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CULTURAS E EDUCAÇÕES: O
Orientadora: Prof. Dr
MARISA FLÁVIA DA SILVA
CULTURAS E EDUCAÇÕES: O
TANGOLOMANGO
COMO EXPERIÊNCIA
Dissertação apresentad
Graduação em E
ducação da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Mestre. Ár
Concentração: Estudos do Cotidiano Escolar.
Orientadora: Prof. Dr
ª
Niterói
2008
COMO EXPERIÊNCIA
Dissertação apresentad
a ao Curso de Pós-
ducação da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do Grau de Mestre. Ár
ea de
Concentração: Estudos do Cotidiano Escolar.
. Edwiges Santos Zaccur
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II
S586 Silva, Marisa Flávia da.
Culturas populares e educações: O TANGOLOMANGO como
experiência / Marisa Flávia da Silva. – 2008.
205 f.
Orientador: Edwiges Santos Zaccur.
Dissertação (Mestrado) Universidade
Federal Fluminense,
Faculdade de Educação, 2008.
Bibliografia: f. 202-205.
1. Educação popular
Rio de Janeiro (RJ). 2. Diversidade cultural.
I. Zaccur, Edwiges Santos. II. Universidade Federal Fluminense.
Faculdade de Educação. III. Título.
CDD 370.19098153
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III
A todos os meninos e meninas que se lançaram nesta aventura
cultural e educativa comigo.
IV
AGRADECIMENTOS
De coração, agradeço:
Minha filha, pela ausência,
Minha família, pelas memórias,
Meus amigos de fé: Carlos, Mônica, Regina,
D. Nelma, Marcelo e Déa, pela leitura e apoio,
Margarethe, pela amizade e respeito,
Maurício, pelo companheirismo,
afeto e últimas provocações,
Jongo da Serrinha, pelas oportunidades,
Minha orientadora, Edwiges, pela determinação,
cumplicidade, acolhimento e aprendizagens.
V
“Quando a noite descia, ao som da Ave-maria,
Um som de tambor se ouvia.
Dentro de uma senzala, em um caminho pra Minas
Vozes de Jongueiro se ouviam”
(Saracura letra e música de Pedro Monteiro e Darcy Monteiro)
“(..)Mas os presos são quase todos pretos/Ou quase pretos /Ou quase brancos
quase pretos de tão pobres/ E pobres são como podres /E todos sabem como se
tratam os pretos(...)O Haiti é aqui /O Haiti não é aqui...”
(HAITI letra de Caetano Veloso música de Gilberto Gil e Caetano Veloso)
VI
RESUMO
O projeto Tangolomango é fruto de uma pesquisa sobre a prática desenvolvida por mim para
favorecer o processo de apropriação de leitura e escrita para crianças e adolescentes das classes
populares com defasagem série /idade ou que não haviam completado com sucesso sua
alfabetização nos três primeiros anos do Ciclo Básico de Formação. O projeto buscava
atender demandas de Classes de Progressão de duas Escolas Municipais situadas em Campo
Grande, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro - o CIEP Posseiro Mário Vaz entre 2002 e 2005 e
a escola Professor Gonçalves entre 2005 e 2006, tendo como proposta pedagógica promover
um diálogo entre os saberes contidos na arte e culturas populares e os saberes formais
pertinentes ao currículo escolar. Busquei acolher em meio à polifonia de vozes, a ambigüidade
de encontros e desencontros culturais, fazendo uma reflexão sobre as questões referentes ao
processo de colonização e ao “pensamento único” de matriz européia que se encontra
ideologicamente implicado no imaginário coletivo. A consciência de que os países
subalternizados são espaços de produção de cultura(s), mas não produtores de saber(res),
ressoa, metaforicamente falando, no microcosmo cotidiano da escola, onde o “outro” e as
diferenças culturais das crianças originárias das classes populares, são, muitas vezes, vistos
como “exóticos”, mascarando, de maneira velada ou explícita, um conjunto de práticas
excludentes em relação a saberes e dizeres de culturas vistas não “cultas”. Para discutir as
questões referentes às fronteiras e hibridização cultural, reporto-me aos estudos e pesquisas de
CHARTIER e HANNERZ que buscaram construir seus pensamentos rompendo armadilhas
dicotômicas que, de certa forma, naturalizaram as polarizações entre culturas. Neste sentido, o
presente trabalho aproxima-se dos estudos sobre os saberes subalternos apontados por
MIGNOLO, das considerações de BAKHTIN referentes à palavra como arena, além de retomar
os ideários humanistas de uma educação libertária preconizada por de FREIRE e BRANDÃO.
O desafio de optar por desenvolver um projeto pelo viés cultural e artístico foi uma estratégia
que, longe de ser neutra, afirma valores humanísticos, impregnados de diversidade, acolhimento
e respeito aos diferentes saberes que circulam pelo espaço escolar.
Palavras-chave: Encontros e desencontros culturais; culturas e educações.
VII
ABSTRACT
The Tangolomango Project derives from a research developed by me to favor the process of
reading and writing absorption by children and teenagers of lower classes who were behind in
grade for their age or who hadn’t completed their alphabetizing process in the first three years
of the First Basic Cycle of Study. The project tried to attend the toils of Progression Classes of
two Municipal Schools located in Campo Grande, suburban area of Rio de Janeiro- in the CIEP
Posseiro Mario Vaz between 2002 and 2005 and the school Professor Goncalves between 2005
and 2006, having as a educational proposal the promotion of a dialogue between the knowledge
contained in art and popular cultures and the formal knowledge contemplated by the school
syllabus. Among the polyphony of voices, I tried to assess the ambiguity of cultural encounters
and disencounters, reflecting on issues related to the process of colonization and to the
European-inspired unitarian thought, which are ideologically implied in the collective
imaginary.
The conscience that the subjugated countries are places where one can produce culture -but not
knowledge- resonates, metaphorically speaking, in the microcosm of the school routine, where
the “other” and the cultural differences of children coming from lower classes are many times
seen as exotic, masquerading a group of exclusion practices e in relation to knowledges and
speeches of cultures seen as not “cult”. To discuss the issues related to frontiers and cultural
hybridization, I refer to studies and research by CHARTIER and HANNERZ, who tried to
build their thoughts by breaking dichotomy traps that, in a way, naturalized the polarizations
amongst cultures. In this way, the present work draws on studies on subjugated knowledges
developed by MIGNOLO and on the considerations of BAKHTIN referring to the word as an
arena. It also recovers the humanist ideals of a libertarian education defended by FREIRE and
BRANDAO. The challenge of developing a project in the cultural and artistic path was mot a
neutral strategy, but one which fostered humanistic values, impregnated with diversity, warmth
and respect for the different knowledges that circulate in the school environment.
Key words: Cultural encounters and disencounters, cultures and education.
VIII
SUMÁRIO
ABRA A RODA TIN DO LE LÊ 08
1 – DA LARANJA QUERO UM GOMO, DO LIMÃO QUERO UM PEDAÇO 13
1.1 – A barata diz que tem sete saias de filó, é mentira da barata 20
1.2 – Sozinho eu não fico, nem hei de ficar 43
1.3 – Passaraio, passaraio, quem me deixe eu passar 50
1.4 - Se esta rua, se esta rua fosse minha 69
2- VIVA EU, VIVA TU, VIVA O RABO DO TATU 87
2.1- Gato escondido com rabo de fora 104
2.2- A canoa virou, pois deixaram ela virar 116
2.3- O mato cresceu ao redor, ao redor, ao redor 125
3- ERAM NOVE IRMÃS NUMA CASA 138
3.1- Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar 146
3.2 – Tudo que seu mestre mandar? Faremos todos? 158
3.3 – Era uma vez 170
3.4 – Escravos de Jó, jogavam caxangá 183
ENTROU POR UMA PORTA, E SAIU PELA OUTRA 196
BIBLIOGRAFIA 202
IX
ABRA A RODA TIN DO LE LÊ ...
Tangolomango é uma brincadeira musicada recorrente no universo popular com
inúmeras versões espalhadas pelo Brasil. Uma cantiga que tem duplo objetivo: divertir e
ensinar. Uma brincadeira que ajuda a meninada a compreender melhor o conceito de subtração.
Eram nove irmãs, e cada qual em seu tempo, pratica uma ação, e “dá” um Tangolomango nela
(um “estremilique” ou “piripaque”) obrigando-a a sair da brincadeira. Assim das nove, ficam
oito, que ficam sete, que ficam seis, que ficam cinco, que ficam quatro, que ficam três, que
ficam dois, que fica um e depois, acaba a geração.
Ou melhor, acaba a geração ou morre e renasce a cada brincadeira? O Tangolomango
como metáfora da vida? O que morre? O que se transforma? O que fica? Estas são algumas
questões iniciais que atravessam esta pesquisa.
O que mais me encantava nesta atividade eram as possibilidades de aprendizagens que
esta brincadeira possibilitava: cantavam e dançavam tão animadamente quanto liam e
escreviam seus versos. Tudo junto, misturado, ao mesmo tempo. Esta foi a primeira “pista” que
me ajudou a refletir sobre a possibilidade de experimentar outras maneiras de fazer e estar
dentro do espaço escolar, de modo a favorecer a aprendizagem da leitura e escrita das crianças.
Situando melhor o( a) leitor(a), o presente trabalho foi realizado em duas Escolas
Municipais em Campo Grande, subúrbio da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: O CIEP
Posseiro Mário Vaz pertencente a 10ª CRE (Santa Cruz) localizado no Jardim Maravilha/Ilha
de Guaratiba entre 2002 e início de 2005 e na Escola Municipal Professor Gonçalves
pertencente a 9ª CRE, localizada em Campo Grande durante o restante do ano de 2005.
A presente narrativa deriva de uma experiência pedagógica que me marcou, me
atravessou profundamente, e que levou a lançar um olhar mais aguçado a sobre minha própria
práxis, com o objetivo de buscar compreender melhor os encontros e desencontros culturais
que acontecem no cotidiano escolar.
Também me levou a discutir implicações ideológicas e políticas que, no meu entender,
interferem diretamente ou indiretamente no processo de ensino aprendizagem das crianças e
adolescentes das classes populares.
Não acredito que fragmentos de minha práxis educativa, narrados e refletidos na
presente pesquisa, em conta da complexidade e conflitos existentes na educação popular
X
brasileira. Gostaria apenas de compartilhar dúvidas e inquietações vividas, trazendo um olhar
aprendente e pesquisador, inacabado e contraditório (como a natureza humana) sobre as tramas
culturais e a polifonia de vozes que circulam pelo ambiente escolar. Foi este movimento que me
trouxe a esta Universidade: a necessidade de conjugar ação-reflexão-ação centrada na minha
experiência pedagógica, buscando ao mesmo tempo, ouvir e dialogar com outros educadores e
educadoras sobre as questões e conflitos presentes na alfabetização das crianças das classes
populares.
Retomo o início desta história que objetiva re-pensar e refletir sobre os desafios de uma
educação libertadora. Mais do que respostas prontas, busco com este estudo ampliar minhas
reflexões e investigações sobre a alfabetização tendo como suporte as intervenções pedagógicas
culturais que o projeto Tangolomango foi realizando dentro do espaço escolar.
A título de esclarecimento e orientação do leitor (a) gostaria de anunciar que a presente
pesquisa está organizada em três partes, que estão imbricadas seja na minha história seja na
história das crianças das classes populares que convivi.
Neste sentido, tal experiência foi vivida como um momento de produção cultural que
serviu para aquelas pessoas, naquele momento, com aquelas pessoas, naquela comunidade
escolar. Isto afasta a possibilidade de transposição direta das atividades aqui recontadas. O que
busco possibilitar como contribuição ao cotidiano escolar, seria a reflexão crítica sobre a
questão recorrente que alinhava as três partes da pesquisa: Qual a relação entre Culturas e
Educações e que “tipo” de educação atende aos interesses e necessidades das classes populares?
Reconheço que este é um tema amplo e bastante polêmico (um assunto tempos
discutido e problematizado por inúmeros educadores e educadoras que realizaram - e realizam-
significativos trabalhos de intervenção cultural dentro e fora da escola). Por isto, gostaria de
esclarecer que apesar desta pedagogia cultural não ser novidade, gostaria de dizer que o que
trago foi sentido por mim e pelas crianças e adolescentes e também pelos outros atores
escolares que direta ou indiretamente estiveram envolvidos e se inquietaram com as
intervenções educativas do Tangolomango, como novidade, como diferente, como ousado,
como alternativa, como uma proposta pedagógica criativa e transgressora e até certo ponto,
perigosa.
Cada momento é um momento de invenção da escola. Cada momento é possibilitador de
novas descobertas. Falo isso, ressaltando a necessidade de cada educador ou educadora
XI
procurar refletir sobre sua própria prática, visto que cada modelo é singular e irrepetível. O que
interessa, são as possibilidades reflexivas de cada experiência.
Acredito ser importante também anunciar que, no início, os nomes dos títulos e sub-
títulos eram outros; mais formais e acadêmicos. E isso, a meu ver, traduzia muito pouco a
experiência do Tangolomango. Com todos os desafios e descobertas implicados nesta opção,
arrisquei-me a criar outra forma, mais brincante de apresentar esta pesquisa: recolhi do universo
popular infantil uma série de cantigas ou brincadeiras que traduzissem o que a experiência do
Tangolomango buscava realizar em sala de aula, ou seja, divertir e ensinar. Tudo junto, ao
mesmo tempo, misturado.
Voltando a sucinta apresentação deste trabalho, procuro discutir na primeira parte as
relações entre as palavras culturas e educações e suas implicações no campo cio-histórico-
cultural, tendo como pano de fundo o delicado território de herança escravista no Brasil. As
discussões levantadas neste primeiro capítulo apontam para as seguintes questões: Quais os
lugares de pertencimento reservados para os negros, ou quase negros, secularmente
subalternizados originários das classes populares na sociedade brasileira? Como fica a delicada
questão do racismo em nossa sociedade? E a escola, o que ela tem a dizer sobre isso? Por que
nossa sociedade valoriza um tipo de conhecimento, em detrimento de outro? O que vai de
encontro ou ao encontro dos saberes das classes populares e o que isso tudo tem a ver com o
analfabetismo e suas implicações políticas no Brasil? Busco com estas questões, revisitar o
passado para compreender melhor o presente, na tentativa de rememorar espaços tempo de
construção da subalternidade pensando na possibilidade de sua des-construção.
Buscando compreender melhor estas intrincadas relações culturais de herança
escravista, recupero no segundo momento deste trabalho, um pouco de minha própria história
de vida, onde também me encontro - e me desencontro - no lugar do híbrido, da mestiçagem, da
mistura, e conseqüentemente da uma subalternidade e inferioridade identitária e que precisei
olhar de frente para começar a des-construir. Fui aos poucos descobrindo, que estas questões
estão de alguma forma entrelaçadas com a questão da migração das populações de regiões onde
a miséria e a pobreza, acarretaram um sentimento de desenraizamento em relação à sua
identidade afro-brasileira, aumentando ainda mais o sentimento de subalternidade e
inferioridade das camadas mais pobres da sociedade. Diante deste quadro, faço um recorte
reflexivo sobre as relações entre Cultura Popular e Escola: Como incorporar a diversidade
XII
cultural trazida pelos educandos no contexto escolar, de modo a enriquecê-lo? Até que ponto, a
incorporação curricular das práticas e manifestações populares (modos de subsistências e
resistências, festas, religiosidade, danças, histórias, brincadeiras etc.) auxiliam o trabalho de
valoração do sentimento de alteridade dos educandos e em seu processo de alfabetização?
Quais os perigos de escolarizar ou “folclorizar” as manifestações populares?
Na terceira parte desta pesquisa, trago o Tangolomango como experiência educativa,
visando descrever algumas vivências ancoradas na pedagogia cultural que a matriz freireana
possibilitou, assim como refletir de que maneira os encontros e desencontros culturais
vivenciados em sala, favoreciam ou não o processo de aprendizagem das crianças.
As questões que permeiam esta terceira e última parte seriam: O que sabem as crianças
das classes populares? O que escondem e só revelam entre os pares, o que sabem, mas pensam
que não sabem? O que efetivamente sabem e têm orgulho em transmitir? Como aprendem e
ensinam seus saberes? Em qual lógica este saber circula? O que pensam sobre nossos saberes?
E o currículo, onde fica em meio a essa riqueza polifônica de saberes? O pano de fundo destas
reflexões seria a formação social do educador (a) e a busca do possível diálogo curricular que
incorporam diferentes culturas. Tantas questões anunciadas ficaram no meio do caminho e
continuarão provocando novas buscas.
Importante também ressaltar que atualmente o projeto Tangolomango deslocou-se para
um outro espaço educativo, porém não formal: a Escola de Jongo da Serrinha, localizada em
Madureira, zona norte da cidade.
Este movimento que fiz, passando de um espaço formal para um espaço informal de
educação, vem, a meu ver, fortalecer a idéia de que não como conceber educação sem
cultura e suas potenciais relações. Este deslocamento entre o “formal” e o “não formal”
atravessará o texto intencionalmente, levando o leitor (a) a transitar entre o passado
rememorado e o momento presente: o dentro e o fora da escola, mas também, as fronteiras e
suas zonas de intersecções, onde culturas e educações se misturam e interpenetram.
Gostaria de ressaltar que mais do que respostas prontas, existe nesta pesquisa, a vontade
de legitimar saberes ainda contemporaneamente excluídos dos currículos oficiais” da escola:
os saberes dos meninos e meninas das classes populares de nossa sociedade que reuni, em sua
grande maioria, são negros ou mestiços. Trata-se, de um esforço para compreender o
XIII
hibridismo cultural que nos caracteriza, e as fronteiras e passagens entre os saberes que,
queiramos ou não, invadem o território escolar.
XIV
1- DA LARANJA QUERO UM GOMO, DO LIMÃO QUERO UM PEDAÇO
Culturas e Educações: uma relação estreita e delicada
“Bendito louvado seja,
é o rosário de Maria.
Bendito louvado seja,
É o rosário de Maria.
Bendito pra Santo Antônio
Bendito pra São João,
Senhora Santana, saravá meu “zirimão”
Saravá Angoma-puíta, saravá meu Candongueiro,
Abre Caxambu, saravá jongueiro
Agora mesmo que eu cheguei
Foi pra saravá! ”.
(Bendito/ Mestre Darcy do Jongo/ Ponto de Bizarria)
Gostaria de iniciar minha narrativa como bizarria, uma anunciação. A exemplo do
Jongo
1
acima
- ritmo trazido pelos negros escravizados na época do Brasil colônia e que em
2001 virou Patrimônio Imaterial da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, peço licença
para utilizar a palavra que se faz sinuosa, dança e comunica, trafegando entre a oralidade e a
escrita. Peço licença, neste momento, a todos os Mestres, brincantes e foliões, aos versadores e
cantadores, a todos aqueles/aquelas que dialogam com diferentes tambores, que levam
mensagens aos Deuses dançando e fincando os pés no chão, e principalmente, às crianças
Erês
2
que me acompanham no viver de todo dia, pois parodiando a canção “toda vez que a
1
Disponível em: www.jongodaserrinha.org.br
2
Para os iniciados no Candomblé, os Erês são entidades boas e puras como as crianças. Quando “descem” a
Terra, são recebidos com festa e alegria. Os Erês são festejados em 27 de Setembro, dia em que a Igreja
Católica comemora o Dia de São Cosme e Damião.
XV
tristeza me alcança
3
eles vêm para me dar a mão. Peço licença também aos leitores e leitoras,
que a partir deste momento iniciam esta viagem re-memorada comigo.
Licença aos meus orixás: a Ogum, Ogum Eh, que sincretizado no Rio de Janeiro na
figura de São Jorge Guerreiro, protege e abre meus caminhos e a Iansã - dona dos ventos e das
tempestades - que quando sopra me desloca para lugares antes inimagináveis. EPA HEI! Para
todo o sempre! Axé!
Pois estando eu acostumada a entrar na roda e a “sungar” a saia e começar a girar e a
dançar, proponho-me a re-escrever um pouco de minha história enquanto educadora afro-
descendente e comprometida com as crianças das classes populares. Revisitar o vivido e
transformá-lo em experiência incluíram momentos pontuados de extrema solidão. Que
acontecimentos pessoais ou coletivos, que inquietações e dores estariam profundamente
imbricados não apenas em minha história de vida, na minha formação enquanto educadora, mas
de uma maneira mais ampla, encontram-se também implicados à vida de muitas crianças das
classes populares com as quais trabalhei? Que encontros e desencontros que me formaram
ressoam nas experiências desses meninos e meninas vitimados pelo fracasso escolar?
Anuncio assim que a presente pesquisa tem como objetivo investigar possíveis
encontros, mas também desencontros que vão de encontro às práticas culturais das crianças das
classes populares. Refiro-me especialmente a turmas de Progressão, instituídas em 2001,
buscando atender a demanda de alunos da rede municipal de Educação do Rio de Janeiro que
entraram tardiamente na escola ou nela se arrastavam sem conseguir avanços. De certa forma,
reconheço que naquele momento, minha prática pedagógica estava refletindo uma crença ainda
bastante arraigada em meu imaginário - e também no imaginário coletivo de muitos
educadores. Sei que ainda luto atualmente para me desvencilhar de máscaras “quase brancas”
que trago em minha pele “quase negra”. Preciso romper com a idéia, ainda presente em mim, de
que “encontros” são sempre possibilitadores de transformações e que “desencontros” sempre
nocivos, opressores e subalternizantes. As polarizações entre positivo e negativo, na vida
cotidiana, não se apresentam de forma tão simples assim: o que em princípio tem como
intenção tornar-se um “encontro” pode vir a gerar grandes “desencontros” e vice-versa.
Reconheço hoje, que na prática diária, muitas vezes o que eu acreditava estar indo “ao”
encontro, traduzia-se por fim, em ir “de” encontro às necessidades das crianças das classes
3
Refiro-me a cantiga “Bola de meia, bola de gude” de composição do cantor Milton Nascimento.
XVI
populares, gerando conflitos culturais que passavam por vezes despercebidos por mim. Estarei,
repetidas vezes, voltando às emblemáticas questões dos encontros e desencontros culturais que
acontecem, queiramos ou não dentro do cotidiano da escola.
Retomando os objetivos das Turmas de Progressão, o projeto tinha como meta acelerar
o processo de ensino aprendizagem para aqueles que estavam defasados em relação à
idade/série e também para aqueles que não concluíram o ciclo com sucesso, necessitando
um pouco mais de tempo para que lhes fossem ensinados os valores e conhecimentos
necessários à continuidade de sua escolaridade
4
. Eis que, após a vigência de cinco anos,
deu-se a extinção deste projeto
5
. As experiências vividas, no entanto, deixaram marcas nas
vidas dos atores sociais em diferentes escolas, como veremos no decorrer desta pesquisa que só
existe porque em determinado tempo/lugar nos encontramos e nos desencontramos também.
Recuperar algumas destas experiências é dar espaço e voz a estes mesmos atores sociais
entre os quais me incluo para que, através de suas / nossas histórias, lutas, prazeres, conquistas
e curiosidades, possamos ousar compreender um pouco mais os avanços e tropeços, no interior
das escolas. Estes delicados e complexos processos de ensinar e aprender estão imbricados no
ofício do trabalhador da educação, ou educações - anunciando uma pedagogia voltada para a
valorização da diversidade, do múltiplo e plural.
Rememorando o universo cultural vivenciado na sala de aula, trago a fotografia de
nosso primeiro painel pintado no pátio da escola. Um mosaico de histórias e brincadeiras
populares que passaram a fazer parte integrante do currículo formal que deveria ser trabalhado
com aquelas crianças.
4
Portaria E/DGED nº08 de 04/01/2001. Disponível em: www.rio.rj.gov.br/sme
5
Portaria E/DGED nº 29 de 14 de Dezembro de 2006. Disponível em: www.rio.rj.gov.br/sme
XVII
Figura 1
Primeiro painel pintado pelas crianças do Projeto Tangolomango, expressando a valorização
dos saberes das classes populares. (Projeto Tangolomango/CIEP Posseiro Mário Vaz/2002)
A ambivalência de ir ao encontro e de encontro pode vir a ser um caminho para se
pensar o processo de escolarização das crianças e adolescentes em defasagem de série/idade nas
escolas públicas: suas repetências e exclusões. Numa perspectiva mais ampla, poderíamos ousar
perguntar: Como acontecem encontros e desencontros de crianças das classes populares
diariamente em nossas escolas?
me explico. Ao lidar cotidianamente com a questão do fracasso e repetência escolar,
fui aos poucos sendo instigada a pesquisar as raízes históricas do problema. Inquietava-me com
algumas falas recorrentes na escola em que trabalhava: são crianças que não tem jeito mesmo,
não aprendem; esses meninos não querem saber de estudar, de brincar e brigar; isso é mal
de família, que não lhes deu educação em casa, os irmãos também não foram pra frente...
Tais inquietações também, de algum modo, me traziam à memória as sucessivas
políticas de erradicação do analfabetismo no Brasil. Sentia/sinto um certo mal estar sempre que
ouvia/ouço a expressão “erradicação do analfabetismo” e buscava/busco entender porque, após
inúmeras e sucessivas tentativas governamentais de se solucionar este problema, a questão da
aprendizagem da leitura e escrita e conseqüente continuidade dos estudos dos meninos/meninas
das classes populares, continuava e continua sendo um assunto preocupante e com graves
impasses a resolver. Ainda se buscam soluções urgentes para resolver o problema que se arrasta
na sociedade brasileira. Em plena era da informática, ainda não conseguimos acabar com o
analfabetismo de grande parte de nossa população.
XVIII
Mas, quem são os analfabetos e as analfabetas deste país? Onde estão concentrados? De
qual camada social estão incluídos? De quais crianças estamos falando?
As falas recorrentes de que “as crianças das escolas públicas não aprendem”; ou “são
crianças que têm dificuldade de aprendizagem” levaram-me à prática constante da reflexão
sobre esta difícil realidade educacional brasileira: o fracasso escolar de milhares de crianças e
adolescentes das classes populares no Brasil. Uma inquietação que tem como conseqüência, re-
pensar cotidianamente a função social da escola, os processos de aprendizagem da leitura e
escrita e as diferentes concepções políticas sobre o acesso ao conhecimento, questões que, no
meu entender, podem vir a ser um instrumento de luta para as classes secularmente excluídas:
as classes populares que, majoritariamente, abrangem afro-descendentes ou negros.
Voltando às políticas públicas de “erradicação do analfabetismo” que ainda vigoram
como “prioridade máxima” do governo, penso compreender melhor por que a palavra
“erradicação” me incomodava/incomoda tanto. Erradicar, que vem do latim “erradicare” tem o
significado de “arrancar pela raiz”. Outras palavras que comporiam o campo semântico desta
palavra seriam “desarreigar”, “destruir totalmente”, “suprimir” e “eliminar”. Erradicar é uma
forma de “cortar o mal pela raiz”, certo? Mas, de que “mal” se está falando? Do mal que recai
sobre sujeitos analfabetos que “não aprendem”? Da escola, dos professores? Do sistema? Onde
está a raiz que precisa ser extirpada? Bem sei que se pode dizer que se trata d e erradicar o
analfabetismo do sujeito e não do sujeito do analfabetismo, mas tudo isso está muito implicado.
Relembrando os avessos de nossa história que configurou ao longo de séculos nosso
delicado tecido social, descobrimos cada vez mais que esta história dita como oficial” afirma
que o fracasso escolar de vários meninos e meninas das escolas públicas, a responsabilidade, ou
“culpa” se assim preferirmos, sempre recaiu sobre o lado mais fraco: o povo pobre e analfabeto.
Mas, de que “povo” especificamente estamos falando? Falamos, repito mais uma vez, da
população negra, ou mestiça, ex-escrava, agora liberta”. Esses fatores podem ajudar a
complexificar a valoração negativa que nossa sociedade ainda atribui aos lugares de
“pertencimento” dos negros e afro-descendentes e, por tabela, determinar que tipo” de escola
serve para esta ou determinada classe social. Encontro na citação da filósofa Simone Weil uma
contribuição importante para as questões que costuram esta pesquisa:
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da
alma humana. (...) Cada ser Humano precisa ter múltiplas raízes. (...) As trocas
XIX
de influências entre os meios muito diferentes não são menos indispensáveis que
o enraizamento do ambiente natural. (WEIL, 1943:437).
Afirmando ser o enraizamento uma necessidade vital para o desenvolvimento
harmonioso do homem, Weil amplia sua discussão ao dizer que uma raiz só não basta, é preciso
ter “múltiplas” raízes tornando indispensável o contato e as trocas com outros meios, outras
culturas. Encontros e desencontros mais uma vez.
Neste sentido, como fica uma escola que trabalha na perspectiva da “erradicação do
analfabetismo” e, por tabela, trata de apartar os educandos das raízes culturais, da comunidade à
qual estão inseridos? O que acontece quando o educador/educadora na tentativa de erradicar
acaba desarraigando o sujeito de dos saberes próprios de sua(s) cultura(s)? A imagem que me
vem a cabeça é de uma avalanche: fica tudo fora do lugar! E como falamos de seres humanos, e
não de “coisas”, as pessoas ficam sem lugar, sem terra firme onde suas raízes encontrem
elementos nutrientes, metaforicamente falando. Assim, estudar pode perder o sentido, quando o
sujeito acaba ficando “desconectado” de suas raízes.
Tem um Jongo que canta assim: “Eu vou falar pro seu Vitor fincar tenda aí!” Fincar
tenda” é fincar-pé”, é enraizar-se. É potencializar e assumir o seu lugar de pertencimento. E
esta é uma das questões centrais na formação identitária do sujeito: o seu lugar de
pertencimento. Minha hipótese é a de que uma escola que ignore o outro em sua outridade, não
dialoga com ele e não consegue promover o seu sucesso escolar.
A Constituição Federal, assegurando o direito da criança e do adolescente à educação
(cabendo à família a obrigação de matricular seus filhos/filhas nas escolas), parece abrir
definitivamente os portões de uma escola que se anuncia como universal e “para todos”. Se a
preocupação inicial com a quantidade de crianças e adolescentes matriculados nas escolas já foi
em grande escala atendida, permanecem os desafios. A palavra de ordem que se impõe no seio
dos debates entre de especialistas e políticos e a população em geral, cada qual defendendo seus
interesses, é cada vez mais a qualidade da educação.
Muito freqüentemente se pensa que aumentar o tempo de escolarização pode resolver os
problemas. Nesse sentido, a recente lei 11.274/2006
6
altera a redação da Lei
n
o
9.394/1996,
estabelece a obrigatoriedade da ampliação do ensino fundamental para nove anos, passando a
atender crianças e adolescentes dos seis aos 14 anos. No corpo do texto anterior, continua sendo
6
Lei Nº 11.274 de 6 de Fevereiro de 2006.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL
XX
dever do Estado garantir a todos o acesso ao ensino fundamental, obrigatório, gratuito e de
qualidade. Mas é na prática cotidiana, nos encontros e desencontros culturais inerentes à prática
educativa que os problemas persistem.
Lançando um olhar sobre as taxas de analfabetismo no Brasil, encontramos um
percentual de 11% de população acima de 15 anos ainda analfabeta. Esse percentual, que
declinou consideravelmente nos últimos cinqüenta anos, em termos absolutos abrange 14, 9
milhões de brasileiros
7
. Muita gente que, não encontrando oportunidades, deixa em aberto o
grande desafio de uma sociedade marcada pela política neoliberal que em pleno século XXI,
ainda não se manifestou vontade política suficiente para universalizar a alfabetização. O quadro
torna-se ainda mais grave, se levarmos em conta o conceito de alfabetização funcional, aqui
compreendida como apenas o fato de ser capaz de “ler e escrever seu nome e bilhetes simples”.
Nesse caso, os índices aumentam consideravelmente para 30 milhões de brasileiros na faixa
etária de 15 anos ou mais,
8
fazendo o Brasil pertencer à lista dos países que mais têm
analfabetos do mundo. Nesta perspectiva, o problema do analfabetismo torna-se mais complexo
e se avoluma.
A aprendizagem da leitura e da escrita e o ensino básico de qualidade continuam
fazendo parte da agenda política, sem que na prática sejam desfeitos os nós, sejam eles do
próprio sistema ou das concepções pedagógicas, ainda tão “bancárias” que prevalecem nas
escolas.
Encontramos em Paulo Freire argumentos que colocam em cheque a questão da educação
“bancária” e tudo o que esta concepção de homem e mundo implica:
Eis aí a concepção “bancária” da educação. Arquivados, porque, fora da
busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educando se
arquivam na medida em que, nesta distorcida visão de educação, não
criatividade, não há transformação, não saber. existe saber na invenção,
na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem
no mundo, com o mundo e com os outros. (FREIRE, 2005:67).
Não como pensar em melhoria da qualidade de ensino básico no país sem levar em
conta o enorme contingente de pessoas que foram e continuam sendo excluídas da apropriação
de um bem cultural decisivo e prioritário em nossa sociedade: a cultura escrita.
7
Dados do IBGE em 2005. Disponível em: www.ibge.org.br
8
Disponível em: www.inep.gov.br/download/cibec/2000/publicacoes
XXI
Para isso, recuperar alguns fios da história, na tentativa de corrigir violências históricas,
pode ser um exercício árduo, mas de certa forma, um divisor de águas na hora de decidirmos
que “tipo” escola queremos ou não reproduzir.
1.1. A barata diz que tem sete sais de filó, é mentira da barata...
Desconstruindo uma história mal contada de muitas ressonâncias
Rememorar um pouco o fio desta história, a história contada pelo viés dos negros e afro-
descendentes secularmente excluídos é urgente. A letra da música a seguir, serve como porta
de entrada para aprofundarmos esta questão tão delicada e importante paras, educadores (as)
brasileiros(as): o racismo e o preconceito - que de forma velada ou explícita –, encontram-se
profundamente arraigados em nossa identidade pessoal e coletiva, dos brancos, dos “quase
brancos” e dos “quase negros” e dos próprios negros:
Negro não sabe o que é dor
Negro não tem alma não
Assim dizia o feitor...
Com seu chicote na mão...
Malvado banzo de mata
Quero à pátria voltar
Na minha terra sou livre
Como a andoria no ar...
Negro... Negro!
Nesta música encontramos duas falas: a do colonizador que diz que o negro não tem dor
porque não tem alma, ou seja, não é “humano” e a resposta do negro que insurge contra tal
premissa defendida pelos escravocratas, ou seja: negro sofre sim, tem alma sim, é ser humano
sim e anseia recuperar a liberdade e a pátria perdida.
No livro “A Invenção do ser Negro: um percurso das idéias que naturalizaram a
inferioridade do ser negro” a autora Gislene Aparecida dos Santos, expõe essa questão:
XXII
No século XIX, a teoria da distinção racial pautada na biologia, fortalecida, deu
o estatuto final à teoria de que a natureza forja alguns indivíduos ao comando e
outros à obediência. Obediência identificada com a raça negra. (SANTOS,
2005: 53).
Baseados mais uma vez, em critérios etnocêntricos de caráter “científico” na Europa,
observamos, que para os ideários eugenistas
9
da época, a raça ariana era o motor que fazia o
mundo evoluir.
A eugenia é um termo criado por Francis Galton (1822-1911), cientista inglês e primo
de Darwin, que a definiu como “o estudo dos agentes sob o controle social que podem
melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou
mentalmente”. Na prática a eugenia se propunha a uma limpeza étnica para evolução dos
povos envolvidos. Na interpretação dos eugenistas de então, o fenótipo cor de pele branca era
indicativo de superioridade biológica e, portanto, deveria ser perseguido por meio de
cruzamentos humanos que fossem extirpando o fenótipo cor de pele não branca da população a
ser “melhorada”. Uma amostra dessa prática é muito bem ilustrada no filme de ficção “Rabbit-
Proof Fence”
10
de 2002 (com o título em português “Geração Roubada”) que trata da eugenia
ocorrida de fato na Austrália no começo do século XX. Sendo o aborígene australiano negro ou
mestiço, a etnia deles deveria ser “melhorada”, embranquecida. A eugenia também vigorou nos
meios científicos no Brasil nos anos 30 e parecia enviar uma mensagem clara para os afro-
descendentes, era como se dissesse: antes era dito que vocês não tinham alma. Agora é
aceitável que vocês tem alma e são seres humanos. Porém a ciência revelou que vocês são de
uma raça inferior. Ou seja, a dificuldade de auto-estima, e auto-conhecimento que eram
difíceis de obter, pois a escravidão traz conseqüências negativas profundas, agora era
potencializada e definida em um retumbante NÃO para os afro-descendentes. Tudo é NÃO:
você não é inteligente, você não é bonito, você não é capaz, você não tem valor. Esse O
vem sendo desconstruído com muito esforço por parte de comunidades afro-descendentes e de
vários atores e setores da sociedade brasileira. A escola pela qual luto, é aquela que pode
transformar o NÃO em SIM. Negro é bonito, sim. Negro é inteligente, sim. Negro é capaz, sim.
Negro tem valor, sim!
9
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Eugenia
10
Disponível em : http//www.imdb.com
XXIII
Mesmo sem poder contar integralmente com a escola, ao longo da História do Brasil, o
negro sempre resistiu, sobreviveu e inventou novas maneiras de viver e criar, e re-criar sua
cultura, se tornando inegavelmente um constituinte majoritário na cultura brasileira.
Encontramos, séculos depois, outra canção bivocal trazendo a resposta dos próprios
negros ao juízo de valor dos brancos:
Negro é Burro?
Quero negro no Senado.
Negro é burro?
Quero negro no Doutorado.
Negro é burro?
Quero negro no Mestrado.
Negro é burro?
Quero negro na Universidade.
Negro é Burro?
Quero negro Professor.
Negro é burro?
Quero negro Engenheiro.
Negro é burro?
Quero negro Doutor.
Negro é burro?
Quero negro Advogado...
(Jongo de Guaratinguetá/SP)
Carrego estes versos jongueiros como um desafio para a educação brasileira: assegurar o
acesso a um conhecimento de qualidade que, qualifique os negros ou afro-descendentes a
disputarem lugares historicamente centralizados nas mãos de uma elite “branca”: os lugares de
“poder”, como o senado e as universidades e as profissões de melhor prestígio e remuneração
neste país.
Lembro-me de que algumas vezes, quando entrava em debate com alguns professores
sobre como era difícil, diante das condições precárias em que trabalhávamos, não cairmos nas
armadilhas de “rebaixar” o conteúdo ensinado nas escolas públicas ou lavar as mãos” diante
das dificuldades. Eram recorrentes os comentários do tipo: não esquenta não, para balconista
ali da esquina, o que eles aprendem aqui está bom”. Estas e outras falas similares tanto me
impactavam como me faziam reagir: e se os sonhos daquelas crianças como os meus foram
um dia - fossem maiores? Não teria eu, de certa forma, co-participação neste “cortar de asas”
XXIV
por onde infinitos sonhos transitam? E como realizar estes sonhos, se a questão inicial da
alfabetização continuava pendente?
Neste sentido, o que esta e tantas outras falas recorrentes no universo educacional
revelam? De quais visões de mundo fazem parte? Estão impregnadas de qual ideologia? E que
conseqüência trazem efetivamente para as práticas docentes nas salas de aula? Ou seja, como
esta e tantas outras crenças foram sendo construídas e que marcas efetivas deixam em nossa
sociedade?
As conseqüências diretas e indiretas do dia 13 de Maio ainda ressoam na corporeidade e
nas lutas e conquistas de um povo escravizado que aspira por uma liberdade, que agora se
institui, fundamentada em forma de lei:
No dia 13 de maio,
cativeiro acabou,
e os escravos gritavam
liberdade senhor.
(“Treze de Maio” Letra e música
de Djanira do Jongo/Ponto de louvação)
Agora, se estamos falando de “liberdade” é preciso saber em quais condições esta
liberdade foi sendo efetivada, visto que tal libertação não representou “a alforria dos negros
para o mercado de trabalho e das profissões como homens livres” (BOMENDY, 2001: 14).
Isso porque não era (era?) do interesse da elite brasileira dividir e socializar o
conhecimento com a sociedade negra ou mestiça, agora liberta. Recuar um pouco em nossa
história para compreender melhor o que as ditas “leis abolicionistas” efetivamente
representaram naquela época para os negros escravizados, talvez nos dê uma dimensão mais
detalhada das pressões cotidianas sofridas por aquelas pessoas destituídas séculos de seus
direitos sociais.
Nosso país, em menos de quarenta anos, teve quatro leis abolicionistas, que aos poucos,
foram dando novos sentidos à palavra “liberdade”. Vejamos de uma maneira bem sucinta, quais
foram estas leis e em quais contextos elas se deram.
Comecemos pela primeira. A Lei Eusébio de Queiroz assinada pela pressão dos
Ingleses, além de incentivar o tráfico interno, não conseguiu acabar de imediato com o tráfico
negreiro, que passou a existir em regime de pirataria. Os capitães ingleses receberam poderes
XXV
de abordar navios brasileiros em alto mar e verificar se transportavam escravos, prendendo e
julgando seus comandantes por descumprimento da lei que extinguiu o tráfico. Por ser realizado
como contravenção, as condições de transporte dos negros pioraram em muito e,
freqüentemente, na eminência de uma rigorosa inspeção inglesa aos navios negreiros, os negros
escravizados eram lançados vivos ao mar. Um verdadeiro genocídio que a história “oficial”
teima em invisibilizar.
Quase vinte anos depois da promulgação da Lei Eusébio de Queirós, persistia o quadro
de horrores. É preciso lembrar que, em média, menos da metade dos escravos embarcados nos
navios negreiros completava a viagem com vida. Castro Alves - um dos poetas mais conhecidos
da literatura brasileira se empenhou na denúncia da miséria a que eram submetidos os africanos
na cruel travessia oceânica. O Navio Negreiro Tragédia no Mar, poema contido no livro “Os
escravos” foi concluído pelo poeta em São Paulo, em 1868. Vejamos alguns de seus versos:
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!”(...)
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares! (Castro Alves)
11
A essa época vigorava a Lei do Ventre Livre, que declarava libertos os filhos de
mulher escrava nascidos desde a data da lei. Mas também deixava suas marcas negativas na
11
Disponível em: http://www.culturabrasil.pro.br/navionegreiro.htm
XXVI
vida cotidiana daquelas pessoas. No documento, os senhores de escravos tinham a tutoria sobre
seus filhos/filhas até atingirem a idade de 21 anos implicando com isso, uma grande luta pela
manutenção de seus laços afetivos e até mesmo pela sobrevivência de seus descendentes.
Ô iaiá, quer jongar, jongo com eu?
Ô iaiá, jongueiro bom é de Lorena.”
É de Lorena, minha avó falou,
sou dumba forte, com a minha dor,
jongueiro de Lorena canta alto e vem louvar,
“matoco” pra ser forte tem que “curiar”, a aê,
tem que “curiar.
(“É de Lorena” letra e música de Lazir Sinval)
A letra do Jongo acima exprime o sofrimento de uma mulher forte (dumba) que sente a
dor ao ver seu filho (matoco= homem) sem comer, ou seja, sem “curiar”. E, sobretudo, dialoga
com as questões apontadas sobre as ressonâncias da Lei do Ventre Livre que deixou como
rastro o aumento do índice de mortalidade infantil, neste período, entre os escravos. Além das
péssimas condições de vida, cresceu o descaso dos colonizadores pelos recém-nascidos, que
favorecidos pela lei, não geravam mais lucro para seus senhores quando completavam a
maioridade.
Lancemos agora uma lente mais detalhada sobre as ressonâncias da Lei dos
Sexagenários. Sabemos hoje que o trabalho escravo era realizado de 12 a 16 horas por dia em
condições sub-humanas de habitação, castigos e principalmente alimentação - que consistia
basicamente de farinha de mandioca, aipim, feijão e banana. Tal tratamento acabava por reduzir
o tempo de vida útil de um escravo comprado em idade adulta a algo entre 10 e 15 anos.
Assim, poucos negros conseguiram chegar aos sessenta anos e se prevalecer dos benefícios da
lei. Observou-se, na prática, que tal lei acabou por favorecer indiretamente os senhores de
engenho que não precisavam mais ter despesas com escravos “improdutivos”. E mais, os
benefícios da Lei dos Sexagenários impunham para as pessoas de mais idade uma triste
realidade: como conseguir o sustento sem trabalho? Foram muitas as alternativas de
XXVII
sobrevivência originadas no seio da tradição africana, que preconiza o respeito e o cuidado aos
mais velhos depositários das tradições e conhecimentos de seu próprio povo.
Gilberto Freire, em seu livro Casa-Grande & Senzala, elucidou sobre o papel social não
das amas-de-leite como das negras velhas. Afirma, inclusive, que foram “as negras que se
tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias”
(FREYRE,2004:413)
. Mais adiante, o
mesmo autor nos ensina que em grande parte do continente africano:
o akpalô fazedor de alô ou conto; e o arokin, que é o narrador das
crônicas do passado. O Akpalô é uma instituição africana que floresceu no
Brasil na pessoa de negras velhas que faziam contar histórias. Negras que
andavam de engenho em engenho contando histórias às outras pretas, amas dos
meninos brancos. (...) contavam histórias e iam-se embora. Viviam disso.
Exatamente a função e o gênero de vida do akpalô.”(FREYRE, 2004: 413)
Por fim, a última lei, a Lei Áurea. Logo de início, esta lei foi de encontro aos interesses
econômicos e sociais dos senhores dos engenhos, que passaram a exigir do império
indenizações pela perda de seus “bens”. Entretanto, e este é um ponto chave desta pesquisa,
sabemos que a condição subalterna dos negros não melhorou com as leis de progressiva
extinção da escravatura. À medida que a obra escravista torna-se cada vez mais escassa e
onerosa, o governo brasileiro, pressionado pelos senhores de engenho começa a pensar em
medidas de povoamento brasileiro, tendo como alternativa a política de imigração que resolvia,
em princípio dois impasses da nação que começava a surgir: mão de obra mais qualificada e o
“branqueamento” da nação, assunto intrinsecamente ligado as questões culturais e ideológicas
desta pesquisa. Portanto, avancemos.
As políticas de “embranquecimento” organizadas pelo governo reforçaram o racismo
existente acabando por configurar o negro, agora liberto, às piores condições de vida em
sociedade: sem moradia, sem emprego e sem formação escolar ou uma profissão definida para
XXVIII
a maioria deles, a simples emancipação jurídica, não mudou sua condição subalterna nem
ajudou a promover sua cidadania ou ascensão social.
12
Apesar dos decantados benefícios que cada lei acarretou para os negros escravizados,
considero importante compreendermos, sob outra óptica, o que estas ações naquela época
desencadearam, na vida cotidiana daqueles sujeitos. Para não correr o risco de generalizar, vale
ressaltar que cada senhor de escravos reinterpretou e aplicou a Lei a seu modo, ora
favoravelmente aos negros escravizados, ora indiretamente ferindo seus direitos garantidos
pelas referidas Leis.
Procurar compreender um pouco mais, como se desenrolaram as lutas sociais e os
entraves políticos econômicos que vigoraram durante este período, amplia nossa compreensão
sobre os contextos que tais leis foram assinadas e como isso influenciou a luta e a vida dos
negros escravizados naquele momento:
Em 1887, de acordo com o relatório do Ministério da Agricultura, pouco mais
de 700 mil escravos ainda encontravam-se em cativeiro. Três anos antes, os
escravos eram de 1.200.000. Portanto, neste período auge do movimento
abolicionista, a média de redução anual do número de cativos foi de ordem de
170 mil indivíduos. Nos dez anos anteriores a 1884, esta média fora de cerca de
30 mil. Nos primeiros anos de 1888, as fugas se intensificaram. Em 13 de maio,
os escravos não eram de fato mais do que 400 mil e a perspectiva de liberdade
estava cada vez mais ao seu alcance. (SALLES e SOARES, 2005:113)
Poderíamos, neste sentido nos questionar sobre: que ressonâncias tais deliberações
tiveram na constituição identitária dos negros e afro-descendentes em nossa sociedade? Que
heranças deixaram? Penso nisso, lembrando que a história não é o passado. A história é o
passado na medida em que este é historiado no presente historiado no presente, porque foi
vivido no passado” (LACAN aput CARVALHO,2002:99). Por isso, inquieto-me em querer
saber o que podemos aprender com estas histórias? O que elas nos revelam e o que fica
escondido, nas entrelinhas, no “não dito”?
No caso da Lei Áurea, que é a lei que mais ressonâncias encontramos em nosso tecido
social, o texto revela um total desinteresse sobre o futuro da população negra, agora liberta.
Acabar com a escravidão não representava o fim da exploração do negro no Brasil, nem a sua
reintegração - em pé de igualdade - na sociedade brasileira.
12
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Abolicionismo_no_Brasil
XXIX
O original da Lei Áurea encontra-se hoje guardado no Museu Histórico Nacional e se
observarmos o texto curto da lei, fica mais fácil entendermos o contexto em que tal implantação
da lei se deu:
A Princesa Imperial Regente, em Nome de Sua Majestade, o Imperador, o
senhor dom Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia
Geral decretou e Ela sancionou a Lei seguinte:
Art. - É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.
Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário.
13
Nenhuma referência ao destino dos escravos. Nenhuma política de distribuição de terras
para que tivessem onde viver e extrair da terra o seu sustento. Em vez disso surgiram projetos
de “repatriar” escravos e políticas de embranquecimento. No entanto, essa foi a Lei possível
num contexto de tensas disputas que anteciparam o fim do Brasil Império. Neste jogo de forças,
de concessão em concessão, a Lei negociada não conseguiu atender totalmente aos sonhos dos
abolicionistas mais conscientes, mas, forçava os escravocratas a libertarem seus escravos.
