Download PDF
ads:
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
Centro de Ciências Humanas e Sociais
Programa de Pós-Graduação em Educação
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Construção da identidade étnico-racial
o papel da
literatura infantil com protagonistas negros e histórias das
culturas africanas
Angela Maria Parreiras Ramos
Orientadora: Profª Drª.Maria Elena Viana Souza
Agosto/2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Ramos, Angela Maria Parreiras.
R175 Construção da identidade étnico-racial : o papel da literatura infantil
com protagonistas negros e histórias das culturas africanas / Angela
Maria Parreiras Ramos, 2007.
iv, 116f.
Orientador: Maria Elena Viana Souza.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
1. Negros – Identidade racial – Literatura infanto-juvenil. 2. Ne-
gros – Identidade étnica. 3. Identidade na literatura infanto-juvenil.
I. Souza, Maria Elena Viana. II.Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (2003-). Mestrado em Educação. III. Título.
CDD – 305.896
ads:
Dedico e agradeço...
A Deus ou como queiram chamar esta força superior que se faz sempre presente em todos os
momentos da minha vida.
Às professoras Maria Elena Viana Souza, Carmen Sanches Sampaio, Regina de Fátima de
Jesus e ao grupo de Orientação Coletiva da UniRIO por todas as dicas preciosas.
Às diretoras Cléa e Rosa, às diretoras-adjuntas Antonia e Cássia, às coordenadoras Flávia e
Adriana e às professoras Anamaria e Diva pela recepção, carinho e respeito desde o
primeiro contato.
Aos alunos e alunas das turmas de Progressão em 2006, sujeitos desta pesquisa, pelos
momentos compartilhados e o muito que me ensinaram.
À minha madrinha-mãe, pela dedicação, pelo amor e pela educação formal e informal.
À minha mãe e minha irmã pela força.
Às amigas e aos amigos pelo incentivo. Em especial: Paulo (PHMS), Patrícia, Ana Maria,
Vanessa, Flávia, Mario (afilhado) e José Luiz.
A todos aqueles que estando ou não nominalmente aqui, estiveram comigo nesta caminhada,
com um sorriso, uma palavra, um silêncio, um livro, um artigo, um carinho, ....
A história desse negro
É um pouco diferente.
Não tenho palavra
Pra dizer o que ele sente.
Tudo aquilo que você ouviu
A respeito do que ele fez
Serve para ocultar a verdade
É melhor escutar outra vez.
Foi um bravo no passado
Quando resistiu com valentia
Para se livrar do sofrimento
Que o cativeiro infligia
Apesar de toda opressão
Soube conservar seus valores
Dando em todos os setores
Da nossa cultura sua contribuição
Guarda contigo
O que não é mais segredo
Que esse negro tem histórias, meu irmão
Pra fazer um novo enredo.
Paulinho da Viola
iv
SUMÁRIO
1. Passado e presente: fios de histórias vividas construindo minha identidade étnico-
racial e o despertar para a pesquisa ......................................................................................8
1.1. Mas como desenvolver esta pesquisa? – a busca por uma metodologia .................. 22
2. Turmas de Progressão: o que são e como surgem? – Espaços-tempos compartilhados
dos sujeitos desta pesquisa .................................................................................................. 27
2.1 O que os alunos dizem sobre estar em uma turma de Progressão ............................31
2.2 Por dentro dos espaços-tempos escolhidos.................................................................33
3. Negros e negras: como são representados ao longo da história da literatura
infantil.................................................................................................................................... 43
3.1 Da Europa para nossas salas de aula o fenótipo europeu na literatura infantil
brasileira ................................................................................................................................ 46
4. Histórias que contamos e vivenciamos: discutindo sobre culturas e
identidades..........................................................................................................................51
4.1 “Lá (África) tem muitos mendigos. Não é,tia?”............................................................52
4.2 Não é porque eu sou morena que eu vou chamar os outros de seu
preto.”......................................................................................................................................74
4.3 “É isso mesmo. Quando tem olho azul, a pessoa é bonita.”.........................................79
5. Considerações finais - “Tia, de onde você tira essas histórias que você
traz?”...........................................................................................................................102
REFERÊNCIAS........................................................................................................110
v
RESUMO
Este trabalho busca compreender as influências que livros de literatura infantil, com
protagonistas negros como sujeitos históricos e sociais e histórias das culturas africanas,
exercem no processo de construção da identidade étnico-racial. Para tal, foi feita uma
pesquisa-ação que se deu através da intervenção no cotidiano escolar de duas escolas da rede
pública, no município do Rio de Janeiro, onde foram realizadas contações de histórias, uma
vez por semana, no período de fevereiro a junho de 2006. Considerando que nenhum discurso
é neutro Bakhtin (2003) e que os desenhos são linguagens possuidoras de uma representação
visual impregnada de simbologia Derdyk (1989), as falas e os desenhos produzidos pelos
sujeitos serviram como fontes de análises para compreendermos as representações
hegemônicas e naturalizadas que a sociedade brasileira tem da população negra. Foi
estabelecido um diálogo entre o que foi produzido e/ou falado pelos sujeitos da pesquisa e os
estudos sobre relações étnico-racias de autores como: Munanga (2004), Cunha Jr.
(2000,2001), Gomes (2005), Silva (2003), Inocêncio (2006), Sousa (2005). Concluiu-se, entre
outras coisas, que a literatura infantil, quando criteriosamente selecionada, pode ser
considerada porta-voz importante na construção da identidade étnico-racial e de
conhecimentos sobre diferentes culturas africanas.
Palavras-chave: identidade étnico-racial, relações étnico-raciais, literatura infantil,
vi
ABSTRACT
This dissertation aims to understand the influences that infant literature
books, with black protagonists as historical and social individuals and
African cultures stories, exert on the ethnic-racial identity building
process. For this, an action-research was done through the intervention in
the school days of two public schools in Rio de Janeiro city, where
story-telling sessions were done once a week from February to June 2006. Considering that
no speech is neutral, as we can see in Bakhtin (2003) and
that drawings are languages that possess a visual representation rich in
symbology, as seen in Derdyk (1989), the speeches and the drawings produced
by the individuals were used as sources of analyses for us to understand the
hegemonic and naturalized representations that the Brazilian society has of
the black population. A dialog was established between what was produced
and/or spoken by the individuals involved in the research and the studies
about racial-ethnic relations by authors like Munanga (2004), Cunha Jr. (2000,2001), Gomes
(2005), Silva (2003), Inocêncio (2006), Sousa (2005). In conclusion, among other things,
infant literature, when carefully
selected, can be considered as an important representative of the
ethnic-racial identity building process and of the knowledge of different
African cultures.
Key words: ethnic-racial identity, ethnic-racial relations, infant literature
vii
1. Passado e presente: fios de histórias vividas construindo minha identidade étnico-
racial e o despertar para a pesquisa
1
Nunca é tarde para voltar e apanhar
o que ficou para trás. Sempre podemos
retificar nossos erros e complementar
nosso conhecimento. Símbolo da busca
de valores culturais africanos para
informar a consciência de identidade
2
Durante muitos anos, orgulhei-me de ser parda conforme consta em meu registro de
nascimento. Orgulhava-me da certidão, principalmente, porque a comparava à de minha irmã,
registrada como preta. O documento oficial dava-me o respaldo para que eu pudesse usar o
que a sociedade me ensinou a ver e a sentir como um diferencial que marcava uma
superioridade. Se alguém me perguntasse qual era a minha cor, a resposta dependeria da
época em que a pergunta fosse feita.
Durante anos ouvi na escola, na rua e em diferentes espaços que freqüentava pessoas
chamando a mim, à minha irmã e a outros negros e negras de macaco. Assisti a novelas nas
quais personagens negras eram destratadas e desqualificadas. Li e estudei em livros onde os
negros e negras apareciam sendo chicoteados por seus senhores ou feitores, tidos como
aqueles que se submeteram à escravidão e que nada ou quase nada fizeram para reverter a
situação.
1
Sakofa - Ideogramas oriundos de um dos muitos sistemas de escrita africanos antigos, o Adinkra. Símbolos
expressos graficamente em adereços, vestimentas, peças de metal ou madeira geralmente associados à realeza
em Gana, África Central. Têm como objetivo a transmissão de mensagens.
2
NASCIMENTO, Elisa Larkin.O Sortilégio da cor Identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Summus,
2003.
8
Fui crescendo e a entrada na fase da adolescência foi coincidindo com minha formação
como professora. Neste período, fui embranquecendo para os outros e, para mim, também.
Tornaram-me moreninha. E esta idéia me agradava. Como moreninha, podia ser paquerada,
ser aceita pelos grupos e exercer a minha profissão com mais credibilidade aos olhos dos
meus alunos e alunas, seus familiares e outros profissionais da educação. Embora soubesse
que não era moreninha, deixava-me ser assim identificada.
Enquanto fui parda e moreninha, li, vi, ouvi e senti as histórias que a escola contava
sobre a trajetória do negro no Brasil que se restringia à escravidão. O mesmo acontecia com
as histórias racistas que vinham dos Estados Unidos, as piadas racistas que ouvia. Tudo
incomodava, mas eu não era preta ou negra. Eu era parda ou moreninha e o desconforto
parecia ficar muito menor.
Compartilhando a idéia de Souza (1983) que diz: “ser negro, não é uma condição
dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro” (p.77), posso afirmar que um dia
tornei-me negra.
O caminho para este vir a ser exigiu muito mais conhecimentos, descobertas e trocas
do que quando havia passado para a condição de ser moreninha. Não acordei um dia e decidi
que seria negra. Também não foram as pessoas que assim começaram a me caracterizar. Foi
um processo.
No início da década de noventa, concluí minha graduação em Pedagogia e doze anos
mais tarde, ingressei no Curso de Pós-Graduação (lato sensu) “Alfabetização das Crianças das
Classes Populares”, ministrado na Universidade Federal Fluminense. Muitos foram os
professores, com os quais eu trabalhava que questionaram minha opção: - Vai aprender o
quê, se já alfabetiza há tantos anos?
3
A justificativa era a de querer aprimorar meus conhecimentos e compreender melhor o
porquê de algumas crianças não conseguirem chegar ao que considerava ser uma criança
alfabetizada. Sentia necessidade de saber em que ponto estava errando e o que fazer para
melhorar meu trabalho como professora alfabetizadora. Mas, hoje posso afirmar que muito
mais que respostas para meus questionamentos, o que obtive foram pistas que têm contribuído
na construção de minha identidade negra.
Durante uma de nossas aulas, no curso, uma aluna exclamou bem alto: - Eu nunca vi
um curso de Pós-graduação com tantas mulheres negras. Esta fala, em tom de admiração e
3
Naquela época, trabalhava como professora alfabetizadora mais de dez anos na rede municipal de
educação do Rio de Janeiro.
9
espanto, marcou muitas das que ali estavam. Foi como se boa parte do grupo se olhasse no
espelho ao mesmo tempo e se deparasse com esta imagem. Para uma das professoras do
Programa, Regina de Jesus, a fala da aluna foi uma pista para buscar compreender melhor a
construção identitária (JESUS, 2004, p.35) das mulheres negras presentes no Curso. E, na
busca desta compreensão, partiu para sua pesquisa de Doutorado em Educação. Seguindo as
pistas deixadas pela fala da aluna, ocorreram mudanças no planejamento do Curso. Embora o
nome do curso apontasse para questões de classe, passamos a discutir também sobre raça e
etnia.
Para contribuir e enriquecer as discussões, militantes do Movimento Negro foram
convidados e realizaram palestras seguidas de debates. O primeiro palestrante, o professor
Henrique Cunha Jr., tomou por referência a história da África e destacou o quanto muitos de
seus povos haviam desenvolvido tecnologias desconhecidas por outros povos, inclusive os
que se julgavam civilizados e avançados. Trouxe ao diálogo um pouco sobre artes africanas e
culturas de diferentes etnias. Lembro-me que uma das professoras do curso disse que queria
ter filmado minha “cara” de espanto ao ouvir tudo aquilo. Quando o palestrante concluiu sua
fala e abriu para o debate, a minha pergunta foi: - Professor, onde eu estava que nunca tinha
ouvido falar em nada disso? Sua resposta foi: - Você estava na escola, só que esta escola não
ensina nada disso.
Saí daquela palestra sentindo-me incomodada e com uma vontade enorme de anunciar
ao mundo que o povo do qual descendo, não era como eu sempre havia ouvido falar: um povo
que vivia num continente de um passado de escravidão e exploração sem nenhuma ação e de
um presente de guerras e miséria. Aquele povo possuía uma história que ia para além da
escravidão, da idéia de passividade e submissão que sempre foi repassado a nós nas escolas
freqüentadas. Comecei a me reconhecer como descendente de povos com culturas, histórias e
tradições. Impossível ignorar o lado da guerra e da miséria, mas saber que não era isso me
fez iniciar a busca por uma identidade negra.
Um país que conhece a colonização, se conhece primeiro no discurso do
outro, do colonizador. É ao dizer não
4
à imagem que lhe propõe o
colonizador que ele inicia seu próprio discurso sobre si mesmo e,
automaticamente, sobre o outro. É quando é ouvido e reconhecido em sua
diferença, estabelecida de seu próprio ponto de vista, é que realmente sua
identidade vai tomando forma e transparecendo em sua especificidade
(TEODORO, 1987, p.47).
4
Grifo da autora.
10
Outros palestrantes abordaram não a luta da população negra pelo fim da
escravidão, mas como se organizavam, mesmo muito tempo antes de a Lei Áurea ser assinada.
Aprendi então, que o negro não fugia apenas para ficar no meio do mato esperando não ser
capturado, conforme havia estudado. Quilombos eram muito mais que um aglomerado de
fugitivos sem atividades.
Os quilombos/mocambos, definidos como agrupamento de dois a três
fugitivos (que podiam alcançar milhares) possuíam organização social e
tinham como principal característica e atividade sócio-econômica de seus
habitantes a gestação de uma economia camponesa articulada com o
restante da sociedade. Eles produziam alimentos – como farinha de
mandioca ou mesmo, outros produtos como mel, lenha, drogas do sertão e
gado que complementavam a economia. Muitos dos habitantes dos quilombos
(reconhecidos como camponeses) além de cultivar suas próprias terras,
colocavam seus produtos excedentes nos mercados locais e acabavam se
transformando em trabalhadores rurais para outros proprietários (GOMES,
2006 p.124).
Aprendi que os libertos se associavam para comprar a liberdade de negros e negras
escravizados, para viver sua religiosidade, para ter uma vida social. E ainda que não foram
poucas as agremiações e associações que, encabeçadas por intelectuais negros, tornaram-se
espaços de reuniões, encontros, ativismos, cursos de formação, assistência médica e jurídica
entre outros departamentos para o atendimento aos associados negros. Além disso, essas
organizações buscaram formas de dialogar com as elites, propondo políticas públicas que
contribuíssem para que a população negra, como um todo, pudesse ter acesso à educação, ao
trabalho, à saúde, à moradia, à vida política e aos bens culturais.
Surgiram vários periódicos com características semelhantes, publicando
caricaturas, comunicados sociais, crônicas e poesias. Em geral, os
editoriais eram dirigidos mais à questão racial, indicando caminhos de
conscientização e mecanismos de “ascensão do negro”
5
(...) Os periódicos
de tal imprensa negra constituíram-se em instrumentos de comunicação de
inúmeros intelectuais, grupos, associações e entidades negras, tanto com
seu público específico o chamado “meio negro” - como com seus setores
sociais. Priorizando os diálogos com o “meio negro” procuravam
estimular, através dos editoriais e da publicação de determinados artigos,
temas que abordassem a autovalorização da população negra, sua visão de
mundo e suas formas políticas, culturais e religiosas de organização e
participação. (GOMES, 2005, p.30)
5
Grifo do autor.
11
A cada encontro com palestrantes convidados, fui aprendendo mais e mais. Fui
descobrindo um pouco mais sobre a história do negro no Brasil e no mundo, com fatos
importantes e reveladores que jamais havia ouvido falar e, ao mesmo tempo, os caminhos
para melhor me conhecer iam se abrindo. Estava tantos anos na escola - espaço e tempo
privilegiados de circulação de saberes, de aprendizagens, de trocas - e, agora, eu a via,
também, como espaço onde muitos saberes são ocultados ou se tornam visíveis de acordo
com os interesses de quem tem o poder de determinar o que deve ou não fazer parte do
currículo. Apple (2002) nos fala sobre esta não neutralidade dos conhecimentos que se fazem
presentes no currículo. “Ele é sempre parte de uma tradição seletiva
6
, resultado da seleção
de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo” (2002, p.59).
Silva reforça as idéias de Apple quando afirma:
O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O
currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa
vida, curriculum vitae: no currículo, se forja nossa identidade. O currículo
é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade.
(SILVA, 2001, p.150).
Em meio a tantas descobertas, não poderia deixar de repensar sobre o meu papel de
professora, e sobre o que eu (re)produzia em sala de aula, reforçando o status quo, o
pensamento heterogêneo e etnocêntrico. Assim me pergunto: Que identidades estava
forjando? Que conhecimentos estava privilegiando ou contribuindo para o ocultamento por
falta de conhecimento?
Um exemplo disto é que quando chegava o dia 13 de maio, sentia-me aliviada quando a
data coincidia com sábados ou domingos, pois assim falava pouco ou quase nada sobre a
escravidão. O assunto me incomodava. O não tocar no tema ou passar por ele rapidamente,
era uma forma de evitar que meus alunos e alunas negros e negras sentissem a mesma dor que
eu sentia ao ver aquelas imagens nos livros didáticos do negro amarrado ao tronco, sendo
chicoteado. Se, para mim, este tema era como mexer em feridas, talvez agisse assim
pensando em poupar meus alunos e alunas dessa sensação. o distanciamento e o
conhecimento fizeram com que eu olhasse para trás e compreendesse melhor o que se
passava.
Apesar de ser chamada moreninha, sabia que era negra. E a história da escravidão me
envergonhava. No dia-a-dia de minha docência, não eram raras as vezes em que, entre uma
6
Grifo do autor.
12
atividade e outra, as alunas me desenhavam no quadro de giz. Digo alunas, pois são elas quem
mais fazem este tipo de representação espontânea. Tenho gravada em minhas memórias uma
dessas vezes em que uma menina, usando giz colorido me desenhou. Em seu desenho, meus
cabelos eram longos e loiros e meus olhos azuis. Perguntei se eu era daquele jeito e a aluna
respondeu: - Ah, tia, deixa... Está bonita assim! Naquela época, interpretei a fala dela como
algo natural. Eu havia ficado bonita e pronto. E o que é ser bonita? Agora que eu não era
nem parda, nem moreninha e iniciava meu processo de conhecimento em questões étnico-
raciais, passei a enxergar o que antes não via. E por que não via antes?
Von Foerster (1996) nos ajuda a pensar o quanto que ver não é apenas resultado do
uso da visão. O autor busca na óptica física explicações sobre o “ponto cego” mostrando que
semelhante ao que ocorre fisiologicamente, quando algo está posicionado na parte da retina
onde não receptores visuais, ficamos impossibilitados de enxergá-la. Segundo Von
Foerster, nós não vemos que não vemos (p.60), o que causa uma dupla cegueira. Compartilhar
com este autor a idéia de que “devemos compreender o que vemos ou, do contrário, não
vemos” (p.71) nos pista que nos auxilia a compreender o porquê de somente depois de
iniciar o processo de conhecimento sobre a minha raça/etnia, foi que comecei a ver o que
antes não via porque não compreendia.
Para fazer uma opção pelo conjunto dos termos raça e etnia, uma breve definição e
localização no tempo e espaço histórico dos mesmos, se fizeram necessárias.
O dicionário Aurélio define raça como: conjunto de indivíduos cujos caracteres
somáticos, tais como a cor da pele, a conformação do crânio e do rosto, o tipo do cabelo,
etc., são semelhantes e se transmitem por hereditariedade.
O termo raça foi introduzido na literatura mais especializada em inícios do século
XIX, por Georges Cuvier, inaugurando a idéia de existência de heranças físicas permanentes
entre os vários grupos humanos (SUSSEKIND,1999,p.45,appud SCHWARCZ,2001, p.47 )
O século XIX foi marcado pelas heranças da concepção racionalista e privilegia a
Ciência como única forma de conhecimento válido. O Positivismo de Augusto Comte
estabelece o conhecimento empírico, baseado nas observações dos fenômenos naturais e
sociais como aquele que pode ser considerado o único válido, sendo capaz de afirmar a
realidade objetiva dos fatos.
Com a finalidade de compreender o desenvolvimento histórico da humanidade, Comte
classificou o pensamento humano, cuja raiz se encontra na especulação sobre a origem do
homem, em etapas que se sucederiam desde as mais elementares até as mais complexas,
13
correspondendo cada uma a um grau de civilização e as formas de razão mais ou menos
próximas do conhecimento objetivo da realidade (PASSADOR, 2000, p.36).
Encontramos em Charles Darwin uma concretização do projeto científico formulado
por Comte, pois através de viagens e pesquisas empíricas formulou e comprovou a teoria de
evolução das espécies, partindo dos princípios da seleção natural. Os estudos de Darwin
causaram um impacto tão grande que se tornaram um paradigma na época. Os monogenistas
se apropriaram dos estudos de Darwin e “satisfeitos com o suposto evolucionismo da origem
una da humanidade, continuaram a hierarquizar raças e povos” (SCHWARCZ, 2001, p.55).
Por outro lado, os poligenistas reforçaram a idéia de que, mesmo admitindo a existência de
ancestrais comuns na pré-história, afirmavam que as espécies humanas tinham se separado
havia tempo suficiente para configurarem heranças e aptidões diversas” (idem). Schwarcz
mostra o quanto as interpretações dadas para as teorias de Darwin se desviaram de seu perfil e
passaram a ser aplicados, ao longo do século XIX e início do século XIX, em vários ramos do
conhecimento como psicologia, pedagogia, sociologia, política etc. E como mostram
Munanga (2004 ) e Schwarcz (2001) em nome da ciência, a discussão sobre hierarquia das
raças e miscigenação baseadas nos estudos de medidas de crânios, queixos, ângulos faciais
entre outros critérios, se revigora e passa a ser utilizada como justificativa para legitimar os
sistemas de dominação racial chegando a idealizar a eliminação de raças consideradas
inferiores.. É o que se chama de darwinismo social ou teoria das raças.
Com as pesquisas sobre genética humana, chegou-se à conclusão de que “a raça não
é uma realidade biológica, mas sim apenas um conceito, aliás, cientificamente inoperante
para explicar a diversidade humana e para dividi-las em raças estanques” (MUNANGA,
2004, p 21)
Gomes(2005), Munanga (2004) e Guimarães (2005), justificam o uso do termo raça
nos dias atuais como demarcador de diferenças construídas em uma sociedade racista e
discriminatória. Sendo, este, portanto, um conceito impregnado de ideologias e relações de
poder e dominação.
Segundo definição do dicionário Aurélio, etnia é:
população ou grupo social que apresenta relativa homogeneidade cultural
e lingüística, compartilhando história e origem comuns
(1)
. Grupo com
relativa homogeneidade cultural, considerado como unidade dentro de um
contexto de relações entre grupos similares ou do mesmo tipo, e cuja
identidade é definida por contraste em relação a estes
(2)
.
14
Pelo fato de o termo raça ter sido utilizado durante muitos anos em diferentes
instâncias de poder estando ligado à dominação político-cultural de povos e ou nações em
detrimento de outros(as), o racismo e a idéia de raça, no sentido biológico, acabaram sendo
inaceitáveis após o reconhecimento dos horrores causado na II Guerra Mundial. Com isto, o
termo etnia acabou ganhando força para definir os povos, ditos diferentes como judeus,
índios, negros, entre outros refletindo como um pertencimento ancestral e étnico-racial dos
negros e de outros grupos da nossa sociedade, conforme encontramos em Gomes (2005). A
intenção era enfatizar que os grupos humanos não eram marcados por características
biológicas herdadas de seus pais, mães e ancestrais, mas, sim, por processos históricos e
culturais. (p.50)
Ao procurar definir etnia, Ferreira (2000) destaca que:
é importante ressaltar não serem citadas, na definição de etnia, variáveis
biológica, portanto, raça e etnia não são sinônimos. Assim, membros de
grupos raciais diferentes podem pertencer a um mesmo grupo étnicos
membros de grupos étnicos diferentes podem pertencer a um mesmo grupo
racial. (p.50)
Para Munanga (2004) o conteúdo do conceito de etnia é sociocultural, histórico e
psicológico. O autor define etnia como “um conjunto de indivíduos que, histórica ou
mitologicamente, têm um ancestral comum, têm uma língua em comum, uma mesma religião
ou cosmovisão, uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território” (p.
28). Munanga considera etnia um termo que agrada tanto aos racistas quanto aos anti-racistas,
pois o racismo praticado hoje não se apóia mais no conceito de raça ou da variante
biológica, ele se reformula com base nos conceitos de etnia, diferença cultural ou identidade
cultural, mas as vítimas de hoje são as mesmas de ontem e as raças de ontem são as etnias de
hoje” (p.29).
A opção pelo termo etnia não é unanimidade. Seu uso, para se referir aos negros e
negras no lugar de raça, vem sendo muito debatido entre intelectuais e militantes do
movimento negro. Alguns defendem o termo etnia por acreditarem que este é capaz de
distanciar de maneira mais enfática, o determinismo biológico preso à idéia de que a
humanidade se divide em raças superiores e interiores. Outros defendem o uso da palavra raça
por considerarem o termo impregnado de significado político que contribui nas discussões
sobre o racismo existente no Brasil, conforme encontramos em Gomes (2005). Nascimento
15
(2003) e Guimarães (2005) defendem que a substituição do termo raça por etnia obscurece a
discussão sobre racismo e preconceito racial.
