos de fases anteriores dificultam em
muito as renegociações necessárias nesse momento do ciclo vital, o último de todos os
envolvimentos, o mais sublime, completo, enfim sentimento de totalidade da existência
humana.
Concluindo os esclarecimentos conceituais sobre sua teoria do Ciclo Vital, Cerveny,
apresenta uma metáfora destas fases com as fases da lua, que nos favorece uma compreensão
singela e reconfortante, que lhe é peculiar em seus textos e falas, que se segue:
A fase de aquisição é a lua nova despontando brilhante no céu. A crescente é a fase
da Família Adolescente. A fase madura é a lua cheia, a família grande e pesada. A
fase última, é aquela lua nova que se formou anos atrás, muitas vezes minguando
com apenas uma ou duas pessoas, mas que vai se perpetuar na próxima lua nova
(CERVENY, 2002, p.27).
Depreenderemos na abordagem analítica alguns conceitos, dentre eles os ciclos
arquetípicos, procurando demonstrar como uma família se organiza dentro desse construto
teórico, e que a personalidade dos indivíduos vai-se construindo em acordo com a função
dominante do ciclo arquetípico da cultura e da família em questão, dando continuidade ao
pensamento sistêmico, procurando demonstrar que embora o referencial teórico seja diferente
a noção do todo, de unidade e continuidade nas famílias se estabelecem em ambas as teorias.
94
Retomando os ciclos arquetípicos, segundo Byington (1987), no capítulo 2, os são
uma forma de abordar certas características evolutivas da consciência individual e coletiva em
conjunto, preservando o funcionamento das estruturas arquetípicas que coordenam sua
origem. Eles podem apresentar tanto uma posição passiva como ativa do Eu em relação ao
Outro durante o seu desenvolvimento.
Na psicologia analítica o relacionamento pai-mãe-filhos como produto de um
envolvimento que transcende os limites de uma relação puramente pessoal, de um pai
específico – de uma mãe específica, a partir do momento que entendemos que um pai assim
como uma mãe são filhos de um outro pai e de uma outra mãe, e assim sucessivamente, que
não pode ser compreendido a partir de um ou outro participante, mas sim em função do
campo psicológico simbólico-arquetípico constelado dentro da unidade familiar.
As forças psicológicas que atuam nesse campo, aliadas ao estado de indiscriminação
egóica do bebê, favorecem não só a vivência de identidade total dele com sua mãe, mas com o
campo arquetípico-simbólico-familiar, respirando toda atmosfera emocional que o cerca. É
também das forças inconscientes que estão subjacentes ao relacionamento dos pais que o bebê
retira o alimento psíquico para a estruturação da sua consciência.
O desenvolvimento da personalidade da criança dependerá da harmonia dos pais em
operar o princípio feminino e masculino na relação conjugal, e na relação com ela.
Assim a criança estrutura sua consciência na dimensão matriarcal, através da função
simbólico-materna, propiciada e vivenciada com as figuras dos pais. Mesmo sendo a mãe
considerada a maior portadora e representante do arquétipo da grande-mãe, o pai também, ao
seu modo, a partir de sua própria vivência psíquica matriarcal, contribui para o
desenvolvimento da personalidade da criança dentro dessa dimensão. Embora seja o pai
95
pessoal quem carrega o arquétipo do pai mais intensamente na nossa cultura, a criança vive
esse princípio masculino também na figura da mãe, via Animus.
Dentro desse prisma, a mãe que também pode funcionar dentro do padrão patriarcal,
de uma forma produtiva, colore a vida da criança, com suas atitudes para com o trabalho, suas
ambições, sucesso e competição, encorajando-a a enfrentar desafios necessários ao
desenvolvimento.
A estruturação da consciência da criança dentro do padrão patriarcal, ao longo do seu
desenvolvimento, dependerá da harmonia dos pais em operar o princípio masculino na relação
conjugal, e na relação com a criança.
Não se pode esquecer que os pais de uma criança, não são apenas pai e mãe, mas estão
às voltas, muitas vezes, com seus problemas amorosos, suas responsabilidades pessoais e
profissionais, cuja carga de sofrimento pode ser pesada, e o tributo pago por esses encargos,
às vezes, extrapola ao controle consciente. O fato dos pais não se confrontarem com aspectos
sombrios de suas personalidades, deixando-os proliferar no inconsciente, fazem de seus filhos
futuros herdeiros desse tributo psicológico.
Embora não seja novidade para ninguém, nem sempre temos isso presente quando
falamos de desenvolvimento infantil ou de papéis dentro da família. Muito freqüentemente, o
que foi resultado de um longo desenvolvimento é tomado como condição “a priori” da teoria,
sem a reflexão e a consideração necessárias sobre os determinantes dessa condição.
Faz-se necessário ressaltar que, quando na literatura muitas vezes tem-se a impressão
de que se uma criança não tiver uma família “certinha” (estruturada, é o termo usado),
fatalmente desenvolverá uma neurose, acaba-se por ter uma visão reducionista, procurando
atribuir diretamente a culpa aos pais biológicos, dando a eles a responsabilidade do processo
96
de desenvolvimento do filho não se levando em conta todas as diversidades e influências que
os pais e filhos recebem dentro do contexto social. O que vem caracterizar o predomínio da
consciência patriarcal no estabelecimento dos vínculos familiares.
Azevedo (1994), faz uma reflexão sobre a história da humanidade nos últimos séculos
que devemos relevar para entendermos os processos vivenciados pelas famílias no mundo de
hoje. Além de vários autores aborda o pensamento de Philippe Ariès que delineia o
surgimento do que ele chama de “sentimento de infância”, que não é senão uma forma, uma
expressão particular do sentimento mais geral de família, que emerge nos séculos XVI e
XVII, na Europa.
Essa evolução da família medieval para a família do século XVII e para a família
moderna durante muito tempo se limitou aos nobres, aos burgueses, aos artesãos e aos
lavradores ricos. Ainda no início do século XIX, uma grande parte da população, a mais pobre
e mais numerosa, vivia como as famílias medievais (...). A partir do século XVIII, até nossos
dias, o sentimento de família modificou-se muito pouco. Ele permaneceu o mesmo que
observamos nas burguesias rurais ou urbanas do século XVIII.
Sentimento de infância e de família são assim inseparáveis, na forma como se
constelaram na consciência coletiva. Uma das conseqüências disso, para nós, é que todo o
desenvolvimento da criança passa a ser descrito e referenciado, a partir das relações familiares
- imagem de pai, de mãe, de irmãos, entre outros, a tal ponto que esta família passa a ser
considerada uma instituição necessária para o desenvolvimento saudável da criança. Isso cria
uma enorme dificuldade quando estamos frente a crianças de classes sociais mais baixas, aqui
no Brasil, onde a estrutura familiar guarda muito mais semelhança com a família medieval
descrita por Áries (apud Azevedo 1994), ou mesmo quando temos que encarar a situação real
da crise do casamento e da família atual.
97
Segundo Azevedo (1994), antes disso a transmissão de valores e conhecimentos, e a
socialização de modo geral não eram asseguradas nem controladas pela família. Comumente,
logo que crescia um pouco, a criança ia viver em outra casa, que não a de sua família. Aliás,
essas famílias antigas não tinham o mesmo caráter afetivo de hoje: a vida afetiva, social e
profissional, ainda não separadas ou especializadas, transcorria no meio mais amplo da
comunidade: “vizinhos, amigos, amos e criados, crianças e velhos, mulheres e homens, (...)
As famílias conjugais se diluíam nesse meio” (p.16).
Este estado de coisas que se assemelha ao das comunidades rurais do Brasil, perdura
aproximadamente até o século XVII. A partir daí, a criança conquista um lugar junto aos pais,
o que segundo Áries (apud Azevedo, 1994) foi o acontecimento que distinguiu a família dessa
época das famílias medievais.
Sendo assim a autora considera que a evolução do estabelecimento do padrão
patriarcal de consciência no mundo ocidental, faz uma separação do homem adulto, em
posição de poder, do resto - nesse “resto”, indiscriminados, temos: crianças, mulheres e povo,
considerados classes inferiores (Azevedo,1994).
O desenvolvimento da consciência coletiva no padrão patriarcal se deu basicamente
tendo como eixo a questão do poder - do dominador e do dominado. A partir daí, a autora
retrata algumas representações arquetípicas que foram se constelando ao longo da história da
humanidade tais como: Senex/Puer, Pai/Mãe, Pais/Filhos, Patrão/Empregados,
Homem/Mulher, Adulto/Criança, Civilizado/Primitivo - são as polaridades da consciência
coletiva, sempre valorizando positivamente o primeiro termo e negativamente o segundo.
Além disso, os termos dessas polaridades são tratados também indiscriminadamente; assim,
pai = senex = homem = adulto = civilizado = patrão; e mãe = puer = criança = filho =
empregado = mulher = primitivo; estão todos “no mesmo saco”, e o que os torna “iguais” é o
98
fato da dominação dos segundos pelos primeiros, do poder que estes exercem sobre aqueles.
“O arquétipo do Pai que se constela traz os ‘Pais do Poder’”.
Neste sentido reportando-se a mitologia à autora verificou que a figura do pai, vem
representada pelos chamados Pais Devoradores, da mitologia grega: Urano, Cronos e Zeus.
Estes deuses são sempre movidos pelo medo de que um filho seu os destrone. A estratégia de
Urano é trancar os filhos da Mãe Gaia, deixando-os na matéria e longe do espírito, e a de
Cronos é engoli-los, cortando-os do instinto, a estratégia de Zeus é engolir Métis, sua primeira
consorte, ao ser avisado por Gaia e Urano do perigo que um futuro filho dessa união poderia
representar. Assim, “a estratégia de Zeus é incorporar a anima em espírito e através disso
privá-la de sua fertilidade, da capacidade de se engravidar de crianças revolucionárias. Aliás,
é interessante pensar no que acontece com a gravidez de Métis depois disso: Zeus dá à luz
Atená, que sai diretamente de sua cabeça: uma verdadeira ‘filha do pai’” (Id., p.125).
Assim, com este modelo de família, é evidente que o papel que se torna mais
complicado de definir, tanto psicológica, quanto socialmente, é o papel do pai. O que implica
fatalmente na relação do homem dominado pela sua anima e conseqüentemente não
disponível para o convívio real com as mulheres, fazendo com que as mesmas não consigam
desenvolver seus aspectos de Animus positivo por não integrar mais seus conteúdos do
feminino.
Além das questões acima encontramos também em outros artigos analíticos
referências sobre as conseqüências, que podem causar nos filhos quando existem conflitos na
organização dos ciclos dos arquetípicos enquanto pai e mãe.
99
A seguir apresentaremos como os relacionamentos entre pais, mães e filhos podem:
- Esposa fixada no dinamismo matriarcal e o marido no dinamismo patriarcal
No pensamento analítico fixação é um mecanismo de defesa em que não se trata de
um dinamismo predominando sobre o outro, mas sim a repressão de um deles. Nesta dinâmica
as mães costumam envolver o clima familiar de cuidados maternos, sedutores, controladores,
encontrando este único caminho para sentir o valor da própria existência. No início da vida do
bebê, a mãe atualiza a função positiva do arquétipo da grande mãe, nutridora e doadora de
vida. Mas, na medida em que ela exacerba nos seus cuidados maternos, menos pelas
necessidades dos filhos, mas muito mais pelas próprias, ela reforça o desejo natural da criança
de proteção e dependência, despotencializando-a. Nessa relação está constelada a função
negativa do arquétipo da grande mãe, destrutiva e devoradora.
Os pais atuam como mero provedor se afastando desta relação. Instala-se uma
dinâmica familiar em que a mãe assume o papel de “rainha do lar”, “soberana e dona dos
filhos”, enquanto o pai se sente aliviado por não se ver exigido naquelas tarefas que lhe
parecem tão penosas, que na verdade não são os cuidados básicos de higiene, mas sim o
envolvimento materno-emocional que um bebê exige, e que na sua personalidade está
reprimida
Meninos: diante do impacto da vida, não conseguem reunir forças para se separar da
mãe e desenvolver sua identidade masculina. No desejo homo-erótico de um menino está
contido seu ressentimento pela falta de expressão física de afeto do pai, ou por ter sofrido na
relação com esse pai, sentimentos de ódio ou rejeição. Essa situação familiar também pode
favorecer um filho com uma personalidade avessa a regras, um opositor sistemático a limites,
que no futuro pode impedi-lo de assumir responsabilidades necessárias a sua evolução. Mas
100
também se observa o contrário; meninos que cedo já se mostram temerosos à autoridade,
rigidamente apegados às normas instituídas, exagerado respeito ao dever, não podendo
experimentar e dar vazão a suas fantasias, que viriam a constituir um caminho mais
individualizado.
Meninas: precisa romper essa ligação profunda com a mãe, que tenta aprisioná-la na
condição de filha, para poder desenvolver como mulher. Porém, sem quebrar a raiz
arquetípica que deve uni-las eternamente na dimensão do feminino. Romper o vínculo de total
identidade com a mãe é necessário, não só para o desenvolvimento de sua individualidade,
mas para que seus futuros relacionamentos não sejam marcados sempre por essa busca de
total identidade com o outro.
- Casal se encontra neuroticamente fixados no dinamismo patriarcal:
Geralmente vivem num clima de muita competição entre eles, ‘quem manda, quem
está certo, quem está errado”, cada um sempre tem certeza daquilo que deve ser feito. Nesse
relacionamento parental a criança tem dois pais. Eles brigam, e discutem em nome dela,
porém não enxergam suas necessidades. Nesses casos, a criança pode ser mais um trunfo para
eles, na esperança de vencer a batalha, gerando nela um medo vago e desconfiado na sua
capacidade de amar e se entregar ao seu objeto de amor. O amor, para essas crianças, costuma
ser sobrecarregado com sentimentos de culpa e traição.
Meninos: dentro dessa dinâmica familiar tem pouco acesso aos princípios femininos, e
por falta dessa intimidade necessária, pode ter, futuramente, medo de se relacionar com as
mulheres. Não por ter desenvolvido desejos homoeróticos, o que é também possível, mas
medo de fracassar. É vítima da ambição dos pais, que, sempre dentro de atitudes lúcidas e
objetivas, paralisam todas as tentativas da criança de caminhar seguindo suas referências
101
próprias. Vive em estado de ansiedade, pois sempre vislumbra um horrível fracasso como
resultado de suas próprias investidas. O arquétipo negativo do pai, vivenciado tanto na figura
do pai quanto na figura da mãe, bloqueia o impulso natural de transformação para um
caminhar criativo e individual.
Meninas: correm sérios riscos de serem desconectadas de sua essência feminina. A
mensagem implícita é que não vale a pena ser mulher. A menina não encontra na figura da
mãe, nem da figura do pai, um continente para as projeções arquetípicas, necessárias ao
desenvolvimento de sua identidade de mulher. Nesse caso, é possível o desenvolvimento de
desejos homoeróticos, movidos pelo fascínio de quem sofreu um tipo de privação mutiladora.
- Mãe com fixação no dinamismo patriarcal
Exageradamente, controladora, autoritária, diretiva, competente, menospreza seu
marido “fraco”, que não sustenta emocionalmente, e às vezes economicamente sua família,
não mostrando uma opinião segura a respeito dos problemas domésticos, ou mesmo em
relação a outras situações. O sentimento de insuficiência do pai afeta seus filhos, criando
ressentimentos inconscientes.
Meninos: pode tornar-se agressivo, espelhando através dessa conduta muita raiva, por
não poder projetar sobre a figura dele ideais e valores tão necessários para o início de seu
desenvolvimento. E depois, contra quem ele vai exercer sua força de argumentação para
desidentificar o pai arquetípico do pai pessoal, e, com este poder futuramente uma relação
entre homens. Vai encontrar essa força de oposição freqüentemente na figura da mãe, contra a
qual é necessário lutar para ver nascer sua individualidade. Provavelmente, sairá bastante
ferido dessa luta, principalmente no seu dinamismo matriarcal. O que ele apreende, na sua
102
vivência com os pais, é a desvalorização das emoções ligadas a esse dinamismo, e na figura
do pai, aparece na forma de fraqueza, pouca importância e impotência.
Meninas: podem ser afetadas em função de uma profunda insegurança, pois a vivência
de identidade da criança com sua mãe, é responsável pela sensação precoce de segurança.
Nesse caso, a segurança da mãe é falsa, só aparente, e como a criança é capaz de apreender
aquilo que está além das palavras, não encontra nenhuma referência segura em seu lar, o que
pode impedi-la de também desenvolver suas próprias referências, e assim tentar buscá-las
sempre no outro. Ela estará vivendo pela mãe, a insatisfação inconsciente, com a qual não
consegue conviver.
- Pai e mãe presos no arquétipo da grande mãe, dominados pelo dinamismo
matriarcal, sendo a consciência patriarcal pouca desenvolvida
Resistem a lidar com limites sociais, exigências institucionais etc. O que rege a relação
é o prazer, a satisfação do desejo, “as coisas acontecem”, não são atos de vontade
organizados, planejados. Há uma indiscriminação em relação aos valores morais. O fato de a
atmosfera psíquica familiar ser mais inconsciente pode levar os filhos a desenvolver atitudes
compensatórias, na tentativa de se salvar dessa indiferenciação caótica que os rodeia. Pais
infantis, que não se sustentam emocionalmente, acabam lidando com os filhos como se esses
fossem cachorrinhos de estimação: agradam a criança quando têm vontade, quando precisam
dela para se alimentar emocionalmente, e a mandam embora quando estão envolvidos em
outros interesses, ou quando elas lhes pedem alguma sustentação psicológica, exigência que
lhes parece muito penosa, pois eles próprios não se sustentam. Muitas vezes não reconhecem
os pedidos de socorro dos filhos, pois procuram viver como se a vida, pouco lhes pedisse,
negando suas exigências.
103
Concluindo a autora Benedito (1994) coloca que não se pode ignorar a relação
conjugal, quando os pais relatam problemas emocionais dos filhos, mesmos estes tentando
apresentar uma relação de aparente ajustamento, pois numa investigação mais profunda
podemos encontrar nessa relação ciladas perigosas em seus inconscientes, que podem minar a
construção psicológica de uma criança, “mesmo considerando que toda criança guarda em si a
semente de sua própria individualidade” (p.92).
No artigo de Galiás (2001), a autora analisa questões da relação dos pais com os filhos
considerando a representação da figura materna e da figura paterna, quando não bem
constituída, desencadeando problemas de desajustamento emocional nos filhos, denominando
essas relações de assimétricas por haver um desequilíbrio na representação dos arquétipos
parentais.
A autora considera que as relações entre Eu e o Outro funcionam sendo um mais
ativo-doador e o outro mais passivo-receptor e que eles atuam tanto no arquétipo da Grande
Mãe quanto no arquétipo do Pai para estrutura da consciência.
No arquétipo da Grande Mãe a estrutura da consciência, se configura mediante dois
papéis, que denominou M para o papel de mãe ou matriarcado adulto que é o ativo-doador, e
Fm filho do matriarcado, que é o passivo-receptor. No arquétipo do Pai chamou de P pai ou
patriarcal adulto, também ativo-doador, e Fp filho do patriarcado, que é o passivo-receptor.
Estes quatro papéis fazem parte da personalidade tanto da mulher quanto do homem e
se estruturam durante toda vida, à medida que se desenvolverem proporcionalmente
simétricos favorecerão o equilíbrio no ciclo da alteridade. Portanto, relações assimétricas
segundo a autora, seria a sobreposição destes papéis na relação entre pais e filhos, ocasionado
sérios distúrbios.
104
No universo do Arquétipo Materno tanto no homem como na mulher, os dois papéis M
e Fm são responsáveis pela capacidade e necessidade de dar e receber carinho, cuidado,
proteção às necessidades básicas próprias e do Outro (fome, saciedade, sede, frio, excitação
sensual, entre outros). É responsável pela necessidade e possibilidade de proximidade Eu-
Outro. Portanto, na relação criança com o adulto a estrutura do papel de M (quem cuida), é
representada ou pela mãe, pai ou substituto, enquanto que na criança vai se estruturar o papel
Fm. À medida que a criança vai se organizando e integrando esses cuidados à sua consciência
ela vai estruturando seu papel de M. “Assim os papéis M e Fm formam no indivíduo e na
relação com o outro uma espécie de circuito que a autora denominou de circuito matriarcal”
(GALIÁS, 2001, p.114).
Quando estes dois papéis encontram-se alterados, segundo a autora eles podem se
manifestar em dois sentidos: se há pouco denominou de hipotrófico, e quando está em excesso
denominou hipertrófico. Isto se refere a uma desproporção relativa entre eles. No caso desse
papel estar alterado para mais ou para menos a relação se estabelece da seguinte maneira:
1. Papel Fm: O papel Fm sempre inicia sua estruturação com o Outro (doador) e se
amplia com o Eu (quando do indivíduo já “pede” cuidado maternal a si mesmo). Esse papel é
responsável, portanto por aceitação de cuidados maternais, pedidos desses cuidados (a si
mesmo e ao outro), aprendizado de todo universo da Grande Mãe, pedidos de cuidados
básicos para a sobrevivência.
1.1 Papel Fm hipotrófico: O indivíduo encontra-se carente, vive em situação de
abandono e desamparo. Não sabe receber e nem pedir, é comum desenvolver uma
persecutoriedade imaginando que o Outro nunca acerta com ele, não o “advinha”, não gosta
dele. Torna-se às vezes dependente, estabelecendo relações de fusão, simbióticas.
105
1.2 Papel Fm hipertrófico: Estabelece dependência exagerada do outro puer ou puella
aeternus (menino ou menina eterna), mimado, birrento, narcisista, extremamente exigente,
insatisfeito, responsabilizando o outro por sua insatisfação. A maternagem é inadequada,
havendo um exagero e superproteção.
2. Papel M: Sua estruturação tem início com o Eu, ou seja na relação consigo mesmo e
se amplia com o outro, é a doação do matriarcal, o papel que cuida, protege e ampara. Num
sentido mais amplo o papel que nos capacita para a maternagem de nós mesmos, do outro, do
ambiente, da natureza e do meio. “Ele amacia as durezas da vida”.
2.1 Papel M hipotrófico: Não percebe as próprias necessidades e portanto, não se
atende, não se cuida bem, matriarcalmente, não é uma “boa mãe” para si mesmo. Pouco
empática, rejeita, não cuida do outro, desconsidera-o. Sugere pessoas com pouca maternagem
que se sentiram rejeitados e desprotegidos.
2.2 Papel M hipertrófico: Superprotege o outro, com características possessivas e
castradoras matriarcalmente, não permite que o outro tenha autonomia, priva o outro do seu
afeto. Fica preso em agradar o outro, dependendo disso para a sua autoconfiança, embora
generosa, quando o outro não se submete a sua excessiva maternagem é vingativa. Sugere em
suas histórias indivíduos com superproteção ou rejeição com formação reativa de
superproteção.
3. Reação entre os papéis Fm e M: Numa relação normal há uma constante
comunicação entre eles, isto passa intrapsiquicamente na relação Eu-Outro cada um num dado
momento num dos papéis. Numa relação alterada ocorrem os seguintes distúrbios:
3.1 Papel Fm hipotrófico: Mais encontrado em mulheres do que em homens. Nas
mulheres é sócio-sintônica (a cultura aprova) e nos homens sócio-distônicas (a cultura rejeita).
106
As mulheres são generosas, dominadoras, não aceitam ajuda e se consideram melhores que
qualquer outra mulher, perdem a jovialidade e por serem cuidadoras compulsivas do outro
vivem em sobrecarga e comumente adoecem fisicamente.
3.2 Papel Fm hipertrófico e Papel M hipotrófico: É mais encontrado em homens do
que em mulheres, nos homens é sócio-sintônicas e nas mulheres sócio-distônicas, são como
meninos eternos, egoísticas, narcisistas, insatisfeitos, não vêem a necessidade do Outro. Não
sabem se cuidar matriarcalmente, ficam perdidos. Se casados demandam que a esposa seja
para eles uma mãe. Competem com os filhos pela mãe.
3.3 Papel Fm hipotrófico e Papel M hipotrófico: Considerado uma patologia
extremamente grave e pouco freqüente. É a falência do matriarcal, não se cuida, nem aceita a
ser cuidado pelo outro, perde a capacidade de dar como também a de receber. A pessoa torna-
se rígida, afetivamente fria, distante, difícil contato, rejeitador. Ambos os papéis é como se
não funcionassem.
3.4 Papel Fm hipertrófico e Papel M hipertrófico: Geralmente excessivamente
generosas, solicitando do outro esta mesma generosidade, diante da frustração de ver o outro
diferente do outro que imaginam, deprimem-se matriarcalmente “otimismo insano”
No arquétipo do pai da mesma forma que o arquétipo da Grande Mãe, estrutura a
consciência mediante dois papéis: o papel mais passivo-receptivo Fp (filho-do-patriarcado) e
o papel ativo-doador P (papel pai ou patriarcado adulto), tanto no homem como na mulher.
4. O papel Fp: Responsável por aceitação de limites, capacidade de acatar ordens,
respeito às hierarquias, por obedecer, aceitar seu lugar, aprender todo o rico mundo do Pai
com suas abstrações, signos, sinais e inúmeras polaridades: centro-errado, bom-mau, bem-
mal, pode-não-pode, sim-não fundamentais para a estrutura da consciência da criança.
107
4.1 Papel Fp hipotrópico: O indivíduo fica solto, perdido: não aceita conselho,
sugestão, limites. Não sabe obedecer, não acata autoridade, não sabe perceber as hierarquias,
não conhece “seu lugar”. É um “rebelde sem causa”, ou “se há governo, sou contra”. Não
pode mais aprender. Torna-se repetitivo, cansativo, não-criativo. Com relação ao Outro,
mobiliza enfado, agressividade, desconfiança.
4.2 Papel Fp hipertrófico: O indivíduo fica submisso. Sem iniciativa, torna-se
dependente de que o outro sempre lhe indique o caminho. É inseguro, castrado, sem
autonomia. Quer sempre aprender, mas geralmente não tem segurança para usar o que
aprendeu. É, muitas vezes, o aluno eterno. Em suas histórias, aparecem dados de terem sido
massacrados, castrados como filhos de quem para eles humanizou o arquétipo do Pai.
5. Papel P: De início o indivíduo aprende a “mandar”, colocar limites, dizer sim ou
não a si mesmo. É responsável por discriminação das polaridades, colocação de limites,
exercício da liderança, exercício da autoridade legítima, a si mesmo e ao Outro. É o papel
que, ao separar os opostos, coloca distância entre o Eu e o Outro, entre o Eu e o objeto.
5.1 Papel P hipotrófico: Fica com dificuldade de mandar, de exercer autoridade e
liderança, de ditar as “regras” ou normas, de elaborá-las. Em suas histórias, aparece a
castração patriarcal.
5.2 Papel P hipertrófico: O indivíduo fica mandão, dono da verdade, autoritário,
rígido, extremamente assertivo, castrador. Em seu imaginário, sempre sabe tudo, está acima
dos outros. No Outro, mobiliza medo, encolhimento e muitas vezes rancor. Em suas histórias,
geralmente assumiam precocemente o patriarcado adulto.
108
6. Relação entre os papéis: Se um ou ambos os papéis estiverem problematizados,
essa relação também fica comprometida.
6.1. Papel Fp hipotrófico e papel P hipertrófico: É uma combinação mais freqüente
em homens. Os indivíduos com essa combinação tendem a ficarem, donos da verdade,
arbitrários, arrogantes, centralizadores, rígidos, controladores. Funcionam como “generais
arbitrários”. Prepotentes, facilmente julgam o Outro e lhes falta autocrítica. Narcisistas, são
incapazes de olhar o Outro. Extremamente objetivos, rejeitam a subjetividade, são
maniqueístas. Na família, funcionam como tiranos, absolutistas, provocando medo,
distanciamento, impotência e desânimo. Com o passar do tempo ficam obsoletos. Não gozam
do verdadeiro respeito dos demais, e sim do temor e distanciamento. Projetam no Outro seu
papel Fp hipotrófico e atuam o P hipertrófico. Tentam adoções absolutas. Tentam “fazer a
cabeça” desse Outro, sentindo-se generosos por tanta doação. Sentem-se traídos com a
discórdia do Outro. Em suas histórias, encontramos dados de que precocemente tiveram que
assumir o papel P, tendo sido pouco “filho” de um pai.
6.2 Papel Fp hipertrófico e papel P hipotrófico: Em nossa cultura, essa combinação é
mais freqüente em mulheres. Não conseguem se prover. São dependentes de permissão, de
autorização; são submissos, sem autoridade. Questionam, atiram pedras, criticam, mas não
conseguem resolver de maneira adulta, não conseguem propor soluções. Projetam no Outro
seu papel P hipotrófico e atuam sobre esse Outro seu papel Fp hipertrófico. São demandantes,
insatisfeitos. Na família, eternos insatisfeitos e hipercríticos com relação a quem têm a
autoridade.
6.3 Papel Fp hipotrófico e papel P hipotrófico: A autora sugere que essa combinação
se relaciona com o transtorno obsessivo-compulsivo - TOC - mais freqüente em homens. Os
indivíduos com essa combinação tendem a não acatar nem dar ordens razoáveis, não acatam,
109
nem dão limites razoáveis, não acatam discriminações do Outro nem as fazem de forma
adequada. Na família, tornam-se muitas vezes torturadores, exigindo que familiares executem
por eles os rituais dos quais não dão conta, sozinhos. Em suas histórias encontramos dados de
paternalização precoce, rígida, inadequada.
6.4 Papel Fp hipertrófico e papel P hipertrófico: É mais freqüente. Bastante
realizadores, são geralmente bem-sucedidos, conquistando sucessos e realizações
consideráveis. Extremamente onipotentes, narcisistas, vivenciam-se como diferentes de todos
os outros humanos, como se fossem mesmo deuses. Querem aprender o novo, novos
enfoques, novas formas de olhar as coisas, mas imediatamente assimilar o novo a ser “velho
sistema, transformando-o em mais um instrumento de controle. Avaliam e testam a
competência ou eficiência do Outro e imaginam sempre que a própria é maior. Na família,
tendem a transformar todos em seus eternos dependentes, embora a intenção consciente seja
oposta. Mobilizam no Outro, por um lado, segurança e, por outro, medo e sensação de
incompetência.
Com este capítulo procurei mostrar que a compreensão das relações familiares
percorre um longo caminho influenciado por aspectos históricos, culturais, políticos e
psicológicos e que no contexto de negligência infantil precisamos cuidar para que tendências
preconceituosas sobre as famílias não se sobreponham, e o conhecimento mais amplo impeça
uma visão da totalidade, uma visão sistêmica em que todas as famílias estão envolvidas e
precisam ser compreendidas.
110
4 CORPO: PRIMEIRA EXPERIÊNCIA CONCRETA DAS
REPRESENTAÇÕES E RELAÇÕES AFETIVAS
Corpo, território tanto biológico, quanto simbólico, processador de virtualidades
infindáveis, campo de forças que não cessa de inquietar e confortar. Verdadeiro arquivo vivo,
inesgotável fonte de desassossego e de prazeres.
O corpo de um indivíduo pode revelar diversos traços de sua subjetividade e de sua
fisiologia, como também pode escondê-los. Pesquisar seus segredos é perceber o quanto é vão
separar a obra da natureza daquela realizada pelos homens: na verdade, um corpo é sempre
“biocultural”, tanto em seu nível genético, quanto em sua expressão oral e gestual.
O corpo humano é considerado, desde o princípio do texto bíblico, território do
sagrado. Feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26, apud Miranda, 2000). Todas as
partes do corpo, para os hebraicos, são dotadas de atributos psíquicos e espirituais. Cada parte
do corpo leva em si uma consciência do verdadeiro Eu e de sua unidade. O corpo possui uma
estrutura e uma unidade que vão além da própria matéria. Para a tradição judaica, o nosso
corpo cresce como árvore das vidas e dá frutos como árvore do conhecer bem e mal, pois
111
emergiu da evolução da matéria, do universo e da vida. A árvore das vidas é sempre um plural
(sem singular), pois é fonte de sabedoria, caminho do conhecimento, da experiência interior.
A árvore do conhecer bem e mal é a fonte da experiência concreta, é o caminho do
sofrimento, da busca de unidade na vivência exterior. A simbologia da árvore representa a
vida em perpétua evolução e em ascensão rumo aos céus. Evoca a comunicação entre as
realidades cósmicas e as celestes. Na tradição judaico-cristã, a árvore no centro do jardim do
Éden reúne a iluminação para a compreensão do corpo humano e de suas imperiosas
verticalizações e ascensão para Deus (MIRANDA, 2000).
A oração também é um caminho para a descoberta do corpo, tanto a oração pela cura,
quanto à meditação corpórea. Para a cura, é fundamental a conversão “Ser abertura e não
fechamento, movimento e não estagnação. Dança e não estática. Ser dúvida e não certeza”
(Miranda, 2000, p. 31). A conversão promove corpos sadios, que não são sinônimos de
homens sãos. As pessoas, no término de graves enfermidades, apresentam imensa saúde,
mental, espiritual e pessoal. Já outras pessoas, com saúde física invejável, são verdadeiras
doentes mentais. Saúde e doença são partes da realidade humana.
O corpo não é apenas um conjunto de órgãos, vísceras, fluídos e funções. Na língua
hebraica, todas as partes do corpo humano são hipostasiadas
(nascidos da atividade
discriminadora da consciência) e dotadas de atributos.
Sendo uma evidência que acompanha todo o ser humano, do seu nascimento à sua
morte, o corpo é, contudo, finito, sujeito a transformações nem sempre desejáveis ou
previsíveis. Ao longo dos anos, mudam-se as suas formas, seu peso, seu funcionamento e seus
ritmos. Talvez, por isso mesmo, não seja certo que todos os seres humanos estejam
completamente habituados com os seus corpos e satisfeitos com seu desenvolvimento. O
112
corpo de cada um pode parecer extremamente familiar e concreto em certos momentos, mas,
em outros, bastante desconhecido e abstrato (SOARES, 2001).
O modo como a pessoa percebe seu corpo físico é o instrumento com o qual indivíduo
estabelece contato consigo, com seu ambiente e com os outros a seu redor. Se a pessoa
internaliza sentimentos positivos de auto-aceitação e aprovação, a respeito da própria
aparência e aspecto físico, no contato com os outros sua atitude terá maior pré-disposição para
ser aceito e bem recebido. A imagem do corpo é ao mesmo tempo, resultante e determinante,
das formas de relações do indivíduo consigo mesmo, com seu ambiente e com seus
semelhantes.
Recusando uma dicotomia entre a matéria e o espírito, entre o físico e o psíquico,
segue-se que o corpo tem a capacidade de manifestar um sentido em todas as situações da
existência, antes que se veja tolhido na dimensão da linguagem. Este sentido existe na
expressão corporal e se revela à compreensão por meio de uma apresentação do vivido
corporal, a que se dá o nome de imagem do corpo.
Entende-se por imagem do corpo humano a figuração de nosso corpo formada em
nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós [...] Qualquer
mudança na função orgânica está propensa a originar mecanismos psíquicos que
tenham afinidade com essa função. Esse reflexo na esfera psíquica nos ajudará a
entender a essência da função orgânica (SHILDER, 1994, p.11-31).
A noção de identidade está intimamente relacionada com a noção de imagem corporal;
identidade e a noção de quem sou eu provêm basicamente do contato que essa pessoa é capaz
de estabelecer com o próprio corpo. Quanto mais distante a pessoa está do contato consciente
com o sentir corporal, mais ela se aliena de si e do meio ao seu redor (LOWEN, 1995).
A saúde mental se reflete objetivamente na vitalidade do corpo, a qual se manifesta
no brilho dos olhos, na coloração e no calor da pele, na espontaneidade da
expressão, na vibração do corpo e na graciosidade dos movimentos. Os olhos têm
especial importância, porque são, o espelho da alma. Neles pode ser vista a vida do
espírito. Quando o espírito esta ausente – como na esquizofrenia – o olhar é vazio.
Na depressão os olhos são tristes e, em muitos casos, pode-se ver o profundo
113
desespero da pessoa. Na personalidade fronteiriça os olhos são opacos, indicando
que a função de ver, isto é, o sentido de ver e entender que se observa esta
comprometida. Na maioria dos casos a perda do brilho dos olhos esta ligada a
experiência de horror vivida na infância (LOWEN, 1995, p.16).
A ampliação da consciência de uma pessoa a respeito da própria imagem corporal
entrelaça-se com o processo de desenvolvimento e ampliação de sua consciência da
individualidade.
O corpo é a primeira forma de visibilidade humana. O sentido agudo de sua presença
invade lugares, exige compreensão, determina funcionamentos sociais, cria disciplinamentos
e desperta inúmeros interesses de diversas áreas do conhecimento (SOARES, 2001). Para esse
autor, é importante entender o corpo como resultado de diversas pedagogias que o conformam
em épocas e lugares. Os corpos são educados, para toda a realidade que os circunda, pelas
relações que se estabelecem em espaços definidos por atos de conhecimento.
As cidades revelam os corpos de seus moradores, e o corpo circunscreve um retrato da
sociedade, revela toda a imposição dos limites sociais. Governar o corpo é condição para
governar a sociedade.
O corpo é moldura da alma, é objeto de constantes cuidados, e as pedagogias incidem
para civilizá-lo, ora para ensiná-lo a ser útil e higiênico, ora para sexualizá-lo e erotizá-lo.
São antigas as tentativas de minimizar os efeitos do que é desconhecido nos corpos.
Da religião à ciência, passando por diferentes disciplinas e pedagogias, a vontade de manter o
próprio corpo sob controle, se possível desvendando-o exaustivamente, caracteriza a história
de numerosas culturas.
114
4.1 Corpo fazendo a história das civilizações
Ao longo da história da humanidade, muito se tem investigado sobre as inúmeras
transformações que o corpo já passou, e essas transformações ocorreram tendo como
determinantes os valores e as normas de uma determinada cultura.
No que se refere à história das civilizações antigas, verificamos que a influência
filosófica sobre a concepção entre corpo e mente se mantém nos tempos atuais. Na civilização
grega, os filósofos Demócrito, Platão, Aristóteles, entre outros (apud SOARES, 2001)
refletiam sobre o corpo humano de forma geral, e o saber filosófico da época continha as
disciplinas que se constituiriam como as Ciências, conhecimentos atualmente da Medicina e
da Psicologia. A medicina hipocrática, por exemplo, fazia várias correspondências entre o
corpo e a natureza, direcionando o diagnóstico. Era uma medicina que incluía o entendimento
do interior do corpo e de seu meio social. Nessa medicina, o corpo era considerado um
microcosmo vivendo no seio do macrocosmo. Seria impossível pensar o corpo humano
separado dos fenômenos naturais.
Paralelamente a essa medicina, havia inúmeros templos e santuários para a adoração
de divindades protetoras da saúde e da vida. O prestígio desses lugares era resultado do poder
que a justiça dos deuses exercia sobre os homens.
Platão define o corpo como sendo feito de terra, água, fogo e ar, e afirma também a
existência de uma alma imortal. A doença não é só o resultado de um desequilíbrio entre os
quatro elementos, mas se acrescenta ao desequilíbrio existente entre a alma imortal e o corpo.
O corpo, quando doente, foi tratado por muito tempo à base de medicamentos naturais,
e os adeptos desse tratamento supunham que o corpo humano era dotado de uma grande
capacidade autocurativa, como se fosse uma farmácia que, quando ativada, poderia curar
115
doenças. O controle do corpo exigia o esforço em mantê-lo harmoniosamente relacionado
com o meio ambiente e com o cosmo.
Jung, em sua 4
a
conferência (1935), faz menções ao corpo, associando-o aos mitos de
Rá e de Ísis, do Egito antigo.
[...] na medicina antiga era largamente conhecido que, transportando-se uma doença
pessoal a um nível mais alto e impessoal, atingia-se um efeito curativo. “No Egito
antigo, por exemplo quando um homem era mordido por cobra, o médico sacerdote
era chamado e tirava da biblioteca o manuscrito sobre o mito de Rá e de Ísis, sua
mãe e o recitava. Ísis fizera um verme venenoso e o escondera na areia; o Deus Rá
pisou na serpente, sendo por ela mordido, e então sofreu uma dor terrível, chegando
próximo da morte. Mas os deuses fizeram Ísis produzir um encanto para tirar o
veneno do corpo do filho. A intenção era que o paciente ficasse de tal modo
impressionado por essa narrativa, que lhe sobreviesse a cura [...] Mesmo conosco
certas coisas podem causar milagres. Às vezes o consolo espiritual ou a influência
psíquica podem curar ou, ao menos, ajudar no combate de uma doença. Logicamente
isso acontece muito mais entre pessoas de um nível mais primitivo ou dotadas de
uma psicologia mais arcaica [...] (JUNG, 1935, p.230-232 apud FARAH, 1995,
p.414)
Com o Cristianismo, ocorre a divisão do conhecimento humano em universo físico
(material) e universo abstrato (espiritual), e ela se torna a principal religião da Idade Média,
“[...] monopolizando o saber e conseqüentemente dominando o estudo do psiquismo” (BOCK,
2002, p.32).
O corpo passa a ser fonte do “pecado” e das “tentações” e, para o homem aproximar-
se de Deus e purificar a alma, deveria abdicar dos “desejos da carne”.
Santo Agostinho, inspirado em Platão, também fazia uma cisão entre alma e corpo.
Entretanto, para ele, a alma não era somente a sede da razão, mas a prova de uma
manifestação divina do homem. A alma era imortal por ser o elemento que liga o
homem a Deus. E, sendo a alma sede do pensamento, a Igreja passa a se preocupar
também com sua compreensão. São Tomás de Aquino viveu num período que
pronunciava a ruptura da Igreja Católica, o aparecimento do protestantismo [...] foi
buscar em Aristóteles a distinção entre essência e existência. Como o filósofo grego,
considera que o homem, na sua essência, busca a perfeição através da sua existência,
ao contrário de Aristóteles, afirma que somente Deus seria capaz de reunir a
essência e a existência, em termos de igualdade. Portanto a busca de perfeição pelo
homem seria a busca de Deus (BOCK, 2002, p.33).
Com o Renascimento, o pensamento científico desenvolveu-se e, como conseqüências,
surgiram diversas áreas de investigação e pesquisa. Assim, coube às Ciências a investigação
116
sobre o universo físico, e ficou destinado a religião, a reflexão sobre o universo espiritual e os
cuidados para com a alma humana. A partir de então, a Psicologia passou a ter como objeto de
estudo, não mais a alma, e sim o comportamento humano.
Nessa época, o homem descobre a razão como transformadora do mundo, sobre o
prisma do paradigma do universo matemático e mecânico. O progresso das ciências faz o
homem considerar a razão um viés para a posse do conhecimento e, conseqüentemente,
distancia-se do seu corpo sensível. O corpo, naquele momento, passaria a ser objeto digno de
controle e disciplinamento, para obtenção de gestos precisos e de mão-de-obra qualificada
para o mundo de produção capitalista, que percebeu a vulnerabilidade do homem, passível de
ser moldado e manipulado, sujeito a controle e exploração.
No século XIX, o corpo devia ser educado para economia de energia, do movimento,
mas hoje é educado para gastar energia em excesso, para manter-se em forma a partir de uma
norma que determina a “boa forma”.
O mundo ocidental herdou do pensamento escolástico uma visão dual do universo:
Bem e Mal. Assim, o mundo ocidental baseia-se na idéia de que o homem é um animal
racional composto de alma e de corpo, identificando o Mal com o corpo e o Bem com a alma.
Entre o corpo e a alma o pensamento ocidental colocava uma barreira insuperável, de um lado
a ruela lamacenta do corpo pecador e do outro o jardim da alma (SOUZENELLE,1995).
4.2 Corpo do brasileiro: de conquistas e derrotas, acima de tudo um corpo resistente
Como sabemos, as marcas registradas de um corpo são referências armazenadas de
dados genéticos e culturais adquiridas nos diferentes grupos humanos, e trazem de maneira
bem definida as particularidades que permitem a esses grupos definir e sustentar seus padrões
e valores.
117
Na relação corpo-sociedade há um peso decisivo da estrutura socioeconômica, que
define, de certa forma, os limites da nossa estrutura corpórea. Desde a gestação somos
modelados pelos valores vigentes, pela cultura, pela situação da classe social à qual
pertencemos, e, assim, dentro dessas circunstâncias, nascemos, crescemos, vivemos,
sobrevivemos, adoecemos e morremos.
Em se tratando do corpo do brasileiro, segundo a história, foi-se formando por meio de
uma intensa miscigenação, desde a colonização até os tempos atuais, e isso fez com que esse
corpo fosse se modelando, não só características físicas das mais variadas, como tamm
submetendo-se às normas sociais impostas por determinados grupos sociais, considerados
dominantes, economicamente.
Segundo Medina (2002), quando os primeiros portugueses aqui chegaram, a partir de
1500, traziam impressos na carne as marcas da crise medieval que assolava a Europa, centro
das transformações sociais, que delineou, de forma ampla, os rumos tomados por
praticamente todos os continentes, em especial no que se refere às suas origens coloniais.
A formação étnica brasileira teve base em três grupos: o branco português, o indígena
nativo e o negro africano. Esses grupos se organizam, em nossa sociedade, na época, da
seguinte maneira: o português, produto de um regime feudal decadente, aqui se instala,
submetendo o índio e, em seguida, o negro, à escravidão, suplantando a nossa cultura, criando
uma aculturação por meio de traços de brutalidade sobre a comunidade primitiva e escrava,
assolando todos os padrões e modelos que aqui se encontravam nos grupos humanos nativos.
Os corpos dos brasileiros perderam, segundo Medina (2002), o seu ritmo natural, o seu
equilíbrio, ou seja, ainda não conseguiu alcançar um estado de profundo e dinâmico bem-estar
físico, mental e social (OMS). É um corpo violado pelas condições histórico-culturais e
concretas. Apesar de termos, conquistado recentemente, uma relativa democracia política,
118
buscarmos uma autêntica democracia social, os nossos corpos, marcados ideologicamente,
estão fortemente impregnados por um autoritarismo que ainda por muito tempo será
reproduzido em nossa carne.
Sob o ângulo das classes sociais antagônicas, que caracteriza a sociedade brasileira, o
que se tem observado nas últimas décadas é um escandaloso crescimento do fenômeno da
marginalidade, de onde se origina o que Medina chamou de CORPO-MARGINAL. “Corpo
de milhões e milhões de brasileiros, excluídos ou afastados dos bens e benefícios materiais e
culturais gerados pelo nosso modo de produção capitalista, e que não consegue o mínimo
necessário a uma sobrevivência humana honrada” (MEDINA, 2002, p.84).
Este é, por exemplo, segundo Laing apud Medina (2002), o corpo de cerca de 36
milhões de menores carentes (7 milhões de abandonados), cujo futuro aponta, não raramente,
para a morte precoce ou para a criminalidade. As chances de uma criança nascida no Brasil,
hoje, de tornar-se marginal é 65 vezes maior do que chegar a de cursar uma Universidade. O
desleixo e o desprezo pela criança é talvez a forma de tortura mais degradante existente no
seio da sociedade contemporânea, sendo este apenas um dos aspectos resultantes do nosso
modelo de sociedade.
Esses dados se confirmam em minha pesquisa de mestrado, onde alem de todos fatores
já mencionados na introdução desta pesquisa, os conflitos familiares ocasionados há baixa
renda familiar denunciam toda a situação de sofrimento do corpo dessas crianças.
Foucault (2001), em seu livro Vigiar e Punir, faz comentários sobre o interesse de
historiadores em abordar o estudo da história do corpo e de seu adoecer. Sua reflexão tematiza
o fato de que o corpo está diretamente mergulhado num campo político. Em seu estudo, ele
observa que, até os séculos XVII e XVIII, pode-se afirmar que, grosso modo, o exercício do
119
poder se baseava essencialmente nos termos da relação soberano-súdito. É nesse momento
que algo de novo vai acontecer:
Mas, nos séculos XVII e XVIII, ocorre um fenômeno importante: o aparecimento,
ou melhor, a invenção de uma nova mecânica de poder, com procedimentos
específicos, instrumentos totalmente novos e aparelhos bastante diferentes, o que é
absolutamente incompatível com as relações de soberania.
Este novo mecanismo de poder apóia-se mais nos corpos e seus atos do que na terra
e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo de trabalho
mais do que bens e riquezas. É um tipo de poder que se exerce continuamente
através da vigilância e não descontinuamente por meio de sistemas de taxas e
obrigações distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de
coerções materiais do que a existência física de um soberano. Finalmente ele se
apóia no princípio, que representa uma nova terapia do poder, segundo o qual se
deve propiciar simultaneamente o crescimento das forças dominadas e o aumento da
força e da eficácia de quem as domina. (FOUCAULT, 2001, p.187-8).
Essa nova forma de poder, alheia à soberania, extrai dos corpos tempo e trabalho, por
meio de uma vigilância contida e permanente que é um poder disciplinar. As relações de
poder têm alcance imediato sobre eles (os corpos); investem-no, marcam-no, dirigem-no,
supliciam-no, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais.
O investimento político do corpo busca seu melhor rendimento econômico. É como
força de produção que o corpo é investido, e isso só será possível se ele estiver preso a um
sistema de sujeição. Utilidade-produtividade-sujeição: tripé engendrado e mantido pelo poder
disciplinar que invisivelmente constitui e atravessa diferentes equipamentos sociais.
Esse poder sobre o corpo não se exerce necessariamente, como nos indica Foucault,
pela violência ou pela ideologia. A sujeição do corpo é de ordem física, sutil, tecnicamente
pensada e calculada. O poder, aqui, não se identifica como uma lei que proíbe, que reprime,
mas como uma incitação. É por isso que ele se faz aceitar, porque induz ao prazer, produz
objetos e discursos, e se faz prática, atravessando todo o corpo social.
Como tecnologia, busca um corpo a ser minuciosamente investigado, produzindo
sobre ele um saber que se enraíza como poder que, por sua vez, o configura como outro
corpo.
120
Essa característica produtiva do poder significa uma mudança de seu caráter como
instância; o poder não se define mais como um lugar, mas por seu caráter intersticial e
temporal. É por isso que se diz que esse poder se exerce enquanto efeito que se manifesta nas
posições que os indivíduos ocupam numa rede:
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só
funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de
alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se
exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre
em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou
consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder
não se aplica aos indivíduos, passa por eles (FOUCAULT, 2001, p.183-4).
Diante de tantas desordens sociais, como é possível a sobrevivência de tantos corpos
sofridos e desprovidos? Como tantos corpos sofridos são capazes de se unirem e terem tanta
compaixão e compreensão? De onde sobressai tanta solidariedade?
Buscando entender essas questões, encontramos, no trabalho de Souza (2003), um
rico material sobre resiliência que nos remete a compreender essa capacidade de
transformação e perseveração como característica peculiar na população brasileira,
representada e expressada em nossos corpos, no chamado “jeitinho brasileiro”:
[...] Atravessar o caminho que desenvolve a resiliência, num sentido mais amplo, lutar
para transformar a opressão, e aqui, então as pessoas lançam mão dos recursos
disponíveis. Quando os recursos externos não estão disponíveis, os internos são
acionados, tais como as crenças religiosas, a vontade inerente de sobreviver, a crença na
própria capacidade e no sentido de vida. A esperança e a perspectiva de um futuro
melhor seja para si mesmo, seja projetada nas gerações posteriores, serve como âncora
para enfrentar as situações difíceis do presente (SOUZA, 2003, p.74).
Portanto, ao expressar-se enquanto corpo, para realizar mais livremente seus próprios
desejos, a pessoa terá a necessidade de crescer, não em sua individualidade absoluta, mas em
suas relações com os outros no mundo.