14
De luta em luta, novas Leis vão configurando avanços importantes que visam restituir
aos negros e afro-descendentes o direito à cidadania negada, legitimando saberes outrora
desmerecidos. Como legitimar no dia a dia da escola uma cultura secularmente excluída?
Quais as contribuições nas “áreas social, econômica e política” que o povo negro ou mestiço
deixou para o Brasil? E principalmente, incorporar estes saberes no currículo escolar numa
perspectiva de “alfabetizar enraizando” o sujeito?
Relembrando estes e tantos outros aspectos de nossa história que somente agora
começam a aparecer mesmo de forma ainda insipiente - nos livros didáticos e currículos
escolares, onde a lei 10.639/2003, que altera a Lei 9.394/ 96 institui a obrigatoriedade da
13
Carla Caruso é escritora e pesquisadora, autora do livro “Zumbi, o último herói dos Palmares” (Editora Callis).
Disponível em: www.popnews.wordpress.com/2007/05/
14
Cartas recentemente reveladas registram inclusive o descontetamento da própria Princesa Isabel diante dos termos
da lei que deveria assinar e algumas ações a favor dos negros recém libertos. Maiores informações disponível em:
http://marconegro.blogspot.com/2006/05/polmica-carta-da-princesa-isabel.html
XXX
temática “História e Cultura Afro- Brasileira no currículo formal escolar”. Segue abaixo, os
termos da referida lei
15
:
Art. 1
o
A Lei n
o
9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos
seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura Afro-Brasileira.
§ 1
o
O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2
o
Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas
áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3
o
(VETADO)"
Art. 79-A. (VETADO)"
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como
‘Dia Nacional da Consciência Negra’."
Art. 2
o
Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
16
Esta nova demanda curricular, fruto de lutas e reivindicações sociais, começa a penetrar no
cenário educacional brasileiro, provocando uma série de conflitos, tensões e resistências
provocativas de mudanças e reorganização do conteúdo a ser ensinado em diversas disciplinas
escolares.
15
Brasília, 9 de Janeiro de 2003; 182
o
da Independência e 115
o
da República. Presidente Luiz Inácio da Silva.
Ministro da Educação Cristovam Buarque.
http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/2003/L10.639
16
Atualmente, a Lei 10.639, foi revogada pela LEI 11.645, DE 10 DE MARÇO DE 2008 que “Altera a Lei no
9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da
temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena".
Disponível em: http://www.mp.pe.gov.br/index.pl/gtlegislacao
XXXI
Entretanto, a não familiaridade do educador(ra) com o assunto, aliado as precárias
condições de trabalho e falta de material didático específico, apresentam-se como um obstáculo
para que tal lei seja realmente incorporada no cotidiano da escola de maneira a ajudar o menino
e a menina negra, ou afro-descendente a valorizar suas raízes ancestrais. Algumas Secretarias
de Educação preocupadas com a questão da formação do educador(ra) em relação a este
assunto, passaram a oferecer cursos livres que pudessem auxiliar a implantação sistemática da
recente lei e o educador(ra) diante de seu não saber se vê motivado (ou amesmo forçado) a
estudar e procurar materiais alternativos para resolver a questão. Entretanto, a des-construção
de crenças em relação à inferioridade do negro ou afro-descendentes buscando a construção da
valorização das contribuições que os negros deixaram marcadamente em nosso país - como
salienta a lei - indica que ainda temos um longo caminho a percorrer. Isso sem falar na
polêmica questão da religiosidade negra, assunto de difícil trato dentro e fora das escolas.
Lembro-me de que uma vez, ouvi a opinião de uma professora sobre o porque não
encontramos murais com desenhos de orixás africanos nas escolas, visto que é comum
encontrarmos murais com alusão as religiões cristãs, principalmente na época do Natal, que é
uma celebração cristã. Assim como também é comum encontrarmos professores(as) que
ensinam, de maneira velada ou explícita, suas respectivas religiões (as católicas ou evangélicas
geralmente) durante as aulas: rezam para começar o dia, rezam quando começam a merendar
etc, obrigando os meninos e meninas muitas vezes a se submeterem a uma ideologia religiosa
de que não fazem parte na vida real, a vida fora da escola. Para não parecerem como um peixe
fora d’água” aprendem desde cedo a silenciar seus saberes e acabam aparentemente vencidos
pela ideologia cristã homogeneizante. Afirmo aparentemente, porque por diversas vezes em que
lhes é oferecido alguma ruptura contra a ordem escolar vigente, suas falas insurgem deixando
claro a diversidade de suas opções religiosas.
Assim aconteceu certo dia, em que um menino, muito esperto mas, muito agitado
também, começou a batucar na sala de aula. A perfeição de seu batuque me chamou a atenção e
resolvi investigar. Disse-lhe que no dia seguinte, lhe traria uma surpresa e ele curioso chegou
logo pela manhã lembrando-me do combinado. Foi então que lhe mostrei meu tambor e foi com
aquele instrumento que eu e Willian passamos a interagir. No final do dia, ele veio e cochichou
corajosamente no meu ouvido: - Professora, meu pai é Ogã!
XXXII
Figura 2
Da direita para a esquerda: Saiara, Raíssa, Alexandre, Moisés, Natália e Willian.
Estas crianças participaram da última turma do Projeto Tangolomango no CIEP. Faziam parte
da Turma do Papagaio no ano de 2005. Atualmente, estas crianças estão na 5º ano do Ensino
Fundamental.
Recentemente, quando voltei ao CIEP para ouvir algumas crianças que haviam
participado do projeto Tangolomango reencontrei Willian e pude reviver esta experiência que
se desdobrou em muitas atividades naquele ano escolar. Atividades estas possibilitadas pela
quebra e ruptura com determinadas crenças escolares que buscava, através do projeto
Tangolomango desconstruir. Vejamos um pedaço da entrevista que fala especificamente sobre
este assunto:
Marisa: - Você lembra que ele veio tocar aqui?
Willian (11 anos): - Eu falei pra senhora, ai ele falo com a senhora e começo a tocar.
Marisa: - Mas como que você falou que ele sabia tocar?
Willian (11 anos): - Eu falei que ele sabia tocar que meu pai é “ogã”.
Moises (12 anos): - Ele tocou o tambor.
Marisa: - Mas você sabe por que eu convidei seu pai pra tocar aqui? Foi pra mostrar o que? É
comum os pais virem à escola para mostrar o que fazem?
Todos: - Não!!!
Marisa: - Eu trouxe seu pai aqui pra ele mostra o que sabe fazer. Porque todo mundo sabe
fazer alguma coisa...
Moises (12 anos): - Meu pai faz a comida.
Natália (12 anos): - Meu pai é pedreiro.
Marisa: - Mas o que você sentiu quando seu pai veio aqui tocar?
Willian (11 anos): - Eu fiquei feliz!
Marisa: - E ser “ogã” é uma coisa valorizada? O que é ser “ogã”?
Crianças: - Não sei.
Willian (11 anos): - É tocar tambor na macumba.
Marisa: - Isso. É quem toca tambor no Candomblé. E vocês lembram que nos falamos em
religião em nossas aulas?
Natália (12 anos): - É que diziam que você era macumbeira, espírita, assim....
XXXIII
Marisa: Você lembra que a sua mãe veio reclamar comigo, Raíssa? O que eu disse em sala, que
você não gostou e falou pra sua mãe?
Raissa (12 anos): - Não lembro...
Marisa: - Alguém lembra?
Natália (12 anos): - Porque a senhora era espírita, ou ainda é, sei lá...
Marisa: É, e eu tive que explicar a sua mãe que eu não tinha desrespeitado a sua religião, mas
eu acho que a escola tem que estar aberta a mais de uma religião.
Raissa (12 anos): - Eu não tenho nada contra isso não. Porque é assim, cada um tem sua
religião, eu não tenho nada contra não.
Natália (12 anos): - Ás vezes, quando eu a Saiara brigávamos, ela me chamava de macumbeira.
Willian (11 anos): -Mas, Saiara porque você chamava ela de macumbeira se a sua família
também é macumbeira?
Moises (12 anos): - Eu acho que todo mundo tem que respeitar a religião do outro finalizou
Moises, que por sinal, tem nome bíblico.
17
Aprofundando um pouco mais uma questão complexa que vai além do aparato legal,
cabe investigar o que estas falas denunciam e que tais crenças ideológicas são construções
históricas que vem de longa data. Na prática,como já foi mencionado anteriormente, o Brasil
viveu uma política do “embranquecimento” logo após a abolição da escravatura, que deixou
marcas negativas em relação à identidade dos negros e afro-descendentes, assim como a
conseqüente desvalorização da cultura afro-brasileira, a qual a religião negra foi uma das
expressões culturais mais combatida e discriminada. A Primeira República repetiu a política
dos últimos anos do Império: voltou as costas para o povo negro, optando pela política de
imigração de europeus em grande escala, causando encontros e desencontros culturais que
repercutem em menor ou maior escala em nossas vidas até os dias de hoje. No livro de Helena
Bomeny “Os intelectuais da Educação” a autora afirma que:
A vinda de imigrantes brancos, mais preparados, letrados, foi uma saída
vislumbrada pela elite política e econômica para“higienizar” a sociedade
brasileira. A miscigenação poderia se constituir em uma chance de “limpeza”
dos brasileiros marcados pela cor e pela miséria social. (BOMENY,2001:21).
17
Entrevista realizada no dia 28/02/2008 no CIEP Posseiro Mário Vaz.
XXXIV
A política de embranquecimento aparece como uma alternativa para a continuidade da
exclusão do negro na sociedade elitista brasileira. Uma população negra que os poderosos
teimavam em invisibilizar, fazendo-a acreditar - através da palavra que forma, deforma,
informa e transforma - em sua inferioridade e incapacidade de ocupar novos lugares sociais em
uma sociedade que se preparava para a industrialização. E foi a partir destes encontros e/ou
desencontros que foram configurando aos poucos as identidades negras brasileiras e seus
respectivos lugares sociais também: os morros e as favelas cariocas.
Tais medidas mascaravam interesses econômicos de centralização do capital e poder,
que ainda vigoram metamorfoseados nos dias atuais. Continuamos tendo uma elite tradicional e
uma neo-elite populista que despreza e desmerece a sabedoria do povo. Na prática, temos uma
política de embranquecimento que começou no séc. XX e que atravessa, até hoje todos os
níveis da sociedade, mas é lá, nas classes populares, que ela mostra seu lado mais perverso e
ideológico. Ou seja, o oprimido carrega o opressor, como sinaliza Freire, acabando por
incorporar à sua identidade negra os vários adjetivos pejorativos e preconceituosos que lhe
foram atribuídos pelo branco e ressoam em nosso imaginário até hoje. Isso inclui as
características fenotípicas como: cabelo “ruim” ou “duro”, nariz de “preto” etc; mas também
aspectos subjetivos que eram desqualificados: “negro quando não suja na entrada, suja na
saída”; ou desmerecidos “trabalho de preto”. Sem contar o recorrente argumento para a
justificativa da pobreza e miséria que milhares de negros ou quase negros vivem. Mesmo um
aparente elogio, mascarava um preconceito: “preto de alma branca”; “é preto, mas é tão
limpinho” etc. isso é serviço de preto” ou seja, isso é serviço mal feito. Vários são os estudos
sobre as ressonâncias deste “racismo velado” que encontramos de forma recorrente nas falas de
sujeitos concretos em nossa sociedade:
Assim como o seu oposto “branco de alma negra” é usado para pessoas
brancas que se portam mal, ou seja, se portam como “negros”, ditos inferiores
e desonestos. Uma característica comumente atribuída aos negros é a da
incapacidade de realizar bem uma tarefa, a de fazer um bom trabalho de tal
maneira que seja “digna de um branco”, ou seja, a de fazer um “serviço de
preto” ou de sua variante: “só podia ser preto”. Esses ditados usados ,quando
alguém faz um trabalho mal feito ,também têm sua origem na época da
XXXV
escravidão, quando os negros eram obrigados a realizar tarefas diversas
debaixo da chibata. Como eram punidos sempre, eles se voltavam contra seus
senhores e muitas vezes sabotavam a produtividade do branco. O “serviço de
preto” era uma forma de resistência e protesto, uma forma de se opor ao poder
senhorial, por isso os escravos não realizavam nada além do necessário, e
ganharam a fama de serem “preguiçosos”, “incompetentes” e “incapazes”.
Quando um branco não faz um trabalho à altura das expectativas, além de fazer
um “serviço de preto”, ele pode estar fazendo esse serviço “nas coxas”. De
origem colonial esse dito popular é usado para designar um trabalho imperfeito
ou sem cuidado. Imperfeitas como as telhas de formas arredondadas das casas
do Brasil colonial que, para fabricá-las , os escravos tinham que modelá-las em
suas coxas, para dar um formato de canal. Como ficavam irregulares e pouco
uniformes, o telhado ficava torto e mal feito. “preto quando não suja na entrada
suja na saída”. Imaginava-se que o escravo acabaria fazendo algo errado,
devido a sua “incompetência”, por ser inferior” ou “preguiçoso”. E também
por serem considerados sujos, até mesmo devido às condições em que viviam.
"Preto não pode entrar na gaiola!”, ou seja, para os brancos racistas, os negros
não podem pertencer ao grupo seleto de brancos ricos, capazes e trabalhadores,
pois são social e intelectualmente inferiores, incapazes. Por se sentirem à
margem da sociedade, algumas vezes os negros se conformam com sua situação
e deixam muitas questões de lado, afinal “eles que são brancos que se
entendam”. A versão mais aceita do surgimento desse ditado é do século XVIII,
quando um capitão de regimento, mulato, teve uma discussão com um de seus
comandados, também mulato, e fez queixa a seu superior, um oficial português
branco. O capitão reivindicava uma punição ao soldado que o desrespeitara.
Seu superior português respondeu com a seguinte frase “vocês que são pardos
que se entendam”. O oficial recorreu ao vice-rei do Brasil na época, dom Luís
de Vasconcelos, que mandou prender o oficial português. Sendo essa uma das
primeiras punições contra o racismo no Brasil. Ao longo do tempo a expressão
se transformou no que é usada hoje “eles que são brancos que se entendam”,
quando alguém não quer tomar partido em alguma situação. (Fábia Carla
Rossoni)
18
A citação acima, apesar de longa, demonstra claramente as ressonâncias de nossa
herança escravista presentes no dia-a-dia de nossa sociedade. Crenças enraizadas que se
revelam nas formas mais “cordiais” possíveis, tornando-se quase invisível, mas estão lá,
presentes na voz de sujeitos encarnados, que consciente ou inconscientemente, continuam
reproduzindo e produzindo uma cultura racista. Por acabar naturalizando a inferioridade dos
negros e afro-descendentes em nosso espírito coletivo, é potencialmente perigoso e nocivo à
sua formação identitária.
18
Disponível em: http://fabiomayer.blogspot.com/2007
XXXVI
Pode parecer desnecessário, repetir o sabido, mas trata-se de uma reiteração
necessária. Algumas destas histórias muitas vezes adormecidas, onde as palavras raça,
miscigenação e preconceito fazem parte do cenário de discussões políticas e tomadas de
decisões cio-educativas em nosso país, podem ajudar a compreender melhor o “por quê” em
pleno século XXI, ainda nos depararmos com a manchete de jornal a seguir:
Mulher é presa acusada de racismo em cinema da Barra
19
Ela chamou vendedora de negrinha e disse que ela devia estar na Rocinha
Rio - Uma acusação de racismo foi parar na delegacia, na noite de quarta-feira,
na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. O crime aconteceu no cinema do
Shopping Downtown, quando a vítima, que trabalha como atendente, alega ter
sido chamada de "negrinha" pela produtora Ana Cristina de Paiva, de 40 anos,
que acabou presa. Ela vai responder pelo crime de injúria por preconceito
racial, cuja pena pode chegar a três anos de prisão. De acordo com a vítima,
que preferiu não se identificar, e com testemunhas, a confusão começou quando
Ana Cristina entregou o cartão de crédito para pagar por pipocas que havia
comprado.
O pagamento não foi autorizado. Eu informei e ela disse que eu é que não
estava sabendo usar o equipamento. Eu disse, então, para que ela mesma
tentasse, que pensava que eu não sabia trabalhar. Ela ficou furiosa, quis
passar para o lado de dentro do balcão para me bater e disse que eu era uma
negrinha e que devia estar morando na Rocinha", contou a jovem(...)
Para a vítima, a sensação foi de constrangimento. "Não pensei que isso fosse
acontecer comigo. Ela ameaçou me bater e disse que negrinha tem que morrer
de trabalhar”, lembrou.
O marido de Ana Cristina, que não teve o nome revelado, defendeu a mulher:
"Chamar uma negrinha de negrinha e um crioulo de crioulo é crime? Como é
que eu diferencio? Acho que isso é síndrome de novela", comentou. Já a
advogada de Ana Cristina não quis comentar o caso.
No site de discussão onde fui reler a notícia, encontrei 122 comentários. Optei por
recolher alguns como amostragem da discussão de racismo e preconceito. As contribuições
abaixo, longe de encerrar o assunto, o problematizam. Através das falas escolhidas podemos
buscar compreender melhor as contradições de uma sociedade de herança escravista que
apresenta dificuldades crônicas de olhar e ver que a pretensa inferioridade dos negros e
19
Por Marcelo Bastos Disponível em: http://forum.outerspace.com.br /Disponível também no Jornal o Globo do dia
24/01/2008.
XXXVII
mestiços vem de uma longa construção histórica, e está presente como assunto “mal resolvido”
até os dias de hoje. Vamos por partes:
Comentário 1 - Agora deixa eu entender, a atendente ficou chateada por ter
sido chamada de "negrinha" ou por ter sido chamada de "favelada" ou os dois
??
Comentário 2- Você leu o título do tópico? porque a atendente é negra a
mulher disse que era da Rocinha, que não poderia ser da Barra...Cara isso é
nojento. É coisa de gente que a sociedade toda dividida entre quem é como
eles e quem é inferior. Ela não tinha nada que falar uma merda dessas, o
tinha motivo nenhum pra ela vir com esse comentário racista. Aposto que na
cabeça dela ela "apelou"... chegou uma hora da discussão em que ela quis botar
a atendente no lugar dela... deve ter tentado "lembrar" quem era quem ali...
Se pedissem pra ela descrever a atendente e ela dissesse "ela é negra" não teria
problema nenhum. "Negro" só é ofensa quando se dá a entender uma conotação
ruim nisso... e o problema nesse caso não é dizer que a pessoa é negra, mas
caracterizar isso como ofensa (e o problema não é a ofensa em si, mas o fato
de você dizer que a cor da pele da pessoa é uma coisa ruim).
Comentário 3 Muitos dos imigrantes europeus foram literalmente expulsos da
terra natal e explorados aqui no Brasil, os japoneses também, foram
literalmente expulsos da terra deles pela guerra e chegaram aqui como os
demais imigrantes só com a roupa do corpo e foram explorados no Brasil,
escravidão de 500 anos atrás pra mim não é desculpa válida. Sem falar que os
judeus foram escravizados também em épocas remotas, e também sofreram no
nazismo e veja como eles estão hoje!! o próprio branco também foi explorado e
escravizado por assim dizer na Europa no período feudal.
Comentário 4 - Cara, se vo acha que o passado histórico desses exemplos
citados, tem a mesma importância para construção do papel social atual, como
tem o passado histórico do negro, minha discussão acaba aqui.
As imigrações citadas foram para suprir justamente a mão de obra escrava, que
extinta tornava o negro caro e pouco eficaz no seu trabalho. Imigração
totalmente incentivada pelo governo brasileiro, e que diferentemente do que
aconteceu no período de escravidão, os imigrantes podiam manter seus
costumes culturais e religiosos. E muitos desses imigrantes mais tarde se
tornavam donos das terras onde trabalhavam, principalmente japoneses e
italianos. Essa atitude de governo, deixou o negro a margem da sociedade, e até
hoje reflete na sua difícil inclusão no mercado de trabalho.
Cara como já disse não tentei falar que era certo ou errado, tentei mostrar uma
face da moeda. Mas se você acha que o passado histórico do negro não traz
dificuldades para sua vivência nos dias de hoje não posso fazer nada. E não
XXXVIII
estou fazendo discurso de coitado, falando que o negro deve ter inúmeros
privilégios. Só mostro que o racismo existe, tanto de forma grotesca como
velado.
No episódio racista noticiado, para ofender a balconista, não bastou apenas chamá-la
pejorativamente de “negrinha”. A empresária foi mais incisiva, afirmando que aquele não era
“seu lugar de pertencimento” e que ela deveria estar na favela da Rocinha, uma das maiores
favelas do mundo. Terminando o quadro, ela ameaçou “bater” na balconista dizendo que ela
deveria “morrer de trabalhar”. Parafraseando os filmes de ficção, poderíamos dizer, que neste
caso, qualquer semelhança com o período da escravidão é mera coincidência”? Onde estão os
“pelourinhos” da contemporaneidade?
Esta é uma questão central para esta pesquisa também: qual lugar destinado aos negros e
pobres em nossa sociedade? E a escola, que função cumpre, seja na manutenção de uma
hierarquia dos “lugares de pertencimentos” impostos historicamente, seja na subversão de um
modelo de subalternização que cumpre desconstruir?
Voltando para o arenoso território escolar, como se dão os embates racistas nas escolas?
Como lidamos com estas questões no dia-a-dia escolar?
Outro comentário (o quinto entre os que recolhemos) põe em questão o conceito de
raça, indiciando o quanto somos todos minimamente descendentes da “mãe” África, que como
nos fala os versos da canção “é mãe solteira, e tem que fazer mamadeira todo dia, além de
trabalhar como empacotadeira nas casas Bahia”.
20
Comentário 5 - se brincar essa mulher "racista" deveria ter mais sangue
africano que a própria negra...
A questão biológica levantada na fala acima, é algo importante de ser discutido. A
suspeita sobre “o quanto de “sangue africano” poderia ou não ter a empresária branca procede.
O discurso científico não respalda o mundo eugenista dividido em raças do séc. XIX - em
20
“Mama África” de Chico César Disponível em: http://www2.uol.com.br/cante/lyrics/Chico_Cesar
XXXIX
que a idéia de evolução propaga uma série de intolerâncias em relação as diferenças entre os
homens. Através da própria ciência que vem fazendo importantes descobertas em relação a
genética humana e nosso DNA, os cientistas chegaram a conclusão de que somos uma raça só,
a raça humana. E mais, de que no Brasil especificamente falando, 87% da população tem mais
de 10% de ancestralidade africana, o que levou a desconcertante revelação, para alguns, de que
existem negros com ancestralidade genômica majoritariamente européia e brancos com
ancestralidade genômica majoritariamente africana. Somos uma mistura, como podemos
observar no texto retirado da site do Ministério da Ciência e Tecnologia abaixo:
O DNA do brasileiro é uma história de bastardia. A bastardia cultural que,
segundo o lingüista Carlos Vogt, permeou o sofrido percurso do ver-se a si
próprio, tem um registro indelével em sua ancestralidade. O médico-geneticista
Sérgio Danilo Junho Pena coordenou um estudo na Universidade Federal de
Minas Gerais para definir o DNA do brasileiro. A bastardia está lá,
indiscutível: pela linhagem paterna, o brasileiro é filho de europeu; pela
linhagem materna, aproximadamente 60% dos brancos têm ancestralidade índia
ou negra.
Então, a genética chegou à "Casa Grande e Senzala", mas não pela porta da
casa grande, do brasileiro cordial cantado em verso e prosa pela sociologia
brasileira do começo do século passado, mas pela da senzala."É uma
comprovação da bastardia e, mais que isso, de uma história de opressão social
do português dono do engenho, predador de africanas e ameríndias(...)
Ele e sua equipe restringiram a pesquisa a uma amostra de 200 brasileiros
brancos, em todo o país, entre universitários e pacientes que se submeteram a
testes de paternidade. Um universo de classe média e ricos de pele branca. Eles
também têm um pé na senzala, por parte de mãe.
21
Mas, quotidianamente, percebemos que estas descobertas ainda se mostram insipientes
em relação a culos e séculos de exclusão e construção do sentimento de inferioridade dos
negros em nossa sociedade e por isso, ainda acontecem de maneira recorrente cenas de racismo
e preconceito, como a da balconista do cinema, trazendo para o palco das discussões visões de
mundo tão divergentes.
21
Site do Ministério da Ciência e Tecnologia. Disponível em: http://agenciact.mct.gov.br/index
XL
Para Gilberto Freyre “o Brasil resolveu a questão racial com a miscigenação”. Há
controvérsias. Vejamos a opinião de outros pensadores:
No Brasil, as idéias racistas adquiriram uma variante própria, a teoria do
branqueamento. De acordo com as teorias racistas européias, o Brasil era um
país fadado ao fracasso. O sangue negro havia contaminado irremediavelmente
a população. O processo de mestiçagem maculara o sangue branco no país,
que, aliás, por sua vertente portuguesa, misturada com árabes, judeus e negros,
não era de estirpe superior. De acordo com essas teorias, o mestiço era
biologicamente inferior às raças puras , tanto à branca quanto à negra.(...) Os
brasileiros, de um modo em geral, eram nitidamente mestiços, portanto
destinados ao insucesso pelas leis científicas da evolução racial e
histórica”.(SALLES e SOARES, 2005:115).
Poderíamos nos perguntar: Como proceder ao des-racismo no mundo? Como por fim ao
preconceito e a intolerância em relação às diferenças culturais? E qual o papel da escola em
relação a isto?
Comentários 6 -
Porque se fosse o contrário não teria todo esse alvoroço?
Isso que é o pior tipo racismo, criar leis para proteger negros como se eles
fossem inferiores.
Comentário 7 - Não, as leis são para que os brancos não se achem superiores.
Aprofundando a questão do sentimento de inferioridade em relação à identidade negra,
percebemos ressonâncias históricas melhor percebidas na citação abaixo:
A descrição do negro como lascivo, lidibinoso, violento, beberrão, imoral ganha as páginas dos jornais compondo a imagem de alguém que
não se pode confiar. Condenavam o samba e a capoeira como práticas selvagens e que terminavam em desordem e violência. Acusavam os
negros por praticarem bruxarias, por não possuírem espírito familiar sendo as mulheres sensuais e infiéis e os maridos violentos, retratos da
falta de estrutura psíquica e social do negro.(SANTOS,2005:131).
A reportagem do jornal descrita anteriormente expressa uma visão: a visão do
colonizador ou do opressor em relação ao negro. Chico Buarque tem uma cantiga que diz a
dor da gente não sai no jornal”
22
. Mas o que sai nos jornais, nas revistas, nas diferentes formas
de propagandas espalhadas pela cidade, nos afeta e nos informa, ou (de)forma.
22
“ Notícia de Jornal” de Chico Buarque de Holanda.
XLI
Falamos de um imaginário construído a partir da visão do opressor sobre o oprimido.
Podemos compreender melhor esta complicada questão da construção identitária dos negros e
afro-descendentes, tendo como parâmetro a letra da música “100 anos de liberdade” da Escola
de Samba da Mangueira, cujo um dos versos canta reclama: Moço, não se esqueça que o negro
também construiu as riquezas do nosso Brasil.
A frase, de certa forma, legitima o trabalho dos negros para fazer valer que, nas
fazendas de açúcar e café, nas minas de ouro e diamante, nas construções das Igrejas e casarios
e tudo o mais, o negro escravizado foi o grande construtor das riquezas de nosso país.
Isso vai de encontro à ideologia recorrente que encontramos muitas vezes em nosso dia
a dia, que quer nos fazer acreditar que o negro é preguiçoso, que não gosta de trabalhar, é
indolente e tantos outros rótulos negativos que estão incrustados em nosso imaginário.
Entretanto, ainda me inquieta a palavra “também” que me soa como um atenuante, quase
“pedindo licença ao moço branco” para dizer e contar o seu lado da história. Por outro lado,
reconheço que pode indicar também uma negociação: contemporaneamente não podemos nos
arriscar a praticar um racismo “às avessas” discriminando o trabalho dos brancos.
Em contraponto, no ponto de Jongo abaixo, o compositor Nei Lopes não hesita em dar
ao negro o lugar de merecido destaque e valorização de seus trabalhos na construção econômica
deste país:
Auê, meu irmão café!
Auê, meu irmão café!
Mesmo usados, moídos, pilados,
Vendidos, trocados, estamos de pé:
Olha nós aí, meu irmão café!
Meu passado é africano
Teu passado também é.
Nossa cor é tão escura
Quanto chão de massapé.
XLII
Amargando igual mistura
De cachaça com fernet
Desde o tempo que ainda havia
Cadeirinha e landolé
Fomos nós que demos duro
Pro país ficar de pé! (Nei Lopes em “Jongo do Irmão Café”)
Como a letra anuncia, mesmo usados, moídos, pilados, vendidos, trocados (nós) o
povo negro estamos de ”. E brincando com as palavras o autor avança, afirmando que
fomos nós que demos duro pro país ficar de pé!”. E isso, o menino e a menina afro-
descendentes, negros ou negras precisam saber, precisam escutar, precisam estudar na escola,
que é o lugar legitimado pela sociedade como lugar de “aprender”. Assim, terá a possibilidade
de ir aos poucos transformando sua auto-imagem negativa, em positiva, passando a não mais
“envergonhar-se” de sua cor e herança hereditária, seja ela genética ou cultural. Pelo contrário,
passará a ter orgulho da saga de seus ascendentes passando este mesmo sentimento para seus
descendentes no futuro. Retomo as falas das crianças que participaram da última turma do
projeto comigo em que aparecem claramente os sentimentos contraditórios das crianças em
relação a seus traços fenotipicamente africanos e seus sentimentos de inferioridade construído a
partir do convívio com a sociedade:
Marisa: - Queria saber como é que vocês percebiam as historias africanas que eu contava pra
vocês...
Natália (12 anos): - A senhora ensinou pra gente que não pode ter racismo.
Marisa: - Do que mais vocês se lembram? Saiara, como você se agora? Você se acha
bonita?
Saiara (12 anos): - Não!
Natália (12 anos): - Você tem que se achar bonita, se não ninguém vai achar!
Marisa: - Mas você não se acha bonita por causa do seu cabelo? (Saiara balança a cabeça que
sim). É, é bem complicada essa história de cabelo. Lembra quando a gente se penteava na
sala??
Moises (12 anos): - A gente fazia um monte de negocio na sala...
Natália (12 anos): - A gente trazia maquiagem.
Marisa: Saiara, você é uma negra muito bonita, sabia? (Saiara sorri e eu aproveito e tiro a foto)
Natália (12 anos): - Mas ela não se cuida.
Marisa: - Você acha que a Saiara não se cuida?
Natália (12 anos): - Não, porque se ela se cuidasse, ela ia todo dia pentear o cabelo, não ia
deixar esses troços brancos no cabelo. ( Natália estava se referindo a dois pozinhos brancos do
cobertor que haviam ficado grudados no cabelo de Saiara).
Marisa:- Mas o cabelo da Saiara penteia de um outro jeito.
XLIII
Raissa (12 anos): - O cabelo dela penteia de um jeito diferente... não é igual ao nosso não.
Natália (12 anos): - Eu penteio de um jeito só, com pente e com creme.
Marisa: -Mas o dela não tem química, o seu cabelo está com química, está alisado. O dela não
tem.
Figura 3
Saiara (12 anos) fala sobre a dificuldade de se achar bonita, tendo traços fenotípicos africanos
tão fortes. Na foto acima, Saiara mostra seu sorriso negro que lembra a cantiga que sempre
cantava em sala com a meninada: “Um sorriso negro/ um abraço negro / traz ...felicidade/
Negro sem emprego/ fica sem sossego/Negro é a raiz da liberdade...”
23
Figura 4
Natália (12 anos) aparece na foto com os cabelos presos para “não ficar alto” como ela mesma
diz.
Natália (12 anos): - Mas mentir ela é feio! Ela fala que ela tinha o cabelo até a “bunda”
cacheado. É mentira!
Raissa (12 anos): - Não é que eu ache ela feia. Ela se acha feia, mas eu não acho. Mas ela
tinha que se cuidar mais!
23
“Um sorriso Negro” de D. Ivone Lara. Disponível em: http://www.brasileirinho.mus.br/artigos/ivonelara.htm Dia
28/02/08
XLIV
Marisa: - Mas eu acho que a Saiara se cuida. Eu acho que essa coisa de beleza tem duas
coisas: uma é estar limpo, e a outra é se enfeitar. Porque não adianta ter um cabelo liso
natural ou alisado e está sujo, fedido. E outra coisa que a gente discutiu é que a beleza do
negro é diferente da beleza do branco. É outro jeito. Como que vocês vêem o cabelo das
pessoas na televisão?
Moises (12 anos): - Arrumados.
Marisa:- Com o cabelo de que jeito???
Moises (12 anos): - Penteado, as vezes pro alto.
Willian (11 anos): - Penteadinho pra trás.
Marisa: - Penteadinho, baixinho, alisado...
Willian (11 anos): - Mas tem gente como Bob Marley...
Marisa: - Mas é um ou outro! Como a gente vê os negros na novela, por exemplo?
Willian (11 anos): - Na cozinha, na favela, trabalhando. Não tem um negro arrumado.
Moises (12 anos): - Tem na novela das oito, aquela “mulé ricona” preta que dói! ( todos falam
ao mesmo tempo, mas o assunto continua em torno da questão do embranquecimento e
escravidão)
Willian (11 anos): - Não viu a escrava Isaura? Ela é branca, mas é escrava.
Moises (12 anos): - Mas é porque ela é filha de branco com preto.
Willian (11 anos): - É metadinha. Todo mundo aqui é metadinha!
24
Gostei muito da expressão “metadinha” utilizada por Willian. E este menino tem razão:
somos um povo híbrido, misturado e plural e esta questão profundamente imbricada na visão de
mundo e de homem, costura por diversas vezes, a presente pesquisa. As falas acima revelam
conflitos internos sobre a beleza e estética negra e a partir destas denúncias infantis, podemos
nos perguntar: O que fazer para não reproduzir tais ideologias e trabalhar a diversidade étnica
na sala de aula?
1.2 – Sozinho eu não fico, nem hei de ficar
Encontros e desencontros corporais e culturais que acontecem na escola
Voltando a atenção para as palavras encontros e desencontros culturais que acontecem
no interior das escolas, no livro “Dialética da colonização” Alfredo BOSI discute a afirmativa
de Alphonse Dupront de que encontros que matamlogo no capítulo do livro intitulado
24
Entrevista realizada no CIEP no dia 26/02/2008
XLV
“Colônia, culto e cultura”. Proponho avançar nesta emblemática discussão sobre as
complexidades que tais invasões e interações culturais propiciavam ao longo de vários
encontros e desencontros culturais de nossa história, tendo esta afirmativa como ponto de
partida.
Penso que quando falamos em “morte” a partir de “encontros ou desencontros culturais”
talvez a primeira idéia que nos vem à mente, seria a discussão em duas perspectivas: a morte
física e a morte simbólica. Na trajetória histórica brasileira esta afirmativa procede: desde o
período da colonização no Brasil, os encontros culturais efetivamente mataram: índios em
primeiro plano, negros em segundo e posteriormente, pobres e mestiços.
Apesar de saber da incompletude, insuficiência e prováveis armadilhas de toda e
qualquer generalização, inquieto-me utopicamente em buscar compreender este universo tão
complexo de imbricadas relações sociais constituídas ao longo da história da Educação no
Brasil, acentuando aqueles períodos em que algumas rupturas paradigmáticas e políticas
impulsionaram tensões e mudanças no arenoso território escolar.
Para rememorar um pouco desta história, em seu livro Brasil: uma história” Eduardo
Bueno relata:
Jamais se saberá com certeza, mas quando os portugueses chegaram à Bahia os
índios brasileiros somavam mais de dois milhões – quase três, segundo os
autores. Mas, no alvorecer do Terceiro Milênio da Era Cristã, não passavam de
325.652 menos do que dois estádios do maracanã lotados. Foram dizimados
por gripes, sarampo e varíola; escravizados aos milhares e exterminados pelo
avanço da civilização e pelas guerras intertribais em geral, estimuladas pelos
colonizadores europeus.(BUENO, 2003: 25)
XLVI
sobre os negros escravizados, encontramos o registro de que mais de três milhões de
africanos morreram nos porões dos navios negreiros durante a travessia do Atlântico por mais
de trezentos anos. Esta é uma nação erguida por seis milhões de braços escravos e sobre
três milhões de cadáveres. (Bueno, 2003:112). Bosi também comenta sobre o assunto nos
dando uma amostra da dimensão dos meros de negros escravizados que, em apenas 20 anos,
o tráfico “trouxe aos engenhos e às fazendas cerca de 700 mil africanos entre 1830 e 1850
(BOSI, 1992:196). A título de curiosidade, este pequeno recorte histórico aconteceu como
relatado anteriormente, em plena vigência da pirataria, pois o acordo com a Inglaterra sobre a
não comercialização de escravos havia sido assinado em 1826. Prevalecia, assim, um regime
escravocrata sustentado pelas autoridades locais que, se dizendo liberais, faziam “vista grossa”
para a comercialização de escravos então trocados por café, ao desembarcarem dos navios
negreiros.
Outro historiador, Francisco Alencar em “História da Sociedade Brasileira”, continua
nos alertando sobre a dimensão dos fatos históricos referentes ao contingente de população
negra africana escravizada. Diz o autor:“Em quatro séculos, do XV ao XIX , a África perdeu,
entre escravizados e mortos 65 a 75 milhões de pessoas, e estas constituíam uma parte
selecionada da população, uma vez que ninguém, normalmente escraviza os velhos, os
aleijados, os doentes. Segundo estimativas de Afonso Taunay, entraram no Brasil nos séculos
XVI, XVII e XVIII, respectivamente, 100.000, 600.000 e 1.300.000 negros
escravizados”.(ALENCAR, 1981:26) Uma escravidão que perdurou mais de trezentos anos
deixando marcas profundas em nosso imaginário social.
Por isso, com o devido desconto pelas diferenças que cada contexto histórico-social
apresenta, lanço mão agora, de um pequeno “relicário” de lembranças construídas em sala de
XLVII
aula que irão, como um mosaico colorido, constituir um suporte importante para o escopo
teórico desta pesquisa.
Através de fatos históricos negados, ou silenciados pelo currículo escolar, íamos através
do desenvolvimento do projeto Tangolomango, reescrevendo e escrevendo de maneira mais
consciente nossas próprias histórias. O trabalho de alfabetização se dava a partir dos encontros
e desencontros culturais que iam paulatinamente construindo um novo currículo escolar
condizente com as necessidades e características do universo infantil daquelas crianças.
Crispim, menino negro que participou do Projeto Tangolomango em 2003, tinha muita
resistência a aprender a ler e escrever, é um exemplo de como estas questões tencionavam
nosso universo escolar. Sua recusa tinha justificativa: tinha 12 anos e ainda não havia
conseguido alfabetizar-se. Sua postura era de quem estava quase desistindo e, se não fosse por
sua avó que o incentivava, provavelmente não mais estaria ali. Crispim , apesar de menino
ainda, havia passado por várias situações de violência e exclusão social, sendo que o mais
grave, havia presenciado dentro de sua própria família: havia perdido o pai muito cedo e tinha
visto seu padrasto abusar sexualmente de sua ire por este motivo, fugira de casa, morando
tanto ele quanto a irmã com outros parentes.
XLVIII
Figura 5
O desenho realizado por Crispim (12 anos).Uma representação infantil denunciadora
de fatos importantes de nossa subjetividade identitária. Projeto Tangolomango/Turma do
Parangolé/CIEP/ 2003
Gostaria de ressaltar que somente agora, reunindo o material para esta pesquisa, pude
perceber que seu nome está inserido na frase que escolhemos para fazer o desenho e abrir nossa
roda de discussão naquele dia.
Buscando uma melhor compreensão sobre o que Crispim queria anunciar ao inserir-se
neste contexto de escravidão, começo agora a me perguntar: qual o nível de identificação de
Crispim com o exercício proposto? Foi apenas uma coincidência ou podemos ousar pensar que
este trabalho possibilitou a Crispim um envolvimento e um nível de subjetividade tamanho, que
ao escrever sobre o assunto, este menino se vê também, de algum modo aprisionado e ansiando
por liberdade?
Os traços fortes de sua escrita nos levam a re-pensar o quanto este exercício pode ter
envolvido este menino, que sendo negro e pobre e ainda analfabeto, lutava com as armas que
tinha para sobrevier de uma maneira mais digna, mostrando-se a cada dia mais a sua revolta e
insubmissão ás regras e limites impostos pela escola e pela vida ao seu redor.
XLIX
Apesar dos esforços de ajuda-lo a refletir sobre a condição subalterna em que vivia e as
possibilidades de transformação social que a aprendizagem da leitura e escrita poderiam lhe
trazer, Crispim acabou progredindo muito pouco em seus estudos e no ano seguinte, mesmo
tendo saído da Turma de Progressão, soube que um pouco mais tarde, abandonou a escola.
Retomando o relato de algumas atividades vividas em sala de aula, gostaria de enfatizar
que a estratégia de utilizarmos as letras das músicas como suporte para politizarmos o ato de
aprender a ler e escrever fazia parte de minha proposta educativa e por isso, estarei por várias
vezes, me apropriando desta e de outras maneiras de anunciar os paradigmas conceituais que
me proponho a discutir.
A canção que inspirou tanto o desenho de Crispim, quanto o trabalho plástico abaixo,
chama-se “Yaya Massemba”
25
e começa com o barulho forte de uma porta batendo. Lembro-
me que esta era uma canção que me emocionava, e por isso, resolvi usar com as crianças em
sala.
Recorria freqüentemente à emoção como estratégia para trabalhar os conteúdos
curriculares propostos. Assumia de diferentes maneiras, a necessidade de se humanizar a
educação, criando uma sintonia que ia “de coração para coração”. A letra da música é
envolvente porque evoca justiça e traz como lema o seguinte refrão: “vou aprender a ler, para
ensinar meus camaradas”. Como continuar descrevendo a música? O que fica para mim, é a
sensação da noite fria deste porão retratado no desenho de Crispim, da viagem longa, do
batuque das ondas batendo no casco do navio, dos raios e tempestades e do coração que bate no
“fundo do cativeiro”.
25
“ YAYA MASSEMBA” de Roberto Mendes e Capinam . Musica interpretada por Maria Bethânia no disco
“Brasileirinho” em 2003.
L
Figura 6
Representação do navio negreiro construído pelas crianças em sala.
Tangolomango/Turma do Tangolomango/ CIEP/2002
Por isso a música, a dança, a festa. Para abrir na escola espaço para o sujeito possa se
emocionar e se maravilhar com a possibilidade de conhecer, e ter alegria nisso. Fazer de cada
conhecimento um acontecimento inesperado, surpreendente e maravilhoso.
A decisão de aprender a ler para ensinar é uma decisão política: reconhecer a leitura e
escrita como instrumento de poder e utilizar este mesmo instrumento para se libertar e ajudar
outros a se libertarem da condição de subalternização. Se a opressão, com variantes
consideráveis, atinge os pobres e mestiços de nossa sociedade, alfabetizar este sujeitos e
restituir-lhes a cidadania secularmente negada, são com certeza um desafio para a educação
pública brasileira, que promove cotidianamente encontros mas também, grandes desencontros
culturais.
LI
Certa vez, ouvi o desabafo de uma professora que, ao ser questionada sobre sua
concepção de alfabetização, reagiu dizendo: - Mas eu só queria falar de alfabetização! Esta fala
é exemplar de uma concepção ainda muito presente na escola. Na hora, lembrei-me de Freire
pensei o quanto para aquela professora o seu fazer pedagógico estava constituído a partir de
uma idéia de neutralidade que na prática, não se sustenta. O fazer educativo está, queiramos ou
não, implicado em concepções de homem e mundo, e por isso, é fazer político, que pode gerar
alienação e/ou desenvolver a criticidade.
As falas de algumas professoras que entrevistei ilustram com mais densidade estas
questões culturais dentro da escola. Suas crenças sobre como uma escola deve funcionar, estão
entrelaçadas com suas experiências pessoais escolares de herança “bancária” e conteudista que
tiveram.
Vejamos algumas de suas opiniões sobre este assunto:
Marisa: - O que você lembra e poderia destacar como ponto positivo e ponto negativo do trabalho do
Tangolomango?
Dina: - Você trabalhava muito a musicalidade. Você não ficava restrita a dar a informação na sala
de aula. O ponto negativo é que eu acho que eles não estavam preparados para aquilo, nem os pais
nem as crianças, criava muito conflito.
Marisa: - E isso incomodava?
Dina: - Incomodava porque era uma forma diferente de trabalhar.
Marisa: - Mas você acha que a minha forma de trabalhar desmascarava alguma coisa? O que, na sua
opinião, incomodava os outros professores na escola?
Dina: - Eu acho que denunciava a falta de estrutura da escola que não está preparada pra essas coisas,
denuncia a formação dos professores, ele é formado daquele jeito e não consegue mudar.
Marisa: - Então você acha eu incomodava porque os professores se deparavam, de alguma forma com
o seu não saber?
Dina: - É, pode ser. Eu ainda não sei direito o que incomodava, talvez as crianças andando pela escola.
Você não vai conseguir mudar todo mundo de uma só vez.
Marisa:- Mas, de alguma forma o Tangolomango te contagiava ou te incomodava?
Dina: - Me contagiava, eu gostava, a sua alegria de ir fazendo... eu não poderia fazer aquilo, eu teria
que estudar mais pra isso.
26
26
Entrevista realizada no CIEP no dia 26/02/2008.
LII
Como percebemos, transformar uma herança de escola bancária em emancipatória não
acontece de uma hora para outra. Isso pressupõe um longo caminho de negociação entre os
atores sociais da escola, além de certa tendência a transgressão e revolução.
Neste mesmo dia, entrevistei outras professoras da escola e as falas continuam
denunciando um pouco de como o Tangolomango foi percebido no imaginário de alguns
professores da escola. Fiz a três professoras, que não quiseram se identificar, a mesma pergunta
sobre os pontos positivos e negativos do Tangolomango:
Professora 1: -Eu acho que também faltava você amarrar um pouco. Toda turma que a gente pegava
depois, eles não eram acostumados a certas regras e limites.
Marisa: -De quais regras e limites vocês se referem?
Professora 3: -Algumas coisas que não dava para deixar que eles fizessem e eles ficavam revoltados
com isso. Eu acho que faltou um pouco de rotina. Você fazia coisas diferentes que eram ótimas, mas
faltou rotina pra disciplinar eles. Porque como você dava aula com musicas e danças, em alguns
momentos eles queriam porque queriam batucar na mesa e não havia nada que fizesse eles pararem.Eu
não sei se eles encararam isso como bagunça, então eu acho que você devia ter dado mais limites.
Professora 1: -Por isso eu digo que tem que ter um limite. Por exemplo: a fila, eles o respeitam fila
nenhuma, saem atropelando os colegas. Você deixava eles muito soltos. Eu, por exemplo, faço assim:
toca o sinal, eles formam. Daí, eu subo com eles devagar. A gente pára na porta da sala. As meninas
entram e sentam nos lugares combinados. Os meninos esperam. Depois eles entram e sentam. Eles
foram acostumados assim, não sabem ser de outro jeito...
Professora 2: -Outra coisa também, é que eu não tenho esse tempo que você tinha pra isso, nem voz.
Para canto, por exemplo, minha voz não é boa para canto, eu não teria essas habilidades.
Professora 3: -Uma vez eu consegui. Eu estava dando uma aula de ciências, sobre eletricidade, e eu fui
percebendo que ao final de cada frase que eu dizia tinha uma rima, e os alunos que foram seus, também
perceberam isso. Então a gente montou um rap. E ai quando essas crianças foram para a série, eles
fizeram outras musicas e isso ajudou muito segundo a professora deles.
27
Percebemos através das falas das professoras acima que falar de regras disciplinares na
escola não é tarefa fácil. O fato do Tangolomango não priorizar determinadas regras e culturas
27
Entrevista realizada no CIEP no dia 26/02/2008.
LIII
escolares como filas e lugares marcados em sala para sentar, passava a impressão equivocada
de que não havia regras e limites acordados com as crianças em sala de aula. Enganavam-se: o
Tangolomango, como proposta educativa voltada para o desenvolvimento humano, tinha como
premissa a educação para a liberdade, por isso, o trabalho era altamente conscientizador, neste
sentido, era muito mais amplo e profundo do que se poderia apressadamente supor.
que os conflitos eram negociados junto com as crianças, através de uma proposta
dialógica de educação e não apenas imposto pela autoridade supostamente inabalável do
professor. Então poderemos mais uma vez nos perguntar: Educar, sim, mas dentro de qual
cultura(s)?
As falas das professoras acima, denunciam alguns segredos sobre a corporaneidade
vivida pelo educador (a) em seu longo processo de tornar-se professora. Sim, porque ninguém
vira professor(a) de uma hora para outra: isto se dá de forma processual e contínua. No livro “O
corpo que fala dentro e fora da escola” a educadora Nilda Alves nos alunas pistas de como
nosso corpo “se torna” o do professor(a). As questões levantadas pela referida autora seriam: -
Que experiências anteriores (este professor ou professora) viveu, que marcas adquiriu, que
possibilitaram que ela (assim) o fizesse? (ALVES, 2002:123). Em síntese, o texto intitulado
“Como o nosso corpo passa a ser o da professora?” trabalha na perspectiva de que determinadas
posturas educativas ou punitivas são adquiridas, construídas, e por fim, reproduzidas no
cotidiano da escola. São ressonâncias do que experienciamos ao longo de nossa formação
profissional, que começou bem antes de tomarmos a decisão de sermos professores(as). Porque
antes de sermos educadores(as) fomos educando(as) e por isso, conhecemos muito bem este
espaço que trabalhamos: a escola com suas fragilidades e potências. As marcas de tais
experiências encontram-se gravadas em nossos corpos, por isso, compreendo cada vez mais
LIV
que, educar nesta perspectiva libertária, é um aprendizado não apenas para o educando, mas
também para o educador(ra) que se renova a cada instante e neste sentido, não tem fim.