Hall (2003) enfatiza que o termo etnia não exclui características físicas conforme
vemos em muitos autores. “Quanto maior a relevância da etnicidade
7
, mais as características
são representadas como relativamente fixas
A trajetória desta pesquisa evidencia diferentes situações de racismos. Portanto, o uso
do termo raça, entendido na sua dimensão política, ideológica e sociológica e não biológica,
se justifica. Outrossim, o uso do termo etnia amplia a discussão ao abranger ancestralidade e
cultura. Pensando nestas múltiplas dimensões é que foi feita a opção pela contração dos
termos em variados momentos.
Revirando meus guardados encontrei desenhos, como os que estão a seguir, onde
alunas me representavam e vi que neles eu sempre apresentava um ou mais traços fenotípicos
europeus.
Ilustração 1: Desenho espontâneo feito por uma aluna negra representando quando eu era criança
brincando em um patinete. (ano: 2000)
7
Grifo do autor.
16
Ilustração 2: Desenho espontâneo feito por aluna negra. (ano: 2000)
Cada desenho feito por diferentes alunas, foi entregue em momentos distintos. Embora
tenham sido oferecidos a mim no mesmo ano em que eu estava cursando a pós-graduação,
ainda não me arriscava a discutir o que havia por trás dessas questões que envolviam a
identidade étnico-racial, mas, já começava a compreendê-la.
A imagem negativa que os alunos e alunas, negros ou não, vão criando sobre a
população negra pode ter muitas vezes contribuição da escola. A mídia, dentro ou fora da
escola, impõe um padrão de beleza europeu: cor branca e preferencialmente olhos e cabelos
claros, para os papéis de destaque. Imagens positivas sobre o negro tanto no passado quanto
no presente são raras de estarem expostas não só fora, mas também no interior da escola.
As escolas, mídias e demais instituições sociais ainda são influenciadas pelas
ideologias de um projeto político das elites brasileiras que fervilhavam no final do século XIX
e primeiras décadas do século XX: a teoria do branqueamento.
A tese do branqueamento baseava-se na presunção da superioridade
branca, às vezes pelo uso dos eufemismos raças “mais adiantadas” e
“menos adiantadas”
8
e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a
inferioridade inata. À suposição inicial, juntavam-se mais duas. Primeiro -
a população negra diminuía progressivamente em relação à branca por
8
Grifos do autor.
17
motivos que incluíam a suposta taxa de natalidade mais baixa, a maior
incidência de doenças e a desorganização social. Segundo a
miscigenação produzia “naturalmente” uma população mais clara, em
parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as pessoas
procurassem parceiros mais claros do que elas. (A imigração branca
reforçaria a resultante predominância branca.) (SKIDMORE, 1989, p.81)
Viajantes estrangeiros como Pierre Denis (1909) e Theodore Roosevelt (1914),
fizeram relatos entusiastas sobre um progressivo desaparecimento da população negra
brasileira, baseados nas suposições que embasavam a teoria do branqueamento e
principalmente, nas políticas brasileiras que favoreciam a imigração européia. Estes viajantes
reforçaram as idéias de intelectuais brasileiros como Sílvio Romero (1888) e João Batista
Lacerda (1911), que com maior ou menor grau de “otimismo” também apostavam nos
progressos do branqueamento brasileiro como forma de igualar o Brasil aos países
considerados como desenvolvidos, conforme nos mostra Skidmore (1989).
Nos livros didáticos, não são raras as imagens de negros e negras amarrados ao tronco
como única ou principal referência ao período da escravidão, aliadas ao que descrevem como
contribuições do negro e não como participação na construção e história do país. Não estamos
falando em negar e esquecer o período da escravidão, pois este também é parte de nossa
história. Trata-se de mostrar as diferentes facetas deste período: as resistências em suas
diferentes formas, as comunidades, a história do negro não apenas através do olhar europeu,
do olhar do dominador, mas também pelo olhar de quem foi silenciado. Tais livros didáticos,
depois de sofrerem muitas críticas, vêm apresentando mudanças, mas ainda em pequenos
passos.
Além disso, os currículos escolares ao não trabalharem as culturas dos povos deste
imenso continente, que possui uma diversidade cultural muito grande ou mesmo, quando
reconhecem sua existência, estas são vistas como sendo de menor valor, contribuem para a
disseminação da falsa e preconceituosa idéia de que os povos africanos são aculturados. O
negro acaba tendo sua imagem constantemente associada a aspectos considerados negativos e
sua história silenciada.
Este silenciamento, caracterizado por sua dimensão política e ideológica, pode ser
considerado como parte da retórica da opressão (ORLANDI, 1997, p.31) e da mesma forma
que a (re)produção de racismos não pode ser pensado à parte da história. Skidmore (1989), ao
analisar como as relações raciais se deram no Brasil, durante o Império e primórdios da
18
República, e como e o quanto a ideologia do branqueamento da população brasileira teve
repercussões em diferentes segmentos como: cultura, política e economia, nos faz
compreender o quanto estas falsas idéias historicamente difundidas, contribuíram para a
construção desta sociedade permeada de desigualdades raciais e que são, muitas vezes,
reproduzidas no espaço escolar.
Nas palavras de Munanga (2004), podemos encontrar uma pista para entendermos a
ausência de questões que envolvam temas raciais nos planejamentos escolares, através do tão
difundido mito da democracia racial
9
que estava
(...) baseado na dupla mestiçagem biológica e cultural entre as três raças
originárias, tem uma penetração muito profunda na sociedade brasileira:
exalta a idéia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as
camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes
dissimular as desigualdades e impedindo os membros das comunidades
não-brancas de terem consciência dos sutis mecanismos de exclusão da
qual são vítimas na sociedade (MUNANGA, 2004, p.89).
Basta pensarmos em quais momentos os negros e negras são lembrados em sala de
aula. São lembrados apenas para se falar sobre escravidão
10
, sofrimento, dor e violência e em
datas comemorativas.
Que imagens positivas do negro aparecem no cotidiano escolar? Que histórias em que
o negro seja protagonista de narrativas cotidianas, cujas ilustrações não sejam estereotipadas,
são contadas ou disponibilizadas para leitura nas salas de aula? Que contos e lendas da
cultura africana são contados nas escolas contribuindo para que os alunos e alunas negros e
não negros desconstruam a idéia tão difundida em diferentes meios de comunicação sobre o
continente africano?
Não são poucas as vezes em que, nas escolas, pode-se ouvir e ver alunos e alunas
agredindo-se verbalmente através de xingamentos ou piadinhas racistas. São crianças negras
ou não negras chamando seus colegas negros de macaco, de “seu negro” ou “sua negra”, em
tom pejorativo, depreciativo.
9
Este mito nasceu por volta de 1930. Mesmo acreditando que os brancos eram melhores e que o Brasil estava
ficando mais branco, a elite intelectual brasileira, baseada no novo consenso científico de que intrinsecamente o
preto não era inferior, se vangloriava de que o Brasil era um país moralmente superior em relação aos países
mais desenvolvidos tecnologicamente. Tomava como exemplos favoritos os Estados Unidos, por suas políticas
de segregação, e a Alemanha nazista, pois estes praticavam repressões sistemáticas das minorias raciais, como
mostra Skidmore (1989). Segundo Guimarães (2002), este termo é atribuído a Gilberto Freyre, mas não é
encontrado em suas principais obras e só aparece na literatura nos anos de 1950.
10
Vista como um momento histórico do passado que não influenciaria nas relações de poder.
19
Durante muito tempo, diante de posturas que podem ser consideradas como racistas
minha atitude diante destes fatos era pedir ao aluno que se desculpasse, chamar a atenção do
agressor ou fingir que não via ou ouvia nada, calando-me diante da situação. Cavalleiro(2003)
nos fala sobre este silenciamento, por parte de professores(as) ao se depararem com
comportamentos preconceituosos, mostrando que estes ocorrem, muitas vezes, porque os
docentes não sabem como lidar com estas situações. Este não saber como lidar com situações
que envolvam preconceito e discriminação pode estar, muitas vezes, relacionado a uma lacuna
na formação inicial e continuada de professor(as) nas quais nem sempre esta temática é
abordada, além do arraigado mito da democracia racial que isenta qualquer um da idéia de
preconceito.
Cunha Jr. (2000), destaca que um número considerável de professores, por se
encontrarem à parte das discussões sobre relações interétnicas, (re)produz nas suas respostas
os elementos integrantes da cultura do racismo, através de frases e explicações que expõem os
seus preconceitos e suas precariedades de informações. Provavelmente, por isso, durante
muitos anos, acreditei que se um aluno chamava o outro de macaco ou de cabelo de bombril
11
,
o pedido de desculpas resolveria tudo. E muitas foram as vezes que, em pouquíssimo tempo
depois de ser desculpado, a situação se repetia. Fica cada vez mais nítida a compreensão
sobre a fala de Silva (2001) de que discutir a questão do racismo como ato individual
somente, não basta. Faz-se necessário discutir também a formação social desta atitude.
Voltando o meu olhar para minha sala de aula, indaguei-me sobre o que poderia fazer
para reverter a situação, pois, passei a enxergar que estava diante de uma forma da negação da
raça/etnia, quando alunos e alunas negros representavam a si mesmos ou a mim com
características distantes de nossa afrodecendência, tornando-nos brancos com traços europeus.
E ainda, que o fato de não discutir as situações de preconceito e discriminação que ocorriam
na sala de aula ou fora dela, contribuía para a continuidade da situação. Ou seja, a omissão é
uma forma de tomar partido e eu estava, assim, contribuindo para a manutenção do
preconceito.
Descobrir caminhos que pudessem ampliar conhecimentos, possibilitando que os
alunos e alunas negros pudessem compreender que descendem de povos que têm uma história
que vai muito além da escravidão, do sofrimento, da miséria, da fome e que são povos que
11
Marca de palha de aço fabricada no Brasil desde 1948. A marca tornou-se tão conhecida que passou a ser
sinônimo do tipo do produto. Com o tempo, o termo Bombril foi sendo usado também com sentido conotativo
para cabelos muito crespos: “cabelo de Bombril”.
20
têm culturas, que criam, recriam e contam histórias, com arte e tradições, poderia ser um meio
para reverter o modo de se ver e de ser negro. Para as crianças não negras a contribuição
poderia ser a de ter um outro olhar sobre o negro e sobre si mesmas, desconstruindo o
sentimento, muitas vezes presente, de superioridade de uma raça sobre a outra.
Direcionei meu olhar para os livros da estante da sala de aula e percebi uma
possibilidade de caminhos que poderiam trazer contribuições para que os alunos e alunas
tivessem a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre sua ascendência e,
conseqüentemente, sobre sua raça/etnia. Foi preciso sair à caça de livros com personagens
negros. Digo caça pela grande dificuldade de encontrar tal material. Do meu ponto de vista,
era preciso narrativas em que os negros fossem retratados como seres sociais e históricos,
sendo detentores de vida, voz e fala e ainda, que suas imagens não fossem estereotipadas.
O caminho que começava agora a trilhar, vinha muito sendo desbravado por
pessoas que discutem questões raciais dentro ou fora do movimento negro. A luta dessas
pessoas resultou na lei federal 10.639
12
que obriga o ensino sobre a História da África e
Cultura Afro-brasileira, nas escolas de Ensino Fundamental e Médio tanto na rede pública
quanto na rede privada. A lei destaca a Literatura como uma das áreas para se trabalhar os
conteúdos da cultura afro-brasileira.
Partindo das experiências positivas alcançadas em turmas regulares das séries iniciais
do Ensino Fundamental, com as quais venho atuando nos últimos anos, utilizando livros de
literatura que atendessem aos critérios citados anteriormente, intensifiquei minhas leituras,
participações em seminários, congressos e discussões que me ajudassem a entender não as
mudanças ocorridas como também formas de contribuir com as práticas docentes.
Comecei a questionar então: que influências a literatura infantil com protagonistas
negros e com histórias da cultura africana poderiam ter em turmas de Progressão
13
, formada
em sua maioria por alunas e alunos e alunas negros, com histórico de fracasso escolar,
dificuldades no processo de alfabetização, baixa auto-estima e muitas vezes, com dificuldades
nos relacionamentos?
Impregnada da essência desse movimento dialético: prática-teoria-prática, senti-me
instigada e também estimulada por amigos educadores a elaborar um Projeto de Pesquisa para
12
Lei sancionada em 9 de janeiro de 2003 alterando a lei nº. 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
13
No município do Rio de Janeiro, as turmas de Progressão eram formadas por alunos e alunas com 9 anos ou
mais, que não foram consideradas aptas para a terceira-série ou que estavam fora da idade para freqüentar turmas
do Primeiro Ciclo de Formação. No capítulo II, este assunto será abordado com mais profundidade.
21
o Mestrado em Educação. Após passar pelo processo tenso e árduo de seleção fui aprovada e
tornei-me mestranda da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
O estudo partiu, então, do pressuposto de que se estudantes negros tivessem a
oportunidade de ver imagens positivas da sua raça/etnia, incluídas no cotidiano escolar,
poderiam desenvolver uma auto-estima positiva resgatando sua identidade étnico-racial
passando a ver a escola como espaço para eles também, local onde podem ter voz, vez e
histórias, contribuindo assim, de maneira positiva, na construção e aquisição de novos
conhecimentos.
Considerar as falas dos sujeitos como fontes para análises é compartilhar com Bakhtin
(2003) a idéia de que o homem é ser falante e expressivo, o que faz com que suas ações
tenham significados. Assim sendo, esta pesquisa é qualitativa e se baseia na observação e no
diálogo, numa perspectiva interpretativa.
A pesquisa tem, portanto, como objetivo geral compreender os processos de
construção da identidade étnico-racial das crianças negras, a fim de contribuir para
(re)construção da auto-estima, com a utilização de livros de literatura infantil com
personagens negros e histórias de origem africana, tendo em vista crianças em turmas de
Progressão. E como objetivos específicos: 1) compreender as influências que livros de
literatura infantil, com protagonistas negros como sujeitos históricos e sociais e histórias das
culturas africanas, exercem no processo de construção da identidade étnico-racial; 2) analisar
algumas obras de literatura infantil que apresentam personagens negros e contém histórias de
origem africana e 3) analisar experiências com este tipo de literatura em turmas de Progressão
e relacioná-la aos estudos teóricos.
1.1 Mas como desenvolver esta pesquisa? – a busca por uma metodologia
Dentre as diferentes metodologias de pesquisa, optamos por realizar uma que nos
oportunizasse ter um contato mais direto com os sujeitos da pesquisa não observando e
coletando dados, mas também agindo e intervindo de modo a trazer possíveis contribuições ao
grupo.
Segundo definições de Thiollent (2004), esta pesquisa se classifica como uma
pesquisa-ação, pois uma pesquisa pode ser assim qualificada quando houver realmente uma
ação por parte das pessoas ou grupos implicados no problema sob observação (p.15). A
ação da pesquisa se deu através da intervenção no cotidiano escolar de duas escolas da rede
22
municipal do Rio de Janeiro, onde se encontram os sujeitos da pesquisa. A opção por duas
unidades escolares ocorreu por julgarmos uma quantidade viável levando-se em consideração,
principalmente, o tempo disponível, mas que ao mesmo tempo, possibilitasse coletar dados
em comunidades diferentes.
Alunos e alunas de duas turmas de Progressão de duas escolas do município do Rio de
Janeiro, sujeitos desta investigação, foram considerados possuidores de uma voz reveladora
da capacidade de construir um conhecimento sobre sua realidade que os torna co-participantes
do processo de pesquisa, como caracteriza Freitas (2003).
A fase exploratória, para um melhor diagnóstico do campo e dos sujeitos que fizeram
parte da pesquisa, consistiu em:
. pesquisa documental sobre a implementação das turmas de Progressão no município do Rio
de Janeiro com dados estatísticos quanto ao quantitativo de estudantes que vem formando
estas turmas;
. levantamento de dados sobre as duas escolas e a comunidade escolar nas quais a pesquisa foi
desenvolvida, e
. levantamento das características dos alunos e alunas de duas turmas de Progressão dessas
escolas (uma turma em cada unidade escolar) onde foram considerados os aspectos: cor/raça
(autodefinição) e idade.
A fase de coleta de dados foi realizada através da contação de histórias com
personagens negros como sujeitos sociais e histórias da cultura africana. Esta atividade foi
realizada uma vez por semana, durante um período letivo de fevereiro a junho de 2006.
As contações de histórias foram seguidas de conversas, desenhos, pinturas, recorte e
colagem, nas quais os alunos e alunas tiveram a oportunidade de representarem a si e/ou às
personagens demonstrando as características fenotípicas. Essas foram constituindo a parte
descritiva que junto das falas e reações observadas, serviram como aporte para as análises.
Buscamos em todas essas análises dialogar constantemente com o referencial teórico, pois
como diz Thiollent (2004), embora a pesquisa-ação seja com freqüência vista como
concepção empirista, sem muitas implicações teóricas, a teoria consiste em gerar hipóteses
ou diretrizes para orientar a pesquisa e as interpretações (THIOLLENT, 2004, p.55).
Segundo Barbier (2004) e Thiollent (2004), a pesquisa-ação não se limita à descrição,
explicação, previsão e avaliação de fenômenos, que são aspectos comumente presentes nas
pesquisas consideradas clássicas, mas busca produzir idéias e conhecimentos que possam
contribuir como instrumentos de mudanças sociais.
23
Lapassade
14
(apud Barbier, 2004) ao descrever sete aspectos de uma pesquisa
participativa, estaria, na concepção de Barbier, caracterizando uma nova pesquisa-ação de
cunho mais político. Dentre esses aspectos e para efeitos de relação com o tema em estudo, eu
destacaria três
15
, pois, eles revelam um tipo de pesquisa que, para além de uma ciência pura,
constitui-se também em uma atividade social e política:
. o envolvimento de um grupo de pessoas que não detém o poder: os co-sujeitos da
pesquisa são alunos e alunas de turmas de Progressão.
. o fato de não poder ser caracterizada como uma pesquisa tradicional: a participação
da comunidade alunos e alunas e professores de turmas de Progressão permite uma
análise mais próxima da realidade social desse grupo.
. a aprendizagem do pesquisador durante a pesquisa: trabalhar com o tema proposto
significa estar engajado numa ciência/militante cujo objetivo maior é a troca e o debate para
que haja um enriquecimento de todos os participantes.
Ainda de acordo com Barbier (idem), essa metodologia costuma dar aos docentes “a
vontade de participar diretamente do conhecimento dos problemas deles” (p.55), e ainda que
esses problemas não sejam provocados pelo pesquisador, mas sim constatados por este. Nesta
perspectiva, acredito que a opção pela pesquisa-ação se deu também por razões relacionadas a
minha prática docente, de observações no cotidiano escolar, de onde emergiu o desejo e a
questão a ser pesquisada e a opção metodológica.
Pesquisar o/no cotidiano é um desafio e requer que se perceba os processos individuais
e os coletivos e as relações entre eles. Requer também do pesquisador o desafio de lidar com
as certezas e incertezas, com o previsível e o imprevisível, com o visível e com o que está
invisível. Nas palavras de Esteban, o cotidiano é uma metodologia
(...) completamente interessada nos processos que buscam, simplesmente,
mudar o mundo e, com esta finalidade, pretende melhor compreender a
complexidade humana, ampliando as possibilidades de interpretação e
compreensão do cotidiano, e indagando os mecanismos de ocultamento que
são cotidianamente produzidos nas relações sociais. (ESTEBAN, 2003,
p.201)
Esteban nos chama a atenção sobre o quanto é mais difícil quando escolhemos a escola
como campo de pesquisa do cotidiano, classificando-a como a própria teoria do caos,
14
LAPASSADE, Georges. L’ ethnosociologie [A etnossociologia]. Paris: Méridiens Klincksieck, 1991.
15
Os outros quatro aspectos estariam relacionados ao envolvimento da comunidade na escolha do problema, à
transformação radical da realidade das pessoas envolvidas, à conscientização e mobilização da comunidade e à
participação total dessa comunidade. (BARBIER, 2004, p. 61)
24
fazendo a observação de que nela tudo acontece ao mesmo tempo e, frequentemente, fora da
hora que deveria acontecer (idem, p.202).
A pesquisa no cotidiano escolar nos instiga a pesquisar com um método que não esteja
totalmente pronto, a priori, mas que vai se constituindo no processo dialético onde a prática
nos instiga a ver e rever a teoria que nos faz voltar à prática com esta teoria ressignificada
(GARCIA, 2003, p. 10).
Para analisar as falas e representações (re)produzidas pelos sujeitos desta pesquisa,
levamos em consideração que nenhum discurso é neutro, portanto, para compreender o
discurso do indivíduo, foi necessário considerar algumas representações hegemônicas e
naturalizadas –representações sociais-
16
que a sociedade tem da população negra. “Cada
enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados”
(BAKHTIN, 2003, p. 272).
Além das falas, os desenhos produzidos pelos sujeitos desta pesquisa, também nos
serviram como fonte de análise. Constatamos o que dizem as teses da teoria histórico-cultural
de que o desenho não pode ser analisado desvinculado da fala, pois este também é uma
linguagem. Durante ou após a elaboração dos desenhos, tanto a fala comunicativa quanto a
fala egocêntrica
17
puderam ser constatadas. As crianças compararam desenhos, intervieram na
produção do outro, provocando, até, em alguns momentos, mudanças significativas nas
produções ou comentários com outras crianças da turma ou com a pesquisadora e muitas das
vezes falaram consigo mesmos enquanto planejavam ou produziam seus desenhos.
Concordamos com Derdyk (1989) que o desenho como linguagem para a arte, para
a ciência e para a técnica, é um instrumento de conhecimento, possuindo grande capacidade
de abrangência como meio de comunicação e de expressão” (p.20).
A mesma autora, fazendo referências a Mèredieu (1974) nos diz que
O desenho, bem como o sonho, pode participar de dois níveis de leitura.
Podemos detectar o “conteúdo manifesto” do desenho que seriam as
imagens ali presentes no papel e o “conteúdo latente”, que trata das
mensagens subliminares, escondidinhas também ali no papel. Esta possível
interpretação sugere ser o desenho uma atividade que, além de envolver
uma operacionalidade prática, o manejo de materiais e instrumentos, pode
16
Representações Sociais é um termo filosófico que tem como significado a reprodução de uma percepção
retida na lembrança do conteúdo do pensamento e são definidas, pelas Ciências Sociais como categorias do
pensamento que expressam a realidade explicando-a, justificando-a ou questionando-a, conforme encontramos
em Minayo (1995).
17
A fala egocêntrica, quando a criança fala para si mesma, não só acompanha a ação da criança como também é
um instrumento do pensamento ao procurar e planejar resolução de um problema (ocorrido durante a produção)
além de ser uma possibilidade de manifestar e extravasar tensão. (SILVA, 2002)
25
envolver um resgate de uma simbologia complexa que existe por detrás da
representação visual por meio de signos gráficos, fruto do intenso exercício
mental, emocional, intelectual que o ato de desenhar promove (DERDYR,
1989, p.54).
Nesta pesquisa, tanto o conteúdo manifesto, quanto o conteúdo latente, foram
considerados como fundamentais para as análises.
26
2. TURMAS DE PROGRESSÃO: O QUE SÃO E COMO SURGEM ? – Espaços-
tempos compartilhados dos sujeitos desta pesquisa
A cabeça pensa a partir
de onde os pés pisam
18
.
O artigo IV do parágrafo primeiro da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
19
faculta
aos sistemas de ensino, desdobrar o ensino Fundamental em ciclos. No município do Rio de
Janeiro, a implementação do Primeiro Ciclo de Formação se deu no ano 2000
20
. O primeiro
ciclo de Formação buscava atender alunos e alunas de seis, sete e oito anos, com enturmações
por idade
21
. Os três anos do ciclo eram denominados, respectivamente, como: Ano I, Ano II e
Ano III. Os alunos e alunas com mais de oito anos de idade com defasagem idade-
escolarização foram matriculados nos Programas de Aceleração da Aprendizagem I e II para o
ano letivo de 2000. Os demais continuavam no sistema seriado que abrangia da terceira à
oitava série. Em 2001, foram extintas as turmas de Aceleração da Aprendizagem I. O
Programa de Aceleração da Aprendizagem II foi mantido com a finalidade de atender alunos
e alunas de 11 anos ou mais que haviam sido reprovados no Programa de Aceleração da
Aprendizagem I. Os alunos e alunas atendidos por estes programas eram os que se
encontravam em defasagem em relação à idade-série.
Uma justificativa dada pela SME (Secretaria Municipal de Educação), em fascículo
distribuído aos professores sobre a implantação do ciclo, foi a busca de uma nova organização
curricular que apresentasse outra forma de estruturação do tempo escolar, assegurando o
direito de cada aluno ser atendido em suas necessidades.
O registro sobre o desenvolvimento de cada aluno era feito através de relatórios
individuais e de um “relatório síntese da turma”.
Enquanto os conceitos para as turmas seriadas eram: PS (Plenamente Satisfatório) S
(Satisfatório), EP (Em Processo),
22
os indicadores para as turmas do cicladas de acordo com a
Resolução 684/2000 eram:
18
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Petrópolis, Vozes, 1977.
19
Lei Federal nº 936/94 de 1996.
20
Portaria nº 12 E/DGED.
21
É considerada a idade do aluno em 28 de fevereiro.
