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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MARISA FÁTIMA PADILHA GIROLETTI
CULTURA SURDA E EDUCAÇÃO ESCOLAR KAINGANG
Florianópolis
2008
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MARISA FÁTIMA PADILHA GIROLETTI
CULTURA SURDA E EDUCAÇÃO ESCOLAR KAINGANG
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Educação Processos Inclusivos,
da Universidade Federal de Santa Catarina,
como requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Educação. Orientador: Prof. Dr.
Reinaldo Matias Fleuri e co-orientadora: Profa.
Dra.Gládis Terezinha
Tarchetto Perlin.
Florianópolis
2008
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TERMO DE APROVAÇÃO
MARISA FÁTIMA PADILHA GIROLETTI
CULTURA SURDA E EDUCAÇÃO ESCOLAR KAINGANG
Dissertação julgada e aprovada em 09 de maio de 2008, como parte dos requisitos
necessários para obtenção do título de Mestre em Educação, na Linha de Pesquisa Processos
Inclusivos, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa
Catarina.
Banca examinadora
Prof. Dr. Reinaldo Matias Fleuri
Orientador – UFSC
Profa. Dra. Gládis Terezinha Tarchetto Perlin.
Co-orientadora – UFSC
Profa. Dra. Mariane Rossi Stumpf
Avaliadora – CED – UFSC
Profa. Dra. Heloíza Barbosa
Avaliadora – CNPQ – UFSC
Prof. Dr. Lynn Mario de Souza de Meneses
Avaliador - USP – SP
Prof. Dr. Gilvan Muller de Oliveira
Suplente – CCE - UFSC
Dedico este
estudo aos estudantes surdos
Kaingang da aldeia do Município de Ipuaçu,
oeste de Santa Catarina,
e à Professora Sonimara da Silva,
por terem participado diretamente destes estudos.
Dedicação especial a todos os surdos indígenas do Brasil
e aos pesquisadores
que possam vir a usufruir desta pesquisa.
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal de Santa Catarina, através das Linhas de Pesquisa, Processos
Inclusivos e Interculturalidade e Movimentos Sociais.
A todos os meus professores, pelos ensinamentos. E aos meus orientadores, Reinaldo
Matias Fleuri e Gládis Terezinha Tarchetto Perlin.
A Maria Thedim, e sua equipe composta por Carmem Cecília Pereira e Arthur Müller,
pelo cuidadoso trabalho de revisão e normalização final do texto.
À Escola Indígena Estadual Básica Cacique Vanhkre, através da direção, professores,
funcionários, estudantes-ouvintes; aos surdos e ao Professor surdo Giovani Alberto Cassemiro.
Ao apoio da Secretaria do Desenvolvimento Regional de Xanxerê, SC Setor de
Ensino. Aos demais amigos que deram o apoio na leitura e correção dos meus registros.
À Escola Estadual Joaquim Nabuco e à Escola Estadual Nossa Senhora da Conceição
de São José/SC. À Direção e amigas(os) professoras(es), pelo apoio, acolhimento e crédito
indispensável na realização da pesquisa.
À minha família: meu esposo, Negueto, e meus filhos, Alessander, Édipo e Heloisa,
pela força e carinho nas horas difíceis, nas ausências e nos momentos bons desta pesquisa.
À minha mãe, Francisca, pela imensa gratidão de exemplos que devo a ela e pelo
orgulho retribuído.
Ao meu pai, João, e irmãs, Mara e Marizete, e a todos os familiares, pelo incentivo. Ao
Pedro Giroletti, pela companhia em minha vida e ao Alexandre (Nôno), pelo amor mútuo.
Aos amigos e amigas que, de um jeito ou de outro, me apoiaram e acreditaram na
realização e término desta etapa da pesquisa. Também aos amigos novos que fiz ao longo destes
dois anos, nas escolas pelas quais passei e nos contatos realizados fora da escola, em especial à
família de José Weber e Sonia Weber
Como transformar o valor formal da diferença lingüística numa
analítica de diferença cultural? (BHABHA, 1995 apud SOUZA, 2004, p. 129)
RESUMO
GIROLETTI, Marisa Fátima Padilha. Cultura surda e educação escolar Kaingang. 2008. 218 f. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2008.
A dissertação com o tema “Cultura surda e educação escolar Kaingang” tem como foco principal o registro
baseado nos sinais Kaingang, desenvolvidos na comunicação dos surdos na escola, em casa e na Aldeia. A
pesquisa foi realizada na Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkre, situada na Aldeia Sede,
município de Ipuaçu, oeste de Santa Catarina. A pesquisa assumiu um caráter participante pois, a pesquisadora
desenvolveu um papel triplo, atuando também como docente no período vespertino (1ª a 4ª série) e intérprete de
Língua Brasileira de Sinais junto aos surdos Kaingang incluídos numa 6ª série no período matutino. Sem
priorizar uma análise Lingüística, buscou-se estudar o processo cultural de criação e uso de signos pertinentes
aos significados da cultura Kaingang, na interação dos surdos da comunidade com a Língua Brasileira de Sinais,
também conhecida como Libras e utilizada como língua oficial das comunidades surdas no Brasil urbano. Com o
olhar voltado a esta comunicação (os sinais Kaingang e a LSB), a pesquisa buscou identificar os elementos
culturais que constituem a identidade dos surdos Kaingang e analisar os contextos em que os sinais lingüísticos
surdos próprios à cultura Kaingang se legitimam e se entrelaçam com a LSB. O contexto para qual não poderia
ter sido mais adequado: a escola. Ambiente propício ao registro, a interpretação, a análise contextual dos sinais e
das formas de comunicação entre surdos na comunidade Kaingang. O que possibilitou o estudo das
representações que se fazem destes surdos na comunidade, assim como os processos de identificação cultural
“Surdo/Índio”. A lógica de análise fundamenta-se no reconhecimento das diferenças como alteridade, o que
requer uma visão de cultura, de povo, de língua e de humano que supere a lógica bipolar (certo ou errado, feio ou
bonito, superior e inferior), que ao longo da história tem servido como chave de interpretação das relações
interculturais.
Palavras-chave: Surdos Kaingang. Cultura. Comunicação (Sinais e LSB). Interculturalidade. Etnia. Escola
indígena.
ABSTRACT
GIROLETTI, Marisa Fátima Padilha. Deaf culture and Caingang scholar education 2008, 218 p., Master
Thesis in Education, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
The thesis “Deaf culture and Gaingang scholar education ” has its main focus based on the analysis about
Kaingang’s Sign Language used by deaf members from the tribe aiming to communicate at home, school and
also in their local community. The research took place at their aboriginal school “Escola Índigena Estadual
Básica Cacique Vanhkre”, in Ipuaçu, a town in the west of Santa Catarina. The researcher took on a triple role -
besides being a researcher, she was also an interpreter during the mornings for some deaf children included in a
Junior High Group and used to teach a Junior Group composed by deaf students during the afternoons. That is
why this work has assumed a partaker nature. It is important to mention that this work is not a Linguistic
Analyze. Herein the researcher considers the interface between signs belonging to Kaingang Culture and
Brazilian Sign Language, also known as "Libras" (from "Língua Brasileira de Sinais"), used as the official
language for deaf communities from the urban Brazil. Focusing on this particular communication (Kaingang
signs and Libras), this work identifies some cultural elements responsible for building up Kaingang deaf’s
identity and its interaction with Libras according to the real context in which these specific signs, belonging to
Kaingang culture, take place. The setting chosen for developing this research could not fit better: the school.
There, it was possible to follow some abilities as writing, interpretation, contextual analyzes and different
possibilities of communication between deaf people among themselves and among others into their local
community and their processes of cultural identity “Deaf/Aborigine” as well. The logical process of this analyze
is based on differences as alterity, for example. What needs an overall view about culture, people, language and
also about some concepts of human that overcomes the bipolar logical (right or wrong, ugly or pretty, superior
and inferior). It means some thoughts that have been used as the keystone for interpreting intercultural
relationships.
Key Words: Kaingang deafs, Culture, Communication ( Sign Language and Libras - LBS), Iterculturality,
Ethnic, Aboriginal school.
T SĨ KE
Vĕnh kanhrãn “ĕn kãke” jagmré ke jé ĕg kanhgág kuty rã pur já kãtá, há pĕ vyr kanhgág kãgrén
mũ kuty ag jagmré vãmén h iskóra ta , ǐn tá ĕg jãma ki. nén jĕmĕn v ke mũ iskóra ta
vamhre ki ĕg jãma ki. nén ka ta nǐ ipuaçú ki, pur já. nén ũ jĕmĕ v vr vĕnh jykre
jĕmĕg tǐ fi, vĕnh kanhrãn tǐri ke fi mũ fog vǐ ki rá. (1 ki 4 ta jur) jagmré ke t kanhgág kutu
mré 6 série ag.
Vĕnh vǐ rá to kanhrãn jĕmĕ k ĕg kanhgág si ag han já fã ki vê k kutu ag, vĕnhrá t
vĕnhkĕgrá fog vǐ ki.
Vĕnh kanhrãn tag to jykrén mãn k (kanhgág vǐ kãgran) jĕmĕn k
ĕg tóg vég mũ, vĕnh vǐ rá ta kanhgág ag han
fã ki ke nǐ jagmré ta ke nǐ tag vê k tóg vyrm ke nǐ iskóra ki rán k, jĕmĕ k eg to
jykrén mũ vĕnh kĕgrán k vãme, jagmré kutu ag ĕg jamã ki. ĕn ki gĕ kanhrãn ĕg han fã ki kanhgág
kutu ag.
Jĕmĕja ĕn vê k ĕg tóg uég mũ ti t ũ ĕn ti kanhgág si han já fã vê k ag vǐ, (ki hã
ke ki hã ketũ, kórég sǐnuǐ, kri ke, krĕm ke) ki hã tóg ke mũ ĕg jagmré ti.
Palavras-chave: Kanhgág Kutu. Ag Jagmré Vǐ. Jagmré Ke E. Kanhgág Iskóra. Interculturalidade.
Tradução: Professor Paulo Loreni Nokrig, março de 2008.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Localização do município de Ipuaçu no mapa de SC. 49
Figura 2 Espaço físico da escola em forma de oca. 53
Figura 3 Encontro com as mães na sala dos estudantes surdos –14/12/06. 78
Figura 4 A intervenção dos estudantes durante nossa conversa com as mães... 78
Figura 5 Foto da mãe e filha fazendo o sinal de pão ... 79
Figura 6 Estudante Marcione sinalizando o nenê da mãe dela, de 04 meses 81
Figura 7 Estudante Amarildo segurando o nenê recém-nascido da irmã, na casa dele. 81
Figura 8 Menina cuidando de sua irmã. 81
Figura 9 Sinal de número. 82
Figura 10 Turma de alfabetização da E.I.E.B Cacique Vanhkre, trabalhando matemática... 83
Figura 11 Estudante Tainara fazendo os números de 01 a 10. 85
Figura 12 Estudante Tainara sinalizando o jogo “Butti”. 86
Figura 13 Meninas brincando de “Butti”, no recreio. 87
Figura 14 Professor Giovani fazendo o sinal de “Butti”. 87
Figura 15 Estudante Tainara no cemitério, sinalizando morte... 88
Figura 16 Sinal de morte no SKA. 88
Figura 17 Sinal de morte na LSB. 89
Figura 18 Sentar no SKA (Tainara). 90
Figura 19 Sentar na LSB (Giovani). 90
Figura 20 Família no SKA (Tainara). 90
Figura 21 Parentes juntos na festa do dia do Índio 19/04/2007. 90
Figura 22 Sinalizando parente... 91
Figura 23 Sinal parente. 91
Figura 24 Os parentes do estudante surdo Maicon, ... 92
Figura 25 Encontro de parentes na festa do dia do Índio – 2007. 92
Figura 26 Parentes e amigos na festa do Índio – 19/04/2007. 93
Figura 27 Tainara sinalizando mãe: cabelos nos ombros (Mulher) e junto (Filha “De”). 93
Figura 28 Sinal de pai, dando a referência dos cabelos curtos. 94
Figura 29 Mãe e pai, na LSB. 94
Figura 30 Junto “De” sou “De” 94
Figura 31 Tainara sinalizando avó e avô ... 95
Figura 32 Professor Giovani sinalizando avó e avô, na LSB 95
Figura 33 Sinalizando demora. 96
Figura 34 Amarildo e Silvana na turma da 6ª série... 96
Figura 35 Silvana sinalizando flauta. 96
Figura 36 Amarildo sinalizando flautino. 97
Figura 37 Silvana sinalizando chocalho. 97
Figura 38 Sinal de cesto/balaio. 97
Figura 39 Silvana e Amarildo sinalizando “cesto”, “balaio” pequeno. 97
Figura 40 Instrumento usado nas danças do povo Kaingang. 99
Figura 41 Amarildo e Silvana sinalizando cocar. 99
Figura 42 Cesto feito pelos estudantes em sala de aula. 100
Figura 43 Colares feitos pela comunidade indígena... 100
Figura 44 Colar para enfeitar a parede. 101
Figura 45 Os dois estudantes mostram a finalidade de cada objeto artesanal. 101
Figura 46 Amarildo e Silvana sinalizando colar e a flauta. 102
Figura 47 Colar sinalizando ao peito... 102
Figura 48 Artesanatos feitos pelos estudantes na sala da 6ª série... 103
Figura 49 Giovani sinalizando ônibus, em LSB. 103
Figura 50 Tainara ônibus, em SKA. 103
Figura 51 Surdo adulto (Guega) sinalizando ônibus... 104
Figura 52 O amigo explicando sobre a viagem. 104
Figura 53 Arrumar as roupas para a viagem. 105
Figura 54 01, 02, 03 dias viajando. 105
Figura 55 Conhecer a praia, o mar, que lindo! 105
Figura 56 Guega e professora Marisa, observando o barro... 105
Figura 57 Tijolos prontos na prateleira e depois para o forno. 106
Figura 58 Funcionários dentro de um forno. 106
Figura 59 O amigo sinalizando tijolo 106
Figura 60 Cama onde ela dorme em dias sem chuva. 107
Figura 61 O sinal de fogo recente na sombra... 107
Figura 62 A senhora surda andando pela estrada (foto do ano 2005). 108
Figura 63 Fotografamos as mãos e os pés. 108
Figura 64 Festa do dia do Índio em 2007. 108
Figura 65 Professores cortando bolo na festa e distribuindo para as crianças. 109
Figura 66 Tainara sinalizando churrasco e Giovani sinalizando carne e churrasco, na LSB. 109
Figura 67 Na festa do dia do Índio, a família do Maicon... 110
Figura 68 Um dos locais onde se assava o churrasco. 110
Figura 69 Tainara sinalizando cidreira e, abaixo, febre. 111
Figura 70 O pé de funcho usado para febre... 112
Figura 71 Sinalizando o seio cheio de leite, depois de tomar chá de funcho. 112
Figura 72 Verduras (saladas). 113
Figura 73 Verduras. 113
Figura 74 Esse tipo de salada (verdura) surge na aldeia... 113
Figura 75 Tainara sinalizando a árvore (01), o coquinho na mão (02) e ... 114
Figura 76 Giovani sinaliza árvore, na LSB (01) - tira a fruta do cacho (02)... 114
Figura 77 Árvore. 115
Figura 78 A erva pronta no pacote. 115
Figura 79 A erva pronta na cuia e o tomar do chimarrão. 115
Figura 80 Árvore. 116
Figura 81 Mãos sinalizando o “V” de árvore verde - chimarrão. 116
Figura 82 Giovani sinalizando surdo, na LSB. 117
Figura 83 Tainara sinalizando surdo, no SKA. 117
Figura 84 Giovani e Tainara fazem o mesmo sinal para dizer Kaingang... 118
Figura 85 Amarildo sinaliza o “C” de Cacique e Silvana o “V” de Vanhkre. 118
Figura 86 Registro dos estudantes surdos com o professor Fleuri... 119
LISTA DE ABREVIATURAS E SÍMBOLOS
APP Associação de Pais e Professores
BERA Audiometria de Tronco Cerebral
CED Centro de Educação
DA Deficiência Auditiva
EIEB Escola Indígena Estadual Básica
FCEE Fundação Catarinense de Educação Especial
FUNAI Fundação Nacional do Índio
INES Instituto Nacional de Surdos
LIBRAS Língua Brasileira de Sinais
LDB Leis de Diretrizes e Bases
LSCB Língua de Sinais dos Centros Urbanos Brasileiros
LSB Língua de Sinais Brasileira
LSKB Língua de Sinais Kapor Brasileira
PAE Projeto de Alternativas Educacionais
PPP Projeto Político Pedagógico
RG Registro Geral
SAEDE Serviço de Atendimento Especializado
SC Santa Catarina
SED Secretaria da Educação e Desenvolvimento
SEE Secretaria do Estado de Educação
SKA Sinais Kaingang na Aldeia
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO - PROJETO (COM)PARTILHADO. 16
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA 23
2.1 Os surdos indígenas no Município de Ipuaçu - oeste de Santa Catarina. 23
2.2 Chegar ao problema da pesquisa . 25
2.3 Possibilidades do “saber” e do “aprender” no contexto da pesquisa . 27
3 IDENTIDADE CULTURAL E LINGUAGEM 31
3.1 Discutindo o conceito de cultura. 31
3.2 Construção(ões) de identidade(s) 33
3.3 O entre-lugar – a língua/os sinais. 41
4 POVO E ESCOLA KAINGANG NO OESTE CATARINENSE 45
4.1 Re-contar/historiar: o povo Kaingang no sul do Brasil . 45
4.2 Caracterização sociocultural da comunidade Kaingang no município de Ipuaçu. 48
4.3 A escola indígena de educação básica Cacique Vanhkre. 53
4.3.1 Organização no PPP – Projeto Político Pedagógico . 54
4.4 Desafios interculturais. 56
5 O ESPAÇO ESCOLAR: CONSTITUÍDO E CONSTITUINTE DE SIGNIFICADOS 62
5.1 A escola e a escolarização dos surdos. 62
5.2 História da educação dos surdos no Brasil – a língua de sinais. 63
5.3 A comunicação na escola, na família e na aldeia do município de Ipuaçu. 65
5.3.1 Na turma pólo da política de educação de surdos 70
5.3.2 Versão do documento da política do Estado de Santa Catarina 72
6 ENUNCIAÇÃO DA DIFERENÇA OU O “OLHAR” NA CULTURA 76
6.1 Os sinais Kaingang no momento de apresentação/criação. 75
6.2 A representação dos surdos para os diferentes agentes da escola 118
6.2.1 Na turma da 6ª série ouvintes e surdos. 120
6.2.2 Funcionários da escola - servente, auxiliar e motorista 123
6.2.3 Na aldeia 125
6.2.4 Nas famílias dos surdos. 126
6.2.5 Pelos próprios surdos Kaingang 131
6.3 Projeto de docência “minha identidade?” 133
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 144
REFERÊNCIAS 149
APÊNDICES 152
APÊNDICE 01 - Um Conto - “Pesquisador é Mesmo Curioso” 153
ANEXOS 156
ANEXO 01 - Questionário. 157
ANEXO 02 - Questionário. 158
ANEXO 03 - Termo de autorização de imagem e de nomes próprios. 159
ANEXO 04 - Escola: espaço físico – o contexto. 160
ANEXO 05 - A turma com ensino em LIBRAS. 166
ANEXO 06 - A possibilidade de aprender viajando – Florianópolis 2006. 178
ANEXO 07 - Nossas diferenças culturais. 181
ANEXO 08 - Os brinquedos e brincadeiras na aldeia. 186
ANEXO 09 - Encontro de Prof. Reinaldo M. Fleuri com os professores na escola. 194
ANEXO 10 - Da visita à olaria . 199
ANEXO 11 - Simulação de pessoas no tronco 202
ANEXO 12 - Festas e encontros na escola 204
ANEXO 13 - Olhar 212
16
1 INTRODUÇÃO - PROJETO (COM)PARTILHADO
[...] o caminho se faz caminhando! Como é possível que nós, no processo de
fazer o caminho, estejamos conscientes sobre nosso próprio processo de
fazer o caminho, e possamos deixá-lo claro a quem nos vai ler. [...] para
começar, é preciso começar (FREIRE, 2003, p.38).
Enunciar a introdução, nomeando-a de forma digna de ser chamada de “Projeto
(Com)partilhado”, é muito gratificante, por reconhecer publicamente o envolvimento de
muitos parceiros no trabalho da pesquisadora – também professora e intérprete – na realização
desta dissertação. O projeto de pesquisa foi idealizado e proposto por uma pessoa, mas
concretizado por muitas: estudantes surdos, professores, familiares e a população da Aldeia
localizada no município de Ipuaçu; um compartilhar do sonho de chegar a mais esta etapa da
pesquisa.
(Com)partilhar, neste contexto, explicita as várias relações estabelecidas durante a
realização da pesquisa e até mesmo o que antecedeu a investigação. “Com”, do Latim “cum
(ligação, modo, companhia); “Partilhar” (dividir, fazer parte, estar dentro de um plano, de um
projeto). Compartilhar, (com-partilhar), quer indicar que os resultados da pesquisa mostrados
nesta dissertação, não foram atingidos somente pela pessoa da pesquisadora.
Nesta dissertação, apresentada com o título Cultura surda e educação escolar
Kaingang, analisou-se o processo de negociações que os surdos utilizam na comunicação por
sinais gestuais: em casa, na escola e na Aldeia, seja com seus pais ou familiares, entre
ouvintes e surdos no ambiente escolar, ou entre os próprios surdos no contato diário em sala
de aula.
A pesquisa foi realizada na Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkre,
situada no município de Ipuaçu, no oeste de Santa Catarina, escola que atende somente a
estudantes indígenas residentes na aldeia. O envolvimento da pesquisadora com esta comunidade
iniciou-se antes mesmo de formular o projeto de pesquisa do mestrado, quando da implantação e
coordenação da Turma com Ensino em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) na Escola. Após o
ingresso no mestrado, a inserção profissional como professora e intérprete, na comunidade,
17
assumiu-se como prioridade, por dois anos, o intuito investigativo de registrar os sinais Kaingang,
com o olhar voltado para as relações interculturais que se desenvolvem na comunidade.
No decorrer da pesquisa e nas observações realizadas, a pesquisadora atuou como
docente na turma dos surdos Kaingang, turma com Ensino em LIBRAS (1ª a 4ª série), no
período vespertino e com os surdos incluídos numa 6ª série, atuando como intérprete,
totalizando 40 horas semanais, durante três meses. Esta forma de inserção na comunidade
favoreceu o contato cotidiano direto, que permitiu compreender a cultura local, as relações
estabelecidas entre os educandos surdos e os ouvintes, bem como os sinais na cultura surda
Kaingang, a comunicação já existente, a fluência e a fusão/entrelaçamento destes sinais com a
Língua de Sinais Brasileira, na escola, na família, na aldeia e entre os surdos.
A pesquisa focalizou o estudo dos sinais gestuais de comunicação entre os surdos,
voltando-se prioritariamente à questão da cultura, sem entrar numa discussão propriamente dita de
Análise Lingüística dos sinais. Como Bhabha, procuramos verificar “como transformar o valor
formal da diferença lingüística numa analítica de diferença cultural?” (BHABHA, 1995 apud
SOUZA, 2004, p. 129).
Inicialmente, intrigava o fato de que os surdos na comunidade Kaingang, mesmo
conhecendo a Língua de Sinais Brasileira (LSB), continuavam a utilizar os sinais próprios,
tanto na escola quanto entre eles, na aldeia. Este fato nos estimulou a buscar entender melhor
a Cultura dos Kaingang, para contextualizar os sinais nesta cultura.
Deste modo, a pesquisa buscou focalizar o uso freqüente do sinal lingüístico
Kaingang no contexto em que foi criado, estudando o entrelaçamento e a fusão com a LSB.
Realizou-se o registro, através de fotos e de desenho, para comprovar, nas atividades e nas
observações, se estes sinais se repetiam, podendo ser considerados um sistema estabelecido de
comunicação.
Alguns fatos ocorridos durante o início da pesquisa, em diversos espaços destes
estudantes surdos, no dia-a-dia das famílias, da escola e da comunidade – como na festa do
dia do Índio de 2007 -, indicaram que os estudantes negam a sua identidade surda. Esta
constatação nos fez compreender que o problema da pesquisa estava ancorado no contexto: a
constituição da identidade pessoal e étnica.
Isto colocou a necessidade de se pensar a Identidade a partir da pluralidade e da
hibridação de culturas. Isto porque o mesmo sujeito que, por um lado, no ambiente escolar, se
constituía e se afirmava como surdo; por outro lado, na aldeia e na comunidade, por esta
identidade, era repudiado e inferiorizado.
18
O problema pensado pelo viés da identidade tornou-se premente em todo o tempo
de contato da professora-pesquisadora com as crianças surdas. A questão que se colocou
como objeto da pesquisa ficou assim formulada: “Que elementos culturais constituem a
identidade dos surdos Kaingang e em que contexto os sinais lingüísticos de comunicação dos
surdos se legitimam e se entrelaçam com a Língua de Sinais Brasileira?”
Chegar a esta formulação do problema, de fato, foi uma costura complicada.
Centrar o estudo dos sinais Kaingang e de sua relação com a LSB, no tema da cultura e da
identidade, foi praticamente um achado, depois de tantas tentativas de investigação. Neste
processo, configurou-se como Objetivo Geral a busca de se “Identificar o processo de
negociação dos sinais Kaingang Contextualizar e analisar os sinais usados ou criados pelos
surdos, em seu ambiente escolar, familiar e social na aldeia do município Ipuaçu, SC”. Como
passos para se realizar este propósito, estabeleceram-se quatro Objetivos Específicos: “(1.)
Conhecer a história do povo Kaingang, compreendendo sua cultura e as relações
interculturais; (2.) Contextualizar os Sinais Kaingang, categorizando-os e descrevendo-os; (3.)
Analisar os significados atribuídos aos sinais na fusão/entrelaçamento com a LSB; (4.)
Identificar significados atribuídos à identidade dos surdos Kaingang através da análise dos
relatos da intervenção educativa na escola.
A partir destes objetivos, a construção teórica foi aos poucos se tecendo com base
nas atividades de campo, visto que pesquisas semelhantes anteriores são escassas. Não havia
onde buscar um referencial para que fosse possível comparar ou usufruir dele. Muito
contribuíram os debates desenvolvidos no decorrer dos seminários freqüentados no Programa
de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), para
construir o referencial teórico da pesquisa.
A princípio, pesquisou-se o que havia de referencial que viesse ao encontro dos
objetivos propostos e das questões problematizadoras levantadas. Buscamos em autores que
trouxessem uma discussão pós-estruturalista, seguindo as linhas de pesquisa nas quais o
projeto estava alicerçado: Estudos Culturais e Educação Intercultural/Movimentos Sociais.
A partir de leituras e de indicações dos professores, foi em Homi Bhabha (2005),
e particularmente no seu livro O local da Cultura, na perspectiva pós-colonial, que se
encontrou uma base para construir um referencial dentro do que se procurava. Buscamos fazer
a discussão junto aos discursos de Homi Bhabha, com a ajuda de Lynn Mario Souza (2004),
cuja interlocução, presencial e por e-mail, foi de grande valia.
19
Nesta direção, foram exploradas outras fontes e assimiladas referências de outros
pesquisadores: Perlin, no que se refere às classificações das identidades dos surdos; Fanon, na
discussão com Bhabha (2005) sobre a identidade ambivalente, que rompe as fronteiras;
Rebolledo (2006), que, com seus estudos sobre a educação bilíngüe no México, ajudou na
compreensão do “bilingüismo” dos indígenas do município de Ipuaçu; Fleuri (1998 e 2003),
sobre a interculturalidade e a identificação cultural dos povos; Quadros (2004), sobre a
Língua de Sinais Brasileira; Costa (2002), no que se refere à pesquisa-ação. Contou-se
também, neste levantamento teórico, com os indispensáveis livros de Nötzold (2006), que
pesquisa e escreve sobre os Kaingang de Ipuaçu, assim como os registros de Ogliari (2002),
sobre povos de Santa Catarina e as etnias da cidade de Ipuaçu.
A pesquisa apresenta uma abordagem sobre as relações interculturais na aldeia,
visto que discute e analisa a cultura dentro de uma educação diferenciada. No contexto da
pesquisa, o horizonte que constitui a Educação Intercultural, como refere Fleuri (1998), é a
busca de novas e diferentes formas culturais de educação. Neste universo pesquisado, as
novas fronteiras culturais são tecidas pelos surdos “Kaingang”.
Para estudar o vasto contexto que a pesquisa confronta - Indígenas e Surdos - foi
necessário circular por duas linhas de investigação distintas, mas relacionadas: Processos
Inclusivos/Estudos Culturais e Educação Intercultural/Movimentos Sociais.
O que nos movia e desafiava o tempo todo era este mergulho na cultura da
comunidade indígena. A observação e a busca de entendimento dos sinais lingüísticos
desenvolvidos pelos surdos Kaingang e, particularmente, de seu processo de entrelaçamento
com a LSB. Isto tudo como presença, como inscrição aos novos surdos que estavam na
escola, assim como nós, aprendendo e constituindo-se sob este novo olhar do qual emerge e
flui a releitura de tudo que está posto e, nesta, encontrar o Ato Inaugural referido por Perlin.
O estar na escola como profissional da instituição, nas funções de docente e de
intérprete, permitiu o desenvolvimento da investigação mediante a observação e, ao mesmo
tempo, a instigação própria da atividade pedagógica. Desta forma, os estudantes foram
espontaneamente explicitando os sinais utilizados pela comunidade na comunicação com e
entre os surdos, que até então eram pouco mostrados, indícios de uma linguagem surda
“enrustida”, parecida com a própria Língua Kaingang.
Para a pesquisadora, a percepção destes sinais, muitas vezes, não foi imediata.
Durante a comunicação com os surdos Kaingang, porém, emergiam alguns indícios e algumas
manifestações que permitiram desenrolar a construção dos dados. O primeiro passo foi buscar
20
entender a cultura local, analisar se os sinais lingüísticos utilizados pelos surdos nasciam a
partir dos significados construídos na cultura Kaingang. Era preciso focalizar o olhar na
comunicação dos surdos, assim como na trama relacional que identificava “ser surdo” e
constituía, ao mesmo tempo, os sinais por eles utilizados e sua relação com a LSB, ou seja, os
“entre-lugares” da comunicação e da identidade surda/Kaingang.
A principal ferramenta de registro utilizada na pesquisa foi o diário de campo. Com
este instrumento, a pesquisadora registrava sistematicamente suas observações sobre sua prática
docente e sobre o desenvolvimento de seu projeto para atuação didática. Deste modo, mediante a
releitura e a reflexão sobre as anotações, podia “tomar distância” das atividades e analisar as
relações estabelecidas, tendo em vista o objetivo da pesquisa. A observação e o registro intensivo,
por três meses, do contato diário com estes educandos na escola, família e aldeia, permitiram
sistematizar e aprofundar a reflexão iniciada desde quando já acompanhava a turma, seja como
coordenadora do processo de ensino de Libras nas comunidades indígenas há mais de três anos,
seja como observadora deste processo, durante os dois anos de estudos de mestrado.
Para a efetivação da pesquisa, foi necessário o olhar minucioso e aberto ao
diferente, a fim de fazer a investigação com os procedimentos técnicos na pesquisa-ação
participativa, com coleta de dados numa abordagem de cunho qualitativo.
A Pesquisa-Ação quando concebida e realizada em estreita associação com
uma ação ou com a resolução de um problema coletivo [...]. Os
pesquisadores e participantes representativos da situação ou do problema
estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (SILVA, 2001, p.22).
Com esta proposta na pesquisa-ação, assumiu-se o método na perspectiva
dialética, na medida em que se buscou desenvolver uma interpretação
dinâmica e totalizante
da realidade (SILVA, 2001). O método dialético considera que os
fatos não podem ser
considerados fora de um contexto social, político, econômico. Além de implicar uma
reciprocidade entre ação e reflexão. Através da “pesquisa-ação participativa”, com efeito,
busca-se interagir com os informantes, envolvidos, da mesma forma que o pesquisador, como
agentes de uma prática social, formulando e discutindo as informações, compartilhando
processos qualitativos de análise e planejando ações a partir destas investigações.
Nesta pesquisa-ação, e pela história que antecede o próprio projeto, foi possível
estabelecer contatos que permitiram identificar a Língua usada pelos educandos entre si, no
espaço escolar e com seus familiares. Esta interação possibilitou conhecer a relação que a
21
escola estabelece com estas famílias de pais ouvintes com filhos surdos, assim como explorar
a representação cultural destes surdos na comunidade escolar e nos grupos Kaingang.
Este é um processo de pesquisa “(com)partilhado”, também pela trajetória
percorrida antes do início propriamente dito da pesquisa: o cadastro dos estudantes, a
implantação da turma com Ensino em LIBRAS, o projeto na pesquisa de mestrado, o
envolvimento de tantas pessoas envolvidas na articulação do Espaço e do Tempo tecidos pela
comunidade Kaingang com o olhar constituído na pesquisa-ação. Um olhar que reitera a
dimensão participativa, de forma coletiva e interativa na e com a comunidade Kaingang,
justamente por ter sido desenvolvido a partir do encontro com os Estudos Culturais, com a
Interculturalidade e a teoria Pós-Colonial.
A apresentação dos resultados da pesquisa será feita em cinco tópicos, além desta
introdução e das considerações finais, assim como do apêndice e dos anexos.
No Tópico 2, apresenta-se a Contextualização do Problema da Pesquisa, que relata
a busca instigante e o encontro com a escritura do problema dessa pesquisa. Faz uma pequena
introdução sobre a existência dos Surdos Indígenas no município de Ipuaçu - Oeste de Santa
Catarina - e expõe, também, as Possibilidades do “Saber” e do “Aprender” no contexto da
pesquisa, com relatos sobre o envolvimento da pesquisadora, na docência, na escola e na aldeia e
as relações estabelecidas com esta população.
No Tópico 3, Identidade Cultural e Linguagem, contextura teórica da pesquisa,
discute-se o conceito de cultura e o Entre-Lugar na teoria crítica pós-colonial. Reflete sobre o
Entre-Lugar, a Língua/os Sinais no contexto pesquisado, além de arrazoar a respeito da(s)
Construção(ões) de Identidade(es), com base nos registros de Gladis Perlin sobre as Identidades
Surdas, visando direcionar o olhar para os surdos Kaingang, na identificação dessas Identidades.
O Tópico 4, Povo e Escola Kaingang no Oeste Catarinense, localiza e
contextualiza esses povos oriundos de diversas regiões para as terras do oeste catarinense. Discute
alguns elementos importantes para a compreensão da cultura e as hibridações presentes, assim
como as relações e os desafios interculturais no atual e local contexto. Ainda, nesse tópico,
apresenta-se a Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkre e uma explanação sobre o
Plano Político Pedagógico da Escola (PPP), o qual retrata e afirma a identificação cultural.
No Tópico 5, apresenta-se O Espaço Escolar: constituído e constituinte de
significados, trazendo o processo inicial da escolarização dos surdos em 2003, até o fim da
pesquisa em 2007, a Implantação de turma de estudantes surdos e como era vista a comunicação
antes e depois da pesquisa. Faz uma retrospectiva sobre a História da Educação de Surdos no
22
Brasil e a Língua de Sinais, além de expor idéias sobre a comunicação na Escola, na Família e na
Aldeia, fazendo uma análise sobre as Línguas em ação nestes espaços: funcionalidade, finalidades
e significações entre os surdos.
O Tópico 6, Enunciação da Diferença ou o “Olhar” na Cultura, apresenta a
proposta desenvolvida na análise dos sinais, cujo registro é o olhar na cultura; o sinal (a
comunicação) registrado e explicado no momento de criação, com a identificação de quem
apresenta os estudantes surdos. Este foi o principal motivo para pesquisar, documentar e escrever
sobre os sinais Kaingang com registros em forma de desenhos e fotos dos estudantes, realizando a
análise voltada à cultura. Comenta as formas de comunicação na aldeia (Línguas orais e Viso-
Espaciais) e as relações que constroem a Identidade dos estudantes surdos. Aborda as
representações/espos, que foram sendo construídas por estes estudantes surdos na escola, na
opinião dos seus diversos agentes (direção, estudantes ouvintes, estudantes surdos, serventes,
motorista, professores). A finalização do tópico é dada com o Projeto de Docência, visto que
numa pesquisa-ação participativa a pesquisadora foi membro atuante no espaço escolar. O Projeto
“Minha Identidade?” foi aplicado com a turma dos surdos Kaingang na escola, onde se procurou
trabalhar sobre a sua identidade como Kaingang e surdos.
Nas Considerações Finais, são feitas algumas exposições pessoais e levantados
novos questionamentos, na intenção de que a partir desta pesquisa haja novos investigadores, com
novas perspectivas – inclusive lingüísticas – para dar continuidade aos estudos dos Sinais
Kaingang, sob outra ótica. Encerram-se os estudos com um primeiro registro dos sinais,
apresentados como marco inicial.
No Apêndice, encontra-se um conto escrito pela pesquisadora, durante o período de
docência, que relata um fato acontecido durante uma cerimônia de enterro na aldeia.
Os Anexos, são de grande valor visual para quem atua com surdos e para quem é
surdo, sendo que estes perceberão a riqueza encontrada nas fotos mais relevantes da trajetória da
pesquisa e do que antecedeu a ela, conforme o que foi descrito nos tópicos. Poder-se-ia dizer, pela
reação de amigos surdos que já tiveram acesso aos anexos, que ali, no visual do trabalho, está
parte da explicação da pesquisa e até mesmo, para muitos, a compreensão do que foi registrado na
escrita em Português. Justificam-se, assim, as fotos contidas nos anexos por fazerem parte do
acervo da pesquisa e por serem significativas visualmente, principalmente para os surdos.
23
2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA
[...] um saber só pode se tornar político através de um processo agnóstico:
dissenso, alteridade e outridade são as condições discursivas para a
circulação e o reconhecimento de um sujeito politizado e uma ‘verdade’
pública (BHABHA, 2005, p.49).
2.1 OS SURDOS INDÍGENAS NO MUNICÍPIO DE IPUAÇU
A pergunta é formulada de forma perplexa: “Existem surdos indígenas?!” Ao que
parece, os indígenas vistos aqui como um povo à parte de qualquer outra característica que
não lhes é inerente. Sim, existem surdos indígenas no município de Ipuaçu, oeste de Santa
Catarina: surdos Kaingang, os quais estão estudando numa turma Bilíngüe, Multisesriada,
alguns na 6ª série do Ensino Fundamental com o intérprete em sala de aula, outros
trabalhando na aldeia e alguns quase abandonados pelos familiares, na própria comunidade.
Os surdos indígenas existem, não só no Oeste de SC, em Ipuaçu, mas tamm em outras
aldeias de Santa Catarina e em outros estados do Brasil, como os do Mato Grosso do Sul. Da
mesma forma, há outros pesquisadores, como Lucinda Ferreira Brito e Schirley Vilhalva
1
, que
investigam e registram a existência destes surdos em outras aldeias. O espanto pela existência
desses surdos não aparece apenas nas pessoas alheias ao processo, mas também naquelas que
estão no contexto, isto é, na aldeia e nos órgãos responsáveis pela educação indígena do
estado e do município.
A pesquisa visa também identificar as diferenças que são alvo de contradições
entre línguas e linguagens e de discursos em que a “igualdade” é um conceito impregnado de
processos adaptativos centrados no sujeito diferente.
Com o intuito de esclarecer e registrar a existência dessa população, trabalha-se,
junto com a professora, na identificação dos surdos Kaingang incluídos na escola há pelo
1
Lucinda Ferreira Brito escritora, pesquisadora, na década de 1980, da Língua de Sinais Indígenas no Maranhão
e Schirley Vilhalva pesquisadora dos indígenas surdos do MT e Mestranda da UFSC, 2007/2008.
24
menos quatro anos para o fortalecimento desta identidade Surdo/Kaingang. Apesar desse
trabalho intenso, pôde-se perceber que havia carinho ou respeito por eles, não em forma de
piedade, ou, ignorando-os, como se não pertencessem àquela população.
Como confirma Bhabha (2005),
[...] Os “efeitos-identidade”, como denominei, são sempre crucialmente
divididos. Sob o disfarce da camuflagem, a mímica, como fetiche, é um
objeto parcial que radicalmente reavalia os saberes normativos da prioridade
da raça, da escrita, da história, pois o fetiche imita as formas de autoridade
ao mesmo tempo em que as desautoriza [...] (p.137).
A relação da pesquisadora com a comunidade indígena dessa pesquisa teve início
com o cadastramento, das famílias, dos filhos com algum tipo de deficiência e/ou diferença
quanto à aprendizagem e linguagem. A pesquisadora exercia a função de Integradora de
Educação Especial na região de Xanxerê, no período de 2003 a 2005, e o território indígena
faz parte de Ipuaçu, que pertence a esta regional.
A implantação de serviços especializados de Educação Especial e Diversidade
incluía investigar os povos indígenas residentes na região de Ipuaçu. As queixas de
professores indígenas quanto à aprendizagem levaram a uma investigação nas Escolas e
posteriormente nas famílias. Sendo assim, os surdos foram identificados como os que não
falam ou como crianças especiais.
Em 2003, os estudantes foram cadastrados e encaminhados para exames clínicos. Em
2004, foi proposto um projeto de Turma Trilíngüe – Alfabetização dos Surdos na Escola Indígena
de Educação Básica Cacique Vanhkre. Em 2005, a mesma turma começa a fazer parte da Política
do estado de SC para Educação dos Surdos, passando a se chamar Turma com Ensino em
LIBRAS. O acompanhamento e as orientações pedagógicas eram diretamente realizados pela
pesquisadora, que naquele momento desempenhava sua função de integradora. A turma também
recebia as assessorias semestrais da Fundação Catarinense de Educação Especial.
Em 2006 e 2007, os estudantes surdos Kaingang passam a ser foco de pesquisa de
Mestrado, cujo objetivo maior é o de incluí-los na história da Educação dos Surdos no Brasil.
Por haver o envolvimento direto com a professora Bilíngüe da turma e a comunidade, o
processo de pesquisa se tornava relevante, visto que era possível observar e instigar esse jeito
de ser Índio/Surdo.
A proposição maior da pesquisa era a de conseguir realizar as observações
registrando os sinais utilizados na comunicação desses estudantes, os sinais que atribuíam
25
significados culturais e o processo de negociações que eles conseguiam articular entre a
Língua de Sinais Brasileira - LSB, os sinais Kaingang e as línguas orais (Português e
Kaingang). Neste contexto estavam nascendo novas possibilidades de “ser”: os surdos
Kaingang se constituindo e construindo representações, visto que, se em alguns momentos
existia uma indiferença na escola, em outros momentos havia uma compreensão deste “novo”
que eles próprios apontavam.
2.2 CHEGAR AO PROBLEMA DA PESQUISA
[...] O lugar do enunciado – é atravessado pela différance da escrita.
(BHABHA, 2005, p. 65).
Como elaborar uma pergunta que esclareça o que se quer dizer? Sempre ouvimos
e lemos, de diversos pesquisadores e professores, que sem pergunta não há pesquisa. O
estranho nisso tudo é que o pesquisador sabe o que quer e sabe qual o problema a ser
desvendado, o que, às vezes, ele não sabe é registrar suas inquietações em uma só pergunta de
pesquisa, porque são muitas as perguntas.
O enunciado da pergunta do problema desta pesquisa foi trocado várias vezes,
para conseguir se aproximar daquilo que queríamos dizer. A princípio, a intenção era
investigar a aprendizagem, registrando os sinais dos estudantes surdos, para observar se eles
eram usados como comunicação-padrão e, com este intuito, tornar os surdos Kaingang
conhecidos em SC e em todos os lugares onde houvesse população indígena surda.
Muitos questionamentos foram levantados no pré-projeto, assim como outros
problemas. Durante a pesquisa de campo, estas questões apareciam e nos davam as respostas
procuradas. Porém, diante dessas respostas, eram desencadeadas outras questões e o problema
aumentava, alterando a escritura e as observações. Novamente se questionava se a pergunta era
aquela mesma e se não seria, como das outras vezes, uma dúvida específica para aquele momento.
Finalmente pensávamos ter chegado ao problema da pesquisa e fomos para a
banca de qualificação com este problema “Quem sinaliza?” O que sinalizam e há fluência
padronizada enquanto Língua? Este foi o enunciado do problema que nos direcionou na
pesquisa por vários meses e que foi aprovado pela banca de qualificação.
Encontrado este problema e foi-se construindo a pesquisa, mas percebíamos que este
problema não respondia o que de fato queríamos saber. Para insistir neste problema, seria preciso
entrar em outras referências teóricas, como a Lingüística. Tínhamos as respostas para a questão
26
sobre quem sinaliza: os surdos. O que sinalizam? Sinais voltados à cultura. Existe fluência
padronizada enquanto Língua? Sim, havia uma comunicação estabelecida, interessante e
normatizada naquela comunidade de surdos.
Chegar a estas respostas – aqui colocadas resumidamente – não era suficiente, não
respondia aos anseios propostos pelos objetivos e nem nos satisfazia: faltava algo. Foi então
que vimos a necessidade de repensar e reelaborar uma questão que buscasse responder, de
fato, o que se procurava. E a provocação estava na identidade. Queria-se resgatar este sujeito,
investigar e compreender este surdo, que também era indígena, um sujeito com uma
identidade marcada por inferioridade e por duplicidade. Sabia-se que existia um novo sujeito,
já que os pais, a comunidade e os próprios estudantes haviam nos mostrado isto. Mas como
escrever o problema? Ou, melhor dizendo, o problema é que é o problema na pesquisa.
Muitas costuras, algumas contradições, muitas perguntas e, enfim, obteve-se a
questão do problema: “Que elementos culturais constituem a identidade dos surdos Kaingang
e em que contexto os sinais lingüísticos de comunicação dos surdos se legitimam e se
entrelaçam com a Língua de Sinais Brasileira?”
O problema foi elencado para responder as ditas inquietações, isto é, observar a
cultura desse ser surdo Kaingang; analisar e categorizar as identidades que, em alguns
momentos, apareciam marcadas por experiências frustrantes e excludentes, experiências ainda
vividas por alguns adultos.
Não era esta referência que buscava-se. O que se buscava, era o novo surdo que
existia e estava se constituindo, e se procurava entender os elementos que faziam com que
eles fossem assim, surdos e índios. Além de toda a questão cultural, havia ainda as
contradições das Línguas - as orais e as visuais.
Outra inquietude que também passava por nossas observações eram os sinais e a
LSB. Em alguns momentos, era usada a LSB; em outros, os sinais da comunidade, e ainda em
outras conversações podia-se perceber que a LSB e os sinais próprios da aldeia se
entrelaçavam. Devia-se investigar se os sinais apresentados eram ligados à cultura local ou se
eram momentâneos.
Era encantador contemplar e refletir sobre o processo de negociação nesta
comunicação, e depois tecer, na escrita do problema, estas observações. Buscou-se responder a
que momentos os sinais se legitimam e em que contexto eles se fundem e se entrelaçam à LSB.
27
Nas observações, havia o cuidado de olhar sem regular a situação. O interessante
na Pesquisa-ação é, sem dúvida, esta possibilidade de construção, de ir-e-vir, intervir sem
dominar, buscar sem impor, esperar a apresentação do que se quer.
Segundo Costa (2002), a pesquisa-ação visa ao controle e à regulação daquilo que
narra. A “vontade de saber”, na pesquisa-ação, é também, “vontade de poder” (p.104). Nesta
vontade de saber, o pesquisador precisa estar presente, e muito. Havia todo um cuidado naquilo
que registrávamos e nas observações, além de um olhar minucioso nos sinais, isto é, se havia a
repetição do sinal por várias vezes e em vários momentos e se configurava como Linguagem.
Sendo assim, foi possível juntar o que se procurava numa pergunta densa, envolta
de uma teia de significados, carregada teoricamente do que a pesquisa e os objetivos
propunham e ainda amarrada ao plano de docência.
2.3 POSSIBILIDADES DO “SABER” E DO “APRENDER” NO CONTEXTO DA
PESQUISA
Esses “Entre-Lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias
de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos signos de
identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de
definir a própria idéia de sociedade (BHABHA, 2005, p. 20).
O envolvimento da pesquisadora na escola trazia o sentimento de fazer parte dela, nas
atividades e de conhecer, na escola, através dos professores e estudantes, um pouco da cultura
local. No início da pesquisa, as observações eram realizadas de duas a três vezes por semana,
porém assim não se encontrava o que era procurado, isto é, não se apresentavam os sinais e seus
registros. A opção metodológica – A “pesquisa-ação” – dava vazão para que a pesquisadora
pudesse participar, interagir e conquistar o espaço na escola e na comunidade.
Nesse estar na escola, uma das escolhas foi a de atuar como professora da Turma
Bilíngüe, por três meses. A troca entre as escolas foi possível devido à abertura e ao apoio da
professora titular que atuava com a turma. Esta se transferiu para a escola onde a pesquisadora
estava lotada. Assim, a pesquisadora pode inserir-se na escola indígena, na qual a pesquisa se
desenvolvia., No entanto, a sensação da pesquisadora era a de ser uma estranha, atenta a tudo. Isto
porque neste espaço, a pesquisadora também se constituía e se “mostrava”; a observação não era
só com os estudantes, mas com toda a escola.
28
Costa (2002) acentua esta construção do sujeito na Pesquisa-ação:
[...] Comecei a questionar a existência de um objeto exterior ao sujeito, que
estaria em algum lugar para ser observado, instigado e explicado. Ao mesmo
tempo, acolhi a noção de que o ponto de vista do sujeito não é soberano: o
sujeito também se constrói no e como objeto de pesquisa (p.101).
Um processo novo se iniciava e era necessário estar envolvida de fato nesse
espaço e nessa cultura. Na escola havia oportunidades de participar de muitos eventos e
festas, momentos “Interculturais” em que alguns costumes do povo Kaingang se colocavam
como diferentes e ao mesmo tempo parecidos dos não-índios, numa outra relação, identificada
pela lógica do olhar.
O medo tomava o espaço da procura, precisava-se ter o cuidado para não
extrapolar a função e os objetivos da pesquisa. Estes medos que cercavam, faziam com que se
recorresse aos escritos de Costa, na pesquisa-ação:
As sociedades culturais em que vivemos são dirigidas por uma poderosa
ordem discursiva que rege o que deve ser dito e o que deve ser calado e os
próprios sujeitos não estão isentos desses efeitos. Os sujeitos se constituem
no interior de tramas históricas. Eles são, simultaneamente, constituídos e
constituintes [...] (COSTA, 2002. p.101).
Na 6ª série, com dois estudantes surdos, a função da Professora-Intérprete era
interpretar os conteúdos para a LSB. Em muitas disciplinas, a intervenção pedagógica se fazia
emergir pelas dificuldades dos estudantes na aprendizagem e aquisição dos conceitos. Na
disciplina de Kaingang, eram os próprios surdos e ouvintes que ensinavam os significados à
intérprete, pois lhe faltava conhecimento desta Língua, tanto oral como escrita.
Na falta de algum professor, as aulas eram aproveitadas para ensinar a LSB na
turma com os ouvintes e os surdos passavam a ser os instrutores desta Língua na sala. Essa
atitude contribuía para o reconhecimento da Língua de Sinais como Língua, deixando de ser
vista somente como sinais soltos e superando a oralidade que prevalece na cultura Kaingang.
As possibilidades de aprender no contexto eram as mais variadas possíveis. O
povo Kaingang demonstra gostar de festas e na escola não era diferente, sendo que muitos
motivos levam a realizar festividades junto aos estudantes e à comunidade escolar: festa do
dia do Índio, festa junina, dia da criança, gincanas e olimpíadas.
Foi importante estar presente nestas festividades e em reuniões pedagógicas, cursos,
palestras, e poder observar os encontros de lideranças, o ir-e-vir à escola e para casa de carona,
29
por não haver ônibus com horários compatíveis. Na Feira Intercultural, a participação não foi
como pesquisadora, mas como docente que desenvolveu um projeto junto à turma de surdos e
assim os resultados na escola foram expostos para os pais e professores. Essas relações que se
estabeleciam no decorrer do trabalho contribuíam para o fazer e o refazer da pesquisa em si e
assim refletir sobre o problema, ver outros valores, ouvir outras vozes.
O aprender e o saber, onde o trabalho se desenvolvia de modo não rotineiro, em função
de inúmeros imprevistos, tais quais: a não existência de transporte coletivo regular - a professora-
pesquisadora dependia das imprevisíveis caronas, reuniões marcadas de última hora, cerimônias
fúnebres de membros da comunidade, as chuvas, o frio intenso, o dia de pagamento dos pais, o dia
de vacinação, realizações de campanhas – tudo era motivo para alterar a rotina escolar. Eram
justamente estes acontecimentos que permitiam a observação dos novos sinais, utilizados pelos
estudantes surdos em seu cotidiano. Trata-se do real e o mitológico envolto de um “entre”, que
Bhabha chama para a discussão e para a atenção de quem está envolvido.
O entre-lugar se forja num espaço-tempo simultaneamente real e virtual,
caracterizando-se como um limiar, uma fronteira, que une e separa, que
abarca e delimita, que abre horizontes e restringe possibilidades. Acontece
como um espaço-tempo de encontro e de passagem, que possibilita a
emergência do múltiplo, do polifônico, da diferença – desconstruindo-se
enquanto estereótipo e enquanto subalternização e reconstruindo-se como
possibilidade de ressignificação da história, do cotidiano, das relações, das
subjetividades (AZIBEIRO, 2008).
Na procura por Sinais Kaingang, esperava-se que esses fossem surgindo
espontaneamente. O espontâneo dependia também da observação e da mediação, por isso a
provocação foi lançada nas aulas, na turma de surdos, através dos conceitos trabalhados, e
muitas vezes se concluía que era o “entre”, isto é, estava presente, mas oculto. A participação
com o coletivo da escola possibilitava a compreensão da cultura, o jeito de ser e de viver dos
diferentes agentes da escola, dos estudantes e de algumas famílias com que se teve maior
contato. Também se aprendia muito no espaço de atuação e havia a solicitação para que se
contribuísse incentivando algumas ações na escola.
O instigante na pesquisa era a questão cultural: entender o jeito de ser e de viver
dos Kaingang, observar os surdos e sua comunicação, os sinais, suas relações com a escola,
com os ouvintes, com seus pais. Observava-se a relevância da LSB na vida dos surdos e de
sua identidade na aldeia, o novo filho que os pais apontavam; o surdo que não era igual aos
30
outros surdos adultos – este surdo que só não oralizava, mas que falava com as mãos – o
surdo que aprende e que é inteligente, podendo ser indígena/surdo.
31
3 IDENTIDADE CULTURAL E LINGUAGEM
3.1 DISCUTINDO O CONCEITO DE CULTURA
O que é Cultura? Centenas de conceitos sobre cultura estão expostos em livros,
artigos, internet e outros materiais impressos. A pesquisa realizada e apresentada buscou essa
discussão e o tempo todo esteve atenta quanto à identificação cultural: isto é cultura, aquilo
não é cultura, ou ainda, é da cultura dos surdos, eles fazem assim devido à cultura em que
estão inseridos, etc.
O conceito de Cultura enfocado na pesquisa é o conceito que Souza (2004) expõe
a partir dos estudos pós-coloniais de Homi Bhabha, que pontua a cultura como estratégia de
sobrevivência:
No projeto pós-colonial, em oposição ao conceito dominante de cultura
como algo estático, substantivo e essencialista, a cultura passa a ser vista
como algo híbrido, produtivo, dinâmico, aberto, em constante
transformação; não mais um substantivo, mas um verbo, “uma estratégia de
sobrevivência”. E essa estratégia de sobrevivência é tanto transnacional
quanto tradutória (SOUZA, 2004. p.125).
Dentro desse conceito, está a idéia de resgatar a cultura e a identidade dos povos
colonizados, enfatizando que a identidade política e cultural é construída pelo processo de
alteridade. Resgatar a cultura significaria reconstruir o sujeito fragmentado e um dos meios
para tal reconstrução é, segundo Homi Bhabha, a negação da imagem de inferiorizado que lhe
foi imposta.
Pensar em Cultura a partir de Pós-Colônia é pensar nas reflexões de Bhabha, em
que a cultura é marcada pelo contexto de experiências e histórias de deslocamentos, e tem
como objeto de análise as culturas híbridas. Nessas culturas, o conceito de hibridismo é
marcado pela ambivalência e o antagonismo.
O conceito que surge nos Estudos Culturais, relacionado às questões de fronteira,
exílio, diáspora e gêneros impuros, busca analisar, prioritariamente, as identidades dos grupos
32
minoritários e suas relações com a contemporaneidade. Os Estudos Culturais produzidos na
Inglaterra por Stuart Hall e Paul Gilroy enfatizam o caráter híbrido das produções culturais
das Américas. O indiano Homi Bhabha tornou-se um dos maiores divulgadores do conceito
de hibridismo na atualidade. Segundo ele,
Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo através do
qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de
referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou
“inerentes” de transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham
cada ato de tradução cultural, pois o negociar com a “diferença do outro”
revela uma insuficiência radical de nossos próprios sistemas de significado e
significação. (BHABHA, 1998 apud HALL, 2003. p. 74).
Nesse contexto, os Surdos-Índios, inseridos na teoria de Bhabha, precisariam ter
acesso a outras lógicas e outras representações de cultura, não apegadas aos conceitos
determinantes, mas aos conceitos que fazem crer que o "existir" do sujeito cultural colonizado
equivale a um processo relacional de cisão com os topos individuais. O sujeito cultural
colonizado reproduz, como numa mímica, a figura do colonizador.
Desses questionamentos surge o sujeito híbrido, a différance, como meio de
desconstrução e construção simultânea de novos sentidos das binaridades
que valorizam o elemento dominante em detrimento do dominado. Estes
novos sentidos não se opõem, complementam-se e apontam uma nova visão
de mundo e de valorização do outro (BHABHA apud FERREIRA, 1977, p.
76).
É inevitável pensar nos povos Indígenas, que por décadas foram e de certa forma
continuam sendo vistos, como povos que precisam de cuidados e de acessoramento pelo
brancos. Nesse contexto, encontram-se também as pessoas surdas, que por muito tempo foram
representadas pelos ouvintes. O reler da história (de indígenas e surdos) mostra que há muitos
resquícios dessa colonização e, nas questões culturais, continuam presentes.
O povo indígena carrega identificações culturais de um passado recente, que está
nos traços, nas características físicas, na Língua nativa e no jeito constante de buscar sua
identidade, pois é cobrado para tal. Essas características podem ser o que Bhabha chama de
um certo “Entre”, que está articulado na subversão camuflada do “mau-olhado” e na mímica
transgressora da “pessoa desaparecida”.
Para Bhabha,
[...] o projeto pós-colonial, na busca por uma reconstituição do discurso da
diferença cultural, procura mais do que simplesmente trocar os conteúdos e
33
símbolos culturais numa tentativa paliativa de acomodar as diferenças; o
projeto prevê a releitura da diferença cultural numa ressignificação do
conceito de cultura (BHABHA apud SOUZA, 2004, p. 124-125).
Na trajetória está o sujeito perdido em suas memórias e em suas histórias, também
se encontram os detentores da política que instituem e assinam, dando legalidade e
legitimidade à causa. Raramente estão, entre estes, os representantes dos povos Indígenas.
O sujeito ainda é visto pelo viés cultural do passado, que é representado pela
figura utópica, imaginária, com a representação do próprio existir, sem que ele mesmo saiba
que existe. Pensar sob esse ponto remete às questões de natureza cultural, sob a perspectiva
que Bhabha levanta, na estratégia de sobrevivência que pode ser tanto Transnacional quanto
Tradutória. “Transnacional porque carrega as marcas das diversas experiências e memórias de
deslocamentos e origens. Tradutória porque exige uma ressignificação dos símbolos culturais
tradicionais – como literatura, arte, música, rituais e outros” (BHABHA apud SOUZA, 2004,
p.124-125).
Esse trabalho visa a esclarecer em que conceito de cultura a pesquisa se
identificou e se edificou. As reflexões apresentadas não têm a intenção de finalização; ao
contrário, as discussões sobre cultura simplesmente começaram e permearão todo o
desenvolvimento da pesquisa.
A cultura indígena, como tema de pesquisa, servirá em todos os momentos para os
registros e apresentação do trabalho, sendo referência para o problema definido, assim como
para as construções das identidades, visto que estarão envolvidos os surdos Kaingang, as
pessoas da aldeia com suas relações interculturais, as línguas e a pessoa do pesquisador
inserido nessa realidade.
3.2 CONSTRUÇÃO(ÕES) DE IDENTIDADE(S)
[...] A Identidade nunca existe a priori, nunca é um produto acabado; sempre
é apenas o processo problemático de acesso de uma imagem de totalidade
(BHABHA apud CALDAS; RIBEIRO; SANTANA, 2007, p. 01).
Conceituar Identidade nessa pesquisa é transitar por um contexto construído por
interpretações culturais, pensar a identidade por processos educativos, tendo a escola como
referência, como foco de uma nova construção. Diz respeito às relações estabelecidas e aos
desejos do outro, em ação conjunta, que é interpretada, olhada e configurada num campo
dinâmico de negociações, entre o eu, o outro e os outros.
34
Bhabha (1998 apud SOUZA, 2004) destaca três pontos relevantes para a
construção da identidade em contextos culturais.
O primeiro determina que é necessário existir para, ir em direção a e ter
uma ‘relação de desejo’ para com uma alteridade, um outro externo.
O segundo ponto, chamado cisão, é caracterizado pelo desejo, por parte do
colonizado, de alcançar a posição de superioridade do colonizador, sem,
contudo, se desligar de sua condição.
O terceiro aspecto diz respeito ao processo de identificação, fazendo surgir
uma ‘imagem de identidade’, um projeto, a partir do qual o sujeito sofrerá
tentativas de transformação. Assim, será imputado a vestir uma máscara, que
deixa uma lacuna (espaço intersticial e relacional) entre a imagem e a pele,
não permitindo uma ‘imagem autêntica’.
Para Bhabha, colonizado e colonizador fazem uso de uma tática chamada
mímica, a partir da qual se constrói uma imagem persuasiva de sujeito,
com
o objetivo de “apropriar-se e apoderar-se do Outro.” (SOUZA, 2004, p.120,
grifo nosso).
A identidade vista sob a ótica – híbrida – não fica estagnada, ela tem uma imagem
para a qual é criada uma espécie de mito, de máscara para o que se quer ver. Ignora o fato,
não assume o diferente, mas o inferioriza ou o inventa. Nesse caso incluem-se os surdos e
outros diferentes (deficientes) habitantes da aldeia, que não sofrem maus-tratos, mas não se
inserem na “normalidade” no envolvimento com os demais. O sentimento de pertencer ao
grupo lhes é negado, nas atitudes e nas relações de ironia com as quais são tratados.
Perlin (2008) identificou algumas características das pessoas surdas,
categorizando-as em sete dimensões de Identidades Surdas. Resumidamente apresenta-se a
seguir para conhecimento e reflexão.
1 – Identidade Surda (Identidade política). Trata-se de uma identidade fortemente
marcada pela política surda, isto é, experiência visual–cultural/língua. Usam os sinais visuais
na comunicação, aceitam-se como surdos, passam aos outros a forma da cultura surda, fazem
uso de tecnologias para o mundo visual, apresentam forma diferenciada de se relacionar com
outras pessoas.
2 – Identidades Surdas Híbridas. São os surdos que nasceram ouvintes e, por
algum motivo ou doença, ficaram sem audição. Alguns destes, dependendo da idade, já
adquiriram o Português ou uma Língua Oral, como Língua após a surdez, e usam as duas
Línguas – Oral e de Sinais. Assumem-se como surdos e também fazem uso de tecnologias
(legendas, telefone especial, etc.) e de intérpretes. Participam de comunidades e associações,
lidam um pouco melhor com a escrita no português e também apresentam diferentes formas
de se relacionar com as pessoas.
35
3 – Identidades Surdas Flutuantes. Esses surdos não têm contato com a
comunidade surda, seguem a cultura ouvinte/identidade de ouvintes e são induzidos a essa
identificação. Algumas vezes desconhecem e até chegam a rejeitar a presença do intérprete,
orgulham-se de poder falar, resistem à cultura surda, sentem-se depressivos porque não são
nem surdos e nem ouvintes, mas não assumem sua identidade. O surdo com identidade
flutuante, independentemente de quanto ouve, usa sempre o aparelho auditivo e é a maior
vítima da cultura ouvintista.
4 – Identidades Surdas Embaçadas. É a representação estereotipada da surdez ou
desconhecimento da surdez como questão cultural. Esses surdos não têm contato com a LSB,
não conseguem captar a representação do ouvinte, são pessoas vistas como incapacitadas. Sua
vida e suas atitudes são determinadas pelos ouvintes. A situação de deficiência é total, com
visão do surdo somente clínica; a família não tem outras informações sobre cultura surda. É
um surdo considerado como deficiente mental pelos familiares e comunidade, sendo, em
alguns casos, aprisionado na sua própria casa.
05 – Identidades Surdas de Transição. Esses surdos viveram em ambientes onde
se afastaram da comunidade surda, ficaram sem contato com os demais. Estão em transição
entre uma identidade e outra. Se não viveram a cultura surda quando crianças, passarão por
ela quando adultos. No momento que estiverem expostos a essa cultura, passam à des-
ouvintização, ou seja, à rejeição da identidade ouvinte. Há então uma alteração de Línguas –
de visual/oral a visual/sinalizada. Na identidade flutuante acontece ao contrário.
06 – Identidades Surdas de Diáspora. Divergem das identidades de transição.
Estão presentes nos surdos que passam de um país para outro, de um estado para outro, de um
grupo surdo para outro. Essa identidade aparece com freqüência, está muito presente e é
marcada entre os surdos.
07 – Identidades Intermediárias. É na experiência visual que fica clara a
identidade surda e o que determina essa identidade. A diferença se dá entre a identidade
ouvinte e a surda. Nas identidades intermediárias, a marca é que nem sempre os surdos
captam as mensagens pela experiência visual, precisam de outros recursos, que não os
determinam como identidade surda. Muitos desses surdos apresentam surdez com
porcentagem de leve a moderada, valorizam o uso do aparelho auditivo, procuram
treinamentos de fala e não aceitam intérpretes da LSB. Esses surdos podem viver em meio a
muitos conflitos, com dificuldade para encontrar sua identidade, visto que não são nem
surdos, nem ouvintes.
36
Perlin (1998), nos seus escritos sobre Identidades, acrescenta que “existem
inúmeras outras categorias de identidades surdas, e todas elas precisam ser respeitadas e
compreendidas em meio ao seu contexto”.
Em todo caso para a construção destas identidades impera sempre a
identidade cultural, ou seja, a identidade surda como ponto de partida para
identificar as outras identidades surdas. Esta identidade se caracteriza
também como identidade política, pois está no centro das produções
culturais (PERLIN, 1998).
Perlin (1998) parte de um ponto como referência para a categorização de uma
identidade – “O ponto da cultura Surda” – e nele se encontra a língua com uma identificação
forte. Língua visual/espacial, experiências visuais do mundo em que vivem, onde as
aprendizagens acontecem de forma visual. Nessa identificação, os surdos poderão encontrar
muitas identidades ainda não estudadas e categorizadas.
Na pesquisa dessa dissertação, algumas identidades puderam ser comparadas e
categorizadas dentro do que Perlin havia estudado e outras identificadas de modo diferente
das que existiam. No caso específico dos Surdos Kaingang, muitos estavam no que Perlin
(1998) chamou de “Identidades Embaçadas”: as referências na aldeia eram de pessoas com
deficiência mental, incapacitadas. Isso se deve a questões históricas, culturais e também,
porque na comunidade há surdos adultos excluídos e marginalizados.
No processo de Implantação da turma para escolarização dos surdos, na escola
pesquisada, havia apenas dois estudantes surdos, com suas identidades identificadas como
“Intermediárias”. Eles não se encontravam nem como surdos, nem como ouvintes. Os demais
estavam excluídos do processo de escolarização, pois os pais não os matriculavam para a
turma regular. Em casa, eram excluídos na própria família, alguns escondidos e trancados. A
comunicação em família compreendia somente o básico do dia-a-dia (comer, dormir e
permanecer dentro de casa). Em algumas famílias, percebiam-se alguns sinais caseiros,
bastante rústicos e silenciosos. Com essas evidências, os surdos estavam no patamar que
Perlin chamou de “Identidades Embaçadas”.
Com o ingresso na turma de Surdos, os estudantes aos poucos foram se
redescobrindo, encontrando-se com a cultura surda, com a LSB, e se apropriando de um novo
ser que estava nascendo. Em depoimentos de mães, houve relatos emocionantes sobre esse
filho que nascera de novo com uma nova língua que não é a falada, mas a de sinais.
37
No nascer/renascer pode estar a possibilidade de uma identidade transformadora,
em que o sujeito Índio/Surdo pode ser um, sem deixar de ser o outro. Porém um novo, que
está se constituindo e se formando.
Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas
tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a
negociar com as novas culturas em que vivem sem simplesmente serem
assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades (HALL,
2003, p.88).
Com a Identidade que foi construída pelo contato com a LSB, os sujeitos aos
poucos se identificam e dão sentido aos sinais próprios da aldeia, sinais voltados à cultura,
que foram registrados e descritos no momento da apresentação e criação. Ao construir as
Identidades, atribuiu-se uma nova categoria, segundo as características analisadas e colocadas
em paralelo com o que Perlin pesquisou, pois no referencial estudado, tornou-se inevitável
desviar o olhar para o tema das identidades. Apresentam-se cinco das mais relevantes na
pesquisa, sem o intuito de que elas sejam estanques:
- “Identidades Surdas Transformadoras”. Atribui-se essa categorização aos
surdos da pesquisa, por eles terem conseguido fazer com que toda uma comunidade de
ouvintes mudasse seu olhar e seu conceito sobre a pessoa surda. Esses surdos apresentam
como características:
01 – Necessitam do contato com outros surdos para aprender a Língua/LSB;
02 – Desenvolvem sua comunicação/os sinais dentro da cultura em que vivem;
03 – São críticos e não aceitam ser manipulados pelos ouvintes, nem mesmo os
familiares;
04 – Gostam da presença do Intérprete, de atividades escolares que sejam visuais,
com boa interação entre eles/surdos e criando uma comunicação própria;
05 – Ressignificam, fazendo empréstimos lingüísticos da LSB aos sinais da aldeia
e criando novos sinais;
06 – Atribuem nomes aos sinais da comunicação e se preocupam na identificação,
comparam as Línguas e os nomes – Sinais Kaingang na Aldeia (SKA);
07 – Exigem respeito pela sua pessoa na escola de ouvintes e identificam-se como
surdos Indígenas.
38
- Identidades Surdas “Especiais”. É a identidade – atribuída pelos ouvintes – que
aparece na aldeia onde os surdos Kaingang residem. São especiais porque não falam a língua
oral, mas aprenderam a falar com as mãos em sinais.
01 – Crianças surdas que não falam pela boca, mas falam com sinais;
02 – Crianças que nasceram de outro jeito, sem falar, mas têm inteligência tanto
quanto os ouvintes;
03 – Crianças identificadas na escola pelo estudo, que não são nem mais, nem
menos que os outros, mas são outros surdos, diferentes dos que existiam;
04 – Crianças que, para se comunicar, precisam de outra língua, usar as mãos e de
uma pessoa especializada na língua dos sinais;
05 – Aceitam e querem o professor bilíngüe e/ou o intérprete ou ainda a presença
do surdo adulto para lhes ensinar;
06 – Ignoram quem não sabe a LSB ou seus sinais – SKA;
07 – São grandes observadores dos acontecimentos na escola e na família, querem
saber tudo, apreciam que alguém lhes explique.
- Identidades Surdas Duplas Culturas. São os surdos que apresentam como
característica a duplicidade de identidades, dependendo do espaço onde se encontram:
estando num local com surdos, assumem-se como surdos. Se estão entre grupos somente de
seus pares étnico-indígenas, preferem não mostrar nada da cultura surda.
01 – Esses surdos variam seu comportamento, dependendo do contexto;
02 – Assumem a LSB e não sinalizam seus sinais no SKA; se estiverem entre os
surdos fluentes na LSB, apresentam satisfação de estar junto aos demais
surdos;
03 – Assumem a identidade de indígenas se estiverem num local específico para o
índio. Nestes locais, não aceitam o intérprete e não sinalizam nem na LSB e
nem no SKA;
04 – Gostam da sala de aula, o espaço para comunicação; identificam-se com os
outros surdos na turma com ensino na LSB;
05 – Perante a família, mudam de comportamento: dependendo de quem está
próximo, podem se isolar e silenciar a qualquer momento;
06 – Criam sinais próprios da Aldeia, o SKA, e se comunicam com seus pares na
escola;
39
07 São ativos, criativos, críticos, observadores e ao mesmo tempo apresentam
um olhar de dúvida e insatisfação.
- Identidades Surdas Abiboladas
2
. São os surdos adultos que residem na aldeia e
nunca tiveram contato com outros surdos e com a LSB; não sinalizam praticamente nada.
01 Vivem sozinhos ou com parentes próximos, mas não interagem com os
demais;
02 – A comunicação é praticamente nula;
03 – Alimentam-se, comem o que lhes alcançam, ou procuram na mata algo para
comer;
04 – Dormem fora da casa, em barracos ou no mato, escondidos e dificilmente
constituem união estável (pai, mãe e filhos);
05 – Olhos parados, tristes, corpo maltratado; geralmente sujos, com pouca
higiene;
06 – Considerados seres que não sabem o que querem, nem por que vivem nesse
mundo dos indígenas;
07 - São pessoas dignas de dó e piedade, indefesas, não representam perigo aos
demais e não têm condições de se autodeterminar.
- Identidades Surdas Revigoradas. Esse tipo de identidade surda, também encontrado
na aldeia pesquisada, caracteriza-se pelo surdo independente, que tem o seu jeito próprio de
sinalizar, de “se virar” na vida. Alguns deles podem ser rudes e, às vezes, perigosos.
01 – É o surdo que tem como característica principal o trabalho; excelente
trabalhador, é considerado “um boi” para o trabalho pesado;
02 – Alegre e interativo com os ouvintes, faz amizades, obedece à cultura
ouvintista e é um servidor para os ouvintes;
03 – Cria um jeito de se comunicar com as pessoas ao seu redor, mas esta
comunicação nem sempre é compreendida com os mesmos significados, é
momentânea;
04 – Não gosta do contato com outros surdos que saibam a LSB;
2
Um dos líderes da comunidade ao dar seu depoimento, apropriou-se do termo abilolada indevidamente, mas a
partir do momento que o contextualizou, se fez entender.
40
05 – Evita a escola, a escolarização para adultos e falar sobre ela, ignora o fato de
existirem outros surdos menores – crianças surdas estudando;
06 – Vive sozinho; se casado(a) com ouvinte, separa-se em seguida. Alguns têm
filhos que o reconhecem como pai e mãe, mas não vivem juntos, ajudam a
cuidar de longe, de outra casa próxima;
07 – Alguns entregam-se à bebida e aos vícios, com poucas perspectivas para suas
vidas.
Essas foram algumas das identidades encontradas na aldeia pesquisada e, com
base no trabalho de Perlin (2008), foram descritas conforme características observadas e
registradas no decorrer da pesquisa.
As identidades surdas Kaingang foram lentamente modificadas e observadas com
maior rigor depois do início da escolarização dos surdos em turma própria com ensino em
LIBRAS. Pode-se dizer que hoje, dos estudantes que estão na turma, a maioria se encontra na
categoria de Identidades Transformadoras, porque a representação desses surdos na escola
trouxe repercussões para os demais membros da aldeia, com a informação de que não podem
falar a língua Kaingang oral, mas podem aprendê-la na escrita e desenvolver-se na
comunicação através da língua dos sinais, “a língua das mãos”.
A partir dos registros sobre identidade e da construção da identidade do surdo
Kaingang, sentiu-se a necessidade, quando do estudo da língua e dos sinais, de entender sobre a
Lingüística. Percebe-se que culturalmente foram encontradas as justificativas para a utilização dos
sinais, mas sem uma afirmação consistente por parte da Lingüística, isto é, falta compreender se
os sinais criados pelos surdos Kaingang estariam ligados à língua oral Kaingang. Há pouco
embasamento teórico sobre o conhecimento lingüístico da língua Kaingang, para fazer a
compreensão e análise. Este tema poderia ser explorado por uma outra pesquisa.
Os surdos índios foram acompanhados na construção de sua identidade, que não
se limitou apenas em aprender a LSB, pois no contexto estava a língua oral e, com ela, todos
os encaminhamentos metodológicos. O uso da LSB ou do SKA, como instrumentos de
comunicação, se misturava com as estratégias oralistas, o contato com o Português escrito e
oral, o Kaingang escrito e oral, a LSB com o surdo Instrutor e o uso do SKA entre eles e com
seus familiares, além dos empréstimos em todas estas línguas para a construção do SKA.
Que construção de Identidades era oferecida aos surdos Indígenas/Kaingang? Não
se almejava vê-los com Identidades Abiboladas, nem Especiais, nem Revigoradas. Admitia-se
que alguns deles continuassem com Identidades Surdas Duplas Culturas, aceitáveis devido ao
41
contexto. Trabalhava-se para incutir de fato a Identidade Transformadora: de certa forma, a
escola e o que se aprende nela, assim como as relações instituídas nessa cultura, são
determinantes para construir o novo surdo que está nascendo para o mundo visual e dos
sinais.
Segundo a interpretação de Souza (2004), o qual discute e explica Bhabha, “[...] a
identidade é construída nas fissuras, nas travessias e nas negociações que ligam o interno e o
externo, o público e o privado, o psíquico e o político” (SOUZA, 2004, p. 124). Esta mesma
visão se aplica às formações culturais.
Na abordagem sobre as Identidades Surdas, procurou-se mostrar que em uma
trajetória metodológica da pesquisa-ação, como afirma Costa (2002), “é preciso encher o
mundo de histórias” (p.111). São histórias de pessoas e de lugares, em que o mundo, as vidas
de pessoas, as identidades são construídas, reinventadas, instituídas a cada nova história que
circula.
Os elementos culturais que constituem a Identidade dos surdos apareceram o
tempo todo na pesquisa, através dos sinais que os identificam e os diferenciam dos demais, os
mitos e as histórias do povo vivenciadas nas novas gerações, a dupla cultura que os constitui,
ora Surdos, ora somente Índios. O contexto escolar os institui como surdos através da LSB.
São as atribuições de um ser que é capaz, estabelecidas nesse novo conceito de ser surdo.
As identidades são marcadas pelos novos sujeitos, que constituem um outro olhar,
desconectando a visão das velhas identidades postas dentro da normalidade. Este novo emerge
e se fluidifica, consolida o ato de ser eu, vivendo com o outro e outro ser você vivendo
conosco, independentemente do gênero, raça/etnia, condição social e/ou diferença.
3.3 O ENTRE-LUGAR – A LÍNGUA/OS SINAIS
[...] que é o “inter” – fio cortante da tradução e da negociação, o “entre-
lugar” – que carrega o fardo do significado da cultura. Ele permite que se
comece a vislumbrar as histórias nacionais, antinacionalistas, do “povo”. E,
ao explorar esse Terceiro Espaço, temos a possibilidade de evitar a política
da polaridade e emergir como os outros de nós mesmos (BHABHA, 2005,
p.69).
Este perceber e esta apresentação para o pesquisador muitas vezes não ficam
claros. Havia alguns pontos relevantes, nos quais estava toda a desenvoltura e a legitimidade
dos dados. Primeiro – entender a cultura e se os sinais nasciam “a partir de”. Focar o olhar nos
42
surdos, na comunicação e nessa trama que os identificava e constituía ao mesmo tempo os
sinais/a LSB e o ser surdo. O entre-lugar será discutido com base nos escritos de Bhabha e
com a ajuda de outros pesquisadores para a compreensão, como Souza (2004).
A questão teórica desafia a pessoa do pesquisador o tempo todo: constar na escrita
e constatar nos fatos, numa chamada para a compreensão que não é meramente intelectual. É
uma vida, um processo dinâmico de muitas vidas, de muitos espaços e lugares que ao mesmo
tempo estão se contemplando e se constituindo.
Segundo Souza (2004), Bhabha chama teoricamente para a compreensão de um
terceiro espaço, que está no que muitos talvez chamem de diferenças:
Bhabha atenta para o espaço entre o ver e o interpretar, chamando-o terceiro
espaço - o interstício entre significante e significado do qual, considerando o
contexto sócio histórico e ideológico do usuário da linguagem (o lócus da
enunciação), se pode ter visibilidade do hibridismo (SOUZA, 2004, p. 118).
Este processo não é individual – nem que isto fosse possível –, mas é o ser eu sem
deixar de ter um pouco de você. O que me constitui e me inscreve na história étnico-racial,
são estas ambivalências, sob a lógica que existo.
O terceiro espaço envolve diferentes dimensões e diferentes contradições; isto
pode se dar através das Línguas, onde existe uma lógica que as liga, ao mesmo tempo em que
as diferencia, funde e entrelaça. Aparece neste contexto uma nova articulação destas nos
sujeitos que a interpelam: um espaço no qual é permitido negociar e criar.
Neste espaço estão presentes as relações ambivalentes, como ser Índio Kaingang e
ser Surdo. Há muitas referências culturais e nestas, deve-se lidar com todas as vantagens,
desvantagens, preconceitos e conceitos estabelecidos.
Neste Entre-Lugar está a possibilidade de re-estabelecer, re-definir o que ora
talvez estivesse estabelecido. No processo investigativo da pesquisa, pode-se dizer que os
sujeitos encontravam-se inconscientes de sua condição de ser - ser Índio, ser Surdo. O ser
Índio em muitos momentos aparece de forma mais convincente; o ser Surdo na cultura
indígena requer em primeiro plano pensar nas Línguas, nas linguagens.
Este pensamento não passa despercebido, esta identificação é relevante. O “Entre”
é visto, aqui, por um procedimento que deriva da seguinte lógica defendida por Rajagopalan
(2002): “[...] a prática lingüística se distingue pelos tropeços, acasos, imprevisibilidades e
singularidades – atributos que desafiam o próprio desejo de domar, de enfim, teorizar o objeto
de estudo, no caso, a práxis” (p. 24).
43
Nesta prática encontra-se a dimensão de uma nova construção. Não são os surdos
adultos, marginalizados e ignorados, como muitos que ainda resistem vivos, no sentido de
sobreviverem na aldeia. O conceito presente destes é fortemente impregnado nas famílias. Há,
contudo, um novo conceito se estabelecendo na escola, instituição que nos tempos atuais é
referência para remodelar estes conceitos e reinventar o jeito destas práticas.
Rajagopalan (2002) faz um comentário pertinente em relação a essas práticas que
se dão pela língua, na língua, com a língua:
[...] A facilidade com que costumamos falar de Línguas tende a ofuscar o
fato elementar de que tais entes inexistem no mundo real, mas são
verdadeiros constructos criados em resposta a certas demandas históricas. Os
enunciados concretos dos demais atores; eventos que não podem ser
negligenciadas pela organização em qualquer ação (p. 28).
A prática que se refere a um “Entre” aparece com muita força e significado na Língua
de Sinais – LSB – e nos Sinais Kaingang - SKA. São os sinais que os surdos Kaingang
conseguem deslanchar, criar e fazer desta sua própria Língua. Embora ainda não estudada
linguisticamente, os surdos fazem dela sua comunicação e, sendo assim, sua diferenciação
enquanto cultura. Bhabha (2005) aponta que “[...] temos a possibilidade de evitar a política da
polaridade e emergir como os outros de nós mesmos” (p. 69).
O emergir de ser este outro, ou esta outra Língua/Sinais, gera apropriação cuja
construção Bhabha procura enfatizar: a construção do significado pela interpretação (ou
ressignificação, conseqüente da subjetividade atribuída à existência de espaços intersticiais),
negando a falsa idéia de transparência, homogeneidade e considerando a necessidade de
historicizar e contextualizar o momento da enunciação (BHABHA, 2005).
O surdo Kaingang pesquisado nos apresentou os Sinais, mostrou parte do processo de
construção de sua Identidade, possibilitou encontrar este “ENTRE” que Bhabha aponta como o
terceiro espaço. Neste contexto, os surdos não ficaram somente com a LSB como uma Língua
única e verdadeira, mas, com base nela, eles conseguiram fazer o entrelaçamento e surgir um
novo jeito de sinalizar. Isto será mostrado no decorrer dos registros.
Os registros apresentados foram narrados de forma explicativa no momento de
criação - fusão/entrelaçamento com a LSB. O exemplo disso são os sinais de mãe, pai, avó, avô,
filho, filha, morte, sentar, família entre outros. O mais importante é que o indivíduo, ao refletir
em/na linguagem, seja capaz de reconhecer a sua própria historicidade e re-conhecer os seus
próprios desvios (OLIVEIRA, 2007).
44
Se a princípio não havia uma “visível” comunicação, aos poucos foram sendo
apresentadas, mostradas com fervor, como a dizer “Estamos aqui!”. Os sinais que até então eram
representados diferentemente da LSB, agora apareciam entrelaçados a esta Língua que também se
tornou tão significativa no processo de identificação escolar.
Os Sinais e a LSB, entrelaçados, explicitam que de fato o hibridar-se ocorreu, não
somente através da comunicação, mas nesta relação de identificação cultural. O Surdo–Índio, que
até então não sabia a LSB, quando do contato, da aquisição e assimilação, passou a ressignificar
este jeito de se comunicar, passando-o a sua própria linguagem.
O Entre–Lugar, olhado a partir da LSB e dos Sinais na aldeia, possibilitou uma nova
dimensão dos sinais na comunicação. Sendo assim, para sinalizar mulher/homem (gênero), é feito
o empréstimo na LSB para definir o gênero, se este for a avó ou o avô, mais o sinal de avós
relevante para eles na aldeia. O mesmo acontece com os sinais mãe e pai e outros.
A pesquisa buscou olhar estes sinais entendendo o que estava entre a LSB e os Sinais,
isto é, o Terceiro Espaço enfocado por Bhabha: o sinal, a LSB e o porquê destes sinais junto aos
dois. Um novo nascia, e poder-se-ia dizer que era um terceiro, não na ordem nurica e de valor,
mas como um novo, que se tornava “Entre”.
45
4 POVO E ESCOLA KAINGANG NO OESTE CATARINENSE
[...] a cultura é parte integrante da pessoa, ou seja, o corpo é impregnado de
cultura. (FLEURI; FANTIN, 1998, p.80).
4.1 RE-CONTAR/HISTORIAR: O POVO KAINGANG NO SUL DO BRASIL
Segundo a Wikipédia (2007),
Os caingangues (ou ainda kaingang, kanhgág) são um povo indígena do
Brasil meridional. Sua língua pertencente à família linguística jê, do tronco
macro-jê. Sua cultura desenvolveu-se à sombra dos pinheirais (Araucaria
brasiliensis). Há pelo menos dois séculos sua extensão territorial
compreende a zona entre o rio Tietê (São Paulo) e o rio Ijuí (norte do Rio
Grande do Sul). No século XIX seus domínios se estendiam, para oeste, até
San Pedro, na província argentina de Misiones.
Atualmente os caingangues ocupam cerca de 30 áreas reduzidas, distribuídas
sobre seu antigo território, nos estados meridionais brasileiros de São Paulo,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com uma população
aproximada de 29 mil pessoas. Ver mapa e quadros da população
caingangue (por áreas e por estados) no Portal Kaingang. Os Kaingang estão
entre os cinco povos indígenas mais populosos no Brasil.
Na literatura internacional, caingangues tem designado o povo que, na
literatura de língua portuguesa, é chamado xokleng (que hoje se
autodenominam laklãnõ). Os xokleng foram descritos por Jules Henry
(1941: “Jungle People: a Kaingáng tribe of the highlands of Brazil”),
pesquisador que esteve entre eles no início da década de 1930, no leste de
Santa Catarina. Por isso, o que se costuma referir, na literatura internacional,
como característica da cultura “Kaingang” é, na verdade, característica da
cultura Xokleng segundo a descrição de J. Henry.
Uma boa síntese sobre o povo caingangue, bastante completa em seus
aspectos antropológicos principais, aparece nas teses de Mestrado e
Doutorado de Juracilda Veiga (defendidas na UNICAMP, SP, Brasil, em
1994 e 2000). O primeiro desses trabalhos foi publicado em 2006, pela
Editora Curt Nimuendaju (Campinas) sob o título: ‘Aspectos Fundamentais
da Cultura Kaingang’ (grifo no original).
De acordo com Enciclopédia (2007), Nimuendajú foi o primeiro a afirmar que os
Kaingang estão articulados através do reconhecimento de um sistema de metades. Diz ele:
“Telêmaco Borba não compreendeu bem esta divisão em dois clãs [...] A divisão em Kañeru e
Kamé é o fio vermelho que passa por toda a vida social e religiosa desta nação”
46
(NIMUENDAJÚ, 1993 apud ENCICLOPÉDIA, 2007, pág. 60). A divisão em metades Kamé
e Kairu, o fio vermelho a que se refere Nimuendajú, aparece no mito de origem através da
trajetória dos irmãos mitológicos Kamé e Kairu. São estes heróis culturais que dão o nome às
metades Kaingang, são eles que, no transcorrer do mito, criaram os seres da natureza.
Kanyerú fez cobras, Kamé, onças. Este fez primeiro uma onça e a pintou,
depois Kanyerú fez um veado. Kamé disse à onça: ‘Come o veado, mas não
nos coma’. Depois ele fez uma anta, ordenando-lhe que comesse gente e
bichos. A anta, porém, não compreendeu a ordem. Kamé repetiu-lhe ainda
duas vezes em vão; depois lhe disse, zangado: ‘Vais comer folhas de urtiga,
não prestas para nada!’. Kanyeru fez cobras e mandou que elas mordessem
homens e animais (NIMUENDAJÚ, 1986, pág. 87).
Embora Telêmaco Borba tenha convivido por muitos anos com os Kaingang da
região Norte do atual Estado do Paraná – o que lhe permitiu o registro de mitos e histórias,
bem como a elaboração de um pequeno dicionário da língua Kaingang – ele, acompanhando
seus contemporâneos do século XIX, não reconheceu a existência de um sistema de metades
entre estes índios.
Os primeiros povos ou povos originais da região do atual estado do Rio Grande do
Sul já estavam aculturados, em boa parte, especialmente devido ao estabelecimento das
missões jesuíticas católicas no século XVIII, com a vinda do Padre Roque Gonzales, filho de
pai espanhol e de mãe nativa do Paraguai - o primeiro estrangeiro/europeu a pisar em solo
riograndense). Porém a relação dos gaúchos com os povos indígenas era extremamente
conflituosa, embora a miscigenação entre os dois grupos se tornasse algo inevitável. Segue até
os dias atuais, com grandes enfrentamentos, porque ainda existem pequenos grupos de povos
aborígines que lutam para manter as suas identidades. Por exemplo, os Mbyás-Guaranis e os
Caingangues ou Kaingang, na região.
Em Santa Catarina, os povos Kaingang são a maioria, segundo registros e relatos,
oriundos do estado do Paraná, porém, há quem arrisque dizer que alguns poucos vieram do
Rio Grande do Sul. Existem estas diferenças no contar da história dos Kaingang, devido à
localização em que se instalaram no passado, ficando nas fronteiras de estado, como é o caso
de Nonoai, Chapecó, Palmas entre outros (IPUAÇU, 2007).
Localizaram-se a princípio nos Campos do Paraná, mais especificamente na
região de Guarapuava, em 1810. A partir de 1840, com a colonização dos campos de Palmas,
as autoridades nacionais e províncias passaram a negociar com alguns Kaingang que faziam a
pacificação e o extermínio de grupos dos povos Indígenas com os não-índios. Houve na época
47
honrarias a quem tivesse a liderança de comandar os grupos a favor dos brancos. Muitos
títulos de Hierarquia Militar foram dados a índios, além de armamentos e remuneração
financeira. Desde os primeiros anos de conquista de Guarapuava, os índios colaboradores
receberam o título de Capitão (IPUAÇU, 2007).
Na segunda metade do século XIX e até hoje, os Kaingang usam os termos de
Hierarquia Militar para designar suas autoridades internas. Alguns índios se destacaram e
tornaram-se conhecidos, como é o Major Vitorino Kondá, por ser considerado pelos brancos
como um dos desbravadores da região oeste de SC, campos de Palmas, à região das Missões
no Rio Grande do Sul (IPUAÇU, 2007).
Índio Kondá, hoje, é visto por alguns dos povos Indígenas como um dos grandes
responsáveis pela colonização dos brancos, o qual não trabalhava a favor de sua própria gente.
Em 1848, com a abertura deste caminho ao Rio Grande do Sul, as terras hoje denominadas
TERRA Indígena Xapecó entraram para a colonização dos Brancos (IPUAÇU, 2007).
Conforme Ipuaçu (2007) em 1859, com o decreto 2.502, era criada a Colônia
Militar, atual município de Xanxerê, mas a implantação de fato só ocorreu em 1822. Os
objetivos no decreto de criação eram de:
a) defender as fronteiras;
b) proteger os habitantes dos Campos de Palmas contra a incursão dos índios
arredios;
c) implementar a catequese e a civilização dos indígenas que ali viviam
(IPUAÇU, 2007).
Entre os anos de 1882 a 1910, houve a distribuição de 255 títulos de propriedades
aos agricultores, na periferia da atual cidade de Xanxerê, local que, na época, sediava a
Colônia. Os agricultores que receberam estes títulos eram, na maioria, os nordestinos, ex-
emigrantes da força militar. De 1902 a 1916, esta região pertenceu ao governo do Paraná,
havendo muito interesse pelas terras, visto que eram férteis e de muita madeira. Aos índios foi
limitado um espaço de terras - Toldo de Formigas. Ao mesmo tempo, o governo pagava aos
índios que colaborassem para abertura de caminhos que levassem de Palmas ao Rio Grande
do Sul (IPUAÇU, 2007).
Em 1902, as terras reservadas aos Índios eram de 76.623.000 hectares, conforme
decreto:
48
Fica reservada, para o estabelecimento da tribo de indígenas coroados
ao mundo do cacique Vaicrê, salvo direito de terceiros, uma área de
terras compreendida nos limites seguintes: A partir do Rio Chapecó
pela estrada que segue para o sul até o passo do Rio Chapecozinho, e
por estes dois rios até onde eles fazem barra (Decreto n.7 de
18/06/1902 apud IPUAÇU, 2007).
Nestas terras havia inúmeros acampamentos que na época eram chamados de
Toldos e se dividiam em muitos agrupamentos, chegando a um total de mais de 600 índios,
segundo o Recenseamento do Brasil em 1890. Outras propriedades estavam neste limite de
terras que o Decreto estabelecia, porém nas localidades estavam os brancos. Estas terras só
foram reconhecidas mais tarde, em 1950 (IPUAÇU, 2007).
Houve uma lenta recuperação das terras indígenas desde este decreto. Há muita
insatisfação por parte dos povos indígenas na questão de posse de terras que legalmente
pertencem a estes grupos; do outro lado estão as gerações de ocupantes - agricultores que
vivem destas terras. Atualmente existe o processo de legalização e devolução das terras aos
indígenas, expandindo assim o Toldo do Chimbangue (IPUAÇU, 2007).
4.2 CARACTERIZAÇÃO SOCIOCULTURAL DA COMUNIDADE KAINGANG NO
MUNICÍPIO DE IPUAÇU
[...] o contato entre brancos e índios indica algumas: os mal-entendidos, a
idealização do índio, a presença ou não de mediadores, as trocas e sinais de
pacto ditados pelo medo (FLEURI, 1998, p. 17).
Os Kaingang, e alguns poucos Guarani são os grupos que estão organizados em
aldeias na região do oeste de Santa Catarina, na aldeia pertencente ao município de Ipuaçu,
denominado como Terra Indígena Xapecó. Dividem-se em treze comunidades, entre elas
Água Branca, Baixo Samburá, Cerro Doce, Fazenda São José, Guarani, João Veloso, Limeira,
Matão, Olaria, Pinhalzinho, Serrano. Conforme nos mostra a Figura 1, logo a seguir:
49
Figura 1 – Localização do município de Ipuaçu no mapa de SC.
Fonte: http://www.mapainterativo.ciasc.gov.br/
O nome Ipuaçu tem origem Tupi Guarani e significa “Lajeado Grande” ou “Fonte
Grande”, relacionado com o Rio Chapecó. O Rio que passa próximo à sede do Município
também se chama Lajeado Grande.
A população de Ipuaçu hoje é formada por várias etnias, sendo a grande maioria
de indígenas Kaingang e Guarani. Como coloca Ogliari (2002),
A história, tanto dos índios, habitantes originais destas terras, quanto dos
caboclos desbravadores, é resultado das condições de uma época, num
determinado espaço geográfico. Compreender tal contexto é a melhor
maneira de evitar possíveis julgamentos preconceituosos, sobre duas etnias
(Indígenas e caboclos) que participaram, e cujos descendentes participam,
tanto quanto italianos, alemães, poloneses [...] (p.57, grifo nosso).
O território ocupado atualmente pelos Kaingang e Guarani, uma população
estimada de 5 mil habitantes, é denominado Terras Indígenas Xapecó e abrange terras dos
municípios de Ipuaçu e Entre Rios, numa área de 16 mil hectares.
Nos primeiros séculos após o chamado Descobrimento, as terras eram objeto de
disputa entre portugueses e espanhóis. Posteriormente, com a definição de fronteiras, foram
terras das Províncias de São Paulo e do Paraná. De 1917 até 1953, estiveram sob a jurisdição
de Xanxerê até o ano de 2002, quando da criação do município de Ipuaçu.
O povo Kaingang, chamado no passado de Coroado, pelo fato de cortar o cabelo
redondo acima das orelhas e com franja rente à testa, e o povo Guarani, resistiram, apesar de
50
tantas disputas, inclusive com os colonos que chegaram a ter propriedades dentro dos limites
da reserva.
Posseiros, exploradores e atravessadores foram responsáveis pela derrubada das
araucárias, pela caça desenfreada, o que tem provocado a quase extinção da árvore e dos
animais. Paralelamente à depredação, ocorria a miscigenação dos indígenas com os caboclos,
italianos, alemães e poloneses, bem como a assimilação dos elementos culturais. Isso justifica
o fato de que, hoje, apenas 60% dos Kaingang se consideram puros.
A partir de 1940, as várias serrarias instaladas nas proximidades das terras
indígenas (inclusive uma delas instalada dentro da própria reserva), foram responsáveis pela
apropriação indevida das araucárias e exploração das terras, desrespeitando o Decreto n° 7, de
31 de dezembro de 1902, que delimitava as terras indígenas que se estendiam
[...] a partir do rio Chapecó, atual cidade de Abelardo Luz, seguindo pela
estrada que segue para o sul, até o Passo do rio Chapecozinho, atual cidade
de Bom Jesus, e até a confluência dos dois rios citados. (OGLIARI, 2002,
p.46).
Conforme Enciclopédia (2007), são poucos os estudos que se dedicam
exclusivamente à análise dos mitos Kaingang. Há, no entanto, referências recorrentes aos
mitos coletados por Borba, Nimuendajú, e Schaden. O primeiro registro da mitologia
Kaingang se deve a Telêmaco Borba, que publicou, em 1882, o mito de origem do povo
Kaingang e o mito da origem do milho. O primeiro narra a história dos irmãos mitológicos
Kamé e Kairu que, após o grande dilúvio, saíram do interior da serra Crinjijimbé.
Da Borba (1908) tem-se acesso às seguinte citações:
Em tempos idos, houve uma grande inundação que foi submergindo toda a
terra habitada por nossos antepassados. Só o cume da serra Crinjijimbé
emergia das águas. Os Caingangues, Cayrucrés e Camés nadavam em
direção a ela levando na boca achas de lenha incendiadas.“Os Cayrucrés e os
Camés, cansados, afogaram-se; suas almas foram morar no centro da serra
[...]. Depois que as águas secaram, os Caingangues se estabeleceram nas
imediações de Crinjijimbé. Os Cayrucrés e Camés, cujas almas tinham ido
morar no centro da serra, principiaram a abrir caminho pelo interior dela;
depois de muito trabalho chegaram a sair por duas veredas (p. 20-21).
Os Kaingang têm como origem as mais diversas narrativas, das quais algumas
citadas e outras contadas oralmente pelos mais velhos da aldeia e também registradas por
pesquisadores e historiadores. Também foram levantadas outras versões por muitos
pesquisadores que escrevem os mitos:
51
A tradição dos Kaingang afirma que os primeiros da sua nação saíram do
solo; por isso têm cor de terra. Numa serra, [...] No sudeste do Paraná, dizem
eles que ainda hoje podem ser vistos os buracos pelos quais subiram. Uma
parte deles permaneceu subterrânea; essa parte se conserva até hoje lá e a ela
se vão reunir as almas dos que morrem, aqui em cima. Eles saíram em dois
grupos chefiados por dois irmãos, Kanyerú e Kamé. Cada um já trouxe
consigo um grupo de gente. Kanyerú saiu primeiro. Dizem que Kanyerú e
toda a sua gente eram de corpo delgado, pés pequenos, ligeiros, tanto nos
seus movimentos como nas suas resoluções, cheios de iniciativa, mas de
pouca persistência. Kamé e seus companheiros, pelo contrário, eram de
corpo grosso, pés grandes, e vagarosos nos seus movimentos e resoluções
(ENCICLOPÉDIA, 2007).
O livro de Nötzold, Mitos e lendas Kaingang: ouvir, memórias, contar histórias
aponta um levantamento de pelo menos cinco versões do surgimento do povo Kaingang.
Porém, todas são semelhantes na síntese sobre como surgiu o povo. Cito uma delas:
Segundo as informações de índios mais velhos da comunidade, no momento a
dona Divaldina; o povo Kaingáng saiu do buraco da terra, e é por isso que nós
Kaingáng temos a pele cor de terra. Temos informação de que nasceram dois
grupos: o primeiro grupo é o grupo dos altos; o segundo grupo de pessoas são
baixinhos. A partir do seu nascimento, o nosso povo começa a aprender com a
natureza. Os animais têm contribuído muito na transmissão da tradição, das
danças, as marcas tribais Kamê e Kanhru. As referidas marcas surgem através
dos Kujá (pajé) e as tintas são feitas do carvão das árvores, que para o Kamê é
da árvore chamada pinheiro fág e para o Kanhru é a sete sangria branca Kêgfun.
Casamento: se o rapaz é Kanhru não pode casar com moça Kanhru precisa casar
com Kamê. Pessoas da mesma marca eram consideradas irmãos. Sem os Kujá
(pajé) não pode ser realizado o Kiki. Os fogos são quatro; dois do Kamê e dois
do Kanhru. O Kamê faz fogo para o Kanhru, e o Kanhru faz fogo para o Kamê.
Fabricar o cocho Kamê, é Kanhru. O Kujá (pajé) escolhe através dos nomes.
Quem batizava os nenês era o Kujá (pajé). É importante ressaltar que eram
muito respeitadas as maracás tribais. Os nomes em Kaingang eram
importantíssimos. Os nomes e marcas eram a identidade do povo, segundo as
informações de Dona Divaldina Luiz Jacinto, Kaingang da terra Indígena
Xapecó (NÖTZOLD, 2006, p.27).
Os mitos e lendas nos mostram a origem do ser humano, desde os Mitos Gregos aos
Mitos Indígenas e, neste contexto, a origem dos Kaingang. Vimos, através das narrativas, que o
povo encontra um meio para justificar, de forma empírica, as relações e as identificações culturais.
Elas nos mostram, entretanto, parte de sabedoria que não é somente de senso comum.
Como lembra a discussão de Bhabha com Frank Geahry House:
[...] uma recomendação heurística de que simultaneamente se apreenda a
cultura (e a teoria) nela mesma e por ela mesma, mas também em relação
com seu exterior, seu conteúdo e seu contexto, seu espaço de intervenção e
eficácia.(BHABHA, 2005, p. 303).
52
O exemplo disso é quando explica com quem homens e mulheres indígenas
devem se casar. O povo não tinha o conhecimento científico para dizer que da mesma marca e
do mesmo tronco lingüístico não poderiam se casar. A genética então é explicada sob uma
outra lógica, a lógica de famílias de serem considerados irmãos, uma lógica contada e com
credibilidade nos mitos.
Na aldeia do município de Ipuaçu, é possível observar estas diferenças na
anatomia do corpo dos Kaingang. É possível ainda observar a cor da pele que de fato é a cor
da terra, uma cor avermelhada, um marrom bombom. Os cabelos são muito negros, tanto de
homens como de mulheres, sendo que todas as mulheres mantêm os cabelos longos.
A constituição da estrutura do corpo é o que os mitos contam: altos ou também
muito baixos. Entroncados, fortes e miúdos. Pés e mãos muito bonitos, delicados e bem feitos.
Olhos negros vivos, dentes brancos e o sorriso acanhado. Os cabelos de alguns meninos ainda
conservam o corte da coroa.
As pessoas da aldeia no geral são muito calmas, falam em tonalidade baixa, são
simpáticas e simples. Costumam tomar decisões nas reuniões com as lideranças em conjunto.
Há quem diga, entre as pessoas de fora da aldeia, que quando o povo Indígena está por muito
tempo quieto, sem algum movimento de reivindicação, é que deve estar armando alguma
coisa, “algum Fervo”.
Alguns pesquisadores – como Adir do Nascimento, do Mato Grosso do Sul, que
pesquisa o grupo Guarani e Kaiowá –, trazem a discussão sobre estes movimentos
indigenistas, como os conflitos e confrontos. Ressaltam ainda a importância de manter esses
conflitos e vêem nestes confrontos e enfrentamentos o processo de reconstrução de identidade
(NASCIMENTO, 2005).
Quando será que as pessoas não- índias compreenderão que a colonização não se
deu somente em âmbito territorial? Os colonizados foram atingidos na cultura, sendo
influenciados por outras etnias que no seu bojo também trouxeram suas culturas. As
narrativas destes povos nos mostram que os indígenas foram tratados como inferiores por
estas outras culturas.
53
4.3 A ESCOLA INDÍGENA DE EDUCAÇÃO BÁSICA CACIQUE VANHKRE
Figura 2 - Espaço físico da escola em forma de oca.
O cadinho para o hibridismo é o “terceiro espaço”, ou seja, o espaço
intersticial (inbetween) “fora da frase”, entre o enunciado e a enunciação.
“Não esqueça do espaço fora da frase” (BHABHA, 1992 apud SOUZA,
2004, p. 131).
A escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkre está situada e localizada
no Oeste de SC, Município de Ipuaçu, na Terra Indígena Xapecó, pertencente à Etnia
Kaingang, distante 25 km da Secretaria do Desenvolvimento Regional, Ciências e Tecnologia
de Xanxerê e a 600 km de Florianópolis, capital de SC.
A Educação na Terra Indígena Xapecó (em Ipuaçu), assim como toda a história do
povo Kaingang e Guarani, passou por muitas etapas. Em meados do ano de 1912, não existia
um ensino de maneira formal, eram ensinados os conhecimentos básicos de geração em
geração.
