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esquisito... acredito que uma escola dessas teria de ser, antes de tudo, uma escola rebelde. Se for uma
escola passiva e reprodutora do que está aí, ela só pode contribuir para que o mundo seja uma m...
N – Bem, em relação ao passado é meio complicado porque eu já estou com quarenta e quatro anos.
Então vou ter que voltar bem a memória. Eu estudei numa escola para operários do SESI no ensino
fundamental. E essa escola... a minha avó era operária da fábrica Bangu, na fábrica Deodoro. E aí essa
escola do SESI era acoplada no bairro Anchieta, que é ao lado da fábrica Deodoro, uma fábrica de
tecidos. Então eu fiz o antigo primário lá, depois fui para Brasília com meu pai... É um intervalo de
dois anos que eu tenho dificuldade de lembrar. Aí eu fiz lá o fundamental e depois o ensino médio em
um colégio particular: Arte e Instrução, em Cascadura. Então o que eu lembro de estudo é uma coisa
que eu tento discutir muito com os alunos hoje, que é o seguinte: me falavam “estuda que é para
arrumar emprego”, “estuda, porque se não estudar não vai arranjar emprego em lugar nenhum”,
“estuda para fazer concurso”. Sendo que eu fiz datilografia, aprendi datilografia, me colocaram no
curso de datilografia que é mais ou menos hoje: aprenda informática, né? “Pra poder arrumar emprego
tem que saber datilografia”. Então era um momento muito... era estudar para virar operário! Minha
família era operária, todos tinham, têm, baixo nível de escolaridade. Era estudar para ser operário
mesmo... E eu não tinha ainda noção do que era, do que acontecia. Mesmo assim, eu lembro que era
difícil... Me dar merenda, caderno, uniforme, tudo era complicado. Não era fácil minha vida; normal,
pobre, como qualquer brasileiro que não seja da elite. Aí eu tento já fazendo uma ponte entre o
passado e o tempo atual... Eu tento quebrar, onde eu vou dar aula e principalmente no presídio. É
quebrar isso: a pessoa não tem que estudar para ser operário, estudar para arranjar emprego. Ela tem
que estudar para entender um mundo melhor, desenvolver, acompanhar os acontecimentos, se libertar
da ignorância da escuridão. Foi diretamente, concretamente isso. E lá no presídio essa tese, se eu puder
chamar assim, ela se confirma completamente. Para mim (eu posso estar errado), todos que não
puderam estudar ou tiveram baixa escolaridade procuram resolver a vida da forma possível ou quase
animalesca. É tomar! Me dá, é meu! E não hesitaram na hora de tomar ou tiver que acontecer uma
coisa fatal.. E acho que essa escola nossa, a Mario Quintana, ela deveria tirar da cabeça do interno que
ele tem que estudar para sair dali e arrumar emprego. É o contrário... Até porque o que acontece é o
seguinte: eu trabalho com teatro e teatro popular. Teatro é uma arte coletiva. Se você treinar um ator
isoladamente, separando os dotes, dons, talentos, qualquer coisa assim... se vou prepará-lo
individualmente para atuar em um campo coletivo... e isso é paradoxal: se a arte é coletiva, ele tem
que aprender coletivamente como futebol. A molecada joga pelada junto. Um depende do outro e vai
crescendo, e ele aprende coletivamente porque ele pode vir a ser um jogador de futebol que vai jogar
coletivamente. E aqui é a mesma coisa, só que aí eu jogo na área de educação para o aluno. Ou seja, eu
acho que a educação não deveria dar notas individuais, preparar individualmente, ensinar a competir
para passar no vestibular, para ser o primeiro. Porque esse cidadão vai ficando individualista. E aí,
quando ele é inserido concretamente no mercado de trabalho, que deveria ser coletivo – ou melhor, a
sociedade é coletiva; ela funciona agregada, ela não funciona isoladamente –, ele não sabe, ele não
aprendeu a viver em coletivo. A escola ensina a aprender a viver sozinho. Ele sente, ele acha que é
isso: ele tem que ser um engenheiro, um médico, ou isso ou aquilo... E não: a função social do médico,
a função social do engenheiro, não é? Porque não é um médico em si, é um médico dentro de uma
sociedade. Não é um médico sozinho, dentro de casa, leigo, dentro de uma prisão. Ele é um médico,
um engenheiro, um professor que vai auxiliar a sociedade como um jogador de futebol, um ator. Ele
deveria fazer isso... Então é uma expressão que se usa muito: “se o gato não aprende a brincar com a
bola, quando ele crescer ele não vai pegar o rato”. A bola é um treinamento, o jogo é um exercício em
que ele fica ali, jogando a bolinha pro gato, desde bebê... Correndo atrás, pegando, né? Quando
aparece o rato e ele já é adulto, ele corre e apanha o rato! Ele tinha agilidade, ele cria estímulo, cria
instinto, cria “time”, tudo! Não é? Ele reage! E o que a gente faz na educação é apassivar o aluno para
um trabalho de sociedade. E, ao contrário e pior, a gente incentiva o individualismo. E aí o cara se dá
mal sempre. E nos conflitos, se a gente for perceber, os chamados comandos e organizações
criminosas, eles são escolas coletivas. Ali se aprende junto, o crime! Então o cara entra para uma
organização coletiva, ele quer se agrupar. E na escola, ainda mais se a gente está falando de passado e
presente, esse período onde as carteiras eram juntas, eu isso me lembro, sentávamos juntos, dois a dois