1.3 – Passaraio, passaraio, quem me deixe eu passar...
Encontros, desencontros e preconceitos que repercutem na escola
Puxando ainda mais o fio sobre as questões dos encontros e desencontros culturais,
podemos observar que, na perspectiva do plano simbólico, a palavra “morte” pode ganhar
outros significados interfere e marca profundamente identidades coletivas tanto opressoras,
quanto oprimidas.
Ao contrário do plano físico em que muitas tribos e línguas foram extintas, as mortes
simbólicas recalcam identidades que resultam mascaradas como sinalizou Fanon em “Peles
negras, máscaras brancas”. Reconheço, entretanto, que este é um assunto muito discutido
e estudado. Reconheço, mas insisto para minar o que nunca é demais denunciar, mas também
anunciar.
Gostaria de lançar meu olhar para novas /velhas possibilidades que a palavra “morte”
pode nos oferecer. Proponho que façamos outras pescarias, visto que, se desviarmos um pouco
nosso olhar condicionado as ambivalências e polaridades das palavras, percebemos que não
LV
dá para se pensar em morte, sem lembrar da força da palavra vida. Vida, morte e vida
novamente são processos cíclicos e embrionários de constantes mudanças e transformações e
seja no campo físico ou no campo simbólico possibilitam movimentos ora opressores, ora
transgressores que abrem possibilidades para constantes mudanças.
Observando agora a questão da identidade sob esta nova/velha perspectiva de mudança
e fragmentação, podemos recuperar o sentido das “identidades mascaradas” híbridas
misturadas e multifacetadas do mundo contemporâneo. E tais processos de transformação, que
acontecem cotidianamente em relação aos atores sociais, penetram e invadem, queiramos ou
não, o espaço escolar ou os diferentes espaços escolares, impulsionando a formação constante
de novas identidades que surgem a partir destes encontros/desencontros entre diferentes
culturas.
Hibridização, tensão, mistura, confluências e discordâncias configuraram os desejos, as tensões e conflitos que em diferentes épocas
foram mobilizando a formação de novas identidades, são palavras significativas para esta pesquisa.
Entretanto, do ponto de vista das histórias dos sujeitos encarnados esta diferenciação
entre diferentes usos e valores culturais é difícil e quase impossível demarcar. A cultura popular
não tem purezas e vice-versa.
Por isso, arrisco-me a ensaiar algumas compreensões mais globais em relação à
emblemática questão da alfabetização nas classes populares brasileira. Este é o foco central da
pesquisa: a alfabetização das crianças das classes populares. E as palavras que transitam em
círculo ao redor desta questão seriam: saberes híbridos, subalternização, culturas e educações.
Para situar um pouco mais o leitor/leitora sobre a complexidade das relações culturais
híbridas que foram se configurando no tecido social brasileiro, gostaria de trazer a fala de
Roger Chartier - historiador sensível às manifestações culturais – que se pronunciou ao escrever
a cultura popular é um conceito erudito”. Sendo a Cultura Popular um produto erudito, um
constructo erudito, podemos refletir sobre quem são os que conceituam os fazeres e saberes das
LVI
classes populares e mais especificamente, compreender de uma maneira mais crítica o porquê
das polarizações entre as culturas: as populares e as eruditas e suas relações com os conteúdos
escolares ensinados nas escolas.
Neste sentido, podemos questionar: Porque não podemos dizer apenas “cultura” ou
“culturas”? Que valores estão postos no imaginário coletivo brasileiro em relação a hierarquia
dos saberes que de uma forma muito estreita aparecem no cotidiano da escola? O que é
valorizado e o que é esquecido tendo como princípio os valores de uma classe social elitista que
muito pouco ou nada sabe sobre os modos de vida e as reais necessidades de pessoas de outra
classe?
Por estar emocionalmente implicada com as questões levantadas até aqui, reconheço que internamente, a questão não está em mim
totalmente resolvida: escorrego ainda em polaridades que sinalizam o lugar de onde venho e de qual lugar estou falando. Lugar este que
aparecerá melhor configurado no capítulo II desta pesquisa.
De qualquer maneira, compreendo melhor hoje que as questões que vão costurando este trabalho onde ainda se indiciam polaridades
entre culturas populares e eruditas não se sustentam num mundo cada vez mais globalizado e carecem de um olhar mais atento e sensível. São
questões que me forçam a constantes deslocamentos, buscando compreender os fluxos culturais existentes entre as culturas.
Um pequeno registro histórico do livro “Viagem pela História do Brasil de Jorge
Caldeira, serve como mais um suporte para as questões referentes a hibridização cultural que
busco enfatizar. O relato é sobre as missões paulistas, pelos tempos de 1640 quando, por
contingências econômicas começaram as partidas de bandeirantes para caçar os “índios” e
negros fugitivos. Vejamos quais as estratégias utilizadas por estes “anti-heróis” brasileiros:
Um dos segredos da eficiência dos paulistas nas missões de apresamento era
seu conhecimento da natureza tropical e dos costumes indígenas. Quase todos,
eram filhos de índias e casados com índias. Desde cedo aprendiam a andar
descalços pelo mato e a falar a língua geral. Essa adaptação as condições
locais, associada ao conhecimento das práticas comerciais e à ambição
européia, cria um tipo novo (grifo nosso). (...) Com isso, foi havendo uma fusão
de costumes locais e hábitos europeus. (CALDEIRA, 1997: 57)
Esse tipo novo vai surgindo a partir das fusões, dos encontros e desencontros culturais
que foram se configurando ao longo dos tempos como uma estratégia dos europeus para
colonizar o Brasil. Que dizer de astúcias e ações, onde neste caso específico, os bandeirantes
LVII
jogavam com todas as possibilidades oferecidas pelas tradições ao seu redor, usavam esta de
preferência àquela, compensavam uma pela outra”. (CERTEAU, 1994:122).
No caso dos bandeirantes, ressalto um aspecto que algum tempo me incomoda a
ponto de classificá-los como “anti-heróis” brasileiros. Digo isso, lembrando que durante
grande parte de minha vida escolar aprendi nos livros de História que os bandeirantes foram
importantes desbravadores que abriram caminhos pelo sertão fundando cidades e levando
“civilização e progresso” ao país. Sendo “filha” de todo um sistema, acreditei e aceitei estas e
tantas outras informações sem questionar. Por isso, via até bem pouco tempo, os bandeirantes
como “heróis”. Hoje, buscando “avessos” da história, descubro que realmente eles foram
grandes desbravadores, abriram caminhos e estradas, fundaram vilarejos etc, mas... estão longe
de serem HERÓIS, para mim. Os Bandeirantes eram escravistas e partiam em grandes
expedições sendo temidos até mesmo pelos coronéis e governadores locais. Um dos nomes
mais conhecidos foi o do paulista Domingos Jorge Velho. Homem bruto e audacioso, que
liquidou com o maior de todos os quilombos do Brasil: o Quilombo dos Palmares em 1694,
liderado pelo guerreiro e lendário Zumbi dos Palmares em Alagoas. Segue abaixo, um
depoimento que revela as práticas da época:
Jorge velho ordenou a seus homens que o agarrassem. Sangrava muito. A
mordida do cachorro havia arrancado um pedaço de carne de suas costas.
-Onde vocês estão amoitados!? – gritavam com ele. – Onde estão os outros?!
Como ele permanecesse calado, começaram a espancá-lo. – Fala, negro safado.
Onde estão os outros?
Moeram-no de pancadas mas resolveu falar quando ameaçaram castra-lo.
Informou que o mocambo ficava a meio dia dali.
-Cuidem dele, Jorge Velho – deve valer bom preço.
Cuidar significava não espancar mais e fornecer um pouco de farinha de milho
misturada com água.
LVIII
O ataque foi rápido, sem resistência e com saldo altamente positivo para os
escravistas. Conseguiram aprisionar 59 negros, 4 índios e 5 mulatos. Como os
índios não tinham valor comercial, o bandeirante entregou-os aos índios que o
acompanhavam para que os massacrassem. Os cães se refestelavam com o
sangue derramado. – Não sabia que gostavam de índios – comentou Jorge
Velho – pensei que só comiam negros.
Decidiu voltar para Olinda com os prisioneiros. Deixaria metade dos homens
aguardando seu retorno. Estava feliz porque nenhum dos prisioneiros tinha a
letra “F” gravada na testa, o que valorizava a mercadoria.Havia algumas
mulheres com crianças de colo e alguns meninos menores de 10 anos. Decidiu
que os meninos seriam destinados ao Quinto do Rei. Os bebês vinham em boa
hora. Percebeu a excitação dos cães quando arrancou um deles dos braços da
mãe. (BOUEDOUKAN, 1999: 143).
O que muda quando contrastamos estas informações com as informações “oficiais” dos
livros escolares? Que descentramentos acontecem quando nos aproximamos de múltiplas fontes
de informação? E porque é importante avançarmos na perspectiva de ouvirmos outras vozes e
suas histórias singulares?
Quando estava em sala de aula, buscava recuperar com os meninos/meninas algumas
destas histórias esquecidas e então, constantemente nos perguntávamos: Onde estão os Heróis
deste país? Os Heróis desta cidade em que moramos? Os heróis de nosso bairro, da nossa rua,
de nossa família? Negros ou não, onde estão os nossos heróis e suas histórias de resistência?
Uma vez, ao participar do Programa “Um Salto para o Futuro
28
na antiga TVE hoje
TV Brasil, tive a oportunidade de interagir com Tião Rocha, um educador do sertão mineiro
que acaba de ganhar o Prêmio de Empreendedor Social /2007. Seu trabalho à frente do Centro
Popular de Cultura e Desenvolvimento desde 1984 é realizado junto às populações mais
carentes e pobres do Brasil o vale do Jequitinhonha em Minas Gerais. Tião Rocha distingue
28
Tema do programa: Linguagens Artísticas na sala de aula: O que vamos aprender hoje?(Março, 2005).
Disponível em: http://www.tvebrasil.com.br/salto/boletins2005/lacp/index.htm
LIX
educação de escolarização chegando a afirmar que “esta escola formal não serve para educar
ninguém” e propõe a reorganização do espaço escolar questionando-nos sobre por que não
podemos ter uma escola “aos pés de uma mangueira”. Seus problemas com a escola
começaram desde muito cedo. Vejamos o que ele tem a nos contar:
Comecei a ter problemas com a escola desde que entrei, aos sete anos. Logo no
primeiro dia de aula, a professora leu um livro: Era uma vez um lugar muito
distante, onde havia um rei e uma rainha (...)”. Eu levantei a mão e falei:
“Professora, tenho uma tia que é rainha”. Ela me mandou calar a boca. Depois
que a interrompi duas ou três vezes, fui para a sala da diretora. A partir daí, eu
sempre inventava coisa para matar a aula. Nunca tive uma escola boa. Nunca
tive prazer na escola, mas sempre quis aprender. Quando fui para a faculdade
estudei História e Antropologia, fui resgatar a história da minha tia, que era
Rainha do Congado.
Para pagar os estudos, eu precisava trabalhar. Fui dar aula e me dei conta de
que se eu achava aquilo chato, meus alunos também, porque eu era um
reprodutor da mesma chatice.
29
Sua fala é denunciativa de uma escola que nos faz aprender e assimilar o discurso do
“outro” assim como seus respectivos heróis que não necessariamente são os nossos. Eu também
não queria reproduzir, em minha práxis pedagógica, aquelas chatices que havia aprendido na
escola quando criança: buscava fazer com que nossas aulas adquirissem um outro sabor.A
saber: acreditava (e acredito!) que este lugar que chamamos escola, podia ter um sabor que
enriquecesse culturalmente a vida dos meninos e meninas originários das classes populares.
Encafifada com estas questões, lembro-me que, certa vez, meus alunos e eu
participamos de um concurso chamado CONDEDIME”
30
que tinha como tema daquele ano,
29
Maiores informações sobre o CPCD e seu diretor Tião Rocha está disponível no site http://www.cpcd.org.br/
30
Concurso realizado anualmente pela Prefeitura do Rio de Janeiro e tem sempre como foco a valorização da cultura
Afro-brasileira.
LX
escolher uma personalidade negra de nossa comunidade. Escolhi o patrono de nossa escola,
conhecido como Mário Vaz, personalidade local pelo menos para mim, muito pouco conhecida.
Descobrimos juntos que ele havia sido um posseiro que tinha ajudado muita gente pobre
naquele lugar e que por esse motivo, acabou sendo assassinado por um grileiro mercenário. Um
crime que acabou sem justiça como tantos outros neste país. Por este motivo o nome de nossa
escola. Mário Vaz foi um herói negro para aquela comunidade e sua história de vida, assim
como a história da tia de Tião Rocha, que foi rainha negra do Congado daquela região, não está
em nossos livros de História.
Falar de heróis negros neste país é uma necessidade: como desenvolver um sentimento
de valorização de nossa ancestralidade negra e mestiça, se as imagens que vemos dos negros
está sempre associada à miséria, a pobreza, a subalternidade e a opressão? Como desconstruir
esta ideologia que quer nos fazer acreditar em nossa inferioridade em relação à etnia branca?
Falar de nossos heróis negros, de nossa família, de nossa linhagem hereditária como
estratégia de fortalecimento de nossa identidade negra e afro-descendente pode vir a ser um
caminho possível de inaugurarmos uma outra sociedade, visto que como nos lembra Brandão, a
educação fechada em si mesma não protagoniza mudanças, mas ela é um caminho para mudar
as pessoas, pessoas que por sua vez, interferem e mudam o mundo.
31
Voltando ao cotidiano de nossas aulas, lembro-me que convidei as crianças para
participarem do concurso e expliquei que iríamos precisar pesquisar sobre a vida do homem
que dava nome a nossa escola, saber sobre sua história de vida ler muito, fazer entrevistas, etc.
Foi um projeto que acabou envolvendo bastante as crianças e para nossa surpresa e alegria
acabamos ganhando em uma das categorias. Segue abaixo um dos esboços feito por Jhony , um
31
Carlos Rodrigues Brandão em “ A educação popular na escola cidadã” - 2002 - Editora Vozes
LXI
menino muito esperto de 13 anos, que foi um dos ganhadores do concurso na categoria
desenho, visto que por ser no início do ano, as crianças estavam ainda muito inseguras para
uma produção textual mais elaborada.
As três crianças que ganharam o prêmio foram: Jhony Vitoriano Coimbra, Rosângela
Maria de Souza e Thamirys Brandão Gomes e a premiação foi realizada no Teatro Carlos
Gomes no dia 24 de Setembro de 2004. Como a premiação aconteceu pela manhã, lembro-me
que os convidei a passarem a noite em minha casa, pois queria ter certeza de que não iriam se
atrasar (ou até mesmo faltar!). Quando chegamos ao centro da cidade, a curiosidade tomou
conta daquelas crianças: tudo olhavam e queriam saber. Principalmente o Jhony que nunca
havia estado no centro da cidade: olhava para os gigantescos edifícios, espantado, rindo a toa e
muito animado.
Figura 7
LXII
Um dos esboços feitos em sala por Jhony para participar do concurso sobre a vida do patrono de nossa
escola Mário Vaz
Subir no palco e receber a premiação também foi um momento emocionante. A nossa
diretora, Margarethe Bandeira estava junto com a coordenadora pedagógica Rosana Leal
festejando conosco.
Experiências que me fazem mais uma vez me perguntar: O que sabem os meninos e as
meninas das classes populares que ainda não conseguiram aprender a ler e escrever? O que
fazem, como vivem quando estão fora do ambiente escolar? De quais outros espaços de
produção de conhecimentos fazem parte? O que aprendem nas “horas vagas”? Quais as suas
potencialidades? E o que os seus saberes e dizeres podem nos ensinar? E porque seus saberes
não são contemplados na escola?
Encontro estas e outras perguntas na letra da música que transcrevo a seguir:
“Quem foi que fez brasileiro bater
Tambor de jongo?
De onde é que sai quem batuca com o pé
Terno-de-Congo?
Quem é, me ensina quem foi
Que fez o povo dançar
Tambor-de-Mina, Bumba-meu-boi,
Boi-bumbá,
O bambaquerê,
O samba, o ijexá,
Quando o Brasil resolveu cantar?
Quem foi que pôs o lamento na voz da lavadeira?
Quem fez aqui baticum, candomblé
E a capoeira?
Quem trouxe o maracatu?
Quem fez o maculelê,
Mineiro-pau, côco, caxambu, Bangulê,
A xiba, o lundu,o cateretê,
Quando o Brasil resolveu cantar?
Me diz quem foi que fez
LXIII
A dor se transformar
Em som de carnaval,
Em batucada,
Em melodia?
Que força fez mudar
Toda tristeza
Em alegria,
Quando o Brasil resolveu cantar?
(“Áfrico”Paulo César Pinheiro/2002)
Figura 8
Crianças da Escola de Jongo repassando seus saberes para as crianças da Escola
Municipal Mestre Darcy do Jongo. Gabriel ( 5 anos) é o menino do meio e é estudante desta
escola. Seu sorriso aberto demonstra o quanto está feliz por poder mostrar os toques dos
tambores para seus amigos da turma e toda a escola.
Arquivo da Escola de Jongo da Serrinha/ Madureira/2006
Retornando mais uma vez à delicada questão da constituição da tessitura cultural
brasileira e suas múltiplas expressões artísticas, vale ressaltar a notável contribuição dos negros
no terreno das artes, como sinaliza a música “Áfrico”. Entretanto, lutamos ainda hoje, pela
legitimação da intelectualidade negra que sofre uma série de preconceitos em determinados
lugares instituídos como locais de saber: como as escolas e as universidades por exemplo.
LXIV
Retomando o foco de nossa pesquisa, os encontros e/ou desencontros culturais presentes
nas danças, música, comida, etc, onde percebemos matizes, nuances, ressonâncias que valem a
pena um estudo mais atento, tornaram-se ao longo do tempo a porta de entrada para novos tipos
de brasileiros que aos poucos foram se constituindo a partir dos saberes e fazeres entre
diferentes tipos de culturas.
Singularizando a afirmativa acima, temos na dança da quadrilha de nossas Festas
Juninas, um exemplo de constante hibridização cultural:
Da França veio a dança marcada, característica típica das danças nobres e
que, no Brasil, influenciou muito as típicas quadrilhas. a tradição de soltar
fogos de artifício veio da China, região de onde teria surgido a manipulação da
pólvora para a fabricação de fogos. Da península Ibérica teria vindo a dança de
fitas, muito comum em Portugal e na Espanha.
32
Em relação à comida, podemos nos apoiar num prato que acabou se incorporando a vida
de milhares de brasileiros(as) independente de sua classe social e está relacionada ao espírito de
festa e celebração tão presentes em nossa cultura: a famosa feijoada brasileira. Vejamos um
pouco sobre sua história híbrida:
A explicação mais difundida sobre a origem da Feijoada é a de que o senhores
das fazendas de café, das minas de ouro e dos engenhos de açúcar davam aos
escravos os "restos" dos porcos, quando estes eram carneados. O cozimento
desses ingredientes, com feijão e água, teria feito nascer a receita. No entanto,
tal versão não se sustenta, seja na tradição culinária, seja na mais leve pesquisa
histórica. Segundo Carlos Augusto Ditadi, técnico em assuntos culturais do
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, em artigo publicado na revista “Gula”, de
maio de 1998, essa alegada origem da feijoada não passa de lenda
contemporânea, nascida do folclore moderno, numa visão romanceada das
relações sociais e culturais da escravidão no Brasil.(...) Portanto, o mais
32
http://www.suapesquisa.com/musicacultura/historia_festa_junina.htm
LXV
provável é creditar as origens da feijoada a partir de influências européias.
Alguns crêem que sua origem tem a ver com receitas portuguesas, das regiões
da Estremadura, das Beiras e de Trás-os-Montes e Alto Douro, que misturam
feijão de vários tipos - menos feijão preto (de origem americana) - lingüiças,
orelhas e de porco. E ainda aqueles que afirmam que a feijoada é um
prato inspirado em outro prato europeu, como o cassoulet francês, que também
leva feijão no seu preparo. A Espanha tem o cozido madrileño. A Itália, a
“casseruola” ou "casserola" milanesa. Ambos o preparados com grão-de-
bico. Aparentemente, tiveram a mesma evolução da feijoada, que foi
incrementada com o passar do tempo, até se transformar na obra-prima da
atualidade. Câmara Cascudo observou que sua fórmula continua em
desenvolvimento.
33
E o que falar da música, especificamente do samba brasileiro? Que encontros e
desencontros foram formando novos tipos, ritmos, nuances musicais? Até onde é popular?
Onde é erudito? Vale a pena separar, desmerecendo uma e valorizando outra? Através de que
processos as culturas se encontram, misturam-se, confluem e divergem?
O exemplo de hibridização cultural que trago para este trabalho é bem recente. No
programa “Revista Brasil” passado na TV Brasil sobre o carnaval, especificamente sobre o
surgimento dos Trios Elétricos na Bahia, encontramos a seguinte fala do historiador Milton
Moura:
A criação do Pau Elétrico ou chamada Guitarra Baiana, tem a ver com a
chegada de um violinista português famoso chamado Benedito Chaves em 1942
e foi a primeira vez que se deu por aqui um violão ligado à eletricidade. E ,
Dodô e Osmar assistiram a apresentação e constataram que o violão elétrico
não gerava muita microfonia. Dodô resolveu fazer a experiência de colocar uma
madeira lisa com cordas de violão ligada a eletricidade e percebeu que gerava
um som límpido e a partir daí, em 1943 nasce o Pau Elétrico.
34
33
http://pt.wikipedia.org/wiki/Feijoada_brasileira
34
Programa “Revista Brasil” que foi ao ar no dia 27/01/2008 na TV Brasil.
LXVI
São as Guitarras Baianas que formaram, por sua vez, os famosos Trios Elétricos
transformando para sempre - a partir da mistura de cavaquinho e bandolim - o carnaval na
Bahia, que foi assumindo outras formas de expressão popular. E quando a guitarra elétrica por
aqui chegou os baianos já haviam fabricado a sua própria guitarra elétrica.
Os exemplos acima citados, tanto na dança, comida, música e tantas outras formas de
expressão popular, anunciam zonas fronteiriças onde encontros e desencontros culturais fazem
nascer novas possibilidades valendo-me mais uma vez do plural.
Aquela fusão de “costumes” que desde o início da colonização estiveram presentes de
uma forma menos consciente nos encontros e/ou desencontros culturais no território brasileiro,
corresponde ao que chamamos hoje - de uma maneira bem mais consciente - de hibridização
cultural. Acredito que olhar mais de perto estas “fusões” culturais buscando compreender os
conflitos e assimilações, os campos e contra-campos de embates, as aproximações e
negociações que se dão a todo instante no quotidiano das escolas públicas, pode vir a ser um
caminho possível para se entender as manhas e artimanhas de sujeitos que parecem resistir, por
diferentes motivos, a aprendizagem da leitura e escrita dentro da escola.
Ao dialogar com o que Hannerz classifica como zonas fronteiriças”
(HANNERZ,1997:24), defendo a hipótese de que os encontros e desencontros que acontecem
constantemente no espaço escolar possam possibilitar a abertura e/ou fechamento,
fortalecimento e/ou empobrecimento de alguns espaços, brechas e às vezes, imperceptíveis
fissuras onde as atividades vividas no cotidiano sejam o agente re-organizador de velhos novos
usos e ações culturais.
Mestre Darcy, músico altamente criativo e de caráter transgressor, morador do morro da
Serrinha, alargou as fronteiras de seu saber para outros espaços da cidade. Tornou-se famoso e
LXVII
reconhecido pelos fluxos e re-fluxos culturais que promovia visto que tanto interagia com a
academia onde constantemente era convidado para dar cursos e oficinas como levava estes
mesmo atores sociais para dentro de sua casa, no morro, para que as pessoas de pudessem ter
contato com diferentes culturas também.
O Jongo da Serrinha é uma demonstração bastante relevante desta hibridização cultural:
foi ele que introduziu cavaquinho no Jongo fazendo diversas experiências com outros
instrumentos musicais mais eruditos” como o piano, o trompete e até mesmo o violino. Sua
atitude incomodou muitos jongueiros que não aceitavam esta inovação no Jongo: apegados a
uma herança mais tradicional do jongo resistiam à idéia de se tocar o Jongo com outros
instrumentos que não fossem os tambores.
Mestre Darcy ousou transpor as barreiras culturais e sociais e mostrou ao mundo
“erudito” seu saber, que não se deixou subalternizar: falava de “igual para igual” com os
diferentes. Sua sobrinha Dely Monteiro, herdeira mais direta de seus conhecimentos jongueiros,
rememora constantemente o pensamento fronteiriço do tio:
Meu tio era assim: se ele fosse num lugar, numa universidade e gostasse de uma
pessoa, ele já voltava par casa com essa pessoa, nos apresentava e essa pessoa
passava a tocar com a gente. As vezes, a gente ensaiava tudo direitinho e então,
ele chegava no dia da apresentação, com uma pessoa que a gente nunca tinha
visto e colocava para tocar, ou cantar. Isso deixava as gentes (referindo-se a si
mesma e a Lazir Sinval que são duas das Pastoras do Jongo da Serrinha) muito
chateadas. Aquilo acabava com a gente! Você sabe, cantar Jongo não é pra
qualquer um, e a pessoa chegava e se errasse, bem na hora? A gente tinha
medo, mas no final tudo acabava bem. Foi assim que a Luiza (outra Pastora)
chegou, e ficou. A gente não conhecia ela não e meu tio trouxe ela no dia que a
gente tinha uma apresentação e falou: ela vai cantar com vocês! eu e Lazir
quase “comemos ela viva”, mas ela cantou direitinho e nós deixamos ela ficar .
Dely ri da situação, Lazir concorda e Luiza se defende:
LXVIII
Eu conheci o Mestre Darcy na Escola de Música Villa Lobos. Ele ia muito ,
dava curso e etc; Um dia, vi um cartaz escrito “Oficina de Jongo com Mestre
Darcy do Jongo” e fui par ver o que era,. Na mesma hora, me apaixonei.
Aprendi rapidamente a tocar os três toques de tambores e me lembro que
Mestre Darcy ficou surpreso por eu tocar sem dificuldades o Caxambu, que é
um dos toques mais difícieis, o que faz a “virada” do Jongo. Depois, cantei
para ele e então ele me convidou, quase “convocou” para uma apresentação
que teriam naquele dia. Achei loucura, mas fui. As meninas (Dely e Lazir) me
olharam com uma cara feia, não gostaram de mim. Quer dizer, hoje entendo que
não era de mim que elas não estavam gostando, mas da situação em si. Cantei
com elas naquele dia e o parei mais. Estou no grupo até hoje e isso faz 18
anos.
Figura 9
Mestre Darcy do Jongo e seu inseparável tambor. Ao eleger palavras como
transgressão, criação, revolução e libertação, Mestre Darcy apostava nas fusões e misturas
culturais que podem vir a nos levar a significativas mudanças em nosso jeito de ser e estar com
o outro.
Neste enfoque, o que está em jogo é a questão da centralização e do poder do
conhecimento, que para Mestre Darcy, pertencia a todos, era de todo mundo. Não era um
conhecimento etnocêntrico que exclui, subalterniza, expropria o outro enquanto valoriza o seu
próprio saber.
LXIX
Esta foi uma das maiores heranças deixadas por nosso Mestre e em nossa prática diária
buscamos perpetuar este saber: nossa escola de Jongo transita por diferentes espaços culturais e
educativos e os resultados destes encontros fronteiriços tem contribuído bastante para o
aperfeiçoamento artístico e até mesmo profissional de nossos educando(as).
Recuperando a discussão entre as fronteiras híbridas dentro do cotidiano da escola
pública, preocupo-me sobremaneira com a complexidade das ressonâncias destas palavras
dentro do universo de escolarização da qual em menor ou maior grau, repito mais uma vez,
estamos inseridos: os níveis de hibridização e subalternização cultural e as possíveis
ressonâncias positivas e/ou negativas- nas vidas das crianças que como eu são originárias
das classes populares.
Falo isso, lembrando de algumas situações e debates que tínhamos em sala, sobre a
negritude e sua estética e beleza. Para trazer o tema à tona, propunha sempre que fizéssemos
alguns auto-retratos, tal e qual este ou aquele artista plástico que gostaria que eles tivessem
contato.
Depois do projeto iniciado, o resultado era que muitos, muitos mesmos, sendo negros, se
desenhavam brancos, com cabelos lisos e louros. Numa destas atividades provocadoras, uma
menina negra, a Rosângela que tinha uma situação familiar atravessada por estas questões de
mestiçagem muito forte: uma mãe mestiça e uma irmã, mais velha, filha de outro pai que era
branca de olhos claros contou-me que queria muito ter o cabelo igual de sua irmã mais velha,
porque quando sua irmã estava na janela seus cabelos balançavam, balançavam ao vento. E ela,
também ficava na janela e quando o vento batia, seu cabelo não balançava, o que a levava a
acreditar que tinha um cabelo “duro” e “ruim”.
O caso da Rosângela era mais grave, visto que era no seio de sua própria família que o
sentimento de desqualificação mais fortemente acontecia. Já explico: certa vez, conversava com
a diretora da escola sobre o comportamento agressivo da Rosangela, quando ela me falou um
dado familiar que eu o conhecia. Disse-me que apenas Rosângela era “largada” pela mãe,
pois a outra irmã mais velha, que havia estudado desde a Ed. Infantil no CIEP, sempre vinha
LXX
arrumada para a escola, principalmente os cabelos. Fica cil entender porquê para Rosângela,
seu cabelo a depreciava tanto: sofria na própria família ressonâncias deste sentimento de
subalternização tão fortemente arraigado em nossa sociedade.
Recentemente encontrei Rosangela na praia, catando latinha no Leblon. Vale ressaltar
que o Leblon fica muito distante de sua casa. Não estava só: viera acompanhada de umas
amigas e de seu irmão casula. Nosso encontro foi totalmente inesperado e que mesmo contente
em revê-la, saber que estava trabalhando novamente naquelas condições me preocupou.
Perguntei sobre a escola e ela me disse que estava tudo muito chato. Insisti para que ela
voltasse para a escola e ela me garantiu que voltaria. Passou. Dias depois, recebo um recado na
internet da professora da Rosangela: não havia voltado para a escola, com estava fazendo os
exercícios animadamente. Havia contado para todos da sala o nosso encontro na praia, inclusive
que tínhamos tomado sorvete juntas. A professora falou do quanto era forte o laço afetivo que
Rosangela tinha comigo e sugeriu que eu aparecesse na escola quando pudesse para
acompanhar melhor seus avanços e tropeços escolares.
Estive no CIEP algumas vezes e Rosangela não aparecia. Certa vez apareceu e logo
causou polêmica: estava com uma roupa inadequada para entrar na escola e teria que voltar para
casa. Criou-se um impasse: Rosangela disse que não tinha outra roupa para colocar, pois sua
irmã havia vestido a única calça comprida que possuía(isso podia ser “meia” verdade) e se
voltasse para casa, não poderia retornar por causa do ônibus da prefeitura que passava com
hora marcada (isso era uma verdade).
Mas, a decisão era irrevogável e por isso, pedi a direção da escola para conversar um
pouco com Rosangela antes que ela fosse liberada. Conversamos sobre várias coisas, inclusive
sobre prostituição, namoro e drogas. Constatei, através dos exercícios de leitura e escrita que
fizemos juntas, que Rosangela havia avançado muito pouco desde quando saiu da Turma de
Progressão em 2004. Estávamos em 2007 e ela ainda estava concluindo a ano do ciclo (que
corresponderia antiga série). Sua repetência era principalmente por faltas. Faltava tanto que
acabava eliminada!
A entrevista realizada recentemente por uma das últimas professoras de Rosangela no
CIEP, revela como a vida escolar desta menina era conflituosa e delicada:
Marisa:- E Rosangela, o que você tem a falar sobre ela?
LXXI
Simone:- Ela também lia, escrevia, tinha uma pratica de vida muito mais responsável que o resto da
turma. Ela aprendeu muita coisa com a gente, ela aprendeu a se comunicar, mas ela tinha uma questão
de que você tinha que cativar. Dependendo da maneira com que você falava com ela te colocava de
fora. Ela era agressiva como maneira de se defender, então eu me dava bem com ela, mas, o convívio
dela com as crianças da turma era difícil. Primeiro porque ela não aceitava regra, porque na casa dela
não tinha regra, ela vivia na rua. Ela acordava as 4:00 h. da manha pra buscar água pra mãe, quando
ela voltava estava quase na hora de ir pra escola. Ela era a única que passava, lavava, cozinhava e
arrumava tudo, e ainda tinha que tomar conta da irmã. Então se depois de tudo isso ela vinha pra
escola com uma roupa mais ou menos, meio sujo, e alguém falava “olha sua roupa está suja” ela ficava
revoltada. Então isso dificultava a convivência dela com as outras crianças.
Marisa:- Você me mandou um e-mail sobre a Rosângela. O que aconteceu?
Simone:- Ela havia encontrado contigo na praia do Leblon no final de semana. Lembra? Ela chegou
toda animada naquela semana, fazia os trabalhos, contou pros amigos que esteve com você. Acho que
se sentiu importante. Este encontro fez muito bem pra ela, mas depois de algum tempo, ela voltou a se
desinteressar e sumiu novamente. A rua tem muito atrativo.
Rosângela sentia-se enfraquecida por sua condição afro-descendente em sua própria
estrutura familiar que apenas reproduzia idéias que fazem parte do imaginário coletivo do povo
brasileiro: racismo, preconceito, sentimento de menos valia e inferioridade. Sobre a
complexidade destas ressonâncias dentro do universo de escolarização da qual em menor ou
maior grau, estamos todos(as) inseridos (as), é que se concentra a tônica desta pesquisa.
Ressonâncias estas, que reverberando em torno de nossa formação identitária, se manifestam
através destas inter-relações culturais dando “ora sinais de vida, ora de fraqueza”
(PRETTO,2005:138)
Figura 10
Rosângela escreve seu nome na parede da sala de aula
Turma do Jabuti/ Projeto Tangolomango/CIEP/2003
LXXII
O cabelo “duro” e “ruim” de Rosângela tinha várias razões: desvalorização social do
cabelo crespo e ondulado afro-brasileiro; tratamento químico inadequado que prejudica a
médio/longo prazo o cabelo que devia ser obrigatoriamente lisos, para os padrões de beleza
atuais; impossibilidade de uma manutenção higiênica do cabelo: falta d’água, falta de shampoo
e cremes que hidratam e cuidam dos fios. Mas, este discurso denunciava outras ideologias: um
discurso racista que, em menor ou maior escala, ressoa mascarado cotidianamente, falseado e
algumas vezes, instituído historicamente em nossa sociedade. A foto a seguir ilustra esta
experiência das crianças em relação a beleza e estética negra ou afro-descendente.
Então, a ferramenta de luta teria de ser a palavra. A conscientização a partir da palavra-
ação. E assim, esbarrávamos na questão curricular que passou a ser enriquecido com aulas de
penteado afro, onde fazíamos trancinhas, cucurucos, usávamos faixas e entramos em contato
com revistas especializadas em assuntos afros. Um mundo novo ia aos poucos se descortinando
em nossa sala de aula e as referências aos poucos, começavam a variar e se diversificar. Os
meninos também participavam: ajudavam nos penteados, ou aproveitavam para pequenas
higienes pessoais, como cortar a unhas, por exemplo. Falávamos de tudo um pouco: da
necessidade de cuidar dos piolhos, como da dificuldade de deixar os cabelos soltos ao vento
para secarem sem fungo etc. As mudanças foram lentas, mas aconteceram, ou pelo menos,
serviram como experiência de uma outra auto-imagem possível, que cada um poderá recuperar
em diversos momentos de suas vidas.
Ressonâncias estas, que reverberando em torno de nossa formação identitária
desemboca na discussão das ambivalências e práticas culturais que se misturam, se tencionam,
se entrecruzam e dão certos “nós” que ora enfraquecem, ora fortalecem as relações identitárias.
Esses “nós” ou cruzamentos, onde cada ponto e contra-ponto configuram os costumes, usos e
valores de nossa sociedade, podem nos dar algumas pistas sobre processos complexos de
negociação que estiveram/estão presentes de alguma forma na cultura ou culturas escolares
brasileiras.
LXXIII
Figura 11
Crianças penteando seus cabelos em sala de aula. Além dos “cocurutos” fazíamos
tranças e colocávamos turbantes em nossas cabeças. As crianças e adolescentes aceitavam fazer
“só para experimentar” mas dificilmente iam para casa com os penteados feitos em sala.
Turma da Capoeira/ Projeto Tangolomango/Escola Municipal Professor Gonçalves/2005
O ponto chave destas questões é que tal re-organização social demarca em torno do
currículo escolar, o que para determinados grupos sociais, para aquela turma, aquelas crianças e
adolescentes daquela comunidade, daquela escola, daquele espaço geograficamente e
simbolicamente determinado, e mesmo o que para determinada classe social e se tratando de
território geográfico, em pequena ou grande escala, é ou não é importante conhecer.
Com isso, percebemos a todo instante que as fronteiras do conhecimento estão desnudas
e flutuam de lado a lado, transitando entre pontos, onde o desconhecido e o conhecido, o saber
e o não saber oscilam e passeiam por diferentes lugares. Apesar deste esforço controlador sobre
nossas mentes e ações, estes pequenos aparatos coercitivos que tanto conhecemos já não
comporta mais aprisionar aquilo que o homem tem de mais precioso: o poder de saber, ou
saberes.
LXXIV
E a escola que por grande espaço de tempo, foi legitimada por determinado grupo social
como a única” produtora do saber, encontra-se muitas das vezes perdida, pois como nos alerta
PRETTO a “sala de aula explodiu” e talvez fosse revelador irmos descobrir o que resultou
desta explosão...
Como nos fala o ditado “O que era doce, acabou-se” e o que estava aqui em um instante
não está mais, mudou-se, transformou-se. E neste mundo de coisas e valores muitas vezes
fugidios, onde uma enxurrada de informações nos invade a todo instante, podemos continuar
nos questionando: Como fica o cotidiano da escola, e seus componentes curriculares? O que
muda, o que sai, o que entra, o que se misturou, o que permaneceu nestes tempos de incertezas?
Para falar um pouco mais sobre esta questão dos encontros e desencontros culturais
dentro do espaço escola, consideramos importante que esta mesma escola tenha como horizonte
uma visão mais ampla de educação, ou educações, que como nos fala Brandão, está em toda
parte e imbricado no próprio processo de ensinar e aprender do sujeito humano:
Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola,
de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com
ela; para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar, para saber,
para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida
com educação. Com uma ou com várias: educação ou
educações?(BRANDÃO, 2004:7)
Apoiando-me neste horizonte multifacetado das educações, podemos trazer algumas
questões que aprofundarão esta pesquisa, tais como: Como se deram estes
encontros/desencontros culturais na escola pública destinada as classes populares? E os
conflitos, como eles foram se configurando? Como são percebidos, re-interpretados e re-
significados os sentidos nos dias atuais? O que foi realçado? O que permaneceu? O que se
transformou? O que estes encontros ou desencontros culturais de diferentes classes sociais têm
LXXV
a ver com o problema de analfabetismo das classes populares no Brasil? E principalmente
parafraseando a cantiga de Caetano Veloso e Gilberto Gil Qual educação atende aos reais
interesses dos pobres, pretos “ou quase brancos quase pretos de tão pobres”?
Esta educação que a escola pública quantitativamente oferece ás classes populares vem
instrumentalizando os pobres, pretos “ou quase brancos quase pretos de tão pobres” a lutar
conscientemente sobre seus direitos de cidadão? Um cidadão que como nos fala os versos da
canção de Martinho da Vila “Assim não Zambi” sobrevive muitas vezes denunciando
opressões, maus tratos e descasos que se materializam das mais diversas maneiras:
Quando eu morrer vou bater lá na porta do céu
E vou falar pra São Pedro
Que ninguém quer essa vida cruel
Eu não quero essa vida não Zambi
Ninguém quer essa vida assim não Zambi
Eu não quero as crianças roubando
A veinha esmolando uma xepa na feira
Eu não quero esse medo estampado
Na cara duns nêgo sem eira nem beira
Abre as cadeias pros inocentes
Dá liberdade pros homens de opinião
Quando um nêgo tá morto de fome
Um outro não tem o que comer
Quando um nêgo tá num pau-de-arara
Tem nego penando num outro sofrer Assim Não Zambi (Martinho da Vila)
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Talvez então, possamos continuar buscando respostas que se aproximem da
complexidade da função social da escola tendo como suporte estas e mais algumas questões que
estão diretamente ligadas ao ofício do educador(a): Para que ensinamos? A favor de que ou de
quem? Ou como Freire preconizava que “tipo” humano queremos formar”? O que a cultura da
repetência nos revela? O que tentam nos dizer sobre o imbricado processo de ensinar e aprender
as crianças que não aprendem? E como fica a questão do conhecimento diante destes encontros
e desencontros em relação aos saberes das classes populares?
35
Samba cantado por Clementina de Jesus em “Clementina de Jesus e convidados” 1979/ EMI-Odeon.
LXXVI
LXXVII
1.4 – Se esta rua fosse minha, eu mandava ladrilhar
Na raiz da cultura da repetência, encontros e desencontros culturais
Encontramos esta preocupação na fala dos negros, que através de suas canções, - como
no ponto de Jongo Eu chorei” do Jongueiro Manuel Bambambam - desabafa: “Eu chorei, eu
chorava, era minha mãe que me acalentava(...) E a professora quando me reprovava, era
minha mãe quem me incentivava(...)”.
Convido o leitor/leitora a ouvir as vozes destes Mestres Jongueiros que discutem a partir
de seus lugares e instrumentos de resistência sobre o conhecimento e o que fazer com o
conhecimento. Narrativas orais que poderão possivelmente, nos ajudar a aprofundar estas
reflexões sobre Culturas Populares, Educações e Escolas: a fala da Vovó Maria Joana uma
mulher negra, semi-analfabeta, de sabedoria rezadeira e jongueira, que viveu e morreu no
Morro da Serrinha em Madureira e que ao ser questionada sobre o que fazer com o que
sabemos, afirmou que Não somos donos de nada, mas, tudo que sabemos, devemos passar a
diante”.
Vale a pena conhecer um pouco a trajetória de vida desta jongueira, Mãe de Santo, que
ainda hoje tem suas idéias perpetuadas pelos jongueiros e admiradores do Jongo em diversos
cantos do país e que tem algumas singularidades com minha história pessoal, visto que Vovó
Maria Joana nasceu em Valença/RJ, lugar em que passei grande parte de minha infância e teve
grande importância em minha formação identitária.
Situando melhor o leitor/leitora, Vovó Maria Joana Monteiro, nasceu em 24/06/1902 em
uma Fazenda no interior do estado do Rio de Janeiro chamada “Fazenda Saudade”. Esta
fazenda era vizinha de outra chamada “Fazenda da Bem Posta” , em Marquês de Valença/RJ,
onde seus padrinhos moravam. O nome desta fazenda inspirou , bem mais tarde, outro ponto
de Jongo que denuncia um pouco da vida cotidiana daqueles negros, onde o Jongo que é uma
dança circular e de umbigada levada pelo toque de três diferentes tambores, o Candongueiro, o
Caxambu e o Angoma-Puíta - fazia parte do inventário cultural daquelas pessoas. Foi nesta
fazenda que Vovó Maria Joana ouviu, ainda menina, pela primeira vez, o toque dos tambores e
conheceu o Jongo.
LXXVIII
Um pouco mais crescida, veio morar na cidade do Rio de Janeiro, e com 12 anos
trabalhava em casa de família. Casou-se aos 14 anos com Pedro Monteiro, jongueiro e músico.
Tiveram 14 filhos, mas somente dois sobreviveram: Eva e Mestre Darcy do Jongo. Morou
primeiro no morro da Mangueira onde antigamente também havia Jongo e depois foi morar
definitivamente na Serrinha em Madureira, onde se tornou uma das figuras mais emblemáticas
da sua comunidade. Iniciou-se na religião Umbandista e tornou-se uma Mãe de Santo na Tenda
Espírita Cabana de Xan em um espaço dentro se sua própria casa. Também era rezadeira
bastante requisitada na Serrinha. Foi integrante da escola de Samba “O Prazer da Serrinha” e
fundadora da Escola de Samba Império Serrano.
Figura 12
Babalorixá Vovó Maria Joana em seu terreiro na Serrinha Joana morreu em
27/02/1986, mas seus saberes continuam sendo re-passados através do trabalho diário que
acontece na Escola de Jongo da Serrinha.
36
Vovó Maria Joana nos fala que não somos donos de nada”, ou seja, na sua visão, o que
conhecemos só faz sentido, tem valor, se dele outras gerações os incorporarem. A resposta
apresentada pela Vovó Maria Joana propõe a quebra e ruptura de um paradigma capitalista em
que o conhecimento é “propriedade” de uns poucos e nos desafia a encararmos o conhecimento
como um patrimônio de todos e portanto, uma pertença coletiva. É contra o sentimento de
posse que encontramos muitas vezes dentro do espaço escolar que a fala da Vovó Maria Joana
se impõe: trata-se de uma subjetividade coletiva tencionando as relações no campo do poder de
saber.
36
História recolhida do livro “Jongo da Serrinha: do terreiro aos palcos” de Edir Gandra.
LXXIX
Saber este que não está em abstrato, está encarnado nos sujeitos concretos que compõe o
cotidiano da escola. Saber que é meu e é de todo mundo. Uma pertença coletiva diferente do
sentimento de posse que é essencialmente capitalista. E por ser de todo mundo eu quero que
seja disseminado. Quando penso em disseminar, me aproximo da raiz etimológica que é
“semear”. Semear é um pouco mais que “passar a diante”, visto que isso a escola, muitas vezes
faz. Semear é deixar sementes que podem vir a germinar e crescer e frutificar e enraizar, e
mais uma vez lançar sementes que se misturam em novas terras e geram novos frutos. Semear
foi o que Vovó Maria Joana e seu filho Mestre Darcy do Jongo fizeram na Serrinha:
disseminaram seus saberes para que as gerações futuras pudessem se “alimentar” delas também.
Mas, este é um pensamento contra-corrente. Uma postura de resistência cultural a um modelo
hegemônico de educação, pois pressupõe o desenvolvimento de valores educacionais vivos,
acolhedores e enraizantes.
Sabemos portanto, da relevância no processo de ensino-aprendizagem de se
contextualizar a realidade regional, familiar e individual de cada criança. E nisso a herança
cultural singular e coletiva pode se tornar uma ferramenta importante no ato de educar.
Entretanto, o que se observa no Brasil é uma des-conexão curricular decorrente sobretudo, de
uma visão estagnada, pouco criativa e pouco ousada, e de uma herança colonizadora(onde o
saber do outro é inferior) que afetaram o próprio valor do papel da educação na sociedade
brasileira.
A educação e conseqüentemente, a escola, apontada pela macro visão governamental
como o elixir mágico para todos os males da sociedade, acaba na prática, desvalorizada no
ranking dos destinos orçamentários, e planejamentos estratégicos no que diz respeito às
demandas regionais de conhecimento (demandas essas de escolas públicas técnicas
profissionalizantes de toda sorte: agrícolas, agroflorestais - no país que parece desconhecer que
tem a Floresta Amazônica - , petroquímicas, e outras tantas de necessidades pontuais) e
principalmente a desvalorização dos atores escolares.
Esses fatores afetam e praticamente inviabilizam o trabalho do professor brasileiro, que
desmerecido e negligenciado na sua remuneração, na continuidade da sua formação, na
discussão sobre as reformulações e adequações do(s) currículo(s) a serem trabalhados em
diferentes regiões e necessidades de um país de território continental, se vê cada vez mais
acuado diante dos conflitos originários no seio de nossa própria sociedade e que invadem
inevitavelmente o território escolar. Como produto final, a escola retorna para sociedade um
inevitável índice de reprovação e exclusão escolar altíssimo: dentro da América Latina, o Brasil
só não é pior que a Bolívia.
37
37
Disponível em: Jornal o Globo/ Setembro/2007.
LXXX
O espaço físico escolar , por sua vez, é o retrato fiel da retórica e da falta de estratégia
por parte dos poderes executivos de todas as esferas e como conseqüência dessa sabotagem
educativa observamos que ao longo da trajetória educacional brasileira, projetos
educacionais que começavam a dar sinais que poderiam dar certo - como os CIEPs - foram
abandonados, sucateados. Falo isso, lembrando especificamente de minha parca experiência
no CIEP que trabalhei. Logo assim que cheguei, no ano de 2002, fui trabalhar em uma sala
ampla, que logo depois descobri que era a sala utilizada pelos educadores(as) de artes
plásticas preconizado no projeto inicial quando o CIEP funcionava em horário integral.
Nesta sala, desenvolvemos o projeto Tangolomango por dois anos e este espaço físico,
atendia perfeitamente as necessidades de nosso currículo escolar: era ampla e arejada
possibilitando o dinamismo de nossas aulas, além de ter uma pia para os trabalhos de tinta e
barro e até mesmo um bebedouro em sala.
