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SUZANNA JUNQUEIRA DA FONSECA AMARANTE LEVY
CANSADOS DE GUERRA
Um estudo clínico sobre a co-autoria na violência familiar
MESTRADO
PSICOLOGIA CLÍNICA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
SÃO PAULO
2005
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SUZANNA JUNQUEIRA DA FONSECA AMARANTE LEVY
CANSADOS DE GUERRA
Um estudo clínico sobre a co-autoria na violência familiar
Dissertação apresentada à
Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como
exigência parcial para
obtenção do título de
MESTRE em Psicologia
Clínica, sob a orientação da
prof
a
. Dra. Rosa Maria S.
Macedo.
MESTRADO – PSICOLOGIA CLÍNICA
PUC – SÃO PAULO
2005
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CANSADOS DE GUERRA
Um estudo clínico sobre a co autoria na violência familiar
SUZANNA JUNQUEIRA DA FONSECA AMARANTE LEVY
BANCA EXAMINADORA:
.............. ..................................................................................................
( Nome e Assinatura)
...................................................................................................................
( Nome e Assinatura)
...................................................................................................................
( Nome e Assinatura)
Dissertação defendida e aprovada em.........../........../...........
“O verdadeiro ato da descoberta não
consiste em encontrar novas terras, mas
sim em vê-las com novos olhos.”
Marcel Proust
A Luiz, Juliana e Guilherme
com amor , carinho e gratidão.
AGRADECIMENTOS
Ir e voltar no tempo e nas histórias foram movimentos constantes neste
trabalho, um tempo que contém imagens do passado, presente e futuro e se
mesclam. Poder transitar nos tempos e reviver momentos com as pessoas
especiais da minha vida, trouxeram -me muitas recordações.
Meus queridos avós, de quem sinto muita saudade, de quem recebi
muito carinho, amor e cuidado. Agradeço-lhes os ensinamentos preciosos
sobre a vida, as tradições, os valores e mitos. Da família Junqueira, aprendi o
valor da terra, a paixão pela natureza e o prazer de olhar o horizonte e o céu.
Com a família Fonseca, aprendi a gostar da música, principalmente do piano, a
considerar Paris ( cidade da minha avó) como a cidade da cultura, dos bons
vinhos, da boa comida e o lugar onde sonhar é possível. Não tenho palavras
para agradecer essas heranças.
Agradeço muito meus queridos pais, Heloisa e Francisco, cuja tarefa
foi mais árdua; incentivar os meus estudos e dar todo o suporte necessário
para crescer, enfrentar os desafios da vida, sonhar menos e realizar mais.
Também me ensinaram a ampliar a visão do mundo, conhecendo diferentes
culturas e geografias, sempre com grande disponibilidade afetiva para comigo
e meus irmãos.
A meu grande amor, Luiz Fernando, meu marido querido com quem
sempre aprendi muito e por quem me sinto amada. Devo a ele incentivo e
coragem para trilhar este caminho, e é com muito orgulho que carrego o
Amarante Levy. Nesses vinte cinco anos juntos, vivemos momentos felizes,
muitas viagens, e uma grande intimidade que é meu porto seguro.
A Juliana, minha querida filha, que com seu apoio e companheirismo
esteve sempre perto, colaborando com suas idéias. Filha muito amada, com
quem aprendi a ser mãe e mais do que isso, ser uma boa mãe.
A Guilherme, meu querido filho, que com suas perguntas minuciosas e
seu modo exigente de aceitar minhas respostas, ajudou-me a fundamentar e
a argumentar meus pensamentos. Um filho muito atento, que ama com os
olhos.
A meus queridos irmãos, Evangelina e Bráulio, que acompanham de
longe momentos importantes da minha vida, com a mesma intimidade de
quando morávamos juntos. A experiência de cada um de nós morarmos em
lugares diferentes no mundo, ensinou-me que a intimidade resiste à distância.
Meus queridos sobrinhos e afilhados, Roberto, Fabio, Cristiana,
Fernanda, Isabel e Alex, agradeço o carinho e a alegria que vocês me dão
sempre.
Às minhas queridas cunhadas Luciana e Ana e a meus cunhados Alan e
José Antonio, sem os quais não teríamos esta rede familiar.
Yara e Regina, agradeço por terem cuidado bem de minha casa nesse
tempo.
Aqui, pertinho dos familiares, não posso deixar de falar sobre minha
grande amiga Heloísa, que acompanha todos os passos da minha vida desde
sempre e me ancora nas aflições e também, Lígia, Thais ,Vera , Rosa , Elaine
e Vitor que estão sempre por perto.
Agradeço muito as minhas queridas amigas que acompanharam os
momentos importantes da minha vida. Adriana Fráguas, uma amiga,
considerada como irmã, com quem conto em todos os momentos. Eliete
Belfort Mattos, sempre junto para tudo e todas, também Carmem Micheletti e
Thais Pellicciotti, companheiras de trabalho e de férias.
A minhas queridas sócias de consultório, que viveram um pouco das
minhas ansiedades: Selma Torres, mais de vinte anos de amizade e
sociedade, Anete Fernandes, sempre ensinando com sua experiência,
Marilena Castaldelli Maia, com seu bom senso e generosidade, Lúcia Paiva
café com fofocas “científicas” e Vera Novais, a mais nova amiga, que trouxe
glamour para nosso ambiente de trabalho. Obrigada, companheiras.
Agradeço muito a Maria Lúcia Mello, por ter me ajudado a refletir sobre o
tema da violência na minha vida pessoal e a vencer o medo da autoria. Isto foi
uma grande conquista na minha vida.
Querida Satomi, agradeço muito o cuidado e atenção, você ajudou-me
aliviar a tensão e ansiedade que sinto no corpo.
Muito obrigada a minha amiga Vera Da Ros, pela paciência em ler e
reler este trabalho e por me incentivar a finalizá-lo.
A Taroub Nahuz , amiga e professora de inglês que compartilhou esse
momento da minha vida. Obrigada pela sua amizade e também pela tradução
do resumo.
Agradeço também aos meus terapeutas, Vera Ruth Jacob que tive o
privilégio de conhecê-la quando era menina. Therezinha Leopoldo e Oswaldo
de Vitto,
A terapia familiar foi um caminho que segui depois de conhecer três
pessoas especiais que me abriram os olhos. A querida Mirel Granatovick, que
foi uma terapeuta muito especial da minha família. Acompanhou-nos por
anos, desde o nascimento de nossos filhos. Com grande sabedoria, ajudou-nos
a compreender e a passar por momentos difíceis de nossa vida. A ela, minha
grande gratidão.
À querida Silvia Rechulski que ajudou muito enquanto terapeuta de casal
em outro momento de nossa vida. Sentimos por sua vida ter sido tão breve.
Por último agradeço a Sandra Colombo, a quem tive o privilégio de conhecer
quando fui convidada, na terapia dos meus pais. Naquele momento,
encantei-me com seu jeito de ser e atender as várias gerações que estavam
naquela sala, e mais tarde a procurei para estudar famílias. Anos e anos de
trabalho com sua supervisão. Sandra , amiga, professora e sócia, sempre um
exemplo.
A meus amigos e sócios do Sistemas Humanos; Dílson, um amigo leal.
Marcos, quantas histórias e brincadeira! Denise, amiga incentivadora na
autoria. Beth, amiga e companheira . Gilda, o seu modo de ser e também seus
trabalhos sobre a teoria do Apego foram motivadores dessa pesquisa. Janice,
sempre amiga. Sou grata pela sua ternura. Nice muito obrigada pelo apoio.
Agradeço muito a vocês, também a Adri, Eliete e Sandra, ao carinho de cada
um, à generosidade e, mais do que isso, pelo fato de que puderam esperar o
meu momento de poder fazer parte da equipe. Vocês deixaram uma porta
sempre aberta para mim, o que nunca esquecerei. Este é o Sistemas
Humanos!
Às colegas e amigas Lene Grandesso, Helena Maffei Cruz, Rosana
Galina, Beth Polity, Malvina Trajberg e Rose Nahas, agradeço ter feito parte da
APTF com vocês. Esse convívio foi o precursor deste trabalho de pesquisa.
Nesta época, percebi a importância de organizar o conhecimento sem receio
de perder a espontaneidade nos atendimentos.
Aos meus amigos do POF, querida Sula Terepins, Fanny Levy e Lea
Goldenstein que sempre acreditaram e abriram espaços para o meu trabalho.
Aprendi muito nestes 10 anos no POF, junto com Cláudia Leicand , Sandra
Apligliano, Maria Auxiliadora de Souza (Pituca), Jassanan Pastore e uma
grande amiga, Lili Quintão, que durante uma partida de tênis falou: – “
Vamos lá comigo conhecer o POF”. Agradeço a convivência com o grupo de
professores, funcionários e colegas que são muito queridos, nessa Instituição.
Aos meus amigos do CEAF, Gilda Montoro, Maria Isabel Garcia Dias,
Clarisse Topcczewski, Nair Mendes, Célia Valente, Marjorie Carbone, Lúcia
Cauduro, Walderez Bittencourt, Helena Brás, Júlia Kuzuhara, Ana Lenice
Fonseca da Silva e as queridas secretárias Vera Villas Boas , Nina Marino e
ao João de Oliveira , que cuida da segurança de todos nós. Ao grupo clínico
do CEAF com quem aprendo diariamente em nossas reflexões, e também a
querida Lena Bartman, que atendeu comigo as famílias da pesquisa e cuja
participação foi pontual neste trabalho. Obrigada a todos.
Aos meus queridos clientes, que confiaram a mim suas histórias e
experiências, sem vocês este trabalho não seria possível. Sou eternamente
grata.
Aos amigos e alunos com quem compartilho os momentos de vida e de
experiências e que mantém vivo o meu desejo de continuar aprendendo.
Meus agradecimentos a meus colegas da PUC, um grupo colaborador e
amigo, uma grande torcida. Aprendi muito com as professoras do núcleo de
família e comunidade, agradeço e sentirei saudade das aulas e do ambiente
da PUC. Prof.ª Ceneide Cerveny, Prof.ª Maria Helena Franco, Prof.ª Ida
Kublikowski e Prof.ª Rosanne Mantilla. Com cada uma aprendi muito.
Deixei por último, pela sua importância, para agradecer a minha querida
orientadora Prof.ª Rosa Macedo, que admiro muito pelo conhecimento,
competência, força, coragem e humor. Agradeço pela sinceridade durante o
processo de orientação, essencial para aprender a importância de uma
pesquisa, como fazê-la e o cuidado para que seja ampliadora e não
tendenciosa. Obrigada por ter estado junto comigo e por ter me ensinado
tanto.
RESUMO:
.
LEVY, Suzanna.J.F.A. ( 2005). CANSADOS DE GUERRA: um estudo clínico
sobre a co-autoria na violência familiar. ( 219 p.). Dissertação ( Mestrado em
Psicologia Clínica ). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo
Esta pesquisa tem como tema de estudo a violência familiar. O objetivo geral é
investigar como alguns problemas ou situações vividas pelas famílias podem
facilitar a co-autoria da violência familiar. As seguintes questões fazem parte
desta investigação: como se constrói o padrão de relação com violência na
família? Os traumas estão presentes na co-construção da violência familiar?
Além dos traumas, que outras situações vividas pelas famílias colaboram para
desenvolver esse padrão de relação? Trata-se de uma pesquisa qualitativa de
tipo clínico em que o pesquisador/ terapeuta estuda o sistema da violência
familiar a partir dos atendimentos clínicos de três famílias de baixa renda. O
construtivismo e a teoria sistêmica servem de base para a compreensão do
sistema familiar e para as análises e interpretações das categorias e
subcategorias construídas. Os resultados apontam a intergeracionalidade, as
dificuldades de comunicação e a falta de reflexão, como geradoras e
mantenedoras da violência na família. Algumas situações consideradas
facilitadoras por serem estressoras não se caracterizam como determinantes
da violência familiar: a miséria, as drogas, mortes, traumas, preconceitos,
separações, novos arranjos familiares e mudanças no ciclo vital. Também se
incluem como facilitadores o contexto social, por sua permissividade e
impunidade, assim como as políticas públicas que colaboram para a exclusão
social. Deste modo, esta pesquisa enfatiza a inter-relação dos sistemas
individual, familiar e social, como co-autores da violência familiar
.
Palavras- chaves: 1. Família, 2. Violência, 3. Sistêmica, 4. Traumas, 5.
Relações, 6. Comunicação, 7. Abusos.
ABSTRACT:
LEVY, Suzanna, J.F.A, (2005). WEARY OF WAR: a clinical study on “co-
authorship” in family violence. ( 219 p.).M.A. Dissertation in Clinical
Psychology, Pontífica Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
Family violence is the theme of this work. The aim is to investigate how
problems or situations experienced by families can facilitate “co-authorship” in
family violence. The following questions were addressed: How is a relationship
pattern with violence built in a family? Are the family traumas present in the co-
construction of family violence? Besides the traumas, what other situations
experienced by families collaborate in developing this relationship pattern? A
clinical, qualitative research is carried out where the researcher/therapist
studies the system of family violence based on clinical family work with three
low-income families. Constructivism and the systemic theory serve as a basis
for understanding the family system and for analyses and interpretations of the
categories and sub-categories. The results point to intergenerational patterns,
difficulties in communication and a lack of reflection as the generators and
preservers of violence in the family. Some stressors are considered facilitators,
and not determiners of family violence: misery, drugs, deaths, traumas,
prejudice, separations, new family arrangements and changes in the life-cycle.
Also included as facilitators are the social context, for its permissiveness and
impunity, as well as public policies which collaborate in social exclusion. Thus,
this work emphasizes the interplay between the individual, family and social
systems as co-authors in family violence.
Keywords: 1. Family, 2. Violence, 3.Systemic, 4. Traumas, 5.Relationship,
6. Communication, 7. Abuse.
SUMÁRIO
I-INTRODUÇÃO....................................................................................................
02
II- O PORQUÊ DESTA PESQUISA..........................................................................
05
III- EPISÓDIOS DE VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA DA FAMÍLIA BRASILEIRA .........
13
1. VIOLÊNCIA E RELAÇÕES FAMILIARES....................................
16
IV- REFERÊNCIAS ADOTADAS PARA PENSAR A VIOLÊNCIA......................
20
1. DEFINIÇÕES DE VIOLÊNCIA..........................................................
20
2. TIPOS DE VIOLÊNCIA....................................................................
23
3. NATUREZA DOS ATOS DE VIOLÊNCIA........................................
24
V- CLÍNICA DA FAMÍLIA: DO INDIVIDUAL AO SOCIAL....................................
28
1. UM OLHAR SOBRE O INDIVÍDUO...................................................
28
2. FAMILIA : CULTURA E INTERGERACIONALIDADE......................
34
3. GÊNERO , PODER E MITOS NA FAMÍLIA...................
39
4. SISTEMA SOCIAL...........................................................................
46
VI – MÉTODO....................................................................................................
51
1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES.......................................................
51
2. CONTEXTO E PARTICIPANTES......................................................
53
3. ESTRATÉGIAS..................................................................................
55
4. PROCEDIMENTOS..........................................................................
56
4.1. PROCEDIMENTO PARA ANÁLISE DE DADOS................
57
4.2. PROCEDIMENTOS ÉTICOS................................................
60
VII- ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS...............................................
61
1. DESCRIÇÃO DA FAMÍLIA ALMEIDA.............................................
61
2. DESCRIÇÃO DA FAMÍLIA BORGES...............................................
78
3. DESCRIÇÃO DA FAMÍLIA CASTRO..............................................
92
VIII- CO-AUTORIA DA VIOLÊNCIA: SISTEMAS QUE SE INTERCONECTAM....
107
IX- CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................
115
X - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................
118
XI- ANEXOS......................................................................................................
123
1
I - INTRODUÇÃO
Sempre admirei a arqueologia; possivelmente, foi o que despertou meu
interesse pela Psicologia e atendimentos de famílias. Revisitar histórias
familiares, percorrer túneis, lugares claros e escuros nunca visitados,
descobrindo entradas e saídas e garimpando preciosidades, cacos, sombras,
medos, dor e terror. Iluminar esses caminhos percorridos tem sido a prática
clínica que venho adotando no atendimento de famílias vítimas da violência,
descritas neste trabalho.
“Jovem de 18 anos, bonita, rica, bem criada, arma um plano para matar
seus pais, junto com seu namorado. ” Neste mesmo fim de ano, outro jovem
chega em casa drogado e mata sua avó. Tais acontecimentos marcaram o
pensamento e foram notícias no fim de 2002. Esses personagens estiveram
presentes em todas as revistas e jornais, foram assunto em bares, restaurantes,
escolas, terapias e famílias, além de despertarem muitas emoções, medos e
receios nos leitores.
A maioria das pessoas com quem conversei, ou escutei, falava desses
fatos com muita indignação. Algumas frases me chamaram a atenção:
- Que violência!
- Como pode uma filha tão bem criada e rica planejar a morte dos pais?
- Esta moça deve ser um monstro, louca....coitados dos pais!
- Eles deram tudo do melhor e receberam a morte!
- Será que conhecemos nossos filhos?
- Será que meu filho pode, de repente, me matar de verdade?
O que sabemos sobre essas famílias vítimas da violência? Muito pouco
para qualquer julgamento e compreensão. Poderemos ter histórias contadas
pelos personagens vivos, porém existirão lacunas importantes nas narrativas
que não poderão ser preenchidas. Sabemos que são situações de extrema
violência, mas precisamos ter conhecimento profundo de uma família para
compreender seus atos.
2
Outro fato que me chamou a atenção nesses comentários foi o de se
tratar de uma jovem rica. Talvez se a jovem fosse pobre, seus motivos seriam
mais justificados pelos seus atos?
Procurando autores e pesquisadores do tema da violência familiar,
ficaram evidentes as diferentes abordagens e foco, como classe social, idade,
gênero e indivíduo. Foram autores que contribuíram não só com suas obras,
mas também com dados quantitativos e qualitativos para um melhor
entendimento da questão.
Azevedo e Guerra (1997) focalizam suas pesquisas na violência contra a
criança e social. Acreditam que a violência faz parte da estrutura da sociedade,
marcada por dominação de classes, desigualdades na distribuição de renda,
sendo inerente às relações interpessoais adulto-criança.
David Levisky (2001) organiza suas obras focalizando-as na violência e
adolescência, propondo ações preventivas. Aborda temas como gravidez
precoce, Aids, auto-agressão, drogas, prostituição, que possuem um
denominador comum, a vulnerabilidade do adolescente. Sob a visão
psicanalítica, os autores descrevem iniciativas preventivas de tratamento e
capacitação de agentes comunitários.
Isabel Kahn Marin (2002) apresenta sua tese de doutorado em 2001. A
hipótese da autora gira em torno da negação da violência ou de negar-se a
assumi-la, afirmando que faz parte do sujeito e da civilização. Sob a perspectiva
psicanalítica, aborda o tema violência articulando-o com a subjetividade.
Blender, Silver, Haber, e Sarjent (1994), descrevem situações e tragédias
familiares como suicídio, abuso sexual, drogas, psicoses em famílias que não
acreditam em mudança e propõem um modelo de atendimento.
Violência familiar é um tema atual, vasto, complexo e muito desafiador.
Requer do terapeuta observação minuciosa, criatividade, necessidade de viver
as situações de sofrimento com as famílias e a descoberta constante de
habilidades para compreender as tramas familiares.
A proposta desta pesquisa foi ampliar o campo de visão e da prática
clínica com famílias de baixa renda, em que a violência é o padrão de relação. O
objetivo geral foi investigar como alguns problemas ou situações vividas
pelas famílias podem facilitar a co-autoria da violência familiar.
3
As seguintes questões fazem parte desta investigação como objetivos
específicos:
Como se constrói o padrão de relação com violência na família?
Os traumas estão presentes na co-construção da violência familiar?
Além dos traumas, que outras situações vividas pelas famílias colaboram
para desenvolver esse padrão de relação?
Para situar melhor o leitor, descrevo no capítulo II como a minha vida
pessoal e minha experiência profissional, além das obras de alguns autores
foram delineando esta proposta de pesquisa. No capítulo III, recorto episódios
da violência na história da família brasileira, desde o processo civilizatório até o
momento em que a violência familiar passa a ser um tema de estudo. No
capítulo IV, descrevo as definições de violência que colaboraram para ampliar o
tema da violência familiar. No capítulo V, abordo a clínica da família: o sistema
individual, familiar e social. No capítulo VI, descrevo o método, as estratégias e
procedimentos realizados na pesquisa. No capítulo VII, descrevo as histórias
das três famílias participantes e as análises e interpretações de cada caso. O
capítulo VIII, reúne os resultados e últimas reflexões sobre os casos estudados
da pesquisa. Como considerações finais, levanto alguns caminhos de estudo
para ampliar os resultados desta pesquisa.
4
II - O PORQUÊ DESTA PESQUISA
Iniciei minha prática profissional em 1986, após a faculdade de Psicologia
com o curso de pós-graduação no Sedes Sapientiae, em Terapia Psicomotora.
Na minha clínica, atendia crianças numa abordagem psicanalítica, buscando
integrar corpo e mente.
A proposta terapêutica que utilizava definia-se como uma relação diádica,
em que o terapeuta trabalhava a partir do vértice do inconsciente, da análise e
interpretação de conteúdos internos, de vivências primitivas e das relações de
transferência trazidas pelo paciente, com o objetivo de tornar consciente os
conteúdos reprimidos no inconsciente. Nessa proposta terapêutica, a escuta do
terapeuta orientava-se para a busca do conteúdo da história passada, utilizando
brinquedos, material gráfico, jogos e outros materiais.
Fazia entrevistas com os pais das crianças e chamava a família durante o
tratamento com muita freqüência, o que não era um hábito na prática da
psicoterapia infantil, ou melhor, era comum chamar os pais, mas não a família
toda. Adotava, nesses encontros familiares, além da observação, uma conduta
pedagógica baseada nas teorias de desenvolvimento, com uma proposta de
orientação.
Parecia simples ensinar determinado modelo de conduta aos pais em
relação a seus filhos. Quando havia dificuldades na mudança de conduta, os
terapeutas consideravam como resistências ou boicote dos pais para seguir o
modelo, considerado “ correto”, aparentemente simples e bem fundamentado
pelas teorias existentes.
Eram teorias de desenvolvimento que nos levavam a crer na existência
do que é bom, do que é saudável e do que é errado para o desenvolvimento da
criança e da família. Por exemplo: deixar o filho dormir na cama com os pais
era uma conduta que poderia trazer dificuldades para a criança. Fazia-se
necessário retirar a chupeta e as fraldas com uma determinada idade e assim
por diante.
Uma prática sustentada por modelos, que proporcionavam segurança ao
terapeuta e à família.
5
Essas orientações eram dadas aos pais, que pareciam concordar com as
teorias muitas vezes já conhecidas por meio de livros e revistas. O que os
impedia de seguir aquele modelo? Quais eram os impedimentos?
Comecei a me dar conta da minha dificuldade em compreender os pais,
provavelmente por estar muito aliada a meu paciente, principalmente quando se
tratava de negligência ou violência física à criança por parte dos familiares.
A terapia individual não era suficiente e não cabia à criança ou ao adolescente a
responsabilidade e a possibilidade de transformar a situação vivida.
Em alguns casos, quando o paciente se desenvolvia e não apresentava
mais o sintoma que o havia levado à terapia, a família relatava o aparecimento
de algum problema em outro filho. Enfim, este nem sempre era o mesmo, mas
transitava para outra pessoa da mesma família. Por quê? Será que existe um
dono do sintoma ou da dificuldade?
Fui procurar estudar as relações familiares, buscando compreender os
processos de mudança e os deslocamentos de sintomas. Questionava aquela
forma de trabalhar individualmente com crianças. Nesta época, desconhecia
trabalhos com famílias e os cursos de formação em terapia familiar.
Tive, então, o privilégio de conhecer terapeutas que trabalhavam com
famílias, e assim iniciei meus estudos sobre relações familiares. Conhecendo
melhor o funcionamento de uma família, foi ficando cada vez mais difícil atender
crianças individualmente. Passei a atender famílias.
O conhecimento da teoria sistêmica foi transformando a minha
compreensão do mundo e minhas narrativas. Mais tarde, fui fazer a formação
em Terapia Familiar no Instituto de Terapia Familiar de São Paulo (ITF/SP).
A terapia familiar e a visão sistêmica responderam a algumas questões
mencionadas acima e criaram outras de que falarei adiante.
A compreensão do pensamento sistêmico foi uma mudança de
paradigma não só em minha vida pessoal como também na prática clínica. Na
medida que passou a configurar um outro sistema de pressupostos, ou seja,
uma outra lente, passando do indivíduo para os sistemas humanos, ampliou as
fronteiras para a compreensão dos problemas, dos processos de mudanças e
do indivíduo.
Ao atender várias famílias em contextos sócio econômicos distintos, o
tema da violência familiar me despertou interesse. O motivo pela procura de
6
terapia, em vários casos era a violência. Da violência física à violência da
comunicação, muitas vezes negada e banalizada pela família.
Os atos de desqualificação e de duplas mensagens, caracterizam esse
tipo de violência, que se manifesta através da comunicação, chamada por Sluzki
(1996) de violência interpessoal. Para o autor, é um tipo de violência
devastadora porque paralisa a capacidade de pensamento e de percepção do
indivíduo. Segundo Hirigoyen ( 2000), a violência invisível pode destruir o outro
sem uma gota de sangue. Era uma forma de violência tão comum na prática
clínica, banalizada por terapeutas.
Nessa época, em 1998, fui convidada a trabalhar com famílias pobres em
um Posto de Orientação Familiar criado pela Federação Israelita de São Paulo,
na favela de Paraisópolis- POF. Essa comunidade de Paraisópolis/ favela Porto
Seguro é caracterizada por profissionais que atuam na área e pela própria
comunidade como violenta e pobre.
O trabalho com famílias pobres demanda um certo conhecimento da
cultura da pobreza, que tem suas características próprias. Muitas vezes me
sentia impotente, com poucas alternativas frente a ela, sentimentos também
comuns nas famílias da comunidade.
Na instituição, as palavras pobreza e carência, tomavam conta de todos
como uma doença. A precariedade dos recursos sócio-econômicos e de
moradia, o desemprego, a depressão, o sofrimento dessas famílias, além da
violência, paralisavam todos os sistemas envolvidos, desde a própria família
encaminhada para atendimento, quanto a escola, as fontes encaminhadoras e a
própria equipe do POF. Os terapeutas não ficavam fora disto, eram
contaminados pela impotência e fracasso.
A situação me despertou curiosidade para investigar, com auxílio dos
atendimentos clínicos, de que forma ajudar essas famílias tão sofridas, inseridas
em um contexto com alternativas desconhecidas pelos terapeutas e por elas
mesmas.
Em 1996, quando iniciei nesse projeto de atendimento familiar, parecia
que as necessidades eram tantas que não seria possível lidar com elas. Havia
uma descrença em relação à possibilidade de transformação das famílias,
devido ao contexto sócio cultural de exclusão social. Foi um momento difícil na
Instituição, porque alguns profissionais não suportavam ficar nessas condições,
7
sentindo-se impotentes perante tais dificuldades e perante a violência nas
relações familiares, entremeadas com a pobreza. Isso porque a precariedade de
moradia e de recursos sócio-econômicos podia facilmente conduzir à suspeita
de que a pobreza sempre caminha junto com a violência, ou seja, pode ficar
justificada e compreendida a violência pela pobreza, numa perspectiva causal.
Na perspectiva sistêmica, a partir de um olhar relacional, podemos
observar o fenômeno e considerar a diversidade de fatores presentes que, por
um lado trazem uma complexidade de possibilidades e por outro, tal diversidade
possibilita uma multiplicidade de perspectivas a serem construídas no contexto
interacional das relações familiares.
A teoria sistêmica configurou-se como uma nova prática discursiva na
maneira de descrever, explicar e tratar problemas. Se antes a psicoterapia era
vista como uma relação diádica, em um espaço preservado do terapeuta e
cliente, com a teoria sistêmica a mudança dessa configuração trouxe a
possibilidade da observação grupal dos atendimentos, das supervisões ao vivo,
discussões teóricas grupais e a inclusão, no sistema terapêutico, do terapeuta
com a sua forma de olhar o mundo.
Nessa perspectiva, iniciei atendimentos às famílias da comunidade, com
a proposta de conhecer o contexto em que viviam. As sessões se
caracterizavam por seqüências de perguntas que se tornavam cada vez mais
minuciosas a respeito da forma de viver das famílias, suas histórias, suas
crenças, mitos, ou seja, sua cultura. Durante esse processo certificava-me se
estava sendo capaz de compreender, de fato, o que escutara. O reviver dessas
histórias favorecia o ato reflexivo e a construção de novas alternativas,
favorecendo mudanças no sistema terapêutico.
Para Cecchin, ( 1996, p.241), “a violência é uma forma de relação entre
pessoas”, com dificuldade de manter uma conversação e diálogo. “A violência
ocorre quando a conversação já não se sustenta”. Essa forma de pensar a
violência sintetizava e ao mesmo tempo norteava minha prática clínica.
Pensava, então, que precisaria focar minhas ações na construção de
uma comunicação dialógica no encontro com as famílias, o que provavelmente
propiciaria mudanças no padrão de relação familiar.
Não foi tão simples assim. O ouvir e o falar podem ser um perigo para a
família; as situações de agressões, de ataques físicos e verbais geravam um
8
clima de muita agressividade e destrutividade no sistema, inclusive no
terapeuta, ou seja, a comunicação era uma tarefa muito difícil. Quando os
significados criados em um sistema são insuportáveis pela dor que eles causam
e pelos mitos familiares existentes, a comunicação passa a ser perigosa e
evitada.
Assim, a violência era um sintoma familiar, organizado por um problema,
um problema de difícil acesso. A comunicação, que seria um meio mais simples
de se chegar a ele, era confusa, perigosa e dificultava o acesso, sendo muitas
vezes geradora de violência.
“Violência gera violência”, uma frase que ficou muito presente nesse
momento. Como o terapeuta poderia prosseguir os atendimentos sem se afastar
afetivamente da família e ao mesmo tempo não fazer parte do jogo da violência?
As história contadas narram muito sofrimento: os relatos de violência
física, emocional e interpessoal; as situações de dor e perdas familiares: perdas
envolvendo mudanças de estado, cidade, relacionamentos, empregos, são
temas freqüentes nessas famílias. Aquelas que são pobres vivem perdas
sucessivas e canalizam suas energias para a sobrevivência. Temas
relacionados às perdas, lutos e à dor, com seus significados, passaram a ser um
tema freqüente nas narrativas familiares. A partir dessas histórias contadas
pelas famílias, dos sentimentos e emoções vividos, é possível compreender, ter
empatia e criar vínculos, não se restringindo à narrativa da violência e
possibilitando ao terapeuta perceber a relação complementar e sistêmica do
agressor com a vítima.
No momento em que o agressor percebe que não está sendo visto como
um “monstro”, mas como alguém que carrega uma história de muito sofrimento,
passa a ter coragem de prosseguir a terapia.
A vivência de ser terapeuta e de ser íntimo da dor humana é um desafio,
mas quando se trata de famílias pobres, que não se caracterizam somente por
carência de renda e precariedade de moradias, mas também por desigualdade,
injustiça social e, além disso, pela exclusão social e difícil acesso às
oportunidades e necessidades sociais básicas, o atendimento clínico não é
suficiente. É necessário que o terapeuta esteja inserido em uma rede protetora
que facilite o acesso das famílias a essa rede social.
9
Para Pedro Demo (2003,p.204), “a redução da pobreza depende
diretamente do crescimento econômico e da diminuição do grau de
desigualdade”.
Porém, mesmo com as dificuldades existentes no atendimento de
famílias pobres, o encontro terapêutico, as emoções vividas, as crenças
familiares transformam, constroem novos entendimentos e funcionamentos das
mesmas. Não diferem da clínica particular, ou seja, de atendimentos familiares
com famílias de alta renda.
A violência não aparece apenas em famílias pobres; ela está presente e é
freqüente em todos os contextos sócio-econômicos. Contudo, a experiência que
tenho na clínica particular é de que a maioria das famílias que procuram por
terapia ou quando encaminhada, trazem como preocupação alguns sintomas ou
comportamentos como dificuldades escolares, falta de limites, ou seja,
preocupações aparentemente menos sérias, de menor risco. Nas famílias de
alta renda, as vivências de violência não são tão evidentes, mas estão
presentes e escondidas atrás de sintomas. A violência física, os abusos ficam
muito bem guardados e são de difícil acesso. Naquelas de baixa renda, a
violência muitas vezes é aparente nas relações, ou então é facilmente
perceptível. Em muitos casos, quando a família procura ou é encaminhada, a
queixa é “ estamos cansados de guerra.”
Como supervisora (desde 1995) do projeto de terapia familiar do CEAF -
Centro de Estudos e Assistência à Família, atendo famílias pobres. Nos casos
de violência familiar, quando se trata de uma família pobre, a violência aparece,
na maioria das vezes, no primeiro encontro terapêutico. Quando se trata de
famílias que perderam condição econômica, a violência vai surgindo lentamente,
através dos atendimentos.
Como proposta terapêutica para violência familiar, tenho priorizado a
criação de contextos de confiança, promovendo o reviver das histórias de vida e
a construção conjunta de alternativas significativas para a família. Algumas
acreditam que reviver situações de sofrimento complica suas relações. Busco,
então, desmistificar a inutilidade da vivência de dor e de sofrimento,
possibilitando, com auxilio das narrativas de emoções e sentimentos vividos, a
compreensão dos seus significados, estabelecendo, assim, uma comunicação
dialógica no sistema.
10
Pensar no problema que organiza o sistema e no sintoma da violência
como uma organização criada por um problema, possibilita compreendê-la como
um funcionamento que protege o problema, possivelmente pela dor que ele
causa.
Arnon Bentovim (1992) utiliza a palavra “trauma” no lugar de problema,
que organiza o sistema. Este autor refere-se a existência de um problema ou
situação traumática que organiza o sistema familiar.
A proposta de Bentovim ao estudo da violência é sócio-interativa, o que
significa que essa abordagem compreende o indivíduo, a família e a sociedade.
Assim, prioriza o sistema da família e outros sistemas em que está inserida,
bem como o indivíduo. Olhar para cada indivíduo no contexto familiar e poder
atribuir diferentes responsabilidades no interjogo da violência, dependendo do
lugar ou função que cada membro da família ocupa, esclarece uma questão
sobre a visão sistêmica, possivelmente mal entendida e sujeita a algumas
críticas de alguns autores; estes crêem que tratar a violência sob a ótica
sistêmica pode ser perigoso, por colocar o problema familiar como
responsabilidade da família, sem diferenciação dos seus participantes. Não
quer dizer que ao olhar para o sistema e obter uma vio ampliada dos
problemas familiares e suas relações necessariamente propicia que seus
participantes fiquem indiferenciados, ou seja, é possível diferenciar o indivíduo e
sua função na família.
A partir da visão sistêmica e da prática clínica com famílias, apresento o
objetivo desta pesquisa e algumas questões relativas a ele.
O objetivo desta pesquisa é ampliar o campo de visão e da prática
clínica com famílias em que a violência é o padrão de relação, por meio da
compreensão de como alguns problemas ou situações vividas por elas
podem facilitar a co-autoria da violência familiar.
O estudo será realizado a partir de atendimentos clínicos a três famílias
de baixa renda , encaminhadas para terapia pela violência familiar.
Além de haver uma inquietação o este tema da violência na minha
prática clínica, considero-o importante por ser um assunto de discussão e
preocupação mundial e pela necessidade de haver melhor foco de prevenção .
No decorrer da prática clínica, a ocorrência de situações que configuram
tipos de violência como a física, a sexual, a psíquica e a negligência, muitas
11
vezes se restringiam ao espaço privado. Atualmente, a violência não está só no
espaço privado, mas também no público.
A violência sempre esteve presente nas relações e no mundo, porém
vem crescendo em proporção significativa à procura de ajuda e atendimento.
Em muitos casos, o motivo da procura por terapia é por algum sintoma, como
dificuldades escolares ou conflitos familiares, porém, alguns sinais de violência
são banalizados. São atos que passam a ser “ditos como normais”, e assim não
há o reconhecimento da agressão e do sofrimento como um problema.
Quando penso na utilidade de pesquisas qualitativas nesse tema da
violência, o que me fica mais presente é a importância de melhor conhecê-la por
ângulos distintos, para criar iniciativas de prevenção.
Esta pesquisa poderia ser de utilidade para outros profissionais que
trabalhem com famílias nesse contexto sócio-cultural, ampliando a visão e a
perspectiva da violência familiar.
12
III – EPISÓDIOS DE VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA DA FAMÍLIA BRASILEIRA
A rigor, a cultura brasileira teve suas origens na cultura indígena e com a
chegada dos portugueses ao Brasil, iniciou-se, segundo Morin (2003) o
processo de “globalização”; para o autor, este termo, que é muito utilizado a
partir do final do século XX, já era experienciado, mas não nomeado, desde a
época das navegações e do descobrimento das Américas. Nesse processo de
globalização, salienta-se a interferência entre os processos econômicos, sociais,
religiosos, nacionais, mitológicos e demográficos.
Voltando à época das navegações, o descobrimento do Brasil foi
fascinante aos olhos portugueses e retratado por Pero Vaz de Caminha como o
“paraíso”: praias belas , vegetação abundante, luminosidade, clima tropical e
os indígenas, um povo primitivo, que deveria ser catequizado.
A idéia de descoberta implica que tudo estava ali apenas à espera de ser
achado; os habitantes da terra não passavam de cenário, sem nome, sem
história, desprovidos de qualquer direito. A meu ver, tem início o processo de
exclusão social.
Para os portugueses, tratava-se do descobrimento de uma nova terra,
de novas riquezas para Portugal e não puderam reconhecer a existência de uma
história e de uma cultura. Roberto Gambini (1999) considera mais coerente o
termo invasão, ao invés de descobrimento do Brasil.
A primeira esquadra portuguesa deixou no país homens degredados,
punidos por algum tipo de crime para assegurarem a posse do Brasil, e outros,
que posteriormente chegaram, também degredados, eram homens que
deixaram suas famílias em Portugal e formaram uma nova família no Brasil.
A partir daí surge a família de pai branco com a mãe índia. A junção
desse homem português que deixou sua família em Portugal e que se junta com
a mulher índia, criou contextos que nos são desconhecidos. Como foram esses
encontros? Á força ou espontâneos? Para Gilberto Freyre (1950), o ambiente
em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual.
De qualquer modo o lugar desta mulher índia, valorizada pela beleza
física e pelo erotismo mas ao mesmo tempo desvalorizada enquanto mulher
diante da cultura européia que privilegiava a repressão da sexualidade da
13
mulher, trouxe dificuldades para a formação da família . Na cultura indígena, a
sexualidade é plena e vivida sem a noção de culpa e de promiscuidade,
diferente da cultura judaico cristã. Tratava-se de grandes diferenças culturais,
dominando a cultura portuguesa.
O feminino se reduzia à maternidade biológica, a um ventre sem alma,
como diz Gambini (1999). Assim, a mulher mãe era desvalorizada na família. O
modelo de pai era de um homem que abandona os seus, rouba as mulheres e
as desvaloriza.
Nessa época do Brasil Colônia (1500 - 1822), alguns historiadores
comprovam, através de relatos dos padres jesuítas, que os índios não
utilizavam castigos físicos para disciplinar seus filhos. Segundo Priore (1995),
os castigos físicos em crianças foram introduzido pelos jesuítas. Os vícios e
pecados deviam ser combatidos com açoites e castigos. Dessa forma, as
punições e ameaças foram introduzidas no Brasil Colonial pelos padres da
Companhia de Jesus, em 1549. A reação indígena a tal tipo de prática era de
indignação.
O cenário não mudou muito com a chegada dos negros ao Brasil. Houve
a desvalorização da cultura africana, considerando os escravos negros como
mercadorias ou animais. Já que o índio não suportava a escravidão, o negro,
sendo mais forte fisicamente e habituado a ela na África, tornou-se o construtor
da economia brasileira.
Na obra de Freyre (1950) os escravos , as crianças escravas e crianças
brancas eram acostumados a passar por castigos físicos extremamente brutais ,
como espancamentos , palmatórias, varas de marmelo, cujo objetivo era ensinar
a obediência aos pais e patrões como única forma de escapar das punições.
Além dos castigos físicos, havia os abusos sexuais dos escravos e, por se
tratarem de escravos, esses abusos não eram considerados violência.
A sociedade escravista tinha por fundamento a violência. Uma raça
deveria ser subjugada à outra.
Parece tão marcante esse processo de formação da família brasileira que
em muitas narrativas familiares continua presente um lugar de mãe muitas
vezes cuidador e também inseguro e de pai ausente, que abandona sua família
constituindo uma outra. Narrativa que está presente também nas histórias de
famílias da atualidade.
14
No Brasil Império (1822-1889), reconstrói-se a escravidão. O escravo é
um tipo de propriedade particular que tem direito à venda, troca, herança, e o
enquadramento legal adquire uma importância decisiva na continuidade do
sistema. A sociedade escravista produziu uma ampla rede de controle social,
visando proteger a camada senhorial. Contavam com a parceria de juízes,
feitores e padres para conter qualquer confronto com escravos. As autoridades
nada faziam para coibir a violência ou mesmo punir transgressores quando se
tratava de senhores brancos em relação a seus escravos. Assim, os escravos
não tinham direito algum.
Avançando para o Brasil República (1889 em diante), após a abolição da
escravatura (1988), negros e negras deixaram apressadamente os lugares onde
tinham vivido durante longo tempo nas humilhações da escravidão. Tinham
poucas economias e muitos foram para as cidades próximas, sonhando com a
liberdade. Não possuíam condições de moradia e se agruparam em casas
velhas que eram cubículos sem recursos e infraestrutura, em condições
precárias. Eles eram considerados uma ameaça à ordem e à segurança. Foram
proibidos os rituais religiosos, danças, capoeira, as tradições negras. Em função
das más condições, passaram a ser vítimas de doenças como malária,
tuberculose, difteria e outras. Viviam em moradias semelhantes às favelas e
eram marginalizados.
Os ex-escravos que ficaram no campo eram chamados de caipiras,
caboclos, sertanejos, caiporas, cafusos, dependendo da mistura étnica, do lugar
em que viviam e de seu modo de vida. Esse grupo social trabalhava na terra
alheia como agregado, sem se fixar por muito tempo. A existência de uma
população nômade foi marcante nessa época.
Fez parte da nossa história ver e legitimar a violência contra o índio, o
negro e a mulher. O termo “escravidão” de antigamente foi substituído por
miséria, pobreza e exclusão social.
Quando pensamos na família brasileira desde a sua origem, o tema da
violência se mescla, fazendo parte da sua estrutura original o não
reconhecimento, a desvalorização de um povo e a noção de não pertencimento.
Portanto, o fenômeno da violência fez parte de todo o processo de sua
construção, mas só recentemente este tema tem sido foco de preocupação.
15
1. A VIOLÊNCIA E RELAÇÕES FAMILIARES
Sob uma outra ótica, focalizando a violência na organização familiar,
algumas análises históricas nos mostram que sempre esteve presente nas
relações familiares, sendo tolerada e aceita como norma de convivência, desde
tempos remotos. Segundo Anthony Giddens (2000), a família é o lugar mais
perigoso da sociedade moderna.
As estatísticas disponíveis e registros nas Delegacias Especializadas de
Crimes contra a Mulher (in jornal da Rede Feminista de Saúde,1999),
demonstram que 70% dos incidentes acontecem em casa. Isso confirma que é
mais provável uma pessoa de qualquer idade e sexo ser agredida fisicamente
por um membro de sua própria família do que em outro lugar, por um
desconhecido.
São recentes os estudos sobre a família e a violência. Alguns fatores
colaboraram para o início dos estudos das famílias, como: o final da segunda
guerra mundial, a imigração, a industrialização e a urbanização, que
intensificaram problemas sociais existentes. Anteriormente, predominava na
psicologia e sociologia o conhecimento sobre o indivíduo. A análise da
instituição familiar só passou a ser foco de preocupação após a década de 70.
Segundo Cristina Bruschini (1997), nos anos 50, 60 e mesmo no início
dos anos 70 havia pouco interesse pelo tema das relações familiares. A família,
como instituição social, podia ser encontrada nas pesquisas ligadas à
comunidade, com enfoque na avaliação das divergências ou semelhanças entre
dados empíricos colhidos e o modelo de família conjugal, considerado
característico das sociedades industriais.
Os estudos e pesquisas, nessa época, focalizavam a condição feminina
com o objetivo de controle da reprodução e da sexualidade, visando a
manutenção de um modelo de família considerado “ adequado”.
A preocupação com crianças e mulheres maltratadas é recente, ou seja,
somente a partir dos anos 60, quando alguns autores europeus e americanos
descrevem as síndromes de crianças que sofriam algum tipo de violência
familiar, incluindo maus tratos, e com a divulgação e poder dos meios de
comunicação,é que esse tema passa a ser de interesse público.
16
Em 1962, o fenômeno da violência física e doméstica foi descoberto
cientificamente por trabalhos de F. Silverman e H. Kempe, nos quais
apresentam 749 casos, sendo 78 sobre mortes de crianças espancadas. A
“síndrome da criança espancada” .(Kempe,1978) foi um marco para o estudo e
atenção à violência contra o menor.
Na década de 70, as correntes marxistas começam a se preocupar com a
inexistência de uma teoria da população; assim, surge interesse pelo tema da
família, a partir dos estudos sobre as estratégias de sobrevivência das camadas
populares do trabalhador. Nessa época, o foco não era a família em si, pois a
produção e os estudos sobre esse tema enfatizavam o espaço produtivo da
família, a divisão de trabalho, o respeito e a obediência como virtudes no
contexto familiar e do trabalho.
Mais tarde, o movimento feminista chamou a atenção para a violência
vivida contra as mulheres. Até aquele momento, a preocupação estava
direcionada à violência contra a criança e, com o movimento feminista, passou-
se a olhar para a situação da mulher na sociedade, porém, nessa época, a
violência familiar era considerada como um fenômeno pouco freqüente, anormal
e atribuída a pessoas com transtornos psicopatológicos. A mulher vitimada era
considerada frágil, masoquista e o agressor era visto como alguém que tinha
pouco controle sobre seus impulsos. Ambos, vítima e agressor eram
considerados “patológicos”, e essa patologia era vista e tratada como um
distúrbio individual.
Vários estudos na década de 70, nas áreas da psicologia social,
antropologia, como também os movimentos sociais feministas, trouxeram
grandes contribuições para a compreensão das relações familiares e dos grupos
sociais, surgindo a terapia familiar.
Os pioneiros da terapia familiar, que habitualmente utilizavam o
referencial teórico freudiano no atendimento de psicóticos e crianças, ampliaram
o campo do atendimento clínico, estendendo-se à família. Nasce, então, a
terapia familiar, com a proposta: para mudar o indivíduo, era preciso mudar o
contexto familiar.
O desenvolvimento do pensamento sistêmico-relacional proposto por
Bertalanffy em 1930 e da cibernética por Wiener, na década de 40, forneceu
17
grandes contribuições teóricas e práticas ao estudo das relações familiares e da
terapia.
Com este pensamento, foi possível observar as relações entre vítimas e
agressores como um jogo, considerando as vítimas como agressores e os
agressores, também como vítimas , numa relação de co-dependência e co-
construção
De acordo com a visão sistêmica, as propriedades essenciais de
um organismo , ou sistema vivo, passam a ser propriedades do todo, e não
mais de suas partes, surgindo das relações e interações entre elas. Se
separarmos as partes , estas perdem suas características, pois a natureza do
todo é sempre diferente da soma de suas partes.
A epistemologia mais antiga acreditou que o sistema cria o problema e a
nova epistemologia sugere que o problema cria o sistema. Nessa perspectiva, a
violência é vista como um sintoma organizado por um problema.
Hoje sabemos que a violência é um fenômeno bastante comum nas
relações interpessoais no âmbito familiar, doméstico e social. Ela se faz
presente de diversas formas, algumas vezes é visível e outras, invisível.
Nem sempre ver e constatar um acontecimento é uma situação fácil,
principalmente quando se trata do tema deste estudo, pois, perceber e observar
sinais e fatos que podem indicar a presença de algum tipo de violência na
família, ou na instituição, ou em comunidades, o desconforto, a preocupação, o
medo, requerem do terapeuta uma ação rápida e urgente.
A violência visível aparece aos olhos do público em jornais, televisões e
revistas como terrorismos, guerras, motins. A violência invisível seria aquela
que é imperceptível à vista, mas está presente nas relações de trabalho, nas
relações familiares, nas instituições encarregadas de atender pessoas, e que,
por convenções e pressões sociais, medo e vergonha, são situações vividas, a
respeito das quais os indivíduos guardam segredo. Muitas vezes essa forma de
violência é visível aos olhos de quem está mais distante, mas nem sempre
percebida pelos que a vivem no cotidiano. As situações de injustiça social, de
miséria, de desamparo, que nos ferem diariamente em cidades grandes como
São Paulo, fazem-nos fechar os olhos para uma realidade que desperta
sentimentos como, tristeza, fracasso, impotência e culpa. Uma invisibilidade que
não difere das outras formas de violência vividas nas famílias que, muitas
vezes, não acreditam ser possível mudar a maneira de viver e de ser.
18
No atendimento clínico, o visível e o invisível podem ter conotações
diferentes. O olhar do observador e a sua inserção no sistema familiar ou grupal
serão determinantes para a co-construção de uma realidade visível da
violência.
Dependendo do olhar do observador, alguns atos, comportamentos sutis,
descrições e percepções podem surgir como sombras em um quarto escuro e
podem servir de guia para se dar visibilidade ao invisível.
As narrativas, as emoções, as imagens desenhadas e imaginadas pelo
sistema terapêutico, colaboram para a visibilidade da violência, cujas imagens
retratam muita dor e sofrimento e a visibilidade é o primeiro passo para uma
ação responsável.
19
IV - REFERÊNCIAS ADOTADAS PARA PENSAR A VIOLÊNCIA
1. DEFINIÇÕES DE VIOLÊNCIA
Na última década, a palavra “violência”, em suas diferentes expressões, está
cada vez mais presente na literatura, nos jornais, revistas, e diálogos. Uma
palavra forte, de grande impacto, que está muitas vezes associada a cenas
assustadoras, a situações de intenso sofrimento e medo e também a um tipo de
prazer.
A violência existe ao nosso redor e faz parte das práticas cotidianas. Na
maioria das vezes, estamos tão habituados a ela que nem a percebemos. Esse
é o maior perigo que corremos, pois, quando não nos sensibilizamos com ela,
estamos vulneráveis à sua colonização.
A etiologia da palavra violência:
[ Novo Aurélio, ed1975 e o grande Dicionário Larrousse Cultural, de 1999 ] .
Em ambos aparece no verbete ”Violência “( do latim violentia) 1. Qualidade
ou caráter de violento.2. Ação violenta. 3. Ato ou efeito de violentar. 4.
Constrangimento físico ou moral; uso da força, coação. No verbete “violento”
(do latim violentu) 1. Que atua com força, com ímpeto, forte impetuoso.2.
Que se exerce com força. 3. Colérico, irritadiço, arrebatado. 4. Intenso ,
veemente. 5. Em que se usa a força bruta. 6. Contrário ao direito, à justiça,
à razão. No verbete “Violentar”( do francês violenter) 1. Exercer violência
sobre; coagir; constranger. 2. Contrariar as normas de ; violar. 3.
Forçar,arrombar.4. Violar, estuprar.
Analisando esse termo em nosso idioma, deparamos com várias palavras
que, isoladamente, referem-se à violência, mas que, a meu ver, somente em
conjunto podem chegar mais perto da complexidade de seus significados. Da
mesma forma, apresentamos algumas definições de autores sobre a violência,
pois nenhuma, isoladamente consegue abranger todo o seu significado.
A definição de violência, segundo o DSMIII é uma das mais tradicionais e
citadas nas publicações científicas.
20
[ Definição de violência – Associação Psiquiátrica Norte Americana. Dsm-III R, ]
Um fato traumático ( incluindo a violência ) é definido como : “Um acontecimento
que vai além da categoria das experiências humanas habituais e que geraria
desassossego marcante em praticamente qualquer pessoa, tal como uma
ameaça ou risco de vida ou integridade física, uma ameaça séria ou danos aos
filhos, cônjuges, parentes próximos ou amigos, a destruição súbita do lar ou da
comunidade; ou presenciar o dano ou a morte de outra pessoa como resultado
de acidente ou violência física.”( American Psychiatric Association, 1987).
Nessa definição, os autores ressaltam o ato violento de forma geral. É
uma definição semelhante à da Organização Mundial de Saúde, que enfatiza o
uso da força, poder, a ameaça contra um grupo ou comunidade, ocasionando
lesões, morte, danos psicológicos, transtornos de desenvolvimento e privações.
Segundo Viviane Azevedo Guerra (1998, p.32) “Violência doméstica é todo ato
ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra a criança e
adolescente, que pode causar danos físicos , sexuais e ou psicológicos à vítima;
implica, de um lado, em abuso de poder/ dever de proteção do adulto e, de
outro, numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que
crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em
condição peculiar de desenvolvimento “.
Considera-se importante essa definição de Viviane Guerra pela ênfase a
um tipo de violência: a negligência, a falta de cuidados em relação à criança e
ao adolescente, que pode ser geradora de violência física e sexual. A autora
refere-se à vítima na relação hierárquica de poder com fim de dominação,
exploração e opressão, mas não se referiu ao idoso na família.
Para Saffioti (1997), a violência familiar recobre o universo das pessoas
relacionadas por laços consangüíneos ou afins. A violência doméstica é mais
ampla, abrangendo pessoas que vivem sob o mesmo teto, mas não
necessariamente vinculadas pelo parentesco.
Segundo Adorno (1988, apud Guerra, 1998, p. 31), “a violência é uma
forma de relação social; está inexoravelmente atada ao modo pelo qual os
homens produzem e reproduzem suas condições sociais de existência. Sob
essa ótica, a violência expressa padrões de sociabilidade, modos de vida,
modelos atualizados de comportamento vigentes em uma sociedade, em um
momento determinado de seu processo histórico. A compreensão de sua
21
fenomenologia não pode prescindir, por conseguinte , da referência às
estruturas sociais; igualmente não pode prescindir da referência aos sujeitos
que a fomentam enquanto experiência social”.
O autor conceitua a violência sob a ótica social e cultural enfatizando a
importância do contexto.
A meu ver considerar essas definições no seu conjunto, é uma maneira
de ampliar a visão da violência e observá-la sob focos distintos.
Na prática clínica, além dessas maneiras de pensar a violência estarem
presentes como pano de fundo, o encontro terapêutico agrega novos
significados a ela, singulares e pertinentes àquele sistema terapêutico.
A visão sistêmica compreende a violência como um sintoma de um
sistema, no caso uma família ou um grupo de pessoas, e essa forma de pensar
colabora para não estigmatizar os papéis de vítimas e de agressores, ampliando
a percepção destas para além do sintoma. Assim, com as contribuições de
alguns autores como Cecchin , Bateson , Sluzki e Bentovim que, a meu ver
colaboraram com a noção de violência familiar ou grupal na perspectiva
sistêmica.
Segundo Cecchin ( 1996, p.241), violência é uma forma de comunicação.
Ela denuncia dificuldades nas relações familiares e na sua comunicação.
Para o autor, “a violência é uma forma de relação não dialógica entre pessoas,
um colapso da conversação. A violência ocorre quando a conversação já não
se sustenta” .
Para haver uma boa comunicação, é necessário a escuta respeitosa,
diálogo e reflexão.
Assim, Cecchin define violência como uma forma de comunicação,
utilizando-se também das produções do grupo de Bateson : a noção de duplo
vínculo – dupla comunicação, cujos pontos centrais nos remetem a situações
contraditórias, em níveis distintos de comunicação.
Caminhando na idéia de que existe dificuldade em ouvir o outro como um
legítimo outro, em estabelecer o diálogo e a reflexão, podemos pensar que fica
improvável a possibilidade de negociação familiar, o que dificulta a resolução de
conflitos de uma família ou grupo. Marilena Chauí (1998, p.34), considera
violência quando o indivíduo ou instituição a partir de meios físicos ou psíquicos,
impede a manifestação do outro indivíduo na sua singularidade. Para a autora “
22
a violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de
linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é irracionais, insensíveis,
mudos, inerte ou passivos”.
Os conflitos surgem através da expressão das diferenças de interesses,
valores, desejos de membros de um grupo. O conflito pode e deveria ser um
fator de crescimento, se for negociado, mesmo que a partir de confrontações e
disputas. Mas, quando não há negociação, possivelmente não se fala mais...
não se ouve..... não se percebe..... “ embota-se”, ou seja , paralisa-se.
Para que seja possível uma ação violenta, é necessário haver um certo
desequilíbrio de poder no sistema com auxílio de manobras interpessoais e de
controle, legitimados no contexto.
Segundo Corsi ( 2001), a violência implica na tentativa de eliminar os
obstáculos que se opõem ao exercício do poder, mediante o controle da relação
obtida pelo uso da força.
Isabel Kanh Marin (2004) ressalta a importância de se pensar no termo
etimológico da palavra violência ( o latim vis quer dizer ”força vital”) que para a
autora, além do caráter destrutivo, é uma força necessária para a
sobrevivência.
2. TIPOS DE VIOLÊNCIA
A classificação utilizada pela Organização Mundial da Saúde sobre
Violência e Saúde, de 2003, divide a violência em três categorias gerais:
A violência auto-infligida, que compreende o comportamento de auto-
agressores, comportamentos suicidas, intenções suicidas, auto mutilações.
A violência interpessoal, que divide-se em sub categorias:
- Violência familiar e de casal, quando está presente na família ou entre o
casal. Abrange a família extensa. Nesse grupo, incluem-se formas de violência
como maus tratos, violência sexual, outros abusos e violência na comunicação.
- Violência comunitária, dirigida a grupos de pessoas sem qualquer grau
de parentesco. Está incluída a violência juvenil, violência física por estranhos e a
violência nas instituições, escolas, hospitais e trabalho.
23
A violência coletiva subdivide-se em violência social, política e
econômica. Ela promove interesses sociais, ações terroristas, violência de
massas. É representada pelas guerras e outros conflitos, em geral pela disputa
de poder. A violência econômica compreende ataques por parte de grupos
motivados por lucro econômico e pelo poder do dinheiro, prejudicando serviços
essenciais à população.
3. NATUREZA DOS ATOS DE VIOLÊNCIA
A descrição da natureza dos atos de violência é útil no sentido de
compreender a sua complexidade, mas imperfeita, já que essas categorias e
subcategorias contêm e estão contidas umas, nas outras. Também na prática e
nas investigações nem sempre estão claras as linhas divisórias entre os
diferentes tipos de violência:
- física;
- sexual;
- maus tratos, negligência e outras formas de abuso;
- psíquica.
Nessas subcategorias, a violência física implica na violência contra o corpo,
como bater, machucar que, dependendo da intensidade, pode causar a morte.
Acontece quando os pais ou responsáveis tentam educar e disciplinar seus
filhos por meio da força. Acabam batendo, queimando, empurrando etc. Em
muitos casos, esses pais culpam as crianças pelos seus atos, como: “ele não
obedece....” Em outras circunstâncias, negam os sinais corporais da criança;
como: “ele se machuca muito, quando joga bola com amigos.” Os adultos
também se agridem fisicamente e muitas vezes se escondem para que as
marcas não sejam vistas.
No entanto, é possível perceber alguns sinais no corpo de crianças ou
adultos da família que indicam violência: arranhões, manchas roxas,
queimaduras, feridas, fraturas e outros.
24
Em relação à violência física, pelos dados do Lacri ( Laboratório de Estudos da
Criança), de 1996 a 2004 foram notificados 525 casos em 1996 e 6.066 casos
em 2004.
Apesar de a violência sexual ser considerada um abuso físico, a
intenção do agressor em relação à vítima é sexual. Muitas vezes, a violência
física também está presente e pode levar à morte.
A violência sexual, principalmente contra a criança, é considerada uma
das piores formas de agressão. As meninas e meninos podem ser vítimas desse
tipo de violência. Na maioria dos casos, quem abusa é alguém conhecido da
criança, o que pode ser pior, no sentido de ela confiar e estar mais vulnerável.
Quando o abusador é uma pessoa importante afetivamente para a criança, a
quebra de confiança, o medo, a vergonha, o silêncio, enfim, os danos
emocionais podem comprometer gravemente seu desenvolvimento.
Essa violência pode acontecer com ou sem contato físico. Nesse caso, a
violência sexual é caracterizada por conversas sobre atividades sexuais, com o
objetivo de despertar interesse, ou pelo uso de termos sexuais grosseiros,
xingamentos, dirigidos à criança ou ao adulto. Exibir o corpo é também uma
forma utilizada com a intenção de chocar ou como forma de prática sexual, com
objetivo de estimular sexualmente.
A violência com contato físico caracteriza-se pelo ato sexual oral, anal ou
vaginal , masturbação, pela prostituição e estupro ou, de modo sádico, por
torturas e surras e pela pornografia, em que as pessoas são usadas como
atores em vídeos ou fotos.
Alguns sinais corporais nas crianças podem alertar para a violência
sexual: infecções urinárias, dificuldades para sentar, dor nos genitais,
masturbação, manchas roxas no corpo.
Pelos dados do LACRI
1
,( Laboratório de Estudos da Criança) a violência
sexual passou de 95 casos em 1996 para 2.573, em 2004.
Maus tratos e negligência são um tipo de violência caracterizado por
falta de condições para sobrevivência, falta de cuidados físicos e emocionais,
podendo chegar à morte. Podemos perceber sinais como: falta de cuidados
1
Lacri- os dados obtidos foram colhidos em Delegacias da mulher, Justiça da infância e da
juventude, unidades de saúde, hospitais, escolas, SOS criança.
25
médicos , roupas sujas, falta de banho e alimentação, quando a criança falta
muito à escola e anda sozinha pelas ruas.
Segundo dados do LACRI, por maus tratos e negligência foram
notificados 572 casos em 1996 e 7.799 em 2004, e a violência fatal que, de
135 casos em 2000, decresceu para 17 casos em 2004.
A violência psíquica é definida na literatura em variadas acepções,
como ameaças, agressões verbais, desqualificações do outro e, indiretamente,
pode causar a morte. Considero esse tipo de violência presente em todas
situações, já que os danos emocionais atingem o psiquismo de todos que
fazem parte do jogo. A natureza da violência associada à intensidade e à
freqüência dos seus atos determinam o grau de risco para a família.
Segundo notificações do LACRI, a violência psicológica passou de 53 casos em
1997 para 3.097 em 2004.
Os dados nos confirmam aumento da violência na família e das
denúncias de violência, o que não quer dizer que ela aumentou nesta
proporção, já que os dados anteriores podem ser parciais.Esses dados foram
também colhidos pelo LACRI (Laboratório de Estudos da Criança),de 1996 a
2004 e, possivelmente, cada vez mais se consiga ter acesso aos registros da
violência familiar.
Segundo uma pesquisa realizada pela Sociedade Mundial de Vitimologia
(Holanda) que pesquisou a violência doméstica em 138 mil mulheres de 54
países, 23% das mulheres brasileiras estão sujeitas à violência doméstica.
As estatísticas disponíveis e os registros nas delegacias especializadas
de crimes contra a mulher demonstram que 70% dos incidentes acontecem
dentro de casa, e o agressor é o marido ou companheiro; mais de 40% desses
episódios resultam em lesões corporais graves decorrentes de socos, tapas,
chutes, queimaduras, espancamentos e estrangulamentos.
Os dados revelam números alarmantes de violência, totalizando 1.192
casos em 1996 e 19.552 em 2004. Dão-nos uma amostra mais próxima da real
situação da violência em São Paulo, já que muitos casos permanecem em
silêncio.
Desse total de ocorrências, os dados que aparecem mostram que a
violência contra o sexo feminino é maior, porém, se nos detivermos em sua
proporção, veremos que diminuiu em relação ao sexo masculino: em 1996, a
26
proporção era de 8 casos para o sexo masculino contra 68 casos do sexo
feminino. Já em 2004, o número passou a ser de 589 casos contra o sexo
masculino para 1.984 casos do sexo feminino.
27
V - CLÍNICA DA FAMÍLIA: DO INDIVIDUAL AO SOCIAL
Ë possível considerar violência familiar como um padrão de
funcionamento, em que os membros da família são co-autores, possuindo
responsabilidades e possibilidades distintas tanto na autoria, como na sua
desconstrução. Tal funcionamento pode ter suas raízes em outras gerações, e
as gerações atuais tendem a perpetuá-lo.
Alguns autores salientam estudos e explicações da violência familiar sob
a ótica individual e psicopatológica; outros enfatizam o contexto social e cultural
como determinante e, nessa investigação, procuro relacionar esses sistemas:
individual, familiar e sócio-cultural.
O olhar sistêmico para a violência familiar propõe um estudo dos
sistemas que se inter-relacionam, não se restringindo ao sistema familiar,
considerando o sistema individual, as díades, triângulos familiares e famílias de
origem como parte do sistema familiar, o qual está inserido em um determinado
contexto sócio-cultural.
1. UM OLHAR SOBRE O INDIVÍDUO
Um elemento chave para observarmos o sistema individual no sistema de
relações é o padrão de apego entre pais e filhos. Como foram estabelecidos os
vínculos afetivos do indivíduo em sua família? Como foi estabelecida a relação
mãe-bebê ou cuidador e bebê ?
Para Bowlby (1990), o vínculo estabelecido na díade cuidador-bebê
colabora essencialmente para a formação da personalidade do indivíduo.
Alguns estudiosos utilizaram-se de várias pesquisas com o objetivo de
separar a influência do meio ambiente e das relações estabelecidas na
compreensão do indivíduo. Segundo Vaughn e Bost (1999), há mais de duas
décadas que se pesquisa o temperamento do indivíduo e a relação de apego.
Alguns autores constatam que seus resultados se mostraram parcialmente
positivos com respeito à possibilidade de atribuir uma influência exercida pelos
componentes genéticos nas relações estabelecidas. O que nos leva a crer que o
28
temperamento
2
não determina a personalidade, mas colabora na sua
construção. Esses estudos nos indicam que, dependendo do temperamento do
bebê ao nascer e da propensão da mãe em estabelecer vínculos, determinam-
se características que podem facilitar ou dificultar a relação de apego inicial.
Nesse momento, vários fatores influenciam a construção conjunta do
vínculo cuidador-bebê: o momento de vida da família, sua história , suas
crenças e o contexto sócio-cultural e histórico. .
Para Bowlby (1990), toda criança tem tendência a desenvolver laços
afetivos íntimos com seu cuidador. A qualidade destes laços afetivos determina
o tipo de apego desenvolvido na relação, que tende a ser auto perpetuante,
levando a criança a agir de forma que o confirme. De acordo com o padrão de
apego construído na relação criança-cuidador, haverá uma predisposição de
modelos internalizados que podem determinar a visão do mundo, do outro e de
si próprio, e estimular comportamentos distintos da criança frente a uma
determinada situação.
A construção do padrão de apego inicia-se com o nascimento do bebê e
a medida que a criança cresce, vai internalizando essa forma de relação,
formando um estilo de reação que se amplia para todas as formas de
relacionamento
O apego é um sistema comportamental interno que controla a propensão
estável para a busca de proximidade da pessoa ou objeto de apego. Os
comportamentos de Apego são intermitentes e variam de acordo com
circunstâncias próprias do indivíduo e da situação; podem variar desde um
contato quase imperceptível, como troca de olhares e sinais, ou busca de
proximidade, como chorar, comer, agarrar etc. Apesar desse sistema
permanecer ativo durante todo ciclo vital do indivíduo, o sistema tem seu
desenvolvimento durante a infância.
Já em 1969, Bowlby (1990), afirmava que até os três anos de idade esse
padrão é predominantemente uma propriedade da relação, e, com o
crescimento da criança, vai se tornando característica da personalidade e tende
a persistir , já que a relação estabelecida entre ela e seu cuidador tende a
permanecer a mesma, a menos que haja alguma influência renovadora.
2
Temperamento é a personalidade primitiva observada ao nascer ( emoções, motricidade, vigor,
resistência e tendência na busca da interação ).
29
A partir do primeiro ano de vida, o comportamento de apego passa a ser
mediado por sistemas comportamentais cada vez mais complexos, incorporando
modelos representacionais do self e do mundo. O termo “Internal Working Model
“, criado por Bowlby, é definido como representações mentais internalizadas,
carregadas de afetividade, do self, do outro e da relação estabelecida que
organizam a memória desses comportamentos e da relação entre eles e que
servem de base para a percepção e interpretação do mundo. Tais modelos
como estão diretamente ligados à percepção do indivíduo, dependem do seu
repertório de visão e percepção de seus mapas prévios.
Um modelo representacional seguro pressupõe que o indivíduo perceba o
outro e a si próprio com perspectiva positiva da relação, sentindo-se
merecedor de apoio, afeto e conforto, sabendo buscá-los quando necessário.
Um modelo representacional inseguro ou evitador já é visto como negativo pela
alta freqüência de situações vividas como rejeitadoras e inconsistentes, o que
favorece a baixa auto-estima e pouca eficiência para conseguir apoio e atenção.
Em muitos casos, a busca por atenção é realizada de forma confusa,
confirmando a rejeição e a falta de disponibilidade do outro.
O desenvolvimento do apego na criança está intimamente ligado ao
desenvolvimento cognitivo e motor, dependendo da interação, maturação e
aprendizagem.
A teoria de Bowlby e Ainsworth (1990), explica como e por que as
crianças e seus pais criam vínculos no primeiro ano de vida e como as
experiências interpessoais no contexto de apego se desenvolvem e se
transformam em relacionamentos amorosos.
A teoria de Bowlby se propõe a estudar e analisar:
a) a propensão do ser humano para formar fortes vínculos afetivos com
outros seres humanos;
b) as várias formas de perturbação emocional que ocorrem quando os
vínculos são ameaçados ou rompidos;
c) a construção , ao longo da infância de modelos mentais de si próprio e do
outro e da possibilidade de relacionamento interpessoal;
d) A maneira como os modelos mentais se tornam componentes centrais da
personalidade, regulando a percepção, o sentimento e o comportamento
do ser humano.
30
Para explorar esses padrões é necessário descrevê-los:
No apego seguro, a relação estabelecida entre o cuidador e a criança é
de sensibilidade e observação das suas necessidades e assim, a partir dessa
relação de entendimento recíproco, de confiança, de satisfação das
necessidades, a criança passa a ter boa auto-estima e uma visão positiva da
vida e do outro. As famílias que estabelecem tal padrão possuem boa
comunicação familiar, narram lembranças de experiências de vida, situações
dolorosas, experiências traumáticas com o objetivo de resignificação da
experiência com perspectivas positivas.
No padrão de apego ambivalente, a relação estabelecida é também
ambivalente. Existe o medo da rejeição, a desconfiança, caracterizando-se por
um apego desorganizado. O cuidador, em alguns momentos , faz-se presente e
sensível, em outro está ausente e pouco sensível, assim a criança se torna
mais insegura e confusa, com tendência à baixa auto-estima. As famílias que
possuem maior tendência de estabelecer esse padrão muitas vezes vivem
situações traumáticas e estressantes, com memória parcial de suas histórias de
vida. A comunicação e a reflexão são evitadas, por gerarem medo e dor
emocional. Os sentimentos vividos são de raiva , angústia e confusão.
No padrão de apego evitador, as relações afetivas são de hostilidade e
evitação, levando a um desconforto com a intimidade, assim evitando a relação
afetiva. Nas famílias com tendências a esse padrão, as crianças aprendem a
tratar as pessoas como algo sem importância, e muitas vezes, persistem nesta
indiferença. Em alguns casos, idealizam suas experiências e negam as
recordações de histórias vividas .
Bentovim (1992) descreve outros dois padrões de relação mais
específicos nas situações de violência e de estresse. O padrão da reedição ou
inversão, descrito como um tipo de vínculo afetivo inseguro e abusivo,
caracterizado pela raiva, pelo abandono, pela ameaça, por abusos e por
situações de violência constantes nas relações. As crianças, adolescentes e
adultos, em tais circunstâncias, ficam muito agressivos, ambivalentes e
fechados em um mundo de ameaças e agressões. Outros podem adotar uma
postura complacente nas relações e identificam-se no papel da vítima. Os
papéis de vítimas e agressores podem se inverter, já que ambos podem ser
vítimas e agressores.
31
Por último, o padrão desorganizado, descrito por Lyons & Jacobvitz
(1999), como um padrão caracterizado pela confusão, angústia, raiva e aflição
causadas por situações traumáticas vividas na família.
A teoria do apego nos fornece indicadores de como os vínculos foram
construídos na família e, portanto, frente a situações-limite e de estresse
podemos observar mais ou menos dificuldades em enfrentá-las. Indivíduos cujo
padrão de apego é ambivalente ou evitador possuem maior tendência de
estabelecer vínculos em que a violência está presente na relação.
O padrão evitador e também o padrão da reedição, descritos por
Bentovim (1992) estabelecem um tipo de relação facilitadora de transtornos
emocionais para o indivíduo. Além da desorganização, as reações frente à
vitimização podem passar de um momento para o outro da raiva intensa à
depressão, à euforia, à impotência e a sentimentos de culpa. Também se pode
apresentar uma reação tardia, descrita como estresse pós-traumático nos
manuais de diagnósticos psiquiátricos (PTD: Post-Traumatic Disorder,1987). O
PTD consiste em uma série de transtornos emocionais ocasionados por
situações traumáticas. Algumas delas, descritas nos manuais de diagnóstico
psiquiátricos, são: pesadelos noturnos, dificuldade de concentração, transtornos
do sono, dificuldades de aprendizagem, depressão , sentimentos de culpa,
medos e pânico, amnésia.
Segundo Bowlby, os padrões de apego podem se transformar durante a
vida , tanto positiva como negativamente. A partir de uma experiência de apego
seguro, o indivíduo pode mudar a sua forma de estabelecer vínculos e seu estilo
de reação.
Sluzki ( 1994), em seus estudos, assinala seis níveis de efeitos da violência
para o indivíduo nas suas relações , segundo uma combinação de variáveis - o
nível de ameaça percebido pelo indivíduo e a freqüência da conduta violenta
que determina a diferenciação dos efeitos desta.
1. Dissonância cognitiva. Quando se produz uma situação de violência de
baixa intensidade em um contexto, num momento inesperado. A reação é
de surpresa e de impossibilidade de integrar esse novo dado na
experiência de vida. É o caso de mulheres ou homens que vivem o
primeiro episódio de violência.
32
2. Ataque e fuga. Quando se produz uma situação de violência de alta
intensidade, de um modo abrupto e inesperado. Nesse caso pode
desencadear-se uma reação psicofisiológica de alerta para ataque ou
fuga. É o caso de pessoas que vivenciam o ciclo inicial da violência e
ficam surpreendidas com o acontecimento. A surpresa deste desencadeia
o ataque ou a fuga.
3. Inundação e paralisação. Quando se produz uma situação de violência
extrema que implica em alto risco para a integridade da vida. A reação
pode desencadear alterações do estado de consciência, desorganização,
e ainda causar a síndrome do estresse pós-traumático (citada acima).
Algumas mulheres descrevem essas experiências como paralisação
frente a situações de ameaça com armas, seqüestros, torturas. Segundo
o autor, a diferenciação dessa situação se dá pelas variações toleráveis
para o indivíduo, ou seja, do quanto o fato ocorrido está na variação das
fronteiras do tolerável e do intolerável. Um ato extremo de violência
destrói a capacidade de construir a história e de criar uma narrativa
coerente. Muitas vezes escutamos algumas narrativas que são possíveis
para aquele indivíduo, nas quais ele acredita que consegue ter algum
controle sobre os eventos e fugir de sua história.
4. Socialização cotidiana. Quando situações de maus tratos de baixa
intensidade se transformam em habituais e são considerados normais,
como as desqualificações, humilhações; pelo fato de serem habituais e
normais, causam um efeito anestesiante e paralisador do pensamento e
também da ação.
5. Lavagem cerebral. Quando as ameaças, as coerções e humilhações
são intensas e persistentes, passando a fazer parte do sistema de
crenças, como um modo defensivo frente às ameaças. Um exemplo são
mulheres ou homens que, nessas circunstâncias, sentem-se culpados e
merecedores das humilhações, ou seja, da ação do outro.
6. Embotamento e submissão. Quando as experiências aterrorizantes são
extremas e freqüentes. O efeito causado nessa situação é de
intumescimento psíquico, ou seja, um viver desconectado das emoções e
dos sentimentos. Um viver sem passado ,sem presente e sem futuro.
Em muitos casos, a vítima está submetida ao agressor e possui empatia
33
com este como forma de sobrevivência da sua auto-imagem. Trata-se de
casos de abuso sexual e outros abusos familiares.
Este olhar sobre o sistema individual não exclui o sistema familiar; ambos se
inter-relacionam, porém a proposta é diferenciar as relações individuais na
família.
Quando a violência familiar é um padrão de relação constante e está
presente também nas gerações anteriores, os vínculos familiares tendem a ser
ambivalentes, evitadores, abusivos e desorganizados; seus efeitos serão
distintos para cada membro da família.
Tais famílias, quando estão em tratamento, possuem dificuldades em
confiar no terapeuta e necessitam que este possua muita habilidade para co-
construir um vínculo seguro.
Quando se trata de famílias que pelo menos o pai ou a mãe possuem boa
capacidade de estabelecer vínculos afetivos, a terapia passa a ser um espaço
menos ameaçador, de expressão de sentimentos como o medo, angústia e, ao
mesmo tempo, de confiança e esperança.
O terapeuta que estabelece um padrão de apego seguro com seu cliente
ou com a família que atende pode ser um colaborador para a mudança de
padrão de relação e seu estilo de reação. Nesse contexto clínico, a criação do
espaço de confiança para a comunicação e reflexão são fundamentais para um
novo padrão familiar de não-violência.
2. FAMÍLIA: CULTURA E INTERGERACIONALIDADE
A família possui uma organização complexa: é formada por um grupo de
pessoas com diferença de idade, de sexo, vivendo momentos distintos do ciclo
vital, com necessidades e objetivos diversos; um grupo que, inserido na rede
social, recebe e transmite informações do ambiente privado para o social e vice-
versa sempre em um movimento constante de adaptação. Assim, na
sociedade em geral, a família é vista como uma entidade que situa e legitima o
indivíduo em seu espaço social, tendo essa função maior importância, ainda
34
mais uma sociedade orientada para a família, como a brasileira. (Macedo,
1994).
A família é transmissora da cultura, de suas crenças e mitos, e muitas
vezes estes se perpetuam por gerações. Também são criados para explicar
situações não compreendidas pela família e muitas vezes estão baseados em
experiências de vida originais daquele grupo.
Cada família possui uma cultura própria que está inserida em uma
cultura mais ampla, a comunidade e a sociedade, que também determinam
regras de conduta e de funcionamento da família. Para Morin (2002), a cultura
é o conjunto de hábitos, costumes, práticas, saberes, regras, normas e
interdições.
As regras culturais nos servem de base e limite para o comportamento e
são diferenciadas por gênero e pela etapa do ciclo vital. Muitas das
características femininas ou masculinas não são biologicamente definidas, mas
construídas socialmente. O valor do sexo e do gênero numa família pode estar
relacionado com suas histórias e vivências no contexto em que está inserida,
ou seja, sua cultura.
Na terapia familiar, a família é, portanto, um sistema aberto em
transformação, inserido em outros sistemas e formada por subsistemas. As
famílias de origem, parentes e amigos fazem parte desses sistemas, que se
interconectam.
Encontramos algumas definições do termo “família” em textos de
antropologia, sociologia, direito, psicologia e, na maioria deles, estabelece-se a
distinção entre família nuclear e família extensa, dependendo do objetivo de
estudo. Também se levantam algumas funções fundamentais desses núcleos
humanos: cooperação econômica, socialização, educação, reprodução e
relação sexual.
De acordo com as diferentes definições, os indivíduos se unem por razões
biológicas, psicológicas e sócio-econômicas, independentemente do status
jurídico das uniões. A família pode ser considerada como um grupo social
primário, com o objetivo de cumprir as funções básicas de reprodução da
espécie e transmissão da cultura às novas gerações. Segundo Ferrari ( 2002,
p.28), pode-se definir família como “ a constituição de vários indivíduos que
compartilham circunstâncias históricas, culturais, sociais, econômicas e
35
afetivas”. A família é uma unidade social emissora e receptora de influências
culturais e de acontecimentos históricos, que possui uma organização própria
de funcionamento. Cada membro familiar possui uma função nessa
organização. Assim, segundo Macedo (1994, p.64), “o propósito da família seria
prover um contexto que supra as necessidades primárias de seus membros,
referentes à sobrevivência – segurança, alimentação e um lar -, ao
desenvolvimento – afetivo, cognitivo e social – e ao sentimento de ser aceito,
cuidado e amado”.
Podemos dizer que a família mudou e ao mesmo tempo é como era. Isso
quer dizer que, se observarmos a família, esta mudou: está mais aberta ao
mundo ; um casal , uma vez constituído , tem sua história própria , sua biografia,
é uma unidade baseada na comunicação ou intimidade emocional ( Giddens,
2000); convive com divórcio, outros casamentos e com a redução da
formalização legal do casamento; maior afastamento da família extensa;
dificuldades em estabelecer hierarquias e normas de funcionamento; o tabu
familiar passa ser a morte e não mais o sexo. Ao mesmo tempo, segundo
pesquisas sobre a família paulista de Cerveny e Berthould (1997), algumas
crenças ligadas à família tradicional continuam presentes, como: o casamento
como uma forte instituição; o marido como provedor da família; o amparo
emocional como função da mulher. De certa forma, alguns pontos centrais da
estrutura familiar, como esses citados, impossibilitam mudanças mais profundas
na sua organização, ocasionando tensão nas relações, já que o contexto social
não é o mesmo.
No contexto clínico, a primeira questão é: o que é família e quem é
família para esse grupo? Onde moram? Como moram? Para conhecê-la,
precisamos estudar o seu entorno, sua cultura, suas crenças e mitos.
As variações de organização que um grupo adota acompanham desde
mudanças de uma escala global às mudanças estruturais da sociedade em um
determinado tempo histórico.
O objetivo não é aprofundar uma discussão sobre diferentes critérios
teóricos para definir família, mas privilegiar algumas características de relações
familiares geradoras de violência.
Se pensarmos no significado do termo família, lembraremos que, implícito
neste, termo existem noções míticas que aprendemos nas histórias infantis, nas
36
escolas, que mostram a família como um centro ideal de realização afetiva,
segurança, compreensão e reciprocidade. Segundo Macedo(1994, p.63), “ Em
termos de estrutura e função, entretanto, nota-se algo mais no imaginário
coletivo: a atribuição à família de qualidades ideais que se referem ao refúgio
seguro para onde se volta depois das batalhas do cotidiano – lugar de paz, amor
e harmonia entre pessoas, onde reina a camaradagem, a fraternidade”.
Mas os dados empíricos demonstram que a família, por ser um espaço
de intimidade e privacidade, tende a ser conflituosa. A noção mítica de família,
juntamente com os dados empíricos , mostram realidades antagônicas e assim
pode parecer que, para ser uma família amorosa e feliz, não deveria haver
conflitos. Os conflitos são inerentes à vida familiar e não necessariamente
geram violência. Negar a existência do conflito pode contribuir para o sintoma
de violência familiar.
Vários estudos salientam a transmissão intergeracional de padrões de
relações familiares. A família é onde se aprende a viver, a se relacionar,
ensina-se a olhar o mundo. Portanto, se a forma aprendida é por meio da
violência, a tendência será que, nas novas gerações, esta continue como uma
forma de interação.
Nas pesquisas de Gelles e Strauss (1987), quanto mais violentos são os
pais com os filhos , mais violentos serão estes filhos com seus irmãos e
futuramente com sua família, ou seja, segundo este autor, existe uma tendência
da violência ser transmitida para outras gerações com maior intensidade.
Na prática clínica, observamos a importância do trabalho com a família de
origem, que facilita a exploração das histórias familiares. Quando a família não
pode estar presente, o mapeamento e as histórias dos familiares também
propiciam a compreensão de ações do presente, vindas do passado. Em casos
de violência familiar e abuso, os membros da família aprendem que “ as
pessoas a quem ama batem em você“ e portanto, “quando gosto de alguém,
também devo bater , devo fazer o mesmo que me fizeram, ainda que cause
dor”. Para desconstruir uma forma de relacionamento, é necessário voltar às
origens da família.
Por que a família é uma instituição mais propensa à violência do que ao
cuidado? Que situações podem favorecer a violência familiar?
37
A partir de pesquisas realizadas por Gelles y Strauss em 1987, foram
levantados onze fatores facilitadores da violência. Dentro destes fatores, os
autores observaram aspectos que diferenciam as famílias violentas
“abusadoras“ das famílias violentas “normais”. ( Gelles y Strauss, apud
Bentovin, 1992. p.3 ) Considero esses fatores importantes para servir de guia a
uma observação minuciosa da família.
1-O tempo pode determinar risco: quanto mais tempo a família fica junto,
maior a oportunidade para surgirem problemas e violência quando se trata de
uma família com dificuldades de resolução de conflitos .
2-Atividades e temas de interesse familiar: interação em contextos
distintos podem ser favoráveis à violência, possivelmente pela complexidade da
situação. O esforço de adaptação a contextos diferentes pode trazer mais
estresse familiar.
3-A intensidade dos vínculos interpessoais: padrões de comunicação,
alianças, limites e emoções podem ser pontos vulneráveis de uma família.
4-Conflitos nas decisões familiares: como a família lida com as
diferenças. A competição, diferenças de gênero e poder, castigos e obediência,
são tópicos a serem observados.
5-O poder e direito culturalmente adquiridos para determinar
comportamentos e atitudes e influir nos valores dos outros membros da família:
este item complementa o anterior e, a meu ver, está relacionado ao
funcionamento da família e ao poder. Qual o momento do ciclo vital ? Qual o
regime vigente? Democracia familiar ou autoritarismo ?
6-As diferenças de idade e sexo: complexidade nas interações e
diferenças no ciclo vital.
7-As funções atribuídas por diferenças de gênero e idades: relações
definidas por meio de uma construção social e, no caso nas famílias de baixa
renda, muitas vezes por necessidade ou pela falta de um adulto, uma criança
realiza uma função como cozinhar para os irmãos menores.
8-O caráter privado do meio familiar: o direito à privacidade familiar,
embora, ao mesmo tempo essa privacidade pode ser perigosa e silenciadora.
9-Pertencimento involuntário: existe uma dialética constante entre, por
um lado, a autoridade do Estado e os direitos da criança e adolescentes de
serem protegidos e, por outro, considerar as crianças e adolescentes membros
38
involuntários de uma organização – Família - cuja integridade deve ser
protegida.
10-O estresse familiar: momentos do ciclo vital, acontecimentos como
mortes precoces e perdas podem gerar muito sofrimento.
11-O conhecimento íntimo da vida de cada membro da família: por um
lado pode criar intimidade entre os familiares, mas, por outro, pode favorecer a
fragilidade e o medo. Pode ser sentido como zonas de ataque, que deixam o
indivíduo vulnerável.
Além desses onze fatores , considero o espaço físico de moradia da
família e seu contexto como facilitadores da violência familiar. Uma família
numerosa, habitando um espaço de 12m² à 20m², com pouquíssima privacidade
, cujas necessidades básicas não podem ser satisfeitas, é um grande agente de
estresse familiar, assim como os condições do local, bairro ou região.
Todos esses fatores podem aumentar a vulnerabilidade da família,
transformando conflitos inerentes à vida familiar em fatores de risco. Dentre
eles, os que estão presentes de forma implícita ou explícita e que são centrais
na organização familiar são poder e gênero. Quem é o chefe da família ? A
estrutura de poder tende a seguir critérios de gênero e idade.
3. GÊNERO, PODER E MITOS NA FAMÍLIA.
As diferenças de gênero, as relações de poder e mitos fazem parte da
cultura familiar e social e são temas interligados. Numa visão macro, podemos
constatar que alguns estudos de gênero, nas últimas décadas, mostram
claramente a vigência de estereótipos culturais que atribuem mais valor ao
gênero masculino do que ao feminino, apesar do conceito de gênero não
explicitar desigualdades nas relações entre homens e mulheres. Esta
desigualdade de gênero não é colocada previamente, mas é construída
socialmente, baseada nos comportamentos sexualizados ditos masculinos ou
femininos.
Assim, gênero refere-se preferencialmente às relações entre pessoas em
termos de características masculinas ou femininas, independentemente do sexo
biológico. Força, coragem e agressividade são algumas das características
39
masculinas e afetividade, submissão e doçura são consideradas femininas. A
partir dessa constatação, o homem detém o poder na nossa sociedade, mas
nem sempre em uma visão focalizada na família é o que sucede. Muitas vezes,
observamos famílias em que a mulher é a detentora do poder, e muitas vezes
essa posição foi construída nas gerações anteriores. Assim, observar as
relações de poder é fundamental para o estudo do funcionamento familiar e da
violência.
O modelo de funcionamento familiar pode intensificar ou minimizar as
relações de poder e as diferenças de gênero. Em função da intensidade dessas
variáveis, os conflitos existentes na família tendem a uma negociação ou a
permanecer como conflito. .
Um modelo autoritário possui como característica a unidirecionalidade,
uma estrutura de poder cujas normas estabelecidas partem de cima para baixo.
É um modelo gerador de violência, que normatiza e legitima formas de abuso,
principalmente violência física e sexual dirigidas à criança, em decorrência das
normas relativas à obediência e respeito. Um modelo democrático familiar ,
chamado por Giddens (2000) de democracia das emoções, não implica na
ausência da autoridade e, sim, na presença, prevalecendo a igualdade de
princípios e a reciprocidade. Para este autor, na democracia familiar, a
autoridade dos pais deveria ser baseada em um contrato implícito, no interesse
de todos. Tal modelo não implica em falta de disciplina ou ausência de respeito
mas pressupõe hierarquias distintas e legitimidade das diferentes vozes. É um
modelo que aceita as obrigações e direitos, também legais, que favorece a
proteção e o cuidado na família.
Assim, essas variáveis, como o modelo familiar, poder e gênero,
permitem delimitar possibilidades de risco da violência familiar.
Quanto às diferenças de gênero em uma família, podemos observar que,
dependendo do sexo, a criança é tratada de uma determinada forma desde seu
nascimento, com variações, dependendo da cultura familiar e da cultura mais
ampla da qual a família faz parte, como a maneira de se vestir, as cores das
roupas, comportamentos que serão valorizados ou desvalorizados com o
objetivo de cumprir um padrão social e familiar do ser homem e mulher .
Muitas vezes, a preferência por determinado sexo em uma família ou em
uma comunidade está ligada ao valor atribuído a ele. Para Hare-Mustin e
40
Marecek ( 1990 ), gênero não é somente uma propriedade individual , mas uma
relação socialmente prescrita, um processo e uma construção social. Aceitamos
o masculino e feminino como algo absoluto, ancorado num conjunto de idéias,
mitos e valores determinantes do comportamento, normatizados pela
sociedade.
Muitas vezes ouvimos em nossa clínica relatos de conflitos ancorados em
preconceitos sobre a identidade sexual, ser homem ou mulher e a vivência de
um sentimento secreto de fracasso a esse respeito. Quando um homem relata
ser muito sensível, dependente , estar triste , sentir-se um fracassado, ou
quando uma mulher expõe o medo de terminar uma relação, sua
responsabilidade nas dificuldades com filhos, estão expressando a idéia de que
têm um comportamento condizente com o que se espera de seu sexo e que
aprenderam em suas famílias, por intermédio de sua cultura.
Para Peggy Penn (2000, p.91), “ A identidade sexual é uma propriedade
orgânica de nossa co-construção de histórias e, já que ela é auto-referencial em
razão do fato de que nós somos seres sexuados , reforça posições cibernéticas
de segunda ordem junto ao observador- participante, tanto para a família quanto
para nós.”
Nestes últimos anos, com a perspectiva feminista, conceitos e
pressupostos teóricos foram e têm sido reavaliados, refletindo de forma mais
precisa os dilemas sócio-políticos que as famílias enfrentam.
Podemos perceber que nem todos os indivíduos de uma família têm as mesmas
opções, oportunidades e que o terapeuta não está neutro neste processo, pelo
contrário , sua atuação vai além da esfera familiar.
Segundo Breunlin, Schwartz, Mac Kune-Karrer (2000), durante a década
de 50 nos Estados Unidos, os papéis históricos / geracionais da sociedade
eram de que os homens deveriam ser treinados para serem provedores e as
mulheres, donas de casas e cuidadoras dos filhos; na família paulista ainda se
esperam essas funções para homens e mulheres. (Cerveny e Berthoud, 1997)
O estudo de gênero propicia ampliação do pensamento, transcende o
biológico e permite a visualização do desenvolvimento cultural e histórico,
considerando as diferenças religiosas , raciais, étnicas etc. Podemos, então,
observar como as diferenças entre os sexos determinam diferenças sociais e
relações de poder. Para Izquierdo (1994), não seria o sexo o fator
41
desencadeante das diferenças, mas a maneira em que ele é significado
socialmente.
Segundo Hare-Mustin e Marecek (1990), é necessário pensar não
somente no significado de gênero, mas de que forma o contexto social legitima
o poder.
As diferenças entre homens e mulheres se tornaram bem evidentes.
Determinadas profissões, tidas como masculinas tais como cargos de chefia,
de gerenciamento , nos quais são tomadas decisões importantes, representam
um lugar de poder . As profissões tidas como femininas não têm o mesmo
valor, pois lugar da mulher é em casa , como cuidadora dos filhos. O lugar do
homem, do pai, é o de provedor e guardião da família, assim, pela
desigualdade de gênero e de sexo , estabelece-se a relação de poder e
hierarquia na família e na sociedade.
Há pouco tempo, o homem possuía legalmente direitos em relação à
família e muitos atos de violência de sua parte em relação à mulher e a
criança eram legitimados pela lei.
Se voltarmos na história, à época dos Romanos, Constantino, o Grande
imperador, assassinou sua esposa Fausta, filha de Maximiano, quando ela não
lhe servia mais para assegurar seu poder. Torturou-a e a escaldou em uma
caldeira de água fervente.
Na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes, enterram-se as mulheres
consideradas adúlteras em praça pública, e os homens lhes atiram pedras até
morrerem. Até hoje ainda ela é castigada com mutilações físicas, e as fontes
históricas asseguram que, entre 1450 e 1800, mais de 80% de pessoas
torturadas no mundo eram mulheres. Além da violência física, a violência verbal
faz parte do cotidiano das famílias. Resulta, evidentemente, que a vitimização
geralmente é exercida sobre grupos vulneráveis, considerados inferiores e que,
como tal, a sociedade discriminou com hostilidade e violência.
A “passividade feminina” é um estereótipo construído culturalmente, um
mito que coloca as mulheres em posição de vítima, por serem mulheres. A
passividade passa a ser um atributo do feminino, com características de
submissão, obediência, propensão a serem atacadas, pouca capacidade de
defesa, medo frente à força e ao poder do agressor, reforçada pela psicanálise
de Freud. Um levantamento da Organização Mundial de Saúde (2003), conclui
42
que 70% das mulheres assassinadas entre 15 e 44 anos foram mortas por
homens com quem mantinham ou haviam mantido algum tipo de relacionamento
amoroso. A Fundação Perseu Abramo constatou que 2,1 milhões de mulheres
são espancadas a cada ano no Brasil, e 43% das brasileiras foram vítimas de
violência doméstica em algum momento da vida.
No entanto, atualmente temos estatísticas bastante elevadas da violência
da mulher em relação ao marido ou ao homem. As estatísticas não são
fidedignas pelo fato de os homens não delatarem as agressões sofridas. Com
auxílio de técnicas sutis e silenciosas, as mulheres conseguem ser bastante
perversas, quando querem.
De certa forma, construímos mitos (ver definição adiante) sobre a
violência e carregamos mitos familiares que ditam regras de conduta, trazem
ensinamentos baseados nas histórias de origem da família. Da mesma forma
que são organizadores , se houver muita rigidez, podem aprisionar o sistema
familiar, dificultando o crescimento de seus membros e comprometendo sua
adaptação à vida. Todas as famílias possuem crenças e mitos que organizam o
modo de ser daquele sistema. Fazem parte da cultura familiar e muitas vezes
se estendem na cultura mais ampla. A partir do conhecimento dos mitos
familiares, podemos compreender crenças originais da família.
Antonio Ferreira (1974, p.156 ), foi o primeiro a usar o termo mito
familiar. Para o autor, trata-se “ do conjunto de crenças bem sistematizadas e
compartilhadas por todos os membros da família com respeito a seus papéis
recíprocos e à natureza das suas relações. Os mitos familiares contêm muitas
das regras secretas da relação, regras que se mantêm ocultas, submersas na
trivialidade dos clichês e das rotinas. Como deixa transparecer sua
operatividade, alguns desses mitos estão de tal maneira integrados com a vida
diária que se convertem em parte inseparável do contexto perceptual com que
os membros da família representam sua vida em comum”. Essas crenças
organizadas mantêm e justificam os padrões de relações, são compartilhadas
e apoiadas por todos os membros como se tratassem de verdades únicas .
Os mitos são o ponto central dos processos familiares, mantendo a
homeostase do sistema. Oferecem as regras de conduta, definem as funções,
percepções e são pontos centrais, em torno dos quais giram esses processos.
Existe um grande esforço para a família manter o mito.
43
Na definição proposta por Bagarozzi e Anderson (1996), os mitos se
modificam, são conscientes e compartilhados pelos membros da família. Alguns
se mantêm persistentes, mas outros evoluem. Outros autores, como Mircea
Eliade (1998, p.11), enfatiza a dimensão do sagrado: “mito é uma realidade
cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através
de perspectivas múltiplas e complementares.” Mais adiante: “O mito conta uma
história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o
tempo fabuloso do princípio ”. O que parece interessante nesta definição é o
fato de ser uma narrativa da criação, da origem de como algo foi produzido.
Assim, fica evidente a sua força , estando relacionada ao sagrado e às origens,
na tentativa de explicar o inexplicável.
Os mitos familiares possibilitam viver como profecias, histórias já
conhecida, e muitas vezes surgem a partir de lacunas não explicadas e difíceis
de compreensão, com o objetivo de diminuir a ameaça do inexplicável. As
crenças não possuem o poder e a força dos mitos, mas lhes dão suporte.
No atendimento clínico à família, fica muito evidente a força do mito.
Quando ele aparece, a sensação como terapeuta é de estar diante de um muro.
Em todos os casos, o reconhecimento desse obstáculo e a reflexão sobre a
necessidade de sua existência, são etapas necessárias para a flexibilização
dessa força tão poderosa. Quando se trata de um mito em torno do tema
violência, isso porque em muitas situações a trama da violência faz parte da
construção mítica familiar, a sensação enquanto terapeuta, é de estar diante de
uma muralha. Nesses casos, trata-se de histórias de violência presentes na
família de origem, assim como na atual, repetidas por várias gerações e
valorizadas pelo poder outorgados por elas e pela intergeracionalidade, ou
seja, quando a violência é o mito familiar e possui valor constitutivo.
O terapeuta também possui seus mitos familiares e profissionais que
devem ser sempre revistos, tanto para o atendimento clínico, como para sua
vida pessoal.
Nos atendimentos, como nos grupos de supervisão e consultoria, surgem
vários mitos relacionados ao tema da violência por parte de profissionais da
saúde, médicos, psicólogos, advogados, que me chamam a atenção como:
também o levantamento feito por Corsi ( 2001) sobre os mitos da violência;
44
1- Os casos de violência familiar não representam um grave problema.
As estatísticas indicam que mais de 43% das mulheres já sofreram algum tipo
de violência na família. É um índice bastante elevado, que merece muita
atenção.
2- A família é lugar seguro para crescer.
É nas famílias que ocorre o maior índice de violência . A família pode ser um
lugar seguro para crescer , embora o contrário também aconteça.
3- Os agressores são, na sua maioria, homens.
A
té há pouco tempo, as estatísticas mostravam as mulheres como vítimas;
quando agrediam, o motivo era sempre defesa pessoal. Mas sabemos que
isso acontecia pelo fato de os homens agredidos não procurarem por ajuda,
por motivo de vergonha.
4- A violência familiar é um fenômeno que ocorre nas classes mais
empobrecidas.
Esta relação não é verdadeira, apesar de a pobreza e a exclusão social serem
fatores de risco da violência. Ela ocorre em todos os níveis sócio-econômicos.
5- A violência familiar é produto de algum tipo de patologia mental.
Não necessariamente precisa haver alguma patologia. É uma conduta
aprendida nas relações familiares, que se define como um recurso possível
para resolução de conflitos.
6- O consumo de álcool é a causa de comportamentos violentos.
O álcool pode ser um fator desencadeante da violência. Não é a causa.
7- Se existe violência , não pode haver amor na família.
Como amor e ódio são sentimentos humanos e fazem parte das relações
familiares, o amor pode existir e ser muito intenso nestas famílias.
8- As mulheres que são maltratadas pelos maridos, gostam. Por isso
continuam juntos.
As mulheres mal-tratadas pelos maridos sofrem muito, mas geralmente
aprenderam a serem maltratadas em suas famílias de origem e muitas vezes
desconhecem outra forma de relação.
9-A violência física e sexual é séria, mas a violência psíquica, não.
A violência psíquica deixa marcas na alma. Ela bloqueia os processos
psíquicos do indivíduo.
45
10- A conduta violenta é algo inato. A violência é aprendida.
Algumas teorias focalizam a violência como um distúrbio de comportamento
que possui origens orgânicas e genéticas.
11-O risco da violência sexual é maior na rua.
As estatísticas nos mostram que a maioria dos casos de violência sexual
ocorrem no espaço doméstico.
4. SISTEMA SOCIAL
Ao iniciar este tema deparei-me com a amplidão e com a complexidade
de relações e conexões de uma rede extensa que forma o sistema social. Para
compreender a rede social, é necessário rever sua estrutura e utilizar os
conhecimentos da teoria social, da sociologia, da filosofia, da biologia, da
ciência da cognição e de outras disciplinas.
Para Capra (2002), sistemas sociais envolvem não só seres humanos
vivos como também a linguagem, a consciência e a cultura. Esse mesmo autor
ressalta a preocupação de Luhmann em identificar a comunicação como
elemento central das redes sociais e um modo de reprodução em que cada
comunicação cria pensamentos e significados que darão origem a outras
comunicações, de tal modo que a rede inteira se reformula. Como as
comunicações se dão de modo recorrente em múltiplos anéis de realimentação,
produzem um sistema comum de crenças, explicações e valores, construindo
um contexto comum de significado que é continuamente sustentado por novas
comunicações.
Segundo Capra ( 2002), no contexto comum de significados, cada
indivíduo adquire sua identidade como membro da rede social, e assim a rede
gera o seu próprio limite externo. Para o autor, não se trata de um limite físico,
mas de um limite baseado na intimidade, lealdade, conservado e renegociado
pela rede de comunicação. Lembrando que a comunicação humana é
caracterizada por uma contínua coordenação de comportamentos, e por
envolver o pensamento conceitual e a linguagem simbólica, ela gera imagens
mentais, pensamentos e significados. Podemos pensar que estas redes de
46
comunicação geram contextos de significado como também regras de
comportamento.
Dessa forma, o sistema social determina e ao mesmo tempo é
determinado pelo contexto antropológico, geográfico, cultural, histórico`e
econômico, em um processo recursivo, com a idéia de um círculo recorrente.
Dependendo da lente que utilizamos, podemos estudar desde um bairro ou
uma comunidade até além do globo terrestre. Assim, o sistema social possui
um papel muito importante para o indivíduo e sua família, na medida que
influencia a dinâmica familiar e ao mesmo tempo é influenciado por ela, estando
sempre em movimento.
Uma sociedade, com suas normas e cultura (def. p.37), legitima ou
renega atos e comportamentos, reproduzindo, nas relações familiares, suas
convenções culturais e sociais e, ao mesmo tempo, a sociedade recebe e sofre
influências das interações e significados criados nas famílias. O sistema
social possui uma função reguladora, estabelecendo limites de comportamentos
e ao mesmo tempo sendo auto regulado pelo sistema familiar e por outros
sistemas mais amplos,como as comunidades e sociedades.
Para Arnon Bentovim (1992), todos os sistemas são importantes quando
se trata de violência: o sistema individual , o sistema familiar e o social. Para o
autor, o indivíduo se conecta tanto com a sua família como com a sociedade.
Na sua família, o indivíduo co-constrói significados e ações e é, de certa forma,
sociabilizado por ela. Na sociedade, ele aceita as regras e interdições ou as
desafia e, ao mesmo tempo, a sociedade identifica-o, aceitando ou não
publicamente seu papel social.
Esse mesmo autor, quando descreveu as relações entre o indivíduo, a
família, a sociedade e a violência, desenhou a violência como um elemento de
intersecção entre os sistemas, deixando-a como um elo de ligação entre eles.
Dessa forma, quando existem níveis elevados e alta freqüência de violência nas
famílias, provavelmente está havendo uma permissividade da mesma, tanto
no nível social, como no familiar e no individual. Nessa interação, vão sendo
criados significados legitimados sobre atos de violência. O indivíduo e a
família, nesta circunstância, podem perder sua capacidade de conter seus
instintos e de diferenciar seus atos e os de seus próprios familiares. Para
47
Bentovim, a sociedade, a família e o indivíduo criam formas de violência e são
criados por ela.
Vivemos em uma era em que o indivíduo , a família e a sociedade
abriram as portas para um novo veículo coadjuvante na construção da
identidade, que tem sido a mídia. Por um lado, ela possui um grande poder de
comunicação e informação; por outro , segundo Lipovetsky ( 2004), a partir de
suas mensagens, determina as normas e valores de um grupo que
anteriormente estava a cargo das famílias e das igrejas.
A todo momento estamos expostos pelos meios de comunicação –
jornais , revistas, TV - a cenas de violências de diversas naturezas. Exemplo
disso: “ Novos Tempos- O crime da menina de Brasília é um fenômeno
inerente à globalização “ ; “Mais um - o pai não é mais intocável. Pôde virar
simplesmente um empecilho a ser eliminado. “ ( jornal O Estado de São Paulo,
17/ 04/ 2005). Essa notícia se refere a uma jovem de 20 anos que encomendou
a morte do pai como seu presente de aniversário. O crime teria sido praticado
por um pai- de- santo.
Em nome dos mais variados ideais, convivemos e presenciamos práticas
de terror, crueldades, extermínios dirigidos a povos inteiros ou a grupo de
pessoas. [ As guerras e outras violências, como o 11 de setembro, com a
destruição das torres gêmeas]. As guerras, bombas e o terror são muito bem
retratados por toda mídia que, por um lado denuncia e, por outro, explora os
fatos e suas vítimas, tornando a violência um espetáculo. Convivemos com o
avanço tecnológico e com cenas de violência primitivas e brutais no cotidiano,
que nos fazem perder a capacidade de nos sensibilizarmos.
Segundo Boudrillard (1990), que estuda fenômenos vistos como
violentos no mundo atual, a conduta de jovens, na qual a violência assume uma
forma lúdica e espetacular, potencializa os níveis de adrenalina no corpo e
possibilita participar, aparecer em um cenário de espetáculo criado pela mídia a
ser notado pela sociedade. Nesse contexto, a violência pode ser fruto de uma
hipermodernidade, em que todos anseiam por alguns minutos de fama, seja lá
qual for. Para compreendê-la, é necessário rever o caminho e voltar à
modernidade.
A modernidade, segundo Lipovesky (2004), prometia a autonomia e a
liberdade, porém não conseguiu objetivar seus ideais e deu lugar à disciplina, à
48
subjugação, cuja finalidade era de controlar o homem, ou seja, na modernidade,
a idéia era o controle; estabelecer uma conduta padronizada e não de
liberdade. O objetivo era adestrar os indivíduos e submetê-los a regras de
conduta. Por um lado, havia uma sensação de conforto, por saber o que era
“certo e errado”, e o caminho a seguir parecia ser previsível, como também as
conseqüências dos atos e ações.
Na ciência, havia preponderância do pensamento racional. A idéia era
“quanto mais pudermos conhecer a história e a nós mesmos, mais seremos
capazes de moldá-la para nossos propósitos. Assim, através da tecnologia e da
ciência, o mundo ficaria mais ordenado e estável. Mas não foi o que aconteceu.
O que se pensava ser previsível se mostrou imprevisível e em descontrole.
Com a pós-modernidade, nomeada por Lipovetsky ( 2004), como “a era
do vazio”, significando uma sociedade pós-disciplinar que se percebeu sem
parâmetros, sem verdades e sem controle, até nas áreas das ciências, e que
experimentava resultados opostos ao previsto. Conseqüentemente, a vida
passou a ser percebida de forma insegura, desorganizada e complexa. As
regras do passado não ecoam mais. O que é ser um pai e uma mãe neste
tempo?
O que se considerava saudável no passado, nem sempre o é. Lidar com
o imprevisível, com a incerteza passou a ser uma necessidade de
sobrevivência. Tudo passou a ter um sentido próprio, caracterizado naquele
sistema familiar ou grupal.
Para Lipovetsky, porém, a pós-modernidade iniciou um processo
promovendo o valor da subjetividade e da originalidade do indivíduo e foi
atropelada pela hipermodernidade, como denomina os tempos atuais. Desse
modo, as famílias e a sociedade não tiveram tempo suficiente ou não foram
capazes de criar suas leis e uma base que servisse de estrutura para os novos
tempos. Assim, a hipermodernidade chegou rapidamente, e segundo o autor,
promovendo basicamente o valor ao consumo. Atualmente, valorizam-se os
termos: “hiper”, “super”, “mega”, que agregados à outras palavras, remetem-
nos à idéias e imagens grandiosas, muitas vezes inacessíveis, como
hipermercados, hipershoppings e outros.
Para Lipovetsky, a hipermodernidade é uma sociedade caracterizada
pela fluidez, pela flexibilidade, indiferente aos grandes princípios estruturantes
49
da modernidade, mas que se utiliza da “moda” como um caminho a seguir, e da
“mídia” como meio principal desse processo. Os indivíduos são ao mesmo
tempo mais informados e mais desestruturados, mais infantis e mais adultos,
menos ideológicos e mais aprisionados pela moda, mais abertos e mais
influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e menos profundos.
O mundo do hiperconsumo, das ofertas e do descartável, e o valor de
qualquer produto é dado pela mídia. Um mundo de maior autonomia e de
sensação de independência, mas de dependência. A lógica da moda e do
consumo permearam os espaços cada vez mais amplos da vida pública e
privada.
O lema é ser feliz e dizer não ao sofrimento, portanto, é preciso
consumir. Tal situação me faz pensar no desamparo e na exclusão social que
favorece o aumento do fosso entre os que possuem condições de consumir e,
decorrente disso, de pertencer a grupos “mega ou hiper”, e os que não
possuem tais condições.
Convivemos com a violência à nossa volta, presenciando os menores
abandonados nas ruas, os explorados sexualmente, os seqüestrados, os
drogados, os corrompidos politicamente, os homicídios, os suicídios, as
injustiças sociais e a impunidade.
Assim, pode-se criar um contexto que autoriza e oficializa, por tornar
pública e impune, condições sociais facilitadoras de violência e desse modo
fazer parte da co-autoria da violência.
50
VI - MÉTODO
1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES:
O método utilizado na pesquisa esclarece a forma de obter
conhecimento sobre o mundo, sustentada por um conjunto de crenças,
conceitos , valores e normas singulares ao pesquisador, revelando sua forma de
ver a realidade e sua maneira de produzir conhecimento científico.
A metodologia fornece os meios para alcançarmos nossos objetivos,
portanto é a ferramenta de trabalho para responder à questão proposta. A
escolha da metodologia foi determinada pela natureza do problema a ser
pesquisado, e cada estratégia oferece uma perspectiva particular e única para o
estudo do problema.
Tendo em vista que nesta investigação o foco é o estudo aprofundado
dos processos e padrões de interação da família co-construídos no atendimento
clínico familiar, a pesquisa qualitativa é a mais adequada .
Para Denzin e Lincoln (1994), a pesquisa qualitativa é um estudo
aprofundado de um determinado tema em que o pesquisador junta suas peças
como uma “bricolage”, sua prática e teoria, construindo um sentido, e buscando
soluções para seu problema. Para esses autores, a pesquisa qualitativa envolve
uma abordagem interpretativa e naturalista de seu objeto de estudo, o que
significa estudar o fenômeno no seu cenário natural, buscando compreendê-lo e
interpretá-lo segundo os significados que os participantes atribuem a ele.
Assim, a pesquisa qualitativa é um processo interativo, delineado pela
história pessoal, biografia, gênero, classe social, raça e etnia, tanto do
pesquisador como dos participantes da pesquisa, na busca de uma
compreensão profunda do fenômeno em questão.
Uma vez que não existe a possibilidade de conhecimento baseado em
uma realidade objetiva, a experiência vivida é conhecida pelo seu significado e
co-construída na relação. Segundo Grandesso (2000, p.301) “ os resultados de
estudos qualitativos decorrem do campo da intersubjetividade, na medida em
que podem ser definidos como um produto da ação conjunta entre o
pesquisador e os participantes da pesquisa”.
51
A escolha da pesquisa qualitativa em psicologia clínica, é a estratégia
mais condizente com o objetivo principal e o específico. Alain Giami e Revault
d’Allones (1989) retratam a pesquisa clínica como uma possibilidade de se
compreender determinado tópico em níveis distintos. Nesta pesquisa, os níveis
referidos são : sistema individual, sistema familiar e sistema social cultural, que
se interconectam no sistema organizador da violência.
Segundo Alain Giami, a pesquisa em psicologia clínica visa à
observação, à descrição e à exploração dos processos singulares do encontro
terapêutico.
Para Claude d’Allonnes, o estudo de caso na psicologia clínica visa
alcançar a lógica de vida singular articulada em situações complexas, que
necessita de leituras em diferentes níveis.
Fazem parte desta pesquisa três famílias atendidas pelo pesquisador no
projeto de atendimento clínico do Centro de Estudos e Assistência à Família-
CEAF, abaixo descrito.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa de tipo clínico, em que o
pesquisador terapeuta estuda o processo terapêutico numa abordagem focal
sistêmica e construtivista. Na proposta focal, é estabelecido com a família um
número de sessões de terapia, que não ultrapassam quinze, hora e local dos
atendimentos; elege-se um problema a ser trabalhado e, quando possível,
utiliza-se a participação de outros profissionais - equipe multidisciplinar - nos
atendimentos ou nos grupos de estudos do caso atendido .
A terapia é um espaço de reflexão e conversação sobre problemas e
vivências contextualizadas nas histórias familiares. Cada membro da família,
incluindo o terapeuta, introduz observações, pensamentos, sentimentos e
emoções relacionadas às descrições trazidas, pela escuta e reflexão, e assim,
outras visões e alternativas poderão ser co-construídas. Toda comunicação e
linguagem passam a ser fundamentais na construção das narrativas, e o
terapeuta, um facilitador e um curioso que propõe questões minuciosas que
colaborem na reflexão dos dilemas familiares.
A análise das sessões de terapia terão como pano de fundo a teoria
sistêmica, que propicia a análise dos sistemas interconectados, individual,
familiar, social e cultural. Na análise do sistema individual, a teoria do Apego de
52
Bowlby possibilita a compreensão do vínculo afetivo entre pais e filhos como
constitutivo do indivíduo nas suas relações familiares e sociais.
2. CONTEXTO E PARTICIPANTES
Nesta pesquisa, os atendimentos foram todos realizados no CEAF, em sala
reservada, com horário pré-marcado. O CEAF- Centro de Estudos e Assistência
à Família é uma associação sem fins lucrativos, situada na rua Japuanga 235,
Alto da Lapa, São Paulo, Capital.
Desde sua fundação, em 1983, tem por objetivo o atendimento psicológico
preventivo e terapêutico gratuito a famílias de baixa renda e pouca instrução
formal, que não têm acesso a outros serviços dessa natureza.
No CEAF, estão alguns projetos de atendimento sendo um deles, a Terapia
Familiar. Os profissionais desse projeto são terapeutas familiares voluntários
que atendem na própria instituição e fazem parte de um grupo de estudos e
supervisão clínica dos atendimentos.
O CEAF se tornou um centro de referência em atendimentos de grupo e de
famílias na região. Agrega um número grande de parceiros, como escolas,
creches, centro de saúde, centros religiosos, Conselho Tutelar e o Fórum da
Região. Está localizado em uma zona nobre da cidade de São Paulo. A seu
redor, existem favelas e alguns bairros empobrecidos, mas as famílias que
chegam ao CEAF e que vêm desses bairros empobrecidos e favelas, cruzam
esta fronteira invisível, chegando em um bairro de classe média alta, onde ele
se situa. No entanto, o fato de o CEAF não estar inserido na comunidade em
que vivem os participantes facilitou a coleta de dados desta pesquisa, já que as
famílias participantes não eram reconhecidas por outras famílias que são
atendidas no CEAF e nem por funcionários da Instituição.
É interessante destacar que, inicialmente, a coleta de dados para esta
pesquisa foi realizada em outro contexto, em uma Instituição POF-Posto de
Orientação Familiar, situada na favela de Paraisópolis, em São Paulo. Pelo fato
de a Instituição estar no centro da favela, as famílias atendidas no Projeto de
Terapia Familiar não aceitaram a gravação das sessões, e os funcionários da
Instituição também estavam receosos com a existência de fitas gravadas, pois
53
segundo eles, todos poderiam correr risco de vida. As famílias atendidas neste
projeto conheciam os funcionários do POF, participavam de outras atividades e
necessitavam de total sigilo de nomes e conteúdo das sessões de Terapia.
Trata- se de uma comunidade enredada por segredos e medos da violência. O
quadro aqui descrito determinou a mudança de estratégia de coleta de dados
referida.
Os participantes desta pesquisa são três famílias encaminhadas para
atendimento clínico por motivo de violência nas relações familiares.
A família Almeida foi encaminhada pela psicóloga e assistente social do
judiciário, Fórum das Varas Especiais da Infância e Juventude, para o Centro de
Estudos e Assistência à Família- CEAF. Foi atendida em meados de maio de
2004, seguindo até o início de julho de 2004.
A família Borges foi encaminhada para o Centro de Estudos e
Assistência à Família- CEAF pelo Conselho Tutelar, em agosto de 2004.
A família Castro foi também encaminhada para terapia familiar ao CEAF
pelo Conselho Tutelar, em agosto de 2004.
Tabela 1. Identificação dos participantes da família Almeida presentes nos três atendimentos
iniciais.
Participantes Idade Estado
civil
Cor Religião Profissão
Escolaridade
Maria 34 casada Branca Católica Serviços gerais 4a série
Cláudia 15 solteira Parda Católica Estudante 8a série
João Pedro
12 solteiro Pardo Católico Estudante 4* série
54
Tabela 2. Identificação dos participantes da família Borges presentes nos três atendimentos
iniciais.
Participantes Idade Estado
civil
Cor Religião Profissão
Escolaridade
Rosa 38 Casada Branca Católica Serviços gerais 4
a
série
Lúcia 20 Casada Parda Católica Dona de casa 8
a
série
Walter 17 Solteiro Negra católica Estudante 8* série
Fernando 12 Solteiro parda Católica Estudante 5* série
Tabela 3. Identificação dos participantes da família Castro presentes nos atendimentos iniciais.
Participantes Idade Estado
civil
Cor Religião Profissão
Escolaridade
Zenaide 50
Viúva
Negra Evangélica Dona de casa 4
a
série
Graça 16
Solteira
Branca Evangélica Estudante 8
a
série
3. ESTRATÉGIAS
Como se trata de pesquisa de caso clínico, o pesquisador está inserido
no sistema terapêutico, ocupando dois lugares: o de terapeuta e o de
observador/pesquisador. Esses diferentes lugares serão observados e
considerados na análise do processo terapêutico. O pesquisador deve ser
capaz de compreender os fatores intelectuais e emocionais que influenciam não
só o seu desempenho, mas também seu envolvimento com o objeto de estudo,
e suas ações no lugar de terapeuta e de pesquisador. Com o objetivo de
enriquecer os atendimentos e a análise das sessões de terapia, nesta
investigação foram atendidas duas famílias em co-terapia com uma colega
terapeuta familiar, voluntária da instituição.
Foram gravadas as sessões de terapia com as três famílias participantes
e, como nos encontros iniciais surgiram, nas histórias familiares, conteúdo
55
suficiente para análise, foram priorizadas as três sessões iniciais de cada família
e utilizados alguns trechos de outras sessões transcritas em anexo.
A partir da análise do material coletado dos casos é que foi possível fazer um
levantamento dos temas nas sessões e criar as categorias e subcategorias para
análise.
Material
As salas de atendimento de famílias no CEAF possuem equipamento
para gravação e filmagem; algumas possuem o espelho unidirecional, no caso
de estudo e da necessidade de equipe reflexiva. Dispõem de materiais gráficos
que foram utilizados nas sessões e consideradas na análise as histórias
contadas a partir de desenhos feitos durante as sessões de atendimento da
família.
Foram utilizados dois gravadores de som para garantia das gravações e
as sessões não foram filmadas. As fitas foram posteriormente transcritas pelo
pesquisador de forma literal e digitadas, para serem utilizadas na coleta de
dados.
4. PROCEDIMENTOS
As famílias encaminhadas para o Projeto de Terapia Familiar do CEAF
habitualmente passam por uma triagem realizada por terapeutas de família, que
informam sobre o funcionamento do projeto e colocam a possibilidade de
gravação das sessões para estudo. São preenchidas fichas com os dados das
famílias e a suas queixas. Esse material fica na secretaria, aguardando o
encaminhamento pelos supervisores para os terapeutas.
Os três casos foram encaminhados pelas Instituições parceiras para esta
pesquisadora, também supervisora do CEAF, a fim de que acompanhasse os
casos. Em função da pesquisa e do encaminhamento por situações de violência
familiar, foram realizadas pela pesquisadora as triagens das três famílias da
pesquisa. Foi apresentada a proposta da pesquisa não focalizada no tema da
violência, mas no estudo das relações familiares, a fim de que as famílias não
56
se sentissem rotuladas por esse tema. Foi esclarecido que a participação é
voluntária.
Cada família foi convidada a participar, sabendo que poderia desistir a
qualquer momento, sem que o processo terapêutico fosse interrompido. A partir
do consentimento de cada uma delas, foram iniciados os atendimentos e as
gravações das sessões e também esclarecido e enfatizado o sigilo profissional
dos dados, trocas de nomes e algumas informações para não serem
reconhecidas. As fitas gravadas ficaram arquivadas no CEAF, ou com às
famílias.
4.1 PROCEDIMENTO PARA ANÁLISE DE DADOS:
O primeiro momento desta pesquisa foi a escuta minuciosa de todas as
fitas gravadas de cada família. O passo seguinte foi a transcrição das três
sessões iniciais de cada uma e alguns trechos importantes contidos em outras
sessões. Em seguida, foi transformada em texto a história de cada família,
levando em conta dados das sessões iniciais e algumas observações e
ressonâncias dos terapeutas e do pesquisador. Neste momento foi necessário
se ater a uma família de cada vez, e depois de várias leituras cuidadosas do
material transcrito, foram sublinhados, nas transcrições das sessões, trechos
das narrativas familiares que abordassem temas, problemas e situações vividas
que pudessem estar envolvidas com a construção da violência familiar.
A partir das análises das sessões, foram levantados alguns temas
baseados no conteúdo das narrativas. Esse procedimento foi realizado da
mesma forma com as outras duas famílias participantes.
O material selecionado das três famílias foi agrupado por temas em
função da relevância, das regularidades e das diferenças.
Os temas levantados foram:
57
Tabela 4
FAMÍLIA ALMEIDA
FAMÍLIA BORGES
FAMÍLIA CASTRO
9 Dificuldade em ouvir o
outro.
9 Abuso sexual
freqüente.
9 Falta de reflexão da
história familiar.
9 Raiva e ódio intensos:
sentimentos vividos na
relação mãe e filha.
9 Drogas e álcool na
família.
9 Obediência.
9 Mentiras.
9 Vergonha.
9 Traumas.
9 Sofrimentos
9 Mortes trágicas.
9 Pobreza.
9 Sobrevivência.
9 Mitos sobre a violência.
9 Supervalorização da
mãe.
9 Segredos.
9 Dores no corpo.
9 Dificuldade em ouvir o
ou outro.
9 Violência freqüente nas
relações familiares.
9 Ameaças freqüentes.
9 O poder pela morte.
9 Mitos familiares na
comunicação e da
violência.
9 Violência considerada
um valor na família.
9 Mortes trágicas.
9 Tentativas de suicídio.
9 Supervalorização da
mãe.
9 Obediência.
9 Limites.
9 Segredos
9 Violência infantil.
9 Dificuldades
financeiras.
9 Heranças de pobreza.
9 Medo da pobreza.
9 Dificuldade em ouvir o
outro
9 Dificuldade na
comunicação
9 Histórias de maus
tratos e violência.
9 Preconceito de cor e
raça.
9 Preconceito com a
pobreza.
9 Mitos familiares.
9 Silêncio.
9 Mentiras.
9 Vulnerabilidade.
9 Poder X falta de poder.
9 Segredos familiares.
9 Falta de proteção.
9 Sexualidade.
9 Medos.
9 Desconfiança.
9 Inveja.
9 O trauma da morte.
9 Herança: poder.
A partir do levantamento de temas mais abrangentes que se
apresentavam regulares nas três famílias, foram delineadas as categorias de
análise e interpretação em temas .
As categorias de análise são:
PADRÕES DE COMUNICAÇÃO: o colapso da conversação.
MITOS E CRENÇAS: tentativas de explicar o inexplicável.
FRAGILIDADE DOS VÍNCULOS INTERPESSOAIS.
SEGREDOS: as conotações do visível e do invisível.
INTERGERACIONALIDADE: lealdade e tradição familiar da violência.
VIVÊNCIAS FAMILIARES: denominador comum das histórias de
sofrimento.
58
Foram desenhadas tabelas de cada família, elaboradas a partir das
categorias e subcategorias privilegiadas. Em cada tabela foram inseridas as
narrativas da respectiva família, juntamente com uma descrição de significados
de cada narrativa, com o objetivo de contextualizar o leitor na sua compreensão.
A análise do material foi realizada inicialmente com a elaboração de um
texto referente a cada caso, a partir das reflexões e interpretação do conteúdo
das categorias e das seguintes subcategorias:
PADRÕES DE COMUNICAÇÃO: o colapso da conversação.
o Dificuldade em falar e ouvir o outro: a expressão do colapso.
o Falta de reflexão sobre a história familiar.
o “O não dito”. Temas de difícil comunicação.
MITOS E CRENÇAS: tentativas de explicar o inexplicável.
o Mitos sobre a comunicação.
o Mitos reforçadores da violência.
FRAGILIDADE DOS VÍNCULOS INTERPESSOAIS.
o O poder pela violência.
o Abusos e violência familiar freqüente.
o Negação da violência vivida.
o Indicadores de risco.
SEGREDOS: as conotações do visível e do invisível.
o Silêncio: a garantia da invisibilidade.
o Vergonha: visibilidade indesejada.
INTERGERACIONALIDADE: lealdade e tradição familiar da violência.
o Aprendizado na família.
o Relações de gênero e poder.
o Pedido de socorro: o drama se repete.
VIVÊNCIAS FAMILIARES: denominador comum das histórias de sofrimento.
o Os lutos: perdas, mortes e separações.
o Pobreza: uma das vulnerabilidades.
o Drogas: um perigo.
o Dor e traumas: o corpo se expressa.
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4.2 PROCEDIMENTOS ÉTICOS
Foi pedida uma autorização prévia ao CEAF para a realização da pesquisa.
As sessões de atendimento foram gravadas com prévio consentimento e
transcritas individualmente pelo pesquisador, garantindo sigilo na identificação
das famílias e fornecendo o material de análise de dados.
Aspectos éticos foram garantidos mediante consentimento informado por
escrito ( anexo) pelos participantes, após cuidadosa informação a respeito da
pesquisa e sobre a possibilidade de lhes causarem qualquer dano, do direito à
privacidade, assegurando- lhes o sigilo de nomes e o direito de interromper as
gravações e a participação na pesquisa, garantindo a continuidade dos
atendimentos.
No termo de consentimento informado foram priorizados o estudo e
tratamento das relações familiares, não sendo focalizado somente o tema da
violência pelo fato de se tratar de um processo terapêutico; a perspectiva era
ampliar o conhecimento das relações familiares e não o de reduzi-las. Foi
informado a cada família que a participação na pesquisa é voluntária. Os dados
obtidos ficarão restritos à essa pesquisa e que somente os resultados serão
divulgados, garantindo o anonimato dos participantes.
O sigilo dos nomes foi explicitado, enfatizando-se que os dados
informados pelas famílias atendidas não seriam revelados à instituição em que
foram feitos os atendimentos. Na finalização dessa pesquisa às famílias foram
convidadas à conversarem e refletirem sobre os resultados.
60
VII - ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS
1. DESCRIÇÃO DA FAMÍLIA ALMEIDA
Esta família foi encaminhada para atendimento familiar no Centro de
Estudos e Assistência à Família, CEAF, pela psicóloga do Fórum de Pinheiros.
O motivo do encaminhamento foram agressões físicas da filha Cláudia, de 15
anos, dirigidas à sua mãe. Maria, mãe de Cláudia, havia feito uma denúncia de
sua filha por agressões físicas e verbais. A psicóloga que atende Cláudia em
um grupo terapêutico na Casa do Adolescente do Ambulatório de
Especialidades de Pinheiros não percebeu reações agressivas de Cláudia na
terapia e no grupo, mas relatou que o discurso de mãe e filha são divergentes e
intensos, sugerindo uma ligação de amor e ódio, que poderia ser tratada na
terapia familiar. Cláudia se encontra cumprindo a medida sócioeducativa em
liberdade assistida que, em caráter excepcional, está sendo executada por uma
psicóloga e uma assistente social da equipe do Fórum das Varas Especiais da
Infância e Juventude.
Diagrama do Núcleo Familiar
M -Maria, a mãe. J -José, pai de João Pedro.
A -André, atual marido de Maria.
C -Cláudia, a filha. JP- João Pedro, filho.
FAMÍLIA ALMEIDA
61
HISTÓRIA DA FAMÍLIA
A família atual é constituída pela mãe Maria, com 34 anos, seu terceiro
marido, André, com 28 anos, que não é pai de nenhum de seus filhos, uma filha
de 15 anos, Cláudia, e um filho de 12 anos, João Pedro.
Maria se casou pela primeira vez aos 18 anos, e um ano depois nasceu
Cláudia. Separou-se dois anos após o nascimento de sua filha, alegando que
seu marido se drogava muito e ficava desaparecido. Em 1999, o pai de Cláudia
morreu de HIV, possivelmente adquirido por meio do uso de drogas: cocaína
injetável. A família do pai de Cláudia consumia drogas. Sua avó paterna era
alcoolista e veio a falecer de cirrose na mesma época em que perdeu seu filho,
em 1999. Sua tia, irmã de seu pai, também faleceu em 1997 por overdose de
cocaína. Maria narrou esta história como se ela não estivesse envolvida. O pai
de Cláudia sempre pagou a pensão para a filha e procurava vê-la mas,
segundo Maria, Cláudia não gostava de ficar com ele , gritava muito e chorava.
Para Maria, a situação financeira do pai de Cláudia era muito melhor que a dela.
A casa em que moram foi deixada por ele.
Após a separação, Maria juntou-se com José e ambos tiveram João
Pedro. Esta união durou 5 anos . Maria relatou que não sentia mais nada por
ele e resolveu terminar. Cláudia considera José seu pai. Segundo ela, ele
brincava, era “legal” e conversavam muito. Para Maria, José foi presente na
família; estava sempre perto de todos e era muito afetivo com as crianças.
Cláudia e João Pedro sentiram muito a separação. De fato, trata-se de uma
situação difícil, pois José, atualmente, está preso . Segundo Maria, após a
separação, começou a beber, “ desandou” e foi preso por tráfico de drogas.
João Pedro visita regularmente seu pai e Cláudia, por não ser filha legítima, diz
não ter autorização para vê-lo, o que a deixa triste.
Maria conheceu seu terceiro marido, André, e estão juntos há 5 anos .
Para Cláudia, o segundo marido de sua mãe, e não o atual, é quem ela
considera como seu pai. Não lembra de seu pai verdadeiro e não gosta do atual
companheiro da mãe. Para ela, ele é um dos motivos das brigas. Segundo
Maria, André foi segurança, agente ferroviário, porém está desempregado há
alguns anos e faz grafite, o que segundo Cláudia, não lhe rende nada, só gasta
62
dinheiro para comprar tintas e ir aos bares. Maria discorda da filha , mas não
consegue justificar algum ganho de André. Começa a contar uma outra história,
negando a falta de colaboração financeira de André.
Atualmente, a família enfrenta sérias dificuldades econômicas. Maria está
afastada do serviço por motivo de dores crônicas e recebe pouco dinheiro por
esse afastamento . A família vive com a aposentadoria de morte deixada pelo
pai de Cláudia, que é um motivo de briga entre Cláudia e Maria. Cláudia afirma
que o dinheiro é dela e que, portanto, não quer que sua mãe sustente André.
Quer guardar seu dinheiro para fazer uma faculdade e gosta de ajudar um
pouco a família. Segundo Cláudia, André é folgado, gasta muito em celular e
bares, nunca traz dinheiro para casa e quebrou financeiramente até a mãe dele,
de tantos gastos feitos.
Maria possui 7 irmãos, assim, na família são 5 mulheres e 3 homens,
sendo que dois irmãos homens morreram, um levou um tiro no rosto, era
bandido, e o outro morreu de HIV, devido às drogas. Sua mãe, atualmente, está
com 80 anos, e o pai é falecido. Maria é a filha caçula da família. Seus pais se
separaram logo após seu nascimento.
Maria qualifica seu relacionamento com sua família como sendo muito
bom e ao mesmo tempo relata as dificuldades familiares e muito sofrimento.
Considera muito seus irmãos, principalmente os homens da família, que a
protegiam das situações difíceis. Ao mesmo tempo que diz serem seus irmão
bandidos, enaltece-os por sua coragem e por serem protetores. Para ela, sua
mãe é, até hoje, muito “trabalhadeira”, ausente por trabalhar demais , mas diz
que é a melhor mãe do mundo. Se não fosse por ela, os filhos não estariam
vivos. Moravam em favela, eram muito pobres, não tinham o que comer. A mãe
trazia, do trabalho no restaurante, as sobras de comida, que eram repartidas
entre todos. Com relação a seu pai, relata grande dificuldade, pois desde 8 anos
a observava no banheiro se trocando e, aos 12 anos, abusou dela sexualmente
por um longo período. O pai era mais velho, estava separado da mãe e pedia
para sua ex- mulher ou para sua filha mais velha levarem a filha caçula, Maria,
para visitá-lo. Nessas ocasiões, ocorria o abuso.
Segundo Maria, o pai não fazia sexo com ela, mas passava a mão e se
esfregava em seu corpo todo. Machucava-a com os dedos, recorda-se da dor
que sentia e até hoje não gosta de sexo, não gosta que o marido a veja nua e
63
sente muitas dores no ato sexual e no corpo. Sentia-se envergonhada e com
medo de contar o que acontecia para os irmãos, por medo de que eles, ao
saberem do abuso, o matassem. Diz sentir muita raiva do pai e não sentir falta
dele. Pensou em ter seus filhos com inseminação artificial para que não
tivessem pai.
Ao mesmo tempo, relata uma história com uma amiga que tinha um bom
pai e de quem sentia inveja. Depois de um certo tempo, conseguiu contar
para uma cunhada e para as irmãs. Uma das irmãs levou Maria para morar na
sua casa. Ficou livre do pai, mas achava que a irmã abusava dela de outra
forma, fazendo-a trabalhar muito como uma empregada. Contou um episódio
em que a irmã dizia a uma amiga que estava com uma empregada nova em
casa. Cuidava de tudo, dos filhos da irmã e da casa. Na época, acreditava
que sua mãe não suspeitava das situações vividas de abuso com o pai.
Suspeita que suas irmãs também sofreram abusos por parte do pai.
Atualmente, Maria está afastada do trabalho há mais de 3 anos, e recebe
pelo afastamento por motivo de dores muito fortes, que a deixam paralisada.
Pés inchados e dores fortes que, segundo o médico, é reumatismo.
Antes de ficar doente, houve um incidente com a filha Cláudia, que
estava com 10 anos. Cláudia foi estuprada por um vizinho de 20 anos.
Segundo Maria, Cláudia usava roupas provocativas e não parecia ter 10 anos.
Seu corpo e seu jeito eram de uma mulher e não de menina. Maria não
conseguiu fazer nada a respeito do abuso sofrido pela filha.
Cláudia relata que a mãe ficava muito ausente de casa e que, mesmo
antes do abuso, ela pedia para a mãe ficar em casa , porque não gostava de
ficar sozinha com André . Segundo Cláudia, ele a olhava de forma estranha
quando começou a mudar seu corpo, e passou a odiá-lo. Maria diz que Cláudia
é que o provocava, usando roupas curtas. Um dia, Maria picou todas as roupas
da filha.
A partir desses fatos, o relacionamento entre mãe e filha passou a ser
muito agressivo. Maria batia na filha e a filha ameaçava a mãe. Para Cláudia, o
motivo era ciúme. E hoje ela tem um namorado e sente ciúmes dele em relação
à mãe que, segundo ela, é simpática demais com o rapaz.
64
Apesar de Maria se colocar como alguém que conversa de tudo, a filha não
conhecia a história de vida de sua mãe, e a mãe não tinha o hábito de escutar o
que a filha tinha a dizer.
Para Maria, existe uma diferença entre elas: ela foi oferecida ao pai e a
filha não foi abusada pelo pai, mas por um estranho, o que considera muito
melhor.
Na terceira sessão, Cláudia relatou um sonho e, durante este sonho, fez
xixi na cama, o que é um hábito quando tem pesadelos. Trata-se de um sonho
no qual seu porquinho da Índia foi comido juntamente com seus filhotes por um
rato grande. Disse que estava com medo que seu porquinho da Índia morresse,
uma vez que em sua casa não havia segurança. Maria interveio e disse que
nunca viu rato na sua casa. Na semana seguinte, estava muito triste porque o
sonho se realizou. Seu porquinho foi comido por um rato. Maria, nesse dia,
conta que estava preocupada pelo fato de estar encontrando diariamente fezes
de rato nas panelas da cozinha.
A maneira de narrar os acontecimentos familiares é complementar entre
mãe e filha; em muitos momentos existe a negação de um lado da história que
instantaneamente é lembrado pela outra. Essa realidade vivida parece difícil de
ser sentida na sua totalidade por mãe e filha e, possivelmente, é também
motivo das brigas em que ambas querem reter somente a sua parte da
realidade familiar.
OBSERVAÇÕES DAS SESSÕES DE ATENDIMENTO DA FAMÍLIA ALMEIDA
No primeiro atendimento, foi apresentado o CEAF e feito um contrato de
atendimento familiar semanal. A partir do consentimento familiar para as
gravações das sessões, iniciaram os atendimentos. Com ajuda das histórias
familiares, foi possível conhecer a vida da família.
Com Maria foi mais fácil estabelecer um diálogo, mas Cláudia se mostrou
resistente e ficou escondida em seu casaco, olhando para o chão. Quando
tentei incluí-la na conversa, não respondeu. Direcionei a conversa para mãe,
que estava com muita necessidade de falar o que estava acontecendo.
65
Enquanto a mãe contava a história, a filha foi ficando mais à vontade e
passou a levantar o rosto e a olhar para os meus olhos. Assim, foi possível criar
algum vínculo e um tipo de comunicação através do olhar; na segunda metade
da sessão, foi possível fazer perguntas para a filha e obter respostas.
Penso que, nesse atendimento, falar das histórias da família de origem
da mãe e de suas dificuldades facilitou o conversar sobre os fatos atuais e a
compreensão dos mesmos.
No segundo encontro, mãe e filha chegaram diferentes. Estavam mais
próximas uma da outra. Cláudia sentia dor de cabeça. Parecia receosa com a
terapia, e a sua mãe relatou a dificuldade em pensar nos temas conversados na
sessão anterior. Nunca havia imaginado que problemas passados pudessem
acontecer novamente e que poderiam estar ligados. Sempre tentara esquecer o
passado. Voltou às histórias com o pai e foi trazendo novos detalhes e
lembranças vividas. Neste encontro se emocionou mais do que no primeiro, em
que pareceu que a história contada não era dela. Fez algumas relações entre a
forma de educar da sua família de origem e a sua forma de educar os filhos.
Salientou aspectos da educação sexual dos mesmos.
Na terceira sessão, Cláudia relatou um sonho que se transformou em
realidade, e o tema trazido pela família foi o cuidado com os filhotes para não
serem comidos pelos ratos. Nos encontros seguintes, as situações de abusos
do passado e do presente foram muito conversadas, principalmente a de Maria
com André, seu atual companheiro. O uso da pensão de Cláudia nos negócios
de André foi um assunto de conflito entre mãe e filha. Maria encerrou a terapia
dizendo que não poderia viver sem André e, se não o sustentasse, ele iria
embora.
Comuniquei ao Fórum que ambas haviam desaparecido das sessões
marcadas. Os telefones mudaram e não conseguíamos comunicação. Soube,
dois meses depois, que Cláudia havia se jogado na linha do trem, porque seu
namorado havia terminado o namoro. Encontrava-se imobilizada, mas viva. As
psicólogas do Fórum estavam preocupadas devido à sua ausência, e o Juiz
prestes a colocá-la na Febem. Segundo as psicólogas, a mãe era favorável, e
depois de algumas conversas minhas com a equipe do Fórum, decidimos dar
mais uma chance de atendimento clínico, ao invés de colocá-la na Febem.
66
Percebemos que, para a mãe, era conveniente a internação da filha, pois
assim poderia ficar com seu dinheiro. Optamos pela continuidade do
atendimento. A família voltou a ser atendida no CEAF. Cláudia decidiu morar
com a avó materna, para não correr riscos de abuso por parte de André. Está
participando da terapia com a mãe semanalmente e voltou para o atendimento
com a psicóloga do Fórum. Está estudando e trabalhando em uma pizzaria.
Recebe metade da pensão do pai, e a outra metade fica com a mãe. Esta
situação está colaborando para um melhor relacionamento entre mãe e filha.
67
CATEGORIAS: ANÁLISE DAS FAMÍLIAS
FAMÍLIA ALMEIDA
Legenda:
M- Maria, mãe
C- Cláudia, filha
A- André, padrasto
T- terapeuta
Descrição de significados visualizada em negrito
PADRÕES DE COMUNICAÇÃO: o colapso da conversação
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
M - É muito comprido, ela não queria chegar no horário combinado.....
C - Não é bem isso, a minha mãe saía o dia inteiro e eu ficava com o André
( padrasto) o dia todo, depois eu comecei também a sair, ela saía e eu
também. Ela queria que eu ficasse em casa e eu não aceitei isso.
<filha comunica à mãe o risco de abuso sexual>
C - Eu falo para minha mãe não ter ciúmes de mim com o André. ( padrasto)
Eu tenho o meu namorado. < filha fala com a mãe sobre ciúmes e quer
ser ouvida >
C - A gente briga por este assunto, porque ele nunca recebe nada e pede
tudo para minha mãe. Ela usa a pensão que é minha, que meu pai deixou.
Esse dinheiro é meu e eu nunca posso comprar alguma roupa. Ele é
folgado, pede cheque para tintas e não paga de volta. M- Ele recebe como
ferroviário. <conflitos entre mãe e filha: ambas não aceitam a versão da
outra relacionada ao dinheiro >
C- Ela batia em mim . Ela foi me denunciar e disse que eu peguei uma faca
para ela. ...M - Você pegou filha ....C- Não, eu não peguei a faca. Eu estava
fazendo a janta e estava com a faca na mão. < dificuldade para criar uma
narrativa consensual do fato vivido>
M - O problema dela é ouvido e febre. < o corpo expressa a dificuldade>
T - O que está acontecendo ? M – É melhor ela falar. T - Você quer falar
Cláudia ? C- Não ( brava ). C- Eu tenho medo de falar. <a fala pode ser
uma ameaça>
M - Ela contou para a psicóloga do Fórum que ela começou a sentir isso
quando começou a ter corpo. Ela nunca falou isso para mim. No meu ponto
de vista eu nunca ofereci minha filha para o André. < dificuldade da
comunicação do abuso sexual>
M - Eu vim a descobrir isto ( abuso) quando ela tinha 13 anos. Nunca
consegui tirar isto dela . Eu fui atrás e peguei ela pelos cabelos. < mãe
descobre o abuso vivido pela filha :expressão do colapso>
Dificuldade em
falar e ouvir o
outro: a
expressão do
colapso
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C - Eu não penso. < hábito de não pensar nos acontecimentos >
C - Meus pensamentos não são bons. E tenho medo de falar. < critica aos
pensamentos>
M - Fiquei pensando no meu pai. Percebi que nunca mais falei a ninguém
depois de velha e eu vim perceber e acho que a gente como a Dra.
( psicóloga do Fórum ) falou, de repente você não sabe que tem
problemas.... . < falta de percepção da dor do abuso>
T - O que você (Cláudia) foi pensando enquanto sua mãe falava?
C - Eu fiquei triste . “Mas eu prefiro não ficar pensando. Eu nem quero
pensar.” < pensar e refletir causam tristeza>
Falta de
reflexão sobre
a história
familiar.
M - A história é longa ..... meus filhos não sabem. < não se deve falar de
abuso sexual >
M - Meus irmãos sabem ....... minha mãe soube depois. - Eu escondi da
minha mãe. Eu era criança e tinha vergonha. < dificuldade para falar do
abuso sexual>
M - A família decidiu que não chegaria à boca da mãe, uma coisa dessas.
<não se fala de abuso sexual para mãe>
“O não dito”:
Temas de difícil
comunicação.
MITOS E CRENÇAS: TENTATIVAS DE EXPLICAR O INEXPLICÁVEL
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
M - Eu sou muito aberta ao diálogo. A gente sempre conversou muito sobre
qualquer coisa. < abertura ao diálogo>
M - Não sei se devo falar. Isto é muito sério. Eu omiti isto deles.
< fechamento- não se fala sobre abuso sexual>
Mitos sobre a
comunicação
M - Meus irmãos sempre foram meus heróis.(....) Ele era ladrão. < heróis são
transgressores das leis -Poder >
M - A família decidiu que não chegaria à boca da mãe, uma coisa dessas.
<Segredo: mãe não pode saber do abuso sexual da filha >
Mitos
reforçadores
da violência
69
FRAGILIDADE DOS VÍNCULOS INTERPESSOAIS
Citações – atendimentos à família
Sub
categorias
C - Eu fiquei brava com minha mãe e ela chamou a polícia.” Disse que eu
estava com a faca na mão. Não estava não. E você ( mãe) “queria que eu
ficasse na Febem . Disse que eu ia matar ela. Eu não, ah não. Eu quero o meu
dinheiro e vou embora. <polícia e Febem representam a autoridade e poder >
M - Meus irmãos sempre foram meus heróis. Apesar das drogas e de tudo que
faziam , eles eram tudo para mim. Ele era ladrão. Roubava bancos e dizia que
distribuía dinheiro na favela. Para mim, ele era o Robin-Hood.
< supervalorização da violência >
M - Se eu gritasse , ele( irmão ) matava meu pai na hora. < o grito como
defesa do abuso sexual; com morte. >
O poder pela
violência
C - Ela batia em mim. < violência freqüente >
M - Eu não sei se aconteceu algo antes deste estupro com Cláudia. < falta de
percepção da violência familiar >
M - Do meu pai , não. No começo era ódio, raiva, e muita.... e depois fazia sexo
comigo. < o ódio e a raiva no abuso sexual >
M - Se meu pai que era de sangue fez aquilo comigo, imagine outros.... no fundo
eu pensava assim e não sabia que pensava , o risco maior era em casa. Agora
eu estou bem atenta jamais vai acontecer com ela de novo. O André tem
consciência disso, ele está preocupado com ela , agora se preocupa.
< minimização da vivência do abuso sexual na família atual >
M - Ele ( o pai )me fazia de gato e sapato, era como se eu fosse a esposa.
< violência sexual freqüente >
M - Quando fui morar com a minha irmã Cida, foi diferente. Ela me explorava.
Ela dizia para os outros que eu era empregada dela. Isso foi humilhante.
< exploração do trabalho infantil e humilhação >
C - Ela tem muito ciúme, teve uma época que minha mãe deu todas as minhas
roupas bonitas e só deixou as roupas largas e compridas.
< roupas justas: feminilidade propicia o abuso >
M - Eu vim a descobrir isto quando ela tinha 13 anos. Nunca consegui tirar isto
dela. Eu fui atrás e peguei ela pelos cabelos. < filha não comunica o abuso
sexual vivido >
Abusos e
violência
familiar
freqüente
M - Nunca peguei raiva da minha mãe. Ela é uma heroína para mim...ela trazia
os restos de comida do restaurante. < negação da raiva vivida através da
supervalorização da mãe pela sobrevivência >
M - Agora o André não está olhando a Cláudia com malícia, ele já entendeu. Eu
falei o que foi falado aqui. < negação da dor do abuso >
M - Quando fui morar com a minha irmã , eu cuidava de tudo, da casa, dos
Negação da
violência
vivida.
70
sobrinhos, de tudo. Eu gostava de cuidar das crianças e de tudo. (....) Quando
fui morar com a minha irmã Cida, foi diferente. Ela me explorava. Ela dizia para
os outros que eu era empregada dela. Isso foi humilhante. < momentos de
negação da exploração do trabalho >
C - A gente ( filha e mãe) briga com este assunto porque ele nunca recebe nada
e pede tudo para minha mãe.” Ela usa a pensão que é minha, que meu pai
deixou. Ele gasta o dinheiro com cerveja, com amigos. < negação do abuso
financeiro >
M - Eu admiro ela( mãe) e eu nunca acusei ela do meu pai. < admiração e
proteção da mãe >
M - Ela( filha) ficava o tempo todo sozinha. < filha ficar sozinha em casa >
M - A Cláudia começou a ficar feminina com 9 anos , antes ela era como um
moleque. <desenvolvimento do corpo feminino >
C - Um dos nossos problemas é o dinheiro e sempre é o André.
< André gasta o dinheiro da pensão de Cláudia: abuso financeiro >
indicadores de
risco.
SEGREDOS: AS CONOTAÇÕES DO VISÍVEL E DO INVISÍVEL
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
M - Eu escondi da minha mãe. A família decidiu que não chegaria à boca da
mãe. (....) Não sei se devo falar. Não me lembro. < dificuldade e dúvida para
falar do abuso sexual>
M - O medo foi aumentando.(...). Mataria na hora , isto é batata. Eu lembro
perfeitamente do revolver. Se eu gritasse meu irmão matava meu pai na hora.
< o silêncio como proteção à vida >
M - Eu vim a descobrir isso( abuso sexual) quando ela tinha 13 anos. Nunca
consegui tirar isso dela. < o silêncio do abuso sexual como proteção à mãe-
mito familiar >
Silêncio: a
garantia da
invisibilidade
T - O que foi Cláudia ? C- Eu estava rindo porque meu namorado ligou e disse
que me ama. T- E você também ama ele ? C- Ai , eu amo. Eu tenho vergonha.
< filha com vergonha de mostrar que ama seu namorado>
M - Eu escondi da minha mãe. Eu era criança e tinha aquela vergonha.
<vergonha do abuso sexual vivido >
Vergonha:
visibilidade
indesejada.
71
INTERGERACIONALIDADE: lealdade e tradição familiar da violência.
Citações - atendimentos à família
Sub-
categorias
M - Se meu pai, que era de sangue, fez aquilo comigo, imagine outros.... no
fundo eu pensava assim e não sabia que pensava , o risco maior era em casa.
Agora eu estou bem atenta, jamais vai acontecer com ela de novo. O André
tem consciência disso, ele está preocupado com ela , agora se preocupa.
< a percepção do risco do abuso sexual dentro de casa >
M - Como não percebi o que aconteceu com Cláudia. < dificuldade em
perceber a violência sexual >
M - Eu não quero que ele( André) beije meus filhos. ..... Ele (meu pai) me
beijava na boca, que horror! Ai e eu beijo meus irmãos e filhos com selinho...
ih ( gagueja). Não é selinho que ele dava, ele apertava a boca. “Selinho tudo
bem.” < tentativa de diferenciação do beijo abusivo e do beijo afetuoso >
M - Sem marido, sem comida, ela trazia os restos de comida do restaurante
que trabalhava. Ela não roubou, não matou e nem se prostituiu, foi um
exemplo. < exemplo de mãe na família >
M - Temos muitos conflitos, principalmente nós duas. Ela não aceita as
normas de casa. Não aceita os horários. < conflito gerado por não aceitar a
lei >
Aprendizado
na família
M - Ele era ladrão. ( irmão) < sexo masculino desafia a lei :poder >
M - Ele foi preso. ( 2* marido). <ex marido traficante drogas: sob o domínio
da lei>
M - Minhas irmãs também ele ( pai) olhava, mas a mim era pior, porque ele
não deixava falar ( do abuso ) com ninguém. Ele separou da minha mãe e quis
morar perto e disse que era para ficar perto de mim. O medo foi aumentando.
< o homem visto como ameaçador, como abusador, e a mulher como
refém do silêncio >
M - Tinha a mãe dele (avó paterna ), era alcoólatra. Ela já faleceu < morte e
alcoolismo na mulher >
C - Ela não tinha tempo para mim. Eu acho que ela podia ter trabalhado um
pouco menos. < sensação de abandono pela mãe >
M - Fingia que dormia, ele( pai ) passava a mão nas minhas coxas......Eu não
estava preparada. T - E sua mãe, onde estava? M - Não estava.....
< ausência da mãe na vivência de abuso sexual >
Relações de
gênero e
poder.
M -Ela( filha) ficava o tempo todo sozinha. < ausência de proteção >
C - Eu pedia para minha mãe ficar um pouco em casa. Minha mãe saía o dia
inteiro e eu ficava com o André. < pedido de socorro para evitar o abuso
sexual >
C - Ela ( mãe) não tinha nenhum tempo para mim. < filha sente a falta da
mãe >
Pedido de
socorro: o
drama se
repete.
72
C - Eu fiquei brava com minha mãe e ela chamou a polícia. Disse que eu
estava com uma faca na mão. < mãe ameaçada pela filha >
C - Ela tinha muitos ciúme, teve época que minha mãe deu todas as minhas
roupas bonitas e só deixou as roupas largas e compridas. < a roupa justa
vista como provocadora de ciúmes >
M - Lá em casa , meu filho não gosta que a gente ande meio sem roupa.
< andar sem roupa desperta o desejo>
VIVÊNCIAS FAMILIARES: denominador comum das histórias de sofrimento
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
M - O primeiro irmão morreu de HIV. Drogas. O segundo morreu das drogas.
Ele faleceu com um tiro no rosto em 97. < morte dos irmãos >
M - Meu pai faleceu quando João Pedro nasceu. Eu não via ele. Eu sei pouco
dele. < perda do pai abusador >
M - O pai da Cláudia é falecido, ele faleceu quando ela tinha 10 anos e me
separei dele quando ela tinha 1 ano. < perda do primeiro marido >
T - E o seu segundo marido? M - Ele está preso. < separação do segundo
marido >
C - Ele era o meu pai. ( referência ao pai de João Pedro). < perda da figura
paterna da filha >
Os lutos:
perdas ,
mortes,
separações
M - Eu era muito pobre. Minha mãe era pobre mesmo, coitada. Teve tempo
que todos moravam em quartinho de pensão na favela, cheia de
prostitutas.....minha mãe trabalhava dia e noite..... Sem marido e sem comida
,ela trazia os restos de comida do restaurante que trabalhava. Ela não roubou,
não matou e nem se prostituiu, foi um exemplo. < a pobreza gera situações
de risco: matar , roubar se prostituir- a mãe e o trabalho protegem a vida>
Pobreza: uma
das
vulnerabilida
des
C - O que foi mesmo que ele morreu? ( Pai) M - Ele morreu de HIV. Por causa
das drogas. Cocaína injetável...., maconha também. A mãe dele era alcoólatra.
A irmã morreu por causa de cocaína. < as drogas na família matam >
M - O primeiro irmão morreu de HIV. Drogas. O segundo morreu das drogas.
Ele faleceu com um tiro no rosto, em 97. < perigo no consumo e no tráfico
de drogas >
Drogas: um
perigo
M - Tenho tantas dores no corpo. ( ...).Será que o que eu passei com meu pai
tem a ver com isso? Depois da semana passada eu achei que tenho problemas
que afetou muito o meu lado mulher. Sexual. Essa coisa sexual não me faz
O corpo se
expressa:
dor, traumas
73
falta. < percepção das dores e traumas do abuso sexual >
M - Eu estou muito triste, acho que , eu já estava , tenho muitas dores, mal
posso caminhar. < dor e sofrimento expressos no corpo >
Reflexões a partir das categorias: FAMÍLIA ALMEIDA
Essa família apresentou muitas dificuldades relacionadas à
comunicação. Mãe e filha, no início dos atendimentos não, se ouviam e, quando
o faziam, discordavam das história contadas . Não reconheciam a narrativa da
outra como possível. Assim, havia impossibilidade de ouvir e construir uma
história que tivesse um sentido comum sobre as situações vividas pela família.
Havia cisão na comunicação, em que cada uma trazia um fragmento.
Possivelmente essas cisões preservavam, tanto mãe como filha, das histórias
doloridas que haviam vivido. Pareciam narrativas mutiladas, em que o terapeuta
e pesquisador necessitava colar os pedaços para compreender a história vivida.
As dores dos fatos não eram reconhecidas, mas sentidas no corpo e
dissociadas dos acontecimentos e das emoções. A fala também era vista como
um perigo, já que poderia desencadear mais agressividade na relação e
sofrimento dos fatos vividos.
No decorrer do processo terapêutico e das sessões, e a partir do ouvir
das histórias de cada uma, mãe e filha puderam escutar trechos não ditos,
segredos e sentimentos e se reconhecerem na trama familiar.
Essa dificuldade na comunicação manteve as situações obscuras, os segredos
intactos, mas não impediu as dores no corpo. O sofrimento dessa família,
revelado por meio das histórias de abuso sexual e de muita violência,
possivelmente gerou pouca percepção e reflexão sobre o vivido,
desencadeando a repetição dos abusos na geração subseqüente.
Por outro lado, a família se dizia muito comunicativa, mas alguns
acontecimentos não deveriam ser revelados, como o abuso sexual que surge
como um segredo a ser mantido para poupar a figura materna. - “A família
decidiu que não chegaria à boca da mãe uma coisa dessas.” A mãe deveria ser
74
preservada desse sofrimento. Assim se configura o abuso sexual como um mito
nessa família. Outros mitos familiares pareceram ser reforçadores da violência,
como a supervalorização do seu poder, na figura dos irmãos. Eles eram ladrões,
traficantes e heróis. Assim, essa forma de violência direcionada para fora da
família não é caracterizada como violência, mas como proteção. Na medida que
intimida, amedronta e gera poder.
Podemos observar que, em relação aos vínculos interpessoais existe
uma fragilidade nas relações. Um apego inseguro, que colabora na falta de
confiança na relação. Dessa forma, a figura materna perde a autoridade frente à
filha e necessita da polícia para colocar limites e a lei.
A fragilidade dos vínculos pode ser decorrente da violência freqüente e
de abusos vividos na infância da mãe, ocasionando dificuldade no
reconhecimento, na percepção da própria história e nas necessidades
emocionais dos filhos.
O minimizar das histórias de violência e das emoções (o que é freqüente
em pessoas que viveram muitas situações violentas) e, além disso,
responsabilizar e culpabilizar a filha pela situação de abuso, como se uma
menina pudesse ser culpada do abuso sofrido, sugere dificuldade em cuidar da
família e de criar laços afetivos seguros.
A negação da dor da violência do abuso sexual e por outras formas de
abusos freqüentes dificulta a comunicação familiar e o processo reflexivo. Trata-
se de uma cultura familiar, em que o abuso sexual não é falado claramente,
mas sugerido e mantido como tradição familiar, ou seja, quando Maria relata
que sua mãe a levava na casa do pai e depois ia buscá-la, está de certa forma
dizendo que ela era oferecida para o abuso. As irmãs também haviam sido
abusadas sexualmente pelo pai e, na geração seguinte, o drama se repete com
sua filha, porém com a diferença de não se tratar de um abuso sexual de pai
com filha, mas de padrasto com filha, que, segundo Maria, não é tão sério.
A exploração do trabalho infantil também está presente nas narrativas da
família de origem de Maria, mas não aparece na geração seguinte. Nessa
geração surge o abuso financeiro, ou seja, o uso do dinheiro da filha (pensão)
para sustentar não somente a família, mas também os gastos de André
( padrasto).
75
Alguns indicadores do risco de violência surgiram: o abandono, como
risco de violência sexual, quando o corpo de menina se transforma em corpo de
mulher, e a exploração financeira como risco de violência familiar. Os segredos
também podem indicar risco para a violência e, por outro lado, o silêncio pode
ser garantia da invisibilidade, evitando a vergonha, a vingança , portanto,
podendo ser nesta família, uma proteção à vida e ao abuso.
A presença da violência intergeracional é marcante e está presente nas
gerações de forma semelhante. O aprendizado da cultura familiar, as lealdades
e tradições da violência, principalmente do abuso sexual, passaram por poucas
modificações e se mantiveram presentes. A família se manteve como um lugar
de perigo. A falta de percepção da violência e do sofrimento vividos dificultou o
reconhecimento, a comunicação e a reflexão das situações vividas, e ao mesmo
tempo são ensinados valores como: não roubar, não se prostituir, não matar e o
obedecer, que aparece como um valor que proporciona a continuidade da
cultura familiar.
Observando sob a ótica de gênero, a família nomeia o sexo masculino
como o que detém o poder, o que abusa, o que protege e ao mesmo tempo
mata, rouba e morre. O sexo feminino é referido e valorizado no papel materno.
Mãe trabalhadora, mãe que protege a sobrevivência dos filhos, que não os
abandona, mas que fica ausente para proporcionar a sua sobrevivência.
Desprotege-os pela falta de percepção das situações de riscos familiares, como
o abuso. À figura materna fica atribuída a fragilidade e a necessidade de
proteção dos filhos quanto a situações de muito sofrimento. Assim, a
possibilidade de pedir socorro nas situações de risco se torna difícil, já que é
necessário proteger a mãe de situações de sofrimento. O ciúme intenso aparece
na relação entre mãe e filha como um pedido de ajuda, revelando a ausência
das fronteiras familiares e hierarquias. Ele denuncia a competição entre ambas
e a percepção nebulosa do abuso sexual, e podendo favorecer a
indiferenciação do afeto e da sexualidade.
Outro tema importante que favorece a violência familiar são os fatores
externos. Esta família viveu muitas perdas, mortes de familiares de forma
trágica, separações, várias uniões que geraram muito sofrimento. A mãe
perdeu dois irmãos de forma trágica, perdeu o primeiro marido, pai de Cláudia, e
o segundo marido, que está preso. Para Cláudia, a perda de seu pai não é vista
76
como dolorosa, mas a prisão do segundo marido de sua mãe foi um momento
difícil. Segundo ela, ele era o seu pai.
Nesse mesmo tema, a pobreza financeira da família de origem da mãe foi
vivida como uma vulnerabilidade. Essa situação limite favoreceu o sofrimento, a
violência e, por outro lado , foi destacada como um valor familiar na luta pela
sobrevivência.
A presença das drogas também é marcante na família de origem materna
e não surgiu na família atual. Mãe e filha fazem uma relação causal entre
drogas e morte, e essa relação cria sentido na história desta família.
A dor e os traumas vividos aparecem no corpo em forma de dores
constantes e paralisias freqüentes da mãe. Para a filha, aparecem como dores
de cabeça freqüentes e de ouvido, e o sofrimento é tão intenso que é vivido e
sentido nos momentos em que mãe e filha trazem lembranças e histórias.
Podemos sugerir que a relação de intimidade entre homem e mulher pode ser
caracterizada como traumática e perigosa em ambas gerações. Assim, Maria
preserva seu companheiro André, que não exige sexo na relação conjugal.
Atualmente,Cláudia mora com sua avó materna. Foi a maneira encontrada pela
família de Cláudia não correr risco de abuso sexual.
77
2. DESCRIÇÃO DA FAMÍLIA BORGES
Esta família foi encaminhada para atendimento familiar no Centro de Estudos e
Assistência à Família, CEAF, pela psicóloga da escola onde estuda o filho
caçula, Fernando. O motivo do encaminhamento está associado às dificuldades
de relacionamento de Fernando com os colegas e com as professoras com
quem foi relatada agressividade. Em função destas dificuldades a escola
precisou retirar Fernando da classe e colocá-lo em uma classe especial para ser
acompanhado com maior atenção pelos professores. Segundo a escola,
Fernando não apresenta dificuldades psicopedagógicas, mas para Rosa, sua
mãe, Fernando sempre apresentou problemas de relacionamento nas escolas
que freqüentou.
A família foi atendida em co-terapia pela pesquisadora, que é supervisora da
clínica do CEAF, e por uma terapeuta de família voluntária do CEAF.
Diagrama do Núcleo Familiar
R - Rosa, a mãe. L - Lúcia,1
o
filha.
W - Walter , 2
o
filho. F - Fernando, filho caçula.
Lu - Luiz , 3
o
. marido de Rosa. C - Carlos, pai de Fernando, 2
o
marido de Rosa.
- Leandro, 4
o
marido de Rosa. Li - Lindalva, filha de Luiz.
FAMÍLIA BORGES
78
HISTÓRIA DA FAMÍLIA
A família atual é constituída pela mãe, Rosa, com 38 anos, uma filha
mais velha com 20 anos, Lúcia, casada, com duas crianças pequenas de 4 e 2
anos. Pedro, marido de Lúcia , com 24 anos, trabalha como segurança.
Rosa conheceu o pai de Lúcia e moraram juntos durante dois anos. Logo
após seu nascimento, o pai foi embora de casa e até hoje não se sabe de seu
paradeiro. O segundo filho de Rosa, de pai desconhecido, Walter, tem 17 anos.
O terceiro filho é Fernando, com 12 anos. Seu pai está preso por assassinato.
Atualmente, Rosa mora com Luiz, seu terceiro companheiro, a filha
Lindalva, de 15 anos e seus dois filhos, Fernando e Walter. Segundo Rosa, seu
relacionamento com Luiz passou a ser caracterizado como uma sociedade e
não como uma união amorosa. Dividem o aluguel da casa na região do Jaguaré
e as despesas.
Anteriormente, Rosa e seus filhos moravam em Santo Amaro, perto da
família, mas, para ficar mais próxima do trabalho e da escola dos filhos, preferiu
mudar-se para o Jaguaré e, segundo ela, seu terceiro relacionamento começou,
não por afeto , mas por conveniência. Desejou morar mais perto do trabalho
para ter mais tempo com os filhos. Luiz, por sua vez, também precisava mudar
de região, por causa do envolvimento da filha com drogas.
Rosa conheceu o pai de Lúcia com 17 anos e logo engravidou. Quando ele
soube da gravidez, sumiu e não deu notícia. Como sempre trabalhou, precisou
de ajuda de suas irmãs para cuidar de Lúcia .
Dois anos depois, em uma festa, simpatizou com um rapaz e engravidou.
Segundo Rosa, quando soube que ele era casado, não quis procurá-lo para
dizer que estava grávida e, a partir daí, nunca mais o viu. Assim, Walter também
não conhece seu pai e só sabe seu primeiro nome.
Depois de alguns outros namorados, Rosa conheceu o pai de Fernando.
No início do relacionamento, ele era um bom companheiro, mas logo passou a
ser traficante e a consumir drogas, principalmente álcool. Assim, tornou-se
muito agressivo com seus filhos e com ela. Rosa apanhava constantemente e
chegou a perder a visão de um olho. Carlos batia muito em Walter desde
pequeno, e em Fernando. Rosa relatou episódios em que Walter foi internado
no hospital por espancamento. Houve também tentativas de estupro da filha
79
mais velha, Lucia. Rosa constantemente fugia com os filhos, mas Carlos a
perseguia até encontrá-la, ameaçando seus filhos e suas irmãs.
Rosa acreditava que Carlos não suportava viver sem ela e acabava
dando novas chances a ele. Dizia que esquecia o que ele fazia e acreditava que
pudesse mudar. Foram anos difíceis com ele, já que estavam sempre fugindo.
Segundo seus filhos, ela gostava muito de Carlos.
Rosa trabalhava em uma escola pública, fazendo serviços gerais e, num
determinado momento, foi transferida para uma escola em Caçapava. Ela e os
filhos se mudaram para a cidade, pensando que ficariam longe de Carlos . De
fato ficaram afastados, pois Carlos ficou na casa, em São Paulo. Nessa época,
Lúcia, a filha mais velha, estava morando com seu atual marido e ficou também
em São Paulo, mas, em Caçapava, Rosa relata que começaram outros
problemas. Havia uma diretora da escola que a tratava muito mal, dando-lhe
trabalhos pesados e humilhando-a diante de suas companheiras. Sua mãe
estava doente e não podia vê-la. Pediu transferência, mas a diretora não
facilitava, e Fernando apresentava problemas na escola, como faltas
constantes, brigas com os colegas, a ponto de os pais pedirem, em reunião, a
sua saída da escola, que, desde essa época, indicou tratamento
psicoterapêutico e médico para Fernando.
A saída encontrada por Rosa frente a essa situação foi a tentativa de
suicídio. Tomou um vidro de remédios que seu psiquiatra lhe havia receitado.
Não quis pedir demissão, já que havia prestado um concurso público para a
ocupação do cargo. Durante sua recuperação, Lúcia, a filha mais velha, foi
para Caçapava a fim de cuidar dos irmãos. Pouco tempo depois, todos
retornaram a São Paulo, pois Rosa havia sido transferida para uma escola na
região da Lapa. Nessa mesma época, Carlos foi preso, condenado a cumprir
pena de 12 anos pelos crimes cometidos e sua mãe faleceu, devido a
problemas cardíacos.
Rosa conheceu Luiz e resolveram morar juntos. Alugaram a casa em
que moravam e combinaram dividir as despesas. Mas, segundo a família, Luiz
só pagava o aluguel e todo o resto das despesas ficava para Rosa. Seus filhos
se irritavam com isso, achavam que a mãe ficava prejudicada por Luiz e por
Lindalva que, segundo os meninos, não respeitava as ordens da mãe. Rosa
dizia que não vivia com ele e que nunca teve encanto e, como ele não cuidava
80
dos seus filhos, estava cansada, mas ao mesmo tempo não conseguia se
desligar dele; achava mais confortável morar perto do trabalho do que se
separar dele e voltar para sua casa em Santo Amaro. Seus filhos retrucavam e
diziam que a mãe dormia na mesma cama com ele, portanto, não acreditavam
na história contada.
Rosa vem de uma família pobre, de 20 irmãos, sendo que três faleceram
pequenos e restaram 9 mulheres e 8 homens. Segundo ela, seu pai, também
falecido, batia muito na sua mãe.
Na família, somente o irmão mais velho não se envolveu com drogas,
trabalha e não bate na mulher. O irmão mais novo era homossexual e apanhou
muito dos irmãos mais velhos, fugiu e não se tem notícia dele. Os outros
homens também batem muito nas mulheres e nos filhos. Rosa é bastante
próxima das irmãs, principalmente da madrinha de Walter, trabalha muito na
escola e faz bolos e salgados para vender.
No início dos atendimentos, Rosa ameaçava se matar quando estava
desesperada, seus filhos ficavam muito angustiados e também ameaçavam a
mãe de outras maneiras: Walter, dizendo que se mudaria para a casa da
madrinha e Fernando, ameaçando-a com objetos perigosos, como a faca da
cozinha.
Rosa não via sua filha e seus netos há quase um ano. Mãe e filha
brigaram e não se falavam. Rosa disse que foi vê-la, mas que a filha saiu de
casa para não encontrá-la.
Segundo Walter e Fernando, Lúcia é muito agressiva, sempre bateu
muito neles quando pequenos e também bate nos filhos menores.
Na terceira sessão, Rosa chegou bastante aflita, pois Fernando havia
tentado enforcar Lindalva, filha de Luiz. Ele entrou no quarto à tarde, enquanto
ela dormia, fechou a janela e a porta, colocou um móvel atrás dela e enrolou o
pescoço da menina com uma fita isolante. Ela acordou e conseguiu gritar e
reagir. Walter estava na sala e entrou no quarto. A partir desse acontecimento,
Luiz e Rosa decidiram se separar. Rosa voltou para Santo Amaro com seus
filhos, para sua casa perto da casa da família de Lúcia.
Atualmente, a família está em terapia e Rosa conheceu seu quarto
marido, Leandro, que está participando dos atendimentos junto com seus filhos,
bem como sua filha Lúcia e seus netos. Leandro tem 38 anos, já foi casado e
81
não possui filhos do casamento anterior. Tem uma empresa própria de
prestação de serviços. A família reformou a casa e reorganizou os espaços de
cada filho. O relacionamento familiar está muito bom, segundo a família.
Fernando está indo à escola e participando de atividades esportivas, como
futebol, perto de casa. Rosa está conseguindo, junto com Leandro, colocar
regras e limites na casa. Walter e Fernando conversam e dizem que gostam
muito de Leandro. Fernando não está necessitando da medicação psiquiátrica (
Gardenal) e, tanto a mãe como o filho, estão conseguindo conter melhor a
raiva e o desespero.
Os atendimentos passaram a ser quinzenais, e o receio de Rosa é
conseguir manter um bom relacionamento com Leandro e compartilhar o seu
lugar de chefe de família.
Observações do processo terapêutico
No primeiro encontro terapêutico foi apresentado o CEAF, as normas de
funcionamento, as terapeutas e a proposta de pesquisa. A família concordou
tranqüilamente não só com as gravações como também com sua participação
na pesquisa. Assinaram o consentimento lido pela pesquisadora e guardaram
sua cópia.
Neste primeiro encontro, estiveram presentes mãe e filhos. Rosa tinha
uma expressão muito preocupada. Seu filho Walter estava meio mal humorado
e não parecia estar ali por sua vontade. Fernando estava assustado e, ao
mesmo tempo, pareceu-nos muito simpático. A família, de modo geral, desde o
início, foi muito simpática com os terapeutas.
O objetivo dos terapeutas era ouvir a família, suas queixas e conhecer
sua história, propiciando um espaço afetivo e acolhedor. Esta família foi
atendida por duas terapeutas, pela pesquisadora e por outra terapeuta familiar.
Assim, foi possível ampliar o olhar na compreensão da trama familiar.
Estas três sessões iniciais relatam a história da família e, nos encontros
seguintes, estiveram presentes: a filha mais velha, Lúcia, com seus filhos e
marido. Foi ampliado o sistema terapêutico, com o objetivo de aproximar mãe e
filha e conhecer a história da família pelos olhos da filha. Nesse encontro,
82
conversou-se sobre as situações difíceis vividas entre ambas, e o tema
freqüente foi a falta de proteção. A partir desse encontro, mãe e filha passaram
a se encontrar freqüentemente.
Foi feito um genograma familiar, com o objetivo de visualizar a história da
família e estabelecer novas relações. Ficou muito claro e visível para eles a
violência como forma de relação familiar, repetida por gerações: a dificuldade
em ser “homem” que trabalha, que não bate nos filhos e na mulher; a
dificuldade em ser “mulher” e carregar sozinha a educação e a manutenção dos
filhos e ainda apanhar do companheiro, não sendo possível confiar no homem;
a fidelidade para com as histórias das gerações anteriores, e o reviver das
dificuldades familiares existentes.
Foi objetivado, nos atendimentos familiares, favorecer à família a tomada
de consciência da seriedade das situações vividas - ameaças, agressões ,
espancamentos , tentativas de suicídio, tentativa de enforcar e matar - e as
possíveis conseqüências que não eram conversadas, mas consideradas como
“normais”, além de possibilitar a reflexão dos limites das ações, das noções de
respeito, de cuidado e valores.
A maior dificuldade encontrada nos atendimentos dessa família é o modo
de exercício do poder e da diferenciação de níveis de violência e da lealdade
com a violência. Os homens violentos da família eram poderosos e temidos. O
único homem trabalhador e não violento era considerado pela família como um
molenga e medroso. A violência é vista de forma ambígua, como um valor e
como causadora de dor.
Durante os atendimentos, Fernando ficou desenhando figuras de homens
musculosos tatuados e carros. Durante as sessões, fica sentado no chão, numa
postura bem infantil e Walter sempre fica mal humorado e meio irritado com a
terapia. Rosa é sempre muito simpática e está participando com os filhos de
outras atividades no CEAF, no Cine Família e na Terapia Comunitária.
83
FAMÍLIA BORGES
Legenda:
R- Rosa, mãe
L- Lúcia, 1
o
filha.
W- Walter,2
o
filho.
F- Fernando, filho caçula.
C- Carlos , 2
o
marido de Rosa, pai de Fernando.
L- Luiz, 3
o
marido de Rosa
L- Lindalva, filha de Luiz.
Descrição de significado visualizada em negrito
PADRÕES DE COMUNICAÇÃO: o colapso da conversação
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
R - Ele( Carlos) estava com outra mulher na época, mas não deixou claro que
nós estávamos separados.(...) Eu conversei sobre isto várias vezes. Ele
mentiu várias vezes. < pouca clareza na comunicação >
R - No começo, como marido e mulher, mas depois eu vi que não dava certo e
ficamos amigos( Rosa e Luiz). Mas não tem espaço lá nem camas para se
separar. A gente fica na mesma cama. W- Faz muita diferença, ela pode
dormir comigo. ( referência ao fato de Rosa dormir na cama com Luiz )
<quando a comunicação não acorda com o comportamento: dupla
comunicação >
Dificuldade
em falar e
ouvir o outro:
a expressão
do colapso
W - Tento não pensar. < dificuldade do filho para pensar na tentativa de
suicídio da mãe >
W - É muito difícil pensar. É confuso. Agora está melhor. < dificuldade para
pensar nas situações de violência na família >
Falta de
reflexão da
história
familiar.
R -Eu não podia ter outro para ele( Carlos). Não que eu não arrumava alguém,
mas eu tinha medo que ele aparecesse e matasse o cara. Eu nunca deixei que
ele soubesse. < ex-marido não pode saber sobre relacionamentos de
sua ex- mulher- risco de vida >
R - Só que o pai dele ( Walter) não tem contato.Ele não conhece o pai.
< a falta de comunicação entre mãe e filho referente a paternidade >
“O não dito”:
Temas de
difícil
comunicação.
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MITOS E CRENÇAS: TENTATIVAS DE EXPLICAR O INEXPLICÁVEL
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
W - Ela tem mania de conversar besteira. ( Lindalva filha do Luiz) Ela fica
falando da minha mãe. Ela diz que não deixa isto nem aquilo. Que ela quer ir
embora com o pai dela.< o filho não aceita que outra pessoa critique e
responsabilize sua mãe >
Mitos sobre a
comunicação
F - Eu queria ser mais forte e poderoso. < para o filho é importante ser forte
e poderoso >
R- Ele( Fernando) não tem medo de nada. < mãe refere-se à coragem do
filho, com preocupação e receio de que ele seja igual ao pai >
R - Tem horas que eu perco a força e penso em morrer. < perder a força pode
significar o desejo de morrer>
Mitos
reforçadores
da violência
FRAGILIDADE DOS VÍNCULOS INTERPESSOAIS
Citações- atendimentos à família
Sub-
categorias
R - A diretora não me transferiu e eu estava desesperada. ( ...) Eu falava que ia
me matar na frente dela , da diretora. <a ameaça de morte frente ao desespero
e o limite imposto pela diretora da escola >
R - o Walter ameaça de ir embora e eu fico nervosa.< filho ameaça a mãe ao
dizer que vai embora de casa >
R - Quando o Fernando ameaça com a faca
. < a faca e o filho são
ameaçadores para a família >
R - Eu falava que eu ia me matar na escola, na frente da diretora. < o
suicídio como uma ameaça >
R - Foi com a morte. Eu tomei tranqüilizantes e quase morri. Com a morte, eu
ganhava dela. <a morte como um trunfo de poder >
R - Tem horas que eu perco a força e penso em morrer. <perder a força
ameaça a vida >
R - Na época, tinha revólver em casa.... Eu ia pegar o revólver. Cheguei a pegar e
apontava para mim e para ele e não sabia se matava ele ou se me matava. Ele
estava dormindo e acordou na hora que eu estava com o revólver e, a partir
desse dia, nunca mais trouxe a arma para casa. < poder pela ameaça >
O poder pela
violência
85
R - Uma vez ele( Carlos) bateu no meu irmão e na minha mãe. < bater nos
familiares- uma prática habitual >
R - Uma vez ele( Carlos) pegou o Fernando e jogou contra o teto da lavanderia. <
violência física sem limites >
R - Eu me escondia dele, fugia e ele ia atrás de mim e quando ele me achava eu
voltava, de medo dele fazer alguma coisa com as crianças. <constrangimento
através da violência >
R - Além de tudo, tinha gastos, ele comprava coisas e não pagava. Sobrava para
mim. < abusos financeiros>
R - Aquela mulher me torturou, além da transferência que ela dizia que não daria.
Eu sofri muito e me senti presa a ela. <sofrimento referente ao abuso do
trabalho, do aprisionamento na situação e da falta de compreensão da
diretora da escola >
R - O pai dele era muito agressivo, violento. Ele judiava das crianças e de mim.
Ele dava tiro e ameaçava dar tiro na gente. Eu apanhava muito. Este olho ficou
assim.... Foi por causa dele.. Eu não enxergo com ele. <agressividade,
ameaças aos familiares e suas conseqüências >
R - Ele( Carlos) quase matou o Walter. Eram duas horas da manhã,ele chegou e
atacou meu filho e machucou muito. W- Se lembro. Eu tinha quebrado a tampa
do vídeo, e à tarde ele me acordou bravo e eu disse que foi sem querer e ele
começou a bater. Ele me deu um soco e eu fui para o hospital. < violência
sem limites >
R - O caso que teve foi que o pai de Fernando... tinha uma menina em casa , uma
empregada, mas a menina ele abusou da menina... não era tão menina ... mas
na época ele chegou para mim e falou. Teve também a minha sobrinha que o pai
dele estuprou. Ela estava grávida e quando ela ganhou nenê, ele matou o pai do
nenê.<abuso sexual e violência máxima sem interdição e sem
constrangimento >
W - Quando minha mãe ficou doente com hemorragia, ele( Carlos) tentou agarrar
a minha irmã. ( Lúcia) < Tentativa de abuso sexual da enteada no momento
de fraqueza de sua esposa >
R - Eu não estava em casa. Parece que era mais ou menos cinco horas da tarde,
o Walter estava assistindo televisão. A Lindalva estava no quarto dormindo. O
quarto não tem fechadura e ele ( Fernando) fechou a janela. O Fernando tentou
enforcá-la com a fita isolante. < Filho tenta enforcar e abusar sexualmente de
da enteada de sua mãe>
Abusos e
violência
familiar
freqüente
.
W - Eu não tenho raiva não. ( pai de Fernando) <não expressão da raiva >
R - Pelo que eu percebo o que ele fala , ele tem carinho pelo Carlos. ( pai do
Fernando).< afeto pelo abusador >
Negação da
violência
vivida.
R -Eu prefiro morrer se eu ver que falta alguma coisa para filho meu e não puder
dar. < perda de emprego e da situação econômica é uma ameaça à vida >
R - Quando eu fui para escola eu me senti acuada, presa à escola
.
< situações sem saída >
R - O Walter falava que, se ele aparecesse e fizesse alguma coisa para mim, ele
matava ele. < a vingança >
R - Eu pensei em me matar. Na época, tinha revólver em casa.... Eu ia pegar o
revólver. Cheguei a pegar e apontava para mim e para ele e não sabia se matava
ele ou se me matava.
< desespero gerador de ameaça>
Indicadores de
risco.
86
SEGREDOS: AS CONOTAÇÕES DO VISÍVEL E DO INVISÍVEL
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
R -Eu não podia ter outro( homem) para ele ( Carlos). Não que eu não
arrumava alguém, mas eu tinha medo que ele aparecesse e matasse o cara.
Eu nunca deixei que ele soubesse. Era escondido. < silêncio como
proteção >
R - Só que o pai dele ( Walter), ele não tem contato. Ele não conhece o pai.
< histórias não contadas sobre o pai do filho>
Silêncio: a
garantia da
invisibilidade
R - Ela sabia das minhas dificuldades e ela gritava comigo, dava serviço muito
pesado. Outras funcionárias me falavam que o que ela fazia comigo não tinha
condições. < Vergonha da exploração no trabalho perante aos outros >
Vergonha:
visibilidade
indesejada.
INTERGERACIONALIDADE: lealdade e tradição familiar da violência.
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
M - Meu pai era.. ele bateu na minha mãe até quando meus irmãos cresceram
e não deixaram mais ele bater nela. Mas ele ajudava minha mãe. Ele sempre
trabalhou e dava o dinheiro para ela. < valor do sustento familiar mesmo
que haja violência >
W - O pai dele ( Fernando ) estuprou e depois matou o cara. <ensinamento
familiar da violência >
R - O caso que teve foi que o pai de Fernando... tinha uma menina em casa ,
uma empregada, mas a menina ele abusou da menina... não era tão menina
... mas na época ele chegou para mim e falou. Teve também a minha sobrinha
que o pai dele estuprou. Ela estava grávida e quando ela ganhou nenê, ele
matou o pai do nenê. <ensinamento da violência e da falta total de respeito
à mulher >
W - Quando minha mãe ficou doente com hemorragia ele tentou agarrar a
minha irmã. ( Lúcia) < vulnerabilidade da mulher na família >
R - Eu não estava em casa. Parece que era mais ou menos cinco horas da
tarde o Walter estava assistindo televisão. A Lindalva ( filha de Luiz) estava no
quarto dormindo. O quarto não tem fechadura e ele ( Fernando) fechou a
janela. O Fernando tentou enforcá-la com a fita isolante. < repetição da
violência >
R - Ele acha que ele só tem razão. Ele não quer ir para a escola ele faz o que
Aprendizado
na família
87
quer.( referência à Fernando) < não aceitação da autoridade>
R - O Walter tenta ajudar o Fernando. Ele chama na rua , ele se preocupa. Eu
digo que precisa obedecer o irmão mais velho.<importância da obediência
(irmão mais velho na ausência da mãe) como proteção e cuidado >
R - Daí eu falo toma banho, vai para a escola e é uma dificuldade, falo vai
dormir mais cedo para acordar e ele ( Fernando ) não vai. < falta de
autoridade da mãe para que o filho cumpra as regras >
R - A diretora fazia eu raspar os tacos da escola na mão. Fiquei acabada. Ela
abusava de muito. < sexo feminino: abuso e autoritarismo >
R - Meu pai batia na minha mãe quando bebia, batia muito Ele só me bateu
uma vez, mas pouco. < sexo masculino : violência >
R - R- Eles bebem, batem nas mulheres, quando bebem. Mas só. ( irmãos) .
Os homens da minha família, o mais velho é o exemplo, ( não bate na mulher),
mas os outros são difíceis. < homens violentos >
Relações de
gênero e
poder.
R -Eu prefiro morrer se eu ver que falta alguma coisa para filho meu e não
puder dar. < mesma resposta ( morte) para situações de impossibilidade >
R - Quando eu fui para escola eu me senti acuada, presa à escola.
<aprisionamento nas relações de violência >
R - Eu não estava em casa. Parece que era mais ou menos cinco horas da
tarde, o Walter estava assistindo televisão. A Lindalva ( filha de Luiz) estava no
quarto dormindo. O quarto não tem fechadura e ele ( Fernando) fechou a
janela. O Fernando tentou enforcá-la com a fita isolante. < repetição da
violência paterna na nova geração>
R - Minha mãe ficou com meu pai cinqüenta e poucos anos. Ele era
alcoólatra.(...) Ele não é de beber. ( Walter). Só uma cervejinha, não é filho ?
Mas uma vez , faz uns meses, aí eu levei um susto, ele chegou carregado de
bebida em casa. < medo da repetição do alcoolismo >
Pedido de
socorro: o
drama se
repete.
VIVÊNCIAS FAMILIARES : denominador comum das histórias de
sofrimento
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
R - Quando deu o primeiro enfarto, ela ( mãe) tinha 76 anos. Eu peguei
minhas férias e vim ficar com ela. Quando ela piorou mesmo , eu já estava
aqui em São Paulo. Ela veio a falecer logo que eu voltei. ( Caçapava para São
Paulo ) < sofrimento e alívio por estar perto da mãe na doença e na
morte >
R - Neste fim de semana foi difícil, morreu um sobrinho que não mora aqui,de
tiro, bala perdida. Também morreu um amigo de Walter. ( acidente de moto)
< sofrimento pela perda e medo da violência >
Os lutos:
perdas ,
mortes,
separações
88
R - A gente passa necessidade. Eu saio para trabalhar a semana toda e de
manhã na segunda eu faço um bico no salão de cabelereiro. Faço faxina.
< sobrecarga de trabalho>
Pobreza: uma
das
vulnerabilidad
es
R - Ah .... ele era bonzinho. No começo não tinha problemas. Depois ele se
envolveu com drogas, bom .... daí... Ele ficou muito agressivo Eu apanhava
dele.<o uso de drogas como geradora de violência >
R - Minha mãe ficou com meu pai cinqüenta e poucos anos. Ele era
alcoólatra.(...) Ele não é de beber. ( Walter). Só uma cervejinha não é filho ?
Mas uma vez , faz uns meses, ai eu levei um susto, ele chegou carregado de
bebida em casa. < drogas: um perigo para a nova geração >
Drogas: um
perigo
R - Eu não podia ficar ali ( na escola em Caçapava) e não podia pedir as
contas. ( ...) A diretora da escola era muito difícil de lidar. Eu não conseguia
dormir e chorava muito. A diretora não me transferiu e eu estava desesperada.
<choro como expressão do aprisionamento na vivência da exploração e
do abuso no trabalho >
R - Aquela mulher( diretora) me torturou, além da transferência que ela dizia
que não daria.Eu sofri muito e me senti presa a ela. ( choro) < sofrimento
gerado pelas torturas e pelo aprisionamento >
W - Tento não pensar.( expressão de pânico) < trauma da tentativa de
suicídio da mãe >
R - Ele ficou muito agressivo. Eu apanhava muito dele. Este olho ficou assim...
Foi por causa dele . Eu não enxergo com ele. Ele dava tiros e ameaçava dar
tiros na gente. Eu fugia e ele( Carlos) perseguia muito. <corpo marcado
pela cicatriz real e simbólica- traumas da violência >
O corpo se
expressa: dor,
traumas
Reflexões a partir das categorias: FAMÍLIA BORGES
Esta família apresentou dificuldades na comunicação. Mãe e filhos
discutiam sobre os acontecimentos e tentavam impor opiniões; não queriam
escutar uns aos outros, ou seja uma maneira de se comunicar simétrica, em
que todos competem e lutam para ver quem é o vencedor. Em outros
momentos, quando a narrativa não parecia coerente com os fatos e
sentimentos, a comunicação passava a ser desqualificada e aparecia a dupla
comunicação.
É marcante nessa família a dificuldade de percepção da história vivida e
também da legitimação da percepção do outro: nessa circunstância, a reflexão
das histórias familiares se torna um grande esforço. A sensação descrita é de
confusão e vontade de não pensar sobre as situações vividas.
89
Observando os relatos, percebe-se que, devido às situações freqüentes de
violência, falar e ouvir o outro pode ser perigoso, pode trazer maiores riscos de
violência e morte. A comunicação pode ser geradora de sofrimentos e revelar
fragilidades familiares, como, por exemplo, a história do pai de Walter.
Assim, contar a história de forma parcial pode ser vista como protetora
de situações ameaçadoras, e a comunicação dialógica pode ser vista nas
situações de violência como um perigo, adquirindo um poder de mito.
“Falar mal de mãe e criticar a mãe, só filho pode” uma fala que retrata a
importância da mãe e limites na comunicação. Outros mitos aparecem nas
entrelinhas das narrativas e colaboram com a violência familiar, como a
força física e psíquica, qualidades importantes para ataque e defesa nas
situações de vulnerabilidade. Ser forte significa ter poder para ameaçar, vingar-
se, educar filhos , viver, lutar, escapar, matar, abusar. A força adquire um
significado do poder da violência e, do mesmo modo, da possibilidade da sua
desconstrução.
A ameaça está muito presente nessa família como forma de controle ou
poder, e aparece em várias formas, como o suicídio, as facas , o abandono.
Outro ponto que chama muita atenção são os abusos e violência freqüentes
vividos de forma intensa por mãe, filhos e parentes, sem interdições.
Verdadeiras torturas familiares. Violência gratuita às crianças, abuso sexual,
violência física e psíquica e, decorrente desses sofrimentos intensos, aparece a
negação da violência vivida, medo dos sentimentos, a impossibilidade de sentir
raiva, o afeto ao agressor e desejo de vingança. Assim, aparece tanto a
negação dos sentimentos e sua contradição como o prazer na violência.
Os abusos são freqüentes e de várias naturezas, como sexual, financeiro,
referentes ao trabalho no sentido da exploração, e são ensinados de uma
geração para outra. Desta forma, a intergeracionalidade possui um papel
marcante na transmissão da violência familiar . As lealdades à cultura familiar e
sua tradição colaboram para que a situação das gerações subseqüentes se
repita. Nessa família, tanto os homens como as mulheres são violentos na
maneira de se relacionar. Os homens são temidos pelos abusos sexuais,
mortes, abandono e traição. As mulheres se utilizam das ameaças de vida,
morte e abandono, do uso da fragilidade como poder, da exploração do
trabalho.
90
Analisando o contexto familiar, podemos observar que a família viveu
situações de mortes de familiares, filhos conviveram com ausência da figura
paterna e houve uniões e separações, mudanças de cidade e bairro, envolvendo
trocas de escola dos filhos. A figura materna é quem sustenta financeiramente
os filhos e, decorrente desse fato, trabalha em dois empregos , na limpeza de
uma escola, nas folgas faz outras faxinas e vende doces e bolos nas horas
vagas. Uma sobrecarga de trabalho para manter a família.
As drogas aparecem como perigo que pode gerar morte, acidentes e
violência.
Na família Borges, portanto, os traumas familiares decorrentes das
situações de violência são freqüentes. As cicatrizes reais e simbólicas da
violência marcaram a família, que até hoje apresenta reações físicas e psíquicas
a determinadas situações que lembrem o passado. Rosa relata que, quando
sente uma situação de risco como estar acuada, aprisionada, se desespera e
não consegue controlar o que sente; e automaticamente revive situações do
passado com Carlos. Outra situação de risco é a possibilidade de perder o
emprego e a situação econômica.
Os filhos ficam assustados quando a mãe está nervosa, sempre com a
expectativa de que vai ocorrer uma catástrofe familiar.
91
3. DESCRIÇÃO DA FAMÍLIA- CASTRO
Esta família foi encaminhada para atendimento no Centro de Estudos e
Assistência à Família, CEAF, pelo Conselho Tutelar. O motivo do
encaminhamento está associado às dificuldades de relacionamento entre mãe e
filha. Zenaide, mãe de Graça, procurou o Conselho Tutelar, preocupada com a
filha de 15 anos, que estava muito agressiva com ela. Segundo a psicóloga do
Conselho, Zenaide não permite a saída da filha com colegas, dificulta suas
amizades, até mesmo com amigas da Igreja Evangélica que sempre freqüentou.
Segundo as psicólogas do Conselho Tutelar, Zenaide impede o
desenvolvimento de sua filha Graça. Assim, mãe e filha não conseguem
conversar e a filha conta muitas mentiras, parece estar depressiva e fala muito
em morte.
Essa família foi atendida por duas terapeutas, Suzanna Levy (T1)
pesquisadora e terapeuta familiar e por Lena Bartman( T2), terapeuta familiar,
ambas voluntárias do CEAF.
Diagrama do Núcleo Familiar
Z- Zenaide, a mãe. < - Sr. José, marido falecido de Zenaide.
G- Graça, filha de Zenaide e Sr. José.
FAMÍLIA CASTRO
92
HISTÓRIA DA FAMÍLIA
A família atual é constituída pela mãe, Zenaide, com 50 anos e pela filha,
Graça com 16 anos. Zenaide conheceu o pai de Graça, Sr. José, aos 15 anos
quando foi trabalhar em sua loja. Sua família alugava uma das casas do Sr.
José.
Zenaide e sua família viveram no interior de S. Paulo, na colônia de uma
fazenda. Desde pequena ajudava seus pais na roça e estudava. Seus pais
eram autoritários e não aceitavam desobediência dos filhos. Quando, por
alguma razão, não fazia o que os pais pediam , desobedecendo principalmente
à mãe , apanhava com vara de marmelo, muitas vezes chegando a sangrar.
Depois das surras, a mãe habitualmente cuidava dos ferimentos dos filhos e
Zenaide considera esses episódios como formas de demonstrar amor. Seu pai
não batia, mas Zenaide diz que tinha pulso forte e autorizava a mãe a bater
nos filhos. Sua mãe atualmente é bem idosa; doente e mora nos fundos de sua
casa. A família de Zenaide é negra.
Zenaide, depois de trabalhar na loja de Sr. José, foi trabalhar como
funcionária de limpeza em uma grande empresa por onze anos, até o
nascimento de sua filha Graça. Enfatiza que só deixou esse trabalho porque
seu marido, pai de Graça, queria que ela ficasse em casa para melhor cuidar de
sua filha.
Ao 27 anos, foi pedida em casamento por Sr. José, que estava viúvo. Sua
mulher havia falecido por problemas ocasionados pela diabetes. Zenaide vinha
de uma história de decepção amorosa com um colega de trabalho e mesmo não
sentindo amor por Sr. José, aceitou morar com ele. Aos poucos, diz que
aprendeu a gostar do marido, por ele ser um homem bom. Um homem que a
tratava com respeito e carinho.
Sr. José estava com 68 anos na época em que foi morar com Zenaide.
Sobre sua história, Zenaide conta que ele veio de Portugal com 14 anos,
trabalhava em navios, carregando carvão. Resolveu ficar no Brasil e, no início,
morou em Recife. Nessa época, trabalhava com comércio e depois veio para
S. Paulo. Inicialmente, trabalhou muito como camelô e depois abriu um
mercado. Aos poucos foi comprando alguns imóveis em S. Paulo, vivendo do
93
aluguel. Sr. José somente retornou a Portugal, em sua cidade, Caiscais, para
rever sua mãe doente, antes de ele morrer e não tinha o hábito de se
comunicar com sua família, em Portugal.
Alguns anos depois que Zenaide e Sr. José estavam morando juntos,
ela engravidou. Foi uma surpresa e muita alegria. Ambos queriam muito um
filho e pensavam que já era tarde. Com o nascimento de Graça, Sr José se
dedicava dia e noite à filha. Havia vendido seu mercado e vivia de suas rendas.
Graça nasceu muito clara de pele, parecida com o pai e com sua família de
Portugal.
Para Zenaide, foi difícil a filha não ter o seu tom de pele e, quando
passeavam na rua, as pessoas perguntavam sobre a mãe do nenê ,
considerando que ela era a babá e não a mãe. Às vezes chegava a duvidar que
ela era sua filha. Como poderia ter uma filha tão clara? Ao mesmo tempo, se
encantava com a beleza da menina.
A situação familiar passou a ficar difícil quando Sr. José, com 84 anos,
começou a ter problemas de saúde. Quando Graça estava com 6 anos, seu pai
morreu de problemas cardíacos, e a família ficou muito só; Zenaide traz sua
mãe, já adoentada, para morar com elas, no fundo de sua casa.
Zenaide relata que este período foi extremamente sofrido para elas. Por um
lado, nunca se preocupou com os negócios da família e não sabia como cuidar
dos bens e dos aluguéis. Por outro lado, relembra que Graça era pequena e que
ficou muito triste com a perda do pai, na escola se isolava das colegas , ficando
no canto. A psicóloga da escola recomendou uma terapia que segundo a mãe
ajudou muito.
Procuraram ajuda do advogado da própria imobiliária para cuidar dos
aluguéis. Este mesmo advogado fez o inventário da família e, mais tarde,
Zenaide descobriu que o falecido marido não havia feito testamento, assim
como a situação do casamento não era legal os imóveis e dinheiro em conta
ficaram todos como herança somente da filha. Achou que não deveria contar à
ela sobre esta situação. Mais tarde, Graça veio a saber, pelo advogado, e
sentiu-se enganada. Zenaide ficou muito aborrecida e desconfiada do
advogado, pois achava que teria direito sobre a herança. Dessa maneira Graça
teria direito a receber toda herança, quando completasse 18 anos. Esta
situação foi de muito sofrimento para Zenaide, que sentiu que dependeria da
94
filha no futuro. Atualmente, Zenaide não dispõe de renda e nem de bens. A
renda com que a família vive é devida aos aluguéis e uma renda que gira em
torno de R$ 3000,00. Portanto, não se trata de uma família de baixa renda, mas
atualmente está vivendo com R$ 800,00, devido à falta de pagamento dos
impostos dos bens que Zenaide disse não ter pago por falta de dinheiro.
Quando o Sr. José faleceu, a casa da família estava em reforma; segundo
Zenaide, os gastos foram altos e tiveram, nessa mesma época, problemas com
inquilinos, portanto, não teve renda para pagar impostos. Atualmente, fez uma
negociação para pagá-los . Mais de dois terços da renda recebida está sendo
encaminhada para acertar as dívidas, o que é um ponto de conflito familiar , pois
Graça reclama e briga com a mãe por estarem sem dinheiro e ela não poder
comprar alguma roupa. Também o fator financeiro tem sido usado pela mãe
como um obstáculo para as eventuais saídas de Graça.
Para Zenaide, sempre ela e sua filha tiveram bom relacionamento, mas
agora brigam muito e se ameaçam. Segundo a mãe, isso está acontecendo por
causa da adolescência da filha. A mãe não permite que ela saia de casa e não
aceita suas amizades; a filha ameaça, dizendo que, quando receber sua
herança, vai sumir no mundo e não vai à escola, causando uma aflição grande
na mãe.
Graça diz que sua vida assim não tem sentido. Quer ter amigos e sair
com eles. Algumas vezes mente para a mãe e fica conversando com pessoas
em chat de conversas , trancada no seu quarto.
Graça estuda em escola particular, mas não gosta da escola, pelo fato de ter
somente seis colegas na classe. Gostaria de estudar em uma escola maior.
Zenaide também tem dificuldades nessa escola. Sente que as professoras não
a tratam bem pelo fato de ela ser negra. Percebe o preconceito nas reuniões de
pais mas, ao mesmo tempo acredita que escola particular é melhor do que as
outras. Incentiva a filha a estudar, dizendo que ela estudou pouco e também o
pai de Graça, que não teve chance de estudar em vida. Graça falta
constantemente às aulas, deixando a mãe revoltada.
No decorrer do processo terapêutico, Graça convidou amigos para irem
em sua casa, e relata que a mãe é agressiva com ela, principalmente na frente
dos colegas. Trata mal seus amigos e a inferioriza diante de suas amigas.
Rasgou suas roupas porque diz que são provocativas. Graça passa a falar mais
95
nas sessões de terapia, e a contar sobre um namoradinho que foi na casa dela
pedir à mãe consentimento para o namoro e esta ficou muito brava e o tratou
mal, dizendo que não estava de acordo com o namoro da filha. Zenaide diz
que não confia em ninguém, que sentiu que o advogado a enganou. Relatou
que no momento que estava muito necessitada de dinheiro, pediu ao advogado
para liberar algum dinheiro da conta do Sr. José, que estava em juízo como
herança da filha. Deu uma procuração mais ampla para o advogado e este
liberou o dinheiro para ajudá-la naquele momento. Segundo ela, ele não a
advertiu que deveria prestar contas do dinheiro para o Juiz e ela nada fez. Em
função disso,recebeu uma intimação judicial para prestar contas. Procurou
outro advogado da igreja Evangélica para ajudá-la e disse ter sido ameaçada de
perder a guarda da filha por uma funcionária do Fórum. Atualmente, dispensou
os advogados e disse que o último estava seguindo sua filha, pois a viu
molhada na rua em um dia de chuva, na porta de casa, e espalhou pelo bairro
que ela estava drogada e era mal cuidada pela mãe. Disse desconfiar de todos,
inclusive da terapia, e depois da quarta sessão solicitou a interrupção das
gravações dos atendimentos.
Em muitas situações, Zenaide se coloca como uma pessoa ingênua, que
fez besteiras como não negociar e não pagar os impostos dos bens da filha,
alegando não saber nada sobre isso, mas ao mesmo tempo constata que, se
não pagasse, a filha, ao receber seu patrimônio aos 18 anos, teria de acertar as
contas, que estariam próximas ao valor comercial de seus bens. Portanto, teria
que vendê-los para saldar suas dívidas.
Observações do processo terapêutico
Inicialmente, a proposta da terapia foi conhecer a história familiar e os
conflitos vividos. Houve, por parte das terapeutas, preocupação com a
adolescente que estava deprimida e com muita raiva da mãe. Nosso receio era
de que Graça saísse de casa e também sentimos medo de suicídio. Fomos
investigando além da história familiar, criando um espaço de reflexão desse
sofrimento de uma adolescente muito presa em casa. Assim,começou a haver
96
um movimento da mãe, deixando a filha sair um pouquinho com amigos para ir a
lugares como o Shopping Center. A partir daí, fomos percebendo a filha mais
comunicativa, com uma expressão menos angustiada e depressiva. Relatava
conversas com amigos e muita vontade de namorar. Ao mesmo tempo, fomos
pesquisando a história de Zenaide antes e depois da morte do marido. Todas
as situações vividas, inclusive as relacionadas com a herança deixada pelo pai
de Graça, não faziam parte das conversas entre mãe e filha e havia muitas
lacunas nessas conversações. Partimos de uma hipótese que essa herança
havia sido extremamente dolorosa para Zenaide e podia também ser destruída
por ela que, de uma forma aparentemente inconsciente, levou os bens à
situação de risco. Assim, a filha estava em risco e a herança também. O foco
terapêutico nesse momento foi destrinchar a situação vivida e essa história, em
muitos momentos, pareceu um enigma a ser desvendado. Existia uma violência
intensa pouco clara na situação familiar que ficou mais clara quando foi possível
conversar sobre a vida dura vivida por Zenaide, com dificuldades financeiras,
com a fase da adolescência pouco vivida, pois necessitou trabalhar desde
menina. A vivência da sexualidade também foi reprimida e pouco vivida em um
casamento com um homem de 68 anos. Outra violência sentida foi não receber
parte dos bens do marido. Já sua filha, uma adolescente herdeira, rica segundo
a família, bonita, jovem, com pele clara, querendo viver a fase da adolescência
de forma diferente do que a mãe deseja e que precisa ser impedida. Assim a
mãe a prende em casa, algumas vezes destrói suas roupas e quase a faz
perder seus bens, deixando de pagar os impostos.
97
FAMÍLIA CASTRO
Legenda:
Z- Zenaide, mãe
G- Graça , filha
J- Sr. José marido de Zenaide e pai de Graça
Descrição de significado visualizada em negrito
PADRÕES DE COMUNICAÇÃO: o colapso da conversação
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
Z - Ela não quer mais escutar. < mãe reclama que a filha não a escuta e
não a obedece>
G - Ela não deixa eu namorar. Ela é brava e não consegue falar assim.... ter
um diálogo com ela. Ela começa a gritar.(...) Ela não sabe conversar, faz um
escândalo. < filha reclama que a mãe não estabelece um diálogo e faz
escândalo >
Z - Eu não falo abertamente como a senhora( terapeuta) . Eu tenho
dificuldades de falar do assunto .<a mãe confirma dificuldade para falar de
sexualidade>
Z - Por isso nosso desentendimento. Ela não me ouve.< desentendimento
causado pela dificuldade em ser ouvida pela mãe>
G - Eu precisava falar com alguém. Por isso entrava em Chat Amizades.
< filha relata sua necessidade de comunicar-se e relacionar-se com
alguém>
Z - É isso. Parece que quanto mais eu falo “não” , mas eles querem.< para a
mãe, a negativa incentiva o desejo>
Z - Eu não gosto de falar ....mas.... a gente começa a bater boca e a gritar.
< mãe relata o desespero e os gritos na comunicação >
Z - Eu sinto que ela melhorou, ela gritava e eu alterava e as duas não
conversavam.< mãe relata a melhora na comunicação com a filha
>
Dificuldade em
falar e ouvir o
outro: a
expressão do
colapso
Z - Eu, às vezes, não queria fazer o serviço( trabalho na roça). Aí eu apanhei
demais, mas agradeço. Eu sentia que era amor. Minha mãe me educava
muito bem. < a mãe recorda de fatos da infância e qualifica o bater como
forma de educar e de obedecer>
Falta de
reflexão sobre
a história
familiar.
.
Z - Eu acho que como ela tem a herança dela, não pensa em estudar e
trabalhar. Quando ela fizer 18 anos,ela recebe tudo que o pai deixou. Esse
assunto é difícil. É nosso maior problema. Agente nunca falou isso. < para a
mãe é difícil e perigoso falar sobre a herança da filha >
Z - Eles namoram e se encontram escondidos.( ...) Ela não fala nada para
mim. < mãe diz que a filha esconde seu namoro e outras coisas>
Z - Eu nunca tive ninguém. Eu já tive uma decepção com um rapaz que eu
gostava muito. Eu nunca contei para ela,não é necessário.
< mãe não acha
necessário falar sobre seus relacionamentos com a filha>
“O não dito”:
Temas de difícil
comunicação.
98
MITOS E CRENÇAS: TENTATIVAS DE EXPLICAR O INEXPLICÁVEL
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
Z - Eu nunca tive ninguém. Eu já tive uma decepção com um rapaz que eu
gostava muito. Eu nunca contei para ela, não é necessário.<mãe acredita que
falar para a filha sobre suas vivências e sobre sua decepção amorosa
não é necessário>
Z - Eu não falo abertamente.( sexualidade) Eu sou Evangélica.<Para a mãe,
não se deve falar de sexualidade sendo Evangélica.
Mitos sobre a
comunicação
G - Estou sim. Eu mudei , mas ela quer que eu fique sempre criancinha dentro
de casa. A gente muda .... não que eu sou uma adulta. Eu ainda sou nova ,
mas não sou mais criancinha...< filha reclama por ser infantilizada pela
mãe>
Mitos
reforçadores
da violência
FRAGILIDADE DOS VÍNCULOS INTERPESSOAIS
Citações – atendimento à família
Sub
categorias
G - Não é porque eu estou rebelde, é que ela não deixa eu fazer nada. Ela não
deixa eu sair com amigas, ir ao Shopping.< filha reclama de não poder sair
com amigas e ficar sempre em casa>
G - Minha mãe não gostava dela. ( amiga) Ela ia me chamar e minha mãe falava
que eu não estava. E é a única amiga, porque a rua que eu moro é comércio e
não tem gente para ser amiga. Ela não deixava eu sair e eu ficava em casa e
queria conversar com alguém. Eu queria conversar e então entrava no Chat
Amizade. < filha relata que a mãe a afasta das amizades e relacionamentos e
que a saída ficou sendo a internet >
Z - Ela me obriga a dar dinheiro e me ameaça dizendo que vai dizer que eu deixo
ela passar fome.< mãe se diz ameaçada pela filha, forçando-a a lhe dar
dinheiro>
Z - É de fato porque ele ( pai de Graça) deixou tudo para ela e ela diz, quando a
gente briga, que vai embora e vai levar o dinheiro com ela.
< filha ameaça
abandonar a mãe>
O poder
pela
violência
99
.
G - Não é porque eu estou rebelde é que ela não deixa eu fazer nada. Ela não
deixa eu sair com amigas, ir ao Shopping.< filha é impedida pela mãe de
relacionar-se >
G - Minha mãe não gostava dela. ( amiga) Ela ia me chamar e minha mãe falava
que eu não estava. E é a única amiga, porque a rua que eu moro é comércio e
não tem gente para ser amiga. Ela não deixava eu sair e eu ficava em casa e
queria conversar com alguém. Eu queria conversar e então entrava no Chat
Amizade.< filha relata que a mãe mente e expulsa suas amigas e só pode
ficar em casa >
Z - Ela é agressiva com palavras, fala alto. Eu também.< mãe e filha se agridem
com palavras>
Z - O pai dela era loiro e ela também. Sempre acharam que eu era empregada
dela.< mãe relata sua vivência com o preconceito de cor >
Z - Nunca pensei que ele se casaria comigo.< mãe não acreditava que o
marido português poderia se casar com uma negra pobre>
Z - Ela precisa aprender... Não sei se ela aprende. < mãe não acredita no
potencial de aprendizagem da filha na escola >
Abusos e
violência
familiar
freqüente
Z - Eu às vezes não queria fazer o serviço ( trabalho na roça). Aí eu apanhei
demais, mas eu agradeço. Eu sentia que era amor. Minha mãe me educava
muito. < D. Zenaide qualifica a forma de educar de sua mãe>
Negação da
violência
vivida.
Z - Eu vi a agenda dela .... a aí..... Eu quero ver ela bem.< mãe espiona a
agenda da filha >
G - Eu não fiz a lição dois dias, mas eu esqueci de fazer lição e não é para ela
mexer. <Filha reclama que a mãe espiona suas coisas>
G - É eu sei.... ah... porque sei lá.... é por causa daquele caso do meu
namorado... ela falou todas aquelas coisa para ele. < filha estava muito brava
com a mãe, por tratar mal seu namorado, e se vinga, não indo à escola>
Z - Eu não confio em ninguém. <mãe não confia>
Z - Este namorado dela ( filha) viaja muito, pelo trabalho, e ontem ela estava
preocupada que ele estava no litoral.<a mãe diz que sua filha desconfia do
namorado quando ele viaja >
T - Você confia no seu namorado?
G - Não.< filha também não confia >
Indicadores
de risco.
SEGREDOS: AS CONOTAÇÕES DO VISÍVEL E DO INVISÍVEL
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
Z - No papel pode ser que seja dela , mas eu acho que eu tenho parte disso.
Eu sou mãe e pai. Que ela não sabe nada disso direito. < mãe relata que,
apesar de a herança ser da filha, também tem direito. A filha sabe pouco
Silêncio: a
garantia da
100
deste assunto>
Z - Eu nunca tive ninguém. Eu já tive uma decepção com um rapaz que eu
gostava. Eu achei que não era necessário. < mãe silencia sua história de
decepção amorosa>
Z - Eu não falei que a herança era dela.< mãe silencia sobre a herança
deixada somente para a filha >
invisibilidade
G - Daí, quando ela( mãe) chegou em casa e viu que ele( namorado) estava
em casa e ela falou aquilo tudo para ele, ele foi em casa outro dia para falar
comigo e eu pedi para ele falar para minha mãe que a gente não ia namorar
mais. < filha relata a dificuldade no encontro de sua mãe com seu
namorado e do seu desejo de parar a crise com a mãe >
G - Ele( namorado) queria conhecer ela e ela não devia ter dito aquilo tudo.
Depois ela conversava comigo.. Mas ela fez escândalo.< mãe faz escândalo
com o namorado da filha >
G -Quando ela fala estas coisas para mim. Ela me trata como pequena . Eu
tenho 16 anos é difícil. < filha expõe dificuldade de se sentir infantilizada>
Z - Porque ...bom ....é que ....quando entrou a nova diretora da escola dela,
eles achavam que ela não era minha filha, porque ela é clara como o pai.
Sempre acharam que eu era empregada dela.< mãe expõe a dificuldade
gerada pela diferença de cor com sua filha e preconceito vivido >
Vergonha:
visibilidade
indesejada.
INTERGERACIONALIDADE: lealdade e tradição familiar da violência.
Citações - atendimentos à família
Sub
categorias
Z - Eu não confio em ninguém. <mãe não confia em ninguém>
G - Não é porque eu estou rebelde é que ela não deixa eu fazer nada. Ela não
deixa eu sair com amigas, ir ao Shopping.< mãe não deixa filha sair de casa>
Z - Eu contei aqui já, que eu não gosto de sair e quando ela era pequena a
gente ficava muito em casa. < mãe não gosta de sair de casa >
Z - Ela dizia que eu era nervosa, que eu chorava e fazia birra. Mas com a idade
dela( filha) eu era uma menina adolescente calma. Quem era rebelde era
minha irmã e sempre deu problemas para minha mãe. Na minha criação, era o
seguinte, da escola ia para roça trabalhar, ajudar a família na roça. Eu às
vezes não queria fazer o serviço. Aí eu apanhei demais, mas eu agradeço.
Sabe, não saía sangue, era com vara de marmelo, não ficava hematomas, mas
minha mãe lavava com água e sal Eu sentia que era amor. Minha mãe me
educava muito bem Eu aprendi muito. < para a mãe é importante ser calma,
e obediente. A mãe pode bater para educar, e é uma forma de amor>
Z - É isso. Parece que quanto mais eu falo “não” , mais eles querem.< mãe se
refere aos adolescentes que não aceitam o não>
Z - Ela não quer mais escutar.( ....) Eu acho que a Graça quer passar por cima
Aprendizado
na família
101
da minha autoridade.(....) Os diretores da escola já me disseram que eu tenho
que ter autoridade. Eles pensam que quem manda é a Graça. < mãe
reclama que a filha não quer obedecê-la e pode estar perdendo a
autoridade >
Z - Este advogado, depois de 9 anos, ele me tratava mal.... ( choro ) era difícil
para mim. Vocês entendem? Eu confiei nele e fiquei com ele 9 anos. No início
ele tratava bem, depois ele me agredia com palavras.< homens não são
confiáveis>
G - Lá eu só tenho amizade com uma menina ( escola) , porque tem mais
meninos que meninas. Eu tenho amizade com os meninos , mas só na
escola.< Graça demonstra receio nas amizades masculinas>
Z - . Eu já tive uma decepção com um rapaz que eu gostava. < homens
podem decepcionar>
Z - É de fato porque ele (marido ) deixou tudo para ela( filha). < O marido
deixa a herança toda para filha >
Z - Eu às vezes não queria fazer o serviço. Aí eu apanhei demais, mas eu
agradeço. Sabe, não saía sangue, era com vara de marmelo, não ficava
hematomas, mas minha mãe lavava com água e sal Eu sentia que era amor.
Minha mãe me educava muito bem Eu aprendi muito. < a mãe relata que
quando não obedecia sua mãe, apanhava>
Relações de
gênero e
poder.
Z - Não porque estava acontecendo assim..... problemas entre ela e eu , entre
nós. Ela não quer mais escutar. Então eu fiquei muito preocupada com isso e
queria procurar..... eu conversei com uma amiga da Igreja.... eu sou
Evangélica. Ela disse: – eu vou te dar o telefone do Conselho Tutelar , você vai
lá e conversa o que está acontecendo. < escutar significa obedecer>
G - Não é porque eu estou rebelde, é que ela não deixa eu fazer nada. Ela não
deixa eu sair com amigas , ir ao Shopping. < filha demonstra sofrimento por
não poder ter amigas, passear etc. - aprisionada pela mãe>
Pedido de
socorro: o
drama se
repete.
VIVÊNCIAS FAMILIARES : denominador comum das histórias de sofrimento
Citações - atendimentos à família
sub
categorias
Z - O maior problema foi o inventário dele. Toda a herança dele ficou para ela
< perda do marido e da herança>
Z - Nós vivemos juntos quase 10 anos. Com 84 anos, ele começou a ficar
doente, com deficiência cardíaca e falta de ar . Eu fiquei viúva com 37 anos.
< doença e morte do marido e de um relacionamento de 10 anos>
Z - Eu acho que a figura do pai e da mãe é importante na formação, no
crescimento da criança, e ela teve ele até 5 anos, Ela sentiu falta. Ah e eu
também, muita falta, porque ele era uma ótima pessoa. < mãe relata a falta do
marido e pai para a filha, um bom homem >
Os lutos:
perdas ,
mortes,
separações
102
Z - Eu era pobre , vivia na roça.(....) de fato, eu não tinha nada. Só meu
trabalho.< mãe se refere à pobreza vivida na sua família de origem e o
valor do trabalho >
Pobreza: uma
das
vulnerabilida
des
Drogas: um
perigo
Z - Ela viu ele ( pai) morrendo. Eu acho que ela ficou com trauma. < para a
mãe, o fato de a filha ter visto o pai morrendo, pode ter causado um
trauma >
Z - Segundo o advogado que fez o inventário, ele diz que quando eu fui morar
com o pai dela eu não tinha nada. De fato, não tinha nada. Só meu trabalho.
Eu estranhei que não colocou meu nome como uso-fruto e estava tudo no
nome da menina.< mãe relata o estranhamento de toda herança do marido
ter ficado para filha, sem uso- fruto dela>
Z - Eu não tive ninguém. Eu tive uma decepção com um rapaz que eu gostava
muito. Demorou muito para apagar tudo aquilo, cicatrizar feridas. Hoje eu
tenho lembranças que não me afetam muito. (choro) < mãe relata seu
sofrimento e dor por decepção amorosa >
Z - Este advogado, depois de 9 anos, ele me tratava mal.... ( choro ) era difícil
para mim. Vocês entendem? Eu confiei nele e fiquei com ele 9 anos. No início
ele tratava bem, depois ele me agredia com palavras.< o relacionamento com
o advogado e o inventário foi traumático e quebrou a confiança >
O corpo se
expressa:
dor, traumas
103
Reflexões a partir das categorias: FAMÍLIA CASTRO
Na família de Zenaide e de Graça, podemos observar muitas
dificuldades de comunicação. Existe uma queixa entre mãe e filha de não ouvir
e compreender o que cada uma fala. Para a mãe, o fato de a filha não obedecer
significa que ela não a ouve. O ouvir significa obedecer. A maneira como
conversam é através de brigas, gritos de forma escandalosa e muitos temas de
conversas são proibidos, como a sexualidade e a herança do pai de Graça.
Esses temas bloqueiam a comunicação e são ameaçadores para a família. Os
assuntos relacionados com o namoro da filha, amigos, a vida amorosa de
Zenaide e a herança do Sr. José, são temas pouco abordados e envolvidos de
segredos e mitos. Zenaide parece refletir sobre sua história, mas de forma
rígida, seguindo os modelos de sua família de origem. Considera que a maneira
como foi educada era boa e deve ser perpetuada, mesmo observando as
diferenças entre ela e sua filha , contexto de vida e tempo.
Alguns mitos relacionados à comunicação estão presentes na maneira de
comunicar da família. Sexualidade é um tema proibido e está, segundo
Zenaide, apoiado nas crenças da Igreja Evangélica. Ao mesmo tempo,
situações de decepção amorosa vividas no passado podem ser vistas como
vergonha, como fracasso e também não devem ser conversadas.
Os mitos sobre a comunicação se apóiam em um mito reforçador da
violência, ou seja, o fato de a mãe desqualificar sua filha, tratando-a como uma
criancinha que tem dificuldades para aprender, que é mentirosa , que não deve
ser levada a sério e nunca poder ser independente.
Ficam muito evidente a fragilidade dos vínculos interpessoais, o poder
pela violência e a violência familiar freqüente. O sistema familiar se organiza de
forma a aprisionar filha, e mãe e avó materna. A avó doente há alguns anos
aprisiona Zenaide que, segundo ela, é muito caseira e não gosta de sair de
casa. Graça se sente aprisionada pela mãe, que não aceita que ela possa ter
amigos, namorado, querer sair e passear. Assim, aparecem mãe e filha se
ameaçando. No início da terapia, Graça estava muito deprimida, sua ameaça
era de morte e, depois de saber a respeito da sua herança , a ameaça passou a
ser de abandonar a mãe e a avó. Também faz ameaças, pedindo dinheiro para
a mãe quando quer roupas novas e sua mãe muitas vezes a ameaça com
104
doenças. São muitas ameaças, algumas veladas e outras que aparecem
claramente nas brigas e gritos da família.
A raiva da filha por não poder ter seus amigos é intensa, e a raiva de
Zenaide da filha poder viver uma vida diferente da que ela viveu, com mais
oportunidades e com facilidade financeira, também está presente nas
entrelinhas dos discursos. O fato de a filha ter recebido a herança integral gera
muita raiva por parte da mãe e medo de ser dependente da filha no futuro.
Acredito que, em função desse sentimento de raiva relacionado à herança,
Zenaide deixou de pagar impostos dos bens de sua filha e, em função disso
,quase que a dívida dos impostos ultrapassou o valor dos imóveis; decorrente
desse fato, Graça poderia perder seus bens quando recebesse sua herança.
Mas, quando o advogado do inventário percebeu, foi feito um parcelamento dos
pagamentos para saldar as dívidas e Zenaide, hoje, responde ao um processo
em que precisa apresentar para o Juiz um levantamento dos gastos da família e
as razões pela falta de pagamentos dos impostos.
Nessa família, tanto a mãe como a filha lutam pelo poder. Em função da
herança ter sido direcionada para Graça, Zenaide perde muitas vezes sua
autoridade e luta para recolocá-la por meio de ameaças e boicotes.
A violência familiar aparece no cotidiano. Zenaide impede sua filha de
encontrar com amigos, e afasta os que procuram Graça. Ambas são
agressivas com palavras e se desqualificam.
Outro tipo de violência que surgiu está relacionada ao preconceito de cor.
Na escola, os vizinhos duvidam que ela seja mãe de Graça por ser negra e a
filha, branca. Tratam Zenaide como se fosse a empregada, e ao mesmo tempo
Zenaide também se coloca nesse lugar e em casa se sente empregada de sua
filha.
Na família, observo que aparece uma certa negação da violência vivida.
Parece haver confusão entre violência e educação. De certa forma, existe um
valor em apanhar como forma de educar. É minimizada a violência materna.
Alguns indicadores de risco foram levantados, como : falta de respeito e direito à
privacidade da filha. A mãe tem o hábito de ler a sua agenda e anotações. O
desejo de vingança da filha em relação à mãe também aparece como um risco
de violência e, principalmente, a forma como foi conduzida a herança, em que
se enfatiza o poder da filha em detrimento da mãe. A falta de confiança de
105
Zenaide em qualquer pessoa também pode ser um risco para manter a
violência familiar.
A intergeracionalidade da violência é um ponto forte nessa família. As
lealdades à família de origem materna são marcantes e vividas como leis,
impedindo a reflexão do vivido. Existe o pensar, mas não a reflexão, porém a
impressão que fica é que não se pode mudar. A autoridade de mãe, se
questionada, era sempre punida, portanto obedecer também era uma lei.
Trabalhar também era visto como lei. E a violência aparece quando Zenaide vê
que sua filha não está pensando ainda em trabalho e diz querer viver de rendas;
por um lado, existe um desejo de mãe, de ascensão social e ao mesmo tempo
de lealdade à cultura de sua família de origem.
A figura masculina, na família de origem de Zenaide, era assustadora e
pouco confiável. Seu pai era um homem violento com os filhos, e sua mãe
também, porém a violência materna possuía o objetivo de educar. Outras figuras
masculinas também trouxeram sofrimento e confirmaram a desconfiança e o
receio do homem. Sr. José, seu marido, foi considerado um bom homem e
marido até a notícia da herança. Assim, em função deste fato, Zenaide se sentiu
pouco cuidada por ele. O homem, portanto, é visto como alguém que
abandona, que trai e que desprotege. A filha, em muitos momentos, também crê
na traição do homem.
O contexto de vida dessa família foi muito diferente daquele vivido na
família de origem de Zenaide. Depois do casamento com Sr. José , Zenaide
pára de trabalhar fora de casa e vive em um meio social mais elevado do que o
anterior.
Considera que a morte do marido foi um trauma para ela e para a filha,
ocasionando vulnerabilidade para ambas. A partir da morte, tiveram de enfrentar
muitos problemas e situações difíceis. Para Zenaide, essas cicatrizes são
difíceis de apagar e ficam marcadas no corpo. Durante esse tempo sofreu
vários problemas de saúde, e a filha precisou de um psicólogo porque ficava
muito quieta e isolada em um canto. Outra situação muito dolorosa foi quando
teve uma decepção amorosa e problemas com o advogado do inventário.
106
VIII - A CO-AUTORIA DA VIOLÊNCIA: SISTEMAS QUE SE
INTERCONECTAM.
Compreender a violência sob a ótica sistêmica é considerar os sistemas
que se inter-relacionam, deste modo, a responsabilidade da violência familiar
não é somente do indivíduo e da família, mas também da sociedade. Assim,
podemos dizer que os sistemas são co-autores da violência: a sociedade ao
adotar uma postura de muita flexibilidade e tolerância à violência, deixando de
cumprir um importante papel social de cuidado e proteção às famílias e
indivíduos; a família, que também pode manter e incrementar o padrão de
relação com violência; o indivíduo ao realizar a ação.
Nesta pesquisa direciono o olhar para as vivências familiares que
colaboram na co-construção da violência, no entanto, a intenção não é
minimizar a responsabilidade do contexto social nessa co-autoria.
Nas três famílias atendidas, a violência esteve presente de formas
distintas. Na família Almeida, a vivência constante de abusos - sexual desde a
infância, financeiro e no trabalho - acarretou traumas familiares. Estes podem
ser observados através de alguns sintomas como perda da memória, dores no
corpo, dificuldade na percepção e na capacidade de reflexão sobre os fatos e
emoções vividas, assim como prejuízo nas relações familiares, favorecendo a
repetição de situações do passado na geração atual, o que contribui para
intensificar as dificuldades no vínculo mãe e filha.
Na família Borges, foram marcantes as ocorrências de violência física
intensa, as tentativas de suicídio e ameaças aos familiares, que criaram um
sistema organizado pelos traumas vividos. A comunicação, em muitos
momentos, foi perigosa por poder gerar mais violência e, ao mesmo tempo, as
situações nebulosas evitaram a percepção dos fatos e suas definições. A dupla
comunicação
3
também foi freqüente na família, ocasionando uma situação
nomeada como “sem saída.”
Na família Castro, a violência apareceu de modo mais sutil, na forma de
desqualificação, aprisionamento e infantilização, encoberta pelo discurso de
3
A dupla comunicação caracteriza-se pela presença de duas mensagens contraditórias em níveis lógicos e
hierárquicos distintos.
107
proteção e de educação. Porém, os traumas da morte, do preconceito racial e a
ausência de proteção financeira criaram segredos entre mãe e filha,
dificuldades na comunicação, na percepção do outro e na diferenciação. O
processo de reflexão também se tornou uma ameaça, pela possibilidade de
clarear as situações nebulosas que possibilitam a manipulação. O diálogo, por
sua vez, favorece o relembrar de histórias e emoções, mas devido ao fato de
existirem traumas familiares, esta, como outras famílias, para evitar o sofrimento
e o sentimento de vergonha e fracasso, evitam o diálogo e a intimidade
familiar.
Nas três famílias, surgiram temas de maior dificuldade de comunicação,
calcados por mitos e crenças familiares, como: - “Não se fala de abuso sexual
para mãe” ( família Almeida) -“Eu nunca deixei que ele soubesse.”( família
Borges) - Eu não podia ter outro para ele.“( família Borges). Falar sobre abuso
sexual é muito difícil. Esclarecer a paternidade do filho vinda de um
relacionamento relâmpago pode autorizar a repetição do comportamento, já
que, segundo as três famílias, conversar sobre temas e histórias vividas pelas
mães e pais favoreceria a repetição de modos de agir e de maneiras de
relacionar-se nas novas gerações.
Para essas famílias, transmitir a informação sobre os fatos pode ser
compreendida como uma autorização para aquele comportamento. Ao mesmo
tempo, ficou evidente, nesta pesquisa que o não conversar sobre fatos vividos e
a falta de reflexão sobre eles favorecem a repetição das situações nas gerações
subseqüentes. Essa visão é um contraponto à crença das famílias. Sintetizando
a idéia: não basta informar, mas é necessário pensar, conversar e refletir em
família para haver um descolamento da situação vivida. Nesse caso a reflexão
é o pensar sobre o pensar, numa posição questionadora sobre a situação vivida.
Analisando as três famílias participantes, podemos observar, a partir das
categorias e subcategorias construídas a partir das narrativas, que a
dificuldade na comunicação familiar é geradora e mantenedora da violência.
Ficou muito transparente a impossibilidade das famílias em ouvir o outro, falar
sobre sentimento e refletir sobre o que ouviam e o que foi dito. A partir do
aprendizado da comunicação dialógica na terapia, ocorreram mudanças
significativas no padrão de funcionamento familiar. Nesta pesquisa ficou
realçada a necessidade de diálogo e reflexão da família sobre sua história e
108
traumas vividos, que funcionam como facilitadores do descolamento dos
comportamentos e maneiras de agir aprendidos na família de origem, para não
serem reproduzidos automaticamente. Conseqüentemente, surge um novo
modo de agir diante das situações vividas e as famílias tornam-se capazes de
proteger seus descendentes e de escrever uma nova história.
Quando se cria um espaço de conversação na família, com a escuta
atenta sobre o que foi dito, o pensamento, o diálogo e a reflexão, cria-se um
contexto que possibilita novas experiências e significados para as situações
vividas e a mudança do sistema familiar apresenta-se como conseqüência
dessas conversações. Esse espaço favorece a existência do outro, a
diferenciação dos membros familiares e protege a família de possíveis situações
de violência, tanto interna como externa . É um espaço de intimidade que
favorece a troca de descrições e explicações que proporcionam uma base mais
ampla de escolhas, para que as pessoas possam tratar de forma diferente as
situações da vida.
Retomando o tema da comunicação, algumas idéias foram surgindo:
quando ouvimos e refletimos sobre o que o outro diz, podemos nos perceber
através do relato desse outro e, ao mesmo tempo, quando falamos, também nos
percebemos enquanto sujeito. Quando existe uma conversação com escuta,
com o pensar, o diálogo e a reflexão, a imagem que me vem é de um contínuo
abrir de portas e descobertas de recintos não visitados.
A partir de uma simples conversa, pode-se criar um universo de
percepções e lembranças. Não saberia dizer o que ocorre primeiro: se nos
percebemos mais no ouvir o outro ou no falar; mas acredito que a relação
estabelecida na conversação favorece sua continuidade e é essencial neste
processo de descoberta. Para Goolishian (1998), a linguagem é a matriz de
todo entendimento humano e a psicoterapia pode ser entendida como um
espaço para a atividade lingüística, na qual as conversações a respeito de um
problema geram novas experiências e novos sentidos.
Assim, enfatizo a importância da terapia familiar ensinar as famílias a
conversarem de forma respeitosa e estabelecerem o diálogo como meio de
comunicação. Considero importante que as famílias conheçam o valor do
diálogo e da reflexão como forma de resolverem seus dilemas e como
prevenção de violência e de outros sintomas na família.
109
Nesta investigação pude sentir intensamente a dificuldade das três
famílias vítimas de muita violência, na construção de vínculos afetivos. A meu
ver, as vivências de intensa violência envolvendo figuras importantes como pai e
mãe comprometem a possibilidade de se criar laços afetivos seguros, confiança
nas relações, na vida e no desejo de ser dono de sua história. O relembrar de
fatos muito dolorosos, como os abusos e outros tipos de violência é um
processo de intenso sofrimento, em que os membros da família necessitam
apegar-se em algo que considerem bom, que traga alguma lembrança de
proteção, afeto e cuidado, mesmo que a experiência não seja necessariamente
protetora. Ou seja, existe a ambivalência quanto aos sentimentos em relação
ao agressor e negação da violência vivida - a valorização do poder pela
violência, a supervalorização da figura materna mesmo nas situações de abuso,
o valor da violência como forma de educar.
São crenças que surgem como barras de suporte ou sustentação para se
apoiar e são tão fortes e compartilhadas entre os membros familiares que se
assemelham a mitos reforçadores que mantêm e reforçam a violência pelo fato
de fazerem parte da construção familiar e terem sido aprendidos nas gerações
anteriores.
Assim, o poder da intergeracionalidade na violência familiar é muito
intenso. Situações de abuso, de agressões físicas e mortes foram aprendidas
nas famílias e mantidas por lealdades familiares e por mitos reforçadores da
violência, como: o poder de transgredir a lei visto como valor; a coragem; e
uma maneira de diferenciação que protege e desprotege. A ambivalência de
sentimentos é uma constante: aparecem o medo, o sofrimento, a vergonha das
situações vividas e, paradoxalmente, aparecem a coragem e a força na
sobrevivência dessas situações limite.
Desse modo, fica evidente a fragilidade dos vínculos interpessoais na
base das relações familiares vindas de outras gerações e mantidas na geração
atual. Segundo a teoria de apego de Bowlby (1990), é um indicador de padrão
de apego inseguro ou evitador. Esse modelo representacional já é visto como
negativo pela alta freqüência de situações vividas como rejeitadoras, perigosas
e inconsistentes, o que favorece a baixa auto-estima e pouca eficiência para
conseguir apoio e atenção.
110
O vínculo estabelecido nos atendimentos com as famílias foi construído
com dificuldade. Com a família Almeida, foi possível estabelecer um vínculo
frágil. Em muitos momentos, a família faltou e não avisou. Interromperam e
voltaram. Com a família Borges, também ocorreram algumas dificuldades
denunciadas pelos filhos, que faziam de tudo para faltar às sessões de terapia.
Com a família Castro, foi necessário interromper as gravações no decorrer dos
atendimentos por falta de confiança da família em relação aos terapeutas.
Em todas as famílias, o sexo masculino é visto como ameaçador e o
sexo feminino como refém do silêncio. A falta de proteção materna em relação à
violência só pode ser compreendida no decorrer do processo terapêutico. A
negação do papel da mãe no jogo da violência serve de suporte emocional para
se agarrar, ou seja, supervalorizar a figura da mãe serviu nessas famílias como
um porto seguro. A compreensão sistêmica da violência vivida pelas famílias, ao
explicitar que cada membro possui responsabilidades distintas é geradora de
um processo doloroso e difícil que quebra com a visão de supervalorização da
figura materna. É um processo necessário para revisar, desconstruir e impedir
a perpetuação da violência familiar.
Nesta trama da violência, os segredos são freqüentes e diferenciados:
os segredos das situações de violência vividas causadores de vergonha e dor e
os segredos de fatos e acontecimentos que não podem ser compreendidos
pelos familiares, por serem ameaçadores de violência. Exemplo disso,a
necessidade de Rosa (família Borges) esconder de seu ex-marido, seu novo
relacionamento.
Um outro tema levantado nas três famílias e trazido como um grave
problema gerador de violência foi a “obediência”, ou seja, a autoridade familiar.
As famílias relataram uma luta diária para que os filhos as obedecessem.
Segundo elas, obedecem, somente com violência - tapas, ameaças e castigos.
Em alguns casos com sucesso, mas, na maioria das situações, sentem-se
fracassadas.
Pensando sobre o tema da obediência, a partir dos atendimentos
compreendi que, inicialmente para as mães, o obedecer assegurava seu poder
e seu lugar de autoridade na família e para os filhos, obedecerem à mãe,
significava serem bobos e fracos. A situação assemelhava-se a uma luta de
poder, todos queriam mandar na família e ninguém queria obedecer. Por outra
111
perspectiva, existia a importância e necessidade de obedecer às regras como
forma de ensinar os valores, o padrão de funcionamento familiar e a
manutenção das lealdades. Mas, como se tratava de famílias com violência,
eram freqüentes as duplas mensagens de todos os membros familiares -
queremos seguir modelos da família e ser leais a ela, e ao mesmo tempo não.
Desse modo, havia uma ambivalência quanto aos sentimentos e
mensagens, além de ambigüidade para seguir as leis da família. Como nelas
existiam dificuldades na comunicação e a falta de respeito em relação ao outro,
as ordens não podiam ser cumpridas. Não havia uma compreensão das regras
a serem seguidas por parte das mães, nem por parte dos filhos e a tônica era a
desobediência. A partir do momento que a família passou a dialogar e a
conhecer sua história, a respeitar o outro e reconhecer as dificuldades que
viveram no passado e presente, foi possível criar leis e regras a serem seguidas
e que possuíam um sentido comum no sistema familiar. Isso me faz pensar, que
quando nos referimos à falta de obediência, poderíamos acreditar simplesmente
na dificuldade em colocar limites, mas, quando se trata de famílias que vivem
situações de violência freqüente, ligadas à falta de respeito, falta de limites
físicos e corporais, sem interdição e sem constrangimento da violência, não é
possível ninguém ser respeitado e nem exigir respeito.
Analisando as famílias em relação às vivências familiares, podemos
observar que relatam vivências dolorosas de perdas e mortes de familiares,
consideradas traumáticas. Na família Almeida, ocorreram mortes trágicas de
irmãos da mãe, do pai de sua filha por drogas e também do avô, pai da mãe,
que era o abusador; essas mortes foram vistas de forma ambígua,o que
sugere dificuldade na elaboração do luto. Na família Borges, o relato da vivência
da perda é lembrado com sofrimento mas, segundo a família, o fato de estar
perto do familiar e acompanhar sua doença, aliviou esse sentimento. Na família
Castro, a perda do marido e pai foi um trauma familiar, causador de todas as
dificuldades por que passaram.
Em relação às perdas vividas, não foram nomeadas as separações entre
os parceiros como situações que ocasionem sofrimento familiar. Das três
famílias participantes, duas delas tiveram vários relacionamentos com filhos e
separações, o que me leva a pensar que essas separações e os novos arranjos
112
possam facilitar a violência familiar, ainda que aparentemente não sejam
percebidos e nem relatados como estressores.
Outro tema levantado foi a pobreza. A família Almeida relatou situações
de miséria no passado, que contribuíram para os abusos financeiros no
presente. A falta de dinheiro acarretou sofrimento e vergonha. Na família
Borges, a falta de condições para criar os filhos foi vista com pavor pela mãe.
Existiam dificuldades financeiras , mas ela trabalhava muito e valorizava seu
trabalho. A família Castro possuía rendimentos mais elevados em relação às
outras duas, porém existia o medo da mãe de não ter dinheiro no futuro. Em
relação à situação econômica das famílias, ambas vieram de situação de
pobreza e miséria, mas atualmente possuem melhores condições financeiras
comparadas ao passado. Assim, por esses dados, acredito que a pobreza pode
facilitar situações de violência na família, como os abusos financeiros, o uso do
dinheiro de filhos, mas não é determinante de violência familiar. Quando existe
muita pobreza, miséria, a luta pela sobrevivência se sobrepõe a qualquer
condição.
As drogas também aparecem como geradoras de violência familiar. Das
três famílias estudadas, somente a família Castro não relatou situações com
drogas. As famílias, de forma geral, consideram as drogas um grande risco de
violência e vivem amedrontadas com a possibilidade dos filhos virem a usá-las.
Nesta mesma categoria de vivências familiares, as situações
traumáticas relatadas foram muitas e sentidas no corpo como dores, tonturas,
dificuldades sexuais, dificuldades na escola, cicatrizes e até perda da visão. A
família Almeida e a Borges trazem marcas profundas da violência física e dos
abusos vividos. A família Castro relata o sofrimento pelo preconceito de cor,
pela morte do marido, pai da filha, e pela vulnerabilidade financeira decorrente
dessa morte. Acredito que os traumas familiares paralisem o tempo da família e
impeçam o desenvolvimento familiar.
Outro ponto a ser considerado são os riscos para a violência familiar
levantados pelas famílias, que foram: falta de respeito, invasão da vida privada
dos filhos, aprisionamento dos filhos, falta de confiança, vingança, desespero,
situações sem poder ver as saídas, perda de emprego e capacidade de
sustentar filhos, deixar filha sozinha em casa - no momento em que o corpo de
113
menina se transforma em corpo de mulher; as separações e novos arranjos
familiares.
Outro ponto considerado foram os pedidos de socorro ou avisos
daqueles membros da família que estão correndo riscos, como: a depressão,
dificuldades escolares, repetição da violência na nova geração, presença de
drogas, dificuldade em ouvir o outro, ameaças familiares, ausência de proteção
e cuidado.
114
IX - CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Como etapa final desta investigação, minha proposta é considerar o
sumo desta pesquisa de forma breve, respondendo às questões propostas
inicialmente como objetivos específicos.
Como se constrói o padrão de relação com violência na família?
Nesta pesquisa, a intergeracionalidade apresentou-se como um fator
determinante na manutenção e na intensificação da violência nas gerações
seguintes. A maneira de se relacionar aprendida em família serve como base
na organização familiar. Estas formas de ser, pensar e agir aprendidos foram
norteadoras das ações e do modo de conceber o mundo, que, se não forem
revistos serão mantidos nas gerações seguintes.
Quando se trata de famílias cujo padrão de relação é a violência, o modo
de se relacionar será, então, transmitido para as próximas gerações e estarão
calcadas pelas vivências traumáticas originárias da violência.
Em outros casos em que não havia a intergeracionalidade da violência,
esta pesquisa mostrou que, os acontecimentos e situações vividas pela família,
geradoras de intenso sofrimento, podem ser facilitadoras da violência familiar.
Isso ocorre pelo fato de os membros da família não se sentirem capazes de
aceitar e compreender o fato em si, naquele momento do seu ciclo vital e muito
menos de criarem significados que dêem sentido à experiência vivida. Instala-
se, então, um trauma familiar e decorrente dessa situação, vai-se lentamente
criando um padrão de relação familiar sem diálogo , sem reflexão, que aduba
o terreno da violência.
Os traumas estão presentes na co-construção da violência familiar?
Pelas análises e interpretações das famílias participantes, ficou evidente a
presença de traumas vividos no presente e no passado. A partir dos resultados
desta pesquisa, podemos dizer que os traumas familiares colaboram na co-
construção da violência familiar. Pelo fato da situação traumática trazer
lembranças dolorosas, evita-se pensar, conversar e refletir sobre ela. Assim,
podem surgir segredos e temas de difícil comunicação que geram um certo
distanciamento emocional entre os familiares; decorrente dessa situação, cada
115
membro da família vai construindo seu próprio texto, sem ligação com os dos
outros e a sensação é de desconhecimento, afastamento e pouca compreensão.
Quando não é possível o espaço para intimidade familiar, o processo de
crescimento e desenvolvimento se paralisa.
Além dos traumas, que outras situações vividas pelas famílias colaboram
para desenvolver esse padrão de relação?
Para responder a esta questão, foi necessário fazer uma diferenciação
em relação à intensidade e poder das situações que colaboraram com a
violência familiar.
No primeiro nível, estão descritos os funcionamentos construtores e
mantenedores de um padrão de relação.
a) Intergeracionalidade – Aprendizado do padrão de relação com
violência e a lealdade a este funcionamento. Decorrente da violência nas
relações, ocorre a fragilidade dos vínculos construídos na família.
b) Comunicação – A falta de diálogo, do pensar e da reflexão familiar
favorecem os segredos e o surgimento de temas de difícil comunicação.
No segundo nível, trata-se de situações facilitadoras da violência familiar,
mas não determinantes:
a) Situações de vida que são estressoras - Miséria e pobreza; drogas;
mortes e perdas traumáticas ; preconceitos; sofrimentos intensos; emoções
intensas e pouco compreendidas; separações e novos arranjos familiares,
mudanças no ciclo de vida.
b) Contexto social - Flexibilidade social à violência; políticas públicas
que colaboram para a exclusão social.
Em função desses níveis, cabem diferentes ações preventivas de
violência, tanto nos contextos terapêuticos como em grupos, escolas, creches e
instituições.
Considero importante salientar que, por mais que neste trabalho alguns
temas e situações ocorridas tenham sido levantados como problemas
facilitadores e construtores da violência, cabe ressaltar que cada família é única,
116
portanto, o intuito é levantar novas questões e dúvidas, não restringir o modo
de pensar a violência familiar.
Esta pesquisa mostrou que muitas situações e problemas vividos por
uma família em seu contexto podem tanto facilitar, como também proteger a co-
construção da violência familiar. A meu ver, as famílias são responsáveis,
portanto, autoras de suas ações, de suas construções e desconstruções, e os
terapeutas são meramente facilitadores na compreensão de seus atos.
O encontro do terapeuta / pesquisador com a violência, fez-me lembrar
uma frase que não saberia em que obra de von Foerster localizá-la, quando diz
que somos cegos até vermos o que não queremos ver. Na minha prática como
professora e supervisora, acompanho diariamente profissionais que lutam para
não ver e considerar a violência nos grupos e famílias que atendem. Querem
evitar o próprio sofrimento e o das famílias. Em muitos casos, esses
profissionais necessitam de treinamento e de um grupo de apoio para abrirem
os olhos para as situações de abusos e de outras violências nas famílias que
atendem. É importante ver para se proteger.
Finalizando esta investigação, proponho alguns caminhos para novos
estudos: uma possibilidade seria estudar a violência familiar em famílias de alta
renda e fazer um estudo comparativo com este trabalho. Outro caminho poderia
ser um estudo aprofundado da comunicação familiar, com o intuito de se criar
possibilidades criativas de ensinar às famílias, grupos e até na escola “o estar
em diálogo“ com objetivo preventivo. Outro tema que visualizo seria um estudo
aprofundado e interdisciplinar sobre os traumas familiares. Muitos outras
questões podem surgir a partir desta pesquisa e de outras que se criam no
encontro de cada leitor com o trabalho escrito.
117
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122
XI - ANEXOS
TRANSCRISSÃO LITERAL DOS ATENDIMENTOS CLÍNICOS DAS
FAMÍLIAS DA PESQUISA.
FAMÍLIA ALMEIDA
1. SESSÃO DE ATENDIMENTO FAMILIAR – REALIZADA DIA 09/ 06/2004
NO CEAF.
T: Terapeuta.
M: Maria, a mãe.
C: Cláudia, filha de 15 anos.
J.P: João Pedro, filho de 12 anos.
A: André, atual marido da mãe.
T: Quantos são na família?
M: A Cláudia de 15 anos, João Pedro de 12 anos, a Cláudia fez 15 anos dia 35
de dezembro, o João Pedro fez aniversário dia 12 de janeiro, e eu tenho 34
anos e o meu companheiro que não é pai dos meus filhos, com 28 anos.
T: E o que está acontecendo com vocês?
M: Eu acho melhor ela falar.
T: Você quer falar Cláudia?
C: Não ( parecia brava e com a cara fechada).
T: Você prefere que a mamãe comece ?
C: Eu prefiro ( sorriso).
M: Nós estamos tendo muitos conflitos. De um mês para cá melhorou bastante.
Eu não sei o que se passa na cabeça da Cláudia. Eu sou bem aberta com meus
filhos.
T: Aberta, como ?
M: Eu sou aberta ao diálogo, agente sempre conversou muito sobre qualquer
coisa. Até converso demais. Falo demais.
T: O que você fala demais?
123
M: Situação financeira, o que se faz , nossa situação....
T: O que você faz?
M: Eu estou na caixa há 3 anos. Eu estou afastada do trabalho. Eu trabalhava
em dois empregos, auxiliar de cozinha de manhã e fazia bicos de segurança à
noite. Me afastei porque começou doer e inchar meus pés. Inchava tanto os
pés que não podia andar, não tinha firmeza. Eu trabalhei sempre. Levantava às
quatro horas da manhã todo os dias. O trabalho era perto de casa na vila
Clarisse, meia hora de casa, depois fui transferida longe pra caramba , no
Tucuruvi na av. Água Fria.
T: A noite?
M: Eu tinha que ficar todo tempo em pé, no almoço, na cozinha, porque
trabalho no quartel.
T: E o que você tem nos pés?
M: Eu pensava que era esporão. Mas é reumatológico. Depois vieram a inchar
as mãos , os joelhos.... Meu chefe achou melhor afastar.
T: E você esta recebendo pelo afastamento?
M: Estou recebendo no quarto dia útil. Mas não sei até quando. Depende se
continuo a sentir dores. Hoje fiquei muito de pé e fiquei cheia de dores. Aliás,
dói muito, 24 horas.
T: Desde quando?
M: Já há 3 anos.
T: Três anos que você está afastada do trabalho!
M: Eu estou correndo atrás e corri para fazer também medicina alternativa.
Porque nada melhorava. A acumpuntura e a cromo-terapia me ajudou. Isso
mexeu com meu lado emocional.
T: E você, Cláudia, lembra alguma coisa que tenha acontecido há três anos
atrás? Que possa ter facilitado aparecer este processo inflamatório de sua
mãe?
M: Eu não sabia que os problemas podiam acarretar estes processos
inflamatórios. Diz o médico que foi estresse. Eu nunca tive problemas de
saúde, quando pequena eu tinha problema de anemia até ter o João Paulo.
Mas agora não, sempre fui ativa e dinâmica, uma criança levada com saúde. O
médico falou que é o estresse, muito serviço e muita friagem.
T: E me fale um pouco .... do pai deles......
124
T: Quando você se separou dele?
M: Eu me separei bem antes dele morrer. A Cláudia era pequena , tinha 1 ano.
T: A Cláudia conviveu com o pai?
C: Não conhecia ele.
T: Você não conheceu seu pai? Nem por fotos?
C: Uma vez eu vi em uma foto.
T: E o seu segundo filho, era filho dele?
M: Não, o meu outro filho é do segundo casamento. E hoje eu estou no terceiro
casamento.
T: Quer dizer que você se casou com o pai dela se separou e se casou com o
pai do João Pedro e também se separou. E se casou novamente. É isto? Me
explique um pouco mais.
M: O pai da Cláudia é falecido, ele faleceu quando ela tinha 10 anos e me
separei dele quando ela tinha 1 ano.
T: Vai fazer então 5 anos que ele faleceu? O que aconteceu com ele Cláudia?
C: O que foi mesmo mãe que ele morreu?
M: Ele morreu de HIV. Por causa de drogas. Cocaína injetável., maconha
também. E o motivo da separação foi este.
M: Eu conheci o pai da Cláudia com 17 anos e me casei com papel com 18
anos. Minha família gostava dele.
T: E o problema de drogas?
M: Ele tinha mas eu não sabia. Parece que bem antes ele já tinha problemas de
drogas, maconha e cocaína. A irmã dele morreu por causa da cocaína.
T: Tinha mais alguém na família dele com problemas de drogas?
M: Não, tinha a mãe que era alcoólatra. Ela já faleceu. Quando eu conheci ele,
eu já sabia que a mãe tinha problema de alcoolismo. Eu sabia desde o início.
T: Ele já nasceu em uma família com problemas de drogas .
M: Ele né ....
T: E quando a mãe dele morreu?
M: Eu não tenho certeza, se a mãe morreu antes dele ou depois dele. Eu acho
que foi um ano antes.
( Cláudia estava atenta à história e tira o capuz da cabeça.)
M: Quando eu me separei do pai da Cláudia ela não gostava de ficar com ele.
T: O que você está pensando Cláudia?
125
C: Eu não penso.
M: Eu resolvi isto na justiça, ele tinha o direito de ficar com a Cláudia no fim de
semana. Ela gritava e não queria ir.
T: E como era deixar a Cláudia ir com o pai?
M: Para mim tudo bem. Ele queria estar com ela. Eu nunca omiti nada para os
dois. Não sei se é certo, mas sempre contei tudo da família deles.
T: Quando você se separou do pai da Cláudia , o que acontecia?
M: Eu comecei a montar um quebra cabeças.
T: Como era isto?
M: Faltava peças, eu comecei a desconfiar, ele chegava tarde, as vezes
desaparecia por dias , era um desespero eu não sabia onde ele estava. Um dia
o pai dele me falou sobre as drogas, quando ele estava desaparecido. O pai
sabia onde ele podia estar. O pai é uma excelente pessoa. Ai eu montei meu
quebra cabeças, fiquei quietinha e decidi terminar. A convivência estava muito
ruim. Ele ficou ignorante, grosso comigo.
T: E o que é ser ignorante e grosso?
M: Conversava pouco. Se comportava como um homem solteiro. E quando
confirmei que usava drogas, terminei.
T: O que você sentia nesta época com uma filha pequena, decidindo se
separar ?
M: Eu estava grávida da Cláudia, e eu me dediquei muito à ela. Eu curti muito
a minha gravidez. Eu morava com a família dele e quando a mãe estava ruim,
eu ficava no quarto na minha. Era meu sonho ter filho. Eu tinha 19 anos e não
estava nem um pouco aflita. Ela é tudo na minha vida.
T: Como ela era quando nasceu?
M: Linda , gordinha, deus me deus uma coisa maravilhosa. E eu não podia ter
filhos, porque tinha útero infantil. Agora que eu sei isso, mas eu não podia ter
filhos.
T: Você pensava que não podia ter filhos?
M: Não , eu não podia ter filhos. O médico falou que eu tinha problema no
útero, que eu tinha que fazer tratamento.
T: Você fez tratamento ?
M: Fiz.
T: Então foi uma gravidez muito planejada !
126
M: Ela é querida, eu falei para a psicóloga do Fórum que eu desde 12 anos falo
em ser mãe. Eu alimentei aquilo dentro de mim, aquela ilusão.
T: Que ilusões ?
M: Uma criança de 12 anos pensar em ser mãe, não é uma ilusão? Eu tomei
conta dos meus sobrinhos. Eu ensinei minha irmã a colocar fraldas no meu
sobrinho. Ela não sabia. Eu aprendi sozinha. Eu sou a casula, a gente se virou
sozinha sempre em casa. Minha mãe tinha bastante filho. Nós éramos em 8.
Morreram dois e eu a casula. 5 mulheres e 3 homens. Quando fui morar com
as minhas irmãs eu cuidava de tudo da casa dos sobrinhos, de tudo.
T: Você não achava pesado fazer tudo isto ?
M: Não, eu gostava, sentia prazer.
T: Às vezes as meninas se queixam de tomar conta dos irmãos!
M: Não, eu nunca, eu não era rueira. Não gostava de ficar em praça ou portão,
gostava de ler. Minha mãe brigava para eu sair. Em casa é ao contrário. Eu
não quero que ela saia. Eu estava bem preparada psicologicamente para ser
mãe. Até a psicóloga do Fórum falou como eu podia estar preparada
psicologicamente para ser mãe tão cedo!
T: Parece que você aprendeu mesmo a cuidar de crianças !
M: Eu sabia cuidar do umbigo, dar banho, tudo.
T: E a sua mãe?
M: É um amorzinho , minha mãe, ela se chama Antonia. Faz um mês que eu
não vejo minha mãe. Ela tem 80 anos e está ocupada com um a mercearia
dela.
T: Sua mãe trabalha?
M: Aquela lá não para.
T: Carla conta um pouco dessa avó.
C: Ela é engraçada ela vai no teatro do Francisco Rossi. Ela estava bonita.
M: Eu sou careta perto da minha mãe , ela com 80 anos é mais aberta
descontraída. Eu brincava com meu irmão falecido que...
T: O que aconteceu com seus irmãos?
M: O primeiro irmão morreu de HIV, drogas. O segundo morreu de drogas.
T: Você perdeu dois irmãos de drogas e o marido?
M: O primeiro irmão que morreu , a Cláudia tinha alguns meses e ele ia ser o
padrinho. Estes irmãos eram ovelhas negras . bebiam , usavam drogas, eram
127
irresponsáveis. O segundo irmão faleceu com um tiro no rosto em 97. Ele ficou
preso também.
T: Que difícil ! A Cláudia deve lembrar bem deste tio?
C: Eu lembro sim. ( rosto sério)
T: E seu pai ?
M: Meu pai faleceu, quando o João Pedro nasceu. Eu não via ele. Eu sei pouco
dele.
T: Você mal conhecia ele?
M: Quando tinha 7 anos ele vinha pra S. Paulo, mas ele separou da minha
mãe. Minha irmã Maria Filomena me levava para ver meu pai. Mas com 8
anos, eu tive mais contato com ele.
T: O que você pensava sobre ele?
T: Eu não gostava do meu pai, ele me olhava como um homem. Não olhava
como um pai.
T: E você era uma menina! Complicado isto!
M: São coisas que nem minha filha sabe. Eu omiti isto deles. Não sei se devo
falar sobre os detalhes, nem é possível. Isto é muito sério.
T: Você acha que se você revela , você pode ajudar? Ou não ?
M: Ajudar como?
T: Ajudar a prestar a atenção a estes olhares que não são de cuidado.
M: Ela Não sabia disto, está sabendo agora.
( filha dá a mão para mãe)
T: Cláudia, você nunca imaginou esta história da mamãe?
C: Eu nunca pensei...
M: A história é longa .... meus filhos não sabem.
T: Quem sabe?
M: Meus irmãos sabem ..... minha mãe soube depois.
T: Aconteceu com outras irmãs ?
M: Com a minha irmã do meio e talvez com a minha irmã mais velha; ela fugiu
de casa e foi morar com ele. Nós perguntamos e ela negou, mas achamos que
ela tem medo de falar. Eu não posso afirmar , mas escutava um zum zum e
achava que era. Eu não era boba. Ela sempre foi a favor do meu pai contra
minha mãe.
T: A família procurou alguma ajuda judicial para impedir ?
128
M:Não, meu pai era velho e ficou por isso mesmo.
T: E sua mãe pode fazer alguma coisa ou dizer?
M: Eu escondi da minha mãe.
T: Sua mãe nunca imaginou que ele pudesse ter abusado das filhas?
M: Nunca conversei com minha mãe a respeito. Eu era criança e tinha aquela
vergonha......
T:Muita vergonha ...........
T: Eu só falei para minha cunhada e ela contou para meu irmão. Minha mãe foi
a única que eu nunca contaria. A família decidiu que não chegaria a boca da
mãe , uma coisa dessas.
T: E os irmãos homens tomaram alguma providência ?
M: Eles tomaram sim, não me lembro , é uma longa história. Não sei se devo
falar.
T: Acho que você deve falar o que achar possível. Eu penso que essas
histórias que acontecem nas famílias quando são reveladas trazem
ensinamentos importantes, abre os olhos para não se repetir.
M: A Cláudia acha que eu sou diferente de todas as mães de famílias.
T: Em que ?
Carla tenta responder e a mãe interrompe.
T: O que está acontecendo com vocês de fato?
Uma pausa ninguém responde.
C: Ë porque minha mãe se casou pela terceira vez.
T: O desentendimento vem daí?
C: Hã Hã.......
T: Por que você acha que este casamento foi o desentendimento?
C: Eu não sei mas................muitos problemas vieram a acontecer.
T: Faz quanto tempo que vocês estão juntos?.
M: Faz 5 anos que eu estou com o André.
T: Na mesma época que morreu o pai da Cláudia?
M: É, mais ou menos.
T: E o seu segundo marido pai de seu filho?
M: Ele está preso. Vai sair agora.
T: O que houve ?
129
M: Eu me dou muito bem tanto com a família do pai da Cláudia como com a
família do pai do João Pedro. Ele era legal , mas dizem que depois da
separação ele desandou. Ele não bebia, mas depois começou a beber.
T: Por que vocês se separaram?
M: Um dia agente olhou um para o outro e viu que não tinha nada a ver. O
João Pedro estava com 4 anos.
T: Cláudia você gostava desse marido da sua mãe?
C: Muito. Ele cuidava da gente. Ele era meu pai.
M: A minha família; minha mãe queria que eu me casasse novamente. Ele
trabalhava comigo. Eu não saía de casa.
T: Imagine Cláudia se sua mãe saísse para baladas!....
M: O Julio fez amizade com minha mãe, ele fazia tudo o que eu pedia, ele não
bebia. Ele insistiu muito. Eu não gostava muito.
T: Quem queria terminar?
M: Eu queria e ele queria e, também não queria.
T: O que aconteceu que ele está preso ?
M: A mãe dele disse que ele desandou ele virou traficante de drogas. O filho
foi vê-lo na prisão , mas a Cláudia não pode, por que não é filha dele. Só
podem a mãe a esposa e filhos. Eles conversam por carta. Ele tem bom
comportamento, então as vezes, ele pode sair e visitar as crianças.
T: E você Cláudia tem namorado?
C: Tenho.
T: Que idade ele tem ?
C: Ele tem 20 anos.
M: Ele vai sair agora e vai ficar com liberdade assistida. Espero que ele se
cuide. Eu não desejo nada ruim.
T: Você acha que os filhos sofrem pelo fato dele estar preso? ter feito coisas
fora da lei, um caminho com risco de vida !
M: Não.
C: A gente não comenta.
M: O João Pedro sofreu mais, ele chorava porque ele estava preso. E Quando
ele desandou , antes de ser preso , ele não ia visitar o João Pedro, e ele ficava
triste.
T: O que aconteceu que a Cláudia está com liberdade assistida ?
130
M: Fala Cláudia , aqui a gente aprende. A Dr.ª ensina..... Temos muitos
conflitos. Principalmente nós duas . Ela não aceita as normas de casa. Não
aceita os horários de casa. Agente não tem condições de uma escola particular
, o João Pedro está na quinta série e a Cláudia no primeiro colegial, eles
precisam estudar. Durante a semana precisa estudar e no final de semana eu
deixo sair. Não deixo faltar na escola, só quando tem problema de saúde , ou
que nem ela que tem a psicóloga que o Fórum mandou. Às vezes precisa faltar
para ir lá. No fim de semana tem hora para chegar dos programas.
T: Mas e ai o que aconteceu para a Cláudia estar com liberdade assistida?
Silencio.
M: É muito comprido, ela não queria chegar no horário combinado.
C: Não é bem isso, a minha mãe saía o dia inteiro e eu ficava com o André, o
dia todo, depois eu também comecei a sair , ela saía e eu também. Ela queria
que eu ficasse em casa e eu não aceitei isso.
T: Você não estava aceitando, você acha que sua mãe ia trabalhar e....era
importante este trabalho dela ? ou não ? Na sua concepção Cláudia você acha
que ela podia ter trabalhado menos?
C: Ela não tinha nenhum tempo para mim. Eu acho que ela podia ter
trabalhado um pouco menos.
T: E o André é que ficava mais com vocês?
C: É comigo. Eu lavava tudo em casa , fazia comida......
M: E o dia da minha folga eu arrumava a casa.
T: Eu não sei se eu vou falar uma coisa, talvez uma loucura que estou
pensando, mas vendo aqui na ficha , o André tem 28 anos, ele não é tão mais
velho que o seu namorado de20 anos, não é? Existe algum desconforto seu
Cláudia de ficar com o André que é bem moço e não é seu pai? Existe algo um
pouco parecido com que a mamãe contou do pai dela? Como os olhares
diferentes?
C: No começo agente era maior amigos me dava melhor com meu padrasto
que com minha mãe. Era super legal mas, daí eu não sei o que aconteceu que
começou a ter conflitos , eu , minha mãe e meu padrasto. Era ciúmes que
minha mãe tinha de mim. AH , eu não sei mas começou uns olhares, quando
eu comecei a ter corpo assim. Ai eu não sei...... Uma coisa que não tinha nada
a ver.
131
T: Parece que a história que a mãe viveu no passado, está acontecendo agora
novamente? Parece que esta história continua na família?
M: Ela contou esta história para a psicóloga Antonia que ela começou a sentir
isso quando começou a ter corpo. Ela nunca falou isto para mim. No meu ponto
de vista eu nunca ofereci minha filha para o André, não tem cabimento. Nem
tenho ciúmes.
T: Não sei se ciúmes. Eu me lembro bem de observar minha filha quando
pequena, correndo e pulando no colo do pai, ela se jogava e quando começou
a crescer o pai não gostava muito das brincadeiras , dizia que ela estava
mocinha. Os homens às vezes ficam sem jeito. Às vezes não. As meninas se
enfeitam para se mostrar, faz parte da idade. Como se passa isto quando o pai
não é o pai e ainda é mais jovem? Não é simples isso, o que vocês pensam?
C: Tem muito ciúmes, teve uma época que minha mãe deu todas as minhas
roupas bonitas e só deixou as roupas largas e compridas. Todas, todas.....
T: Você acha que este fato pode ter sido uma forma da mãe cuidar de você?
Como algumas mãe que eu conheço que pedem para as filha vestirem roupas
largar e não curtas para não provocar os homens. Para não atrair tanto !
C: Eu não pensei assim.
T: Como você pensou?
C: Eu pensei que minha mãe estava com ciúmes, ou alguma coisa.
T: Você não pensou que poderia ser uma forma para você ficar menos exposta
e não correr riscos? É diferente ter 30 anos e usar uma mini saia e saber se
cuidar do que quando se tem 15 anos. Com 15 anos provoca muitos olhares e
não é fácil saber o que fazer com isso. Tem sentido o que eu falei ?
C: Mais ou menos, eu acho que é ciúmes.
T: Com é então o ciúmes de mãe para filha de filha para mãe?
M: E eu nem posso falar com o Renato, o namorado da Carla, ela fica brava.
Risadas. Ela não gosta.
C: Eu não gosto, ela fica muito simpática , toda rindo ........
M: É meu jeito de ser
C: É, eu entendo Cláudia que você não goste, quando eu tinha a sua idade eu
também não gostava que minha mãe conversasse muito com meu namorado,
eu achava que a conversa dela era mais interessante que a minha.
132
Eu penso que as mães não têm que ser muito simpáticas com os namorados
das filhas, precisam ficar no lugar de mães, observadoras, às vezes bravas,
manter autoridade.
M: Eu só conversei com o Renato quando tudo aconteceu e precisei da ajuda
dele. Ele é um bom rapaz.
T: Vocês têm conversado sobre os cuidados com o namoro, para não
engravidar, não pegar doenças como o HIV?
C: Não.
M: Eu e você conversamos muito.
C: Não sobre o Renato e sexo.
M: Eu vou num lugar que faz exames de HIV e sífilis e pego as camisinhas
para ela. A gente não tem dinheiro. Eu ganho lá. É muito importante você exigir
que ele use camisinha, tomar cuidados.
T: Precisa também um controle médico, pode ser o do Posto, mas são vários
os cuidados que se tem que ter quando se inicia a vida sexual.
É delicado este assunto porque por um lado se já tem vida sexual precisa
cuidar, por outro se trata de uma adolescente menor de idade e outros
cuidados são necessários, não é? Agente sabe que hoje isso acontece muito
com jovens mas....Além se tudo isso, que aconteceu para vocês chegarem no
Fórum?
M: Ela começou a fugir de casa, a sair para a rua.
T: Quem foi procurar quem?
C: Eu saí de casa, eu não estava nem aí. Aí ela batia em mim e, minha mãe foi
denunciar e disse que eu pequei uma faca para ela.
M: Você pegou filha....
C: Não eu não pequei a faca. A Sra. estava trancada dentro do quarto, e eu
estava fazendo a janta e estava com faca na mão.
M: Ela estava faltando muito na escola, tinha muitas reclamações lá. Meses
aprontando não chegava no horário, a escola reclamando, ela roubou o celular.
Aí eu pequei ela na porta da escola com um rapaz chamado Paulo em que ela
perdeu a virgindade com 11 anos. Pequei elas pelos cabelos.
T: Ela tinha 11anos e o rapaz?
M: Ele tinha mais de 20 anos, era bem mais velho.
T: Isto é caso de polícia.
133
M: Exatamente, os pais deste menino..... eu vim a descobrir isto quando ela
tinha 13anos.Nunca consegui tirar isto dela. Eu fui atrás e pequei ela pelos
cabelos.
T: Mas porque pegar ela pelos cabelos ? você acha que ela é culpada?
M: Não sei, mas ela estava aprontando. Ela não podia ficar na porta da escola.
Falei muito para o rapaz. Ele ficou com medo.
T: O que você sentiu por ter acontecido este abuso com sua filha tão nova?
M: Tem meninas de 10 anos e meninas de 10 anos, a Cláudia já tinha corpo e
parecia bem mais velha. Eu tinha reclamação dos pais dos meninos, quando
chegava do serviço que ela ficava na janela de lingerie.
C: Eu não sabia.
M: Um casal de velhos dizia que ela era danada, ela aprontava quando eu ia
trabalhar. O casal de velhos ficava de olho para mim. A Cláudia ligava para ele,
o rapaz e a família dele reclamava da Cláudia, dizendo que ela ficava em cima
dos filhos deles.
T: O que poderia ter ocorrido, antes, destes fatos?
M: Eu não sei se aconteceu algo antes deste estupro, eu falei para ele que
como mãe tinha que fazer alguma coisa, mas ela disse que foi ela que quis.
T: Você concorda Cláudia?
C: Eu não sei, não lembro. Eu preciso ir ao banheiro, estou meio enjoada.
T: Nós estamos na nossa hora, falamos de coisas muito difíceis e de muito
sofrimento. Espero vocês na próxima semana no mesmo horário e toda a
família.
M: Muito obrigado Dr.ª
C: Tchau, tia.
T: Vou deixar meus telefones com vocês, caso precisem, além do telefone do
CEAF.
Vou esperar você Cláudia aqui fora do Banheiro se precisar de alguma coisa
ou se não se sentir bem, estou aqui fora.
Enquanto a mãe contava a história à filha foi ficando mais à vontade e passou
a levantar o rosto, olhar para os meus olhos. Assim foi possível se criar algum
vínculo e um tipo de comunicação através do olhar e na segunda metade da
134
sessão, foi possível fazer perguntas para a filha e obter respostas. O que
inicialmente não foi possível.
Penso que neste atendimento falar das histórias da família de origem da mãe e
suas dificuldades, facilitou o conversar dos fatos atuais e a sua compreensão.
FAMÍLIA ALMEIDA
2. SESSÃO DE ATENDIMENTO FAMILIAR – REALIZADA DIA 16/ 06/2004
NO CEAF.
Havia combinado com a família para que o filho mais novo estivesse presente
no processo terapêutico. Logo que chegaram, a mãe desculpou-se por não ter
trazido o filho. Justificou a ausência , dizendo que naquele horário está na
escola. Estavam presente Maria e Cláudia. Cláudia estava mais risonha e
simpática.
Entramos na sala de atendimento.
C: Iniciou a sessão , perguntando se eu havia lido o Sr. dos Anéis.
T: Você leu todos, Cláudia ?
C: Não , eu li o primeiro.
T: Eu li há muitos anos atrás, e recentemente vi os filmes. Vocês assistiram os
filmes?
M: Eu assisti e gostei do primeiro.
T: Eu gostei do primeiro e do terceiro e você Cláudia. ?
C: Eu gostei de todos.
M: Eu gosto muito de ler, mas gosto de livros infantis. Não gosto de comédia.
Gosto de ação. Está difícil ir no cinema, por causa da grana. Eu vi que aqui tem
cinema e filmes de graça. Olha, Cláudia podemos vir. O João Pedro. também
gosta.
T: E você Cláudia. ?
C. Eu estou mais ou menos. Estou com dor de cabeça.
T: O que é ? Você costuma ter?
135
M: É raro ela ter . O problema dela é ouvido e febre, mas é raro.
T: O que você faz quando tem dor de cabeça ?
C: Eu, nada.
M: Ela para tomar um remédio doutora.....é um sufoco dar na boquinha da
Cláudia.
T: Você prefere ficar com a dor?
C: Não gosto de tomar nada, sara sozinha.
M: Eu preciso levar ela no médico. Mas ela tem medo de tomar injeção.
T: Mas ir no médico! Mas nem sempre precisa de injeção....
M: Eu falei a gente vem aqui , depois vai no médico. Mas ninguém consegue
dar injeção nela . A última vez ela tinha dez anos e ninguém conseguiu..... Ela
tem pavor. Eu já falei tem xarope, anti-inflamátorio. Já o João Pedro, adora
tomar remédio e fica pedindo para olhar se ele está com febre para tomar
remédio.
T: E o que vocês pensaram depois do nosso encontro ? Você conversaram ?
Risadas da Cláudia e Maria. As duas mexem com a cabeça que não pensaram
e não conversaram.
M:Eu fiquei pensando no meu pai. Isto não me incomodou nada, mas fiquei
pensando aqui e tentando pensar por que não falar ? não me incomoda mais.
Fiquei pensando muito nisso e queria chegar aqui e falar isso. Fiquei pensando
o quanto já me atrapalhou a vida. O quanto isto me fez sentir recuada e não
percebi. Percebi já, mais nunca falei a ninguém, depois de mais velha , eu vim
perceber e acho que a gente como a Dra.ª( psicóloga do Fórum) falou, de
repente você não sabe que tem problemas...
T: Você contou para a Dra. ª sobre seu pai?
M: Não... Não.... só contei aqui, também para Cláudia, na última vez. As vezes
a gente não sabe que tem um problema, no fundo da gente. A Dra.ª perguntou
porque você quis ter a Cláudia.? E eu disse à ela que queria ter a Cláudia. com
inseminação artificial, o que era meu objetivo. Eu não queria ter um marido. Um
homem do meu lado.
M: Ai ela me perguntou o que te levou a pensar isso? E eu fiquei com uma
coisa no ar. Será que, o que eu passei com meu pai tem a ver com isso?
Depois da semana passada eu achei que eu tenho problemas e que afetou
muito o meu lado mulher. Sexual; eu nunca fui uma mulher namoradeira , só
136
elétrica , muito reservada . Eu não gosto de quando os homens mexem comigo
e não gosto muito deles, essa coisa sexual, não me faz falta. Detesto homem
avançado, saidinho. Hoje também tenho tantas dores no corpo...... Hoje
também com meu marido.... como vou me expressar....eu fico egoísta, não
gosto que ele me veja trocando de roupa. Ele é todo apaixonado ,
romântico...me chama de meu anjinho....meu amor.....eu não sou de intimidade
e quando eu estou me trocando ele adora ver... me deixa encabulada , me
deixa sem jeito..... fiquei pensando sobre isto.
T: E você Cláudia , o que está pensando ?
M: Ele é bom demais, ele tem muita paciência?
T: E o que é ter paciência?
M: É que eu nunca estou boa ...... ele espera não força para transar.
T: Ele sabe esta história com seu pai ?
M: Um dia eu contei mas ele esqueceu. Eu acho que Cláudia, sente falta de
pai e o André, também já falou disso. A irmã dele também esta fazendo terapia
e me disse que estava descobrindo os problemas dela. E hoje eu penso que
terapia não é só para loucos. A irmã do André também sente falta do irmão
como eu e do pai. Eu acho que nunca tive....
T: Você também sente falta de um pai?
M: Não eu nunca senti. Tive muito meus irmãos presentes, alguns já
faleceram e eu sinto uma falta de menina de querer um abraço dele de deitar
no colo. Do meu pai , não. No começo era ódio, raiva e muita.....e depois de
grande, fazia sexo comigo.
T: Ele fazia sexo mesmo ?
M: Não chegou a fazer , ele passava a mão em mim de todos os jeitos e se
esfregava em mim , ele estava velho. Eu preciso falar... botar para fora.... para
minha filha escutar e também falar ... já que ela diz que o André fez coisas com
ela.
T: Cláudia, o que você está pensando?
C: Essa semana agente não brigou.....eu ajudei minha mãe na casa e eu falo
para ela, não ter ciúmes de mim com o André . Eu tenho o meu namorado e,
eu tenho ciúmes dela com ele.
M: Primeiro que para eu me envolver com um homem é muito difícil , depois
sou uma mulher separada com dois filhos e uma moça. Se meu pai que era de
137
sangue fez aquilo comigo , imagine outros... no fundo eu pensava assim e não
sabia que pensava, o risco maior era em casa. Eu agora estou bem atenta
jamais vai acontecer com ela de novo. O André tem consciência disso, ele está
preocupado com ela , agora se preocupa.
T: O que você esta pensando Cláudia ?
C: Nada.
T: É difícil pensar no que sua mãe esta dizendo ?
C: Você mãe não contou aquilo ?
M: Ah é eu me esqueci. Meu pai , antes de separar da minha mãe ficava me
observando tomar banho e olhava no ralo se tinha pelos no banheiro e queria
saber se estava raspando as partes intimas. Eu já cheguei a raspar para
parecer menina. Minhas irmãs também, ele olhava , mas à mim era pior ,
porque ele não deixava eu falar com ninguém. Ele separou da minha mãe e
quis morar perto e disse que era para ficar perto de mim . O meu medo foi
aumentando.
T: Você sentia que corria perigo?
M: Sentia ..... nesta época eu tinha 8 ou 9 anos. Infelizmente eu lembro até da
roupa que estava. Parece que não foi comigo. Hoje eu conto assim.....bem
tenho ....não tenho vergonha de falar. Sinto mal. Mas não penso, ai coitada de
mim.... Já passou mas no fundo, tenho mágua, raiva. Meu deus meus filhos
são tudo para mim! Como não percebi o que aconteceu com a Cláudia. (
choro, tristeza)
O meu filho , eu amo. A gente se abraça , beija se agarra. Ele é lindo. Mas eu
não vejo ele como homem, não dá, só como filho. Eu com 9 anos fiquei
menstruada, já tinha peitão e tudo....
T: Como você escapou dele?
M: Um dia quando tinha uns 10 anos , estávamos todos juntos ali, meus irmãos
e todos íamos dormir juntos , só tinha um cômodo e quando deitamos , meu pai
ficou perto de mim , mas como era meu pai...... e eu acordei com meu pai
apertando meu peito e doía muito ..... muito ...... e ele falava besteiras no meu
ouvido, todos no quarto juntos e eu me lembro muito bem que eu não gritei
não sei porque. Fingi que dormia , ele passava a mão nas minhas coxas, no
meu corpo e apertava o peito. Ai ! que horror! Eu acho que não estava
preparada.
138
T: E sua mãe, onde estava?
M: Não estava. Ele mexeu no meu short e mexia na minha vagina e apertava
com muita força, que nojo ! Eu não sabia o que fazer. Eu me lembrava que
meu irmão estava com revólver embaixo do travesseiro e foi um dos motivos
que eu não sabia o que fazer.... se eu gritasse ele matava meu pai na hora.
Podiam achar que era mentira minha.
T: Você acha que ele mataria seu pai?
M: Mataria na hora , isto é batata.... Eu lembro perfeitamente do revólver ......
Muito nítida na minha cabeça , isto tudo, até o short jeans.
T: Por que seu irmão estava com revólver debaixo do travesseiro?
M: Ele era ladrão. Estava com medo de ser preso. Eu sempre escutei as
conversas de outras pessoas sobre ele, eu era pequena. Meus irmãos sempre
foram meus heróis. Apesar das drogas e tudo que faziam, eles eram tudo para
mim. O Rafael ( irmão ) morreu. Ele roubava bancos e diziam que distribuía
dinheiro nas favelas, para mim ele era o Robin Hood. Ele não usufruía do
dinheiro. Não andava de carrão , nada. Ladrão , quando a gente é pequena é
horrível , mas eu nunca pensei isso deles. Hoje acho que eles devem ter feito
coisas horríveis . Já ouvi muita história. Eu falo para Cláudia. Para não andar
com gente que não deve , porque eu tenho este espelho na minha própria
casa. Fui criada em um ambiente assim, morei em favela, passei fome, mas
nunca me prostituí e nunca procurei drogas. Hoje nem cerveja eu tomo. Cada
pessoa é uma pessoa . Eu era muito pobre, minha mãe era pobre mesmo,
coitada. Teve tempo que todos moravam em quartinho de pensão na favela ,
cheia de prostitutas......minha mãe trabalhava dia e noite. Nunca peguei raiva
da minha mãe , ele é uma heroína para mim. Sem marido , sem comida , ela
trazia os restos de comida do restaurante que trabalhava. Ela não roubou, não
matou e nem se prostituiu, foi um exemplo. Eu acho ela uma mulher
maravilhosa. Nunca quero fazer coisas erradas. Eu falo para Cláudia, isso. Do
meu ponto de vista que seja errada. Não curti muito a vida , na adolescência eu
trabalhava muito, eu não me queixo. Minha mãe dava tudo que tinha para nós.
Eu admiro ela e eu nunca acusei ela, do meu pai. Eu sempre sonhei em ajudar
minha mãe. Para ela ficar bem de vida. O que me incomodava até hoje é meu
pai. Ele me fazia de gato e sapato , era como se eu fosse a esposa.
139
M: Você perguntou quando eu escapei dele? E Um dia eu fugi dele e apanhei
tanto com um guarda chuva , mas tanto.....se não fosse uma vizinha , ele tinha
acabado comigo.
C: Você não tinha ódio dele?
M: Tinha ...ele me beijava na boca, que horror! Ai e eu beijo meus irmãos e
filhos com selinho...ih! ( gagueja) . Não é selinho que ele dava , ele apertava a
boca. Selinho ... tudo bem .
T: Seus filhos não acham um pouco estranho a mãe dar selinho neles ?
M: Eu acho que não.
T: O que você acha Cláudia. ?
C: Eu não ligo. A gente também beija ela assim.
M: É uma forma de carinho entre nós.
T: E seu filho ?
M: Eu acho que ele não liga ?
M: Lá em casa , meu filho não gosta que a gente ande meio sem roupa.
T: Eu vejo muitas famílias que quando os filhos crescem , não se sentem bem
da família andar sem roupa, uns na frente dos outros. Parece que quando são
pequeninos não ligam tanto. Fico pensando que seu filho está te dizendo
algumas coisas . Talvez seja bom escutar. A família cresce os hábitos mudam.
T: Quando você fala , eu lembro do meus filhos e quando eles foram crescendo
, principalmente meu filho, que hoje tem 18 anos , não gosta muito de contato
físico, gosta as vezes de cafuné ou que eu trago um chocolatinho, mas gosta
de conversar. Mudou muito o tipo de contato físico.
M: As vezes tem aquelas coisas um está tomando banho , o outro precisa do
banheiro e entra. O André ( marido atual da mãe ) gosta muito do João Pedro.
Eles se dão bem.
M: Acho que tudo depende de mim , eu que tenho que cuidar.
T: E o André também depende de você ?
M: O André; eu não quero que ele beije os meus filhos.
T: E o André sabe da situação do colega com a Cláudia. ?
M: Não ele não sabe de nada e eu acho que ele não sabe como agir.
C: Ele sabe sim mãe.
M: Ele não sabe como agir , como ele não é pai . Ele é caladão por natureza.
Ele era amigo da Cláudia. Mas agora não.
140
T: Você pode contar mais sobre isso, Cláudia?
C: Eu não gosto de fazer nada com ele. No começo eu gostava mas depois
não. Ele é folgado, chato. ( silêncio )
T: O que você foi pensando , enquanto sua mãe falava?
C: Eu fiquei muito triste. Algumas coisas ela contou esta semana , eu não
sabia. Mas eu prefiro não ficar pensando.
T: E quando você pensa em você.?
C: Eu nem quero pensar.
T: Eu sinto uma tristeza grande , ela faz algum eco em vocês ?
Silêncio.
M: Eu estou muito triste, acho que , eu já estava, tenho muitas dores, mal
posso caminhar.
C: Eu fico brava. Com raiva.
M: Nunca senti falta de pai. Um dia eu fui na casa de uma amiga, meio vizinha
. Ela era muito bonita , assim como a Xuxa e quando cheguei lá a mãe dela me
disse que ela não estava muito bem. Ai o pai dela disse – Entra lá no quarto.
Quando eu entrei, ela estava com uma camisetinha e uma calcinha e quem
cuidava dela era o pai e não a mãe , eu não lembro o que ela fazia ..... mas o
pai é que cuidava , e ela estava com cólica menstrual, e no meu ponto de vista
era a mãe que devia cuidar , mas no caso eu achei lindo como o pai cuidava.
Hoje eu moro em três cômodos e não tenho liberdade de ficar assim a vontade,
com uma blusinha e calcinha. Ela ficava assim , uma puta mulherona com um
corpo maravilhoso , na frente do pai deitada na cama. Ele , o pai tirou o
cobertor de cima dela e colocou uma bolsa de água quente. Ela foi para o
banheiro vomitar e o pai foi junto , limpou tudo . Achei muito bonito, nunca me
esqueci. Eu não tinha corpo e meu pai mexia comigo e ela com aquele corpo, o
pai não mexia com ela. Eu queria um pai que me fizesse sentir protegida e
cuidasse de mim.
T: Quais os cuidados que você tem com sua filha?
M: Eu sou muito aberta , falo tudo e digo se ela for no motel , usar camisinha ,
se valorize
T: Como você imagina que a Cláudia. viveu esta situação com o rapaz. ?
M: Eu acho que ela queria , ela provocou?
T: Você acredita que ela queria mesmo ?
141
M: Ela é que me falou. Eu acho que se eu estivesse presente , ela estaria mais
ocupada com estudo, ballet e não teria acontecido nada.
T: Você acha que aconteceu porque você não estava presente?
M: Ela estava todo tempo sozinha
T: E o André ..... ?
C: Estava junto.
M: Pai e mãe é importante estar presente. Eu trabalhava o dia inteiro e a minha
mãe trabalhava o dia inteiro.
T: Trabalhar o dia inteiro pode facilitar estas situações ?
C: Pode sim, eu pedia para minha mãe ficar um pouco em casa.
M: Eu perdi minha virgindade com 15 anos , eu quis, eu escolhi. Eu me lembro
que estava com um macacão branco e uma calcinha fininha.
T: As vezes pode se perder a virgindade sem querer, nem imaginando que iria
perder. O que você esta pensando Cláudia. ?
M: A Cláudia. começou a ficar feminina com 9 anos , antes ela era como um
moleque.
Eu desde pequena era muito até demais vaidosa. Até hoje eu adoro me
arrumar.
T: E você Cláudia.?
C: Eu sou um pouco, mas gosto de esportes de natação. Eu gosto de luta.
M: Eu trabalhei em academia e os funcionários pagavam a metade para as
pessoas da família. Ela sente falta , devido a nossa situação financeira , não dá
para nada.
T: E o André trabalha?
M: Ele é funcionário publico, segurança . Ele foi mandado embora. Ele esta
fazendo grafite. Ele adora desenhar.. mas na carteira ele é agente ferroviário,
segurança .
T: Ele recebe então como agente ferroviário ?
M: Não, agente ficou sabendo que ele tem alguns direitos.
T: Hoje em dia ele não tem renda?
M: Ele é autônomo, mas faz grafite.
T: Ele ganha com isso?
M: O serviço que ele pegou ele vai receber R$170,00. tem mês que consegue
um serviço. Está difícil a situação dele.
142
T: O que você pensa Cláudia. ?
C: Agente briga com este assunto porque ele nunca recebe nada e pede tudo
para minha mãe. Ela usa a pensão que é minha , que meu pai deixou. Ela usa
o dinheiro para pagar aluguel, contas , tudo , a mãe também não recebe , só
um pouquinho. Este dinheiro é meu e eu nunca posso comprar alguma roupa.
Eu não ligo de dar este dinheiro um pouco para casa. Mas não gosto que dê
para ele. Ele é folgado pede cheque para tintas e não paga de volta . Nunca
dá nenhum em casa e tem casa e comida. Ele gasta dinheiro com cerveja ,
com amigo. Meu irmão não recebe nada do pai.
T: O dinheiro então vem da pensão do seu pai e do afastamento de trabalho da
sua mãe?
C: Eu estou muito revoltada porque se eu quiser fazer um curso ,não posso
porque ela dá muito para o André.
M: Os meus planos era a faculdade dela. Ela é boa aluna.
C: Eu acho que o André não faz nada , engana a gente.
M: A Cláudia acha um absurdo ele não trazer dinheiro. Ela acha que ele como
homem, deve trazer dinheiro.
T: O que será que acontece que o dinheiro das mulheres é que sustenta a
família e os homens não precisam colaborar.? Isto também não é um abuso?
M: Até é, mas o que eu vou fazer?
M: Agora o André não está mais olhando para a Cláudia com malícia , ele já
entendeu. Eu falei o que foi falado aqui.
C: Mas um dos nosso problemas é o dinheiro e sempre é o André.
Eu fiquei muito brava com minha mãe e ela chamou a polícia . Disse que eu
estava com uma faca na mão.
M: E você estava sim .
C: Não estava, não. E você queria que eu ficasse na Febem. Disse que eu ia
matar ela. Eu não ia não . Eu quero meu dinheiro e vou embora.
T: Continuaremos na próxima semana.
143
FAMÍLIA ALMEIDA
3. SESSÃO DE ATENDIMENTO FAMILIAR – REALIZADA DIA 23/ 06/2004
NO CEAF.
Neste encontro estiveram presentes a mãe e a filha. Havia sido reforçado na
sessão anterior, a importância da presença do filho, João Pedro. Segundo a
mãe , ele não pode faltar na escola, porém ela diz que não quer comentar
estes assuntos perto dele.
C: Ai, meu celular caiu na água no caminho, acho que quebrou...
T: Uma vez aconteceu comigo e me disseram para não liga:lo e secar com
secador.
T: Como vão ?
M: Você recebeu meu recado? Eu pedi para a secretária pedir para você livros
emprestados para ler.
T: Você ligou para pedir livros ? que tipo de livros?
M: Eu queria ler sobre psicologia , pais e filhos, filhos adolescentes. Eu gosto
de ler. Quando estamos conversando , eu não assimilo muito, mas depois em
casa penso. Eu vi um livro escrito , “Filhos criados por pais separados” acho
que fala das manias dos filhos, como xixi na cama.
T: O que você está pensando Cláudia ?
C: Eu faço xixi na cama.
M: Não tem vergonha, não Cláudia. Pode falar. Até hoje ela faz xixi na cama ,
mas isto não é doença não , filha, isto é sinal que você está muito relaxada.
Tem adultos que fazem. É um distúrbio.
C: Eu faço xixi quando me assusto. Eu estou dormindo e acordo e penso, “ que
sonho feio” e acordo.
T: E nessa hora, você já fez ou pode ir ao banheiro?
C: Eu já fiz e molhou tudo.
T: E o que você sente nestes momentos ?
C: Fico triste e com medo.
T: Dá para falar um pouco disso?
M: Eu também já fiz , quando nasceu o João Pedro, as vezes faço até hoje. (
risada) Também é durante o sono.
144
T: Cláudia,você lembra de algum sonho , que deu medo ?
C: Outro dia eu sonhei um sonho estranho que meu bichinho estava na
cozinha.
T: Que bichinho era?
C: Eu tinha um porquinho da índia. Eu tinha colocado ele na cozinha e o rato
veio e comeu meu bichinho e começou a comer agente . Quando ele veio me
comer, eu assustei e batia nele e ele não morria e fiz xixi.
( risada da mãe)
T: O que você pensou deste sonho, Cláudia ?
C: Que o rato ia me comer. Eu já sonhei que estava em um lugar muito escuro
e que estava caindo, caindo.....um buraco, não sei.
T: E você Maria , o que está pensando.
M: No sonho do rato. Nunca apareceu rato em casa. Só agora apareceu uma
ratazana e comeu de verdade o porquinho da índia.
T: O sonho aconteceu?
M: É faz 15 dias, o bichinho tinha 4 dias de vida.
T: Cláudia , você sonhou antes ou depois.
C: Eu sonhei no dia que ele veio para casa.
M: Eu fiquei impressionada com isso. Ele ficava na gaiola de noite e solto de
dia. Nossa casa é bem pequena. Eu também sonhei com rato. Te contei? Filha.
C: Não, mãe.
M: Eu sonhei depois que ele morreu. Acordei nervosa, o rato estava no sonho
subindo em mim e eu não podia fazer nada.
Tocou o celular da Cláudia. Ela fica feliz que não quebrou. Era seu namorado.
C: Não posso falar estou na terapia.
M: Aquilo que você perguntou do sonho, eu acho que ela dormiu sonhou ficou
com medo e fez xixi.
M: Em casa tem higiene, eu vi coco de rato e deixei o bichinho preso na gaiola
e não sabia que o rato podia come-lo na gaiola. Eu fiquei preocupada.
T: Com que ?
M: Com o xixi que a ratazana podia ter feito nas panelas. Eu lavei tudo. Mas
não sei se ela está por lá.
Cláudia estava rindo .
T: O que foi Cláudia?
145
C: Eu estava rindo porque meu namorado ligou e disse que me ama.
T: E você também ama ele?
C: Ai ,eu amo. Você também diz para ele?
C: Não. Eu tenho vergonha.
T: Vergonha do que ? Ou você não fala porque não o ama?
C: Eu tenho vergonha porque está gravando.
T: É difícil falar coisa quando está gravando ?
C: Não só isso.
T: Uma palavra bonita como “amor” é difícil de falar?
C: Eu não gosto de falar isso no telefone.
M: Ai Dra.ª , eu me sinto tão bem com você......muito bom. Eu não fico tímida.
Consigo falar as coisas. Até as coisas de vergonha. Eu sou franca e direta .
Desde o primeiro dia eu senti a vontade. Bem tranquila . Eu sempre quis fazer
uma terapia.
T: Como vocês estão em casa?
M: Eu estou melhor de saúde , um pouco menos de dores. Estou tomando
cuidado para não ter dores. Eu tenho sentido falta de compartilhar coisas com
o André. Eu acho importante na família ter comunicação . Se não for amiga da
minha filha eu não vou compreender ela, nunca. Eu sou enérgica . Eu quero
que ela confie em mim.
C: Eu não sou obrigada a confiar em você.
M: Claro que não. Você que escolhe.
T: Talvez fique uma confusão de mãe amiga e mãe. A mãe que compreende o
momento da filha , protege , cuida , ensina e é enérgica....
M: Eu acho que sou assim , mas ela não é obrigada a pensar.
C: Eu gosto de falar com meus amigos.
T: Você tem uma super amiga , Cláudia?
C: Não tenho.
T: Por que ?
C: Eu não quero que ninguém fique sabendo o que eu estou pensando.
T: E, por que ?
C: Meus pensamentos não são bons.
T: O que é bons pensamentos? Você acha que todo mundo tem bons
pensamentos?
146
C: Eu tenho medo de falar.
T: Eu penso que tem coisas que agente conta e coisas que não conta.
C: Neste fim de semana , eu saí com amigos e as amigas falam o que fizeram
e comentam coisas , eu fiquei com tal pessoa ........ a mãe da Bruna é chata....
T: E você não conta aonde foi com seu namorado . Que estava gostoso....sei
lá.
C: Não.
T: Nem comentar um filme que assistiu.
C: Não, só comentei do Harry Poter.
T: Você não acha que comentar seu ponto de vista sobre o filme ou outra
situação que não seja coisas íntimas suas pode ajudar a ter mais amigos , a
trocar informação com os outros?
C: Mas como é ?
T: Por exemplo. Você foi ao cinema , viu um menino bonito , viu algo
engraçado que aconteceu e contar o que viu.
C: Isso eu faço quando está acontecendo , mas não conto depois.
M: Eu vi um rapaz bem bonito , no caminho para cá.
C: Ai mãe , ridículo.
M: Ele olhou para ela. Eu vou contar para o namorado dela ......
C: Ai, para .......
M: Ela fica nervosa, imagina se vou contar para o namorado dela . É
brincadeira. É, que ontem.....
T: O que aconteceu ontem?
M: Minha mãe veio lá em casa. Ela estava internada. Eu queria ver ela mas a
situação financeira...... condução não dava para ir lá. Agora descobri que com
o passe que ganho aqui, dá para passar lá, na casa dela. Voltando ao assunto,
ela foi em casa e eu estava fazendo faxina. Eu estava com dores e a Cláudia
me ajuda, senão não posso pegar a faxina. Preciso da ajuda dela. Eu preciso
de ajuda do João Pedro, não posso carregar peso. Eu fui para o serviço e me
disseram que a mãe estava em casa. Só faltava bater uma máquina de roupa
e estender. Falaram que a minha mãe estava brava me esperando e dizendo
que eu não fui ver ela. Eu estava doente e ela não quer esperar. Eu liguei lá e
falei que eu estava subindo só faltava estender a roupa. O André estava em
casa fazendo os trabalhos, porque a loja que ele trabalha fecha às 18: 00
147
horas e só dá para trabalhar em casa. Ai chegamos falei coma minha mãe e
ela saiu. O André disse que tinha um serviço de tinta, saiu e voltou mais tarde .
Ai eu não gosto desse tipo de coisa, sempre falo para os meus filhos , por mais
que seja ruim é bom contar a verdade. Por mais que seja difícil , a verdade é
sempre a melhor opção. Eu falei uma mentira ontem. Não é do meu feitio, mas
joguei verde para colher o maduro com o André. Ai eu falei que, fui no serviço
dele e ele não estava. Ele perguntou que horas eu tinha ido. Eu falei às 9:20
ou vinte para às dez. Ele falou – Você viu a confusão lá fora ?
Eu disse que não. Em vez dele falar dele, ele fez um monte de perguntas. Ele
devolve. Eu disse: te chamei no portão, as luzes estavam apagadas. Tem uma
loja de lingerie , em cima , uma oficina em baixo. A mentira tem perna curta , e
eu tive que usar isso. E nos fundos eu tentei bastante. Ele disse que estava
preocupado com o portão aberto da frente que podia roubar as ferramentas
dele. Estava comendo miojo e disse para eu parar com a ladainha. E eu disse
que, quem não estava entendendo era eu. Mantive a mentira. E ele falou que ia
falar com a moça que trabalha lá que não abriu a porta.
C: Não mãe....ele falou que ia falar com a mulher e foi para o quarto.
M: Ele disse para eu ir para o quarto atrás dele. Eu disse que não era cachorra.
Eu falei tchau. Isso me ofendia no passado. Hoje ofende, mas não tanto como
antes. Ficou por isso mesmo.
T: Sempre fica como isso mesmo ?
M: Eu acho errado , precisa ser diferente. Todo mundo foi dormir. Eu estava
dolorida ,não dormi.
T: Eu imagino que estas situações lhe causem mais dor.
M: É , eu fico pior , mais nervosa. E lembrei que eu perguntei se ele tinha ido
trabalhar hoje. Ele falou que estava por ai e eu disse que não é resposta. Ele
estava nervoso e com a voz alterada. Para mim, morreu. Ele dormiu.
C: O meu namorado também fez uma que eu não gostei . Ele trabalha tem o
dinheiro dele e, ele foi em casa comendo miojo e eu disse que queria também.
Ele disse que foi comprar e não voltou. Eu fiquei esperando ele. Ele depois
disse que comprou e guardou na casa dele. Eu fiquei esperando. E ele disse
que ficou tarde. Ai, ontem ele trouxe o miojo. E eu queria comer com ele . Ele
deixou um monte de miojos em casa e foi pra casa dele . Eu liguei lá e disse
que só comeria o miojo se ele viesse.
148
T: Ele mora perto?
C: Mora , bem perto. Ele foi lá . Todo mundo em casa estava comendo miojo.
M: Eu pedi para o André o dinheiro da condução para vir para cá. Falei que
devolveria que aqui dão o passe para ir e voltar. Eu perguntei novamente e ele
disse que não arrumou dinheiro. Ele disse que não pode fazer nada ; sinto
muito.
T: Como você esta aceitando isso ? Sua filha parece que está fazendo
diferente.
M: Eu não estou aceitando.
C: Está aceitando , sim .
M: Nunca aceitei. Eu gosto de conversar. A gente já conversou sério. E a
última vez , faz uns dias, eu pensei em separar. Eu faço muito para te agradar.
Ele diz que me ama e gosta dos meus filhos. Mas eu disse que ele fala uma
coisa e faz diferente . Eu acho que sou durona. Eu sou durona em coisas da
educação dos meus filhos e do futuro deles. Eu estou um pouco mais flexível ,
já que estou lidando com adolescência. Aqui é um compromisso, o fórum é um
compromisso. Eu fui criada assim . Eu sempre digo o que penso e respondo o
que você me pergunta. Eu não digo, não sei. Eu respondo, o que sei. Se você
pergunta se eu estou gostando eu respondo. Que sim. Mas posso responder
que estou conhecendo e que não sei. Mas respondo.
T: E em casa como estão vocês duas ?
M: Nós estamos bem melhores , mas eu fico maguada com as discussões. Eu
analiso tudo que eu falei e tudo o que ela falou. Quando eu errei. Eu erro muito.
Quando eu pensei que podia falar diferente. Penso que se tivesse falado de
outro jeito , ela não falaria daquela forma. Agora na questão de sentimento , eu
fico muito maguada. Sempre tudo que quis era ter um filho e estou realizada
com isso. Acho dez, ter um filho e ter amigas. E, eu penso , onde errei? O que
estou fazendo de errado? Muitas pessoas acham os defeitos do outro e não se
enxergam . Eu sou diferente . Estou sempre me olhando.
C: Fala mãe, que você fala brava. Eu não sou obrigada a ter o mesmo
pensamento que você.
M: É difícil quando a pessoa está fora de controle ser educada. A pessoa
ofende , magoa.
C: Você deveria pensar um pouco como você fala .
149
M: É porque discussão não chega a nada. São raras as discussões que
conseguem chegar em algum lugar. Ela perguntou meu sentimento e eu me
sinto muito mal. Ela ficou com mais raiva de mim e eu dela. Fica pior a
convivência e agrava.
T: Você está contando quando vocês discutem , vocês podem sentir, dizer o
que pensam e que algumas vezes dá mais certo outras vezes não , mas me
intriga quando você discute com o André , como fica estas coisas o que
muda?
M: É diferente. Porque minha filha fica para sempre , porque vale a pena. Eu
pensei nisso ontem. Mas o André diz que eu sou durona , mas que eu relevo
algumas coisas dos meus filhos. E, é mesmo. São meus filhos. O André não
compreende uma coisa que eu ensino a pendurar as toalhas , dar descarga,
lavar a louça. Ensino tudo. Eles não são obrigados a fazer. A obrigação é do
adulto.
C: Eu vejo que é obrigação.
M: A Cláudia tem as obrigações dela . O João Pedro , arruma a cama e cuida
dos bichos. Cada um tem obrigação. Eu acho que não é ....... qual palavra se
usa muito na televisão ? é exploração. Eu estou educando e ensinando.
T: Você contou aqui que na sua vida você se sentiu explorada , quando
trabalhava na casa de sua irmã. Não foi isso que contou?
M: Eu fui explorada sim. Na casa de minha irmã.
T: Você sentiu isso ?
M: Sim, a criança , o adolescente..... quando faço birra para Cláudia, os adultos
também fazem birra.
C: Não é mãe.
T: Sua irmã te explorou na casa dela , fazendo você fazer muitas coisas ? Na
sua casa qual é o sentimento é de exploração ou de aprendizado?
C: Eu sempre ajudei minha mãe, acordo cedo, limpo toda a casa. Lavo a
roupa, limpo o banheiro e vou para a escola correndo, tomo banho e quando
voltava da escola limpava a casa e fazia a janta.
T: Você faz porque quer fazer?
C: Não , mas porque ela pedia. Aí eu fazendo tudo, ela brigava comigo,
dizendo que eu não fazia nada. Aí eu falei: tá bom não vou fazer mais nada.
M: E você falava: eu faço , faço e nunca agrado a senhora.
150
C: Ë eu faço e nunca está bom.
T: Ela fazia mal feito?
M: Não , ela sabe fazer. Eu que estava nervosa.
T: E com Você Maria acontecia assim quando estava na casa de sua irmã?
M: Em parte. Quando a Cláudia fala isso, eu estava doente com a perna
engessada e logo eu precisava dela . Se eu tivesse um marido que enxergasse
isso, poderia me ajudar. A Cláudia sabe de tudo. Ela é uma criança.
T: Eu não vejo ela como uma criança.
M: Mas na época ela era. Há 4 anos atrás. Ela tinha provas , lição de casa.
Ela poderia colaborar, mas não tinha a obrigação de fazer tudo , porque tinha
os afazeres da escola.
C: Mas tinha que fazer.
M: Não eu estava muito chateada e nervosa, o dia inteiro na cama, sem poder
fazer nada.
C: Mas era quando a sra. trabalhava também.
M: Ai fui teimosa e procurei um serviço de faxina que é esse que eu estou até
hoje. Eu falei para a Cláudia que iria precisar de ajuda dela.
T: Mas quando você reclamava do trabalho, da ajuda dela, por que ?
M: Toda vez que eu erro eu falo depois para ela.
T: Reconheciam o seu trabalho na casa de sua irmã?
M: Ela reconhecia ela não dava muita tarefa. Ela me sustenta , ela trabalhava
fora e eu cuidava das crianças, de tudo.
T: Eu me lembro de você contar que trabalhou muito na casa de sua irmã.
C: Um dia você falou que lavou a roupa......
M: Um dia eu vou chegar nesta história. Isso foi com a minha irmã Nena, agora
com a minha irmã Cida foi diferente . Ela me explorava. Ela dizia para os outros
que eu era a empregada dela. Isso foi humilhante. Ela é mandona brava. Ela é
a ovelha negra da família. Eu falei o que a mulher tinha dito. E ela negou e
fazia eu engolir, me entupir. Eu preciso reconhecer.Eu aprendi muita coisa com
ela. Ela não fala com minha mãe nem com meu irmão e nem com a Nena. Hoje
comigo ela fala.
C: As vezes ela estava com preguiça.
151
M: Ela contou para a D. Antônia , psicóloga e aproveitou e exagerou e ela deu
razão para ela . O que é normal, ele é adolescente. Ela tem que proteger, é
claro.
T: Me pareceu que na história da sua família, as mulheres trabalham muito,
fazem muito bem feito e a Cláudia está também neste caminho. E os homens?
Eles tem mais regalias?
M: Não na minha família eles não tiveram. No caso, o André tem sim.
C: A minha mãe pede para ele comprar a mistura e ele não compra.
M: Eu não queria falar com as crianças sobre este problema. Hoje eu já falo.
Precisamos amenizar isto. Olhar para o lado dele. A mãe dele criou ele assim,
eu vejo os dois lados.
T: Então a mãe pode continuar cuidando.
C: A mãe está muito melhor de vida sem ele. Ele usava o telefone demais ,
fazia gastos que ela não podia pagar. A filha dela, pagava a conta e cada vez a
conta era maior. Ele nunca pagava nada . Ele jogava video game e a conta de
luz era alta.
T: Ele estava sendo um filho , o tempo inteiro.
M: Eu sempre quis amenizar a situação.
T: Por que ?
M: No início , eu não queria passar os problemas para os filhos , mas a
Cláudia, não é boba e percebe. Eu sempre usava isto, o André foi criado de
um jeito , você de outro , não é igual. Nunca teve filhos. A gente tem que dar
tempo para a pessoa se adaptar. A Cláudia está arrumando as coisas, o João
Pedro lavando a louça e ele está fazendo , o quê ?
C: Nada.
M: Eu comecei a falar com a Cláudia que eu achava errado, ele não fazer
nada. Falei para eles não arrumarem as coisas dele.
T: Ele deveria dar exemplo , fazer , ensinar .....
M: Lógico.
C: Até eu paguei conta , quando trabalhava. Eu sempre dei todo dinheiro para
minha mãe. Eu trabalhava no Buffet com minha mãe trabalhava até a meia
noite e ganhava 15 reais e dava tudo para ela. E ele diz que trabalha , ganha
300 reais em um dia e não dá nada , nem sei o que ele faz.
152
M: Isso acontecia desde o início, eu era compreensiva. Depois fiquei chata e
agora não tem mais compreensão. Eu bato de frente , mas nada muda, ele
bate o pé. Ele sempre fala que está por ai. Nunca fala aonde. Eu acho que ele
não consegue e tem vergonha. Ele diz que vai procurar trabalho e mostrar o
que ele faz , mas ele sai e não leva os trabalhos e ai eu digo: como vão gostar
se você não levou seu material? Ele diz que já conhecem o trabalho.
Mas a gente sabe com a convivência que não é isso. Ele reclama e diz que eu
quero relatório. Eu sempre falo aonde vou e ele não.
Mas eu não aceito e nada muda.
T: Será que as situações vividas quando você era criança; nesta época você
não tinha instrumentos para mudar uma situação e para dizer eu quero ou não
quero, Está acontecendo hoje, como se você não tivesse possibilidades de
dizer o que quer e o que não quer ?
M: Eu dizia também para meu pai de forma educada , que não queria . Ele me
chamava de marruda e birrenta. Eu não tinha como sair. Ele não me respeita.
Me deixou passar fome. Mas nada mudava.
T: Você pensa que hoje seu poder é outro para mudar?
M: Para o André , eu falo discuto. O André não se altera , ele sai e me irrita.
T: Isto é o que ?
M: Ele não me respeita. Isso me incomoda muito. Ele sai e eu espero ele
chegar e continuo a falar. Eu digo que insisto por que não resolvemos o
assunto. A maioria fica por isso mesmo. Ele fala que me ama e vai mudar ,
mas não muda. Ele diz que é o marido, e que eu me imponho muito.
T: É um jeitinho que te enrolar ?
C: Ele fica no lugar de irmão. E minha mãe fica no lugar de mãe. Aí, ele fica
bravo. Ele sai.
M: Bem lembrado, Cláudia. Ele não se coloca como meu filho.
C: Ele não se põe como marido.
M: Exatamente.
C: Mas ele quer mandar e aí ? não dá.... como ele vai mandar.
T: Cláudia , você tem uma clareza nesta situação. Parece que se sua mãe
aceita este jeito dele mais crônica fica esta situação não é ?
M: Ontem, quando estava minha mãe em casa ..... bom não devia falar na
frente da Cláudia , mas a minha mãe viu o meu jeito com o André. E falou que
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duvidava que ele ia trabalhar. Eu falei para ela que estava de saco cheio. E a
Cláudia estava passando e falou: Tomara a Deus.
C: Eu acho que seria bom. Minha mãe precisava arrumar alguém que ajude
ela. E não atrapalhe. Cada vez está pior em casa. Ela se complica , fica
confusa e fica doente, com dores e briga comigo.
T: Eu acho que você pensa muito bem, seus idéias são boas e ajudam muito
sua mãe e a você.
C: Eu falo que podemos ficar os três e que ela pode arrumar alguém melhor e
ser feliz.
T: Talvez sua mãe possa não ser mais explorada por ninguém. É um jeito bom
de proteger a família e ensinar coisas importantes. Eu estou pensando no
sonho seu, Cláudia, e neste sonho tem uma ratazana que come o filhote. Isso
me faz pensar em filhos indefesos que precisam de proteção.
M: Neste livro sobre mentiras , o pai não quer que os filhos mentem , mas ele
mente e daí como ele vai ensinar isso? As poucas vezes que menti , não
prejudicou ninguém, foi necessário. Mentira pesada eu nunca falei. O pai da
Cláudia , quando eu estava grávida , não tinha nenhuma fralda, ele não estava
nem aí. O Outro marido ajudou mais, mas era conformista. Se precisava
comprar um aspirador , ele achava que não precisava.
T: Estamos na hora , até a próxima semana.
154
FAMÍLIA BORGES
1. SESSÃO DE ATENDIMENTO FAMILIAR – REALIZADA DIA 06/ 08/2004
NO CEAF.
A família de Rosa, Walter, e Fernando foram atendidos por Suzanna Levy (
T1) e por Lena Bartman ( T2).
No início do atendimento foi conversado sobre a pesquisa e só iniciou a
gravação depois da autorização estar consentida e assinada por Rosa , mãe
de Walter e Fernando.
T1: Nos conte um pouco da história de vocês e o que está acontecendo.
R: Eu estou procurando por causa do Fernando, ele me dá muito problema.
Desde que agente morava no interior ele dá trabalho e o conselho tutelar
indicou uma psicóloga para ele.
T1: Vocês moraram no interior? quando ?
R: Nós estávamos em Caçapava. Nós fomos por que eu prestei um concurso
público e fui indicada para trabalhar em uma escola , como auxiliar de serviço.
A vaga saiu para o interior. Alugamos uma casa lá. Ai ele apresentou
problemas lá.
T1: Ele apresentou problemas logo que chegou lá ?
R: Não, depois de um tempo.
T1: Vocês conheciam a cidade ? Tinham conhecidos lá ?
R: Não conhecia ninguém e foi a primeira vez que fomos para lá.
T1: Corajosa , você deixou a família e foi para um lugar diferente.
155
T2: É corajosa mesmo.
T1: Qual a distância daqui lá ?
R: Uma hora e meia. Daí eu comecei a trabalhar lá e apareceram os
problemas. Tanto dele como meus . Só que eu não percebia.
T1: O que aconteceu com você ?
R: Em mim.... eu não conseguia dormir e chorava muito.
T1: Me conta um pouco deste choro.
R: Ah eu tive muitos problemas com o trabalho. A diretora da escola era muito
difícil de lidar. Ai, eu fui levar ele na psicóloga e ela disse que eu precisava de
ajuda e tentou me ajudar. Disse também que o Fernando dobrava muito todos
nós. Me deu um carta de afastamento do serviço. Mas não conseguiu me
ajudar, naquela época.
T1: Por que ela não conseguiu ajudar?
R: Porque eu precisava voltar e mudar de trabalho mas, não ia deixar uma
vaga de concurso público. Depois de dois anos você tem direito a transferência
, é um concurso estadual. E tudo depende da chefia. E a chefe era justo a
diretora da escola e ela não dava a transferência. Ela queria que eu pedisse
as contas. Eu já tinha sofrido dois anos no interior e eu não queria perder a
minha vaga. Não era fácil, eu tinha muitos gastos de aluguel e tudo a psicóloga
foi conversar com ela e nada .
T2: Eu estou olhando o desenho do Fernando , este homem forte, muito bem
desenhado.
R: A diretora não me transferiu e eu estava desesperada.
T1: Eles estavam estudando?
R: Os dois estavam.
T2: Em outra escola?
R: Em outra. Ai eu não conseguia , eu queria me matar. Pedir a conta. A
psicóloga proibiu eu entrar na escola. Eu falava que eu ia me matar na escola
na frente dela , a diretora. Ai eu voltei para S. Paulo. Meu irmão foi me buscar
porque eu estava muito mal. Eu tomava calmante. E ele com problemas
psicológicos também......
T1: O que ele tinha ?
R: Ele ( Fernando ) tem problemas de relacionamento na escola. Ele briga
muito , ele não ia para escola. O horário dele era de manhã. Ele sentia sono e
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esperava eu sair para trabalhar e voltava e dormia. Ele tinha muitas faltas na
escola e brigava muito e ficou com a mesma professora no primeiro e segundo
ano. E a professora não gostava dele. Ficou cansada... ele era difícil.... A
professora falou que ele teve sorte pelo fato dos pais dos alunos serem sangue
de barata e não reclamaram das brigas dele. Poderiam até ter matado ele.
T1: Foi então muito sério?
R: Eu não sei....mas acho que a professora também tinha problema
psicológico. Quando ela conversava comigo ela falava de um jeito e quando
estávamos com a diretora ela falava de outro jeito e falava outras coisas. A
psicóloga também foi na escola conversar. Aí voltamos para S. Paulo. Quando
cheguei aqui minha sobrinha tinha arrumado um papel para levar para a
diretora e a minha casa estava pintada e arrumada . Eu morava no Capão
Redondo. Agora moro aqui perto , por causa da escola que ficava longe. Eu já
tinha transferido eles na escola para S. Paulo. A psicóloga disse que eu não
precisava me matar.
T1: O que estava acontecendo no trabalho, que era tão difícil? Que você
chegou a pensar em tirar sua vida ?
R: Eu não podia ficar ali e não podia pedir as contas.
T1: Já houveram outros momentos da sua vida que você pensou em se matar?
R: Eu cheguei a cometer o suicídio. Fiquei internada uma semana.
T1: Quando foi ?
R: Foi nesta situação mesmo , quando minha irmã ligou e disse que eu não
tinha saída. Ela também estava ajudando mas soube que não tinha jeito de eu
trabalhar em S. Paulo, teria que ficar no interior. Ai eu cometi o suicídio. Eu
tomei um monte de comprimidos e eu fiquei internada muitos dias não me
lembro.
T1: Como ficaram os filhos ?
R: Eles ficaram em casa. Eles foram para casa da minha filha.
T1: Então você tem uma filha ?
R: Ela tem 20 anos. ( choro) Minha sobrinha conseguiu minha transferência e
eu fui trabalhar nesta escola que estou até hoje. Gente muito bacana.
T1: O que você está sentindo Walter? Com o que sua mãe está contando ?
W: Tristeza. Ela esta melhorando um pouco.
T1: Como você entendeu o que aconteceu ? Quais suas idéias ?
157
W: Tento não pensar.
T2: O que você imagina?
W: Ela estava sendo mal tratada no trabalho, era um trabalho muito pesado e
depois teve os problemas com meu irmão.
T2: E antes dos problemas lá neste trabalho haviam outros ?
W: Não sei.
T2: E você Fernando , o que está pensando ?
F: Ela precisa de um emprego melhor . Ser bem tratada.
T1: Você está desenhando homens fortes é isso?
F: São lutadores , são fortes. Todo mundo tem medo deles.
T1: Você tem talento para desenhar. Olhe Lena ,os desenhos dele mostram os
movimentos! Você gosta de futebol ?
F: Gosto muito.
T2: Qual time você torce?
F: Eu sou Corintiano. E vocês ?
T2: Eu sou Corintiana .
T1: Eu também sou e vocês.
R: Todos somos.
W: O Corinthians está melhorando , agora.
T2: Melhor você, Fernando sentar aqui na mesa para desenhar , fica mais
confortável e tem uma base melhor para desenhar.
T1: Rosa , me conta um pouco sobre a família, o pai dos meninos , sua filha,
seus irmãos......
R: Eu tinha mãe , mas ela morreu logo depois da minha vinda para cá. Quando
eu voltei para S.Paulo ela não estava boa do coração e morreu não faz nem
um ano.
T1: Que idade ela tinha ?
R: Quando deu o primeiro enfarto , ela tinha 76 anos. Eu estava no interior. Eu
peguei minhas férias e vim ficar com ela. Ela melhorou e foi para casa. Quando
ela ficou pior mesmo , eu já estava aqui em S. Paulo. Ela veio a falecer logo
que eu voltei. Eu voltei em novembro e ela morreu em março. Eu tenho minhas
irmãs ..... nós somos em sete irmãs e sete irmãos. São 14 na família. Éramos
17 mas faleceram 3 e mais 3 ao nascer. Nasceram 20.
T2: Vocês moravam aqui em S. Paulo ?
158
R: Nós moramos aqui há 32 anos. Antes a família era de Governador
Valadares.
T1: E seu pai ?
R: Meu pai faleceu há 10 anos.
T1: Sua mãe morreu antes ou depois da sua tentativa de suicídio?
R: Ela morreu depois.
T1: Como ela reagiu?
R: Ela ficou triste mas ela era forte. O problema dela era o coração, ele era
fraco. Ela falava muita coisa para gente, conversava. Ela passou coisas muito
difíceis era forte. Eu não sou tão forte como ela. As dificuldades da minha mãe
foram maiores que as minhas. Eu queria ser forte como ela. Eu tenho meus
irmãos. Fora de S.Paulo eu tenho 4 irmãos. Eu vejo muito as minhas irmãs. Eu
procuro ver eles também , mas agora eu estou trabalhando tanto que sobra
pouco tempo.
T2: E os meninos convivem com todos ?
R: Convivem mais com as minhas irmãs. Elas moram perto. A gente se vê
muito. Agora eu estou morando um pouco longe delas ( irmãs), mais estou
próxima do trabalho e da escola deles( filhos).
T1: Com uma rede familiar desta , deve ter sido difícil ficar longe, no interior.....
T2: Eles devem ter muitos primos , vocês aproveitam isto?
F: Agente gosta deles , mas não de todos.
T2: E você Walter também ou é diferente/
W: eu gosto muito dos primos.
T1: E o pai deles ?
R: A Lúcia, minha filha é filha do meu primeiro casamento. Casar mesmo eu
nunca casei. Eu morei com o pai dela dois anos. Não deu certo e agente se
separou ai eu fiquei sozinha uns anos e tive ele ( Walter). Só que o pai dele
ele não tem contato. Ele não conhece o pai. Porque na época que eu fiquei
grávida dele foi uma noite só e eu nunca mais vi ele. E nem procurei porque ele
era casado. Eu assumi os 3 desde que nasceram, eu assumi. E depois de um
ano eu casei com o pai do Fernando. Hoje o pai dele está preso
T1: Por que ?
R: Porque ele matou um rapaz há 14 anos atrás e agora ele foi condenado e
estava fugido. Ele precisou de um documento e quando foi tirar foi preso. Já
159
tem dois anos.Quando ele foi preso eu estava no interior. Me ligaram para
avisar.
T2:Vocês não moravam juntos ?
R:Não nesta época. Eu sempre fugia dele.O pai dele era muito agressivo ,
violento. É muito difícil viver com ele. Ele judiava das crianças e de mim.
T1: E no início, como era?
R: Ah... ele era bonzinho. No começo não tinha problemas. Depois eu não vivia
muito com ele , eu fugia muito. Ele me perseguia muito. Ele queria muito viver
comigo. Ele era trabalhador. Depois ele se envolveu com drogas , bom...
daí...Ele ficou muito agressivo. Eu apanhava muito dele . Este meu olho ficou
assim... Foi por causa dele. Eu não enxergo com ele. Ele dava tiro e ameaçava
dar tiro na gente.
T1: Durante este tempo que vocês estavam juntos você não teve medo de
morrer, ou que ele te matasse?
R: Não. Eu pensei em me matar. Na época tinha revolver em casa....Eu ia
pegar o revólver. Cheguei a pegar e apontava para mim e para ele e não sabia
se matava ele ou se me matava. Ele estava dormindo e acordou na hora que
eu estava com o revolver e a partir desse dia nunca mais ele trouxe arma para
casa.
T1: Ele ficou com medo?
R: Eu não sei o que passava na cabeça dele , mas deve ter ficado com medo
de alguém morrer. Eu me escondia dele fugia e ele ia atrás de mim e quando
ele me achava, eu voltava de medo dele fazer alguma coisa com as crianças.
Ele ameaçava. Também era a minha casa e eu queria ficar em casa.
T1: E quando ele foi preso , vocês estavam juntos?
R: Não nós estávamos em Caçapava. Ele estava com outra mulher na época.
Ele estava com outra , mas não deixou claro que nós estávamos separados.
Eu não podia ter outro para ele. Não que eu não arrumava alguém , mas eu
tinha medo que ele aparece e matasse o cara. Eu nunca deixei que ele
soubesse. Era escondido. Quando eu fui morar com ele o Walter tinha 8
meses.
T1: Como ele foi para você, Walter ? Ele deu algum suporte?
W: Não. Ele foi muito violento.
T1: Com você também?
160
R: Ele quase matou o Walter. Eram 2 horas da manhã ele chegou e atacou
meu filho e machucou muito. Eu tirei ele do meu filho. Ele tinha uns 10 anos.
T1: Nossa como foi isso , você lembra bem Walter?
W: Se lembro. Eu tinha quebrado a tampa do vídeo a tarde ai ele me acordou
bravo e eu disse que foi sem querer e ele começou a bater.
T2: Mas bateu com que ?
W: Ele deu soco. Eu fui para o hospital.
T2: Nesta é poça o Fernando tinha mais ou menos 2 anos ? É Isto?
R: Ele tinha uns 2 anos. Quando o Walter tinha dois anos também apanhou
muito dele.
T2: E o Fernando também apanhou?
R: Uma vez ele pegou o Fernando e jogou ele contra o teto na lavanderia.
Machucou muito. Se ele quisesse matar agente tinha matado. Ele não queria.
T1: E seus irmãos homens ?
R: Uma vez ele bateu no meu irmão e bateu na mãe . Na mãe, ele empurrou o
portão em cima dela, e cortou fundo a mão dela. Nesse dia ele foi na casa dela
e quebrou coisas na casa . Quando eu cheguei do trabalho fui levá-la para o
pronto socorro. Minha mãe chamou a Polícia. Ele fugiu. Mas era uma situação
difícil por que a gente não conseguia se livrar dele.
T2: O fato dele ter sido preso foi de alguma maneira um alívio?
R: Foi sim , além de tudo tinha os gastos, ele comprava coisas e não pagava.
Sobrava para mim. Ele ia muito no bar e não pagava. Mas para o Fernando foi
um choque . Ele sofreu muito. Era pai dele né!
T1: Walter, o que você pensa ou pensava sobre esta vivência da família e do
pai do Fernando, do sofrimento vivido por vocês ?
T2: Deve dar uns sentimentos muito diferentes.....
W: É muito difícil pensar. É confuso. Agora está melhor.
T2: E você Fernando?
( pensa e não responde)
T1: Este desenho o que é ? me conta sobre ele.
T1: Quem são, Fernando ? ( referência ao desenho)
F: São meus amigos. Eles se encontraram e estão apertando a mão um do
outro.
T1: É um comprimento?
161
F: É.
T1: Estes homens tem os braços fortes. Quem são eles?
F: São os caras da TV.
T1: Eu queria perguntar para o Walter. Estes sentimentos de confusão como
são ?
W: Um dia o cara está legal outro dia aparece e está louco.
T2: Que sentimento é esse? Raiva , medo ?
W: Eu não tenho raiva não.
R: Pelo que eu percebo o que ele fala , ele tem carinho pelo Das Cruzes (
apelido do padrasto) ele gosta dele. A única coisa que ele falava era raiva no
momento da briga . Isto minha filha Maria também falava. O Walter falava que
se ele aparecesse e fizesse alguma para mim , ele matava ele. O que é uma
reação normal. Mas eu percebo que ele tem carinho por ele. Não tem raiva
mortal dele. Eu hoje, não tenho raiva mortal , mas já tive. Na hora que ele
chegava daquele jeito , eu tinha muita raiva. Mas depois eu não consigo ter
aquele ódio. Hoje eu me sinto uma pessoa forte. Eu sei que ele vai sair da
prisão e eu estou preparada para conversar com ele, e eu não vou fazer mais
tudo aquilo que eu fiz, contra minha vontade por medo dele. Hoje eu não tenho
medo dele. Naquela época eu sentia muito medo dele. Eu não sentia ódio, eu
sentia medo dele fazer alguma coisa para mim, ou para minha família ou
alguém que estivesse perto de mim na rua ou do lado. Naquela época eu fazia
tudo , eu voltava para casa eu ficava com ele. Eu acho que quando ele voltar
ele vai ser uma pessoa melhor.
T1: Quando vocês estavam separados era melhor ou pior?
R: Quando eu fui para o interior ele estava mais calmo. Agente estava
separados. E mesmo antes de ir para Caçapava eu estava na casa da minha
mãe.
T1: Quando vocês se separavam ele ficava mais organizado?
R: É ele ficava melhor e mais calmo e esperando eu voltar. Ele ficava calmo
para eu voltar. Ai eu voltava e qualquer coisa era motivo para briga. Ele ficava
na rua dias sem avisar ......
T1: E você voltava para casa e esquecia o que acontecia ?
R: Não esquecia, mas achava que podia ser diferente. Eu também não gostava
de ficar lembrando. Ele ainda escreve cartas para nós.
162
Mas agora eu estou com um companheiro. Não é um companheiro futuro .
Agente era amigos e ele também estava com problemas difíceis e agente
resolveu morar junto aqui até vencer o contrato da casa.
T1: Mas não está bom estar com ele ?
R: Ah porque eu acho que eu sou uma pessoa difícil. Como vou explicar.... eu
sou uma pessoa que não gosto, bom a parte financeira é difícil , quando eu sei
que não tem eu cubro mas no caso ele ganha e não compra nada para casa. É
complicado. Eu fico chateada. Um homem assim não dá para morar comigo.
Sem perspectiva , se ele não está colaborando agora que recebe , não vai
colaborar nunca. Chegou ao ponto dele não comprar nem o pão e nem o leite
em casa para o café. Eu acho um defeito muito grande no homem.
Quando eu morava com o Carlos, eu sustentava ele , ele era uma pessoa
totalmente..... como vou explicar.....agente construiu uma casa juntos e tivemos
um filho e ele estava com uma situação muito difícil . Hoje eu vejo.
Eu acho que ele estava doente. E hoje eu vou morar com uma pessoa que não
dá o pão e leite. A gente passa necessidade. Eu saio para trabalhar a semana
toda e de manhã na segunda eu faço um bico no salão de cabeleireiro. Faço
faxina. Neste dia só tinha o dinheiro da condução e pedi para ele comprar pão
e nada. Neste dia ele tinha dinheiro. Os meninos foram para escola sem comer
nada. Eu perguntei para ele depois ele não respondeu e eu achei que ele é
ruim. É uma pessoa ruim. É importante alguém que divida as coisas. Isto
aconteceu várias vezes. Ele não compra a mistura e come muito, ele a filha
que mora com nós. Eu vejo estas coisas e não gosto não. Quando agente
alugou a casa juntos , nós não tínhamos os planos de ficar até vencer o aluguel
mas as coisas pioraram então. Nosso plano era ficar juntos .
T1: Você gostava dele?
R: Eu gostava. Hoje não gosto mais. Eu fui percebendo que quando a gente
foi morar nesta casa só depois de vinte dias ele trouxe as roupas dele. E ai foi
passando os dias e eu perguntei Luiz onde estava o documento dele, que eu
vou precisava. Ele respondeu que estava na casa da mãe. Todas as coisas
dele principais, documentos; as roupas melhores ele guarda na casa da mãe
dele. Será que ele tem medo de guardar os documentos na nossa casa? Eu fui
perdendo a confiança .
T1: Vocês conversaram sobre isto?
163
R: Conversei sobre isto várias vezes. Agora a gente está como amigos não
temos nada juntos. Ele mentiu várias vezes.
T1: Como era o casamento dos seus pais?
R: IH.... era muita briga. Minha mãe foi tudo na minha casa. Minha mãe ficou
com meu pai cinqüenta e poucos anos. Ele era alcoólatra.
T2: Ele era violento?
R: Meu pai era, ele bateu na minha mãe até quando meus irmãos cresceram e
não deixaram mais ele bater nela. Mas ele ajudava minha mãe. Ele sempre
trabalhou e dava o dinheiro para ela.
T1: Você também tinha esperança que o Carlos parasse de te bater quando
seus filhos tivessem um tamanho que o impedisse de te bater ?
R: É eu pensava porque agente comprou uma casa , mas eu não via melhora e
fiquei com medo que ele matasse meu filho. Diferente da história do meu pai e
minha mãe. Meu pai batia nela mas não fazia tanta ruindade como o pai dele (
refere-se ao Fernando). Ele dava tiro. Estava sempre com armas.
T1: O que você passou com a diretora da escola foi fichinha perto do que você
passou com ele, não é ?
R: Quando eu fui para escola eu me senti acuada, presa à aquela escola. Eu
não podia pedir as contas.
T1: Mas com o Carlos, você não se sentia presa ?
R: Não porque eu conseguia fugir. Eu ia para casa da minha mãe eu ia para
casa de uma irmã, me escondia na casa de uma amiga. Tinha como escapar.
Eu fugi várias vezes até a cabeça dele esfriar e ele refletir. Da diretora não
tinha como fugir. Eu tinha que trabalhar. Não tinha ninguém para me ajudar
financeiramente. Sem trabalho não dá perante a minha família. Eu tenho que
trabalhar. Eu me vejo assim . Se eu tiver condições de ajudar minha família,
que é minha responsabilidade , os meus filhos. Eu não agüento ver meus filhos
passarem fome e não ter o que dar para eles ou um filho doente ; graças a
Deus eu não tenho, sem remédio. Nunca faltou remédio para eles. Eu prefiro
morrer se não puder dar as coisas para eles. Essas coisas importantes.
T1: Você disse que prefere morrer se ..... o que mesmo?
R: Eu prefiro morrer se eu vê que falta alguma coisa para filho meu e não
puder dar.
164
T1: Agora eu entendo porque você não tentou sair desse emprego. De repente
você poderia ir procurando outro emprego para mudar. Me parece que o medo
de não poder dar o que seus filhos precisavam foi muito grande.
R: Eu sempre trabalhei desde 9 anos. Eu era criança e ajudava a família.
Nunca me faltou emprego. Na escola eu faço faxina e em casa vendo salgados
e bolo. É um emprego do estado e isto é difícil de arrumar . Hoje eu estou
fazendo 37 anos , eu estou com uma idade.....
T1eT2: Hoje é seu aniversário ?
R: É .
T1 e T2: Puxa , parabéns.
R: Obrigada. Eu não vou conseguir um emprego que dê estabilidade como
este. Eu lutei muito para conseguir este. Foi com concurso. E eu tentei várias
vezes até conseguir. A diretora ia ser minha chefe por 4 anos na escola, mas a
partir de 2 anos, eu podia ser transferida para qualquer lugar, mas eu dependia
dela para mudar. Ela sabia das minhas dificuldades e ela gritava comigo, dava
serviço muito pesado. Ela abusava muito. Não tinha boa vontade, eu percebia
isto. Outras funcionárias me falavam que o que ela fazia comigo não tinha
condições. Elas diziam para eu procurar a justiça. A diretora fazia eu raspar os
tacos da escola na mão. Tinha anos de cera e eu raspei corredores da escola.
Fiquei acabada. Aquela mulher me torturou, além da transferência que ela dizia
que não daria. Eu sofri muito e me senti presa à ela ( choro).
T1: Você não podia escapar?
R: Não podia.
T1: Como você escapou? porque hoje você está aqui.
R: Foi com a morte eu tomei tranqüilizantes e quase morri. Com a morte eu
ganhava dela.
T1: Com a sua morte ela se sentiria culpada e assim você vencia?
R: Não, eu ia perder o emprego mas os meninos recebiam dinheiro até ficarem
maiores.
T2: Assim você não estava pedindo as contas e estava deixando seus filhos
amparados ? É isso?
T1: Eles iam ficar sem você , não é desamparo?
R: Eles não iam querer uma mãe do lado sem condições, e lá não tinha nada
para fazer , só trabalho e era difícil outro emprego. Só tinha aquele trabalho.
165
T1: Acho que dá para perceber quando você fica sem saída e qual saída você
procura. Me parece que conseguiu o que queria não morreu e foi
transferida.....e seus filhos ? quando você joga com sua vida como é isso ?
R: Eu pensei neste lado mas.....eu me vejo ......é difícil.
T1: Se você estivesse no lugar de seus filhos o que você sentiria ? ficar sem
mãe tão cedo?
R: A minha filha me cobrou muito isso. Agente conversou muito disso.
T1: O que vocês conversaram ?
R: O que eu falei aqui.
T1: É uma marca muito dolorida para uma família , o suicídio. Que bom que
você não morreu.
R: Agora vendo , eu acho que eu estava muito doente esta época. Eu estava
desequilibrada, até com a medicação que tomava. Eu tremia muito. Minha
cabeça ficou mal. Hoje, as vezes eu fico mal , sem dormir como hoje , mas não
daquele jeito. Eu estou tomando remédio.
T2: O que você está tomando?
R: Eu tomo Equilid, agora. É um antidepressivo. Eu já tomei outros que me
fizeram mal. O Fernando toma Tegretol. Só que esses dias ele não está
tomando. Ele está mais calmo , mas teve uma crise um dia .
T2: Quem retirou o remédio?
R: Nós mesmos. Eu falo: vai tomar remédio. Ele não vai e não toma.
T1: Quando ele tem crise ele fica como?
R: A crise dele é muito nervoso. Ele briga muito com o irmão, puxa a faca. Ele
acha que só ele tem razão. Ele não quer ir para escola ele faz o que quer.
T1: Ele está na idade de querer fazer tudo isto, como você mostra sua
autoridade para ele ? Nas horas de crise também. Na hora que pega a faca ,
por exemplo.
R: Ele chega a me levantar do chão.
T1: Tem algum vizinho ou amigo com os braços fortes como estes que ele
desenhou que possa segurá-lo no momento de crise? Para conte-lo. Muitos
meninos na idade dele precisam ser contidos fisicamente para aprender a se
conter.
R: Não preciso achar alguém. Hoje ele não quis ir para escola.
T2: Como é isso, ele não quer ir e não vai ?
166
R: Eu vou explicar...... eu não estou conseguindo ter autoridade sobre
ele......na escola ele arruma tanta confusão.....ele afastou da escola e ficou 3
meses sem ir. Ele foi afastado. A escola exigiu que arrumasse psicóloga e
psiquiatra, mas já estava. Agora a diretora mudou ele de sala . Ele está em
uma classe especial e mudou o horário dele para manhã. Daí eu falo toma
banho, vai para escola e é uma dificuldade, falo vai dormir mais cedo para
acordar e ele não vai.
T2: Parece que o Fernando está muito poderoso nesta família , muito forte.
T1: Também Lena, quando a gente se sente forte assim nesta idade , a gente
morre de medo. A gente precisa ter alguém mais forte para ajudar a controlar o
que sente. Ele dorme bem?
R: Ele dorme muito , mas tem muito pesadelo. O irmão mais velho chama ele ,
e brigam. Eu brigo muito por causa de pipa , linha.... e o Walter, o mais velho
nem tanto, mas, eu também brigo muito com ele. Mas ele me ajuda. O Walter
tenta ajudar o Fernando. Ele chama na rua , ele se preocupa. Eu digo que
precisa obedecer o irmão mais velho. Mas o Walter está preocupado com as
coisas dele.
T1: Você sente que seu irmão se preocupa com você , Fernando ?
F: É
T2: É difícil quando começa a faltar muito na escola porque perde muito,
depois dá mais vontade de faltar, se sente de fora sem saber. Não
acompanha... é uma pena, ele parece tão inteligente......tão expressivo....
possivelmente seria só ir à escola, que ele aprenderia fácil.
R: Falta força de vontade . Ele aprende fácil.
T1: Estamos na hora mas penso que precisamos falar mais sobre esses
homens da família. Me chamou a atenção a presença de homens nessa família
que assustam as mulheres e crianças, que batem.... que bebem .... que ficam
presos....Será que nesta família podem ter homens diferentes? Podemos
conversar semana que vem.
167
FAMÍLIA BORGES
2. SESSÃO DE ATENDIMENTO FAMILIAR – REALIZADA DIA 13/ 08/2004
NO CEAF.
T1: Olá como vão vocês?
T2:Como passaram esta semana?
F: Bem ... mas acho que não muito bem? Eu fiquei muito nervosa esta
semana..... nós todos brigamos.
T1: O que aconteceu ?
R: Eu fiquei nervosa , porque não sabia como pagar , se podia pagar o aluguel
da casa e aí teria que voltar para casa de Santo Amaro. Ele ( Fernando ) não
obedecia , não saía da rua.
T1: E o Walter. também saí muito ?
W: Eu sou caseiro, gosto de ficar em casa.
T1: Lena, na semana passada eles falaram sobre ficar em casa e sair, e Rosa
disse que queria que os filhos ficassem em casa por segurança. Eu fiquei
pensando como uma mãe pensa. Sair para a rua pode ser mais perigoso, mas
o desejo de estar com os amigos , jogar bola é saudável, ficar em casa
envolve menos riscos, deixa a mãe mais tranqüila , mas e os amigos? .... se
que também preocupa a mãe , eles ficarem muito em casa?
R: Não , porque ele sai muito no fim de semana.
W: Eu tenho muitos amigos.
T2: Que bom .....
T1: O que você gosta de fazer em casa?
W: Eu fico vendo televisão, arrumo a casa também para ajudar minha mãe.
T2: O que você assiste ?
W: O que tiver passando. Tanto faz.
T1: E você Fernando, gosta de ficar em casa um pouco ?
F: Eu gosto de ficar na rua com meus amigos.
R: Ele adora a rua, ficar com os amigos, eu chamo ele para casa.
T1: Ele também ajuda na casa como o irmão ?
W: Não ele não faz nada, não lava a louça , arruma a cama quando quer.
168
R: Eles brigaram neste fim de semana. E o Walter ameaçou de ir embora e eu
fiquei nervosa.
W: Eu cheguei em casa e estava uma bagunça a cozinha , cheia de copos
sujos. Ele ( Fernando) e os amigos usaram e eu tinha deixado tudo limpo.
T1: O que acontece ? ele não lava, por que ?
R: Ele não obedece , eu falo, falo e nada......
T1: E você Walter, o que você pensa?
W: Ele é mimado , só faz o que quer ? ( expressão de raiva)
T1: Você fica com raiva disso ?
W: Fico muito bravo, com a minha mãe também.
T1: O que significa voltar para casa de Santo Amaro?
R: Ah! Fica longe do meu trabalho, eu demora mais de duas horas para ir
trabalhar e fico pouco com os meninos. A escola do Fernando é perto. Tem a
terapia , aqui perto, apesar de que,mesmo em Santo Amaro dá pra vir. Santo
Amaro é muito longe. Mais eu fiquei nervosa e briguei com o Fernando. Ah !
com os dois. Eles não me obedecem...eu não gosto de brigar. Aí, além de
achar que ia para Santo Amaro, mas agora já resolvi . Nós vamos ficar aqui
perto. É que este fim de semana foi difícil, morreu um sobrinho que não mora
aqui, de tiro, bala perdida . Pode imaginar minha irmã como está. Também
morreu um amigo do Walter.
T2: o que aconteceu com seu amigo Walter?
W: Ele morreu de acidente de moto.
R: Ele bebeu muito e bateu.Estava também a namorada dele.
T1: Ela,como está?
R: Machucou bem , perfurou a cabeça , mas está viva.
T1: E como você está Walter.?
W: Eu estou triste.
T2: E você Walter, as vezes também bebe muito ?
R: Ele não é de beber , só uma cervejinha não é filho? Mas uma vez , faz uns
meses, aí, eu levei um susto ele chegou carregado de bebida em casa.
T2: Conta esta história Walter ?
W: Eu bebi muito neste dia, eu estava com meus amigos.
T2: Mas os bares vendem bebida para você , com sua idade?
W.: Não, mas vendem para os meus amigos.
169
T2: O que você bebeu?
W: Eu misturei, cerveja, batida....
R: Este vulcão azul , uma batida.
W: Eu fiquei muito mal , mal mesmo.
R: Eu quase tive uma coisa , quando vi ele chegar , ele estava no chão , eu
achei que estava baleado. Quase morri. Mas ele respondeu e eu vi que era
bebedeira. Fiquei mais tranqüila. Ele ficou muito ruim. No dia seguinte também.
W: Nossa eu fiquei muito mal , no dia seguinte não passava a dor de cabeça.
T2: Como foi melhorando ?
R: Eu comprei remédios , Eparema e dei aquele líquido caro , tipo soro para
ele tomar, depois eu fiz uma sopa de músculo, por que ele estava muito fraco.
Custou melhorar.
T2: Você cuidou bem dele!
T Uma mãe cuidadosa....
T1: E aí, Walter depois desta experiência o que você pensou ?
W: Eu não quero mais ficar assim. Não bebi mais assim.
R: Ele ainda bebe umas cervejas, não é Walter?
T2: E você, também bebe?
R: Algumas vezes ( risadas ) umas cervejinhas. Neste fim de semana eu bebi
mais para relaxar. Depois disso tudo.....precisei ajudar minha irmã...... Foi
muito difícil. Eu não tinha muito contato com este sobrinho. O pior é que é difícil
ajudar não tenho muito o que fazer. E ainda o problema da casa....
T2: E na sua família Rosa havia problema com bebida?
R: IH ! e como ....... meu pai era alcoólatra bebia muito, meus dois irmãos
também bebiam muito e bebem. Tenho uma irmã que bebe também.
T1: Conta um pouco mais ......
R: Ah meu pai batia na minha mãe quando bebia, batia muito. Eu sou mais
nova não me lembro muito. Ele só me bateu uma vez , mas pouco. Mas na
minha mãe ele batia bastante.
T2: E seus irmãos ?
R: Eles também quando bebem , um deles bate na mulher o outro não, ele fica
mais calmo. Meu pai, as vezes, chegava carregado por outro pessoa . O meu
irmão também já chegou assim.
170
T2: E o que você pensa destes homens da família e a bebida , por que você
acha que eles bebem?
R: Não sei, eu bebo para relaxar, por que as vezes fico tão nervosa que não
agüento.....Quero sumir. ( Choro)
T2: O que vocês pensam sobre a bebida e este nervoso da mãe ?
W: É difícil por que ela fala um monte para gente, quando ela esta nervosa.
R: Mas eu fico nervosa eles brigam não me obedecem , o Fernando até faca
avança na gente e o Walter também fica nervoso. O Fernando brigou esta
semana na escola, ele briga na rua e me desespera e ele Walter ameaça
embora. E eu falo então vai de vez , porque assim não dá !
T2: Como você escuta Walter isto que a sua mãe diz ?
W: Eu quero ir para casa da minha tia.....
R: Mas não dá para você ficar lá.
T2 Eu estou percebendo que vocês se ameaçam muito...
Você Rosa já ameaçou com sua vida , ameaçou não voltar mais. O seu filho
Walter está ameaçando também vocês e o outro ( Fernando) ameaça com
faca ...... Enfim vocês vivem ameaçados. Quando alguém não gosta de alguma
coisa ameaça escapar. Como se tivesse uma porta aberta para escapar. Aliás,
na semana passada Rosa , você disse que quando tentou se matar era porque
não podia escapar de uma patroa difícil que você tinha. Eu penso que teria
tantas formas de você resolver a situação que não esta de tentar se matar ,
pois você poderia ter morrido e aí ?
W: É isso acontece......
T2: Que sofrimento isto não ?
R: O Walter disse que não queria mais vir aqui , eu briguei com ele por causa
disso.
T2: Eu penso Walter, que também é uma ameaça e uma necessidade de
escapar , pois aqui falamos de coisas difíceis , sofridas da vida de vocês. Faz
sentido ?
W: Não sei.
T1: Lena , é tão importante as pessoas suportarem o que sentem mesmo
quando é difícil.
171
R: Eu, as vezes, não agüento o que sinto é um nervoso forte, não sei o que
fazer, o remédio que o médico deu não está fazendo bem. Eu fico com
sangramento e não estou tomando .
T1: O que ele deu ?
R: Equilid . o Fernando também toma Gardenal , mas não está tomando .
T2: Por que?
R: Não muda nada.
T1: Lena o que faz quando você está muito aflita ?
T2: Eu caminho, saio na rua , respiro.
T1: Eu gosto de correr , me alivia muito , fazer arrumações e escrever.
R: Eu gosto de fazer arrumações me ajuda também.
F: Eu converso e melhora.
( troca de lado da fita , perde:se 3 minutos )
W: Eu saio com amigos.
T2: Ele faz só o que quer, você acha isso bom?
T2: Não teria uma outra alternativa do que esta “deixa que eu faço” ? Isto por
um lado não seria ruim para ele?
R: Walter me ajuda , mas ele não.
R: Quando ele ( Fernando) não quer fazer, ele ameaça com a faca .
T1: E aí, o que você faz?
R: Bom, eu chamei a polícia na última vez.
T1: Além da polícia, quem poderia ajudar vocês ? Algum amigo , vizinho,
parente.... ?
R: Depois deste dia da polícia eu não tive mais problema com ele.
T2: O que sua mãe poderia fazer nestas horas ?
W: Eu acho que ela devia insistir para ele fazer a parte dele em casa.
T2: Seria arrumar a casa e fazer as coisas ?
W: Isto sim , mas tem outras coisas, o Luiz , arrumou as coisas, e foi embora ,
sem falar nada. O homem era para dividir o aluguel , mas nem isto . Ele está
devendo o aluguel , se mandou e depois resolveu voltar e ela aceitou ele de
volta ..... ela tem que ter opinião própria .
T2: O problema para você é ela ter recebido ele de volta ?
W: Ela fica dependendo dos outros é uma atitude errada, e eu falei que queria
ir embora. Eu não quero ficar lá , o ambiente é muito pesado.
172
T1: O que seria um ambiente pesado?
W: É o jeito dele , minha mãe já falou aqui, ele não compra nada para comer.
T1: Ele paga o aluguel , ou não ?
W: Ele paga o aluguel , é isto ? e a comida é por conta da sua mãe?
W: É isso.
F: Mas nem o aluguel ele está pagando.
W: Também o certo era morar, eu, minha mãe e ele ( aponta para Fernando).
F: Esta morando também a filha dele, com a gente.
R: Mas , eu vou falar de novo que se o Luiz sair , eu tenho que voltar para
Santo Amaro, e eles estão estudando aqui perto , o meu trabalho também fica
perto, senão lá em Santo Amaro, eu gasto 2 horas e meia para voltar para casa
a noite , eu saio do serviço às 11 horas da noite e vou às duas da tarde. É
muito tarde e consegui o tratamento aqui. Eu consigo ficar mais perto
deles......mais tempo. Lá em Santo Amaro, o Walter ficou sem supletivo.
Graças a Deus, eu consegui aqui no Guilermano Dias. Lá estava difícil
mesmo. Eu queria morar nós três , mas o Luiz também estava com problemas
com a filha e nós combinamos alugar uma casa juntos. Ele estava tendo muitos
problemas com a filha, porque a casa dele é de frente para uma favela, ela
ficava enfiada lá dentro. Mesmo aqui um dia destes tivemos que buscar a filha
dele lá na favela. A menina engana ele e a mãe dela. Ela tem 12 anos. Nós
achamos que alugando esta casa , a menina ficava fora da favela e eu mais
perto do serviço e deles né...... ia melhorar a minha parte e a dele.
T2: Vocês alugaram a casa como sócios ou como casal, homem e mulher?
R: No começo como homem e mulher mas depois eu vi que não dava certo e
ficamos como amigos. Mas não tem espaço lá nem camas para se separar. A
gente fica na mesma cama.
T1: E como é ficar na mesma cama.
R: Deixa eu explicar.......
W: Faz muita diferença , ela pode dormir comigo.
R: Então, eu vou dormir com você , porque sempre ele não quer que eu
chegue perto da cama dele.
W: Eu durmo no chão...
T1: Você tem sua filha que mora com você ?
R: Não, ela não mora com agente.
173
R: Deixa eu explicar, o por que, eu durmo com ele...... não acontece nada, a
porta nem fechadura tem..... fica aberta.
T1: Pelo jeito para seus filhos , você dormir com o Luiz tem um significado
diferente....
W: É como se ela estivesse com ele, como mulher dele.
R: Mas como eu posso pagar o aluguel sozinha, é R$ 350,00 o aluguel.
T1: Você já fez esta conta ?
R: Eu já fiz , sou boa de conta. Eu pago a comida mas agente vive mal.
Bem que eu queria comprar umas coisas boas para comer.
W: Eu acho que gasta bem menos.
T1: Talvez você Rosa, precise mostrar estas contas para seu filho.
W: O cara não compra nem nada e come , come,come...
T2: Você esta muito chateado com isso!
W: Lógico ...
R: Ele acha ruim, ele ter ido embora e não ter falado nada e o aluguel está
atrasado.
T1: Sem dúvida.
F: A filha dele .....
W: A filha dele não é problema nosso...
R: Eu me preocupo com a menina dele.
F: Ele quer saber o que nós fazemos, porque a filha dele, ele não liga. Ele fica
querendo controlar a gente.
T2: Mas tudo , segundo vocês , começou como marido, querer saber de vocês
vem desde o começo ?
R: Ele até me ajuda , olhando eles.
F: Ele quer saber o que nós fazemos , mas a filha dele ele nem liga?
T1: Isto não pode ser bom ele querer cuidar de vocês ?
F: Ele fala para mãe , onde nós estamos.
R: O problema é que ele está perdido na educação da menina. Eu me
preocupo com a menina e cobro dele isto. Quando ela diz que vai para casa
da mãe dela ela corre e vai para favela.
T1: Vocês acham que ele não foi um bom marido ?
W: Não é.
R: Ele é boa pessoa , comparando com os outros ele é muito melhor.
174
Ele é prestativo. Ele vai pagar o aluguel. Eu preciso ficar.
T1: E como vamos fazer , porque seu filho disse que vai sair de casa.
R: Filho você vai perder a escola está tudo encaixado. Se o Luiz for embora ,
eu tenho que ir embora. Eu fiquei desesperada.
T2: Você procurou outra casa ?
R: Nossa , eu andei tudo, é muito caro por aqui.
T1: E você, Rosa, passou por um risco , se o Luiz não voltasse você teria que
pagar a dívida da casa ?
R: Não , porque está tudo no nome dele e eu não sou fiadora. Eu tinha que ir
embora.
T1: Ele conversou com você sobre o aluguel , se ele estava com alguma
dificuldade?
R: Não, eu perguntei mas ele não disse. A responsabilidade é dele qualquer
problema a responsabilidade é dele. O Walter achou ruim esta atitude dele de
sair sem falar nada.
T1: E você o que achou?
R: Eu também, ele tem razão, mas o Luiz conversou. O que meus filhos
querem é voltar para Santo Amaro. A minha filha também quer que eu fique
perto dela. Mas a minha filha casou e tem a família dela, o marido. Eu preciso
trabalhar , emprego não está fácil. Se eu morar lá não vejo quase meus filhos.
Eu quero participar.
T1: Estamos na nossa hora e podemos voltar a falar deste assunto na próxima
semana. Sem a presença de vocês meninos não podemos chegar a nada.
T1: Me parece que frente as pessoas que você já se relacionou, me parece
não sei se é besteira mas ele não faz tão mal a família como os outros , e o
que seu filho esta falando , abrindo os olhos para pontos importantes, como
vocês viveram coisas ruins e ele apanhou e quase morreu. Ele está dizendo
que: “eu estou de olho em quem esta aqui”. Como você já teve
relacionamentos difíceis e sem respeito à você, parece que você esta
acostumada a não ser respeitada. Faz sentido ?
W: É isso. Não dá mais.
T1: Pensem sobre isto. Até a próxima.
175
FAMÍLIA BORGES
3. SESSÃO DE ATENDIMENTO FAMILIAR – REALIZADA DIA 20/ 08/2004
NO CEAF.
A família telefonou durante a semana. Rosa relatou pelo telefone que estava
muito assustada porque o Fernando havia tentado matar a filha do Luiz, (
padrasto) que mora com eles. Foi pedido que nessa sessão viessem além de
Rosa , Walter e Fernando , Luiz e sua filha para que pudéssemos ouvir a
história de ambos os lados.
Segundo Rosa , Fernando tentou enforcar a menina enquanto ela dormia,
utilizando uma fita isolante. Todos estavam preocupados com o acontecimento.
R: Eu convidei eles mas eles não quiseram vir.
T1: Eu liguei para o Luiz e não consegui falar , mas deixei recados. O que acha
que eles não vieram ; um acontecimento tão preocupante ?
R: O Luiz disse que ele não é da família que não tem nada a ver com o
Fernando.
T1: Não tem nada a ver? Conte a história de novo.
R: Eu não estava em casa. Parece que era mais ou menos 5 horas da tarde, o
Walter estava assistindo televisão. A Lindalva ( filha do Luiz ) estava no quarto
dormindo. O quarto não tem fechadura e ele fechou a janela. O Fernando
tentou enforcá-la com a fita isolante.
W: Eu estava assistindo televisão e pensei que ela já tinha saído para rua
porque ela nunca para em casa. Eu não escutei nada. Aí eu fui para o quarto e
ela saiu sem falar nada.
T2: Então como você ficou sabendo ?
W: Fiquei sabendo depois.
R: Quando ele chegou da escola é que ficamos sabendo.
T1: Como você não ouviu ?
W: Não dá para ouvir o som estava alto. Ela fica muito pouco em casa.
T1: Ela é uma menina que mora com vocês , na mesma casa , a quanto
tempo?
W: Um ano talvez ....
176
T1: Eu pensei que era mais tempo.
T1: Mas ela fica junto com vocês ? assiste TV......
W: Quando a gente está na TV ela vai escutar rádio. Ela nunca fica junto. E eu
também as vezes vou para cozinha e escuto rádio lá. Eu evito ela .
T1: Por que você evita ela?
W: Ela tem mania de conversar besteira.
T1: Que besteira ?
W: Ela fica falando da minha mãe. Ela diz que ela, não deixa isto nem aquilo.
Que, ela quer ir embora com o pai dela. Ou, as vezes, ela fala que vai voltar
para casa da mãe.
T1: Ela quer que o pai vai embora ? Ela não quer mais morar com vocês ?
E vocês também não querem mais morar com ela ? É isso ?
W: É isso na verdade.
T1: Com tudo isso que aconteceu, pode apressar esta mudança ?
R: Eu cheguei nesta conclusão. O Luiz não quer todo mundo amontoado, acho
que, ele quer ir embora.
T1: Os meninos na semana passada falaram claramente que não querem
morar com eles ( pai e filha) e você Rosa?
T2: Nós estamos falando de uma coisa que ele fez( Fernando ) eu queria ouvi-
lo. Como aconteceu e como ele teve esta idéia ?
R: Ele fala que não lembra. As outras vezes que ele faz uma coisa assim como
puxar a faca para o irmão, depois, ele sempre diz que não lembra.
T2: Você queria assustar ou você queria matar ? O que você lembra?
F: Quando eu cheguei da rua eu fui para o quarto da minha mãe e ela estava
lá.
T2: Você tem idéia do que aconteceria se ela morresse ?
F: Eu ia preso .
T1: Você queria ficar preso como seu pai?
W: Depois ele ficou escondido no quarto quando ela saiu. Eu acho que ele
achou que ia ser preso. Eles tiveram uma briga grande há 3 meses.
T2: Você acha que pode ter relação estes fatos?
F: Não.
T2: Eu fico pensando que quando agente tenta matar alguém , deve haver uma
raiva grande . Você tem muita raiva da Lindalva?
177
F: Não.
T1: Muitas vezes sentimos raiva , brigamos com as pessoas , mas para querer
matar é diferente , é muito forte , eu penso que os sentimentos são fortes
demais. Muitas vezes, podemos até pensar e desejar a morte mas, agir é muito
diferente. É muito sério pensar e montar uma estratégia para matar o outro.
Fechar a porta e colocar um móvel atrás da porta, apagar a luz , fechar a
janela, aproveitar o horário que ela dormia é montar uma estratégia. Assim
seria difícil para ela se defender. Ela é maior ou menor que você?
F: Ela é maior.
T1: Isto tudo parece pensado. Eu pensei no pai dele que está preso; será que
ele tem que ser igual ao pai . Também fazer coisas para ser preso. Matar como
o pai. Ficar marcado como o pai com mortes. Quando sai da prisão também
continua marcado . É difícil tirar esta marca.
R: O pai foi preso quando foi buscar os documentos. Ele nunca achou que
seria preso.
T1: Você acha que o Fernando também pensa assim ?
R: Não sei.
T1: E os familiares , já houveram outros casos na família?
R: Não assim, o pai do pai é bem calmo . Os homens da minha família; o mais
velho é um exemplo , mas os outros são difíceis . Eles batem nas mulheres,
bebem ......mais só.
T2: Como você Rosa reagiu a este fato?
R: Quando me contaram eu fiquei nervosa, eu não consegui dominar o
nervoso. Eu queria saber a verdade. E no dia seguinte eu queria dar o remédio
para ele. Mas agente não consegue conversar como aqui. Ele sempre diZ:
sei..... já sei. Ele sempre sabe tudo. O que é certo e errado. Ele sempre dá
problema.
T1: Que problema ?
R: Ele deu problema na escola e a escola encaminhou para o conselho tutelar.
No caso ele bateu nas crianças. É sempre relacionamento. Ele está sempre
envolvido com confusão. Eu falei para ele que o que ele vem fazendo desde
que agente mudou é muito , mas ele já vinha fazendo antes . Então, não
justifica porque mudou de casa. Vem sempre trazendo problemas para mim.
Eu já perguntei se ele tem muita raiva de mim, porque ele só faz o que eu não
178
gosto e o que é errado. A Lindalva, o Luiz não tem culpa do que ele fez,
porque ele já era assim antes. Eu até falei, você quer me ver passar mal como
em Caçapava? Eu estou muito desesperada como quando eu estava lá. Não
conseguia dormir e não estou dormindo. E tudo começou porque eu não
conseguia dormir. Depois eu só chorava, chorava e não queria mais sair de
casa. Ele fala que não. Nada justifica as atitudes dele de agora. Lá em
Caçapava ele teve problemas de relacionamento e a professora chegou a me
falar para levar ele no médico e ameaçou ele a sair da escola e aqui também
ele já foi ameaçado de sair da escola.
T1: Você rosa contou que ele ( Fernando) apanhou muito quando era bem
pequeno.
R: O Walter também, até mais.
T1: Quando vocês contaram o bater era quase matar. Precisava ir para o
hospital. Então me parece que esta história de crimes vem vindo nesta família.
Falta de controle . O adulto deveria ensinar os jovens e crianças à controlar as
emoções. E não é isso que acontece aqui. Se agente pensar, as vezes não é
fácil para um homem criar um filho que é de outra união, ou de outra história da
mulher. Isto é comum em outras famílias. Mas se pensa, se conversa, não se
bate para matar. Existem outras formas de lidar com estas dificuldades.
R: Eu acho, que tudo vem de quando eu estava grávida do Fernando.
T1: Ou antes no seu início de vida, Rosa.
R: Como assim?
T1: Veja se o que eu penso faz sentido. O que será que você viveu quando
pequena que quando um homem quase mata seus filhos, você ainda continua
com ele e acredita em melhora. E não toma outro rumo de vida. Como você
podia dormir com alguém que quase matou seus filhos e você?
R: Eu fugia mas eu voltava. Só tive sossego agora.
T1: Acho que não. Parece que a sombra do pai continua com o filho. Não estou
vendo você sossegada. Não sei se esta família não precisa da sombra dele,
ainda. Quantos anos ele vai cumprir?
R: Treze anos.
T2: Fernando você faria de novo o que fez?
F: Não. ( choro)
179
F: Ela respondeu muito para minha mãe. E minha mãe não fez nada. Nem o
pai dela fez. A Lindalva xinga a minha mãe.
T1: Me pareceu que vocês ( filhos) sempre falam na importância da mãe por
alguns limites na vida dela e não ser maltratada. Assim Rosa se você não põe
os limites; seus filhos quererem ser justiceiros e agirem por você de forma mais
intensa e perigosa. Me parece Rosa que ele pensa assiM: já que minha mãe
não resolve eu resolvo, eu faço justiça com as minhas mãos. O Fernando, as
vezes parece menor do ele é , ele fica sentadinho no chão desenhando com
uma expressão de criança pequena e as vezes parece ser o justiceiro , aquele
que pensa que é muito forte que resolve se vai à escola ou não. Não toma
remédio que a mãe manda. Nestes desenhos eu não sei Fernando se você se
acha forte assim ou você gostaria de ser mais forte.
F: Eu queria ser mais forte e poderoso.
T2: Eu vou insistir um pouco com o Fernando. Você acha que pelo fato dele
responder e xingar sua mãe justifica ela morrer?
F: Não.
T1: Você não acha que deveria pedir desculpas?
F: Não.
T2: Por que você não pediria desculpas?
F: Não.
T2: O que te deu para você fazer aquilo?
F: Não sei. Eu nem vi direito o que eu fiz. Não era eu.
T2: Eu acho esquisito isso. Você fez e nem viu que fez?
O que você acha Rosa que ele faz e diz que não sabe o que fez?
E diz que não era eu.
R: Eu acho que ele sabe bem o que faz.
T1: Eu penso numa imagem de um monstrinho, que mora dentro de cada um,
que dependendo do que a gente aprende em casa , segura o monstrinho
dentro e não deixa ele agir. Ele vai ficando fraquinho , mas se ele fica solto ele
pode tomar conta. Todos temos dentro de nós. Eu entendo pelo que você diz
que este seu monstrinho ,as vezes, fica solto e daí ele fica muito forte e toma
conta. Nessas horas o que a mãe pede, o monstrinho não escuta, fica longe,
não dá importância. Fica difícil de breca-lo. Para brecar, a mãe teria de ficar
junto e segurar. Os médicos também ajudam dando algum remédio para deixar
180
este monstrinho sonolento. Mas temos que pensar em outras ajudas que não
só os remédios . Sozinhos eles não dão conta. Esta situação precisa que se dê
conta já.
Precisa ir na escola , estudar fazer o que tem para fazer, ajudar nas tarefas de
casa sem privilégio. Isto já ajuda. Se a família faz as coisas por ele, lava a
louça, arruma a cama todos estão dando corda para o monstrinho.
T2: Por isso , Suzanna que eu perguntei para a Rosa qual tinha sido a reação
dela? Eu fiquei pensando o que uma mãe pode fazer quando o filho faz uma
coisa assim tão grave. Quando o monstrinho toma conta.
T1: O medo ajuda, porque a gente tendo medo deixa de fazer coisas. Como o
medo da polícia , o medo de morrer.
R: Ele não tem medo de nada.
T2: Como podemos ajudar a Rosa a controlar o monstrinho do Fernando ?
Quando a Rosa diz que ele não tem medo de nada....
T1: Eu penso que é difícil não ter medo de nada. Talvez ele não tenha medo
da mãe, da autoridade da mãe, da voz da mãe. Mas quando a Rosa fala que
fica nervosa, que não dorme e fica como em Caçapava eu acho que ele fica
com medo. Não só ele, mas o Walter também que é o medo de morte dela .
Dela tentar se matar. Isto me parece que fica escondida, a palavra morte, por
detrás destas palavras dela. “Eu posso acabar com a minha vida.” É uma
ameaça. É uma forma muito complicada de segura-lo.
R: Tem horas que eu perco a força e penso em morrer.
T2: O que você acha que pode fazer para controlar este monstrinho do
Fernando, que ao mesmo tempo, eu vejo um outro lado maravilhoso nele. Não
no monstrinho. Eu vejo inteligência, vivacidade.
T1: Se a pergunta é para mim Lena, eu não sei.
T2: Você Rosa já deu castigo para ele ?
R: Já, ele nem liga.
T2: Não tem nada que ele goste ?
R: O que ele gosta eu não posso dar , ele me cobrou. Ele quer uma bicicleta.
Ele fica na rua . Ele gosta de jogar bola. O tênis fica sujo , o dedo do pé
machucado.....Ele tem que ficar o tempo todo perto de mim , daí funciona. Mas
eu preciso trabalhar....... Eu ligo bastante do trabalho, mas ele fica na rua. Mas
o Walter já me deu muito trabalho. Ele não obedecia. Eu brigava muito com
181
ele. Mas ele ( Walter ) mudou muito. Ele está melhorando , está obedecendo
mais.
T2: É isso mesmo, Walter ?
T1: O que você acha que fez você mudar, Walter ?
W: Foi quando eu caí da bicicleta.
T1: Me conta esta história.
W: Eu ia para escola com uma amiga e no caminho resolvi não ir para escola,
estava muito calor. Resolvemos zoar com a bicicleta e passei em uma lombada
e cai e machuquei muito. Depois deste dia nunca mais.
T2: Então você precisou ficar muito machucado para chegar a conclusão que
era melhor ouvir sua mãe? Será que o Fernando também precisará ficar muito
machucado para ouvir a mãe ?
R: Acho que não.
T2: Por enquanto, eu não estou vendo nenhuma conseqüência para a
desobediência do Fernando. Ele vai para seu trabalho, Rosa , apronta lá, fica
exigindo coisas, e você acaba atendendo porque fica sem ter o que fazer não
é ? Ela não pode perder o emprego dela não é ?
W: Eu já falei com a minha mãe. Se ele faz alguma coisa lá , ela pode perder o
emprego.
T1: E o Luiz não fez nada ? Ele não conversou com o Fernando ?
R: Não, não falou nada.
T1: Bom é estranho pois a filha dele foi agredida.....
R: Não teve conversa. Ele é uma pessoa assim ..... como vou explicar..... ele
tem 52 anos mas ....ele é uma pessoa diferente ele não tem iniciativa.
T1: Era para ele ficar muito bravo com Fernando e falaR: não encoste na
minha filha nunca mais. É um jeito de proteger a filha dele e de colocar limites.
W: Eu acho que é até pior. O Fernando vive na favela e ele aprende de tudo lá.
R: Que favela ?
W: A favela do Barranco... A mãe achou que como eu estava em casa era
alguma coisa que eu combinei com o Fernando. Só porque eu não gosto da
Lindalva.
R: Eu achei que foi uma brincadeira .... e falei Walter, vocês não combinaram
juntos ? Você estava dentro de casa.
182
W: Eu estava dentro de casa mas não tive nada a ver. Eu fico na minha evito
falar com o Fernando e com a Lindalva. Mas ela desconfiou de mim.
R: Não , eu não desconfiei. Mas as vezes você apronta dentro de casa. Eu
perguntei porque você estava em casa.
T1: Isso não é uma brincadeira é muito mais que um susto. Isto é intencional e
sério demais.
R: Eu pensei que podia ter acontecido isto pelo fato do Walter estar em casa e
ter visto isso. A parede é grudada na sala. A TV está aqui e a porta aqui. E o
Fernando teve todo o trabalho de fechar a janela , fechar a parta, prender a
porta com o sofá e ele ( Walter) não percebeu isso? Aí eu pensei se eles não
combinaram algo de brincadeira.
T1: E aí Walter, o que você está pensando ?
W: Ele chegou da escola e entrou no quarto , eu não pensei. Pensei que ele ia
dormir. Eu não sabia que ela estava lá.
R: Mas ele nunca dorme.
W: Dorme sim, muitas vezes.
T2: Eu estou muito preocupada....
T1: Eu fiquei pensando assim.... Eu acho que você Walter não pensou que seu
irmão fosse enforcar a menina... mas você sabe que seu irmão apronta..... se
ele entra em um quarto que está a menina filha de um homem que vocês não
gostam...escuta empurrar um móvel para fechar a porta.... você acha que é
boa coisa ? Não matar... certo. Ele podia até tentar fazer outra coisa com a
menina ... vocês bem sabem o que. Ele se achando poderoso como as vezes
ele acha, bem maior do que ele é. Não passou pela sua cabeça Walter alguma
arte assim ?
W: É que eu não sabia que a menina estava lá dentro. Eu saí e voltei. Eu
nunca entro no quarto quando ele está lá. Eu arrumei a casa , e ai ele entrou e
fechou a porta. Quando ele saiu , eu vi que a janela estava fechada.
T1: Andou me passando umas idéias loucas na cabeça. É uma história tão
séria que passam muitas coisas pela cabeça. Eu pensei em crimes com
moças, de homens que matam a moça para violentar. Em geral não é uma
coisa só. Não sei dizer qual seria o maior desejo, de estupro ou de matar. Mas
muitas vezes matam também. Eu fiquei pensando uma coisa assim . Já
183
houveram casos na família parecidos, de tentativa de estupro e morte? Estas
coisas não aparecem do nada.
W: Não , mais....o pai dele estuprou e depois matou o cara.
T1: Como é ?
R: O caso que teve foi que o pai do Fernando , tinha uma menina na casa ,
uma empregada , mas menina e ele abusou da menina, não era tão menina
.....na época ela chegou para mim e falou. E teve também a minha sobrinha
que o pai dele estuprou. Ela estava grávida e quando ela ganhou o nenê ele
matou o pai do nenê.
W: Quando minha mãe ficou doente com hemorragia ele tentou agarrar a
minha irmã.
T1: Quando agente não controla o que tem vontade de fazer e faz maldades e
pode cometer crimes não é preciso esperar um crime acontecer para ser preso
, mas o Fernando pode ser internado e aí se evita crimes. É melhor internar
para ninguém sofrer com algum crime. É mais destruidor cometer o crime para
todos , inclusive para quem cometeu , porque vai levar na consciência o crime
para sempre. Se não se consegue brecar o Fernando ele tem que ser brecado
de alguma forma. Primeiro precisa ajudar breca-lo , mas um ato fora é para ser
internado. Primeiro precisa ele ficar o dia ocupado , na escola depois em algum
centro de jovens. Se o pai tivesse sido retido antes, não teria feito mal a tanta
gente. Viver com crimes dentro da gente não se agüenta . Não é do nada que
estas pessoas procuram as drogas para suportar o inferno dentro deles. Eu já
escutei relatos de pessoas que diziam que eram perseguidos por demônios.
R: As pessoas, tinham medo do pai dele . Ele não era uma pessoa de respeito.
T2: Muitas pessoas tem necessidade de experimentar fazer o que o pai fazia.
Mas tem coisas que repetir dos pais pode ser legal , mas tem coisas que não
precisa e nem podem repetir. Existem caminhos que não tem volta. Assim
como o do seu pai.
R: Nós corremos muitos riscos lá em Santo Amaro , por causa dele. Muitas
pessoas querem vingar o que ele fez ( Pai do Fernando ). Ele aprontava muito
e podem quere se vingar de nós.
T2: É curioso que muitas vezes se repete coisas feitas por familiares sem se
perceber, sem se dar conta.
R: Eu não tinha pensado nisso, dele do pai. É mais sério do que eu pensava.
184
T1: Precisamos pensar na medicação , porque ela ajuda. E todos na casa
precisam ajudar. Não pode ficar na rua nem com portas fechadas. Na rua só
observado. Para ajudar o Fernando a ter uma chance de não ser internado. De
poder aprender a brecar este monstrinho que ele carrega. Ir para escola e ter
atividades , como já falei ajuda.
F: Eu não quero ser internado. Chora.
R: A orientadora disse que ele faltou muito na escola.
T1: Nós gostaríamos de ter autorização de vocês para conversar com ela.
R: Seria muito bom porque eu conversei na segunda feira e falei o que
aconteceu e ela pediu que eu não levasse o Fernando na escola por alguns
dias.
T1: O Fernando precisa ter uma vida regrada como se estivesse em liberdade
assistida.
T2: O Walter também passou por situações de risco mas escolheu com bom
caminho. E o Fernando pode aprender com o Walter.
T1: Me parece que quando o Walter escolhe um caminho construtivo, passa a
estudar a pensar no futuro, colabora com a mãe ele esta se tornando um
homem. Ele passa a ser um bom modelo para o irmão. O irmão deve aprender
com isso. Quando não dá para copiar um pai agente pode copiar um irmão.
R: Eu não sabia que atitude tomar. Eu falei com a coordenadora da escola e
estava muito confusa. Quando vocês falarem com ela , vocês explicam isto. Ela
pediu para ele ficar em casa. Ele não conseguia levantar para ir para escola.
Eu tirei o remédio para ele poder levantar.
T2: Se você fica pela manhã em casa , não é melhor ele estudar à tarde?
R: Ele estudava , mas a diretora passou ele para manhã.
T2: Seria melhor ele ficar com você em casa de manhã e ir à tarde para escola
, enquanto você trabalha. Ele precisa de você . Sabe, como um bebezinho que
precisa ficar grudado, porque ele precisa de você. Ele se machuca porque
não sabe se cuidar.
R: Se eu conseguir a vaga já ajuda. Quando eu passei a situação para a
coordenadora ele falou que era melhor ele ficar em casa.
T2: Ela deve ter ficado com medo , não é ?
R: Se eu não tivesse que trabalhar , eu ficar com ele 24 horas. Eu não deixaria
ele sozinho. É difícil eu não poder ficar do lado dele e ele fazer estas coisas.
185
T2: Ele precisa te obedecer mesmo quando você não está perto.
T1: Mas esta situação precisa ser interrompida já.
F: Eu não vou mais fazer isto.
W: Ah não....
T2: As regras precisam ser rígidas.
R: Vocês viram ( filhos) eu falo para o bem !
F: Eu não vou estar fazendo.....( choro).
R: Mas lembra você chega com o sapato de barro, porque vai na favela . Eu
falei para não ir . Lá tem drogas.
F: Mas eu não vou. Eu não quero ser internado.
T1: A sua família está disposta a te ajudar ( Fernando ) para você continuar a
morar nesta família. Para você poder ter um outro caminho de vida. Depende
muito de você e da ajuda dos outros.
R: Você está entendendo ? para não fazer tudo errado! Você precisa escutar o
que eu falo. Você está entendendo o que eu estou falando ? Você acha que eu
quero seu mal ou seu bem?
F: Meu bem.
T2: O Fernando tem uma única chance. Ouvir sua mãe e seu irmão mais velho.
Não agredir ninguém. Obedecer e colaborar com a mãe. Assim é possível
continuar na família que você tem. Se não conseguir fazer isto teremos de
pensar em algo mais sério. Como uma instituição para você ser controlado
para não fazer mal aos outros.
R: Eu vou na escola na segunda feira para conversar e falar com a diretora.
T1: Nos iremos ver um Centro de Juventude nesta região para indica para o
Fernando, certo ,Rosa.
T1: Seria importante na próxima sessão a presença de sua filha. Ela também
pode contribuir.
T2: Vamos chamar sua irmã , Fernando.
T1: Eu vou ligar para ela, esta semana. Ela precisa vir.
R: Eu falei para ela que vocês queriam conhecê-la , mas esta semana, ela não
podia , mas disse que vem. O Tel dela é 9377......
T1: Eu gostaria de poder falar com os seus avós, Fernando para conhecer um
pouco da vida de seu pai , quando era pequeno . O que aconteceu para ele
chegar onde chegou ?
186
R: O avó dele está muito velho. Ele não conversa, a D. Maria, mulher dele
ainda fala um pouco.
F: Eles estão caducando.
R: D. Maria acha tudo normal, não liga para drogas. A irmã dele leva dinheiro
para ele na cadeia.
T2: Que bom Rosa, que você não acha isto normal. Eu acho importante que
você quer mudar muitas coisas nesta família. Você veio procurar ajuda para
mudar. Caso você precise de alguma ajuda nesta semana, pode ligar para o
CEAF.
T1: Estamos na hora até semana que vem.
187
FAMÍLIA CASTRO
1. SESSÃO DE ATENDIMENTO FAMILIAR – REALIZADA DIA 06/ 08/2004
NO CEAF.
Esta família foi atendida por duas terapeutas, Suzanna Levy,(T1) pesquisadora
e terapeuta familiar e por Lena Bartman,( T2) terapeuta familiar, ambas
voluntárias do CEAF.
No início do atendimento foi conversado sobre a pesquisa e só iniciou a
gravação depois da autorização consentida e assinada por D. Zenaide, mãe de
Graça.
Z: Através de uma amiga que aconselhou a procurar o Conselho Tutelar para
dar uma orientação, daí eu fui perto da minha casa.
T1: Que tipo de orientação ?
Z: Não, porque estava acontecendo assim..... problemas entre ela e eu , entre
nós. Ela não quer mais escutar. Então eu fiquei muito preocupada com isso e
queria procurar..... eu conversei com uma amiga da Igreja.... eu sou
Evangélica. Ela disse: eu vou te dar o telefone do Conselho Tutelar , você vai
lá e conversa o que está acontecendo. Eu fui e agendei para a gente. Ela
ouviu nós duas e disse que precisávamos fazer uma terapia.
T1: Você esta com que idade?
G: !5 anos.
T1:É única filha?
Z: Única.
188
Z: Foi depois dos 15 anos, que ela mudou assim. De repente, eu não sei
porque ela mudou o comportamento dela. Mudou o jeito dela. Que antes a
gente era tão amigas mas não sei o que aconteceu que ela está tão rebelde.
T1: Conta um pouco da história dela , desde pequena, da história de vocês.
Z: Eu fui realmente casada com o pai dela. A gente se conheceu eu era jovem.
T1: Que idade você tinha ?
Z: Eu tinha 27 anos e eu trabalhava em uma firma. Trabalhei 11anos lá. Aí eu
já conhecia o pai dela, desde que era adolescente. Nós morávamos em uma
casa que era dele. A gente alugava a casa. Ele tinha uma loja perto. Mas eu
nunca esperava algum dia casar com ele. Depois eu estava com 27 anos e ele
decidiu e disse que gostava de mim.
T1: Você gostava dele?
Z: Não .... eu conhecia ele e trabalhei na loja dele um tempo. De repente a
gente se encontrou novamente e ele veio e disse que gostava de mim e da
minha família. Que eu era de família boa e ele estava procurando alguém que
cuidasse dele , que gostasse dele e eu era a mulher perfeita para construir um
novo lar. Ele morava com uma outra pessoa e ficou viúvo. Eu falei que eu
queria um tempo para pensar, pela diferença de idade.
T2: Ele era mais velho?
Z: Ele tinha 68 anos quando eu fui morar com ele. Com a convivência e com o
relacionamento eu aprendi a gostar dele. E fui gostando, simpatizando.... Ele
era uma pessoa muito boa e me tratava bem , me considerava. Depois eu
nunca esperava constituir família. Ele queria, ele dizia , mas agente não
esperava.
T1: Ele tinha filhos do primeiro casamento?
Z: Não teve. Aí eu não sabia que estava grávida. Eu me senti diferente mas
não sabia e até me acidentei. Eu escorreguei e fui para enfermaria e lá me
disseram que eu estava grávida. Quando eu mostrei o exame para ele foi a
maior felicidade. Nós vivemos junto quase 10 anos. Com 84 anos ele começou
a ficar doente com deficiência cardíaca e falta de ar. Eu fiquei viúva com mais
ou menos 37anos. E hoje eu estou muito acabada por tantos problemas. Antes
de eu ficar viúva, tudo ele que fazia, a senhora entende ? Eu só cuidava da
casa e dela que era pequena. Ele não quis que eu trabalhasse fora , eu só
189
ficava com as coisas da casa. Daí eu me perdi em várias coisas. Não sabia
tomar decisões de coisas de negócio.
T1: Alguém ajudou vocês ? um familiar ?
Z: Não ninguém...... Agora eu aprendi muito . Eu apanhei, mas aprendi. A vida
ensina agente. Agora estou tomando conta direitinho. Só que nesta parte da
adolescência . Ela esta rebelde, e isto me preocupa. Não quer ir para a escola.
Ela não quer ajudar nos afazeres de casa e eu sempre ensinei isto. Eu digo à
ela que um dia eu também vou embora desse mundo e a gente precisa saber
fazer as coisas. Ela precisa aprender fazer. São coisas de menina. Eu
trabalhava e estudava a noite. Eu gostaria que ela terminasse os estudos . Se
terminar o segundo grau e ela não quiser continuar .... ela poderia fazer cursos
e depois trabalhar no ramo que ela gostaria de trabalhar.
T1: Isto que você gostaria para ela ?
Z: Eu penso assim. Mas parece que ela não gosta de estudar. Não sei o que
acontece com ela?
T1: O que acontece Graça ? você pode contar?
( silêncio)
T1: Como você está ouvindo esta história que a mãe está contando?
G: Não sei.....
T1: Sobre a sua história . Você lembra bem de seu pai?
G: Lembro.
T2: Você tinha que idade quando ele morreu?
G: Acho que era 6 anos.
Z: Faltavam dois meses para ela fazer aniversário de 6anos.
T2: Sua mãe diz que procurou este trabalho porque sente dificuldade com
você. Você está rebelde.....
G: Não é porque eu estou rebelde é que ela não deixa eu fazer nada. Ela não
deixa eu sair com amigas , ir ao Shopping.
T2: Por que ?
G: Ela tem medo de tudo. Ela deixa um pouco. Mas, outras coisas ela não
deixa.
T2 Como o que ?
190
G: Ela não deixa eu namorar. É porque eu estou namorando um carinha e ele
foi falar com ela e ela não gostou dele. Ela é muito brava e eles não
conseguem falar assim...ter um diálogo com ela, ela começa a gritar.
T1: Parece que você Zenaide acaba sendo pai e mãe. Alguns pais fazem este
papel de serem mais bravos e assustadores para os namorados das filhas e ai,
as mães pode ser mais simpáticas, acolhedoras. Mas sua mãe pelo jeito faz o
papel dos dois. Eu fico pensando, que por um lado sua mãe está comunicando
para seu namorado ter cuidado com que pensa fazer, esta menina vale muito
nesta casa? Faz sentido Zenaide ?
Z: É exatamente isto.
G: Todos tem medo dela.
Z: Em casa mora também minha mãe de 80 anos. Ela mora no mesmo quintal
só que em outra casa.
T2: E o que esta questão que sua mãe falou de não querer estudar?
G: Eu quero estudar, mas é porque ela me prende muito e aí..... ah!.....não
sei..... eu perco a vontade das coisas.
T1: É um jeito de irritar ela? E de revidar porque ela não deixa você sair?
G: Não é bem isso. Eu sei que se eu deixar de estudar as conseqüências virão
para mim e não para ela.
T1: Abala você muito mas à ela também.
G: Ah... é ..... um pouco. Agora eu acho que não vai fazer falta , mas vai.
T2: Como é seu dia a dia ? o que você faz no fim de semana, na semana?
G: Nas férias eu saio um pouquinho mas durante o ano quase nada.
T2: Você tem ido à escola?
G: Tenho.
T2: Você vai e volta da escola sozinha? É perto?
G: É sozinha. Eu não tenho muitas amizades na escola. Só tem 5 alunos na
classe. Daí eu vou sozinha e volto sozinha.
T2: Por que tem poucos alunos na sua escola?
G: Porque é uma escola particular. Só que na minha sala tem 5 alunos e nas
outras classes também.
T2: Quer dizer que você estuda em uma escola particular?
T1: Pelo jeito muito particular.....
Z: É só tem 5 alunos.
191
G: Lá só tem algumas séries até a oitava série. Eu só tenho amizade com uma
menina , porque tem mais meninos que meninas. Eu tenho amizade com os
meninos também, mas só na escola.
T2: Mas e daí, você volta da escola e faz o que?
G: Ah , eu volto e não faço nada. Eu já enjoei da televisão. Eu não tenho muita
amizade na rua porque onde eu moro tem muito comércio. Eu moro em uma
avenida e não dá para ficar na rua.
T2: E no fim de semana?
G: As vezes eu saio. Amanhã eu vou para o Shopping.
T2: Por que você acha que sua mãe veio procurar ajuda aqui?
G: Ah, eu não sei . Bom ele precisa de alguma ajuda é lógico.
T2: Ela precisa melhorar um pouco ?
G: É eu também.
T2: O que você acha que ela precisa melhorar?
G: Ela precisa não ter tanto medo e deixar eu sair.
T2: Você acha que você precisa melhorar, o que?
G: Ah.... tem coisas. Ela fala as coisas e eu quero mostrar para ela que eu
também estou certa de algumas coisas.
T1: Quer dizer que agora você está brigando pelas suas opiniões...
G: Estou sim. Eu mudei , mas ela quer que eu fique sempre criancinha dentro
de casa. Agente muda .... não que eu sou uma adulta. Eu ainda sou nova ,
mas não sou mais criancinha...
T2: Ela te vê como criancinha...?
G: É , ela fala que eu mudei porque eu não sou como antes. Eu sei me
defender. Eu não sou adulta mas ela fala que eu quero ser adulta.
T1: É bom querer crescer.
T1: E você está namorando este rapaz que você gostou?
G: Eu estou.
T1: Como é este namoro, ele pode ir na sua casa?
G: Não ...não...
T1: E você namora ele aonde?
G: A gente marca de se encontrar no shopping.
T1: Vocês conversam sobre os cuidados que uma mocinha precisa ter quando
namora ? Você conversa com ela, Zenaide?
192
Z: Ah , agente conversa um pouco.
T1: Como é este pouco?
Z: Eu falo para ela que a gente que é mulher precisa tomar cuidado com os
rapazes. Quando agente se torna mocinha adolescente, tem sempre os
atrevidos e ela precisa ter cuidado se tiver um relacionamento mais sério,
porque corre o risco de gravidez e doenças como a AIDS.
T1: Como você está ajudando para ela se cuidar? Aprender os cuidados. Há
anos atrás não se conversava isto coma as filhas, mas hoje se sabe que é
melhor falar e ensinar para evitar uma gravidez fora de hora ou doenças que é
até pior.
Algumas mãe falam assiM: será que se eu falar, ela vai pensar que eu estou
incentivando a logo ter vida sexual? Mas se sabe que, se não falar nada pode
haver surpresas. Eu falava com minha filha assim na sua idade, mas sempre
falei que devia esperar o máximo porque ter uma vida sexual também implica
em responsabilidade com o corpo, dá trabalho e as vezes, dependendo da
idade tomar um anticoncepcional pode não ser bom. Tem a vida pela frente.
Eu penso que no namoro tem muitas coisas boas que não é só transar. Essa é
a minha opinião. Mas cada um tem uma....
Z: Eu não falo muito abertamente como a senhora. Eu tenho dificuldade de
falar este assunto. Eu falo para ter cuidado e só. Ela não deve se entregar , os
rapazes são muito jovens. Os rapazes quando pegam uma moça virgem
depois jogam para lá e não querem mais. Daí ela fica passando de mão em
mão. Eu sou cristã. Eu sei que Deus não aprova uma pessoa assim. Ela
deixou de ir para a Igreja . .....
T1: Por que será ?
G: Porque minha mãe fica com estas coisas do tempo antigo. As coisa
mudaram bastante e ela não.
Z: Desde que eu fiquei viúva , foi engraçado, mas ela era pequena e perdeu o
pai cedo e ela sentia falta do pai e ele era muito apegado à ela. Ela é a cara
do pai.
T1: É mesmo ? eles se parecem .
Z: Ela parece com ele e nada comigo. Quando ele nasceu ela era branquinha e
todo mundo pensava que não era minha filha. Que era adotiva. O Pai era
Português e muito branco de olhos azuis.
193
T2: Eu queria perguntar o que você não gostou do namorado dela?
Z: Ele foi até a minha casa. Esta semana foi muito agitada para mim , com a
minha mãe doente. Eu ia dia e noite para o pronto socorro e eu voltava bem
tarde da noite com ela. Neste dia ele foi conversar comigo em casa e ficou
conversando com ela e disse para mim que ia pedir ela em namoro no
Domingo . Mas ela falou para ele que eu era avó dela e não mãe. Eles já
estavam namorando. Aí eu falei se você vai pedir em namoro no Domingo
porque não fala agora ? Ele disse que estava sem coragem e que falaria no
Domingo.
T1: Lena é difícil para estes meninos fazerem um pedido ?
Z: Bom eu até admirei ele pedir em namoro nestes tempos.
G: Se fosse por mim eu nem falava com a minha mãe . Foi ele que quis.
Z: Ele então falou que não ia esperar até Domingo e disse que gostava dela e
queria namorar. Ele tem 20 anos e ele disse que ela é a primeira pessoa jovem
que ele namora. Ele não é da Igreja. Eu não gostaria que ela namorasse
agora, acho que ela devia só estudar. Ela não tem experiência da vida porque
eu não liberei muito e eu falei tudo isso para ele.
Z: Hoje o mundo está muito violento, até mesmo na calçada pode acontecer
coisas ruins. Uma bala perdida , sei lá. Precisa prevenir. Deus cuida da gente
mas agente tem que se cuidar.
T1: Mas existem alguns lugares que é possível ir, sem correr tantos riscos.
Como você pode ajudar sua filha a se proteger mas não ficar presa em casa.
Z: Depois que eu fui conversar no Conselho Tutelar e vim para cá eu acho que
eu vou melhorar. Eu penso que vou liberar ela aos pouquinhos. Ela vai na casa
de uma colega, às vezes a mãe dela vem buscar ela de carro. Vou deixar ela ir
ao shopping.
T1: Da sua parte você está pensando em mudar e da parte dela ela precisa
corresponder. Como combinar horários e outras coisas e cumprir. Você faz a
sua parte e ela a dela. E assim ela mostrando que é capaz pode um pouco
mais.
Z: Aí este rapaz.... eu fui levar minha mãe no hospital e eu não sabia , ela não
comentou.
G: Eu também não sabia , ele foi na academia e era perto e como eu não tinha
visto ele no final de semana , porque eu não saí, aí quando foi segunda feira eu
194
estava dormindo e minha mãe foi levar minha avó no médico e tocou a
campainha e era ele. Eu não sabia que ele ia vir. Ai eu estava sozinha em
casa e minha mãe chegou e ficou brava.
Z: Eu não gostei desta atitude. Ela mal conhece este rapaz e sem eu ou minha
mãe não pode.....
G: mas eu conheço ele e você também.
Z: Você conhece assim ..... para conhecer uma pessoa agente vai conhecendo
aos poucos quem ele é . Ai ela levou ele para dentro. Quando eu vi ele lá
sentado eu não me contive. Eu não consegui falar calma eu me alterei muito.
Eu falei: como você tem coragem ? Esta atitude de aceitar entrar em casa!
T1: A Graça sabia que não podia deixar entrar?
Z: Claro, eu já tinha dito antes. Eu não aceito isso você está errado de entrar
em casa e ela também está errada. Eu falei para ele no começo que eu
aceitaria o namoro só no final de semana. Na semana agente tem outras
coisas para fazer. Nós dormimos cedo. Então eu não vou permitir que você
venha aqui só no fim de semana.
T1: E ele foi educado com você?
G: Ela não sabe conversar,ela fez um escândalo .
Z: Eu sei que eu errei do jeito que eu falei. Eu não me contive. Eu fiquei
super.... ela nunca fez este tipo de coisa. A primeira vez que ele veio em casa,
ele disse que queria conhecer a família dela. Eles se falavam pelo telefone.
G: No começo não era namoro , agente estava só ficando e a verdade é que
ela encontrou agente se beijando.
Z: Ela mentiu para mim, porque ela já tinha ido ao encontro dele, não sei como,
no shopping.
G: Eu conheci ele no shopping , porque ele é amigo do ficante da minha
amiga.
T1: Então você tinha uma referência? É isso?
G: Mas ele ......
Z: Ela mente muito porque ela disse que conheceu na internet e agora ela está
dizendo que ele é amigo da amiga.... assim não dá. Ele tem 24 anos.
G: Não é assim, a primeira vez que ele foi em casa foi para agente ir ao
shopping no cinema , mas ele não era meu namorado.
195
T1: Você Graça, não fica receosa quando conhece alguém e não sabe bem
quem é? Um rapaz mais velho com 24 anos ?
G: Eu sabia que ele era bem mais velho que eu. Se ele é casado....
T1: Você não fica com receio de que ele seja casado ? Que pelo fato de ter 24
anos o que ele vai querer neste namoro ? O que você pode com a sua idade e
o que ele pode é diferente as idades são bem diferentes.
G: Eu penso .....
Z: Quando ele foi em casa ele disse que queria conhecer a família , até minha
irmã estava lá. Eu perguntei o que ele pretende com ela se ele vai namorar ou
não Ai ele falou assiM: que estava conhecendo ela e que ele não queria nada
por enquanto, que queria conhecer ela, primeiro.
T2: Conhecer o que mais ?
G: Mas é que na minha família se vai em casa quer dizer namoro. Ele era só
amigo.
Z: Eu não conhecia....
T1: Deixa eu saber nesta idade de 15 anos quando vai sair me geral é com
amigos não sozinha não é assim ou é diferente?
G: Sempre fico com os amigos juntos.
T1: O grupo protege não é ? Principalmente quando o amigo ou namorado é
mais velho.... a gente tem que ser esperta porque temos pouca força física.
G: É mesmo.
T1: Sair com amigos sempre juntos, ir a lugares públicos .....levar em casa
para conhecer a família ....vai passando o tempo e assim é possível ir
conhecendo a pessoa.
G: Daí quando ela chegou em casa e viu que ele estava em casa e ela falou
aquilo tudo para ele , ele foi em casa outro dia para falar comigo e eu pedi para
ele falar para minha mãe que a gente não ia namorar. Quando minha mãe viu
ele,ela falo: você não tem vergonha na cara de vir aqui?
Z: Eu vi ele depois daquilo, que eu pequei ele fazendo aquilo.
G: Daí, ela falou um monte para ele na rua. Ele falou que agente não estava
namorando , para ela porque a gente estava sim. Eu não vou apresentar
ninguém para ela deste jeito.
Z: Eles namoram e se encontram escondidos.
T1: O que é pior.
196
Z: É pior . Ela não fala nada para mim. Por isso, nosso desentendimento. Ela
não me ouve.
G: Ah mas eu tenho que me defender.
T1: Graça, você não acha que para levar um namorado para casa é importante
ter alguém lá, além de você.
G: Neste ponto sim.
T1: Eu penso que neste ponto sua mãe é cuidadosa com você. É bom uma
mãe que cuida. Como fazer ? Se você faz algumas artes por debaixo do pano
e sua mãe sente o cheiro, ela vai ficar muito nervosa. Mãe tem instinto.
Quando a situação não é clara, muitas vezes as mães tem xiliques e gritam.
Como fazer também para você não se sentir tão presa ? As vezes existe até
um certo prazer de deixar as mães loucas não é ?
G: Risadas. Eu acabei contando que eu estava namorando escondido.
T1: Bom que você foi transparente com ela .
Z: Mas ele foi lá, mas primeiro antes de ir em casa, ele foi no shopping com ele
a e levou ela para conhecer os parentes dele.
G: Eu conheci a mãe dele , a família. Eu conheci a família toda e ele queria
conhecer a minha família, mas eu que não queria por causa da minha mãe,
então nós fomos na família dele primeiro. Depois na sexta feira ele ia falar com
ela mas.... no Domingo....... depois ele acabou falando na sexta mesmo.
Z: Mas ele fez um papel errado. Primeiro ele levou ela, ela bateu o pé e foi
para o shopping sozinha.
T1: Um rapaz de 20 anos faz confusão ainda é muito jovem . Eu penso que
precisa conhecer, depois a família vai dizendo o que é importante. Pode ser
um bom rapaz.
Z: Ele é bem educado.
T2: Um rapaz que vai pedir autorização dos pais para namorar é raro.
Normalmente eles não fazem isso.
G: Eu também acho.
T2: Ele parece um rapaz que quer acertar , fazer direito.
T1: Como ele vem de outra família , deve ter costumes e modos diferentes de
fazer as coisas. Os costumes são diferentes.
G: Ele também é filho único. A mãe dele tem muito ciúmes dela. ( risadas)
T2: Você foi escolher bem este...... ( risadas)
197
G: A mãe dele também é um pouco brava. Ele mora só com ela.
Z: Ele falou que ia namorar até onde dava, porque ele queria formar uma
família.
T2: Ele fez tudo bonitinho para você Zenaide, gostar dele.
T1: Só que ele tem vinte e poucos anos , vamos com calma não é ? É melhor
não formar família antes não é ? ( risadas)
Z: Inclusive eu falei para ela do telefonema que ela tava .....
G: É que eu entrava naquele Chat Amizades, como eu não saia eu ficava no
computador. Eu tenho uma amiga que me chamava para ir na Lan house,
vocês sabem ?
T1e T2: Sabemos.
G: Para sair um pouco e como ele é da Igreja, ela me chamava e eu ia com
ela.
Z: Ela é da Igreja , mas fazia o mesmo , tudo escondido.
G: É lógico ninguém é santa..... Não é porque você vai à Igreja que você é
santa.
Z: Não é uma questão de Igreja ou religião que vocês faziam tudo escondido,
mentiam para as mães.
G: Ela tem a mesma idade que eu. Minha mãe não gostava dela. Ela ia me
chamar e minha mãe falava que eu não estava. E a única que é amiga porque
a rua que eu moro é comércio é não tem gente para ser amiga. Ela não
deixava eu sair, eu ficava em casa e queria conversar com alguém. Em casa
só a minha mãe e minha avó e a minha avó é doente e não conversa , ela fica
só deitada e minha mãe fica cuidando dela. Eu queria conversar então entrava
no Chat Amizade. E veio uma conta alta de telefone e depois ela começou a ir
no Conselho Tutelar e já melhorou um pouquinho. E agora aqui eu acho que
ela vai melhorar. O Chat Amizade eu não quero mais, hoje eu vejo que é
bobagem ficar falando com desconhecidos.
Z: Foi durante quase 6 meses que ela ficou direto. Ela nem comia. Eu falava e
ela nem ouvia e minha cabeça até doía.
G: Era birraça que eu fazia porque ela não deixava eu sair e não deixa eu fazer
amizades.
198
Z: E ela ficava até de madrugada , uma hora da manhã no celular e perdia a
hora na escola e sempre perdia a primeira aula e a professora não deixava
entrar na aula atrasada.
T1: A conta de telefone podia ficar tão alta?
Z: A conta de telefone dava R$ 700,00 reais e não dava para ficar sem comer
por causa do telefone. Eu vou parcelar por que eu tenho uma renda que o pai
dela deixou de R$ 3.000,00, mas temos muitos impostos e eu cuido de 3
pessoas e o gasto dela, ela gasta muito. Pra mim não, eu quero o melhor para
ela. Eu vou deixando eu. Eu vou sobrando.
T1: Você acha certo isso ?
Z: Não é ela me obriga a dar dinheiro e me ameaça dizendo que vai dizer que
eu deixo ela passar fome. Quando ela tem os piripaques dela.
G: Por isso que eu entrava no Chat Amizade. Eu ficava com raiva.
Z: Eu ensinei tudo que entra, tudo que sai, e que precisa pagar primeiro as
contas. A gente tem responsabilidade. A roupa é menos importante. Não
precisa comprar roupa todo mês. A gente compra uma vez por ano. O
importante é andar em dia com as contas, ser honesta e procurar não dever
para ninguém. Ela fala assim que o pai deixou tudo para ela.
G: Não falo assim.....
Z: Fala sim e me atinge.
T1: Como ele deixou ?
Z: No papel pode ser que seja dela , mas eu acho que eu tenho parte disso. Eu
sou mãe e pai. Que ela não sabe nada disso direito.
T2: Você é a chefe da casa.
Z: As pessoas acham que eu sou super forte para ser pai e mãe. Ela é uma
menina boa, educada e ela foi criada da melhor forma, ela ultrapassa um
pouco mas não muito.
T1: Ela olha e ri para você o tempo todo. Estamos na nossa hora. Até a
próxima sexta feira no mesmo horário.
FAMÍLIA CASTRO
199
2. SESSÃO DE ATENDIMENTO FAMILIAR – REALIZADA DIA 13/ 08/2004
NO CEAF.
Z: Tudo bem ?
T1e T2: Tudo e vocês ?
Z: Eu queria trazer as notas da escola, mas eu esqueci. Ela não queria ir para
a escola. Ela faltou 3 dias e no outro dia foi no médico.
T1: O que houve ?
Z: Ela foi no neurologista.
T2: Ela vai ao neurologista? Ela algum toma remédio?
Z: Ela toma sim, eu esqueci o nome.
G: É Neutrox, uma coisa assim.
T1: Por que o médico deu este remédio? Para que?
G: Ah... porque minha mãe falou que eu era nervosa; eu estou tomando todo
dia.
Z: Eu pedi um remédio para ela porque ela não tem muita concentração. Ela é
muito ansiosa e impaciente.
G: Eu sou ruim em matemática.
Z: Mas é para a ansiedade dela, para ter mais concentração, assim na .... o
que a professora pede. Daí eu passei ela, no neurologista e expliquei tudo o
que estava acontecendo.
T1: Seria bom trazer a bula. Será que não é Nootropil?
G: Ah é esse mesmo.
T1: Este remédio é para melhorar a circulação cerebral e a memória. É um
remédio bom.
T2: Você sentiu diferença ?
G: Na verdade , não.
T2: O que está acontecendo na escola ? Sua mãe está preocupada. Ela nos
ligou durante a semana preocupada com suas faltas na escola. Você sabe não
é ?
G: É, eu sei. Ah.... porque sei lá . É por causa daquele caso do meu
namorado.....ela falou tudo.......aquelas coisas para ele.
T1: Você não foi na escola porque está brava com ela ?
G: É . Eu não fui acho que dois dias.
200
Z: Não, você não foi na terça , na quarta, na quinta....
T1: E como está esta situação de faltas na escola?
G: Eu estou mal, mas eu consigo recuperar. Minha amiga me deu o caderno
para xerocar.
T1: Você quer recuperar?
G: Ah, eu quero.
T1: Mas se você recuperar sua mãe provavelmente vai ficar contente e aí? A
gente pode até pensar que se você passar de ano sua mãe fica feliz e é bom
para você , mas se você não passa , sua mãe fica nervosa e pode ser um jeito
de se vingar dela , então apesar de perder o ano você ganha por se vingar
dela.
G: Pode ser, mas eu não sei. Eu também estava nervosa e faltei.
T1: Me parece que você está muito brava com ela , é isto?
G: É, eu estou. Mas depois que eu fui ao médico eu fui para escola, agora eu
vou.
T1: Me parece que quando você não vai à escola você pune sua mãe. Como
você pode brigar com ela de outro jeito que não te prejudique tanto.
G: Ah , eu não sei.
T1: O que você poderia dizer para ela?
G: Ah não sei......
T2: Você já falou para ela o que foi tão grave ?
G: Ela sabe.....
T2: Será ?
Z: Eu fiquei muito brava com o rapaz. Não aceitei aquela atitude dele. Com
isso ele desapareceu. Ele desistiu dela. Duas vezes eles se desencontraram.
Uma vez ela foi ao shopping e ele ligou e não se encontraram e a outra de
novo. E ela chegou tarde.
G: Eu cheguei às quatro horas....
Z: Chegou tarde. Para mim é tarde.
T2: O que você acha que foi mais grave que sua mãe falou?
G: Ele queria conhecer ela e ela não devia ter dito aquilo tudo. Depois ela
conversava comigo. Mas ela fez escândalo .
Z: Pensa bem, eu cheguei do médico com minha mãe e vejo ele lá.
G: Mas.... não .....
201
Z: A primeira vez eu tratei ele bem. A segunda vez, que ele estava lá com ela
sozinha . Eu não aceito isso nunca. Eu sei que eu perdi o controle. Depois que
eu acalmei e pensei bem , eu sei que eu agi errado. Eu não devia ter me
alterado tanto.
T1: É possível consertar um pouco esta situação ?
G: Ah eu acho que sim. Mas ele não veio mais e disse que não vai mais na
minha casa.
T1: Você acha que se sua mãe permitisse que você namorasse em casa e
tivesse uma conversa com ele , teria possibilidade de volta?
G: Ah eu acho que sim.
T1: Eu penso que ele é homem precisa agüentar estas situações não é?
G: Eu acho que sim.
T2: Mas para isso acontecer, pelo que entendo, posso estar errada, a Zenaide
precisa aceitar o namoro. Ela fala que a Graça não pode namorar , mas ao
mesmo tempo ela sabe que ela pode namorar escondido. Escondido entre
aspas.
T1: Lena , eu penso que quando os pais batem o pé firme que não pode
namorar é o mesmo que dizer namore, para filhos desta idade. Como nas
histórias de amor. Quanto mais a família proibi maior é o amor. Quando a
família aceita o casal pode se centrar melhor no seu relacionamento e perceber
se é bom ou ruim aquele namoro.
Z: É isso parece que quanto mais eu falo “não”, mas eles querem e é
abertamente, um pouco é escondido. Se fosse escondido eu não saberia de
nada. E eu não posso fazer nada.
T1: Em termos de segurança dela o que você acha melhor que namore em
casa ou na rua ?
Z: Em casa , lógico.
T1: Eu também penso assim. Em casa se observa mais para conhece-lo.
Z: Eu nem conheço bem ele. Como ela fala que conhece ele. Eu vi duas vezes
. Uma delas nem deu certo.
Z: Eu conversei com ela assim que eu falei tudo aquilo para ele , mas eu acho
ele não deveria desistir do namoro por causa disso. Ele disse que não queria
causar problema entre eu e ela. Então disse que queria terminar na minha
202
frente. Eu disse que se ele achava melhor assim..... Só que eu vou te avisar
que eu não quero que vocês se encontrem escondidos.
T2: O que você acha , Zenaide dela namorar ?
Z: No começo, quando ela falava em namorar eu ficava , meu Deus..... mas
agora eu....... este rapaz veio pediu em namoro ..... mas não deu certo. Ele
parece que deu mancada. No segundo dia ele deu mancada, eu encontrei ele
lá.
T2: Não deu certo?
G: Para quem ?
Z: Eu quero dizer o seguinte, a questão de namorar, eu não queria que
namorasse agora , ela é tão jovem ainda. Eu queria que terminasse os
estudos. Já que ela tem dificuldade nos estudos e começa a namorar firme ela
vai se desconcentrar mais ainda na escola.
T2: Mas namorar firme é outra coisa.
Z: Ela não sabe separar, a escola e o namoro. Ela mistura tudo.
T1: Ela pode aprender. Ela está na idade de poder aprender na escola e na
vida. Tem muita gente que namora e estuda.
T2: É importante aprender a namorar , trabalhar , estudar . Será que você
Zenaide não pode ajudar a ensinar isso à ela ?
Z: Ela precisa aprender. Não sei se ela aprende.
T2: Por que você acha que ela não aprende isso ?
Z: Eu acho que ela não tem muita vontade e esforço de estudar. Eu preciso
pegar no pé dela sempre.
T1: Eu penso que namorar e estudar são coisas boas e diferentes.
Relacionamento é muito importante . Ter um namoradinho, um amor, esse
aprendizado é muito importante na vida. Se não a vida fica vazia. É muito bom
gostar de alguém. Por que será que você não conciliaria a vida amorosa com
sua vida de estudante ? O que vocês pensam?
G: Ah eu acho que sei dividir .
T1: Você, Graça conversa com sua mãe o que você quer no futuro?
G: De vez em quando.
T1: O que você pensa para você ?
G: Eu gostaria de ser veterinária.
T1: Por que ?
203
G: Eu gosto muito de cachorros e animais.
T2: É uma profissão médica. Precisa estudar muito para entrar. Normalmente
são bichos doentes , precisa dar injeção..... você agüenta sangue?
T1: Eu penso que muito agente acostuma a agüenta.
Amigas minhas que filhos estão fazendo medicina, contam que no início não
toleravam sangue e agora estão acostumados. Você gosta de cuidar da
doença dos animais?
G: Não sei, acho que não.
T1: Será isso então ?
G: Ih! não sei, não pensei nisso.
T2: Existe muitos ramos na medicina veterinária. Alimentação, cuidados de
produção animal. Tem mais alguma coisa que te interessa?
G: Uma outra coisa que eu penso é advogada. Mas eu acho que não é bom
para mim.
T1: Por que ?
G: Porque não. Ah sei lá. Porque eu acho muito complicado.
T1: Qual seria a complicação?
G: Tem que estudar bastante para entrar.
T1: Talvez da mesma forma que veterinária. Você esta escolhendo o curso
para estudar menos ou mais ? ou pelo seu talento ?
G: Acho que eu estou pensando agora.
T1: Eu penso que quando a gente não tem idéia do que quer , e não tem um
objetivo é difícil querer estudar e planejar algo.
T2: Eu acho que a gente agüenta melhor as partes chatas para chegar lá.
Quando a gente não sabe o quer, as vezes deixa um amor tomar todo o
espaço na vida da gente. Quando eu tinha um bom professor, me interessava
mais pela matéria. Quais professores que você gosta na escola ?
G: Tem o de português e matemática. Eu acho matemática muito complicada.
Z: Eu coloquei ela nesta escola faz dois anos, que é perto de casa . Só que
tem poucos alunos.
T1: Você acha ruim , Graça ?
G: Na minha outra escola tinham 46 alunos e depois eu fui para esta escola
com 6 alunos.
T2: O que você pensa sobre isto, gostaria de mudar de escola?
204
Z: Ela vai para a mesma escola que ela estudou na Lapa, lá tem o Colegial. É
perto de casa.
G: Lá na Lapa tem as amigas que eram de lá.
T1: Por que mudou de escola?
Z: A da Lapa fechou , acabou e mudou para mais longe. Tinha que pagar a
perua.
T2: E agora não é tão longe ?
Z: Eu vou mudar ela para lá, para ela sentir melhor. Lá ela tem mais colegas.
Ela quer também.
T1: Realmente, uma escola maior pode ser bom para fazer mais amigos.
T2: Na idade dela, a escola tem também a função social.
Z: Quando ela estava na primeira série, ela teve que fazer acompanhamento
com psicólogo, foi uma fase difícil. Ela entrou na escola e teve dificuldade de
relacionamento. Eu esqueci de contar. Foi logo no início, depois da morte do
pai.
T2: Qual dificuldade?
Z: Ela ficava muito quieta. Ela se sentia assim....... no canto sozinha......
T2: É bem compreensível já que ela tinha perdido o pai. Ela melhorou depois
com o tratamento ?
Z: Ela fez três anos de terapia. Ela melhorou nestes 3 anos. No começo ela
não falava do pai, até a psicóloga disse: ela não falava nada do pai. Ela viu ele
morrendo Eu acho que ela ficou com trauma.
T1: Antigamente o doente adoecia e morria em casa, a família ficava perto,
acompanhava, hoje morre-se no hospital. Era mais natural, nascia-se em
casa e morria-se em casa. Atualmente muitas pessoas preocupam da criança
ver o parente morto para não traumatizar. Acho isso curioso. O que será que
mais traumatizou ? Perder o pai não é fácil.
Z: Ela sentiu muita falta dele, ela não teve outra figura masculina dentro de
casa.
T1: Quando você diz que ela não teve uma figura masculina dentro de casa, o
que você quer dizer?
Z: Eu acho que a figura do pai e da mãe é importante na formação, no
crescimento da criança e ela teve ele até 5 anos. Ela sentiu falta.
T1: E você ?
205
Z: Ah eu também, muita falta porque ele era ótima pessoa. Quando ela tomar o
rumo da vida dela......... quando arrumar alguém que de valor para ela..... que
goste dela...... espero que eu goste.......
T2: E você também pensa em alguém que goste de você ?
Z: Eu não. Eu sou medrosa. Eu não poria um homem em casa, com ela
mocinha, jovem. Eu tenho medo.
T2: Você acha que não poderia ter um homem que você possa confiar ?
Z: Ela fala isso. Mas eu não confio em ninguém.
T2: Você diz que teve uma boa experiência com seu marido .
Z: Mas justamente por isso , por ele ser uma pessoa boa que eu não vou
encontrar uma pessoa como ele , que respeita assim....
T1: Eu penso que não sei que histórias , a Zenaide tem para contar , mas eu
acho que ela já escolheu um bom homem uma vez , será que ela não
escolheria bem novamente?
T1: Existem padrastos que não são bons, mas existem outros que são.
Existem muitas histórias tristes de abuso de padrastos.... que homens você já
viu ou ouviu falar que não merecem confiança.
Z: Eu não tive ninguém. Eu já tive uma decepção com um rapaz que eu
gostava muito.
T2: Que decepção ?
Z: Ah....tinha muito obstáculo. Quando eu via ele , minhas pernas tremiam. Ele
trabalhava na M.......... Ele não gostava de mim. ( choro)
T2: Você já contou para sua filha ?
Z: Não eu achei que não era necessário. Eu falo para ela que a gente sofre
muito quando ama alguém. A gente sofre mais do que eles . Quando a gente
se apaixona ....Eu gostava muito dele. Não é bom a mulher gostar mais do
homem que ele dela. Os dois tem que gostar igual.
T1: Como você ficou Zenaide quando não deu certo?
Z: Demorou para mim apagar tudo aquilo, cicatrizar feridas. Hoje eu tenho
lembranças que não me afetam muito.
T1: Foi sua maior paixão?
Z: Foi.... triste...
T2: Mas ele te decepcionou tanto assim?
206
Z: Muito. Ele era muito mulherengo. Ele começou a namorar outra e foi morar
coma outra. Foi um choque. É muito ruim. Eu fiquei depois um bom tempo
sozinha e depois eu conheci o pai dela. Nós éramos do mesmo signo. A gente
se dava bem. Nasceu ela. Foi uma coisa muito importante na vida dele e na
minha. Para ele foi tão importante. Ele ficou com ela só 5anos e não pode ver
o crescimento dela. Ele ficava o dia com ela.
T1: Estes 5 anos que você foi tão amada pelo pai, você se dá conta?
G: Eu lembro um pouco.
T1: Eu penso que essa experiência pode te ajudar a encontrar pessoas que
gostem de você.
Z: Este namorado dela viaja muito, pelo trabalho e ontem ela estava
preocupada que ele estava no litoral.
T1: Você não confia nele?
G: Não . ( risada)
T1: Você acha que ele é mulherengo ?
G: Um pouco.
T1: Então toma cuidado.
G: Eu não sei o que ele faz por lá. Ele viaja por trabalho . Ele sempre trabalha.
T2: Que trabalho ?
G: Ele instala ar-condicionado.
T2: Para você confiar é importante?
G: É muito.
T2: Você ficaria com alguém que não confia ?
G: Não.
T1: Eu penso que confiança é uma construção, vai aos pouquinhos.
T2: Se eu fico tensa o tempo todo porque eu não posso confiar pode ser uma
roubada. O relacionamento precisa deixar a gente bem. O amor precisa deixar
a gente melhor e não pior.
T1: Quando a gente ama , a gente sofre , sente medo de perder, sofre quando
o outro está triste. Eu acho que faz parte. Quem ama é corajoso. Existe uma
entrega , um risco, mas com muitos ganhos também. A gente muda muito,
aprende com outro.
T2: E como está este namoro à revelia de sua mãe?
G: Bem tranqüilo.
207
T1: Eu acho Lena, que não é à revelia da Zenaide.....
T2: Eu não entendi ainda até que ponto a Zenaide tem pulso firme ou a Graça
faz o que quer.
Z: Ah eu não gosto muito de falar mas... a gente começa a bater boca e a gritar
e eu sempre digo que escola é importante mas ela que decide. Os diretores da
escola já me disseram que eu tenho que ter autoridade. Eles pensam que
quem manda é a Graça.
T2: O que você acha ?
Z: Eu acho que a Graça quer passar por cima da minha autoridade. Ela não
quer ser mandada por alguém. Ela quer fazer o que quer. Então a gente fica
assim eu quero uma coisa e ela outra. A gente briga.
T2: Vocês duas são agressivas?
Z: Ela é agressiva com palavras, fala alto. E eu, também falo alto.
T1: Como era você com sua mãe?
Z: Ela dizia que eu era nervosa, que eu chorava , fazia birra. Mas com a idade
dela eu era uma menina adolescente calma Quem era rebelde era minha irmã
e sempre deu problema para minha mãe. Na minha criação era o seguinte da
escola agente ia para a roça trabalhar , ajudar a família na roça. Eu as vezes
não queria fazer o serviço e aí..... apanhei demais, mas eu agradeço. Sabe,
não saía sangue, era com vara de marmelo, não ficava hematomas , mas
minha mãe lavava com água e sal. Eu sentia que era amor. Minha mãe me
educava muito bem Eu aprendi muito.
T1: Seu pai também batia?
Z: Não batia, mas não deixava passar nada, era pulso forte.
( acabou a fita e a sessão também termina após 2 minutos)
FAMÍLIA CASTRO
3. SESSÃO DE ATENDIMENTO FAMILIAR – REALIZADA DIA 20/ 08/2004
NO CEAF.
208
T2: Como foi a semana ? Tudo bem? Você foi à escola , Graça?
G: Ah, eu fui um pouco. Está mais ou menos.
T2: Como é o mais ou menos?
G: Eu estou aprendendo ....assim umas matérias......
T2: Como é ? não estou entendendo.
T2: As pessoas te ajudam lá?
G: Me ajudam....
T2: Você está se esforçando?
G: Estou.....
T2: Sua mãe continua dizendo para fazer lição ?
G: Continua.
T2: O que acontece Zenaide?
Z: Acontece que eu li na agenda dela. A professora disse que ela não fez a
lição de casa. Eu peguei no pé dela.
T2: Então aquele combinado de que a lição é dela não funcionou?
T1: Lena a Zenaide foi mexer nas coisas para ver.
Z: Eu vi numa agenda dela .......e ai......Eu quero ver ela bem. Agente está
conversando mais e não está mais aquele conflito que agente tinha. Eu acho
que melhorou um pouco.
T2: Está mais fácil conversar com sua mãe, Graça?
G: Um pouco.
T2: Quando ela pega a sua agenda.....
G: Eu me sinto mal......
T2: Com é sentir mal?
G: Eu não fiz a lição dois dias, mais eu esqueci de fazer lição e não é para ela
mexer....
T2: O que você Zenaide acha que mudou?
Z: Ah.....eu sinto que melhorou , ela gritava e eu alterava e as duas não
conversavam. E ficava uma bagunça, as duas ficavam tristes aborrecidas e
acabava o nosso dia.
T1: Como ficou aquela questão com o namorado?
209
Z: Eu acabei assim.... como ela falou para mim que está se encontrando com
ele , eu acho que eu não tenho o que fazer. Se eu for atrás dele e falar um
monte.... o que eu queria falar para ele eu já falei. As duas vezes que ele foi
em casa , a primeira vez pediu ela em namoro depois veio para desistir e
houve aquele episódio lá....... Eu disse que se ele achava melhor assim.....se
ele encontrasse ela escondida..... Ela continua encontrando ele escondido,
falando com ele.
T1: Se você Zenaide sabe que estão se encontrando porque não deixar eles se
encontrarem na casa de vocês? Namorar em casa e não na rua ?
Z: Mas acontece que quando eu falo assim......... que vou ligar ela fica brava
........ diz que não quer que eu estrague o namoro.
T2: Me parece que você está aceitando este namoro, não é? Talvéz a
contragosto....
Z: Ela esta encontrando às escondidas o que eu posso fazer?
T1: Não sei se é tão escondido!
Z: É, ela falou que estava se encontrando com ele.
T1: Bom ! que ela está falando verdade.
Z: Eu falo para ela que eu não quero nem saber, que se ele quiser falar
comigo novamente, eu vou ouvir ele e colocar a minha regra para ela e se ele
gostar realmente de você ele vai falar comigo.
T1: Hoje em dia mudou, eles se comunicam por celular e é difícil ligarem para
o telefone da casa. Assim nós pais não sabemos quem são os novos
amigos..... Acho bom falar pelo telefone, ouvir a voz dos Amigos dos filhos
T2: Eu sinto que a Zenaide deixa mas não deixa. Graça está namorando e ao
mesmo tempo não está....
G: Eu estou namorando.
T1: Como está este namoro? Você gosta dele?
G: Está bom . Eu gosto.
T2: Você acha ele um cara legal ?
G: Eu acho que é.
T2: O que é legal ?
G: Como assim ?
T2: O que te atrai nele?
G: Não sei.
210
T2: O que você acha bacana nele?
G: Ele me trata bem.
T1: Que características, que coisas um namorado deve ter para ser um bom
namorado?
G: Ele é diferente dos amigos da escola. Os amigos da escola gostam de zoar.
Ficam agarrando. Ele é mais sério.
T2: Sua mãe já conversou com você sobre os cuidados que deve ter no
namoro?
Z: Eu já falei abertamente , o português declarado.
T2: O que você falou abertamente?
Z: Para ter cuidado com a gravidez. Se um dia ela for “transar” como se diz aí,
eu falo para ela ter o máximo de cuidado, porque na primeira vez já pode correr
o risco de uma gravidez sem querer.
T1: É dito claramente como fazer ? o que tomar ....
Z: Ela vai no ginecologista pela primeira vez na segunda feira , agora. Eu devia
ter levado ela quando teve a primeira menstruação , mas eu estava mais
preocupada com os problemas que passou. Agora ela vai. Quando agente esta
em conflito ela fala para mim: : eu não sou de você.....Aquilo me machucava
muito. Eu sei disso que os filhos não são pra gente. Aquilo me machucava
muito. Eu não queria que ela falasse daquela maneira, me afeta.
T1: O que te incomodava mais nesta fala.
Z: Ela falava muito claro e agressiva. “Eu não sou sua.”
T1: Me parece também que ela está dizendo que não é grudada.
Vocês não são grudadas, ou são?
T2: Muitas vezes a gente lida com os filhos como se eles fossem
pequenininhos...
T1: É bom que os filhos nos dão uns toques importantes neste sentido. Senão
muitas vezes agente segura demais. Meus filhos me dão bons toques neste
sentido. As vezes a gente quer os filhos em casa e daí .... eu as vezes insisto
para que eles fiquem almocem em casa e eles falam: mãe , hoje é sábado vou
almoçar com amigos..... e eu já falei: nossa bem hoje que eu fiz um prato que
você gosta para você ..... é chantagem....precisamos evitar isso.
T2: O que você está sentindo atualmente , Graça? Sua mãe, ela te trata como
pequena ou está mudando?
211
G: Ela me trata como pequena. Eu fiz 16 anos.
T2: As vezes a gente gosta também de ficar pequena, ser tratada como
pequena.
G: Eu não gosto. ( risadas)
T1: Mas quando a gente é tratada como pequena existem vantagens. A mãe
faz as coisas da casa , faz tudo pra gente.
G: É .... ( risadas).
T1: Acho que você , Graça participa de um jogo de continuar a ser criança,
junto com a mamãe.
Z: Esta fase de adolescente está sendo muito difícil para mim. Quando ela fala
estas coisas para mim é difícil. Porque ...... bom...... é que ......quando entrou
uma diretora nova na escola dela , eles achavam que ela não era minha filha
porque ela é clara como o pai. Sempre acharam que eu era a empregada dela.
T1: Nesta escola?
Z: É.
T1: Então é difícil esta escola para você também.
Z: É eu gostava mais da escola Adventista . A outra.
T1: Então eu estou entendendo que a Graça não vai à escola também por isso.
Faz sentido Graça ?
G: Ah ....também......
Z: Eu contei aqui já que eu não gosto de sair e quando ela era pequena a
gente ficava muito em casa e então eu errei de não deixar ela ter amizades e
na adolescência. Ela tinha as amizades da escola.
T2: É bom ela ter amizades e você também.
T1: Você tem amigas ?
Z: Algumas na Igreja.
T1: O que você faz quando ela não está em casa ? O que você gosta de fazer?
Z:Nunca gostei de sair. Eu fico em casa, eu gosto muito de ler. O tempo que
eu tenho livre eu dedico lendo. Ela levou outro dia uma amiga da escola para
dormir em casa. Depois ela foi na casa da amiga no outro dia. Mas daí, elas
iam no shopping e depois ela não ligou e elas não foram.
G: O programa mudou , nós ficamos na casa da minha amiga.
Z: Mas eu pensava que ela estava no shopping.
T2: Você gostaria que ela tivesse avisado, é isso?
212
Z: Claro. Eu depois que comecei a terapia eu achei que estou sendo egoísta .
Eu preciso abrir um espaço para ela se divertir um pouco.
T1: Parece que você deixou este programa com a amiga.
Z: É eu deixei. Eu não posso deixar também minha mãe sozinha. As vezes eu
saio com minha mãe, a gente faz uma compra , espairece um pouco.
T1: Você tem irmãs que moram perto?
Z: Tenho uma que mora pertinho de casa.
T1: Tem outras tias do lado do pai?
Z: Tem dois. Eram 4 irmãos mas faleceram uma irmã mais velha e ele e agora
tem dois que moram em Portugal. Em Caiscais.
T1: Então os tios do lado de seu pai você não tem contato?
G: Não, eles todos estão em Portugal.
T1: Vocês se comunicam?
Z: Não tem um primo que mudou de endereço lá. Eu preciso escrever para lá.
T1: Graça , você tem primas de sua idade ?
G: Eu não sei.
T2: E do lado de sua mãe?
G: Tem uma tia que tem filhos e mora em Osasco. Tem filhos mais velhos.
T1: Não tem ninguém da sua geração.
G: Não.
Z: O pai dela era loiro quando pequeno e ela também.
T1: No que seu pai trabalhava ?
Z: Ele tinha loja de bolsas guarda-chuvas. Quando ela nasceu ele não tinha
mais. Ele aposentou como autônomo. Ele nunca trabalhou como empregado ,
sempre teve seu próprio negócio.
T1: E em Portugal a família trabalha em quê ?
Z: A família trabalhava com comércio. Uma venda.
T2: Por que ele veio para o Brasil?
Z: Ele veio sozinho com 14 anos para Belém do Para. Ele trabalhou e se virou
sozinho. Ele tinha tios no Brasil. Só ele veio. Ele contava que trabalhou no
navio colocando carvão. Depois ele trabalhou tipo camelô vendendo os
produtos dele. Ele fazia e vendia aos produtos.
213
T1: Quer dizer Zenaide, que você tão caseira , se casou com um homem que
com pouca idade atravessou os mares e veio fazer a vida aqui. Corajoso ele,
não?
Z: Ele estava planejando me levar e a menina para ir para Portugal e não deu
tempo.A mãe dele já tinha morrido quando agente se casou. E o pai também. A
primeira mulher dele também morreu cedo. Ela vivia constantemente doente
acho que ela era diabética., não sei bem.
T1: Você sabe do que morreu a mãe dele, a avó da Graça?
Z: Eu não sei , ela era velha.
T1: Ele via a mãe com alguma freqüência?
Z: Eu acho que sim.
T1: E você que fica tão perto de sua mãe e de sua filha, o que você pensa
sobre isto?
Z: Ele foi visitar ela antes de morrer, logo que ele voltou veio o telegrama da
morte dela. Foi triste. Ele foi uma vez só vê-la. Depois a gente se casou. Eu
trabalhava na M........ e só saí do trabalho porque ele quis, para cuidar da
menina. Quando eu conheci ele, ele já era caseiro. Ele contava uma história
que um dia ele se perdeu em uma mata e teve que comer macaco.( risadas).
E eu conto estas histórias legais que ele contava. Eram tão legais. Ele contava
que era sócio do Silvio Santos. Eles eram camelôs e sempre trabalhou por
conta. O Silvio Santos e ele eram amigos e ele contava as histórias do Silvio
Santos.
T2: Você tem fotos deles. Gostaríamos que vocês trouxessem fotos para
montarmos um mapa da família.
T1: A família do pai da Graça trabalha também com comércio atualmente?
Z: Não sei bem . Não sei se o irmão caçula trabalha com comércio , mas o
primo dele trabalhava com loja de peças de computador. O irmão caçula do pai
dela veio ver o irmão quando ele estava doente e foi quando eu conheci ele.
Ela era bem pequena.
T2: Vocês não mantém nenhum contato com esta família em Portugal ?
Z: Eu tinha até o ano passado. Eu até preciso falar com eles. Eu vou escrever,
o endereço eu tenho, mas não tenho o telefone.
T1: Eles são simpáticos com vocês nas cartas?
Z: São , chamavam eu de tia , me consideravam muito.
214
T2: A Graça pode um dia visitar esta família. Ir à Portugal não é difícil.
T1: Será Lena que não estamos assustando a família ? se é difícil a Zenaide
deixar a Graça sair com amigas imagine só ir a Portugal. Como se a Graça
pudesse ter herdado o sangue aventuroso do pai e tivesse vontade de se
aventurar mais.
( risadas)
Z: Antes de falar isso, se ela não tem este sangue de aventura , eu pensava
mas não falava. Eu sei que ela gosta de aventura. Ela tem o sangue dele.
Graças a ele que a gente tem o que tem. Ele sofreu, mas conseguiu muitas
coisas.
T1: Mas você tem mantido estes bens e isso também é importante.
Z: Eu na época não queria sair do meu trabalho. Eu estava com 11 anos de
firma. Eu nunca faltava. Até grávida eu não faltava. Quando pedi para sair as
pessoas perguntavam por que ? Eu falei que queria ficar com a minha filha e
eles diziam que eu deveria deixar na creche. Lá tinha creche. Mas ele queria
que eu ficasse em casa e eu também.
T1: Quer dizer raça que você tem muito sangue de comércio na família!
T2: Parece que a Graça quer algo diferente, ser veterinária .
T1: As mulheres da sua família estudaram , Graça?
G: Não sei, minha mãe estudou até a oitava série.
Z: O pai dela não construiu nem a quarta série. Ele sabia ler e escrever e tinha
uma inteligência......
T1: O que você pensa sobre isso, Graça?
G: Eu não penso nisso.
T1: Eu já vi muitos filhos quererem seguir o caminho dos pais, e não
atualizarem este trajeto. Fazer de forma igual como se o tempo fosse o
mesmo. Se os pais estudaram é mais fácil estudar se não, parece que fica
difícil fazer um outro caminho. As vezes não podem ser mais que os pais. Os
tempos são outros, antigamente muita gente não estudava.....
T2: Algumas famílias como a minha que eram imigrantes e não puderam
estudar, fizeram questão dos filhos estudarem . Era o maior valor.
Z: Meu marido não era de estudar mas se ele estivesse aqui conosco ele
gostaria que ela estudasse. Ela é relaxada para estudar. Eu acho que como ela
tem a herança dela ela não pensa em estudar e trabalhar. Quando ela fizer 18
215
anos ela recebe tudo que o pai deixou. Esse assunto é muito difícil. É o nosso
maior problema.
T1: Nós estamos encima da hora mas conversaremos sobre isso na próxima
sessão.
FAMÍLIA CASTRO
4. SESSÃO DE ATENDIMENTO FAMILIAR – REALIZADA DIA 17/ 09/2004
NO CEAF. ( trecho da sessão)
Z: O maior problema foi o inventário dele. Toda a herança dele ficou para ela.
T2: Por que ficou tudo para ela ?
Z: Eu não sei porque quem fez o inventário foi o advogado. Ele não deixou
nenhum testamento. Você entende. Só tem o registro que ele registrou ela no
nome dele. Segundo o advogado que fez o inventário , ele diz que quando eu
fui morar com o pai dela, eu não tinha nada. De fato eu não tinha nada, só meu
trabalho. Eu não construí nada com ele , ele já tinha tudo. Eu não fui lá por
interesse. Ele mesmo registrou. E você contou na porta da semana passada
que isto era motivo de dificuldade entre vocês , é isso ?
Z: É de fato porque ele deixou tudo para ela e ela diz quando agente briga que
vai embora e vai levar o dinheiro com ela. Eu sempre cuidei da casa e não me
não sabia nada de senha de banco e de dinheiro. Tudo era dele e dela. Eu
sabia que ele tinha conta em banco. Quando foi fazer o inventário o advogado
fez tudo junto no Banco do Fórum e ela pode tirar.
T1: Ela sabe quanto ela tem ?
Z: Não , mas ela sabe que tem e quando fizer 18 anos ela pode tirar. Se tiver
lá.
O advogado fez o inventário e ficou tomando conta dos bens, por que ele era
também da Imobiliária. Eu confiava nele , eu não tina malícia. Assim confiei e
guardei e um dia eu li e vi que estava lá tudo no nome dela e eu era a
inventariante e eu estranhei e não colocou meu nome como usufruto meu e
estava tudo no nome da menina. Fui perguntar para ele e ele disse que como
ele não deixou testamento e disse que eu fui morar com ele , ele já tinha tudo.
T1: Pelos anos junto você não teria direito?
216
Z: Eu pensei mas.......
T1: Você já consultou outro ?
Z: Este advogado depois de 9 anos ele me tratava ( choro) ..... é difícil para
mim , você entendem? Eu confiei nele e fiquei com ele por 9 anos. No início
ele tratava bem depois ele me agredia com palavras.
T1: Como?
Z: Eu ia receber os aluguéis e ele dizia que eu só ia receber e me tratava mal.
Ele cobrava 10% dos aluguéis.
T2: Teve alguma coisa que ele falou que te ofendeu?
Z: Teve um inquilino que não pagava e não saía e eu falei que preferia que ele
saísse para alugar para outro, porque a gente precisava de dinheiro. Ele fez
uma procuração eu fui assinar e disse que era para o inventário e era uma
procuração pública e eu vi os maus tratos e confiei nele e ele me agredia. Eu
cancelei a procuração.
T1: Desapareceu algum imóvel?
Z: Não. No banco eu não sei. Ele nunca falou que tinha que colocar os
impostos no nome dela. Eu coloquei tudo no nome dele. Este inquilino não
pagava e agente ficou com dívidas e eu fui assaltada no dia que recebi o
aluguel do mês e complicou demais a vida e fiquei devendo e atrasei os
imposto e a minha vida virou de perna para o ar. Eu pedi para ele ver se ele
não podia fazer um levantamento do dinheiro dela e retirar cinco mil reais para
tirar agente do sufoco e ele foi lá e fez. Retirou o dinheiro e disse que eu tinha
que prestar contas para mostrar para o juiz , por que o dinheiro é da menina.
Com esse dinheiro eu pus a vida em ordem. Eu tinha todas as notas. Mas eu
fiquei com dívidas dos impostos. A minha casa, eu estava terminando. Mas eu
não apresentei nada para o juiz , porque eu não sabia direito e veio uma
intimação da Delegacia para mim. Eu nunca tive problema assim. Eu fiquei
apavorada. Eu fui lá saber antes o que era. A moça lá falou que eu iria precisar
de um advogado. Eu disse que já tinha um e ela perguntou se ele tinha uma
procuração minha e eu confirmei daí ela disse que ele estava alegando que eu
não podia cuidar da minha filha. Eu fiquei nervosa mas disse que como era
isso ? se quando ele era pequena eu podia e agora com 15 anos não podia
mais ? Eu fui falar com o advogado e ele ficou nervoso e eu disse que como
217
meu advogado ele precisa comparecer comigo no dia marcado da intimação.
Daí eu fiquei com medo e contratei outro advogado.
T1: E como foi isso ?
Z: Eu fiquei com medo dele me por na prisão. Arrumei um advogado da Igreja.
E no dia o primeiro advogado disse que ele não poderia ir e que tinha mudado
o dia da audiência. O advogado novo achou estranho desmarcar na última
hora. Daí nos fomos no outro dia e ele mandou outro advogado no lugar. Lá a
escrevente perguntou muita coisa desde quando eu morei com ele ( marido) e
tal e levou para o Juiz. Lá eu perguntei porque ele disse que eu não podia
cuidar da minha filha. Não de maneira alguma e a escrevente disse que não
tinha falado nada.
T1: Qual o objetivo da audiência ?
Z: Para eu prestar contas do dinheiro dela. O advogado queria me incriminar
Para pegar as coisas dela no nome dele. Agora este novo advogado era
esquisito , ai gente eu não confio em mais ninguém.
G: Ele mandava a mulher dele me seguir .
T2: Como assim.
G: Um dia eu estava na rua com a minha amiga e choveu e nós ficamos
molhadas e aí ele viu e falou que eu a minha amiga estávamos na rua drogada.
Z: Esse segundo advogado era conhecido da minha irmã e a mulher dele
amiga da minha irmã e ela falou para minha irmã que minha filha estava
drogadinha na rua .
G: Eu estava na rua com a minha amiga da Igreja e nós estávamos alegres de
estar ensopadas.
T1: E agora?
T2: Vocês checaram se os imóveis e contas bancárias estão certas?
Z: Eu não confio mais em advogados. Eu vou no Fórum para ver as coisas se
estão certas. As moças lá do Fórum não deixava eu ver nem o extrato
bancário. Porque disse que não poderia dar estrato. Essa esta história me
deixa muito mal eu não conto nada para ninguém.
218
TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO.
Eu,...........................................................................RGno,.................................
Residente à.........................................................................................................
n.................. autorizo a utilização dos dados de ( tipo registro: gravação em fita
cassete das sessões de terapia familiar) pela terapeuta / pesquisadora Suzanna
Amarante Levy RG 7494946, para fins de ensino , pesquisa das relações
familiares.
Declaro estar ciente de que:
1- a participação nessa pesquisa consiste em estar presente nos
atendimentos e é voluntária;
2-
todo material transcrito e gravado é absolutamente sigiloso, enquanto
houver quaisquer possibilidade de identificação;
3- qualquer publicação deste material excluirá toda informação que permita
minha identificação por parte de terceiros;
4- posso encerrar minha participação no trabalho de pesquisa a qualquer
momento que julgue necessário;
5- posso encerrar minha participação no trabalho de pesquisa e continuar
o processo terapêutico;
6- serei convidado para conversar e refletir sobre os resultados da
pesquisa;
7- posso ter mais sessões de atendimento caso necessite.
São Paulo, .......... de ........................... de 2004
..............................................................
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