Para que o corpo do brasileiro possa avançar em direção à libertação (relativa), é
preciso que haja, não apenas o querer individual, mas condições concretas e objetivas, de
121
caráter social que garantam a dignidade e sobrevivência dos grupos sociais. Essas condições
devem ser construídas histórica e coletivamente pelos próprios brasileiros, sem a massificação
dos chamados sistemas políticos burgueses que, embora em minoria, lideram e oprimem a
sociedade, com suas leis, padrões e valores, que referem como corpo saudável; no entanto,
esse corpo saudável nada mais é que um fetiche que sempre vira mercadoria, para ser
consumido. Muitas vezes, esse corpo adoece para corresponder às exigências impostas para
consolidação daquilo que a sociedade considera como modelo de qualidade de vida.
A melhor descoberta de nós mesmos dependerá da forma que damos ao que temos;
portanto, dependerá de nossa capacidade de transformar e reconstruir nossos corpos.
4.3 O Corpo: sutil, informacional e captador das sensações mais internas e dos
segredos mais íntimos.
Para Jung (1991), corpo e mente são aspectos do ser vivo, e agem simultaneamente, de
forma milagrosa. O termo que ilustra a existência simultânea é o de sincronicidade ativa do
mundo, fazendo com que os fatos aconteçam juntos, como se fosse um só, apesar de não
poder captar essa integração.
Sincronicidade uma relatividade do tempo e do espaço condicionada
psiquicamente[...] Significa em primeiro lugar, a simultaneidade de um estado
psíquico com um ou vários acontecimentos que aparecem como paralelos
significativos de um subjetivo momentâneo e, em certas circunstâncias também...
(JUNG, 1991, p.459).
A relação corpo-mente, para o autor, foi um problema muito difícil, pois a pergunta
“Corpo ou psique é fator preponderante?” teria como resposta as diferenças temperamentais.
Os que preferem acreditar na supremacia do corpo afirmarão que os processos mentais são
epifenômenos da química fisiológica. Já os que acreditam no espírito adotam a tese contrária.
122
O corpo é apêndice da mente, e a causalidade reside no espírito. O que se pode observar é que
os processos de corpo e mente se desenrolam concomitantemente, de maneira misteriosa
(FARAH, 1995).
Sobre o termo emocional, Jung (1991) indicou que é utilizado quando surge uma
condição caracterizada por inervações fisiológicas, podendo medir suas manifestações físicas.
Considerou que a emoção e o afeto são as mesmas coisas, e a diferença é que o sentimento
não apresenta manifestações físicas, e que a emoção é acompanhada de alterações físicas.
O autor tratou a instância psíquica do Eu como algo corporal. O Eu como conteúdo
consciente em si é complexo, possui duas bases: uma somática e uma psíquica. A base das
sensações de natureza endossomática tem caráter psíquico e é ligada ao Eu.
Muito embora não falasse de sincronicidade, no que se refere à interdependência entre
corpo e alma, Jung dizia que a formação de símbolos está freqüentemente relacionada com
sintomas corporais psicogênicos (JUNG, 1991).
Segundo Miranda (2000), o conhecimento da fala oracular do corpo humano, dos pés à
cabeça, contribui na evolução da própria pessoa, graças ao maior conhecimento de si e de seu
destino.
A linguagem do corpo está relatada na Bíblia. Em todos os escritos históricos da
tradição judaico-cristã, o corpo humano, instrumento de nossa felicidade, é apresentado como
um edifício construído sobre os arquétipos da identidade divina de cada um. Ouvir os
arquétipos significa o fim de uma amnésia, de um esquecimento, e a descoberta final, no
processo de rememoração psíquica, espiritual e corporal, de que já sabíamos de tudo.
123
Ainda segundo o autor, a primeira atitude para penetrar no simbolismo do corpo foi
pegar o texto original (na Bíblia), detalhar cada palavra até sua raiz e buscar seu sentido
concreto.
A relação do homem moderno com a linguagem do próprio corpo é marcada por uma
surdez íntima sobre si mesma. Para ser ouvido, o corpo lança sintomas: dores, dificuldades
digestivas, problemas respiratórios, quedas, entre outros. Cada conceito corporal deve ser
examinado, e não abandonado. A compreensão do simbolismo do corpo pode ser um
instrumento para o entendimento de seu dinamismo, de sua inteireza e de seus caminhos
únicos de comunicação com o divino. A verdadeira iniciação corporal deveria promover a
vida do espírito com o corpo. Na perspectiva judaico-cristã, apesar dos absurdos corporais, a
reapropriação do corpo não é uma operação redutiva, porém integrativa e potencializadora. O
corpo é uma via de experiências autênticas do si mesmo, no qual a fé e a razão se purificam
num encontro de imensidades.
As emoções são enraizadas na matéria do corpo, pois são idênticas às condições
físicas. As emoções são contagiosas, e o terapeuta tem o dever de aceitar as emoções do
paciente e servir de espelho para elas.
Jung demonstrou, em seus estudos e pesquisas sobre as neuroses e psicoses, que a
base, tanto do ego, quanto do complexo secundário, é o corpo, na medida em que ambos têm
o seu tom emocional associado às impressões sinestésicas, entendidas com a totalidade das
sensações que se originam dos órgãos corporais, isto é, sensações nos quais o próprio corpo é
percebido (RAMOS, 1994).
O vínculo com o corpo é a base do vínculo com as outras pessoas. A retomada do
contato com o corpo e suas funções é canal viável para o restabelecimento do contato com a
124
natureza humana. Cuidar do ser implica devolver ao humano o corpo que lhe falta e a palavra
perdida.
Quando o corpo adoece, isso significa a perda da harmonia, a qual acontece na
consciência e na informação e se representa no corpo. O corpo é a apresentação da
consciência, por isso conclui-se que a consciência de uma pessoa se desequilibra e se torna
visível na forma de sintomas corporais.
4.4 Evolução corporal: das bases neurofisiológicas às práticas psicomotoras
Segundo Ajuriaguerra (1981), o desenvolvimento motor passa por diversas fases:
A primeira fase é reflexa, o indivíduo nasce apenas com as condições
anatomofisiológicas de seus reflexos; para que se transformem em atos, é preciso que o ser
experimente a resistência do meio sob a forma de variados estímulos que o levem a romper o
equilíbrio de organização inicial. São elas:
1. A organização da constituição motora;
2. A organização tônica de fundo;
3. Desaparecimento das reações primitivas.
A segunda fase é a organização do plano motor, quando ocorre a passagem da
integração sucessiva para a integração simultânea. A melodia cinética caracteriza-se por uma
mobilidade, aprofundada no tempo e no espaço, das formas que se criam, desfazendo-se e
refazendo-se.
A terceira fase é a da automatização do adquirido; o indivíduo reconhece o ato e
estabelece relação entre o ato e a intenção.
125
Sendo assim o aspecto motor dependerá da forma de maturação motora e da forma de
sistemas de referências, tais como: o plano construtivo espacial, evolução dos planos
perceptivo-gnósico, corporal e psicológico.
À medida que o corpo pode ser considerado objeto da ação e uma unidade
indissociável, o corpo passará a representar aquilo que pode perceber [...] Quando o
conhecimento do nosso corpo é incompleto e imperfeito, todas as ações para as
quais este conhecimento particular é necessário também serão imperfeitos [...]
(FERREIRA, 1998, p.65).
Sendo assim, foi a evolução corporal que organizou a evolução da teoria e da prática
psicomotora. O corpo é considerado como caminho da gênese da personalidade. Com essa
prática, a imagem que se desejou era a de um corpo capaz e incumbido de receber, organizar e
memorizar mensagens provindas de seu próprio funcionamento e do mundo ao redor. As
práticas psicomotoras tiveram por finalidade estabelecer ou restaurar o poder de percepção, de
estruturação e estocagem de informação.
As correlações entre psiquismo e a motricidade a todo instante se estabelecem, pois
todas modificações tônicas acompanham, não apenas cada afeto, mas também cada fato de
consciência (GORODSCY, 1990).
Na década de 70, os psicomotricistas psicologizaram mais suas concepções, afastando-
se do modelo do reeducador testador-reparador, para se aproximar do psicoterapeuta resolvido
a escutar, compreender e auxiliar a pessoa (LE CAMUS, 1986).
A prática pode utilizar-se da dança, da mímica e da arte dramática. A técnica foi
aplicada em creches, uma vez que a atividade motora da criança sustenta a educação de todo o
seu ser. O objetivo foi favorecer o desenvolvimento da criança em sua própria dinâmica;
126
permitir que as condutas motoras se afinassem e diversificasse; favorecer o desabrochar da
personalidade, o que supõe a confiança da criança e de suas potencialidades corporais.
O trabalho profissional e o estilo de intervenção do psicomotricista reeducador, ou
terapeuta, não pode ser confundido com os do professor de Educação Física, pois ser
psicomotricista, em 1980, significava dar primazia à máquina informacional.
Segundo Le Camus, (1986), o corpo situado é aquele que é localizado no espaço. A
atividade do sujeito consiste em posicionar-se e deslocar-se. As atividades de posicionamento
estão determinadas por mecanismos neurofisiológicos, e as de transporte fazem intervir níveis
de regulação de natureza diversa. O espaço não é só percebido, é tamm vivido.
4.5 A psicoterapia corporal analítica
Os métodos utilizados no trabalho da teoria corporal têm a condição de favorecer o
relaxamento e/ou a relaxação, uma vez que permitem, com facilidade, “[...] obter
transformações rápidas e sensíveis da situação emocional e psíquica, por uma ação direta
sobre as funções, neurovegetativas e viscerais” (SANNINO, 1992, p.134).
Existem inúmeras técnicas para alcançar a natureza humana e para buscar a harmonia
e o equilíbrio psico-físico; no entanto, deve-se atentar para o perigo do excesso de idolatria do
corpo, que é tão inadequada quanto a negação do corpo,
Citaremos algumas técnicas: terapia Corporal de Reich, cinesioterapia, ergoterapia,
práticas corporais de impressão, práticas de mediação exteroceptivas, a eutonia, a
somatoterapia, toques sutis, antiginástica.
Miranda (2000), na busca de um corpo idealizado, utiliza abordagens corporais do
oriente, em ambientes culturais diferentes dos ocidentais. Para o entendimento holístico do
127
corpo e de um tratamento terapêutico para as manifestações de desequilíbrio, recorre às
medicinas orientais, às terapias holísticas. Desenvolve uma cultura alternativa, o que reflete a
dificuldade da cultura ocidental em produzir uma prática corporal condizente com realidades
mais sutis.
A Psicoterapia Corporal Analítica compreende, da mesma maneira, os desempenhos e
manifestações intrapsíquicas, entretanto intrapsíquicas estabelecendo uma compreensão dos
processos psíquicos.
A expressão corporal de sentido analítico é uma técnica que se propõe a melhorar o
conhecimento de si e a facilitar a inserção social. Permite re-encontrar sua história recalcada
na retomada consciente de seu corpo. Consiste em duas partes distintas, uma de fala livre,
com intercâmbio e associações entre os participantes, e outra de exercício simples.
Percebemos que o primeiro passo terapêutico com o trabalho corporal é a abertura
para receber, para conhecer. O desejo de receber é inerente à criatura, assim como a doação.
O corpo é um território do encontro, e conhecer o próprio corpo é vivê-lo.
A prática corporal nunca é realizada com a finalidade de fortalecer o corpo, e não
aparece separadamente da música, que pretende desenvolver o homem completo.
No trabalho corporal é comum que a pessoa verbalize seus sentimentos e emoções
vividas, para chegar a um maior centramento (capacitação do eu se fortalecer), ou seja, o
trabalho corporal pode levar a uma reconstituição ou fortalecimento do próprio Eu.
No livro “Seminários das Visões”, Jung (1976) comenta que:
Qualquer coisa experimentada fora do corpo tem a qualidade de ser sem corpo,
então temos que experimentar a coisa toda outra vez, ela tem que vir de outro modo.
Qualquer coisa experimentada fora do corpo, num sonho por exemplo, não é
experimentada, a menos que incorporemos, porque o corpo significa o aqui e o agora
(JUNG, p.301).
128
Farah (1995) indica, também, que Jung foi um dos pioneiros a dar uma nova
abordagem da integração corpo-mente, embora não quisesse participar da polêmica reinante
sobre o tema, pois considerou que a observação e o registro dos fatos tal como se
apresentavam era mais importante.
Nas conferências de Tavistock, Jung (1991) faz uma introdução a sua teoria,
enfocando suas referências ao corpo. Afirma que a consciência é produto da percepção do
mundo externo, que é localizada no cérebro e tem origem ectodérmica. As funções mais
importantes da natureza instintiva são inconscientes, e a consciência é um produto dessas
áreas obscuras, é uma condição que demanda um esforço violento.
Tomar consciência, adquirir maturidade, rever valores e padrões, constituir novas
formas de conduta implicam, necessariamente, solicitar do corpo versatilidade e flexibilidade
às informações emitidas das emões e sentimentos. Os estudos revelam que a terapia
corporal favorece uma integração dos conflitos emocionais com aspectos representados pelas
atitudes e expressões corporais, uma vez que o corpo nada mais é que uma linguagem
simbólica não verbal utilizada em nosso cotidiano para formar novas interações e adaptações
ao meio.
Compreender essa integração é favorecer ao indivíduo um fortalecimento de suas
capacidades para reorganizar-se nas situações em que se encontra desorganizado.
A capacidade do indivíduo de integrar seus conteúdos psíquicos e conflituosos com
suas expressões corpóreas favorece um reconhecimento do quanto ele se encontra abalado e
alterado. Esse reconhecimento contribui para ajudá-lo na elaboração desses conflitos.
Em todas as modalidades mímicas, posturais ou gestuais expressamos conteúdos de
uma elaboração construída, desconstruída e reconstruída, permanentemente pelas informações
129
armazenadas e decodificadas de nossas experiências, possibilitando-nos assim, um re-
significar constante de nossa existência.
4.6 Tocar fonte de prazer e medo: ambivalências imperiosas na relação com o corpo
do outro
O primeiro contato da criança com o mundo, passa a ser registrado em sua pele.
Quando o afeto e o envolvimento são transmitidos pelo tato, são com estes significados, além
do provimento de segurança por meio de satisfações, às quais o fato passará a estar associado.
“A consciência corporal é produzida pela estimulação do corpo, principalmente através da
pele e isto tem início no nascimento, se é que não antes” (MONTAGU, 1988, p.254).
Conforme apresentamos na introdução deste trabalho, a estimulação cutânea pode
assumir inúmeras formas, e isto quer dizer que o contato satisfatório ou não na relação entre
as pessoas se baseia sempre na sensação causada pelo TOCAR.
A retomada do contato com o corpo e suas funções é canal viável para o
restabelecimento do contato com a natureza humana. Cuidar do ser implica devolver ao
humano o corpo que lhe falta, a palavra perdida.
O contato contínuo entre o filho e o corpo cálido vitalizador da mãe, característico da
situação primitiva do homem, reduz-se cada vez mais, nos tempos atuais. Isso porque no
mundo civilizado, tanto as mães, como a criança, usam roupas, e o contato, que de início
envolvia todo o corpo da criança, fica reduzido à zona oral, que entra em contato com o seio
materno apenas no momento da alimentação, e que, até mesmo nesse momento, pode ser
substituído por uma garrafa. Uma complicação adicional surge, se a nutrição naturalmente
130
sintonizada com a fome da criança é substituída por uma regularidade com ares de Logos
(função de animus da mãe) que fixa os horários de alimentação. Inquestionavelmente, esse
desenvolvimento condicionado pela cultura haverá de ter resultados negativos, pois coloca
uma ênfase afetiva nos horários de alimentação, restringe o prazer de sentir o corpo inteiro e,
desse modo, super acentua as zonas erógenas oral, anal e genital.
A mãe compensa em parte essa redução do contato corporal, condicionada
culturalmente, por meio de beijos e carinhos em seu filho e carregando-o no colo. Mas, sem
dúvida, a perda do “sentir” e do “ver” infantis, que as crianças dos povos primitivos
desenvolveram com naturalidade, em relação ao corpo do sexo oposto, é uma lacuna no
homem ocidental; não fosse assim, o “voyerismo” público, na propaganda, nos filmes, nos
shows de strip-tease, entre outros, não teria um papel tão exagerado.
Em geral, parte da orientação característica do homem moderno, sua nostalgia dos
“bons tempos” passados e perdidos, e seu sentimento de solidão e insegurança num mundo
gélido referem-se a essas deficiências fundamentais da infância. Ao mesmo tempo, essa falta
de contato corporal na infância é a supersexualização do homem moderno, cujo anseio por
contato com o corpo de outro ser humano só pode ser atendido através do sexo. O porquê de o
homem de hoje em dia, em média, ser tão sexualizado – fato demonstrado pelos retratos de
mulheres nuas e seminuas com que nos deparamos a cada esquina – pode ser compreendido
por um estudo do desenvolvimento específico do homem na nossa cultura e, em particular,
das circunstâncias que cercam a sua primeira relação com o mundo (relação primal), o que
abordaremos no capítulo seguinte. Por outro lado, deve-se também indagar se as deficiências
e neuroses infantis, tão características do homem ocidental, não são em parte responsáveis
pelo desenvolvimento de uma cultura e de uma ciência específica. Sua curiosidade exacerbada
e reorientada é conduzida por outros canais e, presumivelmente, sublimada. Sua perda de
naturalidade é compensada por um aumento da taxa artificial de cultura.
131
4.7 Os símbolos do corpo: registro da existência humana, expressão dos afetos
A simbologia corpórea expressa as raízes mais profundas do ser, sua própria alma.
Fisicamente, o corpo tem uma rica linguagem própria, que se manifesta na tensão
arterial, no ritmo cardíaco, na temperatura, no equilíbrio, na regularidade respiratória ou
digestiva, no cansaço, na disposição, entre outros. Sobre essa linguagem que manifesta as
funções e disfunções do corpo e da psique há o trabalho diário de atenção individual, da
medicina e de terapias. E existe, também, a linguagem simbólica do corpo.
A compreensão do simbolismo do corpo pode ser um instrumento para compreender
seu dinamismo, sua inteireza e seus caminhos únicos de comunicação com o divino.
A melhor abordagem deveria considerar o homem como um todo, em vez de em
partes; deve-se unir o homem consciente com o homem primitivo (JUNG apud FARAH,
1995).
A formação da imagem corporal, segundo Ramos (1994), não é resultado apenas de
experiências pessoais, mas também da relação Ego-Self, que também tem uma representação
corpórea. Ela considera que a consciência é um “desintegrado”; é a percepção de uma parte
do corpo total, do Self corpóreo. No indivíduo normal, o “desintegrado” surge na consciência
como um símbolo, às vezes na sua polaridade mais concreta, e outras vezes, na polaridade
mais abstrata. Os símbolos do Self emergem das profundezas do corpo.
O símbolo é então um corpo vivo, corpus et anima...A unicidade da psique pode ser
somente percebida aproximadamente; embora ela permaneça a base absoluta de toda
consciência, as camadas mais próximas da psique perdem sua individualidade, à
medida que se aprofundam mais e mais na escuridão... O carbono do corpo é
132
simplesmente carbono. Então, “no fundo” a psique é simplesmente “mundo”... no
símbolo, o mundo fala. Quanto mais arcaico e profundo o símbolo for, isto é, quanto
mais fisiológico, mais ele é coletivo, universal e material (JUNG apud RAMOS,
1994, p.43).
Significados de alguns símbolos corpóreos, segundo Chevalier (2005):
- Cabeça: ardor do princípio ativo. Abrange a autoridade de governar, ordenar,
instruir. O espírito manifestado em relação ao corpo, que é uma manifestação da
matéria;
- Boca: símbolo da força criadora, grau elevado da consciência, capacidade
organizadora através da razão;
- Mãos: ao mesmo tempo em que exprimem as idéias de atividade, exprimem as de
poder e dominação;
- Pernas: órgão da marcha, símbolo do vínculo social; permite a aproximação entre as
pessoas, facilita os contatos, suprime as distâncias;
- Olhos: órgão da percepção visual, símbolo da percepção intelectual. Há olho físico,
como receptor da luz; o olho frontal chamado de terceiro olho, ou de XIVA; enfim, o
olho do coração. Os três recebem a luz espiritual;
- Braço: símbolo da força, do poder, do socorro concedido, da proteção, é também o
instrumento da justiça;
- Articulações: simbolizam as passagens necessárias à passagem da vida para a ação;
- Coração: órgão central do indivíduo, corresponde à noção de centro. O duplo
movimento (sístole e diástole) faz dele, ainda, o símbolo do movimento de expansão e
reabsorção do Universo.
133
4.8 Relação corpo criança, desenvolvimento e construção do ego
Dentre todos os aspectos que constituem a organização e a transformação que o corpo
recebeu ao longo de todo processo histórico da humanidade, é necessário ressaltar as
constituições de bases neurofisiológicas fundamentais a esse processo, uma vez que estamos
falando de um corpo integrado, único e indissociável.
Durante o processo evolutivo e de desenvolvimento do homem, as bases dessa
integração se associam à organização psicomotora, que vai, desde a compreensão filogenética
dos aspectos motores, até a compreensão ontogenética das habilidades desenvolvidas ao longo
da existência da humanidade. Sendo assim, citaremos alguns autores que em seus estudos
trazem essa compreensão.
Henri Wallon (1995), médico e psicólogo francês, foi um grande estudioso do
desenvolvimento infantil, buscando bases científicas para nortear sua compreensão sobre
organização das capacidades mentais aliadas à estrutura afetiva e motora, como recurso de
melhor adaptabilidade ao meio. Em seu livro “As origens do caráter na criança”, oferece-nos
um vasto estudo de como as relações afetivas e motoras se integram para formar a
personalidade da criança e, conseqüentemente, promover seu desenvolvimento psíquico.
Coloca que o comportamento da criança, antes de um ano, apresenta duas
características. De um lado, a total imperícia de suas relações com o mundo exterior, sua
incapacidade de efetuar por si mesma qualquer dos atos mais necessários ao seu bem-estar e à
sua subsistência, assim como sua completa dependência do outro para atender a cada uma de
suas necessidades. Por outro lado, trata-se do desenvolvimento e da maturação muito precoces
de suas manifestações afetivas, que são acompanhamento de todas as suas veleidades.
134
As manifestações afetivas e emotivas têm um poder aparentemente tão essencial que
seus efeitos se incluem entre os primeiros sinais de vida psíquica observáveis no lactente. A
emoção deve-se ao domínio particular da sensibilidade e do movimento de onde se originou o
domínio da sensibilidade e das reações posturais; sendo assim, a atividade muscular está mais
relacionada com o próprio corpo do que com os objetos exteriores. Essas atitudes têm um
grau de variabilidade muito grande, devido à ação da função tônica, uma vez que esta função
exerce um controle sobre todos os músculos do corpo e suas alternâncias e modificações estão
ligadas as modificações da sensibilidade afetiva. Isto quer dizer que, entre a emoção e o tônus,
existe uma imediata reciprocidade de ação.
O Eu psíquico implica oposição mais ou menos latente e virtual das personalidades
estranhas à sua própria. A noção de Eu corporal requer uma distinção entre o que deve ser
relacionado ao mundo exterior e o que deve ser atribuído ao próprio corpo, para definir seus
diferentes aspectos.
[...] Seja qual for seu objeto, este só se constitui como tal devido a uma transferência
da excitabilidade psicorgânica que se manifesta nas emoções, para possibilidades
imaginárias[...]. Alojadas entre essas manifestações e reações de origem
infrapsíquica, as emoções conservam o poder de abalar o aparelho psicorgânico em
toda sua extensão. Mas com a condição de que este subordine a essa função de
expressão que a natureza das emoções imprime às manifestações corporais, e por
onde estabelece contato com o outro (WALLON, 1995, p.163).
O esquema corporal, portanto, não é um dado inicial, nem uma entidade biológica ou
psíquica, mas uma construção. É preciso considerar a importância do movimento no
desenvolvimento psicológico da criança. As aquisições psicomotoras permitirão a exteriorização da
afetividade, e, nesse sentido, não há como desconsiderar o papel do “outro” na construção do Eu.
Para Wallon (1968), essa construção ocorre de maneira integrada, embora por fases,
caracterizadas por estágios de desenvolvimento, num continuum e em permanente
interação.Segundo seus estudos apresentaremos a seguir como o autor define estas fases do
135
desenvolvimento da criança. (p. 48-61-117)
1 ano
Estágio de impulsividade: dependência total em relação a familiares. Estágio
afetivo e emotivo: simbiose afetiva
2 anos
Estágio sensoriomotor: Voltado para o mundo; - Diversificação da atividade
sensoriomotora, surgimento do andar.
3 anos
Estágio sensório motor projetivo: duas aquisições capitais: andar e linguagem
(inteligência prática e simbólica).
de 4 a 6 anos
Estágio do personalismo: Três períodos na evolução do eu: 1) conscientização
de sua própria pessoa; 2) afirmação sedutora da personalidade; 3) período de
imitação.
de 6 a 12 anos
Estágio categorial: interesse da criança para os objetos, conhecimentos e
conquistas do mundo exterior, preponderando o aspecto cognitivo. Intensifica a
realização das diferenciações necessárias à redução do sincretismo do
pensamento. Capacidade de formar categorias, organizar o real em séries,
classes apoiadas sobre um fundo simbólico estável.
a partir dos 12
anos
Estágio da adolescência: a partir da puberdade, rompe-se a tranqüilidade
afetiva; necessidade de uma nova definição dos contornos da personalidade
desestruturados, devido a modificações corporais resultantes da ação hormonal.
Se o movimento manifesta a existência do ser, podemos considerar o fato de que
comprometimentos psíquicos se expressarão através do motor. Wallon aborda a questão
psicomotora interligando-a com aspectos afetivos, num processo de contínuo relacionamento
com o meio. “Em todo arrebatamento emotivo, o indivíduo extravasa de certa forma a sua
sensibilidade. Suas reações emotivas estabelecem entre ele e o outro uma espécie de
ressonância e de participação afetiva” (WALLON,1995, p. 164).
A afetividade, o ato motor e a inteligência são campos funcionais em que se
distribuem as atividades infantis. É na interação com os objetos e com seu próprio corpo que a
criança estabelece relações entre seus movimentos e suas sensações e experimenta a diferença
da sensibilidade existente entre o que pertence ao mundo exterior e o que pertence a seu
próprio corpo. Constrói-se, então, o Eu corporal, condição sine qua non para a construção do
Eu psíquico (GALVÃO, 1996, p. 51).
136
Wallon destaca a importância da pré-linguagem afetiva das emoções, das posturas e
das mímicas, a qual denomina “comunicação afetiva” ou “diálogo tônico”, como fator
preponderante para o desenvolvimento e evolução da criança (FERREIRA, 1998, p.3).
Le Boulch (1992) utilizou o conceito de psicocinética, ou educação psicomotora, para
esclarecer todo o processo de organização psicomotora na formação da personalidade, que
consiste em:
Formação de base indispensável a toda criança seja normal ou com problemas,
respondendo a uma dupla finalidade: assegurar o desenvolvimento funcional tendo
em conta possibilidades da criança e ajudar sua afetividade a expandir-se e a
equilibrar-se através do intercâmbio com o ambiente humano (LE BOULCH, 1992,
p.23).
É a partir dos movimentos espontâneos e de atitudes corporais que ocorre o
estabelecimento da imagem corporal, núcleo central da personalidade. Ele considera que a
imagem do corpo é uma forma de equilíbrio entre as funções psicomotoras e a maturidade, e
que é nas relações do organismo com o meio que a imagem do corpo se organiza como núcleo
da personalidade.
Apontou que no trabalho corporal dois sistemas funcionais são atingidos: os fatores de
execução que influenciam no rendimento motor e o Sistema Nervoso Central, que coordena
os sistemas e serve de suporte para as funções mentais. Considera, também, que o
desenvolvimento social se inicia com o reconhecimento da mãe (aos 8 meses), o que lhe
permite uma visão em conjunto do próprio corpo. No décimo mês, identifica a noção de
objeto permanente e, entre esses objetos, percebe o próprio corpo e o do outro. Aos 3 anos,
começa a empregar o pronome em primeira pessoa, Eu, em que o sujeito se situa, e passa a
responder melhor à noção da imagem de si mesmo.
Para Vayer (1989), o trabalho da educação psicomotora e da educação psicocinética
evidenciam noções fundamentais que são a base de toda educação pelo movimento. São elas:
137
percepção do próprio corpo, organização do esquema corporal, equilíbrio, segurança e
organização espacial. É uma educação do ser global, que associa diretamente a consciência à
ação e permite uma integração progressiva das aquisições motoras que são objetos de
conhecimento e reflexão. “A educação psicomotora é uma ação pedagógica e psicológica,
utilizando meios da Educação Física, com o objetivo de normalizar e melhorar o
comportamento da criança” (VAYER, 1989, p.21).
A educação psicomotora leva a criança a tomar consciência do seu corpo e da
lateralidade, a situar-se no espaço, a dominar o tempo, a adquirir a coordenação de gestos e
movimentos. Esse tipo de atendimento permite prevenir as inadaptações motoras.
Vayer (1989) considera que o desenvolvimento da criança é o resultado das relações
entre a pessoa (corpo), o mundo das outras pessoas e a realidade das coisas. É através do
corpo que a criança percebe o mundo externo, é com ele que entra em relação com a realidade
do mundo. A consciência e o conhecimento da realidade são inseparáveis da consciência e do
uso que a criança tem de seu corpo. É por meio da ação corporal que as aptidões e a
inteligência se desenvolvem. “Sensações, percepções e ações constituem um ciclo que se
desenvolve, se enriquece e se organiza para constituir a personalidade, uma personalidade
necessariamente original em relação aos outros” (VAYER, 1989, p.17).
Com essas funções articuladas, há a construção do esquema corporal, que tem papel
fundamental no desenvolvimento da criança, pois a organização das sensações relativas a seu
corpo com os dados do mundo exterior é o ponto inicial das diferentes possibilidades de ação.
O esquema corporal é o núcleo da personalidade; a partir dele ocorre a organização de todos
os comportamentos, de todos os conhecimentos.
Sendo assim, todas as comunicações com o mundo que conduzem ao conhecimento,
ou que sejam vividas de modo afetivo, são ligadas à corporeidade. Para comunicar-se com o
138
mundo, a criança deve ter consciência, controle e organização de seu corpo; “a atividade da
criança é o ponto de partida do conhecimento de si mesmo e do mundo” (VAYER, 1989,
p.67).
Além dessa compreensão sobre as necessidades que perpassam o desenvolvimento da
criança, que são condições previsíveis, a família, ao longo do ciclo vital, pode deparar com
eventos ou fatos inesperados que, independentemente da fase em que se encontra, pode gerar
crise e, conseqüentemente, uma desorganização e desconstrução na homeostase familiar e em
todos os seus componentes. Como conseqüência das alterações corpóreas, muitas vezes
perceptíveis, outras não, temos: alteração de humor, postura, expressão, gestos, bem como
tons de voz, mudanças no olhar e, de maneira geral, alteração tônica. Fatos como desemprego,
separação, mudança de cidade, delinqüência, uso de drogas, doenças inesperadas e morte de
um dos componentes exigem, de todo o sistema, recursos adaptativos, para que se possa
proceder a uma nova estruturação.
A partir desse olhar ampliado do indivíduo, no contexto relacional familiar/social,
conseqüências e conflitos serão gerados e, efetivamente, prejudicarão essa homeostase;
portanto, precisam ser compreendidos e cuidados.
Além dos conceitos dos autores citados acima, sobre a organização psicomotora na
construção personalidade da criança, salientaremos a seguir, dentro da concepção analítica, de
que forma o corpo é compreendido na estrutura da dinâmica psíquica e na construção da
personalidade da criança.
Nesse aspecto, para a teoria analítica, segundo os pressupostos teóricos de Erich
Neumann (1995), a compreensão da formação da consciência ou estruturação do ego na
criança é domínio da relação primal com a mãe, em que ela representa todo o ambiente
circundante, e, aos poucos, propicia à criança a experiência em novos aspectos do mundo. O
139
autor observa que vivenciar esse processo exige que a criança passe por duas fases: uma fase
embrionária intra-uterina (os nove meses que passa no útero) e uma extra-uterina. (Após os
nove meses, precisa ainda de mais um ano, para atingir o grau de maturidade. Na fase pós-
uterina, a criança entra na sociedade, seu ego e sua consciência começam a desenvolver-se. A
criança está sendo moldada pela cultura humana).
No próximo capítulo, abordaremos, com mais profundidade, os aspectos psíquicos
dessa relação primal, uma vez que ele retratará do vínculo da criança com mãe, e com o
corpo, como mediador desse vínculo.
4.9 Corpo como aspecto de Sombra nas relações e interações familiares
Como em nossa pesquisa se baseia na teoria da psicologia analítica, a seguir
procuraremos relacionar como o corpo pode representar conteúdos de Sombra de maneira
mais aprofundada, nos vínculos familiares.
A Sombra é a parte reprimida do ego, e representa aquilo que somos incapazes de
reconhecer a respeito de nós mesmos. Com o termo Sombra, temos a soma de todos os
âmbitos rejeitados da realidade que o homem não quer ver em si mesmo ou nos outros e que,
por isso, permanecem inconscientes.
Não gostamos de olhar para o lado da sombra de nós mesmos; portanto há muitas
pessoas na nossa sociedade civilizada que perderam de todo suas sombras, perderam
a terceira dimensão e com isso, perderam o corpo. O corpo é um amigo
extremamente duvidoso, pois produz coisas das quais não gostamos: há um excesso
de coisas sobre a personificação dessa sombra do ego. Às vezes ela forma o
esqueleto no armário e todos, naturalmente querem livrar-se dele (JUNG apud
ABRAMS & ZWEIG, 1991, p.107).
A Sombra nos torna doentes, pois ela é a única coisa que está faltando para o nosso
bem-estar. O corpo é nossa Sombra, pois contém a história trágica das maneiras como
140
estancamos e reprimimos o fluxo da energia vital, até que ele se transforma em objeto morto.
O corpo expressa o que nós não ousamos falar e expressa nossos medos presentes e passados.
O corpo como Sombra é percebido nos sentimentos de culpa e vergonha em relação às
funções corporais, falta de espontaneidade nos movimentos e sensações e em uma batalha
contra a doença psicossomática.
A Sombra, no mundo ocidental, é percebida em virtude do alto nível de pressão que os
indivíduos estão sujeitos no seu dia-a-dia, desde a irrupção de novos estilos de
comportamento, passando pela instabilidade das normas morais, até a crise dos valores éticos
e a violência social.
Isso quer dizer que a Persona dos indivíduos vai se moldando para suportar as
pressões externas, enquanto na sombra vão se sucumbindo as dores, perdas e todos os
sentimentos não permitidos a aflorar. De maneira correlata, o estar, sendo pressionado, é
sentido também no corpo e, assim, como essas pressões são intrínsecas ao homem em
sociedade, a pressão sobre o corpo também o é, sendo representada como a força da
gravidade. O corpo reprimido também surge, na sua crua nudez, nas tristes epidemias, nos
abusos sexuais de crianças, no vício sexual, no abuso das próprias forças e nas desordens
alimentares.
Como abordamos no capítulo III, as trocas afetivas na família imprimem marcas que
as pessoas carregam a vida toda, definindo direções no modo de ser com os outros
afetivamente e no modo de agir com as outras pessoas. Esse ser com os outros, aprendido com
as pessoas significativas, prolonga-se por muitos anos e freqüentemente projeta-se nas
famílias que se formam posteriormente. Isso quer dizer que essas marcas se mantêm expressas
e impressas nas representações corpóreas, mesmo que o indivíduo delas não tenha
consciência, e, nesse aspecto, a negligência, os maus tratos, ou a violência de qualquer
141
natureza, tornam-se marcas armazenadas no inconsciente e representadas pela Sombra
corpórea, a partir do momento que o indivíduo desenvolve ações de auto-destruição.
A criança ao nascer, passa por um processo de estruturação de ego ao mesmo tempo
em que a sua Sombra está se desenvolvendo. Tudo isso é peculiar à primeira metade da vida.
A Sombra desenvolve-se ainda na infância, e a criança vai se identificando com as
características ideais de personalidade, ou com aquilo que ela gostaria de ser, formando a
Persona, ao mesmo tempo em que vai “enterrando” características indesejáveis para sua auto-
imagem, formando a Sombra. Portanto, o Ego, a Sombra e a Persona desenvolvem-se
conjuntamente, a partir da mesma experiência de vida.
Os pais, irmãos, professores e pessoas que cercam a criança determinam o que pode ou
não ser expresso, e assim ela aprende o que é um comportamento gentil e moral e o que não é.
Isso não quer dizer que esses sentimentos não existam. Eles são rejeitados pelo Ego e exilados
na Sombra:
Por esta razão, em geral vemos a Sombra indiretamente, nos traços e ações
desagradáveis das outras pessoas, lá fora, onde é mais seguro observá-la. Quando
reagimos de modo intenso a uma qualidade qualquer (preguiça, estupidez,
sensualidade, espiritualidade, etc.) de uma pessoa ou grupo, e nos enchermos de
grande aversão ou admiração – essa reação talvez seja a nossa Sombra se revelando.
Nós nos projetamos ao atribuir essa qualidade à outra pessoa, num esforço
inconsciente de bani-la de nós mesmos, de evitar vê-la dentro de nós (ABRAMS &
ZWEIG, 1991, p.17).
Portanto, a Sombra é a parte do inconsciente que complementa o Ego e que representa
as características que a personalidade consciente do indivíduo se recusa a admitir, sendo então
‘enterradas’ no inconsciente. Encontrar a Sombra pode ser uma experiência assustadora para o
indivíduo e, por essa razão, ele a nega.
O objetivo de encontrá-la é desenvolver um relacionamento progressivo com ela e
expandir o próprio senso de si e alcançar o equilíbrio entre a unilateralidade das atitudes
conscientes e inconscientes. Através do encontro com a Sombra, é possível: chegar ao auto-
142
conhecimento e à auto-aceitação; desativar emoções negativas; livrar-se da culpa e da
vergonha relacionada a sentimentos negativos; reconhecer as projeções feitas sobre os outros;
‘curar’ os relacionamentos por meio de um auto-exame mais honesto e de uma comunicação
direta e usar sua imaginação criativa para aceitar o Eu reprimido.
O Self fica escondido na Sombra; ela é a guardiã dos portais, a guardiã da entrada. O
caminho para o Self é através dela; por trás do aspecto escuro que ela representa está
o aspecto da totalidade, e é só fazendo amizade com a Sombra que ganhamos a
amizade do Self (NEUMANN,1995, p.55).
É comum encontrar a Sombra na meia idade, pois as necessidades e valores tendem a
mudar de direção (às vezes, drasticamente). É necessário, então, que se quebrem velhos
hábitos e que se cultivem aptidões adormecidas, pois, caso contrário, o sujeito perde a
oportunidade de aprender aquilo que a meia idade tem a ensinar.
O ponto de mutação que se inicia com a transição da primeira para a segunda
metade da vida, faz com que venham à superfície aqueles aspectos da psique mais
ou menos inconscientes e até então negligenciados. Nesse processo, a Sombra
desempenha seu grande papel criativo (ABRAMS & ZWEIG, 1991, p.282).
Na meia idade, a Sombra surge quando a pessoa começa a se ver de um jeito
absolutamente novo. Nessa fase, ela tem ‘personalidade própria’ e envolve toda a consciência
do Ego; aquilo que o ser humano é chamado a ser.
A Sombra abrange experiências novas, que acontecem de maneira individual, para
cada pessoa. Não dá para saber como cada um irá reagir. A jornada para o inconsciente
(encontrar, cativar e integrar a Sombra) não pode ser levada com leviandade, e o indivíduo
tem de estar suficientemente forte para poder entrar em contato com ela.
Por meio da Sombra, o indivíduo faz a integração de seus opostos. Para cada virtude
adotada, seu oposto precisou ser mantido inconsciente, sem desenvolvimento, e, embora o
indivíduo tenha o direito de considerar o lado negativo dentro de si como perverso ou sinistro,
143
não pode considerá-la como inexistente dentro dele, pois, negligenciando sua Sombra, ele
nega também suas virtudes, pois são opostos. “Foi a supressão e a repressão dessas ‘baixezas’
que tornou possível o cultivo de seus opostos” (ABRAMS & ZWEIG, 1991, p.284).
Na meia idade, tem-se muito que aprender a respeito da destrutividade como uma
herança que se traz da infância e ao longo de toda a sua vida adulta. Esse aprendizado não se
faz simplesmente por meio de leitura ou de cursos. O aprendizado ocorre no tecer da própria
vida, com intenso sofrimento, confusão e reavaliação de mágoas.
Nesse processo, embora não se possa sempre alcançar as vitórias esperadas, há o
confronto com as falhas interiores, as Sombras; aceitam-se essas falhas como parte de si mesmo e
da humanidade, e aí ocorre uma transformação mais nobre e mais sagrada. É a transformação
pessoal, que sobe, em espiral, em direção à espiritualidade, é o encontro com o Self.
Citamos que a Sombra seria a parte que negamos de nossa identidade, e que ela seria
manifestada como forma de elaborarmos conteúdos de conflito; os dados revelados pelo
levantamento feito no Fórum, da cidade de Taubaté (citado na p. 23), negligência e abandono
como maior incidência de queixas, sugerem que, na relação mãe e filhos, a sombra representa
as características da personalidade que a mãe se recusa a admitir, sendo então ‘enterradas’ no
inconsciente, e encontrá-la pode ser uma experiência assustadora para ela e, por esta razão, ela
a nega, e com isso as mães não conseguem cuidar de seus filhos como gostariam,
possivelmente, por falta de recursos internos para elaborar seus sofrimentos advindos de
inúmeras carências que foram submetidas no percurso de suas de vidas.
Com o trabalho corporal, é possível que as mães reencontrem suas sombras e, ao
reencontrá-las, desenvolvam um relacionamento progressivo com elas e expandam o próprio
senso de si e alcancem o equilíbrio entre a unilateralidade de suas atitudes conscientes e
inconscientes, para então reorganizarem seus vínculos afetivos com seus filhos.
144
5
RELAÇÃO MÃE E FILHO E O CORPO COMO INTERLOCUTOR
DESSA RELAÇÃO
O bebê não é só corpo e sua dualidade mente-corpo, é expressa de diferentes maneiras:
fome, choro, evacuações e, até mesmo, febres. O bebê, sem sua mãe, pode apresentar
depressão, tristeza e mágoa, que podem levá-lo à morte. O leite de sua mãe (por seus
anticorpos e pela “comunhão” que expressa) é o seu melhor alimento. As conversas por sons
“paraverbais”, a companhia inseparável, a alimentação de acordo com o relógio do desejo e o
relacionamento pessoal, incondicionalmente emocional, protetor e afetivo de seus pais, por
meio da imagem dos seus corpos e do tom de suas palavras, são muito mais condizentes com
suas necessidades. Ora, todas essas características são dominantemente matriarcais, fazendo
parte da relação primal.
O bebê não tem um corpo, ele é um corpo e todo o seu despertar passa por seu
corpo. As necessidades que sente, os desejos que manifesta, a resposta dada por sua
mãe a seus pedidos, o prazer que daí deriva, a comunicação que se estabelece, tudo
passa pelo corpo. É um corpo de relações (LÉVY, 1985, p.14).
145
Na fase mais precoce da relação primal, prevalece uma situação matriarcal típica, pois
a situação psicobiológica da criança depende da presença e da contínua vitalidade de uma
relação sustentadora de Eros. Tonalidade e disposição afetivas são atmosferas nas quais a
criança vive e nas quais o ego e a consciência tomam forma e se desenvolvem. No interior
dessa relação de Eros da relação primal, a criança experimenta continuamente “intervenções”,
que se expressam como estímulos positivos e negativos, pelos quais a criança é dirigida.
Na qualidade de Eros, a Grande Mãe aparece simbolicamente como o feminino-
maternal, mas em sua função de intervenção e estimulação ela se manifesta como a parte
masculina de sua totalidade, como uroboros patriarcal e como animus. Atitudes conscientes
da mãe, assim como conteúdos do inconsciente pessoal e coletivo, desempenham um papel
nessas intervenções e incursões, na existência da criança.
Concepções e atitudes de aspectos Logos e da moralidade, bem como inspirações
inconscientes e animus julgadores da mãe, são comunicados ao filho e o dirigem. Uma vez
que todas essas intervenções, que são emocionalmente carregadas, não importa de que
estratos se originem, manifestam-se no simbolismo do masculino, o problema da criança é em
que grau ela se encontra aberta e receptiva a essas intervenções e incursões, ou fechada e não
receptiva.
Para o bebê, o aspecto animus da mãe, representando a ordem, o princípio de nomos,
inicialmente faz parte da Mãe Terrível, desde que perturba o bem-estar da criança e fica sendo
associado a uma intervenção e assalto à sua exigência. Pois, como Freud (1996) notou –
acertadamente, no que diz respeito a esta fase –, para um ser que ainda não atingiu seu
desenvolvimento psíquico pleno, cada limitação e restrição, pode aparecer como uma negação
e retirada de amor. Mas, ao resistir a essas intervenções, a criança entra em conflitos com o
principio de adaptação social, do qual a mãe é representante.
146
Como os pressupostos teóricos desta pesquisa, para análise da dinâmica psíquica dos
participantes, refere-se a psicologia analítica, a seguir apresentaremos neste capítulo, em sua
maioria, o enfoque teórico de Erich Neumann (1995), que foi discípulo de Jung e trouxe
grandes contribuições para a compreensão de como a estrutura da personalidade da criança
vai se constituindo, baseado no conceito de Self Corpóreo e Self Materno na relação primal.
Na fase embrionária, a criança vive no corpo da mãe, e ainda não possui consciência
centralizada no ego, portanto a regulação da totalidade do organismo da criança (Self
Corporal) está abarcada pelo Self da mãe; essa fase é denominada fase pré-ego, ou estágio
urobórico. Só com a conclusão da fase embrionária pós-uterina é possível demonstrar o
completo estabelecimento da instância denominada Self individual.
O termo urobórico designa o estado inicial pré-ego, porque o símbolo do uroboros, a
serpente circular que morde a própria cauda, “engolindo-a”, portanto caracteriza a
unidade sem opostos dessa realidade psíquica. É assim que uroboros, como O
Grande Círculo em cujo centro, à maneira do útero, o germe do ego repousa
protegido, é o símbolo característico da situação uterina na qual não existe ainda
uma criança com uma personalidade delimitada de forma suficientemente clara para
permitir um confronto com um meio ambiente humano e extra-humano. Esse estado
não delimitado, característico da situação embrionária uterina, preserva-se em
grande parte, se bem que não inteiramente, após o nascimento (NEUMANN, 1995,
p.11).
Na fase da relação primal, na qual o instinto alimentar e o simbolismo do uroboros
metabólico são dominantes, a ligação do filho com a mãe, é amplamente localizada em seu
corpo. O corpo do filho, como um todo, e a mãe, como Self são os pólos do campo unitário no
qual a relação primal é percebida pela primeira vez. O sentimento corporal unitário da criança
é o determinante para sua existência vegetativa; sua pele, e a zona oral da mesma – mais tarde
a zona anal, também – são campos privilegiados de uma experiência total, cujas múltiplas
facetas ainda não estão desenvolvidas. Mas esse sentimento corporal unitário é polivalente por
natureza, pois contém fatores corpóreos, psíquicos e espirituais, individuais, automórficos e
sociais.
147
Nesse estágio, a Grande Mãe aparece predominantemente como a “Senhora das
Plantas”, a deusa do crescimento e da nutrição. O mundo e o tempo que lhe cabem são
determinados pela fome e pela saciedade, e a oposição pelo agradável ou desagradável, que se
fundamenta na necessidade alimentar.
O ritmo alimentar também determina o adormecer e o despertar, e no começo essa
ordem alimentar chega a sobrepujar a do dia e da noite, que só se imprime na criança pouco a
pouco. Tanto quanto sabemos, a fase escura do período intra-uterino embrionário não é
interrompida pela consciência ou pelo despertar. Essa polaridade se estabelece com o
nascimento, quando, sob pressão da fome, a consciência faz suas primeiras aparições
esporádicas.
A criança liga as experiências de saciedade, de calor, de vigília, de consciência e de
claridade com a mãe, e essa conexão é a base para o senso de segurança que a criança adquire
na relação primal. Nessa fase, mãe, calor, saciedade, prazer e a sensação de ser uno consigo
mesmo encontram-se fortemente ligados à experiência da luz e da vigília. Mas, de início, a
Grande Mãe provedora, enquanto luz, está mitológica e simbolicamente relacionada com a
lua, com a luz da noite, pois, quando a criança emerge da escuridão do período embrionário
intra-uterino, não entra imediatamente na polaridade de um mundo de dia e noite, mas tira
cochilos num mundo de contínuo crepúsculo, interrompido apenas pelo ritmo no qual a mãe –
como a luz que traz alimento, segurança e calor - lhe interrompem o sono.
Para Neumann (1995), com o nascimento do corpo a ligação da criança com a mãe,
em parte, é rompida, mas o fato da criança permanecer parcialmente retida na relação primal
com a mãe demonstra que ainda não se tornou ela mesma. O ego da criança se forma
fundamentado no prazer e no desprazer, sua experiência é a experiência da mãe; a realidade
emocional da mãe determina a existência da criança.
148
Nesse período há o domínio do que o autor denomina de relação primal, primeira
interação da criança com o mundo, interação esta que ele estabelece com a mãe. Ela
representa todo o ambiente circundante, e aos poucos propicia à criança a experiência de
aspectos novos do mundo. Assim, a criança é moldada pela cultura humana.
O Self Corporal é determinado pela espécie, é emergente simultaneamente com a
totalidade corporal individual. Tem o caráter de totalidade e não deve ser tomado
como entidade fisiológica, pois disposição corporal e psicologia, constelação
hereditária e individualidade já estão presentes na unidade deste Self Corporal
(NEUMANN, 1995, p.16).
O Self consolida-se no fim do período embrionário, com a união do Self Corporal e o
Self Relacional externalizado na mãe. A remoção do Self da mãe acompanha a dissolução da
união dual, característica da relação primal.
Falar no caráter cósmico da imagem corporal, em que a criança se funde numa
unidade com a mãe e com o mundo, equivale a dizer que a relação primal acontece
num campo unificado onde não existe delimitação corporal como símbolo de
individualização (NEUMANN, 1995, p.20).
Mais tarde, a criança adquire uma experiência positiva, juntamente com a negativa,
desse aspecto masculino da Grande Mãe, que, então, de maneira simultânea ou sucessiva,
passa a lhe conferir prazer dor ou desconforto. Inconsciente e conscientemente, a criança
atribui o prazeroso à “boa mãe”, e o desprazeroso, à mãe “terrível”.
Tudo que perturba o repouso inicial da psique da criança – privações vindas do
exterior ou dor interna, o desconforto brusco do sono ou afetos provocados por quaisquer
causas, o desconforto da fome, mas também o prazer do movimento, do comer e do evacuar –
constituem distúrbios comprometem o bem-estar geral da criança e sobrecarregam seu ego,
ainda frágil. Para a criança, bem-estar significa um equilíbrio protegido, mas fluido entre ela
própria e seu meio ambiente, e entre seu ego e o inconsciente.
149
No começo da vida, segundo Montagu (1988), o bebê desenvolverá sensação de
confiança, dependendo das impressões sensoriais recebidas, principalmente através da pele,
sejam elas gratificantes ou não.
O bebê que não é colocado no colo, que não é embalado, tem menos chances de
tomar consciência de si próprio por intermédio da sensação do movimento passivo; é
também menos propenso a reconhecer o toque e o ritmo corporal característicos de
sua mãe (MONTAGU, 1988, p.243).