Pois bem, com o crescimento assustador do número de crianças matriculadas na
escola, a solução da Prefeitura foi ampliar o número de salas dentro do próprio CIEP. Com
isso, foram construídas mais cinco salas de aulas de caráter provisório no pátio coberto do
CIEP escola, e a estas salas de aula seriam destinadas as dez turmas de Progressão existentes
na escola. Fiquei incomodada logo de início com aquela determinação, por duas razões: a
primeira é que utilizávamos freqüentemente aquele espaço para nossas aulas e brincadeiras e
a segunda é que teria que trabalhar em uma sala sem janela. Minha indignação e
reivindicação com a diretora foi grande, porém inútil: - Quero sala com janela! –
argumentava. Como descrever aquela sala “provisória” em que fui obrigada a trabalhar por
dois anos? Era um quadrado feito de divisórias – que mais lembrava um escritório com suas
paredes cinzas – com um quadro verde preso na parede e um gradeado pequeno próximo ao
teto em apenas uma das paredes para não sufocarmos com tanto calor. Dois anos depois, foi a
vez do campo de futebol que também era um de nossos espaços preferidos na escola:
construíram uma outra escola dentro deste espaço, confinado as crianças e adolescentes cada
vez mais ao espaço da sala de aula.
Essa experiência, vivida no microcosmo de uma escola municipal da cidade do Rio de
Janeiro, é um fato que vai se somando a inúmeros outros casos que constituem a política do
“faz-de-conta” da educação no Brasil: o governo faz-de-conta que constrói e mantém
decentemente as escolas e pagam bem os professores, os professores (em sua maioria) fazem de
conta que ensinam e aprovam (ou reprovam) e os alunos (aqui vistos como a-lunos mesmo)
LXXXI
fazem de conta que são alfabetizados e aprendem. Não é saudosismo, nem defesa político-
partidária, mas o educador Darcy Ribeiro tinha um projeto consistente e realmente
possibilitador de transformações nos extratos sociais a partir da educação. Um projeto que,
desfigurado e destituído de verbas e atenção públicas minou a esperança de muitos educadores,
dentro do qual me incluo, de desenvolver um trabalho educacional efetivo de melhor qualidade
para todos.
Finalmente, o que falar sobre aquele que deveria ser a personagem principal do universo
escolar: o educando. Destaco a seguir, uma série de fatores que ao meu ver favorecem o sujeito
a (des)conectar-se da possibilidade de uma educação libertadora que vai desde a má
distribuição de renda brasileira (tão negativamente notória), à falta de planejamento familiar
(que fere interesses religiosos e políticos); à insistência de propagandas apelativas alienantes
que geram a formação de consumidores em potencial e consumidores frustrados (excluídos), o
meio ambiente degredado (falta de saneamento básico e condições mínimas de habitação,
locomoção, saúde e alimentação saudável), e por fim, o não acesso aos bens culturais da
sociedade (cinema, teatro, lazer, praças e parques de qualidade, museus e centros culturais etc).
Estes fatores aparecem de maneira contundente no filme “Pro dia nascer Feliz”
38
, onde os
depoimentos de alunos e professores deixam escapar o quanto a cultura de repetência na
educação brasileira está entrelaçada também com o investimento insuficiente, sério e maciço
no ensino fundamental e médio no Brasil.
Aprofundando mais esta questão, reporto-me ao desabafo indignado de Cristóvam
Buarque que em artigo ao Jornal “O Globo” causa polêmica ao afirmar que “o Brasil é um
incinerador de cérebros”:
Ao nascer, cada ser humano traz o imenso potencial de um cérebro vivo e
virgem. Como um poço de energia a ser ainda construído: pela
educação. No Brasil, treze porcento dos adultos são analfabetos, apenas
trinta e cinco porcento concluem o ensino médio; destes, só a metade tem
uma educação básica com qualidade acima da média. Portanto, oitenta e
dois porcento ficam impedidos de escrever, todos os livros que
escreveriam o queimados antes de escritos. Como se o Brasil fosse um
imenso crematório de inteligência.
As conseqüências são perfeitamente perceptíveis: basta olhar a cara da
escola pública no presente para ver a cara do País no futuro. Apesar de
nossos quase 200 milhões de cérebros, o quinto maior potencial
intelectual do mundo, o Brasil continuará a ser um país periférico na
produção de conhecimento. Da mesma forma como a China regrediu
intelectualmente depois de Shih Huang Ti; a Alemanha, com Hitler; a
Península Ibérica, com a Inquisição; o Brasil está perdendo o potencial
de seus cérebros interrompidos. O resultado já é visível: ineficiência,
atraso, violência, desemprego, desigualdade, tolerância com a corrupção
e a contravenção. Um país dividido por um muro da desigualdade que
separa pobres e ricos; e separado das nações desenvolvidas.
39
38
“Pro dia nascer feliz” de João Jardim, Brasil, 2006.
39
Disponível em: http://cristovam.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=173&Itemid=2
LXXXII
O texto continua em tom premonitório: “Ou o Brasil se educa ou fracassa” e mais à frente,
o autor aponta para a necessidade de educarmos a todos, sem exceção, ou melhor, sem exclusão.
Este é o desafio da escola pública atual: transpor os muros que separam os que aprendem dos que
não aprendem, facultando a todos indiscriminadamente o direito ao conhecimento. Conhecimento
este que é sempre múltiplo, plural, dinâmico, vivo.
Para que este paradigma acima proposto, se configure no cenário educacional brasileiro,
algumas rupturas tornam-se indispensáveis. Ruptura principalmente, com este currículo que
universalmente se apresenta e que está interligado e responde aos interesses de uma visão
utilitarista da educação: aliado cada vez mais a uma política econômica de qualificação para o
mercado de trabalho, gera sujeitos desconectados de seu dia-a-dia, de sua cultura local que vão
aos poucos esquecendo de seus saberes e incorporando outros, que muitas das vezes acaba sem
sentido, sem significado. Falamos de um currículo pensado e selecionado para atender a
manutenção da ordem vigente, portanto perigoso e alienante.
Brandão, citando Levi-Strauss, compreende a seletividade do processo de aprendizagem a
partir das palavras “guardar e esquecer” defendendo a idéia de que “o enriquecimento da pessoa
é o resultado de empobrecimentos inevitáveis de outros conhecimentos e outras habilidades
40
.
(BRANDÃO,2004:166). Então, estamos falando de uma maneira bem ampla da
necessidade da
lembrar e esquecer que são atribuições de nossa
memória
que filtra, seleciona, armazena, retém e
esquece. É a partir de nossa memória que são formadas nossas experiências e referências
individuais e coletivas.
A palavra memória, de origem latina, derivada de menor e oris, e significa “o que lembra”
. Buscando ampliar a compreensão sobre a memória, descubro que ela é:
(...) uma construção e, como tal, é perpassada, veladamente, por mediações que
expressam relações de poder que hierarquizam, segundo os interesses
dominantes, aspectos de classe, políticos, culturais, etc. Isto não é produto do
acaso; é sim, resultado da relação e interação entre os diversos atores
históricos em um determinado momento conjuntural. (Enrique Serra Padrós)
41
Trabalhando na perspectiva de que não memória sem esquecimento e de que lembrar e
esquecer são ações interligadas, que interagem com diferentes interesses e visões de mundos,
podemos questionar: a quem interessa a seleção do que as classes populares devem lembrar ou
40
In Levi-Strauss, 1983: 361-362.
41
Enrique Serra Padrós Usos da memória e do esquecimento na História
Departamento de História – UFRGS Disponível
em: http://coralx.ufsm.br/grpesqla/revista
LXXXIII
esquecer? E como fica a questão dos silenciamentos e esquecimentos impostos por determinada
classe social? Lembrar e esquecer “o quê” e “por quê”? O que lembrar e o que esquecer tendo
como referência as múltiplas manifestações culturais em nosso país?
Falamos especificamente de possibilidades: como lembrar o que não se conhece ou o que
lhe foi negado conhecer? De qual conhecimento estamos falando? Ressaltamos mais uma vez, o
caráter seletivo do currículo escolar e sua complexidade política e ideológica também.
Recuperando a dimensão subjetiva da palavra esquecer, lembro-me que esta questão
permeava por outro viés minha intervenção educativa na sala de aula: era preciso fazer com que
as crianças e os adolescentes fossem capazes de “esquecer” sucessivas experiências negativas que
tiveram com a aprendizagem da leitura e escrita ao longo de seu processo de escolarização.
Experiências não apenas negativas, mas até mesmo traumáticas que marcaram suas relações com
a escola e seu espaço físico e suas carteiras e cadeiras, murais, cadernos, livros, lápis, borrachas
e tudo mais que viesse a lembrar os exercícios escolares. Tais experiências eram tão marcantes
em sua subjetividade, que eles passavam a rejeitar toda e qualquer forma de aproximação com
este tipo de aprendizado. Falas do tipo “eu não consigo, não vou nem tentar” eram comuns e
precisavam ser pedagogicamente des-construidas.
Mas, por diversas vezes, as falas infantis denunciavam vontade de aprender, curiosidade
em descobrir coisas novas, vontade de se esforçar para entender “as letras” como diziam, mas
como haviam feito inúmeras tentativas sem sucesso seu fracasso se tornava público e era
explícita a vergonha que tinham de sua “incompetência”. Para não se frustrarem novamente,
desistiam, desacreditando de sua própria capacidade de aprender. Toda nova aprendizagem exige
esforço e uma certa confiança de que seremos capazes de aprender: tocar um instrumento,
aprender uma dança, uma receita diferente, aprender a desenhar, a cantar, aprender uma segunda
língua etc. são atividades que exigem um certo nível de autoconfiança, e quando não a temos, o
contato com as pessoas à nossa volta, encorajando-nos ou desencorajando-nos pode fazer muita
diferença. No caso das crianças que repetem sucessivas vezes, palavras encorajadoras atuam
como um “gerador” de novas energias, que ilumina e fortalece pontos fragilizados do sujeito
como sua auto-imagem, agora negativa em relação ao conhecimento, ajudando-os a re-
descobrirem que são capazes de voltar a aprender.
Isso se deu de uma maneira muito efetiva com Daniele, uma menina da “Turma da
Capoeira” da Escola Municipal Professor Gonçalves, no ano de 2005. O histórico que me fora
LXXXIV
passado ao chegar na escola era de que Daniele não lia nem escrevia nada além do nome.Isso era
uma meia verdade! Aos poucos, fui descobrindo que Daniele sabia ler muito mais do que a escola
acreditava, mas realmente não conseguia ainda se comunicar através da linguagem escrita.
Esta era uma escola diferente do CIEP a qual havia trabalhado: era uma escola de horário
integral e eu dividia a turma com uma outra professora na parte da tarde, por isso, a nota tinha
que ser acordada entre nós duas. Respeitando as diferentes concepções de avaliação, currículo e
escola, quero trazer o desabafo rememorado de Daniele que me deixou sem fala, me fazendo
pensar sobre como ajudar as crianças das classes populares a apagar experiências negativas
dentro da escola.
Daniele havia tirado o conceito “I” de “Insuficiente” durante os dois primeiros semestres.
Desde o segundo bimestre, eu havia sinalizado que Daniele lia e por isso, podíamos apostar mais
na valorização deste saber, buscando alternativas para que avançasse na construção escrita
também, visto que leitura e escrita são aprendizados diferentes: podemos ler e não escrever, mas
para escrever, é preciso saber ler. Mas, era sempre vencida: Daniele não lia para outras pessoas,
ficava nervosa, abaixava a cabeça, não saía. Para mim, lia baixinho, quase sussurrando ao meu
ouvido. Hoje penso que poderia ter gravado sua leitura, ter investido mais para entender o seu
“não saber”, aprender com ele, problematizá-lo.
Chegando a hora de conceitua-la no 3º bimestre, minha opinião era de que, pelas razões
que já expus acima, ela ficaria com “R” de “Regular”. Acreditava que o acreditar nela poderia ser
uma estratégia, um divisor de mares, uma “injeção de ânimo”, um “vamos lá” ou um “nós
acreditamos que você consegue”, ou qualquer coisa parecida, que ajudasse Daniele a re- começar
a acreditar que poderia conseguir. Buscava fazer com que sua auto-confiança aumentasse e ela
continuasse se esforçando a aprender.
LXXXV
Figura 13
Daniele é esta sorridente menina de cabelos compridos e uma flor de crepon amarela
dançando bem na frente da câmera. Dançando, buscávamos outras formas de potencializar
nossos corpos e era através da música e da dança, da celebração da festa e da alegria que nos
conduzíamos a novas aprendizagens. (Turma da Capoeira/ Projeto Tangolomango/2005)
Porém, fui vencida pelo medo: medo de ousar, de transgredir, de criar outra forma de
avaliar, de acreditar que ela poderia passar a fazer diferente e depois dar errado mais uma vez.
Disseram-me que com esta atitude, estaríamos criando “falsas esperanças” para Daniele e isto iria
prejudicá-la mais do que ajuda-la. Medo de tentar outras formas de recuperar Daniele. E ela
acabou ficando com “I” de insuficiente pela terceira vez. Acredito intuitivamente na força do
número três. Aquela nota apontava apenas uma possibilidade para Daniele: a mesma experiência
negativa com o espaço escolar.
Tinha por hábito, além de fazer com as crianças uma auto-avaliação sobre o rendimento
deles/delas durante o respectivo período letivo, conversar individualmente com cada criança
sobre o seu conceito, antes de entregar os boletins para os responsáveis. E quando contei a ela
sobre seu conceito, recordo-me que ouvi esta menina se expressando mais ou menos assim: - Mas
eu venho me esforçando tanto!
E depois disso, Daniele emudeceu, e não avançou mais. Era como se eu lesse em seus
olhos: de que adianta eu me esforçar, se nunca ninguém vê, não reconhecem? Claro que expliquei
a ela que eu via e percebia seus avanços, mas...para a escola ela tinha que mostrar mais. Meus
pedidos foram em vão: Daniele foi demonstrando mais e mais desinteresse pelas aulas e por fim,
ficou retida mais uma vez. Levou “I” no boletim o ano inteiro.
Trabalhar hipoteticamente é arriscado e perigoso. O que poderia ou não poderia acontecer
se ela tivesse tirado um “R” no terceiro bimestre jamais saberemos. Se a possibilidade de tentar
LXXXVI
nos foi negada, reconheço hoje, minha fragilidade em defender minhas idéias intuitivas. Hoje, se
pudesse voltar atrás, com maior convicção de estar superando a subalternização, minha e dela,
apostaria novamente no “R” de Daniele.
Deixando um pouco a palavra “esquecer” e retomando o fio da palavra “guardar”,
lembro-me de outro poeta, o Antonio Cícero. A boniteza de seus versos me faz pensar que o que
guardo comigo, me emociona, me atravessa, me toca. Acredito que, por me tocar, por mexer com
minha emoção, buscava levar para sala de aula, fatos e situações do “universo temático infantil”
para que eles se emocionassem e se permitissem serem “atravessados” pelo conhecimento
também:
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
42
Este desejo de guardar o saber sensível, olhando-o, vigiando-o, admirando-o, iluminando-
o e sendo dialogicamente por ele iluminados inspirava as atividades que vivíamos em sala. O que
queríamos guardar e o que precisávamos esquecer são perguntas que me faço até hoje e a cada
dia, encontro mais e mais respostas reveladoras sobre este assunto, onde o que vai “ao encontro”
pode inversamente ir “de encontro” ao que as crianças e adolescentes das classes populares
querem e precisam guardar ou esquecer.
Rememorar estes momentos ampliando a complexidade que tais encontros, mas também
desencontros apresentam, incorporando à minha fala, conceitos como hibridismo e invasão
42
Antonio Cícero(Guardar / Record: 1997
LXXXVII
cultural, fluxos e refluxos, zonas fronteiriças etc. desenvolvidos por Hanners e Chartier me leva a
aproximar mais uma vez da percepção de que se a da cultura popular é um conceito erudito, um
constructo erudito, podemos questionar de forma mais contundente: como são reinterpretadas e
utilizadas estas manifestações e produções populares dentro das escolas? E como são percebidas
as zonas fronteiriças entre os saberes que acontecem constantemente no interior da sala de aula?
Partindo do princípio de que contemporaneamente, encontramos em nossa sociedade,
uma não legitimação, uma negação e até mesmo o ocultamento de certos “saberes” que, por não
serem originários de determinados “lugares oficiais de saber”, acabaram por ficar a margem
silenciados e excluídos da sociedade, focar na localização geográfica deste saber pode ser um
caminho de descentramentos importantes para a práxis educativa.
Este argumento encontra eco nos estudos de Walter D. Mignolo sobre as questões
referentes a “geopolítica do conhecimento” chamando-nos a atenção para a necessidade, de
desconstruirmos determinadas crenças ligadas a “colonialidade do poder” e a posição
subalterna que os conhecimentos produzidos por paises intitulados como Terceiro Mundo
ocupam no cenário mundial. Os países periféricos são legitimados como lugar de cultura, mas
não com lugar de “produtores de conhecimentos”, como nos chama a atenção o referido autor.
Acompanhando a leitura de seus estudos, percebemos que no passado, era preciso criar
razões para a colonização, explicá-las criando uma narrativa que desse respostas a divisão do
mundo entre regiões e povos cristãos e pagãos, civilizados e bárbaros, modernos e pré-
modernos e desenvolvidos e subdesenvolvidos, todos eles projetos globais mapeando a
diferença colonial”(Mignolo,2003:143). Na geopolítica mundial, somos paízes periféricos que
apesar de atualmente sermos reconhecidos como produtores de culturas, muitas vezes vista
como exótica e fascinante, ainda não temos o reconhecimento de também produzimos
conhecimentos e fazemos ciência.
Este argumento também é válido, em uma escala micro para os processos de
“colonialização escolar” que mascaradas sob diversas formas, encontramos ainda dentro da
escola. É válido porque é dentro da escola que o menino ou a menina aprende desce cedo que
aquele é “o lugar” instituído de saber e se o seu saber tem ou não lugar naquele espaço. Mas
nem por isso, ele ou ela deixa de transgredir e buscar maneiras de subverter a ordem. Não são
LXXXVIII
totalmente passivos nem totalmente ativos. Oscilam como no verso “eu não sou eu nem o outro,
sou qualquer coisa de intermédio
43
”.
Então podemos nos perguntar: que lugares fronteiriços são esses em que muitas vezes
nos encontramos? E como isso repercute na sala de aula, dentro dos diferentes espaços
escolares e diferentes classes sociais? O saber do homem do campo, por exemplo, não é
científico? E o que dizer das rezadeiras e dos Pais de Santo espalhados por este país? O saber
das parteiras não tem cientificidade? O que sabem sobre as folhas e o poder de curar através das
plantas?
A efeito de demonstração, trago uma reportagem sobre as parteiras/rezadeiras da região
do Amazonas: sábias mulheres que usam técnicas de massagens com unentos à base de
gorduras de animais e óleos vegetais como a andiroba, cânfora, copaíba, casca de bartimão,
verônica, folhas de hortelã do maranhão etc. Usam Chá de Cominho para aumentar as
contrações e Chá de Sete Grelos do Ingá para controlar a hemorragia e conhecem a fundo as
ervas que ajudam a descolar a placenta. De maioria predominantemente analfabetas, estas
mulheres utilizam lascas de bambu e fibras para cortar o cordão umbilical dos recém nascidos e
entoam cantigas indígenas, misturadas com rezas e preces às entidades Católicas. Assim diz a
reportagem:
Cerca de 920 mulheres, indígenas, caboclas e negras do Estado do Amapá,
vivem diferenças culturais, lingüísticas, porém, em comum elas tem uma
"vocação", são parteiras tradicionais, com diferentes técnicas e orações na
hora do parto. São donas-de-casa, pescadoras, agricultoras e extrativistas de
castanha, que deixam seus lares para auxiliar as parturientes a dar à luz,
sempre permanecendo com elas mais sete dias depois do nascimento.
É a região do País, que tem a maior ocorrência (88%) de partos normais. O
índice médio de cesarianas é 12%, abaixo da marca de 15% apontada como
aceitável pela Organização Mundial de Saúde (DM5).
O Amapá possui cerca de 600 mil habitantes, num território de 144 mil Km
quadrados e uma das mais baixas densidades demográficas do Brasil: 2
habitantes por km quadrado. O Estado tem somente 16 municípios e o possui
hospitais suficientes para atender à sua população.
Recebem como pagamento um 'bocado' de milho ou outro cereal, uma galinha
ou até mesmo uma pequena quantia de dinheiro de R$ 10 a R$ 40. Mas muitas
se recusam a receber qualquer tipo de pagamento, pois acreditam terem sido
escolhidas por Deus para a arte de "puxar barriga" e "pegar menino".
43
Adriana Calcanhoto em “O outro”.
LXXXIX
No período (7 dias), em que permanecem com as es, elas lavam fraldas,
preparam refeições leves, fazem massagens para que a barriga da parturiente
volte ao lugar. Ensinam a não comer comida que prejudica a saúde da mãe e do
bebê, como jacaré ou capivara. Orientam a comer coisas mais leves como
galinha com caribé, que é uma farinha coada com água, sal, manteiga e alho.
Os cuidados e a dedicação da parteira ocorre até que a mãe se restabeleça para
enfrentar novamente os afazeres domésticos.
Estas parteiras, também cumprem outra importante função social: são elas que
fazem o cadastro de nascimentos nos povoados.
44
Qual o lugar destes e tantos outros saberes tidos como “populares” ou não científicos
dentro de nossa sociedade? E como a escola dialoga com estes saberes? O que é científico e o
que é popular? Onde o encontro “das águas” as “fronteiras híbridas”? Qual a escola que formou
estas mulheres parteiras, rezadeiras, curandeiras? Cadê os seus diplomas? Quem legitima ou
não o seu ofício?
Voltamos a falar mais uma vez sobre saberes híbridos, identidades multifacetadas ou
morte e vida ou vida e fraqueza como nos fala Pretto.
E de fato, é também lá, no interior da escola, que determinados saberes tidos como
universais são transmitidos de forma hegemônica, em detrimento de outro. A exemplo do
projeto global de colonialidade do poder que sofremos na América Latina, o conhecimento
provém de “certas línguas e vem de certos lugares, como nos fala Mignolo.
45
A este
fenômeno, Mignolo denominou de “colonialismo interno” e está intrinsecamente envolvido
com o contexto político e econômico de nossa sociedade. Colonialismo este que atravessa a
escola e seu sistema de escolarização como um todo, onde a cultura do outro é tida como
inferior, subalterna, estranha e conseqüentemente, invisibilizada.
E independente da classe social que você ocupe, em termos globais, continuamos
sendo, aos olhos dos países ditos como mundo” latino americanos subalternizados. E a
escola, como um sistema que se propõe ser universalizante , pode ter alguma coisa a nos dizer
sobre isso: rebaixamento do ensino, desqualificação do educador, pouco investimento na
formação de leitores, pouca produção textual autônoma que nos levam, muitas vezes a ficar em
44
Escrito por Da Redação, Rui Martins em Outubro de 2004. disponível em: www.brazil-brasil.com/index.
45
Walter D. Mignolo em sua entrevista intitulada “lãs políticas Del conocimento y colonlalidadd Del poder”.
XC
“desvantagem” quando nos deparamos com estudantes de determinadas escolas, de
determinados países e por aí vai.
Assim, tal hegemonia curricular, coloca a escola muitas das vezes no lugar que elegem
uns saberes e marginaliza outros, dando voz a umas histórias e silenciando outras. Afinal de
contas, que histórias queremos contar? Falando mais uma vez em culturas e educações,
recuperamos a fala de Brandão, que expõe sua opinião sobre o assunto:
A educação do homem existe por toda parte e, muito mais do que a
escola, é o resultado da ação de todo o meio sociocultural sobre os
seus participantes. É o exercício de viver e conviver o que o educa.
E a escola de qualquer tipo é apenas um lugar e um momento
provisórios onde isto pode acontecer. Portanto, é a comunidade
quem responde pelo trabalho de fazer com que tudo o que possa ser
vivido-e-aprendido da cultura seja ensinado com a vida – e também
com a aula – ao educando. (BRANDÃO, 2004:47).
Este exercício de convivência - onde as experiências e trocas culturais se misturam, se
permeiam aparece fortemente dentro da cultura da escola, onde fica cada vez mais claro o
choque, o embate e os conflitos culturais: de um lado a cultura formal da escola, com seus ritos
de passagem, seus currículos universais e práticas disciplinarizantes e de outro, a cultura da
criança, seus valores e seus saberes, suas crenças e modos de ver e estar no mundo. Se
pretendemos construir uma escola emancipadora, não podemos mais falar em Educação e sim
em Educações e suas múltiplas formas de expressão, reconhecendo inclusive que existem
“outros” ecossistemas educativos que educam, assim como as escolas educam também. Um
exemplo do que nos fala Brandão, observamos na foto a seguir, um menino de nossa Escola de
Jongo ensinando os passos do Jongo da Serrinha a uma professora Angolana que veio ao Brasil
para visitar e conhecer nossa escola:
XCI
Figura 14
Um exercício de “convivência” que educa através da vida cultural de sua comunidade:
Leandro (12 anos) ensina o Jongo para uma professora Angolana que veio aprender o Jongo
em nossa Escola. Arquivo da Escola de Jongo da Serrinha/2007.
Como pano de fundo de nossa pesquisa, observamos a necessidade de uma intervenção
pedagógica que legitime outros saberes tal e qual foi pensado por Freire:
É que indiscutivelmente, uma sabedoria popular, um saber popular,
que se gera na pratica popular que o povo participa, mais, às vezes o que
está faltando é uma compreensão mais solidária dos temas que compõem
este saber. (FREIRE, 1989).
Acredito que a necessidade deste diálogo entre saberes, que se dá independentemente de
nossa vontade, de maneira constante no espaço escolar, seja um desafio aos educadores(as)
preocupados em desenvolver um olhar sensível à multiplicidade cultural ao qual todos nós
estamos inseridos, instrumentalizando as classes populares para que sejam cada vez mais
capazes de não apenas armazenarem conhecimentos, mas utilizá-los como instrumento de luta e
revolução.
Conhecimentos estes que não dialogam com a ineficiência e os perigos de uma educação
“bancária” que ainda se apresenta dentro de nossa sociedade.
Dar voz a outras histórias é um caminho ou o início de um caminho possível de
recuperação identitária e fortalecimento das classes populares, seus saberes e dizeres, mas, é um
XCII
exercício de descentramento perigoso e ousado. Freire , abordando o assunto, também é
contundente em afirmar que: A questão está em que pensar autonomamente é perigoso
(FREIRE, 2005:70).
Perigos que como nos mostrou o filme “Quanto vale ou é por Quilo?
46
repercutem em
nossa sociedade deste a época da colonização. Será que, em uma proporção micro, não somos
nós educadores(s) os agentes reprodutores deste pensamento “colonizante” também?
Voltemos a Brandão que acrescenta novos olhares para esta discussão:
Dentro da cultura do povo há um saber: no fio da história que torna este saber
vivo e continuamente transmitido entre pessoas e grupos, há uma educação. É a
partir destas redes de trabalho popular que o educador popular deve situar seu
trabalho através da cultura. Ele não tem o direito de invadir, como um
colonizador bem intencionado, estes domínios de educação e saber da cultura
do povo. (BRANDÃO, 2004:97).
A incorporação dos saberes populares no currículo formal da escola como uma
alternativa de instrumentalização e fortalecimento das classes populares, pode ser uma
estratégia pedagógica importante para a elaboração de uma educação voltada para o
desenvolvimento humano.
Principalmente por estarmos em uma sociedade onde encontros e desencontros culturais
tiveram como objetivo transformar o “outro” em “eu”(BRANDÃO, 2004: ). Até que ponto, em
prol da formação de um sujeito bem “educado e culto”, nós também não forçamos o menino e
a menina a “esquecer” seus saberes e a incorporar nossos saberes, ou seja, transformar o
“outro” no que eu acho na maior das boas vontades que é melhor para eles, tal e qual
fizeram os Jesuítas que aqui chegaram para catequizar os índios sem almas, para salvá-los? De
qual educação estamos falando? Dentro de qual cultura?
Manter este sentimento de pertencimento no horizonte educacional é um desafio
instigante, que se contrapõe a modelos de uma escola-fábrica-fordista” (PRETTO,
2005,p.141) em que pessoas são vistas como peças, engrenagens, abstraídas, esvaziadas de seu
contexto sociocultural. Assim, o sujeito cada vez mais desconectado de seu inventário de
46
Quanto vale ou é por quilo?” Filme brasileiro/2005. Diretor: Sérgio Bianchi.
XCIII
saberes pode vir a perder o sentido do fazer sabendo e do saber-se fazendo. Com a perda do
sentido que orienta o fazer e a ão dos sujeitos, percebemos dentro do contexto escolar uma
inadequação, cada vez mais crescente entre a vida que as pessoas das classes populares querem
ou não querem, sobretudo levando em conta as dinâmicas e movimentos de um mundo em
constante transformação.
Processo este, que entranhado em crenças e valores eurocêntricos em um primeiro
momento e norte-americano atualmente, acaba por reforçar no dia-a-dia este sentimento
negativo quanto a sua própria etnia e traços identitários e brasileiro.
XCIV
2 – VIVA EU, VIVA TU, VIVA O RABO DO TATU
Re-descobrindo a Cultura Popular e reconstruindo a consciência da negritude:
como pessoa e como educadora
“Vapor berrou na Paraíba,
chora eu, chora eu Vovó.
Fumaça dele na Madureira,
e chora eu.
O vapor berrou piuí, piuí.
Ô irê, irê, irê,
ô irê, irê, irê .”
(Vapor da Paraíba/Vovó Tereza)
47
“Viver é muito perigoso, seu moço!”, já alertava o jagunço Riobaldo em Grande Sertão:
Veredas. Concordando com o pensamento do personagem de Guimarães Rosa, percebo neste
momento que não apenas viver é perigoso mas, escrever sobre as experiências vividas também.
O relato autobiográfico apresenta armadilhas, ou certas ilusões que foram pensadas por Roger
Chartier:
Outro aspecto da ilusão biográfica ou autobiográfica é pensar que as coisas são
muito originais, singulares, pessoais, quando são, na verdade, freqüentemente,
experiências coletivas, compartilhadas com as pessoas pertencentes a uma
mesma geração. Ao fazer um relato autobiográfico é quase impossível evitar
cair nesta dupla ilusão: ou a ilusão da singularidade das pessoas frente às
47
Vovó Teresa conta nesse jongo a sua ida de trem de Paraíba do Sul para o subúrbio de Madureira. Vendo a fumaça
do trem de ferro “Maria-Fumaça”, ela lembrava das chaminés dos navios do Rio Paraíba. Disponível em:
http://www.jongodaserrinha.org.br
XCV
experiências compartilhadas ou a ilusão da coerência perfeita numa trajetória
de vida.
48
Correndo o risco de cair nas contradições, ou “ilusões” que o texto autobiográfico em
sua própria constituição apresenta, convido o leitor/leitora a reviver comigo um pouco de
minha história. Como quem conta uma história, um conto, aumenta sempre “um ponto”
esquivo-me da pretensão de fazer destas experiências um modelo a ser seguido. Esta é uma
história reinventada pela fragilidade de minha memória carregada de emoções muito
particulares, que tentarei descrever a seguir.
Através dela busco compreender não só experiências que reverberaram na minha
formação profissional mas também o processo de escolarização das crianças das classes
populares que tive a oportunidade de conviver. Tudo isso respeitando as peculiaridades de
tempo e espaço, pois não se trata de colar minha vida à das crianças, mas de garimpar o que nos
aproxima em nossas histórias singulares.
Começo pela questão do êxodo rural que ouvi muitas vezes durante minha trajetória
escolar. Porém, como apenas decorava os conceitos apresentados pelos livros didáticos sem ser
orientada a refletir criticamente sobre eles, não conseguia fazer nenhuma relação entre minha
história de vida e os movimentos migratórios que estão estreitamente relacionados à vida de
milhões de brasileiros.
Achava que dados geográficos e históricos não eram mais do que matéria de escola.
Enganava-me. Do mesmo modo que o “vapor berrou na Paraíba” e foi parar em Madureira
transportando centenas de pessoas durante décadas, como nos fala o ponto de Jongo da
Serrinha, na epígrafe a cima, venho de duas famílias de retirantes pobres, que migraram do
campo para a cidade, na esperança de fugir da miséria e pobreza que os perseguiam como um
fantasma. Tinham como tantos brasileiros que passavam pela mesma situação, a esperança de
conseguir um emprego na cidade e dar uma melhor educação para os filhos.
Tanto a família de meu pai, que migrou do Estado de Minas Gerais; como a de minha
mãe, que veio de Recife, no Nordeste, foram desterradas de seu local de origem. Ambos
partiram ainda crianças, com suas respectivas famílias em busca de uma vida melhor. O
movimento migratório e imigratório foi e ainda é uma questão social tão estrutural e formadora
48
Conversa com Roger Chartier
Por Isabel Lustosa http://pphp.uol.com.br/tropico em 23/11/2004
XCVI
da história de nosso país que se tornou tema recorrente nas artes, nas ciências sociais e na
literatura. Trago a foto de uma peça de Mestre Vitalino
49
, grande mestre da arte popular, que
retrata a viagem migratória: a família, os poucos pertences e os animais de estimação. À parte
isso, os costumes e tradição levados na memória.
Figura 15
“Os retirantes” de Mestre Vitalino
A obra acima representa uma cena desse fluxo migratório que marca fortemente a vida
dos sertanejos nordestinos. Pessoas que, fugindo da seca e da fome, largavam tudo que tinham e
seguiam, muitas vezes a de um estado a outro, carregando crianças, velhos e trouxas de
roupas na cabeça. Essa saga nordestina é a mais forte no imaginário brasileiro por ter carga tão
dramática e causas aparentemente insolúveis, pois o fenômeno da seca é de característica
cíclica permanente. Ou seja, o sertanejo nordestino é sobretudo um forte” como dizia Euclides
da Cunha em Os Sertões. Forjado na extrema falta de recursos e carregando em seus extratos
genéticos uma síntese das matrizes brasileiras: a européia, a indígena, e a africana, como no
resto do país. Porém, produziu uma cultura de atavismos e místicas que é única, pungente e
fascinante. Não é à toa que essa saga foi retratada de múltiplas formas e gerou verdadeiros
ícones da arte no Brasil: o livro Vidas Secas de Graciliano Ramos, o quadro Retirantes de
Cândido Portinari, a canção Pau de Arara de Luiz Gonzaga, e mais recentemente o filme
49
Vitalino Pereira dos Santos, Mestre Vitalino, consagrou-se com sua arte de fazer bonecos em Caruaru, onde
nasceu, perto do rio Ipojuca, em 1909. Disponível em :
http://www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/2artes/nd-vital.html
XCVII
Central do Brasil de Walter Salles são algumas obras inspiradas nessa realidade. Mas como está
dito em Grande Sertão: Veredas “o sertão está em toda parte” - assim, no bojo das cidades
grandes o sertão sobrevive simbolicamente nos corações e mentes dos migrantes sertanejos
sejam eles nordestinos ou não. Promovendo encontros felizes e enriquecedores, e desencontros
de aculturação e esquecimento, ou entorpecimento pelo turbilhão de outros símbolos que
tomam de assalto o sertanejo, ameaçando torna-lo não desterrado como “desalmado”
também. É que entram em cena os heróis da resistência cultural, de forma consciente-
engajada ou instintiva. A cultura que emana da terra, das heranças, vai se mantendo, se
modificando e dando a referência vital do pertencimento.
Como no Jongo citado, José Melo, meu avô materno, chegou no Rio de Janeiro em
1953. Minha avó Josefa veio com seus oito filhos, um ano depois, em viagem de navio que
durou 10 dias. No Recife, a família levava uma vida simples, onde não faltava o essencial: meu
avô tomava conta de um pequeno sítio, de onde tiravam o alimento para comer. Tinham o
bastante para vestir e se abrigar, mas não tinham escola. Foi no Rio que os filhos puderam
aprender a ler e escrever. Lembro-me que meus avôs maternos falavam com saudade da terra
natal jamais esquecida. Mesmo velhinhos, continuaram a fumar seus cachimbos de rolo e a
comer farinha com bolinho de feijão todos os dias.
a família de meu avô paterno, Edmundo da Silva, veio do interior de Minas Gerais,
metade da viagem de carroça em carroça e a outra parte de trem. Minha apaterna, Catarina,
nasceu em 30 de abril de 1888. Teve a sorte de, ao nascer, já estar enquadrada na lei do Ventre
Livre. De qualquer forma, a Lei Áurea foi assinada poucos dias depois. A vida estava difícil
para aquela família descendente de negros escravizados. Dos 13 filhos, restaram nove. Sabemos
que a alta mortandade infantil era um triste episódio dessa época. Mas é no interior das classes
populares - na equação entre a miséria e a pobreza - que mostra sua faceta mais cruel e
desumana. No entanto, quando a família Silva saiu da cidadezinha de Rio Pomba, no interior de
Minas Gerais, o filho homem caçula Luis, meu pai, tinha três anos. Meu avô Edmundo passou a
trabalhar nos famosos laranjais de Campo Grande. Um “laranjal em flor” como se dizia no
tempo deles.
Para a família Silva, a vida na cidade grande continuava tão difícil quanto no interior. O
trabalho na lavoura era duro e, muitas das vezes, os filhos tinham que ajudar, trabalhando com
os pais na colheita.
XCVIII
Como meus pais se conheceram? Bem, minha avó Catarina era parteira, minha avó
Josefa era rezadeira e quis o destino que suas respectivas famílias se tornassem vizinhas.
Ambas se conheceram muito antes de imaginar que um dia seus filhos iriam unir as duas
famílias. Aliás, essa união gerou enorme conflito dentro da família de minha mãe, pois além de
meu pai ser vinte anos mais velho e divorciado era, ainda por cima, negro. Juntando todas essas
equações, havia ali uma clara situação de preconceito e racismo. Corajosa atitude de uma
mulher branca que escolhe casar com um negro. Corajosa e transgressora atitude, visto que a
união entre pessoas de etnias diferentes, em nosso país de herança escravista, àquela época era
vista sob as lentes do preconceito racial.
Pode-se, no entanto, indagar: em algum lugar ficou escondido o racismo ocorrido na
história meus pais? Falo isso pensando em uma propaganda da TVE que ilustra bem as
contradições desta herança de mais de 300 anos de escravidão, perguntando-nos: Onde vo
esconde seu racismo? E, como nos fala Clarice Lispector
50
, diante de uma situação conflituosa,
em que muitas das vezes não é correto falarmos a verdade, ficamos com “uma confusão
silenciosa, entrecortada por palavras pouco elucidativas...”. Uma situação desconcertante que
nos faz lembrar, algumas vezes em que o racismo apareceu em nossas ações, emergiu de nossas
entranhas. E tudo que queremos depois é fingir que não o temos e escondê-lo em algum lugar,
para que nem a gente mesma encontre. No entanto, alguns ditados recorrentes ainda hoje
demonstram o que se passa no imaginário das pessoas, onde frases aparentemente inocentes
como “Segunda feira é dia de branco” deixam escapar uma concepção de que o negro não
gosta de trabalhar , ou umas mais agressivas que incita o desprezo pela gente de cor como
“Preto quando não suja na entrada, suja na saída” ou “Um negro parado é suspeito, um negro
correndo é ladrão”. Podemos encontrar expressões onde o preconceito é mais velado, e parecem
aos mais desavisados um “elogio” do tipo “Preto de alma branca” que nos leva a entender um
pouco mais sobre a política de “embranquecimento” que ressoa em nosso inconsciente até hoje.
Em meio a tantas contradições se formou a família que descendo. Sou fruto desta grande
miscigenação, hibridização e conflito entre resistência e aculturamento social. Nada tão difícil
de explicar se tivermos em mente o delicado processo de colonização e formação do sistema
social brasileiro. Parafraseando o poeta
51
, posso dizer que: o meu pai era mineiro, descendente
50
Texto “Felicidade Clandestina” de Clarice Lispector.
51
Chico Buarque de Holanda em seu CD “Paratodos”.
XCIX
de escravos, minha mãe pernambucana, bisneta de holandês com uma cafuza; e eu, sou carioca
buscando minhas raízes de afro-descendente.
A fotografia abaixo conta um pouco sobre esta história e fala também dessa mistura de
raças e etnias da qual sou fruto. Esta foto foi tirada em 1967, ano em que nasci.
Figura 16
Minha avó Catarina ao lado de meu pai Luis e minha mãe Janete na praia do
recreio/1967
Era comum naquela época, que os rapazes pobres servissem o exército e continuassem
engajados como Cabo e Sargento. Com meu pai não foi diferente: emprego seguro e promissor
- começar como Soldado e sair Sargento era uma ambição que muitos desses jovens almejavam.
Passar dali, era um sonho quase que impossível. Meu pai ultrapassou em muito as
expectativas de ascensão social de uma pessoa que começava do lugar em que começou. Ele
entrou como Praça e se reformou como Capitão. Enquanto se entregava aos estudos e missões
internas do quartel minha mãe cuidava da vida doméstica e de nossa educação. Meus pais
tiveram três filhas, eu e minhas duas irmãs: uma mais velha e a outra mais nova do que eu. As
três com marcas fenotípicas da sua condição afro-brasileira.
Para contar um pouco mais sobre esta história híbrida, gostaria de re-começar assim:
Sempre fui, como tantas outras, uma menina-moleque. Criança inquieta, curiosa, faladeira,
inventadeira de palavras e histórias. Do pai negro, incorporei, na infância, um pouco da herança
africana. Da mãe, a que mais preencheu meu universo infantil, com suas histórias e acalantos na
hora de dormir, trago a européia.
C
Até meus seis anos de idade, o contato com meu pai era basicamente nos finais de
semana. Guardo a lembrança dos domingos em que ele nos contava histórias de onças e
mosquitos falantes, que havia aprendido com seus pais. Histórias que, atravessando aquele
mundo de roçados, chegavam até s num contexto totalmente urbano. Recordo-me também
que era aos domingos que ele colocava suas músicas preferidas na vitrola: ouvíamos de tudo
um pouco, de clássica a italiana, passando por conhecidos nomes da música popular brasileira,
como: Lupicínio Rodrigues, Dalva de Oliveira e Altemar Dutra, e de seu preferido, Nelson
Gonçalves. Depois, ao cair da tarde, pegávamos os disquinhos coloridos que minha mãe nos
comprava e ouvíamos histórias que alimentavam ainda mais nosso imaginário infantil. Assim,
ficamos conhecendo “Chapeuzinho Vermelho”, “Branca de Neve”, “Aladim e sua Lâmpada
Maravilhosa”, uma não tanto conhecida, mas que amávamos chamada “O Sino Misterioso”.
Havia a divertida Festa no Céu” e a que mais me identificava, o famoso “João e Maria”.
Lembro que as histórias de abandono me comoviam, assim como “O Patinho Feio” de
Andersen e “O Lobo e as Sete Cabritinhas” de domínio público. Histórias bridas, recolhidas
dos contos espalhados pelo mundo e organizadas e reescritas na Europa e que nos chegaram e
invadiram nossa imaginação e de tantas e tantas crianças que vivenciaram esse rito de
passagem: a contação de histórias.
Misturando mais ainda as culturas, os tambores e a tradição africana também permearam
minha infância. Em algumas ocasiões festivas, nosso pai nos levava para Umbanda e vestíamos
roupa de Santo nas festas de São Cosme e Damião. Destas últimas, guardo na memória alguns
pontos, dentre eles um que meu pai adorava cantar, que diz assim:
Cosme e Damião. Mião cadê Doum?
Doum foi cavalgar no cavalo de Ogum.
Dois, dois, sereia do mar
Dois , dois, mamãe Iemanjá.
(Ponto de Umbanda cantado para Erês
em festa de São Cosme e Damião)
Apesar da política de “embranquecimento” velada, instituída pela minha família
materna, visto que lembro de minha avó materna dizer que não gostava de preto”, estes
tambores atravessaram minha formação, marcando profundamente minha visão de mundo.
Além do mais, nasci em uma família tanto da parte materna, quanto paterna - extremamente
CI
católica e as miscigenações aconteceram em minha vida tanto no campo físico como cultural:
minha mãe foi noviça antes de se casar e por isso, éramos levadas para a missa aos domingos
onde, posteriormente, acabamos freqüentando as aulas de catecismo e a Primeira Comunhão. A
fotografia, pertencente ao álbum de família retrata um destes momentos em que almejávamos
coroar Nossa Senhora:
Figura 17
Da esquerda para a direita: Eu, minha irmã caçula, Lucinha e Flávia, minha irmã mais
velha. Todas nós vestidas de anjinho antes da coroação da Santa na Igreja de Nossa Senhora
da Fátima Valença/ 1976
Por este motivo, participávamos das procissões vestidas de anjinho. Nosso sonho, meu e
de minhas irmãs, era de que fossemos escolhidas para coroar Nossa Senhora. Coisa que nunca
aconteceu! Crianças, não entendíamos o porquê , visto que para o privilégio do coroamento
fazíamos o que era preciso: não faltávamos aos ensaios; sabíamos as músicas na ponta da língua
e tínhamos roupas com asinha e tudo. Mas, “esqueceram” de nos dizer que no imaginário
cristão, não existiam “anjinhos negros”. Eis o problema. E a nossa cor não dava para mudar ou
CII
esconder. Como não nos percebíamos na condição de negras, continuávamos a fazer de tudo
para merecermos o destaque do coroamento que nunca aconteceu. De todas as cantigas
aprendidas, recordo-me de uma que muito me emocionava chamada “Maria de Nazaré”:
Maria de Nazaré, Maria me cativou
Fez mais forte a minha
E por filho me adotou
As vezes eu paro e fico a pensar
E sem perceber, me vejo a rezar
E meu coração se põe a cantar
Pra Vigem de Nazaré
Menina que Deus amou e escolheu
Pra mãe de Jesus, o Filho de Deus
Maria que o povo inteiro elegeu
Senhora e Mãe do Céu
Ave - Maria (3X), Mãe de Jesus!
Maria que eu quero bem, Maria do puro amor
Igual a você, ninguém
Mãe pura do meu Senhor
Em cada mulher que a terra criou
Um traço de Deus Maria deixou
Um sonho de Mãe Maria plantou
Pro mundo encontrar a paz
Maria que fez o Cristo falar
Maria que fez Jesus caminhar
Maria que só viveu pra seu Deus
Maria do povo meu
52
Depois, um pouco mais crescidas, rompemos com a Igreja Católica definitivamente e
viramos todas espíritas, mas da “linha branca” é claro. Orientadas pela minha mãe, nos
tornamos espíritas kardecistas (olha a matriz européia mais uma vez). Pelo menos, eu estava,
por linhas tortas parafraseando o poeta que diz prefiro as linhas tortas, como Deus
53
- me
aproximando dos tambores mais uma vez. Contradições e mais contradições de uma sociedade
de herança escravista.
Dentro de minha família também encontrei/encontro este discurso ambíguo. Explico-
me: outro dia estava com um turbante na cabeça, me achando a mais “africana das brasileiras”,
quando minha mãe viu logo teceu seu comentário discordante: - Tira isso da cabeça! Isso é
52
Disponível em: http://letras.terra.com.br/padre-zezinho/248703/
53
Manoel de Barros "Livro sobre Nada", Editora Record - Rio de Janeiro,1997.
CIII
coisa de preto! No que eu respondi perguntando: - E eu sou o que mãe? Ela então, retrucou: -
Você é morena, não é não?!?
Naquele momento, dirigi à minha mãe uma pergunta que eu mesma demorei anos a
responder. Qual é a minha cor? A qual etnia eu pertenço, se o tempo todo, minha formação
passou por um processo de “embranquecimento” e não afirmação das minhas raízes afro-
brasileiras? Meu lugar, durante 25 anos de minha vida, foi o lugar da “morena” que não se
assume mestiça e menos ainda afro-brasileira. Hoje, orgulhosamente, sei que carrego em mim
heranças africanas, européias e indígenas. Surgem daí algumas questões: Quero eleger qual
dessas etnias como referência em minha vida? Quero falar de que história, ou melhor, de quais
histórias? E o que tudo isso tem a ver com minha formação docente, onde mais uma vez vale a
pena ressaltar: educar sim, mas a favor de que(m)?
Leio no momento um livro sobre alguns países africanos. Pela leitura, pude conhecer um
pouco mais sobre Angola, Moçambique, África do Sul etc. Um livro emocionante chamado “As
Mulheres de Meu Pai”, de José Eduardo Agualusa
54
. Neste romance, Agualusa traz narrativas
sobre os conflitos raciais vividos em diferentes territórios africanos, a partir do processo de
descolonização. Ao atravessar especificamente a África do Sul, uma de suas personagens trás
uma narrativa que se aproxima das questões sobre lugar e identidade levantadas por mim. A
transcrição se faz necessária e enriquecedora:
Finalmente sentou-se, de frente para Laurentina e contou-nos a curiosa história
de sua vida: nos anos 60, assim que o appartheit começou a organizar-se, a
mulher, mestiça como ele, escolheu ser classificada como branca, e abandonou-o
com quatro crianças nos braços. Chamou-me a atenção uma frase que repetiu
várias vezes: “depois que minha mulher se tornou branca”. Dizia aquilo sem
ironia, no mesmo tom que poderia dizer “depois que minha mulher engordou”.
Limitava-se a me contar um facto. A mulher portanto, tornou-se branca, opção
comum a muitos mestiços de pele mais clara, rompendo todos os laços que a
prendiam ao mundo dos não-eleitos (...). Meses atrás, voltou a reencontrar a
primeira mulher. Voltou a ser mestiça, aliás, faz muito alarde do muito que
sofreu durante o regime do apartheit. Alimenta aspirações políticas. Serafim riu-
se:
-Noutros países há quem troque de casaca. Aqui, na África do Sul, somos mais
radicais: trocamos de pele. (AGUALUSA, 2007:211/212)
54
Agualusa é Angolano e já publicou seis romances celebradissimos pela comunidade literária internacional,
recebendo em 2007 o prêmio “The Independent Foreign Fiction Prize”.
CIV
Através do livro, percebemos claramente o conflito identitário vivido por milhares de
pessoas durante o apartheid naquele país. Era comum, nos fala mais a frente o autor, as pessoas
requerem re-classificação de raça, passando de mestiços a brancos, ou de brancos a mestiços,
ou de negros a mestiços. Mas, na prática, como nos afirma a personagem, essas pessoas
continuavam vivendo a mesma vida subalterna de antes, sofrendo preconceitos e discriminação
raciais, mesmo tendo “trocado de pele”, como brinca Serafim.
As questões identitárias trazidas pelas crianças das classes populares com quem convivi
refletiam também este desejo de quererem “trocar de pele”. Quando questionados sobre se
gostavam de sua auto-imagem, a grande maioria dizia: “Não!”. Fiz esta mesma pergunta
recentemente a um grupo de crianças da Escola de Jongo obtive a mesma resposta. Estávamos
assistindo ao DVD da Beth Carvalho que reconta a história do samba no Rio de Janeiro. Apesar
de todo investimento feito por nós, da Escola de Jongo, no sentido de fortalecer a identidade
afro-brasileira, a pressão de fora também é grande, o que leva ao conflito vivido pelas crianças.
O DVD citado prosseguiu, trazendo outros relatos sobre a experiência de se fazer uma
roda de samba no tempo em que o “negro era mal visto” e a represália policial era intensa.
Donga, um dos sambistas entrevistados, relembra que a polícia não apenas batia e prendia, mas
também quebrava os instrumentos. Lembro-me que em algum momento de nossa conversa,
alguém falou baixinho que ser preto era “ruim”. Lancei então a pergunta no ar: Quem era preto
ali? alguns levantaram as mãos. Quem gostava de ser preto? nenhuma criança levantou a
mão. Questionados sobre o “por quê” não gostavam de ser preto, um menino negro na esperteza
de seus sete anos que se sentia excluído socialmente falou: - Eu não gosto de ser preto, porque
ser preto é ruim, é feio. Preto é pobre e eu não gosto de ser pobre! (Welton de Amorim,7 anos)
Mostrar a esse menino o valor de sua pele negra em uma sociedade excludente como a
nossa, não é tarefa fácil. Este menino literalmente vive “na pele” toda sorte de preconceitos e
infortúnios: seu pai está preso, sua mãe praticamente o abandonou na casa de parentes, na
escola suas notas são péssimas e ele mal consegue escrever o próprio nome. O único lugar que
freqüenta com prazer é a escola de Jongo: ele mostra seus saberes e assim, encontra um
contraponto diante das dificuldades que a vida lhe apresenta. Nós o acolhemos, gostamos dele.
Valorizamos seus saberes e o ajudamos a encontrar oportunidades para, quem sabe, através da
imersão na cultura local, transformar sua realidade.
CV
Figura 18
Welton de Amorim ( 7 anos) e seu inseparável Tambor
na oficina de percussão oferecida semanalmente em nossa Escola de Jongo
É contra este sentimento de inferioridade encontrada na fala deste jongueiro mirim, cuja
cor da pele e os traços fenotípicos africanos denunciavam uma condição subalterna na
sociedade que minha fala se pronuncia. Dar voz a estas e tantas outras falas de crianças que
vivem situações de exclusão e desmerecimento são meios de se buscar transformar
criticamente, este sentimento de inferioridade recalcada nas identidades negras, ou “quase
negras”, visto que:
Se durante a escravidão os negros já eram desprezados por serem considerados
inferiores, após a abolição esse desprezo aumentou. Ora, se não eram
inferiores, por que não progrediam como os imigrantes que chegaram aqui com
tão pouco e logo tinham alcançado algum avanço?( SANTOS, 2005:119)
Trazendo o tema para dentro do currículo formal da escola, voltamos freqüentemente a
nos perguntar do porquê temos a sensação - e muitas das vezes as estatísticas de reprovação
denunciam - que os meninos e meninas das classes populares aprendem tão pouco o ABC que
ensinamos ou simplesmente, não aprendem? Por que as crianças da turma de progressão, em
seus estudos são mais lentas do que dos meninos e meninas de outras classes sociais? Que
sentimento de pertença a este lugar que chamamos de “escola” estes meninos e meninas
apresentam, até onde se sentem familiarizados com determinado tipo de conhecimento e não
com outro? E o que fazer quando estes conhecimentos que poderiam se cruzar, se hibridizar e
CVI
se enriquecer, se transformam em obstáculos? E principalmente, por que meninos como o
Welton, conseguem aprender tão facilmente os difíceis toques dos tambores jongueiros,
aprendem a dançar o “tapiado” – que é uma batida firme do pé, um contratempo que só o Jongo
da Serrinha tem, decoram todos os pontos e letras do jongo, e mantém-se atento a todas as
atividades em nossa escola e na escola formal que freqüenta, não consegue ainda ler e
escrever?
Retorno agora às minhas histórias locais, percebendo mais nitidamente como estas e
tantas outras histórias encarnadas em sujeitos reais, encontram-se vinculadas a projetos globais
de “subalternização” de saberes e identidades, na qual nossa sociedade está intrinsecamente
envolvida. O que fazer para não “embranquecer” de vez? Como lutar contra essa hegemonia
branca que agora absorve o povo negro como produto e o caricatura, ou o torna arquétipo de
sucesso apenas nos esportes e nas artes fechando-lhe as portas para a infinidade de atividades
humanas ? Em que outros espelhos reais a criança negra ou quase negra vai poder enxergar-se
médica, astronauta, bióloga, diplomata etc. e não ter mais enganos e embaraços com sua bela
cor? E a questão maior: quando nos libertaremos da ilusão fenotípica e seremos todos
simplesmente humanos? Como já foi dito: quando veremos nossa infância e juventude
brasileira pobre como solução, força, potencialidade infinita e não problema, analfabetismo,
miséria e crime? Enquanto isso, vamos fazendo força, não negros, como brancos, pardos e
pessoas de todos os matizes para sairmos de vez dessa era de obscurantismo que permeia cada
história vivida por uma criança negra, quase negra ou pobre.
Talvez rememorar, não apenas a minha, mas várias outras histórias locais, – como as das
crianças das classes populares, por exemplo possa nos dar mais pistas sobre como legitimar
essas histórias para que tenham valor epistemológico também.
Assim, voltando a minha história de vida, mais crescida um pouco, tive que me mudar
para uma outra cidade, por conta do trabalho de meu pai. Oportunidade e, diria também,
felicidade, de morar em uma cidadezinha do interior do Estado do Rio de Janeiro: Valença com
seus altos e baixos jardins - que foi fundada em 29 de Setembro de 1823 - e que pelos acasos
da vida, vem ser a mesma cidade que nasceu Vovó Maria Joana. Valença tem muitas igrejas,
sendo que a igreja de Nossa Senhora da Glória (1820- 1917) é a matriz mais antiga e
importante. Mais tarde, vim a descobrir que nesta igreja que tanto freqüentei quando menina, a
Vovó Maria Joana foi batizada em 15/08/1902. Mas Valença tinha /tem mais segredos.
CVII
Valença possibilitou-me ricas experiências e novos encontros com a cultura popular, foi
lá que dancei pela primeira vez a “Dança da fita” onde ficávamos cantando, trançando e
destrançando as fitas coloridas que encantavam meu olhar. Sempre que vejo um pau com fitas,
rememoro estes momentos em que bailava entre fitas e flores multicores que tanto encantavam
meu olhar infantil:
Figura 19
Imagem de um Pau - de - Fitas que estava na Exposição do Quilombo “Campinho da
Independência” na Festa do Saci em Paraty que me faz memorar as festas juninas com seus
Paus-de –fitas coloridos que brincava quando criança/RJ/Arquivo da Escola de Jongo da
Serrinha/ 2007
Mas, foi também em Valença, que vivemos, eu e minhas irmãs, várias experiências de
exclusão como a da Coroação de Nossa Senhora mencionada anteriormente. Recordo-me
de outra, tão intensa quanto esta. Saímos de Campo Grande/RJ às pressas, no meio do ano
letivo, pois a transferência de meu pai para o outro quartel não podia esperar. Minha mãe,
preocupada com a continuidade de nossos estudos, preparou rapidamente toda nossa
documentação de transferência escolar. Chegando em Valença, mamãe descobriu que havia
duas escolas públicas no centro de Valença: o Colégio Estadual Theodorico Fonseca, onde
estudavam todos os filhos de oficiais do quartel e conseqüentemente, os filhos da “elite”
valenciana e a escola Municipal José Fonseca, que atendia o restante da população. Diante
destas duas opções, minha mãe encaminhou-se para a primeira escola. Ligou para pegar
informações sobre a documentação escolar, explicou o caso e combinou que no dia seguinte,
estaria conosco para conhecermos aquela que aos seus olhos, deveria ser a nossa nova escola.
CVIII
Na página da Prefeitura em Valença, encontrei apenas a foto da Escola Theodorico Fonseca que
aparece pomposamente a seguir:
Figura 20
Vista geral do Colégio de ensino Fundamental Theodorico Fonseca . Prédio histórico
de estilo neoclássico construído no período da República /1943. Foi a residência do Visconde
do Rio Preto, virando depois internato de meninos, passando posteriormente por clube e
depois, escola. Atualmente, este prédio foi tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico,
Artístico e Cultural
55
No dia seguinte, estávamos no horário combinado: minha mãe, eu e minhas duas
irmãs. Recordo-me que era um prédio de construção antiga, bastante “pomposa”, bem diferente
da escola municipal em que estudávamos anteriormente. Ao entrarmos, minha mãe se
apresentou esclarecendo o motivo da visita. Depois de esperarmos um bom tempo na secretaria
da escola, uma outra pessoa muito secamente voltou com a resposta: não havia mais vagas
naquela instituição e a secretária entregou a minha mãe, uma solicitação para que ela nos
matricula-se em outra escola mais próxima, a José Fonseca.
Lembro-me bem da decepção que sentimos: como assim, não tinha vaga, se até um dia
atrás, pelo telefone, as vagas estavam garantidas? Sem entender o que realmente estava
acontecendo, mamãe saiu dali e fomos imediatamente para a outra escola, que apesar de estar
repleta de alunos, tinha vaga. E foi lá, nessa escola que nós três estudamos durante todo o
período em que lá vivemos. Minha irmã mais velha, relembrou o assunto:
- Minha mãe ficou muito chateada e quando o Coronel do quartel ficou sabendo do que havia
acontecido, disse que se ela tivesse reclamado com ele, ele teria conseguido as vagas que eram nossas,
por direito. Mas, mamãe não reclamou e acabamos ficando na outra escola mesmo.
55
Disponível em: http://www.cepdv.org.br/inventario_pdf/imperio/09_Colegio%20Theodorico.pdf
CIX
Hoje, penso que este fato vivenciado por minha família reflete uma situação de exclusão
em determinam quais os lugares de pertencimento dos negros e mestiços em nossa sociedade.
Mas, as situações de racismo “velado” não pararam por aí...
Eu, particularmente, passei por mais uma situação de racismo que muito me marcou.
Certa vez, fui com a empregada doméstica - que era negra - fazer compras miúdas para minha
mãe no mercado. Lembro-me bem do letreiro grande na frente. Chamava-se “Floresta”.
dentro, afastei-me um pouco da moça que tomava conta de mim e acabei entrando
acidentalmente, ou guiada pelo desejo que a grande maioria das crianças m de comer
chocolate, na parte dos doces. Lá, achei um saquinho de “Confete” aberto e resolvi
experimentar. Peguei alguns pois o saco estava aberto mesmo! e fui procurar pela
empregada.
Quando estávamos saindo, um segurança entrou em nossa frente e, com o saquinho
quase pela metade na mão, acusou-me de haver aberto e comido aquele chocolate. Foi uma
situação muito constrangedora: no fundo ele me acusava de ladra. Tentei me defender, dizendo
a verdade: não havia aberto o saquinho de chocolate, vi o chocolate aberto e aproveitei para
comer alguns. O segurança, em alto tom, disse que eu estava mentindo e, para minha surpresa,
falou que minha “mãe” apontando para a empregada teria que pagar. Íamos começar a
explicar que ela não era minha mãe, quando chegou a salvação: o gerente do mercado, que eu
não me lembrara de ter visto na vida, conhecia minha família e, principalmente, conhecia meu
pai que, à época, era Tenente do Exército. O gerente veio ver o que era aquele falatório na
entrada do mercado sim, o vigia falava alto, expondo a situação para quem quisesse ouvir. E,
depois de ouvir a explicação do vigia, falou: - Mas esta é a filha do Tenente Flávio. Foram
palavras mágicas: na mesma hora o incidente foi dado por terminado.
Voltamos eu e a empregada sem dar uma palavra. Estávamos pensativas, não sei o
que ela imaginava, nem posso me lembrar exatamente o que pensei. Apenas lembro que fiquei
com muita raiva daquele vigia e minha compreensão infantil percebeu que se eu não fosse filha
de quem eu era, estaria em maus lençóis...
Refletindo sobre o episódio que me marcou, algumas questões se apresentam: Se eu
estivesse com meu pai fardado isso teria acontecido? Ou com minha mãe branca? Se eu não
fosse filha de quem era, como ficaria o desfecho desta história? Pela gravidade das acusações
CX
que recebi, penso que teria passado por “maus bocados”, como qualquer criança negra, pobre
em sociedade excludente como a nossa, onde “e pobres são como podres /E todos sabem como
se tratam os pretos”, como nos fala a canção.
Hoje, distante um pouco mais daquele acontecimento, fico me questionando sobre quem
é o “vilão” desta história. Em uma primeira leitura, podemos afirmar que o vigia teve uma
atitude racista em relação a uma criança negra. Foi grosseiro e rude acusando-me de uma ação
que eu não havia praticado: ter aberto o saco de confete. E mais uma vez, o recorte histórico em
que alguns negros, no papel de capitães do mato, viravam os algozes de seu próprio povo.
Assim como muitos negros escravizados que trabalhavam na casa grande, não se misturavam
com os negros das senzalas, a história registra casos de brancos e mulatos, uns poucos, e vários
deles negros, nascidos na África ou no Brasil, tornaram-se, do mesmo modo que os imalês
traficantes de escravos. Alguns deles fizeram-se famosos, como Francisco Félix de Sousa o
Chachá de Ajuda
56
que montou seu império na África e se fortaleceram e enriqueceram como
grandes exportadores de escravos para o Brasil.
Será que estes conflitos ainda persistem metamorfoseados de maneiras diversas no
cotidiano de nossa sociedade? Referindo-me mais uma vez ao filme “Quanto vale ou é por
quilo” do diretor Sérgio Bianchi, observamos uma seqüência de cenas em que estas e outras
questões raciais desnudam as máscaras que ainda trazemos dentro de nós, independente de
classe social, gênero ou etnia. O autor trabalha o tempo todo fazendo recortes históricos não
lineares entre o tempo da escravidão e os dias atuais, levando o espectador a fazer uma analogia
entre as questões raciais no Brasil relacionando-as a manutenção da pobreza. Um drama que
revela o quanto ainda existe de racismo e preconceito em nossa sociedade, além de fazer uma
abordagem sociológica sobre como vão se formando as representações e papéis sociais
subalternos em relação aos negros no Brasil e os perigos da atuação de determinadas ONGS
que ao invés de combater, alimentam e aumentam contraditoriamente a pobreza no Brasil.
56
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141994000200003&script
CXI
2.1- Gato escondido com rabo de fora
O educador(a) e a Cultura Popular: o desafio de uma alfabetização emancipatória
Em Valença - onde permaneci dos sete aos doze anos - o que marcou para sempre minha
relação com a escola foi a hora do recreio - momento único em que brincávamos de tudo um
pouco: amarelinha, cabra-cega, carniça, garrafão, roda e piques variadíssimos. Brincávamos
também com as palavras: os famosos trava-línguas, as parlendas e os versinhos populares
enchiam meu universo infantil. Brincávamos, aprendíamos e nos divertíamos para valer.
Quando levava os meninos e as meninas para a hora do recreio, de certa forma, revivia estes
momentos tão prazerosos de minha infância:
Figura 21
Crianças brincando no recreio de “caracol”/Tangolomango/CIEP Posseiro Mário
Vaz/2002
CXII
Figura 22
Crianças brincando no recreio de “peteca”
Tangolomango/CIEP Posseiro Mário Vaz/2004
Agora, bom mesmo, era quando eu saía da escola e tinha o restante do dia para,
literalmente, “bisbilhotar” as cores, os sons e movimentos que aquela cidade desconhecida teria
para me oferecer. Foi assim que dancei pela primeira vez um Pau-de-fita. Os festejos religiosos
também alimentaram meu imaginário infantil: éramos três irmãs vestidas de anjinho como
relatei anteriormente - com suas asas de algodão e penas branquíssimas, mas nem os cachinhos
naturais dos cabelos nos salvaram da exclusão velada e silenciosa.
Memórias ainda não esquecidas que me levam a reconhecer hoje, ou pelo menos
desconfiar, de que o que sou, ou parte do que sou, está impregnado de experiências e valores
trazidos da infância, quando descobri, pelos desvios da vida, não a dor da exclusão, mas
também a beleza e a sabedoria das classes populares, com suas festas, danças, bois e reisados.
Depois de algum tempo de pesquisa e estudo com as Culturas das classes Populares,
tomei ciência de que Valença é a cidade de maior grupo de Folia de Reis do Rio de Janeiro, que
lá, naquele pedacinho de mundo, tem um Museu Afro-brasileiro organizado por um negro, com
peças da época da escravidão e que todo este rico patrimônio esteve durante muito tempo
fechado e que atualmente, provavelmente por falta de recursos, está aberto somente com
agendamento prévio, o que dificulta em muito a socialização deste saber.
CXIII
Figura 23
Memorial Afro-Valenciano Padre João José da Rocha Exposição de objetos ligados à
cultura negra em Valença, como utensílios de cozinha dos negros, cálice e patena da 1ª missa,
objetos de tortura (canga, vira-mundo, perneira), instrumentos musicais afros, objetos de
bambu, etc.
57
Mais tarde, em minhas pesquisas, descobri também que Valença tinha/tem uma tradição
fortíssima de Jongo cujos pontos venho salpicando ao longo deste texto.
Hoje, pelos desvios da vida, trabalho em uma Escola de Jongo, no Morro da
Serrinha/Madureira/RJ, e sinto que estas experiências que poderiam ter enriquecido minha
infância, foram-me negadas. Desnecessário dizer que falamos de uma época em que a escola
estava longe de se abrir às contribuições da Cultura Popular. Mas e hoje, como a escola dialoga
com estes saberes na contemporaneidade? Que educação e cultura são inseparáveis, já sabemos.
Mas, como na prática isto se revela? Como efetivamente trabalhar por de uma educação
libertadora? Não voltei a Valença para reviver esta história e pode até ser nas escolas, ou em
algumas escolas ou alguns educadores valencianos estejam, com certeza, discutindo as
questões por hora levantadas. Trago, entretanto, algumas reflexões vividas no campo do
cotidiano da Escola de Jongo, onde encontros e desencontros com as escolas formais têm nos
possibilitado a mim e as crianças e adolescentes com as quais trabalho, inquietantes
descobertas.
Recentemente (setembro/2006) fui com as crianças e adolescentes da Escola de Jongo
fazer uma apresentação em uma escola particular de classe média alta, no Recreio dos
Bandeirantes/RJ. Tínhamos dois grupos bem distintos: de um lado crianças de uma classe
57
Endereço: Rua Bernardo Viana, 120 (Igreja do Rosário) – Centro – Valença. Telefone: (24) 2453-4248
Funcionamento: Visitação somente com autorização prévia.
CXIV
privilegiada social e economicamente - brancos e formados no interior de determinado tipo de
cultura: a cultura dominante. De outro, nós da Escola de Jongo, crianças e adolescentes da
classe popular, negros ou mestiços formados por outro tipo de cultura. Propus, como rege a
tradição africana, que começássemos pela tradição oral.
Fizemos uma Roda de Conversas, onde as crianças de fizeram perguntas às crianças
de cá e vice versa. Várias perguntas e considerações foram feitas, umas as crianças da Escola de
Jongo sabiam responder, outras precisavam de minha interferência para tal. Então, quando se
falava sobre a África como “berço da humanidade”, um menino muito atento levantou o braço,
questionando-me (ou desafiando-me?) - Mas, não havia os gregos? e sorriu, demonstrando
total convicção de suas certezas epistêmicas.
Sim, havia os gregos respondi. Mas ... (e este “mas” faz toda a diferença) muito antes
havia o africano, e dentro da África muitos povos, como os Egípcios, por exemplo. O que você
sabe sobre os Egípcios com suas pirâmides misteriosas? Sabe a idade delas?
Se o menino entendeu, aceitou ou se inquietou com minha resposta, não importa muito.
O que fica para reflexão, é que sua argumentação traz ressonâncias de uma informação ou
formação cultural entrelaçada com um discurso totalmente eurocêntrico e dominante: a
hegemonia dos povos europeus colonizadores em detrimento de múltiplas histórias fora do
mundo ocidental, que antecedem, muitas das vezes, a chegada destes “invasores” ou
colonizadores culturais.
Figura 24
Crianças da Escola de Jongo repassando seus saberes para as crianças da Escola
Internacional do Recreio/ Recreio/RJ/2006
CXV
O que fica para a discussão é o quanto a escola “re-força” a herança ocidental, em
detrimento de outras heranças provenientes de outros locais geohistóricos de produção do
conhecimento. Nesta perspectiva, formamos sujeitos submissos à hegemonia eurocêntrica e
dominante: o “outro” é melhor do que nós e o que vem de fora (o estrangeiro) sabe mais do que
sabemos. Uma visão histórica que tem data e local pré-determinados, trazendo à tona questões
da escrita alfabética, que contribuiu para glória e supremacia dos gregos, deixando para sempre
marcas nas gerações futuras.
E foi nesta visão histórica que eu também fui formada e educada, dentro inclusive de
minha própria família. Ao rever as experiências culturais que fazem parte de minha constituição
identitária, busco compreender as ressonâncias que tais experiências tiveram/têm em minha
vida profissional como educadora e cada vez mais sensível às práticas e saberes das classes
populares.
Por isso, recorro mais uma vez à fala que iniciou as reflexões deste estudo, onde é
denunciada a dicotomia entre saberes populares e saberes oficiais oferecidos pela escola. Estes
questionamentos aparecem nos estudos de Alfredo Bosi em seu livro Dialética da Colonização,
onde ele discute as relações entre as culturas brasileiras: a cultura erudita, cultura de massa e a
cultura popular e o complexo envolvimento delas com a educação. Bosi contra-argumenta no
capítulo final do livro; ele diz que deveríamos deslocar nosso olhar do singular para o plural,
ampliando o foco da discussão para o horizonte cultural múltiplo que existe no interior da
sociedade brasileira. Principalmente, tendo como referência a sociedade de classes e,
conseqüentemente, desigual em que vivemos, onde podemos identificar novamente variantes
dos tipos de cultura que coexistem: cultura da elite, do povo, dos sem- terra, dos negros ou
afros-descendentes, cultura escrita, cultura oral, das mulheres, dos homossexuais, das crianças
etc. Todas elas intimamente imbricadas com o projeto de nação ou como nos lembraria Freire,
com o “tipo” humano que queremos formar.
Mas, enfim, como definir a palavra cultura? E por que ela é tão importante para a
compreensão dos problemas que afligem nossa sociedade? E a educação, o que ela tem a ver
com tudo isso?
CXVI
Bosi trabalha em seu texto com o conceito antropológico de cultura, ou seja, como um
conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de uma dada formação social (Bosi, 1992 p.
319) nos leva, pelo olhar da antropologia, a repensar as dimensões culturais da educação. Com
isso, fica embutida a necessidade de buscar uma filosofia da educação que contemple as
construções históricas e sociais da(s) cultura(s), onde os saberes, valores e diferentes
cosmovisões se entrecruzam, tencionam-se, agregam-se e se transformam mutuamente,
obrigando-nos a um esforço cada vez maior de diálogo entre as culturas. Brandão apresenta
uma concepção dialética de cultura:
Ao lado da concepção usual que na cultura o produto do trabalho do homem
sobre a natureza e leva mais em conta o produto feito do que o trabalho
inclusive o trabalho político do fazer que cria e reproduz a cultura, agora se
concebe uma idéia de cultura subordinando-a às de: trabalho, como modo
humano de ação consciente sobre o mundo; história, como o campo de
realização e produto do trabalho do homem: dialética, como a qualidade
constitutiva das relações entre homem e natureza e dos homens entre si, através
de cujo movimento o ser humano cria a cultura e faz história. (BRANDÃO,
2004:38)
Interligando estes pensamentos, podemos compreender a atividade humana produzida e
produzindo cultura e, mais uma vez, reportar-nos às dimensões culturais da educação,
encarando o sujeito todo e qualquer sujeito - como promotor de cultura(s). Esta dimensão de
construtor de culturas é que faz do homem um ser histórico que realiza o trabalho com outros
homens uma série de atividades humanas, modificando e transformando a todo instante o seu
mundo e o mundo ao seu redor. Assim, as coisas, os objetos, as pessoas o ganhando sentido,
vão ganhando significados. Somos sujeitos de cultura(s). Culturas marcadas pelo fazer coletivo
que vem possibilitando ao homem conhecer e transformar o mundo, mas também se
transformar, tomar consciência das relações e conhecer-se. Como nos lembra Freire, nesta
trajetória histórica o homem se humaniza.
Daí a relevância dos estudos culturais para a ação educativa e que nos leva mais uma
vez a nos perguntar: Educar, sim, dentro de qual cultura? Voltamos a falar de educação ou
Educações como sugere Brandão, e trabalhando na des-construção do singular para o plural,
como nos propõe Bosi, Pretto e tantos outros.
Neste sentido, pluralizar implica negociações, muito freqüentemente doloridas. O
confronto com o outro, com a diferença gera conflitos entre sujeitos pertencentes a grupos
CXVII
sociais diferentes. Esta tensão pode provocar fortalecimentos de uns e enfraquecimentos de
outros. Vida e morte novamente. Pretto nos ajudará mais uma vez, pois trabalha com a
perspectiva da ambigüidade e contaminação cultural:
A contemporaneidade requer culturas que se misturam e ressoam mutuamente.
Que convivem e se modificam. E se modificam modificando outras culturas pela
convivência ressoante. Um processo contínuo, que não se limita a um receber
ou dar. É contaminação. É ressonância. Estabelece-se uma troca permanente,
constante e sem hegemonias predeterminadas e preestabelecidas, definidas a
priori, de fora, externamente e sem a presença dos implicados, todos os
implicados, principais e secundários. (PRETTO, 2005:138)
Este mesmo jogo de forças, esta tensão em que “cada um puxa a corda para o seu lado”
também está presente no território escolar, onde agentes principais a cultura oficial, currículo
universal etc – e secundários – a cultura popular, o saber dos educandos, as histórias locais etc –
interagem constantemente, uma ressoando na outra criando ruídos, conflitos onde cada qual
tenta se fortalecer como pode. Um jogo de fortalecimento e enfraquecimento constante se
estabelece a todo instante dentro da escola. Um movimento contínuo e ambíguo, em que
diferentes cosmovisões entram em cena, interagem, como afirmamos anteriormente, criando
e recriando, transformando e deixando-se transformar na busca constante de dar sentido e re-
significar o mundo ao redor.
Por isso, voltando às questões que se colocam para esta pesquisa, acredito que recuos
históricos se fazem necessários para a compreensão de que o período de colonização no Brasil
continua ressoando de diferentes maneiras, tanto para as classes dominantes, como para as
classes subalternizadas.
Histórias locais, culturas locais, culturas muitas vezes negadas, silenciadas por outras
culturas. Encontros que marcaram e mataram e que se desdobram nos dias de hoje, sob diversas
máscaras e formas de opressão. Somos hoje um povo mestiço, herdeiros de grandes genocídios
originários destes encontros/desencontros culturais.
Observamos que no processo de escolarização no Brasil, fazendo um recorte da década
de 40, apenas um terço da população brasileira tinha acesso à escola. O que mudou de para
cá? Por que continuamos insatisfeitos com o ensino da grande maioria das escolas públicas
brasileiras?
CXVIII
Como sabemos, no início do processo de escolarização no Brasil, eram as camadas mais
favorecidas economicamente que tinham o “privilégio” de freqüentar a escola e, mesmo assim,
era comum até nessas famílias mais abastadas, a escolha deste ou daquele filho para seguir os
estudos visto que para as aspirações de uma sociedade especificamente de economia agrária,
ter um “doutor” na família já estava de bom tamanho. Dos filhos restantes, os homens
trabalhavam com os negócios da família e as mulheres se preparavam para casar e ter filhos.
Em 1940, por exemplo, menos de um terço da população, entre 7 e 14 anos estava na escola
enquanto em 2000, a taxa de escolarização passou para quase 95% das crianças
58
.
Além disso, saímos de um Brasil rural para um país que rapidamente se industrializava e
se “modernizava”. Mas este estado de coisas foi mudando com a crescente urbanização, visto
que na mesma década, menos de um terço (31, 3%) da população morava nas cidades,
enquanto no 2000 eram 81,2%. O contingente de população urbana, que correspondia a
12,8 milhões de habitantes, em 1940, atingiu 137,9 milhões, no último Censo.
59
Os dados
estatísticos apenas potencializam o que nós que moramos em uma grande cidade como o Rio de
Janeiro sentimos: o inchaço de uma cidade que cresceu de forma muito rápida e sem
planejamento.
À medida que o Brasil ia se tornando cada vez mais urbano, a cultura escrita se impunha
crescentemente, fazendo com que a distribuição entre letrados e não letrados cumprisse o papel
de manutenção de uma sociedade desigual. As mudanças de ordem social, política e econômica
obrigaram a escola a abrir suas portas para um número maior de pessoas de diferentes culturas
e classes sociais, sobretudo a partir da obrigatoriedade do ensino fundamental, instituída
durante o regime militar. De lá para cá, muito pouca coisa mudou e a escola, que no imaginário
popular deveria servir de base para diversas transformações e inclusive de abertura para
mobilidade social, demonstra-se na prática, mais uma faceta do poder da cultura dominante: ela
espelha a dominação e oprime, através de relações saber e poder, tornando-se neste sentido,
uma escola alienante. Em resumo, a colonialidade permanece após a quebra dos laços da
colonização.
58
Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=892&id_pagina=1
59
Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=892&id_pagina=1
CXIX
E o mais grave: quando as crianças das classes populares percebe que não consegue
incorporar e aprender os valores da cultura oficial imposta pela escola, um sentimento de
incompetência as paralisam, e muitas acabam ficando no meio do caminho: nem reafirmam os
saberes trazidos de sua cultura, nem se apropriam daqueles que a escola lhes apresenta.
Brandão, citando Levi-Strauss, afirma que:
Na verdade, hoje a escola e tudo o que ela envolve passa por um processo de
deteriorização e, sob alguns aspectos, está em ruínas. Mas a natureza desta
condição é exterior ao sistema educacional que apenas reage como pode a um
tipo de mundo que lhe rouba o sentido e a adequação. Portanto, antes de ser
pedagógico’, o problema da criança criadora coloca-se em termos de
civilização.(Levi-Strauss aput Brandão, 2004:164)
Este sentimento de “ruína” e perda de “sentido” eram comuns nas classes de Progressão,
onde o menino e a menina cansados de tentar conseguir aprender passavam a resistir a todo
movimento de aproximação com a leitura e a escrita apresentadas pela escola. Para driblar um
pouco o “gosto” do fracasso, viravam excelentes copistas, mas não escreviam e nem liam
sozinhos, não criavam. Este é um dos reflexos mais evidentes do fracasso escolar
historicamente constituído em nossa sociedade.
Para tentar resolver essa questão, muitas políticas nos níveis federal, estadual e
municipal têm sido implementadas. Falamos especificamente nesta pesquisa de algumas
políticas instituídas pelo município do Rio de Janeiro que, de portarias em portarias, como
veremos a seguir, a questão do analfabetismo continua e o tema fracasso escolar é sempre
recorrente.
No que diz respeito às Classes se Progressão, as Portarias instituídas pela Secretaria de
Educação do Município do Rio de Janeiro apontam seu início em 2000, ano da implantação do
regime ciclado, e seu término em 2007, como se lê a seguir:
“§ 2º Excepcionalmente, no ano de 2007, devido à transição do sistema seriado
para o sistema ciclado, poderão estar enturmados:
a) no 1º Ciclo de Formação, alunos com 9 anos;
b) no 2º Ciclo de Formação, alunos com idade igual ou superior a 12 anos;
c) no 3º Ciclo de Formação, alunos com idade igual ou superior a 15 anos;
d) nos 1º, ou Ciclos de Formação, os alunos transferidos de outras
redes de ensino com base na documentação apresentada pelo aluno, seguindo o
mesmo processo de enturmação dos alunos da Rede Pública do Sistema
Municipal de Ensino.
CXX
§ 3º Ficam extintas as Turmas de Progressão.
§ Os alunos oriundos das Turmas de Progressão de 2006 deverão ser
enturmados, em 2007, no 2º Ciclo de Formação - Período Inicial.
§ 5º Excepcionalmente, no ano de 2007, será instituído projeto, de caráter
acelerativo, para os alunos com 14 e 15 anos completados até 28/02/2007,
oriundos das Turmas de Progressão e de matrícula inicial.
§ 6º Excepcionalmente, no ano de 2007, os alunos oriundos das Turmas
de Progressão, com 16 anos ou mais, serão encaminhados ao PEJA.
60
A rede Municipal de Educação conta hoje com um total de 1.054 Escolas, 203 Creches,
37 mil professores e 748.409 mil alunos, onde a reorganização escolar por ciclos é um desafio
para este gigantesco sistema de ensino. A extinção das Turmas de Progressão traz à tona a
necessidade de discutirmos antigos dilemas, tais como, repetência e aprovação automática, que
estão intrinsecamente veiculados ao sistema ciclado de ensino.
O que de fato sabemos é que a reprovação deixa marcas negativas profundas nas vidas
das crianças de classes populares mas, como fomos formados por essa concepção conteudista
educativa, que sendo “bancária” (FREIRE, 2005:71) favorece a desumanização do homem, a
dificuldade de resolvermos esta questão nos parece na maioria das vezes intransponível.
Lembro-me que um dia, estávamos em um Centro de Estudos
61
na escola, quando um
senhor aparentando mais ou menos 50 anos, negro, de corpo franzino apareceu na porta. Não
entrou. Olhava para as paredes como se essas lhe falassem coisas. Chamou-me a atenção e,
curiosa, resolvi perguntar:
- O senhor está procurando alguém?
- o respondeu-me pensativo - estou olhando e me lembrando que foi nesta sala, que eu fiquei
reprovado na primeira série. Fui reprovado cinco vezes.
Olhei para a sala, para aquelas paredes e pensei o que aquele depoimento denunciava.
Queria que ele entrasse, queria ouvir mais um pouco sobre sua história e descobrir se havia
conseguido aprender a ler e escrever, quando isso se deu, o que faz da vida hoje, em que
trabalhou etc. Queria entender melhor que sentido teve em sua vida aquelas cinco repetidas
reprovações e qual o sentido da escola hoje para ele. Sabia que poderia aprender muito com
60
Diário Oficial do Rio de 18/12/2006. Disponível em: http://doweb.rio.rj.gov.br/sdcgi-bin/om
61
Pensados e organizados pela SME, os Centros de Estudos funcionam como um dos momentos de Formação
Continuada. Neste dia pré-estabelecido pela rede, as aulas vão até o meio período e todas as escolas trabalham com
um tema único.
CXXI
aquele senhor, mas, estávamos em um Centro de Estudos, tínhamos muito o quê estudar e,
afinal, estávamos ali para discutir sobre “Avaliação Escolar” e não sobre repetência ou coisas
parecidas. O Senhor se foi, mas aquela experiência me marcou, deixando incertezas e dúvidas
sobre que “tipo” de educação falávamos.
Experiências que me levam a perceber cada vez mais que desenvolver um olhar sensível
às práticas culturais de nossos educandos se constitui um desafio e um caminho possível para o
enfrentamento de questões referentes à exclusão escolar das crianças e jovens das Classes
Populares, especificamente daquelas que não conseguiram ainda completar seu processo de
alfabetização e ficavam retidas nas classes de Progressão do Município do Rio de Janeiro.
Reporto-me especificamente, ao período compreendido entre 2004/2006 e uma rede de
1044 escolas e mais de 37 mil crianças e adolescentes, que carregavam desde os primeiros anos
de sua vida escolar uma experiência negativa, em relação à aprendizagem da leitura e escrita.
Fato decorrente de um processo de desconhecimento e, conseqüentemente, desvalorização de
suas experiências significativas de aprendizagem, motivações, comportamentos e
principalmente de criação, que acontece cotidianamente fora do ambiente da Escola. Uma
escola que pretenda formar sujeitos livres, capazes de transformar criativamente a sua prática,
anuncia-se como uma escola capaz de dialogar com estes diferentes mundos que existem no
interior de diferentes classes sociais, onde encontramos outras formas mais eficazes para
aquelas pessoas - de ensinar e aprender.
Percebo que os relatos de minha história, assim como os relatos das crianças das classes
populares, estão de alguma forma entrelaçados à questão da migração das populações de
regiões, onde a miséria e a pobreza os levaram/levam a se desenraizar. Mas, sobretudo, quero
enfatizar que no Brasil de herança escravista, estes entrelaçamentos me levam a pensar se seria
possível ter como estratégia de ensino-aprendizagem a historicidade dos fatos cotidianos e se
estes mesmos fatos podem vir a servir de base à pesquisa e à produção de conhecimentos para
melhor compreensão da vida social. O pano de fundo seria uma formação complexa do
educador(a) de modo a dar mais ênfase, inclusive, às culturas, às políticas e às histórias locais e
globais, de modo a compreender uma trama invisível, por trás do fracasso escolar.
A partir destas brechas que possam surgir através de uma infinidade de perguntas que
cabe à Escola a si mesma fazer, os contextos culturais dos quais nossos educandos concretos
fazem parte, podem vir a ser tomados como referência para elaborarmos métodos mais
CXXII
significativos para estes sujeitos em formação. Palavras como vida, inteligência e conhecimento
estão de tal maneira interligadas que não poderíamos mais pensar Educação sem Cultura(s) e
suas estruturas de relações.
Trago novamente o relato de uma professora do CIEP que expressa sua visão de mundo
em relação aos conflitos que as crianças das classes populares enfrentam cotidianamente dentro
e fora da escola:
Marisa:- Então, a gente passou três anos trabalhando com Turmas de Progressão, qual a sua
impressão sobre essas turmas?
Simone:- Minha impressão é que alguma coisa faltou, digo lá nos períodos inicias. Uma falta de
pressão de casa, uma falta de pressão de alguns professores. Porque a gente sabe que as turmas de
Progressão têm sempre uma característica: as crianças de cor preta, são negras, são as crianças mais
necessitadas, são as crianças que vem mais mal arrumadas, que os pais não comparecem a escola. Pelo
histórico de vida você pode ver, são as crianças que faltaram demais, que tem pouca freqüência. A
dificuldade de aprendizado existe, o que não existe é não aprender. Mas, é claro que precisamos de um
atendimento especial. O quantitativo de alunos na sala interfere...
Marisa:- Mas a turma de Progressão acabou e ai?
Simone: -E aí que sinceramente não sei o que a prefeitura vai fazer porque as crianças estão passando,
estão indo pras turmas que a realidade é triste, porque na maioria das vezes os profissionais da 3º ou 4º
série, eles querem alunos prontos, que saibam ler e escrever pra poderem mandar trabalhos, e
começam a achar que essas crianças estão perdidas, e vão ficar cada vez mais...
Marisa:-E a Turma de Projeto? – refiro-me aqui, a turma especial criada pela CRE para tentar
alfabetizar as crianças que não tinham a mínima condição de serem enturmadas no sistema ciclado.
Simone: - A turma de Projeto pra mim não da certo. Eu não quis dar aula, porque foi dito que teriam
assistência de professores de arte, de material escolar, disso, daquilo, e nada disso aconteceu. Ninguém
queria pegar. E o perfil das turmas era o seguinte: as crianças que já eram da escola tudo bem, porque
você conhecia a historia de vida, a família e o comportamento daquela criança. Mas, as que vieram
de outras escolas encararam isso como mais uma escola onde elas iam bagunçar, então elas mal
ficavam em sala. É claro que de um grupo sempre sai alguém, sempre sai alguma criança, agora, tinha
crianças ali que você via que as necessidades deles eram com profissionais com outras competências.
Aquelas crianças não vão aprender. uma falta de material, falta de profissionais, a falta de tempo,
uma falta de um espaço adequado porque uma sala comum não vai dar conta, a falta de
acompanhamento da família também. Quer dizer a escola recebe um modelo maravilhoso, ótimo. Mas
nesse motor faltam varias engrenagens, família, material, profissional, médico, fono, sem isso, fica
difícil o trabalho dar certo.
Eu não acreditei. No final do ano eu olhei, a turma foi pra outra série e voltou. Foi uma turma que
tinha 5 anos de progressão, e ninguém queria pegar. Se você tem a opção de pegar uma turma com
crianças comuns, porque as turmas de Projetos não são crianças comuns, você vai pegar uma de
projeto porque? A criança passa quatro horas e meia aqui. O resto ele passa na rua. Na rua, não é
em casa com a mãe, é na rua mesmo.
Marisa :- Mas, voltando ao tangolomango, logo assim que eu saí, você pegou a minha turma...
Simone: - Eles liam e escreviam. A dificuldade deles era a escrita ortográfica Daniel acompanhou, foi
embora, passou pra serie. (Daniel é o menino que aparece através de vários desenhos durante esta
pesquisa). Willian, ele lia com uma certa dificuldade, mas entendia e tinha dificuldade em escrever.
Mas uma vez, a mãe dele chegou pra mim e falou assim: - Olha o que o Willian fez. Ele comprou o
pacote de Miojo, e eu não queria que ele fizesse. eu disse que ele não sabia fazer. Então ele
CXXIII
respondeu: - A minha professora me ensino a ler pra quê?!? Ele leu o pacote todinho do Miojo e fez.
Quer dizer, a partir daí eu acho que ele já tava pronto pra ir embora...
62
O que fazer com a as crianças que não aprendem? O que estas crianças e adolescentes
têm a nos dizer e ensinar? O que sabem? Por que resistem e insistem? Faço estas perguntas,
buscando desmistificar a prática tradicional de ensino, alinhando-me ao pensamento de
Guimarães Rosa que escreveu: Mestre não é quem ensina, mas aquele que, de repente,
aprende.
Nesta perspectiva, o projeto pedagógico Tangolomango buscava refletir acerca das
seguintes questões: de que maneira, no contexto da prática pedagógica do educador, pode se dar
os diálogos entre diferentes saberes? Como incorporar a diversidade cultural trazida pelos
educandos no contexto escolar, de modo a enriquecê-lo? E o currículo, onde fica no meio desta
riqueza polifônica de saberes? Até que ponto, uma mudança na perspectiva do olhar, cada vez
mais sensível do educador, as práticas e manifestações populares (modos de subsistências e
resistência festas, religiosidade, danças, histórias, brincadeiras etc.) auxiliam o trabalho de
valoração do sentimento de alteridade dos educandos e em seu processo de alfabetização?
2.2 – A canoa virou, pois deixaram ela virar
Algumas considerações sobre o Movimento Folclórico Brasileiro: “Defender nosso
Patrimônio artístico e cultural é alfabetização”(Mário de Andrade)
Houve um momento, em que as preocupações e debates sobre o Folclore nacional
tornaram-se bastante intenso no Brasil. Um momento de forte inquietação intelectual e
artística que levaram nossos primeiros folcloristas que tornaram-se os primeiros
protagonistas a marcarem história e produzirem uma série de ações políticas voltadas para a
valorização do Folclore nacional como expressão máxima do que seria o povo brasileiro,
com suas especificidades e origens. Observamos que o Folclore, desde suas raízes
etimológicas, esteve associado a uma reminiscência do passado no presente, a algo que
62
Depoimento de Simone Dolores, professora que trabalha no CIEP há 15 anos. Entrevista realizada no dia
26/02/2008.
CXXIV
corria sério risco de desaparecer. Refiro-me especificamente às discussões encontradas de
maneira bem mais ampla e detalhada no livro “Projeto e missão: o movimento folclórico
brasileiro 1947-1964” escrito por Luiz Rodolfo Vilhena. No livro, que é uma versão
resumida de sua tese de Doutorado, Vilhena abre as portas para uma série de discussões
sobre o Folclore, a Cultura Popular e formação de uma identidade brasileira” e traz uma
importante discussão em sua conclusão sobre “os lugares do Folclore”, analisando o fim do
Movimento Folclórico no Brasil, assim como as conseqüências das lutas sociais e ações
políticas que ressoam no tecido social até os dias atuais. Pontos e contrapontos de um
Movimento Folclórico intenso que na visão do autor:
(...)não foi constituído meramente por um conjunto de diletantes
exóticos anacrônicos, mas faz parte de valorização, mas faz parte do
nosso pensamento social, esse “objeto” foi responsável pela
constituição do campo intelectual no qual estamos situados e vivemos
hoje. (VILHENA, 1997: 268)
E são estas as ressonâncias que esta pesquisa procura iluminar: Quais são as
reminiscências deste movimento dentro do atual cenário educacional brasileiro? Quais
repercussões, naturalizações e estranhamentos herdados por este movimento histórico em
prol da valorização do Folclore nacional que ainda persistem no cotidiano da escola?
Segundo o autor, as discussões tornaram-se bastante intensas a partir de Mário de
Andrade, escritor Modernista e participante ativo da Semana de Arte Moderna do MAM de
São Paulo (1922). Mário foi diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo
(1935 1938) organizando um mapeamento das manifestações populares por todo o Brasil,
mantendo correspondências com folcloristas dos mais renomados, como Câmara Cascudo
por exemplo, em certo momento de sua pesquisa afirmara que não bastaria apenas ensinar o
analfabeto a ler e que em sua visão, “defender nosso Patrimônio histórico e artístico é
alfabetização”.
63
Outro importante pesquisador dos fatos folclóricos citado no livro, o poeta
Parnasiano Amadeu Amaral , que em 1925 tinha como objetivos principais “a criação de
um museu de folclore, a necessidade de mapear o Folclore brasileiro, a organização de uma
biblioteca especializada e, finalmente, o aliciamento, nas diversas localidades do país, de
63
Fonte: DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo. Hucietc, 1985.
CXXV
“correspondentes” capazes de realizar a coleta primária que julgava indispensável”
(VILHENA,1997:79), foi um dos percussores deste movimento em favor do Folclore e
Cultura Popular brasileiro. Muito tempo depois, a Biblioteca do Museu do Folclore Édson
Carneiro, levaria reconhecidamente seu nome.
Podemos traçar também, algumas outras características importantes para os avanços
das pesquisas em Cultura Popular no Brasil, presentes nos apontamentos de Mário de
Andrade e Amadeu Amaral, que seriam: as primeiras propostas de criação de órgãos e
entidades governamentais no caso de Mário e não governamentais, através de Amadeu
Amaral e o questionamento da “tradição” enquanto elemento definidor do fato folclórico,
trazendo abertura para a inserção da Cultura Popular urbana como fato folclórico, rompendo-
se pela primeira vez com a dicotomia rural x urbano.
Os estudos sobre os fatos folclóricos foram se avolumando ainda mais ao longo
destas décadas, culminando com o surgimento da Comissão Nacional do Folclore (CNFL)
um pouco antes da década de 50. A movimentação da Comissão Nacional do Folclore inicia-
se, efetivamente, a partir do I Congresso Brasileiro de Folclore, iniciado em 1951 e
sucedendo-se, anualmente, até 1963, configurando-se como os momentos de maior
expressividade e dinamismo do movimento.
Renato Almeida – Fundador da CNFL. aspirava a superação do “autodidatismo”
(VILHENA,1997:125)
que acompanhava os estudos do folclore no Brasil. Superação esta que viria
com a “institucionalização” dos estudos do folclore, criando conseqüentemente um mercado
de trabalho que absorvesse estes profissionais voltados para uma pesquisa científica,
consolidando sua profissionalização em prática e promovendo a renovação sistemática de
futuros pesquisadores.
A movimentação de maior visibilidade do Movimento Folclórico foram os
congressos intercalados com as semanas folclóricas que aconteceram nas seguintes cidades
respectivamente: Rio de janeiro (27 a 31 de agosto de 1951) – vale ressaltar neste Congresso
CXXVI
foi redigida a Carta do Folclore Brasileiro texto programático do Movimento Folclórico;
em Curitiba (22 a 31 de agosto de 1953); em Salvador (2 a 7 de julho de 1957); em Porto
Alegre (19 a 26 de julho de 1959) e em Fortaleza (21 a 26 de julho de 1963). Entre este
período, tivemos um Congresso Internacional de Folclore em São Paulo (15 a 22 de agosto
de 1954).
Já as Semanas Nacionais de Folclore, aconteceram nas seguintes cidades e datas: Rio
de Janeiro (1948); São Paulo (1949); Porto Alegre (1950); Maceió (1952). Os frutos dessa
campanha foram: a valorização da Cultura Popular e da Identidade Nacional, a Inauguração
da Biblioteca Amadeu Amaral, vários convênios com as Universidades do Ceará e da Bahia,
os Festivas Folclóricos, a criação da Revista Brasileira de Folclore e o início da catalogação
de composição de documentários fonográficos e fotográficos, entre outros. Fora isso, as
aspirações e objetivos centrais da CNFL apontavam para três fatores fundamentais para a
valorização do Folclore, que seriam: “a pesquisa, para o levantamento do material,
permitindo seu estudo; a proteção do folclore, evitando sua regressão; e o aproveitamento do
folclore na educação”(VILHENA in Almeida,1953-341:174).
Os debates intelectuais sobre o tema, apelos em favor da defesa de nossas tradições folclóricas, solicitação de uma agência
governamental que coordenasse pesquisas e a preservação dos patrimônios culturais, trouxeram credibilidade para o movimento fomentando o
que os folcloristas denominaram Campanha de Defesa de Folclore Brasileiro em 1958.
Dos três eixos em questão levantados como bandeira pela CNFL, tivemos como
protagonista que toma a frente dos estudos entre folclore e educação, a figura de Cecília
Meireles, que além de literata era educadora. Suas maiores preocupações eram de que os
estudos folclóricos não deveriam passar a fazer parte do currículo escolar de maneira
formal como se aprende as outras disciplinas mas sim, como um apoio à ação
pedagógica dos professores”. (VILHENA, 1997:193)
CXXVII
Figura 25
“O que é , o que é, que está no meio do rio?” Resposta: A letra “I”.
Daniel expressa sua visão de mundo sobre os “seres encantados” que moram no rio:
Um homem e sua carranca, a sereia e o Boitatá, a baleia cantora etc. Projeto Tangolomango/
Turma do Parangolé/ CIEP posseiro Mário Vaz/2003
Como podemos observar no desenho acima, as práticas pedagógicas do
Tangolomango, buscavam dialogar com tais aspirações. Vejamos um pouco mais de perto,
como as crianças percebiam estes movimentos, através de suas falas rememoradas:
Marisa: -Das atividades que fizemos em sala, do que vocês mais gostaram?
Willian (11 anos): - Da história que você contava, aquela do rabo do macaco “perdi meu rabo,
ganhei uma...”(todos cantam juntos e se divertem)
Marisa:- Você está falando da história do “Rabo do macaco”, né? Agora, vamos ver as fotos
pra ver do que a gente lembra.Olha aqui... O que a gente estava fazendo???
Saiara (12 anos): - É a história do Boi - Bumbá.
Marisa:- De onde vem essa historia do Boi - Bumbá??
Natália (12 anos) : - É do folclore.
Alexandre(11 anos): - Tem uma história também que foi no museu. Era o museu do boneco,
tinha um monte de bonequinho.
Marisa: - Foi o Museu do Pontal, que a gente foi conhecer...
Raissa (12 anos): - A gente” vimos” o teatro.
Marisa: - Este já foi outro passeio.
Raissa (12 anos): - Foi a história do Pavão...
CXXVIII
Marisa: - A história do Pavão Misterioso, né? (todos concordam com a cabeça). Mas o que
vocês mais gostavam de fazer na aula?
Willian (11 anos): - Futebol!
Willian (11 anos): - Bater no tambor!
Marisa : - E o que mais?
Saiara (12 anos): - Trabalho.
Natália (12 anos): - A gente se divertia fazendo o trabalho. Não era aquele trabalho que a
gente ficava só quieto fazendo não, a gente se divertia.
Marisa: - E o que mais fazíamos?
Saiara (12 anos): - A gente enfeitou a sala com um monte de boizinho pendurado no teto.
Saiara (12 anos): - Ficavam aquelas correntes de papel era bonito...
Alexandre (11 anos): - A gente até fizemos um lanche dentro da sala. Com os pais.
Marisa:- O que mais vocês acham que a gente fez na nossa aula??
Saiara (12 anos): - Estudamos muito, fazia umas provas...
Moises (12 anos): - Foi legal.
Marisa: - Vocês acham que aprenderam a ler alguma coisa??
Willian (11 anos): - Eu aprendi!- fala animado. O Alexandre também aprendeu. A gente
aprendeu a ler muitas coisas.
O depoimento de Natália acima chama atenção pelo tom entusiasmado com que fala
sobre as aulas, afirmando que não era aquele trabalho que a gente ficava quieto fazendo
não, a gente se divertia. Brincar e aprender são movimentos importantes para o Tangolomango.
Mas, apesar de todo o esforço da CNFL de se pensar um projeto pedagógico de inclusão
dos estudos das manifestações folclóricas nas escolas, o movimento começa a perder força
inicialmente pelo falecimento de Mário de Andrade (1893- 1945) e um mais adiante, o de
Cecília Meireles (1901- 1964)
,
pessoas singulares na movimentação das ações políticas dos
estudos folclóricos. Aliado a isso, não podemos esquecer que instaurava-se no cenário social
brasileiro um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil proposto pelo golpe militar de 64
- onde a desconfiança a todo e qualquer projeto utópico para o país que atendesse as aspirações
de uma educação mais humanitária e socialmente inclusiva. Ou seja, os contextos históricos
que outrora acenavam para múltiplas possibilidades de interações e trocas culturais,
apresentava-se agora completamente hostil e repressor a qualquer atividade que ameaçasse a
“ordem vigente”.
A partir desta data, pouca coisa ou quase nada pode ser feito e o movimento folclorista
no Brasil vai perdendo sua força de atuação, com muitos de seus membros depostos de seus
CXXIX
cargos públicos e tendo seus projetos engavetados até que novas perspectivas político-culturais
permitissem a retomada dessas discussões.
Não de ser por acaso que, analisando a trajetória e a realidade educacional brasileira
observamos hoje este hiato em relação a valoração da cultura popular e o currículo escolar que
acabaram por confinar as manifestações de cultura popular a dia e mês determinados, caindo na
maioria das vezes de “pára-quedas” sem diálogo ou interação com o contexto social e histórico
que está inserido.
Portanto, considero relevante o olhar reflexivo para o momento em que vivemos agora,
em que os altos índices de exclusão e repetência escolar continuam a ser o grande desafio a ser
vencido se realmente quisermos democratizar o saber e mudar a imagem subalterna que se
acumulou por anos e anos de história sobre a cultura popular.
A quebra de paradigmas e modelos educacionais voltados para uma educação tecnicista
de política colonialista que se mostraram contraproducentes ao longo de décadas e décadas de
escolarização de crianças e jovens das classes populares no Brasil, convida-nos a revisitar a
todo instante nossa própria práxis e a nossa própria capacidade de aprender a aprender.
Figura 26
A pipa trazida por um menino naquele dia que está pendurada no quadro acima, foi o tema
gerador da produção textual no quadro. A investigação do universo infantil como estratégia
de promoção de conhecimentos pressupõe um acolhimento, por parte do educador(a) dos
saberes e dizeres que a s próprias crianças trazem de casa para dentro do território escolar.
Posteriormente no caderno como tarefa de “Para-casa” uma atividade de produção textual
transcrita a seguir:
CXXX
Figura 27
(A pipa/ Para fazer uma pipa é preciso: papel fino,cola, tesoura, vareta, linha)Projeto
Tangolomango/ Turma da Capoeira
Escola Municipal Professor Gonçalves/2005
O projeto Tangolomango apresentado como proposta de pesquisa junto a esta
universidade, fundamenta-se em um olhar crítico-retrospectivo sobre estes três eixos acima
relacionados, revendo conceitos e analisando os avanços e tropeços deste Movimento
Folclórico e propondo-se, principalmente, direcionar e aplicar estas reflexões sobre o acervo da
cultura popular no cotidiano escolar. Proporcionar um espaço no cotidiano escolar capaz de
permitir uma identificação cultural do sujeito cognoscente, tanto com o objeto de conhecimento
quanto os seus processos, para que estes mesmos sujeitos sejam mais capazes de utilizar
conceitos, e não simplesmente, armazená-los.
Por isso, longe de conceber a cultura popular como um movimento folclórico estático,
ligado ao passado e que por isso, precisa ser “resgatado” como pensavam os nossos primeiros
pesquisadores do assunto, acreditamos ser de grande importância no momento contemporâneo
de crise e quebra de paradigmas, analisarmos mais de perto as contribuições e significados das
manifestações populares, sem com isso cairmos na armadilha de uma idealização romântica das
CXXXI
tradições. Esta é uma discussão contemporânea, que ainda hoje encontra resistência dentro das
Comissões Nacionais de Folclore e Cultura Popular espalhados pelos Estados deste país.
Figura 28
Apresentação do Projeto Tangolomango no XII Congresso Brasileiro em Natal/ Rio
Grande do Norte/2007
Lembro-me de que era comum eu ser requisitada com a turma do Tangolomango na
época do famoso “Mês do Folclore” ou na “Semana do Folclore” como as escolas continuam
a trabalhar. O argumento era simples: achavam que porque nosso currículo escolar já
contemplava as diferentes manifestações da Cultuar Popular, estávamos prontos para
“apresentar” uma dança, um folguedo, uma brincadeira de Bumba-meu-boi e por aí em
diante. A “folclorização” dos fatos folclóricos se apresenta como uma questão a ser
analisada mais de perto pelos educadores populares.
Apenas no mês de Agosto, nosso saber diário implicado nas histórias locais das
crianças da turma - visto que o processo de migração ainda é forte e várias crianças ou eram
de outro estado, ou os pais haviam nascido por lá – tinha visibilidade, era de uma maneira
legitimado apenas naquele momento.
Com isso, havia uma simplificação de nossa experiência pedagógica: e mais uma vez,
a separação entre Culturas e Educações onde a vida cultural continuava fragmentada, em
guetos, demonstrando de certa forma, a formação deficitária dos educadores(as) para lidar
com esta questão.
O que talvez seja de maior relevância de estarmos tentando ressaltar neste trabalho é
que diversos modos de vida são constantemente recriados por meio de um complexo
processo de produção e divulgação de valores e idéias socialmente determinados que a todo
instante batem a porta da escola, convidando-nos à um constante re-pensar na formação do
sujeito e sua atuação no mundo.
Por isso, acreditamos que a proposta de estarmos dialogando de maneira mais
consciente com as manifestações culturais populares aponta-se como uma das alternativas de
CXXXII
romper com este longo círculo vicioso de exclusão e baixo rendimento escolar, onde o educador
tem papel relevante neste processo. A troca de experiências com este educador /mediador de
conhecimento, que em muitos casos, não teve a oportunidade de experiênciar e/ou refletir sobre
estes valores culturais, pode ser um diferencial importante na elaboração de um currículo
escolar que como nos fala Ariano Suassuna não esteja voltado de costaspara a realidade do
educando.
Esta preocupação também estava presente na movimentação dos protagonistas do II
Congresso Brasileiro de Folclore, onde para Renato Almeida “o problema do analfabetismo no
Brasil poderia ser resolvido “se levássemos em conta o papel do Folclore” propiciando ao
educador o conhecimento do “modo de viver do povo” e evitando que seja “a escola um meio
de desenraizar” os alunos. (VILHENA,1997:195). Como fortalecer o sentimento de
pertencimento a sua cultura(s) se o próprio educador se encontra muitas vezes desenraizado de
sua cultura(s) e saberes? Por isso, sem re-pensar a formação continuada do educador(a) este
desafio talvez seja intransponível.
2. 3 – O mato cresceu ao redor, ao redor, ao redor...
Culturas populares e escolarização: os perigos da “folclorização”
“ Quem nasce na Paraíba, é paraibano
Quem nasce no Amazonas, amazonense
Quem nasce no Paraná, paranaense
Quem nasce em Pernambuco, pernambucano
Quem nasce na Paraíba, é paraibano(...)
( Paraíba/Mestre Darcy do Jongo)
Quais as relações entre a valoração da experiência de vida de cada indivíduo com o
processo ensino-aprendizagem que tanto perseguimos nas escolas? Como determinados sujeitos
organizam e re-significam seus objetos de conhecimentos? O que seus modos e costumes
culturais traduzem? E como nós, educadores, estamos percebendo este fluxo e refluxo entre as
culturas dentro do espaço escolar?
CXXXIII
Lembro-me que quando cantava o ponto de Jongo descrito acima, as crianças e
adolescentes nascidos fora da grande metrópole do Rio de Janeiro, identificavam-se e se sentiam
acolhidos com esta cantiga. Seus olhos ganhavam um brilho novo, como se rememorassem
fragmentos de suas vidas. Era um trabalho de evocação da memória e com ela, uma série de
histórias e saberes iam sendo relembrados. Lembro-me especificamente de duas destas crianças
que tiveram voz e espaço para rememorar suas vidas em pequenos projetos em sala de aula: uma
menina que se chamava Janeide, que nasceu na Paraíba e Jakson, que apesar de ter nascido nesta
cidade, tinha como herança cultural as histórias do Maranhão, onde sua mãe havia nascido. Com
Janeide, desenvolvíamos nossa corporeidade dançando muitos “cocos” originários da Paraíba.
Janeide é paraibana e veio morar no Rio de Janeiro com sua avó. Era uma situação dramática,
pois não sabia nada sobre sua mãe, que havia ficado por lá.
Ao ser estimulada a falar sobre seu local de origem, sentia que isso a ajudava a elaborar
um pouco essa perda e ao mesmo tempo, Janeide nos ensinava a conhecer melhor este lugar tão
desconhecido para nós. No final daquele ano, Janeide foi aprovada e veio muito feliz me contar
que sua avó e ela iriam voltar para a Paraíba. Ela iria ficar perto dos tios e primos, perto “dos
meus” como ela mesma falou. Às vezes, lembro-me dela e me pergunto: por onde andará esta
menina de personalidade “arretada” e que tanto ensinou e encantou? Será que algum dia nos
reencontraremos?
Figura 29
Janeide fazendo um pião de brinquedo com material reciclável
CXXXIV
Jakson era um ótimo contador de histórias e, com a prática, ficou cada vez melhor.
Vivia contando piadas e historietas engraçadas, fatos do dia-a-dia para os colegas. Quando
descobriu que sabia o que pensava não saber, sua vida escolar foi tomando nova consistência e
sabor. O trabalho girou em torno da fabulação, visto que ele conhecia a história do Bumba -meu-
boi através de sua mãe. Esta “troca” de papéis em que o educando passa a ser “educador” e vice
versa, nos leva a pensar que se buscamos uma educação voltada para a democracia, é preciso
descentralizarmos cada vez mais o conhecimento, abrindo espaços para que “outras” vozes
assumam o “poder de saber”.
Figura 30
Nesta foto, Jakson segura um boizinho que uma amiga havia trazido para mim do
Maranhão. Aprendeu rapidamente a história do Bumba-meu-Boi e não se cansava de contá-la
para os amigos.
Acredito que a partir de fatos e falas retiradas deste espaço atravessado por diferentes
visões de mundo, construímos até aqui um suporte expressivo de experiências e reflexões que nos
possibilita ousar fazer um vôo mais panorâmico sobre o território da escola, buscando perceber
como os saberes populares estão contidos neste universo tão particular e ao mesmo tempo, com
hábitos e estruturas tão universais: a cultura escolar.
Por isso, proponho neste capítulo, uma reflexão sobre a relevância ou não da valoração
dos saberes de origem popular dentro do espaço formal da escola, anunciando que
inevitavelmente, estaremos penetrando no argiloso campo do currículo e conteúdos escolares.
CXXXV
Evitando as clássicas armadilhas que hora desmerecem ou romantizam as culturas
populares, apóio-me mais uma vez nos estudos de Roger Chartier para em primeiro lugar, buscar
identificar de que “popular” estou me referindo neste trabalho:
O "popular" não está contido em conjuntos de elementos que bastaria
identificar, repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo
de relação, um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade,
mas que são recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras. Tal
constatação desloca necessariamente o trabalho do historiador, já que o obriga
a caracterizar, não conjuntos culturais dados como "populares" em si, mas as
modalidades diferenciadas pelas quais eles são apropriados”.(CHARTIER,
1995:182 ).
Nesta parte do texto, Chartier chama a atenção para a necessidade de ao invés de
focarmos nas “produções populares”, como se este fosse um produto que nascesse pronto ( um
“Pirlimpimpim” mágico?) seria mais enriquecedor deslocarmos o nosso olhar para a elaboração
de uma história social dos usos e das interpretações”(CHARTIER,1995:182 ) prestando atenção
às condições de produção de sentido que sujeitos encarnados constroem e resignificam
determinados costumes culturais.
Figura 31
Esta escola é uma das parceiras da Escola de jongo da Serrinha ,localizada bem próximo
de nosso Centro Cultural em Madureira/RJ. Neste dia, nossa Escola tinha sido convidada para
se apresentar na culminância do projeto de Folclore realizado naquele mês. (Mural da Escola
República Dominicana/ Mês do Folclore/2008)
CXXXVI
Se acreditarmos na prática ativa de sujeitos construtores de mundos e sentidos, talvez
possamos nos aproximar mais de uma abordagem que considere os contextos de produção, as
relações e os usos culturais que públicos muito diferentes fazem de seus objetos de
conhecimentos, do que ancorarmo-nos na equivocada visão de que as práticas culturais são “um
sistema neutro de diferenças” esquecendo que “tanto os bens simbólicos como as práticas
culturais continuam sendo objeto de lutas sociais onde estão em jogo sua classificação, sua
hierarquização, sua consagração(ou ao contrário, sua desqualificação).(CHARTIER,1995:182-
183)
Voltamos então a uma questão recorrente nesta pesquisa: quem classifica ou desclassifica,
valora ou desvaloriza as culturas? E principalmente, o fato da cultua popular ser desmerecida em
detrimento de uma cultura eleita como “culta ou erudita” impede o trânsito e o fluxo entre as
culturas? È possível controlar o supostamente controlável, ou a despeito das querências de
determinados grupos sociais, as fronteiras e territórios não estão tão delimitados assim?
Este pensamento vem derrubar algumas crenças que norteiam muitas vezes a ação
educativa dentro das escolas: primeiro de que a de que a cultura “popular” se caracteriza apenas
pelo produto cultural que certos grupos sociais manifestam; a de que a “cultura popular” é a
“irmã pobre da cultura “erudita”.
Pensando assim, a hierarquia curricular nos leva a acreditar que a cultura dominante é
universal. No entanto, quando abrimos a porta da escola para as crianças das classes populares,
os seus saberes e dizeres, suas lutas e todo um conjunto construção simbólicas “entram junto”,
misturando e sendo misturados, transformando e se deixando transformar a partir dos usos que
estes mesmos sujeitos ativos fazem em relação aos novos conhecimentos que a “cultura oficial”
da escola lhes apresenta.
Podemos ou não aprisionar os saberes? Existe intercâmbio cultural? Quais os limites da
criatividade e inventividade humana? Para efeito de exemplificação, recorro aos versos de
Antonio Vieira, não o jesuíta célebre, mas o poeta nordestino batizado em sua homenagem. Seus
versos mostram como na prática os encontros e desencontros culturais foram forjando a imersão
em territórios culturais desconhecidos, que aos poucos, foram se tornando híbridos e plurais. Ou
seja, como a escola pode não ser pluriversal como nos fala a poesia a seguir?
A nossa poesia é uma
Eu não vejo razão pra separar
Todo o conhecimento que está cá
CXXXVII
Foi trazido dentro de um só mocó
E ao chegar aqui abriram o nó
E foi como se ela saísse do ovo
A poesia recebeu sangue novo
Elementos deveras salutares
Os nomes dos poetas populares
Deveriam estar na boca do povo
Os livros que vieram para cá
O Lunário e a Missão Abreviada
A donzela Teodora e a fábula
Obrigaram o sertão a estudar
De repente começaram a rimar
A criar um sistema todo novo
O diabo deixou de ser um estorvo
E o boi ocupou outros lugares
Os nomes dos poetas populares
Deveriam estar na boca do povo
No contexto de uma sala de aula
Não estarem esses nomes me dá pena
A escola devia ensinar
Pro aluno não me achar um bobo
Sem saber que os nomes que eu louvo
São vates de muitas qualidades
O aluno devia bater palma
Saber de cada um o nome todo
Se sentir satisfeito e orgulhoso
E falar deles para os de menor idade
Os nomes dos poetas populares.
(Poesia Antonio Vieira)
O seu desejo, sobre quais saberes deveriam estar na “boca do povo” rompe com uma
visão dicotômica e universalista que temos da cultura - ou culturas privilegiando o plural. As
culturas se misturam, hibridizam e os encontros e desencontros culturais obrigam, impulsionam,
abrem possibilidades e brechas para novos conhecimentos.
O poema acima segue em direção a noção de circularidade e pertencimento do saber que
legitima outros saberes e não apenas aqueles hierarquizados pelo currículo formal que (re)tira os
nomes dos poetas populares do contexto das salas de aulas, e por (re) tirá-los eles passam a ser
desconhecidos, lembrados, guardados e por este motivo, o poeta se entristece e tem pena. Um
poeta que reclama em seus versos pelo direito da criança ao acesso a um conhecimento que lhe
está sendo negado: os saberes e dizeres das classes populares secularmente silenciados,
desmerecidos, diminuídos.
CXXXVIII
Refiro-me agora, à escola como um espaço fronteiriço entre os saberes, e reconheço de
antemão, os embates e conflitos que tal paradigma suscita, principalmente porque não como
obter receitas prontas, visto que os sujeitos são únicos e singulares, mas acredito na
necessidade de se apontar algumas possibilidades de interferências pedagógicas voltadas para a
valorização da diversidade cultural existente em nosso país.
A esse respeito, gostaria de trazer para o diálogo com o leitor/leitora, algumas situações
que venho vivenciando neste delicado território escolar. Os diálogos recolhidos apontam para a
necessidade de repensarmos constantemente nossa práxis educativa, assim como nossas crenças
sobre as manifestações culturais e as culturas escolarizadas tão marcadas pelas polarizações
entre as culturas: a popular e a erudita.
Com isso, busco neste momento, mais uma vez, problematizar determinadas culturas
naturalizadas no cotidiano escolar e evidenciar algumas cenas que presenciei no interior da
escola, e que descrevo a seguir. Pequenas situações recorrentes da prática educativa de muitos
professores. Falamos mais uma vez de educação ou educações, valendo-me insistentemente do
plural.
Durante o emblemático mês de Agosto, estava eu observando os murais referentes ao
mês do Folclore na Escola Municipal República Dominicana, em Madureira/RJ, que é uma das
parceiras do Jongo da Serrinha. Todos os murais falavam sobre o mesmo assunto: histórias
sobre Saci, mula-sem-cabeça, Ditados Populares, Parlendas, Trava-línguas etc. Um deles,
falava sobre Literatura de Cordel e cheguei mais perto para ler o que as crianças haviam
produzido, quando uma das professoras se aproximou e desabafou:
Diálogo 1:
- Pena que eles não gostaram de fazer esta atividade! Não se interessaram e tive que forçá-los
a fazer, senão não saía. Tiveram muitas dificuldades para escrever os Cordéis.
- Talvez este assunto o fosse, naquele momento, interessante mesmo para as crianças
aprenderem – respondi.
A professora rapidamente se afastou e eu continuei a olhar os trabalhos, porém desta vez
um infinidade de perguntas me invadiu o pensar: Por que as crianças não se interessaram pelos
Cordéis? De que maneira as crianças tiveram contato com este gênero textual que fala tanto de
nossa brasilidade?
CXXXIX
Por tratar-se de uma abordagem pedagógica, que escolarizou a poesia, que
possibilidades criou para um contato efetivo com a literatura de cordel e os cordelistas? Por
que a atividade, que em tem por princípio a poesia e a brincadeira com as palavras, tornou-se
uma obrigação, um dever sem sentido para as crianças? A atividade virou atividade de um dia
só, como tantas outras que encontramos nas escolas? Que aprendizado as crianças tiraram desta
atividade, se a mesma virou um conteúdo como qualquer outro? Os nomes dos poetas
populares, como nos alerta Antonio Vieira foram parar na boca do povo?
Encontro na fala de Joel Rufino, algumas questões que vão ao encontro das aspirações
do projeto Tangolomango.
Bom, eu acho que o que tem dificultado a alfabetização no Brasil é uma
razão econômico-social. É o fato de que grandes parcelas da população
estão excluídas da escola. Negros, brancos, mestiços, enfim, estando
excluídos, a alfabetização vai se ressentir. Agora, em segundo lugar, se
pode pensar naquilo que falávamos antes: que a não incorporação à
pedagogia brasileira geral, dos elementos principais dos contextos
culturais que temos, resultou em algum prejuízo. Então, se poderia dizer
que, em segundo lugar, as crianças negras têm dificuldades de
alfabetização, de aprendizado na escola, porque nada que é do seu
mundo foi incorporado pela escola. Da mesma forma se poderia repetir o
raciocínio para a população indígena, para as crianças indígenas.
64
Diálogo 2:
- Professora, que hora que a senhora vai começar a aula?
- A aula já começou faz tempo – respondo com calma.
- Começou, não. Até agora brincamos e a senhora não passou nenhum trabalho no quadro
pra gente copiar. Eu quero estudar!
- E o que é estudar? – questiono - Estudar é copiar as coisas do quadro. Fazer dever.
Diálogo 3:
Estava pesquisando no CIEP sobre o Tangolomango, revendo diários e alguns apontamentos
quando a Coordenadora Pedagógica que eu o via algum tempo chegou. No momento em
que nos vimos, nos abraçamos e ela começou a me apresentar para o psicólogo que estava
sentado em outra mesa:
64
Entrevista de Joel Rufino para “Um salto para o futuro” Disponível em:
http://www.redebrasil.tv.br/salto/
CXL
-Esta é a Marisa. Ela foi professora aqui do CIEP. Você pode conversar com ele sobre sua
pesquisa, Marisa. Ele está trabalhando na turma de Projetos, antiga Progressão e tem alguns
alunos que foram seus e ainda estão lá.
-É mesmo, quis são? - Indaguei curiosa e um pouco triste em saber que crianças que passaram
pelo Tangolomango ainda se encontravam sem saber ler e escrever.
-O Fabrício eu tenho certeza o restante só olhando com ele.
E então, quando ia sentar ao lado do psicólogo para conversarmos melhor, a coord. falou:
- Marisa é uma professora muito animada. Lembro que um dia, ela trouxe um boi e contou
histórias no pátio para criançada toda. Foi muito bom. Ela é do tipo de professora que
trabalha bem em uma Sala de Leitura, com projetos fora de sala, brincadeiras, sabe?”
Os diálogos acima demonstram um pouco do que se passa no imaginário das crianças e
dos professores sobre este lugar que chamamos “escola”. O que pensam mesmo quando não
lhes é permitido verbalizar: escola é lugar de dever e de copiar, que haviam sido formados
naquela cultura escolar e o quanto difícil era para eles se permitirem outro tipo de pulsação
dentro da escola. sabiam copiar. A aula para eles se resumia em copiar. Eram excelentes
copistas. Precisava, através da palavra-ação transformar aquela realidade que tanto me
incomodava. Quando assisti ao filme “Estamira” lembrei das crianças, pois a própria Estamira,
que é uma catadora de lixo, em uma de suas críticas à sociedade se referia a escola como
“escola copiadora”. Estava certa a Estamira.
Falas que também denunciam o que outras pessoas pensam sobre minha prática
educativa, minha ação docente.
Diálogo 4:
Era o ano de 2002. Termino a aula e vou devolver meu diário na direção do CIEP quando a
diretora Margarete me diz:
- Ligou um pessoal da MULTIRIO perguntando se aqui tinha alguma professora que
trabalhasse com as questões raciais porque eles querem fazer uma reportagem sobre o assunto
agora no mês de Novembro, dia de Zumbi.
- Que legal, você falou do Tangolomango? – quis logo saber.
CXLI
Sim, falei. Achei engraçado o jeito que ele falou : - Mas esta professora trabalha com estas
questões somente no mês de Novembro ou durante todo o ano? durante o ano todo, afirmei.
Então ele aceitou fazer a entrevista e talvez faça um programa para a TVE
65
também.
A idéia de que se continuarmos reproduzindo este paradigma hegemônico onde a
simples transposição da cultura popular para dentro da escola torna-se uma estratégia pouco ou
quase nada produtiva em termos de buscar fazer com que “os nomes dos poetas entrem na boca
do povo”, o desafio que se apresenta como metodologia de projeto pedagógico é o inverso:
transformar a escola em lugar de cultura, ou lugar de culturas para contemplarmos a diversidade
da Cultura Popular. Uma escola que ofereça as crianças a oportunidade de ler o mundo pela
lente da cultura e das trocas culturais.
Esta é a diferença. Diferença de olhar, de rota, e conseqüentemente, de caminho e
destino e de chegada também. É outro o ponto de partida e conseqüentemente, um outro ponto
de chegada. Senão, continuamos trocando “seis por meia zia” como nos fala a sabedoria
popular, ou como nos alerta Freire (1983), continuaremos sendo “invasores culturais”. E era
assim que eu me sentia quando cheguei no CIEP: uma invasora cultural.
Diálogo 5:
“Certo dia ia do centro da cidade para Madureira e como tinha que levar os uniformes da
Escola de Jongo, entrei em um táxi. O trajeto é grande e com o tempo, comecei a puxar
conversa com o motorista. Falávamos sobre o cotidiano fugidio da cidade quando ao
chegarmos no viaduto de Madureira, passando em frente ao Mercadão de São Sebastião nossa
conversa rememorada, deu-se mais ou menos assim:
- Que lugar feio, Madureira. A senhora não acha?(Apesar de eu não ter nascido em
Madureira, aquela observação me incomodou e eu saí em defesa daquele lugar que me é tão
caro afetivamente).
- É. Realmente Madureira foi crescendo - como muitos bairros - de uma forma desorganizada,
o que esta aparência feia mesmo. Mas...Madureira tem muita cultura. Nunca vi um bairro
assim!
- Cultura!!! – falou o motorista surpreso – onde a senhora vê cultura aqui?!?
- Bem, acabamos de passar em frente ao Mercado de São Sebastião do Rio de Janeiro, que
além de levar o nome do padroeiro de nossa cidade, é uma referência para a cidade. Um lugar
onde circula uma diversidade de pessoas e são vendidas uma infinidade de coisas,
praticamente tudo que você precisa você encontra lá. Depois, passamos em frente a Escola
65
Durante o desenvolvimento do projeto Tangolomango, gravamos dois programas “Um salto para o futuro da antiga
TVE, hoje TV Brasil participamos de uma reportagem para a revista “Nós da Escola” da MULTIRIO, nº de
Novembro de 2002.
CXLII
Carmela Dutra, uma escola muito antiga de Formação de Professores e muito importante para
a região. Não sei se o senhor sabe, mas de Escolas de Samba temos duas: a Portela e a
Império Serrano e pra terminar, estamos chegando na Serrinha, onde temos o Jongo que é
considerado o pai do Samba e é Patrimônio Imaterial da Cidade do Rio de Janeiro. O senhor
já ouviu falar do Jongo da Serrinha?”
O motorista ficou surpreso com minha resposta. E de certa forma, desconcertado
também. Concordando ou não, o importante é que ele parou para pensar. Em sala de aula, nossa
relação com esta palavra tão emblemática, a cultura, também perpassava por estas provocativas
rupturas. Ou seja, ousávamos de alguma maneira fugir da alienação e conseqüente
subalternização à qual os meninos e meninas das classes de Progressão estavam imersos.
Lutávamos, eu e as crianças “pela recuperação da humanidade roubada”(FREIRE, 1983,p.100),
tendo o diálogo como ato de criação e transformação. Por isso, buscava as mais variadas
maneiras das crianças se expressarem através da palavra. Recuperar o poder da fabulação era,
ao meu ver, o primeiro movimento para que tomassem consciência do poder da palavra
enquanto formadora e transformadora de mundos. Desde movimento dialógico, íamos
selecionando e construindo nosso currículo.
Agora, compreender o diálogo como ferramenta de formação humana, pressupõe um
movimento de escuta imprescindível do educador que acredita que “a palavra não é privilégio
de alguns homens, mas direito de todos os homens”.(FREIRE,1983:92)
“Daí que para esta concepção como prática de liberdade, a sua
dialogicidade comece, não quando o educador-educando se encontra
com os educandos-educadores em uma situação pedagógica, mas antes,
quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes. Esta
inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em torno
do conteúdo programático da educação.”(FREIRE, 1983: 98).
Chegamos então a questão do currículo escolar que na perspectiva freiriana deve ser
construído a partir do conteúdo do diálogo que elegemos como importante acentuar. A seleção
prévia do que queremos dialogar com nossos educandos. Que tipo de diálogo com as crianças
das classes populares queremos ter? Ao definimos sobre o que queremos comunicar, estaremos
CXLIII
delineando o conteúdo de currículo que acreditamos ser necessário nossos educandos
conhecerem e terem contato.
E é neste ponto em que o Projeto Tangolomango se diferenciava das outras propostas
curriculares apresentadas por aquela cultura da escolar. Era no cotidiano de nossas
ações/reflexões que mergulhávamos a todo instante neste universo infinito de possibilidades
que as diversidades culturais de nossa sociedade apresenta, indo de encontro ao que considero
ser uma “escola de um dia só”, buscando sobretudo compreender os motivos que levavam os
meninos e meninas das classes de Progressão não conseguirem aprender.
Brandão analisa esta questão da seguinte forma:
Eu costumo dizer que se uma escola se lembra das culturas populares na
semana de 22 de agosto, é melhor não fazer coisa nenhuma.
Partir dessa visão aulista”, monológica de um professor ensinando aos
alunos, quem sabe dando a quem não sabe, aquilo que Paulo Freire chamava de
uma educação bancária, para uma educação dialógica que parte inclusive
daquele princípio de que eu falava, de que cada criança, cada pessoa é uma
fonte original de saberes, é uma experiência única e irrepetível de saberes.
66
O movimento do projeto Tangolomango era contra-corrente e ia de encontro a esta
escola que funciona como a “escola de um dia só”. Importante ressaltar que nossa turma era
muito requisitada todo mês do Folclore e os outros professores da escola pediam para irmos em
suas salas para mostrarmos nossos saberes que neste momento faziam parte do conteúdo
curricular. Isso me incomodava, mas incomodada mesmo íamos de sala em sala mostrando
nossas experiências, que para nós, tinha muito sentido, era nossa identidade e por isso, nos fazia
diferentes, não apenas aquele período do ano, mas durante o ano inteiro.
66
Entrevista de Carlos Rodrigues Brandão para “Um salto para o futuro” Disponível em:
http://www.redebrasil.tv.br/salto/
CXLIV
CXLV
3 – ERAM NOVE IRMÃS NUMA CASA
O Tangolomango como experiência
“Você diz que sabe, sabe,
você diz que sabe lê,
então pega na cartilha
e me ensina o ABC.
(“Eu tenho pena” Darcy do jongo/Ponto de Demanda)
“Com amor no coração / preparamos a invasão.
Cheios de felicidade/ entramos na cidade amada(...)
Com a espada de Ogum/E a benção de Olorum
Como num raio de Iansã/
Rasgamos a manhã vermelha(...)”.
(Caetano Veloso/ Os Mais Doces Bárbaros)
É suficiente pensar que a formação do educador seja constituída apenas do curso de
formação de professores ?
A partir desta questão, busco, neste capítulo final, discutir a respeito das
experiências do projeto Tangolomango em minha vida profissional e na vida das crianças e
adolescentes que compartilharam esta aventura pedagógica comigo. Proponho começar com as
palavras Tangolomango e Experiência pois, o sentido que damos às palavras que elegemos
ajuda a definir quem somos, o que queremos e como queremos comunicar. Comecemos pelo
nome que escolhemos para a pesquisa, o Tangolomango.
CXLVI
Tangolomango como anunciei no início, é o nome de uma cantiga popular de
construção e reconstrução textual que possibilita às crianças operacionalizarem ludicamente o
conceito de número.
Pela força motivadora que tal brincadeira representa, posso afirmar que o
Tangolomango foi vivido como experiência seminal: era movida pela intuição e me deixava
navegar, permitindo descobrir, ou melhor, re-descobrir, novos modo de educar. Logo depois,
fui percebendo que intuir apenas não bastava. Foi necessário dialogar com outros espaços que
possibilitassem apreender melhor minha prática docente, como os cursos no Museu de
Folclore Édson Carneiro, os de Contação de Histórias, no Paço Imperial, entre outros, sempre
buscando um diálogo mais profundo entre Culturas Populares e Educações.
Passemos, então, à segunda palavra escolhida: Experiência? Experiências? O que
dizer desta palavra? Como definir, sentir ou me apropriar epistemologicamente dela?
Experiência (ou melhor, experiências) vem sendo discutida muito tempo por
alguns teóricos da Educação. Gostaria, inicialmente, de recorrer a dois deles: Dewey e
Larrosa, que, em tempos distintos, dispuseram-se a refletir sobre o valor desta palavra no
campo educativo. Não pretendo aproximar autores tão distantes em termos históricos e
conceituais, mas acredito que cada um deles abordou aspectos diferentes que se prestam ao
diálogo com o que foi vivido no meu fazer-com aqueles meninos e meninas.
Voltando à palavra experiência, encontro nos estudos de Dewey a seguinte
afirmativa: toda experiência vive e se prolonga em experiências que se sucedem (DEWEY,
1976:16). Nesta frase, o autor propõe uma idéia de continuidade, de desdobramentos de
experiências. Em Dewey, o conceito de contínuo e sucessão de experiências é base de novas
experiências.
Imagino que uma experiência acrescida de outra resulte em uma nova experiência,
base, raiz, passado, formação, memória. Enfim, tantos são os nomes do somatório do que nos
constitui ao longo de diferentes espaços e tempos. Como nos fala os versos da canção “cada
um sabe a dor e a delícia de ser o que é”
67
. E quão difícil é, às vezes, expressar os pesares e
prazeres vividos.
67
“Dom de iludir” Caetano Veloso / letras.terra.com.br/caetano-veloso/44719/
CXLVII
Por isso, tendo como ponto de partida os estudos de Dewey, penso a complexidade
deste conceito “experiência”. Ao falarmos de turmas de progressão, falamos de crianças e
adolescentes que tiveram, ao longo de seu processo de escolarização, experiências negativas
em relação à aquisição da leitura e da escrita, que quase sempre resultaram em uma grande
resistência ou desistência por conta de reais dificuldades de se apropriar deste tipo de saber: a
leitura e a escrita.
Dificuldades estas que eles trazem em suas experiências e que, somada às do educar
na escola, se revelam estagnadoras e, portanto, dificultadoras (e não potencializadoras) das
experiências positivas. Ouso perguntar: Até que ponto, as falas e rótulos negativos que ecoam
pelo ambiente escolar, as palavras recheadas de pré-conceitos sobre sua aparente incapacidade
de alfabetização, não colaboram para cristalizar e alimentar ainda mais o sentimento de
inferioridade e desinteresse destas crianças? Podemos continuar nos questionando: Quantas
violências simbólicas e subalternidade também são disseminadas na experiência escolar?
Trago estas questões em forma de perguntas por que desconfio que mesmo o que
vai de encontro ao modo de ser e aprender das crianças nem sempre consegue efetivamente
paralisá-las. Ás vezes, este movimento “sai pela culatra” como nos diz a sabedoria popular. E
o que era para paralisar, acaba por promover, dentro do indivíduo, força e determinação
necessária à superação das situações-limite, discutidas por Freire. De alguma maneira, muitos
sujeitos se insurgem contra esta situação opressora e conseguem “levantar, sacudir a poeira e
dar a volta por cima”. O que era para deixar o sujeito cada vez mais subalternizado acaba por
lhe facultar a energia necessária à reação, ao posicionamento crítico e à tomada de
consciência. Neste sentido, o que era para ir de encontro vai ao encontro.
Penso nestas questões especialmente depois de ler o livro de Alberto Manguel
intitulado “Uma história da Leitura”. No capítulo denominado “Leituras proibidas”, o autor
fala como a proibição de aprender a ler e escrever motivou alguns heróicos negros afro-
americanos escravizados justamente a aprenderem a ler e escrever. Mesmo que arriscassem
suas próprias vidas para que isso acontecesse. A circunstância vivida pelos negros
escravizados (bastante conhecida no Brasil) em nada favorecia a alfabetização daquelas
pessoas e existia total vigilância sobre algum negro que demonstrasse interesse em aprender e
ensinar os seus pares a ler e escrever.
CXLVIII
Para os senhores de escravos, ler e escrever era (era?) um privilégio e uma forma de
dominação. A ignorância que os negros encontravam em relação a este saber era uma
estratégia que fortalecia o lugar subalterno destinado a eles e, por isso, deveria ser mantida a
qualquer preço.
Entretanto, mesmo com todos os riscos, havia os que curiosamente se insurgiam
contra a “ordem” vigente e não teimosamente aprendiam a ler, mas também passavam a
ensinar os “seus”. É como se o sujeito, em determinado momento, pensasse: - Eles estão
querendo que eu desista, que eu abandone, que eu não insista, que eu não vença. Pois agora,
sim, é que eu não vou desistir, não vou abandonar, não vou me entregar.
Vejamos o exemplo que o próprio Alberto Manguel nos traz:
O escritor americano Frederick Douglass, que nasceu escravo e se tornou um
dos mais eloqüentes abolicionistas de seu tempo, bem como fundador de vários
periódicos políticos,relembra em sua autobiografia: "Ouvir minha dona
sempre ler a Bíblia em voz alta [...] despertou minha curiosidade em relação a
esse mistério da leitura e estimulou em mim o desejo de aprender. Até aquela
época, eu não sabia nada dessa arte maravilhosa, e minha ignorância e
inexperiência sobre o que ela poderia fazer por mim, bem como a confiança
em minha senhora, animaram-me a lhe pedir que me ensinasse a ler [...] Num
período de tempo incrivelmente curto, com seu generoso auxílio, dominei o
alfabeto e consegui soletrar palavras de três ou quatro letras... [Meu senhor]
proibiu-a de me dar mais instrução... [mas] a determinação que ele expressou
em me manter na ignorância apenas me deixou mais decidido a buscar
compreensão. No aprendizado da leitura, portanto, não sei se devo mais à
oposição de meu senhor ou ao generoso auxílio de minha amável senhora".
Thomas Johnson, escravo que depois se tornou um conhecido pregador
missionário na Inglaterra, explicou que havia aprendido a ler estudando as
letras de uma Bíblia que roubara. Como seu dono todas as noites lia em voz
alta um capítulo do Novo Testamento, Johnson o persuadia a ler o mesmo
capítulo repetidamente, até que o soubesse de cor e pudesse achar as mesmas
palavras na página impressa. Da mesma forma, quando o filho do dono estava
estudando, Johnson sugeria que o menino lesse parte de sua lição em voz alta.
"Senhorzinho, leia isso de novo", dizia Johnson para encorajá-lo, e o menino
repetia a leitura, achando que Johnson estava admirando seu desempenho.
Por meio da repetição, aprendeu o suficiente para ler jornais quando começou
a Guerra Civil e, mais tarde, abriu uma escola para ensinar os outros a
ler.(MANGUEL, 1997158)
CXLIX
A aprendizagem da leitura e escrita não facultou diretamente liberdade aos negros,
mas, de alguma forma, abriu possibilidades de começar a lutar com as mesmas “armas do
inimigo”. Podemos pensar que, contemporaneamente, aprender ler e escrever, se não estiver
ligado a um projeto político de homem e de mundo preconizado por uma educação libertadora,
apenas faculta ao indivíduo a capacidade de codificar e decodificar signos lingüísticos, mas é
insuficiente para permitir, ao indivíduo subalternizado, a capacidade de insurgência contra a
ordem social elitista, que separa homens em classes e lugares de pertencimento. Neste sentido,
as possibilidades disso acontecer são negadas.
Pelo que pude observar nas turmas com as quais trabalhei, uma experiência
negativa, reiterada sucessivamente, deixava marcas significativas na formação daquelas
crianças. O que percebia mais claramente era uma verdadeira aversão ao ato de ler e escrever
em sala de aula. A idéia de ressonância - onde ondas sonoras, inicialmente pequenas,
produzem, reverberam e impulsionam outras, outras e mais outras - ilustra bem este caso.
Revolta e resistência eram sentimentos que pairavam no ar, invadiam os corredores e as salas
de aula, tornando o ambiente muito hostil. Neste sentido, trabalhar as relações de afeto era
fundamental. Mexer com as emoções, sensibilizar e mostrar outros modos de aprender era o
meu desafio.
Olhando sob outro aspecto, a palavra experiência, no sentido apontado por
Larrosa
68
, “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca, não o que se passa, não o
que acontece, ou o que toca” (LARROSA, 2002:21). Ao longo do texto, fica clara a intenção
do autor em aliar experiência e sentido, duas palavras caras para este autor.
Apoiando-me na perspectiva de Larrosa, que compreende a experiência como algo
individualizado, sendo este o motivo pelo qual as experiências são sempre diferentes,
singulares e plurais, entendo hoje que o Tangolomango (como experiência) buscava
transformar a aula em acontecimento, em situações que nos tocassem e nos atravessassem.
Pelo menos era assim que funcionava o Tangolomango como experiência. Ao nos tornarmos
cada vez mais sujeitos de uma experiência, podíamos mexer com o tempo tão fugidio do
68
Disponível em: http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/rbde19/rbde19_04_jorge_larrosa_bondia.pdf
CL
apressado mundo ao nosso redor. Compreendo que o Tangolomango buscava oxigenar aquele
mundo de tarefas e obrigações que nos atropelam e não possibilita a abertura para:
parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais
devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião,
suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da
ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos,
falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros,
cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço.(LARROSA,2002:19)
Desejando uma escola diferente da que não “pode parar” (onde o excesso de
informação se tornou erroneamente sinônimo de experiência, como nos fala Larrosa), fomos
aos poucos organizando o nosso tempo, ora esticando, ora colocando um pouco mais de ritmo,
buscando algo que fizesse pulsar sentimentos, valores, conflitos e questões mais vitais para os
seres humanos: o valor da vida; da vida em comunidade.
Uma escola conteudista, sedimentada apenas na perspectiva do excesso de
informação, impossibilitando que vínculos mais profundos sejam construídos entre os sujeitos,
acaba por ilhar e distanciar docentes e discentes, tornando-os desconectados de suas culturas.
A inclusão de palavras como acolhimento, afeto, amorosidade, corporeidade, no currículo
escolar, é dificultada pelas conseqüências desta concepção mecânica do corpo, como salienta
Najamanovich. Assim, o sujeito se transforma em uma abstração incorpórea”. Em
contrapartida, a autora vai nos desafiando a compreender o corpo “não somente como um
território próprio, mas como um lugar de encontro”. (NAJAMANOVICH, 2002:103).
Um corpo pensado como lugar de encontro, mas também de desencontros. Um
corpo em constante transformação, que participa ativamente, através das possibilidades ou
mesmo impossibilidades, narrando sua história ou histórias. Um corpo carregado de histórias.
Neste sentido, as considerações de Najamanovich são riquíssimas:
Trata-se, então, de formar outros corpos de sentido, de buscar outras
tramas possíveis, de religar o corpo ao sujeito e este aos outros e ao
CLI
cosmos, em inúmeras histórias possíveis e, cada vez mais, necessárias. (
NAJAMANOVICH, 2002: 109)
O modelo apresentado acima incorpora a necessidade urgente de nos religarmos.
Corpo e mente já não mais separados, dicotomizados, compartimentados. A escola pode vir a
ser um espaço favorável para que tais mudanças e transformações aconteçam? Acredito que
sim. Entretanto, operar em outra lógica de produção de sentidos requer um olhar mais sensível
do educador(a) que se insurge descobrindo novas possibilidades e linguagens educativas.
Lembro-me de que, certa vez, fizemos um projeto pedagógico sobre o CIEP e
depois de desenharmos nossos lugares preferidos e conhecermos um pouco mais sobre a
história da escola, levei o texto de Paulo Freire que nos ajudou a entender melhor o sentido de
se viver a escola como um espaço de se criar vínculos. Era o que dizia o texto lido:
“Escola é lugar onde se faz amigos,
não se trata só de prédios, salas, quadros,
Escola é, sobretudo, gente, gente que trabalha, que estuda,
Que se alegra, se conhece, se estima. (...)
Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,
É também criar laços de amizade, é criar ambiente de camaradagem,
É conviver, é se ‘amarrar nela’!
Ora, é lógico... numa escola assim vai ser fácil
Estudar, trabalhar, crescer, fazer amigos, educar-se, ser feliz.”
(Paulo Freire/A Escola)
69
69
Disponível em: http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=62693&cat=Poesias&vinda=S
CLII
Figura 32
O acolhimento, a partir do contato corporal fortalece os laços de amizade entre
educadores e educandos, criando um ambiente de “caramadagem” que gera um sentimento
de confiança importante no processo de “lançar-se ao desconhecido” para permitir-se
novamente aprender.
Lembro-me bem que logo no inicio do ano de 2005, solicitei transferência para uma
escola mais próxima de minha casa. Em pouco tempo, estava trabalhando na Escola Municipal
Professor Gonçalves, em Campo Grande. Deixar as crianças com as quais havia criado um
forte vínculo, foi difícil não apenas para mim, mas para as crianças também. Sobre este
assunto, as próprias crianças comentam em entrevista a seguir:
Natália (12 anos):- A gente ficou com saudades. Eu chorei... geral chorou. (se referindo ao dia em que
eu deixei a turma e outra professora assumiu no meu lugar)
Natália (12 anos): - O Willian foi até me buscar no corredor porque eu sai correndo atrás da senhora.
(Todo mundo lembra e ri)
Marisa: - Porque vocês ficaram com saudades?!?(Pergunto um tanto surpresa por eles terem levantado
este assunto de uma hora para outra)
Saiara (12 anos): - A gente sentia falta.
Marisa: - Mas vocês conseguem dizer pra mim do que vocês sentiam falta?
Saiara (12 anos): - Porque a senhora era legal com a gente, porque a senhora era delicada, a senhora
falava com mais calma. As outras não. As outras gritava.
Marisa:- Mas às vezes, eu ficava nervosa também...
Saiara (12 anos): - Às vezes...(silêncio)
Aproveitei a oportunidade da entrevista
70
para explicar novamente os motivos pelos
quais me afastei da turma e confessei que eu também senti saudades. Falei sobre a dificuldade
de me adaptar a uma nova escola, a uma nova turma etc. Mas, falei principalmente sobre os
movimentos de “abrir e fechar portas” que a vida nos oferece e da importância de sabermos
avaliar se vale a pena aproveitar estas oportunidades ou não.