Depois de 1912, até 1947, os registros mostram que existiram alguns homens
chamados de professores, sendo estes índios e não-índios, que ensinavam nas casas e embaixo
das árvores.
Em 1960, foi criada a primeira escola nas Terras Indígenas da região, chamada de
Escola Estadual São Pedro, na Aldeia de Água Branca. Permaneceu até 1975 nesta localidade,
54
depois foi transferida, com o nome de Escola Isolada Federal Posto Indígena Xapecó. Em
1984, a referida escola recebe outra denominação: Escola Federal Vitorino Kondá.
Em 1988, muda novamente de nome, passando a ser chamada de Escola Isolada
Federal Vitorino Kondá. Neste ano também é aprovado o Ensino Médio (parecer 352/97),
passando a ser Colégio – o primeiro no Brasil com Ensino de 2° grau numa escola Indígena e
em Terras Indígenas (IPUAÇU, 2007).
Em 1999, passou-se a estudar e entender a origem do nome da escola “Índio
Kondá”, em homenagem à pessoa que não só não tinha contribuído para o engrandecimento
da população Indígena, mas, ao contrário, havia debandado para os não-índios e prejudicado o
povo e sua gente, facilitando as invasões de terra pelos não-índios.
Novamente o nome da escola é alterado. Desta vez, chama-se Cacique Vanhkre;
em 2000, passa a ser chamada de Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkre. As
mudanças aconteciam não somente nos nomes, pois havia um grande número de estudantes
para estudar na educação infantil. Foram iniciadas, assim, em 2001, as turmas Infantis de
Educação Bilíngüe, com a contratação de professores da Língua Kaingang.
A Escola Indígena Estadual Básica (EIEB) Cacique Vanhkre atualmente, em
2007/2008, oferece o ensino a mais de 800 estudantes, envolvendo as modalidades de Ensino
Fundamental, Ensino Médio, Educação de Jovens e Adultos, Educação Especial – Turma de
Surdos. A Educação Infantil é responsabilidade do poder municipal, funcionando nas
dependências da escola.
Na escola, o quadro de professores é de 98% de profissionais Índios. A Filosofia
da escola busca a formação de jovens que saibam decifrar os variados signos lingüísticos e da
comunicação das sociedades dos índios e não-índios, para que possam defender sua cultura.
4.3.1 Organização no PPP – Projeto Político Pedagógico
A Escola contempla em seu Projeto – PPP – uma Educação Intercultural e
Diferenciada em todos os sentidos, isto é, desde o calendário, escolha de professores,
fortalecimento da cultura local e a revitalização da Língua Indígena, além da relação com
outras culturas e o conhecimento universal.
Considera-se o PPP da escola, de 2007, como principal objetivo: trabalhar
priorizando o ensino-aprendizagem da Língua Kaingang, visando revitalizar, preservar e
55
valorizar a identidade cultural, social e étnica do povo Kaingang, por meio da oralidade, da
escrita e de outros projetos culturais.
A Escola também é Comunitária e Específica, por atender aos anseios da
comunidade indígena, valorizando a participação da mesma em atividades escolares que
envolvem pais, estudantes e Lideranças Indígenas. Estabelecem-se, assim, parcerias
constantes com elementos importantes da comunidade: Associação de Pais e Professores
(APP), Centros de Educação (CEDs), Associações e Instituições de outros setores, como por
exemplo a Saúde, a Agricultura, além de secretarias municipais, estaduais e federais.
Por ser comunitária, a Escola tem um caráter e função fundamentais na construção
e funcionamento, pois a diferença não está somente na Língua, mas em todo o processo
educacional. Deve atender acima de tudo as necessidades da cultura e a permanência dos
hábitos, usos, costumes e tradições do povo Kaingang, que em séculos passados foram sendo
repassados de geração em geração.
As ações pedagógicas são baseadas em pesquisa, construção de projetos, reuniões
pedagógicas com a participação e acompanhamento da comunidade escolar, questionamentos
advindos no dia-a-dia escolar, cursos de capacitação. Prioriza-se a troca com os mais velhos
para assegurar a cultura para as novas gerações.
A escola contribui para a discussão e compreensão da realidade sócio-político-
econômica e cultural, com currículo específico, elaborado e aprovado pela comunidade.
Também são abertos espaços e parcerias com outras instituições, tais como Universidades,
escolas públicas, pesquisadores, etc.
Os valores Kaingang são parte do componente curricular, caracterizando-se pela
Língua materna, pelos costumes, mitos, artes, história, tradições, terra, pinturas, alimentação,
ervas medicinais, entre outras que identificam o povo Kaingang, para tornar a aprendizagem
mais eficiente.
O processo ensino/aprendizagem é um processo integrado e interdisciplinar, uma
construção social, em constante elaboração e aperfeiçoamento, que se baseia no sentido
cultural e científico, onde todos interagem, tornando-se críticos, participativos, líderes e
criativos.
Para tornar possível a sua efetivação, o PPP está embasado legalmente na
Constituição Federal/1988, Leis de Diretrizes e Bases - LDB N° 9394/1996, Secretaria do
Estado de Educação / Santa Catarina (SEE/SC), resolução 23/2000 e proposta curricular de
Santa Catarina, Diretrizes Administrativas e Pedagógicas da Secretaria da Educação e
56
Desenvolvimento (SED) com princípios de autonomia e gestão democrática num processo
dinâmico e permanente. O Projeto se embasa ainda nos decretos N° 3429/98/SC e portaria
08/99/SED/SC, Conselho Deliberativo Escolar decreto N° 31/13/86, APP e Lei 7398/85 e
Grêmio Estudantil.
4.4 DESAFIOS INTERCULTURAIS
Na população Indígena pesquisada, os discursos sobre Interculturalidade se
mantêm nas mais diversas falas, seja pelos órgãos responsáveis, seja pelos professores, por
pesquisadores de outros estados e até mesmo por pessoas com o olhar de fora da aldeia e da
escola.
No decorrer da pesquisa, buscava-se o enfoque na Interculturalidade, ou melhor,
em todos os momentos procurou-se identificar onde estava a interculturalidade do povo
Kaingang e entender como aconteciam estas relações interculturais na escola. Nesta procura
por referências, nas trocas com os colegas professores, foram aplicadas as questões abertas ao
grupo para que cada um expusesse o que pensava sobre interculturalidade.
Definidas as questões, limitou-se o número de pessoas a ser instigado: um total de
25 (vinte e cinco), sendo vinte professores da escola, quatro profissionais ligados à direção e
secretaria e um líder da aldeia - o Cacique.
As questões formuladas para a problematização foram as seguintes: Como você
entende a interculturalidade? É possível acontecer a interculturalidade na escola, na aldeia e
em sua sala de aula? Exemplifique.
Distribuído o instrumento com as questões, os participantes reagiram de forma
satisfatória, mas muitos não se dispuseram a devolver as folhas respondidas: de 20
professores, somente 12 devolveram respondidas.
As respostas descritas foram as mais diversas, relacionando as formas de culturas
e a escola neste contexto. A maioria das respostas tentava explicar o termo Interculturalidade.
Também houve respostas com pesquisa bibliográfica. Responderam que Interculturalidade é o
intercâmbio, ou seja, o estudo em relação de diversas culturas. Interculturalidade como
interação de diversas culturas na sociedade e das quais todos podem usufruir. Outros
conceituaram Interculturalidade como o respeito pelas diferenças do outro e o aproveitamento
das riquezas através da cultura que existe no País.
57
No questionamento sobre se a Interculturalidade pode acontecer nos espaços onde
eles atuam – sala de aula, aldeia e escola –, todos concordaram que pode acontecer em
qualquer lugar e que é importante para o povo na valorização das culturas, no reconhecimento
da sociedade.
Na solicitação para que exemplificassem, nenhum citou um exemplo claro.
Alguns responderam que a criança traz sua bagagem de conhecimento e desde pequeno tem
contato com outras culturas, os não-índios. Se tiverem contato com outras raças, se vivem
com o diferente, então, a interculturalidade é isso.
Não houve um exemplo mais concreto em sala de aula ou na aldeia sobre
Interculturalidade. Todos colocam que é muito bom, muito importante e falam do respeito e
das trocas entre culturas.
Apresenta-se uma das respostas, sem identificação do professor que escreveu:
Não tem como não falar na escola sobre a interculturalidade, porque como
professor indígena e tendo estudantes indígenas, todos fazem parte. A
criança desde pequena já traz uma bagagem de cultura, e na escola só é
trabalhado este conhecimento. Desde a infância a pessoa tem contato com o
não-índio e com pessoas de outras culturas, de raças e etnias diferentes. Por
isso que a interculturalidade é sempre trabalhada na sala de aula (set. 2007).
Esta resposta mostra que o professor trabalha pensando na interculturalidade na
escola e em sua sala de aula. Assim como este, outros que responderam não falam das
relações interculturais que acontecem na aldeia. A interculturalidade é vista somente sob a
ótica escolar, mas não no contexto da cultura Indígena.
Fleuri e Souza (2003) definem a Educação Intercultural como possibilidades do
pensar, do olhar de forma diferenciada, sem exclusão e nem preconceitos.
A Educação Intercultural, não sendo uma disciplina, coloca-se como uma
outra modalidade de pensar, propor, produzir e dialogar com as relações de
aprendizagem, contrapondo-se àquela tradicionalmente polarizada,
homogeneizante e universalizante (p.73).
Na tentativa de enumerar as questões sobre o grande universo da
interculturalidade, vínhamos fazendo observações na aldeia, na escola. Foi possível observar
que muitos professores tinham uma pasta preta cuja inscrição externa trazia “Educação
intercultural”. Esses mesmos professores, quando perguntados sobre o assunto, não tinham
claro o que era Interculturalidade e como ela estava presente na escola e/ou na aldeia.
58
Respondiam somente que foi um curso que tiveram em Florianópolis. A pergunta
era refeita: Sobre o que discutiram, neste curso sobre Interculturalidade? A resposta era:
“Sabe que nem me lembro direito?! Já vimos tanta coisa, projetos na escola”.
Seguindo as observações, questionava-se, então: Onde está mesmo a
Interculturalidade no povo Kaingang? Na revisão sobre a Interculturalidade estava o acervo
precioso de livros sobre o assunto. Partindo dessa revisão nos elementos teóricos, constatou-
se que de fato alguns professores estavam falando da Interculturalidade: o fato de os
professores atuarem na escola Indígena e a escola ser referência para membros daquela aldeia
já caracterizava a interculturalidade.
A resistência destes povos Kaingang e Guarani em permanecer nas terras, as quais
passaram por tantos colonizadores e desbravadores, como conta Ogliari (2002), a história
destas terras e essa resistência, tudo isso faz parte do movimento intercultural, pois desta
história restam relações significativas, as contradições e as ambivalências, que para Bhabha
nada mais são que o próprio hibridismo.
Durante os intervalos, na escola, foi possível identificar as diferenças destas
crianças nas brincadeiras, as diferenças as quais os professores citavam nas suas respostas.
Crianças que, como seus professores, não falam alto, a voz é de tom baixo e existe certa
meiguice nas pronúncias. Estas representações faziam pensar nos estudantes dos centros
urbanos, nos estudantes não-índios, na diferença quanto ao respeito pelo outro e o
comportamento durante os intervalos, nos recreios.
Atuar com educação Intercultural é um processo de intervenção contínua nas
relações entre teoria e prática, entre os conceitos e suas múltiplas
significações, oriundas do diálogo entre diferentes padrões culturais de que
são portadores os sujeitos que vivenciam o processo educativo, recuperando
a visão complexa e sistêmica de todas as produções de conhecimento. É a
busca pela ruptura de uma visão de escola como reprodução e resistência
para ir além dessa visão, assumindo os espaços educativos como produtores
e legitimadores de formas de subjetividades e de modos de vida [...]
(FLEURI; SOUZA, 2003, p.83-84).
Na aldeia, algumas considerações podem ser feitas sobre a interculturalidade, na
cultura dos Indígenas.
Existe um espaço (o Tronco) para pessoas que por algum motivo fizeram algo que
não está de acordo com as determinações do povo, tais como uma briga em um baile ou no
jogo de futebol, entre famílias, enfim, alguma atitude que infringe as regras da aldeia. Esta
pessoa, seja homem ou mulher, é colocada no Tronco.
59
O Tronco é formado por três árvores colocadas lado a lado, no meio da aldeia
Sede. O ponto é, sem dúvida, estratégico. O Cacique, junto à liderança, determina se as
pessoas vão ou não para o troco, como pena de repressão. São então amarrados nos punhos
em pé, virados de costas para a árvore e ficam nesta posição até a ordem de desamarrar.
Existem os que permanecem ali o dia todo ou até mais.
Durante os meses da nossa permanência na aldeia, foram inúmeras as vezes em
que vimos homens e mulheres passarem o dia todo no castigo. A escola fica próxima, num
local mais alto, de onde são retiradas as árvores para o Tronco.
Fizemos algumas fotos de longe, pois não tivemos coragem de chegar até onde
estavam amarrados e pedir permissão para fotografar. Um dia, simulamos os amarrados,
depois de falarmos com o capitão que cuida do Tronco. Um amigo professor e duas amigas
professoras aceitaram participar da simulação.
A função do Capitão é ajudar o Cacique a manter a ordem. O capitão também tem
os seus homens e suas lideranças, que trabalham para ele. Cada comunidade no território da
aldeia tem seu capitão e suas lideranças. Sendo assim, em cada uma dessas comunidades
existem outros Troncos.
Explicamos que era apenas uma simulação e o objetivo disto. O capitão nos
relatou um pouco da história do Tronco.
Antigamente, nossos antepassados faziam diferente. As pessoas eram
amarradas, as mãos e os pés, com o corpo deitado num assoalho. Em cima
das pessoas eram colocados uns troncos, que ficavam amarrados também nos
pés e nas mãos. Se a pessoa se mexesse, levava paulada nas canelas, nas
pernas. Tinha que ficar quieto; se mexendo, os paus amarrados batiam neles.
Depois foi feita a cadeia. Ainda existe a casinha na aldeia, (Mostrou onde
está). Lá as pessoas eram levadas e ficavam presas, fechadas. Não pudemos
mais continuar neste sistema. A polícia federal veio até as lideranças e
considerou “Cárcere Privado”, perante a Lei dos Brancos. Assim como
vocês não podem amarrar ninguém nos Troncos na cidade, nós aqui não
podemos colocar ninguém na cadeia. Não temos autoridade para isto. Mas
do nosso sistema nós podemos fazer. Amarrar nas árvores, no Tronco. Foi o
que encontramos para que não haja bagunça e nem folia na aldeia. Eles têm
respeito (CAPITÃO, 2007).
Nossa observação e análise estavam voltadas a todos os movimentos, tanto na
escola quanto na aldeia. Alguns acontecimentos nos deixavam apreensivos para obter a
compreensão, não num juízo de valores, mas na tentativa de estabelecer relações com a
interculturalidade e a própria relação intercultural na aldeia.
60
Amarrar ao Tronco não parece ser culturalmente dos povos Indígenas, mas
historicamente pertence ao País pela escravidão, principalmente dos negros. Os povos
indígenas encontraram a forma de castigar, punir os erros cometidos dentro da aldeia através
da colocação no Tronco. De certa forma reproduzem um sistema social hibridizado à cultura.
Como acentuam Fleuri e Souza (2003),
É nessa perspectiva que a educação Intercultural se preocupa com as
relações entre seres humanos culturalmente diferentes uns dos outros. Não
apenas na busca de aprender o caráter de várias culturas, mas, sobretudo, na
busca de compreender os sentidos que suas ações assumem no contexto de
seus respectivos padrões culturais e na disponibilidade de se deixar
interpelar pelos sentidos de tais ações e pelos significados constituídos por
tais contextos. (p.69).
O contexto da aldeia é sem dúvida diferente dos espaços que o não-índio ocupa na
“sociedade”, nos centros urbanos. Na aldeia não existe um sistema de governo. Existe a figura
do Cacique, que é uma autoridade local. Ele coordena todos os trabalhos e também determina
alguns procedimentos. Como, entretanto, estão organizados em lideranças, fazem reuniões e
discutem problemas internos, tomando decisões a partir das discussões.
Em conversas informais, o Cacique confirmou as informações acima sobre o
sistema de liderança, o que pensa sobre ser Cacique e como conceitua a atitude sobre o
Tronco.
Olha, o Tronco, é um costume do nosso povo. Na verdade é para manter a
ordem na aldeia. Tem o capitão em cada comunidade e as outras pessoas que
fazem parte da liderança. Nós temos as nossas leis, que não seguem
totalmente as dos brancos. Somos cidadãos, temos as diferenças na aldeia. O
índio hoje já vai preso por pensão das crianças. Estes dias mesmo tiveram
uns oito que foram para a cadeia. Se matar alguém aqui na aldeia ou fora
dela, as polícias podem entrar aqui e prender. Só que não chamamos a
polícia por bebedeira, ou um homem que bate na mulher, ou por brigas e
bagunça do pessoal, daí se corrige, manda para o Tronco. Ser cacique, bem,
é uma parte que dá respeito e autoridade, sempre foi assim (CACIQUE,
2007).
Este homem está no cargo de Cacique há mais de um ano. Para a troca de
Cacique, houve na aldeia uma rebelião entre o povo, com divisão de opiniões para a nova
escolha, no ano de 2006.
A escola foi o alvo de concentração de quem era pela troca de Cacique. As
lideranças a favor deste que está e os que queriam trocar o anterior foram todas para a escola.
61
Impediram os estudantes e professores de ocupar o espaço para as atividades escolares,
ficando mais de quinze dias sem aula. Ocorreu nova eleição com mais de cinco candidatos.
Na aldeia, o grau de instrução não é critério relevante para a escolha de Cacique e
de privilégio entre os povos. Existe o espírito forte de Liderança, onde a amizade, o caráter, a
capacidade política nas comunidades e entre eles são o que conta.
Algumas vezes conversamos com o Cacique atual , que expõe o que percebe sobre
a aldeia, a escola, a atuação dos professores que ele próprio indicou. Uma dessas
preocupações é com o resgate e fluência da Língua Kaingang na escola e na aldeia.
Nas conversas informais, o Cacique fala também que alguns professores não têm
jeito, não têm compromisso com as aulas e com o ensino e não servem para ensinar.
Começam a estudar e depois desistem, trancam a matrícula no meio do ano. Sendo que as
escolhas dos professores são feitas com a presença do Cacique, por indicação dele e em
comum acordo com a direção.
Perguntou-se sobre Interculturalidade também ao Cacique, que disse não saber o
que poderia significar, mas achava que tinha relação com a cultura dos povos e com o jeito de
cada um ser. Apesar de não ter respondido detalhadamente, esta vivência intercultural está
presente na prática. O que não dá para fugir e nem negar – estando estas relações
interculturais em todos os espaços da Aldeia –, é a existência de alguns pactos na política
partidária, disputas de poder, diferenças sociais e econômicas, com a evidência de influências
culturais do não-índio, o não saber lidar com estas inúmeras identidades e ainda como viver o
presente ligando-o à marca cultural de um povo.
62
5 O ESPAÇO ESCOLAR: CONSTITUÍDO E CONSTITUINTE DE
SIGNIFICADOS
5.1 A ESCOLA E A ESCOLARIZAÇÃO DOS SURDOS
A EIEB Cacique Vanhkre oferece educação aos estudantes indígenas residentes
na Aldeia Sede e comunidades pertencentes ao território Indígena da região.
Apesar de ser uma escola voltada às necessidades da comunidade, não oferecia,
até 2003, ensino visando à inclusão e às especificidades próprias (os surdos, os deficientes
mentais, os cadeirantes, entre outros).
Na escola, poucos estudantes com deficiências/diferenças eram matriculados e os
que ingressavam não seguiam freqüentando nem mesmo até a 4ª série do Ensino
Fundamental. A escola e os professores não sabiam como lidar com eles e conseqüentemente
a Instituição e o sistema de ensino faziam com eles desistissem de estudar.
Alguns deficientes mentais com pouco comprometimento eram matriculados e,
com alguns anos de escolarização, eram vistos como os que “não aprendem”, “não têm jeito
para os estudos”. Os deficientes mentais com sérios comprometimentos, aqueles em que se
percebia, visivelmente, a deficiência/diferença, não eram nem matriculados na escola regular,
permaneciam em casa sem estudar.
Na comunidade e no município de Ipuaçu, a escola especial – APAE – foi
fundada em 2004. Funciona na cidade e os estudantes da reserva indígena vão à escola com
ônibus pago pelo município. Entre os estudantes atendidos na APAE, 70% são índios com
deficiência mental, múltiplos, autistas ou cadeirantes. Os demais estudantes da Escola
Especial (30%) são filhos de moradores (não-índios) de comunidades do interior do município
e também da própria cidade de Ipuaçu.
A Inclusão de alguns estudantes com deficiência mental leve e cadeirantes
começou a ocorrer em 2006/2007. Eles freqüentam a escola regular com acompanhamento de
duas professoras nas turmas. Antes disso, os surdos conseguiam freqüentar até a 4ª série,
alguns até a 5ª ou 6ª série. Os estudantes surdos faziam cópias do quadro ou dos livros,
63
permaneciam quietos, não exigindo do professor maior envolvimento. Na época, não se
pensava em LSB e nem outra língua que não fosse a oral. Realizar as cópias e permanecer em
silêncio tinha, então, a conotação de aprendizagem.
5.2 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DOS SURDOS NO BRASIL – A LÍNGUA DE SINAIS
Falar uma língua não significa apenas expressar nossos pensamentos mais
interiores e originais; significa também ativar a imensa gama de significados
que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais.
(FLEURI, 2003, p.77).
A partir de Vilela (2007), pode-se rever em uma breve redação sobre a Educação
dos surdos no Brasil,
3
o desenrolar das políticas educacionais como reflexo das posições
tomadas no âmbito educacional para esta determinada população, sendo abordado, também, o
reconhecimento oficial da Língua de Sinais (LIBRAS) como língua própria da comunidade de
surdos do Brasil.
A história da educação dos surdos no Brasil é iniciada com a decisão de Dom
Pedro II que incumbiu o Marquês de Abrantes de organizar uma comissão a fim de promover
a fundação de um instituto para a educação de surdos-mudos.
Em 1856, essa comissão se reuniu e tomou como primeira deliberação a criação
do Instituto. Em 26 de setembro de 1857, foi aprovada a Lei de nº. 939 que designava a verba
para auxílio orçamentário ao novo estabelecimento e pensão anual para cada um dos dez
estudantes que o governo imperial mandou admitir no Instituto.
Assim sendo, Dom Pedro II trouxe para o Brasil um surdo francês chamado
Edward Huet, iniciando então a educação dos surdos no Brasil. O trabalho proposto por Huet
seguia a Língua de Sinais, uma vez que estudara com Clerc, no Instituto Francês. Pode-se
deduzir que ele utilizava os sinais e a escrita, sendo considerado, inclusive, como o introdutor
da Língua de Sinais Francesa no Brasil.
O primeiro instituto para surdos no Brasil foi fundado em 1857, por Edward Huet.
Inicialmente chamado de Imperial Instituto de Surdos-Mudos, teve seu nome alterado para
Instituto Nacional de Surdos-Mudos, em 1956, e Instituto Nacional de Educação de surdos, em
3
Genivalda Barbosa Vilela, fonoaudióloga – Produziu artigo sobre Educação dos Surdos no Brasil. Artigo
disponível no site http://www.fonoaudiologos.net
64
1957. Assim, a proposta de curriculum apresentada tinha como disciplinas o português,
aritmética, história, geografia, linguagem articulada e leitura labial para os que tivessem aptidão.
Em 1862, Huet deixou o Instituto por problemas pessoais, sendo o seu cargo de
diretor ocupado por Dr. Manuel de Magalhães Couto, que não era especialista em surdez e
conseqüentemente deixou de realizar o treino de fala e leitura de lábios no Instituto. Por este
motivo, após uma inspeção governamental, em 1868, o Instituto foi considerado um asilo de
Surdos. Com isso, o cargo de diretor passou a ser ocupado por Tobias Leite e foi estabelecida
obrigatoriamente a aprendizagem da linguagem articulada e da leitura dos lábios.
Em 1889, o governo determinou que a leitura labial e a linguagem articulada
deveriam ser ensinadas apenas para estudantes que apresentassem um bom aproveitamento,
sem prejudicar a escrita.
Por volta de 1897, o caráter educacional sofria fortes influências da Europa,
inclusive devido às decisões tomadas no Congresso de Milão. Em 1911, o Instituto Nacional
de Surdos (INES) passou a seguir a tendência mundial, utilizando o oralismo puro em suas
salas de aula. O uso dos sinais permaneceu até 1957, momento em que a proibição é dada
como oficial. É na década de setenta que chega ao Brasil a Comunicação Total, após a visita
de uma professora de Surdos à Universidade Gallaudet, nos Estados Unidos.
Na década de oitenta, são iniciadas as discussões acerca do bilingüismo no Brasil.
Lingüistas brasileiros começaram a se interessar pelo estudo da Língua de Sinais Brasileira
(LIBRAS) e da sua contribuição para a educação do surdo. A partir das pesquisas
desenvolvidas por Lucinda Ferreira Brito sobre a Língua Brasileira de Sinais, deu-se início às
pesquisas, seguindo o padrão internacional de abreviação das Línguas de Sinais. A brasileira
foi batizada, pela professora, de Língua de Sinais dos Centros Urbanos Brasileiros (LSCB),
para diferenciá-la da Língua de Sinais Kapor Brasileira (LSKB), utilizada pelos índios Urubu-
Kapor no Estado do Maranhão.
A partir de 1994, Brito passa a utilizar a abreviação LIBRAS, que foi criada pela
própria comunidade surda para designar a LSCB. No ano de 1986, a direção do Instituto
Nacional de Educação de Surdos, à luz dessa nova era, iniciou o projeto de pesquisa Projeto
de Alternativas Educacionais (PAE), um trabalho de implementação da Comunicação Total
para grupos de estudantes ali matriculados.
Esta iniciativa, entretanto, não tomou corpo. Atualmente, segundo a Procuradoria
Geral do Trabalho (2001/2002) foi sancionada, em 24 de abril de 2002, a lei nº. 10.436, que
reconhece a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como meio legal de comunicação e
65
expressão. A LIBRAS é vista como sistema lingüístico de natureza visual-motora, com
estrutura gramatical própria oriunda da comunidade de pessoas surdas do Brasil. Dessa
maneira, o sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais, municipais e do
Distrito Federal devem garantir a inclusão, nos cursos de formação em educação especial, de
Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior, do ensino da LIBRAS,
como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
Talvez seja possível encontrar brevemente, em outros escritos, o continuar da
história da Educação dos Surdos no Brasil, com acréscimo de estudos sobre os Indígenas
Surdos, seus sinais lingüísticos e ainda com a possibilidade de Políticas que os reconheçam
como Língua nessas populações.
5.3 A COMUNICAÇÃO NA ESCOLA, NA FAMÍLIA E NA ALDEIA DO MUNICÍPIO
DE IPUAÇU
[...] o objeto da perda é escrito nos corpos do povo, à medida que ele se repete
no silêncio que fala a estrangeiridade da Língua (BHABHA, 2005. p. 231).
Na constituição/reconstituição desses povos está a vitalidade das culturas, com a
reconstrução de suas histórias e vivendo o presente. E o presente exige uma avaliação por parte
dessas comunidades, principalmente sobre a Língua, pois ela não pode se restringir à disciplina e
à escola.
Nesse sentido, é necessário rever a funcionalidade da Língua na comunidade
local. Bhabha (2005) faz a discussão e a apresenta colocando o desafio de pensar a Língua
enquanto cultura, e a cultura como movimento, construção híbrida numa visão pós-colonial.
A origem da Língua Kaingang chamada Tronco Macro-Jê é um tronco lingüístico
cuja constituição ainda permanece duvidosa. A Língua da família Jê, tronco Macro-Jê, é
falada entre os Kaingang na aldeia do município de Ipuaçu. A tradição da Língua se dá por
transmissão oral; há fluência significativa apenas entre os mais velhos e os professores que
cursaram o magistério Bilíngüe.
A Língua é pouco fluente entre os jovens e crianças em idade escolar, embora faça
parte do currículo da escola, na forma de disciplina. Como é ensinada principalmente na
escrita, não é falada como padrão. O Português é falado, na aldeia, entre os mais velhos que
sabem esta língua; os jovens e crianças, entretanto, preferem usar o Kaingang.
De acordo com Souza (2004), a Língua é vista sob outra lógica:
66
[...] a era pós-colonial, uma revisão das aparentes certezas inscritas numa
valorização da heterogeneidade; essa heterogeneidade, que aponta a inevitável
imbricação Eu/Outro e a inexistência de identidades, Línguas e Linguagens
“puras”, não implica, porém, pluralismo. [...] Tal era postula, muitas vezes, a
existência simultânea e pacífica de vários grupos, culturais, línguas, etc [...].
Na escola, a Língua é ensinada por professores que conhecem a Língua Kaingang.
A receptividade dos estudantes para as aulas é prazerosa, mas não fluente, nem funcional. A
aldeia é dividida em comunidades e, em quase todas elas, o sistema de ensino nas escolas é
estadual. Nas comunidades menores funcionam as escolas multiseriadas, isto é, de 1ª a 4ª série
juntas em uma única turma, dependendo do número de estudantes matriculados. O professor
destas salas multiseriadas geralmente é Bilíngüe (Português e Kaingang). Em algumas dessas
escolas há dois professores nas turmas: um para o Idioma Kaingang e outro para o Português.
A Educação Escolar Indígena é uma modalidade de ensino de responsabilidade do
Estado. A política demanda o atendimento aos estudantes do Ensino Básico: Educação Infantil,
Fundamental, Médio e o Ensino Modular, como na modalidade de Educação de Jovens e
Adultos. Nos municípios de Ipuaçu e Entre Rios, no território pertencente aos Indígenas,
atualmente são dez as escolas indígenas estaduais multiseriadas, uma de ensino fundamental (de
Pré-escolar a 8ª série) e uma Escola Básica com os três níveis (Infantil, Fundamental e Médio).
A educação infantil pré-escolar é de responsabilidade do poder municipal, que
oferece essa modalidade, com turmas na escola sede e nas escolas com maior número de
estudantes. Sendo assim, as escolas multiseriadas, devido ao número mínimo de estudantes,
não oferecem esta modalidade para a educação infantil.
A educação escolar indígena tem bases legais que dão o direito à educação
diferenciada, à valorização das Línguas e culturas locais. Entre as mais relevantes destacam-se:
Constituição Federal de 1988: artigos: 210, 215, 231 e 232;
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: artigos: 26, 32, 78 e 79;
Plano Nacional de Educação (Lei 10.172 - 9 de janeiro de 2001): Capítulo
sobre Educação Escolar Indígena;
Parecer 14/99 - Conselho Nacional de Educação - 14 de setembro de 1999;
Resolução 03/99 - Conselho Nacional de Educação - 10 de novembro de 1999.
67
Decreto Presidencial 5.051, de 19 de abril de 2004, que promulga a Convenção
169 da OIT. (PORTAL MEC, 2007).
A constituição de 1988 e o Conselho Nacional, em 1999, por meio do Parecer 14
e da resolução 03, instituem a educação escolar indígena visando ao ensino Bilíngüe em todo
o País. Somente dois anos depois, o Plano Nacional de Educação, através da Lei 10.172,
estabelece a obrigatoriedade da categoria “escola indígena”, a qual estabelece a especificidade
de uma educação Intercultural e Bilíngüe.
Há dificuldades para que as escolas de fato contemplem uma Educação
Intercultural e Bilíngüe A afirmação procede nos depoimentos dos professores e nas queixas
dos estudantes e dos órgãos responsáveis pela coordenação dessas políticas. Procura-se um
jeito diferente de ensinar, mas não se contempla uma educação de qualidade em ambas as
línguas. Muitos estudantes estão chegando às séries finais do Ensino Fundamental sem saber
ler e escrever o Português e sem dominar a língua da aldeia.
Adir do Nascimento, através de suas pesquisas, aponta algumas referências para a
escola indígena tão almejada e apregoada por muitos. Sobre a qualidade dessa escola, Adir
explica, a partir das pesquisas realizadas por ela e uma equipe de professores indígenas, no
território do Mato Grosso do Sul:
A qualidade não só no sentido restrito do domínio de competências
convencionais (ler, escrever, calcular, definir, conceituar), mas,
principalmente, a qualidade no sentido de promover a reflexão sobre sua
identidade num contexto de forte interação intercultural e de construção de
alternativas que possam sustentar a sua diferença, ao mesmo tempo em que
lhes permita viver dignamente na complexidade que a contemporaneidade
lhes impõe (NASCIMENTO, 2005, p. 14).
Acredita-se que essa seja a qualidade buscada e almejada pelos professores,
direção e comunidade. Porém, no dia-a-dia fica tão difícil a execução do projeto contemplado
no PPP da Escola, devido às influências de outras culturas, do não-índio e por hibridação, que
muitas vezes os professores ficam sem saber como lidar com essas fortes relações.
Alguns aspectos dos povos indígenas e dos povos surdos são semelhantes quando
se referem à Língua utilizada pelo homem branco e ao ouvinte. Entre as questões complexas
que envolvem uma Língua, está a “Identidade”, a Língua como “marca de um povo”.
Os surdos Kaingang estão contemplados na política educacional do Estado de
Santa Catarina, que visa a uma educação Bilíngüe. Entretanto, ainda que as políticas possam
68
parecer autênticas e as melhores, com a intenção de fazer o que deve ser feito em prol desse
público, deve-se ter presente que a população surda indígena tem suas peculiaridades e
especificidades. A criação e implementação de uma nova Política requer o estudo e a abertura
para novos entendimentos quanto a sua aplicação e viabilidade. É preciso pensar a Política
Educacional a partir da base, a partir do contexto e das culturas envolvidas.
A Política implantada na Educação de surdos de SC está em processo de
construção. No primeiro ano, a Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE)
conseguiu acompanhar e dar assessorias semestrais nas escolas onde havia turmas com Ensino
em LIBRAS. Nesses dois últimos anos, com a alegação de falta de verbas, não houve
assessorias.
Nesse impasse se encontram os estudantes. Os professores, sozinhos e agindo
muitas vezes pela intuição, assumem o papel de assistentes sociais, psicólogos,
fonoaudiólogos e outros. Durante este tempo, sem assessoria no Estado de SC, muita coisa
mudou, entre elas a educação dos surdos Kaingang.
Não há registros na Educação de Surdos quanto ao contexto cultural de um povo,
por exemplo. A reflexão aqui proposta tem o intuito de fazer perceber o quanto as políticas
educacionais precisam atender as demandas.
Pergunta-se: A equipe pedagógica e os coordenadores da educação de surdos da
FCEE, da SED e da Secretaria Local sabem que os surdos Kaingang se articulam de modo
diferente na comunicação? Sem as assessorias, estes órgãos conhecem todas essas mudanças
ocorridas? E os professores, estão agindo de maneira a contemplar uma educação de
qualidade e diferenciada? Questiona-se o contexto a partir da realidade vivida, quanto à
cultura e às especificidades de um povo, de uma turma, de um professor e quanto à
hegemonia pensada por alguns poucos que têm poder de decisão, poder sobre o outro e sobre
as políticas. Afinal, acompanhar o processo de aprendizagem, fluência e fusão na LSB, como
padronização enquanto Sinais/Língua na aldeia, era um dos objetivos da pesquisa.
Muitos questionamentos e hipóteses levantados e discutidos sobre a Educação e a
comunicação dos estudantes surdos Kaingang do município de Ipuaçu, levaram às seguintes
reflexões: Deve-se interferir na educação e na língua desses estudantes? A Língua de Sinais
usada por surdos não-índios é a melhor indicação acadêmica? Não se está direcionando mais
uma vez os rumos e os costumes desse povo? Como está o processo de aceitação da Língua de
Sinais na cultura Kaingang? E os Surdos, como são vistos na aldeia e como são aceitos pelos
familiares? Os sinais que são fluentes entre estes surdos podem ser uma Língua própria dessa
69
aldeia? Como foi construída essa forma de comunicação? Diante desses questionamentos,
muito havia para estudar e também observar no decorrer da pesquisa. Alguns conceitos
estudados faziam-se presentes o tempo todo, mais especificamente o Hibridismo.
