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consciência da separação do seio materno, vive essa separação não como uma perda psíquica,
mas como uma amputação física de ambos os lados (do seu e do da mãe que, para ela, são um
só) e se protege do sofrimento associado a esses fantasmas negando toda a separação,
fechando-se numa cápsula que a isola do mundo exterior, do outro. Seu delírio é de negação
de todo o não-eu. Diferentes recursos são postos em funcionamento visando negar a realidade
exterior e a presença separável do outro. Todo o equilíbrio do funcionamento somático é
prejudicado: instala-se um mecanismo de defesa, o desmantelamento sensorial que impede a
formação do envelope psíquico, do qual falaremos mais adiante. Meltzer define o
desmantelamento sensorial como a suspensão da função de agrupamento das modalidades
sensoriais. Tudo se passa como se cada sentido se orientasse permanentemente na direção do
estímulo dominante para cada um, sem que nada viesse jamais a agrupá-los. É como se o
senso comum do qual fala Aristóteles
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(e ao qual se refere Arendt) ficasse defeituoso.
Aristóteles definira o senso comum para responder à questão de como os dados providos por
nossos sentidos podiam se reunir entre eles, como era possível fazer uma síntese e lhes dar
uma significação conjunta. Escreve então o seguinte:
“Cada sentido, portanto, concerne ao objeto perceptível subjacente, subsistindo no órgão
sensorial como órgão sensorial, e discerne as diferenças do objeto perceptível subjacente (por
exemplo, a visão discerne o branco e o preto, e a gustação, o doce e o amargo). E da mesma
maneira nos outros casos. Já que também discernimos o branco e o doce, e cada objeto
perceptível um do outro, por meio do que percebemos que eles diferem? É necessário que seja
pela percepção sensível, pois eles são objetos perceptíveis. Pelo que também é claro que a
carne não é o órgão sensorial último, pois se fosse, haveria necessidade de que o que discerne
discernisse ao ser tocado.
Tampouco é possível discernir por meios separados que o doce é diferente do branco, mas
ambos devem ser evidentes para algo único – do contrário, se eu percebesse um e tu, outro,
ficaria evidente que um é diferente do outro. Contudo é preciso um único afirmar que são
diferentes; pois o doce é diferente do branco. Ora, é um mesmo que o afirma. E, tal como
afirma, assim também pensa e percebe. É evidente, portanto, que não é possível discernir
coisas separadas por meios separados”.
É esta mesma abordagem da sensorialidade que conduz Meltzer a observar, no
autismo, a formação de um mundo bidimensional, sem espessura, sem interioridade, em
superfície, onde se estendem justapostas experiências sensoriais díspares. Ou, como pontua
Novara, 26-27/ 1/1980 apud HAAG, Geneviève. Abordagem psicanalítica dos autismos e das psicoses da criança. In:
MAZET & LEIBOVICI. Autismo e psicoses da criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
16 ARISTÓTELES. De Anima. São Paulo: Ed. 34, 2006.p.107-108.