Assim, na fase mais precoce, o corpo da criança representa, ao mesmo tempo, uma
parte do meio ambiente do ego e uma encarnação daquilo que chamamos de inconsciente. É
precisamente essa posição intermediária do corpo que faz com que todos os fatores psíquicos,
bem como a relação da criança com o mundo e com o meio ambiente, sejam experimentados,
dentro do simbolismo do uroboros alimentar e metabólico, que é símbolo dinâmico do corpo.
De início, as perturbações surgem para a criança sob dois aspectos: estimulação
positiva que pode conduzir a uma sensação agradável, de sobrecarga para o ego, e
estimulação negativa, que pode conduzir os afetos a uma sensação ansiosa, de sobrecarga do
ego.
Desde o primeiro dia de nascido, o bebê é objeto de reações por parte de outras
pessoas, as quais ele também reage. A natureza desses contatos, que são mais
freqüentes, variados e complexos quanto mais velha for a criança, é talvez o
determinante individual mais importante de sua maneira de experimentar o mundo e
sentir o tipo de relacionamento humano que será capaz de ter à medida que for
crescendo (MONTAGU, 1988, p.242).
Quando a consciência da criança é suficientemente diferenciada, a ponto de um fator
perturbador refletir-se, não apenas sob forma de sintomas, mas também por meio de imagens
psíquicas, torna-se evidente que a psique infantil interpreta todos os distúrbios do seu estado
de equilíbrio, não importando de que tipo, como provenientes do adulto. No sonho da criança
– da mesma forma que nos adultos –, o estimulador negativo freqüentemente é simbolizado
por animais terríveis, por assaltantes e gatunos.
150
Sejam ou não acompanhados por imagens psíquicas correspondentes, muitas das
ansiedades infantis conectam-se a esse fenômeno de incursão masculina, cuja forma mais
precoce pode ser a perturbação do equilíbrio da criança, de seu estado de repouso físico, à
qual até mesmo a criança de peito reage com medo.
Esse equilíbrio, naturalmente, constela-se de modo diferente, de acordo com a fase de
desenvolvimento infantil: quanto mais desenvolvida e diferenciada for a psique, mais
oposições ela será capaz de compensar e integrar. Na psique arcaica que se expressa por
imagens, esses distúrbios são vivenciados como se emanassem de uma pessoa, de um
arquétipo masculino ou de uma figura de complexo.
Embora toda criança experimente tais irrupções perturbadoras, no curso de seu
desenvolvimento, não apenas na intensidade da irrupção, mas também na intensidade da
reação psíquica, elas terão extremas variações. Isso porque alguns fatores constitucionais,
bem como circunstâncias práticas, podem intensificar anormalmente essa vivência do
masculino – agressivo, ou atenuá-la, pois se trata de uma experiência que combina elementos
que se originam na própria criança com outros, vindos de acontecimentos e circunstâncias
externas.
Um inconsciente muito vivido por disposição constitucional, uma propensão para
afetos que assaltam a criança desde seu interior, um ego subdesenvolvido, quaisquer que
tenham sido as causas disso, intensificarão o fator agressivo. O mesmo vale para todas as
perturbações intensas do desenvolvimento da criança, tais como distúrbios na relação primal,
distúrbios do meio ambiente, deficiências físicas, fome, doença, ou atitudes de animus por
parte da mãe (que, por exemplo, podem levar o filho a chorar quando tem fome, “por uma
questão de princípios”).
151
A criança experimenta tudo isso como uma só e única coisa: como uma força hostil,
coercitiva, intrusa, prepotente e, daí, como um fator transpessoal masculino pertencente à Mãe
urobórica.
Na relação primal, todos esses estímulos e distúrbios são vivenciados como se viessem
diretamente da mãe, sejam eles realmente causados pela mãe, sejam eles causados por algum
fator no inconsciente ou no meio ambiente. Na união dual da relação primal, dentro e fora,
meu e teu, ainda se encontram indiferenciados, não apenas um estímulo no interior da criança,
mas também estímulos externos, tais como luz ou escuridão, vozes ou sons são incluídos no
mundo todo, abrangente, da Grande Mãe. E, inversamente, um estímulo vindo do interior da
mãe, sua ternura e seus afetos, ou suas disposições positivas ou negativas, são experimentados
pela criança como uma perturbação em seu equilíbrio, que é assegurado pela unidade cósmica
maternal na qual a criança vive.
A psique da criança é sustentada pela predominância de sua experiência com a Grande
Mãe. Ao aceitar o desconforto, o sofrimento e as limitações impostas pela Mãe Terrível, a
criança também está se desenvolvendo em direção a uma totalidade, para ser capaz de integrar
o bom e o ruim, o agradável e o desagradável. Assim, a psique da criança contém
inconscientemente, dentro de si mesma, a experiência da Grande Mãe, do mundo e de si
mesma, num todo ordenado e significativo.
Na sua relação de identidade com a Grande Mãe, a criança lega-se à ordem
significativa da vida psíquica como um todo, como uma hierarquia coerente de poderes e
autoridades psíquicas. O fato da mãe ser o Self do filho é uma experiência ordenada
fundamental para a estrutura inconsciente da criança. Na ordem espiritual que se manifesta na
mãe, enquanto Self, a consciência e o inconsciente, o corpo e a psique, o interno e o externo, o
homem e o mundo juntam-se numa totalidade compensatória.
152
Essa estrutura ordenada da qual a criança é parte evoca sua atitude arquetípica inata
para a ordem. E aqui, de novo, um processo arquetípico deflagra-se na criança, em virtude de
sua experiência com a mãe pessoal, que está conectada com os arquétipos.
O conflito posterior entre o indivíduo e o cânon cultural é prefigurado, nesse estágio,
pelo conflito dos afetos e pelos impulsos da criança, por um lado, e, por outro lado, pelo
mundo do animus da mãe, que evoca e põe um movimento a ordem interna inata da criança. O
conflito entre a ordem e aquilo que deve ser ordenado, entre mãe e filho, também acontece na
psique da criança como um conflito entre seus impulsos e seus princípios ordenadores
próprios.
Nos casos em que a relação primal é positiva, a criança pode suportar e aceitar esse
assalto porque sua experiência de segurança da relação primal foi tão fundamental que,
mitologicamente falando, a criança pode “morrer”, pois acredita que vai renascer pela mãe, da
mesma forma que pode dormir na certeza de que irá despertar. Essa entrega ao uroboros
patriarcal da Grande Mãe é, para a criança, independentemente de seu sexo, uma forma
preliminar do “casamento de morte”, no qual, graças à predominância do princípio de Eros, a
psique – apesar de seu medo – permanece aberta ao negativo avassalador.
Essa capacidade de entregar-se à intervenção de um poder superior é uma
conseqüência essencial de uma relação primal bem sucedida, de importância fundamental
para o desenvolvimento subseqüente do indivíduo, e, especificamente, para o seu senso de
segurança e para a sua relação com o mundo, com o “tu” e com o inconsciente.
Independentemente do seu sexo, a criança assume, em primeiro lugar, uma atitude
essencialmente passivo-receptiva. Mesmo na primeira fase, a criança já tem sua própria
atividade espontânea em relação ao mundo-mãe, mas essa é também integrada numa relação
primal bem sucedida, e não se manifesta como uma atitude de defesa ou de desafio, muito
153
menos como um anti-relacionamento agressivo. Mas, nos casos em que a relação primal é
mal-sucedida, o ego ferido, no qual brotou prematuramente o instinto de autopreservação,
substitui, pela sua agressividade e atividade defensiva, a segurança que uma relação negativa
com a mãe lhe negou.
5.1 A tomada de consciência, formação do ego e o surgimento de conflitos entre a
relação mãe e filho
Na fase urobórica inicial da relação primal, dificilmente se pode falar de uma atividade
do ego; no entanto, com o “nascimento” do Self e do ego, ao fim do primeiro ano de vida, a
independência da personalidade da criança começa a produzir conflitos com a mãe da relação
primal.
Na segunda fase da relação primal, o domínio da mãe como arquétipo ainda é
avassalador; mas, nesse estágio, o que em termos mitológicos é conhecido como a “separação
dos Pais do Mundo”, ou seja, a polarização do mundo em opostos, faz-se presente na psique
infantil. As oposições entre Eu e Tu, entre Self e mundo, entre masculino e feminino, surgem
lado a lado com as de abrir-se ou fechar-se, aceitar ou rejeitar.
Tanto o menino quanto a menina reagem ambos de uma maneira feminina, passivo-
receptiva, e de uma maneira ativa, masculina, e é tão natural para uma menina comportar-se
de um jeito masculino para com a mãe, como o é para um menino reagir de modo passivo-
feminino em relação ao aspecto animus da mãe.
O desenvolvimento da personalidade da criança traz consigo uma crescente
ambivalência, que prepara o caminho para o início necessário de um conflito entre
mãe e filho. Ao dividir a imagem de Grande Mãe em imagens de Mãe Boa e da Mãe
Terrível, a psique infantil promove a polarização do mundo, a separação dos Pais do
Mundo no interior do “Grande Redondo” maternal. (NEUMANN,1995, p.89)
154
Ganhando independência progressivamente, a criança chega a sentir que a mãe, tanto é
abandonadora e rejeitadora, como é acolhedora e continente. Ao mesmo tempo, ainda sob o
domínio do arquétipo da mãe, as oposições entre bom e mau, entre amistoso e hostil, entre
agradável e desagradável, entre ego e não-ego, entre consciente e inconsciente, começam a
surgir, assim como o fazem as oposições mitológicas entre noite e dia, entre o céu e a terra,
entre luz e sombra. Essa diferenciação ocorre na esfera maternal e no interior da relação
primal, enquanto lar protegido para a existência da criança.
Porém, mais independência significa sempre desamparo, e todo afastamento da
criança, mesmo que apenas aparente, em relação à sua oposição de segurança, é vivenciada
como solidão. No entanto, muito embora a criança nesse estágio volte as costas para a mãe e
se dirija para o mundo, e então ache que a mãe é má e rejeitadora, isso não ameaça
fundamentalmente o sentimento central de segurança da criança, uma vez que a base positiva
da relação primal tenha sido lançada.
Agora, a identidade original diferencia-se mais e mais, e as figuras da mãe pessoal, da
mãe-mundo, da mãe-como-mundo e da mãe-noite, mães inconscientes devagar vão se
separando, entram em conflito umas com as outras, alternam-se.
Normalmente, o sentimento de confiança adquirido na relação primal translada-se,
desde o início, para a atitude da criança em relação à mãe-noite do inconsciente; uma criança
que se sentiu amparada na relação primal entrega-se, livre de ansiedade, ao sono que oblitera
a consciência; adormece com um senso de segurança que perdura pela vida adulta, mesmo
que, quando adulto, tenha relações de ansiedade frente a outras extinções de sua consciência
egótica.
155
Uma relação assim positiva para com a mãe pessoal e para com a mãe-noite também
se expressa na atitude da criança para com o mundo, que vê como sendo o mundo-mãe e com
o qual se confronta primariamente, numa atitude de confiança.
Esse mundo-mãe, que satisfaz a crescente curiosidade da criança e a prazerosa
tendência de seu ego para expandir-se, é uma coisa boa. Torna-se má quando a criança fica
cansada ou desapontada em suas solicitações ao mundo. Nesse caso, quando o mundo-mãe
torna-se escuro e hostil, a criança volta-se muito naturalmente para sua mãe, ou regressa para
a mãe boa do sono e da penumbra, a qual tem a ver com a mãe pessoal.
Assim, nessa fase de seu desenvolvimento, a criança move-se no interior do campo
maternal estabelecido com sua mãe pessoal, que é associada com uma parte do mundo
exterior e que se tornou a mãe-e-senhora-da-cama, do quarto, do lar, bem como a mãe-mundo
do mundo exterior. De forma alternada, a criança é atraída e repelida por esse dois pólos e,
através de ambos, conhece o “sim” e o “não”, o bom e o ruim, em outras palavras, os opostos.
Essa ambivalência é a primeira aparição das atitudes humanas em relação ao interior e
ao exterior necessárias para a experiência do mundo e que, mais tarde, irão se tornar habituais
sob a forma de atitudes introvertidas e extrovertidas. Na primeira fase de uma relação primal
normal, a mãe integrou as necessárias negativas ou rejeições pela predominância do lado
positivo de sua existência.
Agora o desenvolvimento do ego da criança, e as atitudes “terríveis” da mãe são
progressivamente intensificadas, mesmo quando, na realidade, isto é, objetivamente, a mãe
permaneça como uma instância positiva, integradora. Só dessa maneira a criança pode
desenvolver a necessária oposição à própria mãe. Por fim, termina em seu afastamento dela e
do mundo matriarcal. Este é o “matricídio” mitológico que torna possível a transição para o
arquétipo do pai.
156
5.2 O processo transformador da consciência pelas alterações morfofisiológicas;
função do patriarcado no envolvimento do self corpóreo e do self materno
5.2.1 O desmame
O desenvolvimento que leva do matriarcado para o patriarcado é simbolizado pelo
“desmame”, um conceito que não deve ser restrito ao desmame da criança do seio de sua mãe,
se bem que o cessar de contato tão íntimo com a mãe obviamente represente um ponto crítico,
no desenvolvimento do filho.
Na relação primal o desmame, na retirada do seio da mãe, significa que a criança não
está mais tão próxima de sua mãe. Geralmente, a mãe compensa essa perda por meio de sua
ternura. Quando não é assim, ou quando a mãe sente que, com o fim dos cuidados da primeira
fase, seus deveres para com o filho também chegam a um fim, e o entrega às mãos de
ajudantes, então o desmame pode vir como um grande choque. No entanto, assim como a
amamentação ao seio de forma alguma exclui uma relação primal perturbada, esse mesmo
aleitamento pode, dentro duma relação primal normal, ser interrompido sem o mais leve
distúrbio.
O desmame e a transição da fase inicial para a fase posterior da relação primal, e do
mundo matriarcal para o mundo patriarcal, são processos normais para a criança. Num
desenvolvimento normal, a transição de uma fase para a seguinte adapta-se, sob a supervisão
da mãe, ao ritmo interior do crescimento da criança. Por esse motivo, a mãe é a “Senhora do
157
Crescimento”. No campo unitário entre mãe e filho, ambos se adaptam à lei interior e
transpessoal do crescimento, cuja guardiã é a mãe.
Assim, em circunstâncias normais, o desmame não é uma catástrofe, uma vez que
aumenta a tendência natural da criança para a autonomia, que se expressa também no
crescente prazer que desfruta em seu próprio corpo e em suas funções, de modo que o
elemento negativo da perda é compensado por um ganho. A liberação da união dual com a
mãe é uma das pré-condições para o necessário desenvolvimento do ego e do Self do filho, e
o desmame só envolve dano para ele quando se faz acompanhar de uma quebra abrupta da
relação primal.
O desmame é um passo crucial no processo de libertação da esfera materna, e é
também o primeiro passo da criança em direção à cultura do grupo, ao seu meio ambiente.
Para as mães de culturas primitivas, que freqüentemente amamentam seus filhos ao seio
durante anos, o desmame não representa um momento especial nem uma quebra; como é o
caso ainda entre os camponeses, mas, na moderna sociedade ocidental, a mãe tem seu campo
de atividade, não apenas em casa e nas suas adjacências, mas freqüentemente sai para
trabalhar, o desmame é necessariamente um ponto crítico. Como os horários regulares de
alimentação precisam substituir muito cedo a satisfação do ritmo alimentar da criança; quando
o desmame é prematuro, a criança pode ser entregue a uma pessoa estranha ou a uma
instituição que substitui a família.
Mas, em qualquer desses casos, a criança entra necessariamente na cultura de seu
grupo e nas atitudes fundamentais que este prescreve; a criança é exposta – em geral, cedo
demais – ao processo de assimilação da cultura que irá determinar toda sua vida futura. A
influência de uma mãe sobre o desenvolvimento da criança depende em alto grau do fato dela
própria ter sido moldada pelo seu grupo para formar uma personalidade sadia ou doente, e
158
pelo fato de suas atitudes conscientes e inconscientes de animus irem ou não contra a natureza
do desenvolvimento do filho, especialmente quanto às necessidades da relação primal.
5.2.2 Higiene, Postura Ereta e os defectos como elementos integradores da formação do
Ego
No começo da vida do bebê, o pólo oral é principalmente passivo e receptivo, e
expressa seu aspecto ativo ou antagônico apenas na sucção. Quando nasce o primeiro dente, a
atividade oral, manifestada principalmente em formas preliminares de fala, intensifica-se
muito. Ainda assim, não se pode chamá-la, estritamente falando, de agressiva: antes, aponta
mais para um novo estágio do domínio que a criança passa a ter sobre o mundo. No
simbolismo alimentar, que é dominante nessa fase, comer, morder e mastigar são formas
essenciais de assimilação do mundo.
Numerosas são as possibilidades de distúrbios infantis conectados à relação com a
mãe, e não há dúvidas de que em nossa cultura o treinamento da higiene anal, representa um
importante ponto crítico no desenvolvimento da criança.
Na primeira fase do seu desenvolvimento, a zona anal está integrada à existência como
um todo; suas estimulações de forma alguma diferem da totalidade do corpo. O excremento é
aceito como uma parte do Self Corporal. De acordo com a lei da partes para o todo do mundo
primitivo, cada parte do corpo e todas as suas excreções ou produtos residuais – unhas,
cabelos, restos de comida, entre outras – são tidos, entre os povos primitivos, como iguais ao
corpo inteiro e ao indivíduo, isto é, ao Self Corporal.
Na fase do Self Corporal, na qual o arquétipo da totalidade, como “uruboros
alimentar” – uma totalidade viva realizada na ingestão e excreção em todos os níveis
159
corporais –, é o símbolo dominante. Cada função desse corpo é viva e sagrada. Para o homem
moderno, esse conceito é talvez mais claramente ilustrado pelo simbolismo do “sopro”, que,
na linguagem e na arte – o sopro da vida ou o sopro de Deus, por exemplo –, é ainda um
significativo símbolo da substância da vida e da alma.
No mesmo sentido, sabemos que, na fase em que o Self se manifesta
predominantemente como Self Corporal, todas as substâncias corporais, não apenas aquelas
que consideramos como resíduos tais como cabelos, unhas, urina, fezes, sangue menstrual,
mas também a saliva, o suor, o esperma e o sangue, são carregados de mana, de alma e de
poder mágico, e estão intimamente relacionadas com a vida do indivíduo. Por essa razão, o
significado, dessas “substâncias com alma”, foi preservado até hoje, na superstição e na
medicina popular.
Análoga a essa condição filogenética descobre-se ontogeneticamente, que, para a
criança, as fezes, em particular, não são apenas uma parte essencial de si mesma, mas,
sobretudo representam algo que ela fez criativamente e com o qual está conectada. Essa
qualidade criativa do pólo anal é ilustrada pelo fato de, em muitos idiomas, “fazer” ser um
termo popular para defecar. Numa relação primal positiva, essa unidade criativa se preserva;
defecação é, ao mesmo tempo, uma conquista positiva e um dom imerso na atmosfera
emocional do vínculo entre mãe e filho.
Limpeza e regularidade intestinal são, no começo, dádivas do amor da mãe e
realizações que enchem a criança de orgulho, mas que recuam para o segundo plano, quando
outros desenvolvimentos se tornam mais acentuados. A avaliação, inicialmente positiva, do
pólo anal é encoberta por uma nova avaliação do pólo encefálico, mas a criança não
desenvolve, em relação a seu corpo, nenhum desgosto exagerado que ponha em risco a sua
160
auto-avaliação. Há polarização entre em cima e embaixo, mas a criança não desenvolve uma
atitude neurótica em relação às suas funções corporais naturais.
Essa polarização, que implica uma reavaliação do mundo, assim como do corpo e de
suas funções, é a base da primeira fase do superego, ou seja, do desenvolvimento de uma
autoridade moral na psique, que pode entrar em conflito com a outra parte da psique – a parte
ctônica-anal, ligada ao pólo inferior do corpo.
As primeiras fases da formação desse superego ocorrem na relação primal positiva, na
qual o Self da mãe e o Self da criança, que o segue, se encontram integrados.
Conseqüentemente, a autoridade avaliadora do superego não entra em conflito com o Self da
criança ou com o Self Corporal. Na integração com a mãe da relação primal, isso leva, sem
dificuldades, à aceitação, por parte do filho, dos primeiros valores culturais, pois a limpeza e a
correspondente polarização do corpo e do mundo em bom e mal formam uma base essencial
para toda cultura.
Por essa razão, a linguagem aplica os mesmos termos, tanto para o corpo, como para a
esfera ético-religiosa, a saber, limpo e sujo, embora diferentes culturas possam considerar
coisas muito diferentes, como limpas ou sujas, permitidas ou proibidas. E os ritos de
purificação e de abluções de todas as religiões foram de início purificações, não só da alma,
mas também do corpo.
Da mesma forma que o pólo anal desempenha um importante papel na magia e no
simbolismo do mal, a higiene anal é para a criança – e para o adulto psicótico – não só o
desempenho prático de uma função corporal, mas também um ritual. Já a criança identifica a
ingestão de alimentos com associação com o mal.
161
No começo, a evacuação das fezes era um processo criativo que recebia aprovação;
depois, gradualmente, o princípio da adaptação a uma ordem da consciência fica integrado a
esse ato.
Assim como a hora da refeição se torna um ritual de assimilação positiva, da mesma
forma a hora de defecar transforma-se num ritual devotado à rejeição do elemento negativo,
um rito inconsciente por meio do qual o mal é removido. Entre os povos primitivos, o
excremento é expelido do corpo, banido do grupamento humano e, por razões mágicas,
higiênicas e estéticas, “jogado fora”, freqüentemente às escondidas, porque é perigoso,
desagradável, embaraçante e indigno do homem. O fenômeno básico, que é de importância
decisiva, tanto corporal, como simbolicamente, é a função de expulsão das fezes, que agora
entra em conflito com o significado matriarcal original das fezes como algo “nascido”.
A sensação de ser impuro é intensificada, no entanto, quando o cânon cultural e seu
ideal de pureza provocam um sentimento de culpa, de pecado e de impureza, de modo que o
pólo anal fica identificado com rituais mágicos obrigatórios para a eliminação do mal.
O excremento cor de terra enterrado no solo proporciona o crescimento, e de uma
matéria podre e malcheirosa surge uma vida nova, renascida; e, inversamente, alimentos de
flagrante odor viram fezes, que são devolvidas a terra e ao ciclo vital do qual o homem é parte
integrante.
Assim, em muitas culturas, a conexão entre excremento como uma parte viva,
orgânica do corpo, e a terra viva, orgânica, na qual aquele é enterrado, é uma conexão tida
como certa. Mesmo nos lugares em que não tem ou só tem pouca importância econômica
como fertilizante, o esterco é considerado uma substância mágica e significativa. Mesmo onde
é visto como algo sujo, retém um significado mágico. No nível matriarcal, pré-genital, o oral e
o anal se fundem um no outro como vida e morte; um está indissoluvelmente ligado ao outro.
162
O amor da mãe – desde que normal – não manifesta desgosto com relação ao corpo do
filho ou às suas funções corporais; a mãe aceita as necessidades naturais da criança como
auto-evidente e não intervém para regulá-las.
Não só na cultura ocidental, entretanto, mas também num grande número das assim
chamadas culturas primitivas, a aversão ao anal parece ter ocorrido muito cedo. Naquelas em
que isso ocorre, o treinamento anal da criança transformou-se num ponto crítico crucial.
Normalmente, esse treino não deveria começar senão quando a criança já estivesse
apta a exercê-lo sem dificuldade. Mas com freqüência, como resultado de atitudes culturais ou
individualmente neuróticas, o treino para o toalete começa cedo demais. Essa interferência no
crescimento e desenvolvimento da criança é inatural e pode trazer conseqüências desastrosas.
Um estágio crucial no desenvolvimento da criança começa quando uma parte do
sistema nervoso motor, que até então não tinha entrado em funcionamento, completa seu
amadurecimento e pode ser subordinado à vontade do ego. Mas esse ponto no
desenvolvimento do ego, que tem sua manifestação mais visível no sentar, no ficar de pé e,
posteriormente, no andar, tem estágios preliminares significativos, pois o sistema motor
amadurece gradualmente, e todas as suas partes não amadurecem ao mesmo tempo.
Assim, o poder de fechar o esfíncter anal resulta de um processo de crescimento que,
como agarrar, falar, morder, ficar de pé e andar, tem seu tempo natural próprio. Apesar desse
tempo de desenvolvimento estar biologicamente imerso na vida das espécies, existem
variações individuais. Uma criança fala, fica de pé e anda mais cedo do que uma outra, sem
ser nem um pouco anormal; e a higiene, da mesma forma, tamm está sujeita a variações
individuais.
163
5.3 Estruturas corporais integradas aos simbolismos corpóreos
Em se tratando do desenvolvimento normal, a boca tem representatividade
significativa na relação do bebê com o mundo; ela desempenha a função de receber alimento,
e também é o órgão dos sentidos e do conhecimento, e isso também implica uma atividade
agressiva. É por meio da boca que a criança aprende a conhecer e assimilar o mundo,
provando-o e comendo-o. Para um bebê, cujo mundo, de início, é idêntico à mãe, enquanto
seio e alimento, a boca é uma das fontes essenciais de experiência; e isso tende a ser
verdadeiro também no que se refere à criancinha que coloca todas as coisas na boca.
Assim, a conexão entre o instinto de conhecimento e a atividade agressiva da zona oral
está imersa, desde o começo, na vida da espécie humana; mas, nesse ponto, deve ser dito que
o impulso cognitivo é uma forma essencialmente humana de domínio do mundo, e que não
pode ser derivado de outros instintos.
Por essa razão, os símbolos da atividade agressiva são específicos da consciência, e,
em especial, do pensamento, para os quais a linguagem aplica uma grande quantidade de
símbolos militares. A consciência patriarcal relaciona-se, em princípio, com o setor da
realidade, e o conhecimento é sempre uma consideração que destaca, isola e delimita. Da
mesma forma, o fato de empregarmos simbolismo oral, para nos referirmos a uma forma de
assimilação do mundo típica do homem aponta para o papel desempenhado pela atividade
agressiva dos dentes.
A essa altura, é preciso distinguir entre a agressividade, especificamente humana,
reconhecida socialmente (que dificilmente merece o nome de agressividade), da agressividade
patológica que excede a agressividade normal aceita ou até mesmo encorajada pela sociedade.
164
A presença de dentes, por exemplo, traz a mastigação do alimento, que é um comportamento
humano normal, e não, estritamente falando, agressivo.
Mas o mesmo equipamento pode servir a propósitos agressivos, por exemplo, quando
um ser humano morde outro. Por outro lado, quando um animal carnívoro morde e come outra
criatura viva, isso não pode ser chamada de agressividade patológica, pois essa é a conduta
normal da espécie.
Neste sentido, o desenvolvimento normal da dentição da criança e de suas funções é
especificamente humano, e não patologicamente agressivo. Talvez devêssemos chamar esse
comportamento normal de “atividade agressiva”, a fim de distinguí-lo da atividade verdadeira,
tal como o da criança que morde a mãe.
Isso também conta a expressão na atividade de redução analítica que precede o
conhecimento, e, posteriormente, a boca assume a função antagônica e compensatória de
recepção em gestão que corresponde ao ato de adquirir conhecimento.
Os braços funcionam, para a compreensão e a apreensão do mundo, de modo distinto
da função de remodelar o mundo que a eles está conectada.
A mão é um órgão especificamente humano, em que a experiência ativa e a receptiva
de apreender o mundo encontram-se intimamente combinadas.
Boca e braços são órgãos essencialmente cognitivos, com que o pólo da cabeça
exercita o domínio do mundo; há sempre um certo grau de agressividade em sua luta pelo
domínio, mas não podemos, por isso, falar em agressividade patológica, no sentido de
sadismo. Isso porque sadismo, diferentemente da agressividade, implica necessariamente
infligir dor de forma consciente, e isso se encontra totalmente ausente na atividade agressiva
ingênua, ligada ao impulso humano ao conhecimento e ao domínio do mundo.
165
Quase que simultaneamente ao aparecimento dos dentes, a criança começa a sentar-se;
isto é a expressão do fato de que a atividade da criança, visando alcançar e dominar o mundo,
atinge um novo estágio, que abrange uma área maior do mundo. Esse desenvolvimento
específico dos homens é acompanhado de uma nova orientação quanto ao corpo e ao mundo.
Na relação primal, o mundo-corpo – que com seus impulsos, suas dores e prazeres, confronta
o ego como se fosse um “outro” – está inteiramente imerso no mundo “tu”, da mãe. A criança
não possui um corpo próprio distinto da mãe e ainda não integrou o desconforto originário de
seu próprio corpo como algo que lhe pertence. No entanto, à medida que o ego se consolida e
desenvolve sua relação com o corpo e suas funções, o corpo vem a ser experimentado como
um todo.
O corpo próprio da criança e o Self Corporal, em outras palavras, a experiência da
criança de seu corpo como um Self e como um todo, torna-se agora a base para a
independência do ego e para o seu controle para mais e mais funções corporais.
Quando a criança começa a se sentar, a ênfase desloca-se para o pólo da cabeça. Isso
corresponde ao desenvolvimento da orientação da criança no mundo por meio dos órgãos
sensoriais situados na cabeça e ao acelerado desenvolvimento do seu cérebro. Agora,
gradualmente, o pólo do ego-cabeça emancipa-se como centro da personalidade, e esse centro
dá lugar a uma nova orientação, baseada em critérios de em cima e em baixo, frente e atrás.
No curso desse processo, a psique da criança afasta-se da terra e volta-se para o céu.
Esse novo desenvolvimento, esse afastamento do pólo inferior do corpo, é acompanhado por
uma mudança no aspecto da Grande Mãe. Como Senhora das Plantas, ela tinha sido até agora
a mais alta autoridade no que diz respeito às leis do crescimento – em grande parte de forma
inconsciente e sem conflitos –, governando o desenvolvimento da criança, no qual o ego ainda
era subordinado e o Self da mãe desempenhava a liderança. Agora, como Senhora dos
166
Animais, tornou-se a deusa de uma existência mais altamente polarizada e complexa, na qual
o ego e a consciência da criança encontra-se em conflito com impulsos e tendências que são
rejeitados pelo superego, enquanto representante do cânon cultural do grupo.
No plano psíquico, a figura humana da Grande Deusa que governa os animais significa
que o Self encarnado na mãe (isto é, o Self Corporal que determina a totalidade do corpo)
ultrapassa o conflito entre as diferentes tendências no interior da personalidade e como
personificação do mundo – a mãe transcende e integra o antagonismo entre a personalidade da
criança e a comunidade.
Nos casos em que a relação primal é positiva, existe um equilíbrio positivo entre o ego
e o “tu” social; um não é reprimido às expensas do outro. Um ego com desenvolvimento
normal, não se torna um expoente do inconsciente, como extinto e expulso, contrário à
sociedade, nem se torna o expoente da sociedade, opondo-se ao inconsciente, a que reprime e
inibe.
A correlação entre a separação das partes do corpo da criança provoca os seguintes
esquemas característicos da orientação arcaica do mundo: por um lado, cabeça-ego-em-cima-
céu, e por outro lado, pólo inferior, instintos-escuridão-terra. Por essa razão, a situação
conflitante da criança corresponde, por um lado, à polarização da psique em sistema de
cabeça, vontade, consciência e, por outro lado, ao mundo conflitante do inconsciente e seus
instintos.
Em um grande número de mamíferos, a orientação pelo olfato restringe-se ao campo
social e ao mundo. Quando a criança se senta, essa orientação pelo olfato relacionada com a
terra recua e é encoberta por uma orientação visual, que se volta para o leste, para onde nasce
o sol, e liga-se ao simbolismo da luz e da consciência.
167
Isso não quer dizer que a orientação visual fique limitada ao homem; ela é bem mais
desenvolvida entre os pássaros. Nem se pode dizer que a orientação pelo olfato desaparece no
homem, mas a orientação mais alta, pela visão, nessa fase, entra em conflito com a orientação
mais baixa, pelo olfato. Aqui também ocorre a polarização, o que não acontecia nos estágios
anteriores da infância.
No caso dos odores anais, estes são rejeitados como desagradáveis, e, na verdade, tudo
o que se situa atrás e embaixo passa a ser visto como uma personificação do desagradável, do
feio, do pecaminoso e do mal. Trata-se de uma identificação para a qual poderiam ser citados
muitos exemplos da linguagem, da religião e dos costumes. Especialmente numa cultura
patriarcal, essa polarização é ilustrada pela associação entre o mau cheiro do demônio, o lixo
e o excremento, da mesma forma como os odores corporais e sexuais, que posteriormente são
rejeitados, pelo menos oficialmente, pela cultura, e que são simbolizados pela associação
entre o demônio e o bode.
Nossa arte e nossa moda mostram que, mesmo em nossa cultura, a região posterior do
corpo é considerada – pelo menos não oficialmente – uma zona de atração erótica. Como
ficamos sabendo, desde Freud (1996), nem os cheiros nem as substâncias ligadas à zona anal
são desagradáveis em qualquer sentido primário; o desagradável é cultivado, de modo
bastante consistente, por certo, pelo mundo patriarcal, que enfatiza tudo o que é “superior”,
espiritual e não-sensual, e rejeita tudo o que é “inferior”, corporal e terreno.
Assim, na primeira fase da relação primal, o pólo anal é integrado positivamente, mas
depois passa a ser objeto de uma exclusão e desvalorização moral, proveniente da hostilidade
simbólica entre o mundo do firmamento celeste e o mundo terreno.
O prazer natural dado por substâncias plásticas, que a criança experimenta primeiro
com as fezes, depois com a lama e com a argila, é um pré-requisito inconsciente
168
universalmente humano para a expressão plástica. Não é por acaso que a pintura do corpo, a
pintura mural e a cerâmica estão entre as primeiras manifestações artísticas da humanidade.
Em todas elas, o elemento anal de lambuzar e amassar, e o uso de cores excrementais
desempenham um papel decisivo.
Com a polarização das duas zonas corporais opostas, a auto-avaliação da criança
também fica polarizada. De início, o pólo inferior de seu corpo, e também o excremento, eram
“amados” pela mãe; era uma parte criativa da personalidade da criança como um todo, e a
criança estava pronta para entregar essas partes valiosas de sua totalidade-corpo, com a qual
se encontrava identificada, à sua mãe. Agora ocorre uma rejeição do pólo inferior do corpo e
de sua realização criativa. Se essa reavaliação se efetua dentro do tempo próprio da criança, se
ocorre quando a criança está assumindo a postura ereta, desenvolvendo o pólo encefálico
adquirindo domínio sobre o seu sistema nervoso motor e aprendendo a exercer sua vontade, a
conversão será livre de afetos ou distúrbios, e será adequada ao desenvolvimento social
natural da criança; como treinamento de higiene, acontecerá sob a proteção de uma relação
primal positiva.
A postura ereta e a correspondente rejeição do pólo inferior do corpo são contribuições
para a formação do superego; essa contribuição tem um colorido fortemente mágico, porque a
formação do superego situa-se no começo do desenvolvimento filogenético e ontogenético.
Uma vez que esse desenvolvimento é especificamente humano e normal, um superego que se
tenha estruturado desse jeito e que esteja ancorado na sociedade corresponderá à constituição
e desenvolvimento interno da criança.
5.4 Distúrbios na fase anal e oral na relação primal
Um distúrbio na fase anal, acompanhado pelas primeiras formações de um superego
169
negativo, leva também a uma intensificação do sentimento de culpa na criança. No entanto,
sempre que o sentimento de culpa primário põe em perigo os fundamentos da auto-estima da
criança, e mesmo de sua própria existência, o sentimento de culpa, proveniente da castração
anal, é um distúrbio que, embora afete o desenvolvimento do eixo ego-Self, não danifica sua
base, isto é, o Self. Na fase da crise anal, o ego já nasceu, já existe.
O superego normal não é fundamentalmente negativo, não faz solicitações excessivas
nem violentas ao indivíduo; nem o Self do indivíduo é narcisístico e cego para o mundo. Na
verdade, encontra-se em permanente conflito, mas esse conflito leva sempre a novos
progressos e sínteses.
Com o desenvolvimento de seu Ego, a criança entra num conflito entre dependência e
liberdade, entre heteronomia e autonomia. A consolidação do Ego torna-se um problema
social, impessoal, que deve ser solucionado entre o Ego e o Tu, o que significa,
primeiramente, mas não exclusivamente, relação entre mãe e filho. Por outro lado, porém, o
desenvolvimento do ego é, em igual medida, um processo individual, intrapessoal,
desempenhado entre o Ego e o Self (NEUMANN, 1995).
Só na primeira fase da relação primal o Tu do Self está representado pela mãe. À
medida que a criança adquire maior independência, o Self torna-se a totalidade de seu próprio
ser individual, que direciona o Ego para novos confrontos com a sociedade e com o superego,
o qual representa o cânon cultural da comunidade.
A interação entre liberdade e dependência, que desse ponto em diante determina a vida
humana, manifesta-se no crescimento de uma personalidade independente, possuidora de uma
consciência egóica dotada de livre-arbítrio, e também dependente desse ego que, por sua vez,
170
depende de um meio ambiente que assegure a personalidade, sustente a autoconsciência
automórfica e desempenhe um papel decisivo no sucesso ou fracasso desse confronto.
No entanto, sempre que o cânon cultural entra em conflito com a predisposição natural
do homem, quando unilateral e inaturalmente restringe impulsos naturais e linhas de
desenvolvimento por meio de compulsão e repressão, a conseqüência é, uma forma violenta
de superego que entra em conflito com o Self, que, sem dúvida, como centro natural da
totalidade, preside a polarização entre espírito e natureza dentro da psique, mas nunca aprova
a supressão unilateral de um pólo às expensas do outro.
É por isso que falamos de castração anal, quando a totalidade da criança, representada
pelo Self nesse caso, o Self Corporal é perturbada pela imposição da higiene anal por meio
de coerção e de desvalorização. Sempre que existe uma relação primal negativa e uma mãe
neurótica, desgostosa, puritana, que sucumbiu ao ânimo patriarcal do seu cânon cultural, e
que, por essa razão, não é capaz de conter o desenvolvimento de sua criança dentro do abrigo
de uma relação primal positiva, a conseqüência é a castração anal: a criança sente que, ao
perder seus excrementos, perde uma parte do seu próprio corpo.
Se o treinamento para o toalete começou, não no tempo próprio da criança, mas
prematuramente, numa fase em que normalmente a avaliação da criança, de sua totalidade-
corpo, é positiva, ela vivencia essa perda como um distúrbio causador de ansiedade em seu
próprio corpo-totalidade. Em função do desgosto da mãe, que pode ser neurótico ou apenas
des-sintonizado com a fase de desenvolvimento do filho, a criança fica com aversão pelo vaso
e passa a considerar o movimento regular do intestino como uma privação violenta.
Inicialmente, a criança experimenta a quentura da urina e das fezes de forma positiva,
como parte do seu corpo. Apesar de tudo, aceita o movimento regular do intestino como
perfeitamente natural, se o treinamento tiver começado na época certa do desenvolvimento;
171
recebe-o, porém, como um choque, se tiver começado cedo demais. A castração anal é mais
do que um dano à totalidade-corpo, pois a auto-avaliação negativa induzida pela mãe constela
a formação de um superego negativo. O superego torna-se o representante de uma intervenção
externa moralmente desvalorizadora, que é superimposta ao desenvolvimento natural da
criança. Conseqüentemente, esse superego negativo entra num conflito não-natural com o Self
Corporal e com o Self da Criança, instalando-se uma perigosa divisão na personalidade.
A compulsão que destrói o ritmo autônomo da criança violenta-lhe a personalidade,
causando assim uma perda de segurança e um dano ao desenvolvimento do ego. O Self, que
confere segurança, é substituído por um superego-superexigente, violentamente
superexigente, que induz não apenas incerteza, mas também culpa, porque a criança não
consegue viver à altura de suas solicitações. Tentando preencher essas solicitações
exageradas, a criança assume ativamente a compulsão, identifica-se com ela e, assim, torna-se
compulsiva.
O Ego, que depende do Self para ser guiado, exclui-se, colocando-se em oposição ao
Self, que, como Self Total e Self Corporal, abrange também o aspecto inferior
rejeitado do corpo e do mundo, e, ao introjetar a consciência grupal negativamente
avaliadora, baseia-se no superego como representante do cânon cultural.
(NEUMANN,1995, p.105)
A maneira pela qual se exclui e se coloca em oposição ao Self – e, conseqüentemente,
em oposição à sua própria natureza –, é a mesma que o grupo de analítica emprega para o
mesmo propósito – compulsão, supressão e repressão. Essa visão da personalidade dá lugar a
agressões que são projetadas no exterior, num esforço destrutivo, moralístico, para destruir o
mal nos outros ou, então quando isso não funciona a contento, leva a uma intensificação dos
sentimentos de culpa que continuam a alimentar o processo circular do tabu e da autodefesa.
A ansiedade que emerge na castração anal manifesta-se principalmente no medo de ser
infectado pelo mal e de ser incapaz de eliminá-lo de sua própria natureza. Infecção, doença,
172
demônio e morte são grupos, coerente de símbolos para o mundo inferior, anal, que ameaça e
permanentemente põe em perigo a existência superior da cabeça e do Ego. A perda do
excremento e do pólo inferior reprimido do corpo é vivenciada como ser excluído e morto; daí
o termo castração anal. Não mais, como no mundo matriarcal, se encontram morte e terra de
um lado, e vida e céu de outro, juntos numa unidade muito ordenada; em vez disso, terra-
morte-inferno e mundo inferior são hostis ao mundo superior. São poderes devoradores
desencadeando uma destruição a partir da qual não há renascimento possível.
No desenvolvimento normal, quando não houve distúrbios na relação primal, no que
se refere ao afastamento natural do pólo inferior do corpo, o pólo ego-cabeça desenvolve-se
da mesma forma, tanto no menino, como na menina, e a polarização da personalidade e do
mundo efetua-se predominantemente à base da oposição entre ativo e passivo, mais do que
entre masculino e feminino. Nessa fase, como já dissemos anteriormente, é verdade, começa a
“separação dos Pais do Mundo”, que culmina na percepção da oposição entre masculino e
feminino.
No entanto, a característica da Grande Mãe de conter os opostos expressa-se, não
somente no fato de o filho a ela conectado não se tornar sexualmente inseguro, mas também
no fato de ainda não perceber o sexo, pois o desenvolvimento comum a ambos os sexos é
ainda mais pronunciado do que o aspecto da diferença sexual.
Só depois que a ênfase sobre o aspecto anal e a crise anal concomitantemente foram
superados é que o processo de dar ênfase à parte de cima (que vai culminar, enfim, no
predomínio do ego-cabeça superior, enquanto ego “solar”) pode prosseguir sem distúrbios.
Mas essa superação é também a pré-condição para uma mudança de ênfase no interior do pólo
inferior do corpo, passando da parte de trás para a da frente, para uma diferenciação entre o
173
anal posterior e o genital anterior que, freqüentemente, é acompanhado de uma estimulação da
zona genital.
Essa mudança também se relaciona com aquisição especificamente humana da postura
ereta, pela qual a zona genital, que nos mamíferos quadrúpedes é oculta, fica exposta à vista e
também ao alcance das mãos da criança. Essa abertura da zona genital em sua conexão com a
parte anterior do corpo é algo especificamente humano, pois apenas no homem a união sexual
ocorre num confronto frente a frente, que, em contraste com o mundo animal, estende-se
desde o pólo inferior até o pólo superior do corpo, isto é, abrange todo o corpo e, com ele,
toda a personalidade.
Do ponto de vista do simbolismo corporal, frente significa dentro do campo visual do
ego-cabeça, enquanto o anal, o posterior, fica fora do campo visual e, por isso, como tudo o
que se situa atrás, faz parte do simbolismo do inconsciente.
5.5 O princípio masculino positivo na construção da relação mãe e filho para
aquisição de autonomia
Enquanto na criança não se constela a estrutura da antítese entre masculino e feminino,
consciente e inconsciente, ela aprende a diferenciar os opostos com base na estrutura macho-
fêmea da mãe. Em outras palavras, a criança, na participação da relação primal, desenvolve
seus próprios modos de reação ativos e passivos, masculinos e femininos conforme os
existentes na mãe. Antes de se confrontar com o princípio masculino como “pai”, ela
experimenta o princípio masculino como um aspecto inconsciente da mãe.
Enquanto mãe e filho mantêm uma identidade indiferenciada, a relação primal
funciona para a criança como possibilidade de relacionamento com seu próprio corpo, com
174
seu Self, com o Tu e com o mundo, ao mesmo tempo. Essa relação é de base ontogenética da
“experiência de estar no próprio corpo, estar com um Self, estar unido, estar no mundo”
(NEUMANN, 1995, p. 25).
Em nossa cultura, o desenvolvimento necessário, por meio do qual a criança emerge
da relação primal para alcançar maior independência, corresponde a uma transição do
matriarcado psicológico, no qual o arquétipo da mãe é dominante, para o patriarcado
psicológico, no qual domina o arquétipo do pai.
Esse desenvolvimento pode ser descrito como um todo, porque a progressão do
matriarcado da relação primal para o patriarcado aplica-se, tanto para os meninos, como para
as meninas.
Perturbando e acordando a criança, a fome é o seu primeiro estímulo para a
consciência. O despertar e a consciência são as primeiras experiências de polaridade às quais
a criança é exposta; conseqüentemente, ficam associadas ao desconforto. Enquanto no período
embrionário intra-uterino o ser alimentado, o dormir, o ter abrigo na escuridão do
inconsciente eram sensações idênticas, as mudanças ocorridas com a entrada da criança no
mundo, e até mesmo no campo unitário da relação primal, fazem o princípio da oposição
começar a exercer sua influência diferenciadora. Inicialmente, a inevitável coincidência de,
despertar com a consciência de fome-desconforto é modificada pela mãe. É ela também quem
por primeiro possibilita que o filho faça a associação, tão característica do homem, entre
prazer e consciência, pois é através dela que a experiência do despertar, da luz e da
consciência liga-se com a saciedade, com o prazer, o calor e a segurança, que em muito
suplanta a do desconforto do acordar e da fome.
O senso de segurança e proteção na escuridão do inconsciente é uma experiência
primária pré-humana. Segundo Neumann (1995), quando uma criança cai de novo no sono,
175
está retornando ao estado primário de estar contido na escuridão urubórica. Em outras
palavras, o problema não é o de que uma criança deveria dormir sem ansiedade, mas sim de
que deveria ser capaz de despertar sem ansiedade. Por ser a mãe-lunar da relação primal o
veículo da consciência, da luz em meio às trevas e também, a que traz saciedade e segurança,
um distúrbio precoce da relação primal provoca um distúrbio no desenvolvimento da
consciência. Isso porque, num desenvolvimento normal, a consciência dá à criança uma
vivência de plenitude.
Por essa razão, a mãe boa da relação primal é também a guardiã da consciência e de
seu desenvolvimento, é Sofia, e a “mãe ruim” é sempre hostil ao desenvolvimento da
consciência, pois lhe interessa intensificar a tendência de permanecer ou de voltar à escuridão
do inconsciente. Por essa razão, inversamente, o medo à mãe terrível usualmente tende a
fortalecer a consciência, e, freqüentemente, desempenha um papel positivo no
desenvolvimento da consciência, durante a primeira metade da vida.
Assim, sob a supervisão da mãe na relação primal, a criança entra gradualmente no
mundo humano do dia e da noite e na correlação rítmica de, por um lado, despertar,
consciência e dia, e, por outro lado, inconsciente, escuridão e noite.
Daí por diante, a ordem do mundo determinada pelo curso do sol passa a ordenar a
existência humana. Mas em circunstâncias normais esse mundo permanece também, de início,
dentro da ordem matriarcal, e não há nenhuma coerção violenta ao ritmo do corpo do bebê,
nem à mãe, que se encontra unida à criança numa unidade cósmica. Neste sentido, também, a
mãe boa da relação primal é a Senhora das Plantas; como citado anteriormente, está
sintonizada com o crescimento natural do filho e com os “tempos” do mesmo, que, à
semelhança das marés, são determinados por um ritmo lunar inconsciente.
176
O ritual e o ritmo da vida, que enfatizam, preservam e trazem à consciência as divisões
naturais de dia-e-noite determinadas pelo Self corporal da criança, são governados pelo
vínculo de Eros, pelo vínculo da mãe com o filho.
O comportamento ritual natural do filho – e da mãe – em relação ao alimento e à
satisfação de necessidades, aos jogos e à troca de carinhos, ao dormir e, mais tarde, ao início
do processo de aprendizado, é sempre colorido pelo caráter de Eros da relação primal. Está
sujeito a um princípio ordenador matriarcal que contrasta com a racionalidade do princípio de
Logos. É dominado pelos símbolos e por, uma repetição rítmica intimamente relacionada com
o ritmo corporal – os movimentos corporais rítmicos da criança (sugar e bater com os pés,
emitir ruídos de satisfação e resmungar) e da mãe (cantarolar e embalar, ninar e acariciar).
Sempre que o amor da mãe levar o filho à confiança, esse mesmo filho irá, de modo fácil e
imperceptível, integrando-se à ordem racional cotidiana do grupo.
No final do século XIX, segundo Medina (2002), havia uma atitude frouxa em relação ao
corpo da criança. Era comum que as crianças fossem mantidas em berços, enroladas em cueiros,
tivessem amas para amamentar, enfim, eram mantidas isoladas do convívio social e familiar,
como se fossem serem insignificantes, sem importância, sendo apenas significativas no reduto
familiar à medida que fossem adquirindo mais autonomia, principalmente locomoção.
No início do século XX, essas situações se acentuaram ainda mais. Por volta da década de
1930, quando as condições sanitárias eram melhores, as condições psíquicas eram piores. A
amamentação no peito quase desapareceu. Alimentavam-se os bebês com base no relógio. Móveis
modernos e dispositivos elétricos limitavam a exploração e a liberdade de movimentos do bebê
pela casa. Com isso, tiveram aumento as doenças psicossomáticas nos adultos.
Gradualmente, a preocupação com o controle e o domínio sobre o corpo da criança
cedeu lugar para atitudes voltadas para os sentidos de cordialidade e da aproximação entre
177
pais e filhos, voltando-se a acreditar na importância de mente e corpo ligados, para o
desenvolvimento saudável.
Sendo assim, amadurecimento motor significa que partes importantes do corpo passam
a conectar-se ao ego e a ficar, gradualmente subordinadas a ele. Mas, do ponto de vista da
imagem corporal, esse ego que comanda e age é um ego-cabeça, pois no homem a cabeça é
em alto grau o veículo de orientação sensorial no mundo. O tamanho extraordinário da cabeça
em comparação com o resto do corpo, durante a infância, corresponde ao papel do ego ativo,
que alcança e, posteriormente, penetra no mundo, e a cabeça é vivenciada como o símbolo
central de atividade do ego humano, como os cefalópodes, nos desenhos de crianças, deixam
claro.
Enfim, para que todo processo de formação do ego da criança se estabeleça de maneira
integrada e harmônica, a relação Self corporal, que é o princípio da relação do indivíduo no
mundo, com o Self materno baseia-se, consideravelmente, em todas as experiências tácteis e
não verbais dessa relação.
A necessidade de estimulação periférica da pele e de contato se mantém pela vida
toda, mas parece ser mais intensa e crucial na fase da ligação afetiva reflexa [...]
Certamente, a criança muito pequena necessita de um período ótimo de gratificação
de suas necessidades sensuais, que são tanto orais quanto táteis. É por isso que os
anos pré-verbais são considerados um período crítico para a aprendizagem tátil.
Desse período em diante, declinam as necessidades de contato tátil, mas a
estimulação tátil precisa ser ainda graduada segundo a idade, para se gratificar
adequadamente as necessidades evolutivas do organismo humano. (MONTAGU,
1988, p.234).
Portanto, torna-se imprescindível a aceitação incondicional dessa proximidade
corpórea entre mãe e filho, para surgimento de um indivíduo fortalecido capaz de construir
um mundo transformador e criativo, segundo os princípios da constelação da Grande Mãe,
acolhedora e protetora.
178
6 OBJETIVOS
6.1 Objetivo geral
Compreender a importância do toque na relação mãe-filho, em casos de queixas de
negligência e de maus-tratos.
6.2 Objetivos específicos
- Verificar se existe um padrão comum de expressão e de gestos, nas mães, em
relação a seus filhos, na aplicação da massagem Shantala, sem se submeterem a
Calatonia;
- Verificar se, após a Calatonia, as mães passaram a ter reconhecimento e consciência
das sensações de seus corpos;
- Investigar se após a Calatonia, as mães modificaram a aplicação da massagem
Shantala em seus filhos, e se houve mudança no comportamento das crianças;
- Verificar se, após a vivência da Calatonia, houve modificação das expressões e
gestos das mães em relação a seus filhos.
179
7 MÉTODO
A pesquisa qualitativa é um processo permanente de produção de conhecimento,
em que os resultados são momentos parciais que se integram constantemente
com novas perguntas e abrem novos caminhos à produção do conhecimento
(REY, 2002).
Baseei minha pesquisa no modelo de pesquisa qualitativa uma vez que as relações
entre eu e os participantes foram fundamentais para o desempenho do trabalho, já que
segundo este modelo de pesquisa é fundamental a interação do pesquisador com os
participantes, sendo estes os principais protagonistas da pesquisa, e os instrumentos ocupam o
lugar de coadjuvantes. No caso do participante desta pesquisa, seu papel foi essencial, não
por representar uma entidade objetiva, homogeneizada pelo tipo de resposta que deu, mas pela
sua singularidade como responsável pela qualidade de sua expressão, relacionada com a
qualidade de interação comigo, enquanto pesquisador.
Em todo processo de interação com o participante mantivemos um diálogo progressivo
e organicamente constituído, como uma das fontes principais de produção de informação. Nos
diálogos procuramos criar um clima de segurança, interesse e confiança, que favoreceram
níveis de conceituação da experiência do participante de maneira espontânea sob sua vida
cotidiana.
Os instrumentos da pesquisa adquiriram um sentido interativo. Minha participação foi
ativa no curso da pesquisa, com o participante, sendo que suas respostas basearam-se em
verdadeiras construções implicadas nos diálogos que mantivemos.
180
Com base nesta modalidade de pesquisa o método utilizado foi o estudo de caso, pois
permitiu uma investigação do “como” e “porque” sobre os fenômenos inseridos no contexto
da vida real, baseando-se então numa investigação empírica explorativa, descritiva e
explanatória.
A preparação para realizar o estudo de caso, envolveu habilidades prévias, treinamento
e preparação de estudo de caso específico. Desenvolvi um protocolo (um instrumento, que
contém os procedimentos e as regras gerais a serem seguidas ao se utilizar um instrumento),
que no caso de minha pesquisa foi a organização das sessões, para aplicar as técnicas
corporais – Calatonia e Shantala, de maneira adequada. Elaborando estes critérios conduzi um
estudo de caso piloto. Estes procedimentos fizeram parte das instruções propostas por Yin
(2002), sobre estudo de caso. Segundo este autor o estudo de caso é “uma investigação
empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real,
especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente
definidos” (YIN, 2002, p.32).
A estrutura da constituição de caso foi analítica, onde a seqüência dos sub-tópicos
incluiu o tema ou problema que me propus estudar e também com uma estrutura na
construção da teoria, em que a seqüência dos capítulos segue uma lógica na construção da
mesma.
A fonte utilizada na coleta de dados do estudo de casos, foi a observação participante.
Enquanto pesquisador, não fui um mero observador passivo; procurei perceber e entender
segundo a realidade dos participantes os pontos de vista apresentados, segundo Yin (2002)
dá a oportunidade de perceber a realidade do ponto de vista de alguém (dentro) de um
estudo de caso e não de um ponto externo” ( p. 98).
181
Sendo assim o trabalho implicou numa relação intrínseca do pesquisador com os
participantes, baseado no uso das técnicas corporais Calatonia e Shantala, e a fonte de
investigação foi dentro do método hermenêutico, pois a análise implicou em interpretar as
expressões corpóreas apresentadas na comunicação humana não verbal entre mãe e filho, em
toda sua complexidade e simplicidade, bem como a análise das entrevistas (DEMO, 1992).
7.1 Instrumentos
1. Entrevista semi-estruturada, tal escolha se deu pela flexibilidade que esta
entrevista propõe, pois permite uma aproximação entre o pesquisador e o pesquisado, bem
como a elaboração de perguntas abertas que favoreçam uma análise de conteúdo no sentido de
se obter uma compreensão sobre os aspectos a serem investigados (Apêndice 1).
2. 1
a
sessão de Shantala, como ferramenta interativa, e também como dados colhidos
das reações e expressões observáveis tanto da mãe quanto da criança durante o trabalho
corporal, sem a mãe ter experienciado as sessões de Calatonia, em si mesma, pelo
pesquisador.
3. Quatro sessões de Calatonia em cada uma das mães, como instrumento de
intervenção para possibilitar-lhes sensações de relaxamento e de percepção do corpo pelo
toque.
4. 2
a
Sessão de Shantala: dados colhidos das reações e expressões observáveis na
relação mãe e filho após a mãe ter se submetido as sessões de Calatonia com o pesquisador;
Embora Leboyer recomende que a Shantala seja aplicada até a idade em que a criança
se encontre numa atitude passivo-receptiva, em nossa pesquisa utilizamos essa técnica em
182
crianças até cinco anos, e notamos que as crianças reagiram de maneira cooperativa e
receptiva.
Os resumos das técnicas encontram-se em anexo (anexo 6)
5. Registro áudio-visual das sessões, com o objetivo de compreender as expressões e
reações diante da experiência dos participantes, na 1
a
e 2
a
sessão de Shantala.
7.2 Participantes
Os participantes foram escolhidos, inicialmente, pelo Setor do Serviço Social do
Fórum, autorizado pelo Juiz da Vara da Criança e do Adolescente sendo a escolha das mães a
critério do referido setor.
O grupo foi montado por famílias no modelo monoparental ou uniparental, por
sugestão do setor de Serviço Social do Fórum, em que apenas um dos pais é o responsável
pelo sustento e guarda dos filhos, pois no setor este é o padrão de estrutura familiar mais
freqüente. E em sua maioria, segundo as assistentes sociais, são as mães que estão com a
guarda, neste caso por ser as mães que ficaram com a guarda de seus filhos menores, segundo
o modelo de família sistêmica foram chamadas de famílias matrilineares.
Foram atendidas quatro mães, com idade entre 18 e 44 anos e apresentaram como
queixa dificuldades de relação com os filhos, entre a faixa de 2 meses a 5 anos. No caso das
mães com mais de um filho dentro desta faixa etária, todos participaram da pesquisa.
Diante das dificuldades enfrentadas para montarmos o grupo de participantes, que
detalharemos logo abaixo no procedimento, o grupo de participantes foi composto de: um
mãe com três filhas, menores de cinco anos (4 anos, 2 anos, 4 meses), encaminhada pelo
Fórum, duas mães com um filho cada uma, menores de cinco anos ( um menino de 3 anos e
183
outro de 5 anos) encaminhadas pelo Conselho Tutelar e uma mãe com uma filha de 4 anos
encaminhada pela Clínica de Psicologia da UNITAU.
Cabe ressaltar que esta faixa etária é o período de maior dependência da criança dos
laços maternos para construção de sua autonomia e personalidade sendo que os padrões de
vínculos afetivos certamente influenciarão todo o processo de desenvolvimento destas
crianças, e efetivamente a construção dessa autonomia e deste vínculo está interligada a toda
forma, gesto e expressão na relação das mães com as crianças.
7.3 Procedimento
A idéia inicial de escolher os participantes do Fórum partiu da preocupação que me
despertou, frente as observações dos psicólogos da Clínica de Psicologia da UNITAU, em
nossas reuniões semanais, sobre a freqüência na triagem de crianças e mães encaminhadas
para atendimento vindas com carta ou do Fórum ou do Conselho Tutelar.
Como sou a atual chefe da Clínica este dado chamou-me a atenção uma vez que por
longo tempo a maior incidência de queixas na Clínica eram por problemas escolares, e as
crianças vinham encaminhadas das escolas. Agora, dentro de uma nova realidade social,
estávamos recebendo de outras fontes de encaminhamento crianças e mães com queixas
envolvendo problemas nas relações familiares, tais como: violência doméstica, abuso sexual e
molestação física por um dos pais, incidência de alcoolismo provocando muitas brigas
familiares, aspectos caracterizando negligência e maus-tratos.
Baseada nesta informação, e o interesse em minha pesquisa de trabalhar a relação mãe
e filho utilizando o trabalho corporal, agendei uma entrevista com as assistentes sociais do
Fórum de Taubaté, para levar a proposta da pesquisa. Neste encontro, que participei com
cinco assistentes sociais , trocamos muitas informações e como várias queixas surgiram sobre
184
os problemas familiares trazidos pelas assistentes sociais, propus fazer um levantamento de
abril de 2004 à abril de 2005, sobre qual maior incidência de ocorrência havia nos registros
deste setor, para então definir-se sobre quais queixas estaríamos trabalhando e como minha
pesquisa poderia contribuir.
Foi aceito prontamente, muito embora já neste encontro tenha delimitado alguns
critérios necessários para a participação das mães, que foram:
1. Não serem portadoras de doenças mentais graves que interceptem a capacidade de
organização das suas funções cognitivas, comprometendo sua capacidade de
elaboração;
2. As crianças não estarem em abrigo temporário ou lares substitutos;
3. As mães terem a guarda dos filhos.
4. As mães participarem espontaneamente do trabalho, sem qualquer coação ou
intimidação.
Com o resultado do levantamento que apresentamos no capítulo três desta pesquisa,
verificamos que a maior incidência de queixa foi negligência e maus-tratos entre a faixa etária
de 1 a 3 anos, em crianças de ambos os sexos e que a constituição familiar era monoparental,
no modelo matrilinear. Levamos ao conhecimento do setor do serviço social do Fórum o
resultado solicitando então que escolhessem as participantes. Após um mês de espera, uma
assistente social, ligou-me informando que havia feito uma lista das mães para a pesquisa e
pediu-me que fosse buscá-la.
Nesta lista constavam nome de cinco mães, com seus respectivos endereços. Por
tratar-se de uma pesquisa, achei melhor ir pessoalmente às residências das mães para
185
conversar e como a maioria não tinha telefone para agendar previamente, fui as residências
sem previamente marcar com as mães.
Num total fiz quatro visitas, pois uma mãe havia mudado de cidade. Destas visitas
apenas uma mãe concordou em participar, com muita desconfiança. Das outras três, uma se
recusou a participar e sequer abriu a porta, outra havia perdido a guarda recentemente do filho
e não se encontrava mais morando naquele local. Segundo os vizinhos a mãe era usuária de
droga e no dia anterior a polícia deu batida na casa e ela foi recolhida para a delegacia. A
outra mãe tinha um parente que trabalhava na Clínica da UNITAU, e por causa desta
proximidade entendi ser melhor não atendê-la, mas encaminhei-a para outro colega e ela
aceitou.
Com estas dificuldades enfrentadas para montar o grupo, avisamos o setor do serviço
social e as assistentes sociais sugeriram então, que se contatasse o Conselho Tutelar, para
montar o grupo de pesquisa. Assim o fiz, porém como a equipe de conselheiros estava em
final de mandado no mês de novembro de 2005, solicitaram que aguardasse a posse dos novos
conselheiros e aguardei quase dois meses para que encaminhassem os casos. Devido a grande
demanda de queixas que chegava ao Conselho o mesmo enviou-nos vários casos que não
correspondiam aos critérios de nossa pesquisa, tais como: encaminharam crianças de 12 anos,
mães com problemas mentais, crianças que se encontravam no abrigo provisório, solicitação
de avaliações psicológicas, enfim surgiu uma demanda que na verdade era mais para a Clínica
de Psicologia do que para a minha pesquisa, num total de 10 encaminhamentos. Fiz a triagem
em todos e apenas dois se adequaram à minha pesquisa, os demais foram encaminhados para
os procedimentos de atendimento da Clínica Psicológica da UNITAU.
Na Clínica da UNITAU surgiu em uma triagem dos psicólogos um caso, em que a
mãe foi procurar atendimento, porque a filha estava apresentando muitos comportamentos que
186
ela não aprovava como birra, agressividade, teimosia e que isso começou a acontecer desde
que a mãe se separou do pai da criança. Por conta disso a mãe estava batendo muito na filha e
não sabia mais o que fazer com a filha de apenas quatro anos e foi a Clínica procurar
tratamento para a menina. Com esta queixa a psicóloga me perguntou se o caso caberia em
minha pesquisa, pois demonstrou muita preocupação com o que a mãe relatou e acabei
incluindo também este caso.
Sendo assim montei um grupo com quatro mães, com seus respectivos filhos , ficando
então:
CASO 1: mãe com três filhas menores de 5 anos, encaminhada do Fórum
CASO 2: mãe com uma filha de 4 anos, encaminhada pela Clínica da UNITAU
CASO 3: mãe com um filho de 3 anos, encaminhada pelo Conselho Tutelar
CASO 4: mãe com um filho de 5 anos, encaminhada pelo Conselho Tutelar
Com todas as mães apresentamos o termo de consentimento livre e esclarecimento,
para permitirem que as sessões fossem gravadas e filmadas e todas autorizaram por escrito.
O número de sessões variou entre de 6 a 10 sessões em cada caso, isto por conta das
variáveis que surgiram em cada caso.
No CASO 1 por conta das dificuldades enfrentadas pela mãe com seu companheiro e
com a família do mesmo, aliada a sua desconfiança sobre a pesquisa, achei que não
compareceria ao primeiro encontro conforme havíamos combinado na visita que fiz em sua
residência pela primeira vez. No entanto, compareceu conforme o combinado, muito embora
dentro da sessão demonstrou desconforto e desconfiança repetindo, insistentemente, se não
iríamos retirar seus filhos, pois o seu companheiro achava que era para isso que ela foi
chamada. Esclareci novamente o objetivo da pesquisa, e aparentemente, demonstrou mais
187
tranqüilidade. Compareceu em seis sessões sem interromper. Quando faltou, fiquei
preocupada, mas aguardei o outro dia que teríamos sessão, conforme havíamos combinado,
como também não compareceu e não avisou, pois costumava avisar, quando ocorria algum
imprevisto, resolvi visitá-la, para saber o que estava acontecendo.
Contou que o marido disse-lhe para não ir mais, porque o que “nós” queríamos era
“fuçar” na vida dela e das crianças e era melhor ela se afastar “dessa gente”, conversei
longamente sobre a proposta do nosso trabalho, e embora alegasse ter entendido questionou,
novamente, se eu não estava ali para contar as coisas para a assistente social do Fórum.
Disse-lhe que não, e que também que não precisava sentir forçada para ir à Clínica e se
quisesse retomar nosso trabalho, eu estaria esperando no horário que havíamos combinado.
No dia marcado ligou que dois filhos estavam doentes e que os levaria ao postinho, naquele
dia, e se poderia comparecer em outro dia, acertamos o horário e assim ocorreu.
Porém no dia que iríamos fazer a segunda sessão de Shantala com a filha de 4 anos,
chegou muito agitada, tensa, relatou que o companheiro estava muito agressivo e que não
viria mais, não conseguindo fazer a massagem na filha e dar prosseguimento à proposta.
Neste caso ocorreram três sessões de Shantala com as filhas, quatro sessões de
Calatonia com a mãe, e quando fomos retomar 2
a
sessão de Shantala com as filhas, chegou até
trazer a menina de 4 anos. No início da sessão a mãe aceitou brincar comigo e com sua filha
de bola, a criança demonstrou estar satisfeita, sorria bastante e quando solicitei que
iniciássemos a massagem a criança sozinha retirou seu vestido pôs-se deitada no colchão
esperando que a mãe começasse a massagem, mas a mãe começou a queixar-se da
agressividade do companheiro. Por longo tempo a mãe sentada no colchão, falou do que
estava passando e a criança ficou deitada no colchão quieta, sem queixar de nada até que se
aproximou de mim procurando atrair minha atenção. Perguntei à mãe se teria condições de
188
fazer a massagem na filha, ela disse que não, a criança olhou para a mãe, parecia espantada,
pegou seu vestido deu para a mãe, a mãe vestiu-a e ajudei ajeitá-la, pois a roupa estava em
desalinho e a mãe verbalizou que não viria mais, pois tinha outras coisas para resolver. Não
quis dizer o que era, e disse-lhe que não era obrigada a participar da pesquisa, e como ela
queria interromper não haveria problema. Disse-lhe que se eu pudesse ajudá-la era só me
procurar na Clínica. Desde então não nos falamos mais. Neste caso o trabalho com esta mãe
foi encerrado em 8 sessões.
No CASO 2, CASO 3 e CASO 4 ocorreram 8 sessões, para cada um dos casos, sendo:
uma entrevista inicial, duas de Shantala, quatro de calatonia, e uma devolutiva. Foram
realizadas 24 sessões com estes casos, mais sete sessões do primeiro caso perfazendo um
total de 31 sessões. O número de sessões, por semana, variou de uma a três , em dias
alternados, da seguinte maneira:
1. Entrevistas inicial, individual com as mães, sem a presença da criança,
apresentação do projeto de pesquisa e o termo de consentimento.
2. Atendimento com cada mãe e seu filho em sessão de no máximo 1:50 hs, com
atividades lúdicas livres, utilizando o armário de brinquedos disponível na sala,
para descontrair as crianças e observar, como que ambos, mãe e filho interagiam
brincando, para então a mãe aplicar massagem Shantala, em seu filho;
3. Atendimento individual, de 50’ com cada mãe, em que apliquei a técnica da
Calatonia, nas mães, em quatro sessões, cada uma, sem a presença da criança.
4. Repetimos a sessão de Shantala, usando o mesmo procedimento antes da aplicação
da massagem, que era brincar com a criança para descontraí-la, utilizando o
mesmo tempo da primeira sessão que foi de 1:50 hs.
189
5. Devolutiva e encerramento de 50’, em que propuzemos caso houvesse interesse de
continuarmos o trabalho, não mais como pesquisa e sim atendimento psicoterápico.
Todas as mães aceitaram, exceto a do CASO 1, que desistiu.
7.4 Descrição do Procedimento
As quatro entrevistas foram semi-estruturadas, de 50’, com cada uma das mães,
para colhermos informações a respeito do relacionamento entre elas e seus filhos. Foi
feito um breve histórico sobre condições de gestação, desenvolvimento das crianças e
situações de conflito. Foram também orientadas sobre a natureza da pesquisa, assim
como esclarecimentos sobre o termo de consentimento para utilização de filmagem e
gravação durante as sessões de atendimento.
Nas sessões de Shantala com os filhos, procuramos promover condições de que
ambos se sentissem à vontade e descontraídos, procurando tranqüilizar a criança para
entrar na sala e também deixar a mãe descontraída, pois sabíamos das condições
psíquicas que as mesmas se encontravam. A utilização da filmadora, embora com o
consentimento de todas, sabíamos que poderia se um fator de inibição e
constrangimento na sessão e procuramos facilitar o entrosamento entre a mãe e a
criança na sala, abrindo o armário e sugerindo que a criança e sua mãe brincassem não
dando direção ou conduzindo a hora lúdica. Apenas controlei o tempo para a mãe
fazer a massagem em seu filho, para não fazê-la com agitação e com pressa. Havia
uma certa apreensão nas mães quanto aplicar a técnica, por desconhecê-la e confesso
que também fiquei apreensiva. Entretanto fui observando que mesmo as mães não
conhecendo a técnica pareciam envolvidas com o trabalho e conseguiram executá-la
até o final sem demonstrar constrangimento.
190
Quando observei este fato, percebi que o importante era tocar e ser tocado, e o que
isso significaria para as mães e crianças e que a técnica da massagem era apenas
circunstancial, pois a medida que houvesse treino era passível de aprendizagem, mas o
tocar não, o tocar representaria algo muito maior, simbolizaria os sentimentos, a
relação, o cuidado era isso que se fazia importante para mim, não só pela pesquisa mas
muito mais pela queixa que as mães trouxeram, e eu queria tentar minimizar seus
sofrimentos, tanto das mães quantos dos filhos, e achava que este trabalho poderia
contribuir.
Nas sessões com cada uma das mães de Calatonia pudemos perceber como se
sentiram aliviadas, tendo a sensação de proteção. Relataram tranqüilidade, sono,
sensação de gostoso, bem estar, poder ficar em paz. Em cada sessão fui percebendo
maior descontração das mães e uma expressão de gratificação por poderem sentir-se
mais calmas. Interpretei esta conduta, não só pelos benefícios que eu sabia que a
Calatonia proporciona, mas também pelo interesse, despojamento com que as mães se
entregaram ao relaxamento. Era como se estivessem procurando um lugar ou talvez
alguém que lhes desse escuta e não as criticasse, e me senti muito gratificada por estar
compartilhando com elas daquele momento. Esta técnica foi escolhida,
fundamentalmente, por ser uma técnica de toque o que significa a possibilidade de
despertar na mãe sensações e percepções manifestadas em seu corpo, e com isso
promover possibilidade de um bem estar psicofísico já que esta técnica atua
diretamente nas vias sensitivas-sensoriais.
Segui os critérios de aplicação conforme aprendi com o professor Sandor, que também
ensinou que as técnicas corporais estão para servir ao bem estar do cliente e não uma
aplicação rígida e tecnicista, em que o instrumento prevalece sobre o cliente não
191
contribuindo para consciência de si mesmo, impedindo assim seu processo de
elaboração para o caminho da individuação, isto é consciência da sua totalidade
enquanto in-divíduo e o Self (SANDOR, 1974).
Na segunda sessão de Shantala já percebi algumas mudanças de atitudes das mães
em relação a conduta com os filhos, e um diálogo mais equilibrado, e menos ansioso
fazia parte das verbalizações das mães quando precisavam delimitar algo para os
filhos, além do que a execução da massagem, mesmo não dominando a técnica,
fizeram-na muito mais tranqüila e percebi suas mãos com mais suavidade deslizando
pelo corpo de seus filhos.
7.5 Ambiente
O local de atendimento foi nas dependências da Clínica Psicológica da Universidade
de Taubaté, uma vez que a mesma preenche todos os requisitos de adequação a um
atendimento psicológico, principalmente no que diz respeito ao sigilo, espaço físico e recursos
materiais que minha pesquisa necessitava.
O horário dos atendimentos respeitaram os critérios da Clínica e foi de comum acordo
entre eu e as participantes.
7.6 Procedimento de análise de dados
Como em minha pesquisa o objetivo foi compreender a relação entre mãe e filho, e a
importância do toque nesta relação, utilizei as técnicas da Calatonia e Shantala como
instrumentos para atingir este objetivo. Para análise do estudo de caso estabeleci dois
critérios:
192
O primeiro critério foi para a análise de conteúdo das entrevistas, entender os aspectos
psicológicos que sugerem gerar os conflitos nas relações entre as mães e as crianças e
verificar se existe um padrão de comportamento apresentado pelo grupo pesquisado. Utilizei a
estratégica das explanações concorrentes como padrão, isto é, nessa situação pode ocorrer que
vários casos possuem certo tipo de resultado, e a investigação pode enfatizar como e porque
esse resultado ocorreu em cada caso.
Explicar um fenômeno significa estipular um conjunto de elos causais em relação à
ele. Esses elos são similares às variáveis independentes no uso previamente descrito de
explanações concorrentes. Em grande parte dos estudos de casos existentes, a elaboração da
explanação ocorre sobre a forma de narrativa, e assim transcrevemos literalmente as
entrevistas para entendermos os fenômenos psíquicos que se manifestam na relação das mães
e crianças investigadas.
Um segundo critério escolhido, foi construir algumas categorias que favorecesse uma
descrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto pelos gestos e expressões
corporais do grupo (BERELSON apud RICHARDSON, 1999, p.223).
A análise de conteúdo é, particularmente, utilizada para estuda material do tipo
qualitativo (aos quais não se podem aplicar técnicas aritméticas). Portanto, deve-se
fazer uma primeira leitura para se organizar as idéias incluídas para, posteriormente,
analisar os elementos e as regras que a determinam (RICHARDSON, 1999, p.199-
225).
Dentre as diversas técnicas de análise de conteúdo utilizamos a análise de categorias,
procurando decodificar os comportamentos manifestados na aplicação da Shantala pelas mães
sem que as mesmas tivessem passado pela Calatonia, aplicada por mim, e depois que as mães
foram submetidas as sessões de Calatonia aplicar novamente a Shantala em seus filhos para
verificarmos se as manifestações corporais, isto é, símbolismo expressos nos gestos e toques
apresentados pelas mães na relação com os filhos. Procurei isolar algumas expressões para
193
então identificar se há ou não um padrão de comportamento nas mães e crianças com a
aplicação das técnicas da Calatonia e da Shantala.
Entretanto, construir uma tabela com itens que eu julgasse importante correria o risco
de fragilizar o instrumento de análise, pois correria o risco de criar categorias tendenciosas a
atingir meu objetivo e com isso distanciar-me dos fenômenos que de fato estariam ocorrendo
entre as relações das mães com as crianças.
Sendo assim recorri a um instrumento elaborado por Pasquali (1999) denominado
análise de juizes, que significa elaborar as categorias que fossem por mim consideradas
importantes e submetê-las a análise de quatro juízes, no caso doutores em psicologia com
conhecimento na área de desenvolvimento e técnicas corporais, para que marcassem na tabela
das categorias as sub-categorias que entendessem que se relacionavam. Os peritos também
poderiam acrescentar nas categorias estabelecidas, conforme propõe Pasquali (1999), outras
que considerassem necessárias assim como também retirar. A elaboração final da tabela de
categorias e subcategorias se estabelece quando elas atingem uma concordância entre os
juízes e com a minha referência uma concordância de 80% dos itens estabelecidos. A
montagem da primeira tabela, que foi encaminhada aos juízes se compôs com as seguintes
categorias e sub-categorias:
1. Uma tabela de categorias para analisarmos o comportamento das mães nas sessões
de Shantala.
2. Uma tabela de categorias para observar as crianças nas sessões de Shantala, sendo
então encaminhada aos profissionais especialistas para julgamento.
As definições seguintes são resultado do trabalho dos juízes e do pesquisador, para
análise do comportamento tanto das mães quanto das crianças durante as sessões de Shantala.
194
7.6.1 Definição das categorias utilizadas nas tabelas
Olhar: Fitar com os olhos, observar, notar, mirar
Posição da mãe: Lugar onde uma pessoa está colocada, postura do corpo
Pressão do toque: Ato ou efeito de premer, calcar, estreitar, oprimir
Expressão facial da mãe: ato de exprimir, declarar, traduzir, expor
Reação da mãe frente a resistência da criança ao toque: Ato ou feito de reagir. Ação
oposta a outra. Fenômeno resultante de reação de dois ou mais corpos
Envolvimento da mãe com a criança: Revestir, enrolar, cobrir, cercar
Reação da mãe frente às respostas fisiológicas da criança: fenômeno resultante da ação de
certos corpos
Mudança de posição da criança segundo a técnica: Ato ou efeito de mudar. Transferir de
um lugar para outro.
7.6.2 Definição das subcategorias dos comportamentos das mães
Acolhimento: refúgio, abrigo, proteção
Agitada: inquieta; impaciente; excitada
Ansiosa: um estado confuso que se mistura, em condições alternáveis de incerteza, excitação
e medo.
Atenção à resposta do filho: preocupação com o bem estar ou mal estar do filho, procurando
atendê-lo, acalmá-lo.
Atenciosa: presta atenção, polido, cortês
Atender: deferir, estar atento, esperar, aguardar
Balbuciar: falar com hesitação
195
Censura: instância psíquica que refreia os impulsos (motivos) proibidos, ou os que não
podem ser satisfeitos ou modifica-os antes de sua satisfação total ou parcial, ao ponto de não
mais serem eles reconhecidos como os mesmos motivos que não mais podem ser efetivamente
satisfeitos.
Confirmar: expressar satisfação; gostar
Desanimada: desinteressada, apática
Desatenta: pouco envolvida
Desconforto: desordem; desajeito
Desleixada: descuidada
Distraída: descuidado, desatencioso
Escutar: dar atenção, ouvir, dar atenção
Estranhar: que não se conhece, surpreendente
Ignorar: não saber, desconhecer
Interessada: participativa, cooperativa
Levantar: impede a continuidade; resistência
Mudança de posição das costas: modificando a posição das costas ou para frente ou para
trás
Mudança de posição das mãos: movimento das mãos simultâneos e não alternados
Mudança de posição das pernas: modificando a posição das pernas extensão ou flexão
Mudanças do corpo todo: modificando o corpo demonstrando inquietação e desconforto
Não tomar conhecimento: situação de descaso
Olhar para o ambiente: preocupação voltada para os estímulos do espaço físico (olhar para a
filmadora
Olhar para o filho: focar em direção ao filho, envolvimento com o filho
Olhar para o livro: focar em direção ao livro, preocupação com a técnica
196
Olhar para o terapeuta: focar em direção ao pesquisador, preocupação com aprovação
Oposição: dificuldade, impedimento, obstáculo
Reclamar : reação negativa ao toque
Relaxada: repousada, descansada
Rígida (flexibilidade): persistência num tipo de resposta por incapacidade de mudança para o
outro.
Sentada de forma ereta: erguido verticalmente. aprumada
Tensão: Muscular: condição de um organismo sem descanso; Psíquica : estado ou condição
de alta excitação, ansiedade, inquietação e impulso desorientado.
Verbalizar: articulação da linguagem falada, demonstrando agitação e ansiedade
7.6.3 Definição das categorias dos comportamentos das crianças
Afasta a mão da mãe: reação de recusa ao toque
Bocejar: reação de sono
Cantarolar: reação de desprendimento durante o toque
Choradeira: ação de chorar muito
Choramingo: chorar em tons baixos
Chutar: ato de estender as pernas na região abdominal da mãe
Evacuar: defecar; remover conteúdo defeto
Expressão corporal: expressão facial, expressão gestual e expressão verbal
Focar o rosto da mãe: reação de contemplar
Fome: sensação causada pela necessidade de comer
Muda de posição a mão da mãe: dificuldade em manter-se parado
Reações fisiológicas durante o toque: manifestações interoceptivas
197
Resposta do filho ao toque da mãe: atitude manifestada frente a proximidade da mão da mãe
no corpo da criança.
Sede: vontade de beber
Segura a mão da mãe: ato de conter o movimento
Sono: desejo ou necessidade de dormir
Tensão: Muscular: condição de um organismo sem descanso; Psíquica : estado ou condição
de alta excitação, ansiedade, inquietação e impulso desorientado.
Urinar: expelir urina
Verbalizar: articulação da linguagem falada, demonstrando agitação e ansiedade
198
TABELA 8 – Caso 1 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala na filha de 4 anos
CATEGORIA
COMPORTAMENTO
Olhar
Posição
da mãe
Pressão
do toque
Expressã
o facial
da mãe
Reação da
mãe frente à
resistência
da criança
ao toque
Envolviment
o da mãe
com
a criança
Reação da
mãe frente
às respostas
fisiológicas
da criança
Mudança
de posição
da criança
segundo a
técnica
Não tomar conhecimento
A
Censurar
Atenciosa
Interessada
Desanimada
Desleixada
Distraída
A A
Desatenta
A A
Olhar para o filho
Olhar para o livro
A
Olhar para o terapeuta
A
Olhar para o ambiente
A
Sentada de forma ereta
A
Mudança de posição das pernas
Mudança de posição das costas
Mudança de posição das mãos
A
Tensa (emocional)
A A
Relaxada
Ansiosa
A A
Verbalizar
Atenção a resposta do filho
Rígida (flexibilidade)
A
Tensa (força muscular)
A
Acolher
Escutar
Atender
Ignorar
A
Estranhar
A – Filha de 4 anos
TABELA 9 – Caso 1 – Reação da filha de 4 anos durante a 1ª. sessão de Shantala
REAÇÃO
Respostas do
filho ao toque
da mãe
Reações
fisiológicas
durante o toque
Expressão
facial
Expressão
gestual
Expressão
verbal
Choro contínuo
Choramingo
Não chorou
A
Evacuou
Não Evacuou
Urinou
Não urinou
Sentiu fome
Não sentiu fome
Sentiu sede
Não sentiu sede
Sentiu sono
A
Não sentiu sono
Acolheu
A
Ignorou
Rosto tranqüilo
A
Rosto risonho
A
Rosto tenso
Afasta a mão da mãe
Muda de posição a mão da
mãe
Levanta-se
Chuta
Verbalizou
Balbuciou
Cantarolou
A – Filha de 4 anos
199
TABELA 10 – Caso 1 – Atitude da mãe durante a sessão de Shantala na filha de 2 anos
CATEGORIA
COMPORTAMENTO
Olhar
Posição
da mãe
Pressão
do toque
Expressã
o facial
da mãe
Reação da
mãe frente à
resistência
da criança
ao toque
Envolviment
o da mãe
com
a criança
Reação da
mãe frente
às respostas
fisiológicas
da criança
Mudança
de posição
da criança
segundo a
técnica
Não tomar conhecimento
B B
Censurar
B
Atenciosa
Interessada
Desanimada
Desleixada
Distraída
B B
Desatenta
B B
Olhar para o filho
B
Olhar para o livro
B
Olhar para o terapeuta
B
Olhar para o ambiente
B
Sentada de forma ereta
B
Mudança de posição das pernas
Mudança de posição das costas
Mudança de posição das mãos
Tensa (emocional)
B
Relaxada
Ansiosa
B B B
Verbalizar
B
Atenção a resposta do filho
Rígida (flexibilidade)
B
Tensa (força muscular)
B
Acolher
Escutar
Atender
Ignorar
B
Estranhar
B
B – Filha de 2 anos
TABELA 11 – Caso 1 – Reação da filha de 2 anos durante a sessão de Shantala
REAÇÃO
Respostas do
filho ao toque
da mãe
Reações
fisiológicas
durante o toque
Expressão
facial
Expressão
gestual
Expressão
verbal
Choro contínuo
Choramingo
Não chorou
B
Evacuou
Não Evacuou
Urinou
Não urinou
Sentiu fome
Não sentiu fome
Sentiu sede
Não sentiu sede
Sentiu sono
B
Não sentiu sono
Acolheu
B
Ignorou
Rosto tranqüilo
B
Rosto risonho
B
Rosto tenso
Afasta a mão da mãe
Muda de posição a mão da
mãe
Levanta-se
Chuta
Verbalizou
Balbuciou
Cantarolou
B – Filha de 2 anos
200
TABELA 12 – Caso 1 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala na filha de 4 meses
CATEGORIA
COMPORTAMENTO
Olhar
Posição
da mãe
Pressão
do toque
Expressã
o facial
da mãe
Reação
da mãe frente
à resistência
da criança ao
toque
Envolviment
o da mãe
com
a criança
Reação da
mãe frente
às respostas
fisiológicas
da criança
Mudança
de posição
da criança
segundo a
técnica
Não tomar conhecimento
C C
Censurar
Atenciosa
Interessada
Desanimada
C
Desleixada
C
Distraída
C C
Desatenta
C C
Olhar para o filho
C
Olhar para o livro
C
Olhar para o terapeuta
C
Olhar para o ambiente
Sentada de forma ereta
Mudança de posição das pernas
C
Mudança de posição das costas
Mudança de posição das mãos
Tensa (emocional)
C C
Relaxada
Ansiosa
C C C
Verbalizar
Atenção a resposta do filho
Rígida (flexibilidade)
C
Tensa (força muscular)
C
Acolher
Escutar
Atender
Ignorar
C C
Estranhar
C
C - Filha de 4 meses
TABELA 13 – Caso 1 – Reação da filha de 4 meses durante a 1ª. sessão de Shantala
REAÇÃO
Respostas do
filho ao toque
da mãe
Reações
fisiológicas
durante o toque
Expressão
facial
Expressão
gestual
Expressão
verbal
Choro contínuo
C
Choramingo
Não chorou
Evacuou
C
Não Evacuou
Urinou
C
Não urinou
Sentiu fome
C
Não sentiu fome
Sentiu sede
Não sentiu sede
Sentiu sono
C
Não sentiu sono
Acolheu
Ignorou
Rosto tranqüilo
Rosto risonho
Rosto tenso
C
Afasta a mão da mãe
C
Muda de posição a mão da
mãe
Levanta-se
Chuta
Verbalizou
Balbuciou
Cantarolou
C - Filha de 4 meses
201
TABELA 14 – Caso 1 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala – 3 filhas
CATEGORIA
COMPORTAMENTO
Olhar
Posição
da mãe
Pressão
do toque
Expressã
o facial
da mãe
Reação
da mãe
frente à
resistência
da criança
ao toque
Envolviment
o da mãe
com
a criança
Reação da
mãe frente
às respostas
fisiológicas
da criança
Mudança
de posição
da criança
segundo a
técnica
Não tomar conhecimento
ABC BC
Censurar
B
Atenciosa
Interessada
Desanimada
C
Desleixada
Distraída
ABC ABC
Desatenta
ABC ABC
Olhar para o filho
BC
Olhar para o livro
ABC
Olhar para o terapeuta
ABC
Olhar para o ambiente
AB
Sentada de forma ereta
AB
Mudança de posição das pernas
C
Mudança de posição das costas
Mudança de posição das mãos
A
Tensa (emocional)
ABC AC
Relaxada
Ansiosa
ABC BC ABC
Verbalizar
B
Atenção a resposta do filho
Rígida (flexibilidade)
ABC
Tensa (força muscular)
ABC
Acolher
Escutar
Atender
Ignorar
AC BC
Estranhar
BC
Caso 1 – 1ª. sessão – Com as 3 filhas: (A) Filha de 4 anos (B) Filha de 2 anos (C) Filha de 4 meses
Em todas as filhas a mãe demonstrou desconforto e desconfiança, envolvendo-se pouco com o trabalho e também com as filhas.
TABELA 15 – Caso 1 – Reação das 3 filhas durante a 1ª. sessão de Shantala
REAÇÃO
Respostas do
filho ao toque
da mãe
Reações
fisiológicas
durante o toque
Expressão
facial
Expressão
gestual
Expressão
verbal
Choro contínuo
C
Choramingo
Não chorou
AB
Evacuou
C
Não Evacuou
Urinou
C
Não urinou
Sentiu fome
C
Não sentiu fome
Sentiu sede
Não sentiu sede
Sentiu sono
ABC
Não sentiu sono
Acolheu
AB
Ignorou
Rosto tranqüilo
AB
Rosto risonho
AB
Rosto tenso
C
Afasta a mão da mãe
C
Muda de posição a mão da mãe
Levanta-se
C
Chuta
Verbalizou
Balbuciou
Cantarolou
A – Filha de 4 anos B – Filha de 2 anos C – Filha de 4 meses
202
TABELA 16 – Caso 2 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala na filha de 4 anos
CATEGORIA
COMPORTAMENTO
Olhar
Posição
da mãe
Pressão
do toque
Expressã
o facial
da mãe
Reação
da mãe frente
à resistência
da criança ao
toque
Envolviment
o da mãe
com
a criança
Reação da
mãe frente
às respostas
fisiológicas
da criança
Mudança
de posição
da criança
segundo a
técnica
Não tomar conhecimento
Censurar
D D
Atenciosa
D
Interessada
D
Desanimada
D
Desleixada
Distraída
Desatenta
Olhar para o filho
D
Olhar para o livro
D
Olhar para o terapeuta
Olhar para o ambiente
Sentada de forma ereta
D
Mudança de posição das pernas
Mudança de posição das costas
Mudança de posição das mãos
D
Tensa (emocional)
D
Relaxada
D
Ansiosa
D D
Verbalizar
Atenção a resposta do filho
D
Rígida (flexibilidade)
Tensa (força muscular)
Acolher
D D
Escutar
D
Atender
D
Ignorar
Estranhar
D – 1ª. Sessão
TABELA 17 – Caso 2 – Reação da filha de 4 anos durante a 1ª. sessão de Shantala
REAÇÃO
Respostas do
filho ao toque
da mãe
Reações
fisiológicas
durante o toque
Expressão
facial
Expressão
gestual
Expressão
verbal
Choro contínuo
Choramingo
Não chorou
D
Evacuou
Não Evacuou
D
Urinou
D
Não urinou
Sentiu fome
Não sentiu fome
D
Sentiu sede
D
Não sentiu sede
Sentiu sono
Não sentiu sono
D
Acolheu
Ignorou
D
Rosto tranqüilo
Rosto risonho
Rosto tenso
D
Afasta a mão da mãe
D
Muda de posição a mão da mãe
D
Levanta-se
D
Chuta
Verbalizou
D
Balbuciou
D
Cantarolou
D – 1ª. Sessão
203
TABELA 18 – Caso 2 – Atitude da mãe durante a 2ª. sessão de Shantala na filha de 4 anos
CATEGORIA
COMPORTAMENTO
Olhar
Posição
da mãe
Pressão
do toque
Expressã
o facial
da mãe
Reação
da mãe frente
à resistência
da criança ao
toque
Envolviment
o da mãe
com
a criança
Reação da
mãe frente
às respostas
fisiológicas
da criança
Mudança
de posição
da criança
segundo a
técnica
Não tomar conhecimento
Censurar
DF DF
Atenciosa
DF
Interessada
DF
Desanimada
D
Desleixada
Distraída
Desatenta
Olhar para o filho
DF
Olhar para o livro
D
Olhar para o terapeuta
Olhar para o ambiente
Sentada de forma ereta
DF
Mudança de posição das pernas
Mudança de posição das costas
Mudança de posição das mãos
DF
Tensa (emocional)
D
Relaxada
F DF F
Ansiosa
D
Verbalizar
DF
Atenção a resposta do filho
DF
Rígida (flexibilidade)
Tensa (força muscular)
Acolher
DF DF
Escutar
DF
Atender
Ignorar
Estranhar
Caso 2 – D - 1ª. e F - 2ª. sessões – Filha de 4 anos
Mãe ansiosa e emocionalmente tensa na primeira sessão apresentou pressão do toque rígida e o rosto tenso. Na segunda sessão,
conseguiu relaxar e sua condição mais tranqüila, também promove na criança mais tranqüilidade e satisfação ao toque.
TABELA 19 – Caso 2 – Reação da filha de 4 anos durante a 2ª. sessão de Shantala
REAÇÃO
Respostas do
filho ao toque
da mãe
Reações
fisiológicas
durante o toque
Expressão
facial
Expressão
gestual
Expressão
verbal
Choro contínuo
Choramingo
Não chorou
DF
Evacuou
Não Evacuou
FD
Urinou
D
Não urinou
F
Sentiu fome
Não sentiu fome
FD
Sentiu sede
D
Não sentiu sede
F
Sentiu sono
F
Não sentiu sono
D
Acolheu
F
Ignorou
D
Rosto tranqüilo
F
Rosto risonho
F
Rosto tenso
D
Afasta a mão da mãe
D
Muda de posição a mão da mãe
D
Levanta-se
D
Chuta
Verbalizou
FD
Balbuciou
FD
Cantarolou
D – 1ª. Sessão F – 2ª. Sessão
204
TABELA 20 – Caso 3 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala no filho de 3 anos
CATEGORIA
COMPORTAMENTO
Olhar
Posição
da mãe
Pressão
do toque
Expressã
o facial
da mãe
Reação
da mãe frente
à resistência
da criança ao
toque
Envolviment
o da mãe
com
a criança
Reação da
mãe frente
às respostas
fisiológicas
da criança
Mudança
de posição
da criança
segundo a
técnica
Não tomar conhecimento
Censurar
G G
Atenciosa
Interessada
G
Desanimada
G
Desleixada
Distraída
G
Desatenta
G
Olhar para o filho
G
Olhar para o livro
G
Olhar para o terapeuta
G
Olhar para o ambiente
G
Sentada de forma ereta
Mudança de posição das pernas
G
Mudança de posição das costas
Mudança de posição das mãos
G
Tensa (emocional)
G G
Relaxada
Ansiosa
G G G
Verbalizar
G
Atenção a resposta do filho
G
Rígida (flexibilidade)
G
Tensa (força muscular)
Acolher
G G
Escutar
G
Atender
G
Ignorar
G
Estranhar
G – 1ª. Sessão
TABELA 21 – Caso 3 – Reação do filho de 3 anos durante a 1ª. sessão de Shantala
REAÇÃO
Respostas do
filho ao toque
da mãe
Reações
fisiológicas
durante o toque
Expressão
facial
Expressão
gestual
Expressão
verbal
Choro contínuo
Choramingo G
Não chorou
Evacuou
Não Evacuou G
Urinou
Não urinou G
Sentiu fome
Não sentiu fome G
Sentiu sede
Não sentiu sede G
Sentiu sono
Não sentiu sono G
Acolheu G
Ignorou
Rosto tranqüilo
Rosto risonho
Rosto tenso G
Afasta a mão da mãe G
Muda de posição a mão da mãe G
Levanta-se G
Chuta G
Verbalizou G
Balbuciou G
Cantarolou
G – 1ª. Sessão
205
TABELA 22 – Caso 3 – Atitude da mãe durante a 2ª. sessão de Shantala no filho de 3 anos
CATEGORIA
COMPORTAMENTO
Olhar
Posição
da mãe
Pressão
do toque
Expressã
o facial
da mãe
Reação
da mãe frente
à resistência
da criança ao
toque
Envolviment
o da mãe
com
a criança
Reação da
mãe frente
às respostas
fisiológicas
da criança
Mudança
de posição
da criança
segundo a
técnica
Não tomar conhecimento
H
Censurar
G GH
Atenciosa
H
Interessada
GH
Desanimada
G
Desleixada
Distraída
G
Desatenta
G
Olhar para o filho
GH
Olhar para o livro
GH
Olhar para o terapeuta
G
Olhar para o ambiente
G
Sentada de forma ereta
Mudança de posição das pernas
GH
Mudança de posição das costas
H
Mudança de posição das mãos
GH
Tensa (emocional)
G G
Relaxada
H H H
Ansiosa
G G G
Verbalizar
GH
Atenção a resposta do filho
GH
Rígida (flexibilidade)
G
Tensa (força muscular)
Acolher
GH GH
Escutar
GH
Atender
GH
Ignorar
G
Estranhar
Caso 3 – G - 1ª. e H - 2ª. sessões – Filho de 4 anos
Na primeira sessão rigidez e tensão da mãe, na mudança de posição durante a sessão de Shantala, solta o corpo da criança, a ponto dele
verbalizar que doeu, força muscular na pressão do toque e ele também se queixou. Na segunda sessão, expressão facial relaxada,
pressão do toque relaxada proporcionou na criança um estado de maior tranqüilidade e satisfação.
TABELA 23 – Caso 3 – Reação do filho de 3 anos durante a 2ª. sessão de Shantala
REAÇÃO
Respostas do
filho ao toque
da mãe
Reações
fisiológicas
durante o toque
Expressão
facial
Expressão
gestual
Expressão
verbal
Choro contínuo
Choramingo
G
Não chorou
H
Evacuou
Não Evacuou
HG
Urinou
Não urinou
HG
Sentiu fome
Não sentiu fome
HG
Sentiu sede
Não sentiu sede
HG
Sentiu sono
H
Não sentiu sono
G
Acolheu
HG
Ignorou
Rosto tranqüilo
H
Rosto risonho
H
Rosto tenso
G
Afasta a mão da mãe
G
Muda de posição a mão da mãe
HG
Levanta-se
G
Chuta
G
Verbalizou
HG
Balbuciou
HG
Cantarolou
H
G – 1ª. Sessão H – 2ª. Sessão
206
TABELA 24 – Caso 4 – Atitude da mãe durante a 1ª. sessão de Shantala no filho de 5 anos
CATEGORIA
COMPORTAMENTO
Olhar
Posição
da mãe
Pressão
do toque
Expressã
o facial
da mãe
Reação
da mãe frente
à resistência
da criança ao
toque
Envolviment
o da mãe
com
a criança
Reação da
mãe frente
às respostas
fisiológicas
da criança
Mudança
de posição
da criança
segundo a
técnica
Não tomar conhecimento
Censurar
T T
Atenciosa
T
Interessada
T
Desanimada
Desleixada
Distraída
Desatenta
Olhar para o filho
T
Olhar para o livro
T
Olhar para o terapeuta
T
Olhar para o ambiente
Sentada de forma ereta
T
Mudança de posição das pernas
T
Mudança de posição das costas
Mudança de posição das mãos
T
Tensa (emocional)
T T T
Relaxada
Ansiosa
T T
Verbalizar
T
Atenção a resposta do filho
T
Rígida (flexibilidade)
T
Tensa (força muscular)
T
Acolher
T T
Escutar
T
Atender
Ignorar
Estranhar
T – 1ª. Sessão
TABELA 25 – Caso 4 – Reação do filho de 5 anos durante a 1ª. sessão de Shantala
REAÇÃO
Respostas do
filho ao toque
da mãe
Reações
fisiológicas
durante o toque
Expressão
facial
Expressão
gestual
Expressão
verbal
Choro contínuo
Choramingo
Não chorou
T
Evacuou
Não Evacuou
T
Urinou
Não urinou
T
Sentiu fome
T
Não sentiu fome
Sentiu sede
T
Não sentiu sede
Sentiu sono
Não sentiu sono
T
Acolheu
T
Ignorou
Rosto tranqüilo
T
Rosto risonho
Rosto tenso
Afasta a mão da mãe
T
Muda de posição a mão da
mãe
Levanta-se
Chuta
T
Verbalizou
T
Balbuciou
Cantarolou
T – 1ª. Sessão
207
TABELA 26 – Caso 4 – Atitude da mãe durante a 2ª. sessão de Shantala no filho de 5 anos
CATEGORIA
COMPORTAMENTO
Olhar
Posição
da mãe
Pressão
do toque
Expressã
o facial
da mãe
Reação
da mãe frente
à resistência
da criança ao
toque
Envolviment
o da mãe
com
a criança
Reação da
mãe frente
às respostas
fisiológicas
da criança
Mudança
de posição
da criança
segundo a
técnica
Não tomar conhecimento
Censurar
T T
Atenciosa
TV
Interessada
TV
Desanimada
Desleixada
Distraída
Desatenta
Olhar para o filho
T
Olhar para o livro
TV
Olhar para o terapeuta
TV
Olhar para o ambiente
Sentada de forma ereta
TV
Mudança de posição das pernas
T
Mudança de posição das costas
Mudança de posição das mãos
TV
Tensa (emocional)
T T T
Relaxada
V V V
Ansiosa
T T
Verbalizar
TV
Atenção a resposta do filho
TV
Rígida (flexibilidade)
T
Tensa (força muscular)
TV
Acolher
TV TV
Escutar
TV
Atender
TV
Ignorar
Estranhar
T – 1ª. Sessão V – 2ª. Sessão
Na primeira sessão mãe toca no corpo do filho de maneira insegura e tensa.Na segunda sessão a mãe demonstra mais tranqüilidade e o
filho reage com mais receptividade não recusando o toque da mãe.
TABELA 27 – Caso 4 – Reação do filho de 5 anos durante a 2ª. sessão de Shantala
REAÇÃO
Respostas do
filho ao toque
da mãe
Reações
fisiológicas
durante o toque
Expressão
facial
Expressão
gestual
Expressão
verbal
Choro contínuo
Choramingo
Não chorou
TV
Evacuou
Não Evacuou
TV
Urinou
Não urinou
TV
Sentiu fome
T
Não sentiu fome
V
Sentiu sede
TV
Não sentiu sede
Sentiu sono
V
Não sentiu sono
T
Acolheu
TV
Ignorou
Rosto tranqüilo
TV
Rosto risonho
V
Rosto tenso
Afasta a mão da mãe
T
Muda de posição a mão da mãe
V
Levanta-se
Chuta
T
Verbalizou
VT
Balbuciou
V
Cantarolou
T
Caso 4 – T - 1ª. sessão V - 2ª. sessão – Filho de 5 anos
208
7.6.4 Análise dos resultados da aplicação da técnica Shantala
No caso 1 apesar de toda dificuldade da mãe, seu receio e insegurança que demonstrou
ao tocar suas filhas, elas reagiram de maneira tranqüila, despojadas e disponível ao contato,
mesmo a filha de 4 meses que teve muita resistência, talvez por estar suja (evacuou e com
fome) após ter sido atendida nas suas necessidades, tranqüiliza-se e adormece.
Em todas as mães verificamos a presença de tensão, desconforto, ansiedade na 1
a
sessão. Não podemos desconsiderar que esta situação tenha se acentuado pela própria
condição da atividade nova que estavam sendo expostas, porém o fato de todas apresentarem
dificuldades no relacionamento com seus filhos, talvez as tenham deixadas tensas.
Comparando estes resultados com a 2
a
sessão, exceto no caso 1 que, a mãe não deu
continuidade, todas demonstraram estar muito mais relaxadas. O envolvimento com os filhos
demonstrou-se mais afetuoso, a expressão facial das mães era mais tranqüila, a pressão do
toque mais relaxada além de fitarem os filhos de maneira acolhedora.
Em decorrência destas mudanças no comportamento das mães as respostas das
crianças foram muito mais receptivas e cooperativas.
Com estes resultados verificamos que após as sessões de Calatonia todas as mães,
exceto o caso 1, conseguiram uma melhor aproximação com seus filhos, acolhendo-os de
maneira mais afetuosa, demonstrando bem estar em fazer a massagem nos filhos.
Apesar de várias situações de conflitos das mães não terem sido resolvidos, elas
conseguiram uma melhor aproximação com as crianças, promovendo bem estar entre elas.
209
7.6.5 Análise dos resultados das entrevistas
CASO 1
Considerando as condições familiares, que a mãe está passando no momento, sua
dificuldade em conseguir autonomia financeira para cuidar dos filhos, e toda forma de
humilhação com os familiares de seu companheiro, no momento não consegue perceber que
estes problemas afetam o desenvolvimento das crianças, tendo em vista seu estado de extrema
ansiedade e revolta.
Apesar destas condições da mãe, nas 1
as
sessões de Shantala, nas filhas de 4 e 2 anos,
as mesmas, embora na chegada à sala de atendimento demonstraram constrangimento e certa
inibição durante a massagem se comportaram em total entrega ao toque da mãe, não
expressando qualquer gesto que demonstrasse descontentamento ou resistência.
Foram sessões muito tranqüilas, para as crianças, mesmo com a mãe agitada e
insegura.
No entanto, com o bebê de 4 meses, que inicialmente aparentava certa tranqüilidade
no meio da técnica, pôs a choramingar e como a mãe ignorou começou então a chorar
continuamente, a mãe não sabia como lidar, alegando que a mesma estava com fome, e
mesmo assim continuou a fazer a massagem. O bebê também havia evacuado, e ela tamm
ignorou. Solicitei que interrompesse a massagem pois ela não sabia o que fazer, e orientei-lhe
a dar de mamar e também a trocá-la. Semelhante foi sua atitude com as filhas maiores que
demonstraram constrangimento e ela não percebeu, inclusive a de 4 anos com expressão de
choro só se acalmou quando aproximei-me dela e convidei-a para brincarmos com os
brinquedos no armário.
210
É possível que o quadro de negligência, se configure neste caso, pela dificuldade da
mãe em atender ao pedido dos filhos, nas suas expressões corpóreas, ou sensações
interoceptivas, mediante as situações acima apresentadas pela mãe, assim como o corpo das
crianças se encontravam descuidado, com assaduras, com picadas de bicho, franzino, usando
a todo momento a chupeta como maneira para acalmar as crianças. Tanto a filha de 4 anos
como a de 2 anos tinham 3 chupetas (uma na boca e outra na mão e outra na bolsa da mãe
caso elas perdessem as duas (sic mãe). Quando o bebê chorou a atitude que tomou imediata
foi também insistir em acalmar a criança com a chupeta.
Na análise da estrutura do arquétipo materno identificamos constelar em seu
psiquismo, Fm hipotrófico e M hipotrófico, que implica no indivíduo encontrar-se em
situação de abandono e desamparo como é caso desta mãe e percebeu-se nitidamente sua
dificuldade em receber como pedir, assim como não pode ser uma boa mãe para si mesma não
demonstra condições de cuidar do outro, comprometendo sua função de maternagem nos
cuidados com suas filhas. Além do que, chama também a atenção o número de parceiros e o
tipo de parceiros que escolheu, todos com características de uma anima hostil e perversa, que
não lhe proporcionou e nem lhe proporciona segurança, entretanto encontra-se presa e
dependente. Importante ressaltar a forma abrupta que se deu o desmame nas duas primeiras
filhas, em uma o leite secou inesperadamente e na outra criança, assim como os outros irmãos
foram para o abrigo temporário e a filha menor a mãe não amamentou, alegando que o leite
era fraco.
“Eu sei que você quer dizer. Você qué que eu venha aqui para relaxar as criança. Eu
entendi isso. Eu senti as crianças mais calmas. Eu também fiquei mais calma, mais do jeito
que tá não dá. Que nem ontem eu dando banho na minha menina de 4 meses, o cara tava lá
na porta do banheiro, e ficava me xingando: eu tô falando com você? ta escutando?, então
sabe... arruma suas coisas e vai embora. Eu tava queta no meu canto com as crianças. A mãe
dele inventou que eu tava na moita, lá em cima com um home, nem sei quem é. Aí ele começa
me ofende” (ficou muito agitada).
211
Esta conduta sugere todo um conflito da mãe com seus aspectos pessoais na função da
estrutura matriarcal, a ponto de tornar-se uma pessoa rígida, desempenhando um forte
mecanismo de racionalização fruto do papel do Animus negativo que desenvolveu que, no
caso, sugere o papel Fp hipertrófico e papel P hipotrófico, que implica numa condição de não
se prover, são submissos, criticam, mas não conseguem resolver de maneira adulta seus
conflitos.
“É , eu tenho três filhos que não é dele, eu levo embora comigo, porque eu não posso
levar os 6, e ele fica cas menina que são filhas dele. (falava muito alterada e acelerada).
Senão comu é que eu vou trabalhar....Ah! mas a menina de dois vai ter quer ir porque ela não
fica sem minha filha mais velha a de 12 anos. Ela chama minha filha de mãe”. (começou a
chorar compulsivamente).
No caso das marcas observadas nos corpos das crianças, como assadura, picadas e
pouca higiene, segundo Neumann (1995), sugere um recuo do Self corporal das crianças com
o Self materno podendo desenvolver falta de autonomia e segurança nas crianças, pois a
construção do Eu psíquico esta intrinsecamente associado ao Eu corporal, em que a relação
entre elas implica em registros de movimentos com o mundo exterior, e toda riqueza desta
experiência depende do vínculo com o Self materno.
Segundo Humphery (2000) os conflitos de Negligência se caracterizam por vários
níveis que no caso l, encontramos praticamente todos eles: conflito interior de ódio e rejeição
do eu dos pais; conflito entre os dois pais infelizes; conflitos internos não resolvidos
provavelmente oriundos de suas famílias de origem; conflitos da família atual, colocando em
risco os membros da família; provavelmente conflitos internos dos filhos relativos aos seus
sentimentos de rejeição e de sua necessidade não satisfeita de amor e reconhecimento, porém
muito embora a mãe não citou, porém quando estivemos em sua residência, vimos a filha de 8
anos pegar a cinta para bater na irmã de 4 anos e 2 anos e ao impedirmos, conversando com a
filha mais velha a mãe não reagiu.
212
Na análise sobre o ciclo do matriarcado e do ciclo do patriarcado proposto por
Benedito (1994) verificamos que o casal encontra-se:
Neuroticamente fixados no dinamismo patriarcal: vivem num clima de muita
competição entre eles, ‘quem manda, quem esta certo, quem esta errado”, cada um sempre
tem certeza daquilo que deve ser feito. Nesse relacionamento parental a criança tem dois pais.
Eles brigam, e discutem em nome dela, porém não enxergam suas necessidades. Nesses casos,
a criança pode ser mais um trunfo para eles, na esperança de vencer a batalha, gerando nela
um medo vago e desconfiado na sua capacidade de amar e se entregar ao seu objeto de amor.
O amor, para essas crianças, costuma ser sobrecarregado com sentimentos de culpa e traição.
“Bem o meu marido, não sei nem se devo falar assim, porque nois não casamos eu
chamo assim porque fui morar com ele primeiro no fundo da casa da minha sogra e depois
na casa, lá de baixo no terreno dela, aquela que cê foi, ele briga muito comigo por causa
dela, não acredita em mim e só na mãe dele, se a mãe dele fala bobage para ele ele acredita e
quer me bater, aí ela vem querer me bater os irmãos dele também...”
Apesar de toda nossa vontade e persistência para que a mãe não desistisse do trabalho
com as filhas não conseguimos convencê-la, uma vez que demonstrou não estar aberta para
olhar sua relação com as mesmas, pois sua necessidade era garantir sua moradia que estava
ameaçada pelos conflitos que enfrentava com o companheiro, uma vez que suas condições é
de extrema pobreza vivendo num ambiente hostil e incerto.
Cabe ressaltar, também, que sua agitação e as atitudes hostis que apresentou durante o
período que estivemos trabalhando tornou-se impossível, ativar núcleos mais criativos do seu
Self para a sua consciência, sendo então perseguida pela sua própria loucura e por conseguinte
desenvolvendo um Animus negativo e não podendo ser uma “boa mãe” para si mesma.
213
CASO 2
Considerando o relato da mãe e analisando-o segundo a teoria da psicologia analítica
sugere que a mãe encontra-se com estrutura do arquétipo do matriarcado e do patriarcado
configurado da seguinte maneira:
Papel M hipertrófico e Fm hipotrófico:
Exerce o papel de superproteger o outro, com características possessivas e castradoras
matriarcalmente, não permite que o outro tenha autonomia, priva o outro de seu afeto. Fica
preso em agradar o outro, dependendo disso para sua auto-confiança. Embora generosa,
quando o outro não se submete a sua excessiva maternagem é vingativa. Sugere em suas
histórias indivíduos com super proteção ou rejeição com formação reativa de super proteção.
Dentro desta definição estão associados o relato da mãe na situação em que a filha não
quis colocar a roupa e todo o transtorno que gerou não só na mãe, mas em todos os outros
familiares, ex-marido, sogra.
“... Daí eu peguei ela pelo braço e sentei em cima da cama e falei para ela: Você vai
por a roupa, não tem querer, você já está grande, você não pode ficar andando pelada em
casa...”
No papel do patriarcado é hipotrófico também, com características de mandona,
autoritária, rígida, exageradamente assertiva e castradora, porém dependente e não consegue
se prover, projeta no outro o papel P hipotrófico e atua sobre esse outro o seu papel
hipertrófico. No outro mobiliza medo, encolhimento e rancor. Sugere em sua história ter
assumido precocemente o patriarcado adulto.
“Eu acho que por eu ta assim agora agitada demais, falando, brigando com a F.
demais, eu bato nela demais, mas não sou só eu que brigo com ela, às vezes de tanto os
214
outros falar para mim que ela ta fazendo errado, mas às vezes eu não acho que ela ta fazendo
errado e mesmo assim eu brigo com ela”.
Na análise sobre as dificuldades do casal em operar com harmonia o princípio
feminino (ciclo do matriarcado) e o princípio masculino (ciclo do patriarcado), proposta por
Benedito (1994), identificamos neste caso a seguinte constelação:
Esposa fixada no dinamismo matriarcal e o marido no dinamismo patriarcal, isto
porque nesta dinâmica a mãe envolve-se no clima familiar de cuidados maternos, sedutores,
controladores, encontrando este único caminho para sentir o valor da própria existência. No
início da vida do bebê, a mãe atualiza a função positiva do arquétipo da grande mãe, nutridora
e doadora de vida. Mas, na medida em que ela exacerba nos seus cuidados maternos, menos
pelas necessidades dos filhos, mas muito mais pelas próprias, ela reforça o desejo natural da
criança de proteção e dependência, despotencializando-a. Nessa relação está constelada a
função negativa do arquétipo da grande mãe, destrutiva e devoradora.
Uma vez que este caso se enquadra na situação de maus-tratos, porém não devemos
esquecer que maus-tratos é uma das situações encontradas nos aspectos de negligência, da
criança não apresentar aspectos de desleixo, descuido, entre outros.
Na concepção dos maus-tratos, verificamos que este caso sugere características de
maus-tratos psicológicos, conforme a nomenclatura do SPP (Fiocruz/MJ, 2001), que
abrangem rejeição, depreciação, desrespeito, discriminação, punição ou cobrança exagerada.
No balanço da visibilidade e da invisibilidade que os tipos de maus-tratos assumem,
segundo as experiências dos profissionais, da área de saúde, citado no Capítulo 3, “a condição
da mãe ser agredida pela falta de condição sócio-econômicas, e também situações precárias
215
durante a vida, como conseqüência acabam por maltratar seus filhos, assim, segundo dito
popular pais que “apanham” da vida acabam “batendo” nos filhos”. (p. 77)
Em relação a filha ainda mamando no peito, este aspecto sugere uma forma
compensatória da mãe, frente a sua exagerada necessidade de controle sobre a filha, função
negativa do Animus.
Baseado na referência de Neumann (1995), que considera que o desmame em
circunstâncias normais, não é uma catástrofe, por favorecer uma tendência natural da criança
e autonomia, expressado pelo crescente prazer que a criança para o desfrutar do
desenvolvimento de próprio corpo e suas funções se liberta da união dual com a mãe, pré-
condição para o necessário desenvolvimento do Ego e Self do filho.
Neste caso sugere que, esta mãe estabelece uma dependência do Self corporal da filha,
talvez pela sua condição de carência na infância dos cuidados maternos, desenvolvendo de
maneira precoce o dinamismo patriarcal, como cuidadora e controladora, porém seus aspectos
do feminino, que se constelam no dinamismo matriarcal, como a mãe protetora, nutridora, a
figura da grande Deusa, senhora das plantas, governando o desenvolvimento da criança, do
qual o Ego é subordinado ao Self da mãe, favorecendo o desenvolvimento da consciência, dão
suplantados desenvolvendo a “mãe ruim”, que é hostil ao desenvolvimento da consciência,
sugerindo intensificar a tendência da permanecer ou de voltar à escuridão do inconsciente.
Devolutiva
Na devolutiva e nos dados obtidos tanto das sessões de massagem na filha, quanto as
suas de calatonia, parece que a mãe conseguiu resgatar dentro dela elementos de seu
dinamismo matriarcal, podendo cuidar e procurar a filha sem precisar subjulgá-la ou
desmerecê-la. Embora ainda não tenha feito o desmame na filha, alega estar tentando. Hoje
percebeu que existem outras formas da filha se acalmar. Percebeu também, que ela (a mãe),
216
esta mais disponível para brincar, perceber, atender e cuidar da filha sem reprimi-la. Parece
também que a filha vem comportando-se melhor e está mais carinhosa.
Podemos supor que da mãe terrível, parece começar a surgir a Deusa Sofia, no
arquétipo Grande Mãe, auxiliando-a a conduzir a educação da filha com sabedoria e mais
organizada.
Com relação às sessões de Shantala da criança, verificamos que enquanto que na 1ª.
sessão a criança estava inquieta, insatisfeita, queixosa, incomodada, na 2ª. sessão parecia
mais relaxada, e conversava com a mãe mais tranqüila, permitindo ser tocada.
CASO 3
Na primeira entrevista com a mãe os relatos sugeriram que as estruturas do Arquétipo
materno e paterno se constelavam da seguinte maneira:
Papel M hipertrófico e Fm hipotrófico:
Superprotege o outro com características possessivas e castradoras matriarcalmente,
não permite que o outro tenha autonomia, priva o outro do seu afeto.
Fica preso em agradar o outro, dependendo disso para sua auto confiança, embora
generosa, quando o outro não se submete a sua excessiva maternagem é negativa. Sugere em
suas histórias pessoas com super proteção ou rejeição com formação reativa de super
proteção.
Na estrutura do patriarcado sugere o papel P Hipertrófico: a pessoa representa o
modelo do “mandão”, dono da verdade, autoritário, rígido, exagerado e assertivo, castrador.
217
Em seu imaginário, sempre sabe tudo, está acima dos outros. No outro, mobiliza
medo, encolhimento e muitas vezes rancor. Em suas histórias, geralmente assumiram
precocemente o patriarcado adulto “[. . .] Eu cuidei do meu irmão”.
“Minha mãe me super protegia, não deixava eu fazer nada. Perdi meu pai muito cedo
com 7 meses, se acidentou no trabalho. Minha mãe enviuvou com 1 ano e 2 meses de casada.
Não tinha ninguém , então tinha medo de me perder. Ela me batia muito, batia minha cabeça
na parede, quando eu não obedecia, eu era respondona”
“Quando minha mãe morreu, eu tinha 21 anos, eu criei meu irmão adotivo. Quando
eu tava com doze anos, minha mãe adotou ele, fui eu que pedi, ele quase morreu quando
nasceu, tava com 2,7 quilos, a mãe dele morreu, era filho, eu que ajudei a cuidar”
Embora estes relatos tragam uma característica de cuidadora, também nos sugerem
que os conflitos que sua mãe passou, foram transferidos para a filha, fazendo com que a
mesma desenvolva-se de maneira dominadora e autocrítica.
A própria situação de estupro nos remete a supor que a situação de repressão se
tornara tão insustentável que mesmo com vinte anos não conseguia livrar-se de uma situação
de risco, supondo que a pessoa que a estuprou tratava-se de alguém de sua inteira confiança.
Isto é, sugere que por não ter a liberdade para sair, conhecer pessoas e tudo que fazia era
escondido, não foi capaz de fugir dessa violência e abuso que sofreu com vinte anos e a partir
daí desenvolve um Ego rígido, constituindo-se viu Animus autoritário, sedutor e controlador.
Sugere sedutor porque em seus relatos verbaliza: “Eu tenho auto estima boa, eu saio
de casa, me arrumo, acho que tá tudo bonito em mim. Minhas primas são lindas,
maravilhosas, tem um corpo escultural, eu nem tô ligando para isso, eu tô bem, se minha
cabeça tá boa, se não tá boa, agora vou ficar me preocupando 100%.”
218
Na relação com o filho sugere que, a situação de maus-tratos no filho tem a referência
do seu Complexo Materno, no sentido de controlar o filho, repetindo um padrão estabelecido
pela sua mãe para controlá-la, não percebendo que o filho acabou por desenvolver a mesma
“rebeldia” que ela relatou ter vivido na sua própria infância e, principalmente na adolescência.
“Eu descontava tudo de ruim que eu tava sentindo e é horrível ... Tinha uma fase que
eu batia nele, ai depois teve uma fase que eu batia em mim, para não bater nele. Eu comecei
a me bater, eu não posso matar porque é uma criança é meu filho, eu vou me bater.”
Este relato sugere que a mãe acaba por desenvolver conteúdos de mãe-temível,
negativa, avassaladora não só para com filho mas com ela mesma.
O sentimento de culpa por desenvolver esta mãe terrível pode também estar associado
a escolha do parceiro, que desempenhou o papel de marido infiel e inconseqüente, talvez
também por ter desenvolvido um Anima negativa, embora alegasse que a separação lhe fez
bem “ Quando eu me separei me deu uma energia tão boa... Em vez de ficar péssima, eu
fiquei ótima”. Apesar desta fala ainda mantém relacionamento com ele alegando que é por
causa das crianças.
Neste sentido podemos supor que com o dinamismo matriarcal subdesenvolvido a
função de Eros apresenta-se de forma grotesca, isto é, na fase mais precoce da relação primal.
Prevalece uma situação típica, pois a situação psicobiológica da criança depende da presença
e da contínua vitalidade de uma relação sustentadora de Eros (carregada de disposição
afetivas para os cuidados como bebê), sendo assim, a Grande Mãe aparece simbolicamente na
qualidade de Eros. As atitudes conscientes da mãe que se manifestam como parte masculina
de sua totalidade, como uruboros patriarcal e como Animus são aspectos que favorecem a
condução e incursão da vida da criança, carregada assim tanto de conteúdos do inconsciente
pessoal da mãe quanto do coletivo. Quando o princípio de logos estiver associado à mãe é
219
entendida como negação e retirada do amor e a cada resistência a essas intervenções a criança
entra em conflito com o princípio de adaptação social, da qual a mãe é representante. No caso
desta criança podemos pensar que seu comportamento agitado, hiperativo seja a forma que a
criança encontrou para se “rebelar” a pressão do Animus negativo da mãe. Neste caso, sugere
o desenvolvimento do papel Fp hipotrófico e P hipotrófico, pela conduta rígida e sem limites
para atuar com o outro. Este caso sugere segundo os conceitos de Benedito (1994):
Mãe com fixação no dinamismo patriarcal: exageradamente controladora, autoritária,
diretiva, competente, menospreza seu marido “fraco”, que não sustenta emocionalmente, e às
vezes economicamente sua família, não mostrando uma opinião segura a respeito dos
problemas domésticos, ou mesmo em relação a outras situações. O sentimento de
insuficiência do pai afeta seus filhos, criando ressentimentos inconscientes.
Devolutiva
Mãe muito mais tranqüila, tom de voz suave, atenciosa e paciente. Criança resistiu a
começar a técnica, sugerindo desafiar toda esta tranqüilidade que a mãe demonstrava. A
princípio a mãe dizia ao filho que era para fazer a massagem senão a “tia” (Eu) ficaria triste.
Mostramos a necessidade da mãe de atribuir ao outro, sentimentos que eram seus, parecendo
que a forma para superar seu fracasso de não conseguir convencê-lo e fazê-lo mudar de
opinião. Parece com isso ter entendido o sentido que pretendi dar a frase, dizendo:
“Eu tenho vergonha dos outros pensarem que eu não sei educar meu filho [...]
Sentimentos de fracassada”.
Passou um tempo e, conforme a mãe foi conduzindo a situação a criança parou de
resistir, aproximou-se da mãe e permitiu que a mesma fizesse a massagem.
220
Às vezes a criança se queixava da força muscular que a mãe imprimia na técnica, ela
pediu desculpa e depois ele pontuava que “Está gostoso. É gostosa a massagem.”
Na segunda sessão percebeu a sua mãe mais alegre e segura, demonstrando tamm
uma vontade interna de conduzir melhor a própria vida.
“Estou diferente. Eu tenho vontade de fazer as coisas[...] Antes eu não tinha vontade
de nada. Só comia ...”
A minha prima tem notado [...] Antes ela era calma e a histérica era eu, agora te
invertendo, a gora ela te gritando com o filho dela e eu falo o que é isso, o que ta
acontecendo com você, o menino não ta fazendo nada, só ta brincando.”
CASO 4
Segundo os resultados da primeira entrevista a estrutura da Dinâmica do Arquétipo
Materno e Paterno desta mãe sugere uma ambivalência nesta organização, no meu ponto de
vista. Tanto encontramos :
Papel Fm hipotrófico :
Associado à sua condição de carente, vivendo uma situação de abandono e desamparo,
não sabendo receber e nem pedir, desenvolvendo uma persecutoriedade sobre o outro,
tornando-se dependente, estabelecendo relação de fusão, simbióticas:
“Eu fiz o que pude para evitar, só que a pessoa teve persuasão, teve o som de palavra,
né! E foi persistindo e coisa e tal, e ce sabe que existe muitas manhas, muitas formas de
cativar o ser humano corrente, né! E ele usou esta técnica, entendeu! Então, pensa bem, um
ser humano que nunca teve nada, sofrida, usou esta técnica, entendeu! Então pensa bem, um
ser humano principalmente se for homem quando quer alguma coisa, ele usa estratégias
221
muito baixas, sabe como é, domina a gente, entendeu! E eu caí na armadilha, sabe! Pensa
bem, se nunca na vida teve nada, de repente uma pessoa começa a te dar carinho, te dar
atenção, não sei o que pensar, pensa bem, sabe que você não queria, é uma armadilha, que
você acaba caindo!”
Como, também, encontramos o papel Fm hipertrófico: dependência exagerada do
outro puer ou puella aeternus (menino ou menina eterna) muito embora não se caracterize
como uma pessoa mimada, birrenta ou narcisista é extremamente exigente, insatisfeita,
responsabilizando o outro por sua insatisfação. A maternagem é inadequada, havendo exagero
e super proteção.
“Meu filho é tudo para mim, faço tudo por ele. Eu tenho muito medo que ele se
machuque, só que ele não para. Eu falo uma porção de vezes, depois eu me descontrolo[. ..]
Não consigo trocar fralda de noite[ ...] Ele dorme comigo.”
No papel do patriarcado, verificamos que desenvolveu o papel Fp hipertrófico e P
hipotrófico, também como no caso 1 e 2, dependente, não conseguindo se prover, hipercrítica
e insatisfeita com a família sem dar soluções mais adultas para os problemas.
O corpo próprio da criança e, o Self corporal, isto é, a experiência da criança de seu
corpo como um Self e como um todo, a medida que adquire controle dos esfíncteres torna-se
base para a independência do Ego, podendo adquirir maior controle das funções corporais.
No caso desta criança que ainda mantém-se utilizando a fralda noturna sugere um
distúrbio na fase anal, acompanhado pelas primeiras formações de um superego negativo,
levando também a uma intensificação do sentimento de culpa da criança, pondo em perigo os
fundamentos de sua auto-estima, proveniente da castração anal.
222
Segundo Neumann (1995), a castração anal se caracteriza quando a totalidade da
criança (Self) e o Self Corporal e perturbada pela imposição da higiene anal, através de
coerção e da desvalorização. Sempre que existe uma relação primal negativa e uma mãe
neurótica, desgostosa, puritana que sucumbia ao ânimo patriarcal de seu cânon cultural e por
esta razão não é capaz de conter o desenvolvimento da criança dentro de um abrigo de uma
relação primal positiva a conseqüência é que a criança sente que perder seus excrementos, é
como perder uma parte do seu corpo. Se o treinamento do toalete começou prematuramente,
nunca fase em que a avaliação da criança de sua totalidade corpo é positiva, ela vivencia essa
perda como um distúrbio causador de ansiedade em seu próprio corpo - totalidade. Em função
do desgosto da mãe, que tanto pode ser neurótico quanto des-sintonizando com a fase de
desenvolvimento do filho. A criança fica então, com aversão pelo vaso e passa a considerar o
movimento regular do intestino como privação violenta.
Este caso sugere na análise do ciclo matriarcal e do ciclo patriarcal: Pai e mãe presos
no arquétipo da grande mãe, dominados pelo dinamismo matriarcal, sendo a consciência
patriarcal pouca desenvolvida: há uma indiscriminação em relação aos valores morais. O fato da
atmosfera psíquica familiar ser mais inconsciente pode levar os filhos a desenvolver atitudes
compensatórias, na tentativa de se salvar dessa indiferenciação caótica que os rodeia. Pais infantis:
agradam a criança quando têm vontade, quando precisam dela para se alimentar emocionalmente, e
a mandam embora quando estão envolvidos em outros interesses, ou quando elas lhes pedem
alguma sustentação psicológica, exigência que lhes parece muito penosa, pois eles próprios não se
sustentam.
Desta forma, novamente sugere que o dinamismo matriarcal se encontra
subdesenvolvido e Eros se apresenta de forma grotesca, assim como apareceu no caso 2,
mas se diferenciando deste caso por sugerir uma possessão histérica, causada por uma
223
vivência simbólica de possessão dissociada da consciência, manifestado pela presença de
um mecanismo de defesa, que no caso sugere a formação reativa.
“Meu filho é meu ar, meu tudo”[...] “Ele não obedece, então eu grito, eu bato, tenho
medo dele se machucar[...]”.
Devolutiva
A mãe demonstrou muita tranqüilidade, mais disponível em brincar com o filho, não
escolhendo os brinquedos e nem controlando-o. Parecida aceitá-lo mais, permitindo-o que o
mesmo ficasse mais à vontade.
Esta tranqüilidade também foi percebida durante a massagem no filho, que a fitava
atentamente parecendo observá-la, procurando conduzir os movimentos.
“Eu me acalmei mais. A massagem, o toque me ajudou a relaxar, entendeu! Porque
eu acho assim, que a pessoa assim relaxada, ela tem um raciocínio melhor, e eu acho que
para mim funcionou tudo, em relacionamento, eu to super interessada em melhorar, porque
eu quero, porque meu filho é tudo para mim... Eu estava calma, eu estando bem... eu acho
que já to ajudando, já tô vivendo mudanças, porque meu filho já ta mais calmo, mais
tranqüilo, tá super carinhoso comigo, e eu notei [...]”.
7.6.6 Análise dos padrões do ciclo do matriarcado e patriarcado dos pais das mães das
crianças
C1: Pai e Mãe presos no arquétipo da Grande Mãe, dominados pelo dinamismo matriarcal,
sendo a consciência patriarcal pouca desenvolvida.
224
Não tenho para reclamar da minha infância, era boa. Meus pais não se entendiam, um dia
ele resolveu ir embora, não sei porque, e foi. Minha mãe nunca disse, ele bebia, mas era
bonzinho. Eu gostava muito dele, então saí de casa com 14 anos.”
C2: Casal se encontra neuroticamente fixados no dinamismo patriarcal
”[ ...] Ele dizia que minha mãe era ruim, não prestava[...] Ela conta que foi trabalhar um dia
e voltou e ele tinha trocado as fechaduras da porta e jogou toda sua roupa na rua, ela foi
embora, e nós ficamos com ele[...]Depois de um tempo ela levou a gente pra passear e não
devolveu mais. Então brigaram na justiça.”
C3: Mãe com fixação no dinamismo patriarcal
“Minha mãe enviuvou muito cedo, eu tava com 1 ano e 2 meses. Ele morreu de acidente de
trabalho. Então era filha única e ela me superprotegia, não deixava eu fazer nada[...] e
quando eu desobedecia ela me batia muito, batia minha cabeça na parede[...] Coitada! Hoje
eu entendo porque ela fazia isso. Era pra mi protege[...] Perdeu o marido cedo. Não tinha
ninguém, então tinha medo de me perder”.
C4: Mãe com fixação no dinamismo patriarcal
“Ela me batia me rejeitava[...] Eu fazia tudo: lavava, passava, cozinhava[....]Tudo que
acontecia de errado era culpa minha. Ela mandava eu fazer o meu serviço e se minha irmã
não fazia o dela ela mandava eu faze também[...] Ela me inferiorizava.”
225
8 ANÁLISE GERAL DOS RESULTADOS
Conforme nos propomos na introdução desta pesquisa como idéia básica que era
integrar o pensamento sistêmico com a abordagem da Psicologia Analítica, sobre a
importância do toque nas relações entre mães e filhos tentaremos apresentar, pelos resultados
obtidos na análise dos casos pontos similares entre essas teorias que foram possíveis de serem
observados.
As trocas afetivas na família imprimem marcas que as pessoas carregam a vida toda,
definindo direções no modo de ser com os outros afetivamente e no modo de agir com as
pessoas. Esse ser com os outros, aprendido com as pessoas significativas, prolonga-se por
muitos anos e freqüentemente projeta-se nas famílias que se formam posteriormente.
Szymanski, (2002) baseando-se em trabalhos de outros pesquisadores, indica que os
modos de agir e sentir que predominam nas diferentes camadas sociais, no que se refere às
punições físicas são mais intensas nas camadas empobrecidas (Mcloyd, 1990, 1998; Nunes,
1994; Kaslow, 2001 apud Szymanski, 2001) que podem ser compreendidas tanto à luz das
condições estressantes da vida a que são submetidas, como na reprodução da ideologia
autoritária e conseqüente subalternidade.
Entretanto, cabe ressaltar, que nos tempos atuais, a questões sobre violência, devem
ser amplamente discutidas, devido à diversidade de situações em que ela se faz presente e,
portanto, segundo os pesquisadores não se pode determinar certas condutas sociais como
226
padrão de uma classe social, porém os mesmos mantêm que, a classe social é um dos
elementos definidores dos modos de relacionamento interpessoal, por seus membros
carregarem culturas próprias, por compartilharem uma história, pelas experiências vividas,
pelas oportunidades educacionais que receberam e pelas condições de vida que
experimentaram.
Na abordagem analítica, quando se fala em crise fala-se da família patriarcal
tradicional, isto é, o modelo vigente de padrão de comportamento do grupo reporta-se ao
padrão desta família em sustentar as tradições, herança, culto ao sobrenome, repetição de
valores e leis (BYINGTON, 1987).
No caso da teoria sistêmica a compreensão de uma crise na família pode ser abordada
da seguinte maneira: a vivência em uma organização familiar onde está presente uma
hierarquia rígida ou confusa pode levar à repetição de padrões interacionais hierárquicos
iguais nas gerações subseqüentes ou, então, pelo “antimodelo” assumir posições contrárias ao
modelo “proposto” pela família de origem. A desorganização hierárquica dentro da família
pode ter como conseqüência alterações em outros padrões de interação como nas
triangulações, na afetividade, na comunicação, e assim por diante. (CERVENY, 2002)
Para Cerveny (1999), a família constrói a sua história a partir da história
compartilhada por seus membros. De uma relação muito dependente nos períodos iniciais da
vida do indivíduo, ele vai gradativamente construindo formas mais independentes de se
relacionar com os membros da família, até que na fase adulta, se espera que estabeleça um
padrão de relações mais equilibrado.
Ao longo desse processo, os afetos, as percepções dos papéis e funções de cada um, a
dinâmica das relações e o investimento emocional tamm estão em constante mudança e
reorganização, fazendo com que, cada período o significado que o sistema familiar adquire na
227
vida particular de cada indivíduo seja diferenciado. Assim, a subjetividade individual é
construída a partir da subjetividade do sistema, da mesma forma que esta é construída pelas
subjetividades individuais (CERVENY, 2002)
No caso da realidade brasileira a autora coloca que não existe família brasileira, mas
sim “famílias brasileiras”, em decorrência da sua diversidade cultural, passando por
características da vida contemporânea, seja ele urbana ou rural, que provocam no núcleo
familiar adaptação e transformação num constante movimento de adequação funcional.
Sobre a questão do corpo dos brasileiros, segundo Medina (2002), o que se observa
nas últimas décadas é um escandaloso crescimento do fenômeno da marginalidade, a que o
autor chamou de “Corpo Marginal” (Id., p. 84).
A família é compreendida como um sistema de relação que opera de acordo com
certos conceitos básicos e evolui de modo particular e complexo determinado por inúmeros
fatores. A autonomia e a individualidade não podem ser reconhecidas separadas de um
sistema plurigeracional, onde o indivíduo ao mesmo tempo é a parte e um todo sistema maior,
que pertence a sistemas maiores, num processo contínuo de comunicação e integração. Por
conseguinte, se oferecemos condições precárias de sobrevida aos indivíduos, seus corpos
receberão essas marcas e com isso o sofrimento se perpetua ao longo das gerações.
A idéia integrada e articulada do pensamento de Cerveny (1992), vem de encontro
com os pressupostos teóricos da Psicologia Analítica, uma vez que para Jung (1991) a meta
do desenvolvimento psíquico é o Si mesmo. A aproximação a ele não é linear, mas circular,
envolvendo elementos plurifatoriais para esta aproximação.
Ao Si mesmo ou Self Jung (1982), refere-se à totalidade consciente e inconsciente,
sendo o centro da totalidade psíquica.
228
Jung acreditava que no inconsciente coletivo sua natureza é mais universal, constituída
de conteúdos referentes a modos de comportamento, que são os mesmos em toda parte e em
todos os indivíduos e, portanto, idêntico em todos os seres humanos, que neste sentido
entendemos que a repetição de padrões interacionais de uma geração para outra subseqüente
abordada por Cerveny (2001) pode se assemelhar a idéia do inconsciente coletivo para Jung.
A repetição dos padrões interacionais multigeracionais (CERVENY, 2001) toma outra
dimensão quando impede o sistema familiar de mudar e crescer ou quando mantém uma
família num nível disfuncional, em que se faz necessária a intervenção terapêutica.
Outra similiaridade com relação as idéias de Cerveny (2001) e Jung (1991), é a
concepção de que o sistema para Cerveny seleciona do passado o padrão repetitivo que o
indivíduo vai incluir na sua própria história. Assim também podemos compreender a idéia do
inconsciente pessoal para Jung, mesmo que todo indivíduo já adquirira uma herança psíquica
(inconsciente coletivo) o que ele for armazenando em seu inconsciente pessoal estará sempre
relacionado com as suas experiências e história de vida.
Outro aspecto interessante que identificamos, entre os dois autores é sobre a questão
das profecias auto-cumpridas, que acontece com a repetição de padrão dos indivíduos como
referência de modelos familiares para Cerveny, e a concepção dos mitos antigos, retratado na
Psicologia Analítica como referências de modelo de repetição de padrões de comportamento.
Dentro do sistema familiar se estabelecem padrões interacionais, rituais e segredos,
rotinas como critérios de estabilidade e continuidade de uma geração a outra
protegendo assim o sistema familiar. Por sua longa função e por um nível de inter-
relação, pode ser considerado o mais importante na vida dos indivíduos
(CERVENY, 2002).
Os mitos não são apenas histórias antigas que trazem explicações acerca do mundo
familiar e seus fenômenos. Eles expressam as experiências vividas pela espécie
humana ao longo da sua história, de modo que todo homem deverá passar por ela,
pois são vivências típicas da espécie (arquetípica), e constituíram material de
inconsciente coletivo (JUNG, 1981).
229
Cerveny (2002) dentro da abordagem sistêmica constrói uma caracterização da
organização familiar, diferentemente de padrões construídos pela literatura estrangeira,
considerando os pontos que identificou em sua pesquisa sobre os arranjos familiares da
população brasileira, como citamos em nosso trabalho no capítulo 3, entre a página 88 a 93.
Na abordagem da Psicologia Analítica também encontramos material que nos propiciaram um
entendimento da dinâmica psíquica das famílias e possibilitando um entendimento dos
arranjos familiares dos casos analisados em nosso trabalho.
Como em nossa pesquisa a população investigada de famílias com filhos se referem as
crianças menores de 5 anos, nos abordaremos esta faixa etária dentro de uma compreensão da
Psicologia Analítica os aspectos do desenvolvimento da personalidade infantil e suas
aquisições psicomotoras que lhe garantem um envolvimento com o mundo externo para
entendermos e as questões que envolvem as crianças pesquisadas que se encontram na
condição de negligência e abandono em lares monoparentais, também conhecido como lares
matrilineares, isto é, mães sendo a responsáveis pelos cuidados e proteção dos filhos e
sustento dos filhos.
Sendo assim, baseados nos estudos de Cerveny (2002), falaremos da família na fase da
aquisição, em que a autora define como o nascimento de uma família formal ou informal com
cada um dos parceiros, trazendo sua bagagem de histórias construídas com as famílias de
origem e também, às vezes, de relações anteriores e que para haver uma mudança, isto é, uma
união entre as pessoas é necessário, um afastamento destas histórias anteriores, com isto se
desenvolve uma nova dinâmica com o intuito de estabelecer critérios para administrar novos
conflitos que surgem desta relação, tais como: planejamento sobre a decisão de ter ou não
filho, romper padrões e rituais e modelos adquiridos de família de origem.
230
Os cônjuges re-negociam valores e regras de relacionamento num processo de
construir um modelo particular da família que desejam. Com a chegada do primeiro filho
estabelece o marco da primeira grande mudança do sistema conjugal e que o casal necessita
ajustar-se para situação triangular que se forma.
Analisando os casos da pesquisa, considerando que as famílias se encontram na fase
de aquisição nos deparamos com os seguintes aspectos:
Caso 1: mãe de 7 filhos, sendo que 4 são de parceiros diferentes, e 3 de um único parceiro,
com todos os parceiros o relacionamento entre o casal se estabeleceu de maneira disfuncional,
acarretando em sérios confrontos pelas divergentes dos padrões interacionais, embora conviva
com o último parceiro o relacionamento é instável ocasionando em várias separações.
Caso 2: mãe engravidou com 15 anos e o namorado a traiu quando estava ainda grávida de 6
meses, decide interromper o relacionamento mas depois retorna o vínculo, morando nos
fundos da casa da sogra, porém o vínculo com o casa é também conturbado acarretando em
várias separações e reconciliações, uma vez que a mãe continua a morar nos fundos da casa
dos familiares do namorado.
Caso 3: mãe engravidou com 29 anos do primeiro filho, que atualmente está com 6 anos. Na
gravidez do filho de 3 anos descobriu que o marido a traiu e com 7 meses de gravidez decidiu
separar-se. Mesmo com a separação o ex-marido continua a freqüentar sua casa, diariamente,
alegando que as crianças precisam de um pai, porém alega não ter qualquer intimidade com o
mesmo.
Caso 4: mãe engravidou com 40 anos e namorava o pai do filho há 3 anos, fez tratamento para
engravidar e quando engravida descobre que o namorado ou companheiro tinha uma amante,
que também estava grávida do mesmo tempo que ela (8 meses), e que estava montando uma
casa para a amante. Apesar de todo sofrimento que alegou ter passado mantém contato
231
permanente com o namorado, inclusive vida conjugal, embora cada um tenha sua própria
casa.
Dentro destas condições das mães verificamos que nenhuma delas conseguiu
estruturar numa fase de aquisição conforme definido por Cerveny, não apresentaram uma
parceria e um compartilhar com seus companheiros, não se definindo um padrão de relação
que favorecesse ao casal criar uma vida conjugal objetiva e com metas que estruturasse a
parentalidade. Não se definiu também entre o casal critérios estruturais para educar os filhos.
No que se refere a abordagem analítica o desenvolvimento personalidade das crianças
depende da harmonia dos pais em operar o princípio masculino e feminino na relação
conjugal e verificamos que nas crianças destes casos estes princípios foram desenvolvidos de
maneira comprometida.
Segundo a Psicologia Analítica a criança estrutura a sua consciência na dimensão
matriarcal pela função simbólico-materna, propiciada e vivenciada com as figuras dos pais.
Analisando primeiro a condição de vida das mães desta pesquisa com a própria
infância e adolescência verificamos que:
Caso 1: embora não quisesse relatar sobre sua família extensa, alegou que saiu de casa aos 14
anos, quando seu pai se separou da sua mãe e foi embora.
Considerando a sua idade atual que é de 30 anos e a idade de sua filha mais velha 12
anos constatamos que a mãe teve o seu primeiro filho com 18 anos num período que segundo
Cerveny (2002) seria a fase de adolescência de uma família em que os filhos se encontram em
transição e mudança para a fase adulta.
Diante possivelmente de todas as incertezas que esta mãe passou para chegar na idade
adulta, entendemos que sua extrema desconfiança e revolta demonstrada hoje se atribua aos
232
sofrimentos das experiências do passado, acarretando numa extrema fragilidade e confusão
para administrar a própria vida, assim como de seus filhos, talvez pelo fato de não ter
encontrado na própria família nuclear a sustentação necessária para entrar na idade adulta, e
portanto desencadeando uma série de conflitos nas relações parentais. Morando longe da
família, engravidando do filho da patroa da casa em que trabalhava, mudando de parceiro a
cada dois anos, engravidando, e assim seguidamente até a filha de quatro meses demonstrando
aspectos de indiferenciação entre a função do dinamismo do matriarcado e do patriarcado, não
conseguindo constituir de maneira mais equilibrada estas funções.
Caso 2: mãe engravida com 15 anos do namorado de 18 anos, pais da mãe eram separados
desde que a mãe era criança e sugere ter havido entre o casal um exagero do domínio do
patriarcado na relação familiar. A mãe do caso 2 relatou que no sexto mês de gravidez
descobre a traição do namorado, porém, não consegue separar-se do mesmo, e atualmente
mora com sua filha de 4 anos nos fundos da casa da mãe do namorado. Verificamos neste
caso que engravidar na adolescência interrompe um processo natural na vida desta mãe
impedindo-a de explorar e conhecer novas experiências obrigando-se a entrar na idade adulta
precocemente, acarretando um despreparo nos cuidados a sua filha.
Caso 3: mãe universitária casou-se e engravidou do primeiro filho com 29 anos, entretanto, na
segunda gravidez é traída pelo marido, aos sete meses e se separa dele, porém, o ex-marido
continua diretamente a visitar as crianças em sua casa, deixando as crianças acreditar que eles
poderão um dia se reatar.
Quando relatou a conduta de sua mãe com ela sobre o excessivo controle, super
proteção e quando ela desobedecia sua mãe reagia com agressões físicas, como por exemplo:
batia sua cabeça na parede. Este caso, nos mostra que mesmo uma mãe que engravidou na
idade adulta não conseguiu garantir equilíbrio e segurança para educar os seus filhos,
233
possivelmente por ter sofrido as lesões e agressões de sua própria mãe, novamente sugerindo
a dificuldade de equilibrar os dinamismos do matriarcado e patriarcado, assim como as outras
mães.
Caso 4: mãe engravida com 40 anos do namorado, com quem convivia há três anos e também
foi traída pelo mesmo, quando se encontrava de 8 meses e meio. Este caso tem um histórico
muito trágico, seguido de molestações, humilhações e descaso durante todo o período de
infância e adolescência relatados pela mãe. Seu comportamento desenvolve-se de maneira
passiva diante do agressor e do molestador, em contra partida age com o filho de forma
autoritária e repressora.
Com estas condutas e histórias de vida das mães analisando o que foi possível sobre
seus vínculos com seus pais, verificamos alguns padrões familiares destes pais que podem
esclarecer certas condutas desenvolvidas pelas mães de nossa pesquisa. Esta análise baseou-se
nos estudos de Azevedo (1994), na abordagem da Psicologia Analítica.
Com o resultado apontado desta análise, utilizamos outro material, também da
abordagem da Psicologia Analítica, da autora Galiás (2001) como possibilidade de
entendermos os comportamentos, os arranjos familiares, que as mães estabelecem com seus
filhos
A proposta da autora analisa as questões da relação dos pais com os filhos
considerando a representação da figura materna e da figura paterna quando não bem
constituída desencadeando problemas de desajustamento emocional nos filhos, denominando-
as de relação assimétricas por haver desequilíbrio na representação dos arquétipos parentais.
Como em nossa pesquisa não objetivamos compreender a relação pai e filho não
apresentamos em nossa análise a representação arquetípica destes pais das crianças, muito
embora achamos interessante investigar-se em um outro momento, mesmo porque não
234
imaginávamos que famílias monoparentais, no caso desta pesquisa são famílias matrilineares,
as mães ainda mantivessem vínculos afetivos com os pais das crianças, uma vez que todas
alegam estarem separadas, porque seus companheiros as maltratam e desrespeitam, e o que se
constatou é que ainda mantém um vínculo de dependência, seja ele financeiro ou emocional
com esses parceiros.
Esta atitude das mães sugere que o grau de carência e perda que se configuraram ao
longo de suas histórias, parecem não terem sido elaborados e com isto mantêm mesmo de
maneira disfuncional vínculos com os parceiros.
Quanto às queixas das crianças verificamos que as justificativas sobre a violência
física, os maus-tratos e a negligência se atrelam ao argumento de “mau comportamento e
desobediência” além do que é importante “educar” os filhos e para isso precisa-se “controlá-
los”.
O que nos parece na verdade é que o corpo destas crianças manifesta os aspectos
sombrios destas mães, uma vez que a condição de oposição a realização de seus próprios
desejos, faz com essas mães impeçam seus filhos de manifestarem os seus próprios e a forma
com que as mães agem sobre as crianças acaba por denunciar seus conteúdos de sombra,
agindo de maneira controladora e possessiva.
As mães passam a idéia de quererem os filhos diferentes delas, mais independentes e
seguros, porém quando esta diferença se manifesta, reagem negativamente a ela.
Wallon (1995) em seus estudos coloca que no processo de desenvolvimento da criança
o movimento manifesta a existência do ser e que comprometimentos psíquicos se expressarão
através do ato motor.
235
Em todo o arrebatamento emotivo o indivíduo extravasa de certa forma as suas
sensibilidades, suas reações emotivas, estabelecem entre ele e o outro uma espécie de
ressonância e de participação afetiva, isto porque o corpo não é apenas um monte de órgãos,
vísceras, fluidos e funções.
Jung (1991) coloca que o corpo e a mente são aspectos do ser vivo e que as
manifestações emocionais são sempre acompanhadas de alterações físicas, coloca também
que o corpo é o apêndice da mente e causalidade reside no espírito e para que um corpo seja
percebido as vias sensoriais, o tom emocional associado a impressões sinestésicas expressam
as sensações que permite assim a reação corpórea.
Sendo assim o corpo como Sombra é percebido no sentimento de culpa e vergonha em
relação as expressões corporais das mães com seus filhos. A falta de espontaneidade nos
movimentos e sensações. que percebemos acontecer com as mães das crianças desta pesquisa
e quando as crianças manifestam seus sentimentos, nos seus gestos e expressões corporais são
punidos e reprimidos.
Os pais e as pessoas que cercam as crianças é que determinam o que elas podem ou
não expressar, assim ela aprende o que é um comportamento gentil e moral e o que não é, o
que não quer dizer que os sentimentos não existam quando as crianças não podem expressá-
los, apenas são rejeitados pelo Ego e exilados na Sombra.
A retomada do contato com o corpo e suas funções é canal viável para o
restabelecimento do contato com a natureza humana. Cuidar do ser implica devolver ao
humano o corpo que lhe falta e a palavra perdida. Por isso escolhemos a Calatonia e Shantala.
No caso das crianças, o comportamento diferenciado da primeira sessão de Shantala
para a segunda sugere que a possível mudança nas mães provocou uma sensação de bem
estar, carinho e cuidados, favorecendo entre ambos uma aproximação mais afetiva .
236
Com esta conduta percebemos que à medida que se oferece novas possibilidades de
arranjos para os vínculos afetivos nas famílias, e que esta apresente disponibilidade de refletir
sobre as questões que geraram determinados conflitos, percebe-se que há grandes chances de
se restabelecer e re-significar as relações entre as pessoas nos grupos familiares, assim como
Cerveny (2002), coloca que a subjetividade individual é construída a partir da subjetividade
do sistema, da mesma forma que esta é construída pelas subjetividades individuais.
Verificamos que o toque, tanto aplicado nas mães como as mães aplicando em seus
filhos, permitiram uma representatividade destas subjetividades que sincronicamente foi
percebida por ambos e construiu uma possibilidade de envolvimento sem tanto conflito,
amargura e rancor, e sim acolhedora, confortante e segura.
237
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim como na psicologia analítica, considero o relacionamento pai-mãe-filhos como
produto de um envolvimento que transcende os limites de uma relação puramente pessoal, de
um pai específico e de uma mãe específica, a partir do momento que entendemos que um pai
assim como uma mãe são filhos de um outro pai e de uma outra mãe, e assim sucessivamente,
que não pode ser compreendido a partir de um ou outro participante, mas sim em função do
campo psicológico simbólico-arquetípico constelado dentro da unidade familiar.
Não se pode esquecer que os pais de uma criança, não são apenas pai e mãe, mas estão
às voltas, muitas vezes, com seus problemas amorosos, suas responsabilidades pessoais e
profissionais, cuja carga de sofrimento pode ser pesada, e o tributo pago por esses encargos,
às vezes, extrapola ao controle consciente. O fato dos pais não se confrontarem com aspectos
sombrios de suas personalidades, deixando-os proliferar no inconsciente, fazem de seus filhos
futuros herdeiros desse tributo psicológico.
Assim, a criança estrutura sua consciência na dimensão matriarcal, através da função
simbólico-materna, propiciada e vivenciada com as figuras dos pais. Mesmo sendo a mãe
considerada a maior portadora e representante do arquétipo da grande-mãe, o pai também, ao
seu modo, a partir de sua própria vivência psíquica matriarcal, contribui para o
desenvolvimento da personalidade da criança dentro dessa dimensão. Embora seja o pai
238
pessoal quem carrega o arquétipo do pai mais intensamente na nossa cultura, a criança vive
esse princípio masculino também na figura da mãe, via Animus.
As forças psicológicas que atuam nesse campo, aliadas ao estado de indiscriminação
egóica do bebê, favorecem não só a vivência de identidade total dele com sua mãe, mas com o
campo arquetípico-simbólico-familiar, respirando toda atmosfera emocional que o cerca. É
também das forças inconscientes que estão subjacentes ao relacionamento dos pais que o bebê
retira o alimento psíquico para a estruturação da sua consciência.
No contexto da rede familiar, quando a mulher assume a chefia da família,
principalmente na situação monoparental ou matrilinear há uma redefinição das relações de
autoridade na família. Isto pode significar a ausência do pai ou o enfraquecimento com os
laços paternos, mas outras figuras masculinas da rede familiar podem assumir o papel de
autoridade moral. A monoparentalidade tem sido problematizada até aqui no quadro das
relações de redes familiares. Convém enfatizar que a rede social e as trocas intergeracionais,
ou seja, as solidariedades familiares ajudam a existência destas famílias, entretanto na
ausência do apoio seja ele, da família extensa ou de redes públicas, a estas mães, deparamos
com um índice elevado de denúncias, principalmente, no setor do poder judiciário sobre as
precárias condições em que as crianças se encontram.
Segundo Humpherys (2000), trabalhar os conflitos de negligência dentro de uma
família, deve-se levar em conta que esta família precisa rever vários níveis de conflito e
compreendê-los. No caso do grupo com o qual trabalhei os atendimentos sugerem que as
mães apresentam conflitos internos não resolvidos provavelmente oriundos de suas famílias
de origem.
239
Dentro de um sistema familiar, segundo Cerveny (2002) se estabelecem padrões
interacionais, rituais, rotinas como critérios de estabilidade de uma geração para outra. Ao
olhar-se uma família é possível identificá-la como uma estrutura mais ou menos delineada
considerando-se suas qualidades de regras, aspectos hierárquicos, seu delineamento de papéis
assim como tantos outros aspectos estruturais.
No caso das famílias atendidas essa estrutura encontra-se num padrão de repetição
interacional tanto no que se refere as relações entre as mães e seus filhos como também no
relacionamento entre o casal. Na relação das mães com seus filhos, segundo os relatos das
mães elas sempre tiveram dificuldade de relacionamento com suas mães, trazendo em suas
falas um tom de tristeza e sofrimento pela carência de afeto materno. Em se tratando do
vínculo com seus parceiros, o padrão também se repete, uma vez que suas mães não
mantinham um relacionamento saudável com seus parceiros.
Dentre os aspectos levantados nesta pesquisa os pontos importantes que considero
foram:
1. A confirmação do toque, favorecendo uma relação mais equilibrada e harmoniosa
entre as mães e seus filhos, isto é, após a técnica da calatonia nas mães, as mesmas
descobriram novas possibilidades de compreender seus filhos.
2. A condição dos vínculos dessas mães com suas próprias mães, onde trouxeram
relatos de maus-tratos, violência, abandono, humilhação e descaso enquanto conviveram
juntas.
3. A situação dos relacionamentos afetivos conjugais todos comprometidos e
disfuncionais; a dependência dessas relações e a manutenção de proximidade com esses
parceiros.
4. A similaridade em todos os parceiros de descaso, maus-tratos e desrespeito com
essas mães.
240
5. A falta de apoio de redes, seja dentro do núcleo familiar como social, para
minimizar os conflitos entre as mães e seus filhos.
6. Os padrões do ciclo do matriarcado e patriarcado dos pais das mães que
participaram desta pesquisa revelaram conflitos interacionais, acarretando em desordens na
organização psíquica das mesmas, impedindo-as de construir dentro de si melhores
possibilidades de desempenhar o papel materno.
Embora todas as queixas sejam denúncias de maus-tratos e negligência, a conduta de
todas as mães que permaneceram na pesquisa, foi de repúdio e vergonha de si mesmas por
não conseguirem cuidar melhor dos seus filhos.
Com estes aspectos abordados podemos supor que os abusos e agressões físicas a que
as crianças menores estão expostas, divulgadas em vários segmentos sociais, sugerem ser
muitos deles decorrência de uma falta de perspectiva das mães de conduzirem a maternagem
de maneira plena. Talvez por falta de uma escuta ao pedido de socorro das mães, pelos maus-
tratos que as mesmas foram submetidas enquanto crianças. Cabe ressaltar, também, que
embora alguns autores não considerem a falta de recurso financeiro como um fator
responsável pela instabilidade nas relações entre mães e filhos, nesta pesquisa este aspecto
aparece ser determinante na manutenção do vínculo das mães com seus parceiros, mesmo no
caso 3 em que a mãe alega não precisar do dinheiro do ex-companheiro, que é independente
financeiramente, alega que ele contribui com as despesas quando ela necessita.
Apesar de toda a insatisfação que essas mães têm com seus parceiros se submetem ao
convívio com os mesmos na garantia de proteger os filhos de suas necessidades básicas para
sobrevivência, abandonando dentro de si o respeito próprio e suprimindo os seus desejos, e
com isto manifesta-se de maneira negativa e sombria a função matriarcal, onde a ira e o
descontentamento se revelam como condutas no cuidado dos seus filhos.
241
Finalizando, gostaria de ressaltar como este trabalho foi gratificante, o quanto me
encantei com o que pude observar, o quanto me senti honrada das mães me permitirem
participar de um momento tão especial, de presenciá-las tocando em seus filhos com carinho,
ternura e cuidado, e ao mesmo tempo as crianças acolherem esse toque, retribuindo da mesma
maneira como forma de agradecimento.
Assim, diante do que se pode depreender do exposto percebe-se que da expressão que
espanta é possível haver um toque que encanta.
242
REFERÊNCIAS
ABRAMS, J. ZWEIG, C. Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da
natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1991.
AJURIAGUERRA, J. Manual de Psiquiatria Infantil. 2
a
ed. Rio de Janeiro. Masson &
Atheneu, 1981.
ALDRIGHI, T. Violência Conjugal: o caminho percorrido do silêncio à revelação.
Dissertação. 2001. (Mestrado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica, São
Paulo, 2001.
ARARANGY, L. R. Pais que educam filhos que educam pais. São Paulo: Celebris, 2003.
ARNOLD ,W. EYSENICK H. J., MEILI R. Dicionário de Psicologia. vol 1,2,3 Edição
Loyola, São Paulo, 1982.
AZEVEDO, L. Uma discussão sobre as transformações da família atual e suas conseqüências
para a psicologia junguiana. v. 11. Revista Junguiana. São Paulo: Athena, 1994.
AZEVEDO, M. A. & GUERRA, C.N. A. Crianças Vitimizadas: a síndrome do pequeno
poder. São Paulo: Iglu, 1989.
BALLONE, G.J. Criança adotada e de orfanato. 2004. Disponível em:
<www.psiqweb.med.br/infantil/adoc.html>. Acesso em: dezembro de 2005.
BAQUERO, V. Psicoterapia centrada no corpo. São Paulo: Loyola, 1995.
BENEDITO, V.L.D.I. Vínculos Familiares. v. 11. Revista Junguiana. São Paulo: Athena,
1994, p. 82-92.
BERTHERAT, T. O corpo tem suas razões: antiginástica e consciência de si. São Paulo:
Martins Fontes, 1977.
BOCK, L.M.B; FURTADO, O. & TEIXEIRA, M. de L. T. Psicologias. 13
a
ed. São Paulo:
Saraiva, 2002.
243
BOSSU, H., CHALANGUIER,C. A expressão corporal: método e prática. Rio de Janeiro:
Entrelivros Cultural, 1973, p. 17-27.
BREULIN, C. D. e col. Metaconceitos: transcendendo os modelos de terapia familiar. 2
a
ed.
Porto Alegre: Artmed, 2000.
BYINGTON, C. Desenvolvimento simbólico da personalidade: os quatros ciclos
arquetípicos. São Paulo: Ática, 1987.
CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
_____________. As transformações do Mito através do tempo. São Paulo: Cultrix, 1990.
_____________. O herói das mil faces. São Paulo: Cultrix, 1995.
CAVALCANTI, R. O mundo do pai. 9
a
ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
CERVENY, C. M. O. A família como modelo: influência da repetição de padrões
interacionais das gerações anteriores nos problemas atuais. Tese (Doutorado em Psicologia
Clínica). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1992.
___________ e col. Família e ciclo vital: nossa realidade. São Paulo: Casa do Psicólogo,
1997.
___________Histórias Familiares: conversando sobre mitos, crenças, segredos e profecias.
São Paulo: Lemos, 1999.
___________ A família como modelo: desconstruindo a patologia. São Paulo: Livro Pleno,
2001.
___________ e col. Visitando a família ao longo do ciclo vital. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2002.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 19
a
ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2005.
CIRLOT, J. E. Dicionário de símbolos. São Paulo: Moraes, 1984.
COSTA, W. V.; ACQUAVIOLI, M. Dicionário Jurídico. São Paulo: Madras, 2005.
244
DELMANTO, S. Toques sutis: uma experiência de vida com o trabalho de Pentho Sandor.
São Paulo: Summus Editorial, 1997.
DEMO, P. Metodologia Científica em ciências sociais. 2
a
ed. São Paulo: Atlas, 1992.
FARAH, R. M. Integração psicofísica: uma abordagem corporal segundo a psicologia de C.
G. Jung. São Paulo: Robel, 1995.
FERREIRA, M. de F. C. D. Aspectos da dinâmica intrapsíquica e do desempenho
cognitivo em crianças com fracasso escolar. 1998. Dissertação (Mestrado em Psicologia
Clínica). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 24
a
ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
FREUD, S. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XIV, 1996.
FROSTIG, M. Movement Education: Theory and Practice. Chicago: Follet Educational,
1970.
GALIÁS, I. Psicopatologia das relações assimétricas. v. 18. Revista Junguiana. São Paulo:
Athena, 2001, p. 113 – 132.
GALVÃO, I. Henry Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. 3
a
ed.
Petrópolis/Rio de Janeiro:Vozes, 1996.
GOMES, R. et al. A abordagem dos maus-tratos contra a criança e o adolescente em uma
unidade pública de saúde. Revista Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro. v.7, n.2, p.
275-283, fev. 2002.
GORODSCY, R.C. A criança hiperativa e seu corpo: um estudo compreensivo da
hiperatividade em crianças. 1990. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica). Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1990.
GREGÓRIO, B. Mitologia. Disponível em
<http://www.beautyonline.com.br/bernardodegregorio/mitologia.htm>. Acesso em
15.01.2006.
GUERRA, V.N. de A.; LEME, B. Um tema controvertido: a negligência. Revista Infância e
Violência Doméstica. p. 61
A, B, C, D, E, F, G., 2005. LACRI/ USP.
245
HUMPHERYS, T. Família: ame-a ou deixe-a. São Paulo: Ground, p. 79-86, 2000.
JUNG, C. G. Memórias, sonhos, reflexões. 3
a
ed. Petrópolis/Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1963.
___________ O homem e seus símbolos. 18
a
ed. Petrópolis/Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1964.
__________ The visions seminars. Zurique. 1976. Trad. de Pëtho Sandor, para uso exclusivo
em seu curso, 1982, p.301.
__________ Psicologia do inconsciente. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 1980.
___________ Tipos Psicológicos. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
__________ Aion estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Rio de Janeiro: Vozes, 1982.
__________ A dinâmica do inconsciente. 2
a
ed. v.VIII. Rio de Janeiro: Vozes, p.14-20,
1991.
__________ Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes,
2000.
KAST, V. Pais e filhas/ mães e filhos: caminhos para a auto-identidade a partir do complexo
materno e paterno. São Paulo: Loyola, 1997.
________. A dinâmica dos símbolos. São Paulo: Loyola, 1997, p. 144-154.
LAROUSSE CULTURAL. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Cultural,
1992.
LE BOULCH. J. O desenvolvimento psicomotor: do nascimento até 6 anos. 7ª ed. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1992.
LEBOYER, F. Shantala: uma arte tradicional, massagem para bebês. 2
a
ed. São Paulo:
Ground, 1989.
LE CAMUS, J. O corpo em discussão. Porto Alegre. Artes Médicas, 1986.
246
LÉVY, J. O despertar para o mundo, nos três primeiros anos de vida. São Paulo: Martins
Fontes, 1985.
LOWEN, A. A espiritualidade do corpo. 10
a
ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
MAHONEY, A. e ALMEIDA, L. R. (org.). Henri Wallon: psicologia e educação. São Paulo:
Loyola, 2000.
MCNEELY, D. A. Tocar: terapia do corpo e psicologia profunda. São Paulo: Cultrix, 1987.
MEDINA, J.P. S. O brasileiro e seu corpo. 8
a
ed. São Paulo: Papirus. 2002.
MIRANDA, E. E. Corpo: território do sagrado. 2
a
ed. São Paulo: Loyola, 2000.
MONIZ, L.C. Eros e Psiquê: o conto de fadas da mitologia. Disponível em
<http://www.mensageiro.com.br/html/index_mitologia.htm>. Acesso em 10 de agosto de
2005.
MONTAGU, A. Tocar: o significado humano da pele. São Paulo: Summus Editorial, 1988.
NASCIMENTO, A.C.A. Resiliência e sensibilidade materna na interação mãe-criança
com fissura labiopalatina. 2005. 196p. Tese (Doutorado em Psicologia). Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, 2005.
NEUMANN, H. A criança: o desenvolvimento e formação da personalidade. São Paulo:
Cultrix, 1995.
PASQUALI, L. Instrumentos Psicológicos: manual prático de elaboração. Brasília: Lab.
PAM; IBAPP, 1999.
PIRES, A. L. D.; MIYAZAKI, M. C. O S. Maus-tratos contra crianças e adolescentes: revisão
da literatura para profissionais da saúde. Revista Arquivos de ciências da saúde. São José do
Rio Preto, v. 12, n.1, Jan/Mar. 2005.
Psicoterapia Corporal. Disponível em: <www.portal do psicólogo.com.br>. Acesso em 10
de agosto de 2005.
RAMOS, D. G. A psique do corpo: uma compreensão simbólica da doença. São Paulo:
Summus Editorial, 1994.
247
REICH, W. Função do orgasmo. São Paulo: Brasiliense, 1996.
REY, G. Pesquisa qualitativa: caminhos e desafios. São Paulo: Thompson Pioneira, 2002.
RICHARDSON, J. R. e col. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3
a
ed. São Paulo: Atlas,
1999.
ROBERTSON, R. Guia prático de psicologia junguiana. 9
a
ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
SANDOR, P. e col. Técnicas de relaxamento. Vetor: Editora Psico-Pedagógica Ltda., 1974.
p.92-100.
SANNINO, A. Métodos do trabalho Corporal na Psicoterapia Junguiana: teoria e prática.
São Paulo: Moraes, 1992.
SHARP, D. Léxico junguiano. 10
a
ed. São Paulo: Cultrix, 1991.
SHILDER, P. Imagens do corpo: as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
SILVEIRA, N. da. Jung: vida e obra. 7
a
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
_________. Jung: vida e obra. 15
a
ed. Rio de Janeiro: Paz na Terra. 1994.
SOARES, C. L. Corpo e história. Campinas: Autores Associados, 2001.
Sociedade Brasileira de Pediatria/ Fundação Oswaldo Cruz/Ministério da Justiça, MJ2001.
Guia de atuação frente a maus-tratos na infância e na adolescência. Disponível em:
<http://www:scielo.br/scielo.php>. Acesso em 10 de janeiro de 2006.
SOUZA, M. T. S. de. A resiliência na terapia familiar: construindo, compartilhando e
ressignificando experiências. 2003. Tese (Doutorado em Psicologia Clínica), Pontifícia
Universidade Católica, São Paulo, 2003.
SOUZENELLE, A. O simbolismo do corpo humano. 10
a
ed. São Paulo: Pensamento, 1995.
248
Spitz , A. R. O primeiro ano de vida: um estudo do desenvolvimento normal e anômalo das
relações objetais. São Paulo:. Martins Fontes, 1979.
SZYMANSKI, H. Viver em família como experiência de cuidado mútuo: desafios de um
mundo em mudanças. Serviço Social & Sociedade. Revista Quadrimestral de Serviço
Social. Ano XXIII, n. 71, p. 09-61, 2002.
TAVARES, M. da C.G.C. Imagem corporal: conceito e desenvolvimento. São Paulo:
Manole, 2003, p. 51-77.
TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em
educação. São Paulo: Atlas, 1987.
VAYER, P. O diálogo corporal: a ação educativa para a criança de 2 a 5 anos. São Paulo:
Manole, 1989.
VISHNIVETAZ, B. Eutonia: educação do corpo para ser. São Paulo: Summus Editorial,
1995.
VITALE, M.A.F. Famílias monoparentais. Revista Serviço Social & Sociedade. São Paulo:
Cortez, v. 71, p. 45-62, 2002.
VITTI, M. A. Pequeno manual de funcionamento e manutenção do adolescente. São
Paulo: Cabral, 2002.
Von BERTALANFFY, L. Teoria Geral de Sistemas. Petrópolis: Vozes. 1977.
Von FRANZ, M-L. C.G, JUNG: seus mitos em nossa época. 10
a
ed. São Paulo: Cultrix,
p.13-17, 1997.
WALLON, H. A evolução psicológica da criança. Portugal: Edições 7, p. 48-61- 117, 1968.
____________ As origens do caráter da criança. São Paulo: Nova Alexandria, 1995.
YIN, R. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2
a
ed. São Paulo: Bookman, 2002
249
APÊNDICES
250
APÊNDICE 1 - Dados de Identificação da Mãe
Caso 1 Caso 2 Caso 3 Caso 4
Idade
30 18 35 44
Nível de
Escolaridade
5ª série 7ª série
Ensino Superior:
Ciências
Contábeis
2º grau completo
Situação Sócio-
Econômica
Desempregada,
dependente
Desempregada,
dependente
Independente
Vive da pensão
do filho
Encaminhamento
Fórum
Clínica de
Psicologia
Conselho Tutelar Conselho Tutelar
Queixa
Abandono e
maus-tratos
Maus-tratos Maus-tratos Maus-tratos
Número de Filhos
6 1 2 1
Filhos Menores de
5 anos
: 4 anos
: 2 anos
: 4 meses
: 3 anos : 3 anos : 5 anos
Modelo Familiar
Matrilinear Matrilinear Matrilinear Matrilinear
Quanto tempo
separada do
companheiro
Mantém vínculo
instável
Mantém vínculo
instável
Mantém vínculo
pelos filhos
Mantém vínculo
pelo filho
Condição de
Moradia
Dependente do
ex-companheiro,
não tem para
onde ir
Mora nos fundos
da casa da
ex-sogra
Casa própria
A prima cedeu
uma casa para
morar
Dê quantos
companheiros
engravidou
3 1 1 1
Situação que
provocou a
separação com o
companheiro
Violência e
maus-tratos
Acomodado
Infantilidade e
Irresponsabilidade
Irresponsável e
oportunista
Não trabalha
É mulherengo
Irresponsável e
mulherengo
251
APÊNDICE 2 – Aspectos na História de Vida das Mães
Caso 1 Caso 2 Caso 3 Caso 4
Planejamento
da gravidez dos
filhos
Não planejou
Não pensou em
abortar
Não planejou
Não pensou em
abortar
Não planejou
Não pensou em
abortar
Não planejou
Não pensou em
abortar
Durante a
gravidez teve
problemas com
o parceiro
Apanhou do
companheiro nas
três gestações,
ele alegava não
ser o pai
Descobriu que
estava sendo traída
com outra aos 6
meses de gravidez
Mandou o
namorado embora,
mas depois ele
voltou
Traição do ex-
parceiro
Mandou-o
embora, mas
mantém vínculo
Traição do
ex-parceiro
Sentimento
durante a
gravidez
Tristeza, mágoa e
medo
Tristeza Tristeza Tristeza
Período da
adolescência das
mães
Saiu de casa com
14 anos quando
os pais se
separaram
Engravidou aos 15
anos
Mãe viúva e
superprotetora;
apanhava muito,
mãe batia
sua cabeça
na parede
(estuprada com 20
anos, era virgem)
Abusada
sexualmente dos
6 ao 7 anos pelo
primo adolescente
e dos 13 aos 18
anos pelo tio
(cunhado da mãe)
252
APÊNDICE 3 - Dados Referentes à Primeira Entrevista com as Mães
Caso 1 Caso 2 Caso 3 Caso 4
Gestação
Conturbada Conturbada Conturbada Conturbada
Sensação
durante a
gravidez
Normal
(não houve
problema com o
bebê)
Normal
(não houve
problema com o
bebê)
Normal
(não houve
problema com o
bebê)
Normal
(não houve problema
com o bebê)
Amamentação
Não amamentou
Até hoje
amamenta
Amamentou até 7
meses.
Amamentou até 9
meses e ainda mama
na mamadeira
Reação quanto
irritação do
filho
F1: dá chupeta,
chinelada, manda
deitar;
F2: quem cuida é a
filha de 12 anos (é
chamada de mãe);
F3: dá chupeta
Briga, leva
palmada, grita
muito para não
bater
Já chegou a pensar
em matar. Bate
muito, já bateu com
rodo no rosto do
filho.
Pequenas palmadas.
Irrita-se fácil e grita
muito.
Atividades
para acalmar a
criança
F1: brinca sozinha
e a mãe faz seu
serviço;
F2: não faz birra;
F3: dar de mamar
e chupeta
Amamenta e aí a
filha dorme
Antes batia, agora
conversa com mais
calma.
Antes batia, agora
conversa com mais
calma.
Situação de
toque
F1: Banho, deita
com a mãe na
cama e fica
falando;
F2: Banho e Colo;
F3: Banho e colo
Banho e
Amamentação
Com freqüência, ele
gosta.
Banho, trocar de
roupa.
Aprendizagem
do controle das
esfíncteres
F1: usa fralda;
F2: usa fralda;
F3: usa fralda.
Controle vesical e
urinário desde os
2 anos
Controle vesical e
urinário desde os 2
anos
Usa fralda à noite
Idade das
Crianças
F1: 4anos
F2: 2 anos
F3: 5 meses
3 anos 3 anos 5 anos
Sentimento que
desperta
quando pensa
nos filhos
F1: Cuidar, agora
já veio, é.fazer o
que;
F2: É tudo
F3: sofrimento
Muito afeto,
apesar de não
saber cuidar.
Ele sou eu, eu gosto
muito.
É tudo, meu ar.
Situação em
que o filho toca
a mãe
F1: quando vê a
nenê no colo, quer
colo;
F2: Sim;
F3:
Beijo, pula na
mãe, adora um
colo.
Beija muito, pula
no colo.
É difícil ele tocar
Dificuldades
enfrentadas
para cuidar do
filho
F1, F2 e F3: nunca
teve orientação;
problema com a
família do marido;
e financeiro
Situação
financeira. Vida é
muito agitada.
Não sabe educar,
acalmar.
“Sou muito
agitada”
Não teve ajuda
253
ANEXOS
254
ANEXO 1
Entrevista semiestruturada
Dados de Identificação
1. idade
2. escolaridade
3. profissão; renda mensal
4. quantos filhos tem; idade
5. há quanto tempo vive sozinha sem companheiro
6. todos filhos; se houver mais de um são do mesmo companheiro
7. Se não forem; de quantos companheiros engravidou e quanto tempo permaneceu com
cada um deles; motivo da separação
8. Condições de moradia; aluguel; casa própria; mora sozinha ou com parentes (quem; há
quanto tempo)
9. Na residência em que mora quantas pessoas também reside neste local
Dados referentes a maternidade
1. Gravidez planejada; reação
2. Conduta durante a gravidez (pré-natal e outros cuidados médicos se foi necessário)
3. Uso de medicação; motivo e qual
4. Sensações corpóreas durante a gravidez e sentimentos referentes a esta sensação
5. Situações marcantes enfrentadas durante a gestação
6. Condições do parto e do nascimento do filho
7. Tempo de internação da mãe e do filho
255
8. Sensações percebidas após o parto e a primeira mamada
9. Primeiros cuidados com o filho (banho; troca; amamentação – por quanto tempo)
10. Rotina com o filho no primeiro ano de vida
11. Aspectos gerais sobre o desenvolvimento do filho (sentar; engatinhar; andar; falar...)
12. Dificuldades enfrentadas para cuidar do filho
13. O que seu filho representa para sua vida
14. Quais sentimentos despertam quando pensa em seu filho
15. Qual conduta você toma quando seu filho lhe irrita
16. Como você procura acalmá-lo
17. Em que situações você costuma tocar no corpo de seu filho
18. É comum você ser tocada pelo seu filho; em que situações é freqüente
256
ANEXO 2
CASO 1
Queixa: Abandono e Negligência
1º. Encontro com a mãe: visita domiciliar, sendo que me acompanhou a Assistente Social da
Clínica de Psicologia da UNITAU.
Local de moradia: zona rural
Condições de moradia: casa semi-construída, de lajotas, sem janelas (protegidas com
plásticos), chão batido, móveis quebrados, condições de higiene do espaço físico precários.
Condições das crianças: no dia encontramos cinco filhos que são: uma menina de 8 anos, um
menino de 6 anos, uma menina de 4 anos, uma menina de 2 anos e uma menina de 4 meses. A
filha mais velha dos seis, a de 12 anos, encontrava-se na escola. O vestuário, exceto da
menina de 8 anos era um shorts, mas todos de pés descalços. As meninas menores, exceto o
bebê estavam com várias picadas pelo corpo que a mãe alegava ser alergia das formigas do
quintal.
Quando chegamos a mãe ficou muito apreensiva, pensando que fossemos agentes da
FEBEM, com intuito de verificar as condições das crianças, para retirarmos seus filhos
novamente. Explicamos o objetivo de nosso trabalho, mas mesmo assim ficou muito
desconfiada. Sentamos na cozinha, e durante a nossa conversa o bebê que estava no quarto
dormindo começou a chorar e a mãe alegou que era fome, porém, não se dirigiu ao quarto.
Sugeri que fossemos até ele para vermos o que estava acontecendo. Ao chegarmos no
quarto encontramos o bebê deitado na cama de casal, que se encontrava toda desarrumada,
com roupas espalhadas pela cama, mal cheirosas. Perguntei se poderia pegar o bebê, a mãe
consentiu e então notei que ele estava todo molhado e pedi se me autorizava a trocá-lo. Mãe
consentiu e ao retirar a roupa do bebê que estava com fralda descartável (doação) deparei-me
com as nádegas do bebê totalmente avermelhadas, com feridas de assaduras.
O bebê chorava muito e solicitei-lhe uma bacia com água, para banhá-la, quando ela
alegou que a mulher que cuida da criança deixa o bebê com a fralda molhada o tempo todo,
por isso ele estava com assadura. Perguntei quem era esta senhora e me disse ser uma vizinha
que fica com o bebê quando ela precisa ir à cidade ou levar as crianças para a escola.
Perguntei se o bebê ficava sempre com esta mulher e ela me disse que não. Ao buscar a bacia
disse que ia retirar a roupa que estava dentro dela, ensaboada. Falei que não precisava mais da
bacia e se me autorizava ir até o chuveiro banhar o bebê. Novamente autorizou, e quando me
adentrei ao banheiro, deparei-me com o estado extremamente precário de higiene do mesmo.
Exalava um mau cheiro e o vaso sanitário todo sujo por dentro, mãe alegou que a
descarga estava quebrada e quando me dirigi ao chuveiro com o bebê, solicitei um sabonete e
me deu um resto de sabonete todo sujo. Lavei o sabonete, depois que ele ficou sem nenhum
resíduo, pois encontrava-se no chão, espumei-o em minhas mãos e banhei as nádegas do bebê.
Neste momento o bebê se acalma, voltamos para o quarto, me deu uma toalha semi-limpa,
enxuguei o bebê, passei a pomada para assadura, que tinha em sua casa, nas dobras das
257
nádegas, limpando-as. Após o término do banho, troquei-o e mantive no meu colo.
Novamente o bebê começa a se incomodar e a mãe alega que é fome. Perguntei se ia dar de
mama a ele, foi quando se levantou da cadeira da cozinha e pegou a mamadeira, que já estava
pronta e fria na pia. Dei-lhe o bebê para mamar e então ela sentou no sofá, continuava
conversando conosco, sem prestar atenção que a mamadeira estava mais baixa que a altura da
boca do bebê. E, então novamente ajudei, conduzindo a mamadeira para a boca do bebê, de
maneira que não entrasse ar na mamadeira.
Ficamos em sua casa quase duas horas. As crianças menores estavam em nossa volta,
brincando até que combinamos um horário para comparecer na Clínica, se quisesse, para
fazermos o trabalho. Continuava desconfiada e não garantiu que iria comparecer. Para nossa
surpresa, no dia marcado e no horário, surge a mãe para o atendimento, pontualmente.
Neste dia mostramos o termo de consentimento, que se ela quisesse estaria assinando
para que pudéssemos filmar e gravar as sessões de técnicas de relaxamento, que o meu
trabalho propunha.
Assinou o termo, embora tenha demonstrado medo e também verbalizou que estava
insegura comigo achando que eu iria retirar-lhe as crianças e mandá-las para a FEBEM.
Esclareço novamente o termo de consentimento e explico o projeto e deixo a seu
critério aceitar participar ou não da pesquisa. A mãe concorda e assina o termo.
2º. encontro com mãe: 1
a
Entrevista
P: O que aconteceu com você e as crianças para elas ficarem no abrigo provisório?
C1: Na verdade o meu problema é tudo porque a minha sogra não gosta de mim
P: Como assim?
C1: Bem o meu marido, não sei nem se devo falar assim, porque nois não casamos eu chamo
assim porque fui morar com ele primeiro no fundo da casa da minha sogra e depois na casa, lá
de baixo no terreno dela, aquela que cê foi, ele briga muito comigo por causa dela, não
acredita em mim e só na mãe dele, se a mãe dele fala bobage para ele ele acredita e quer me
bater, aí ela vem querer me bater os irmãos dele também, todo mundo, então eu fujo, não vou
deixar que ele me bata. Foi assim. Tudo o que ela fala de mim ele acredita, quer bater em
mim, e como a gente mora no terreno dos pais dele todo mundo quer bater ne mim. Eu fugi de
casa não foi porque abandonei as crianças, mas era porque ele e ela a mãe dele e os irmãos
queriam tudo bater ne mim, aí eu saí correndo, não tinha pra onde ir e fiquei num albergue e
eles pegaram meus filhos e levaram pro abrigo.(falava com tom de voz muito alto e agressivo,
parecia muito revoltada) Aí ele foi no Fóru e falo para E. que eu abandonei as crianças. É que
eu não tenho onde morar, já fui na prefeitura, pedi casa, mas a minha não saiu pru monte de
gente já saiu. Se eu tivesse minha casa eu ia embora com meus filho. Eu já falei pra ele que
levo os três meus e ele fica cos trêis dele.
P: Como assim não entendi?
C1: É , eu tenho três filhos que não é dele, eu levo embora comigo, porque eu não posso levar
os 6, e ele fica cas menina que são filhas dele. (falava muito alterada e acelerada). Senão
comu é que eu vou trabalhar....Ah! mas a menina de dois vai ter quer ir porque ela não fica
sem minha filha mais velha a de 12 anos. Ela chama minha filha de mãe. (começou a chorar
compulsivamente).
Silenciamos por um tempo, e depois retomamos.
P: Desde quando você o conheceu, comente um pouco sua história de vida?
258
C1: Não tenho nada pra reclamar de quando eu era pequena, minha infância era boa. Saí de
casa quando meus pais se separaram. Eu gostava muito do meu pai, aí ele foi morar em São
José e minha mãe fico em Caraguá, então fui trabalha de doméstica e morava na residência
dus meu patrão.
Meus pais não se entendiam, um dia ele resolveu ir embora e foi, não fiquei com raiva dele.
P: Porque seus pais se separaram, o que aconteceu?
C1: Nada, meu pai era muito bom, não deu certo aí ele foi embora. Meu pai já morreu, tem
oito anos, ele ficou doente. Depois que meus pais separo eu nunca mais vi ele, só minha mãe e
minha irmã, elas tão em Caraguá (demonstrou insegurança para falar, parecia não querer
revelar alguma coisa, foi respeitado).
P: Com relação aos seus filhos, conte-me um pouco sobre seus relacionamentos com o pai das
crianças.
C1: O pai da minha primeira menina, era o filho da dona duma das casa que eu trabalhei, a
gente se gostou então eu engravidei e ele assumiu, depois de 2 ano a gente se separo. Ele
registro a menina, ela ganha pensão até hoje, ele dá R$ 50,00 por meis, não sei bem direito,
mas parece que ele tá muito doente, com doença grave, ele mora em Caraguá com a mãe. Foi
ela que falo pra minha irmã e minha irmã me disse. Aí engravidei de novo fiquei disisperada,
o rapais não quis assumi e eu nova não sabia o que faze no hospital dei a criança pras irmãs,
elas falaram que era melhor pro meu menino, foi menino que tive (começa a chorar), eu nunca
vi ele, não sei onde ele tá, nossa já sofro muito de te dado ele agora vem os outro querendo
toma as criança de mim. Depois de dois anos engravidei de novo, o rapais também não assumi
mas desta veis eu não dei, fiquei ca menina. Nesta época eu já morava aqui, morava ca minha
irmã e ela me ajudo e eu fiquei co ela dois ano. Não sei que acontece comigo, tava namorando
e engravidei de uma tranquera, o cara não prestava, fumava droga, agente brigava muito, ele
foi preso, aí tomaram o meu menino e ele fico lá 6 meses e só tirei ele quandu eu tinha onde
morá e tava trabalhando, ele fico no abrigo, tava com 1
ano 2 meses, as menina fico ca minha
irmã. Quando tirei as criança as maiorzinhas ia pra creche, e o menino arranjei uma pessoa
pra cuidar, enquanto tava trabalhando. Na época eu era diarista, aí conheci meu marido, a
gente se dava bem e quando engravidei da primeira menina dele falo pra gente mora junto e
eu topei, a gente foi morá nos fundos da casa da mãe dele, mais deu tudo errado minha sogra é
muito ruim, sempre me xingo, fala que as crianças não é filho dele e o pior é que ele acredita
nela, minha vida é um inferno, ele vive me expulsando da casa. Agora a gente mora numa
casa, a que ce viu, lá embaixo, ele que construiu, mais é no terreno dela então eles vive me
expulsando. (novamente começa a chorar, fala de maneira muita intensa demonstrando raiva
desta sogra) A gente briga muito tudo por causa dela, também com os irmãos dele vem pra
bate ne mim aí eu fujo. Já fugi duas vezes para não apanha e como não tinha onde fica fui pru
albergue.
P: Neste período é que as crianças vão para o abrigo?
C1: É eles ficaram dois meses. Meu marido foi mi buscá no albergue, pedindo pra eu volta pra
ele. Eu aceitei e a gente retiro as crianças do abrigo.
P: Depois de tudo que você passou as coisas melhoraram?
C1: Melhoro nada, as brigas continua, ele disconfia de mi, não sei porque, a mãe dele fala
bobage e ele acredita, o pior é que não desceu pra mim e acho que to gravida. Falei pra ele,
ele mi xingo, não qué nem chega perto, fala que o filho não é dele. Ele fica bravo, quebra as
coisa em casa. Deus mi livre se tivé grávida, eu me mato, já num cuido de seis mais um, mais
não é possível (chora novamente).
P: Você já foi ao médico?
C1: Que que adianta, a gente vai lá eles manda volta daqui 6 meses, eu fui faze o preventivo
antes de nasce a segunda menina do meu marido, eles falaram que não pudia porque eu era
259
jovem, magina eu com quatro filho ia quere mais um, o médico não fez pra mim a lacadura, ai
não sei o que vou faze.
Silenciamos um pouco, tentei acalmá-la, e marcamos outro dia pra trazer a filha de 4 anos,
para começarmos o trabalho proposto.
2ª Sessão de Shantala
P: O que esta acontecendo, você parece muito agitada?
C1: Ele tem o serviço dele, ele trabalha o dia inteiro, mas eu também tenho o meu trabalho.
Você tem o seu serviço eu também tenho o meu, você sai de manhã e volta a tarde, só que cê
sabe eu tenho vários serviços pra mim fazer, só que ele acha ruim eu fala pra ele, eu tenho
vários, você que troca de serviço comigo, eu vou trabalhar pra fora e você fica aqui dentro.
Então se cala sua boca (sic companheiro). Cuido de criança vou buscar na escola, anda aquele
pedaço, chego em casa limpo a casa todo dia, busca na casa de não sei quem e ainda fica
falando fazendo gracinha comigo.
P: É assim que você tem notado?
C1: E ainda fala: eu não quero mais dormir com você. Pra mim ainda bem.
P: Ele está agressivo novamente?
C1: É, só que essa atitude ele fala ou nois separa e se sai, mas eu não tenho aonde ir com
meus filhos.
P: O que você pensa, você esta com medo de ser mandada embora de casa?
C1: Eu não tô mais brigando com eles.
P: Antes você brigava?
C1: Várias vezes.
Estava muito agitada, não parava para ouvir
P: Antes você fugia porque tinha medo e agora com é que você esta enfrentando? Houve
alguma mudança?
C1: Eu vou enfrentar, mas... Mudei? Se eu mudei? Não
P: Pelo que estou entendendo você está enfrentando agora as coisas sem necessidade de fugir,
de se esconder, você não precisa fugir, fugindo parece dizer que você abandonou seus filhos.
Está me dizendo que você nunca abandonou seus filhos, você apenas fugiu, para não apanhar.
Parece que as crianças foram recolhidas e ele inventou , esta história, é isso?
C1: A hora que eles ficarem sabendo que faz uma semana que ele ta brigando comigo, a hora
que ele contar lá em cima, aí desce, não precisa nem descer, a hora que eu precisar atravessar
a rua, aí vem, aí começa. Eles me ofende. E ele faz isso em casa e conta tudo pra família, daí
eles falam, mas você é um bobo de ficar com ela, daí eles começam a falar isso, o que você
quer que eu faça. Eu fico quieta, aí se de repente eu bato boca na rua e eu pego ela e bato
(sogra), nela ou em uma das irmãs dele, aí sobra pra mim. No Fórum eu não volto mais, eles
querem tirar minhas crianças.
P: Você consegue alguma prova concreta do quanto você é ameaçada?
C1: Não. eu já falei pros guardas quando eles foram na minha casa quando deu uma briga
feia. Eles botaram eu dentro do carro e mandaram eu ficar quieta, já tentei, eles falaram que
daí vai ter que chamar um advogado e vou ter que contar a historia todinha.
P: Hoje você está conseguindo ter alternativas melhores para resolver as suas coisas, porém
você precisa mostrar isso às crianças e talvez você se sinta mais fortalecida.
C1: Eu sei que você quer dizer. Você qué que eu venha aqui para relaxar as criança. Eu
entendi isso. Eu senti as crianças mais calmas. Eu também fiquei mais calma, mais do jeito
que tá não dá. Que nem ontem eu dando banho na minha menina de 4 meses, o cara tava lá na
porta do banheiro, e ficava me xingando: eu tô falando com você? ta escutando?, então sabe...
arruma suas coisas e vai embora. Eu tava queta no meu canto com as crianças. A mãe dele
260
inventou que eu tava na moita, lá em cima com um home, nem sei quem é. Aí ele começa me
ofende (ficou muito agitada).
(Voltou a chorar novamente, tranqüilizei tocando em teus ombros)
C1: E o que dá mais raiva e as coisas que a mãe dele já fez.
P: Você acha possível fazer a massagem em A.? Se você quiser não faremos, continuamos a
conversar.
C1: (Começa chorar compulsivamente) Fiquei lá 3 meses, tiro minhas coisas, trouxe pra cá, aí
vou pagar um aluguel, outra vez ele foi me buscar em Caraguá, mas eu não vou atrás de
polícia não, todo mundo viu, ali, e todo mundo diz você não tem direito de ta aqui dentro,
todo mundo fala é a mesma coisa que eu penso, você não tem o direito de ta aqui dentro. Eu
sei que eu não tenho, mas cadê a pessoa pra me provar que eu não tenho esse direito de ta ali
dentro, eu não tenho direito, tenho direito do que, de apanhar. (Chora). Porque eu fico
procurando serviço adoidado, eu não sei, às vezes eu penso no que pode acontecer na minha
vida, mas eu penso comigo se eu conseguir um emprego que pague um salário por aí, eu vou
sumir, eu vou pagar aluguel, não quero ele na porta de casa, pra fora do portão. (Chora).
Primeiro que lá não tem creche, aonde eu moro não tem nada, quando tem briga e ajunta tudo
na minha cabeça.
P: E o que você está procurando? O que você quer?
C1: Tem que arrumar alguém pra deixar as crianças né, ela já estudou na creche do Belém, ela
ficou o dia inteiro no Belém, quando eu trabalhava.
P: Você já saiu para ver essas coisas?
C1: Tem aqui na Prefeitura.
P: E você já foi lá?
C1: Eu já fiz dois cadastros e eu não procurei porque tanta gente, eu conheço gente da cidade
inteira que fala que vai da creche escola, que vai dá casa, mas não acontece nada para mim, eu
não procuro mais ninguém.
P: Por que?
C1: E o que eu falei pra você não dá, eu não sei.
P: O que você está procurando?
C1 : Não, eu não tô procurando nada porque eu quero largar primeiro, mas eu não quero
largar primeiro e ir pra rua. Maldade, a gente tem que ficar esperando, esperando.
P: Então, como você busca aliviar esse sofrimento?
C1: Eu ficando de boa, não vai acontecer nada, e acontecer uma coisinha, uma coisinha de
nada, daí já pronto, ele sabe que eu não gosto disso.
P: Você está dizendo que não dá mais para suportar. Vamos pensar o que você está fazendo
para melhorar a sua vida?
C1: Não, eu espero, do jeito que ta não dá pra ficar mais não, fica quieta, quieta. Eu não vou
procurar nada, porque eles todos, a O. falou que é para eu guardar a casa, que o prefeito vai
dar, ele até falo ontem, a O. foi lá em casa. Viu os documentos, tirei xerox dos documentos, e
o papel do holerith, e falô dentro de casa, agora você aguarda, porque eu vou arrumar uma
casa da prefeitura pra você.
P: Quanto tempo?
C1: Em abril agora, eu tenho tudo marcado eu fiz duas fichas.
P: Você foi lá saber?
C1: Não, eu fui lá mais de uma vez.
P: Você não acha perigoso você perder a casa, por não ir saber se vai sair?
C1: Mais perigoso é deu sozinha enfrentar aquele povo, só isso.
P: É uma situação difícil. Tem saída?
261
C1: Eu não tenho.
P: Será que tem, só que você não sabe qual?
C1: Não tenho.
P: Você ligou para o Fórum para dizer o que está acontecendo?
C1: Não, no Fórum eu não vou porque lá é abrigo pras crianças e albergue pra mim. Então, se
eu tiver que ir eu sei onde eu vou. Eu não vou falar não, aqui eu não vou falar não. Mas eu sei
onde eu vou. A I. falo, não o G. falo que se as crianças voltassem aquela situação as crianças
voltavam pro abrigo. Depois pra sair, o G. que falo que ia ver se conseguia, porque fica
brigando e voltando. Como eu não sei quem que eu vou procura. Cê entendeu? Se eu for no
Fórum eles tomam as crianças.
P: O que você quer é uma casa da prefeitura para você morar é isso?
C1: Ou do CDHU, só que do CDHU todo mundo vai, todo mundo vai no CDHU faz o
negócio e sai e paga, eu não, eu nunca fui no CDHU.
P: Então isso já é uma outra possibilidade?
C1: Sabe porque eu nunca fui no CDHU, primeiro porque é pago. Eu não mexo em nada
porque eu penso que eles que tão mexendo. E coisa da Prefeitura.
P: M. , mas o interesse é seu, depende de você.
C1: E eu vou lá ver.
P: Isso, isso, você tem que checar. Se as pessoas estão fazendo o que elas prometeram.
C1: O prefeito, falou que agora em 2007 vai tá entregando, ouvi no rádio, 45 casas por mês,
sendo que se eu saio com 6 filhos, eu pago 120, 150, água e luz, eu não vou, não vou. Eu já
fiz isso.
P: Quando você foi?
C1: Eu tava grávida da neném, não da A . eu fui morar no Belém com 75 de pensão da Bi, 95
de bolsa família, eu não tinha, não tinha, eu não vendia os negócios os produtos que eu vendo
agora, eu vendia salgado, e eu tava trabalhando também de doméstica. Agora eu tô com 5
bolsas família e vendendo o negócio (produtos de catálogos), você vende bastante, tem
bastante, se eu vendo pouco, eu tenho pouco.
P: Então, você tem uma renda para o sustento dos filhos?
C1: E mais o que ele não sabe é que tem, que o pai de minha menina falou pra mim que tá me
ajudando na pensão vai aumentar. Ele não sabe disso. E quando eu falei isso pra ele ontem,
ele falou ninguém vai te dar nada, se não vai ganhar casa nenhuma. E isso que dá mais raiva,
porque sabe o que ele fala, você vai arruma uma casa e sai logo, vai. E ele falou pra mim isso
ontem. Daí minha cabeça fica confusa, daí eu falo isso pra ele, daí eu fico sem casa e sem
marido, sem ninguém, aí eu quero ver. Albergue de novo. Albergue pra adulto, abrigo pra
criança. Não dá para acreditar em mais ninguém. Os outros falam que ajuda e ninguém ajuda.
P: M. presta atenção, vai atrás das pessoas que lhe prometeram a casa. Você vai mesmo?
C1: Lá na CTI, eu conheço as 3 lá de cima. Lá só que se eu chegar lá e ela falar comigo do
jeito que ela falou comigo esses dias, ela vai ver só comigo. E esses funcionários da Prefeitura
falaram pra mim ir pra Caraguá. Chego em Caraguá eles fala: mais você menina. Você mora
em Taubaté há 18 anos, vota em Taubaté. O que você ta fazendo aqui. É isso que eles falam
pra mim, eu invadi uma casa lá esses dias, aí a D.: O que você ta fazendo aqui. A sua mãe ta
aqui. Você vota lá. E aqui eu dou 3 meses, 3 meses, não 24 horas pra você sair daqui, se não
eu pego suas crianças lá também. Daí eu fiquei com medo, fiquei 3 meses e ela falou 24
horas.
P: Quando foi isso?
C1: Em 2004, ela falou 24 horas e eu fiquei 3 meses, eu não queria voltar mais pra cá, eu não
tinha marido, eu não tinha ninguém, daí a D. falou se você não sair eu vou chamar alguém pra
tomar os seus filhos. Daí eu fiquei com medo, daí meu marido foi lá e me trouxe pra cá de
novo. Tem um abrigo que é igual casa da prefeitura só que é tudo igual. Vira abrigo.
262
P: Daí quando você toma uma atitude ele volta atrás. E você volta atrás?
C1: Quando eu tava no aluguel várias vezes ele fez assim, só que agora eu penso assim ele ta
enchendo o saco, ta me irritando, se eu for embora e ele quiser voltar e não quiser mais ele
não, hoje tudo bem. Você pode até ir comigo, mas se for na paz e chegar lá numa boa, porque
se chegar lá, sair uma vez, não volta mais. Isso que eu falei pra ele.
P: Então você o aceitaria?
C1; E o que eu falei pra ele só se fosse assim, se fosse pra ele mudar, parar de brigar, pra
nunca mais.
P: Então você não quer ficar sem ele, você gosta dele?
C1: Não eu não gosto não.
P: Se você não precisa mais da casa dele, e se você conseguir uma casa para morar com os
filhos, ainda assim você coloca que se ele melhorar ele pode vir morar com você, é porque
você gosta dele e quer que ele mude não é. Você acredita, você não quer ficar sozinha, é como
se você temesse a situação de abandono. Por mais difícil a situação que você esteja passando
hoje, você está me dizendo que se ele disser: eu vou voltar para você. Você o aceita.
C1: Não, não se eu for embora pra Caragua, tem que ir junto, já, se não for, não quero mais
nada, tem que ir pra lá, junto já, se não for, já, não quero mais. Também indo pra lá, não é
depois que eu vou, ele vai não, eu não vou querer.
P: Mas mesmo assim você quer que ele vá?
C1: Se não for pra melhorar não adianta. É. Mas se for desse jeito, eu não vou querer, se ele
for assim do jeito que ele é espuleta. E eu não vou querer, a eu não sei.........
C1: Às vezes eu chamo a A ela já vem assustada pensando que é pra brigar. Eu acho que eles
vê eu brigando com ele e pensa que é pra brigar. E eu acho que eles pensa que eu tô brigando
com eles, e ela pensa que eu chamei ela pra brigar, aí eu falo vem cá com a mãe.
Encerramos a sessão sem ter feito a Calatonia e ela alegou que não viria mais e que estaria
procurando as pessoas da prefeitura para conseguir a sua casa. Que iria usar este horário para
isso. Nos despedimos com um forte abraço, e agradeci-lhe o tempo que estivemos juntas e se
precisasse de alguma coisa poderia me procurar na clínica.
263
ANEXO 3
CASO 2
Queixa: maus-tratos, violência física e verbal. Criança mama no peito.
1ª. entrevista:
P: Com respeito ao período em que você era pequena, o que você passou? Você comentou na
triagem que teve uma época que você não ficou com sua mãe, que ficou com teu pai, o que
aconteceu neste período? Você se lembra qual a idade que tinha e o que lhe foi contado?
C2: Lembrar, lembrar eu não lembro. Eu lembro que parece, um flash que dá assim se lembra
de alguma coisa, mas coisas horríveis..., do que eu vivi com ele eu não lembro não, mas não
era bom morar só com meu pai.
P: Você estava com que idade?
C2: Eu devia estar com 4 ou 5 anos.
P: Até aos 4 anos você foi criada pelo teu pai ou foi um período menor?
C2: Não. Acho que não, minha avó veio morar na casa do meu pai, depois meu pai casou.
P: Então você ficou 4 anos com teu pai?
C2: É.
P: Então quando tua mãe foi embora você estava com 4 anos?
C2: Ai! Deixa eu ver... foi pequenininha tipo F. assim.
P: 4 anos
C2: Imagino
P: Você sabe por que tua mãe foi embora?
C2: Eu sei do que ela me conta, que ele pôs ela para fora de casa.
P: E o motivo você sabe?
C2: Mais ou menos, o que ela fala. Não sei bem...
P: E ele nunca comentou?
C2: Ele nunca falou sobre nada disso, ele dizia que a minha mãe era ruim, mas só. Que a
minha mãe não prestava, mas só, nada específico que me dissesse alguma coisa.
P: Qual história que ele conta?
C2: Uma história que ela vai trabalhar e ele tinha trocado a fechadura da porta, daí a roupa
dela tava do lado de fora da casa, e aí ela não podia voltar para dentro de casa e ele não
deixou ela entrar.
P: Aí ela pega as roupas, vai embora e vocês duas ficaram com ele?
C2: Ficamos com ele.
P: E ele já tinha uma outra pessoa para cuidar de vocês?
C2: Já.
P: E ela não comenta se neste período tentou a guarda de vocês?
C2: Que eu me lembre quando chegou esta parte de guarda, minha mãe foi uma vez buscar a
gente para passear lá na casa dela, a gente na barra do Piraí e ela morava aqui em Taubaté, daí
ela falou pro meu pai se podia pega a gente para passar as férias.
P: Daí você já estava com 4 anos?
C2: Isso é....
P: Neste período seu pai estava casado com outra?
264
C2: Quando ela foi morar com meu pai, isso eu não lembro, só sei que nesse período quando
minha mãe foi me buscar para passar as férias na casa dela, daí meu pai veio entrar na Justiça
para pegar a guarda. Nesse período eu já lembro que meu pai já tinha outra esposa.
P: Como foi quando você foi morar com sua mãe, então?
C2: Daí eu vou morar com ela, só que ela falou que ia devolver. Ela não levou de volta porque
achou que ninguém tem guarda de ninguém, então, eu sou mãe, vai ficar comigo. Minha mãe,
achou na cabeça dela assim, só que daí meu pai entrou na Justiça, disse pro juiz que minha
mãe tinha roubado, seqüestrado a gente dele, um negócio assim, daí a gente teve que morar
com ele de novo. E nisso quando eu voltei a morar na casa do meu pai, ele já tinha uma
esposa, é esse menininho, entendeu!
P: E como era viver nessa casa com teu pai e sua madrasta, o que ela fazia, cuidava de vocês?
C2: Horrível, porque ela era muito chata.
P: Por exemplo, alguma coisa que você se lembre para dizer que ela era muito chata?
C2: Ah, ela queria que eu fosse babá do filho dela. Como que uma criança vai ser babá de
outra criança? e se a gente não fazia o que ela queria ela batia na gente, a minha vó tamm
era muito rude com a gente, sentava na mesa, e só saia da mesa quando terminasse de comer.
Umas coisas bem chata aí. Gente, até hoje eu não suporto cheiro de jiló porque eu era pequena
e a minha avó fazia eu comer um prato de jiló que só faltava sair pro meu ouvido o jiló, e hoje
eu não posso sentir o cheiro do jiló. E só saísse da mesa quando você terminasse de comer
tudo e depois que todo mundo tinha que terminar de comer para você poder levantar da mesa.
Se não você não levantava.
P: E a tua irmã era mais velha ou mais nova?
C2: Mais velha.
P: E ela também estava com você nessa casa.
C2: Acena com a cabeça que sim
P: Então vocês duas, viviam sob os cuidados de sua avó e a sua madrasta?
C2: Isso.
P: E como foi quando vocês foram morar com sua mãe, em definitivo?
C2: Lá era mais gostoso, apesar da minha mãe trabalhar e a gente ficar na creche. Eu ficava
na creche o dia inteiro, minha irmã era maior, ficava na casa da minha avó. Era melhor, minha
mãe era mais carinhosa, cuidava melhor da gente, lá eu nunca senti essas coisas, da parte da
minha avó, da parte do meu pai. Carinho, assim mesmo, que eu me lembro... nunca tive.
P: Você apanhou do teu pai, avó e madrasta, ou isso não foi muito freqüente, o que você se
lembra?
C2: Que eu me lembre eu já, porque assim eu me lembro, eu só lembro de algumas coisas,
não que eu lembre que eu apanhava quase todo dia assim, essas coisas eu não lembro, mas
que eu já apanhei um dia dela, eu apanhei esse dia que eu contei pro meu pai tudo o que ela
tinha feito, daí chegou meu pai brigou com ela tudo, daí a gente foi dormir na casa da minha
avó... num quartinho... nossa esse quartinho eu lembro direitinho parece que eu fecho o olho e
vejo ele na minha frente. É um quartinho que parece uma salinha de prisão com uma porta de
ferro que tinha um cadeado, desse tamanho, cheio de gradinha assim na janelinha da porta
(ri).
P: Ele tinha isso ou você imaginava assim?
C2: Não. Ele tinha, era como se fosse um quartinho de prisão, tinha uma cama, uma cômoda,
a porta de ferro, uma porta grossa assim, com um cadeado do lado de fora, assim na porta
tinha uma janelinha de grade.
P: Parecia uma prisão? Como você se sentiu quando foi para esse quartinho?
C2: Horrível, e nisso porque meu tio assustava a gente, era terrível. Ele fingia, ele fazia, ele
tinha aquela luva do Fred Gruger, a gente ia dormir de noite e ele passava aquela luva na
janela para fazer medo, aí aquilo era horrível.
265
P: Pelo que você falou vocês eram pequenas, nessa idade, depois dessa idade você foi para tua
mãe e ela trabalhava muito. Vocês ficavam o dia inteiro em creche, e era melhor?
C2: Era, bem melhor.
P: E como ela tratava vocês? Você se lembra quando vocês faziam alguma coisa que ela não
gostasse. Qual a atitude que ela tomava?
C2: A minha mãe, nunca foi de bater, de gritar, de xingar. A minha mãe, apesar de eu ter
ficado um tempo longe dela, quando eu fui morar com ela, eu já tinha muito respeito por ela.
Eu tinha aquele medo, eu não sei o que era, bastava eu fazer alguma coisa errada, minha mãe
só olhava para mim, assim (abaixou a cabeça, arregalou os olhos, para demonstrar como a
mãe fazia), eu começava a correr de medo pra ela não brigar, então, ela nem precisava falar
nada, ela só olhava pra gente, a gente já parava na hora.
P: Parece que: se vocês não fizessem o que ela queria, ela deixaria vocês de novo? É isso?
C2: Não sei o que acontecia mais a gente já parava na hora, até uns tempos atrás eu já tinha
meus 10, 11 anos, minha mãe só olhava pra nossa cara, a gente já parava na hora, eu até
lembro, eu só apanhei da minha mãe duas vezes e eu mereci.
P: O que você fez que mereceu apanhar?
C2: Eu não fui na escola, matei aula na escola e fui nadar na represa. Eu, minha irmã e meu
primo. Naquelas bem perigosas. É naquelas que só morre gente, você só sabe o que de nego
que morreu lá. Daí a minha irmã foi mais esperta, porque ela ficou um pouquinho e voltou pra
casa, tomou banho e disse que tinha chegado da escola mais cedo. E eu fiquei lá, depois da
represa fui ainda pra outro lugar catar caqui, aquela cambada de criança catando caqui.
P: Você estava com 10 anos e foi numa represa escondida?
C2: Eu tinha uns 9, 10 anos. Daí eu cheguei em casa, minha mãe só olhou e falou assim: “Vai
tomar banho!” Nossa! mais ela pegou, não sei o que ela tinha na mão, se era cinta ou chinelo,
só sei que ela deu tanto em mim, que depois disso, nunca mais, nunca matei aula pra ir em
lugar nenhum.
P: Você é a favor de que para corrigir um erro, de um filho, tem que fazer o que ela fez?
C2: Eu não tiro a razão dela não.
P: É assim que você tem que corrigir?
C2: Porque ela sempre falava pra não fazer e quando desobedecia ela batia.
P: Então, bater, você concorda?
C2: Porque a gente sempre conversou muito. Eu sempre tive medo da minha mãe. Minha mãe
só olhava pra mim, eu já obedecia na hora. Se eu sei que tava fazendo coisa errada, ela tava
certa de corrigir.
P: Corrigir batendo desse jeito?
C2: Deste jeito.
P: Se precisar fazer com tua filha você vai fazer?
C2: Dá umas palmadas nela, se for preciso eu dou.
P: No seu caso você levou umas palmadas ou foi uma surra?
(Pausa)
C2: Ah! num mata (ri).
P: Ah!
C2: (Ri) corrigir só e pronto.
P: Não tem marcas em você sobre isso?
C2: Eu acho que não, acho que pra ela é meio que uma coisa assim: melhor uma surra do que
eu ver ela morta na represa. Acho que no desespero ela pensou assim, dou uma surra nela, ela
nunca mais volta lá, daí ela vai lembrar da surra que eu dei nela, ela não vai querer apronta
outra. Na minha cabeça fica assim, não guardei raiva disso.
P: Depois dessa fase o que aconteceu?
266
C2: Ai não, eu nem sempre fui calma, tranqüila, nessas coisas com a minha mãe em casa. Daí
com 12 eu comecei a namorar com o C., pai da F. Então, foi com 12. Daí eu namorava com
ele. Tudo tranqüilo. Família em casa, da escola pra casa, da casa pra escola, eu nunca fui de
ficar saindo, essas coisas assim.
P: Na época ele tinha quantos anos?
C2: Ele tava com 18.
P: Quando você tinha 12 anos ele tinha 18 anos?
C2: É, com 15 anos eu fiquei grávida da F., aí minha mãe achou que ele tava me traindo, ela
nunca viu, eu nunca vi nada também, daí depois que aconteceu isso a gente brigou. Minha
mãe brigou com ele, ficou difícil a situação na minha casa, porque a minha mãe queria que ele
não entrasse em casa, daí a gente só se falava na escada. Aí, depois, minha mãe percebeu, não
sei o que passou na cabeça dela, ela ficou numa boa com ele de novo, a gente não, ela não
brigava comigo, mas ela ficava com raiva de eu estar com ele ainda, entendeu! Mas eu
também, não sei porque eu aceitei essa situação toda, porque eu acho que eu não devia de ter
aceitado.
P: Aceitado o que?
C2: Dele ter me traído, eu tava com 6 meses de gravidez e eu ter continuado com ele apesar
de eu ter gostado dele. Eu gosto muito dele mas eu acho que eu não devia de ter aceitado de
volta, agora eu não me arrependo de ter voltado, também porque apesar dos nossos
problemas, nossas brigas de vez em quando, a gente vive bem, a gente conversa, até que numa
boa, mas a gente não tá junto, embora eu more nos fundos da casa da mãe dele.
P: Você considera casada com ele hoje ou namorando?
C2: Agora eu não to casada com ele, a gente tá separado, a gente tá tentando vê se a gente da
certo de novo, porque se for pra ficar que nem tava antes, brigando, discutindo... O motivo da
nossa discussão é a F. Por que eu quero ser mais rígida com ela pra não deixar ela fazer as
coisas que ela ta fazendo e ele não, ele vem e passa a mão na cabeça dela e briga comigo, na
frente dela, daí ela acha que tem o direito de vim falar comigo do jeito que ela quer.
P: Você acha que a F. é responsável por vocês brigarem ou vocês já não se entendiam?
C2: Não, até que a gente se entende bem mais é que, tipo assim, a F. quebrou um copo, daí eu
falo: “F., tem que tomar cuidado, é de vidro, a mãe já não deu um copo de plástico na sua
mão, e você pegou o de vidro”. Porque ela tem mania, você dá um copo na mão dela, ela vira
no de vidro. Daí esses dias ela quebrou um copo e ainda cortou o dedo dela e do R., que é o
primo. Daí eu briguei com ela. Daí ele vendo que foi sem querer, daí ela começa a se sentir a
bonitinha, daí ela fica com raiva de mim, entende! e não dá certo, se ela fez errado ele não
tem que briga comigo, tem que falar para ela que ela fez errado.
P: Como vocês resolvem hoje o problema da educação da F.?
C2: É isso que eu tava conversando com ele ontem, porque ontem ela tomou banho e ela
odeia por roupa, se ela toma banho cê já não consegue por roupa nela mais. Nossa!.., mas ela
fez um carnaval em casa. Tá cheio de pedreiro arrumando o telhado, aquela homarada
andando pela casa tudo e não dá pra ela ficar pelada e eu brigando com ela. Daí eu peguei
pelo braço e sentei ela em cima da cama e falei para ela. Você vai por roupa, você não tem
querer, você já ta grande, você não pode ficar andando pelada pela casa. Aí ela começou a
chorar e gritar, meter chute pra tudo quanto é lado em mim. Aí ele entrou no quarto, daí eu
falei: C. vem cá da um jeito na sua filha, já que ela não quer me obedecer, vem dar um jeito
nela. Daí ele: “F. não é assim, fia põe a camisinha”, só passando a mão na cabeça dela.
P: Ele conseguiu por a roupa nela?
C2: Não, pois também ficou parado falando: Vai lá pra sua mãe por roupa no cê. Não pode
ficar pelada. Nossa! se fosse pra ficar parado, eu não tinha te chamado - falei pra ele. Porque
ele não pegou ela. Sentasse ela e fizesse ela por a roupa (Suspirou). Não precisava ser do meu
jeito mas ele tinha que faze alguma coisa. Ele ficou parado ali em cima, parado na porta e
267
falando com ela e ela olhando pra cara dele. E não pôs a roupa, não fez nada, só ficou lá
falando.
P: E você?
C2: Daí eu peguei ela pelo braço, sentei ela na cama e falei, gritei, agora você vai por roupa.
P: E ela?
C2: Daí ela começou a gritar mais ainda, daí ele começou a gritar comigo. “O que você fez
com a menina, não precisa”, não sabe falar com ela? Daí eu falei: - já faz mais de meia hora
que eu to falando com ela e ela não quer por roupa.
P: Falando ou gritando?
C2: Antes deu gritar eu já tinha falado com ela, daí, nisso vem minha sogra, entrou o C.,
minha cunhada, todo mundo tentando fazer essa menina por roupa. Ela não queria por
roupa............ (pausa) aí depois que fez esse carnaval todo eu deixei ela lá.
P: Sem roupa?
C2: Em cima da cama, lá, só de camisa, deixei ela lá. Daí ele saiu, foi tomar banho e deixou
ela chorando depois de ter me xingado, que eu tava fazendo errado, mas ele também não
pegou e não fez nada, essa é minha bronca, se eu to fazendo errado, então pega, vem e mostra
como tem que fazer, já que você sabe como tem que fazer, então faça, eu penso assim.
P: E aí a avó foi fazer o quê?
C2: Pegou e foi por a roupa nela. Daí ela deixou a avó dela por a roupa nela, só que a avó é
mais grossa que eu ainda, né! “cê vai por a roupa e cala a boca e pronto”. Daí, pronto, na hora,
pegou e pôs a roupa e isso que é a minha bronca. Se alguém fala assim com ela na hora,
pronto já baixou a bola dela, quando é comigo eu não sei, parece que ela quer falar mais alto
que eu.
P: Talvez porque você quer usar o modelo dos outros e não sabe qual é o seu, então, você
imita os outros, por exemplo a ex-sogra. Talvez quando você começar a usar o seu jeito, de
repente F. se surpreenda com você e então comece a te obedecer. Parece que você tem um
comportamento como dos outros, mais na linha da pessoa brava.
C2: É, tem hora que eu não sei me controlar, eu não queria ser mais assim com ela.
P: Foi assim sua infância?
C2: Não, minha mãe não precisou gritar.
P: Mas quando precisou quase arrancou seu “couro”.
C2: (Risos) Foi.
P: E isso é uma atitude pouco delicada.
C2: E até agora não deu pra entender.
P: Parece que você tem muitas coisas a resolver: compreender sua filha, resolver seus
problemas com o pai dela, Parece que esta faltando um pouco de tranqüilidade, e, também,
parece que a F. esta sendo responsável por coisas que ela não faz.
C2: Tem hora que eu faço assim.
P: Estão acontecendo várias coisas com você ao mesmo tempo. Educar sua filha, resolver o
problema da separação, morar nos fundos da casa da ex-sogra, não ter emprego, nem você,
nem o pai da F. Sua mãe não mora na mesma cidade. Parece que tudo ficou para você
resolver.
C2: É, você que se cuide, você que se vire, você que tem que fazer tudo, então, você ta
aprendendo com todo mundo dando palpite. O que me irrita é que tudo que acontece, o que
mais me irrita e que ninguém faz, ninguém deixa ela ter respeito por mim, que nem minha
mãe só do fato dela me olhar eu sabia que tava fazendo errado e que eu tinha de parar de fazer
o que tava de errado. Ela não, se eu falo F. não pode isso, vai te machucar, vem a vó dela e
fala: - “Não F. brinca mais pra lá e pronto”. É a mesma coisa que eu não tivesse feito nada
porque se eu falo uma coisa vem outro e fala em cima, ela não escuta o que eu falo.
P: Já chegaram a fazer denúncia de que você não sabe cuidar da F.?
268
C2: A minha ex-sogra fala muito isso, que eu perco muito a paciência com ela, que eu nunca
sei fazer nada de bom, se desde que ela nasceu, eu sou a única pessoa que cuido dela, como
que eu não sei cuidar dela? Que nem eu falei para o C., pode não ser o melhor jeito de cuidar
de uma criança mas é o jeito que eu to tentando aprender. Eu não nasci aprendendo a cuidar
de uma criança, eu tive que aprender, eu to aprendendo na marra, eu também não sei, então,
em vez de me ajudar, fica só criticando. Ah!
P: E isso te atrapalha no relacionamento com o C.?
C2: Às vezes sim, porque às vezes, ele também critica: - “cê faz isso errado”, aí eu falo, mas
eu não sei ..., aprendendo cê sabe, vem e faça, então, daí é onde eu já me estresso, se eu to
fazendo, a pessoa vem e olha na minha cara e vê que eu to fazendo errado, então, pega e faça.
P: E sua sogra prejudicou seu relacionamento com o seu namorado?
C2: Às vezes sim, às vezes ela fica do lado, ele não ta fazendo nada porque ele senta no sofá
com a F.. Pode cair de cima da casa que ele não se mexe. Ele fala assim: - A. vai lá pegar. É
assim o tempo todo. Ela pode estar do lado dele fazendo alguma coisa, e ele não ta nem aí.
Ele vai lá me chamar pra fazer ela parar de fazer. Daí eu brigo com ela ou dou uma palmada
na bunda dela e ele vem e me xinga: - Não precisava ter batido na bunda dela. A mãe dele
também.
P: Você me disse a pouco que a F. é a culpada de “suas brigas”?
C2: Às vezes sim.
P: Parece também que teu namorado dificulta as coisas pra você. Estou entendendo certo ou
não?
C2: É. Ele dá ordem, ele critica, mas ele não tem iniciativa.
P: E porque você quer ficar com ele?
C2: Não Sei.
P: Você não tem para onde ir?
C2: Não, tenho, tenho a casa da minha mãe.
P: Ela te acolheria?
C2: Ah! sem dúvida, mesmo das vezes que ela morava aqui, ela mandava eu ir embora pra
casa.
P: E porque você quer ficar com o C., se ele não está te ajudando e a F. está se tornando
culpada do relacionamento seu com ele não estar dando certo. E ela só tem 4 anos e está
sendo culpada. Será que realmente o problema está nele?
C2: É, acho que sei lá....., falar que a culpa é dela, não acho que é bem dela. Acho que o que
ela fez aí gera toda uma situação. Daí nós dois briga porque ele acha uma coisa e eu acho
outra e ele não. Daí eu acho que eu fico com raiva dele não concordar com que eu falo, daí
acontece o que acontece.
P: As coisas têm que ser do seu jeito?
C2: É mais ou menos assim.
P: E parece que a F. também é assim?
C2: E parece assim que ela fica com um pouco assim... brava comigo porque às vezes ela faz
alguma coisa que eu não gosto. Eu sei que eu sou às vezes, assim mesmo, sem querer, eu sou
meio dura no que eu falo.
P: E a F. parece ser também assim?
C2: É, ela é assim, até agora. Ontem foi uma bagunça em casa porque ela passou mal, não foi
na escola, aí.... pronto. Com a F. em casa ninguém faz nada porque ela a todo minuto ta
fazendo alguma coisa e a todo minuto você tem que ir atrás dela.
P: A F. esta virando um peso para você?
C2: Ta. Porque assim: - Ta todo mundo na sala vendo televisão, ela saiu, você não escutou,
nem um pio, você tem que ir atrás dela
P: Você acha que a F. é muito agitada?
269
A: Demais. o que ela gosta é fazer bagunça. Quebrar a casa, que nem uma churrascada de adulto.
P: Como é uma churrascada de adulto?
C2: Uma festa só. Uma bagunça, eu não sei como que eu ajo com a F............ E tem briga em casa
por causa disso, porque eu faço tudo sozinha, ele não me ajuda em nada apesar de estar em casa. Por
exemplo: - se eu to torcendo uma roupa da F., custa ele pegar e tirar comida pra ela comer já que ela
ta com fome, ele vai me chamar lá no fundo: - A. ela ta com fome, - Poxa, porque você não pega o
prato e da comida pra ela. Ele não faz e às vezes fica muito carregado fazer tudo sozinha, sendo que
eu tenho alguém pra me ajudar e ele não ajuda e só reclama.
P: Então não é a F. responsável?
C2: Não, tadinha... às vezes eu tô com tanta coisa pra fazer.
P: As pessoas te cobram muito?
C2: Acho que é, e é por isso que às vezes eu ainda fico tão assim com ela. Às vezes eu to tão
assim que é só dela fazer alguma coisa perto de mim que já me irrita, já grito: - Pára com isso!
e às vezes ela só ta brincando e eu sei que as vezes eu pego pesado com ela. Eu fico com
medo dela fazer alguma coisa errado... Mas apesar de tudo que aconteceu na minha vida eu to
ali cuidando dela, eu não larguei ela pra ninguém, eu não deixo a minha responsabilidade pra
cima de ninguém. E mesmo assim o povo ta ali em cima de mim, falando que eu to fazendo
errado.
P: E por que você acha que as pessoas fazem isso para você, te criticam?
C2: Eu acho que por eu ta assim agora gritando demais, falando, brigando com a F. demais,
eu bato nela demais, mas não sou só eu que brigo com ela, às vezes de tanto os outros falar
para mim que ela ta fazendo errado, mas às vezes eu não acho que ela ta fazendo errado e
mesmo assim eu brigo com ela.
P: Será que pelo fato de morar na casa dos fundos da mãe do seu namorado, dele estar
desempregado e todas as situações que tem de enfrentar sozinha tenha deixado você tão
tensa?
C2: Não sei.
P: Com toda esta agitação de F., o que você faz para acalmá-la?
C2: Eu sei que está errado, mas ela mama no peito. Já tentei tirar e não consigo. Ela pede e eu
fico com dó, aí ela fica uma belezinha, vem para o meu colo, mama e dorme.
P: Então, vamos fazer a técnica?
(Pausa)
C2: Vamos
Segue-se com a calatonia.
DEVOLUTIVA
Então gostaria de saber, como foi essa experiência, o que você pode nos dizer?
Mas vamos pensar um pouco em você, porque você cobra dela uma coisa e ela não deixa
fazer. Ela não pára, você sempre atribui que a dificuldade está nela, como que é isso, a
questão que nós estamos falando na verdade não se limita a ela, e sim como foi para você.
Como é para você vir aqui ser tocada. Como foi para você a experiência, mesmo que você não
tenha conseguido fazer nada em casa com a F.
C2: Efeito nela eu não sei, porque em casa eu não consegui fazer ela parar e deixar fazer a
massagem, né! Muita coisa ficou diferente, brincar, por exemplo, ver o que ela tem e o que ela
não tem, tentar acalmar ela, ver o porque ela tá impossível. Ela pega muitos brinquedos e aí
eu percebo que eu era agitada demais e ela ficou também e ela mudou isso nela e de um
tempo para cá ela ta fazendo isso, cobrando carinho, ela quer beijar toda hora.
P: O que você chama de uns tempos para cá?
270
C2: Depois que eu comecei a vir conversar com você que eu fui colocando algumas coisas,
que eu fui vendo algumas coisas que eu fazia e achava que era ela que tava fazendo. Eu fui
vendo que ela não fala, mas ela pede de outro jeito e eu fui entendendo mais, eu to
entendendo mais, isso pela coisa que ela faz e que eu brigava por uma coisa que não
precisava. Agora ela brinca, normal, eu não faço aquele escândalo porque ela ta bagunçando o
quarto inteiro. Eu vejo que ela ta só brincando, ela não ta querendo me irritar ou só fazendo
bagunça, antes eu não via, antes eu não conseguia entender.
P: O que você está conseguindo entender dela?
C2: Em mim eu me acalmei muito, daí eu to conseguindo entrar no eixo, porque antes eram
mil coisas ao mesmo tempo, agora eu to conseguindo me acalmar, eu brinco, eu paro, brinco
com ela, mesmo que eu tenha mais coisa para fazer. Eu brinco, converso, sento com ela.
Criança: Mãe, brinca comigo. (criança pede a mãe na sessão).
C2: Espera um pouquinho.
Criança: Mãe, brinca, brinca.
C2: Tá bom, então vamos. Eu monto. Você vai brincando, daí você vai falando o que você ta
fazendo tá?
Criança: Vou fazer uma fazenda.
C2: Fazenda (brincam) e continuou a falar: Eu meio que consegui botar o pé no chão, eu tava
assim tudo muito confusa, assim tudo muito agitada demais, eu não conseguia entender muita
coisa. Então, eu fui conversando com você e você foi me apontando coisas que eu não via,
entendeu isso de eu brigar muito com ela, não que eu achava que ela tava fazendo coisa
errada, de tanto os outros ficarem falando na minha cabeça, que ela ta fazendo coisa errada,
que tudo que ela fazia pra mim ta errado, e não é.
P: E a experiência que você fez aqui, fazer a massagem na F.
C2: Foi gostoso assim o carinho.
P: E da 1
a
vez?
C2: Agora foi mais gostoso, na 1ª não ajudou muito porque ela tava muito agitada, não
deixando fazer.
P: Ela?
C2: É, ela não queria parar.
P: Hoje ela ficou mais parada?
C2: Ela ficou mais calminha.
P: Por que será?
C2: Não sei, se é porque essa mudança minha com ela em casa, minha atitude meu jeito com
ela, antes era tudo no grito, tudo no berro. Daí, ela, até ela ta dando uma calmada.
P: E para você a experiência do toque?
C2: Gostoso.
P: Gostoso, de que jeito?
C2: Do tempo que eu tenho para relaxar, acalmar.
P: Relaxada ajuda a relaxar o outro?
C2: É, ajuda a cuidar dela, porque antes as coisas eram muito assim, confusas.
P: Tudo era muito agitado?
Criança: Mãe, quero bebe água!
C2: Eu não tinha tempo, agora eu to vendo o que eu faço, sentar, conversar, curtir mesmo,
brincar com ela, antes não tinha isso.
Encerramos a sessão. Mãe levou a filha para beber água. Ambas pareciam muito satisfeitas.
Nos despedimos com um forte abraço e recebi um beijo da criança.
271
ANEXO 4
Caso 3
Queixa: negligência, maus-tratos, violência física e verbal.
1ª. Entrevista
P: A. fala pra mim um pouco da sua história e das situações que você passou.
C3: Minha mãe enviuvou muito cedo, meu pai morreu de acidente de trabalho, quando eu tava
com 7 meses, então era filha única e ela me superprotegia, não deixava eu fazer nada e
quando eu desobedecia ela me batia muito. Batia minha cabeça na parede. Coitada! Hoje eu
entendo ela. Ela fazia isso para me proteger. Perdeu meu pai cedo. Não tinha ninguém então.
Tinha medo de me perder.
Ah! eu era muita neurótica, minha mãe brigava comigo, eu falava pra ela, eu lembro
direitinho eu falando assim: “E eu não tenho culpa de ter nascido, se você tivesse deixado
morrer junto, tava muito mais tranqüila, né! Se não mato no ninho, agora vai ter que me
agüentar.”
P: Mas, aí você estava adolescente?
C3: Daí ela batia na minha cara, daí eu falava me bate, me bate, me mata, quer que eu te
ajude. Era uma coisa assim que já começou me magoando desde pequena, por isso, porque eu
não fazia nada de errado, perdi a virgindade com 20 anos. Porque eu fui estuprada, se não eu
acho que eu não teria perdido, mas é uma coisa assim, que eu não era preparada, não é?
Porque eu não queria, minha mãe falava: “Não, você não é fácil.”. Eu era respondona.
P: Então, você teve uma história de estupro?
C3: Tive, 20, 21 anos.
P: Conhecia a pessoa?
C3: Então, eu conhecia. Era assim, eu estudava lá em Itajubá e ele morava com o namorado
da minha amiga. E eu conheci aparentemente. Até minha mãe gostou dele. Daí eu lembro que
no feriado do Corpus Cristi eu fui para Paraisópolis. Daí o C., minha amiga, sabia que eu tava
lá, foi atrás de mim. Minha tia viajou para o Paraguai e meus primos eram pequenos, e ela
tinha viajado neste final de Semana. Daí ela deixou meu primo com alguém, meu primo já era
grandinho nessa época. Deixou com os amigos lá, amigo de infância e falo que de madrugada
dá uma passadinha lá: Sei que você vai no baile mas dá uma passadinha lá. E eu fui. Só que
nisso ele já tinha bebido muito. Aí ele chegou, me pegou, me jogou na cama, me pegou. Na
época eu era magrinha, pesava 54 quilos. Me jogou. Eu fiquei toda marcada, de tanto que eu
lutei, só que é aquela coisa, a mãe hiper rigorosa, não gostava que eu ficava saindo. Não
contei pra ninguém, ninguém ficou sabendo. Ficou sabendo minhas amigas, porque eu não me
controlei. Cheguei chorando na 2ª feira, cheguei na faculdade, daí ele foi atrás de mim. A aula
minha terminava às 11h da noite, na 2ª feira, porque tinha uma aula a mais. Sei que eu tomei
uma neura dele, que eu não queria ver ele pintado e ele achou aquilo normal, fazendo de
difícil, sei lá, sei que foi horrível. Minha mãe morreu sem saber, não contei, nunca. Minha tia
agora sabe, depois que minha mãe morreu. Engraçado é que isso foi no dia 31 de maio de
1991 e minha mãe morreu dia 31 de maio de 1992, quer dizer horrível, né! Um ano depois,
certinho é, minha mãe morreu no domingo e isso foi num sábado.
P: Que ligação você faz com o estupro e a morte da sua mãe?
C3: É a mesma data e eu acho muito estranho, não sei, são coisas horríveis assim que
marcam, e na mesma data, no mesmo dia, um ano certinho, assusta, no mesmo dia ainda, né!
272
Foi horrível, graças a Deus depois, passado um tempo, eu conheci uma pessoa, muito boa que
conseguiu tirar isso da minha cabeça, isso depois de um ano e meio. Dois anos... soube me
cativar, tudo pra que eu não ficasse traumatizada, e hoje graças a Deus eu acho que em termos
de sexo eu não tenho trauma disso, mas na época eu tive, na época eu fiquei meio assim,
nossa e foi uma fase assim, eu fui sempre gordinha, foi uma fase que eu fiz regime e fiquei
bonita, nossa, eu acho que e às vezes eu paro para pensar que eu voltei a engordar porque eu
falava na época eu imaginava. E eu queria tanto ficar magra, bonita pra que? Pra isso! Pra ser
estuprada assim, ser vista assim, entendeu! Depois eu nunca mais emagreci, então eu não sei.
Até depois eu falei com um médico e falei isso pra ele. Ele falou assim: Quando você
conseguir vai ficar magra. Quando foi? Como foi? Perguntou assim: Quando você começou a
engordar? Contei a história. Depois eu nunca mais consegui emagrecer e ficar lá em Itajubá,
porque já fazia dois anos que eu estava com o mesmo peso, mantendo, depois eu nunca mais
consegui emagrecer.
P: Então, por isso que no 1º dia que conversamos você defendia a gordura, e que as pessoas
tinham que gostar do gordo?
C3: É, até hoje eu vi uma reportagem de um gordinho, falando com ele se sente bem com o
corpo dele.
P: Não existe gordinho, existe gordo, gordinho é uma maneira desfarrapada de falar que os
outros não está gordo.
C3: Não é gordinho. O meu filho é um pouquinho gordinho. Ele ta com 10 quilos acima do
peso. Num é gordinho, ele é gordo desde os 2 e 3 anos com aquela gordura. A gordura é isso,
é uma máscara, né! pra gente grande não enfrentar aquilo que ta difícil, mas é interessante.
C3: Eu briguei com a ginecologista por causa disso. Olha o que eu falei pra ela. A
ginecologista, virou pra mim eu falei que queria mamografia: Não, a mamografia se faz
depois dos 40 anos. Peguei e falei assim: mas é complicado minha mãe morreu com câncer,
então eu queria fazer isso. Ela já tinha perguntado: Você é fumante? E eu falei sô. Daí ela
achou engraçado e falou: Você é obesa, você fuma e ta preocupada com o câncer. Peguei e
falei assim pra ela: Tem coisa na vida que a gente é porque qué. Por exemplo, você trabalha e
ganha bem, não é! Você é horrível. Você tem o rosto horrível. Tem o maior mau gosto pra se
vestir. E porque você não muda isso em você, porque você não quer, não é! Por algum
motivo, eu contei isso pro meu tio que é médico e ele disse. Você é louca. Sou louca não. A
pessoa olha pra gente e acha que o que a gente é é porque a gente quer. Aí eu falei pra ela: Eu
tive uma vida ferrada, perdi mãe cedo, não tive pai... e perdi a virgindade sendo estuprada.
Casei. Meu ex-marido engravidou outra, né! Você acha isso tudo bonito? As coisas não são
assim! A gente é gordo. Assim falei pra ela. Eu me acho bem. Eu graças a Deus tenho uma
saúde boa. Sei que fumar não faz bem, porque eu tamm não sou ignorante, mas eu, sabe o
que mais eu me incomodo? É que as pessoas se incomodam mais comigo, de como eu sou, do
que eu mesma, porque eu tenho uma auto-estima boa. Eu saio de casa, me arrumo, acho que ta
tudo bonito em mim, agora se eu sei que vou emagrecer e é bom para a saúde, eu sei, que eu
não vou virar uma Gisele Büchen de um dia pro outro. E mesmo que se eu emagrecer muito
vai cair tudo, porque eu to muito gorda, e eu, não tenho essa implicação. Não sei se é porque
eu não vivo com o espelho o dia inteiro. Minha família inteira implica direto porque todas
minhas primas são lindas, maravilhosas, tem um corpo escultural, eu falei pra ela que se dane
eu nem ligo, eu vou, eu nem to ligando pra isso eu to ligando se eu to bem, se minha cabeça ta
boa, se não ta boa, agora eu vou ficar me preocupando 100%, agora se eu tivesse problema de
saúde, colesterol tivesse alto, pressão tivesse alta, tivesse muita diabete, mais eu não tenho
nada, eu acho que se um dia eu ver que ta tudo prejudicando e é lógico que eu vou correr
atrás, se eu sei que eu tenho, mas se eu ficar mais encanada é ai que eu não vou emagrecer.
Agora, isso fazia um ano e meio, agora eu passei nela de novo, ai todo mundo falo: Você é
louca, vai nela de novo, minha prima S. falo: Você foi nela mesmo? Fui. Ela é profissional.
273
Ela ta lá pra me atender eu não falei nada de anormal com ela. Falei com a maior delicadeza.
O que ela falou para mim eu não gostei, pelo tom, não pela maneira, porque a minha Clínica
Geral que eu passo ela não. Ela fala a mesma coisa, mas ela fala em um outro tom, não fala no
tom de sarcasmo, irônico, ela não coloca o tom irônico na voz, agora a outra não, a outra não
sei se ela é mal amada, se é algum problema dela. Só sei que ela é assim e eu não gosto que
fale comigo assim, falo com as pessoas assim, sou hiper delicada, agora se fala com aspereza
comigo, num tom que eu não gosto, eu vou, eu sou terrível. Eu sou eu.
C3: Não, eu não abaixo a cabeça, não tenho vergonha de nada, se precisar mandar falar com o
Presidente, eu falo, se eu chegar na escola, assim, se eu não acho certo eu falo.
P: Parece que você não consegue falar pelos filhos alguma situação que você vive e que eles
acham que não. Por exemplo: namorar outra pessoas, e eles acham que eu vou voltar para o
pai deles,
P: Porque você deixa eles acreditarem nisso?
C3: Eles são pequenininhos, menorzinhos, não vão entender.
P: Porque acha que eles não vão entender? Quer dizer que tem coragem, é valente na hora que
vai falar com os adultos e com as crianças e faz de conta que está tudo bem. Você pode estar
subestimando os seus filhos. As crianças são muito sensíveis. Talvez por isso se tenha medo
de conversar com elas. Você acha que deixar as crianças acreditarem que você voltará para o
pai deles é melhor do que eles saberem a verdade?
C3: É errado. Eu não sei mais como é isso, o que eu to dizendo para os meus filhos. Eu to
dizendo para eles: “olha a mamãe é maravilhosa com vocês, mas não perguntem nada que eu
não possa responder”.
P: Que relacionamento é esse?
C3: É que esta minha instabilidade, algumas coisas eu faço, e algumas coisas só fazem parte
da minha vida particular. E o mais velho agora ta me enfrentando, e agora ta. Eu falo: “Não,
eu quero sair, eu quero ir lá na casa da M. brincar, só que eu acho que, primeiro tem que fazer
a tarefa.”
P: É você quem determina?
C3: É lógico, primeiro tem que fazer a tarefa de casa.
P: Será que não está repetindo o padrão autoritário de sua mãe.
C3: E é lógico, eu falo primeiro, tem que ver se a M. ta em casa, se ela não ta dormindo,
porque a M. dorme de dia.
P: Qual a idade dela?
C3: 5, 6 anos. Primeiro você tem que ver se o filho do outro está em casa. As pessoas tem
coisas para fazer, não podem ficar vigiando você. Não é assim, e ele bate o pé, aí eu falo:
“Porque você não vai brincar com seu irmão?” “Eu, mãe! Não, ele só quer bater e chutar. Ele
é chato”. “E eu vou falar o que para ele se é verdade.”
P: Então conte um pouco sobre ele. Como é o V.?
C3: Ele é muito agitado, quebra os brinquedos, não pára quieto, briga com o irmão. É
impaciente. Eu sempre estou batendo nele. Não adianta nada. Não sei o que fazer. Acabei um
dia batendo nele com o rodo, sem querer. Era para acertar no bumbum e ele virou e acertou na
boca. Quando eu vi a boca cheia de sangue achei que eu tava ficando louca e fui no Conselho
Tutelar pedir ajuda, porque eu não conseguia mais controlar.
P: Então foi você que procurou o Conselho? Não foi denúncia?
C3: É. Eles que me indicaram eu vir para cá (ficamos um tempo em silêncio).
P: Então, conte-me um pouco sobre sua história de criança. É filha única?
C3: Não eu tenho um irmão de criança. Minha mãe adotou ele pequenininho.
P: Com quantos anos você estava?
C3: Tava com 13 anos.
P: Você ajudou a cuidar?
274
C3: Claro, eu sempre quis um irmão, era meu sonho.
P: E como foi a chegada do seu irmão?
C3: Chegou bebezinho, com 2 meses.
P: Sua mãe queria?
C3: Não, a mãe dele tinha morrido, ele com 40 dias e eu fui lá ajudar, só que tava muito mal,
perdeu muito sangue, só sei que com dois meses ele pesava 2,7 quilos, ele era gêmeo, o pai
era gari, trabalhava na Prefeitura. Não tinha condição de criar. A última filha tinha 5 anos. Aí
eu falei: mãe pega ele mãe. Só que o pai não queria dar de papel passado. Tanto que não deu.
Ele tinha 8 anos quando minha mãe morreu.
P: Ele tinha 8 anos quando sua mãe morreu? Você estava com quantos anos?
C3: 21 anos.
P: E aí, foi você que criou?
C3: Foi, ele mora comigo até hoje. Há um tempo atrás o pai disse para ele que ele ficava
muito com as crianças, ele não gostou. SE sentiu ofendido, pois ele sempre me ajudou, agora
vem o pai deles falar bobagem pro meu irmão; vê se pode!
P: E como que foi essa experiência, você jovem criando uma criança nova ainda?
C3: Ah! Eu...
P: Você foi morar com alguém ou você foi morar sozinha?
C3: Não, eu nunca tentei, meus avós queriam que eu morasse com eles. Era meu sonho, eu
sempre quis ter minha casa e morar sozinha. Eu fui morar em Itajubá sozinha.
P: E ele?
C3: Com meu irmão, ficava na vizinha pra mim ir na escola a noite.
P: E antes da sua mãe morrer, ela tratava ele do mesmo jeito que tratava você? Porque você
me passa a idéia de uma mãe rancorosa?
C3: Não, sofrida, muito sofrida, muito. A minha mãe era assim: perdeu o marido muito cedo.
Ele morreu num acidente de trabalho. Tentou outro relacionamento, casar com outro.
P: Quanto tempo sua mãe ficou casada e quando seu pai faleceu?
C3: Dois anos e nove meses. Eu tinha 7 meses.
P: Pouco tempo!
C3: Depois disso ela nunca quis mais ninguém, até que veio aqui em Taubaté, e ela tentou um
relacionamento. Ela ficou noiva de novo, pronta para casar. Aí pra atrapalhar, chegou uma
mulher grávida na porta de casa dizendo que o filho era dele e que se ela casasse, ela ia deixar
o filho pra minha mãe cuidar. Minha mãe quebrou tudo de dentro de casa. Aí, nós só voltamos
pra Minas por causa disso. Porque ela ficou deprimida, só ficava dentro de casa, mas ela
morreu gostando dele. Quando ela ficou doente e veio para Taubaté, para passar no
oncologista daqui, ela pediu pro meu tio chamar ele. Ela morreu gostando dele. Mas ela era
uma pessoa assim muito nervosa, fumava três carteiras de cigarro por dia (silenciou).
P: Fale agora dos dois filhos.
C3: Tem V. e o mais velho.
P: Qual a reação que você teve quando descobriu que estava grávida?
C3: Eu não descobri, eu já tava com 16 semanas e eu tava menstruando.
P: E qual a reação que você teve?
C3: O maior susto, quando eu fui fazer ultra-som para saber com quanto eu tava. Deu até para
ver o sexo.
P: Você teve que tomar algum medicamento?
C3: Eu tive que tomar calmante natural. Eu tive que tomar.
P: Por que?
C3: Estresse. Eu também tenho raiva do meu ex-marido, ele aprontou também, né! Daí porque
eu trabalhava muito em pé, chegava muito cansada, irritada, só sei que o estresse veio de um
275
jeito, a psorise minha apareceu nessa gravidez. E então do 6º para o 7º mês, que eu separei
mesmo, que aí ele saiu de casa, e aí eu falei pra ele. O pai sim, marido não.
P: Com relação a sensações do seu corpo, o que você sentia?
C3: Eu gostava, eu nunca rejeitei, eu só achava que não era a hora de eu ter outro filho,
porque a relação com meu marido não tava boa, ele tava desempregado, ele tava, mas assim,
eu nunca rejeitei não, eu pensava.
P: Era mais pelo sofrimento que estava acontecendo, não é?
C3: Mas eu não tava tão bem quando eu me separei, mas quando eu separei me deu uma
energia tão boa, nossa! Em vez de ficar péssima, eu fiquei ótima. Eu comecei a querer me
cuidar, daí eu fui pro hospital ter o V. O Doutor A. chegou lá, eu tava na cama. Eu tava de
lápis no olho, de roupa nova. Aí ele falou: - O que que é isso? Eu disse que não to doente pra
ficar de cama, de pijama.
P: Como foi o parto?
C3: Foi ótimo, foi cesariana, tive boa recuperação.
P: Vocês dois tiveram alta juntos?
C3: Rárá, o V. nasceu no dia 21, no sábado, dois dias depois saímos do hospital.
P: Você amamentou?
C3: Até os 7 meses.
P: Qual a sensação que você tinha?
C3: Aí eu gostei mais de amamentar o Vn do que o Vt, porque o Vt eu nem tinha bico no seio.
P: É do segundo que você está falando?
C3: É do segundo, porque no primeiro foi mais difícil para amamentar porque eu tinha bico
invertido e foi muito difícil. Nossa! foi um sacrifício.
P: E você parou de amamentar, por quê?
C3: Parei porque o leite foi diminuindo, daí eu tinha que trabalhar. Daí a mamada era só de
manhã e a tarde. Aí tinha que já começa a mamadeira e era um período muito longo, eu saía
antes das 8h da manhã e só voltava à noite.
P: Você notou no desenvolvimento dele atraso pra andar, pra falar?
C3: Não, foi um bebê normal, começou a falar com um aninho e a andar com um ano.
P: A agitação você não tinha notado?
C3: Não, não era um bebê agitado, acho que quem agitou fui eu mesmo. Ele era uma
belezinha, muito calminho quando bebezinho.
P: Quais as dificuldades que você tem em cuidar dele?
C3: Todas possíveis, aí.
P: Quais?
C3: Mais perigo dele mexer em coisas perigosas, de por coisas na boca, mexer no fogão, dele
pegar papel e por fogo lá, de meter as coisas na tomada, se for baixa, de subir em raque. Já
quase a televisão de 29 polegadas caiu em cima dele, nossa!
P: O que ele representa para você?
C3: Ah!, é meu filho querido que eu amo, é minha cara, principalmente quando ta dormindo,
aí eu amo mais ainda.
P: Todos amam, todos adultos amam as crianças quando tão dormindo porque aí não dá
trabalho, é uma belezinha.
C3: (Sorriu) É engraçado, porque, por mais que ele dá trabalho, tem hora que dá vontade de
matar, daí eu olho pra ele...
P: Tem mesmo?
C3: (Sorriu) Tem dia que dá vontade de bater nele até.
P: Até matar?
C3: É, é isso que é o duro, porque tem dia que, nossa!
P: Você tem vontade?
276
C3: Não, eu falo vontade de matar, mas não tenho nada assim, não, falo que tem dia que dá
vontade de dar uns tapas, sabe? aqueles tapão mesmo.
P: Tapa que chega até lesar?
C3: É, Nossa Senhora! não.
P: Preste atenção quando você fica com raiva, a forma como pensa e os riscos de violência
são maiores.
C3: Eu acabo batendo com o rodo.
P: Além do rosto, poderia acontecer outros danos graves.
C3: E eu sei disso, por isso que depois disso, no máximo um tapinha na bunda bem de
levinho.
P: Nem isso, porque é de um tapinha que começa, dá um, não resolve, daí vem o chinelo, a
cinta, então nem comece com o tapinha.
C3: E quando eu cheguei lá no Conselho, há uma coisa que eu falei pra mocinha: - Antes que
eu faça uma loucura eu preciso cuidar desse menino. Eu falei pra ela que eu não sei como
lidar com isso.
P: Ele só está com 3 anos.
C3: E isso já era meu medo. Mas ele melhorou muito.
P: E você melhorou?
C3: Eu melhorei e conseqüentemente ele melhorou.
P: Você melhorou, comente um pouco.
C3: Melhorei com certeza, só de não estar agindo com violência.
P: Tem haver com o fato de estar vindo aqui?
C3: Claro, parece que é aquilo que eu falo, primeira coisa, só o fato de eu estar querendo, de
eu estar buscando ficar melhor, só de a gente querer, de ta vendo que tem alguma coisa errada
com a gente, eu acho que isso já muda a forma de pensar, porque enquanto você ta fugindo
dos problemas, e é o que eu tava fazendo, porque eu tava ficando de um jeito que eu não
queria ir no Supermercado e levar o V., porque pra mim era um problema. E o meu filho não
é um problema. O problema não é ele, é não saber manejar. Vergonha dos outros pensarem
que eu não sei educar meu filho. Não é o problema que meu filho ta passando comigo. São
sentimentos que você tem em relação ao seu filho. Sentimento, ah!, como que eu posso falar
quando a gente se refere por não saber lidar com uma criança. Como que eu falo?
P: Não sei, você que vai definir, é seu.
C3: É meu, né! aí eu tenho um sentimento de fracasso, de fracassada por não saber lidar,
cuidar.
P: Os sentimentos que você tem quando você pensa em seu filho é de fracassada?
C3: Não é sentimento de amor, eu gosto dele, só não sei demonstrar certo.
P: Que conduta você toma com teu filho quando ele faz birra?
C3: Berro, só que não adianta, sabe? o que eu cheguei a conclusão, que às vezes não era só o
que ele tava fazendo de errado, que eu descontava, eu descontava tudo de ruim que eu tava
sentindo e é horrível. Mas aí, sabe o que eu comecei: tinha uma fase que eu batia nele, aí
depois teve a fase que eu batia em mim. Eu comecei a me bater, eu não posso matar porque é
uma criança e meu filho. Eu vou me bater, isso é coisa de louco, isso é coisa de quem ta
ficando louco já.
P: E você, hoje, como procura acalmá-lo?
C3: Ah! é facinho acalmar ele: - Oh! filho,vem cá, dá um abraço na mamãe. É a melhor forma
de fazer ele ficar calmo. Eu pego, ponho no colo, é facinho, é só pedir um beijo que ele já fica
calmo.
P: Quais situações você costuma tocar no corpo dele?
C3: Que sentido?
P: Rotinas do dia-a-dia!
277
C3: Ah! ele é todo toque, se eu to sentada na mesa ele quer sentar no meu colo, o tempo
inteiro.
P: E a higiene, ele faz sozinho ou você que faz?
C3: Escovar o dente ele faz sozinho, mas não é bem escovado, daí eu tenho que escovar. E
banho, eu já tenho que deixar, engraçado que o Vt. nada ele acha que consegue.
P: O outro filho?
C3: É o outro, mas aí é, tipo assim, eu ponho o xampuzinho no cabelo dele e falo esfrega aí,
que você consegue sim, na hora do sabonete eu fico: - olha o pescoço, lava em baixo dos
braços porque a professora falou que o Vt. é muito dependente, que é para deixar fazer as
coisas, agora o Vn. já é daquele, eu quero fazer e faz uma belezinha.
P: E ele toca no seu corpo ou ele só pede?
C3: Não, ele me beija, passa a mão no meu cabelo, fala que eu to bonita, cheirosa. Eu tomo
banho ele fala : - cheirosa, hein!. Tudo ele fala, nesse ponto ele é muito calmo, ele é
agitadérrimo, nervosinho, mas quando ele quer, ele consegue cativar qualquer um.
DEVOLUTIVA
P: Como foi pra você este trabalho com seu filho e com você?
C3: Ah!, foi bom, acho que apesar dele não ter aqui, ajudado muito, ele em casa pede, ele
pede pra fazer.
P: É talvez porque aqui ele tem muitos estímulos, filmadora, câmera, armário de brinquedos.
Mas este é teu filho, muito ativo, não é! Cheio de curiosidade, então, comparando com o
primeiro dia da massagem com o de agora, como foi? O que você tem a dizer?
C3: Eu acho que a massagem tem haver com relaxamento e eu sou muito agitada, pra parar
para relaxar. Você vai refletir sobre suas atitudes com ele, minha com ele, né! Então foi válido
né! principalmente...
P: Viu mudança em você, também?
C3: Ah! com certeza eu me acho principalmente mais tolerante, muito mais compreensiva. A
minha prima ta notando porque antes era assim: - A calma era ela e a histérica era eu, agora ta
invertendo, agora ela ta gritando com o filho dela e eu falo que é isso o que ta acontecendo
com você, o menino não ta fazendo nada, só ta brincando. Aí ela falou assim: - Nossa! A. o
que que ta acontecendo, eu to estranhando, antes você que era a louca, né! Agora é eu.
Imagina, olha só eu chegar no ponto de dizer pra uma pessoa ter calma, nunca tinha
acontecido isso antes. Ontem ela foi me ajudar e a gente deixou as crianças e só fui da uma
sondada, pra ver o que ta acontecendo, porque não adianta, não tem nada perigoso no quintal,
o que que tem, tem areia e depois quando eles forem entrar, toma banho, vão comer, lava mão
e pronto.
P: Então, você nota diferença na primeira vez?
C3: Com certeza. Eu to diferente, eu não sei. Eu to tendo vontade de fazer as coisas. Antes eu
não tinha vontade de nada, só comia. Só de ontem, eu tirar tudo da casa, e ir pintar. Eu não
tinha vontade de nada. Eu não tava com ânimo. Eu não tinha vontade de fazer nada. Eu não
tinha coragem, eu to mudando. Ele é estabanado e eu também sô, então. Eu tenho que
entender ele. Ajudar ele, não dá para fica batendo. Eu sei que preciso continuar me tratando,
mas até agora tudo já me ajudou muito. Estou até emagrecendo, feliz da vida. Mais tenho
muita coisa que mudar ainda.
Encerramos a sessão com a mãe e o filho se abraçando demonstrando satisfação, embora
aparentassem estarem um pouco agitados. Nos despedimos com um grande abraço.
278
ANEXO 5
Caso 4
Queixa: maus-tratos, violência física e verbal.
1
a
Entrevista :
P: Conte-me como você está?
C4: Vou começar do começo.
P: Você pode falar como quiser. Não precisa buscar uma ordem.
C4: Então ... minha infância, assim ... é muito triste, muito sofrida, pela minha mãe não gostar
nenhum pouco de mim, e não esconder isso de ninguém, entendeu! Eu sofri muito.
P: O sofrimento era de que forma?
C4: Ela me batia, ela me rejeitava. Assim... tudo que acontecia; se ela brigava com meu pai,
eu era culpada, porque sim! E se ela brigava comigo, meu pai ia me defender. Ela brigava
com ele, daí ele pegava as coisas e saía, entendeu! Por isso eu não gostava que meu pai
interferisse.
C4: Ela brigava comigo na frente de todo mundo. Até hoje. Qualquer parente meu, qualquer
amigo. Se a pessoa chegar e perguntar, eles vão falar que não acreditam que uma mãe podia
fazer com uma criança, um filho daquele jeito, sabe! (chorava intensamente)
P: Sem ter algum motivo?
C4: É. Isso que tudo que acontecia de errado, era culpa minha, tudo. Ela me fazia fazer as
coisas. Pequenininha já trabalhava, cuidava da casa com 9, 10 anos, entendeu! Tipo assim ...
ela me inferiorizava.
P: Você é filha dela com teu pai?
C4: Isso.
P: Quantos irmãos você tem?
C4: Depois de mim, tem uma irmã mais nova e um irmão temporão. Quando ele nasceu eu
tinha 12 anos e minha irmã 11 anos.
P: E esse irmão, quem cuidou?
C4: Eu cuidei dele dos 12 até 16 anos, entendeu! Eu fazia tudo: lavava, passava, cozinhava e
cuidava dele e ainda tinha que pular para estudar, entendeu! E a minha irmã era assim ... duas
pessoas ... duas mulheres. Ela dava uma tarefa para mim fazer. Vamos supor: “eu arrumo a
casa e minha irmã lavava roupa”. Eu sempre fazia a minha parte, entendeu! Minha irmã não
lavava ... ela: “M., vai lavar a roupa”, entendeu! Então você, mesmo sendo sem experiência
de vida, você percebe o desprezo da pessoa. Sabe o mal querer da pessoa. É pesado. É muito
pesado.
P: No período da sua infância com 6 anos, o que aconteceu?
C4: Então eu sempre fui uma pessoa assim ... Até eu acho incrível as crianças de hoje em dia,
porque eu sempre fui quieta, fechada, sabe! Porque de tanto que era humilhada eu me
reprimia, eu me fechava e eu fui abusada por um primo, entendeu! Que morava do lado.
Ninguém nunca soube.
P: Com que idade?
C4: Com 6 anos.
P: E seu primo, quantos anos tinha?
C4: Ah!... eu não sei ... pouca coisa mais velho que eu. Ele era adolescente.
P: Você nunca viu mais ele?
279
C4: Não, a gente continua se vendo, sabe! Sabe! eu tenho assim: eus me ajuda a ter uma coisa
muito boa, que é de apagar da minha mente o que eu não gosto, o que me faz mal, porque eu
não acho que é bom ficar martirizando, memorizando, remontando, relembrando, entendeu!”
Então ... assim ... tudo que aconteceu da minha vida do passado, que eu não gosto, me da um
branco pra esquecer. Eu me lembro muito de coisas boas, mais aquela coisa que assim... que
eu sofri muito, eu esqueço. Olha! ele molestava muito a gente, gostava de passar a mão, de
fazer a gente fazer coisas orais nele, entendeu! Agora... assim que teve penetração, eu lembro
que foi uma vez e eu lembro de muito sangue, entendeu!
P: Com 6 anos?
C4: É, só lembro disso de muito sangue.
P: E ninguém sabe?
C4: É, eu nunca falei nada para ninguém.
P: Ninguém sabe?
C4: Não, porque, pensa bem! Uma mãe que fala, que tudo você é culpada. E, juro, eu não
lembro de ter dado motivo, sabe! pra pessoa ter feito isso comigo (estava falando da forma
que sua mãe a tratava).
P: E como acabou?
C4.: É, nem sei como acabou, sabe! Eu sei assim, não só ele, mais outros primos também,
conhecidos da rua, também passava a mão na minha parte íntima, sabe! É, então, tipo assim:
“É uma coisa assim ruim, sabe! Mais eu nunca falei nada pra ninguém.”
P: Então teve mais de um?
C4: Teve de passar a mão, sabe! Abuso, só um.
P: Com que idade?
C4: 6, 7, 8 anos.
P: Você morava na cidade nessa época, onde você mora?
C4: Aqui na cidade.
P: E mais tarde como foi sua vida?
C4: Mais então cresci assim totalmente desprezada, minha mãe batia pra caramba.
P: Batia? Como?
C4: Com tudo que ela achava na frente.
P: E você não reagia?
C4: Muito. Eu me defendia, arranhava ela com a unha, tentava tirar dela as coisas que ela
queria jogar e bater ne mim. Eu sempre gostei, assim, de unha grandinha, sabe! Não
grandona, grandinha. Então, quando ela unha, me bate, eu corria. Vai pra lá, vai pra cá, então
às vezes eu queria não avançar mais nela, mais tentar segurar a mão pra não bater. Pra ela não
me bater (chorou muito), daí ela falava e avançava nela, entendeu! Daí, ela usava isso, sabe!
pra me machucar. Dizia que eu avançava na minha mãe, mais eu não avançava.
P: Então ela não batia só com a mão?
C4: Não, com o que ela tinha na mão dela, ela dava com cinta, chinelo, qualquer coisa, pau.
P: Tinha lugar especifico?
C4: Qualquer lugar, qualquer lugar.
P: E você tem marcas, muitas?
C4: Nossa! Muitas ... nos braços, pernas. Horrível. Eu tinha que ir na escola, aquele calor, e
de calça comprida, blusa, jaquetona. Há marcas, porque era muito feia.
P: E seu pai via isso? E o que ele fazia?
C4: Ele sabia disso, ele também batia em mim mais porque, tipo assim, ele trabalhava, daí
quando ele chegava em casa, abria a porta, nossa! E ela tem assim um dom muito ruim, sabia
atormentar as pessoas e pensa bem, o coitado trabalha a noite inteira, ninguém sabe, mais o
local de trabalho tem seus altos e baixos, entendeu! E quem não tem conhecimento, daí ele
chegava do trabalho e ela começava a falar, falar, falar. Daí ele pegava e me batia mais ainda.
280
P: Quer dizer que você apanhava de dia e de noite?
C4: Não, era de manhã que ele chegava.
P: Ele chegava e você apanhava quando ele chegava?
C4: É o dia inteiro.
P: E ele acreditava na sua mãe?
C4: É.
P: Ele acreditava no que ela falava?
C4: Acreditava. Ele ficava meio atordoado, sabe! Eu não culpo ele. Eu não tenho raiva dele.
Eu não culpo, porque eu percebo que quando um ser humano chegava em casa e a pessoa faz
tanto mal, que ... nossa! Não tenho raiva dele, nunca tive raiva, eu não condeno, entendeu!
Tinha muito dó dele.
P: Porque?
C4: Porque ele também sofria muito, ela judiava muito dele, de todo mundo na casa.
P: Dos outros irmãos também?
C4: Ela judiava de mim, da minha irmã e do meu pai. Ela atormentava nossas vidas. Na nossa
casa era um tormento, não era um lar.
P: Seu irmão não?
C4: Nossa! minha filha, meu irmão, quando nasceu era um rei. Rei! Sabe o que é rei! Ele
podia derrubar a casa que tava tudo lindo. Agora vocês vão lá e arrumam o que ele bagunçou,
sabe! Ela fez tudo que ele quis, tanto é que hoje ele sofre muito, ah! F. , eu sofro tamem, mais
nem tanto, mais ele, porque assim, não mede muito as coisas, gasta bastante, fica em
dificuldade, corre na gente.
P: Ele é dependente?
C4: Muito, sabe! Tanto que assim, mais tipo assim: “eu e minha irmã, graças a Deus, apesar
disso nunca tivemos ciúmes dele, entendeu!” É como se ele tivesse tido três mães.
P: Ele tinha privilégios?
C4: E a gente fala, fala até hoje que ele foi um ser humano, que teve três mães, sabe! Ele
bagunçava. Minha mãe não mandava ele fazer as coisas. A minha irmã ia fazer as coisas e eu
ficava magoada, muito sentida com isso, mais não falava nada. Minha mãe gostava mais do
meu irmão, mandava a gente cuidar dele, fazer as vontades dele. A gente não teve ciúmes
porque a gente tamem gostava dele.
P: Era um bebezinho.
C4: E a gente não teve ciúmes dele, mais foi assim, depois na adolescência. É, eu tinha que
fazer tudo, né! e, mesmo quando ela tinha empregada. Porque eu acho assim, se ela tinha
empregada, entendeu! não precisava eu ficar fazendo tudo, podia se dedicar com outra coisa:
estudar, brincar um pouquinho, até porque eu vejo as criançadas de hoje que sai, passeia, vai
em clube, vai na casa da amiga. Gente ... isso pra mim nunca existiu, pra mim só foi trabalho,
trabalho, trabalho, trabalho, trabalho, dia e noite.
P: E a tua historia da adolescência?
C4: Então, é que nem eu falei. Ela me humilhava na frente de todo mundo. São muitos irmãos
e irmãs, ninguém nunca chegou nela e falou: “Nossa! cê ta exagerando! Não é assim.
Manera.” Ninguém nunca falou nada, sabe! É só pisando, pisando e eu não sei porque, juro,
porque olha, eu não sou uma pessoa vagabunda, eu nunca dei, nunca fiz nada de merecedor
para alguém achar que eu não prestava, entendeu! Mais eu não sei porque um tio, né! marido
de uma tia minha, que é uma das irmãs dela, que abusou de mim também, entendeu! Eu não
sei porque, e o que que levou, eu sei que pra mim era tudo normal, tio, tia e tudo bem. Um
belo dia, num lugar assim, escuro, dentro do carro ele falou que ia me beijar, sabe! Nossa! ...
P: E vocês estavam sozinhos?
C4: E, nossa! Isso foi um choque. E falar o que pra quem, se pra minha mãe tudo eu era
culpada, eu era responsável.
281
P: Com que idade foi isso?
C4: Treze anos de idade, cê entendeu! Uma fase assim que eu ainda me considerava
criançona, sabe! Eu brinquei de boneca até os treze anos de idade, do meu jeito, sabe! Nas
poucas oportunidades que eu tinha. Então, contar pra quem, falar o que, sabe! Ninguém me
defendia, família inteira via as coisas, ninguém falava nada. Ela batia em mim, me surrava.
Não batia, ela me surrava, na frente de todo mundo. Vou falar que eu não tinha culpa!
P: E só ficou no beijo?
C4: Não, daí foi piorando. Daí começou a ter relações, não na frente, porque, a pessoa não
queria ser responsável pela perda, né! da minha virgindade, até porque eu não sabia se eu era
virgem ou não, né! devido a situação que eu tinha passado e ninguém sabia, mais me usou
muito, sabe! E, no começo, nossa! eu fiquei assim horrorizada, mais eu não podia falar pra
ninguém.
P: E o que você sentia?
C4: Engraçado, foi assim, no começo eu não queria, eu não achava legal, só que eu não podia
falar pra ninguém, então eu dava indireta. Com o cachorro, eu gritava, sabe! No quintal da
minha casa, eu falava “sai cachorro”, como se estivesse falando para ele. Num sei, ou quem
sabe assim, eu usava indiretas. Estas coisas.
P: E porque você não saia de casa, não saia para outro lugar?
C4: Mas ir pra onde? Então eu não podia sair de casa, eu não podia sair sozinha, não tinha
liberdade.
P: Mas ele ia à sua casa quando tinha pessoas?
C4: Todo dia, ia sempre na minha casa. Freqüentava minha casa. Vira e mexe tinha almoço
nos domingos.
P: Como é que ele fazia?
C4: Não, na casa não, era assim escondido, sabe! Porque eu tive que ficar na casa dele um
tempo, porque ele estudava e minha tia tinha medo de ficar sozinha, daí eu ia ficar de
companhia pra ela, porque sempre sobrou pra mim fazer companhia pra todas as minhas tias,
porque precisava. Eu era a sobrinha mais velha. A minha vida inteira foi assim, tipo um tapa
buraco, para ajudar os outros, sabe! Daí ficava, daí quando ele chegava de noite né! ele ia
deitar e com a desculpa de que ia ver televisão, ele começava me atormentar no sofá, porque
eu dormia no sofá, cê entendeu!
P: E sua tia estava no quarto?
C4: É, e agora como é que eu ia reagir, como eu ia falar alguma coisa pra alguém, se eu nunca
tive apoio de ninguém nesta vida, nunca, de que jeito!
P: E você estava com quantos anos?
C4: Treze anos. Mas isso durou uns 5 anos, só que tipo assim, no começo lógico, eu fiz o que
pude para evitar, só que a pessoa teve a persuasão, teve o dom da palavra, né! E foi
persistindo e coisa e tal, e cê sabe que existe muitas manhas, muitas formas de cativar o ser
humano carente, né! E ele usou esta técnica, entendeu! Então, pensa bem, um ser humano que
nunca teve nada, sofrida, entendeu! Já tava naquela situação, e você sabe, um ser humano,
principalmente se for homem quando quer alguma coisa, ele usa estratégias muito baixas,
sabe como é, domina a gente, entendeu! E eu cai na armadilha, sabe! Porque, pensa bem, se
nunca na vida teve nada, de repente uma pessoa começa a te dar carinho, te dar atenção, não
sei o que pensar, pensa bem, sabe que você não queria, é uma armadilha que você acaba
caindo.
P: E isso durou 5 anos?
C4: 5 anos.
P: E aí depois desse período de choque você acabou se conformando e aí você foi cedendo
sem grandes conflitos?
282
C4: Foi devagar, entendeu! Mais chegou o tempo que eu concordei, aceitava, depois eu até
queria, assim, ter oportunidade, assim, eu lembro que eu penso assim: “Vai que ele fica
comigo, vai cuidar de mim, entendeu!”
P: Que idade ele tinha?
C4: Ah!... ele é 20 anos mais velho que eu.
P: E aí você começou a imaginar a possibilidade dele querer ficar com você?
C4: Se você for analisar a situação, um ser humano nessa situação, que me encontrava, e com
essas armadilhas que eles montam psicologicamente em cima da gente. Porque essa situação
pra mim foi psicológica, entendeu! e cê acaba se envolvendo. Cê nunca teve nada na vida, daí
cê ... pô... aí cê pensa: - “Pô, vai que esse cara gosta de mim, larga da esposa, vai me dar
carinho, vai me dar amor, atenção, coisa que eu nem sabia o que era.”
P: Ele chegou a propor isso para você?
C4: Não, ele falava que ia separar, que ia ficar comigo, sabe! que não sei o quê, sabe! É
armadilha que eles usam psicologicamente com a gente. E eu lá aguardando, esperando.
P: Como foram os envolvimentos íntimos?
C4: Não do jeito normal, com ele não, sempre de costas, ele tinha medo de me engravidar.
P: E como isso acabou?
C4: Ah! eu não sei, sabe! porque foi ficando assim, porque era quando ele queria, na hora que
ele queria. Ah!... sabe! eu nunca me impus, nunca, sabe! minha vida inteira, a bem dizer, até
hoje, eu sempre aceito as coisas do jeito que é, sabe! Vou deixando o barco rolar sem lutar
sem muita vontade própria, cê entendeu! Sempre foi assim.
P: E aí acabou quando?
C4: Quando eu tinha 18 anos. É porque, daí, eu comecei a namorar sério, com outra pessoa,
entendeu! Tanto é que, com 19 anos, 20 anos eu fiquei noiva, só que quando eu comecei a
namorar a pessoa já queria ... É, porque namorar já é complicado, a pessoa gostava de mim,
num sei o que é que ficava me atormentando. E eu pensei assim: - “Meu Deus! ele acha que
eu sou uma pessoa assim, pura, inocente, entendeu!” Porque era meu comportamento com
todo mundo. Todo mundo pensava, porque era meu jeito de ser, e daí se ele deitasse comigo e
visse que eu não era mais virgem, e daí o que ele ia pensar de mim. Coisa que eu não sô. Eu
tive que ir no médico, fui sem ninguém saber. Fui e pedi para ele ver se eu ainda era ou não
virgem.
P: E daí?
C4: Daí ele falou que eu era, isso porque, porque eu acredito, assim que como aconteceu com
6 anos, o corpo tava em formação, o corpo deve ter criado alguma pele, alguma coisa, sabe!
na formação; tanto é, que quando eu realmente me deitei com ele na primeira vez, com a
pessoa que era meu namorado, é! não teve aquele sangramento que seria o normal, sabe! Foi
uma agüinha amarela, sabe! que sai depois ainda, na saia, pra você vê, entendeu! que foi
assim, entendeu!
P: O que aconteceu nesse namoro, porque acabou?
C4: Porque ele era uma pessoa muito mulherengo, tipo assim, caiu na rede era peixe,
entendeu! Minha mãe me prendia muito, eu não podia ir em baile, em festa, não podia ficar
saindo muito, sabe! e ele não, ele saia muito, ele era mulherengo, sabe! e eu posso dizer assim
... que foi assim ... o único amor da minha vida, porque assim, eu acredito no amor, sabe
porque! você ver como eu amava, como eu era cega, que eu comecei a namorar eu tinha 19
anos, depois de quase um ano de namoro ele mudou para uma cidade X. Eu via ele uma vez
por mês, ele vinha ou no sábado de manhã e voltava na segunda ou na sexta a tarde e voltava
na segunda. E você acredita que o mês inteirinho, eu jovem com 19 anos, 2 anos, sabe! de
namoro, o que eu fazia, eu levantava, ia trabalhar, vinha, almoçava, voltava, ia trabalhar, pra
escola voltava e ficava em casa sábado e domingo. Eu trabalhava e ficava em casa. Era só
trabalho, do estudo pra casa, da casa pro trabalho, assim o mês inteiro. Eu saia uma vez por
283
mês quando ele tava aqui, sabe eu amava esse homem, por mim ele era a vida ... era minha
respiração.
P: Ele que terminou?
C4: Não, quem terminou fui eu, porque eu vi ele com outra pessoa, sabe! As pessoas, eu não
sabia. Quando eu coloquei a aliança no dedo, eu falo que Deus sabe, me ama muito, porque
me ajuda em muitas situações, entendeu! Depois que eu coloquei a aliança no dedo, depois de
um ano e pouco de namoro, né! ele queria casar comigo e eu acho que isso era verdadeiro
dele, sabe assim, ele queria aproveitar tudo, mais pra mulher, pra esposa ele queria eu, cê
entendeu! Existe essa ignorância na cabeça do homem, ele queria eu pra esposa e ele insistia
em casar comigo, em arrumar documento tudo, só que ele continuava bagunçando, entendeu!
Depois que eu coloquei a aliança no dedo, que eu comecei a ...... Deus me mostrou as coisas
com os olhos, fui vendo, foi com muita dor, com muita tristeza. Eu tinha 21 anos, doeu fundo
e você sabe o que é você dedicar 2 anos e ir até o fundo do poço.
P: Depois que você terminou com ele?
C4: Eu fiquei 2 anos sozinha, sofrendo, sem sair pra passear, só trabalhar e estudando.
P: E ele nunca voltou para falar com você?
C4: Não, é pra você ver que foi uma coisa assim, eu perdi uma parte da minha vida, que foi
perder ele. E eu acho que no fundo pra ele foi muito forte, só que, eu não sei se você acredita
nisso, mais eu acredito em influências, em trabalho, que fazem para os seres humanos, se
alguém não acredita, acredite, porque funciona. A gente não deve se envolver com isso. A
gente deve se proteger, porque funciona e atrapalha, tem pessoas que não acreditam, mais eu
falo que é verdade, porque eu passei por isso, na vida, na carne, e existe. A gente não deve se
envolver com isso, proteger sim, mais fizeram coisas ruins, sabe! Trabalhos de macumba,
sarava, sabe! E, gente! isso existe. E as pessoas fazem de ruindade pra gente e a gente deve se
proteger, não dar o troco, entendeu! Mais a pessoa que tava afim dele, uma moça, uma mulher
queria ficar com ele e era até mais velha que ele. Ela fez, sabe! Pessoa fizeram ou seja
conseguiu separar a gente. Só que eu vou falar uma coisa pra você: Eu tô com 45 anos há uns
dois anos atrás, depois disso eu vi ele algumas vezes, e as poucas vezes que ele veio para cá a
gente desde lá até aqui, eu vi ele umas três vezes ou quatro vezes e quando ele vai me
procurar, seja como assim, a gente se vê como amigo, entendeu! Mais a gente percebe uma
vez depois disso, nem sei quanto tempo demorou, a gente treme, e existe aquele sentimento
que foi verdadeiro.
P: Então você ainda tem sentimentos de afeto por ele?
C4: De carinho, mais eu não gosto dele mais, entendeu! Mais eu sinto por ele um carinho
muito grande, e ele também, pra você vê, passaram-se quantos anos, 24 anos, e até hoje ele
não me esqueceu. Eu não esqueço dele, entendeu! A gente, das poucas vezes que a gente se
vê, a gente se conversa e eu sinto porque eu acho que o ser humano tem capacidade de sentir
as coisas que Deus dá e eu sinto que realmente ele gostou de mim, entendeu! Só que foi
envolvido pela vida, pela mãe, por esta mulher que desviou, separou a gente, entendeu!
Separou as nossas vidas, nossos destinos, nossas vidas, mais aquele sentimento existiu de
verdade.
P: E como conheceu o pai de seu filho?
C4: Esse um...
P: Você morava sozinha nesta época?
C4: Não, eu morava com a minha mãe em 89. Tinha outro namorado que eu gostava dele, não
amava. Eu gostava dele, eu era louca por ele, fazia horrores por ele. Também mulherengo. Eu
nunca tive sorte com amor, infelizmente. Sabe! Eu gostava muito dele e ele veio para minha
casa, assim, minha mãe tava reformando a casa e foi lá para outro estado buscar um azulejista,
e esse azulejista trouxe um ajudante que era ele, entendeu! E, na época que ele trabalhava eles
ficavam na minha casa, num quartinho lá no fundo que tinha, sabe! Então ficava lá, sabe!
284
Mais eu namorava com outro, nossa! Que carinha feio! nossa! E, na época ele era feio mesmo,
sabe! E quando se tá apaixonada por outra pessoa, cê não enxerga mais nada mesmo e foi nem
amizade com ele. Era uma pessoa qualquer, cumprimentava com educação, e só que quando
chegou em 97, 96 eu já tava cansada, fazia 8 anos que eu tava com esse namorado, entendeu!
Eu tava cansada, porque ele me traia muito. Eu gostava demais dele, sabe! Eu fiz loucuras pra
poder ficar com ele, entendeu!
P: E foi você que terminou, também?
C4: Nesse um, foi, porque eu não tava agüentando mais. As pessoas sabem meu ponto fraco,
que é aceitar tudo calada, mesmo tendo coisa errada, sabe que eu aceito. Que eles descobrem
este ponto fraco. Que não deve ser difícil de descobrir, porque fala que faz tudo pelo outro.
Na primeira já da pra saber. É, então isso me prejudica muito, por isso que eu quero aprender
a ter auto-estima, me valorizar a poder reagir, a poder me impor com educação, aprender a me
impor. Eu não sei, entendeu!
P: O pai do seu filho, ele também teve esse comportamento, de mulherengo?
C4: Mulherengo não, mais ele é abusado, sabe! Aproveitador, ele parece que não gosta de
mim, mais aproveita porque vai na minha casa e eu faço comida, lavo roupa, passo roupa,
dava atenção, sirvo na hora que quer, ele aproveita, vai na minha casa quando quer, não
reclamo.
P: Mais ele tem relações com você?
C4: Tem, é um namoro até hoje, sabe!
P: Sem compromisso?
C4: Sem responsabilidade, cê entendeu! E eu tô numa fase assim, que eu acabei ficando com
esse pai do meu filho, porque eu tenho um péssimo comportamento. Isso eu acho um péssimo
comportamento meu, pra esquecer de um eu tenho que arrumar outro, entendeu! Qualquer
um. Vê se isso é coisa que se pense! Eu vou arrumar qualquer um para esquecer do outro e eu
caio nisso.
C4: Todos iguais. Na verdade, esse, mulherengo ele não é. Pelo menos, até o momento, eu
não tenho esse conhecimento, a não ser dessa situação, que ele engravidou outra mulher
quando eu estava grávida do meu filho, mas não chega a ser mulherengo assim, entendeu! E,
pelo menos, eu posso dizer que ele não é mais. Só Deus sabe. É uma coisa que ninguém sabe,
só Deus sabe a resposta, porque eu tive que sofrer tanto.
P: Por que você veio encaminhada do Conselho Tutelar?
C4: Ah! isso é vizinha, ela disse que eu grito muito com meu filho, que eu bato muito nele.
(chorou compulsivamente). As pessoas não sabe o que eu passei. É duro, eu adoro meu filho,
eu sei que errei de gritar, de bater. Mas eu não fiz nada demais. É que eu falo muito alto, cê
não tava vendo aqui! como eu falo alto! os outros pensam que to gritando. O pai do menino
pediu a guarda. Jamais, no mundo, só eu e meu filho, ele é tudo para mim, se eu perder ele
não sei o que eu faço. Não gosto nem de pensar (chorou novamente). Eu tenho muito medo
que ele se machuque, só que ele não pára. Eu falo uma porção de vezes, depois eu me
descontrolo. Sabe! ele ainda usa fralda a noite, não consigo tirar, falo pra ele que ele já é um
homenzinho, mas ainda não adianta, ele dorme comigo, fala que tem medo de ficar sozinho.
Tem medo de eu morrer. Eu deixo ele dormir comigo, só quando o pai dele vai em casa ele
dorme no outro quarto.
P: O que um filho representa para você.
C4: Ele é tudo pra mim, meu ar, minha vida, é tudo. Ele representa alegria, realização. Eu fiz
tratamento para engravidar. Demorou bastante,o primeiro eu perdi. Quando desisti, não fiz
mais tratamento, engravidei dele. Eu tava muito feliz, o pai dele também. Só que quando eu
estava para dar a luz, faltava dez dias eu descobri que o pai dele tinha comprado uma casa
para a amante dele ir morar com ela, pois ela tava grávida, também, e ele não me contou nada.
O meu filho tem uma irmã por parte de pai da mesma idade que a dele.
285
P: E como você reagiu?
C4: Eu fiquei muito chocada, abalada, mesmo! Não queria mais saber dele, mas sabe como é!
eu sozinha, acabei perdoando. Mas a gente não casou, só ficamos, como fala hoje, a gente
cada um tem a sua casa e ele vai lá ver a criança, ele é oportunista, ele vai lá, come e bebe de
graça, e ainda leva a roupa eu lavar.
P: O que vem acontecendo com você e seu filho?
C4: Eu ando muito nervosa. Ele não me obedece, eu peço para ele não fazer e ele faz. Eu grito
muito, tô muito nervosa. To batendo nele, ele não pára. Eu falo para parar de pular e ele vai e
pula. Esse problema da vista dele, ta me deixando muito preocupada. Em setembro ele tava
com a vista esquerda com 30
o
de pressão. O médico disse que tem que operar. Eu me
preocupo muito com ele, a pressão não abaixava.
P: Você se recorda de algo ter acontecido em setembro?
C4: Ah! Eu não sei! Eu tava brigada com o pai dele, eu não agüentava mais. Ele ia em casa,
comia, sentava, assistia televisão, não fazia nada. Eu tava histérica, expulsei ele. Sabe! A
gente nunca morou junto, ele tem a casa dele e eu a minha, mas ele não sai da casa dela. Eu
não tava ajuntando mais, já até pensei em me matar, mas aí penso no meu filho. Quem vai
cuidar dele, o pai dele! Não. Então Deus me ajuda, buscar força, mas não tô agüentando.
DEVOLUTIVA
P: O que você tem a comentar sobre a primeira vez que esteve aqui fazendo trabalho com seu
filho e com o fechamento de agora? Como foi para você?
C4: Olha, F. eu não vejo ainda mudança, eu tenho aplicado no meu garoto, mas eu tinha
dúvida e não queria fazer errado, agora, tipo assim, sorriu muito pra mim, entendeu! e depois
eu acho que é assim...
P: Não entendi.
C4: Porque assim é que eu me relaciono mal, e assim me comunico mal, entendeu! Algumas
vezes eu me acho “caindo”, porque assim o meu filho, ele, eu sou exemplo pra ele. Eu tenho
que ensinar as coisas, que passar as coisas pra ele, educar, passar as coisas pra ele, então, tipo
assim, e eu não estava, eu estava muito agitada, muito nervosa, entendeu! E eu não tava tendo
muito controle sobre mim, e esse tratamento, a conversa, tudo me ajudou, assim, a rever
algumas coisas minhas, como eu tenho que proceder, sabe! Eu me acalmei mais. A
massagem, o toque me ajudou a relaxar entendeu! Porque, eu acho assim, que a pessoa assim
relaxada, ela tem um raciocínio melhor, e eu acho que pra mim funcionou em tudo, em
relacionamento, assim, eu to super interessada em melhorar, porque eu quero, porque meu
filho é tudo para mim, e eu quero, nossa! tudo de bom pra ele, então assim, eu tenho muito
que aprender pra educar ele, o que eu sei pra mim, eu sei que é errado em algumas coisas,
você entendeu! Então, pra corrigir algumas coisas em mim que eu acho que não são corretas,
essa minha ansiedade, esse meu nervoso, entendeu! Porque isso eu achei que eu passei muito
pra ele, e ainda mais pra ele, que tem glaucoma, não é bom! Agora, por exemplo, o pediatra
falo assim que ele tem que fazer cirurgia que é hérnia umbigal bilateral, tem que tirar uma
fimosinha, entendeu! É pouquinha, mas vai ter que fazer. Até fui falar pro médico se podia
fazer, como vai ficar 30 dias afastado da escola, em vez de fazer a outra, fazer as duas juntas,
ele falou que não, que a criança não pode ter trauma, tem que ter descanso, sabe! E aí eu vou
aproveitar essa shantala. Não sei se esse é o nome, pra mim fazer nele, cê viu! Veio em boa
hora, porque eu acho que isso vai ajudar a acalmar ele. Apesar que, eu não sei se estou certa,
mas eu acho assim: “Eu estando calma, eu estando bem, porque só mora nós dois só, e de vez
em quando o pai aparece lá em casa gritando, eu vou ajudá-lo muito, e acho que já to
286
ajudando, já to vivendo mudanças, porque meu filho já ta mais calmo, mais tranqüilo, ta super
carinhoso comigo, e eu notei, eu não sei.” Eu vejo efeito rápido, porque eu procuro não mentir
para o meu filho, porque eu quero que ele cresça confiando em mim, porque eu acho assim
que é necessário que mãe e filho tenha confiança, um jogo aberto, sem mentiras,
principalmente no mundo que a gente ta hoje, entendeu! Eu tenho muita preocupação com o
futuro, você entendeu!
Então, eu procuro não mentir pra ele, sabe! e o pai dele, não. O pai dele fala que daqui a
pouquinho vai em casa e nem aparece, entendeu! Então aconteceu uma coisa assim e no
sábado, e agora quando acontece uma coisa assim que eu não gosto, que eu não acho legal, eu
agora converso com ele. Sabe! Eu tô até evitando por de castigo. Até eu vi uma reportagem.
Eu adoro reportagem de criança, tudo que fala de educação sobre criança, eu vou vendo, vou
aprimorando, atualizando, pra aprender e falou que por de castigo, bater não é legal, não é
legal, e eu não tava fazendo mesmo, então eu converso com ele, eu mostro o que a terapeuta
falou. A psicóloga falou que tem que ter paciência, persistência, então o que aconteceu
sábado, o pai dele foi jogar bola, e não levou, e ele ia leva, não levou, porque disse que tava
chovendo e não tinha lugar pra ficar, então a gente conversou com ele, ele não chorou, não fez
manha, não achou ruim, coisa que há um tempo atrás ele faria.
P: Ele foi buscar o filho ou ele estava na sua casa?
C4: Ele estava, ele foi na minha casa cedo, chegou cedo em casa, dormiu, almoçou né!
P: Com você? Você continua namorando ele.
C4: Isso faz 5 anos esse namoro, sabe! Entendeu! Vai e volta. A gente ficou separado mesmo
na gravidez, entendeu! Mas, ou quando a gente brigava mesmo, sabe! Então ele levantou e
falou que ia, e a gente conversou com ele, e ele compreendeu, que não tinha onde ficar, quer
dizer, já é um avanço, né! Porque, que tem hora ele é assim super agitadinho, né! Já não ia
aceitar. Daí o pai dele falou assim: - Volto logo. Daí eu já observei que meu filho é assim, é
meio tudo ou nada, né! Pode pode, não pode não pode, se der um brinquedo pra ele, dizer que
é para brincar um pouquinho e depois falar que não pode, mas ele já não aceita, se deixar um
pouquinho e porque pode agora, se ele pegar uma coisa e você pegar dele, ou falar que não
pode, ele já compreende e não pega mais. E falar pra ele - É rápido, pra ele. É rápido mesmo,
ele não tem entende, que nem você falou: a criança não tem essa compreensão, de eu não vou
demorar muito. E muito não é um dia inteiro é algumas horas, um hora, duas horas, mais pra
ele isso é muito. Pouquinho pra ele é aqui passou um pouquinho, já é um pouquinho
entendeu! Daí o pai dele falou - eu volto logo do jogo, cê sabe - né! - Tem o jogo, tem a
cervejinha, conversa com os amigos, certo! Daí o pai dele saiu de casa às 4 e chegou às 7:30
horas, e realmente não foi muito porque geralmente ele chega às 9, 10 h, conversando com os
amigos, mas para o meu filho, foi muito. Aí a hora que o pai dele abriu o portão eu achei
engraçado, porque ele falou: - Pai eu preciso falar sério com você - e foi pro quarto dele, e eu
falei; Filho! - Porque? - Mãe eu preciso falar com meu pai. Fechou a janela, chamou o pai
dele e falou: - Pai você mentiu pra mim, você falou que ia, vim logo e demorou. - Cê,
entendeu! Eu acho assim que ta fazendo efeito e até ta aparecendo que eu já enxerguei assim,
você entendeu! E isso pra mim é bom porque eu quero é isso, conversar. Porque tudo que eu
passo pra ele, tudo que ele convive comigo ele aprende. Essa agitação que ele tem já nasceu
com ele, né! dele ser hiperativo, aí ele conviver comigo a tendência e só aumentar - né! -
Agora eu aprendendo isso, isso de eu ser ansiosa, ajuda, entendeu! me ajuda, eu posso me
olhar mais, me corrigir mais, que nem uma coisa que eu vi sabe F., que caiu minha ficha foi o
seguinte, que a vida toda minha mãe, quando eu era criança, a minha mãe desfazia muito de
mim né! Já falei sobre isso, e essa rejeição, por a minha mãe não gostar de mim, dela, tipo
assim, ela tirou tudo que um ser humano precisa, confiar em si, ter auto-estima, eu não tinha,
e daí outro dia você falou assim: - Você precisa que o outro diga isso pra você, você não
acredita em você mesma! A gente tava falando e realmente eu preciso que o outro reze pro
287
meu filho porque eu acho que a reza do outro é mais forte que a minha. Eu preciso que outra
pessoa converse com meu filho pra ver se ele me escuta, eu tinha que recorrer a outra pessoa,
porque eu me achava incapaz, eu me achava inútil, sabe pra tudo, então tudo que se referia a
minha pessoa eu me escondia sabe! Eu me omitia, sabe! Agora pros outros eu vou lá, eu faço,
resolvo e os meus não, eu ficava esperando dos outros, esperando, que os outros me
ajudassem, entendeu! Daí, eu vi que a minha mãe tirou tudo a auto-estima minha, entendeu!
Então, agora eu vi que eu sou capaz, e que eu tenho condições, eu de passar as coisas pro meu
filho, que eu tenho capacidade para resolver os meus problemas, tanto é que meu irmão briga
muito comigo, né! porque não aceita, eu tô com ele né, aí eu falo ah! eu tô com ele porque o
M. gosta dele, né! tipo assim, sabe! agora que nem sexta-feira, meu irmão levou para uma
cidade, ele tava falando porque meu irmão não gosta dele, minha família inteira não gosta, né!
por causa do jeito dele ser - sabe!.
P: Não gosta do que?
C4: Do pai do meu filho por causa do que eu já passei, né! F., por causa do que eu ainda
passo, né! F., agora é menos, só na gravidez mesmo, porque foi uma coisa pesada, pensa bem.
P: E você foi ficou com ele por quê?
C4: Antes eu ficava por comodidade, entendeu! E agora este ano eu tinha determinado mudar
de atitude, assim, mudar mesmo a minha vida, e uma delas era romper o laço com ele, só que
eu não sei, eu tô agindo com o pai dele com o coração, porque quando meu filho nasceu, o pai
dele mudou e eu deixei o barco correr, porque agora eu tô agindo com o coração, tô aceitando
a ajuda, a presença, entendeu! E foi bom para o garoto, não sei se deu para compreender.
P: Você sempre volta pra falar do passado e nós estamos no presente e como está você, agora?
C4: É, tipo assim. O pai dele na realidade tem lá os problemas dele, de todo ser humano, mas
tem uma coisa boa pra mim até o momento. No futuro, eu não sei. Tem coisa que ele me dá
ânimo, aí eu não sei, ele é a única pessoa que vai lá. Então, tipo assim, eu descobri que eu
gosto dele. O garoto gosta quando eu fico bem, até que ele fica legal. Ele acha ruim. Ele briga
comigo. Quando eu brigo ou fico chateada com o garoto ou quando ele irrita, quando fala alto,
entendeu então!
P: Você não colocou nenhum problema dele até agora. Ele não tem? Ou o que justificaria
você se separar dele, se ele só traz coisas boas?
C4: Olha F., eu separar dele! É que faz 8 anos que eu tô com ele. É, ele nunca assumiu a gente
assim, o que eu fico triste é que ele nunca assumiu a responsabilidade de uma família, de
abraçar eu e o M. e cuidar da gente como uma família, cê entendeu! Ficar junto.
P: Mas quem dá a pensão do M.?
C4: É ele.
P: E o que mais você gostaria que ele desse?
C4: O que eu queria F. era uma vida compartilhada junto, dentro da mesma casa.
P: E você gostaria de ficar com ele?
C4: Eu gostaria. Eu gostaria, porque também eu já tô com ele há 8 anos, já conheço muito
bem. Já conhece muito de mim. É, não sei, vou tentar de novo. Porque, tipo assim, o que me
entristece é que ele é uma pessoa, ele tem medo da responsabilidade, ele foge das obrigações,
essa obrigação da pensão. Eu ficava esperando ele dá, ele dava o dia que ele queria. O dia que
ele dava, ficava de cara fechada, amarrada, e eu fiquei esperando 1 ano e 6 meses. E eu tenho
os papéis lá, entendeu! Depois de 1 ano e 6 meses eu entrei com a coisa, ele é obrigado a dar,
entendeu! Ele foge. Ele é uma pessoa, que eu observei que a vida toda dele, ele não enfrentou
a realidade, tanto é que ele saiu da casa dele pra viver longe, e todas as famílias têm problema,
né! E ele não enfrenta os problemas. Quando a gente briga, a gente discute, ele vai porque ele
tem outra casa, né! que ele mora, porque eu tenho a minha casa e ele tem a casa dele, então
ele tem um lugar para se esconder. Ele mora com um sobrinho dele, entendeu! É aí, o que
acontece se eu brigo com ele, o que ele faz, porque é lógico, todo ser humano pega, discute,
288
bate-boca e coisa e tal, entendeu! E ele faz o que! Ele vai pra casa dele e se isola. Daí ele
sabe, porque que nem eu falei pra você. Eu não sou o tipo de pessoa que fica perdendo tempo,
guardando raiva, mágoa, essas coisas dos outros daí. Eu apago, esqueço. Sabe daí o que ele
faz! Ele dá um tempo, volta como se nada tivesse acontecido, você entendeu!
P: E você se comporta do mesmo jeito?
C4: Mas ele, quando a gente ta bem, ele me faz bem, entendeu! A gente sai para passear. A
gente viaja. Ele vai pra minha casa e eu tenho mais ânimo de fazer as coisas, sabe! Ele me
passa energia negativa, mas também passa energia positiva, sabe! e me dá mais pique.
Encerramos o nosso encontro, nos despedimos e ela confirmou que gostaria de continuar o
trabalho com os estagiários, depois que passasse o período de cirurgia do filho, porque ajudou
muito ela a se acalmar.
289
ANEXO 6
Descrição resumida das técnicas
A Calatonia (SANDOR, 1974), que é uma técnica de toque sutil que implica em
favorecer um tônus descontraído, solto, mas não somente do ponto de vista estático e
muscular. No original grego o verbo “Khalaó” indica “relaxação” e também “alimentação”,
“afastar-se do estado de ira, fúria, violência”, “abrir uma porta”, “desatar as amarras de um
odre”, “deixar ir”, “perdoar aos pais”, “retirar todos os véus dos olhos”, etc.
A Calatonia possibilita também uma aproximação em escala extensa, a campos extra-
racionais da psique (aos conteúdos uma vez já conscientes e aqueles que nunca o foram), às
áreas de apoio transpessoal e àquele núcleo da totalidade psíquica que é muito mais do que
apenas a soma dos seus componentes. Algumas facetas dessas “freqüências” foram descritas
nos dois casos inclusos no presente volume, e outras, enumeradas no capítulo das imagens
mentais.
Shantala é o nome que Leboyer (1989) deu para uma massagem aplicada a bebês, que
conheceu em sua visita na Índia, especificamente em Calcutá, na década de 70, num abrigo de
refugiados em meio de tanta miséria, como ele mesmo relata em seu livro, observando uma
mãe hindu massageando seu bebê, e se encantou com tanta delicadeza e tranqüilidade que
ambos transmitiam.
Shantala é o nome da mãe hindu que apesar de ser paralítica trabalhava neste abrigo
para ajudar aos mais necessitados, não deixando de cuidar dos próprios filhos, ocupando
diariamente um tempo para massageá-los.
Leboyer renomado médico francês, que a partir desta experiência estimulou as mães a
terem partos normais (sem dor), na água, e ensinou-as a acariciar seus filhos, como forma de
prepará-las para receber seus bebês, como também acolher esse novo ser que acabava de
nascer.
Segundo Leboyer:
Se os bebês berram sempre que acordam não é porque a fome os atormente. Eles não
morrem de inanição. Eles são aterrorizados pela novidade da sensação. Por essa
“coisa qualquer interior” que assume imensas proporções, justamente porque o
mundo exterior está morto. É preciso alimentar os bebês. Sem dúvida alguma.
Alimentar a sua pele tanto quanto seu ventre. E, além disso, nesse oceano de
novidades, de desconhecido, é preciso devolver-lhe as sensações do passado. Só elas
nesse momento podem oferecer-lhe um sentimento de paz, de segurança. A pele e as
costas não esqueceram... Assim como dar à luz pode ser para a mulher liberada do
medo uma experiência inebriante, com a qual nada se pode comparar, para o bebê, o
nascimento pode ser a mais extraordinária, a mais forte, a mais intensa das
aventuras... Para ajudar os bebês a atravessar o deserto dos primeiros meses de vida,
a fim de que eles não sintam mais a angústia de estarem isolados, perdidos, é preciso
falar com suas costas, é preciso falar com sua pele que têm tanta sede e fome quanto
o seu ventre (LEBOYER, 1989, p.17-21).
290
Anexo 7
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Eu, Maria de Fátima Camargo Dias Ferreira, psicóloga, estarei realizando uma
pesquisa, sob a orientação da Profª Drª. Ceneide M. O. Cerveny, com o objetivo de defesa de
tese de Doutorado, pela PUC/SP.
Neste sentido gostaria de seu consentimento para que as sessões sejam filmadas e
gravadas, com o objetivo de estudarmos e analisarmos os dados apresentados durante as
sessões. Também solicito autorização para apresentarmos estas fitas à banca examinadora da
pesquisa, bem como em apresentação de trabalhos de cunho especificamente acadêmico-
científico. Informamos que estão previstas de 6 à 10 sessões dependendo do número de filhos
menores de 5 anos, salientamos também, seguindo os preceitos éticos que serão vetados, nesta
pesquisa, dados que possam identificá-los, além do que, você terá plena liberdade de se
retirar desta pesquisa, a qualquer momento, sem nenhum prejuízo ou penalização à sua
pessoa.
Com o término da pesquisa, se houver interesse, disponibilizaremos o material para
conhecer os resultados desta pesquisa.
Tema da Pesquisa:Da expressão que espanta, ao toque que encanta”: a Calatonia e a
Shantala como instrumentos de intervenção no re-significar das relações entre mães e filhos.
Objetivo: Utilizar como instrumentos as técnicas corporais com as mães (Calatonia) e as
mães nas crianças (Shantala) com dificuldades na relação.
Procedimento: Os casos são encaminhados do Setor técnico do Serviço Social do Fórum, da
Clínica Psicológica da UNITAU e do Conselho Tutelar. Primeiramente haverá uma sessão
com cada mãe para esclarecimento sobre a pesquisa., após este encontro, ocorrerá
individualmente uma sessão com cada mãe e seu(s) filho(s) menores de cinco anos, com
atividades corporais utilizando-se da técnica Shantala (toque). Após, se sucederão quatro
sessões com cada mãe, também de atividades corporais, a Calatonia (reconhecimento de si
mesma). Novamente ocorrerá uma sessão com a mãe e seu(s) filho (s) de Shantala , e por fim
concluiremos com mais quatro sessões, com cada uma das mães para devolutiva sobre o
trabalho. Os horários serão agendados após acordo com as mesmas. O local em que ocorrerão
as sessões será na Clínica Psicologia da UNITAU, com o consentimento da chefia do
Departamento. Este trabalho é totalmente gratuito.
Agradecemos sua participação enfatizando que a mesma em muito, contribuirá para a
construção e aprendizado de nossa pesquisa.
Taubaté, ______ de_______________de___________
Pesquisadora: Maria de Fátima Camargo Dias Ferreira
Tendo ciência das informações neste termo de consentimento, eu,
___________________________________-, portador do RG nº
___________________________________, autorizo a utilização nesta pesquisa, de filmagem
e gravação dos dados por mim fornecidos.
______________________________
291
GLOSSÁRIO
Anima: é o arquétipo coordenador do ciclo de alteridade na personalidade do homem.
Representado por símbolos principalmente femininos, segundo Jung, é aqui concebido
como bipolar, tanto masculino quanto feminino.
Animus: é o arquétipo coordenador do ciclo de alteridade na personalidade da mulher.
Representado por símbolos principalmente masculinos, segundo Jung, é aqui concebido
como bipolar, tanto masculino quanto feminino.
Arquétipo: corresponde, na psicologia, ao que o instinto significa para a fisiologia, o gen para
a genética, o ângulo de cristalização para a minerologia e o padrão de comportamento
para a zoologia.
- Central: é o principal dos arquétipos e o centro coordenador e criativo do
inconsciente. Coordena todo o desenvolvimento psicológico, do início ao fim da
vida, através dos demais arquétipos, e coordena diretamente o ciclo cósmico da
consciência. Jung o emprega como sinônimo de Self, ambiguamente, a meu ver.
- Grande Mãe: é o arquétipo que rege o início da consciência e a inter-relação da
polaridade consciente – inconsciente durante toda a vida, manifesta-se por meio
de símbolos que expressam o desejo, a fertilidade e as condições básicas de
sobrevivência. Seu princípio de transformação é principalmente a imitação, e
seus meios de expressão mais comuns são a imagem, o corpo e as emoções.
- Pai: é o arquétipo que rege a estruturação da consciência por meio da delimitação e
abstração da relação consciente – inconsciente. Seus símbolos expressam a lei e
as tarefas pré-codificadas pelo planejamento. A palavra e a função ideativa lhe
são fundamentais, e seus símbolos são geralmente transformados pela
sublimação.
Ciclo Arquetípico: é o ciclo dos arquétipos que estruturam e coordenam os quatro principais ciclos
da consciência individual e coletiva: ciclo matriarcal (arquétipo da Grande Mãe), ciclo
patriarcal (arquétipo do pai), ciclo de alteridade (arquétipos da Anima e do Animus e do
coniunctio) e ciclo cósmico (arquétipo central).
Ciclo da Consciência: o padrão matriarcal é binário, regido pelo princípio da fertilidade e do
prazer, e seus símbolos são elaborados principalmente pela imitação. O padrão patriarcal é
ternário, regido pelo princípio da lei, da causalidade e do planejamento preconcebido, e seus
símbolos são transformados pela delimitação e pela sublimação. O padrão de alteridade é
quaternário, regido pelo princípio da sincronicidade, e seus símbolos são elaborados,
basicamente, pelo desapego à generalização.
Consciência: é a parte efetuadora central da estrutura psíquica, na qual os símbolos atingem seu
mais alto grau de discriminação.
Ego: é um complexo da consciência ligado à formação da identidade, para o que é inseparável da
noção de Outro ou não-Eu.
Elaboração Simbólica: é o processo de desenvolvimento dos símbolos. Inicia-se com a
indiscriminação devida à aglutinação de energia do consciente e do inconsciente, culminando
na separação e identificação (discriminação) das inúmeras polaridades que compõem cada
símbolo.
292
Função Simbólica: é praticamente um sinônimo funcional de arquétipo e, como este, se expressa
por meio dos símbolos. Cada dimensão do Self individual tem suas funções simbólicas
características. Exemplos: ódio (dimensão emocional), natação (dimensão da natureza),
enamoramento (dimensão social) e digestão (dimensão do corpo), com significados subjetivos
e objetivos.
Padrão arquetípico: trata-se de um padrão que coordena tipicamente a estruturação de cada um dos
ciclos da consciência.
Persona: é o contrapólo da sombra, na estrutura efetuadora da personalidade. É formada pelos
papéis culturais colocados à disposição do indivíduo pela tradição cultural, para que ele
expresse e elabore seus símbolos, na estruturação de sua consciência.
Self: é a soma total dos processos conscientes e inconscientes de sua inter-relação. Pode ser
individual e grupal. O Self grupal inclui o Self cultural, o Self familiar, o Self conjugal, o Self
terapêutico, o Self pedagógico etc.
Símbolo: é a célula nobre ou a unidade da psique; sua função estruturante é coordenada por um
arquétipo; reúne energia consciente e inconsciente, e age como um transformador,
estruturando a consciência com o potencial arquetípico.
Sombra: é uma parte efetuadora da estrutura psíquica que abriga símbolos que são expressos fora
da consciência e, por isso, de forma inadequada e indiscriminada.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo