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como nossos pais, como nós, como nossos filhos, rolando pelos oceanos, flutuando nos ares, manando nas fon-
tes, correndo nos rios, agregado nas pedras, sumido nas minas, misturado nos solos, viçando nas ervas, rindo nas
flores, recendendo nos frutos, cantando nos bosques, rugindo nas matas, rojando dos vulcões, etc.” Isto, a meu
ver, é exato e, sobretudo, consolador. O nosso amigo Silvestre da Silva, a esta hora, anda repartido em partícu-
las. Aqui faz parte da garganta dum rouxinol; além, é pétala duma tulipa; acolá, está consubstanciado num olho
de alface; pode ser até que eu o esteja bebendo neste copo de água que tenho à minha beira e que tu o encontres
nos sertões da América, alguma vez, transfigurado em cobra cascavel, disposto a comer-te, meu Faustino.
O que te eu assevero é que ele deixou de ser Silvestre da silva, há seis meses, posto que os parentes tei-
mam em lhe ter uma lousa sobre o chão, onde o estiraram, com esta mentira: ‘Aqui jaz Silvestre da Silva.’
Pois é verdade.
O nosso amigo começou a queixar-se, há de haver um ano, de falta de apetite, e frialdade de estômago,
efeito das indigestões. Foi de mal a pior. Desconfiou que passava a outra metamorfose, e deu ordem aos seus
negócios da alma com a eternidade. Dos bens terrenos não fez deixação, porque lá estavam os credores, seus
presuntivos herdeiros, ainda que alguns deles declinaram a herança a benefício de inventário, lamentando que
em Portugal não fosse lei a prisão por dívidas: parece que os irritou a certeza de que o cadáver insolvente não
podia ser preso. Em outro ponto te darei mais detida notícia desta catástrofe.
Eu fui o herdeiro dos seus papéis. Alguns credores quiseram disputarmos, cuidando que eram papéis de
crédito. Fiz-lhes entender que eram pedaços dum romance; e eles, renunciando a posse, disseram que tais patara-
tices deviam chamar-se papelada, e não papéis.
Aceitei a distinção como necessária e retirei com a papelada, resolvido a dá-la à estampa, e com o pro-
duto dela ir resgatando a palavra do nosso defunto amigo, embolsando os credores os credores. Fiz um cálculo
aproximado, que me anima a asseverar aos credores de Silvestre da Silva que hão de ser plenamente pagos, feita
a 10.ª edição deste romance.
Aqui tens tu uma ação que deve ser extremamente agradável às moléculas circunfusas do nosso amigo.
Espero que Silvestre ainda venha a agradecer-me o culto que assim dou à memória dele, convertido em aroma de
flor, em linha de cristalina fonte, ou em Ambrósia de vinho do Porto, metamorfose mais que muito honrosa, mas
pouco admirativa nele, que foi deste mundo já saturado em bom vinho. É opinião minha que o nosso amigo, a
esta hora, é uma folhuda parreira.
Vamos à papelada, como dizem os outros.
Tenho debaixo dos olhos, mal enxutos da saudade, três volumes escritos da mão de Silvestre.
O primeiro, na lauda, que serve de capa, tem a seguinte inscrição em letras maiúsculas: Coração.
O segundo, menos volumoso, diz: Cabeça.
O título do terceiro, e maior volume, é: Estômago.
Nenhum deles designa época; mas quem tiver, como eu, particular conhecimento do indivíduo, pode,
sem grande erro cronológico, datar os três manuscritos.
O Coração reina desde 1844 até 1854. São aqueles dez anos em que nós vimos Silvestre fazer tolice bra-
va.
Em 1855 notamos a transfiguração do nosso amigo, que durou até 1860, época em que tu já tinhas tro-
cado o Património da estima dos teus conterrâneos pelas lentilhas do Novo Mundo. Não viste, pois, a transição
que o homem fez para o estômago, sepultura indigna das santas quimeras, que aconteceram na mocidade, e con-
sequência funesta da má direção que ele deu aos Projectos, raciocínios e sistemas da cabeça. Podemos assinar
tempo ao terceiro volume, desde 1860 até fim de 61, em que o autobiógrafo se desmanchou do que era para se
arranjar doutro feitio.
Silvestre, como sabes, tinha muita lição de maus livros. Olha se te lembras que os seus folhetins eram
um viveiro de imoralidades vestidas, ou nuas, à francesa. Jornal em que ele escrevesse morria ao fim do primei-
ro trimestre, depois de ter matado muitas ilusões. Quem hoje desembrulha um queijo flamengo, e lê no invólucro
um folhetim de silvestre, mal pensará que tem entre as mãos o passaporte de muita gente para o inferno. Não há
muito que eu, despejando uma quarta de mostarda num banho de pés, li o papel, que a contivera, e achei o se-
guinte período de um folhetim do meu saudoso amigo:
“Diz Petrônio que fora o medo que inventara as divindades.
Deus é o que é. O homem é o pequeníssimo bicho da terra, de
que fala o Camões.
Entre Deus e o homem, só a soberba estúpida do homem podia
inventar convenções, concordatas, obrigações e alianças.
O sagüi é muito menos estúpido e mais modesto. Come, bebe,
dá cabriolas, faz caretas ao mau tempo, coça-se ao sol, retouça-se à
sombra, vive, e acaba feliz, porque se não receia de vir a ser homem.
A estolidez do homem! Diz ele empapado de vaidade tola:
‘Deus tem os olhos em mim!’ Que importância! Deus tem os olhos nele!
Se assim fosse, havia de ver bonitas coisas o criador do homem que
mata seu irmão!