Bhabha nos leva a refletir sobre o hibridismo:
[...] explica o sentimento de superioridade em relação aos colonizados e de
inferioridade em relação aos colonizadores como sendo a experiência da
ironia, na qual dois sistemas de valores e verdades se relativizam, se
questionam, se sobrepõem, fazendo com que a duplicidade e a ambigüidade
sejam fortes características do hibridismo (SOUZA, 2004, p.114).
Muitos dos Kaingang e outros povos miscigenados não pertencentes a uma “etnia
pura”, na aldeia pesquisada, são mestiços “caboclos”. Há casamentos e amasiamentos com
“brancos” (italianos, alemães, caboclo, entre outros). Houve mistura de etnias, uma realidade
nacional. Esta mistura ocorreu não somente através dos corpos envolvidos, mas também na
Língua, na constituição de outra cultura. Evidencia-se que no decorrer dos anos houve a
predominância do Português, a Língua oficial e majoritária na região, devido a contatos com
falantes influentes. Entre os mais velhos e “puros”, como eles se referem, há quem ainda fale
o idioma com resquícios remanescentes da Língua nativa.
Conforme Souza (2004), Bhabha confrontou tentativas de escritores, tanto
colonizados como colonizadores, para descrever o sujeito colonial. Para ele, “a linguagem é
utilizada para representar o sujeito ou a própria noção de sujeito (identidade)” (p.115). A
representação do sujeito ocorre através da Língua que o identifica e o mostra. Em um
encontro de estudos, na escola Indígena Cacique Vanhkre, com alguns professores Indígenas,
houve um depoimento relevante para a pesquisa. A depoente, Maria Virginia, uma das
primeiras professoras da aldeia, emociona com seu depoimento:
Nós hoje somos cobrados porque nosso povo não fala mais a Língua. Eu só
falava no Idioma dos indígenas. Quando fui à aula, nós éramos proibidos de
falar na nossa Língua. Levávamos castigo se falássemos. Hoje querem que
nós falemos. Hoje nos cobram para ensinar nossos estudantes. Eu não
ensinei meus filhos a falar o Idioma, eu não queria que eles sofressem como
eu sofri. (VIRGINIA, 2007).
Bhabha, “valoriza o hibridismo como elemento constituinte da linguagem, e,
portanto da representação” (SOUZA, 2004). O que implica na impossibilidade de se pensar
uma descrição ou discurso autêntico sobre esse sujeito. Assim, qualquer tentativa de
70
representação é híbrida por conter traços dos dois discursos, num de jogo de diferenças, no
qual a busca por uma autenticidade é vista como infecunda.
Ao se tratar dos Kaingang surdos na reserva de Ipuaçu, a aquisição da Língua
Kaingang e do português oral é dificultada, por não conseguirem ouvir o som das palavras. Os
que não são totalmente surdos também não ouvem com nitidez porque não usam prótese
auditiva e não recebem nenhum treinamento de fala com Fonoaudiólogos. Os que conseguem
oralizar, fazem uma mistura das Línguas (Português e Kaingang), causando estranhamento
pela pronúncia e difícil entendimento da fala.
A Implantação da Proposta da LSB na escola para os surdos Kaingang foi bem
aceita pelos surdos e pelos ouvintes, pois a Língua visual e os sinais os identificavam e
ocupavam o lugar da palavra falada que eles não conseguiam pronunciar. Agora, surgia um
outro jeito de ser dita, através dos sinais feitos com as mãos.
5.3.1 Na turma Pólo da Política de Educação de Surdos de Santa Catarina, da Escola
Indígena Estadual Básica Cacique Vanhkre
A Educação Indígena com os surdos “Kaingang”, na região Oeste de Santa
Catarina, acontece desde o ano de 2003, visto que esses estudantes foram aos poucos
identificados na própria escola e posteriormente na aldeia com os demais, que estavam fora da
escola. Nesse ano, a pesquisadora do projeto já se encontrava envolvida, por motivos
profissionais da época (2003 a 2005), como Integradora de Educação Especial e Diversidade,
na Secretaria Regional de Xanxerê, Gerência de Educação/Setor de Ensino.
Ainda no ano de 2003, foi realizado levantamento sobre crianças e jovens
incluídos ou não nas escolas estaduais da Secretaria Regional de Xanxerê. Realizaram-se
seminários, cursos e encontros de estudos sobre inclusão e diversidade, com a participação
das Escolas Indígenas nesses eventos em nível regional.
Nas participações e em orientações nas escolas, através das queixas dos professores
quanto à aprendizagem, foi possível identificar os estudantes que tinham alguma deficiência e
os surdos. Após triagem, eles eram encaminhados para os exames clínicos. A princípio, foram
realizados, na própria escola, os testes básicos de audição: tambor, apito, palmas e outros, com
os que estavam na aula, pois havia, segundo os professores, aprendizagem lenta e
impossibilidade de comunicação. Em seguida, foi feita uma visita às casas dos possíveis
“surdos”, muitas vezes indicados pela expressão “Lá tem um que não fala”.
71
Após este levantamento, foram realizadas as audiometrias em 12 crianças com
suspeita de surdez. Destas, 07 apresentaram perda auditiva e seriam estudantes para a Sala de
Recursos e para a Turma Bilíngüe e 02 não responderam o exame e seriam necessários outros
exames mais profundos, como a Audiometria de Tronco Cerebral (BERA). As outras 03 não
apresentavam perda auditiva, mas outras complicações na fala e, conseqüentemente, na
aprendizagem.
Realizou-se uma primeira proposta de alfabetização Trilíngüe, elaborada pelo
setor de Ensino da Gerência de Xanxerê, e tendo a pesquisadora como mentora. Encaminhada
à Fundação Catarinense de Educação Especial - FCEE e à Secretaria de Educação do Estado
de Santa Catarina - SED, a proposta foi aprovada.
Iniciada a turma em 2004, pioneira no estado de SC, aplicou-se o que se sabia e o
que se considerava adequado para oferecer alfabetização Trilíngüe, visto que tanto quem
estava atuando (a Professora) quanto quem idealizou (a Integradora) não conheciam a Língua
Kaingang oral
4
e não tinham registros de Sinais dos estudantes como comunicação
estabelecida
5
.
A proposta de Alfabetização Trilíngüe estava posta, e os estudantes identificados
ingressados na escola; o que se tinha em mente era a possibilidade de ensinar, de oferecer a LSB,
de instigar o conhecimento e assim levar à aprendizagem. Não se podia deixar esses surdos com a
referência que tinham na aldeia. A Alfabetização, porém, ainda visava à contratação de pelo
menos duas pessoas: uma Bilíngüe (LSB e Português) e um professor de Kaingang.
No segundo ano, 2005, o Estado de SC e a FCEE apresentaram uma proposta para
a escolarização dos surdos em todo o estado, a qual foi implantada em 06 Pólos (regionais)
em SC. A
*
Proposta do Estado de Santa Catarina na Educação de Surdos, pela FCEE e SED
levou à criação da Turma com Ensino em Libras na EIEB Cacique Vanhkre, que se tornou
Pólo na educação de surdos de todo o território Indígena da aldeia de Ipuaçu (SANTA
CATARINA, 2007).
4
Língua Kaingang, Língua de tradição oral, falada pelos povos Indígenas Kaingang.
5
SKA: Sinais Kaingang na aldeia.
Proposta na Política de Educação de Surdos
Referendada pela Portaria E/19 de 04/05/2004 que dispõe sobre a implementação da Política par
Educação de Surdos no Estado de Santa Catarina em unidades escolares da rede pública estadual de ensino
de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 2007).
72
Durante este tempo de implantação, foram realizadas três assessorias pela FCEE,
através de uma equipe técnica pedagógica que vinha à escola onde os estudantes surdos
estudavam. Estas assessorias, no entanto, não são realizadas desde 2006, por falta de recursos
financeiros, segundo informação fornecida pela coordenação da Educação de Surdos, da
FCEE de SC.
Na política do estado de Santa Catarina implantada para os surdos em
praticamente todas as regionais, não existe uma diferenciação de especificidades aplicada à
Educação de surdos, por região. Existe a Política que regulamenta as contratações e as ações a
serem tomadas por igual, mas, pedagogicamente, não há metodologias diferenciadas, no caso,
para os surdos Indígenas.
A política trata das questões de inclusão/exclusão do surdo no sistema escolar
regular e das dificuldades de inserção devido à comunicação. Eis algumas questões/versões do
documento:
Refletindo-se a respeito da educação em si, detectam-se vários problemas
com o próprio processo de aprendizagem em termos qualitativos e
quantitativos, pois já se espera menos dos estudantes “incluídos”. Além é
claro, de o processo de aprendizagem não ser pensado de forma surda, o que
exigiria uma revisão com a presença de pessoas surdas que possuem essa
dimensão. O próprio currículo precisaria refletir e constituir essa forma
surda, uma vez que se caracteriza enquanto dispositivo cultural e social e é
fundamental no processo formador de identidade. Perlin (2000:23) observa
que se a base da cultura surda não estiver presente no currículo, dificilmente
o sujeito surdo irá percorrer a trajetória de sua nova ordem, que será
oferecida na pista das representações inerentes às manifestações culturais.
Perlin chama a atenção para a emergência na revisão das bases curriculares,
pois esse currículo deve prever o contato do sujeito surdo para que haja
manifestações culturais surdas. (SANTA CATARINA, 2007, p.33).
A Política de Educação de Surdos no Estado de Santa Catarina apresenta um
detalhamento para a proposta, em que especifica a estrutura escolar, isto é, a quem se destina,
por idade e turma, organizada em Pólos no estado ou por região.
5.3.2 Versão do documento da Política do Estado de Santa Catarina – Turmas com o
ensino em LIBRAS
A proposta do Estado de Santa Catarina para a Educação de Surdos está assim
estruturada (SANTA CATARINA, 2007):
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- São turmas constituídas no ensino regular em que os conceitos/conteúdos das
disciplinas do currículo devem ser ministrados pelo professor bilíngüe, através
da Língua Brasileira de Sinais. Nas escolas-pólo serão assim constituídas:
Educação Infantil - Creche (0 a 3 anos ):
- Composta com o mínimo de 04 e o máximo de 10 crianças;
- Os professores regentes de cada turma serão surdos bilíngües ou professores
ouvintes bilíngües com um instrutor ou monitor de LIBRAS;
- Deverá haver, no quadro administrativo da escola, profissionais surdos ou
ouvintes bilíngües.
Educação Infantil - Pré-escola (04 a 06 anos):
- Composta com o mínimo de 04 e o máximo de 15 crianças;
- Os professores regentes de cada turma serão surdos bilíngües ou professores
ouvintes bilíngües com um instrutor ou monitor de LIBRAS;
- Deverá haver, no quadro administrativo da escola, profissionais surdos ou
ouvintes bilíngües.
Nota: Caso não haja professor surdo, o professor regente da Creche e da Pré-
Escola deverá ser um ouvinte bilíngüe.
Séries Iniciais do Ensino Fundamental: (1ª a 4ª série):
- Composta com o mínimo de 04 e o máximo de 15 estudantes;
- Os professores regentes serão surdos bilíngües ou professores ouvintes
bilíngües;
- Deverá haver, no quadro administrativo da escola, profissionais surdos ou
ouvintes bilíngües.
Turmas mistas com professor intérprete (5ª a 8ª série e Ensino Médio):
São turmas constituídas no ensino regular, por estudantes surdos e ouvintes, em
que os conceitos e conteúdos das disciplinas do currículo devem ser ministrados pelo
professor da disciplina, o qual deve contar com um professor intérprete, que fará a
interpretação em LIBRAS dos conteúdos.
74
Séries Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio:
- Compostas com, no máximo, 15 estudantes surdos.
- Os professores de cada disciplina curricular deverão ser, preferencialmente,
surdos. Caso não haja professores surdos, serão priorizados:
a) professor ouvinte bilíngüe
b) professor ouvinte com intérprete em sala de aula.
- O intérprete deverá ser contratado, preferencialmente, por áreas de
conhecimento (Códigos e Linguagem, Ciências da Natureza, Matemática e
Ciências Humanas).
- Deverá haver, no quadro administrativo da escola, profissionais surdos ou
ouvintes bilíngües.
Educação de Jovens e Adultos:
A Educação de Jovens e Adultos pode ser composta por turmas com o ensino em
LIBRAS e por turmas mistas com professor intérprete.
Alfabetização e Nivelamento:
Turmas com o ensino em LIBRAS.
- Compostas com o mínimo de 05 e o máximo de 15 estudantes.
- Os professores deverão ser preferencialmente surdos, bilíngües ou professores
ouvintes com intérprete em sala.
- Deverá haver, no quadro administrativo da escola, profissionais surdos ou
ouvintes bilíngües.
Supletivo, Módulo e Telessalas:
- Os professores de cada disciplina curricular deverão ser, preferencialmente,
surdos. Caso não haja professores surdos, serão priorizados:
a) professor ouvinte bilíngüe;
b) professor ouvinte com intérprete em sala de aula.
- O intérprete deverá ser contratado, preferencialmente, por áreas de
conhecimento (Códigos e Linguagem, Ciências da Natureza, Matemática e
Ciências Humanas).
75
- Deverá haver, no quadro administrativo da escola, profissionais surdos ou
ouvintes bilíngües.
Na EIEB Cacique Vanhkre foi implantada turma com o ensino em LIBRAS,
conforme Política do Estado, somente de 1ª a 4ª série, a qual permanece até o ano de 2007.
Em 2006, dois desses estudantes – que já estavam na 3ª e 4ª série antes desta
turma – passaram para a 5ª série, pois apresentavam nível para a conclusão da 4ª série. A
idade (14 e 15 anos, respectivamente) também foi decisiva para o avanço para a 5ª série. Em
2007, os estudantes estão na 6ª série, numa turma em que se faz interpretação dos conteúdos
na LSB e no SKA em todas as disciplinas.
Os demais surdos permanecem na turma com Ensino em LIBRAS, como uma
classe multiseriada, visto que os estudantes são de idades e níveis de escolarização variados.
Nessa turma houve inserção de estudantes em 2007 e, para o ano de 2008, haverá a mudança
de mais dois estudantes para a 5ª série. Sendo assim, provavelmente a turma não permanecerá
como está e há até a possibilidade de não existir mais a turma com Ensino em LIBRAS, por
ser insuficiente o número de estudantes (04) para compor o grupo. Nesse caso, a Política
Educacional do Estado determina que os estudantes sejam colocados nas turmas regulares da
própria escola e recebam acompanhamento em outro turno, no Serviço de Atendimento
Especilizado/Deficiência Auditiva (SAEDE/DA), um serviço de atendimento especializado
aos deficientes auditivos.
76
6 ENUNCIAÇÃO DA DIFERENÇA OU O “OLHAR” NA CULTURA
[...] Quem são os novos sujeitos históricos que permanecem irrepresentados
na invisibilidade mais ampla dessa totalidade transnacional? (BHABHA.
1998, p.303).
6.1 OS SINAIS KAINGANG NO MOMENTO DE APRESENTAÇÃO/CRIAÇÃO – A
TRAJETÓRIA DOS REGISTROS E DAS ANÁLISES
Que Bhabha chama de “Terceiro espaço” – que toda a gama contraditória e
conflitante de elementos lingüísticos e culturais interagem e constituem o
hibridismo (SOUZA, 2004, p.119).
A escritura (apresentação), quando nos registros e relatos sobre os Sinais
Kaingang, será referenciada como a Apresentação do Sinal, porque se deu justamente assim.
O Sinal não nos foi mostrado quando solicitado; esses sinais e seus valores, criados pelos
surdos, os sujeitos da pesquisa, apareciam quando eles queriam mostrar, por isso se diz a
apresentação do sinal.
Iniciou-se com visitas às famílias para cadastramento dos estudantes; buscou-se,
em pouco tempo, identificar alguma forma de comunicação deles com seus familiares, porém
não foi possível observar e obter “sinais” que pudessem se configurar como padrão na
comunicação para serem aplicados na escola. Os pais, assim como os filhos, não
demonstravam qualquer comunicação natural e organizada para aquele espaço familiar, pois
eram muito tímidos e arredios.
Nesses primeiros contatos, parecia até que não havia comunicação entre eles.
Algumas dessas crianças fugiam para o mato, outras para debaixo da cama ou se enfiavam no
meio das pernas dos pais. Os pais pouco sinalizavam, apenas olhavam para seus filhos.
A partir do primeiro “olhar” sobre a comunicação, a Língua de Sinais – LSB – foi
sendo introduzida na turma, porque, no momento, era o que havia para oferecer, e era urgente
iniciar uma forma de escolarização para esses surdos.
77
A preocupação maior, no primeiro ano de atividades essenciais com os surdos na
escola, foi a aquisição da LSB. Com as discussões entre a professora Bilíngüe e a
coordenação, verificou-se que no processo de aquisição e compreensão dos sinais era preciso
trabalhar os conceitos básicos, pois muitos estavam com defasagem.
Um “Conceito básico” imprescindível para a aprendizagem era a própria
socialização: muitos se apresentavam rebeldes, medrosos, arredios ao processo. Outros
conceitos que no primeiro ano foram trabalhados: em cima, embaixo, cores, quantidade,
noção de números, dentro, fora, a lateralidade, etc.
Para facilitar as atividades e o entendimento para os surdos, assim como para que
eles percebessem que havia surdos em outros lugares, era feito o contato com um surdo
adulto, um instrutor contratado pela SED, que atendia a região duas vezes por semana.
No segundo ano, em 2005, a turma Trilíngüe enquadrou-se na Política de
Educação de Surdos do Estado de Santa Catarina, tornando-se Turma com Ensino em
LIBRAS ou Turma Bilíngüe (cf detalhado no Tópico 5.3.2).
A Educação priorizada e oferecida nesse ano foi a introdução da LSB, sem a
preocupação com a escrita no Português; aos poucos os estudantes interagiam na LSB,
conversando entre eles e articulando outros sinais que não faziam parte da LSB. Começou-se
a observar que entre eles eram utilizados alguns sinais atípicos e, em alguns contextos, com o
acréscimo desses sinais, eles dominavam a comunicação.
Durante o ano de 2005, deu-se mais atenção à comunicação desses estudantes e às
situações em que eles sinalizavam. Os sinais às vezes saíam distorcidos, confusos e
acanhados. Diante de pessoas estranhas, eles se fechavam e pouco sinalizavam. Essa atitude
também acontecia com os ouvintes da escola e a aldeia em geral: os Kaingang ouvintes de
certa forma se mostravam tímidos e recuavam quando se sentiam intimidados e com pessoas
estranhas. Em 2006, os estudantes se encontravam mais ativos, mais comunicativos,
presentes. Alguns desses surdos da turma, no entanto, resistiam à freqüência diária na escola,
sendo necessário, muitas vezes, ir à casa deles para trazê-los de volta aos estudos. Outros,
com a idade de 14 e 15 anos, apresentavam evolução satisfatória na aprendizagem, isto é, liam
o português e o Kaingang de palavras e frases simples, dominavam a comunicação na LSB,
faziam frases e pequenos textos. Por essa avaliação, dois estudantes foram acelerados para a
5ª série do Ensino Fundamental, com acompanhamento de intérprete da LSB em sala de
ouvintes e Turma Mista.
78
Nesse mesmo ano, a pesquisa encontrava-se como início de projeto de mestrado, pela
Linha de pesquisa Processos Inclusivos - UFSC. Logo foram realizadas algumas entrevistas com
as mães, de forma individual e também coletiva. Uma dessas entrevistas aconteceu no mês de
dezembro de 2006, quando se observou que as mães sinalizavam com seus filhos, usando muitos
sinais que para a observadora eram desconhecidos. Investiu-se nessa descoberta e, junto às mães e
filhos, através de perguntas básicas sobre situações cotidianas, foi possível perceber que na aldeia
havia praticamente uma forma particular de sinalizar.
Figura 3 - Encontro com as mães na sala dos estudantes surdos -14/12/06.
Os sinais: uma mãe passava para outra e comentavam entre elas. No final do encontro,
já havia um bom acervo de sinais, diferentes e interessantes para o contexto da pesquisa. Logo
foram agendadas, com as mães, visitas nas famílias, para registrar outros sinais no período de férias.
Figura 4 - A intervenção dos estudantes durante nossa conversa com as
mães - Professora Sonimara interpretando para os estudantes.
79
Em 2007, prosseguindo na pesquisa, reelaborou-se o projeto e chegou-se a um
foco um pouco diferente do proposto na entrada para o mestrado. Pretendia-se a princípio
compreender, analisar e registrar os sinais, a aprendizagem e aquisição da LSB pelos
estudantes surdos Kaingang que constituíam Turma bilíngüe.
Depois dessa entrevista com as mães, avaliou-se a necessidade de haver registros
desses sinais. Na análise anterior, a observação se deu também na documentação do processo de
negociação que os surdos Kaingang realizavam ao se comunicar na escola, na família e na aldeia.
Figura 5 - Foto da mãe e filha fazendo o sinal de pão - SKA (01) - A filha Tainara ensinando a mãe a
fazer o sinal em LSB (02).
Nas fotos acima, a mãe da estudante sinaliza pão do jeito que ela faz em casa: o
sinal e o próprio pão sovado nas mãos. A menina sorri e mostra para a mãe que o pão não é
esse que a mãe faz. Esse não é o pão da casa, é o outro pão, o pãozinho que se compra na
cidade. Esse ela sinaliza usando a LSB e também o alfabeto, fazendo a mãe formar, no
alfabeto manual, a palavra pão.
Era assim com as mães, era assim com os estudantes. A fala por meio dos sinais, o
olhar minucioso e curioso para com a comunicação, sempre à procura de algo novo para o
registro. Nesta busca e nas falas surgiu a sigla para os sinais utilizados na aldeia, em contato
com os surdos, principalmente durante o ano de 2007. Muitas vezes eles e também a
pesquisadora falavam “Sinais Kaingang” ou sinais da aldeia. Em uma dessas conversas, uma
estudante chama a atenção com algumas questões;
Professora, será que ninguém sabe aqueles de Florianópolis (FCEE – Ione,
Juliana, Walter e Patrícia), que vieram aqui (os outros, Ana Regina, Uéslei-
UFSC), os sinais Kaingang? É só nós que sabemos e fazemos assim? Eles
chamam de LIBRA, né, professora? Eu digo os Sinais da aldeia (SILVANA,
2007).
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Depois de respondidos os questionamentos da estudante, as questões se voltaram
para o assunto SIGLA, o que durou bom tempo e gerou a sigla para os sinais na aldeia, como
eles se referem: “Sinais Kaingang na Aldeia – “SKA”. Esta sigla passou a ser usada para os
sinais registrados nessa pesquisa. O que havia de referência para eles era a palavra LIBRAS
que, no decorrer da escolarização, com as assessorias da FCEE e contatos com outros surdos
que visitaram a escola, aprenderam a chamar de LSB, por uma opção dos surdos quando se
referem à Língua. LIBRAS é a sigla, dada pelos ouvintes e definida pela lei que a reconhece
no Brasil como Língua. Foi esta discussão que levou à criação de uma sigla para os sinais na
aldeia.
Góes discute sobre a influência da cultura dos ouvintes na cultura dos surdos.
Nesta linha de análise, Góes afirma:
Ouvintes apresentam grande heterogeneidade na capacidade de usar a língua
de sinais, mas geralmente constroem, nos diálogos, formas híbridas de
linguagem, compostas de elementos das duas línguas, em enunciados
subordinados às regras da língua majoritária, além de se apoiarem em vários
recursos gestuais. Ocorre, então, certa diluição dos sinais numa gestalt de
realizações lingüísticas, que interfere na aquisição em processo e na
compreensão de que se trata de uma língua, distinta da língua oral. (GÓES,
2000 apud SANTA CATARINA, 2007, p.29).
Os surdos Kaingang passavam por esse “pensar” nos sinais como uma sigla. A
representação dos sinais tornou-se algo significativo para eles. As observações e registros
aconteciam de maneira informal, muitas vezes induzidos nos conteúdos e nas articulações do
dia-a-dia, em conversas e passeios. O primeiro sinal, que desencadeou a observação mais
criteriosa nos contatos com os sinais Kaingang, foi o sinal de nenê/criança.
O sinal de nenê foi o primeiro realizado com padronização e repetição entre eles –
os surdos, os ouvintes e familiares. Observava-se que as crianças da aldeia são carregadas de
forma diferente dos bebês da cidade ou não-índios. Sinalizar “nenê” na Língua de Sinais
Brasileira – LSB, se faz com um gesto de embalar, no colo. Os surdos Kaingang sinalizam
“nenê” (ou criança pequena até mais ou menos dois anos), batendo com a mão direita no
antebraço esquerdo, porque os nenéns são carregados num braço, acavalados na cintura. O
sinal para “nenê recém-nascido” até mais ou menos cinco meses é feito no braço, com duas
leves batidas da outra mão no braço oposto, como se estivesse deitado e com expressão de
dormir, no rosto, com a cabeça levemente inclinada para o lado onde se bate.
81
Figura 6 Figura 7
Figura 6 - Estudante Marcione sinalizando o nenê da mãe dela, de 04 meses.
Figura 7 - Estudante Amarildo segurando o nenê recém-nascido da irmã, na casa dele.
Figura 8 – Menina cuidando de sua irmã
O nenê maiorzinho é carregado na cintura, por isso o sinal no SKA é realizado
com batidas no braço, e não mais o embalar, como na LSB.
Esse sinal faz parte da SKA e é referência forte na aldeia, para os surdos e para os
ouvintes. Em nenhum momento foi possível vê-los sinalizando na LSB o sinal de nenê ou
bebê, num gesto de embalar, já que eles sinalizam sempre na forma exemplificada acima, nas
fotos.
Nesse contexto ficou claramente exposto que há sinais próprios desse povo. A
cultura e os costumes predominam em alguns espaços e pode-se dizer que ultrapassam os
próprios espaços da aldeia. Reportando à teoria Pós-colonial, Bhabha (2005) afirma que a
perspectiva pós-colonial nos força a repensar as profundas limitações. Essa perspectiva insiste
que a identidade cultural e a identidade política são construídas pelo processo de alteridade.
82
Compreendido o sinal de nenê, avançou-se para outros que surgiam e já estavam
presentes, porém ainda eram imperceptíveis ao nosso olhar. O próximo sinal que chamou
atenção foi o adotado para números, parecendo ser próprio da aldeia e utilizado mesmo
quando os sujeitos da aldeia conheciam o sinal da LSB, que era diferente.
Sinalizar numerais é muito mais que sinal, número representa quantidade. Sendo
assim, números são representados com as mãos em punhos fechados em frente ao queixo descendo
até a cintura num gesto de abrir as mãos, com a expressão do rosto indicando quantidade.
No primeiro conjunto de imagens abaixo, a estudante surda mostra como é feito o
sinal de números. A próxima imagem mostra os estudantes da 1ª série numa atividade fora de
sala, trabalhando matemática com contagem de pedras.
Figura 9 - Sinal de número
Nos contatos ocorridos na escola, envolvendo todos os sujeitos da instituição,
cada momento oportuno era registrado e isso fazia a diferença. Foram muitas trocas de
informações com os professores de 1ª a 4ª série, como no caso das fotos nas aulas de
matemática no pátio da escola. Essas trocas com os professores e as observações de atividades
83
com os estudantes do ensino regular, traziam subsídios para os trabalhos em sala de aula com
os surdos, além de expor o contexto que acrescentava informações quanto às questões
culturais, assim como é explicada a experiência da alteridade por Laplantine:
A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver
aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em
fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que
consideramos ‘evidente’. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos
comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não tem realmente
nada de ‘natural’. Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz
respeito a nós mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da nossa
cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos
especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras,
mas não a única (
LAPLANTINE, 2000, p. 16).
Trabalhar com os números pressupõe que as crianças tenham noção de
quantidade. Nas turmas observadas, tanto de ouvintes como de surdos, as crianças estavam
iniciando o processo de reconhecimento dos numerais e símbolos relacionados à quantidade.
Talvez por se encontrarem nesse processo, os surdos usavam os dedos para indicar quantidade
e fazer os sinais.
Figura 10 - Turma de alfabetização da E.I.E.B. Cacique Vanhkre, trabalhando
matemática na área externa da escola, com contagem de pedrinhas.
Os numerais, individualmente, são realizados numa seqüência de quantidade de
dedos, número 01 é um dedo (indicador), 02 são dois dedos (médio e indicador), 03 são três
dedos (anelar, médio e indicador), 04 são quatro dedos (mínimo, anelar, médio e indicador),
05 é a mão cheia, aberta, virada com a palma para frente.
84
Os demais números, até o 10, são na mesma seqüência; por exemplo, quando
representam o número 08, a mão é direcionada para a frente fechando o punho, que logo é
reaberto para fazer o número: mão cheia com todos os dedos para o 05 e mais 03 da outra
mão, perfazendo 08 dedos. Assim também para o número 09. Para representar a dezena,
mostram as mãos em punho novamente, soltando, indicando que é 10. Fazem o mesmo e mais
algum outro número para indicar a seqüência. Assim realizam somente uma vez o 10, depois
os dedos indicam, por exemplo, 2 ou 6 se o número é 12 ou 16, ou outra combinação
qualquer.
Veja abaixo a representação nas fotos:
85
Figura 11 - Estudante Tainara fazendo os números de 01 a 10
As observações foram fundamentais, imprescindíveis; também a docência foi
relevante. Os estudantes foram instigados a trazer outros sinais. Trabalhou-se os conceitos de
forma que complementassem o processo de aprendizagem no qual já estavam inseridos. Os
momentos de docência e o convívio fizeram com que tudo fosse relevante e significativo. A
preocupação não era com o registro na escrita e na forma do conteúdo em si, mas sim para
86
que houvesse o entendimento e a aquisição dos conceitos básicos, mostrados pelos sinais, na
conversação. É o que Bhabha (2005) nos acrescenta, neste sentido, sobre a
interdisciplinaridade e o pedagógico:
A interdisciplinaridade é o reconhecimento do signo emergente da diferença
cultural produzida no movimento ambivalente entre a interpelação
pedagógica e a performativa. Ela nunca é a adição harmoniosa de conteúdos
e contextos que aumentam a positividade de uma presença disciplinadora ou
simbólica pré-estabelecida (p.229).
Trabalhar a totalidade, priorizando a construção da Identidade, tornou as aulas
diferentes, instigantes, interdisciplinares. O uso das pedrinhas britadas na escola Kaingang
não foi somente para trabalhar quantidades na matemática. Os estudantes da escola brincam
com as pedrinhas sentados no chão, em círculos ou de dois em dois e até mesmo
individualmente, em um jogo parecido com as “Três Marias” e que, na aldeia, recebe o nome
de “Butti”. Para este jogo, utilizam-se 12 pedras no centro, jogadas para cima com outra
pedrinha na mão. A regra é ir pegando no ar as pedrinhas, sem derrubar a outra da mão.
Vencedor é quem consegue pegar todas as pedrinhas.
Figura 12 - Estudante Tainara sinalizando o jogo “Butti”
87
Figura 13 Figura 14
Figura 13 - Meninas brincando de “Butti”, no recreio
Figura 14 - Professor Giovani fazendo o sinal de “Butti”.
Avançando nas observações, verificou-se que os estudantes surdos sinalizavam
“morte” de forma diferente da LSB e investigou-se a razão. Quando o grupo folheava um
livro à procura de figuras de crianças com famílias, apareceu a figura de Tiradentes e uma
estudante fez sinal de enforcado. Alguém sinalizou “Morte” na LSB, mas a menina explicou
um pouco da história de Tiradentes, que sua professoroa já havia trabalhado em anos
anteriores. As observações com base no diálogo prosseguiam: “As pessoas, aqui, são
enforcadas, porque são amarradas no Tronco?” Respondeu que não. não morrem no tronco
nem são enforcadas; aqui na aldeia, quando brigam, vão para o tronco , não morrem. Algumas
morrem quando são esfaqueadas, geralmente no coração ou na barriga. “Morrem”, a menina
fez o sinal de morte típico da aldeia.
Para configurar a “Morte”, a menina fez a configuração de mão como se fosse
fazer o número 05 na LSB, só que virada para dentro, iniciando na testa e descendo até o
queixo, numa expressão de fechar os olhos. Em seguida, as mãos postas junto ao peito.
A cada novo gesto, insistia-se no sinal de morte da LSB. Ela sinalizou novamente
como já havia feito. Era um provocar, ver se esse sinal era fluente, como um padrão para eles.
Essa menina quase sempre apresenta convicção no que coloca. Então, entrou em cena outro
estudante e repetiu, gesticulando: “Eles não morrem com a facada no pescoço, estrangulados,
esfaqueados em outras partes do corpo (barriga, coração, costas)”. Também apresentaram por
sinais como é representada a morte de quem morre do coração: o coração estoura, explode.
Outro jeito de morrer é que alguns bebem muita pinga, estão sempre bêbados nas estradas e
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daí caem, morrem. No contexto Kaingang, morrer, ou sinalizar morte, depende de como se
morre, na aldeia.
A observadora/pesquisadora e os estudantes surdos foram ao cemitério próximo
da escola. As fotos abaixo mostram esta visita, feita no dia em que falecera um senhor de
comunidade vizinha. As fotos mostram a menina Tainara, a qual contava que ali estava
enterrada uma criança que sua mãe conhecia. Ela andava pelo cemitério e mostrava onde
estavam enterradas as pessoas da família, sinalizando com o alfabeto manual os nomes
escritos em algumas sepulturas e túmulos.
Figura 15 - Estudante Tainara no cemitério, sinalizando morte - Dia em que haveria um enterro
no cemitério próximo à escola.
Dessa tarde no cemitério resultou um conto que a pesquisadora escreveu para o
Concurso Literário promovido na semana do servidor 2007 do governo do Estado de SC. Nesta
tarde, a intenção era também fotografar o jeito, o ritual de um enterro na aldeia. O conto, que está
no Apêndice dessa dissertação, traz presente a história de vida, morte e enterro na aldeia.
Figura 16 - Sinal de morte no SKA
89
Figura 17 - Sinal de morte na LSB
Nas casas, na escola, nas salas de aulas, principalmente na sala bilíngüe com os
estudantes e nas famílias, tudo era alvo de observação e registros. Foi interessante perceber
que as pessoas da aldeia raramente sentam em cadeiras, e logo investigar como o ato de sentar
estava representado no sinal feito por surdos. Sentar, no SKA, era realizado com um gesto de
levar a mão aberta, ao lado do corpo, abaixando até o chão. Na escola os estudantes sentam
nas cadeiras apenas pelo tempo suficiente para copiar as atividades, nas casas sentam-se no
chão ou em pedaços de troncos e bancos baixos. Outros fatos históricos podem ser
relembrados quanto aos povos Indígenas viverem nas matas, andando à procura de um local
para se instalar: o sentar acontecia no chão, nos troncos, o que se reflete ainda na atualidade.
Veja o registro:
Figura 18 - Sentar no SKA (Tainara) Figura 19 - Sentar na LSB (Giovani)
90
Outro fator da cultura Kaingang é sobre o conceito de família, que para eles não é
formada apenas por pai, mãe, filhos. Família são todos os que estão próximos a eles, podendo
ser numerosa ou não. A maioria das famílias é composta de pai, mãe, filhos e avós, paternos e
maternos, tios e primos e outras pessoas que moram junto ou próximos a eles.
O sinal de Família é representado com as mãos configuradas de modo semelhante
ao sinal de fazer grupos na LSB, como mostra a foto:
Figura 20 - Família no SKA (Tainara)
Figura 21 - Parentes juntos na festa do dia do Índio 19/04/2007
91
Seguindo a investigação entre os membros da família, percebeu-se que para
parente eram usadas as mãos com os dedos em zero na LSB, fazendo o círculo e fechando nos
dedos mínimos. Esse sinal de parente, em algumas regiões, é feito para família na LSB. Em
SC, o sinal para família é geralmente realizado com a configuração de mãos em “F”,
realizando o mesmo movimento usado para parente. Esse é mais um sinal que foi
ressignificado por eles.
Observe o sinal nos registros.
Figura 22 - Sinalizando parente. Mãos em zero juntas, virando e encostando os demais dedos.
Figura 23 – Sinal parente
92
Figura 24 - Os parentes do estudante surdo Maicon, que está à
esquerda, de blusa bordô.
Parentes são os tios, irmãos e primos, que não moram perto, mas moram em
outras aldeias e/ou comunidades.
Figura 25 - Encontro de parentes na festa do dia do Índio - 2007.
Os homens estão ao redor do fogo fazendo o churrasco, enquanto as crianças e
mulheres aguardam e guardam um local para comer na sombra.
93
Figura 26 - Parentes e amigos na festa do Índio - 19/04/2007.
Para pai, mãe e filhos, os surdos fizeram uma fusão da LSB com a SKA. Eles
sinalizavam pai e mãe como era o sinal de cada pai e de cada mãe, mais o sinal de homem e
mulher da LSB. Para dizer filho/filha, sinal de “junto de”. Também fazem o sinal dando como
referência os cabelos – pelos ombros na mulher e pela nuca no homem – e mais o sinal de
junto.
Veja as fotos:
Figura 27 - Tainara sinalizando mãe, cabelos nos ombros (Mulher) e junto (Filha “De”)
94
Figura 28 - Sinal de pai, dando a referência dos cabelos curtos
Figura 29 - Mãe e pai na LSB. Figura 30 - Junto “De” sou “De”.
Parecido com o sinal de pai e mãe é o sinal de avó e avô. Nesses sinais percebe-se
o empréstimo e a “Entre”: antes não sinalizavam o “gênero”, mas entenderam na LSB a
função do sinal ao dizer homem e mulher, juntaram ao da aldeia que identifica quem é esse
homem e essa mulher e surge o sinal usado por eles e entre eles na Aldeia.
Avó e Avô, o mesmo que identifica a LSB para homem e mulher, mais o sinal de
bênção. Até início de 2007, eles sinalizavam somente bênção tanto para avó como para avô,
agora fazem o sinal com referência ao gênero. Quadros e Karnopp (2004), no livro Estudos
Lingüísticos, afirmam que “de um modo geral, todas as Línguas, orais ou de sinais,
incorporam em seu vocabulário palavras estrangeiras, que são consideradas como
empréstimos lingüísticos” (p. 89, grifo nosso) Evidenciou-se, isto que Quadros e Karnopp
afirmam, na aldeia, com os sinais de avó e avô. Veja as fotos:
95
Figura 31 - Tainara sinalizando avó e avô (mulher e homem, na LSB) e bênção
para configurar os avós.
Figura 32 - Professor Giovani sinalizando avó e avô na LSB.
Neste contexto e nas atividades diárias de sala de aula, os sinais emergiam
naturalmente. Em alguns momentos tinha-se a impressão do “nascer” de um novo, como
aquela mãe havia relatado. Outro sinal que marcou a pesquisa aconteceu numa tarde com os
estudantes da Turma com Ensino em LIBRAS, quando faltava a estudante Tainara. Era uma
terça-feira e, às 14h40min, ela chegou com sua mãe, voltando do médico. Seu colega Maicon
correu à porta e sinalizou dessa forma:
Figura 33 - Sinalizando demora.
96
Perguntou-se em LSB atrasada? Ele negou e repetiu o mesmo sinal, depois
Tainara fez no alfabeto: demora-demorada. Então não é atrasada, é demora para chegar à aula.
Como se perguntasse, na Língua oral, “Onde esteve até agora? Olhe, é hora de chegar à aula?”
Os batimentos no braço eram rápidos, bempidos, a expressão do rosto de cobrança e
pergunta: demorou por quê?
Houve acompanhamento diário na escola, pela manhã, como intérprete na turma
da 6ª série. O privilégio de acompanhar as aulas e interagir com a turma de ouvintes e com os
professores contribuía para as observações quanto à cultura, identidade e Línguas.
Às segundas-feiras havia aulas de Artes e o professor trabalhava técnicas de
artesanatos da aldeia e confeccionava com os estudantes. Muita coisa, muitos nomes
apresentados naquele contexto eram desconhecidos, o que instigou a realização de registros
sobre o artesanato. Desta vez, não foram realizadas comparações com os sinais na LSB, o
registro mostra apenas os sinais próprios da aldeia.
Figura 34 - Amarildo e Silvana na turma da 6ª série e na fig. da direita Silvana sinaliza cacique.
Figura 35 - Silvana sinalizando flauta.
97
Figura 36 - Amarildo sinalizando flautino.
Figura 37 - Silvana sinalizando chocalho.
Figura 38 - Sinal de cesto/balaio.
98
Os cestos ou balaios são sinalizados conforme o tamanho e as características; a
sinalização é parecida com a dos classificadores usados na LSB.
Figura 39 - Silvana e Amarildo sinalizando “cesto”, “balaio” pequeno.
Segundo a LSB Vídeo (2007); os Classificadores servem como auxiliares para
determinar as especificidades de uma idéia, detalhando forma, tamanho e/ou estado em que se
encontra o objeto a que se está fazendo referência na língua.
Os classificadores são bastante usados pelos surdos Kaingang, nos artesanatos
confeccionados e vendidos na aldeia. Observa–se nos surdos da aldeia pouca destreza e
agilidade com as mãos. Eles fazem os sinais de forma um tanto acanhada, sem leveza,
diferentemente dos surdos usuários da LSB. A configuração das mãos também se apresenta
algumas vezes confusa.
Configuração de Mão é um dos parâmetros gramaticais das línguas de sinais
(do Brasil e as dos demais países) e pode ser comparado aos fonemas das
línguas orais, ou seja: é através dela que os sinais são produzidos e passam a
fazer sentido, juntamente com a orientação, direção, sentido, ponto de
articulação etc (LBS VÍDEO, 2007).
Pelas análises e registros realizados quanto aos sinais e o jeito de sinalizar, deduz-
se que os atos e fazeres da aldeia estão imbricados na cultura Kaingang e fazem emergir o
“jeito próprio” desse povo nos estudantes surdos. Um surdo que não fala pela voz, mas que
fala com as mãos e o corpo, se faz presença, toma os espaços para si, faz ouvir e é parte do
universo, escreve sua história como fazem os outros sujeitos ouvintes. Por outro lado, os
estudantes ouvintes da escola também são quietos, de pouca conversa até mesmo entre eles.
Em quase 04 anos de sistema de Ensino em LIBRAS, os surdos estão aprendendo a se
99
comunicar, estão aprendendo uma Língua que lhes é própria, mas ainda um pouco estranha
numa comunidade de ouvintes que falam duas línguas orais.
Na figura abaixo, Silvana segura o chocalho e Amarildo sinaliza o instrumento.
Figura 40 - Instrumento usado nas danças do povo Kaingang.
O cocar é usado, na aldeia, somente quando há apresentação de danças, para
enfeites em parede e para a venda como artesanato.
Figura 41 - Amarildo e Silvana sinalizando cocar
100
Figura 42 - Cesto feito pelos estudantes em sala de aula.
Figura 43 - Colares feitos pela comunidade indígena, à venda na escola ou
pelos próprios índios aos camelôs, nas ruas.
101
Figura 44 - Colar para enfeitar a parede.
Figura 45 - Os dois estudantes mostram a finalidade de cada objeto
artesanal.
102
Figura 46 - Amarildo e Silvana sinalizando o colar e a flauta.
O sinal de colar aqui aparece com uma das mãos em pinça, bem no meio do peito,
segurando num gesto de pegar uma semente. O sinal de flauta usa os dedos médios, indicador
e anelar das duas mãos para representar o instrumento de música na aldeia.
Figura 47 - Colar sinalizado ao peito. Conforme o tamanho do colar,
será o ponto de articulação e o classificador.
Desse modo, para sinalizar o colar de parede, aponta-se para a parede na mesma
forma que o colar está no peito, só se diferencia mostrando a parede. É como na LSB: para o
sinal de quadro, usam-se os classificadores para mostrar suas variações.
103
Figura 48 - Artesanatos feitos pelos estudantes na sala da 6ª série - Projeto do
professor de artes Jhonatan. Ao lado, estudante Amarildo, preparando o material.
A escola pesquisada funciona em três turnos e o transporte é feito por ônibus que
traz os estudantes das comunidades vizinhas. Poucos moradores possuem carro, muitos
andam a pé e pedindo carona. Os professores também dependem de carona, de Xanxerê até a
aldeia, para vir trabalhar.
O sinal de ônibus feito pelos surdos Kaingang traz presente a vivência diária da
grande maioria da população da aldeia. O sinal é realizado como se as duas mãos estivessem
num grande volante, com os dedos polegares levantados sinalizando o lado para onde está
pedindo a carona.
Os registros ilustram vários momentos:
Figura 49 - Giovani sinalizando ônibus em LSB. Figura 50 – Tainara ônibus em SKA.
104
Figura 51 - Surdo adulto (Guega) sinalizando ônibus com seu
amigo de trabalho na olaria.
A foto acima aconteceu durante uma entrevista sobre ser surdo indígena. O
cenário é uma olaria e a conversa é com alguém que interage com o colega de trabalho Guega,
que é surdo e poderia ser definido como Identidade Surda Revigorada.
Guega (surdo adulto) foi convidado para viajar com a turma em dezembro, junto
com os demais surdos da escola. O seu amigo que aparece na foto, de camisa verde, sinalizou
viajar. Eis os registros.
Figura 52- O amigo explicando sobre a viagem.
105
Figura 53 - Arrumar as roupas para a viagem. Figura 54 - 01, 02, 03 dias viajando.
Figura 55 - Conhecer a praia, o mar, que lindo!
Figura 56 - Guega e professora Marisa, observando o barro se transformar em molde de
tijolos.
106
Figura 57 - Tijolos prontos na prateleira e depois para o forno.
Figura 58- Funcionários dentro de um forno.
Figura 59 - O amigo sinalizando tijolo.
107
Depois de visitar a olaria, foram feitas outras visitas familiares a surdos adultos,
porém nenhuma chocou tanto como a da família de uma senhora surda adulta. Um parente deu
o depoimento sobre esta senhora, que tem pouco contato com os outros surdos, vive nas
estradas e mora com um irmão.
Durante a conversa com a cunhada, na igreja, não foi possível registrar os sinais
devido ao local e à pouca receptividade da entrevistada, que respondia minimamente ao que era
solicitado. Disse que pouco se comunica, mas que se entende com a cunhada surda; na hora de
comer faz o sinal de comer, no gesto da mão fechada em concha, bem próxima à boca, como se
estivesse comendo com a própria mão. No dormir, sinaliza com os olhos fechados e mãos juntas
postas no rosto. Alguns sinais feitos por ela são como uma representação de mímica.
Evidencia-se a pouca comunicação entre as pessoas da família. O sinal de comer é
bastante relevante, visto que esta senhora surda come muitos alimentos secos e com as mãos,
outros alimentos no prato e com a colher. Também ocorre o sinal para sair, que é feito com uma
das mãos mostrando longe e com os olhos direcionados ao lado para ir.
Nas poucas vezes em que apareceu na escola, conseguiu aprender “Oi” na LSB. No
início em 2003, ela fugia muito e não olhava para as pessoas. Depois de uns dois anos de
poucos contatos com a professora Bilíngüe da escola, ela somente sorria muito. Hoje ela tenta
gesticular.
Obtivemos alguns registros sobre esta senhora:
Figura 60 Figura 61
Figura 60 - Cama onde ela dorme em dias sem chuva.
Figura 61 - O sinal de fogo recente na sombra - As roupas com que se cobre.
108
Figura 62 - A senhora surda andando pela estrada (foto do ano de 2005).
Figura 63 - Fotografamos as mãos e os pés.
Figura 64 - Festa do dia do Índio em 2007.
109
Na escola há sempre muitas festas e na comunidade também há festas relevantes
(a do dia do Índio é uma delas). No dia da criança, na escola, havia muitos bolos e todos
comeram à vontade. O sinal para bolo já era conhecido há uns dois anos: sinaliza-se fazendo o
pedaço do bolo com o dedo indicador e o polegar.
Figura 65 - Professores cortando bolo na festa e distribuindo para as crianças.
Segundo relatos das mães, em casa as crianças comem bolo em pedaços; são bolos
caseiros feitos na forma e assados de modo convencional; raramente o bolo é recheado e
grande. Na Festa do Dia do Índio, outro sinal apresentado foi o de churrasco. Nesse dia pôde-
se ver como eles assam a carne, e o sinal se deve a este modo de assar.
Figura 66 – Tainara sinalizando churrasco e Giovani sinalizando carne e churrasco na LSB.
110
Figura 67 - Na festa do dia do Índio, a família do Maicon, que está de
camiseta branca, ao lado da mãe.
Figura 68 - Um dos locais onde se assava o churrasco.
Os estudantes surdos haviam desenvolvido, junto à turma da 6ª série, um projeto
sobre ervas medicinais, após pesquisa nas casas de toda a aldeia. Nessa pesquisa, muitos
sinais se tornaram conhecidos e apresentados à escola como um todo. Geralmente, as ervas
medicinais são sinalizadas a partir de características das plantas, principalmente das folhas.
Os sinais que os surdos criaram respeitaram os critérios de dar destaque às características das
plantas, mas acrescentaram a localização do corpo para a indicação da dor ou da doença.
111
Figura 69Tainara sinalizando cidreira e, abaixo, febre.
112
Figura 70 - O pé de funcho usado para febre e chá
para as mulheres lactantes aumentarem o leite.
Figura 71 - Sinalizando o seio cheio de leite, depois de tomar
chá de funcho.
Para o ato de amamentação, sinaliza-se o peito maior e o nenê mamando. Os
sinais criados pelos surdos Kaingang ressaltam a funcionalidade na vida diária. A escola tem
uma horta, de onde são retiradas muitas verduras. Os estudantes participantes do projeto
foram à horta e identificaram alguns sinais, tais como o sinal de verdura. Tainara sinaliza com
as mãos juntas, num sentido de surgir. Giovani, o instrutor surdo, usa o sinal de saladas em
LSB, com as mãos abertas, juntando os punhos, como se mostrasse o pé de alface ou outra
salada. Sinaliza completando, se for verdura, com o sinal de diversas.
113
Figura 72 - Verduras (saladas). Figura 73 – Verduras.
Figura 74 - Esse tipo de salada (verdura) surge nas matas da aldeia e é muito
apreciada pela população.
Ao redor da escola, assim como em toda a aldeia, há muitas Palmeiras. Durante o
ano elas dão frutos – os coquinhos amarelos, fibrosos, cujo gosto é parecido com o da fruta
Manga, são gosmentos devido às fibras.
Os estudantes trouxeram um sinal para o coquinho:
114
Figura 75 - Tainara sinalizando a árvore (01), o coquinho na mão (02) e chupando o
coquinho na boca (03).
Figura 76 – Giovani sinaliza árvore na LSB (01) - tira a fruta do cacho (02)
- leva a fruta à boca (3).
Assim como a Palmeira é árvore característica da região, a Erva-Mate também é
abundante na aldeia. A planta é podada, as folhas arranjadas em arrobas, vendidas às
ervateiras e/ou trocadas pela erva processada pronta para o chimarrão. Registrou-se a
comparação entre o sinal feito pelo instrutor surdo e o sinal feito na aldeia.
115
Figura 77 – Árvore.
Figura 78 - A erva pronta no pacote.
Figura 79 - A erva pronta na cuia e tomar o chimarrão.
116
Figura 80 - Árvore.
Figura 81 - Mãos sinalizando o “V” de árvore verde - chimarrão.
As observações na escola aconteciam sempre no contexto dos conteúdos ou em
conversas informais. Quando da apresentação de alguns sinais, nem sempre foi possível fazer
o registro, por não se dispor de máquina fotográfica no momento. Foi necessário voltar e fazer
os registros em outro dia, solicitando os sinais ao professor e a alguns surdos. Os estudantes
são bastante tímidos e é difícil fazer com que repitam o sinal numa pose para fotos. O sinal é
realizado nas conversas sem o tempo para registrá-los. A menina Tainara concordou em fazer
as fotos, mas depois demonstrou cansaço.
117
O sinal de surdo utilizado pelos surdos da aldeia é apresentado pela menina
Tainara, enquanto o professor Giovani sinaliza pela LSB.
Figura 82 – Giovani sinalizando surdo na LSB.
Figura 83 – Tainara sinalizando surdo no SKA.
Mãos da estudante com os dedos indicador e médio colocados na orelha, numa
expressão de estar “sem”, trancado, falta audição.
118
Figura 84 - Giovani e Tainara fazem o mesmo sinal para dizer Kaingang, (surdo Kaingang).
No sinal da escola ocorrem empréstimos lingüísticos. Ao sinalizar escola, eles
usam as letras no alfabeto manual e o ponto de articulação que indica a inscrição que a
maioria das escolas usa, ao lado do peito, onde a sigla se encontra nos uniformes escolares.
Figura 85 - Amarildo sinaliza o “C” de Cacique e Silvana o “V” de Vanhkre.
Nesses empréstimos, os surdos representam a cultura ouvinte e também a cultura
do não-índio surdo. Segundo a estudante Silvana, “é um sinal criado a partir do que eles
observaram nas camisetas de estudantes de outras escolas e por serem muito perguntados
pelos outros surdos, estudantes de outras escolas/cidades”.
119
Eis o desenho nas camisetas novas da escola, na cor preta, escolhida pelos surdos,
e azul, para os professores e funcionários.
Figura 86 - Registro dos estudantes surdos com o professor
Fleuri, após a palestra e visita ao receberem livros para a
biblioteca da escola.
Os registros sobre os sinais SKA foram encerrados aqui, embora ainda haja
muitos a registrar. Isto porque, apesar de todo o tempo e das observações realizadas, muitos
sinais se perderam ao olhar e à interpretação no decorrer da pesquisa.
6.2 A REPRESENTAÇÃO DOS SURDOS NOS DIFERENTES AGENTES DA
ESCOLA
Passaram-se dois anos na observação das relações estabelecidas pelos surdos na
escola como um todo. Na turma de 6ª série, a princípio a aceitação foi muito boa, a
curiosidade para com a LSB também sempre questionada e trabalhada na turma de ouvintes,
os quais apresentavam facilidade em aprender. Os surdos, bem incluídos, não apresentavam
dificuldade na turma: participavam nas aulas com os ouvintes e os ouvintes com eles. Em dia
de prova, muitos dos ouvintes ficavam olhando e esperando para entender melhor as questões
da prova, pois os surdos perguntavam mais esclarecimentos de alguns enunciados. A LSB
fluía bem mais que a própria Língua Kaingang na turma de ouvintes. Buscava-se saber mais
120
sobre o que os estudantes da 6ª série pensavam sobre os surdos, pois, segundo Bhabha (2005),
“Esta representação tem a ver com um “interior” e um “exterior”, para que haja uma relação
socialmente determinante” (p. 303).
Uma questão foi formulada para os estudantes, sem que recebessem muitos
detalhes, nem tempo extra para completar em casa. A resposta devia ser dada na sala de aula,
sem influências e intervenções de outras pessoas.
6.2.1 Na turma da 6ª série, ouvintes e surdos
A questão formulada buscava saber o que eles pensavam sobre o “ser surdo”
Kaingang. Fez-se a pergunta e solicitou-se resposta dissertativa para a turma toda, com vinte
estudantes ouvintes e três estudantes surdos.
Nas respostas dos surdos apareceu a aceitação do ser surdo e até certo orgulho e
prazer em agora poder se identificar como surdo na turma.
As respostas dos surdos serão apresentadas na íntegra. O primeiro texto é do
estudante Amarildo, que ainda não se encoraja a escrever sozinho, apenas responde e escreve
algumas palavras soltas no português, mas reconhece muitas palavras Kaingang na leitura e
escrita.
Eu gosta sim, professora, de ser surdo Kaingang. Eu aprenda bastante na
escola. Porque tem pessoa igual Professora Sonimara me ensina, professor
homem surdo ensina, você ensina. Eu gosta mais Língua dos sinais do que
fala. Fala eu não sei falar direito, professora. Xo isto (AMARILDO, 2007).
Esse estudante, que apresentava muita dificuldade antes de iniciar com a LSB na
escola, agora respondeu com bastante naturalidade. Por vários anos, fora reprovado e muito
discriminado; embora oralizasse razoavelmente, fazia misturas na língua oral dos dois
idiomas (Português e Kaingang).
O texto da estudante surda Silvana – reproduzido a seguir – foi mais longo, já que
ela escreve em português com mais facilidade, porém com os erros normais para a fase da
escrita em que se encontra. Talvez sua dificuldade não seja tanto no português, mas sim na
articulação sonora/visual com a língua, visto que até pouco tempo a estudante também fazia
misturas entre as duas línguas orais.
121
Eu sou Silvana. Eu tenho 16 anos. Eu moro na ária indígena. O meu pai foi
embora. Ele é branco, e minha mãe é índia. Contam que passado criança eu
cai na água e daí fiquei surda por caunça desse. Eu gosto de falar com
surdos com as mãos. E melhor ainda estudar para trabalhar, ser professora
vai bem na vida. Tem muitas coisas da verdade, eu também sou surda, eu
aprendi fazer sinais e aprendi LIBRA. Mas eram difícil aprender, mas agora
eu sei um monte de coisas de sinais. Eu escrevo no quadro, eu cuido dos
estudantes. Para mim é improtentes muito de leres, estudar, eu gosto de
respeitar as pessoas. Porque o que ama mais e estudar. Para leres e trabalhar
com surdos. Para mim é um monte de coisa a minha solução é ver um surdo
falar um historis. Proque eu não quero um aparelho, porque eu escuito um
pouco, Eu não quero isso não para mim não adianta aparelho. A sim ta bom.
Eu atorro espricar converças e não brigar (SILVANA, 2007).
Silvana escreve em estruturas do Português oral, com características da própria
aldeia, ainda que apresente, em algumas frases, estruturas da LSB. O que chama atenção é a
desenvoltura ao escrever sobre ser surda. Ela relata que pode usar aparelho, mas não quer,
afirmando muitas vezes que gosta de sinais e gosta de ser surda, encontrar com outros surdos,
falar suas histórias e contar as novidades, na LSB.
A estudante descreve a realidade familiar: o pai é branco e não vive com a mãe e
os irmãos. Também fala do respeito pelas pessoas, da importância de estudar, de ler e de
como isso faz bem à vida. Quando era menor, freqüentou a escola com ouvintes até a 4ª série.
Com muita dificuldade, Silvana lia algumas palavras e não entendia o que lia, nem sequer
levantava a cabeça para olhar as pessoas. Estava sempre com o olhar triste, cabisbaixa, sem
interação com colegas e professores.
Silvana apresenta, em seu texto, o processo que Bhabha (2005) descreve sobre o
retorno do sujeito, em que afirma [...] “há uma agência que procura a revisão e a reinscrição”
(p. 265). Nesse olhar, o texto mostra que ela muitas vezes fala da LSB, dos sinais e de ser
surdo, para que o outro perceba o quanto ela agora se reconhece e se reescreve como surda.
Atualmente, Silvana se relaciona bem na sala de aula, aceita ser surda, faz-se
respeitar e respeita os outros. Pode-se comprovar, por suas ações, que verdadeiramente ela se
representa como surda e atua em todos os espaços possíveis na escola.
O próximo texto é de um estudante novo na turma, chegado no mês de setembro
de 2007. Este garoto apresenta dificuldades visuais e perda leve de audição. Não
acompanhava a série em que estava no turno vespertino e, pelo Conselho de Classe, foi
orientado a ingressar nesta turma, por haver a professora que “auxilia”. Nesse caso, a
profissional considerada auxiliar na turma é a professora que atua como intérprete da LSB. O
jovem se destaca na escola por ser um ótimo desenhista e fazer trabalhos escolares com
122
cartazes e desenhos. Na turma ele foi bem aceito pela facilidade de desenhar: faz no quadro-
negro desenhos dos colegas e outros desenhos que lhe pedem, durante a troca de aulas.
Ser “bom” em alguma área como Artes, seja no desenhar, no operar instrumentos
musicais ou em outras especificidades, eleva o conceito da pessoa envolvida e a deficiência
visual ou auditiva leve torna-se sem relevância.
Mas o que é ser “bom”? De acordo com os depoimentos da turma da 6ª série, ser
bom significa fazer o que eles não fazem; desenhar pessoas e fazer outros desenhos como eles
próprios não sabem fazer. Isso faz o estudante ser identificado como “bom”, melhor que
muitos “normais”.
Bhabha (2005) aponta para “o processo da falta” (p. 89), no qual a relação do
sujeito com o “Outro” se produz. O estudante escreve demonstrando o início de um processo
de identificação como surdo na turma.
Para mim, ser surdo não é desumano, porque todo mundo tem seu jeito de
ser. As pessoas são iguais, mas são diferentes também. A língua de Sinais é
importante para se comunicar com as pessoas surdas (ÉLISON, 2007).
Esse estudante está aprendendo e tendo contatos com surdos a partir de setembro
de 2007. Estava por duas semanas na turma, quando foi proposta a questão sobre ser surdo. É
um estudante que fala, apresenta uma oralidade com pouca tonalidade, troca algumas letras na
pronúncia. A perda auditiva é leve e seu comprometimento maior é na visão.
As respostas dissertativas dos estudantes ouvintes, colegas dos surdos da 6ª série,
aparecerão sob a forma de discussão durante esta análise. Dos vinte estudantes que
responderam, dezoito qualificaram os surdos como normais e iguais a eles, “merecem respeito
e não têm culpa de serem assim”. Outros, responderam que eles “têm problemas, mas são
iguais a nós”.
Na contextualização do discurso de igualdade, de humano, respeito e estar junto;
Bhabha (2005) discute com Arendt
6
: “Minha intenção se dirige para outras articulações do
estar-junto humano, na medida em que elas estão relacionadas à diferença cultural e à
discriminação”(p.265). Nesse caso, é o discurso das forças hegemônicas. Os surdos são
inteligentes; cinco das vinte respostas afirmaram que os surdos são, muitas vezes, mais
inteligentes do que eles, os ouvintes.
6
A obra de Hannah Arendt é A condição humana.
123
Analisando esta afirmação, pode-se refletir sobre o quanto isto ainda é
impregnado no ver o outro como deficiente e incapaz. O colega surdo pode ser mais
inteligente que o ouvinte? Por que não? O fato de ser surdo o torna menos capaz de aprender?
Ele precisa é de um jeito diferente de ser ensinado, priorizando o visual no contexto dos
conteúdos. Bhabha (2005) aponta para o domínio da outridade e do social – em que “nos
identificamos com o outro exatamente no ponto em que ele é inimitável, no ponto em que se
esquiva da semelhança” (p. 257).
Algumas respostas traziam esse enunciado:
“O fato de ser surdo e saber tudo, saber quase mais do que eu.” Pelo menos em
dez respostas os ouvintes diziam que não queriam ser surdos; gostavam dos sinais, sabiam,
entendiam LSB, mas não queriam ser surdos, pois pensam que os surdos sofrem em não ouvir
e sofrem em tudo na vida. Algumas das representações levantadas pela observação se
confirmaram. Entretanto, não se almejava chegar ao ponto de que os ouvintes dissessem que
queriam ser surdos. Também não se esperavam reflexões como “somos iguais”, “eles
sofrem”, “é difícil demais ser surdo Kaingang”.
A representação dos surdos Kaingang na turma de 6ª série é vista como
natural. Os ouvintes têm respeito pelos surdos e pela própria língua de sinais. De vinte
respostas, apenas uma disse que eles são surdos-mudos. Isto é importante: não pensar o
surdo como mudo. A turma está em processo de aprendizagem sobre o ser surdo. Os
surdos conseguem se destacar por algumas habilidades, pelas participações e pela forma
de comunicação. O relacionamento de todos em sala é harmonioso e os surdos já não
passam despercebidos na turma e na escola, sendo presença como estudantes e como
surdos Kaingang. Bhabha (2005) afirma:
[...] transcender as contradições e ambivalências que constituem a própria
estrutura da subjetividade humana e seus sistemas de representação cultural.
A transcendência é sem dúvida marcada pelo “não falar” o oral, mas
constituída na LSB como outra estrutura de fala, a fala dos sinais com as
mãos (p. 43).
6.2.2 Funcionários da escola - servente, auxiliar e motorista
A escola é um espaço de muitas relações. Os estudantes surdos mantêm contato com
os professores, os colegas e também com os motoristas do transporte escolar, que se encontram
124
diariamente com o estudante surdo antes mesmo dos professores. Um registro de experiência
mostra este contato:
Observava sempre como eles se dirigiam até o ônibus na saída para casa, como
desciam quando vinham à escola, com quem estavam sentados. Um dia,
presenciei uma cena que me entristeceu. Era o horário do meio-dia e eu
precisava falar com a mãe de um estudante surdo que não havia comparecido
na reunião. Tomei o ônibus e fui junto com os estudantes até a comunidade em
que eles moravam. No retorno, o mesmo ônibus que levava os estudantes do
turno matutino já trazia os do vespertino. O ônibus vinha fazendo paradas para
apanhar os estudantes; em dado momento, embarcou um menino surdo e todos
se afastaram, deixando-o sozinho no banco. Tentei intervir, convidando alguém
para sentar, mas, como ninguém aceitou, sentei eu. O menino repudiou, mas
continuei sentada, sem manter contato, tentando conversar em LSB com os
ouvintes e ao mesmo tempo verbalizando para que entendessem o que
conversava, e assim fomos até a escola. Quando todos desceram, perguntei ao
motorista se o menino surdo sempre ficava sozinho e por que os colegas não
sentavam com ele. O motorista me disse que já foi pior, pois o estudante não
queria mesmo ninguém, gritava muito e era rebelde.
Nas observações feitas em agosto de 2007, percebeu-se que esse mesmo menino
agora vem brincando com todos e sentam juntos, até em três no banco; ele brinca com o
motorista na entrada e saída.
Em 2006/2007, a observadora/pesquisadora investigou, tamm com os
motoristas, o que pensavam sobre o ser surdo Kaingang.
Um motorista da 1ª Linha fez os seguintes comentários:
Sentia eles desorientados, afastados, atitudes rebeldes, eram tratados
diferentes. Hoje vejo que não! Eles mudaram. Estou nessa linha há 03 anos e
então os vi desde o começo. Agora são educados, comportados, entendem
mais. Não sei a LSB. Só algum sinal, cumprimentos. Gostaria de aprender os
Sinais. Se eu tivesse um filho surdo eu aceitaria a LSB. Faria de tudo para
aprender e dar o melhor para o filho surdo na comunicação através do sinal
(MOTORISTA, 2007).
125
Tempos depois, era significativa a mudança nas entradas e saídas destes
estudantes no ônibus. Quando o motorista relata que eram desorientados, é porque também na
sala de aula e em outros espaços eles se comportavam da mesma forma.
Para um motorista da 2ª linha, este é o primeiro ano de trabalho com a população
indígena e com surdos no ônibus, mas ele já teve contato com surdos antes: tem um irmão
adulto surdo, que não é Kaingang; a família é de italianos e não reside na aldeia.
Em seu depoimento, diz que os surdos sofrem muito sem entender e sem ouvir a
voz do outro, porque estão juntos, mas há comunicação. Só na escola eles são felizes,
porque contam com as professoras que os entendem. Diz que é preciso alguma atividade
diferente para eles nos recreios, já que eles sofrem muito. A opinião desse motorista fez
pensar e rever os recreios, a fim de observar sob outro olhar o que os surdos faziam nestes
intervalos.
Os serviços gerais da escola são realizados por cinco auxiliares. O único auxiliar
homem explica que tem pouco contato com surdos, mas que não vê diferenças entre eles na
escola. As mulheres auxiliares apresentam diferentes opiniões: Três delas dizem que sentem
muita pena deles, porque não falam. Duas consideram que os pais não podem com a vida
deles, pois são sem limites e até poderão bater nos pais. Todas concordam que estas crianças
eram piores e que estão bem nas aulas se comparado ao que eram no começo.
Bhabha (2005) propõe uma outra dimensão do “habitar”(p. 36) no mundo social,
definindo uma fronteira que está ao mesmo tempo dentro e fora, o estar de fora de alguém
que, na verdade, está dentro.
Segundo o olhar dos funcionários da escola, os surdos não fazem parte deste
espaço, não estão presentes como estudantes, mas estão presentes como representação, já que
são vistos como crianças especiais. Afirmam que as crianças da professora Sonimara não
são da escola, e sim da professora. Nesse caso, “é difícil ensinar e lidar com eles”. Por outro
lado, “eles aprendem e muitos aprendem até mais que os outros, que não são crianças
especiais”.
6.2.3 Na aldeia
No dia em que aconteceu a entrevista com os motoristas, havia, nos ônibus,
algumas mães de estudantes ouvintes. Quando se perguntou se tinham filhos surdos, parentes
126
surdos e se conheciam algum surdo na aldeia, as cinco mães que estavam aguardando o
horário para ir para casa disseram que não conheciam, não tinham parente e nem filho surdo.
Novamente a pergunta: as senhoras não conhecem? Nunca viram os surdos aqui na aldeia?
Aqui na escola? No ônibus? “Não”, elas responderam. Correto, essas mães não moravam na
sede, mas em comunidades próximas pertencentes à aldeia e vinham poucas vezes à escola.
Para Bhabha (2005), colonizado e colonizador fazem uso de uma tática chamada mímica, a
partir da qual se constrói uma imagem persuasiva de sujeito, com o objetivo de “apropriar-se
e apoderar-se do Outro”(p. 121).
Da mesma forma como foram entrevistados os motoristas, fez-se a enquete na aldeia.
Aleatoriamente foram ouvidas pessoas nas ruas e famílias, totalizando cinqüenta opiniões.
Nestas 50 entrevistas, 26 pessoas relataram que conhecem alguns surdos e sabem que
eles estudam na escola da Sede, que usam as mãos para falar e que alguns surdos também falam.
Outras 20 pessoas disseram não conhecer, não viram e não sabem de nada; 04 disseram que
sabem: eles estão por aí na Sede, antigamente também havia surdos, eles eram mudos e viviam
nas matas, sozinhos e abandonados depois de adultos. Viviam sozinhos porque queriam, não era a
família que mandava embora. Eles gostavam de sumir assim. Afirmaram muitas vezes que
antigamente os surdos eram mudos, mas agora não, eles são inteligentes e aprendem.
6.2.4 Nas famílias dos surdos
Chegou-se ao ponto mais esperado, devido aos acompanhamentos e depoimentos
dos pais desde o início do processo de escolarização. Agora se buscava ter certeza daquilo que
pais e familiares estavam pensando, se aceitavam e como reagiam ao processo. Para isto,
organizou-se uma visita às famílias. Neste trabalho, as casas dos estudantes são representadas
por letras, já que o objetivo não exige outra identificação.
Primeiramente, foram obtidos os depoimentos com famílias próximas à escola.
São três e moram na sede, entre 500 e 1000 metros de distância da escola. As demais moram
de 5 a 35 quilômetros de distância da aldeia sede.
Na família “de Amarildo”, a mãe nos recebeu com muita alegria e nos acomodou
num banco ao lado de fora da casa para a conversa. Foi explicado o motivo de estar na casa
dela e que a conversa fazia parte da pesquisa sobre o acompanhamento dos surdos na escola.
Questionou-se como ela estava percebendo o filho e se ela lembrava de quando foram feitos
os exames em Xanxerê para ver se ele era surdo. A mãe confirmou que o filho melhorou
127
muito de lá para cá: antes não gostava de estudar e nem de ir à aula, agora vai junto com a
irmã na mesma série (6ª série). Contou que a professora é muito boa e tem paciência para
lecionar com esse tipo de estudante. Afirmou estar contente com o filho, porque ele falava
enrolado e agora está melhor na fala, além de falar com os gestos.
O estudante da família “de Kaue” entrou esse ano para a sala dos surdos de 1ª a 4ª
série, proveniente de uma sala de ouvintes numa 2ª série. Pelo processo de aprovação, estava
nessa série, mas não sabia ler e era muito desatento. O exame de audiometria foi realizado
somente depois de um bimestre nesta turma. Durante a visita, a mãe demonstrou estar muito
feliz com o filho. Nessa nova turma percebe que ele aprendeu, já lê e escreve, sabe a
matemática, está mais calmo, gosta de ir à aula e sabe os sinais.
Professora, não quero tirar ele desta sala. Mesmo que ele fale um pouco e os
outros não. Os sinais ele já sabe bastante também. Aqui ele aprende. Na
outra sala tinha reclamação que ele era desatento, não ficava parado. Depois
que veio para esta sala não me incomoda mais. Ele aprende. Vocês,
professora, ensinam bem. Ele pode continuar aqui, né! ( Família Kaue 2007).
Esse menino repetiu o teste de audiometria e recebeu o diagnóstico de perda total
em um ouvido e perda leve no outro. Mesmo com o diagnóstico de não ser um surdo
profundo, a família prefere que ele continue nessa sala.
Seguindo as visitas, fomos à família “de Jucelei”. A família apresenta dificuldades
na educação do filho, a mãe nos recebeu um tanto desconfiada, não convidou para entrar e
nem para sentar. Iniciou-se conversa informal, até que pedimos para sentar, a fim de escrever
melhor. A mãe fez as seguintes colocações sobre o filho:
Não posso mais com a vida dele. Ele não gosta muito de ir à aula. Prefere
ficar no Rio brincando. Ou então ele sai com alguns adultos aqui da aldeia.
[...] Está bebendo, fumando e não obedece. Nós não sabemos mais o que
fazer. Aconselhei, mostrei as coisas para ele, ele não quer, não adianta.
Tenho medo que vire uma pessoa do mal. Vocês na escola me ajudem, o
conselho tutelar ou o Cacique. Não sei mais o que fazer. Acho que é porque
ele é assim surdo e não fala (FAMILIA de Jucelei, 2007).
Visitamos a família “de Maicon” de carona com um carro de funcionários da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que passaria por aquela comunidade. Chegamos a casa
quase às 11 horas da manhã, a mãe estava bastante risonha com nossa visita. Fazia muito
calor e se percebia o movimento de crianças no mato próximo a casa, brincando na água do
rio que passava pelo local. Todos, a maioria meninos, correram para o mato, pelados. Pedimos
128
a eles que voltassem e assim fizeram, saltando na água de barriga ou em mergulho, outros
sentados. Enfim, mostravam muita intimidade com a água do rio. O menino surdo não estava
nadando, só olhando. A mãe disse que ele nada, brinca e toma banho junto com os outros,
mas hoje ele só iria se lavar perto do meio-dia para ir à aula. Estava com um pouco de tosse,
por isso a mãe não o deixou na água. A conversa com mãe foi breve, mas muito prazerosa. No
ano anterior (2006), esta mãe já havia dado depoimento de que seu filho era “outro”:
Professora, a senhora se lembra de quando veio aqui para ver o [...] pela
primeira vez? Então ele era brabo, chorava muito, brigava, corria para o
mato e se escondia embaixo da cama! Pois depois que ele começou ir à aula,
aprendeu estes sinais, a professora Sonimara tem paciência com ele, ensina e
ele foi mudando. Agora é como se ele falasse, assim na fala. Ele não fala a
Língua, mas ele fala assim com as mãos, né, professora, a senhora sabe. Para
nós é como se tivesse nascido outro filho, outro filho que fala uma outra
língua das mãos (FAMÍLIA de Maicon, 2007).
Nesse dia, 08 de outubro de 2007, nossa conversa foi mais rápida, lembrando-lhe
da importância de o filho ter seu documento de Identidade. A mãe quis saber por quê.
Expliquei que o filho está bem, que agora ele é muito compreensivo, brinca e é feliz. A visita
objetivava encaminhar a documentação do menino, que deve repetir o exame de audição
BERA e fazer a Carteira de Identidade, então a família precisa também fazer a parte dela, isto
é, levar o filho para fazer as fotos e preencher os formulários que são necessários para o
Registro Geral (RG).
A conversa com a família “de Tainara” aconteceu no mesmo dia, visto que esta
mãe estava na Aldeia Sede para outros afazeres e aproveitamos para falar com ela embaixo da
sombra de uma palmeira. Assim, sentamos no chão e fumamos nosso cigarrinho. A conversa
fluiu com bastante naturalidade. Esta mãe é muito feliz por ter a filha surda, acha até que a
menina se destaca e sabe muito mais do que se fosse ouvinte:
(Nome da estudante) Não gosta de faltar à aula. Não tem jeito, ela pode estar
doente, ou eu quero às vezes sair com ela para outro lugar que eu precise ir
e ela não deixa. Em casa está sempre inventando uma coisa ou outra. Se a
gente, eu, o pai, o irmão, a vó ou outra pessoa que estiver lá em casa, não
entender ela e o que ela quer dizer, ela dá um jeito e faz entender. Ainda
quando não pega na mão da gente e ensina como fazer com os dedos ou
com a mão. Está sempre pela casa com os cadernos. Gosta de matemática,
pergunta o que tem escrito e quer que a gente responda certo e que ela
entenda. Na cidade não dá para sair muito com ela. Precisa ter dinheiro,
porque ela gosta de comprar, saber quanto pagou as coisas, por dinheiro ela
é louca para ter e gastar (FAMÍLIA de Tainara, 2007).
129
Para visitar a família “de Marcione” foi preciso pegar carona com um funcionário
público de outra prefeitura, porque a estudante havia se mudado para muito longe da sede,
mas ainda nas terras da aldeia, onde freqüenta outra escola com ouvintes.
É uma identidade subordinada com o semelhante surdo, como muitos surdos
narram. Ela se parece a um ímã para a questão de identidades cruzadas. Esse
fato é citado pelos surdos e particularmente sinalizado por uma mulher surda
de 25 anos: aquilo no momento de meu encontro com os outros surdos era o
igual que eu queria, tinha a comunicação que eu queria. Aquilo que
identificava eles identificava a mim também e fazia ser eu mesma, igual. O
encontro surdo-surdo é essencial para a construção da identidade surda, é
como abrir o baú que guarda os adornos que faltam ao personagem.
(PERLIN, 1998 apud SANTAR CATARINA, 2007, p.20).
Na família “de Natalia”, a pessoa surda não é estudante, é uma mulher surda da
aldeia. Ela anda pelos matos e dorme em uma casinha separada dos familiares. Visita a escola
raramente. Era a segunda vez que eu visitava a família dessa senhora. A primeira vez tinha
sido no início do processo de identificação dos surdos na aldeia. Na casa só havia uma
menina, cuja mãe estava na igreja; a senhora surda não estava. Fomos à igreja e a cunhada
dela nos respondeu o que lhe foi perguntado, dando o seguinte depoimento:
Ela gosta mesmo é de andar por aí [...]. Caminha o dia todo! Eu e ela se
entendemos, eu faço os gestos e ela entende. Às vezes ela é meio brava. Ela
vai à escola de vez em quando. Nunca estudou, não lê e nem escreve. Mora
com nós. Será feita uma casinha para ela nos fundos do terreno da minha
casa. Para Florianópolis não sei se ela vai com vocês. Mas pode que ela vá
(FAMÍLA de Natalia, 2007).
Quando do cadastro dos estudantes surdos em 2003, analisamos também outros
surdos adultos, entre os quais havia uma que chamava a atenção. Era uma índia surda, que só
sabia sorrir, ria de tudo e não compreendia o que era dito. Seus traços físicos eram bastante
deprimentes, andava pelas ruas sem rumo. Os pés descalços demonstravam muitas
caminhadas na mata, no barro, em pedras e espinhos, as mãos também estavam deploráveis.
(Ver fotos nos anexos)
Segundo as classificações de Perlin (2008), em seu texto sobre identidades,
muitos dos estudantes Surdos da aldeia e da comunidade podiam ser reconhecidos como
Identidades “Embaçadas”.
As identidades surdas embaçadas são outro tipo que podemos encontrar
diante da representação estereotipada da surdez ou desconhecimento da
surdez como questão cultural. Os surdos não conseguem captar a
130
representação da identidade ouvinte. Nem conseguem compreender a fala. O
surdo não tem condições de usar língua de sinais, não lhe foi ensinada nem
teve contato com a mesma. São pessoas vistas como incapacitadas. Neste
ponto, ouvintes determinam seus comportamentos, vida e aprendizados. É
uma situação de deficiência, de incapacidade, de inércia, de revolta. Existem
casos de aprisionamento de surdos na família, seja pelo estereótipo ou pelo
preconceito, fazendo com que alguns surdos se tornem incapacitados de
chegar ao saber ou de se decidirem por si mesmos. Na família a falta de
informação sobre o surdo é total e geralmente predomina a opinião do
médico, e algumas clínicas reproduzem uma ideologia contra o
reconhecimento da diferença. Estes são alguns mecanismos de poder
construídos pelos ouvintes sob representações clínicas da surdez, colocando
o surdo entre os deficientes ou retardados mentais (p. 128).
Na perspectiva atual, o surdo que está no processo de escolarização não se
encontra mais na classificação de “Embaçadas”. Ele é visto como pessoa, aparece como
“sujeito” e manifesta-se a sua maneira. Também apresenta vida múltipla, isto é, torna-se
sujeito com cultura própria, pessoa que em outros espaços está se constituindo como “povo”,
em espaço cultural que molda o sujeito.
Em quase quatro anos de implantação da turma e escolarização na LSB, a senhora
surda citada tem aparecido na escola algumas vezes, sendo que já diz “Oi” em Língua de
Sinais, compreende algum gesto e sinaliza tentando estabelecer uma comunicação.
A família “ GUIGA” também diverge das outras famílias visitadas. Nessa, o surdo
é a própria família . É um adulto de 44 anos, que é independente, tem casa própria e mora
sozinho. Ele trabalha no próprio território da aldeia, numa olaria, onde começou a visita.
Conversamos com um rapaz que trabalha com este surdo há oito anos. Queríamos saber como
ele o percebia no ambiente de trabalho e como eles se comunicavam. O rapaz informou que
não há problemas na comunicação, que conseguem interagir bem, tranqüilamente. Depois,
fomos à casa do senhor surdo e tentamos nos comunicar com ele, mas quase não nos
entendemos. Retornamos à olaria, no local de trabalho: o amigo sinaliza para ele ligar a
máquina, fazer os tijolos e ele faz. Convidamos ele e o colega de trabalho para viajar junto
com a turma para Florianópolis, o colega traduzia em gestos o que falávamos, acrescentando
que há muitos anos trabalham juntos e se conhecem.
Foram entrevistados dois surdos adultos, para se fazer um comparativo nas
referências sobre ser Surdo na aldeia. O senhor Surdo trabalha, tem amigos, é chamado pelo
nome no local onde mora e no trabalho, estabeleceu formas de comunicação e é um membro
atuante, enquanto que a senhora Surda vive na família, mas não faz parte da família. Sua
referência na aldeia é ser chamada de “Muda”. Quando se pergunta por ela, todos dizem:
131
“Está por aí!” Ela está sempre andando, não tem local fixo e aconchegante para ficar. Nosso
referencial primeiro, quando do início dos cadastros nas famílias dos surdos em 2003, foi essa
senhora e um menino que estuda na escola regular, com diagnóstico de deficiência mental.
Vendo eles dois com essas referências, pensou-se em formar a turma de surdos; no princípio
“Trilíngüe” e depois uma turma com Ensino em LIBRAS.
6.2.5 Pelos próprios surdos Kaingang
São oito, os estudantes surdos na escola. Na aldeia e fora da escola há mais uns
quatro adultos identificados como surdos. Durante a aplicação do Projeto de docência “Minha
Identidade”, a intenção era, como diz Bhabha (2005), fazer a “reinscrição” deles como
sujeitos “surdos-índios”. Por isso, muitas vezes, havia avanços e recuos nos conteúdos, de
forma que os conceitos realmente fossem assimilados na vida deles, não somente nos
cadernos. Há a fala de um menino que entrou este ano para a turma e se identifica como
surdo, apesar de apresentar uma surdez leve ou moderada. Consegue oralizar e aceita a sua
realidade, é muito tranqüilo em relação ao fato de ser surdo. Este menino lê e escreve
pequenos textos.
Souu Kaue Ronaldo, gosudo gosto. Gostodmora na aldeia. Qeuro cer
polislcia reporper. O texto dele: Sou Kaue Ronaldo, gosto de ser surdo.
Gosto (ser índio) Gosto de morar na aldeia. Quero ser Policial repórter
(KAUE, 2007).
Esse estudante é chamado de repórter, pelas professoras, porque ele é muito atento
ao que acontece na aldeia. Sabe de tudo, quer saber o que ainda não sabe, pergunta muito e
tem o olhar muito vivo, curioso e atento.
A outra estudante é Tainara, que diz:
Gosto de ser surda. Sou também Índia. Moro num lugar que tem pessoas
índios morando. Queria também ser ouvinte, falar. Mas sei LSB, sei os
Sinais Kaingang na aldeia-SKA. Tá bom. Gosto. Sou menina. Idade 11 anos.
Gosto estudar. Ano que vem 5ª série, junto muito estudantes. Tá bom. Só!
(TAINARA, 2007).
Essa estudante apresenta bom entendimento na LSB, assim como nos sinais feitos
na aldeia. É simpática, alegre, gosta de combinar roupas, calçados e bolsas. Estuda com
prazer, tem amigos na escola e está sempre atenta nos acontecimentos. Identifica-se como
132
surda e como Índia. Já foi em Fonoaudióloga, tentou falar e quis ser ouvinte, mas ficou
revoltada por não ouvir e não falar. Agora aceita ser surda e é partícipe com suas opiniões e
comentários nas aulas e na escola.
O estudante Maicon não quis tentar escrever. Oralmente, suas respostas foram:
Sou Maicon, moro na aldeia, moro com a família, eu sou Índio, sou surdo. 11 anos. Menino.
Quando as perguntas foram para a colega, Tainara, Maicon ficou olhando e praticamente
repetiu o que ela dizia, mas, para confirmar se ele tinha entendido, fiz para ele, em sinais,
“Sou menina, tenho 11 anos” Maicon riu dizendo “Não, sou menino e igual Tainara 11 anos.”
Estas são algumas situações de sala de aula, que fazem acreditar na escola, na LSB e na
própria razão de viver.
Maicon é menino de poucas palavras. Às vezes se isola, é arredio com os
acontecimentos, finge em sala de aula não estar interessado nas explicações, porém percebe-se
que ele está atento e não demonstra. Na triagem inicial, em 2003, apresentava diagnóstico de
deficiência mental. Era incomunicável com os estranhos. Escondia-se embaixo das camas, no
mato, atrás da mãe. Começou a vir à aula com muita resistência e era difícil ele permanecer na
sala. Atualmente, o estudante já está melhor, mas ainda falta ele se expor mais, participar,
querer aprender e acreditar em si mesmo para escrever, ler, fazer as atividades propostas. É
um estudante que faz pensar e rever estratégias visando a obter seu maior envolvimento.
Depois foi a vez do estudante Juscelei, que tem apresentado muitos problemas na
escola e na aldeia. Quando perguntado sobre ele ser surdo, desconversou, gesticulou com a
mão sinalizando não, rindo e virando de costas para mim. Tentou-se estabelecer uma conversa
com ele, revisando o nome, o sinal, onde mora, quem mora na casa dele, a escola, a professora
Sonimara e esta pesquisadora como professora deles. Repetindo-se as perguntas: “Você é
surdo?” Ele respondeu que sim. “Você é Índio Kaingang?” Ele respondeu que sim. Quando
perguntado se ele era índio e surdo, Juscelei maravilhosamente nos surpreendeu: sinalizou
surdo com os dedos indicador e o médio em cima da orelha e em seguida os mesmos dedos
tremulando em frente à boca, significando Kaingang. Esse momento foi, de fato, mágico!
Nascia assim o sinal de Surdo Kaingang.
Já disseram que aquele estudante difícil, aquele estudante que às vezes não dá a
resposta que queremos, pode ser o estudante que mais nos surpreenderá e que fará com que
continuemos a nos dedicar a nossa profissão - ser professora.
133
Os estudantes Silvana e Amarildo, cujos depoimentos estão citados na
representação na turma de 6ª série, assumem-se como surdos e demonstram satisfação por
usar a LSB e os SKA em sala de aula.
A Estudante Marcione está afastada da turma desde junho de 2007, pois a família
mudou de residência e comunidade. A menina estuda em outra escola indígena, junto com os
ouvintes, pois nessa escola não há o número de estudantes surdos (04) exigidos, segundo a
proposta do Estado de SC, para abrir a turma.
Na aldeia há alguns surdos adultos, com os quais conversamos, para saber como
se sentem sendo surdos. Nos relatos, um senhor disse que gosta muito de morar lá na aldeia,
reconhece que é Índio e Surdo, mas que não quer estudar e aprender LSB.
Outra surda adulta foi a senhora já citada anteriormente, cuja entrevista foi feita
com a cunhada. Ela não demonstra ter noção de tempo e lugar. Sinaliza que anda, anda, vai.
Mostra o mato, as casas. Enfim, não sabe. Percebe-se tristeza no olhar e no seu jeito de ser.
Mesmo sorrindo ela aparenta ser infeliz, abandonada.
Refletindo sobre o que vimos, ouvimos e acompanhamos no processo de
escolarização de estudantes e não-estudantes, mas surdos e índios, a análise confirma que sem
a LSB na vida deles, não seria possível esse olhar dos ouvintes. O olhar que olha e vê. Vê o
surdo Kaingang, a Língua de sinais como sendo uma forma de comunicar e aprender com as
mãos. Respeita o surdo porque ele vai à aula, aprende, é inteligente. Não o vê como “Mudo”,
ou o deficiente mental e também aquele que não consegue “se virar sozinho” na vida. Os
surdos ainda são vistos como pessoas especiais, mas não na conotação de deficiente; parece
ser num gesto carinhoso e de diferenciação sim, mas o diferente devido à LSB, assim como se
refere ao “especial” pela Língua.
6.3 PROJETO DE DOCÊNCIA “MINHA IDENTIDADE?”
[...] nossa existência hoje é marcada por uma tenebrosa sensação de
sobrevivência, de viver nas fronteiras do ‘presente’, [...] encontramo-nos no
momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras
complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior,
inclusão e exclusão. Isso porque há uma sensação de desorientação, um
distúrbio de direção, no ‘além’: um movimento exploratório incessante, que
o termo francês au-delà capta tão bem - aqui e lá, de todos os lados, fort/da,
para lá e para cá, para frente e para trás (BHABHA, 2005, p. 19).
134
Iniciou-se a coleta de dados para a pesquisa através de observações semanais.
Devido à complexidade do contexto, para conhecer a cultura e os sinais desses estudantes,
optou-se por atuar na docência. Para isso, estaria durante 40 horas semanais na escola, junto
com os estudantes, interagindo e observando os sinais da comunicação. Ao mesmo tempo,
continuaria instigando, provocando reflexões através dos conteúdos trabalhados em sala de
aula na turma com Ensino em LIBRAS e na compreensão e interpretação, nas aulas da 6ª
série, com os dois surdos maiores. Outra razão para assumir a regência de classe, foi o fato de
a própria pesquisadora estar em processo de estágio probatório no exercício de efetivação na
esfera estadual, como professora concursada.
Assim, foi necessário realizar a troca interna, entre escolas, na Secretaria Regional
de Xanxerê, com a professora Sonimara da Silva, professora Bilíngüe da EIEB Cacique
Vanhkre. A professora trabalhou durante estes meses na escola onde a pesquisadora é efetiva,
EEB Joaquim Nabuco, ocupando o seu lugar nas turmas, pois, do contrário, não haveria
tempo suficiente para acompanhar a turma de surdos no contexto e processo da pesquisa.
Outra razão para o exercício da docência foram as observações realizadas em
2006 e 2007, nas visitas à escola e às famílias e na festa do dia do Índio em 19/04/07, quando
fatos observados fizeram compreender que era preciso estar na aldeia e na escola para
apreender e registrar os sinais. A participação na festa do dia do Índio foi imprescindível para
conhecer as atitudes dos estudantes. Percebeu-se que somente um dos educandos assumia,
naquele dia, que era surdo; os demais evitavam se aproximar de outros surdos e das
professoras que eram fluentes na LSB. Partindo dessa observação, era possível entender que
esse dia para eles era o “dia do Índio” e não o “dia do surdo”, já que eles estavam confusos,
em suas Identidades.
Pela duplicidade de identidades – ora surdos, ora índios – e pelas línguas
envolvidas no processo de aprendizagem – LSB, os sinais próprios do Kaingang e o
Português (ambos falados e escritos) –, assumir a docência com esses estudantes era
fundamental. Estaria com eles e faria os registros dos sinais, nos momentos exatos de criação
e fluência, além de ter a oportunidade de trabalhar conceitos e conteúdos sobre a Identidade.
Não é somente a língua que muda ou o modo de vestir, mas também uma
forma de rever nossas leituras, às vezes tão estabelecidas e legitimadas (ou
por muitas vezes não) pelo contexto que vivemos (MARINHO, 2007)
135
Algumas reflexões foram feitas sobre Identidade. Por solicitação da escola e
atendendo ao PPP, haveria uma Feira Interdisciplinar e anual na instituição; em que todos os
professores atuam sob a forma de projetos. Estando na função de professora da turma, agora
professora da escola, tinha a incumbência de organizar e desenvolver um projeto, para
apresentar na feira.
Elaborou-se um projeto com o tema “Minha Identidade?”, o qual foi sendo
desenvolvido com a turma na escola diariamente, por três meses (maio, junho e julho), com a
participação direta da professora. Nos meses seguintes, a professora Bilíngüe e o professor
surdo continuaram a desenvolver este projeto na turma.
No decorrer da pesquisa e no exercício da docência, percebeu-se que um professor
surdo nesse meio seria uma referência para os surdos Kaingang, principalmente para os
meninos. Na escola, assim como na aldeia, a figura masculina apresenta-se como destaque no
que diz respeito às decisões, ao número de representantes homens nas lideranças e na
docência Os estudantes já tiveram contato com surdos instrutores, nos outros anos. Duas
vezes por semana, instrutores vinham à escola para trabalhar no ensino da LSB. Até então,
tinham vindo instrutoras, mulheres surdas. Agora eles tinham a possibilidade de ter um
instrutor homem.
Um novo projeto foi elaborado e enviado à Secretaria Regional, que liberou a
contratação. Em julho de 2007 foi contratado um professor surdo, que atua com os estudantes,
junto com a professora Bilíngüe Sonimara.
O segundo momento da pesquisa compreendeu os meses de agosto, setembro e
outubro. Foi possível observar de fora e registrar as falas de quem agora estava atuando na
turma. Os educandos tinham um homem como “modelo”: ele era surdo, era professor e essa
referência, tanto como profissional quanto na identificação masculina, era importante para
eles.
Havia um trabalho a desenvolver na escola, como docente e como pesquisadora.
Professora da turma e da escola, começaria por aplicar o projeto com os estudantes. O tema:
“Minha Identidade?”, possibilitava o processo de ir e vir. O tema era proposto em forma de
pergunta, a princípio simples no modo de ver, mas profunda no aplicar e no aceitar as
identidades.
Intensificou-se o trabalho com os estudantes, na tarefa árdua de identificação,
algumas vezes com avanços, outras com recuos. Os estudantes continuavam assumindo sua
identidade de surdos no espaço escolar, mais precisamente na sala de aula. Aspirava-se ver
136
em mais espaços esta identificação. Aos poucos, eles reconheceram o tema como a pergunta
do projeto: “Minha Identidade?”. Sinalizava-se de diversas formas, explicando: Identidade
documento? Identidade como se eu estivesse me olhando num espelho? Quem sou eu?
Identidade de quem nasce na aldeia? Um(a) índio(a)? Identidade de ser surdo? Menino ou
Menina? Enfim, esses contextos, quando trabalhados, adquirem tamanha grandeza para a
aprendizagem que até fica difícil explicar.
O tema permitiu a investigação e o resgate da vida dos estudantes e de todas as
relações em que estão envolvidos. Aliás, não somente a vida dos estudantes, mas tamm a
nossa própria vida e identidades (mulher, mãe, professora, pesquisadora, intérprete, filha,
sogra e outras).
O descobrir-se e descobrir o outro não é tão simples assim. Como Bhabha mostra,
há um novo que negocia, traduz e localiza contextos constantemente sendo modificados pela
presença do outro. Esse outro pode estar invisível no lugar a partir do qual olhamos nossa
prática artística, mas talvez seja necessário (e isso se faz no tempo constante, portanto, não se
finda) torná-lo visível, ou seja, revisitar as ideologias que permeiam nossos meios de
convívio. Bhabha (2005) afirma que
O direito de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio
autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo
poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e
contraditoriedade que presidem sobre a vida dos que estão em minoria
(p.21).
Estávamos naquele espaço construindo nossa identidade. Este que até o momento
não era o meu espaço, já que eu tinha minha agência em outro contexto e agora me agenciava
a eles. Muita dúvida tinha estado nesse espaço.
Bhabha (2005) coloca que, na passagem de
entre-lugares ou interstícios, abre-se “a possibilidade de um hibridismo cultural que acolhe a
diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta” (p. 22).
Os Entre-Lugares são os espaços da identidade, ainda que metonímicos, em que
Bhabha (2005) fala do Negro. Nessa pesquisa, fala-se do Índio e do Não-Índio, pois é assim
que são chamados na aldeia. Nosso espaço na escola também foi negociado: em alguns
momentos foi possível haver negociação, em outros ela foi impedida. O Entre-Lugares, esse
terceiro espaço, constituiu-se de momentos de interação e possibilidade de conviver e
aprender outra cultura.
137
O projeto sobre identidade é resultado de observações com a turma de surdos
Kaingang, na E.I.E.B. Cacique Vanhkre, situada na aldeia dos Kaingang, nas terras Indígenas
do interior do município de Ipuaçu.
Foram três anos e meio de acompanhamento da turma, com discussões e reflexões
com a professora regente, Sonimara da Silva e com os pais dos estudantes. Com o projeto de
pesquisa, concluiu-se que os estudantes precisavam rever questões sobre identidade e se
assumir no contexto de Surdos/Índios. Era preciso levar em consideração as atitudes desses
estudantes quanto a ser ou não ser surdos, índios Kaingang, usar LSB ou usar os sinais deles,
aprender a escrever Português ou Kaingang ou ambas as línguas. Era prioridade trabalhar
mais diretamente com os estudantes, decifrando conceitos, refletindo sobre os conteúdos
escolares e observando como aconteceria o processo de identificação.
Eis o tema: Minha Identidade? Em forma de pergunta para questioná-los e
problematizar: quem são eles nesse universo de índios surdos, de crianças, de jovens e
adultos? Eles como pessoas, na família, na aldeia, na cidade, na região, no estado, no Brasil e
no mundo.
Traçaram-se os objetivos e planejaram-se as atividades de ensino e aprendizagem
de forma aberta e flexível; estratégias foram pensadas para atingir os objetivos, usando
instrumentos facilitadores de exploração visual e com praticidade para garantir o
envolvimento dos estudantes, por completo, numa construção coletiva e com avaliação
constante. Esse projeto de docência pretendia estar o tempo todo com o olhar voltado aos
sinais que emergiam. Os registros só seriam feitos após compreensão e reflexão com os
sujeitos.
Foram estabelecidos os seguintes objetivos:
Objetivo Geral:
¾ - Promover a reflexão sobre a Identidade de cada estudante, na escola, na família
e na aldeia, observando os sinais utilizados por eles no contexto.
Objetivos Específicos:
¾ - Identificar-se individualmente;
¾ - Resgatar a história na família;
¾ - Levantar representações na escola;
¾ - Conhecer e explorar o lugar onde vivem.
138
Atividades de Aprendizagem
Identificação Pessoal:
¾ Apresentação pessoal-dialogada-gesticulada em círculo.
¾ Apresentação pessoal escrita no quadro.
¾ Recortes significativos de revistas.
¾ De que gosto e não gosto.
¾ Montagem de um painel.
¾ Desenho de minha identificação.
¾ Palavras que me identificam.
¾ Produção de um texto pessoal.
¾ Características - medida, peso, cor e altura - de cada estudante.
¾ Nossas famílias, quem são?
¾ Fazer o documento de identidade de cada estudante.
¾ Pesquisar o documento de origem de cada um: certidão de nascimento e certidão
indígena.
¾ Refazer o exame de audiometria na fonoaudióloga.
¾ Encaminhar carteirinhas de Passe Livre para surdos.
¾ Trabalhar o corpo humano, como conteúdo e identificação pessoal.
Identificação na Escola:
¾ A escola em nossas vidas. Dialogar e discutir sobre há quanto tempo estão na
escola.
¾ Resgate de fotos e registros sobre a escola e sobre a turma em LIBRAS.
¾ A função das pessoas na escola (direção, secretaria, professores, estudantes,
serventes e merendeiros).
¾ Quantas pessoas estão na escola?
¾ Elaborar gráfico.
¾ Produzir texto coletivo sobre a escola.
¾ Fotografar a escola e as pessoas em suas funções.
¾ Identificar quantos desses professores e funcionários são índios e quantos são os
não-índios que trabalham na escola.
139
Identificação na Aldeia:
¾ Localizar, no mapa.
¾ Investigar a origem do nome do município.
¾ Estudar a história do povo Kaingang.
¾ Dramatizar a história, trazendo-a para as festas populares.
¾ Visitas na comunidade.
¾ Fotografar fatos importantes no cotidiano.
¾ Elencar costumes e tradições que o povo Kaingang ainda preserva.
¾ Participar da Feira Interdisciplinar na escola, trazendo os resultados das
atividades desenvolvidas nesse projeto.
Estratégias Sugeridas Para Aplicação:
As atividades serão sugeridas de forma que possam envolver as demais disciplinas
com outros professores. Os planos de aula envolverão todos, no mesmo tema: Minha
Identidade? As disciplinas envolvidas, ministradas por outros professores, são: Educação
Física, Artes e Kaingang. As demais disciplinas serão ministradas pela professora executora
do projeto numa perspectiva interdisciplinar, isto é, os estudantes terão somente um caderno
para todas as atividades e disciplinas.
As estratégias sugeridas serão construídas pouco a pouco com os próprios estudantes,
numa avaliação contínua e com possibilidades de avançar e recuar nos conteúdos, dependendo do
desempenho e interesse da turma. Há a intenção de realizar, na escola, um curso de fotografia em
lata, em parceria com a casa da Cultura de Xanxerê, sendo que esse recurso será usado para
fotografar o contexto do projeto (famílias, escola e os educandos, individualmente). Terão
prioridade as atividades voltadas à exploração visual e confecção de cartazes, fotos, visitas,
passeios, exploração de documentos, recortes, dramatização, confecção de artesanatos, atividades
escritas de alguns conteúdos no caderno, em Português e Kaingang.
Recursos Utilizados:
A previsão de materiais, indicada neste primeiro momento, solicita materiais
cotidianos da escola (lápis, caderno, borracha), além de cartolina, revistas, jornais, livros de
histórias, vídeos, máquina fotográfica, materiais para o artesanato, latas e outros.
140
Avaliação:
A avaliação é constante e voltada à interação com as atividades propostas,
considerando a LSB e os novos sinais que surgem no decorrer das aulas e dos conteúdos. O
olhar nesse projeto é para a criação do sinal no contexto e o seu registro. O Projeto visa
trabalhar a Identidade e, nesse sentido, todos os esforços estão voltados para uma metodologia
que contemple o encontro do grupo com suas múltiplas facetas: estudantes, surdos, índios
Kaingang, além da questão de gênero e de classe.
Minha Presença como Docente nas Turmas e as Interações com as Atividades de
Aprendizagem:
Iniciei o trabalho na EIEB Cacique Vanhkre numa segunda-feira. No período
matutino, fiz a interpretação com a turma da 6ª série. Na aula de Artes, logo aconteceram os
registros dos sinais, o que foi de muita relevância para a pesquisa e para meu entendimento
sobre o artesanato na aldeia. No período vespertino, comecei a aplicar o projeto, mas os
estudantes eram bastante tímidos e os objetivos não avançaram neste dia. Depois da minha
apresentação, eles foram aos poucos participando e fazendo também a apresentação dos
colegas mais tímidos. As atividades nesse dia surgiram das apresentações. Falei de mim, fiz
algumas brincadeiras, contei a história da minha vida de forma que eles achassem graça – o
sinal no meu rosto e como ele havia sido adquirido, algumas malandragens que fiz quando
criança. Recortamos gravuras de coisas das quais gostávamos e outras de que não
gostávamos, expusemos e explicamos um para o outro, colando em um cartaz grande. Muitas
fotos foram feitas, fato que fez os estudantes gostarem muito e se apegarem mais à atividade.
O espaço físico da sala de aula era o mesmo para os dois turnos. A sala era ampla
demais; por isso, já nesse primeiro dia solicitei uma menor à direção, que prontamente sugeriu
a sala que já era utilizada pela turma há dois anos.
Na manhã seguinte, houve um intervalo em que começamos a mudar os materiais
e a organizar a sala para o período da tarde. Quando os estudantes chegaram à tarde, já me
ajudaram e, juntos, arrumamos tudo. Nessa tarefa meu olhar triplicava: ansiosa, eu precisava
ver os sinais Kaingang.
Os demais estudantes da escola espiavam a nova sala e alguns perguntavam se era
ali que estudavam os especiais. Nesse momento percebeu-se que era importante haver uma
identificação na porta. Então, os estudantes desenharam as próprias mãos em uma folha
grande, onde escrevemos “Turma Bilíngüe”.
141
Com o passar do tempo e das aulas, exploramos o máximo de cada um nas
modalidades de desenho, escrita, recortes, textos coletivos e individuais. Na matemática e
outras disciplinas, tentávamos fazer com que os conteúdos estivessem alinhados, traçados e
ligados, objetivando sobretudo a compreensão do conceito, acima de qualquer atividade.
Após duas semanas de convívio com a turma, começamos a estudar o corpo humano,
visto que na turma as idades eram bem díspares. De modo simples, no próprio corpo, foram
identificando as partes e desenharam um ao outro no chão. No material concreto (esqueleto
anatômico), os estudantes observaram melhor o corpo por dentro, reconhecendo partes e órgãos.
Um dos meninos estava em plena fase da adolescência e outro havia me dito um dia
antes que ele fazia sair “agüinha do pênis”, referindo-se à masturbação. Precisava trabalhar sexo e
sexualidade. Na aldeia, é natural casar-se cedo, tanto homens quanto mulheres.
Estudamos as partes do corpo, o que temos em cada parte, a função de cada órgão
e chegamos aos órgãos genitais. Esperava que o grupo expusesse suas dúvidas e assim
aproveitaria para esclarecer o assunto a partir da curiosidade deles.
Havia estudantes com oito anos, assim como tinha outros com dezesseis anos e
que já transavam, o que complicava na hora de falar sobre o assunto. Com toda a turma,
expliquei o básico sobre a reprodução, o namoro, as diferenças entre homem e mulher e sobre
como o corpo vai se modificando. Os olhos dos estudantes brilhavam e “se os olhos deles
brilham, os nossos enquanto professores com certeza dilatam” (grifo meu).
Na tarde seguinte, surgiu a oportunidade de os estudantes assistirem a um filme
com as outras turmas. Aproveitei o momento para encaminhar os estudantes menores,
solicitando que os outros ficassem mais um pouco na sala. Retomei aquela fala da “agüinha” e
daí sim o assunto foi totalmente aberto e explicado em detalhes: gravidez, doenças, amor,
prazer, casamento, sexo e masturbação. Como na aldeia é considerado normal casar com
menos de 16 anos, muitas meninas são mães antes de completarem 15 anos. Também é
considerado normal os meninos iniciarem a masturbação muito cedo, entre oito e onze anos e
se exibirem aos outros meninos menores. A intenção era que eles entendessem um pouco mais
sobre as modificações do corpo, a idade, a vida sexual, estudar antes de casar, porém essa
visão era a da professora não-índia.
Prosseguiu-se nas atividades sobre o corpo nas identificações pessoais que o
conteúdo favorecia, estudando sobre os sentidos, as sensações e a funcionalidade, assim como
uma breve iniciação sobre o nosso cérebro, sempre com a preocupação de aproximar o
142
conteúdo do real e do visual. Nessa perspectiva, trabalhar os sentidos incluía estudar a
audição, a orelha e o que cada estudante ouvia.
Essa identificação partiu do formato do rosto, dos olhos, cabeça, cabelos, pele, a
boca, a língua, os dentes (quantidades e cuidados). Quanto mais esclarecimentos sobre os
conteúdos, mais avançávamos na compreensão dos conceitos, o que os tornava muito
interessantes. Estávamos trabalhando com o nosso corpo, com as nossas características. Em
sala de aula era testado também o que se ouvia fora. Os estudantes novamente se deparavam
com o não-ouvir, que trazia à tona o “ser surdo” e não o “olhar na surdez”, importante para o
reconhecimento e a identificação que se buscava.
Outro conteúdo que propiciou vários conceitos foi o paladar. A boca com uma
gama de possibilidades, entre elas o exercício da “fala”. Na turma há estudantes que falam,
outros que nem balbuciam. A fala apareceu relacionada às funções da boca, por isso os
estudantes tentavam pronunciar as palavras, assim como faziam nos testes de audição para
entender o que cada um conseguia falar e ouvir. A boca foi estudada não somente como uma
via para a fala, mas com um conjunto de funcionalidades. Quanto aos dentes, investigou-se a
quantidade, os nomes, trocas e funções. Depois, a língua como órgão essencial à alimentação
e sobrevivência, através do reconhecimento dos sabores: o doce, o salgado, o azedo.
As atividades continuaram com os demais sentidos: a sinestesia (sensação em uma
parte do corpo, produzida pelo estímulo em outra parte), assim como tato, visão e olfato.
Sempre atentando para o significado, não para a falta da audição e nem da fala, mas no que é
próprio e no que é possível entender através de nossos sentidos.
Quando da atividade sobre a audição e o ouvir, olhamos o exame de audiometria
de alguns e o BERA de outros. Também havia uma foto do dia em que eles foram à cidade de
Xanxerê fazer esses exames para o ingresso nesta turma, em 2003 e 2004. Buscava-se em
todos os momentos a “identificação” e nesse momento o olhar era outro para os estudantes e
para a pesquisadora.
Trabalhou-se durante muitos dias com estes conteúdos, que favoreciam ações para
explorações significativas dos conceitos. Foi assim com o tato e outros sentidos.
Partindo do alfabeto, foi trabalhada a seqüência padronizada das letras, tanto no
português como em LSB. Os nomes dos estudantes escritos com as letras do alfabeto e o que
eles haviam apontado para os gostos de cada um. Sendo assim, o “A-a” não era só sinal
gráfico, mas era em LSB, em Kaingang e era a letra inicial das palavras que eles tinham
escolhido: aldeia, água, amor e árvore. Também era necessário reconhecer que a letra ‘a’ não
143
começava as mesmas palavras no Kaingang e no Português. Assim, faziam-se atividades
visuais com essas palavras, que foram sendo discutidas e significadas pelo grupo.
Apresentada a palavra água, eles imediatamente mencionavam rio, nadar, brincar, lavar.
Mais raramente beber, tomar, fazer comida, lavar casa. O mesmo foi feito com todas as
demais palavras.
Os conteúdos foram desenvolvidos a partir das palavras escolhidas por eles e
direcionadas por mim. A letra “n”, por exemplo, foi relacionada à palavra número, então
trabalhamos os números, medidas, idades, pesos. Com o “f” (família, fogo, festa), identificou-
se cada pessoa da família (avó, avô, mãe, pai, filhos, tios, irmãos mais velhos, mais novos,
nenê).
Os objetivos traçados no projeto e a observação dos sinais continuavam sempre
presentes nestas atividades e assim foi sendo desenvolvido o projeto “Minha Identidade”? As
palavras no contexto – o “i” de Identidade, idade, Índio, irmão – ligavam-se à vida de cada
um e às relações que estabelecemos com as pessoas.
Todas as palavras trabalhadas foram expostas no dia da Feira Interdisciplinar na
escola, com a exposição de fotos e as línguas em que elas são escritas e entendidas,
visualmente. Este projeto também será exposto no dia da defesa deste trabalho, na UFSC, no
hall de entrada do auditório do CED.
A proposta de docência na turma com Ensino em LIBRAS estava focada na
Identidade, que abrange a identificação pessoal, escolar e na aldeia. Muitos dos conteúdos já
haviam sido desenvolvidos com a professora-regente, mas nosso projeto talvez tivesse um
outro enfoque, visto que exigia a participação deles como sujeitos.
Assim como no momento do segundo exame de diagnóstico de surdez, quando
eles sabiam o que e para que estavam fazendo, também frente aos conteúdos a participação
agora se dava com consciência.
No início da escolarização, o grupo estava conhecendo e aprendendo muita coisa,
tudo ao mesmo tempo: socialização, LSB, os amigos, a escola e outros. Agora era diferente,
pois já tinham todos estes conceitos assimilados e então podiam concretizá-los, tornando-os
ações, em atitudes da vida diária.
O que tratávamos e almejávamos era essa nova compreensão de um eu, que não é
somente um eu sozinho, mas um eu e o outro. É o eu e outros em mim mesmo. Foi
vislumbrando possibilidades e descobertas de identificação que o projeto foi aplicado.
144
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
[...] Onde se traça a linha divisória entre as Línguas? Entre as culturas? Entre
as disciplinas? Entre os povos? (BHABHA, 2005, p.97).
Chegar a essa fase na apresentação da pesquisa, sob a forma da dissertação, não
foi tarefa fácil. Porém, difícil também foi finalizar a pesquisa de campo, visto que a
pesquisadora estava envolvida com o contexto escolar, com os estudantes e a comunidade
local.
Esta pesquisa chega aos registros finais com alguns questionamentos considerados
naturais, porque se trata da Língua como identificação de uma população que é minoria. Os
sinais Kaingang registrados e apresentados trouxeram a possibilidade de discutir e analisar a
influência cultural, além de entrar em contatos com sinais diferentes e outros que são
entrelaçados com a LSB.
Os sinais Kaingang na aldeia – SKA, como ficou sendo chamado – remetem o
olhar para quem sinaliza: os surdos; porém, a história que antecede a escolarização destes
estudantes aponta para o fracasso escolar e pessoal, o surdo visto como “Mudo”, deficiente,
excluído digno de cuidados. A LSB trouxe a possibilidade de uma comunicação estruturada,
de uma Língua e de uma identidade.
Acredita-se que esta nova Identidade ficará para sempre, a do novo filho, já que agora
os estudantes surdos têm outra lógica de representação na escola e na aldeia. Pela lógica
apontada nas entrevistas e questionários; os surdos são especiais. Já não são considerados
mudos, eles falam uma Língua que não é a oral, mas é por sinais, é com as mãos.
“Finalizamos” partindo da premissa que guiou o nosso olhar – a cultura, durante esta
trajetória de vivências, de docente e de pesquisadora como alguém que acredita nas possibilidades
dependendo das oportunidades. Além de levantar e investigar o problema, era importante olhar
também para o que sinalizavam e seus significados: “Que elementos culturais constituem a
identidade dos surdos Kaingang e em que contexto os sinais lingüísticos de comunicação dos
surdos se legitimam e se entrelaçam com a Língua de Sinais Brasileira?”
145
Os sinais, mais que um jeito de expressar, são o próprio jeito de ser. Como
sinalizar o nenê embalado no colo, como na LSB, se na aldeia poucos embalam nenê deste
modo? E ainda, por que sinalizar banho, como na LSB, em pé, embaixo de chuveiro? Na
aldeia, o banho é tomado no rio, na fonte, no tanque, na sanga. Neste sinalizar está a
legitimidade dos sinais Kaingang que procurávamos, no espaço de vivência e relevância para
eles.
A análise, no decorrer da pesquisa, direcionava a lente para mais longe,
envolvendo o contexto. Se o sinal trazido para a escola por estudantes surdos é percebido e
aceito pelos demais, tornando-se parte do vocabulário dos surdos, então, o que sinalizam faz
sentido e tem proeminência nesta aldeia. Como entrelaçam com a LSB? Sinalizam com uma
forma de comunicação gestual, visual e cultural, importante para a aprendizagem e a
identificação pessoal/cultural. Hoje, os surdos Kaingang estão num processo de criação de
sinais.
No primeiro momento, sinalizavam para estabelecer comunicação com seus
familiares; em seguida, tiveram acesso à LSB, uma Língua reconhecida, estruturada
gramaticalmente. A LSB deu o sentido à comunicação que então servia apenas para entender
e ser entendido. Ancorados na LSB, conseguiram se entender e compreender os conceitos
básicos nos conteúdos trabalhados com a LSB como L1. A seguir, partindo dessa relação dos
sinais deles com a LSB, foram criando outros sinais indispensáveis ao seu contexto.
A fase de aprendizagem acompanhada foi um processo magnífico, porque houve a
interação e conversação fazendo o entrelaçamento da LSB com o SKA. A comunicação dos
sinais foi compreendida, a ponto de gerar ‘ressignificações’ para os sinais, como os que
envolvem gênero e classificação. Observamos que há o uso considerável dos Classificadores
(CL, na LSB), talvez devido a estas construções de sinais na aldeia, na lida com a Língua que
os faz sujeitos identificados como surdos Kaingang.
Uma questão que agora surge é se os sinais Kaingang (SKA) têm futuro como
Língua ou se a tendência é desaparecer, devido ao contato destes surdos com outros, fluentes
na LSB. Pode-se dizer que o SKA tem futuro como um outro jeito de sinalizar, entrelaçado
com a LSB. Não existe um estudo da Lingüística sobre a estrutura destes sinais como Língua;
o que existe é a fluência e a funcionalidade deles na aldeia. Talvez o SKA possa ser estudado
por pesquisadores da área da Lingüística e outros, numa análise mais detalhada da Língua
Kaingang, levando em conta também a possibilidade de haver sinais com empréstimos da
146
Língua Oral Kaingang. A pesquisa apresentada nesta dissertação é o marco inicial nos
registros dos sinais destes surdos indígenas.
Considera-se que os objetivos propostos foram atingidos; tanto os explícitos no
projeto de pesquisa, quanto os implícitos. Para a concretização destes últimos, ainda que não
registrados no trabalho, houve a mesma determinação e empenho que para os demais. Um destes
objetivos representava um grande desafio: o de deixar registrado, na história da educação de
surdos de SC e do Brasil, o fato de que, na região Oeste de SC, no sul do Brasil, existem surdos
Kaingang os quais utilizam a LSB e ainda têm sinais próprios da aldeia, que ora conseguem
ressignificar, criando novos sinais.
Algumas perspectivas pessoais também se realizaram: estar numa Universidade
Federal, estudar numa Linha de Pesquisa em que se discutisse e tivesse contato com surdos
adultos, acadêmicos (os colegas surdos da turma 2006), além de ter como co-orientadora
Gladis Perlin, a professora Ronice Quadros, Marianne entre outros, que até a entrada para o
mestrado eram consideradas “mitos” “utopias”.
Nesta introspecção inclui-se a pessoa do professor-pesquisador. Paulo Freire, na
sua descrição de escola, fala deste espaço onde tudo acontece, pois é o lugar de gente, e gente
faz histórias e constrói narrativas.
A Escola
Escola é...
O lugar onde se faz amigos,
Não se trata só de prédios, salas, quadros,
Programas, horários, conceitos...
Escola é, sobretudo, gente,
Gente que trabalha, que estuda,
Que se alegra e se conhece, se estima.
O diretor é gente,
O coordenador é gente, o professor é gente,
O estudante é gente,
Cada funcionário é gente.
A escola será cada vez melhor
Na medida em que cada um se comporte como colega, amigo, irmão.
Nada de “ilha cercada de gente por todos os lados”.
Nada de conviver com as pessoas e depois descobrir
Que não tem amizade a ninguém,
Nada de ser o tijolo que forma a parede,
Indiferente, frio, só.
Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,
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É também criar laços de amizade,
É criar ambiente de camaradagem,
É conviver, e se amarrar nela!
Ora, é lógico...
Numa escola assim vai ser fácil
Estudar, trabalhar, crescer,
Fazer amigos educar-se,
Ser feliz.
Paulo Freire (2007)
A pesquisa proporcionou esta experiência de atuação numa escola indígena,
podendo perceber e vivenciar muitas situações antes inimagináveis, como a de uma formação
na qual foi possível conhecer outras teorias e compreender o conceito de Interculturalidade,
através do Professor Orientador Reinaldo M. Fleuri. Apaixonar-se pela pessoa deste ser
humano que consegue ser coerente vivendo no mundo globalizado, ter a chance de estar junto
dele e tentar assimilar um pouco desta sabedoria.
Sabedoria foi o que também encontrei nos professores com quem tive contato nas
demais disciplinas, assim como nas leituras de Homi Bhabha, ao conhecer um pouco da teoria
do pós-colonial. E recebi a compreensão e dedicação de todos os que atenderam a meu pedido
para compor a banca.
Foi fundamental poder contar com muitos amigos nesta trajetória, seja por me
ajudarem na metodologia e revisão dos textos, seja por estarem presentes e indispensáveis,
como Sonimara da Silva, os amigos do grupo Mover e demais professores das escolas por
onde passei.
Concluir a dissertação foi uma vitória, não somente para a minha pessoa e nem
por um título de Mestre, mas também por todos os que aqui do interior do estado de SC não
conseguem continuar estudando. Também foi a vitória de todos que torceram por mim e
acreditaram: meus amigos, professores, meus familiares todos e principalmente a minha mãe,
professora aposentada que tantas vezes sofreu por eu não ter estudado na minha juventude.
Só tenho a acrescentar que finalizo com muita alegria e orgulho por cumprir com
esta meta estabelecida. Obrigada a todos!
La Solidaridad no se agradece
Se retribuye
(Anistia Internacional)
148
149
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José: FCEE, 2004. Disponível em: <http://www.fcee.sc.gov.br/> Acesso em nov. 2007.
SILVA, Edna L. Metodologia da pesquisa e elaboração de dissertação. 3 ed.,
Florianópolis: UFSC. 2001.
SILVANA. Questionário aplicado na Escola Indígena de Educação Básica Cacique
Vanhkre. Aldeia Sede de Ipuaçu, Ipuaçu, Santa Catarina, set.2007.(registro escrito).
SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In:
ABDALA JÚNIOR, Benjamin (Org). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo &
outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004.
TAINARA. Texto feito em sala de aula na Escola Indígena de Educação Básica Cacique
Vanhkre. Aldeia Sede de Ipuaçu, Ipuaçu, Santa Catarina, julho 2007. (registro escrito)
VILELA, Barbosa Genivalda. Histórico da educação do surdo no Brasil. Disponível em:
http://www.fonoaudiologos.net. Acesso em: 29 dez. 2007.
VIRGINIA, Maria. Entrevista concedida no curso de capacitação. Aldeia Sede Ipuaçu.
Ipuaçu, Santa Catarina, julho 2007. (Depoimento Oral).
WIKIPEDIA. Cainganges. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Kaingang>
Acessado em out. 2007.
152
APÊNDICES
153
Apêndice 01 – Um conto
“Pesquisador é mesmo curioso”
Dizem que todo pesquisador deve ser curioso, mas nem tanto! Convivendo e
pesquisando numa aldeia Kaingang, na região oeste de Santa Catarina, estava curiosa para ver
um enterro feito por este grupo aos seus entes queridos.
Passaram-se quase dois meses e nada. Até que um dia o esperado aconteceu e,
junto com os estudantes da escola e mais professores, fomos nós para a cerimônia. Justo neste
dia eu estava sem a minha máquina fotográfica; recorri à escola e, com a máquina emprestada
em mãos, fomos para o local. Estranhei porque havia poucos estudantes na sala, mas assim
mesmo nos dirigimos por um atalho para chegar ao cemitério.
Neste atalho fomos encontrando muitas coisas dignas de registro e fotografamos.
Chegando ao cemitério, ficamos olhando uma cova e outra e logo identificamos um senhor
preparando um túmulo que seria o do falecido. Aguardamos por ali, meus estudantes surdos
vendo quem estava enterrado nas sepulturas e me explicando quem foi este, quem foi aquele,
enquanto eu fazia fotos, aproveitando todos os sinais que eles me apresentavam.
Uma senhora entrou e logo me disse que ali estava enterrado o homem que
puxava a festa do Kiki: “A senhora pode olhar as abelhas. Elas fizeram mel e estão junto com
ele. Olha, o túmulo rachou e tem muitos favos de mel. Lá no Pinhal, em outro cemitério, está
enterrada a mulher que acompanhava ele nas festas e tamm tem abelhas e mel. É porque
eles faziam a frente da festa e usavam mel para adoçar a bebida.”
O cemitério tinha muito que bisbilhotar: um cacique enterrado que havia sido
morto por uma emboscada, histórias de almas que aparecem, cruzes de troncos, covas com
quatro ou cinco pessoas da mesma família enterradas, covas feitas todas com a cabeça virada
para o lado em que o sol nasce e os pés para o poente. Assim aguardávamos.
Estávamos apreensivos pela chegada do senhor que havia falecido, já estávamos
lá esperando há um bom tempo. Enfim, uma estudante surda avistou o cortejo que vinha a
mais de três quilômetros e sinalizou, mostrando de onde vinha. Nosso objetivo era conhecer
os sinais que os surdos Kaingang faziam com relação à morte, visando o contexto cultural da
aldeia.
154
O cortejo foi se aproximando do cemitério: em frente, o carro funeral branco, logo
em seguida outros carros e um caminhão vermelho, cheio de pessoas em cima, o qual se
encostou em um barranco para que descessem e também já ficasse virado numa descida para a
partida. Por último estavam os pais da estudante surda, montados numa moto.
O caixão foi retirado do carro por homens vestidos de verde e branco, camisetas
do time da localidade, numa homenagem ao falecido amigo e patrocinador, que também era
juiz de futebol. Eu não perdia os momentos e fotografava, mas com um pouco de receio, pois
não havia pedido licença a ninguém da família.
O cortejo foi entrando e eu me afastei para pedir licença para fotografar. Fiquei
um pouco longe do caixão e, meio sem jeito, perguntei a um rapaz onde estava a viúva. Atrás
de mim, uma senhora mais velha me respondeu “Eu?” Perguntei: “Ah, a senhora é a viúva?
Será que posso tirar umas fotos?” Ela só confirmou com a cabeça.
Neste momento, um filho que estava bem junto ao caixão, me chamava com a
mão, dizendo: “A senhora tire foto aqui, pode tirar.” Aproximei-me e era visível o grau de
embriaguez do filho. No caixão estava a bola de futebol em meio às pernas do senhor
falecido, a bandeira do time cobria o restante do corpo.
Misturada às pessoas que se despediam e olhavam pela última vez, fui fazendo
fotos. Nesta aproximação percebi que havia outros estudantes surdos e familiares no enterro.
O senhor falecido era parente de três deles. Cumprimentei e contei que não sabia que eles
estavam no velório. Eles justificaram a ausência em aula e explicaram que o morto era tio,
primo, parente e fizeram o sinal com a mão na boca como se estivesse com o apito na boca.
Fotografei os estudantes e os sinais durante a explicação sobre o parentesco.
Registrei algumas fotos do falecido meio de longe, procurando não focar o rosto e outros
detalhes que o identificassem. Estava com receio em meio aos Kaingang, encabulada e me
sentindo mal, pois era uma situação nova, constrangedora. Mas necessária.
A cerimônia foi simples, não houve reza e nem muita amarração na despedida.
Fecharam o caixão e logo todos foram saindo depressa. O caminhão já roncava na estrada e
todos rapidamente embarcavam; alguns até subiram com o caminhão andando. Eu
fotografando tudo.
Confesso que achei diferente a maneira como saíam do local. Tão rápido!
Partimos também do cemitério com algumas pessoas da aldeia, professores e estudantes em
direção à escola. A mãe da estudante surda nos acompanhou e, durante a conversa, perguntei
155
se era sempre assim rápido um enterro. Ela respondeu que sim, pois eles têm um pouco de
receio de cemitério, que não é lugar bom para ficar muito tempo.
Chegando à escola, entreguei a máquina para o técnico pedagógico que trabalha
na secretaria. Fui para a sala organizar os estudantes e trabalhar sobre o assunto com eles.
Discutimos sobre a morte, criamos um texto coletivo no quadro e então fomos olhar as fotos
na secretaria.
Pensávamos que as fotos já estariam no computador, mas ainda estavam na
máquina. Com medo de olhar, o técnico só apertava no botão para que eu olhasse. Qual foi o
meu desespero: vi várias fotos – as do atalho até o cemitério, algumas dos estudantes – e olhei
novamente. Soltei um grito: “Meu Deus! As fotos do morto não saíram!”
Asiram, 2007
156
ANEXOS
157
Anexo 01 - Questionário
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA-UFSC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGE
LINHA DE PESQUISA – PROCESSOS INCLUSIVOS
MESTRANDA: MARISA FÁTIMA PADILHA GIROLETTI
ANO DE APLICAÇÃO: 2007
PREZADOS COLEGAS DE ESCOLA
As perguntas a seguir fazem parte da pesquisa de Mestrado da Professora Marisa.
Peço a colaboração para responder a questão formulada. Não há necessidade de colocar o seu
nome.
Obrigado!
* Como você entende a interculturalidade? É possível acontecer a
interculturalidade na escola, na aldeia e em sua sala de aula? Exemplifique.
158
Anexo 02 - Questionário
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA-UFSC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGE
LINHA DE PESQUISA – PROCESSOS INCLUSIVOS
MESTRANDA: MARISA FÁTIMA PADILHA GIROLETTI
ANO DE APLICAÇÃO: 2007
PREZADOS COLEGAS DE ESCOLA
A pergunta a seguir faz parte da pesquisa de Mestrado da Professora Marisa. Peço
a colaboração para responder a questão formulada. Não há necessidade de colocar o seu
nome.
Obrigado!
* O que você pensa e como vê o surdo Kaingang?
159
Anexo 03 - Termo de autorização de uso de imagem e de nomes próprios.
Eu, ........................................................................................................., abaixo
assinado, autorizo, neste ato, Marisa Fátima Padilha Giroletti a utilizar minha imagem, assim
como a imagem de meu filho(a), (ou cunhada, irmão e outro parentesco que possa existir.
Nesta autorização inclui-se o uso dos nomes próprios dos filhos e parentescos), na Pesquisa
de Mestrado “A cultura surda Kaingang no Oeste de Santa Catarina: Olhares sobre a Língua
de sinais”. Autorizo conseqüentemente sua utilização/veiculação gratuita em toda e qualquer
exibição pública para divulgação do referido Curso de Mestrado.
Xanxerê,..... de .............. de 2007.
___________________________________________
Nome:
Endereço:
Telefone:
Identidade:
CPF:
160
Anexo 04 - Escola: espaço físico - o contexto
A placa abaixo, colocada quando da inauguração da escola em 1998, fica exposta
em frente à secretaria e direção, na parte externa.
Placa de araucária identificando a escola.
O ginásio em forma de tatu - O Tatuzão.
161
A escola em forma de oca.
O centro de artesanato em forma de cágado.
162
Fotos da escola e arredores do espaço escolar.
(01) Estudantes no dia do desafio, dentro do ginásio
(02) Professores e estudantes se aquecendo ao sol, às 07h30min, uma manhã
muito fria. Junho de 2007
O dia em que o “tatu” ficou com a cara na geada.
163
O espaço de fazer artesanato, sem condições de aula, devido à geada.
O sol é o senhor do calor.
164
Difícil é chegar à escola hoje!
A grama próxima à escola.
.
Menina andando até a escola, de chinelos, na geada
Professor Getúlio e sua filha, no caminho até a escola
165
Como diz Paulo Freire (2003), [...] “o caminho se faz caminhando”.
A escada feita de tubos vai em direção aos portões da escola.
Professora Sonimara da Silva.
Paulo Freire explica que é possível que nós, no processo de fazer o caminho,
estejamos conscientes sobre este processo e que deixemos isto claro a quem nos vai ler.
166
Anexo 05 - A turma com ensino em LIBRAS
Assessoria FCEE em 2005.
Integradora Marisa e Instrutora Carla. Estudantes Silvana, Patrícia e Juliana, da
FCEE. Estudantes Juscelei, Amarildo, Marcione, Maicon e Tainara.
A sala de aula, com Maicon escondido.
167
Amarildo, Tainara e Juscelei.
Instrutora Carla Cris Pasetti, nossa primeira instrutora de LIBRAS.
168
Carla ensinando os nomes no alfabeto manual.
Carla mostrando no português os nomes dos estudantes e fazendo no alfabeto
manual. Todos tinham que descobrir de quem era o nome.
169
Amarildo narrando sua história de vida
O mágico na escola, com os estudantes surdos participando da atividade (2005).
170
Silvana no início da aprendizagem da LSB (2004).
Professores: de Artes, Kaingang, Educação Física e Sonimara, no
curso, em 2004.
171
Tainara diz “oi” muito alegre, na sala de aula, em 2005.
A turma na sala em 2005.
172
Professora Sonimara trabalhando o tema Constituição Familiar
com fantoches, na turma em 2004.
Conhecemos o Uéslei Paterno, em 2005, e nunca mais o
esquecemos (foto abaixo)
Professora Sonimara, com Uéslei Paterno, numa visita dele à
escola. Estudantes Juscelei, Tainara e Maicon.
Foi a primeira vez que Maicon aceitou fazer uma atividade com uma
pessoa diferente da professora Sonimara.
173
As fotos, registrando a visita de uma pessoa surda pesquisadora da UFSC, foram
cedidas por Ana Regina Campello (2004): a profª. Maria Regina Rodrigues, Ana Regina
Campello, Sonimara da Silva e a instrutora surda Carla Cris Pasetti, na sala de aula da Profª.
Sonimara e no ambiente externo da escola, próximo à secretaria.
Defronte à EIEB Cacique Vanhkre: Carla, Ana Regina, Maria com seu filho
Amarildo e a neta Aline, Sonimara, Maria Regina, e a Diretora Anisia Magistrali Belino. Essa
foto foi cedida pela pesquisadora Ana Regina Campello, quando de sua visita à escola em
2004.
174
Nathalia (surda adulta) se divertiu muito com Instrutor Walter na
assessoria. As atividades de interação e mediação com os estudantes basearam-se
em desenhos e em histórias no visual.
Instrutor Walter, da FCEE, em assessoria na escola em 2005.
Professora Marisa, na época Integradora de Educação Especial e
Diversidade, com Walter e Nathalia (2005).
175
Estudantes surdos na Turma com Ensino em LIBRAS: interessante é observar a
desenvoltura do estudante Maicon, o brilho de sua presença (2007)
Kaue, Maicon, Tainara e a prof. Sonimara. Maicon, prof. Giovani e Kaue, de costas.
Estudantes de diversas séries no pátio próximo à escola. Na frente está a
professora Sonimara e os surdos (indicados pelo sinal branco).
176
Foto do dia de Gincana (outubro de 2007), na EIEB Cacique Vanhkre.
Preparando para plantar as ervas medicinais, no Espaço Seu Vicente.
Professora Marisa, Prof. Davi e estudantes da 6ª série, plantando
as primeiras mudas de árvores e ervas.
177
Professoras Sonimara e Marisa, em uma casa próxima,
escolhendo um tronco de árvore para levar até o espaço da
escola, Sr. Vicente.
Em algumas visitas às famílias, havia crianças que
gostaríamos de levar para casa.
178
Anexo 06 - A possibilidade de aprender viajando - Florianópolis 2006.
Os estudantes no aeroporto Hercílio Luz.
Tainara dentro do avião no aeroporto de Florianópolis.
Maicon no avião. Amarildo e Felipe.
179
Sonimara e a estudante Silvana.
Este era o avião da TAM. Este era o piloto.
Os estudantes e professores na praça – 2006.
180
O mar em Florianópolis. Os estudantes na Van em que viajavam.
181
Anexo 07 - Nossas diferenças culturais
Cabelos curtos podem significar que a pessoa tem piolhos.
Todas as mulheres usam cabelos compridos.
Estudante Amarildo perguntando se a professora Marisa está com piolho, durante o
primeiro dia de interpretação na turma da 6ª série.
182
Professora de matemática e estudantes na 6ª série.
O frio no lugar assusta a professora Marisa.
Marisa e professor Carlos (1ª série), na escola.
183
A matemática ensinada no pátio da escola
Contagem de pedrinhas - Estudantes da 1ª série.
Sair cedo, de carona, para ir trabalhar.
Professoras Marisa, Sonimara e Jurema à espera de uma carona, às 06h30min da manhã.
184
Pode ser uma no colo da outra.
Professoras Marisa, Sonimara e Jurema na carona de um caminhão.
O grupo sempre junto [...]
Almoço na escola em dia de estudos. As mulheres discutem no intervalo do dia de
estudo. Homens e mulheres sentam separadamente
185
Professora Marisa chegando à escola num dia de muito frio
A alegria que esta pesquisa proporcionou é visível no olhar.
186
Anexo 08 - Os brinquedos e brincadeiras na aldeia
A bicicleta é um dos brinquedos comprados, mas que poucas crianças conseguem ter.
Nesta família, há uma bicicleta para três irmãos.
Na segunda foto, a brincadeira é com a enxada fazendo estrada e piquetes para brincar com
pedaços de madeira e pedras, como se fossem carros e animais.
A bicicleta está sem pneus, mas os amigos empurram e brincam da mesma forma.
187
Os balanços podem ser na árvore!
Professora Sonimara, estudantes e pais, no dia da feira na escola.
Basta um lugarzinho na sombra e uns amigos, que a gente se diverte!
Estudantes no espaço das brincadeiras na feira.
188
Eles também se divertem dançando.
Grupo de danças da escola.
A raquete para jogar a bola.
189
Estudante Kaue, mostrando o bastão que ele mesmo fez para jogar bola.
Gostamos mesmo é de nadar e brincar na água.
Irmão e primo do estudante Maicon, nadando no rio.
190
Maicon conta que os meninos estão nadando.
É divertido faltar à aula numa tarde de dezembro para nadar no rio.
191
No barro
Se faltar água, brinca-se no barro.
Nossa sala de aula é divertida
Maicon e Juscelei na sala de aula, em 2006.
192
Ensinando LIBRAS à colega ouvinte.
Juscelei e sua amiga ouvinte, na sala de aula.
Na força, a brincadeira é de quem pode mais. Maicon e Juscelei na sala de aula.
193
Amarildo, Kaue e Maicon, na sala de aula, em julho de 2007.
194
Anexo 09 - Encontro do Prof. Reinaldo M. Fleuri com os professores na escola, em
outubro de 2007.
Professores assistindo à palestra do professor Fleuri.
Estudantes e pais na palestra (01) e professora Marisa, fazendo a abertura e
apresentação do professor Fleuri ao grupo presente (02).
195
A abertura com o Hino Nacional em três línguas: LSB, Kaingang e Português.
Surdos Professores de Xanxerê na palestra (01).
Professor Fleuri recebendo uma camiseta da estudante Tainara (02).
196
Parte do grupo de surdos e professores Marisa, Sonimara e Giovani, com Fleuri.
Apresentação de uma dança pelos estudantes, no intervalo da palestra.
Fleuri trouxe seus livros para trocar por outros livros e artesanatos da aldeia.
197
O bebê da professora Cíntia presenteia com um colar.
Professoras italianas também presenteiam com uma cesta de produtos da região.
198
Professor Getúlio e Fleuri trocam colares por livros.
Os estudantes surdos trocam instrumento de dança por livros.
Enfim, o almoço, com todos no pátio da escola.
E, na escola, o almoço antes do retorno de Fleuri à Florianópolis.
199
Anexo 10 - Da visita na à olaria
Professoras Sonimara e Jurema e o surdo adulto Guega, em frente à olaria.
Professora Marisa e dois funcionários, dentro da olaria.
200
Guega fazendo tijolos e cuidando das máquinas.
Local por onde passa o barro.
201
Barro saindo para o corte.
Prateleira para secagem, antes da queima.
Fogo para aquecer o forno. Tijolos dentro do forno para cozinhar.
202
Anexo 11 - Simulação de pessoas no tronco
Mãos amarradas fortemente, com uma corda.
Três amigos representaram a situação.
203
Simulação do castigo no caso de briga entre duas mulheres, na aldeia.
204
Anexo 12 - Festas e encontros na escola
Chá de fraldas da professora Cíntia, na escola.
Dia do Índio –19/04/2007
Professores Edilson, Arnaldo, Sonimara e Learci, preparando as faixas e pinturas para a festa
e Prof. Davi pintando estudante Aldo.
205
A escolha da índia mais bonita da turma
Grupo de Teatro dos estudantes da 3ª série do Ensino Médio da Escola
Solenidade de abertura da festa do índio
O Cacique (à direita, de camisa rosa) e demais componentes da mesa.
Teatro para contar a história do povo
Grupo de Teatro dos estudantes da 3ª série do Ensino Médio da Escola.
206
Carne, muita carne.
Muita gente e muitos espetos de churrasco.
207
Churrasqueiras feitas no meio do mato. Nesta festa, com mais de cinco mil quilos de carne
assada, calcula-se que almoçaram aproximadamente de 8 a 10 mil pessoas.
Toda festa precisa de ...
Fila para ganhar o cachorro-quente (estudantes na festa da criança-2007).
208
Doces, muitos doces
Estudantes Kue, Tainara e Kaue, ajudando a organizar os doces para distribuição na festa.
Mais de 400 kg de bolos.
209
Festa do dia dos professores.
O porco não pode faltar!
O jogo de amigo secreto também não falta!
Professor Getúlio na revelação do amigo secreto, no ginásio Tatu.
Professor Marcelo é um pé-de-valsa.
210
As camisetas foram presente da escola
Ficou bonito! Professor Jair e Sonimara.
Marisa e Sire, na entrega do presente.
211
Palestra do curso com Professora Marisa.
212
Anexo 13 - Olhar
O olhar deles brilha. O nosso dilata! Não é lindo, isso!?
Estudantes surdos.
“A verdadeira descoberta não consiste em procurar novas paisagens,
e sim em ter um novo olhar.” Marcel Proust
Professora Marisa, no ônibus dos estudantes.
O olhar aqui é de satisfação, depois de um dia de festa e alegria junto ao grupo.
213
Enquanto a festa não começa, a gente olha.
Hum. O bolo!
O lanche vai sair. Pode olhar, dona Judite. A fila é grande!
214
É isso aí, o bolo logo sai. É nossa festa!
Essa festa não vai ter dança?
Kaue. Sou um coroado.
215
Guega: Desconfiado!
É dia de festa!
Onde estão os gatos desta festa?!
216
O bolo é uma delícia! Hum!
Não sou tão índia assim... Sou também afro!
Amarildo na chuva.
217
Negros
Pensativos. Apreensivos.
Pode olhar, professora? É a sala dos surdos. Como se aprende esta língua?
218
Cenas marcantes
Casa da estudante Silvana, visita da professora Marisa na casa, numa manhã de inverno.
Meu deus... “Óie, Óie,” quem tá aqui. Bom dia, professora!
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