22
PS - (plenamente satisfatório) - quando o aluno realizar, de maneira independente, mais de 70% do que lhe for
proposto, demonstrando compreensão do conjunto dos conceitos, habilidades e valores trabalhados, na mesma
proporção;
S - (satisfatório) - quando o aluno realizar parte do trabalho escolar de maneira independente, numa faixa
compreendida entre 40% e 70% do que lhe for proposto, demonstrando compreensão do conjunto dos conceitos,
habilidades e valores trabalhados, necessitando de ajuda em algumas situações;
27
I - trabalha com autonomia e demonstra compreensão dos conceitos, habilidades e valores
trabalhados, utilizando-os em diferentes situações;
II- trabalha com relativa autonomia, demonstrando estar construindo conceitos e valores, e
desenvolvendo habilidades, embora necessite, eventualmente,de ajuda;
III- demonstra estar construindo conceitos e valores e desenvolvendo habilidades, embora
necessite, constantemente, de ajuda;
IV- demonstra, ainda, dificuldades na construção dos conceitos e valores, e no
desenvolvimento das habilidades, mesmo com ajuda constante.
Em 2003, uma nova Resolução (776) unifica os conceitos tanto das turmas seriadas
como das cicladas passando a: O (ótimo), MB (Muito Bom), B (Bom), R (Regular) I
(Insatisfatório). Em caso de freqüência menor do que 75%, o aluno deveria ser reclassificado,
no ano subseqüente, visando a enturmação que lhe permita a normatização. Por esta
Resolução também as turmas de Ciclo passaram a ser denominadas como: Ano Inicial (para
alunos e alunas de 6 anos), Ano Intermediário (para os de sete anos) e Ano Final (para os de
oito anos).
No período de realização da pesquisa, o aluno, ao completar o primeiro ciclo de
formação, deveria ser avaliado levando-se em consideração seu nível de apropriação da leitura
e escrita de modo que o professor verificasse se a criança estaria apta a cursar a terceira série
do Ensino Fundamental.
E como eram enturmados aqueles não considerados aptos a serem matriculados na,
agora extinta, terceira-série, ou seja aqueles avaliados com indicador IV, até 2002 e a partir de
2002 com conceito I (Insuficiente)? E os alunos e alunas que chegavam à rede fora da idade
contemplada pelo Primeiro Ciclo de Formação, mas que, pelo seu histórico escolar ou na
ausência deste e por questões de idade, não pudessem ser matriculados na terceira série? Para
tais alunos e alunas, foi estabelecida através da resolução SME691, de 27 de dezembro de
2000 e regulamentada pela Portaria E/DGED 08 de 04/01/2001 as Classes de Progressão
criadas com a expectativa de conduzir o fluxo escolar dos alunos e alunas, dando-lhes a
possibilidade de serem incluídos na terceira-série ou no Programa de Aceleração da
Aprendizagem II (D.O., 2007, p.24). Nestas turmas seria dado aos alunos e alunas um pouco
EP (em processo) - quando o aluno, mesmo contando com a ajuda direta do professor e de colegas mais
experientes, realizar, no máximo, 39% do trabalho escolar, apresentando dificuldades na compreensão do
conjunto dos conceitos, habilidades e valores trabalhados.
28
mais de tempo para que lhes fossem ensinados os conhecimentos e valores necessários à
continuidade da sua escolaridade (SME, 2005, p.5).
De acordo com um dos fascículos sobre o ciclo distribuído pela SME aos professores,
além de buscar atender os que não concluíram o primeiro ciclo com sucesso, esta resolução
atenderia também aos alunos e alunas que ingressassem na rede de ensino público municipal,
tardiamente, ou seja, com mais de nove anos.
As Classes de Progressão se destinavam, portanto, aos alunos e alunas de nove anos ou
mais de matrícula inicial, ou que necessitassem consolidar o processo de leitura e escrita.
O ano letivo de 2007 foi iniciado com mudanças na Rede Municipal de Educação do
Rio de Janeiro. Com a publicação da Portaria 30 do E/DGED
23
em dezembro de 2006,
foram implantados o Segundo Ciclo de Formação atendendo a alunos e alunas de 9,10 e 11
anos e o Terceiro Ciclo de Formação para alunos e alunas na faixa de 12, 13 e 14 anos,
composto de um total de 600 dias letivos cada um dos ciclos. Com isto, houve a extinção da
seriação e das turmas de Progressão.
Os alunos e alunas oriundos das turmas de Progressão foram, de acordo com a portaria,
enturmados, em 2007 da seguinte forma:
. no Segundo Ciclo de Formação - Período Inicial, se com 9 anos,
. no “Projeto Adolescentes”, de caráter acelerativo e excepcional, para os alunos e
alunas com 14 e 15 anos, que ainda necessitassem consolidar o processo de leitura e escrita,
. no PEJA (Programa de Educação de Jovens e Adultos), se com 16 anos ou mais.
Apresentamos a seguir o quadro com o número de alunos e alunas matriculados nas
turmas de Ciclo, Progressão e demais séries do primeiro segmento do Ensino Fundamental, de
2004 a 2006, conforme dados fornecidos pela SME:
23
Departamento Geral de Educação
29
Quadro 1: Total de matrículas em março 2004
Quadro 2: Total de matrículas em março de 2005
Quadro 3: Total de matrículas em março de 2006
Observando os dados dos quadros, pode-se verificar que o percentual de estudantes
matriculados em turmas de Progressão no ano de 2005, corresponde a 46% dos que estavam
matriculados em turmas de Ano Final do Ciclo em 2004. De 2005 para 2006, há uma pequena
queda neste percentual que passa para 42%, mas que ainda pode ser considerado um índice
muito alto.
Mesmo levando em consideração que havia crianças matriculadas nas turmas de
Progressão por serem novos na rede, sem escolaridade e com mais de nove anos, o número de
crianças nestas turmas é preocupante e assustador. Devemos levar em consideração também
o quanto de retenção acontece nas turmas de Progressão, ou seja, estudantes que estão na
Progressão um, dois, três ou mais anos. Podemos verificar que a soma do quantitativo de
alunos e alunas matriculados em 2004 e 2005 nas turmas de Ano Final do Ciclo e Progressão,
encontram-se abaixo do número de estudantes matriculados na terceira série dos anos de 2005
e 2006.
Pela maneira como eram formadas, as turmas de Progressão acabavam, muitas vezes,
sendo aquelas que sobravam nas escolas, isto é, nenhum professor as escolhia para trabalhar,
ficando essa “opção” para os docentes mais novos na unidade escolar ou na rede. Em geral,
30
ANOS DO CICLO DEMAIS GRUPOS
ANO
INICIAL
ANO
INTERMEDIÁRIO
ANO
FINAL
PROGRESSÃO 3ª SÉRIE 4ª SÉRIE
62.712 64.190 57.035 25.904 78.736 71.885
ANOS DO CICLO DEMAIS GRUPOS
ANO
INICIAL
ANO
INTERMEDIÁRIO
ANO
FINAL
PROGRESSÃO 3ª SÉRIE 4ª SÉRIE
66.159 61.406 58.110 31.077 78.719 65.372
ANOS DO CICLO DEMAIS GRUPOS
ANO
INICIAL
ANO
INTERMEDIÁRIO
ANO
FINAL
PROGRESSÃO 3ª SÉRIE 4ª SÉRIE
65.202 59.974 59.006 23.859 75.749 71.835
estas turmas eram tidas como: “bagunceiras, agressivas, problemáticas, difíceis,
improdutivas”. Eram turmas muitas vezes formadas por alunos e alunas de diferentes idades e
em níveis de apropriação da leitura e da escrita muito diferenciados. Esta heterogeneidade de
que muitos(as) professores (as) reclamavam e reclamam ainda, pode representar uma riqueza
de experiências, vivências e histórias de vida, possibilitando inúmeras trocas que contribuem
na construção do conhecimento. Em conversa com professores, ouve-se muito sobre a baixa
auto-estima que estes alunos e alunas apresentam.
O fato de, ao final do primeiro ciclo, não ter acompanhado o processo de
alfabetização, de acordo com as expectativas da escola e do professor e ir para uma turma de
Progressão, contribuía para a confirmação de uma auto-imagem negativa, que podia
fortalecer, no aluno, um sentimento de incapacidade de aprender. Ao expressarem opiniões
sobre estar em turmas de Progressão, encontramos respostas que confirmam ou que se opõem
a esta idéia.
2.1 O que alunos e alunas dizem sobre estar em uma turma de Progressão?
(...) se o tempo de aprendizagem não coincidir com o
tempo da escola, o tempo vivido termina sendo
considerado tempo perdido
24
(SAMPAIO, 2003, p. 25)
24
Grifos do autor.
31
Muitos foram os silêncios após a pergunta sobre o que achavam de estar na
Progressão. Algumas crianças ficaram imóveis nas cadeiras. Parece que falar sobre estar
numa turma de Progressão não era tão fácil, pois, esta situação era vista como fator de
inferioridade.
As falas parecem indicar que gostariam de estar no espaço-tempo considerado como
legítimo para eles e poder aprender aquilo que a escola deveria lhes ensinar. Embora o Ciclo
de Formação tenha como principal objetivo dar mais tempo ao aluno em sua fase de
alfabetização, o tempo escolar não deixa de existir. Sampaio (2003) nos uma pista que
ajuda na compreensão deste tempo - que parece demorar a passar, presente na fala das
crianças -, ao mostrar que a crença, construída ao longo do tempo, que a professora precisa
25
ensinar e a criança precisa aprender em um tempo, aparentemente homogêneo e
(pré)definido para todos, ainda é muito presente no cotidiano escolar. (p.25)
Quando a criança diz querer ir para a quarta-série porque está muito tempo na
escola, pode ser um indicativo da crença neste tempo homogêneo, pois ela diariamente
colegas com os quais compartilhava tempos e espaços escolares em algum momento e que
agora se encontram em outras salas, em outras séries mais avançadas do que a dela. É como
se ela, estivesse parada no tempo, pois “não conseguiu” acompanhar o ritmo e o tempo da
escola e caminhar junto daqueles que eram seus pares, ou mais que isso, é como se tivesse
perdido muito tempo na escola, pois como enfatiza: - está ali desde pequenininho.
Na verdade, se não eram reprovados pela escola estavam “reprovados” pela própria
situação de desacompanhamento dos pares, a que se viam obrigados a enfrentar. No entanto,
no que se refere a um tipo de reprovação ou outra, pesquisas mostram qual é a cor da
reprovação no Brasil. O número de estudantes negros que fracassam na escola, que são
levados à evasão ou engrossam os índices de distorção idade-série ainda são alarmantes.
Segundo os dados do IPEA
26
(2002), enquanto o índice de distorção idade-série entre a
população branca no Ensino Fundamental, no ano de 2001, era de 25%, o índice da população
negra era de 45%. Embora estas diferenças venham apresentando pequenas quedas, a
situação escolar dos negros ainda encontra-se em desvantagem.
Através de dados empíricos: observação de turmas, de fichas de matrículas e
conversas informais com professoras e coordenadoras de turmas, salta aos olhos a cor dos
25
Grifos da autora.
26
IPEA : Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
32
alunos e alunas das turmas de Progressão no Município do Rio de Janeiro: são negros. Se os
negros e negras são os que ainda mais engrossam as estatísticas do fracasso escolar, parece ser
essencial o resgate da auto-estima e da identidade étnico-racial destes.
Mas como escolher duas dentre tantas turmas de Progressão, as que seriam sujeitos
desta pesquisa? Que critérios utilizar?
2.2 Por dentro dos espaços-tempos escolhidos...
No ano de 2006, a rede municipal do Rio de Janeiro totalizava 1054 unidades
escolares atendendo estudantes da Educação Infantil à oitava-série. Em março deste mesmo
ano, contava com 856 turmas de Progressão, segundo dados da SME, através do quadro de
matrículas. A escolha por duas destas turmas, se deu, a princípio pela opção de que fossem de
comunidades diferentes. Para tanto, uma seria, preferencialmente, da zona sul da cidade e
outra da zona norte para que pudesse ter como sujeitos da pesquisa, alunos e alunas de
diferentes comunidades.
A escolha da primeira escola estava mais ou menos definida, pois tinha o desejo de
desenvolver a pesquisa na escola onde atuava como professora. Fui à escola após o período de
matrícula e conversei com a diretora adjunta que logo aceitou que a pesquisa fosse feita
naquela unidade. Faltava, no entanto, saber qual o quantitativo de alunos e alunas negros na
turma de Progressão. Solicitei as fichas brancas
27
onde encontramos a foto de cada aluno.
Por elas, foi possível identificar que 14 dos 22 matriculados na turma eram negros, o que
equivale a 63%. Como a escola se localiza na zona sul da cidade, os critérios iniciais
estavam sendo atendidos.
Esta unidade escolar se localiza dentro de uma comunidade considerada favela de
asfalto, praticamente na divisa entre três bairros considerados nobres: Lagoa, Ipanema e
Leblon. A escola fica mais precisamente no bairro do Leblon
28
, um dos metros quadrados
mais caros da cidade do Rio de Janeiro. Logo, as diferenças sociais, econômicas e raciais se
evidenciam. Os primeiros moradores, em sua maioria operários e empregadas domésticas,
eram oriundos da favela da Praia do Pinto, formada por casas sem infra-estrutura.
27
Como são denominadas as fichas de matrículas na Rede Municipal do Rio de Janeiro.
28
Da língua tupi, dos índios Tamoios que habitaram a região, Leblon, Ypaum: "ilha ou entre canais de água",
que se refere ao canal do Jardim de Alah, que o separa do bairro de Ipanema. Os índios consideravam como ilha,
muito provavelmente por estar cercado de águas do canal, da lagoa e do mar.
33
O desejo de muitos da classe dominante, naquela época, década de 50 e que se
propaga até os dias de hoje - era transferir os moradores da favela para a periferia da cidade,
retirando-os da área nobre. No entanto, o arcebispo Dom Hélder Câmara defendeu a idéia e
buscou recursos, através do Banco da Providência, para a construção dos prédios que
abrigariam os moradores da favela.
Em terreno doado à cúria pela Marinha, foram construídos dez blocos com sete
andares cada um, num total de 910 apartamentos sendo alguns conjugados, outros de um ou
de dois quartos. Foram construídas também uma igreja e uma escola.
Local conhecido hoje como Cruzada São Sebastião. Mesmo com a construção dos prédios, a
favela da Praia do Pinto continuava a existir e a crescer. No entanto, começaram a acontecer
incêndios que foram destruindo as casas, até que um deles, de grandes proporções, acabou
definitivamente com a favela. Neste local foram construídos prédios para a classe média alta.
34
Esta escola recebe não só as crianças que residem na comunidade, bem como os filhos
de porteiros e de empregadas domésticas que trabalham nos prédios e residências do entorno,
como também moradores do morro do Vidigal e da Rocinha e ainda alguns poucos moradores
do bairro, pertencentes à classe média, que por quedas de padrão de vida se vêem obrigados a
retirar seus filhos de escolas privadas e os matricularem na rede municipal.
A unidade escolar funciona em dois turnos, e na época da pesquisa, atendia a crianças
de Educação Infantil, 1º Ciclo de Formação, Progressão, terceira e quarta séries.
A escola se divide em três pavimentos. No andar térreo, um hall de entrada com
acesso às escadas, um pequeno pátio e uma quadra de esportes de tamanho oficial. No
segundo andar, um auditório (também utilizado como sala de vídeo), quatro salas de aulas,
sala de direção com banheiro, sala dos professores também com banheiro, despensa,
almoxarifado, cozinha com uma mureta que a divide do refeitório e os banheiros de meninas e
de meninos distantes um do outro.
No terceiro andar, localizam-se a sala da coordenação, uma sala de informática, mais
quatro salas de aula; uma sala grande toda espelhada que usada para aulas de dança (quando
profissional disponível) e eventualmente, para Educação Física (quando por algum motivo
a quadra não pode ser utilizada), por turmas da Educação Infantil ou por outra turma,
principalmente, para atividades corporais; um banheiro para funcionários da limpeza;
banheiro para as turmas de Educação Infantil e banheiro para as turmas de Ano Inicial do
Ciclo. Quando crianças maiores estudando no terceiro andar da escola, estes são
orientados a utilizar os banheiros do segundo andar.
A primeira turma de Progressão desta escola foi formada em 2005. Até então, como o
número de alunos e alunas que deveria ser matriculado em tais turmas ficava abaixo de vinte,
estes eram encaminhados para outras unidades escolares próximas. A escola passou a ter
turma de Progressão não porque o quantitativo ultrapassara a 20 alunos e alunas, mas
também por pressão de outras unidades escolares do entorno que faziam críticas considerando
injusto terem que receber alunos e alunas para tal turma. A alegação destas escolas era de que
as unidades que não tinham turmas de Progressão apresentavam melhores resultados diante
das avaliações de desempenho feitas pela Secretaria Municipal de Educação a cada bimestre,
e as que possuíam estas turmas acabavam sendo prejudicadas, pois o quantitativo de conceitos
baixos aumentava.
Para atender a primeira turma de Progressão, a direção e a coordenação da escola me
propuseram o desafio de trabalhar com a turma, por me avaliarem como tendo experiência em
35
alfabetização e em lidar com alunos e alunas considerados como tendo dificuldades de
aprendizagem e de comportamento. O desafio foi aceito.
Em 2005, eu era a professora que iria trabalhar com a turma de Progressão, mas fiquei
apenas por dois meses. Por ter sido aprovada para o Mestrado, foi necessário trocar meu
horário de trabalho. A professora que me substituiu foi a mesma que no ano seguinte foi a
professora da segunda turma de Progressão desta unidade escolar.
A turma pesquisada era formada por 22 alunos e alunas. Sendo 4 meninas e 18
meninos. Do total de alunos e alunas, 4 estavam pelo segundo ano na Progressão. Todos
oriundos da própria escola, com idades entre 9 e 11 anos.
A escolha da segunda escola, situada na zona norte, se deu através de uma conversa
informal com a coordenadora da escola. Eu havia trabalhado naquela unidade escolar por
um período muito curto, que não chegou a um mês. Foi durante as férias de janeiro de 2000,
quando por não ter ainda um ano de trabalho na nova matrícula que assumira na rede
municipal, assumi as aulas de recuperação para os alunos e alunas reprovados na primeira
série. Era exatamente o momento de transição da seriação dos anos iniciais para o Primeiro
Ciclo de Formação.
Mesmo depois de sair da escola, continuei a ter contatos esporádicos com a
coordenadora que quando soube que eu estava cursando o Mestrado em Educação, quis saber
sobre o projeto. Quando perguntei se na turma de Progressão havia muitos alunos e alunas
negros, a resposta que ouvi logo de imediato foi: - Aquela turma mais parece um quilombo!
Esta frase foi decisiva. A escola da zona norte se definira ali.
A escola está situada no bairro do Andaraí
29
que foi durante muitos anos,
principalmente no século XIX, um bairro industrial, pois nos bairros vizinhos, principalmente:
Tijuca e Grajaú, considerados bairros nobres, não eram permitidas construções de indústrias
por serem considerados bairros residenciais. O morro surge, então, como opção de moradia
para muitos trabalhadores dessas fábricas.
Embora no bairro do Andaraí possamos encontrar muitos condomínios habitados por
pessoas da classe média, é comum as pessoas trocarem o nome do bairro ao ter que mencionar
seus endereços, substituindo-o pelos bairros: Tijuca, Grajaú ou Vila Isabel. Muito
29
Proveniente da expressão indígena "Andirá-y", que significa "Rio dos Morcegos", na linguagem dos
índios tamoios que habitavam a região. O "Rio dos Morcegos" hoje é denominado Rio Joana, que
atravessa o bairro, dividindo as duas pistas da principal rua do bairro.
36
provavelmente, por este bairro ter o mesmo nome do morro e a associação entre o nome e a
favela serem feitos de imediato.
E não este, mas também os demais, morros e favelas da cidade são espaços onde se
registram os maiores percentuais de população negra e como podemos observar no mapa, a
escola se localiza numa rua de acesso ao Morro do Andaraí.
Os alunos e alunas matriculados nesta unidade escolar são, em sua grande maioria,
moradores do morro ou filhos de empregadas domésticas dos prédios dos arredores.
A escola foi inaugurada em 1938 e reinaugurada em 1990. O prédio possui dois
andares. No andar térreo ficam as salas da direção e dos professores com banheiro, dois
banheiros que são utilizados pelos alunos e alunas e um pátio pequeno (aproximadamente 60
m
2
), onde as crianças brincam no horário do recreio e que é separada do refeitório por uma
mureta. também um pequeno espaço entre o muro e o prédio, no qual as crianças também
brincam. Por este espaço ser pequeno, o recreio, que também é o horário no qual as crianças
comem, é dividido em cinco horários, de trinta minutos cada um, mas que as turmas descem a
cada vinte minutos, ou seja, durante dez minutos, duas turmas se encontram.
37
No andar superior, uma sala de leitura, utilizada também como sala de vídeo, cinco
salas de aula, e uma sala da coordenação pedagógica. Em 2006, a escola atendia a um total de
dez turmas divididas em: 1º Ciclo de Formação, Progressão, terceira e quarta séries.
Nesta unidade escolar, havia turmas de Progressão desde 2001. Segundo a
coordenadora pedagógica, a escola sempre manteve matriculados e enturmados os alunos e
alunas que eram indicados para as Classes de Progressão, não encaminhando-os para outras
unidades escolares.
Ainda de acordo com a coordenadora, a direção da escola procura respeitar a escolha
das turmas feita pelos professores e que é muito comum a opção por continuar com a turma
do ano anterior, sempre que possível.
Em 2006, a turma de Progressão foi a que sobrou, o que costumava ser comum, não só
nesta, mas em outras unidades escolares. A professora que assumiu a turma veio de uma
escola próxima a título de dupla regência.
30
. A turma formada por 32 alunos e alunas sendo
18 meninas e 14 meninos era a primeira turma de Progressão da professora.
No que se refere à idade dos alunos e alunas pesquisados tem-se o seguinte quadro:
Quadro 4: a idade dos alunos e alunas:
Idade* Escola da Zona Sul Escola da Zona Norte
9 anos 14 16
10 anos 8 8
11 anos - 6
12 anos - 2
*Foi considerada a idade em fevereiro de 2006
Interessava-nos saber como as crianças se identificavam em relação à sua cor
31
.
Considerando que “(...) a posição dos indivíduos sobre sua cor é extremamente
influenciada pelas relações sociais (...)” (OLIVEIRA, 1999, p.48) assim como esta autora o
fez em sua pesquisa, também aqui, optamos pela autodefinição, sem alternativas de categorias
raciais, por considerarmos fundamental para a elaboração deste trabalho.
30
Termo utilizado na Rede Municipal do Rio de Janeiro no qual o professor trabalha numa carga dupla, mas sem
duplo vínculo empregatício.
31
Assim como Oliveira (1999), nesta pesquisa também estamos fazendo uso do termo cor, como sinônimo de
raça.
38
A pergunta: Qual é a sua cor? Foi feita oralmente em vários encontros até que todos
os alunos e alunas respondessem, pois a freqüência, principalmente da escola da zona norte,
demonstrava ser bastante irregular.
Quadro 5: Auto definição em relação à cor e o auto-retrato
Como as crianças negras
se identificaram em
relação a cor.
Escola da Zona Sul Escola da Zona Norte
Morena(o) 9 18
Preta(o) 4 5
Mulata - 1
Branca(o) 3 2
Negra (o) 1 3
Marrom 2 1
Escura - 1
Mais ou menos branca(o) - 1
Chocolate 1 -
Um pouco negra(o) 1 -
Não soube responder 1 -
Total 22 32
Se considerarmos que marrom, escuro, como sendo cores de pessoas negras, sendo
estas turmas de Progressão da Zona Norte ou da Zona Sul, o número de crianças negras é
significativo. Enquanto solicitava aos alunos e alunas que se autodeclarassem em relação à
cor, eram comuns os silêncios prolongados e as intervenções de colegas dando opinião sobre a
cor que achavam que o outro deveria dizer.
O desenho do auto-retrato foi uma atividade realizada no primeiro encontro com as
turmas. Cada aluno recebeu uma folha tamanho A6 com o contorno de uma moldura
simples, em linhas retas sem preenchimento e foi solicitado que cada um fizesse o seu retrato.
Após confeccionar o desenho, deveriam fazer uma arte na moldura.
39
Auto-retrato 1
Auto-retrato 2
40
Auto-retrato 3
Na escola da zona norte, na atividade do auto-retrato, havia 21 alunos e alunas, sendo
18 visualmente negros e negras. Desses, 7 se pintaram como loiros, sendo três de olhos azuis,
4 com cabelos pretos, sendo uma de olhos verdes, 4 de cabelos cor de rosa, 1 de cabelo
marrom e 5 não pintaram o cabelo. Estes cinco, não definiram a cor dos olhos. Duas crianças
fizeram o cabelo crespo no desenho.
na escola da zona sul, havia 19 alunos e alunas, sendo 14 visualmente negros e
negras. Ao produzir o auto-retrato, 14 pintaram o cabelo de preto, 3 pintaram de loiro, sendo
duas destas crianças negras, 2 de rosa. Três pintaram os olhos de preto, dois de azuis (sendo
que uma delas tem, mas não é negra) e os demais não utilizaram cor alguma para os olhos.
Nesta atividade, 67% das crianças visivelmente negras das duas escolas não pintaram
o rosto no auto-retrato e 33% pintarem com lápis de cor bem claro num tom mais próximo ao
rosa. Nenhum aluno(a), de nenhuma das duas escolas, mesmo os que se auto-declararam
negros(as) se retratam como tal no desenho.
A aluna do auto-retrato 1 se autodefiniu como mulata, a aluna do auto-retrato 2, como
morena e o do 3 como preto. As três crianças são visualmente negras, com um tom de pele
bem escuro e cabelos muito crespos.
41
Durante a atividade a aluna do auto-retrato 2 fez a seguinte queixa de duas colegas que
estavam sentadas no mesmo grupo que ela:
- Elas estão falando do cabelo que eu fiz. “Mas eu tenho que fazer do jeito que eu sou.
Não é?”
As duas alunas, uma delas é a do auto-retrato número 1, a qual ela se refere, são negras
e fizeram os cabelos lisos e pintados de loiros. Mas,ao mesmo tempo em que a aluna que fez
a observação de que deveria se desenhar como ela era, desenhou o cabelo mais crespo,
embora em tom aloirado, mas, seus olhos estão pintados de azul.
Ao receber o auto-retrato 3, perguntei ao aluno se ele não iria pintar o rosto e,
rapidamente, me respondeu:
- Não. Se eu pintar da minha cor, vai ficar feio.
- Feio, por quê? – Retruquei.
- Não sei o porquê, mas sei que vai ficar muito feio.
A fala deste aluno de 9 anos, parece deixar transparecer o quanto há uma ideologia que
associa o ser negro a ser feio.
Apesar de o processo de branqueamento físico da sociedade ter fracassado,
seu ideal inculcado através de mecanismos psicológicos ficou intacto no
inconsciente coletivo brasileiro, rondando sempre as cabeças de negros e
mestiços. Este ideal prejudica qualquer busca de identidade baseada na
negritude e na mestiçagem. (MUNANGA, 2004, p.16)
Talvez as palavras desse aluno reflitam o comportamento dos demais pela ausência do
uso de lápis de cor que se aproximasse ao menos da auto-identificação.
42
3. NEGROS E NEGRAS: COMO SÃO REPRESENTADOS AO LONGO DA
HISTÓRIA DA LITERATURA INFANTIL?
A verdade que se perdeu de manhã
volta para casa à noite
32
Durante muitas décadas, os negros e negras foram retratados nas histórias infantis,
como figuras ingênuas, escravos, serviçais, subalternos, desempregados, órfãos, abandonados,
como coadjuvantes da ação, como mostra Abramovich(2001). Quando eram mulheres,
apareciam como cozinheiras ou lavadeiras, geralmente gordas, vistas como crias da casa
como encontramos, por exemplo nas histórias do “Sítio do Pica-pau Amarelo” de Monteiro
Lobato (1921), intelectual participante dos movimentos nacionalistas: a figura de Tia
Nastácia é ingênua, gorda, supersticiosa, excelente cozinheira e conta histórias fantásticas.
Esta personagem é considerada por Oliveira,um estereótipo marcante na literatura infantil”
(1993, p.26). Esses estereótipos são transmitidos tanto através da linguagem verbal, quanto da
não verbal, através das ilustrações.
Pinto (1987) em sua pesquisa sobre representação do negro em livros didáticos para
leitura no período de 1941 a 1975, em relação às ilustrações, verificou: ausência de
personagens negros e mestiços ilustrados nas capas ou “ocupando posição proeminente na
ilustração, quando em companhia de outros” (p.88); diferença entre o tratamento estético
dado às personagens brancas e às personagens negras, pois estas últimas apareciam mais
frequentemente representadas de forma grotesca e estereotipada; substituição da mulher negra
pela doméstica negra, com físico avantajado; maior diversificação das atividades profissionais
exercidas pelas personagens brancas sendo também as que denotavam maior poder e
prestígio, que as exercidas pelas personagens negras.
No que se refere aos textos, a pesquisadora constatou que não diferia do que ocorria
com as ilustrações. Mas deu alguns destaques: omissão da informação sobre a cor da
personagem quando esta era branca; personagens brancas denominadas, em maior proporção,
através de nomes próprios enquanto negros e mestiços eram denominados principalmente
através da etnia; maior percentual de personagens brancos vivos ou atuando como tal em
comparação aos negros e mestiços apresentados em maior proporção como mortos, com
pouca possibilidade de atuação e principalmente, maior percentual de personagens negativos
32
Provérbio africano
43
entre os negros e negras. A pesquisadora ressalta que praticamente, não encontrou nos livros
uma defesa explícita do preconceito.
Pelo contrário, no nível mais explícito, que se configura pela declaração de
intenções, detectadas nos princípios emitidos e na estrutura demonstrativa
das estórias percebe-se a intenção de fazer do livro um veículo de abertura,
de formação de consciência democrática. Entretanto, quando a análise
desce ao nível menos explícito, que se consegue captar principalmente
através de uma decodificação de mensagem, da relativização dos seus
diversos aspectos, bem como da maneira como eles se relacionam e se
inserem no todo, percebe-se um descompasso entre aquilo que se proclama
como objetivo e aquilo que se concretiza de fato, através da criação das
personagens (PINTO, 1987, p.89).
O preconceito racial, portanto, aparece na literatura infantil, muitas vezes, de maneira
camuflada, mas que nem por isso deixa de contribuir para a formação de identidades de
negros e não negros.
Pensar nos conceitos e preconceitos que o livro de literatura infantil pode transmitir
nos remete à tênue relação entre o ilustrador e o autor. (...) o ilustrador é tão autor quanto o
escritor, dada a complementaridade entre texto e ilustração (SOARES, 2003, p.40).
Os livros de literatura infantil têm sido alvos de críticas dos movimentos negros
brasileiros, principalmente dos anos de 1970 em diante, que através de estudos e pesquisas
responsabilizaram tanto a escola quanto a mídia, pela veiculação de “um modelo
homogeneizador e hierarquizado da população, baseado na primazia da cultura ocidental”
(D’ADESKY, 2000, p.65) e pelo reforço da ideologia de superioridade da raça branca sobre
as demais. Estudos acadêmicos se voltaram para uma análise de conteúdo de temas que
captassem a veiculação explícita e implícita do preconceito através da discussão dos temas
abordados na literatura didática. (NEGRÃO, 1987, p.86).
Cada vez mais, vemos pesquisadores apontando para uma necessidade da presença do
negro na literatura infantil. Com isso, produções mais recentes têm surgido com imagens e
narrativas que vão para além das denúncias de preconceitos, mas que retratam o negro como
ser histórico e social. São livros que buscam romper com a idéia de superioridade de uma raça
sobre a outra e possibilitar um outro olhar sobre o negro, surgindo como protagonista e
possibilitando uma valorização do ser negro, sem o estigma da escravidão e do sofrimento, ao
qual até na literatura, todo negro parecia estar fadado.
Depois de muitas denúncias, críticas e lutas do movimento negro, algumas obras
foram modificadas sendo retiradas imagens e textos que reforçassem preconceitos e
44
discriminações. Surgiram também produções literárias que tinham como temas as principais
denúncias de racismo, preconceitos e discriminações vividas pelos negros e negras em
diferentes espaços, inclusive os escolares. Estas produções ainda se fazem presentes e
parecem poder contribuir significativamente em alguns momentos e espaços de discussões.
A partir do final dos anos 1980, nota-se um aumento nas produções de literatura
infanto-juvenil que passam a valorizar e dar maior ênfase a aspectos ligados à cultura negra.
São imagens positivas que evidenciam a mitologia, as lendas, as rodas de capoeira, as
congadas, entre outros.
Ana Célia da Silva (2004) procurou identificar, em sua pesquisa, elementos que
levaram à modificação da representação social do negro nas produções de autores e
ilustradores em livros de Língua Portuguesa. Dentre os vários determinantes desta
transformação levantados pela autora, destacamos: a discriminação que autores e ilustradores
dizem ter presenciado, as práticas pedagógicas de discussões sobre discriminação em algumas
escolas e a identidade étnico-racial, na qual os ilustradores e autores partem do
(...) reconhecimento da sua própria origem étnico-racial, da reconstrução
da sua identidade própria, determinada pela aceitação das suas
características fenotípicas negro-mestiça, da identificação da invisibilidade
e branqueamento do negro na mídia e da necessidade de construção de
modelos para afro-brasileiros (SILVA, 2004, p.156).
Esses elementos estão associados a outros que foram mencionados por autores
ilustradores como: o movimento negro, a convivência de brancos e negros favorecendo maior
conhecimento do cotidiano negro, os valores pessoais socioeconômicos e culturais, as leis e
normas etc. Embora analisados pela autora, em relação aos livros de Língua Portuguesa, não
parecem ser muito distintos do que vêm ocorrendo com as representações sociais do negro
nos livros de literatura infantil.
Vemos surgir narrativas na qual o negro tem, faz e vive histórias com personagens que
têm voz, vida e convívio familiar. Famílias estas de diferentes formas de organização e
pertencentes a diferentes níveis sociais, econômicos e culturais. Histórias com negros e
negras como sujeitos históricos.
45
3.1 Da Europa para nossas salas de aula – o fenótipo europeu na literatura infantil
brasileira
Parece que a própria história da literatura infantil nos pistas para compreendermos
as marcas da valorização da cultura e dos fenótipos europeus.
A produção de livros de literatura infantil, no Brasil, data bem próximo ao começo do
século XX, embora ao final do século XIX tenha-se registro de aparecimento de uma ou outra
obra destinada a crianças como nos mostram Lajolo e Ziberman (2004).
O século XIX é marcado pelo fim da monarquia, aumento da população e variedades
culturais e étnicas. A ascensão da classe média urbana reivindicava melhores negócios, maior
participação política, dinheiro mais acessível e mudanças na educação. Os livros de literatura
infantil surgem como forma de atender a uma parte do que a sociedade emergente formulava
(ZILBERMAN, 2005).
O começo do XX é, portanto, um período de muita movimentação nos setores político,
social e econômico tornando-se momento propício ao desenvolvimento e crescimento das
publicações literárias no Brasil motivado também por interesses e necessidades da indústria
nacional em atender a demanda de consumo das produções pela classe média.
No setor educacional, um clima de valorização da instrução escolar. As idéias
nacionalistas e de urbanização, que geram e são geradas por mudanças em diferentes setores,
vão influenciar diretamente a literatura infantil. A literatura infantil brasileira vai
acompanhando, em todos os setores, o desenvolvimento do país, transmitindo direta ou
indiretamente valores e ideologias de seus dirigentes e das classes dominantes.
Mas como iniciou a produção de livros de literatura para as crianças em um país onde
só se escrevia para adultos?
Zilberman (2005) aponta algumas estratégias utilizadas na busca por resolver o
impasse: tradução de obras estrangeiras; adaptação de obras originalmente destinadas aos
adultos; reciclagem do material escolar, que os leitores que faziam parte deste público
crescente eram alunos e alunas e estavam acostumados a utilizar o livro didático; apelação
para a tradição popular, acreditando que as crianças gostariam de encontrar nas produções
histórias semelhantes às que elas ouviam de suas mães, amas-de-leite, escravas e ex-escravas
contavam oralmente.
46
A autora destaca ainda que estas saídas não foram inventadas pelos brasileiros. A
Europa que também se encontrava em um momento de aspiração por mudanças de regime
político, oferecia os mesmos modelos para se escrever para crianças.
Surgiram, inicialmente, as traduções e simplificações de textos escritos para adultos
ingleses, como Robinson Crusoé, de Daniel Defoe e Viagens de Gulliver de Jonathan Swift
em 1719 e 1726, respectivamente, que entre outros foram publicados no Brasil entre 1880 e
1890. Traduções, estas, realizadas por Carl Jansen, jornalista e professor, nascido na
Alemanha, mas que vivia no Brasil.
Seguiram-se a estes a publicação de histórias populares tradicionais contadas para
adultos e hoje conhecidas como conto de fadas.
Os contos recolhidos da oralidade por Charles Perrault, não tiveram sua autoria
assumida a princípio, pois sendo figura importante no mundo intelectual da época, membro da
Academia Francesa, julgava que a escrita de uma obra popular, representaria uma “concessão
a que ele não podia permitir (LAJOLO e ZILBERMAN, 2004, p.15). Na Alemanha, as
transcrições para o público infantil foram elaboradas por Jacob e Wilhelm, conhecidos como
os irmãos Grimm. Os contos foram muito difundidos, a partir do século XVIII e tornaram-se
ícone da literatura infantil.
No Brasil, as traduções dos contos de fada se deram em 1894, feitas por Figueiredo
Pimentel, jornalista brasileiro, que publicou o livro Contos da Carochinha”. Nesta obra,
foram reunidas além das traduções dos contos de fadas europeus, narrativas coletadas entre os
descendentes de povoadores do Brasil. Portanto, havia também histórias de origem portuguesa
e as contadas por escravizadas que educavam a infância brasileira. Desta forma, a tradição
popular e oral entrou e ainda permanece na literatura infantil brasileira (ZILBERMAN, 2005).
A Primeira República foi marcada pela evolução das idéias pedagógicas que se
constituiram no cerne de dois movimentos ideológicos: o “entusiasmo pela educação” e o
“otimismo pedagógico”. O primeiro, de caráter quantitativo, resumiu-se na idéia de
expansão da rede escolar e na tarefa de desanalfabetização do povo (GHIRALDELLI,
2001, p.15), iniciou-se no período de transição do Império para a República, chegando ao seu
auge, de acordo com Ghiraldelli, nos anos de 1910 e 1920; o segundo, de caráter mais
qualitativo, preocupou-se com a melhoria das condições didáticas e pedagógicas da rede
escolar”. (idem) que, conforme o mesmo autor surgiu nos meados dos anos 1920, chegando
ao seu apogeu nos anos 1930.
47
Esse período também é marcado pelos movimentos nacionalistas cujas primeiras
manifestações surgiram de maneira mais evidente e sistemática na educação escolar com a
ampla divulgação de livros didáticos de conteúdo moral e cívico, ou melhor, de acentuada
nota patriótica. São obras que pretendem fornecer à criança e ao adolescente uma imagem
do país adquirida por via sentimental (...) (NAGLE, 2001, p.64). Nesse momento, há,
simultaneamente, um aumento na preocupação com a carência de material de leitura para as
crianças fazendo uma dicotomia entre o hábito de ler e a formação do cidadão brasileiro, em
consonância com o ideário de um país moderno e cada vez mais nacionalista.
Todo esse clima de valorização da instrução escolar, as idéias nacionalistas e
urbanização, que geram e são geradas por mudanças em diferentes setores, vão influenciar
diretamente a literatura infantil nacional, pois o que se tinha, como vimos, era um
panorama marcado, em grande parte, por obras estrangeiras traduzidas e adaptadas. Durante
um bom período, a literatura infantil brasileira foi vista como fruto e motor das ideologias.
Sobrevivendo por se sujeitar a interesses que a razão pode condenar, a literatura infantil
expressou a fase material da cultura: as concepções, as contradições que a permeiam,
enquanto condição de participar da história e atuar na sociedade.” (LAJOLO e
ZILBERMAN, 2004, p.122)
Nesse período, a iniciativa privada investiu também grandes capitais em literatura
infantil iniciando a venda em bancas de jornal e na própria escola. Como outra forma de se
adequar a esse mercado de grande produção, mas de pouco hábito de leitura, foram incluídas
sugestões e instruções didáticas, fichas de leitura, questionários e as visitas de autores a
escolas, também se torna comum (LAJOLO e ZILBERMAN, 2004).
Nos anos 1960, houve um aumento no número de instituições e programas voltados
para o fomento da leitura e a discussão da literatura infantil. Nos anos 1970, o Instituto
Nacional do Livro que havia sido fundado em 1973, começou a co-editar um considerável
número de livros de obras infantis e juvenis. Investimento este, que era visto pelo Estado
como bastante significativo, pois o baixo número de índice de leitura preocupava autoridades
educacionais, professores e editores.
No começo dos anos 70, a literatura infantil brasileira apresentava nível de
estagnação, resultante dos problemas arrolados: repetição dos modelos
criados, então com grande originalidade, por Monteiro Lobato; visão
conservadora do país; predominância de perspectiva moralista ou
pedagógica nos textos literários.(ZILBERMAN, 2005, p. 51)
48
Por muitos autores não terem se submetido ao paradigma dos autores que dominavam
o cenário da literatura infantil no início dos anos 1970, foi que este gênero literário se
transformou e chegou ao que encontramos hoje.
A repressão exercida pelo governo militar afetou as produções culturais e a literatura,
embora tenha sofrido menos, não escapou. No entanto, a literatura infantil acabou não sendo
lembrada de ser reprimida e passou a ser uma válvula de escape para escritores, ilustradores e
artistas em geral, que acabaram tendo possibilidades de manifestar suas idéias de liberdade e
conquistaram leitores.
Mudanças ocorridas em relação à organização do ensino ao longo do século XX,
pricipalmente as que aumentavam o tempo de anos de estudos, favoreceram a partir de 1970,
a entrada de obras literárias de autores contemporâneos e não apenas dos clássicos, como até
então. Autores canônicos foram considerados de leitura pesada para quem iniciava os estudos
aos cinco ou seis anos. Os livros de literatura infantil foram considerados material adequado
aos alunos e alunas nos primeiros anos de escola. No entanto, uma pesquisa realizada em
Porto Alegre, em 1970, mostrou que os professores utilizavam em sala de aula um misto de
literatura infantil (...) com narrativas dirigidas originalmente ao público adulto”
(ZILBERMAN, 2005, p.50). Nas palavras da autora, esta constatação
indicava que os professores oscilavam ainda entre literatura para crianças
e para adultos, porque, sendo recente, a reforma do ensino ainda não tinha
estabilizado um procedimento constante de eleição de livros ou leituras a
serem utilizadas em sala de aula.(idem)
A pesquisa constatou também a preferência pela utilização das obras de um autor
como referência a obras escritas para crianças: Monteiro Lobato. Segundo Zilberman este fato
ocorria pela desatualização dos professores em relação às produções de literatura infantil e
pela memória de suas próprias leituras.
A partir de meados dos anos 1970, registra-se uma literatura infantil que passa a
apontar os problemas e crises contemporâneas, valendo-se de temas como: miséria, pobreza,
autoritarismo, preconceitos, fazendo críticas radicais à sociedade brasileira. Começam a ser
tratados temas até então muito evitados como morte, urbanização desenfreada, separação
conjugal, preconceito racial, sexualidade, repressão social ao choro do menino, natureza,
extermínio de índios. Surgem também livros de ficção científica e mistério policial. Há,
49
portanto, um aumento quantitativo das produções e observa-se também a ampliação dos temas
abordados.
Hoje, os livros de literatura infantil estão presentes em boa parte das escolas. Muitas
instituições escolares recebem livros de literatura infantis que são comprados pelo governo
federal e distribuídos às escolas. No município do Rio de Janeiro, nos últimos dez anos, além
destes, as escolas recebem uma verba anual destinada à aquisição de livros a serem
comprados em eventos como Salão do Livro Infanto-juvenil e Bienal do Livro. Livros estes
que podem ser comprados de acordo com os critérios de escolha de cada escola.
O acesso das crianças aos livros de literatura ainda não é facultado a todas. A escola
é, para muitos, o único local onde possibilidade de ver, ler, conhecer e ouvir histórias. No
entanto, mesmo nas escolas que recebem livros de literatura infantil do governo federal, é
comum ouvirmos reclamações feitas por professores(as) sobre as dificuldades de acesso às
obras. Muitas Salas de Leitura encontram-se fechadas por falta de profissional que possa
articular e se responsabilizar pelo uso da mesma.
Levando em consideração alguns estudos que apontam para as influências do livro de
literatura infantil, vemos Coelho (2003) atribuindo ao livro uma responsabilidade na formação
da consciência de mundo das crianças e dos jovens. Para esta autora, o livro de literatura
infantil amplia a leitura do mundo dos adultos, e concede, a este gênero literário, a tarefa
fundamental de ser agente de formação.
Pensando sobre as ideologias e valores que os livros de literatura infantil podem
transmitir, podemos refletir sobre como a representação do negro vem sendo feita nessas
produções, colaborando para construção de identidades no espaço-tempo escolar.
A escolha dos livros utilizados na ação investigativa/pesquisa se deu a partir dos
objetivos propostos pela pesquisa aliados à qualidade das narrativas e das imagens, de modo
que pudessem dar contribuições ao conhecimento e às descobertas propiciando as discussões
e as atividades decorrentes.
50
4. HISTÓRIAS QUE CONTAMOS E VIVENCIAMOS: DISCUTINDO SOBRE
CULTURAS E IDENTIDADES
Ninguém nasce odiando outra
pessoa pela cor de sua pele, por sua
origem ou ainda por sua religião.
Para odiar, as pessoas precisam
aprender; e se podem aprender a
odiar, podem ser ensinadas a amar.
Nelson Mandela
Durante o período da pesquisa foram contadas histórias que foram precedidas de
atividades que objetivavam a reprodução de personagens ou produção de auto-retrato.
Algumas foram contadas com a finalidade de que os alunos e alunas tivessem a
oportunidade de entrar em contato com histórias da cultura africana e ou com personagens
negros e negras.
A seleção das histórias contadas foi feita de acordo com os objetivos propostos nesta
pesquisa. Portanto, deveriam ser portadoras de narrativas onde o negro fosse retratado como
ser social e histórico e com ilustrações nas quais suas imagens não fossem estereotipadas.
Também foi levada em consideração, na seleção dos livros, a extensão dos textos, pois
o tempo que tínhamos com as crianças era de quarenta a cinqüenta minutos e este deveria ser
utilizado para a contação e para as atividades decorrentes.
51
Para uma melhor análise da nossa pesquisa, procuramos organizar as histórias
contadas de acordo com o foco temático que apresentavam e que iam ao encontro do que
estávamos propondo discutir e ou observar nos desenhos. Sendo assim, reunimos as histórias
em dois grupos: identidade e cultura. No entanto, em alguns momentos nos deparamos com
histórias que poderiam estar simultaneamente nos dois grupos.
4.1 “Lá (África) tem muitos mendigos. Não é, tia?”
“Tia, lá tem muita gente que passa fome.”
“É mesmo. Eu já vi na televisão.”
A idéia do continente africano como espaço da falta: falta de comida, de cultura, de
tradições, de recursos etc parece contribuir para a negação da ascendência africana. O
advérbio “lá” utilizado pelas crianças nas frases destacadas para falar de África, parece
estabelecer outras proporções e não significar apenas a distância entre os continentes, mas
também um distanciamento de pertencimento.
É muito comum ouvirmos as pessoas falarem, com orgulho, de suas ascendências
européias, tanto para destacar características fenotípicas herdadas quanto para enfatizar
alguma tradição. Quando necessitam falar de alguma característica sua ou de seus
descendentes que se aproximam do fenótipo africano ou a preferência por um tipo de música,
dança ou qualquer outra preferência mais próxima à cultura negra, costuma-se dizer:
tenho/tem um pezinho na cozinha ou tenho/tem um na senzala”. Ou seja, relaciona o
negro e a africanidade a espaços de serventia e coloca apenas um de seus pés lá. E note-se: é
apenas o pé. O restante do corpo e principalmente, a cabeça, o espaço das idéias, das
memórias, dos pensamentos, etc, são geralmente associados a outra ascendência,
preferencialmente européia.
Nas palavras do paleoantropólogo Richard Klein,
Os seres humanos se interessam naturalmente pelas suas origens, e cada
cultura concebeu suas próprias lendas para explicá-la. A maior parte está
centrada na figura de um criador sobrenatural, e aceitá-las é inteiramente
uma questão de fé. A ciência, no entanto, produziu um tipo diferente de
narrativa, que pode ser testada e até mesmo rejeitada, com provas
encontradas no próprio solo ou, cada vez mais, com evidências presentes
no próprio genoma humano (KLEIN, 2005, p.7).
52
O autor prossegue fazendo um esboço, que acredita que irá resistir ao teste do tempo,
do que os estudos científicos acumulados nos últimos 150 anos já evidenciam com razoável
convicção. Destacamos aqui alguns itens elucidados por ele:
Os seres humanos, definidos pelo hábito de caminhar como bípedes
evoluíram de um macaco africano mais de 6 milhões de anos; (...)
algumas espécies talvez as primeiras cujo cérebro era maior que o de um
macaco inventaram a pedra lascada 2,5 milhões de anos; (...) os seres
humanos pré-históricos saíram pela primeira vez da África em direção à
Eurásia, por volta de 2 milhões de anos antes do presente e começaram a se
separar em diferentes tipos físicos e em continentes diversos um milhão
de anos; (...)o tipo moderno de ser humano evoluiu exclusivamente na
África (idem).
Klein e Edgar (2005) nos mostram que a arqueologia relaciona a habilidade moderna
de produzir cultura à capacidade altamente desenvolvida, do ser humano, de inventar
utensílios. Os autores sugerem que essa capacidade tenha se originado de uma mudança
genética que promoveu o cérebro humano moderno na África por volta de 50 mil anos atrás”
(p.7), possibilitando a produção e manifestação de pensamento abstrato e simbólico.
Sabedores de que nem todos os arqueólogos concordam com suas perspectivas sobre
as origens da mudança comportamental, Klein e Edgar (2005) defendem que provavelmente,
a cultura humana teria surgido na África garantindo assim não sua sobrevivência, como
também a expansão para outros continentes. Segundo os autores, antes de 50 mil anos atrás, a
transformação anatômica ocorreu de maneira abrupta, mas após este período, a anatomia
permaneceu relativamente estável, enquanto a mudança comportamental (cultura) se
acelerou rapidamente (KLEIN e EDGAR, 2005 p. 225).
Pensar em África não como berço da humanidade, mas também como local onde
ocorreu o despertar da cultura, como nas hipóteses de Klein e Edgar, pode representar uma
mudança de paradigma. Enquanto ainda não se pode afirmar sobre esta hipótese levantada, a
certeza de que o continente africano é possuidor não de uma, mas de muitas culturas é
indiscutível.
Antes de trazermos elementos de algumas culturas africanas, precisamos melhor
definir o conceito de cultura. O dicionário Aurélio define, ente outros sentidos que cultura é o
conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou
53
aprimoram através da comunicação e cooperação entre os indivíduos em sociedade”. No
dicionário de sociologia, Johnson a define como sendo o conjunto acumulado de símbolos,
idéias e produtos materiais associados a um sistema social, seja ele uma sociedade inteira ou
uma família (1997, p.59) Num sentido mais filosófico, encontramos que a cultura
(...) serve para designar tanto a formação do espírito humano quanto de
toda a personalidade do homem: gosto, sensibilidade, inteligência. (...) a)
Em oposição a natura (natureza), a cultura possui duplo sentido
antropológico:é o conjunto das representações e dos comportamentos
adquiridos pelo homem enquanto ser social. (...) b) é o processo dinâmico
de socialização pelo qual todos esses fatos de cultura se comunicam e se
impõem em determinada sociedade, seja pelos processos educacionais
propriamente ditos, seja pela difusão das informações em grande escala, a
todas as estruturas sociais, mediante os meios de comunicação de massa.
Nesse sentido, a cultura praticamente se identifica com o modo de vida de
uma população determinada (JAPIASSÚ e MARCONDES, 1996, p.61)
Durante o século XIX muitos foram os estudos que procuraram hierarquizar todas as
culturas humanas existentes ou extintas. Nesta escala evolutiva estava embutida a visão
européia da humanidade que “servia aos propósitos de legitimar o processo que se vivia de
expansão e consolidação do domínio dos principais países capitalistas sobre os povos do
mundo” (SANTOS, 1996, p.12). Esta concepção de evolução linear também serviu para
alimentar idéias racistas que muitas vezes consideravam povos não-europeus como inferiores.
Em oposição à hierarquização das culturas surgiu a idéia de relativismo na avaliação das
culturas. Ainda de acordo com Santos (1996) sendo vista assim, a avaliação de cada cultura
do conjunto das culturas existentes varia de acordo com a cultura particular da qual se
efetue a observação e análise (p.16). O autor considera tanto a hierarquização quanto o
relativismo como visões equivocadas, pois
não superioridade ou inferioridade de culturas ou traços culturais de
modo absoluto, não nenhuma lei natural que diga que as características
de uma cultura a façam superior a outras. Existem, no entanto, processos
históricos que as relacionam e estabelecem marcas verdadeiras e concretas
entre elas (SANTOS, 1996, p. 17).
Compreender que não é possível refletir sobre culturas ignorando as desigualdades é o
que nos afirma Santos (1996), mostrando o quanto que as culturas e as sociedades humanas
54
têm relações desiguais de poder em todos os sentidos e hierarquizam de fato os povos e
nações.
Cultura é uma construção histórica, seja como concepção, seja como
dimensão do processo social. Ou seja, a cultura não é algo natural, não é
uma decorrência de leis físicas ou biológicas. Ao contrário, a cultura é um
produto coletivo da vida humana. Isso se aplica não apenas à percepção da
cultura, mas também à sua relevância, a importância que passa a ter. (...)
Cultura é um território bem atual das lutas sociais por um destino melhor. É
uma realidade e uma concepção que precisam ser apropriadas em favor da
luta contra a exploração de uma parte da sociedade por outra, em favor da
superação da opressão e da desigualdade (idem, p.45).
Por este ponto de vista, a apropriação da cultura nos fortalece nas lutas contra
desigualdades. Portanto, apropriar-se das culturas que se referem à nossa ascendência também
pode contribuir significativamente nas lutas pela igualdade racial, contra as discriminações e
preconceitos.
Muitos são os elementos das culturas africanas. No entanto, não nos seria possível
enumerar todos e tampouco discuti-los neste espaço-tempo que temos.
Como nossa pesquisa teve como fio condutor a contação de histórias, trazemos aqui,
algumas palavras sobre a tradição oral em África.
Falar de tradição na história africana significa falar de tradição oral.
Nenhuma tentativa de penetrar na história e no espírito dos povos africanos
é válida se não se apóia nessa herança de conhecimentos de toda espécie,
transmitida pacientemente de boca a ouvido e de mestre para discípulo
através dos tempos (BÂ, 1973, p.17).
É através da tradição oral que são transmitidos conhecimentos. O transmissor deste,
geralmente um generalista, pode ser conhecedor das ciências da água, das plantas, da ciência
dos ferreiros, dos pastores e de psicologia, por exemplo. Estes transmissores são conhecidos
como Doma ou Soma ou Gando ou Tchiorinké, entre outros nomes, dependendo da região,
mas sempre com o significado de conhecedor. Estes conhecedores, que têm um compromisso
com a palavra e com a verdade, não podem mentir. São os tradicionalistas, como vemos em
BÂ (1973).
Por conseguinte, diferentemente do que muitos pensam,
55
a tradição oral africana não se limita aos contos e às lendas, nem mesmo
aos relatos míticos ou históricos.; e os menestréis/poetas ambulantes que a
transmitem designados pelo termo griot não são absolutamente seus
únicos guardiões e transmissores qualificados (idem).
Os griots são, portanto, contadores de histórias. Eles são também poetas, músicos que
conhecem muitas línguas, que viajam por muitas regiões africanas ouvindo relatos e
recontando histórias, inclusive, de famílias.
Com algumas exceções como as regiões dos atuais Egito e Etiópia, que têm longa
tradição no uso da escrita, na época da colonização do continente, as sociedades africanas se
estruturavam na cultura oral. Esta diferença também serviu como justificativa para
desvalorizar as culturas do continente africano.
Durante o período da pesquisa de campo, pudemos ser griots, não na sua totalidade,
mas ao menos em parte, ao levarmos, para os sujeitos da pesquisa, algumas histórias de
tradições africanas.
1) O Baú das Histórias (2004)
Conto tradicional da oralidade africana, recontado e ilustrado por Gail E. Haley. Nesta
versão, em tempos primórdios, as histórias não estavam na Terra, mas sim em poder de um
deus, no céu, guardadas em uma caixa de ouro. Ananse, um homem idoso, conhecido como
homem-aranha
33
, teceu uma teia e foi negociar a compra do baú de histórias.
O deus, proprietário das histórias, propôs a Ananse o desafio de capturar e levar ao céu
três seres da floresta, muito temidos por todos, sendo que um deles, nenhum homem jamais
tinha visto e, em troca, receberia as histórias.
Mesmo desacreditado pelo deus que o considerava velho e frágil para cumprir tal
tarefa, Ananse venceu os desafios fazendo uso de astúcia e sabedoria. Recebeu o baú com as
histórias e o levou para a sua aldeia. A partir daí, as histórias se espalharam por todos os
cantos do mundo.
33
A aranha é muito presente nos contos africanos e representa os homens ou animais considerados frágeis ou
pequenos, mas que vencem as dificuldades muito mais pela astúcia e inteligência que por qualquer outro motivo.
56
Vivenciando a história
Esta história foi contada ao final do primeiro dia de pesquisa, não tendo, portanto,
nenhuma atividade posterior. A leitura da história sucedeu a elaboração do auto-retrato
conforme visto anteriormente. O objetivo era que a contação desta história anunciasse um
pouco do que veriam e ouviriam ao longo da pesquisa tendo contato com uma narrativa que
apresentasse traços da cultura africana.
2) Como as histórias se espalharam pelo mundo (2001)
Escrita por Rogério Andrade Barbosa e ilustrada por Graça Lima a narrativa apresenta
uma outra versão para a história das histórias. O autor traz o rato como coletor e guardião das
histórias que ouve por todos os cantos por onde anda, sem ser percebido. Através das
caminhadas do rato pelo continente africano, escritor e autor nos mostram diferentes aspectos
de culturas africanas como: o cotidiano de mulheres nas savanas carregando os filhos
amarrados às costas executando tarefas domésticas, os ferreiros que em muitas regiões são
considerados sábios, tecelãs, rituais em homenagens aos orixás, danças, mesquitas, pirâmides
do Egito, crianças nos milharais, mercado a céu aberto entre outros.
Para cada história que ouvia, o rato carregava fios coloridos e ao final de cada dia, os
guardava em um baú. Um dia, um vento forte abriu o baú e espalhou os fios coloridos
levando as histórias para todas as partes do mundo.
Vivenciando a história
Foi mostrado um mapa-múndi para que as crianças visualizassem o continente
africano. Depois, expusemos um mapa da África para que percebessem os muitos países que
dele fazem parte.
Procuramos saber das crianças que informações elas tinham sobre o continente
africano. O silêncio inicial ocorrido nas duas turmas foi quebrado com as frases:
Na escola da zona norte:
“- tem muitos mendigos. Não é, tia?” - disse uma aluna negra que recebeu
imediatamente a concordância dos demais colegas da turma.
57
“- tem preto. falou um aluno não negro que rindo ao falar, provocou riso de
muitos outros.
Na escola da zona sul não foi muito diferente:
“- Na África só tem muita gente pobre.” – falou uma aluna não negra.
“- Tia, lá tem muita gente que passa fome.” – disse um aluno negro.
“- É mesmo. Eu vi na televisão.”- complementou um outro aluno também negro
enquanto balançavam a cabeça em sinal de concordância.
Nenhum conhecimento de aspecto positivo em relação ao continente foi mencionado
pelas crianças em nenhuma das duas escolas.
Esta imagem da África que as crianças têm como referência do continente é a que
encontramos no senso comum e que foi historicamente construída por interesses no
ocultamento da História do continente.
Na visão de Cunha Jr. (2000) para entendermos os motivos deste ocultamento sobre a
História da África é importante sabermos sobre como as relações entre países do continente
africano e países europeus se estabeleceram. Por volta do ano de 1.500 quando a “Europa,
neste período e em períodos anteriores admirava a África pela sua cultura e a cobiçava pelas
suas riquezas” (p.2) pode-se destacar uma convivência harmoniosa com a importação de
artistas e escultores africanos para a produção de jóias de reis e rainhas, passando pelas
relações cordiais e comerciais entre portugueses e nações africanas.
O autor prossegue mostrando que quando se iniciaram as desavenças, entre os povos
africanos, não muito diferente do que ocorreu em outras partes do mundo, por uma hegemonia
no comércio da região, em meio às disputas pelos Estados Nacionais, os portugueses
conseguiram uma faixa de terra estabelecendo uma fortaleza dando início ao controle de parte
do comércio do ouro africano, que se tornou uma imensa fonte de riqueza para Portugal. Este
ouro financiou grande parte das expedições conhecidas historicamente como as grandes
navegações.
As guerras pelo ponto de controle do comércio do ouro aconteciam não entre
portugueses e africanos, mas também com outros povos europeus. Cunha Jr. segue mostrando
que com o ponto de comércio fortificado, várias riquezas africanas foram sendo
comercializadas e com a colonização do continente americano, as fortalezas foram sendo
58
transformadas em pontos de comércio de africanos, prisioneiros de lutas, para serem enviados
para trabalhos forçados como escravizados principalmente nas colônias. Nas lutas africanas
contra as invasões européias ocorreram muitas destruições para os africanos principalmente
na perda de sua população vendida por mercadores de escravizados.
Assim a Europa produziu o subdesenvolvimento da África. (...) O estudo da
história africana nos mostra que as nações africanas eram desenvolvidas,
porém os europeus usaram melhores armamentos e táticas de dominação
mais eficazes. Mostra também uma tenaz resistência dos povos africanos á
expansão européia e nos leva a compreender que o europeu destruiu e
assaltou boa parte do continente. (CUNHA JR., 2000, p.4)
Em um outro escrito, Cunha Jr. nos mostra que o principal problema encontrado no
processo de ensino e aprendizado da História Africana é em relação aos preconceitos
adquiridos num processo de “informação desinformada” sobre a África e que se constituem
em
informações de caráter racistas, produtoras de um imaginário pobre e
preconceituoso, brutalmente erradas, extremamente alienantes e fortemente
restritivas. Seu efeito é tão forte que as pessoas quando colocadas em frente
a uma nova informação sobre a África tem dificuldade em articular novos
raciocínios sobre a história deste continente, sobretudo de imaginar
diferente do raciocínio habitual. (CUNHA JR. 2000, p. 2)
A construção e consolidação sobre a África através do não conhecimento sobre a
história deste continente, de seus povos e culturas, gerando preconceitos, imagens distorcidas
e consequentemente racismos, não deixou de ser uma estratégia de dominação da Europa
como nos fala Mônica Lima.
(...) durante muito tempo, a historiografia ocultou e ignorou a contribuição
das sociedades e culturas africanas para a nossa formação social. A raiz
desse ocultamento estava no preconceito e na ignorância sobre a vida
social e a história desses grupos humanos e, sobretudo, na necessidade de
domínio sobre eles, com o objetivo de escraviza-los ou coloniza-los.
(LIMA, 2004, p.162)
Os fios puxados pela História, nos ajudam a compreender como este processo de
representação do continente africano foi se construindo e se cristalizando na nossa sociedade.
59
Os efeitos a curto, médio e longo prazos dos processos de exploração, dominação,
colonização e descolonização produziram as conseqüências das guerras, que geraram e ainda
geram problemas de ordem econômica, social e política tendo como conseqüências para as
populações mutilações, miséria, doenças, entre outros. A evidência desses aspectos contribuiu
e ainda contribui para a construção da imagem e da representação social que se tem do
continente, deixando os seus descendentes alijados dos conhecimentos sobre suas matrizes
formadoras.
Após a constatação da imagem que as crianças tinham do continente africano, foram
mostradas imagens de diferentes povos africanos que se diferenciavam do imaginário
unicamente de aspecto negativo. Foram expostas fotos de pessoas com vestimentas, jóias e
prédios localizados em grandes cidades como hotéis, bancos, moradias etc...
3) Bruna e a galinha d’angola (2005)
Escrito por Gercilda de Almeida e ilustrado por Valéria Saraiva, Bruna é um
menina negra, que vive muito sozinha e é neta de uma africana que vive no Brasil. Um dia,
sua avó a presenteou com uma galinha d’angola que passou não a ser companhia da
menina, como também atraiu várias crianças da vizinhança que passaram a ser suas
amigas. E é essa galinha que, um dia, ciscando no terreno, localiza um baú cheio de panôs
que a avó havia perdido quando chegou ao Brasil. Através das estampas muitas histórias
eram contadas não para a neta e suas amigas, como também para a vizinhança. A avó
ensinou as meninas a pintarem tecidos como se fazia na aldeia africana de onde ela viera.
A avó desta história pode ser considerada como griote
34
, pois conta a história de seu
povo. Outro elemento da cultura africana são os tecidos pintados. Além disso, encontramos
nesta publicação uma palavra escrita em ioruba.
O livro também traz uma versão para a criação do mundo através de um dos panôs
onde estão estampados um pombo, uma galinha d’angola e um lagarto. A galinha d’angola
teria sido quem espalhou terra sobre a Terra. O lagarto teria verificado se o solo estava
firme e o pombo ficou com a tarefa de avisar aos outros animais que poderiam habitar
aquele lugar.
34
Do francês griot. Seu feminino é griote.
60
As ilustrações são feitas em tons fortes, onde se destaca a cor marrom em vários
tons, com desenhos bem definidos. As páginas do lado esquerdo têm a letra inicial da
primeira palavra desenhada com estilos de padronagens africanas.
Vivenciando a história
Os alunos e alunas receberam uma reprodução parcial, em preto e branco, de uma
das páginas do livro onde apareciam as protagonistas para que as pintassem.
61
Quadro 6
Embora os cabelos loiros e os olhos azuis também aqui se façam presentes, o
percentual de crianças que pintaram as personagens como negras, pode ser considerado
relevante, na escola da zona norte.
62
Local
Características
ESCOLA DA
ZONA SUL
(Quantidade)
%
ESCOLA DA
ZONA NORTE
(Quantidade)
%
Sem colorir a pele, cabelos
loiros e sem cor nos olhos.
2 13 % 5 22%
Pele negra com cabelos e olhos
pretos.
10 44%
Pele em tom rosado claro, com
olhos azuis e cabelos loiros.
1 5%
Sem colorir a pele, cabelos
pretos e olhos claros.
1 6 % 1 5%
Sem colorir a pele, sem cor nos
olhos e cabelos pretos
4 25% 2 9%
Pele negra, cabelos pretos,
olhos azuis
1 6% 1 5%
Sem colorir a pele, com
cabelos e olhos pretos.
2 13%
Pele pintada em cor rosada,
cabelos pretos e sem cor nos
olhos.
1 6%
Pele pintada em cor rosada,
cabelos pretos e olhos azuis.
1 6% 1 5%
Pele pintada em tom rosado,
inclusive nos olhos e cabelos
loiros.
1 6%
Outras cores (vermelho, rosa e
azul).
3 19% 1 5%
Total 16 100% 22 100%
4) As tranças de Bintou (2004)
A história de Sylviane A. Diouf está ambientada em algum país do continente
africano, cuja localização ou nome não são mencionados no texto. É possível saber que a
história se passa em África pelos nomes, pelas tradições, pelas ilustrações e pela informação
que consta na quarta capa, onde a autora fala sobre sua pesquisa dedicada à história e à cultura
do povo africano.
A protagonista cujo nome título à obra, é uma menina africana que sonha em ter o
cabelo trançado, mas não lhe é permitido.
Vovó Soukeye sabe de tudo. É o que mamãe sempre diz. Ela me explicou
que os mais velhos sabem mais porque viveram mais, e por isso
aprenderam mais. E, já que a vovó sabe tudo, eu lhe pergunto por que
meninas não podem usar tranças. (DIOUF, 2004, p
11)
Este é um dos trechos que mostra o respeito pela sabedoria dos mais velhos, muito
comum nas culturas africanas. Sousa (2006) destaca que esta obra ressalta “o olhar e o fazer
feminino para as relações pessoais e interpessoais” (p.247)
O texto e as ilustrações exaltam o colorido, a diversidade de estampas das roupas e a
estética africana. Os diferentes trançados de cabelos são enaltecidos enquanto a menina
observa os penteados dos convidados para a festa do batizado do irmão. Além dos penteados,
ela destaque também ao uso dos adornos colocados nos trançados cuja história da tradição
de seu uso está presente na memória coletiva. “As amigas de mamãe usam a franja trançadas,
com moedas de ouro na ponta. Dizem que isso é para mostrar a nós, crianças, como nossos
tataravós, que nunca conhecemos, penteavam o cabelo” (DIOUF, 2004, p
17)
Entre as personagens secundárias da narrativa, aparece uma brasileira que é admirada
por Bintou, por suas tranças e miçangas, aguçando a curiosidade da protagonista em saber se
as brasileiras também usam tranças. Ao receber resposta de que muitas usam, Bintou infere
que “as brasileiras devem ser lindas” (DIOUF, 2004, p
20)
No início, da história a personagem tinha uma visão sobre si e os seus cabelos: Meu
nome é Bintou, e meu sonho é ter tranças. Meu cabelo é curto e crespo. Meu cabelo é bobo e
sem graça. Tudo o que tenho são quatro birotes na cabeça” (DIOUF, 2004, p
3).
63
No decorrer da narrativa, a menina passou por uma situação em que foi considerada
uma heroína na vila onde mora, e como recompensa, a mãe prometeu a realização de um
desejo. Seu sonho de ter os cabelos trançados parecia estar mais próximo. No entanto, foi a
tradição que prevaleceu. A avó refez os birotes no cabelo da menina que haviam se desfeito
em seu ato de heroísmo, acrescentando alguns enfeites.
No final, após conhecer melhor a história do seu povo, a menina se redescobre e
começa a se ver de outra forma:Eu sou Bintou. Meu cabelo é negro e brilhante. Meu cabelo
é macio e bonito. Eu sou a menina dos pássaros no cabelo. O sol me segue e estou muito
feliz” (DIOUF, 2004, p
30).
A questão que podemos levantar aqui muito provavelmente, está mais relacionada a
ausência de referenciais de identificação e de conhecimento e valorização das tradições de
matriz africana. O que Bintou foi descobrindo ao longo da história, e que contribuiu na
mudança do seu modo de se ver, pode ser considerado como uma pista para compreendermos
os motivos pelos quais crianças reproduzem desenhos das personagens negras e de si mais
próximos de fenótipos europeus do que africanos.
Vivenciando a história
Reproduzir a protagonista da história com o novo penteado ou com os birotes feitos
pela avó. Para os cabelos foram disponibilizados pedaços de nas cores preta, amarela e
marrom.
35
35
No balão de diálogo, o aluno escreveu “Eu sou igual a minha irmã Fatou.” Esta frase é uma referência a
história que foi contada.
64
65
Quadro 7
Características da personagem reproduzida pelas crianças:
Local da Escola
Características
ZONA SUL
(Quantidade)
% ZONA NORTE
(Quantidade)
%
Pintadas como negras, com olhos
e cabelos pretos ou marrons
escuros. (uma da zona sul com
birotes no cabelo e a da zona
norte com cabelos trançados)
6 38% 1 5%
Pintadas como negras, com
cabelos pretos ou marrons
escuros e olhos azuis ou verdes.
4 19%
Pintada como negra (marrom
bem claro), com cabelos loiros e
olhos pretos.
1 5%
Sem estar com a pele pintada,
com olhos e cabelos pretos ou
marrons escuro.
9 56% 4 19%
Sem estar com a pele pintada,
com cabelos pretos ou marrons
escuros e olhos azuis.
2 9%
Pintada com cor de rosa bem
clara, com cabelos marrons
escuros e mechas pretas, sem cor
de olhos definida.
1 6%
Sem estar com a pele pintada,
com cabelos marrom claros
sendo 4 sem cor nos olhos e 1
pintado de marrom. (uma das
quatro com cabelos trançados)
5 23%
Sem estar com a pele pintada,
com cabelo marrom escuro e
olhos verdes.
1 5%
Pintada de amarelo claro, com
cabelos e olhos pretos.
1 5%
Pintada com rosa bem claro,
olhos verdes e cabelos pretos.
1 5%
Sem estar com a pele pintada,
com cabelos mechados loiros e
pretos sem cor nos olhos.
1 5%
TOTAL 16 100% 21 100%
66
Pelo exposto no quadro, verificamos que cerca de 80% dos alunos e alunas,
representaram a personagem que é negra, ilustrada e pintada no livro na cor marrom escura,
sem pintar a pele ou pintada na cor rosa ou amarela, podendo ser classificadas como não
negras.
Chamou-nos a atenção o fato de 46% das crianças pintarem o vestido da personagem
de maneira muito semelhante ao que a ilustradora apresentou. Tal fato nos levou a inferir que
houve uma tentativa de reprodução que se aproximasse das imagens vistas no livro. No
entanto, apenas 19% pintaram a personagem com características de cor de pele, olhos e cor de
cabelos mais próximas do fenótipo negro. E apenas 2% reproduziu a menina com o penteado
de birotes como aparece nas histórias. E 5% trançaram o cabelo da personagem dizendo que
estavam realizando o sonho de Bintou.
O livro aborda uma questão que, para a maioria das pessoas negras, nem sempre é
muito fácil de lidar: os cabelos. Gomes (2004) chama de dupla inseparável” o cabelo e a
cor da pele e diz que
“A forma como o par cor da pele e cabelo
36
é visto no imaginário social
brasileiro pode ser tomada como expressão do tipo de relações raciais aqui
desenvolvido. Nesse processo, o entendimento do significado e dos sentidos
do cabelo crespo pode nos ajudar a compreender e desvelar as nuances do
nosso sistema de classificação racial, o qual além de cromático, é estético
corpóreo”. ( p.137)
Segundo Inocêncio (2006) o cabelo “(...) tornou-se uma referência tão forte na
afirmação da identidade da população branca que inegavelmente repercutiu na formação
das imagens acerca do cabelo afro, constituídas pelo pensamento europeu” (p.187).
Não são poucos os relatos que ouvimos de negros e negras adultos sobre situações
constrangedoras vividas por causa dos cabelos. Situações estas ocorridas em diferentes
espaços, tendo muitos deles, o ambiente escolar como pano de fundo, praticados por crianças
e ou adultos onde se inclui também professores, de maneira direta ou velada. Quem nunca
soube de uma situação na qual uma pessoa negra ouviu piadinhas racistas referindo-se a seu
36
Grifo da autora.
67
cabelo chamando-o de duro ou de Bombril
37
? Até em letras de músicas, a associação do
cabelo à palha de aço já foi tema e conseqüentemente gerou constrangimentos.
(...)
“Veja, veja, veja os cabelos dela!
Parece bombril de arear panela
Quando ela passa, me chama atenção
Mas seus cabelos não têm jeito, não”
38
(...)
Mesmo sem associá-lo ao “bombril”, o cabelo afro foi tema, igualmente
constrangedor, ao ser chamado de duro e questionar qual seria o pente que conseguiria penteá-
lo.
(...)
“Nega do cabelo duro,
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?
Qual é o pente que te penteia?”
39
(...)
O cabelo aparece também como referência da cor de pele em uma letra de marchinha
de Carnaval que pode ser considerada racista pois sugere o medo de pegar a cor da pele da
mulata por querer o seu amor.
“O seu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, eu quero o teu amor”
40
.
Voltando o nosso olhar mais diretamente para o ambiente escolar, podemos
questionar: será que as professoras afagam os cabelos crespos das meninas e meninos negros
da mesma forma como afagam os cabelos lisos dos não negros? Como os professores
37
Conhecida marca de palha de aço. Fabricada no Brasil desde 1948. A marca tornou-se conhecida como
sinônimo do nome do produto.
38
Trecho da letra da música: “Veja os cabelos delas” Autor: Tiririca (Francisco Everardo Oliveira Silva).
Lançada pela Sony Music em 1996. A execução em emissoras radiofônicas foi proibida e o autor e a gravadora
foram processados por racismo. O compositor foi absolvido.
39
Trecho da letra da música “Nega do cabelo duro” de David Nasser e Rubens Soares. Canaval de 1942.
40
Trecho da letra da música de Lamartine Babo e Irmãos Valença. Carnaval de 1932.
68
reagem ao ouvir uma reclamação ainda tão comum nos dias atuais, talvez apenas renovada
por uma por uma nova marca de palha de aço?
“Tia, (...) me chamou de cabelo de Bombril”.
“Tia, (...) me chamou de cabelo de Assolan
41
”.
E o que dizer quando são os professores que inauguram situações de discriminações
racistas?
Em uma escola pública na zona sul do Rio de Janeiro, presenciei a situação que relato
a seguir:
Meio-dia e quarenta e cinco, o sinal toca anunciando o horário de entrada na escola.
Uma aluna negra, de quatro anos de idade, chega à escola e caminha para a fila de sua turma
da Educação Infantil. Aproximadamente quinze minutos após subir junto com a turma para a
sala, a menina aparece no corredor da escola, aos prantos, caminhando em direção à diretoria,
sendo seguida de sua professora que fala em um tom muito alto:
- Todo dia é a mesma coisa. Essa garota não traz a pasta com o trabalho de casa.
Assim não dá. E olha o cabelo dela. Isso parece um campo minado cheio de bombinhas.
Olha só para isso! Parece que vai estourar! Que coisa horrorosa!
O cabelo ao qual a professora se referia estava penteado num estilo africano, chamado
de birotes, muito semelhantes ao da personagem da história: “As tranças de Bintou”. O
desrespeito às características fenotípicas e culturais dos negros fez com que a menina fosse
motivo de chacota por parte da professora, de outros alunos e alunas e adultos que pelo
corredor passavam. Os comentários sobre o cabelo da menina passaram a ser uma constante,
assim como o choro e a pasta, que ela geralmente, não levava. Alguma relação de causa e
efeito entre os fatos?
Compartilho com Silva (2001) a idéia de que é preciso termos em mente como estes
racismos foram historicamente construídos, pois “é claro que as atitudes racistas individuais
devem ser questionadas e criticadas, mas sempre como parte da formação social mais ampla
41
Marca de palha de aço concorrente da Bombril, fabricada e comercializada desde 1950, se torna mais
conhecida a partir de 2002 com propagandas veiculadas em diferentes mídias, principalmente a televisiva.
69
do racismo” (p.103). Portanto, a professora mencionada no caso acima, não pode ser
considerada a única culpada por sua atitude discriminatória e racista.
Gomes (2004) nos fala sobre a forma de camuflar o pertencimento étnico-racial,
através do estilo de cabelo, tipo de penteado e manipulação dos mesmos, atribuídos pelos
sujeitos, na tentativa de encobrir dilemas referentes ao processo de construção da
identidade negra”. Os estilos de cabelos também podem representar um processo de
reconhecimento das raízes africanas assim como de reação, resistência e denúncia contra o
racismo. E ainda expressar um estilo de vida” (p.138).
Em decorrência de uma convivência dolorosa, em especial com o cabelo, pessoas
negras são muitas vezes levadas a desenvolver mecanismos de defesa que não são
necessariamente elaborados para resguardar a identidade, mas para diminuir o sofrimento
(INOCÊNCIO, 2006, p.187). O autor prossegue enfatizando que seria um equívoco acreditar
nestas estratégias como decisões voluntárias, independente de tensão e limites que as pessoas
atingidas vivam. Engana-se quem pensa que tais reações são causa e não efeitos de um
processo extremamente complexo (idem).
Pensar nesta camuflagem e nos mecanismos de defesa para disfarçar o cabelo, nos
pista para entendermos as estratégias dos sujeitos desta pesquisa, para representar a
personagem, na maioria das vezes, deixando dúvidas sobre a sua negritude embora, tão nítida
nos livros lidos em nossos encontros.
5) Contos africanos para crianças brasileiras (2004)
O livro traz dois contos que foram adaptados da tradição oral africana por Rogério
Andrade Barbosa e ilustrados por Maurício Veneza. O primeiro tenta explicar o motivo de
ratos fugirem de gatos. Isto teria ocorrido porque quando os dois eram amigos, prepararam
juntos uma espécie de manteiga conhecida em algumas regiões africanas como “ghee” e
guardaram no celeiro da igreja para ser consumida em momento oportuno. No entanto, o rato
não resistiu e costumava ir até para comer um pouquinho da manteiga a cada dia. Até que
um dia acabou e quando o gato foi procurar descobriu tudo. Foi atrás do rato e este havia
sumido, após ter traído a confiança do amigo.
70
A segunda é uma versão da história do jabuti que foi à festa no céu. Esta narrativa
procura explicar o motivo de os jabutis terem a couraça rachada. A maior diferença entre as
versões contadas no Brasil é que o jabuti se utiliza das penas que os pássaros lhe cederam para
poder voar até o céu não sendo, portanto, carregado por eles.
Vivenciando a história
A contação desta história foi feita para que as crianças tivessem a oportunidade de
ouvir versões africanas para contos que eles geralmente conhecem. Elas apontaram as
diferenças e semelhanças. Solicitei em um supermercado que me cedessem papelões roxos
que servem para acomodar maçãs nas caixas em que são transportadas. As crianças receberam
então, um pedaço do papelão em forma de concha, tiras do mesmo material e folhas de
revistas. Com isso, montaram seus jabutis. Não tínhamos como objetivo a coleta de dados
específicos para a pesquisa. A história, no entanto, atendia ao tipo de narrativa a que nos
propusemos a utilizar.
6) Fica Comigo (2001)
O livro de Georgina Martins e Elizabeth Teixeira conta a história de um menino de
três ou quatro anos aproximadamente, que vive com a mãe e tem seus medos, como todos nós
temos. Seus medos estão de acordo com a sua idade. Ele tem medo dos monstros que “vê”
escondidos pela casa; medo da morte da mãe; medo de ficar sozinho. Sua mãe é do tipo que
além de cuidar do filho: dar banho, vestir e alimentar, também conversa com ele e procura
demonstrar seu amor pelo filho.
O texto é todo escrito em forma de diálogo das personagens e o assunto gira em torno
dos medos e da proteção da mãe, que mesmo tendo que sair para trabalhar, garante ao filho,
que de alguma forma, irá protegê-lo de um dos maiores medos que é o da morte da mãe.
O livro apresenta personagens negras representadas como: uma mãe amorosa e zelosa
com o filho e com a casa e uma criança que é amada pela mãe e que vive uma situação na
qual os medos que são comuns às crianças nesta faixa etária são evidenciados e questionados.
Consideramos como uma segunda contribuição deste livro o fato de trazer uma visão africana
sobre a morte, embora não mencionada a origem.
71
A autora trata a morte como um rito de permanência onde a pessoa morre, mas a sua
força permanece na natureza. Essa idéia de transferência da vitalidade da pessoa morta para os
elementos naturais, inclusive a terra que passará a ser o abrigo do corpo, é um elemento da
cosmovisão africana em relação à morte, levando assim à crença na imortalidade do homem,
segundo Eduardo Oliveira (2003).
Vivenciando a história
A atividade proposta foi que as crianças pintassem monstros nos papéis que receberam
e que haviam sido recortados com formas indefinidas e diferentes entre si.
7) Os sete novelos – um conto de Kwanzaa (2005)
O livro escrito por Angela Shelf Medearis e ilustrado por Daniel Minter foi produzido,
segundo os autores, especialmente para o Kwanza.
42
A história se passa em Gana e fala sobre um homem viúvo que vive com seus sete
filhos que são descritos como muito bonitos, de pele escura e lisa como ébano. Os irmãos
brigavam todos os dias por qualquer motivo, o que deixava o pai muito triste. Um dia, o pai
morreu e no dia seguinte, logo ao amanhecer, o chefe da aldeia chamou os irmãos e avisou
que o pai havia deixado uma herança para eles. Os irmãos começaram a discutir sobre para
quem havia ficado a herança. O chefe então explicou que a herança seria dividida igualmente,
mas para isso os irmãos teriam que fazer, até o anoitecer, ouro com novelos de fios de seda
que cada irmão recebeu. Caso contrário, toda herança seria dividida entre os mais pobres da
aldeia.
Ao voltar à fazenda, pela primeira vez, os irmãos não brigaram. Sentaram-se lado a
lado, deram as mãos, selaram a paz e começaram a pensar possibilidades de como transformar
os fios em ouro. Cada idéia que um dava, os outros ouviam pacientemente.
Muitas idéias surgiram até que um deles sugeriu que fizessem um tecido para ganhar
um pouco de ouro. A idéia foi bem aceita, mas perceberam que não tinham fio suficiente para
produzir uma peça de tecido de uma só cor, como as pessoas daquela aldeia usavam.
42
Kwanzaa (primeiros frutos na língua suaíli) Feriado cultural criado em 1966, nos Estados Unidos e celebrado
por afrodescendentes no mundo inteiro. O objetivo é unir pessoas de ascendência africana para honrar as
heranças e tradições de seus antepassados.
72
Um deles então sugeriu que fizessem um tecido muito especial que todos acabariam
usando. Os irmãos fizeram um tear e começaram a trabalhar. Em um curto prazo de tempo,
os irmãos haviam produzido várias peças de tecidos multicoloridos. Colocaram dentro de
cestas e foram até a aldeia. Ao chegar à praça do mercado, os irmãos começaram a gritar
anunciando seus tecidos. De repente, o tesoureiro do rei vai até os irmãos e verifica os tecidos
e os acha dignos de serem usados por um rei. Ele compra tudo e entrega aos meninos um saco
de ouro.
Os irmãos vão até a cabana do chefe e a primeira pergunta que este faz era se os
irmãos haviam brigado. Ao ouvir que não brigaram, mas sim procuraram trabalhar juntos, o
chefe conclui que eles haviam aprendido a lição e lhes comunica que tudo o que era do pai
será entregue a eles. O mais novo, no entanto, demonstrou preocupação com os mais pobres
da aldeia que nada receberiam. E o mais velho teve a idéia de ensinar-lhes a transformar fios
em ouro. Com esta atitude dos irmãos a aldeia tornou-se próspera e famosa. A partir de então,
os irmãos passaram a trabalhar no cultivo da terra sempre em harmonia.
As imagens do livro são ilustradas em cores fortes e um dos detalhes diz respeito a
uma das tradições africanas: o valor que é dado aos mais velhos. Nestas ilustrações, os olhos,
narizes e bocas dos irmãos não são vistos. Aparecem pintados como o resto do corpo. Em
algumas páginas, é possível ver apenas o perfil. No entanto, o mesmo não ocorre com o pai e
o homem mais velho da aldeia. Estes quando de frente, têm os traçados dos olhos, boca e
nariz. Além disso, os mais velhos usam adornos. Tal diferença pode servir como uma forma
de apresentar o mais velho como aquele que conquistou alguns valores tanto materiais
quanto morais.
Nas primeiras páginas do livro um provérbio africano que diz: Um feixe de galhos
é inquebrável” e este pode ser constatado na própria narrativa.
O livro evidencia a sabedoria ancestral, o valor do mais velho e a solidariedade que
podem ser considerados marcas fortes em muitas culturas africanas.
Vivenciando a história
Este foi o último livro lido durante a pesquisa de campo. Ao finalizarmos, as crianças
comentaram que gostaram muito e solicitamos que fizessem um auto-retrato para que para
guardarmos como recordação delas. Apresentamos os resultados no capítulo final.
73
4.2 “Não é porque eu sou morena que eu vou chamar os outros de seu preto.”
Foi que entendi que a diversidade
dos povos, das etnias, das raças, dos
pensamentos é imprescindível para
colorir a Teia, do mesmo modo que é
preciso o Sol e a Água para dar
forma ao Arco-Íris.
Daniel Munduruku
Não são raras as vezes em que nos solicitam um documento de identidade para que se
possa confirmar quem somos. Mas, quem somos de fato? O documento diz tudo? Somos o
que pensamos que somos? Somos o que o outro pensa que somos?
A fim de tornar possível nossa investigação sobre as influências da literatura infantil com
protagonistas negros e negras na formação da identidade étnico-racial, fez-se necessário
compreender melhor o conceito de identidade.
Segundo o dicionário “Aurélio”, identidade que se origina do latim escolástico identitate,
significa:
qualidade de idêntico; conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma
pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões
digitais, etc [grifo meu].; reconhecimento de que um indivíduo vivo ou
morto é ele próprio; carteira de identidade.
O conjunto de caracteres mencionado no dicionário nos diz respeito a informações que
poderiam constar em uma ficha de identificação previamente formulada. Mas será que tais
fichas conseguem expressar quem somos nós? Que outros caracteres próprios e exclusivos de
uma pessoa poderiam estar no et cetera? Ao ler a definição, pareceu-nos faltar ainda quesitos
como: a cor/raça ou etnia. Estariam no et cetera?
E o que dizem dicionários de outras áreas de conhecimento como filosofia e sociologia
sobre o verbete identidade?
Jupiassú e Marcondes (1996 p.136) entre outras definições mais ligadas à lógica
Matemática trazem a questão da identidade e da diferença, do mesmo e do outro, como uma
das questões mais centrais da metafísica clássica em seu surgimento (Heráclito, Parmênides,
Platão)
74
Os autores nos mostram que em Parmênides encontramos a busca da essência, de um
elemento único, o ser que seja capaz de explicar a totalidade do real. em Heráclito,
predomina o pluralismo onde o real é visto como reino da diferença, do conflito, da mudança
em um sentido dialético onde algo que é, pode não ser ao mesmo tempo, uma vez que está em
mudança. E Platão tenta conciliar, de alguma forma, essas duas vertentes que tiveram
influência em sua metafísica dualista. Nesta perspectiva, Platão vai defender a idéia de que a
mudança pertence ao mundo material, ao mundo das aparências, sendo o mundo das formas
fixo, eterno, imutável.
Partindo para o dicionário de Sociologia de Allan Johnson (1997), ao procurarmos por
identidade encontramos o termo: identidade social que apenas nos sugere a ver o verbete self,
que apresenta a seguinte definição:
(...) de uma perspectiva sociológica, self é um conjunto relativamente
estável de percepções sobre quem somos em relação a nós mesmos, aos
outros e aos sistemas sociais. O self é organizado em torno de um
autoconceito
43
, ou seja, as idéias e sentimentos que temos sobre nós
mesmos. (...) o self é socialmente construído
44
no sentido de ser moldado
através de interação com outras pessoas e por utilizar materiais sociais sob
a forma de imagens e idéias culturais. (JOHNSON ,1997, p. 204)
Neste trabalho, a identidade está sendo vista com um conceito muito próximo ao do
self. Ela aqui está sendo entendida como a visão que cada um vai elaborando sobre si, sobre a
comunidade onde vive, a classe social da qual faz parte, dos grupos étnico/raciais e de gênero
aos quais pertence.
Objetivando entender o que é identidade buscamos dialogar com alguns teóricos que
nos auxiliam a compreender melhor este termo cada vez mais presente na contemporaneidade.
A identidade pode ser vista como uma espécie de encruzilhada existencial
entre indivíduo e sociedade em que ambos vão se constituindo mutuamente.
Nesse processo, o indivíduo articula o conjunto de referenciais que
orientam sua forma de agir e de mediar seu relacionamento com os outros,
com o mundo e consigo mesmo. (NASCIMENTO, 2003, pp.30-31)
43
Grifo do autor.
44
Grifo do autor.
75
Em seus estudos sobre identidade, Hall (2002) traz três concepções sobre o tema e nos
mostra que no Iluminismo, a identidade do sujeito era vista de modo individualista. A pessoa
humana era tida como:
Um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de
razão, consciência e de ação cujo centro consistia num núcleo interior que
emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia,
ainda que permanecesse essencialmente o mesmo contínuo ou idêntico a
ele (p.10).
A segunda concepção de identidade é a do sujeito sociológico baseada na
complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não
era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação “com outras pessoas
importantes para ele”
45
. (p.11) Essas pessoas eram vistas como as mediadoras dos valores,
sentidos e símbolos cultura dos mundos que ele/ela habitavam (idem). Nesta visão, é na
interação entre o eu e a sociedade que a identidade é formada. A idéia de essência e núcleo
interior permanece, mas este eu real é formado e modificado num diálogo contínuo entre os
mundos culturais “exteriores
46
” e as identidades que esses mundos oferecem (ibidem).
E a terceira é a do sujeito pós-moderno ou da modernidade tardia. Nesta concepção, o
sujeito não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente. (...) torna-se uma
“celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas
quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL,
2002 p.13, apud Hall, 1987). É definida historicamente e não biologicamente (HALL, 2002,
p.13). Em diferentes momentos, diferentes identidades são assumidas pelo sujeito.
Essas identidades não são unificadas e nem coerentes. Dentro de nós, identidades
contraditórias empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações
estão sendo continuamente deslocadas (idem). Para o autor, é a multiplicação dos sistemas de
significação e representação cultural que multiplica as possibilidades de identidades com as
quais somos confrontados e podemos nos identificar. Reforçando esta idéia, Gomes (2005)
nos diz que quando nos reconhecemos em uma identidade, estamos supostamente,
respondendo de maneira afirmativa a uma interpelação e estabelecendo um sentido de
pertencimento a um grupo social de referência. E que nesse processo, nada é simples ou estável,
45
Grifo do autor.
46
Grifo do autor.
76
pois essas múltiplas identidades podem cobrar, ao mesmo tempo. Lealdades distintas, divergentes, ou
até contraditórias. (pp.42-43).
Manuel Castells (2002) nos fala sobre a tendência das pessoas ao agrupamento, o que
gera um sentimento de pertença e muitas vezes uma identidade cultural. O autor conceitua
identidade como a fonte de significado e experiência de um povo (p.22). Para ele, esta é
construída através de matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições
reprodutivas, pela memória coletiva, por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e
revelações de cunho religioso (p.23). O autor enfatiza ainda que o contexto em que ocorre a
construção social da identidade é sempre marcado por relações de poder.
Castells e Hall nos ajudam a pensar sobre os conflitos da globalização e da identidade
que advêm dessa sociedade em rede. Castells (2002, p.17) nos diz que a cultura tende a ser de
virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e
altamente diversificado. Numa mesma óptica, Hall (2002) nos mostra o quanto que esta
possibilidade de circulação de culturas e da vida social através do mercado global de estilos,
lugares e imagens são viabilizadas pelas viagens internacionais, pela mídia e pelos sistemas
de comunicação interligados globalmente. Esta circularidade contribui para que as
identidades se tornem mais desalojadas e desvinculadas de tempos, lugares e tradições
específicos.
Munanga (2004) nos chama a atenção para o fato de existirem culturas particulares,
que se constroem diversamente nos conjuntos das populações negras, brancas e orientais.
Escapam assim, da cultura globalizada e se posicionam até como resistência à globalização.
Focando mais diretamente o olhar para a população brasileira o autor destaca que pela
distribuição geográfica e etnográfica do Brasil, não uma identidade única branca e nem
negra. E mais especificamente em relação a cultura negra brasileira, Munanga enfatiza que em
cada região, a produção cultural em diferentes campos como religiosidade, culinária, dança,
artes plásticas entre outros, é muito diferenciada.
Assim como a identidade cultural se constrói com base na tomada de
consciência das diferenças provenientes das particularidades históricas,
culturais, religiosas, sociais, regionais, etc., se delineiam no Brasil diversos
processos de identidade cultural, revelando um certo pluralismo tanto entre
negros, quanto entre brancos e entre amarelos, tomados como sujeitos
históricos e culturais e não como sujeitos biológicos ou raciais.
(MUNANGA, 2004, p.32)
77
Partindo da tomada de consciência da exclusão fundamentada na discriminação racial
é que politicamente pode ser construída uma identidade negra única e mobilizadora, apesar
das diferentes identidades regionais. Uma identidade que “(...) embora passe pela aceitação
da negritude e das particularidades culturais negras, tem um conteúdo político e não cultural
(idem, p. 33)”.
Segundo Munanga, o discurso militante que se refere a “identidade racial negra”,
“identidade étnica negra” ou “identidade étnico-racial negra”, deve ser compreendido na
perspectiva política ou ideológica. E ao se fazer uso destes termos deve-se ter a consciência
deste seu conteúdo político evitando assim cair no biologismo e na idéia de que os negros e
negras produzem uma cultura única.
Da mesma forma que as demais identidades, a identidade negra também é construída
num movimento que envolve as primeiras relações estabelecidas no grupo social mais íntimo,
como a família, se ramificando e se desdobrando a partir de outras relações do sujeito em
diferentes espaços.
Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que,
historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser aceito é
preciso negar-se a si mesmo é um desafio enfrentado pelos negros e pelas
negras brasileiros (as) (GOMES, 2005, p.43).
78
4.3 “É isso mesmo. Quando tem olho azul, a pessoa é bonita.”
A escolha de livros que contribuíssem para a discussão sobre a beleza está
relacionada ao fato de depararmos todos os dias, em diferentes ambientes com padrões
estéticos que, na maioria das vezes, está muito mais para fenótipos europeus do que de
qualquer outro que dele se difira.
Mas, o que é ser belo?
O conhecido dicionário “Aurélio” entre outras conceituações define o belo como
“aquele que tem forma perfeita e proporções harmônicas; que é agradável aos sentidos;
próspero, feliz”.
No âmbito da filosofia, Japiassú e Macondes (1996, p.27) definem o belo como:
(do latin bellus: bonito) tudo aquilo que como tal, suscita um prazer
desinteressado (uma emoção estética) produzido pela contemplação e pela
admiração de um objeto ou de um ser; aquilo que apresenta um valor
moral digno de admiração; conceito normativo fundamental da estética
que se aplica ao juízo de apreciação sobre as coisas ou sobre os seres que
provocam a emoção ou o sentimento estético (...) Todo belo é o resultado
de uma apreciação, de um juízo de gosto subjetivo, isto é, pressupõe que
não haja nada para ser conhecido.
O ditado popular diz: “Quem ama o feio, bonito lhe parece.” Esta frase parece indicar
um lado subjetivo na conceituação do que é belo e bonito.
A sociedade vem através dos tempos, de diferentes formas, utilizando-se de variadas
mídias, estabelecendo padrões de beleza em diferentes setores. A luta e resistência negra
também se fazem presentes pelo espaço e representatividade nas mídias. Silva (2004, p.158).
ao se referir à presença negra na mídia televisiva, enfatiza que é nos programas de auditório
que a população negra tem tido maiores oportunidades de se tornar visível, cantando e
dançando músicas da sua cultura, possibilitando “um maior reconhecimento e aceitação da
sua estética e cultura” .
8) O menino Nito (2002)
Sonia Rosa e Victor Tavares, autora e ilustrador, respectivamente, apresentam uma
família negra numa formação mais clássica: pai, mãe e filho. A história gira em torno do filho
que chora muito por tudo e chega o dia em que o pai lhe diz que como ele é homem, não pode
79
chorar. O menino passa então a engolir o choro, o que acaba deixando-o doente. O médico
precisa ser chamado e ao final, pai e filho descobrem que o menino pode chorar sim, desde
que tenha motivo para tal.
A questão de gênero é anunciada na capa onde aparece o subtítulo: Então, homem
chora ou não?” Não referência escrita sobre a raça/etnia das personagens, mas através da
ilustração que percebemos que a família é negra.
Logo no início do texto, a autora justifica o nome do protagonista: “De tão gracinha
que era, logo, logo, começou a ser chamado de bonito: Bonito pra lá... Bonito pra cá... Até
virar apenas Nito. Todo mundo achava lindo!!!” (p.3).
Nito é então um menino visualmente negro e descrito como bonito.
Antes de iniciar a leitura desta história foi perguntado aos alunos e alunas:
- Como é que nós sabemos se uma pessoa é bonita?
As respostas foram:
“Quando usa roupa brilhante, bota implante no cabelo”.
“Quando usa anel de ouro, brinco de ouro, cordão de ouro”.
“Quando prende o cabelo”.
“Quando é rica”.
“Pelo rosto. Se é bonita, é diferente”.
“Pelo olho. Se for azul, ela é bonita.”
“É isso mesmo, quando tem olho azul, a pessoa é bonita.”
A fala das crianças parece relacionar a beleza ao “ter”. O que se aproxima muito do
que é valorizado pela mídia e propagado pelas indústrias de consumo. “Ter jóias, dinheiro,
carro importado etc...”, Esta estreita relação não difere muito de uma das definições que
encontramos no dicionário Aurélio, que conforme já citamos, define belo como próspero.
Vivenciando a história
Após a leitura da história, as crianças receberam uma silhueta de um boneco que
deveria ser transformado no Menino Nito.
80
81
Quadro 8
Representações da personagem do “Menino Nito” produzidas pelas crianças.
82
Local
Características
ESCOLA DA
ZONA SUL
(Quantidade)
%
ESCOLA DA
ZONA
NORTE
(Quantidade)
%
Sem colorir a pele, cabelos
loiros e de olhos azuis.
1 6% 5 24%
Negros de cabelos e olhos
pretos.
2 11%
Sem colorir a pele, cabelos
pretos e crespos e olhos claros.
2 11% 4 18%
Sem colorir a pele, olhos e
cabelos pretos.
11
61%
5
24%
Pele pintada em cor bege bem
clara, com cabelos loiros e
olhos azuis.
1 4%
Pele pintada em cor bege bem
clara, com cabelos pretos e
olhos pretos.
2 9%
Pele pintada em cor rosada
com cabelos pretos e olhos
azuis.
1 4%
Pele pintada em cor rosada
bem clara, com cabelos pretos
e olhos pretos.
1 4%
Pele pintada em cor rosada
com cabelos loiros e olhos
azuis.
1 4%
Outras cores (vermelho,
laranja, rosa e azul).
2 11% 2 9%
Total
16 100% 22
100%
Nas representações produzidas, podemos observar que o protagonista foi representado
com características nitidamente negras em apenas 5% dos desenhos. Em contrapartida, o
percentual das representações com, pelo menos, uma característica do fenótipo europeu, sobe
para 40%.
Estes dados nos levam a pensar sobre: quais as características dos meninos
considerados bonitos em nossa sociedade? Como são os meninos que mais aparecem na mídia
e que são considerados belos? Como são os meninos considerados bonitos na escola e que,
em muitos casos, recebem direta ou indiretamente, incentivos para namorarem as meninas
tidas igualmente como bonitas e concomitantemente recebem mais carinho e atenção? A
beleza que o livro atribui ao “Menino Nito” parece não condizer com as mais prováveis
respostas para estas perguntas.
9) Menina bonita do laço de fita (2005)
Escrita por Ana Maria Machado e ilustrada por Claudius é o livro mais conhecido
entre os docentes. Quando se fala em narrativa com protagonista negro é comum alguém tecer
comentários sobre esta obra.
É a de uma menina negra cujos cabelos costumam ser trançados pela mãe que coloca
laços de fita na ponta. A menina tem um admirador que é um coelho branco que sempre
pergunta a ela: - Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? A
menina vai inventando várias explicações que são experimentadas pelo coelho, que
83
obviamente, não consegue ficar preto. Até que a mãe da menina intervém e explica sobre
ascendência e as características que herdamos de nossos familiares. O coelho então, se casa
com uma coelha preta e tem filhotes multicoloridos.
A pergunta feita pelo coelho foi muito repetida pela turma durante a atividade após a
contação da história.
A narrativa faz alusão aos casamentos multirraciais. Embora a mãe da menina seja
identificada como mulata, o que traz um significado negativo por ser derivada do nome do
animal mula, como ressalta Sousa (2005, p.197) para as crianças talvez não tenha uma
significação pejorativa por provavelmente desconhecerem esta referência.
Concordamos com Sousa (idem, p.198) quando enfatiza que o livro traz “uma
valorização da negritude ao sobressair a cor preta da garota, bem como o carinho entre mãe
e filha.” A personagem desfruta de cuidados, carinhos e uma vida também confortável que
podem ser observados nas ilustrações onde se percebe que usa roupas de bailarina, tem acesso
a livros, pinta desenhos, aparece sentada no colo da mãe, que também passa uma imagem de
ser bem cuidada pelas roupas que usa, cabelos penteados, entre outros cuidados.
Vivenciando a história
Reproduzir a “Menina bonita do laço de fita” na silhueta recebida.
84
Quadro 9
Representações da personagem “Menina Bonita do Laço de Fita” produzidas pelas
crianças.
Na mídia, a representação de uma menina bonita, não difere muito da que se faz dos
meninos bonitos, elas têm um estereótipo mais próximo do europeu.
85
Local
Características
ESCOLA DA
ZONA SUL
(Quantidade)
%
ESCOLA DA
ZONA NORTE
(Quantidade)
%
Negra com cabelos pretos trançados
e olhos pretos.
2 15%
Negra com cabelos crespos pretos e
olhos azuis.
2 9%
Sem colorir a pele, olhos pretos e
cabelos pretos crespos trançados ou
não.
4
31%
11
48%
Sem colorir a pele, cabelos crespos
marrons ou pretos e olhos azuis.
2 15% 3 13%
Sem colorir a pele, olhos pretos e
cabelos crespos e loiros.
1 8%
Pele rosada, cabelo crespo preto e
olhos azuis.
1 8%
Sem colorir a pele e os olhos, com
cabelos loiros.
2 9%
Pele pintada com grafite, cabelos
crespos pretos e olhos pretos
1 4%
Pele do rosto rosada com pés e
mãos pintados de marrom bem
forte, cabelos lisos pretos e olhos
pretos.
1 4%
Sem colorir a pele, com cabelos e
olhos coloridos.
3 23% 3 13%
Total 13 100% 23 100%
Nos espaços escolares, é muito comum ouvirmos o termo “bonitinho” ou bonitinha”
para definir a estética de um menino ou menina negra. Assim usado, parece ser uma forma de
dizer que embora fuja aos padrões de beleza, tem uma aparência razoável. Não é considerada
feia.
Nas representações da personagem “Menina Bonita do Laço de Fita”, feitas pelos
sujeitos desta pesquisa, encontramos 5% com características que não deixam dúvidas de que
se trata de uma personagem negra enquanto que 25% apresentam algum traço característico
do fenótipo europeu. O cabelo crespo, que é uma característica marcante dos negros e negras,
aparece em 0,53% das representações da “Menina Bonita do Laço de Fita”.
Chamou-nos a atenção a quantidade de crianças que representaram a menina com os
cabelos crespos. Na representação dos meninos, esta característica ficou menos evidente.
Embora, nos desenhos das crianças, a pele não esteja evidenciando a negritude, da
personagem, os cabelos dão uma pista de que as crianças assimilaram o que a autora e
ilustrador procuraram deixar claro sobre o grupo étnico-racial da “Menina Bonita do Laço de
Fita”.
10) Que Mundo Maravilhoso (2000)
De Julius Lester e Joe Cepeda, Que Mundo Maravilhoso” é traduzido por Gilda de
Aquino, e é convidativo à leitura pela ilustração atraente da capa: são quatro personagens
principais negras das quais duas, por suas longas asas, percebemos estarem representando
anjos. Essas personagens estão por entre as nuvens, sorrindo e olhando para a Terra. As
ilustrações bem cuidadas podem ser vistas em todo o livro. As personagens estão sempre
muito bem vestidas e sempre com calçados nos pés, ou então, com os mesmos bem próximos,
prontos para o uso imediato.
Neste livro, o autor asas à imaginação”, como ele mesmo diz na apresentação e
brinca com a sua versão para a criação do mundo. Nesta narrativa, Deus é completamente
humanizado: é casado, tem secretários (anjos negros) que o auxiliam, aceita críticas e ajuda de
uma mulher (anjo negro feminino) para aperfeiçoar sua criação que considerava pronta.
Deus é negro assim como sua esposa e a maioria dos anjos que aparecem, e desfruta, no céu,
de um ambiente aconchegante onde usufrui do conforto que as técnicas desenvolvidas pelos
seres humanos proporcionam ao mundo atual.
86
Em duas de suas páginas, por exemplo, onde estão representados dezoito anjos, apenas
três não são negros. Estes anjos, pelos traços fenotípicos e pelo vestuário, sugerem
representar diferentes grupos étnicos.
Apesar de todas as características que o autor para o Criador, tornando-o bem
diferente do que tem sido considerado como sua representação no imaginário social, do que
lemos em livros sagrados ou mesmo mitológicos, o que mais costuma chamar a atenção das
crianças, ao entrarem em contato com o livro, tem sido o fato de Deus ser negro.
Ao terminar a leitura desta história, foi solicitado que as crianças fizessem
comentários sobre o que viram e ouviram. Na escola da zona sul as falas ficaram restritas aos
seguintes comentários: acharam a história “legal”, “bonita” ou destacaram a parte que mais
gostaram. Salientamos que para quatro dos dezenove alunos e alunas presentes a história
era conhecida, pois haviam sido meus alunos e alunas por alguns meses, no ano anterior à
pesquisa. Naquela turma houve uma discussão sobre o fato de Deus poder ou não ser negro
- Deus não pode ser negro. - disse uma aluna.
-Por quê? – perguntei.
- Porque preto não entra no céu.
- E por que não? –Insisti.
- O porquê eu não sei. Mas que não entra, não entra.
Com o desenrolar da conversa foi possível discutir com a turma algumas questões
sobre preconceitos e racismos. Com isto, durante a pesquisa, ao ser questionado se Deus
poderia ser negro ou não, imediatamente, um aluno negro que havia participado da discussão
anterior respondeu:
- Pode sim. Deus pode ser de qualquer cor. Ninguém nunca “viu ele” para saber!
Nenhum aluno contestou. Alguns concordaram oralmente através de expressões
como: “É mesmo!” e outros não se manifestaram.
Na escola da zona norte, como, a princípio, não houve qualquer comentário, indaguei:
- Como é o Deus desta história?
- Ele é preto. – respondeu um aluno negro.
Um outro também negro logo retrucou:
87
- Preto, não. Ele é moreno.
Fiz uma outra indagação:
- Deus não pode ser preto?
- Não! Deus não merece ser preto. respondeu, de maneira bem enfática, uma
menina que havia se auto-identificado como morena e era visivelmente negra.
Imediatamente, uma colega também negra e que igualmente havia se auto-identificado
como morena e se desenhado como loira, altercou:
- A Joana
47
é racista.
- É mesmo! concordou uma outra aluna negra e nas mesmas condições de auto-
identificação. E ainda acrescentou:
- Não é porque eu sou morena, que eu vou dizer para o outro:Você é preto”. Eu não
sou racista. Não tem nada a ver.
Estas falas evidenciam idéias que associam ser preto, ser negro a um castigo divino.
Esta associação nos remete a uma passagem bíblica sobre a origem do povo de Canaã, na qual
aos povos do continente africano seriam formados pelos descendentes de Cam, um filho
amaldiçoado por Noé
48
.
Embora muitos povos tenham sido escravizados ao longo da história da humanidade,
ao se falar em escravidão é muito comum que as pessoas a associem ao negro. Como
conseqüência, a associação do negro ao sofrimento, à dor física e moral, contribuem para a
negação da cor.
Vivenciando a história:
47
Nome fictício.
48
Gênesis 9:
18. Os filhos de Noé, que saíram da arca com ele, foram Sem, Cam e Jafé.
19. Esses três foram os filhos de Noé, e os descendentes deles se espalharam pelo mundo inteiro.
20. Noé era agricultor; ele foi a primeira pessoa que fez uma plantação de uvas.
21. Tendo bebido vinho, ficou bêbado e se deitou nu dentro da sua barraca.
23. Cam, o pai de Canaã, viu que o seu pai estava nu e saiu para contar aos seus dois irmãos.
23. Então Sem e Jafé pegaram uma capa, puseram sobre os seus próprios ombros, foram andando de
costas e com a capa cobriram o seu pai, que estava nu. E, a fim de não verem o pai nu, eles fizeram isso olhando
para o lado.
24. Quando Noé acordou depois da bebedeira, soube do que Cam, o filho mais moço, havia feito.
25. Aí Noé disse o seguinte: "Maldito seja Canaã! Ele será escravo dos seus irmãos, um escravo
miserável."
26. E Noé disse mais: "Bendito seja o Eterno, Deus de Sem, e que Canaã seja seu escravo.
27. Deus faça que Jafé tenha domínio sobre muitas terras, e que os seus descendentes morem nos
acampamentos de Sem. E que Canaã seja escravo de Jafé."
88
Desenhar os cabelos e pintar os quatro anjos da folha recebida. Recortar e organizá-los em
um papel azul.
89
Quadro 10
Características dos anjos pintados pelas crianças:
Local da Escola
Características
ZONA SUL
(Quantidade)
% ZONA NORTE
(Quantidade)
%
Dois anjos negros, com cabelos
pretos juntamente com outros dois
com pele rosada ou bege.
2 12%
Todos os anjos negros, cabelos
crespos e olhos pretos.
1 5%
Todos os anjos sem a pele estar
pintada, com cabelos cacheados
pretos ou marrons.
3 18% 6 30%
Todos os anjos sem a pele estar
pintada, sendo dois de cabelos
loiros e dois de cabelos pretos.
Todos com olhos pretos.
5 29%
Todos os anjos pintados com a
pele em tom rosado, com cabelos e
olhos pretos.
4 23%
Todos os anjos sem estar com a
pele pintada, com os cabelos loiros
e olhos pretos.
5
25%
Três anjos negros com cabelos
pretos e um negro com cabelos
loiros
1 5%
Dois anjos negros de cabelos
crespos e pretos e dois com pele
mais clara, mas também com
cabelos crespos.
1 5%
Todos os anjos sem estar com a
pele pintada, cabelos loiros e olhos
azuis.
1 5%
Um dos anjos pintado como negro,
um como loiro e o outros sem estar
com a pele pintada. Todos de
olhos pretos.
3 15%
Todos os anjos com a pele sem
estar pintada, com cabelos em
estilo black power, pretos ou
marrons.
2 1%
Pintados com outras cores (verde,
azul, vermelho, rosa)
3 18%
TOTAL 19 100% 20 100%
90
A idéia de anjo loiro, com cabelos cacheados e olhos azuis, tão comumente difundida
em diferentes espaços, tempos e mídias, não se fez presente na representação dos anjos desta
narrativa. Embora nem todos os anjos, desta obra, sejam negros, poderíamos dizer que as
ilustrações mostram anjos que representam diferentes povos e suas características fenotípicas.
Ou seja, enquanto no livro, o ilustrador apresenta menos de 2% dos anjos com a pele rosada e
nenhuns deles com os olhos claros, as crianças representaram 70% deles com pele clara ou
sem pintar.
Talvez, o fato de muitos sujeitos desta pesquisa não terem pintado os anjos como
negros venha da própria idéia judaico-cristã da figura do anjo como aquele que é o
mensageiro de Deus, logo, é bom, é inocente, é puro e estas características estão,
culturalmente, relacionadas à brancura.
Por outro lado, tivemos anjos representados com cabelos pretos, crespos e até em
estilo black power que representaram, aproximadamente, 11% dos anjos feitos pelas crianças
fugindo ao padrão do que se acostumou a identificar como sendo de anjo. E pensar sobre por
onde estas idéias circulam, não demanda uma busca em lugares e tempos distantes
unicamente. Quando uma pessoa encontra um bebê de cabelos loiros e cacheados, é muito
comum fazer o comentário do tipo: -“Nossa! Parece um anjinho. Olha o cabelinho dele(a).”
Esta idéia está tão presente que existe um tipo de macarrão que é chamado de cabelinho de
anjo por ser bem fino, amarelado e encaracolado.
Anjos são, muitas vezes, também representados com os olhos azuis. Se o bebê, como o
citado anteriormente, além de loiro, tiver olhos azuis, muito provavelmente, não escapará do
comentário: “Que carinha de anjo!”.
No entanto, esta característica apareceu em menos de 1% das representações dos
alunos e alunas.
Anjos estão relacionados a uma concepção religiosa e para a igreja católica , os anjos
não têm corpo físico, mas sua materialização se como forma de representá-los
artisticamente. E nestas representações, os anjos, geralmente, têm a pele muito branca ou em
tom rosado, bem claro. Os cabelos cacheados nem sempre são loiros, podendo ser castanhos
ou ruivos, mas sempre cacheados e os olhos nem sempre azuis.
Diferenciando-se deste padrão estético, temos os anjos barrocos das obras de artistas
como Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho), filho de uma africana escravizada com um
arquiteto português, que pintou e esculpiu anjos mulatos em muitas das igrejas de cidades
91
mineiras ou do padre Jesuíno do Monte Carmelo, mulato, analfabeto, filho de uma mulher
parda e liberta, também nos século XVIII e XIX pintou anjos negros com cabelo pixaim no
interior de igrejas em Itu, São Paulo.
Nos desenhos e pinturas que fizeram após a contação das três histórias: “O Menino
Nito”, “Menina Bonita do Laço de Fita” e “Que Mundo Maravilhoso” encontramos em
diferentes percentuais, mas sempre significativos, o que poderíamos chamar de resistência em
representar as personagens como são descritas pelo autores (escritor e ilustrador).
Como pode ser bonita(o) ou um anjo sendo negro? Esta dicotomia está presente nas
imagens e falas das pessoas de forma implícita ou não.
Ao descrever um técnico eletricista ouvi de uma vizinha: “Ele é um rapaz escuro,
baixinho, mas é um ótimo profissional”. Dizer isso para mim, seria , no mínimo estranho,
pois sou negra e baixinha, mas a naturalidade com a qual ela falou mostra o quanto estes
conceitos e preconceitos estão arraigados e acabam passando de maneira imperceptível para
quem os diz, mas nem tanto para quem o entende nas entrelinhas e na pele.
presenciei também uma professora descrever o pai de um aluno da escola dizendo:
“Ele é pretinho, bem escuro, mas é uma boa pessoa”. Será que as pessoas usariam a mesma
forma de construção frasal, utilizando-se da conjunção mas que tem um sentido de oposição à
oração anterior (Pasquale e Ulisses, 2004, p.454) se estivessem descrevendo uma pessoa com
fenótipo europeu? Ou usariam a conjunção e, que tem um sentido aditivo, de soma (idem,
p.453). Seria como se dissessem que além de todas as características físicas tidas como
positivas, também é um bom profissional ou uma boa pessoa?
McLaren (2000) nos fala sobre a condição branca que permeia os mitos de
superioridade européia, como sendo uma das conseqüências do capitalismo. Esta condição
branca, segundo o autor, deve ser vista como cultural e processual
49
. Por este viés, o autor
nos uma pista para compreendermos esta valorização da representação da imagem de um
fenótipo sobre o outro. Para o autor, esta condição branca
(...) funciona retoricamente, através de sua própria articulação a partir do
detrito semiótico dos mitos da superioridade européia. Estes são mitos
ontologicamente vazios, epistemologicamente enganadores moralmente
perniciosos no sentido de que privilegiam os descendentes dos europeus
como sendo aqueles verdadeiramente civilizados, em contraste com os
personagens singulares, exóticos ou bárbaros das culturas não européias..
(McLAREN, 2000, p. 265)
49
Grifos do autor.
92
11) Ana e Ana (2003)
Ana e Ana é um livro de Célia Godoy ilustrado por e conta a história de duas irmãs
negras, gêmeas idênticas: Ana Carolina e Ana Beatriz.
No início do texto, uma menção à família, na qual se revela que as meninas ficam
aos cuidados da avó, que a mãe trabalha fora, que não mais aparece no decorrer da
narrativa, nem mesmo nas ilustrações. Não a presença do pai. Em relação aos colegas com
os quais brincam ou conversam, dos sete que aparecem nas imagens apenas um é negro.
As ilustrações têm cores fortes e quentes, que chamam a atenção do leitor. As meninas
negras estão sempre bem vestidas, calçadas e com os cabelos trançados ou penteados de modo
a valorizar o cabelo afro.
Em uma das páginas, a ilustração e o texto nos dão pistas de que as duas questionam
sobre a identidade de cada uma: “Uma coisa que irritava as gêmeas era ganhar tudo
igualzinho: brinquedos, roupas, sapatos... Elas não compreendiam por que algumas pessoas
queriam que elas se vestissem como se fossem uma pessoa só!”(GODOY, 2003, p.14)
Enquanto crescem, as irmãs intensificam o processo de identificação das diferenças
dentro da igualdade e saem em busca de seus ideais. Estudam, se formam e se tornam adultas
que demonstram realização profissional, atuando nas áreas que escolheram e para as quais se
qualificaram. Depois de um tempo distantes, se reencontram e descobrem que para além da
aparência, elas têm em comum o amor de uma pela outra.
Sousa (2005) destaca que o livro aborda sobre “a riqueza presente nas diferenças que
cada um possui, sem apresentar hierarquias ou padrões de valorizações negativas ou
positivas dentre as personagens”. (p.199)
Vivenciando a história
Reprodução das irmãs gêmeas da história através da silhueta recebida.
93
94
Quadro 11
Características das irmãs gêmeas desenhadas pelas crianças:
Local da Escola
Características
ZONA SUL
(Quantidade)
% ZONA NORTE
(Quantidade)
%
Pintadas como negras com
cabelos pretos e crespos e olhos
pretos.
5 31%
Pintadas como negras com
cabelo afro sendo uma com
olhos verdes
1 6%
Pintadas como negras, com
cabelos afro com as duas de
olhos claros.
1 5%
Pintadas com a pele como
negras com cabelos loiros e
olhos azuis.
3 18%
Sem estarem pintadas, com
cabelos crespos e pretos e olhos
pretos
4 25% 6 33%
Com uma delas negra com
cabelos pretos e crespos e a
outra muito semelhante, mas
sem cor definida no rosto, olhos
claros.
1 6% 1 5%
sem pintar a pele, com cabelos
crespos e olhos azuis.
2 11%
Sem pintar a pele, com cabelos
marrons e olhos azuis.
1 6%
Com braços e pernas pintados
de marrom, sem cor no rosto,
com cabelos loiros e olhos
azuis.
1 6%
Sem pintar a pele com cabelos
loiros e olhos claros.
3 18%
Sem pintar a pele com cabelos
crespos avermelhados e olhos
pretos
1 5%
Sem pintar a pele, com cabelos
e olhos de cores variadas (rosa,
laranja, etc)
3 19% 1 5%
TOTAL 16 100% 18 100%
95
Pelo exposto neste quadro, verificamos que menos de 2% representaram as
personagens com características nitidamente negras. Cerca de 50% representaram as
personagens com alguma característica dos negros, como a cor da pele, ou com cabelos
crespos.
Embora no livro não haja menção à beleza das personagens, o tipo de vida que elas
levam, o nível sócio-econômico e cultural que aparentam ter não são condizentes com o que
se tem como referencial de pessoas negras.
No quadro a seguir podemos verificar que a média de anos de estudos das pessoas que
se declararam pretas e pardas, na pesquisa realizada em 1999 para o censo 2000, era menor do
que a de quem se declarou branca.
Quadro 12
Média de anos de estudo das pessoas de 10 anos ou mais de idade por cor- 1999
Brasil e Grandes Regiões
Média de anos de estudo
Brancos Preta e Parda
Brasil (1) 6,6 4,6
Norte (2) 6,7 5,4
Nordeste 5,3 3,9
Sudeste 7,1 5,2
Sul 6,5 4,7
Centro-Oeste 6,8 5,3
Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999 Microdados. Rio de janeiro: IBGE, 2000.
(1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
(2) Exclusive a população rural.
Esses dados materializam-se no imaginário das pessoas através de diferentes situações.
Uma delas, vivencio anos como docente pois, quando saio para algum evento fora da
escola como visita a uma exposição, ida a um teatro ou semelhantes e que vou acompanhada
por uma e de aluno, outra professora, ou qualquer outro adulto de pele mais clara, o
responsável por nos receber nunca se dirige a mim para um primeiro contato.
Parece que, como negra, seria mais óbvio que eu estivesse ali para auxiliar na tarefa de
cuidar das crianças do que ser profissional formada e sabedora da importância de oferecer aos
alunos e alunas a oportunidade de estar em um evento cultural.
As condições de moradia também se evidenciam na cor da pele conforme mostram os
dados da quadro a seguir:
96
Quadro 13
Domicílios por condição de saneamento segundo a cor da pessoa de referência (%) – 1999
Brasil e Grandes Regiões
Água canalizada e rede geral de
distribuição
Esgoto e Fossa Séptica
Branca
Preta e
Parda
Branca Preta e Parda
Brasil (1) 82,8 67,2 62,7 39,6
Norte (2) 68,6 57,5 19,2 12,7
Nordeste 66,7 55,1 28,7 19,8
Sudeste 90,0 82,5 83,9 71,0
Sul 79,8 77,3 46,4 34,0
Centro-Oeste 75,2 66,4 38,7 31,3
Fonte: Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999 [CD-ROM]. Microdados. Rio de Janeiro: IBGE, 2000.
(1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
(2) Exclusive a população rural.
Como as representações sociais correspondem às situações reais, (MINAYO, 2000,
p.109), os dados apresentados nos ajudam a compreender as imagens construídas sobre a
população negra brasileira.
Se as personagens da história contada não correspondem a estas imagens construídas é
possível que isto interfira na reprodução das mesmas. Representá-las com cabelos crespos
talvez possa ser considerada como uma estratégia para indicar o grupo étnico-racial das
mesmas, sem, no entanto, mostrar nitidamente a cor da pele.
Na cultura visual brasileira, o corpo negro aparece como antítese do que
se imagina como normal. É um corpo cuja representação está associada ao
que de mais caricato (...) O corpo negro tornou-se um território
ocupado que parece não ter nome nem sobrenome. Uma maneira de
entender isso é acessando o universo midiático, onde as imagens
denunciam freqüentemente a qualidade de nossas relações raciais e o
quanto ainda precisa ser feito para que a diferença não seja interpretada
como desigualdade. (INOCÊNCIO 2006, p. 186)
A visão que o autor traz do corpo negro como antítese do que se imagina como
normal” na cultura brasileira, pode nos ajudar a entender o porquê de as personagens terem
sido representadas, na maioria dos casos sem a cor na pele. Afinal, as personagens aparecem
no livro com questionamentos internos, mas socialmente, demonstram viver sem problemas
97
em relação ao seu pertencimento étnico-racial e em harmonia com seus familiares e pessoas
do convívio social.
12) A ovelha negra (2003)
Escrita por Bernardo Aibê e ilustrado por Mariana Massarani, o livro inicia explicando
o termo “ovelha negra” nos sentidos conotativo, denotativo e o que é dado na história, pois a
protagonista é literalmente negra. A ovelha negra, de nome Tita, foi triste durante boa parte da
sua vida. Tita, por ser negra, se sentia mal no meio do rebanho em que todas as ovelhas eram
muito branquinhas.
Dentre as ovelhas, havia uma “que gostava muito dela, nem ligava pra cor” (AIBÊ,
2003, p.7), mas por mais que esta amiga lhe contasse até a história do Patinho Feio que
cresceu e virou um cisne garboso, muito mais bonito que todos os outros patos juntos
(idem, p.8) não conseguia fazer com que Tita mudasse de idéia, pois esta não queria ser mais
bonita do que ninguém. não queria ser negra, queria ser igual a todo o rebanho
(ibidem).
O autor destaca que Tita não era desprezada pelo rebanho, mas que este não deixava
de notar que ela era negra. O momento de alegria de Tita era na época da tosquia quando
todas as ovelhas ficavam iguais.
O clímax acontece quando, um dia, a ovelha acorda bem contente, cumprimentando a
todas as ovelhas, que estranhando seu comportamento, começaram a questionar e a comentar
qual seria o motivo da mudança.
Dentre as possibilidades de respostas para compreender o que ocorrera, uma das
ovelhas menciona a possibilidade de Tita ter recebido uma carta de um carneiro de outro
rebanho pelo qual ela era apaixonada, mas não costumava comentar, pois “como todos,
também achava que romance de carneiro branco com ovelha negra não podia dar muito
certo.” (AIBÊ, 2003, p.5).
A ovelha justifica que talvez sua alegria fosse pelo fato de ter descoberto que era a
única ovelha negra do rebanho. Mas a explicação dada por Diva, a ovelha que era sua amiga,
para esta mudança, foi a de que Tita havia passado porum processo de conscientização, que
tinha tomado consciência de si mesma, que tinha se assumido, resolvido se aceitar como
era” (AIBÊ, 2003, p.21).
98
A partir de então, Tita deixou de se importar com o que os outros pensavam e passou a
ser muito feliz. Com isso, acabou contribuindo para que outras ovelhas também se aceitassem.
Como foi o caso de uma que quase nunca balia por seu balido ser diferente e que passou a
balir todo dia, passando a gostar do som que produzia.
Vivenciando a história
Colar em um desenho da “ovelha negra”. Havia pedaços de nas cores preta,
amarela e marrom. Houve crianças que optaram por pintar e não colar a lã.
99
Quadro 14
Como as crianças representaram a ovelha negra:
Local da Escola
Características
ZONA SUL
(Quantidade)
% ZONA NORTE
(Quantidade)
%
Com marrom, sem pintar a
cara e os olhos.
8 43% 13 48%
Com lã marrom, cara pintada na
cor salmão e sem pintar os olhos.
1 5% 3 11%
Com lã marrom, sem pintar a
cara e com olhos azuis.
3 16% 2 7%
Com lã marrom, cara pintada na
cor salmão e olhos azuis.
3 16% 1 4%
Com marrom, cara pintada na
cor preta e olhos pretos.
2 7%
Pintada com lápis de cor
preto, sem cor na cara e nem
nos olhos.
2 10% 1 4%
Pintada de preto, sem cor na
cara e com os olhos azuis.
2 10% 4 15%
Pintada de marrom, sendo que
na cara em um tom mais claro.
1 4%
TOTAL 19 100% 27 100%
Podemos observar que nenhuma “ovelha negra” foi representada com a amarela ou
pintada desta cor, mas destacamos que os olhos azuis ainda se fizeram presentes em 33% das
ovelhas.
No desenho, uma das crianças representou Tita com o carneiro pelo qual ela era
apaixonada. E mostrou nitidamente uma relação amorosa inter-racial ao desenhar um coração
pintado de vermelho entre os dois. Neste desenho, Tita é negra, mas com os olhos azuis e seu
amado é branco, sem cor nos olhos.
Os casamentos inter-raciais no Brasil são muito comuns entre pessoas das classes
populares e de poucos anos de escolarização. Sendo que, nem sempre, são bem aceitos no
âmbito das relações sociais e familiares (TELLES, 2003). Como conseqüência, situações
preconceituosas e racistas acabam sendo vivenciadas até mesmo no âmbito familiar.
100
Além disso, é comum a expectativa em relação aos filhos gerados por estas relações
para ver a quem irá “puxar”; saber como sairão os cabelos, o nariz, a boca; se irão
embranquecer a família, ou não.
Não a expectativa como o que é falado antes e depois do nascimento da criança é
vivenciado por todos do entorno, gerando situações muitas vezes constrangedoras.
101
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS - “Tia, de onde você tira essas histórias que você traz?”
“É difícil achar livros assim. São tão bonitos... Eu nunca vi!”
Carregamos dentro de nós as
maravilhas que buscamos fora:
Há toda a África e seus
prodígios em nós.
Sir Thomas Browne,
Ao final da contação da última história, conforme já mencionamos, solicitamos que as
crianças fizessem o auto-retrato para que guardássemos como recordação delas e daqueles
momentos vividos. Demonstramos, a seguir, como as crianças negras, presentes no último
encontro se representaram no auto-retrato:
102
Auto-retrato 1 Auto-retrato 2
Auto-retrato 3
103
Quadro 15
Características principais dos auto-retratos produzidos pelas crianças negras
presentes no último dia da pesquisa de campo.
104
Local
Características
ESCOLA DA
ZONA SUL
(Quantidade)
%
ESCOLA DA
ZONA NORTE
(Quantidade)
%
Negros com cabelos
pretos ou marrons,
sem cor nos olhos.
2 20%
Negro com cabelos e
olhos pretos ou
marrons.
2 20% 10 59 %
Negros com cabelos
pretos e olhos azuis ou
verdes.
3 30% 1 6%
Sem colorir a pele,
com cabelos e pretos
crespos e sem cor nos
olhos.
3 30%
Sem colorir a pele,
com cabelos crespos e
pretos e olhos pretos.
2 11%
Pintada com lápis de
cor bege, com cabelos
avermelhados.
1 6%
Sem colorir a pele,
com cabelos pretos e
crespos e sem cor nos
olhos.
1 6%
Pintada de amarelo
com cabelos e olhos
pretos.
1 6%
Sem pintar a pele nem
os olhos e com cabelos
pretos.
1 6%
Total 10 100% 17 100%
Por ser uma pesquisa-ação, esta pesquisa buscou produzir idéias e conhecimentos que
pudessem ser considerados instrumentos de mudanças. Não nos bastavam apenas constatar,
explicar, verificar.
Ao observamos os auto-retratos que estavam sendo produzidos, foi possível verificar
mudanças. Os auto-retratos que constam no capítulo II e os desta parte final, foram
produzidos pelas mesmas crianças. Podemos então notar que a aluna do auto-retrato 1, que
havia se desenhado como loira, aqui se representou como negra, com cabelos pretos e olhos
castanhos. A aluna do auto-retrato 2, que não havia pintado a cor da pele, e havia colocado
olhos azuis e cabelos claros e crespos, pintou agora a pele de marrom, mesmo que num tom
bem claro, os cabelos e os olhos também de marrons. E o aluno do auto-retrato 3, que, no
início da nossa pesquisa, disse não querer pintar da cor que ele era pois, iria ficar feio, agora
o fez, embora com olhos verdes. Estes foram apenas os que destacamos para mostrar as
mudanças ocorridas.
Os dados do quadro nos mostram, quantitativamente, esta mudança. No primeiro auto-
retrato produzido, nenhuma criança negra havia se reproduzido como tal. A maior
proximidade se deu em relação ao cabelo crespo que uma das alunas fez. Neste último, 64%
das crianças negras assim se representaram na cor da pele. E 20% utilizaram uma das
características do fenótipo negro que são os cabelos crespos.
Os alhos azuis, que acompanharam as reproduções de muitas das personagens e os
auto-retratos ainda deixam a sua marca. Talvez se justifique pelo que as próprias crianças,
sujeitos desta pesquisa, declararam em relação ao conceito de beleza:
“É isso mesmo. Quando tem olho azul, a pessoa é bonita.”
A mídia, o tempo todo, reforça a preferência pelo fenótipo europeu para ocupar os
espaços mais privilegiados. Sejam como apresentadores, protagonistas de novelas seriados,
filmes, propagandas, como capas de revistas, livros didáticos e boa parte dos livros
paradidáticos. Nas palavras de Derdyk (1989):
A criança vive inserida na paisagem cultural do adulto. Seria necessária
uma reflexão profunda sobre como esta paisagem interage e se relaciona
com o mundo da criança, eternamente em transição. Crianças sempre
haverá, mas nunca são as mesmas. A criança da cidade vive em meio aos
sedutores apelos da sociedade de consumo, inventora de necessidades.
Cada vez mais a conduta infantil é marcada pelos clichês, pelas citações e
imagens emprestadas. “A TV traz o mundo para você.” O imaginário
contemporâneo é entregue em domicílio. A criança é submetida a um
profundo condicionamento cultural, é sobre estes conteúdos que a criança
105
vai operar. A ilustração, o desenho animado, a história em quadrinhos, a
propaganda, a embalagem são representações que se tornam quase
realidade (p.53)”.
Portanto, o processo de embranquecimento verificado nas representações das
personagens ou no primeiro auto-retrato não parece ter sido uma decisão neutra. Ao escolher a
cor do lápis para pintar os cabelos e os olhos, ou decidir por não pintar a cor da pele, como
ocorreu em muitos casos, os sujeitos desta pesquisa nos deram pistas que evidenciam as fortes
influências das diferentes mídias que reforçam e valorizam a idéia do branqueamento.
As crianças pareciam negar a sua negritude ou a negritude das personagens. Esta
negação, no entanto, pareceu também não ser um caminho tranqüilo e nem sempre ocorria na
totalidade. Observamos que em alguns momentos parecia haver uma negociação entre o que a
sociedade valoriza e o que eles viam e ouviam sobre as personagens dos livros das histórias
contadas.
Durante a pesquisa de campo, foi muito comum as crianças pedirem o livro da história
que havia sido contada no momento em que iam reproduzir as personagens e ou pintar
desenhos sobre as histórias. No entanto, o fato de estar com o livro na mão e ver de perto as
ilustrações, nem sempre significava a representação da personagem de acordo com o que as
ilustrações do livro apresentavam. Observamos que, em algumas reproduções, os alunos e
alunas copiaram a cor do ambiente, das roupas, mas mudavam a cor da pele, do cabelo e dos
olhos das personagens.
Além da mudança que observamos nos auto-retratos, uma observação feita por uma
aluna, a do auto-retrato 1, e complementada por outra , a do auto-retrato 2, após a contação
da história “Os sete novelos - um conto de Kwanzaa” chamou-nos a atenção ao dizer:
- Tia, de onde você tira essas histórias que você traz? Você pega na biblioteca?
- Não. São meus.
- Você tem tudo isso? É difícil achar livros assim.
- Assim como?
Um silêncio a deixou calada por alguns segundos até que a colega rompeu o silêncio e
disse:
- Com histórias da África!
- É isso mesmo, com histórias da África. São tão bonitos... Eu nunca vi!
106
Conversamos um pouco sobre as dificuldades para encontrar os livros aos quais ela se
referia. A colega participou olhando atentamente e balançando a cabeça, em sinal de
concordância.
Através da pesquisa, foi possível compreender que, assim como nas outras
identidades, o processo de construção da identidade étnico-racial se de forma gradativa,
num constante ir e vir. Dependendo, portanto, não apenas do indivíduo, mas também do que
vê, ouve, vivencia, observa e percebe sobre como os outros o vêem e como vêem seus pares.
A aluna que fez o comentário sobre os livros que foram levados para serem lidos para
eles foi a mesma que disse: “Não é porque eu sou morena que eu vou chamar os outros de
seu preto.” O tom da fala ao pronunciar seu pretoevidenciava o quanto este termo pode e
é utilizado, muitas vezes, de forma pejorativa e racista.
A observação feita pela aluna, sobre a ausência dos livros, ao final da pesquisa e seu
auto-retrato nos levam a inferir que as histórias lidas provocaram nela alguma mudança,
alguma identificação. A menina deixou transparecer que havia gostado, achado bonito ouvir e
ver os livros que contavam histórias da África.
Esta aluna parece ter conseguido verbalizar o que outros demonstraram através da
linguagem do desenho.
A opção por pesquisar, nas agora extintas, turmas de Progressão, contribuiu para que
pudéssemos dialogar com um número maior de crianças negras concentradas nestas turmas.
A escolha por escolas em áreas distintas da cidade, zona norte e zona sul, nos ajudou a
perceber muitas semelhanças e diferenças ao representar as personagens. As oscilações
ocorridas de uma semana para outra, as “negociações” de características ao representar as
personagens, dentro da mesma unidade escolar, ocorreram também se compararmos a turma
de uma escola com a da outra. Em uma semana eram os cabelos que mais se aproximavam do
fenótipo do negro em uma escola, na outra unidade era a cor da pele, na semana seguinte
ocorriam outras diferenças e semelhanças.
O uso de livros de literatura infantil com protagonistas negros e história que mostrem
culturas africanas, quando escolhidos com critérios, ou seja, de que o negro seja sujeito
histórico, não tendo suas imagens distorcidas ou estereotipadas, podem contribuir para uma
construção de uma identidade étnico-racial positiva. Ressaltamos que este não é o único
caminho, mas em nossa pesquisa, mostrou-se ser um instrumento portador de uma linguagem
capaz de se aproximar e sensibilizar crianças contribuindo neste processo.
107
Sendo as identidades construídas e reconstruídas o tempo todo, parece-nos
fundamental que o uso desta literatura infantil se torne constante no cotidiano escolar. Logo,
é urgente e preciso que professoras e professores tenham acesso a estas produções e
compreendam a importância das mesmas.
Nossa pesquisa aconteceu em um período letivo e apresentou mudanças. No entanto,
sabemos que em nossa sociedade, são muito comuns imagens que valorizem aspectos físicos e
culturais europeus em detrimento das demais culturas e fenótipos. Portanto, faz-se necessário
que livros como os que utilizamos na pesquisa, entre outras produções, possam ser lidos,
trabalhados, discutidos e disponibilizados em salas de aulas, bibliotecas, enfim, onde os
alunos e alunas, de todas as raças, possam ter acesso a elas, possibilitando assim não mais o
estranhamento, mas que eles passem a ser tão comuns quanto os livros que contam histórias
de personagens não negros.
Para chegarmos a este ponto faz-se necessário também que professoras e professores
compreendam o processo de construção de identidade étnico-racial. É preciso que percebam a
importância de cada gesto, cada palavra, cada olhar ao lidar com questões étnico-raciais,
situações de produção e reprodução de racismos e preconceitos. Que estejam sensibilizados
para o compromisso da Educação em contribuir para a diminuição das desigualdades e dos
sentimentos de superioridade e de inferioridade de uma raça em relação à outra.
O ponto final...
Sempre chega a hora em que é preciso colocar um ponto para que a frase não se
alongue demais e se perca de seu sentido. No entanto, o ponto final não é indicativo de que
dissemos tudo e que nada mais possa ser acrescentado. Sempre podemos dizer algo mais,
sempre fica a certeza de que tudo ou quase tudo poderia ter sido dito de outra forma. Mas, o
tempo que nos é concedido, parece-me tão cruel quanto o que determina o tempo que um
aluno tem para se apropriar da leitura e da escrita ou o tempo que a escola costuma ter para
dar visibilidade aos negros e negras.
Como todo contador ou apreciador de histórias sabe, uma história pode não ter fim, ou
pode ser recontada muitas vezes com outros enfoques, com novas personagens, novas
roupagens, novas interpretações, novas emoções, novos olhares. Cada um que conta, lê , ouve,
o faz através das suas histórias vividas ou sonhadas, de seu olhar, do lugar de onde fala ou
ouve, do seu momento pessoal, do ambiente onde está, do mundo onde vive, da sociedade que
almeja. Portanto, as histórias compartilhadas podem atingir uma dimensão inimaginável.
108
Compartilhamos aqui algumas histórias contadas e muitas situações vividas. De minha
parte, não saio delas como entrei. Em minha mala, carrego mais um aporte com o qual
podemos contar na caminhada pela construção de uma sociedade mais justa e mais igualitária.
Diz o ditado popular que as imagens falam por si só. Então, deixo algumas que
representam o antes e o depois da pesquisa.
109
REFERÊNCIAS:
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil Gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione,
1997.
AIBÊ, Bernardo. A ovelha negra. São Paulo: Mercuryo, 2003.
APPLE, Michael W. A política do Conhecimento Oficial: faz sentido a idéia de um currículo
nacional? In SILVA, Tomaz Tadeu e MOREIRA, Antonio Flavio (orgs.), Currículo, cultura
e sociedade, São Paulo, Cortez, 2002.
BA, Amadou Hampaté. A palavra, memória viva na África. Rio de Janeiro: Revista O
Correio da UNESCO, Fundação Getúlio Vargas, 1973.
BARBOSA, Rogério Andrade. Como as histórias se espalharam pelo mundo. São Paulo:
DCL, 2001.
__________________, Contos Africanos para crianças brasileiras. São Paulo: Paulinas,
2004.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARBIER, René. A pesquisa-ação. Trad. Lucie Didio. Brasília, Liber livro Editora, 2004.
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC,
1998.
________________Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília:
MEC, 2004
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
CAVALLEIRO, Elaine dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar. São Paulo:
Contexto, 2003.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil teoria análise- didática. São Paulo:
Moderna, 2002.
CUNHA Jr., Henrique. Me chamaram de macaco e eu nunca mais fui à escola. Texto
mimeografado para palestra realizada na Universidade Federal Fluminense, 2000.
110
_______. Africanidades, Afro-descendência e Educação, (resenha para curso de
Afrodescendência e Educação), Fortaleza, 2001.
_______. O Ensino de História Africana nas Escolas. Historianet:
http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=499 acessado em 22 de abril de
2007
D’ADESKY, Jacques. Multiculturalismo e Educação. In: Cadernos Penesb, Intertexto. vol.
2 Niterói: EdUFF, 2000.
DERDYK, Edith. Formas de pensar o desenho Desenvolvimento do Grafismo Infantil.
São Paulo: Scipone, 1989.
DIOUF, Sylviane A.. As tranças de Bintou. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
ESTEBAN, Maria Teresa. Dilemas para uma pesquisadora com o cotidiano. In: GARCIA,
Regina Leite (org.) Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendente: identidade em construção. Rio de
Janeiro: Educ, 2000.
FORD, Clyde W. O herói com rosto africano: mitos da África. São Paulo: Summus, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987
______ Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
FREITAS, Maria Teresa. A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do
conhecimento. In: FREITAS, Maria Teresa; JOBIM e SOUZA, Solange; KRAMER, Sônia.
Ciências Humanas e Pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo, Cortez, 2003.
GARCIA, Regina Leite. Tentando compreender a complexidade do cotidiano. In: GARCIA,
Regina Leite (org.) Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
GHIRALDELLI, Paulo Jr. História da Educação. São Paulo: Cortez, 2001.
GODOY, Célia. Ana e Ana. São Paulo: Difusão Cultural do Livro, 2003.
111
GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. De preto a afro-descendente: da cor da pele à categoria
científica. In Barbosa, Lucia Maria de Assunção, et al. De preto a afro-descendente
Trajetos de pesquisas sobre relações étnico-raciais no Brasil, São Carlos, EdUFSCar, 2004.
GOMES, Flávio. Quilombos e mocambos: camponeses negros e a experiência do protesto
coletivo no Brasil escravista. In: Educação Africanidades Brasil. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006.
GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais
no Brasil: um breve discurso. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal
nº10639/03. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação cpntinuada,
Alfabetização e Diversidade, 2005.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. 2. Ed. São
Paulo, 34, 2005.
GREGÓRIO Filho, Francisco. JACOBINA, Helena e REIS Isabel (orgs.) Janelas Cruzadas,
Almanaque nº1. Rio de Janeiro: Instituto pé no chão, 2003.
HALEY, Gail. O baú de histórias. 3.ed. São Paulo: Global, 2004.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2002.
_______ . Da Diáspora – Identidades e Mediações culturais. Belo Horizonte:UFMG, 2003.
INOCÊNCIO, Nelson Olokofá. Corpo negro na cultura visual brasileira. In: Educação
Africanidades Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação cpntinuada,
Alfabetização e Diversidade, 2006.
JACCOUD, Luciana de Barros; BEGHIN, Nathalie. Desigualdades raciais no Brasil: um
balanço da intervenção governamental. Brasília: IPEA, 2002.
JAPIASSÚ, Hilton. MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar. 1996.
JESUS, Regina de Fátima de. Mulher negra alfabetizando: que palavramundo ela ensina o
outro a ler e escrever. Campinas: Tese de Doutorado, 2004.
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia: Guia Prático da Linguagem Sociológica. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
112
KLEIN, Richard G. EDGAR, Blake. O despertar da Cultura. - A polêmica teoria sobre a
origem da criatividade humana. Rio d Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
KRAMER, Sônia (orgs) Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São
Paulo: Cortez, 2003.
LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira História e
histórias. São Paulo, Ática, 2004.
LESTER, Julius. Que Mundo Maravilhoso. São Paulo, Brinque Book, 2000.
LIMA, Mônica. Fazendo Soar os Tambores: O ensino de História da África e dos Africanos
no Brasil. In: BRANDÃO, André Augusto. Cadernos Penesb 5 Programa sobre o negro na
sociedade brasileira. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004.
MACHADO, Ana Maria. Menina Bonita do Laço de Fita. 8.ed. São Paulo: Ática, 2005.
McLAREN, Peter. Multiculturalismo revolucionário. Porto Alegre, Artes Médicas, 2000.
MARTINS, Georgina. Fica comigo. São Paulo, Difusão Cultural do Livro, 2001.
MEDEARIS, Angela Shelf. Os sete novelos – um conto de Kwanzaa. São Paulo:Cosaic
Naify, 2005.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Representações sociais dentro da sociologia clássica. In,
GUARESCHI, Pedrinho e JOVCHLOVITCH, Sandra. Textos em representações
sociais.Petrópolis: 2. ed.Vozes, 1995.
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade
e etnia. In BRANDÃO, André Augusto. Cadernos Penesb 5 Programa sobre o negro na
sociedade brasileira. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004.
NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. Rio de Janeiro: DP&A,
2001.
NASCIMENTO, Elisa Larkin.O Sortilégio da cor Identidade, raça e gênero no Brasil. São
Paulo: Summus, 2003.
NASCIMENTO, Abdias. 90 anos memória viva. Rio de Janeiro: Ipeafro, 2006.
113
________. Introdução à História da África. In: Educação Africanidades Brasil. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação continuada, Alfabetização e Diversidade,
2006.
NEGRÃO, Esmeralda Vailati. A discriminação racial em livros didáticos e infanto-juvenil. In:
Raça Negra e Educação. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1987.
OLIVEIRA, Eduardo. Cosmovisão Africana no Brasil. Elementos para uma filosofia
afrodescendente. Fortaleza: Ibeca, 2003.
OLIVEIRA, Iolanda. Desigualdades racias Construções da Infância e da Juventude.
Niterói: Intertexto, 1999.
OLIVEIRA, Rachel. Relações raciais na escola: uma experiência de intervenção. São Paulo:
PUC - Dissertação de Mestrado, 1992.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio No movimento dos sentidos. 4. ed.
Campinas: Unicamp, 1997.
PASSADOR, Luiz Henrique. O campo da antropologia: constituição de uma ciência do
homem.In: GUERREIRO, Silas. Antropos e Psique: O outro e sua subjetividade. São Paulo:
Olho D’água, 2000.
PINTO, Regina Pahim. A representação do negro em livros didáticos e infanto-juvenis. In:
Raça Negra e Educação. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1987.
RIO DE JANEIRO (RJ). Multieducação Temas em debate.- Princípios Educativos e Núcleos
Conceituais. Rio de Janeiro: SME, 2003
________. Secretaria Municipal de Educação. Resolução Nº 691, Rio de Janeiro: SME.
27 de dezembro de 2000.
_________. Secretaria Municipal de Educação. Portaria 08 Rio de Janeiro: SME,
04 de janeiro de 2001.
_________, Secretaria Municipal de Educação. Resolução 946 Rio de Janeiro:
SME: 25 de abril de 2007.
ROMÃO, Jeruse. Guia de direitos do brasileiro afro-descendente: Por uma educação que
promova a auto-estima da criança negra. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de
Estado dos direitos humanos, 2001.
114
ROSA, Sonia. O menino Nito. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
SAMPAIO, Carmen Sanches. Aprendi a ler (...) quando misturei todas aquelas letras ali...
Campinas: Tese de Doutorado/UNICAMP, 2003.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense,1996.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e
questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia da Letras, 2001.
SILVA, Ana Célia da. Por uma representação social do negro mais próxima e familiar. In
Barbosa, Lucia Maria de Assunção, et al. De preto a afro-descendente Trajetos de
pesquisas sobre relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos: EdUFSCar, 2004.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade Uma introdução às teorias do
currículo, Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco. Raça e Nacionalidade no Pensamento
Brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1989.
SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: Evangelista, Aracy
Alves Martins, BRANDÃO, Heliana Maria Brina, MACHADO, Maria Zélia Versiani. A
escolarização da literatura literária O jogo do livro infantil e juvenil. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2003.
SOUSA, Andréia Lisboa. Personagens Negros na Literatura infantil: Rompendo estereótipos.
In: Cavalleiro, Eliane. Racismo e anti-racismo na educação repensando nossa escola, São
Paulo, Selo Negro, 2001.
________. A representação da personagem feminina negra na literatura infanto-juvenil
brasileira. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/03.
Brasília, Ministério da Educação, Secretaria de Educação continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005.
________. Cultura Afro-brasileira em livros paradidáticos. In: Educação Africanidades
Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2006.
115
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
TEODORO, Maria de Lourdes. Identidade, Cultura e Educação. In Raça Negra e Educação.
Cadernos de Pesquisa nº 63, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 1987.
TELLES, Edward Eric. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de
Janeiro, Relume Dumará: Fundação Ford, 2003.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2004
VON FOERSTER, Heinz. Visão e conhecimento: disfunção de segunda ordem. In
SCHNITMAN, Dora Fried. Novos Paradgmas. Cultura e subjetividade. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1996.
VYGOTSKY, L. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987
ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005.
ZILBERMAN, Regina. A literatura Infantil na escola. 8. ed. São Paulo: Global, 1981.
116
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo