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permite transcender a ordem social dada em direção a uma realidade transformada, redimida
(ibidem).
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Para Benjamin, portanto, o caráter paradoxal do novo − incessante e fadado a uma
destruição próxima − faz da modernidade o lugar ao mesmo tempo de uma catástrofe e de
uma possibilidade de redenção. Catástrofe e redenção, nos termos propostos por Benjamin,
concernem à cidade como sonho coletivo, que, expressando em imagens oníricas sua
realidade objetiva, requer interpretação. O trabalho das Passagens,
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nesse sentido, trata de
colocar em relevo as expressões oníricas da vida material na Europa do século XIX, que o
fenômeno do capitalismo fez mergulhar num “sono povoado de sonhos” (Benjamin, 2006,
p.436). A moda, a arquitetura, o jogo, a prostituta, o urbanismo à moda de Haussmann, a
iluminação a gás, o transporte, as exposições universais, o grande magazine, o lixo, as
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Contra o pessimismo de Adorno, afirma Gagnebin (2004, p.30), Benjamin sempre insistirá nas perspectivas
salvadoras que a crise da tradição − o desmoronar da identidade da linguagem, da história e do sujeito − pode
oferecer à ação histórica dos homens: “através desse desmoronar [...] poderia talvez, enfim passar o sopro de
uma palavra inteiramente redimida, que atravessa todas as línguas e pulveriza o peso do sentido, esta
consumação silenciosa de todas as palavras humanas que Hölderlin, na sua “loucura”, teria ouvido, e que seria
sua tradutibilidade integral.” Nesse sentido, a idéia de redenção, em Benjamin, remete à noção de origem
[Ursprung] não como início imaculado da história, mas como sua figura temporal, que só pode surgir e ser
reconhecida através de uma luta obstinada: “porque, para serem salvos, os fenômenos devem ser arrancados –
pelo conceito – a uma falsa continuidade, aquela que é abusivamente chamada objetiva, como se a cronologia
não fosse, ela também, o fruto de uma construção historiográfica. [...] A obra de salvação do Ursprung é,
portanto, ao mesmo tempo e inseparavelmente, obra de destituição e de restituição, de dispersão e de reunião, de
destruição e de construção. [...] restauração do idêntico e emergência do diferente.” (Gagnebin, ibidem, p.16-18).
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Passagens é o título aferido para a edição brasileira da extensa e inacabada coletânea de fragmentos e citações
sobre a Paris do século XIX de que se ocupou Benjamin desde 1927 até pouco antes da sua morte, em 1940,
incluindo a produção de dois ensaios (exposés) sobre o tema, de 1935 e 1939, respectivamente. Conforme Bolle,
organizador da publicação, os diferentes títulos que a edição desse material tem recebido − Das Passagen-Werk;
Parigi, Capitale del XIX Secolo; Le Livre des Passagens; The Arcades Project − indicam o fato de que
Benjamin não lhe propusera um título definitivo, ainda que, na maioria das vezes, a ele se referisse como
Passagenarbeit, Trabalho das Passagens. A escolha brasileira, diz Bolle (ibidem, p.1144) concentra-se na
palavra-chave do projeto de Benjamin, explorando as possibilidades semânticas que se abrem com o termo
“passagens”:
1) A referência topográfica, arquitetônica, urbanística e, com isso, a ambição de
‘representar a imagem do mundo’ numa espécie de abreviatura monadológica. 2) A
referência temporal, como passagem da era das revoluções para a era do capital e dos
impérios, ou da iluminação com lamparinas de óleo a bicos de gás e as lâmpadas elétricas e,
com isso, a simbolização do ‘efêmero’ dos surrealistas e do próprio fluir ininterceptável da
História. 3) A referência ao próprio modo de escrever a história da metrópole de Paris, de
representar da forma mais concreta possível o labirinto urbano através de uma sintaxe
enciclopédica de milhares de citações ou trechos ou ‘passagens’, extraídas de centenas de
livros.
No presente estudo, baseamo-nos especialmente na tradução estabelecida pela edição brasileira, confrontada à
tradução francesa, Paris, capitale du XIX siècle – le livre des passages (Benjamin, 2000) e, quando pertinente, à
tradução brasileira dos textos comuns que se encontram em Charles Baudelaire, um lírico no auge do
capitalismo (Benjamin, 1989).