70
Entrevista realizada no CIEP Posseiro Mário Vaz/ Guaratiba/RJ no dia 26/02/08.
CLIII
3.1 – Ciranda cirandinha, vamos todos cirandar
O Tangolomango no Cotidiano da Escola: Interferências Espaciais em duas Escolas
Públicas do Rio de Janeiro
Sabemos que abrir determinadas brechas afetivas, para que as crianças sentindo-se
queridas possam querer aprender, é uma urgência diante do grande fracasso das escolas
públicas em relação à alfabetização das classes populares. Entretanto, fazer o caminho na
contramão nem sempre é fácil e requer uma atitude de escuta por parte do educador(a) e de
tantos outros atores sociais envolvidos no cotidiano da escola.
Diante destas e outras tantas questões relevantes para a construção de uma outra
escola, mais democrática e humanística, voltamos a defender a idéia do diálogo entre
Educações e Culturas. Quem sabe assim, as intertrocas de saberes que acontecem em
diferentes espaços possam ocorrer também dentro e nas fronteiras dos domínios da escola.
Estaremos, neste sentido, multiplicando nossos olhares olhar este tão
condicionado a focar em uma direção, a trilhar um único caminho e a reconhecer somente
um tipo de conhecimento. Buscando romper com este movimento homogeneizador, marcado
pelo sentido ilusório de “universal” que herdamos de uma cultura colonizadora européia,
estaremos buscando fugir à perspectiva definidora e desenvolver propostas educativas mais
plurais e diversificadas em relação às questões imbricadas no processo de ensinar e aprender.
Herança esta, presente profundamente em nossa formação docente também fragmentada e
dicotômica em relação às Educações e Cultura(s), ou entrecruzamentos de Culturas.
Por isso uma opção dinâmica e atual, como declarou Brandão, configura-se na
capacidade e vivacidade da escola ser mais orgânica, mais simbiótica com a comunidade a que
pertence para que o ato de educar consiga gestar e ajudar a atualizar potencialidades infinitas
que cada criança traz consigo ao invés de, como já é feito, enquadrá-la, forçá-la a entrar numa
fôrma pré-moldada.
O Projeto Tangolomango é fruto deste contexto. É também o início de minha
pesquisa junto à alfabetização de classes populares.
Lembro-me de que durante os diálogos que tínhamos em sala, as falas infantis eram
carregadas de várias situações da vida concreta das crianças: no interior do grupo doméstico,
CLIV
na vida fora do horário escolar, nas brincadeiras de rua, assim como o trabalho infantil e as
interações e produções culturais fora do ambiente escolar.
Ouvir as experiências de vida das crianças, aproveitando esses diálogos como
suporte para elaboração de novos conhecimentos e aprendizagens, era uma estratégia
metodológica utilizada por mim para aumentar o sentimento de “pertencimento” em relação
àquele grupo de que faziam parte. Os relatos orais e escritos mostravam um cotidiano
desconhecido para mim e já desconfiava que para ensinar era preciso aprender com eles
também.
Na ilustração que se segue, por exemplo, pude conhecer um pouco mais sobre a
vida cotidiana de Daniel, um menino encantador, que tinha na época muita dificuldade de
aprender a ler e escrever. Sua vida familiar era muito difícil também: morava com a mãe e
mais duas irmãs pequenas, das quais ajudava a cuidar. Quase não via nem falava sobre o pai.
Era um menino extremamente esforçado e carinhoso. Buscava sempre o diálogo para resolver
seus conflitos e adorava desenhar.
Figura 33
(Você trabalha em casa ou na rua? Desenhe e escreva: Eu ajudo a minha mãe lavar prato e
ajudo na casa)
CLV
Daniel desenha a si próprio ajudando sua mãe nas tarefas de casa. Este trabalho foi realizado a
partir do sub-projeto “Criança não trabalha, criança dá trabalho”
71
que desenvolvemos no Dia das
Crianças no mês de Outubro.(Projeto Tangolomango/Turma do Jabuti/2004)
Ao participarmos do concurso da “Folhinha” do Jornal Folha de São Paulo (2004)
sobre o “Trabalho Infantil Doméstico”, as crianças puderam conhecer a cantiga “Criança não
trabalha, criança trabalho” de Arnaldo Antunes
5
. Após lermos e cantarmos seus versos, as
crianças foram convidadas a falarem sobre sua experiência em relação ao trabalho infantil.
Figura 34
(Criança não trabalha/Criança trabalha (no) malabarismo)
Ampliando a discussão sobre os direitos infantis, Daniel expressa sua preocupação com
as crianças que trabalham nas ruas: um menino malabarista ganhando dinheiro nos sinais de
trânsito. Interessante observar que Daniel havia sido avaliado como RM, ou seja, retardado
mental. Daniel não parecia ser retardado mental: aos poucos fui percebendo que a história de
vida daquele menino, havia inibido, por vários fatores, seu desenvolvimento que era “lento”,
mas acontecia. Daniel passou dois anos comigo e hoje, está no Sétimo ano do Ensino
fundamental.
Projeto Tangolomango/ Turma do Jabuti/CIEP/2004.
71
Música” Criança não trabalha” de Arnaldo Antunes. Disponível em: http://letras.terra.com.br/arnaldo-
antunes/91457/ Em, 28/02/08.
CLVI
Os relatos de experiências sobre os fazeres domésticos foram bastante
enriquecedores: como a maioria das crianças cozinhavam, arrumavam a casa, passavam e
lavavam roupas e, principalmente, assumiam muitas vezes a responsabilidade precoce de
tomar conta de seus irmãos pequenos. Percebi que caso fossem estimuladas, elas se
expunham, se deixavam conhecer. Ao mesmo tempo, se conheciam, mais também e tinham a
possibilidade de fazer uma análise sobre as condições precárias de sua própria existência.
Estas falas denunciativas de uma situação de vida subalterna destinada às crianças das classes
populares, continham (contêm) saberes e conhecimentos sobre as atividades reais que viviam
fora do ambiente escolar. Falas queixosas sobre os castigos que recebiam de seus pais e ou
responsáveis, mostrando inclusive marcas de queimaduras ou acidentes domésticos que
aconteceram enquanto trabalhavam.
E foi através do diálogo sobre essas e tantas outras questões pertinentes ao universo
infantil, que pude aos poucos conhecer e desenvolver vários outros projetos didáticos em sala
de aula.
A partir de então, um novo movimento também aconteceu: as crianças começaram
a fazer relatos interessantes sobre nosso cotidiano escolar. As crianças começaram a expressar
suas idéias sobre o funcionamento de nossa sala de aula, visto que nossa rotina diária, por ter
um outro ritmo, carecia de explicações sobre nossa rotina escolar. Ao des-construir alguns
hábitos e crenças já padronizados pela cultura da escola, estávamos criando e re-criando
outros.
Este exercício de criação, e por que não dizer de transgressão, era comum em nossa
proposta educativa. Nos relatos infantis, principalmente quando recebíamos um educando(a)
novo(a) na sala ou um visitante que ficaria conosco apenas naquele dia, ficava bastante
acentuado o quanto as próprias crianças, através de suas falas, repassavam o funcionamento
de nosso cotidiano escolar. No início, confesso não ter prestado muita atenção, ou melhor,
confesso não ter percebido a dimensão do que aquelas falas denunciavam: faltava-me uma
lente teórica para melhor compreensão sobre o que aqueles relatos denunciavam. Mas,
intuitivamente, acreditava ser importante que eles mesmos apresentassem o espaço da sala de
aula sem minha interferência, o que por si ajudava no desenvolvimento da oralidade e
autonomia.
CLVII
As falas foram muitas e seguiam mais ou menos as mesmas descrições: falavam da
sala de aula, da liberdade de andar e se movimentar pelo espaço quando quisessem (desde que
não machucassem nem atrapalhassem a aula); do armário que era da turma toda e não
exclusivamente do professor; mostravam o quadro com a rotina diária - que alguma criança
havia organizado e escrito a partir das sugestões das próprias crianças, como por exemplo:1ª
atividade: música, atividade: leitura, 3ª atividade: jogos no pátio etc- ; explicavam por que
as cadeiras não estavam em filas e por que podiam me chamar pelo meu nome sem precisar
chamar de “tia” etc.
Em pouco tempo, eles explicavam com certo orgulho - que nossa turma era
diferente porque tinha um nome e não apenas um número como todas as outras. Nome que as
próprias crianças haviam escolhido. A proposta de desenvolver na meninada o sentimento de
“pertencimento” ao espaço escolar, fazia com que fossem aproveitadas todas as oportunidades
de “enraizar” os meninos e meninas naquele espaço, que era legitimamente deles pelo tempo
que iriam viver ali e pela experiência perene que carregariam para o resto de suas vidas. Um
ambiente que deveria ser acolhedor e integrador de saberes.
A saber: iniciamos com a Turma do Tangolomango (2002), Turma do Parangolé
(2003), Turma do Jabuti
(2004), Turma do Papagaio (2005) e também, agora já em outra
escola, Turma da Capoeira (também em 2005).
Os nomes eram escolhidos depois de algum tempo de convivência com o grupo.
Fazíamos uma votação sobre as sugestões dos nomes que tivessem maior identificação com a
turma naquele ano. Podia ser uma brincadeira que gostassem muito, o nome de uma história,
de um personagem, de um lugar etc.
Nosso primeiro nome se transformou em projeto de pesquisa: Tangolomango.
Segue abaixo uma das maneiras de brincar com o Tangolomango que trabalhamos em sala:
Tangolomango
(Domínio Público)
Eram nove irmãs numa casa
Uma foi fazer biscoito
Deu um tangolomango nela
CLVIII
E das nove ficaram oito
Eram oito irmãs numa casa
Uma foi amolar o canivete
Deu um tangolomango nela
E das oito ficaram sete
Eram sete irmãs numa casa
Uma foi jogar xadrez
Deu um tangolomango nela
E das sete ficaram seis
Eram seis irmãs numa casa
Uma foi caçar um pinto
Deu um tangolomango nela
E das seis ficaram cinco
Eram cinco irmãs numa casa
Uma foi fazer teatro
Deu um tangolomango nela
E das cinco ficaram quatro
Eram quatro irmãs numa casa
Uma foi estudar inglês
Deu um tangolomango nela
E das quatro ficaram três
Eram três irmãs numa casa
Uma foi andar nas ruas
Deu um tangolomango nela
E das três ficaram duas
Eram duas irmãs numa casa
Uma foi fazer coisa alguma
Deu um tangolomango nela
E das duas restou só uma
Era uma irmã numa casa
Ela foi colher feijão
CLIX
Deu um tangolomango nela
E acabou-se a geração.
Figura 35
(Tangolomango/Eram 9 irmãs numa casa/Uma foi fazer biscoito/deu um Tangolomango nela/e
das 9 ficaram 8)
Um dos exercícios escritos espontaneamente por uma criança a partir da brincadeira
cantada do Tangolomango. Este exercício era um ditado, só que era um “ditado cantado” e
no final, uma criança vinha ao quadro e escrevia sua produção para que outras crianças
pudessem comparar a grafia correta das palavras, melhorando sua escrita. Projeto
Tangolomango/ CIEP/Turma do Tangolomango/2002
O nome “Turma do Parangolé”(2003) partiu do intenso interesse que as crianças
tiveram com a obra “Parangolé” de Hélio Oiticica. Hélio Oiticica foi um dos artistas plásticos
mais revolucionários e transgressores que na década de 1960 criou a obra Parangolé”, que
ele chamava de "antiarte por excelência"
72
. Escolhi esta obra de Hélio Oiticica pelo encanto
que tenho por seu trabalho que concebe a arte como algo que depois de criada, pode ser
tocada, experimentada, vestida e sentida com o corpo. Parangolé pode ser definido como uma
capa que revela a diversidade do material de que pode ser feito, conforme os movimentos que
a pessoa que estiver vestida vá fazendo. Neste sentido, é uma obra móvel.
72
Disponível em: http://www2.uol.com.br/antoniocicero/parangole.html
CLX
Figura 36
Parangolé- Hélio Oiticica
73
Figura 37
Lembro-me que construímos vários Parangolés e andávamos pela escola “vestidos de
arte”. Arte feita pelas próprias crianças. Este trabalho expressa um dos momentos em que
brincávamos com a obra de arte Parangolé” em nossa sala.
Projeto Tangolomango/ Turma do Parangolé/ CIEP posseiro Mário Vaz/2003
A “Turma do Jabuti” (2004) foi escolhida a partir da história “O nome da Fruta”
8
e
elege um dos protagonistas principais da história como nome da turma. Estarei mais à frente,
discutindo sobre as contribuições desta narrativa para o projeto Tangolomango. Por hora,
passemos para a próxima turma.
73
Disponível em: http://somdoroque.blogspot.com/2008/03/parangol-helio-oiticica.html
CLXI
A “Turma do Papagaio” (2005) foi escolhida por causa da pipa, que é um brinquedo
popular muito usado por crianças e adultos no mundo todo, e muito querido na Zona Oeste
do Rio de Janeiro. Ao fazermos uma pesquisa sobre os vários nomes que este brinquedo
apresenta em diversos territórios brasileiros, as crianças gostaram muito da possibilidade de
brincar com a palavra papagaio, que pode ser bicho ou brinquedo. Ficamos com o brinquedo.
Infelizmente, não tenho nenhum registro deste momento.
A acompanhando a linha do tempo do projeto Tangolomango, a “Turma da
Capoeira” (2005) que aconteceu logo a seguir, na Escola Municipal Professor Gonçalves
(2005) teve sua escolha nas manifestações corporais das próprias crianças que adoravam fazer
capoeira na sala. Seguem-se produções realizadas em sala, explorando diferentes linguagens,
buscando o diálogo entre representações plásticas e escritas.
Figura 38
( A Capoeira vive na roda. Cultura África é educação e ensinamento. A capoeira veio da África.
A capoeira tem ginga, te canto e atabaque e ensina os adolescentes)
Já neste trabalho de produção textual espontânea, encontramos uma relação mais
tranqüila com a capoeira e os ensinamentos sobre a cultura africana e suas ressonâncias no
território brasileiro. Projeto Tangolomango/ Escola Municipal professor Gonçalves/ Turma da
Capoeira/2005
CLXII
Figura 39
Desenho livre sobre o nome da nossa turma. Projeto Tangolomango/ Turma da
Capoeira/ Escola Municipal Professor Gonçalves/2005
Figura 40
(Eu gosto da Capoeira mas meus pais não deixam eu jogar mas eu quero. Eles usam berimbau,
tambor e pandeiro. Tem gente que luta até a morte. Eu não gosto e sou do bem. Eu não vou lutar até a
morte. Eu nunca vou gostar de lutar até a morte)
Neste relato, Lucas (9 anos) expõe seu conflito em relação às aulas de capoeira que
fazíamos em sala e que iam de encontro à religião de seus pais. O menino expressa este
sentimento de “amor e ódio” em relação à capoeira. Produção escrita sobre a identidade de
nossa turma. Projeto Tangolomango/ Turma da Capoeira/ Escola Municipal Professor
Gonçalves/2005
Voltando a falar sobre a importância dos relatos como organizadores de nosso
cotidiano escolar, as falas infantis continuavam anunciando novidades: contavam que não nos
CLXIII
movimentávamos em filas (com exceção do refeitório, quando esperávamos o almoço) porém,
tínhamos que andar em grupo e sem correr em lugares como rampas e corredores. Explicavam
que para correr, utilizávamos o pátio, local onde brincávamos diariamente. Ou seja, o que
poderia ser visto como des-ordem criava uma outra ordem. Na prática, acontecia que por
várias vezes eles mesmos esqueciam as regras combinadas. E ai, era hora de conversar
novamente e combinar mais uma vez, e mais uma vez.
Falavam que se alguém não quisesse fazer a atividade proposta no quadro, não
precisava, desde que não atrapalhasse quem estava estudando. Que poderia jogar um jogo do
armário ou da estante, ler um livro, desenhar, estudar etc, mas não poderia fazer isso o dia
inteiro, pois teriam que, no final da aula, apresentar alguma produção escrita.
Se fosse sexta-feira, avisavam logo que, depois do recreio era hora da Assembléia
da Turma”, onde seriam escritos e depois lidos e discutidos os assuntos importantes da turma:
era hora de falar sobre o que estavam gostando, o que não estavam gostando e dar sugestões
para a próxima semana de estudos.
Na prática a atividade funcionava assim: tínhamos em sala três caixas, encapadas e
etiquetadas com : “Acho Bom”, “Acho Ruim” e “Eu Sugiro”. Durante a semana, íamos
registrando nossas emoções e idéias, frustrações e críticas em relação ao funcionamento de
nossa sala de aula. Abríamos as caixinhas na sexta-feira e fazíamos nossa “assembléia”. Uma
vez ouvi de Lucas, um menino bastante curioso: “É bom isso, né Marisa, porque a gente
escreve e nem percebe” . Sintetizou meu pensamento, que menino esperto, pensei.
Figura 41
Comentário 1: Acho bom que a Marisa passa muito trabalho. Ass: Ruana
CLXIV
Cometário 2: Acho bom que a minha mãe achou a minha avó. Que a minha mãe não a via a
muito tempo que a minha mãe via e a minha mãe ficou feliz para sempre (não assinou)
Comentário 3: Isaías é muito ruim porque ele é (a)tentado. Nome: Ruana
Comentário 4: Está bonito o Lucas e quieto e educado. Nome: Jéssica
Através desta e de tantas outras atividades, as crianças tinham espaço para
registrarem seus sentimentos através deste exercício de escrita semanal sobre as questões que
mais lhe tocaram durante a semana.
As considerações acima, vão ao encontro das aspirações educativas voltadas para a
dialogicidade da educação que se pretende libertadora, como preconizava Freire:
Ora, e falar, falar é a forma nossa de estar sendo no mundo. Quer dizer,
falar está associado a fazer porque, inclusive, historicamente, homens e
mulheres inventaram a linguagem para dar nome às coisas que fizeram, ou às
coisas que faziam. Quer dizer, eu falo e dou nome quando falo ao mundo que
eu transformo. Então, o respeito à fala do outro implica saber escutar o outro
e não posso ser um educador democrático se eu não escuto o outro. Ainda do
ponto de vista do saber ou do aprender a escutar, uma importância
fundamental no saber escutar diferente. Como é que pode uma professora que
se pensa democrática não dar ouvido à fala do diferente? Quer dizer, você
discrimina o diferente porque ele é diferente de você. Então, aprender a
escutar o diferente, a cultura diferente, aprender a valorizar o diferente de nós
é absolutamente fundamental para o exercício da autonomia. Quer dizer, a
professora que fecha seus ouvidos à dor, à indecisão, à angústia, à curiosidade
do diferente. É a professora que mata no diferente a possibilidade de ser.
74
Com este trabalho venho buscando desde então, ampliar a compreensão do que
estas falas representavam e começo agora a fazer uma reflexão mais profunda a partir das
pesquisas de Michael de Certeau sobre “relatos de espaço” e a potencialidade narrativa que as
falas das crianças revelavam. Minhas dúvidas e intuições encontram diálogo com o autor, os
relatos organizam os espaços, e foi o que de fato ocorreu através das narrativas das crianças
que participaram do Tangolomango comigo: falas que davam espaço para o diferente, para o
desconhecido e definiam nossa prática cotidiana, configuravam uma nova arquitetura
escolar, ou seja, uma utilização do espaço escola que até então não havia sido explorado. É
possível dizer que a re-apresentação dos espaços da escola, com significados inovadores, re-
configurou espaços internos ontológicos das crianças, assim como suas cosmovisões, suas
74
Disponível em:http://www.tvebrasil.com.br/salto/entrevistas/paulo_freire.htm
CLXV
bagagens psicológicas, afetivas e intelectuais. Pelo menos era nesse sentido que fazia
investimento.
3.2 – Tudo que seu mestre mandar? Faremos todos?
O Tangolomango e as questões referentes à alfabetização das classes populares
Quando comecei, em Março de 2002, a trabalhar com a Alfabetização das classes
populares acreditava que os longos anos de docência nas classes de Alfabetização das escolas
particulares por onde havia passado (me formei no antigo Normal no ano de 1986 e desde
então havia passado por diversas escolas particulares na cidade do Rio de Janeiro) serviriam
como experiência para o novo desafio que intuía ter pela frente: alfabetizar as crianças da
escola pública.
Aos poucos, fui descobrindo que minhas experiências anteriores poderiam me
ajudar até a metade do caminho: o restante precisaria ser construído “junto com” as crianças
das classes populares que começava a conhecer. Uma coisa eu pressentia: esta seria uma
oportunidade para buscar entender não os motivos que faziam com que estas crianças não
aprendessem, mas também descobrir o que estas crianças sabiam: o que eu sabia que elas
sabiam e, principalmente, o que elas sabiam mas não sabiam que sabiam.
As crianças e adolescentes das Turmas de Progressão traziam em seus corpos as
marcas da repetência e conseqüente exclusão escolar e social: eram crianças estigmatizadas
pela dificuldade de aprender, pelo desinteresse e falta de motivação em relação às aulas.
Juntava-se a isso, os rótulos de que eram crianças e adolescentes agressivos, brigões e sem
educação”. Muitos deles estudavam no CIEP há muito tempo, e suas famílias eram conhecidas
de longa data. As falas em relação às suas famílias eram basicamente as mesmas: eram
crianças largadas, que os pais não davam atenção e carinho, eram muito pobres, e seus pais e
mães em sua maioria eram analfabetos também.
CLXVI
Logo, logo, descobri que as Turmas de Progressão eram “o patinho feio” que
ninguém queria (muito menos as professoras mais experientes da escola que tinham o direito
de escolher as turmas com que iriam trabalhar no início do ano). Lembro-me também do longo
processo de negociação que as diretoras ou coordenadoras da escola faziam para seduzir seu
corpo docente a pegar estas turmas.
Comigo a sedução foi às avessas: quando fui conhecer o CIEP, informei à
coordenadora sobre meu desejo de trabalhar nas classes de alfabetização daquela escola. Falei
um pouco ressabiada, pois não sabia se ela iria concordar. Eu era uma professora nova e
desconhecida para a escola. Pelos motivos que já expus acima, eu havia me enganado. As
crianças, apesar de já estarmos em Março, aguardavam em casa a chegada de novos
professores.
A coordenadora me informou então que a Prefeitura do Rio, estava implantando o
sistema ciclado de ensino e, naquele momento, as únicas turmas de alfabetização que estavam
em casa aguardando professor eram as Turmas de Progressão. Lembro-me que fez questão de
enfatizar que eram crianças muito “boas” de se trabalhar, porém um pouco agitadas, mas eu
teria apoio da coordenação da escola sempre que precisasse e também estaria participando
constantemente de reuniões não apenas dentro da escola mais teria o acompanhamento da 1
CRE (Coordenadoria Regional de Educação localizada em Santa Cruz).
Em poucas palavras, ela me explicou que o objetivo principal das Turmas de
Progressão seria auxiliá-los em seu processo de alfabetização para que ao final do ano, as
crianças e adolescentes pudessem ser re-enturmados no sistema regular de ensino, entrando
diretamente na antiga 3ª série, que corresponde hoje ao 4º ano do ensino fundamental.
Não demorei muito a descobrir que os estigmas negativos que aquelas crianças
das Classes de Progressão carregavam de certa forma procediam: eram crianças que brigavam
com facilidade, desatentas, de estrutura familiar comprometida. Apesar de constatar uma
realidade que não dava para “fingir que não acontecia”, acreditava que eram “isso”, mas eram
“outras” coisas também. Faltava, a meu ver, apenas um espaço mais propício para que
CLXVII
demonstrassem o que mais poderiam “ser”. Acreditava que “gente é para brilhar”
75
e este é o
doce mistério da vida, como nos lembra a canção.
Este rótulo negativo encontra-se presente na fala de uma professora do CIEP com
que conversei. Iniciei a conversa, perguntando sobre a impressão que ela tinha sobre as
Turmas de Progressão:
Marisa:- Qual a sua impressão sobre as turmas de Progressão que existiam na escola?
Professora: -Quem está de fora tem uma visão meio rotulada, é uma mentira. São turmas agitadas,
turmas bagunceiras, teve crianças que caminharam e foram. E geralmente, são crianças que vão
ficando e ninguém quer.
Marisa: -E a Turma de Projeto? A Progressão acabou...
Professora: - O cão chupando manga! Se juntaram pra fazer bagunça, indisciplina. A Turma de
Projeto aqui foi uma turma assim, cheia de idéias, com muitas propostas, o projeto era bom, mas o
desenvolvimento em si é que não foi bom. Aí apareceram professoras lá que não conseguiram
encaminhar essa turma. Eu acho que o mínimo pra você trabalhar é a disciplina em sala, as
professoras que vinham de fora não davam conta de manter os alunos dentro de sala, de controlar a
bagunça, eram alunos com quem você tinha que trabalhar com o desrespeito mesmo.
76
Era contra estas idéias pré-concebidas que eu me debatia: Como assim trabalhar
com o desrespeito? De qual conceito de disciplina estamos falando? Como lidar com as
“crianças- problemas” dentro da reguladora instituição escolar?
Diante desses desafios que nasceu o Projeto Tangolomango. Uma experiência
particular, que sensível à polifonia de vozes que circulavam dentro e fora do espaço da sala de
aula, buscava abrir caminhos para se melhor compreender os saberes e fazeres das crianças
das classes populares que não aprendiam e que por isso, eram constantemente rotuladas e
inferiorizadas dentro do espaço escolar.
Para isso, buscava alinhar minha práxis educativa à educação dialógica vivida e
teorizada por Paulo Freire, buscando re-fazer um caminho de interferência pedagógica da
“palavra-ação” e conseqüente humanização daquelas crianças.
É através da dialogicidade que o sujeito se humaniza, visto que para Freire “o
diálogo é uma exigência existencial” (FREIRE, 1983:p.91). Compreendo o diálogo também,
como um ato de criação potencialmente capaz de gerar mudanças e transformações. Na visão
freireana de educação, o diálogo é o combustível que possibilita o homem humanizar-se.
75
Gente - Caetano Veloso letras.terra.com.br/caetano-veloso/44729/
76
Entrevista realizada no CIEP Posseiro Mário Vaz/ Guaratiba/RJ no dia 26/02/08.
CLXVIII
Recuperar a possibilidade de diálogo diante de crianças que passaram por diversas situações
em que suas falas foram sendo emudecidas tanto dentro, quanto fora da escola era para o
Projeto Tangolomango, um desafio e um objetivo.
Por este mesmo motivo, educação dialógica quando se estabelece um
compromisso amoroso entre educadores e educandos. Baseados neste compromisso,
educadores e educandos vão tecendo ao longo de delicados encontros e desencontros culturais,
múltiplas experiências educativas, criando vínculos afetivos inimagináveis. Mas, para isso, era
indispensável um olhar constante sobre a minha práxis.
Os encontros e desencontros culturais e a superação das situações-limite são
processuais e exigem do educador uma série de posturas pedagógicas que levem o educando a
pensar o que faz, agindo e refletindo sobre a própria ação.
Este movimento de “ação-reflexão” é o responsável por gerar novas tomadas de
consciência e possibilidades de transformação da realidade que se almeja modificar, onde
educador e educandos se educam juntos.
Em um sentido mais amplo, o exercício constante de re-pensar a práxis, que está
sempre recheado de ideologia, de visões de mundo, próprios do universo cultural que cada
pessoa ou conjunto de pessoas está inserido, possibilita desenvolver um sentimento de
acolhimento em relação aos saberes e desejos dos sujeitos encarnados com os quais nos
propomos a trabalhar: sujeitos “inacabados” que como nós, desejam “ser mais”.
Por isso, tais “ações-reflexões” pautavam-se na relevância de uma intervenção
docente que promovesse a investigação do “universo temático” do qual sujeitos concretos, ou
seja, os educandos que convivia, faziam parte:
Esta investigação implica, necessariamente, numa metodologia que não pode
contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente
dialógica. Dque, conscientizadora também, proporcione, ao mesmo tempo, a
apreensão dos “temas geradores” e a tomada de consciência dos indivíduos em
torno dos mesmos. (FREIRE, 1893:103)
CLXIX
E foi este desejo de “querer saber” que me motivou a propor às crianças algumas
interferências naquele ambiente escolar, abrindo espaço aos poucos para que eles propusessem
suas interferências também.
A primeira interferência que experimentamos foi em relação a ficarmos a manhã
toda dentro da sala de aula, saindo apenas 20 minutos para almoçarmos e recrearmos. Na
verdade, lembrei-me de que quando era criança e estudava na escola pública, o momento que
mais gostava era a hora do recreio. Achei que como isso me fazia feliz, deveria faze-los
também. Além do mais, a sala de aula parecia pequena para comportar tamanha necessidade
de falar e de ser ouvido, de se movimentar e aprender.
Foi assim que, nos primeiros momentos, mudamos a nossa sala para o pátio. Lá, na
liberdade daquele espaço, a narrativa era mais livre e afetuosa, solta feito pipa, movimentada
como bola. E eu, absorta naquela confusão de sons e imagens que se descortinava pra mim,
começava a desconfiar que era possivelmente naquele lugar o pátio da escola que as
crianças mais felizes poderiam re-começar a aprender.
Assim, de corpo mais livre, demarcávamos um novo espaço, inventávamos com o
corpo novas histórias que começávamos a construir. Podíamos também ouvir histórias e
rabiscá-las da forma que quiséssemos com gravetos no chão.
Neste novo espaço, podíamos praticar “coisas” que as crianças sabiam fazer e na
sala de aula seria impossível realizar: os jogos queimado, pique-bandeirinha, taco, polícia e
ladrão, amarelinha, corda, pipa, bola-de-gude, pião as aulas de música - com latas velhas e
violão.
O espaço do pátio acabava por organizar outros movimentos que de certa forma,
transgredia o conceito de uma “aula” que todos - principalmente as crianças - tinham.
Criávamos uma realidade onde o espaço se materializava de outra maneira: invertida a ordem
“naturalizada” das coisas, o pátio tornava-se o espaço de nossa sala de aula.
CLXX
Figura 42
Crianças brincando no pátio de “pular corda”
Tangolomango/CIEP Posseiro Mário Vaz/2003
Figura 43
(Brincadeira cantada infantil: O homem bateu em minha porta/ E eu abri/Senhoras e
senhores ponham a mão no chão/ senhora e senhores dê uma rodadinha/ E vá pro olho da rua!)
Produção textual a partir das atividades vividas no pátio. Projeto Tangolomango/ Turma da
Capoeira/ Escola Municipal Prof. Gonçalves/2005
No final, cansados, voltávamos para sala, espaço instituído pela cultura escolar
como o “local do saber” e relatávamos no papel cada um do seu jeito o que havíamos
experienciado no dia. Surgiam falas animadas relatos que contavam nosso percurso
cotidiano, onde o tecido narrativo desembocava em novas escrituras: pequenas palavras,
CLXXI
ensaios de frases, fragmentos de textos. Experimentávamos juntos nossa corporalidade e
fazíamos do nosso próprio corpo “um relato”.(NAJAMANOVICH, 2002:108)
Podia parecer aos olhos mais apressados de quem passasse e nos visse no pátio,
que era mais uma aula de recreação, mas enganava-se: a proposta era a de nos reconhecermos
enquanto grupo, enquanto amigos, consoante Paulo Freire já referida anteriormente que afirma
ser a escola um “lugar de fazer amigos”.
Afinal, falamos de uma turma em que muitos não se conheciam: crianças desgarradas
de seus amigos (as vezes melhores amigos) que haviam seguido o fluxo das séries, e eles
haviam ficado retidos. Importante explicar que no geral, uma turma de Progressão se organiza
com um grupo de educandos de cada turma do ano do ciclo, fazendo assim uma nova
turma. Também acontecia de entrarem crianças novas na escola, caso sua escola anterior não
tenha formado turmas de Progressão e seus responsáveis acabaram orientados para que
procurassem outra escola.Tinham que migrar de escola. Por isso, muitos tinham medo. E o
sentimento de medo, principalmente do medo de errar, de certa forma os imobilizava.
Também eu, como educadora, vivia momentos de dúvida e medo em relação à
liberdade. Como vivenciar uma educação libertadora, se até então, as experiências educativas
daquelas crianças haviam sido “bancárias”? O que eles fariam com a liberdade que agora se
lhes apresentava? Como reagiriam? De que maneira, conseguiria levá-los ao desenvolvimento
de uma consciência crítica em tão pouco tempo de intervenção pedagógica? Como mudar
hábitos tão arraigados da cultura escolar? Com certeza, os encontros foram muitos, mas os
desencontros e conflitos também. A angustia que sentia era grande e muitas vezes o
sentimento de impotência me tomava, forçando-me a rever combinações e a negociar
constantemente com as crianças o sentido de estarmos ali, o sentido de aprender a aprender.
Lutava para que o medo não nos paralisasse, mas, ao mesmo tempo, percebia que
precisávamos ter mais cuidado e cautela em relação aos equívocos e inexperiência que todos
nós, educadores e educandos, temos em lidar com o conceito de liberdade. Como trabalhar na
perspectiva de uma educação libertadora, se nós mesmos não fomos educados a partir dela?
No livro “Pedagogia do Oprimido” Freire fala sobre o “medo da liberdade” e as
conseqüências paralisantes deste sentimento, além de fazer uma profunda reflexão sobre os
valores desta palavra e suas implicações na vida cotidiana de cada um de nós.
CLXXII
As crianças, condicionadas a um modelo de construção do conhecimento,
recusavam-se em princípio, tinham medo de se lançarem ao desconhecido, a novas
experiências. Era preciso seduzi-las para que tivessem confiança de que se tentassem,
poderiam ter a chance de conseguir de modo que se continuassem reproduzindo aquele
modelo, estariam fadados a repetência mais uma vez. Tinham uma consciência “opressora” e
este confronto com o não saber” era o primeiro passo para se “desalienarem” como nos
mostra Freire:
Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro
introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem
eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não o “opressor” de
dentro de si. Entre se desalienarem, ou se manterem alienados. Entre seguirem
prescrições ou terem opções. Entre serem expectadores ou atores. Entre
atuarem ou terem a ilusão que atuam, na atuação dos opressores. Entre
dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar,
no seu poder de transformar o mundo.(FREIRE, 1983:36)
Mas, qual a postura do(a) educador(a) diante destas questões? Como fazer com que
sujeitos, sejam eles crianças ou não, se predisponham a sair deste acomodado e perigoso
processo de alienação? Como transformar o mundo a partir do mundo da sala de aula? Com
certeza, não existem receitas prontas a serem seguidas que possam dar conta da complexidade
dos processos subjetivos que tais mudanças de consciências exigem. Porém, talvez possamos
arriscar afirmar, que para transformar o sentimento amargo do fracasso escolar em uma
experiência positiva que possibilitasse às crianças voltarem a aprender, algumas posturas e
intervenções pedagógicas se faziam necessárias.
Para isso, o corpo é que ia fazendo o percurso, dando o movimento, fazendo novas
rotas que indicassem os caminhos para a aprendizagem. Um corpo que se desloca no espaço,
ou - por que não? - corpos, criando campos de possibilidades e autorizando “práticas sociais
arriscadas e contingentes”.(CERTEAU,1994: 211)
Os relatos sobre nossa vida cotidiana começaram a aparecer e foram estes relatos,
que abriram brechas para reorganizarmos o espaço: desfizemos as filas das carteiras e
começamos a experimentar outras formas de ser e estar no espaço da sala da aula. O fator
tempo também foi importante: aos poucos, fomos diminuindo a aula do lado de fora e
aumentando o tempo dentro da sala de aula.
CLXXIII
Houve estranhamento, visto que estavam acostumados a ter o quadro negro como
referência espacial e isto ia de encontro aos seus saberes e certezas escolares. Não é que eu
não utilizasse o quadro negro para a escritura de textos, cantigas de músicas ou poesia. Muitos
foram os exercícios de re-escritura dos textos das crianças também. Mas, provocava-os para
que eles mesmos escrevessem seus exercícios e tomassem consciência que o espaço do quadro
negro, geralmente destinado aos professores, era deles também.
Pelo fato de o Tangolomango nascer tendo como fio condutor a cantiga que lhe
empresta o nome, além das brincadeiras, danças, cantos e contos da tradição popular,
anuncia a atitude transgressora de romper com práticas escolares que negavam a brincadeira
como promotora de novas aprendizagens se fazia constante em nossas atividades.
O Tangolomango considera o brinquedo, o ato de brincar, um momento de grande
possibilidade de produção do conhecimento, quebrando assim, outro paradigma consensual
dentro da cultura escolar: o de que a escola não é lugar de brinquedo e de que os ensinos
sistemáticos e formais são os únicos responsáveis pela produção do conhecimento. Tendo
como referência as falas recorrentes que ouvirmos nas escolas: - “Agora vocês são da
série, não precisam mais brincar como na Ed. Infantil!” ou “Vocês pensam que escola é lugar
de brincar? Aqui é lugar de estudar!” ou até mesmo “O parquinho e os brinquedos não são
mais para vocês que já cresceram, são para as crianças pequenas!”. Um fato muito me
impressionou quando cheguei ao CIEP Posseiro Mário Vaz: as crianças não tinham mais
recreio. Não tinham o direito de brincar livremente. Lembrei-me imediatamente de minhas
memórias infantis e o quanto era importante a hora do recreio! Quando questionei a Coord.
Pedagógica do motivo pelo qual o recreio havia sido reprimido do horário escolar, ele me
respondeu que a escola havia crescido muito e não havia espaço físico para que as turmas
tivessem recreio.
Inconformada com aquela situação, institui junto com as crianças, nosso horário de
recreio que acontecia diariamente e quando os outros professores me perguntavam sobre o
assunto, eu dizia que se eles quisessem, eles poderiam fazer o mesmo também. Mas, eles
achavam que não poderiam transgredir uma regra que “naturalmente” havia sido instituído
naquela escola. Elas tinham medo também.
CLXXIV
Defendo a idéia de que as brincadeiras populares, as histórias, os trava-línguas, as
parlendas, as cantigas e toda uma variedade de jogos e brinquedos são tesouros culturais
imateriais da infância e se bem orientados, podem vir a ser um importante aliado do educador
e uma ótima estratégia de ensino e aprendizagem. Uma metodologia de trabalho que envolvia
o acolhimento a uma série de práticas culturais, artísticas e corporais que buscavam sintonizar
com os sujeitos concretos que dividiam o espaço escolar comigo: suas brincadeiras infantis e
suas histórias pessoais. Lutava diariamente para que minha fala não fosse alienante, buscando
perceber o conjunto dos “temas geradores” que possibilitariam esta intervenção pedagógica
transformadora.
Par ilustrar, poderíamos relatar brevemente uma aula em que Rafael, da Turma do
Jabuti/2004,apareceu na sala com um pião feito por sua mãe. O pião era feito com material
reciclável (jornal,palito de churrasco e cola branca) e logo chamou atenção de toda a turma
com sua novidade. Enquanto construíam seus próprios piões, fui sugerindo que cantássemos
músicas que falassem sobre pião. A música mais conhecida entrou na roda anunciando a
brincadeira:
“o pião entrou na roda, roda pião, bambeia pião...”
A palavra pião foi escrita no quadro por um aluno e depois começamos a escrever
várias outras que combinavam com pião. Continuando e ampliando a atividade, mostrei-lhes
uma outra cantiga popular que também falava sobre o mesmo tema:
A Maria não é capaz, de rodar o pião no chão...”
Com esta nova música propus que brincássemos com a estrutura lingüística do
texto e que reescrevêssemos a partir desta nova experiência lingüística outras possibilidades
textuais.
Assim, a gramática ia aparecendo e o texto ganhava sentidos múltiplos através de
uma brincadeira que incorporava os sujeitos concretos na atividade, como podemos observar
no exercício abaixo:
CLXXV
Figura 44
(Cantiga Infantil “O pião no chão”: A Maria não é capaz, de botar o pião no chão/Lá
vai, lá vai, lá vai...lá vai o pião no chão)
Produção escrita a partir do brinquedo trazido por uma criança: um pião de
brinquedo reciclado.
Este momento de passagem do mundo imaginário para o mundo real a criança está
formulando e criando conceitos cognitivos e o ato de brincar é um momento possibilitador de
constantes e importantes aprendizagens.
Os brinquedos que os educandos trazem para a escola são por si objetos de
conhecimento a serem estudados em vários aspectos históricos, lingüísticos, ecológicos,
lógico-matemáticos, físicos, geográficos etc. São possibilidades de desdobramentos que
frutificam em pequenos sub-projetos, ou centros de interesses e pesquisas por parte dos
próprios educandos. sabemos de longa data, que brincando, a criança pode desempenhar
simbolicamente vários papéis onde as regras estabelecidas pelo próprio grupo impõem limites,
direitos e deveres que exige do brincante uma série de competências lingüísticas que servirão
como base para novas descobertas e aprendizagens.
CLXXVI
Figura 45
Pedro lança seu Pião de madeira no chão batido do CIEP mostrando à todos seus
conhecimentos e habilidades
Figura 46
Re-construção de brinquedo popular encontrado no livro “Barangandão Arco-íris”
organizado a partir de uma pesquisa sobre os brinquedos construídos e inventados pelas
crianças no sertão de Minas Gerais e da Bahia.
As fotografias acima, ilustram uma dessas re-significaçãos realizadas pelas crianças
em sala de aula. Um pião de tampinha de refrigerante e palito de dentes, mostra-nos o
constante movimento que as manifestações populares apresentam, que se encontram muitas
das vezes, adormecidas, silenciadas dentro do espaço escolar.
CLXXVII
Então acho relevante perguntar: o que as crianças das classes populares têm a nos
ensinar? Como brincam? De que brincam? O que fazem nas ruas, praças e nos quintais? O que
constroem com suas próprias mãos? O que eles já conhecem e o que desejam conhecer?
3.3 – Era uma vez...
O Tangolomango e o universo das histórias infantis
Tendo por base o princípio intuitivo de que quem fala bem teria maior facilidade de
se expressar bem através da escrita o projeto Tangolomango desenvolvido por mim abria
espaço para a fabulação, para a narrativa e os relatos de experiências de vida das crianças
originárias de classes populares contidos de alguma forma, nas vivências descritas até aqui.
Hoje, penso compreender melhor o sentido de se recuperar o poder da fabulação
dentro do espaço escolar. Trago a fala de Joel Rufino que se expressa em relação ao tema
afirmando que:
(...)a criança ao chegar na escola tem grande capacidade de fabulação (...) de
inventar histórias, de ouvir e contar histórias. Isso é anterior à leitura, ao
conhecimento do livro. E a escola (...) tem horror à fabulação, rejeita a
capacidade de fabulação da criança. (...) Quanto mais a criança sobe na
carreira escolar, menos gosto ela tem pela literatura, menos ela gosta de ler,
ouvir e contar histórias. Então, pode-se dizer, nesse sentido específico, que a
escola é o túmulo da literatura. (RUFINO, 1994: 98-99)
Em sentido inverso ao denunciado por RUFINO, tínhamos mais tempo para a
fabulação, as histórias, os sonhos e aspirações de cada um. Tínhamos mais tempo para as
brincadeiras e para aprender com elas. Tínhamos tempo para cantar nossas cantigas mais
amadas e ouvir outras, dançar nossos ritmos preferidos e descobrir outros. Tínhamos por fim,
tempo para “espremer” histórias onde cada um tirava delas o leite possível do conhecimento,
nutrindo-se, cada um ao seu tempo e modos, na vida cotidiana dentro e fora da escola. Não se
trata de afirmar que a oralidade não está presente na escola, entretanto podemos perceber
CLXXVIII
frequentemente uma única voz legitimada que cala as demais: a voz da professora ou do
professor. Ou seja, ainda predomina o uníssono que abafa outras vozes desconsiderando a
polifonia que, queiramos ou não, circula dentro do contexto escolar.
Mas, fica a pergunta: como escrever bem, se meu poder de fabular, de contar, de
imaginar está comprometido? Ao mesmo tempo, como fazer com que o menino e a menina
que chega na escola, avance e adquira novos conhecimentos sem esquecer ou abafar sua
capacidade de fabulação? Mas para isso, era preciso a convivência com a cultura escrita e esta
era a ponte que a contação de história possibilitava: o encontro com os livros.
Como buscávamos trabalhar com o tempo de modo não linear, misturávamos
passado e presente, visitando conteúdos formais apresentados nos livros didáticos, mas,
principalmente, ouvindo histórias dos próprios meninos e meninas que denunciavam graves
conflitos sociais intrinsecamente emaranhados no processo de colonização e escravidão no
Brasil. Discutíamos a situação de vida real, na qual nos encontrávamos através do viés
histórico oficial, mas abrindo espaço também para se refletir sobre as histórias não oficiais
histórias locais que, em tempo real, denunciavam um processo de colonização escravista,
encontradas de diferentes maneiras em nossa sociedade até os dias de hoje.
Assim fomos fazendo nossa caminhada educativa na tentativa de recuperar o prazer
da escrita iniciado na prática, pelo prazer de re-descobrir a fabulação, assim como re-descobrir
o corpo e suas possibilidades, desfazendo a partir das brincadeiras trazidas pelas crianças ou
por mim, experiências negativas de leitura e escrita tão arraigadas na vida daquelas crianças.
Possibilitar espaços de aprendizagem que contemplassem a produção oral, as idéias, saberes e
competências lingüísticas que os educandos têm sobre a língua materna era uma forma de
legitimar as saberes e conhecimentos que as crianças aprendem muito antes de entrar na
escola, legitimar sua “leitura de mundo”.
Neste sentido, os espaços de produção oral aconteciam principalmente através do
relato de experiência de vida que determinados sub-projetos oportunizavam.
Na prática, as atividades voltadas para o desenvolvimento da fabulação dentro do
espaço formal da escola perpassavam pelo hábito constante de ouvir e contar histórias, ou seja,
utilizava a contação de histórias como suporte para trabalhar outras questões curriculares.
Através das atividades diárias de se ouvir e contar histórias, as crianças podiam demonstrar e
CLXXIX
desenvolver habilidades e competências lingüísticas que possibilitavam a comunicação verbal.
Através de momentos de falar e momentos de ouvir, estimulava o querer responder, interagir
e comunicar. Comunicar através de uma língua que nos alimenta para que possamos
alimentar a vida, que é verbo dentro de nós.
Dentre muitas histórias que ouvíamos e contávamos em sala de aula, gostaria de
lançar uma lente mais reflexiva sobre três narrativas que acompanharam o desenvolvimento
do projeto Tangolomango em todo o seu percurso escolar: O Boi-Bumbá” do Maranhão, “O
nome da fruta”, recolhida por Sílvio Romero e uma animação infantil chamada “Kiriku e a
feiticeira”. Recupero estas três narrativas na tentativa de fazer uma pequena amostragem dos
processos psicanalíticos e subjetivos, que cada narrativa pode vir a provocar. Arrisco-me a
apresentar algumas considerações de como percebo e interpreto estas narrativas, sem, no
entanto, ter a pretensão de esgotá-las.
Bunba-meu-boi-bumbá
Esta narrativa maranhense, vai ao encontro das vivências e memórias familiares
das crianças: a incidência de famílias vindas do Nordeste dentro das escolas públicas no Rio
de Janeiro é muito grande, o que por si só, já justificava a inclusão de alguns aspectos da
cultura popular nordestina no currículo formal e com isso, a narrativa do auto popular
possibilitava também recuperar um pouco destas lembranças familiares quase esquecidas.
Além de ouvir a história, de fabricarmos boizinhos em sala, de dançarmos,
cantarmos e escrevermos sobre esta história, percebia que ao despedaçarmos o corpo do boi
entre as crianças e outros atores escolares, abria-se espaço para o “brincar com as palavras”,
onde inventávamos versos e rimas num movimento constante de apropriação e re-significação
da palavra. Neste sentido, o processo de vida (fertilidade de Catirina), morte (do boi) e vida
novamente (quando o boi ressuscita) está metaforicamente entrelaçado com os processos de
vida-morte-vida que todos nós, em micro ou macro escala, vivenciamos. A imagem grotesca
do corpo do boi despedaçado é uma forma de (des)construção de um novo corpo.
CLXXX
Figura 47
Crianças brincam de “tripa de boi” no pátio da escola. Um corpo que se movimenta
contando e recriando uma história.
Na história percebemos que o partir e o repartir do corpo do boi, sempre
acompanhado de risos e comicidade popular por conta da fala do narrador que tem naquele
momento o poder de, através da “brincadeira”, liberar palavras reveladoras de situações ou
conflitos vividos por aquela comunidade, convida a inauguração de uma nova ordem que se
insurge com a força da palavra.
A narrativa abre possibilidades também de pensarmos, a partir da figura grávida e
desejosa de Catirina (mulher de pai Francisco) as expressões de um corpo “fecundado-
fecundante, parido-parindo, devorador-devorado”ou seja, nos aproximarmos de certo modo,
de um corpo grotesco que predomina na arte e linguagem “não oficial” do povo. (BAKTHIN:
1999:278)
De certa forma, acredito que a narrativa traz metaforicamente em seu “não dito” as
discussões sobre a renovação da cultura: uma cultura que morre e se renova cotidianamente.
CLXXXI
Figura 48
Mateus e Catirina representados no pátio da escola. Painel pintado pelas crianças do
Projeto Tangolomango. Turma do Tangolomango/ CIEP/ 2002
Figura 49
(Coronel Lourenço manda Pai Francisco cuidar do seu boi de Estrela na testa. Este boi é um
presente do céu. Pai Francisco foi para casa e quando estava chegando Catirina, sua mulher, gritou: - Pai
Francisco, estou esperando um filho seu, mas para seu filho não nascer com cara de bezerro, estou com
desejo de comer língua de boi)
Produção construída após as vivências corporais que a história do Bumba –meu -Boi do
Maranhão nos possibilitava. Autor: Moiséis( 12 anos)
Projeto Tangolomango/Turma do Papagaio/ CIEP Posseiro Mário Vaz/2005
CLXXXII
O Nome da Fruta
Silvio Romero (1851-1914) recolheu da tradição oral e de certa forma, reescreveu
esta narrativa popular que aconteceu no reino da Floresta da Brejaúva, no tempo em que os
bichos falavam. As personagens principais desta história - uma raposa e uma tartaruga -
anunciam uma reflexão sobre o imbricado processo de ensinar e aprender vivenciados
cotidianamente na escola.
Mais uma vez, a narrativa recolhida aponta para o inquietante e curioso desejo
humano de “querer saber” que ao meu ver, está relacionado com o constante “inacabamento”
do ser humano já discutido por Paulo Freire.
Na história, há um saber a ser conhecido: o misterioso nome da fruta. Fruta esta que
ao ser comida, tinha poderes de deixar os bichinhos daquela floresta mais inteligentes e
espertos. Por isso era uma fruta muito cobiçada. A história, como o rio, segue seu curso e aos
poucos, vai sendo revelado que havia um único bicho que conhecia o nome da fruta: a esperta
raposa.
Que por sua vez, não sabia o nome da fruta, mas ensinava aos outros bichinhos.
Repetia, repetia, mas nenhum bicho aprendia. A questão é que era um nome tão complicado
que por mais que a raposa ensinasse, ninguém aprendia. Repetia, repetia e nada, ninguém
aprendia. Por este motivo, cansada de tanto ensinar e nenhum bicho aprender, a raposa se
mudou para um lugar bem longe daquela árvore com suas frutas desejadas e de nome
misterioso. E então, juntando a dificuldade de aprender o nome da fruta e a distância em que a
raposa propositalmente havia se colocado, nenhum outro bicho daquela floresta, conseguia
degustar da almejada fruta.
A história toda muda de tom, quando a tartaruga acorda decidida a descobrir o
nome da famosa fruta e acabar com o monopólio do saber da raposa. Bem, a história termina
com a tartaruga não aprendendo o nome da fruta, como ensinando-o a todos os outros
bichos da floresta da Brejaúva que ficaram mais espertos a partir de então, inteligentes pra
valer.
CLXXXIII
E sempre que desejavam provar da saborosa fruta, eles diziam seu nome que era:
FRUTA-PÉ, PRETU-PRÁ, PRATA-PÓ, PÁ, PÓ,PÉ! (entendeu?)
O que fica como reflexão após a história é que a tartaruga (a lentinha da tartaruga)
conseguiu ensinar a todos os bichos o que a tão “esperta” raposa não conseguira: fazer circular
um conhecimento que só ela detinha, ou seja,compartilhar seu saber.
Ao apropriar-me desta história, penso nas intrincadas relações entre ensinar e
aprender e como, metaforicamente falando, nós educadores(as) temos dificuldades de pensar
“tartarugamente” e inventar, criar novos meios ou caminhos que favoreçam a aprendizagem de
nossos educandos. Por este motivo, “raposamente” falando, nos mudamos para algum lugar
longe da realidade cotidiana de nossas crianças. O ensinar de forma mecânica e repetidamente
cansativa, não conseguiu fazer, apesar do reconhecido esforço e “boa vontade” da raposa e
também dos bichinhos, promover a aprendizagem do nome da fruta.
Figura 50
(Era uma vez, um jabuti muito sabido. Ele mora na mata. Ele não sabia o nome da fruta. A
raposa ensinou. O nome da fruta é: Frutapé-pretupá-pratapó-pápópé!)
Produção textual sobre a história “O nome da fruta” que deu nome á nossa turma/
Projeto Tangolomango/ Turma do Jabuti/ CIEP posseiro Mário Vaz/2003
CLXXXIV
Voltando à história, gostaria de trazer um momento chave em que revela um
método, ou melhor, traduzindo um caminho utilizado pela tartaruga neste processo de ensinar
e aprender. É que a tartaruga, lembrando-se que cantando o povo não esquece, teve a
inspiração de criar uma cantiga que facilitasse o processo ensino-aprendizagem seu e do
restante da bicharada. E foi assim, cantando parte por parte do nome da fruta, que os bichinhos
conseguiram aprender. Depois do saber adquirido e compartilhado, a vida ganhou outro sabor.
O sabor de saber e o poder que no saber. Por isso, não para des-politizar o saber que
como nas palavras de BRANDÃO, é o “próprio saber”.(BRANDÃO, 2004:82)
Daí também o prazer da descoberta. Experiência pessoal, singular, sensorial e
intransferível atravessada pelo processo de saber o sabor de saber. Tem uma canção que
dividia com as crianças que fala deste desejo humano de quere saber o sabor das coisas. Diz
assim:
Toda criança quer
Toda criança quer crescer
Toda criança quer ser um adulto
E todo adulto quer
E todo adulto quer crescer
Pra vencer e ter acesso ao mundo
E todo mundo quer
E todo mundo quer saber
De onde vem
Pra onde vai
Como é que entra
Como é que sai
Por que é que sobe
Por que é que cai
Pois todo mundo quer...
Composição: Péricles Cavalcanti
77
Para finalizar, podemos nos perguntar: que “tipo” de educador queremos ser e de qual
modelo de educador nos aproximamos mais neste momento? Como estamos falando de
identidade - ou melhor identidades quando somos raposa e quando somos tartaruga em
nosso complexo desafio de aprender a aprender? O quanto de raposa ou tartaruga existe dentro
de mim e quando eles se revelam?
77
Disponível em: vagalume.uol.com.br/palavra-cantada/toda-crianca-quer.html
CLXXXV
Kiriku e a Feiticeira
78
A animação africana “Kiriku e a feiticeira” também é uma narrativa cheia de
mistérios e encantamentos. Um lugar perdido no território africano, tão próximo mais ao
mesmo tempo tão distante de nós: nossa mãe África.
Através da emocionante saga de um menino pequenino, que nasce falando e
andando demonstrando saberes interiores muito além de seu tamanho, descobre logo ao
nascer, que todas as vicissitudes e males que as pessoas de sua aldeia passam é por causa de
uma terrível feiticeira, de nome Karabá. A narrativa aponta para a possibilidade de
resolvermos nossos próprios desafios, com coragem, inteligência e determinação. Vamos a
ela.
Além de enfeitiçar e seqüestrar todos os guerreiros da sua tribo, e aterrorizar as
mulheres e as crianças ameaçando destruir sua aldeia , a temível feiticeira havia feito secar a
água da fonte tornando a terra infértil e improdutiva. O menino, mesmo pequenino, decide
acabar com os poderes malignos da feiticeira. Seu desejo de querer saber porque a feiticeira
era tão o leva a uma emocionante saga onde encontra seu avô (Oxalá?) em uma gruta
encantada, que se abria para quem merecesse nela penetrá-la. Um processo iniciático:o
pequeno Kiriku passa por várias atribulações e perigos antes de chegar ao seu destino. Lá, no
aconchego daquele velhinho vestido de branco, ele descobre o que tanto queria saber.
Descobre que Karabá, no passado não era , mas havia sido enfeitiçada por homens maus
que cravaram um espinho em suas costas e este era o motivo de sua ira e encantamento. Para
quebrar o feitiço, era preciso retirar o espinho que a atormentava.
Neste momento, o menino Kiriku é tomado de imensa coragem e vai atrás de
Karabá, determinado a quebrar o encanto. Mais uma vez, o pequeno menino é forçado a usar
sua inteligência e astúcia para conseguir retirar a feiticeira de sua gruta. Ao roubar seus
78
Disponível em: www.adorocinema.com/filmes/kiriku/kiriku-e-feiticeira.asp
CLXXXVI
tesouros, o menino consegue levar Karabá para fora de seu reinado, e fica em cima de uma
árvore, a espera da feiticeira que não tarda a aparecer. Kiriku surpreende Karabá pulando em
suas costas e com os dentes, retira o espinho enfeitiçado. Na mesma hora, ouve-se um grito de
dor que ecoa pela floresta e depois, o silêncio se faz. É o momento de mudança e
transformação.
Ao livra-la da maldição, Kiriku surgir na sua frente uma nova mulher: uma
mulher de fala doce e bondosa, muito bonita e que lhe agradece por haver-lhe retirado o
espinho que a amaldiçoava.
Ao ver tamanha beleza, Kiriku se apaixona e pede Karabá em casamento. Esta não
aceita, Kiriku ainda é um menino. Mesmo assim, Kiriku não desiste e lhe pede como
retribuição que ela lhe um beijo. Quando ela o beija, Kiriku cresce, torna-se um belo rapaz.
Mais apaixonado ainda, pede novamente Karabá em casamento.
A história tem um final feliz: apesar das pessoas da aldeia quererem matar Karabá,
voltam atrás ao verem todos os guerreiros sãos e salvos retornarem para a aldeia e acabam
perdoando Karabá por todo sofrimento que ela, por conta do espinho enfeitiçado, havia lhes
feito passar.
Voltando a questão das vicissitudes vividas pelo menino Kiriku, encontramos no
refrão da cantiga que acompanha as vitórias do menino, um alento às dificuldades que possam
aparecer na vida das crianças, que ao ouvirem a história, imediatamente se identificam com os
versos que diz assim: “Kiriku é pequeno/ mas é bem valente/ mas é bem valente”.
Esta é uma história de valentia, enfrentamento e desejo de mudar a ordem pré-
estabelecida, além de abrir espaços para repensarmos a estética e os valores africanos,
conhecendo num desenho animado um pouco da ancestralidade dos alunos.
CLXXXVII
Figura 51
(Kiriku tirou o espinho das costas de Karabá. Kiriku pediu um beijo e Karabá deu um beijo no
pequeno Kiriku. Ele foi crescendo e os dois, karabá e Kiriku voltaram para a aldeia e os homenes foram
libertos e suas mulheres ficaram alegres e karabá e Kiriku viveram felizes para sempre)
Produção escrita de “Kiriku e a feiticeira”. Projeto Tangolomango/ Turma da
Capoeira/ Escola Municipal Professor Gonçalves/ 2005
Discorrendo sobre este assunto, encontramos na entrevista de Joel Zito Araújo
79
,
que defende a idéia de que o racismo no Brasil é localizado pela estética. No imaginário social
brasileiro, o negro além de feio (como falou Welton de 7 anos e a Saiara de 12), é “subalterno,
potencialmente perigoso, assustador”. Este traço negativo da identidade negra torna-se
relevante se levarmos em consideração de que somos a “2ª maior nação negra”, continua
enfatizando o cineasta. Fizemos em sala muitas atividades de escrita espontânea a partir desta
história.
79
ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil. O negro na telenovela brasileira. ... da branquitude como padrão
estético. audiovisual. Revista USP. Racismo II.www.compos.org.br/files/28ecompos09_Brandao_Fernandes.pdf
CLXXXVIII
Figura 52
(Kiriku e a feiticeira/Kiriku é pequeno, mas tem seu valor/Eu gostei quendo ele tira o espinho das
costas dela e também quando ele pediu para nascer e a mãe disse: - Um neném que fala dentro da barriga
pode nascer sozinho.)
Produção escrita de “Kiriku e a feiticeira”. Projeto Tangolomango/ Turma da
Capoeira/ Escola Municipal Professor Gonçalves/ 2005
De certa forma, esta e tantas outras narrativas que ouvíamos em sala, abria um
campo de possibilidades para refletirmos sobre como e por quê a partir de um exercício
constante de des-construção e re-construção de determinadas crenças que circulam
principalmente dentro do cotidiano escolar inclusive na fala mesmo que silenciosa” e no
currículo “oculto” de todos os atores sociais da escola pública devemos, enquanto
educadores, fortalecer o sentimento de pertencimento e enraizamento em relação à sua etnia
negra que muitos brasileiros fazem parte para buscarmos de alguma maneira, modificar este
conflituoso, plural e delicado tecido cultural brasileiro.
Pra falar da questão da pobreza e miséria das classes populares, por exemplo,
recorria a história de “Duula, a mulher canibal
80
que conta em curtas palavras, conta a
história de como uma pastora enlouquecida pela fome e miséria no deserto africano vai se
80
ROGERIO ANDRADE BARBOSA - Duula, a Mulher Canibal: um Conto Africano/
www.planetanews.com/produto/L/11975/
CLXXXIX
transformando em um terrível monstro devorador de carne humana. A narrativa aproxima-se
da famosa história de João e Maria onde um casal de gêmeos Askar e Mayran se perdem no
deserto e acabam prisioneiros de Duula. Uma história que fala de abandono e da esperteza das
crianças que precisam se livrar daquele monstro para manterem-se vivos e acharem o caminho
de casa, deslocava nosso olhar para o continente africano, tão longe e tão perto de nossos
corações.
Esta é a realidade presente na vida de muitas crianças que freqüentam a escola
pública e de alguma forma, utilizava estas e tantas outras narrativas para iluminar e refletir
sobre este sentimento de subalternização e os lugares de pertencimento destinados aos pretos,
ou quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres, recuperando mais uma vez a
canção.
Para finalizar, gostaria de ressaltar que a palavra do contador de histórias busca
levar o educando a aquisição das condições básicas para que o ensino da cultura escrita se
desenvolva de um modo mais eficiente e prazeroso. Através do legado da tradição oral,
podemos gerar em nossa sociedade bons leitores que “surgem de bons falantes, capazes de
recitar, pois a recitação para as crianças é tão natural, ela é narrativa e em grande parte
rítmica”. (MATOS, 2005:161).
Voltamos novamente a falar de movimentos híbridos e fronteiriços que se tentarmos
separar, podemos incorrer em um erro gravíssimo: oralidade e escrita o estão separadas: a
palavra falada é a primeira a possibilitar a tomada de consciência do mundo, e a interação
entre oralidade e escrita não deve ser menosprezada.
O fato é que falamos de formas diferentes da armazenar e valorar conhecimentos,
visto que a relação com a palavra muda completamente quando falamos de oralidade e escrita.
Por isso, compreende-se melhor a cultura escrita a partir dos estudos sobre a oralidade.
(MATOS, 2005:158)
A tradição milenar de contar histórias vem atravessando gerações e gerações, onde
de boca em boca, de ouvido a ouvido, palavras perfumadas vão abrindo e, por que não,
também fechando - “portas” que num movimento cíclico ativam canais de constante
comunicação entre os homens, levando-nos muitas vezes a ignorados destinos, onde
imaginação e realidade em rebuliço se encontram, promovendo mudanças de ordem
CXC
emocionais e psíquicas em níveis diferenciados em cada sujeito que desta atividade participa,
seja como ouvinte ou como narrador. Acredito que a contação de histórias tem a função de
perpassar a tradição através da língua, pois “a tradição só pode ser armazenada pela língua, a
qual é memorizada e transmitida de geração a geração” (MATOS, 2005:156). E por falar em
tradição, vejamos a seguir o que o Jongo, ou melhor, a Escola de Jongo possa vir a contribuir
no sentido de des-construção da subalternidade negra em nossa sociedade.
3.4 – Escravos de jó, jogavam caxangá
O Tangolomango e a Escola de Jongo da Serrinha: novas possibilidades de
intervenção cultural na escola
Comigo aconteceu assim: de tanto olhar, parecia que já conhecia.
Assim começou minha relação apaixonada com o Jongo da Serrinha. Aonde tinha
apresentação do Jongo da Serrinha, lá estava eu, dançando e cantando, interagindo de corpo e
alma com aqueles tambores que me emocionavam.
Lembro-me da emoção que senti ao ouvir Lazir Synval - uma das Pastoras do Jongo
abrindo a “Temporada Jongo da Serrinha 2005em cena cantando “Semba dos Ancestrais”
. Sentia-me como na canção: o coração disparava, os olhos ficavam marejados, a cabeça
viajava para longe e no fundo, aqueles tambores que me tomavam de “ponta a cabeça
repercutindo em mim, uma ancestralidade africana muito negada, silenciada. Eram
ressonâncias e tudo ali, me impressionava, me atravessava. Fui ao teatro repetidas vezes e a
cada dia era como descobrir uma nova emoção.
Transcrevo a seguir, a letra da cantiga que me tomou por inteira e abriu a temporada
do Jongo da Serrinha em Dezembro de 2005 , no Teatro Carlos Gomes no Rio de Janeiro:
Se teu corpo se arrepiar
Se sentires também o sangue ferver
Se a cabeça viajar
E mesmo assim estiveres num grande astral
CXCI
Se ao pisar o solo teu coração disparar
Se entrares em transe em ser da religião
Se comeres fungi, quisaca e mufete de cara-pau
Se Luanda te encher de emoção
Se o povo te impressionar demais
É porque são de lá os teus ancestrais
Pode crer no axé dos teus ancestrais.
(Semba dos Ancestrais Martinho da Vila/Rosinha de Valença)
17
Figura 54
Lazir Synval canta “ Semba dos Ancestrais” na temporada do Jongo da Serrinha no
Teatro Carlos Gomes/2005.
Depois de algum tempo de convivência, vieram os convites para conhecer a Escola
de Jongo e posteriormente, assumir um trabalho educativo junto à coordenação desta mesma
escola. É neste novo espaço educativo que o projeto Tangolomango vem sendo atualmente
desenvolvido: partindo de um espaço não formal de educação e penetrando, por outras vias
mais uma vez no arenoso território escolar.
O trabalho na Escola de Jongo de preservação da memória jongueira nesta
comunidade (assim como promover e dar visibilidade a outras comunidades jongueiras)
18
é
envolvente, desafiador.
CXCII
Fortalecendo ainda mais esse elo com a oralidade local, estamos como Ponto de
Cultura
81
, participando do Projeto “Ação Griôt”
82
que tem como objetivo, a valorização da
Cultura Oral nas comunidades produtoras de cultura(as) como a nossa. E é sobre essa
experiência com a oralidade que gostaríamos de nos debruçar e para isso, escolhia figura da
Tia Maria do Jongo para protagonizar este momento da narrativa.
Tia Maria do Jongo é nossa matriarca e Mestre jongueira. Ao longo de seus 86
anos sabe muitas histórias e cantos sobre a comunidade em que nasceu e foi criada.
Uma história que me faz lembrar outra:
“- As negras velhas disse Pedrinho-são sempre muito sabidas. Mamãe
conta de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma
de nome Esméria, que foi escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se
na varanda e desfiava histórias e mais histórias.Quem sabe tia Nastácia não é
uma segunda tia Esméria?Foi assim que nasceram as Histórias da Tia
Nastácia.”(Monteiro Lobato/Histórias da Tia Nastácia,p.513)
Monteiro Lobato (1882-1948) escrevera com tamanha paixão sobre a história de
nosso povo e a respeito da nacionalidade brasileira, que conseguira atingir índices altíssimos
de popularidade em uma época de parcos recursos comunicativos como os conhecidos
atualmente – o rádio, por exemplo, acabava de ser difundido pouco antes dele falecer. Como o
tempo o comprovou, Lobato estava muitas das vezes à frente de sua época com suas idéias
inovadoras e revolucionárias.
Sua personagem, Tia Nastácia, negra velha, mesmo sofrendo as “pilhérias e
mangações” da boneca Emília, que não poupava ninguém, surge no cenário lobatiano como a
que sabe muitas histórias, que não são histórias dos livros que D. Benta contava: são
histórias da oralidade popular, histórias do folclore brasileiro. Além disso, era Tia Nastácia
que cozinhava, a que detinha o poder e o conhecimento sobre os alimentos e que por causa
deste saber, foi até mesmo raptada pelo Minotauro que ouviu falar de seus “quitutes”,
forçando todos os outros a viajarem até a Grécia Antiga utilizando o de “pir-lim-pim-pim”
para salvá-la das garras do terrível monstro.
81
Maiores informações sobre Pontos de Cultura disponível em: www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/
82
Maiores informações sobre Ação Griot Nacional disponível em:
www.graosdeluzegrio.org.br/html/acao_grio/apresentacao-projeto-texto.htm - 41k -
CXCIII
Tecendo uma intertextualidade com outro compositor, agora contemporâneo,
recorro a cantiga de Dorival Caymmi que também ajuda a ressaltar a importância da ama
negra, a exemplo daquela que permeia o universo lobatiano:
Na hora que o sol se esconde/E o sono chega
O sinhozinho vai procurar Hum...hum...hum...
A velha de colo quente /Que conta quadras
que conta estoria para ninar Hum...hum...hum...
Sinha Nastacia que conta historia
Sinha Nastacia sabe agradar
Sinha Nastacia que quando nina
Acaba por cochilar
Sinha Nastacia vai murmurrando estória para ninar
83
Resta-nos, portanto, uma reflexão: o que queriam outras pretas velhas comunicar,
construir, guarnecer e, sobretudo, não deixar esquecer, quando iam peregrinando de engenho à
engenho contando e cantando suas histórias para seus pares?
Encontramos na obra de Monteiro Lobato, especificamente no livro “As histórias de
Tia Nastácia” que dominava como ninguém um rosário de histórias populares de tal modo que
poderíamos classificá-la como Mestre da palavra falada, um posicionamento crítico do autor
em defesa desta rica e milenar tradição humana: a fabulação. A importância da fabulação
aparece freqüentemente revelada através das histórias que conhecia de memória, uma velha
tradição oral trazida da África relembrando a figura milenar do griot - contador profissional
que ganhava a vida contando histórias de aldeia em aldeia.
Assim, através das histórias de Tia Nastácia, Monteiro Lobato encontrou uma
maneira de articular oralidade e escrita legitimando o que corria na boca do povo, suas
histórias e supertições. Neste sentido, podemos dizer que para Monteiro Lobato criar é
fabular, imaginar, transgredir.
E toda fabulação para ser bem prazerosa precisa ter um tom coloquial, de conversa
informal com o ouvinte, sem se prender a dar muitas explicações e promover descobertas.
Quer antes embalar o corpo e acordar a imaginação, obedecer a uma cadência mole, repetitiva
mesmo, criando suspense diante do que está por vir e apresentando o “desenrolar contínuo e
ritmado das ações de determinado personagem”(RONDELLI, 1989:42)
83
Disponível em: vagalume.uol.com.br/dorival-caymmi/tia-nastacia.html - 27k -
CXCIV
É assim que no início do livro “As reinações de narizinho” Lobato nos convida:
Numa casinha branca, no Sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha
de mais de sessenta anos. Chama-se Dona Benta. Quem passa pela
estrada e a na varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de
ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:
- Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto, mas engana-se. D.
Benta é a mais feliz das avós porque vive em companhia de sua neta
Lúcia, a menina do narizinho arrebitado(...)
84
Parodiando o referido autor, escrevi um pequeno texto anunciativo sobre a vida da
Tia Maria do Jongo e seu encantador quintal:
Numa casinha verde, de muro multicor enfeitado, em meio a árvores frondosas e
refrescantes, mora uma velha de mais de oitenta anos. Quem passa pela estrada e a
sentada na varanda, lendo seu jornal, segue seu caminho pensando: - Que tristeza viver assim
tão sozinha....Mas engana-se. Tia Maria é uma das pessoas mais felizes daquele lugar porque
vive em companhia de não apenas uma, mas de muitas crianças, que com ela convivem e
carinhosamente a reconhecem como a Tia Maria do Jongo.
E foi justamente por sabermos de sua grande importância e popularidade junto às
crianças, que resolvemos convidá-la para ser nossa Mestre Griôt, visto que ela cumpria esta
função, muito antes da fundação da Escola de Jongo
85
naquela comunidade. Sobre o assunto, é
a própria Tia Maria que se anuncia dizendo: - Antes de Jongo, de ONG, minha casa sempre foi
cheia de criança. Eles entram, me ajudam. Ainda pouco tinha criança aqui, me ajudaram a
molhar as plantas, conversamos um pouco... Graças a Deus, estamos aí, sempre junto com as
crianças!
Tia Maria do Jongo tornou-se uma das pessoas mais importantes e conhecidas da
Serrinha. Percebemos isso também durante as apresentações do Grupo Cultural Jongo da
Serrinha - momento de muita emoção, onde Tia Maria da Jongo entra com “suas” crianças
como orgulhosa ela mesma apresenta, restituindo simbolicamente um elo entre as gerações,
onde passado e presente se encontram anunciando um futuro mais esperançoso que se
84
Versão na internet disponível em: www.memoriaviva.digi.com.br/mlobato/turma.htm
85
A Escola de Jongo foi fundada em 2001.
CXCV
descortina a cada ‘tapiado”
86
, sinalizada na cantiga “Preta velha jongueira” de Lazir
Sinval:“Preta velha jongueira, meu Caxambu
25
está lhe chamando, sinto a poeira do chão
levantando com seu tapiado(...)”.
A participação ativa e o olhar atento à narrativa são fortemente ressaltados como
acontece em rodas de contação de histórias em diversas regiões deste país. A interação
narrador-ouvinte é fator importante para que o conto cumpra sua função social de mediador de
experiências vividas e guardadas na memória na forma de histórias, contos, mitos, fábulas,
lendas, cantigas de embalar crianças e uma infinita série de brincadeiras cantadas que -
falando especificamente da natureza humana, de suas necessidades, mazelas e grandezas -
atraem público de todas as idades até os dias de hoje perpetuando, o que defendemos ser um
“evento comunicativo”.
.
Figura 55
Tia Maria do Jongo conta histórias em seu quintal/Projeto Griot/ Arquivo Escola de
Jongo/Outubro/2007
86
De todas as Comunidades Jongueiras (14 ao todo) a Serrinha é a única que dança “tapiando” com o pé forte no
chão.
CXCVI
Figura 56
Tia Maria ensina em seu quintal a dança do Jongo ao jongueiro mirim.
Vida ao Jongo!
Arquivo Escola de Jongo da Serrinha/Madureira/2007
E o que conta e comunica nossa Tia Maria do Jongo em seu maravilhoso quintal?
De qual valores estamos falando? O que é ser um jongueiro? De que tipo de educação estamos
falando?
Uma das respostas pode ser encontrada no ponto de Jongo descrito abaixo que
saúda o jongueiro velho que veio para ensinar às próximas gerações seus saberes jongueiros,
dando-nos uma dimensão de como estes conhecimentos circulares vem sendo transmitidos de
geração a geração:
Saravá jongueiro velho
Que veio pra ensinar
Que Deus dê proteção
Pra jongueiro novo
Pro Jongo não se acabar!
(Ponto de jongueiro/Guaratinguetá/SP)
Tia Maria, nascida e criada em Madureira, conta que a música e a dança sempre
fizeram parte de sua vida, onde teve o privilégio de ver no quintal de sua casa o nascimento de
uma das mais importantes e tradicionais escolas de samba do Rio de Janeiro, a Império
Serrano e ficava, menina ainda, escondida - tendo a lua como testemunha - por detrás das
árvores ouvindo, cantando e ensaiando os primeiros passos e pontos das rodas de Jongo que
aconteciam altas horas da noite no terreiro de sua casa, - pois naquele tempo, as crianças eram
CXCVII
proibidas de participar das rodas de Jongo, eram reuniões fechadas, envolvidas em
fundamentos e mistérios.
Porém sua “curiosidade espontânea”
87
era tanta, que ela ficava espiando e de
tanto espiar, acabou aprendendo tão bem a arte de ser “jongueira” que em 1977, Mestre Darcy
do Jongo – considerado por todos o ‘pai” do Jongo da Serrinha a convidou para montar com
ele um grupo de jongo com as crianças: semente que quase 30 anos cresceu e frutificou,
gerando o Centro Cultural da Serrinha que temos hoje.
Aliás, o romper com as fronteiras dos espaços oficiais do saber, atravessar muros e
paredes e chegar, quem sabe, a legitimar o quintal da Tia Maria como um ecossistema
educativo, é um desafio. O que se passa, quando nada parece se passar?
Uma vez, em uma de nossas Rodas de Conversas em que recebíamos a visita de
cerca de 60 jovens da UNE em nossa Escola de Jongo, um deles lançou na roda a seguinte
pergunta: - O que vocês sentem quando estão dançando o Jongo? No que Kethelyn, de 8 anos
respondeu: Emoção!
Figura 57
Kethelyn – primeira menina à direita –, na roda de Jongo,
batendo palmas e ensinando seus saberes aos jovens visitantes da UNE/Arquivo da
Escola de Jongo/Janeiro/2007
87
Em seu livro “Pedagogia da Autonomia” Paulo Freire discute a necessidade de se transformar a curiosidade
“espontânea” em curiosidade “epistemológica”. Paulo Freire (1996).
CXCVIII
È no descobrir-se “jongueiro” que emociona o sujeito. Um sujeito, grande ou
pequeno, que descobre sua necessidade desconhecida: a de pertencer primeiramente a si
mesmo, depois a um grupo - a uma “pátria mãe” que precisa ser amada para se tornar
“conhecida”, como tão bem nos lembra Roger Bastide, que ao olhar as coisas pelo avesso,
afirmou “só se conhece aquilo que se ama”( BASTIDE aput BRANDÃO,2002:172).
Ao penetrar no campo afetivo, onde valores altamente simbólicos são acionados,
este mesmo sujeito começa a gostar, ou seja, a “amar” pelo viés do jongo a si mesmo, as
pessoas e as coisas a sua volta, e amando, busca conhecer, conhecendo quer valorizar,
valorizando não quer perder, não perder significa guardar. Guardar na dimensão poética que
Antônio Cândido anunciou, sem trancar mas fazendo o conhecimento circular.
A necessidade de perpetuação de valores ancestrais, onde o saber dos mais velhos é
repassado aos mais novos, nos leva a refletir nesta “gnose jongueira” que Tia Maria e tantos
outros jongueiros mais velhos nos ensinam, motivam e encantam.
Ela atua no sentido de provocar as curiosidades e aquele menino e menina que
chegam ao seu no seu quintal o tempo todo “de repente aprende”. Portanto, consideramos
relevante o olhar reflexivo para o momento em que vivemos agora, em que os altos índices de
exclusão e repetência escolar continuam a ser o grande desafio a ser vencido se realmente
quisermos democratizar o saber e mudar a imagem subalterna que se acumulou por anos e
anos de história sobre a cultura popular.
O projeto Mestre Griôts apresentado como proposta trabalho junto a Escola de
Jongo da Serrinha em parceria com a Escola Municipal República Dominicana, se propõe
principalmente, a direcionar e aplicar estas reflexões sobre o acervo da tradição oral que
circula na comunidade do Morro da Serrinha no cotidiano escolar propiciando, com isso, que
o ambiente da sala de aula se torne um espaço capaz de permitir uma identificação cultural do
sujeito cognoscente, tanto com o objeto de conhecimento quanto os seus processos
aumentando a rede de transmissão de conhecimentos, descentralizando e democratizando
saberes. Quais os poetas daquela comunidade de jongueiros? Quem é Tia Maria do Jongo? Por
que os nomes das ruas daquela comunidade são Mestre Darcy do Jongo ou Mano Décio da
Viola? Por que o nome da creche ao lado da escola em que eles estudam é “Creche Tia Maria
Joana”? E a casa ao lado, por que se chama “Tia Eulália”? Quem são estas pessoas e o que
CXCIX
fizeram por sua comunidade? E como o aprendizado deste saberes pode ajudar o menino ou a
menina em seu processo de alfabetização? Quais os símbolos jongueiros, os ritos, os valores
que podem ser utilizados como estratégia alfabetizadora?
Saberes locais que ao dialogarem com o currículo formal da escola, fortalece o
sentimento de pertencimento e enraizamento tão necessários ao desenvolvimento humano,
motivando o sujeito a buscar novos conhecimentos, a ir em busca do que ele ainda não sabe.
Acredito que estas e tantas outras histórias locais, possam também servir de ferramenta de luta
contra projetos globais de subalternização em relação aos saberes das classes populares.
Sem a apropriação da leitura e escrita, como possibilitar ao menino e menina
jongueira a apropriação destes saberes de maneira que ele se sinta encorajado e fortalecido a
procurar outros, visto que, reiterando mais uma vez “se negro é burro, quero burro no
mestrado”? A certeza de que precisamos buscar um diálogo constante com a escola nos anima
a caminhar. Agora, como os caminhos não estão dados, cada dia é dia de reinvenção em nossa
escola que busca romper com este paradigma dicotômico entre cultura e educação.
A inclusão não apenas de livros que problematizam a questão da discriminação
racial brasileira, mas recuperando leituras de matrizes históricas e culturais do negro, mas a
mudança de postura do educador(a) no acolhimento as diferenças e diversidade , a
hibridização e pluriétinica brasileira pode vir a ser um caminho para quebrar e desconstruir
esta visão negativa das identidades negras ou afro-descendentes no Brasil, inaugurando novos
discursos.
Discurso este, que contemple cada vez mais a luta , mas também a poesia, as falas,
as festas e danças, os batuques, o riso e a rebeldia de um povo que quer valer-se de sua própria
história, como na cantiga “Negrume da Noite”
88
- cuja letra aqui transcrevo como um convite
à reflexões futuras e duradouras fazendo com o que está invisível transborde abundantemente
dentro de cada um de nós:
O negrume da noite
Reluziu o dia o perfil azeviche
Que a negritude criou
88
NEGRUME DA NOITE letra (Virgínia Rodrigues) disponível em:
letras.terra.com.br/virginia-rodrigues/487519/
CC
Constitui o universo de beleza
Explorado pela raça negra
Por isso o negro lutou
E acabou invejado e se consagrou
Ilê, ilê, ilê
Tu és o senhor dessa grande nação
E hoje os negros clamam
A benção, a benção, a benção
Odécomorodê
Odé are re adé
Comodore odé are re
Desenvolvemos um trabalho de valorização constante da oralidade e escrita, na
medida em que entendemos que aquele espaço, pode ser um espaço onde os educadores ,
como eu, possam ser mediadores de leitura.
Tal pensamento vai ao encontro do pensamento elaborado por Márcia Cabral sobre
os mediadores de leitura:
Os mediadores de leitura, nem sempre estarão, portanto, enraizados
nos meios familiares, nas instituições escolares. Muitas vezes, é em meio
a outras situações, culturalmente significativas, que o sujeito encontrará
alimento para seu pleno desenvolvimento como leitor. (CABRAL,
p.168)
Figura 58
O Griot Aprendiz Carlos Alarcão é um mediador de leitura. Nesta fotografia, crianças escutam
uma história no quintal da Tia Maria do Jongo. No canto acima, o inseparável tambor.
Arquivo Escola de Jongo da Serrinha/Madureira/2007
CCI
Desta forma, acreditamos na possibilidade de interferir de forma positiva no
processo de formação identitária destes sujeitos que por estarem em um espaço marcado
referencialmente pelas questões de matriz afro-brasileiras, são potencialmente capazes de se
tornarem multiplicadores deste Patrimônio Imaterial da cidade do Rio de Janeiro: o Jongo da
Serrinha. Para que este processo de aquisição de conhecimentos se complete, o diálogo com
espaços formais de educação é um desafio. Brandão analisa esta questão da seguinte forma:
O diálogo entre o espaço formal e o não formal, me leva a perceber
cada vez mais a necessidade de trabalharmos com os conceitos de
hibridização cultural, onde as fronteiras entre os saberes ou zonas de
intersecção não estão tão claros e definidos como a cultura hegemônica
nos impõe acreditar, e precisam ser compreendidos como movimentos
circulares cujos limites e fronteiras nos convocam a novos desafios e
aprendizagens, que se dão de maneira efetiva dentro e fora da escola.
Então, o que eu acho que nós podemos fazer é criar condições para que,
de uma maneira autônoma, criadores de cultura popular, desde uma
pessoa individualmente até toda uma comunidade, possam recriar e
possam viver da maneira mais livre e autêntica possível as suas
próprias experiências de festas, de criações de cultura imaterial e assim
por diante.
89
Ao atuar hoje na construção de um outro espaço possível de conhecimento e
aprendizagem e buscamos, na contramão das dicotomias e separações culturais da qual sou
fruto, penetrar por outras vias novamente no território escolar, para melhor instrumentalizar
estes jongueiros mirins produtores de cultura(as) em relação a sua imersão na cultura escrita.
Este é o desafio que o projeto Tangolomango se propõe, a partir deste momento, investigar: as
situações culturalmente significativas que promovem a formação do sujeito leitor dentro e fora
da escola. De repente por que não estes meninos e meninas vão poder registrar estas histórias
há tanto tempo circulam na comunidade?
Pela complexidade que as questões por hora levantadas nos suscitam, gostaria de ressaltar
a necessidade de construir “pontes” e não dicotomias e mais uma vez, separações entre os
saberes. Reconheço, entretanto, que o caminho escolhido é delicado, é como andar em “um fio
de navalha”. Se escorregar apenas para um lado, valorizamos os saberes locais, mas, não
89
Disponível em:WWW.tvebrasil.com.br – Entrevista: Carlos Rodrigues Brandão
CCII
promovemos possibilidades do menino e menina se apropriarem de outros saberes; se cairmos
para o outro lado, corremos o risco de enfraquecer e colaborar com o desenraizamento de sua
cultura. Por isso, optamos pela fluidez e pelo fortalecimento do hibridismo cultural. Optamos
pelo caminho que provoque a possibilidade de transitar entre e com as culturas.
CCIII
ENTROU POR UMA PORTA E SAIU PELA OUTRA...
Algumas considerações finais
“Vou caminhar que o mundo gira
Vou caminhar que o mundo gira
Gira meu mundo...”
(Ponto de despedida/Jongo da Serrinha)
Uma história sem fim
Muitos contadores de histórias acreditam que as histórias “não tem fim”. Mesmo
quando o contador se despede de seus ouvintes anunciando “entrou pelo pé de pato, saiu pelo
pé de pinto, quem quiser que conte cinco” as histórias, continuam sendo “gestadas” no
coração das pessoas. Estando elas agora, “grávidas” de outras palavras que fazem parte do
mundo subjetivo que cada sujeito carrega consigo, elas se renovam e se reinventam ao serem
re-contadas: de boca em boca as histórias se re-alimentam e neste sentido, elas “não têm fim”.
O que termina não são as histórias e sim os ciclos. A cada ciclo terminado, um novo está por
vir, e assim as histórias são recontadas sempre mais e mais uma vez. Recontar uma história é
revivê-la. Senti-la novamente, emocionar-se mais uma vez.
Talvez, por este motivo, o homem tenha desenvolvido a capacidade de fabular, de
narrar e por que não dizer, de inventar histórias. Fabulam-se, inventam-se, narram-se e
contam-se histórias pela necessidade de reviver novamente a vivência que outrora,
CCIV
positivamente ou mesmo negativamente nos emocionou, nos tocou, nos atravessou, a ponto de
constituir uma experiência.
Daí a necessidade da repetição, recriação e reiteração presente quando se recupera
os fios de uma memória sempre reinventada, buscando compreender uma realidade revivida
através de fragmentos de nossa própria memória que evoca outros fragmentos, acabamos nos
emocionando e de certa forma, vivendo estas experiências mais uma vez. E ao reviver, penso,
reflito e aprendo novamente. Nesse movimento, fiz a opção de recontar o Tangolomango de
modo a revivê-lo novamente, buscando compreender as complexas redes de relações e
vínculos afetivos que tal experiência educativa possibilitou sobretudo a mim e de alguma
forma, que não posso mensurar, as crianças e adolescentes que compartilharam esta pedagogia
cultural comigo.
Por outro lado, acredito que este movimento, o movimento de descoberta de quem
eu sou, foi de certa forma, o que atravessou esta narrativa buscando reflexões para
compreender melhor os educandos com que interagi. Por buscar recuperar a realidade vivida,
acredito que corremos perigo. Como nos fala Ruth Rocha, “mais difícil do que escrever sobre
ficção, é na certa, escrever sobre a realidade” visto que para o pensamento da autora “quando
se escreve, conta-se o que é”.
29
O tangolomango está carregado de minhas memórias mas
também da provocação do que ainda desconheço.
A frase de Clarice Lispector, que muito me emociona e faz pensar, diz assim: “Eu
sei muito pouco, mas tenho a meu favor, tudo que não sei”. Trago este fragmento de texto,
como um pré-texto para acalentar, de certa forma, as fragilidades que ainda minha narrativa
carrega (e sempre?) matizada de algumas contradições e até mesmo, polarizações. A escrita
ainda me trai e neste sentido, reconheço o longo caminho à frente a percorrer. Este é um texto
que me desnuda naquilo inclusive que ainda não sei.
Considerando que a(s) cultura(s) são as “moradas do saber” (BRANDÃO,
2204:108) defendo a hipótese de que ao fortalecer os elos das crianças e adolescentes com
suas práticas culturais e conseqüentemente, seus saberes e dizeres, poderemos enriquecer os
conteúdos escolares de maneira a levar os educandos a uma consciência cada vez maior do seu
“que fazer” no mundo a partir da construção de novos significados.
CCV
A base de nossa abordagem pedagógica, que aliada às questões, duvidas e conceitos
iluminados por Paulo Freire referentes ao “tipo” humano que queremos formar - buscando
fazer com que crianças e jovens elaborem projetos de vida que incluam suas potencialidades e
habilidades. Que tenham a possibilidade de des-construir o discurso da subalternidade
abrindo-se para outras culturas também. Que os saberes das classes populares possam ser
legitimados e que estes mesmos sujeitos possam ter a possibilidade de construir outros.
Sou tomada de desejo neste momento. Um desejo que muito me inquieta. Um
desejo, que encontro também cotidianamente nas crianças ao meu redor: o desejo de conhecer
os avessos das coisas. Lembro-me de que, quando criança, tinha o desejo de ser formiga,
para entrar no formigueiro. Tinha uma curiosidade besta de saber se lá, no interior da casa das
formigas, tinha quarto, sala, banheiro, cozinha, igualzinho como era a casa que eu conhecia.
Buscava entender o conceito de casa que as formiga tinham e sabia que nenhum adulto
poderia me ajudar a descobrir isso. Por isso imaginava. Puro devaneio infantil. Neste sentido,
desejo a construção de uma outra escola: uma escola acolhedora, uma escola dialógica e
libertária, aberta à vida, inclusive à fabulação.
Reconheço, que muito do que sou e escrevo hoje, como pessoa e educadora, está
permeado por estas experiências e curiosidades infantis. E pra deixar esta criança que ainda
vive em mim, sempre acesa, em alerta, resolvi contar esta história: a história de uma
educadora negra, que acredita que uma outra escola é possível.
“Se é imaginário, é” nos fala categoricamente Estamira citando outra fala que se
repete ao longo do filme mencionado anteriormente. Uma fala que nos possibilita retomar o
fio da fabulação mais uma vez, como elemento indispensável para a construção de uma escola
melhor: imaginar que esta mesma escola seja possível, é o primeiro passo para que este desejo
aconteça.
Falando mais uma vez das questões que costuraram a presente narrativa, a
preocupação especificamente com a criança que ainda não aprendeu a ler e a escrever, me
inquietou a tal ponto, que fomentou a elaboração do projeto pedagógico que priorizou a
diversidade cultural como eixo buscando o diálogo entre saberes e práticas cotidianas.
Buscando incorporar o potencial lúdico e simbólico que as manifestações populares
CCVI
apresentam, fomos compondo a partir da competência lingüística dos educandos, um projeto
interdisciplinar de produção e aquisição de novos conhecimentos.
Voltamos mais uma vez a enfatizar a necessidade de provocar nas crianças e
adolescentes o desenvolvimento do sentimento de enraizamento e pertencimento como
estratégia de emancipação das classes populares: comprometer-se com uma classe social que
vem sofrendo violências históricas marcadamente racistas e classistas ao longo da história
política deste país, que desmerece, expropria e subalterniza seus saberes. O caminho escolhido
foi à busca constante e as possibilidades de diálogo entre educações e culturas. Lutava
diariamente para que minha fala não fosse alienante, buscando perceber o conjunto dos “temas
geradores” que possibilitariam esta intervenção pedagógica transformadora.
Na prática, acredito que o Tangolomango deixe como reflexão para futuros
desdobramentos e descobertas, a possibilidade de investir e desenvolver um olhar cada vez
mais sensível às interações e trocas culturais como estratégia de aproximação do sujeito de
seus saberes e raízes. Aponta também para a necessidade de, nós educadores, desenvolvermos
a consciência de que a seleção curricular que por hora separa e dicotomiza o sujeito de sua
vida cotidiana, separando equivocadamente educação e cultura, é uma opção política que tem
a ver com o “tipo” humano e de sociedade queremos ou não formar.
Ao me deslocar de um espaço formal para um espaço informal educativo, carrego
comigo as mesmas inquietações. E este movimento me leva a refletir um pouco mais
profundamente, sobre as fronteiras e os espaços híbridos de construção de saber, ou saberes. O
que está dentro, o que está fora, o que está entre? E mais uma vez, como fica a escola formal
com esta “invasão cultural” que a Escola de Jongo possibilita, visto que os meninos e meninas
que estão também estão cá, misturando, selecionando, transformando saberes. Fluidez e
intercâmbio mais uma vez agora sendo percebidos por outro lugar: a Escola de Jongo da
Serrinha.
Reconhecemos a escola formal como “um espaço” dentre tantos outros espaços
sociais que as crianças e adolescentes participam, e por isso, apostamos neste emaranhado de
fios tecidos a partir dos encontros e desencontros culturais que geram fronteiras híbridas entre
os saberes plurais, múltiplos e circulares. Estamos dentro do espaço escolar dançando e
cantando o Jongo, mas também “invadimos” seu espaço curricular através da figura dos
CCVII
Mestres Griots que contam histórias e recuperam o poder da fabulação entre e com as
crianças. Estamos ensaiando novas possibilidades e os desafios em relação ao que seria uma
educação do cotidiano (BRANDÃO,2004:156), na tentativa de abrir as portas da escola para o
mundo que a circunda, é grande porém, promissor. Quem sabe um outro caminho é possível?
Esta é a pergunta que continuo a perseguir.
As questões que se apresentam neste momento seriam: Quais as contribuições que
tais interações culturais podem vir a possibilitar ao cotidiano escolar? O que nós, educadores
da Escola de Jongo, temos a ensinar e aprender com a escola formal e vice versa? Como
promover o fortalecimento da identidade afro-brasileira na escola tendo como suporte a
cultura jongueira local? Como ampliar o conhecimento curricular das crianças e adolescentes
daquela comunidade de modo a fazer com que os seus próprios conhecimentos e saberes não
sejam subalternizados ou esquecidos? Como colaborar para a construção de uma escola viva,
que não seja a escola de “um dia só” mas que potencialize os diferentes saberes culturais
favorecendo e ampliando o conhecimento tanto dos educandos como de seus educadores?
Ou seja, de que maneira podemos dialogar com diferentes saberes, fazendo com que
o menino e a menina aprendam tanto sobre a cultura geral (que é imprescindível para sua
imersão social mais ampla) com ajudar o menino a conhecer e aprofundar seu conhecimento
sobre a cultura local da qual participa? Em ntese: como fazer com os meninos e meninas
aprendam, tudo junto e misturado, tanto os conhecimentos oficiais da escola quanto os nomes
dos poetas populares de seu povo?
Apesar de sabermos que ainda é cedo para respondermos a estes e tantos outros
desafios que a parceria com a escola formal e nossa Escola de Jongo paulatinamente está
construindo, a desconfiança de que a possibilidade de trocas e diálogos culturais como fatores
que interferem diretamente na formação e particularmente em sua alfabetização, nos fortalece
e estimula.
Para finalizar, gostaria de refletir sobre o sentimento de frustração em relação aos
que “não foram”, aos que ficaram no “meio” do caminho. Relembrar de Isaías, de Israel, de
Pedro, de Crispim, da Adriana, do Abraão, da Karen, da Daniela, do Daniel, do Jefferson e
outros que tanto me ensinaram sobre minha incompletude docente.
CCVIII
Não sei até que ponto eu interferi na vida destes meninos. O que terá acontecido
com eles? Como anda a sua vida escolar? Em que momento a semente lançada em favor de
sua não submissão se insurgiu? (ou ainda está por se insurgir?) Neste sentido, fico a me
perguntar: valeu a pena?
Para responder a esta pergunta, afirmo que “começaria tudo outra vez”, ou melhor,
como acredito que as histórias “não têm fim” visto que não para terminar dizendo que
“todos foram felizes para sempre!”, reconheço, metaforicamente falando, nas crianças e
adolescentes da Escola de Jongo estes mesmos meninos e meninas que passaram pelo projeto
Tangolomango. Meninos e meninas que apresentam dificuldades em se alfabetizar.
A possibilidade de provocar, através do fortalecimento da “leitura de mundo” como
suporte para a aprendizagem da “leitura da palavra” abre brechas, mais uma vez, para
realizarmos pequenos movimentos de quebra da subalternização e insurgência contra os
entraves políticos e culturais que as classes populares sofrem. Fica o convite a futuras
investigações e descobertas.
Por hora, gostaria de me despedir tal e qual como comecei. Gostaria de pedir a
benção a todos os Mestres, brincantes e foliões, aos versadores e cantadores, a todos
aqueles/aquelas que diálogo com diferentes tambores, que levam mensagens aos Deuses
dançando e fincando os pés no chão, e principalmente, às crianças Erês que me
acompanham no viver de todo dia. Peço a benção também aos leitores e leitoras, que de
alguma forma, compartilharam a experiência rememorada do Tangolomango comigo.
Peço a benção aos meus orixás: a Ogum que sincretizado na figura de São Jorge
Guerreiro, protege e abre meus caminhos e a Iansã - dona dos ventos e das tempestades - que
quando sopra me desloca para lugares antes inimagináveis. EPA HEI! Para todo o sempre!
Axé! Pois estando eu acostumada a entrar na roda e a “sungar” a saia e começar a girar e a
dançar,e a cantar me despeço trazendo um ponto de Jongo que fala por si só:
Adeus, povo bom adeus,
Adeus que eu já vou embora,
Pelas ondas do mar eu vim,
Pelas ondas do mar eu vou me embora...
CCIX
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