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Thiago Leandro Vieira Cavalcante
Tomé
O apóstolo da América
Índios e jesuítas em uma história de apropriações e ressignifi cações
Editora UFGD
DOURADOS-MS, 2009
Universidade Federal da Grande Dourados
Reitor: Damião Duque de Farias
Vice-Reitor: Wedson Desidério Fernandes
COED
Coordenador Editorial da UFGD: Edvaldo Cesar Moretti
Técnico de Apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho
Conselho Editorial da UFGD
Adáuto de Oliveira Souza
Edvaldo Cesar Moretti
Lisandra Pereira Lamoso
Reinaldo dos Santos
Rita de Cássia Pacheco Limberti
Wedson Desidério Fernandes
Fábio Edir dos Santos Costa
Imagem da capa: Reprodução da obra “A incredulidade de São Tomé”
(1601-1602) do italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio. [óleo sobre
tela (106,9x146,05cm) Palais, Potsdam, Alemanha].
Origem da obra: Dissertação de Mestrado em História intitulada “Apro-
priações e Ressignificações do Mito do São Tomé na América: a inclusão
do índio na cosmologia cristã”, defendida em 2008 no PPGH da UFGD.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central – UFGD
981.03
C376t
Cavalcante, Thiago Leandro Vieira
Tomé: o apóstolo da América. Indíos e Jesuítas em
uma história de apropriações e ressignifi cações. /
Thiago Leandro Vieira Cavalcante. – Dourados, MS:
UFGD, 2009.
200p.
ISBN 978-85-61228-48-4
1. Missões Jesuíticas – Brasil. 2. História cultural.
3. História indígena. 4. São Tomé – Pregação do evangelho
- Indígena. I. Título.
Direitos reservados à
Editora da Universidade Federal da Grande Dourados
Rua João Rosa Goes, 1761
Vila Progresso – Caixa Postal 322
CEP – 79825-070 Dourados-MS
Fone: (67) 3411-3622
www.ufgd.edu.br
Dedico este livro para
aqueles que ao longo
da vida me ajudaram a
escrever esta história...
Meus pais Gideão e
Valdeineide
Minha tia Valdinete
Minha esposa Aline
Sumário
Prefácio – Graciela Chamorro .............................................................
Introdução .............................................................................................
I – O SÃO TOMÉ AMERICANO ........................................................
1.1 Por que São Tomé? Precedentes ...........................................
1.2 A difusão do mito pela América ............................................
1.3 O mestre de conhecimentos úteis: a mandioca como dádiva
apostólica ..............................................................................
1.4 O pregador do deus único .....................................................
1.5 O apóstolo taumaturgo ..........................................................
1.6 Metamorfose mítica e o temperamento do apóstolo .............
1.7 São Tomé no Peru e a cruz de Carabuco ...............................
1.8 As pegadas do apóstolo .........................................................
1.9 Os caminhos do apóstolo: São Tomé engenheiro e algumas
hipóteses levantadas ..............................................................
1.10 Permanências contemporâneas ...........................................
1.11 O Sumé de Varnhagen e a política de integração dos
povos indígenas ...................................................................
II – “UMA NOVA HUMANIDADE”: A INCLUSÃO DO “OUTRO”
NA COSMOLOGIA CRISTÃ ......................................................
2.1 O conceitual mitológico ........................................................
2.2 Sumé: mito indígena? ............................................................
2.2.1 Abordagem antropológica ...........................................
2.2.2 A abordagem historiográfi ca .......................................
2.3 A espiritualidade medieval-renascentista como inspiradora
de relações de “circulação cultural” ......................................
2.4 A inclusão do indígena na cosmologia judaico-cristã ...........
2.5 A inclusão do indígena na economia da salvação cristã ........
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III – “SUCESSORES DE SÃO TOMÉ”: APROPRIAÇÕES
JESUÍTICAS NO ANTIGO GUAIRÁ .......................................
3.1 O Guairá ................................................................................
3.2 O Guairá Missioneiro ............................................................
3.3 Padre Antônio Ruiz de Montoya e sua “Conquista
Espiritual” .............................................................................
3.3.1 Contexto da produção da “Conquista Espiritual” e
seu caráter ufânico ......................................................
3.4 Jesuítas, sucessores de São Tomé .........................................
3.5 Os paradigmas dos mitos de retorno ....................................
CONCLUSÃO .....................................................................................
REFERÊNCIAS ...................................................................................
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139
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186
11
Prefácio
Pa’i Sumé terã São Tomé pypore rekávo
1
Um relato bastante recorrente nas Novas Terras, nos séculos
XVI e XVII, tem como protagonista um dos apóstolos de Jesus: Tomé.
Foram, sobretudo, os missionários os mais engajados na difusão desse
relato, cuja recorrência, na época dadescoberta” de novas terras e novos
grupos humanos, certamente, foi uma forma de integrar o novo nas
coordenadas do já conhecido. A autoridade e a responsabilidade do Rei
e da Igreja na missão de expandir os limites dos seus domínios foi uma
dessas coordenadas. E, como é sabido, esse estreito vínculo entre Igreja
e Estado colonial fez com que a chamada conquista espiritual objetivasse
não só a “conversão” dos povos indígenas ao cristianismo, mas também
sua submissão política e sua exploração econômica. Tendo em vista a
existência do mito de queo apóstolo da dúvida teria pregado aos povos
indígenas ainda no período apostólico em cumprimento à grande comissão
de Jesus (Mt 28,19-20), conferia uma certa “ancestralidade” à Igreja e ao
Rei sobre as “novas populações” recém “descobertas”. Nessa genealogia,
a outra face do cumprimento da missão de pregar o “Evangelho” era o
direito à vassalagem de indígenas convertidos ao cristianismo.
Thiago Cavalcante se debruça sobre esse relato, nesta obra, que
tenho o privilégio de prefaciar. Ele fez uma leitura atenta das fontes,
avaliadas, por ele, com muita propriedade; diferenciou os diversos níveis
dos relatos sobre São Tomé e o grau de pertença - de distância ou mediação
- entre relatores e relatos, fazendo uma taxonomia dos acontecimentos que
subjazem aos relatos e aos relatores. O autor aplicou, em sua análise, com
desenvoltura e liberdade, as orientações teóricas do âmbito da História
e da Antropologia. Ele registrou o debate entre indígenas e cientistas
sociais sobre a difundida ideia de que os povos indígenas teriam visto nos
conquistadores, viajantes e estudiosos, o retorno de seus heróis nativos.
Também incursionou na Arqueologia e esmerou-se em registrar e discutir
a atualidade e os desdobramentos práticos do mito.
1 Buscando as pegadas de Pa’i Sumé ou São Tomé.
12
Gostaria de destacar, aqui, apenas o suposto domínio que o
sobrenatural teria exercido sobre os indígenas, assim como o proveito que
disso teriam tirado os conquistadores. Seria o mito de Sumé parte dessa
cosmologia indígena? Teria sido parte da cosmologia dos conquistadores
ou foi apenas uma estratégia dos europeus na luta por prevalecer?
Conforme Todorov (1983, p. 77-78, 92-93), a variação da intensidade
com o que os grupos indígenas acreditaram que os europeus eram deuses,
corresponde ao nível que alcançou o desenvolvimento da escrita nesses
grupos, pois esse desenvolvimento implica um índice de evolução das
estruturas mentais. O autor búlgaro-francês tem em conta para isso as
chamadas “altas culturas” do continente americano, que não se encontravam
no mesmo nível de evolução da escrita. Assim, segundo ele, os Incas,
que estavam totalmente carentes dessa técnica, acreditaram firmemente
que os espanis eram deuses; os Astecas, que possuíam pictogramas,
acreditaram na divindade dos europeus apenas num primeiro momento;
para os Maias, que chegaram a conhecer os rudimentos de uma escritura
fonética, “fora um raro e curto episódio em Guatemala, que é rapidamente
superado, a imagem dos espanhóis continuou fundamentalmente humana”,
de certa forma equiparada à dos invasores Toltecas, que os precederam no
lugar.
Nesse esquema proposto por Todorov, a ausência da escrita está
vinculada a um comportamento simbólico que, supostamente, incapacitou
os povos indígenas a perceber o outro (europeu, conquistador), projetando,
então, sobre esse outro o mesmo (seres divinos da cosmologia índia).
No entanto, entre os povos indígenas de línguas guarani e tupi, que
não conheceram a escrita, os conquistadores não foram identificados
diretamente como “Divindades” nem os indígenas ficaram paralisados a
ponto de não opor resistência aos adventícios. O mito de São Tomé é, neste
contexto, muito interessante, já que no seu protagonista - Tomé ou Sumé -
aproximam-se e até amalgamam-se o mundo indígena e o europeu. Como
Thiago analisa com rigor essa personagem, aqui me ocupo mais com a
questão do proveito tirado pelos missionários do mito.
Como outros conquistadores, ao se depararem com os habitantes
das Américas, os missionários tiveram de dar conta de novos problemas no
âmbito da compreeno que tinham até então de sua miso de pregar para
todos os povos, de batizá-los e submetê-los à Europa.
Vítor Westhelle, em seu ensaio Conquista e Evangelização
em Latinoamérica (2000, p. 8-9), escreve que a primeira atitude dos
13
conquistadores “foi situar os povos que encontraram dentro das
classificações dos povos europeus dessa época [...]: cristãos, judeus e
gentis”. Segundo Westhelle (2000, p. 16-17), ter os indígenas como gentis,
ou seja, muçulmanos, implicava um profundo desprezo contra eles e a
necessidade de assimilá-los à cultura conquistadora. Já emparelhado os
indígenas com os judeus, reconhecia-se aos povos encontrados na América
“a natureza que abre o caminho à graça” (WESTHELLE, 2000, p. 27).
Mas o considerá-los cristãos – que é o que interessa aqui – deriva do fato
de que os conquistadores, sentindo-se interpelados pelo modo de vida
indígena, chegaram a supor que os mesmos eram “católicos” e tiveram a
impressão de que, num passado remoto, os indígenas teriam recebido um
doutrinamento cristão”, que se corrompeu com o tempo.
Assim, Diego Duran, no México, em suaHistória das Índias de
Nova Espanha (1588), afirma que houve um predicador por esses países
e que teria sido São Tomé. Ele vai mais longe e afirma que a memória de
São Tomé é preservada nos relatos astecas sobre os traços de Topiltzin,
que é apenas outro nome de Quetzacóatl. Este, por haver anunciado
a chegada dos espanhóis e por ser venerado pelos cholultecas, seria pai
comum dos aborígines e de seus conquistadores (apud Todorov, 1983, p.
205-206). Também Guan Poma de Ayala esteve a favor de que no início
do cristianismo um apóstolo esteve noNovo Mundo”. Esse teria sido São
Tomé (apud DELGADO, 1991, p. 287). Ainda que no Perú, a crença no
apóstolo já fora negada oficialmente no I Concílio de Lima, em 1551, o
frei Agostino Antonio de la Calancha (1584-1654) chegou a considerar que
os mitos e os ritos indígenas “tinham um começo católico e um ministro
evangélico”, embora depois foram violados “pela mancha do tempo e
pelos esforços do diabo” (DELGADO, 1992, p. 287-278). Calancha é
importante por reforçar com seus dados a hipótese de que o São Tomé
teria sido constantemente instrumentalizado a favor da campanha em que
os missionários estavam envolvidos. Assim, no Peru é projetada sobre
São To a imagem de alguém em luta aberta contra a idolatria, no exato
momento em que os missionários combatiam a idolatria. Calancha é ainda
importante por ter identificado São Tomé com Viracocha, um dos Deuses
ou Seres Divinizados no Peru, o Inca do porvir, o Inkarri, que sairia da
selva.
Por sua vez, o jesuíta peruano que atuou no Rio de la Plata, Antonio
Ruiz de Montoya (1985, p. 53, 87), embora afirme que os povos Guarani
nunca fizeram sacrifícios ao Deus verdadeiro, também admite que desse
Deus os índios possuíam um conhecimento muito simples herdado do
14
mítico apóstolo São Tomé, quem, assim como fizera no Oriente, ilustrou
o Ocidente com sua presença e doutrina. Em sua Carta Anua de 1628,
Montoya afirma que embora em outras cartas ele tenha referido sobre o
glorioso apóstolo, no princípio não lhe deu crédito. Sua consideração pela
lenda mudou “por havê-la ouvido em diferentes nações e tão distantes
umas de outras, que de nenhuma maneira pode haver suspeita de ter
sido comunicado os índios entre si e concordar todos tanto que em coisa
nenhuma houvessem discrepado” (CORTESÃO, 1951, p. 233).
Segundo os relatos de Montoya, que dedicou sete capítulos de sua
Conquista Espiritual e algumas páginas de suas cartas à trajetória do
apóstolo, o predicador chegou ao Novo Mundo pela costa atlântica, cruzou
o Brasil na altura do atual estado do Paraná, evangelizou o Paraguai e
dirigiu-se ao Peru. O passo e as palavras do legendário predicador eram
ainda lembrados pelos indígenas, de cujas bocas Montoya teria escutado
a história. Ou seja, ele registrou as supostas palavras que o apóstolo Pa´i
Sumé teria dito aos nativos: “A doutrina que eu agora os ensino a perdereis
com o tempo. Porém, quando depois de muitos tempos, venham uns
sacerdotes meus, que vão trazer cruzes como eu trouxe, ouvirão vossos
descendentes esta (mesma) doutrina” (1985, p. 86). O jesuíta acredita que
nisso se fundava a “acolhida extraordinária que receberam dos Guaranis”
(1985, p. 52).
Por outro lado, o personagem reúne elementos híbridos que o fazem
epônimo da missão cristã no continente americano e ao mesmo tempo um
herói cultural nativo. No Brasil, os indígenas tinham por tradição, desde
Nóbrega, que o “santo apóstolo” lhes deu a mandioca, o pão principal do
grupo (MONTOYA, 1985, p. 89), ao passo que no México era considerado
“mestre artesão”, um escultor; ou seja, do mesmo ofício da personagem
com a qual era identificado, Topiltzin (Quetzalcóatl), que talhava imagens
admiráveis na pedra (apud TODOROV, 1983, p. 205). São Tomé dá a cada
povo o que precisa.
O intrigante é que Pa´i Sume legitimava o trabalho dos missio-
neiros. Na suposta profecia, os “padres sacerdotes” prometidos pelo santo
apostole seriam reconhecidos por “certos sinais” que fizeram que os
jesuítas fossem facilmente identificados como os mensageiros prometidos.
São Tomé reunia características muito estimadas pelos missionários. Como
eles, era casto e identificado por ter uma cruz em suas mãos (MONTOYA,
1985, p. 96), era pobre e pregava com garra e austeridade. “Sem duvida são
estes os Padres que nossos avós nos diziam que foram prometidos por Pai
15
Sumé” (CARTAS ANUAS, 1927-9, p. 326-327), teriam dito supostamente
os indígenas a respeito dos inacianos.
Outro aspecto que gostaria ressaltar é que com a ajuda desta
personagem, os missioneiros fizeram o reconhecimento do lugar onde
lhes tocava missionar e sentiam-se confirmados em sua difícil tarefa. Ao
relacionar com o Santo aspectos da geografia do Novo Mundo (inscrições
enigmáticas e pegadas em rochas, por exemplo), os missiorios fundavam
uma toponímia cristã que lhes dava segurança em sua missão. Eles
andavam pelos mesmos caminhos por onde andou o santo.
Diante do exposto até aqui, cabe perguntar se São Tomé não seria
mais uma visão que os missionários projetaram sobre os indígenas, e se a
extraordinária propagação dessa visão não haveria atendido à necessidade
que os missioneiros tinham de confirmar com uma personagem do período
apostólico o “tempo tão novo e a nenhum outro igual” que lhes tocava
viver. No caso de ter existido uma matriz ingena nessa visão, há que se
reconhecer que os missioneiros não duvidaram em conceder religiosidade
à atitude dos índios quando isso significava disposição para o cristianismo,
submissão à missão e à vida civil.
No seu livro, Thiago nos mostra as trilhas onde ficaram gravadas
as pegadas de Sumé e nos convida a acompanhá-lo na sua reflexão nas
páginas que seguem. Boa leitura!
Dourados, 11 de março de 2009.
Graciela Chamorro
17
Introdução
Em 2004, deparei-me pela primeira vez com o mito de São Tomé
na América. Na ocasião ainda estava por concluir o curso de graduação
em História na Universidade Estadual de Londrina. Naquele momento,
buscava um tema sobre o qual pudesse desenvolver minha monografia de
conclusão de curso, foi então que conheci a obra “Conquista Espiritual” do
padre Antonio Ruiz de Montoya. A obra relaciona o suposto mito indígena
do Pay
2
Sumé ao apóstolo cristão Tomé, produzindo assim um novo mito
americano. A partir de então resolvi me debruçar sobre o tema e no curso
de mestrado continuei com a pesquisa.
Desde o início da pesquisa até a sua conclusão, que inicialmente
deu origem a uma dissertação de mestrado, defendida em junho de
2008 na Universidade Federal da Grande Dourados e que hoje apresento
como livro, o escopo documental ampliou-se significativamente. Isso
me fez perceber muitas situações que não apareciam em meus primeiros
trabalhos e interpretações sobre o tema. Inicialmente imaginei que o
mito se restringisse ao Paraguai colonial, mas com o avanço da pesquisa
pude perceber que bem antes de ter aparecido como destaque na colônia
espanhola, já era famoso no Brasil. Encontrei ainda referências sobre
o mito nos relatos de Diego de Dun, cronista da conquista espanhola
sobre os astecas. A disseminação do mito não ficou, portanto, restrita à
porção meridional do continente americano. Apesar dessa constatação,
é inquestionável que foi nessa região que ele sofreu o maior número de
apropriações e ressignificações, é por isso que a ênfase deste trabalho
repousa sobre tal recorte geográfico.
O recorte temporal deste trabalho privilegia as apropriações e
ressignificações do mito que foram realizadas nos séculos XVI e XVII.
Esse recorte foi escolhido porque foi durante esse período que os jesuítas
do Brasil e em um segundo momento os do Paraguai se utilizaram
largamente do mito para dar sentido a várias realidades por eles vivenciadas
e, principalmente, para dar respostas às diversas angústias específicas
2 Segundo Nimuendaju, no Brasil é comum chamar os “xas” indígenas de paié, termo emprestado
dangua geral. Em Montoya paié também significa xa. Os grandes paié (xas) recebem o
título honorífico de Paí (NIMUENDAJU, 1978, p. 92-93).
18
daquele momento. Todavia, apesar de as apropriações e ressignificações
terem sido mais intensas no período em que focalizo esta análise, elas
não desapareceram nos séculos seguintes. No século XVIII, elas foram
reproduzidas nas crônicas e obras históricas que pretendiam relatar o
passado missional. No Brasil do século XIX, o mito voltou a aparecer,
adquirindo, naquele momento, o caráter de exemplo para a argumentação
em favor da violência como meio de obrigar os povos indígenas à
civilização. Em termos religiosos, não obstante, o mito continua até o
presente a despertar focos devocionais continente afora. Embora todas
essas questões sejam citadas ao longo deste trabalho, neste momento, não
seria possível tratar todas elas com a mesma dedicação dispensada aos
eventos dos dois séculos iniciais do processo de conquista e colonização
do continente.
Mesmo privilegiando a pesquisa dos dois primeiros séculos da
colonização, muitas seriam as possibilidades de pesquisas abertas por essa
temática. Diante desse quadro, adoto como principal objetivo a análise das
apropriações e ressignificações que os europeus, em especial os jesuítas,
fizeram do mito de São Tomé ao longo do período delimitado.
Embora o título do trabalho enfatize o papel dos jesuítas, as
apropriações e ressignificações não se restringiram aos religiosos dessa
ordem, nem sequer foram eles os que primeiro propuseram a presença
apostólica no continente. Todavia, esta ordem foi a que mais ênfase deu
nas ressignificações do mito e também a que mais se beneficiou. Por isso,
ocupa posição de destaque na análise do tema.
Acredito que esta pesquisa pode ser incluída no conjunto dos
trabalhos que tratam dos chamados encontros ou contatos. Pretendo
compreender como o mito de São Tomé foi utilizado pelos europeus para a
reformulação de sua própria cosmologia, fazendo com que os habitantes do
Novo Mundo fossem nela incldos. Apesar da delimitação dos objetivos,
algumas outras possibilidades de abordagens não foram totalmente
desprezadas. Foi reservado um espaço para algumas delas. Sem perder
de vista o objetivo principal, procurei construir um texto que demonstra
algumas das várias possibilidades interpretativas possíveis para esse mito
ao longo do tempo.
Outro ponto no qual me atenho, é na possibilidade de que os indíge-
nas tenham recebido os jesuítas como sucessores de seu herói mítico Sumé,
que associado a São Tomé, supostamente teria previsto a vinda de seus
19
sucessores aos quais os jesuítas se identificariam. Nessa questão, insiro o
debate desenvolvido em torno do conceito de racionalidade prática, cujos
partidários defendem um caminho oposto às análises que propõem que os
nativos de várias partes do mundo tenham confundido os conquistadores
com seus deuses ou quaisquer outros seres divinos ou espirituais. Para os
opositores da ideia de que essas confusões favoreceram os conquistadores
em suas empresas, afirmar que os indígenas os receberam como seus
deuses, seria praticamente o mesmo que lhes negar uma racionalidade. Por
outro lado, há aqueles que defendem que fazia parte da racionalidade nativa
(ou ao menos de alguns nativos) receber os europeus como seus mitos, visto
que coincidentemente os conquistadores teriam aparecido em momentos
oportunos, nos quais foram interpretados pelo filtro da racionalidade
mitoprática dos nativos. O debate é rico e longo e serve de alerta para que
tais questões não sejam tratadas com explicações simplistas.
Embora o foco da pesquisa se concentre nas formas com que o mito
foi apropriado e ressignificado pelos europeus, o trabalho também está
inserido na Hisria Indígena. Isso porque toda a trama das apropriações e
ressignificações do mito foi fomentada pelas relações estabelecidas entre
europeus, principalmente religiosos, e indígenas. Além disso, em um
conjunto de relações, essa questão também deve ter contribuído signifi-
cativamente na determinação das formas com que a questão indígena foi
tratada pela sociedade colonial, atingindo diretamente a história desses
povos. O encontro do Novo Mundo causou uma série de questionamentos e
inquietações em vários religiosos. Alguns utilizaram a suposta presença de
São To na América para recompor a cosmologia cristã, pois esta corria
risco de desestruturação. Por isso, essa cosmologia precisava encontrar
explicações para a afirmação bíblica (A BÍBLIA TEB, 1995, p. 1259, Mc,
16, 15) que determinava a ida dos apóstolos aos quatro cantos do mundo
para a pregação do evangelho. Posteriormente, os cristãos convencionaram
que essa missão é subsidiariamente obrigação de todos os fiéis, mas,
naquele momento específico, Cristo se expressava diretamente aos
apóstolos. Desse modo, no imaginário medieval-renascentista é provável
que tenha sido forte o apelo para se encontrarem vestígios da pregação
autenticamente apostólica em todos os continentes. Teriam ficado apenas
os povos indígenas do Novo Mundo sem receber a mensagem? Afinal, ela
não era para todos?
Na perspectiva dos cronistas, os indígenas entram nessa história
como aqueles que tinham recebido a visita do apóstolo Tomé, a quem
20
chamavam comumente de Sumé, ou por alguma das outras variações
fonéticas existentes. Neste trabalho, demonstro que seria possível a
existência de um mito indígena ao qual os europeus trataram de associar
o mito de São Tomé oriental, produzindo assim um novo mito com
características próprias para o contexto americano.
A propósito de esclarecimentos, cabe destacar que devido à opção
que fiz de tratar o mito sob uma perspectiva que incluísse toda a América,
de maneira especial a sua porção meridional, não foi possível aqui fixar a
análise nas relações entre missionários e algum grupo étnico específico.
Por isso, ao longo do texto haverá várias referências generalizantes
aos índios, aos indígenas, aos Guarani, aos Tupi ou Tupinambá. Sei
perfeitamente que o termo índio, e seu derivado indígena, é uma categoria
genérica de atribuição externa e que, dependendo da maneira como for
utilizado, em termos analíticos, pode não ter significado algum. Todavia,
em muitos momentos opto por utilizar esse termo, pois o foco da pesquisa
está na compreensão de como as situações de contato possibilitaram
e, de certa forma, exigiram as ressignificações míticas operadas pelos
europeus. Nesse sentido, as ressignificações e apropriações que foram
produzidas por eles preocupavam-se em colocar o mundo de volta aos seus
eixos, incluindo de modo genérico todos os indígenas (sem distinção) na
cosmologia cristã.
Basicamente, as fontes referem-se aos nativos como índios de modo
geral, fazendo raras distinções. A distinção mais clara e predominante,
no conjunto documental analisado, centra-se na diferença entre os índios
do Brasil e os Guarani do Paraguai. Observa-se que estas são as duas
categorias proeminentes entre os cronistas. No correr do texto, também
utilizo a categoria Tupinambá proveniente, entre outros, das análises
de Alfred Métraux (1979). Falar em Guarani talvez seja tão impreciso
quanto falar em índio, tendo a acreditar que essa perspectiva também
seja válida para os Tupinambá. Essas denominações estão muito mais
ligadas ao aspecto linguístico do que ao étnico. Portanto, dependendo da
abordagem, torna-se problemático tomar a categoria Guarani como se ela
fosse correspondente a um único grupo étnico. Além disso, referir-se a
Guarani, na maioria das vezes, é tratar de uma identidade atribuída pelo
outro (CHAMORRO, 2007b, p. 12-13).
Seguindo a perspectiva de Fredrik Barth, sabe-se que os grupos
étnicos estão predominantemente mais ligados por relações sociais do que
por uniformidades culturais. Sendo assim, as unidades culturais, apesar de
21
não perderem seu relevante papel na manutenção das identidades étnicas,
são vistas, principalmente, como consequência delas e não condição
para a existência dessas identidades. Embora as fronteiras étnicas sejam
determinadas pela permanecia ou pelo rompimento de específicos valores
culturais, são apenas os membros do grupo étnico que, por meio de sua
lógica interna, decidem quais são esses elementos que circunscrevem a
fronteira. Logicamente que esses elementos variam de acordo com inúmeras
circunstâncias. A utilização de uma língua comum como a Guarani bem
como a partilha de valores culturais comuns não são suficientes para a
determinação de identidades étnicas (BARTH, 2000).
Montoya sinaliza que o Guarani genérico provavelmente nunca
tenha existido já que se trata muito mais de uma classificação linguística
do que de uma parcialidade ou como se diria hoje de um grupo étnico
(Montoya, 1985, p. 185). Lembro ainda que, segundo Barth, o principal
critério de determinação da etnicidade é a autodeterminação individual
e o reconhecimento do grupo de tal indivíduo como seu membro. Dessa
forma, percebe-se, por exemplo, que ainda hoje no Brasil há pelo menos
três grupos étnicos que foram e continuam sendo rotulados como Guarani.
São eles os Kaiowá, os Ñandeva/Guarani e os Mbyá. Se o que configura
uma etnia é sua autodeterminação, nada mais correto do que respeitar a
sua autoidentificação ou o seu etnomio, que é, por assim dizer, o verdadeiro
nome da etnia. Se hoje existe diversidade étnica entre os grupos falantes
da língua Guarani, é fácil deduzir que esta diversidade era bem maior nos
séculos XVI e XVII.
Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, é muito comum ouvir
pessoas de vários meios sociais, incluindo a imprensa, acadêmicos e
governos, referirem-se aos povos Guarani-Kaiowá, conotando a ideia de
que os Guarani e os Kaiowá sejam um único grupo. No entanto, somente
os Ñandeva é que se autodenominam como Guarani. Na realidade, o
que se tem são dois grupos distintos (Ñandeva/Guarani e Kaiowá) que,
frequentemente, a contragosto, são tratados como se fossem um único. Essa
situação, que aparentemente poderia ter pouca imporncia, é significativa
em vários pontos. Jorge Eremites de Oliveira, por exemplo, questiona,
como pode um governo promover políticas públicas que respeitem as
especificidades de cada etnia, se ele nem se dá conta de que está a tratar
com grupos diferentes? (EREMITES DE OLIVEIRA, 2006a). Além disso,
é necessário lembrar que o indígena é um ser humano e tanto quanto
um brasileiro, que embora geograficamente falando seja americano, não
22
gosta de ser chamado assim, pois não é dessa forma que se autoidentifica.
Da mesma maneira, o indígena também não gosta de ser chamado por
denominações pelas quais não se autorreconhece.
As generalizações em relação aos Guarani acabaram por produzir
um verdadeiro Frankenstein, fazendo com que algumas explicações
históricas, etnogicas e arqueológicas tenham ficado muito afastadas
de uma pretensa realidade. Essa generalização, já superada pela maioria
dos círculos acadêmicos, é oriunda da antiga correlação entre raças
línguasculturas. Na Arqueologia, essa discussão foi recentemente acesa
por pesquisadores preocupados com os rumos da chamada Arqueologia
Guarani. Em muitos casos, os vestígios cerâmicos pré-históricos foram
associados por analogias diretas aos Guarani modernos, pressupondo
uma uniforme e perene continuidade cultural e identitária (EREMITES
DE OLIVEIRA, 2006b, FUNARI, 1999, SOARES, 2003, SCHIAVETTO,
2003). Isso provocou, como demonstrou Eremites de Oliveira, não apenas
dificuldades interpretativas, mas implicações práticas relacionadas à
titulação de terras tradicionais. Isso porque determinados pesquisadores,
equivocadamente, associaram a ocupação tradicional da terra Guarani
à existência de cerâmica Tupiguarani no local. Assim, quando essa não
era encontrada, não se considerava a terra como de ocupação tradicional
(EREMITES DE OLIVEIRA, 2006b). Logicamente que essa questão
envolve outra discussão, da qual não será possível tratar neste trabalho,
sobre os critérios jurídicos e antropológicos de determinação de terras
tradicionais e também a questão da dinamicidade cultural.
Apesar das dificuldades existentes com as fontes coloniais,
é possível realizar trabalhos que, mesmo apresentando limitações,
conseguem promover uma análise etnoistórica na qual sejam diferenciadas
algumas etnias Guarani (SOARES, 2003). Apesar dessas reflexões, quero
deixar claro que não estou afirmando que todos os trabalhos que tratam
do Guarani de forma geral sejam problemáticos. Penso que essa questão
torna-se mais ou menos problemática dependendo da abordagem que é
proposta. É, sobretudo, problemática quando o termo Guarani é utilizado
como identificador étnico. Por isso, esclareço que no presente trabalho
utilizo o termo Guarani indiscriminadamente, pois é assim que a maioria
das fontes que utilizo os apresenta. Diante disso e dos objetivos do meu
trabalho, é desnecessária uma discussão perspicaz sobre os grupos étnicos
indígenas envolvidos nessa trama durante os séculos iniciais da conquista,
já que quando utilizo o termo Guarani ou outras nomenclaturas indígenas,
23
não o faço com o intuito de determinar identidade étnica, qualquer que
seja. O termo é utilizado para retratar a maneira com a qual os europeus
viam esses indígenas. O que está em análise é justamente o pensamento
europeu acerca de alguns aspectos problemáticos que surgiram com a
conquista da América. Penso que os termos Guarani e Tupinambá também
refletem uma relativa unidade cultural e linguística, o que não produz
necessariamente nenhuma unidade étnica. Aqui, esses termos estão mais
relacionados às formas com as quais os conquistadores e, posteriormente,
antropólogos, denominaram os indígenas do que a qualquer outra coisa.
Os termos apropriação e ressignificação são chave neste trabalho,
uma vez que em torno deles a pesquisa foi conduzida. No decorrer das
investigações, pude perceber que eles caminharam sempre de maneira
indissociável no que se refere ao mito de São Tomé americano. Em
primeiro lugar, objetivei saber quais foram as apropriações mitogicas
que ocorreram e, em segundo lugar, quais os processos de ressignificação
aos quais o mito foi submetido. Ao longo do texto, ficará evidente que
elas foram várias. Inicialmente, algum europeu apropriando-se da ideia da
presença do apóstolo no Oriente associou-o a um possível mito indígena,
fabricando o mito de São Tomé. Quem foi esse europeu é impossível
precisar, mas é certo que ele foi o primeiro a se apropriar, não só do mito
indígena, mas também de um mito cristão oriental promovendo assim
a primeira ressignificação. Alguns anos depois, foram os jesuítas do
Brasil que promoveram mais uma apropriação. Importa observar que
eles se apropriam ao menos de três mitos diferentes: o São Tomé oriental,
o São Tomé americano e o Sumé indígena. Fruto dessa apropriação foi
uma específica ressignificação, forjada para responder às perguntas
e angústias próprias do século XVI. Com o passar do tempo, no século
XVII, os jesuítas do Paraguai foram os autores de uma nova apropriação e
consequente ressignificação, especificamente relacionadas aos problemas
de sua época. Continuando o percurso temporal do mito, como se verá,
percebe-se que esses movimentos de apropriações e ressignificações não
foram encerrados até hoje.
Para a redação do trabalho, optei por preservar a grafia original
encontrada nas fontes, tanto para a língua portuguesa quanto para a
espanhola, inglesa e guarani. As citações literais aparecem entre aspas ou
separadas do corpo do texto, os títulos de publicações também estão entre
aspas. Já as palavras em línguas estrangeiras, conceitos ou termos que
merecem destaque ou relativisação foram escritos em itálico.
24
O trabalho que ora apresento é uma versão adaptada de minha
dissertação de mestrado. Este texto é menor do que o original e teve a
linguagem adaptada, assim espero que essas mudanças tornem sua
leitura mais agradável. Apesar da retirada de alguns pontos, o texto não
foi descaracterizado, pois as argumentações e as conclusões acerca dos
objetivos principais estão mantidas tal qual estavam no texto original.
Dessa forma, o texto foi dividido em três capítulos. O primeiro, intitulado
“O São Tomé americano”, foi escrito com a intenção de apresentar a
temática aos leitores. Nele trato principalmente das características do mito
e das formas com que os cronistas o apresentaram em sua suposta relação
com as populações indígenas da região platina. Também são discutidos
os precedentes do mito, especialmente a versão oriental e a sua difusão
pela América. Desenvolvo ainda discussões a respeito das ligações
entre o mito e os diversos elementos da cultura material, principalmente
pegadas e caminhos. espo para as permancias contemporâneas de
espiritualidades populares que gravitam em torno de São Tomé e de suas
supostas pegadas, sobretudo no nordeste brasileiro. Outro tema para o qual
reservo espaço nesse capítulo é a apropriação e a ressignificação do mito
promovida por Francisco Adolfo Varnhagen como parte de sua estratégia de
defesa da integração violenta dos indígenas ao Estado Nacional Brasileiro,
fato que demonstra a permanência dos processos ressignificadores para
muito além do século XVII.
No segundo capítulo, intitulado “‘Uma nova humanidade’: a
inclusão doOutro na cosmologia cristã, inicio a parte mais densa do
trabalho, na qual discuto as apropriações e ressignificações que o mito
sofreu durante os dois primeiros séculos da colonização. Nesse capítulo, a
partir de fontes históricas e etnológicas, fo uma discuso a respeito da
existência de um mito indígena nessa trama. Discuto ainda a ideia de uma
espiritualidade medieval-renascentista como inspiradora de processos de
circulação cultural
3
, fundamentais para o desenvolvimento desse processo
mitológico. Em seguida, busco, por meio das fontes históricas, retratar
qual foi o impacto que a descoberta de uma nova humanidade trouxe em
termos de inquietações e angústias para os europeus, especialmente aos
religiosos, preocupados em manter a ordem cosmológica sustentada pelas
explicações bíblicas até então em voga. Finalizo o capítulo apresentando
3 Circularidade Cultural é um conceito que se refere a um processo de trocas culturais. Ele foi
explicitado por Carlo Ginzburg (1987). No próximo capítulo será discutido de maneira mais
pertinente.
25
a ressignificação do mito de São Tomé, cunhada no século XVI, com o
objetivo de incluir o indígena na cosmologia cristã.
No terceiro e último capítulo,Sucessores de São Tomé:
apropriações jesuíticas no antigo Guairá, discuto a apropriação e a
ressignificação promovida pelos jesuítas da província paraguaia. No
conturbado contexto de intensas disputas pela mão-de-obra indígena, os
inacianos acabaram se tornando pessoas de poucos amigos entre os colonos
e autoridades coloniais. Com o desenrolar da história, representados pelo
padre Antonio Ruiz de Montoya, os jesuítas resolveram recorrer à Corte
espanhola para pedir que os Guarani reduzidos fossem autorizados a
utilizar armas de fogo em legítima defesa frente aos bandeirantes paulistas.
Como parte de sua estratégia de convencimento, Montoya escreveu a obra
ufânica “Conquista Espiritual” que acabou sendo o principal veículo de
propagação da maior ressignificação que o mito sofreu no século XVII, a
ideia de que os jestas eram os sucessores de Tomé, o que pode ser visto
como fator positivo para a ordem religiosa, visto que isso modificava o
status da missão jesuítica.
Este trabalho, assim como outros, apresenta potencialidades e
deficiências. A intenção não foi dar conta da totalidade do tema. Como
já mencionado, o foco principal está direcionado às apropriações e
ressignificações. Com base no escopo de fontes históricas e etnológicas,
que utilizei, acredito ter apresentado uma explicação plausível no que diz
respeito ao objetivo principal de minha pesquisa. Outras possibilidades
interpretativas certamente existem, por isso não resisti em esboçar algumas
delas, acreditando que vão além da mera especulação, assim podem ser
lidas como caminhos para futuras abordagens sobre o tema, feitas por
mim ou por outros pesquisadores.
27
I
O São Tomé Americano
Desde os primeiros anos de colonização da Arica, circulou entre
os europeus a ideia de que Tomé, um dos doze apóstolos de Jesus Cristo,
esteve no continente, com o intuito de trazer a luz do evangelho aos povos
indígenas. O principal objetivo deste capítulo é apresentar uma introdução
ao tema e as principais características do mito de São Tomé na América.
Essa introdução é necessária para instrumentalizar a discussão que se fa
a respeito das apropriações e ressignificações que o mito sofreu ao longo
dos séculos XVI e XVII.
Inicialmente no Brasil e depois no Paraguai, os jesuítas foram os
maiores disseminadores e beneficiários do mito. Segundo o padre Manoel
da Nóbrega, o primeiro jesuíta a narrar o mito em suas cartas, datadas
de 1549, os indígenas tinham a lembrança da passagem de São Tomé, a
quem chamavam “Zomé”. O santo teria vindo para pregar os hábitos
cristãos, mas teria sido muito mal recebido e tratado de forma hostil pelos
ancestrais dos indígenas contemporâneos do missionário. Diante disso,
Tomé teria partido. Contudo, supostamente, deixou a promessa de que
voltaria a vê-los. Os jesuítas rapidamente se identificaram como sucessores
do apóstolo e produziram ressignificações do mito durante os séculos XVI
e XVII (NÓBREGA, 1988, p. 101-102). Aparentemente, o que se tem é a
ressignificação de um mito indígena para São Tomé ou a criação de um
mito atribuído pelos europeus aos indígenas, mas largamente utilizado
pelos religiosos representantes do Velho Mundo. A primeira impressão ao
ler as fontes jesuíticas é a de que foram eles os arquitetos dessa mutação
ou os criadores do mito de São Tomé. Por ora, é importante salientar que
embora tenham sido os maiores beneficiários, os jesuítas não foram os
responsáveis pelo surgimento do mito de São Tomé, pois os primeiros
vestígios encontrados sobre a suposta presença apostólica são anteriores à
fundação da Companhia de Jesus.
A primeira referência a respeito da suposta presença de São Tomé
na América está na “Nova Gazeta da Terra do Brasil”, documento datado
28
como sendo de no máximo 1515. Outra referência é encontrada em uma
correspondência do frei franciscano Bernardo de Armenta, datada de 1538
(ARMENTA, 1992, p. 155-157). A “Nova Gazeta da terra do Brasil” foi
datada pela crítica historiográfica como sendo do período entre 1511 e
1515. É, portanto, bem anterior à vinda dos primeiros jesuítas ao Brasil
que só chegaram em 1549, e até mesmo à fundação da Companhia de
Jesus, que se deu em 1534. Em um primeiro momento, ela serve para
afastar o pesquisador de um erro que pode ser facilmente cometido, assim
como Enrique de Gandia já o fez (Conf. DONATO, 1997, p. 44). Trata-
se de atribuir aos jesuítas a responsabilidade pela primeira apropriação
e ressignificação do possível mito indígena de Sumé em São Tomé, ou
mesmo a possível criação desse mito. O texto apresenta informações
sobre uma suposta viagem portuguesa ao Rio da Prata, além de apontar
características da “Terra Brasil” e descrever a população indígena. O
documento apresenta a seguinte informação sobre São Tomé:
Nessa mesma costa ou terra ha ainda memória de São Thomé. Quizeram
também mostrar aos Portugueses as pegadas no interior do paiz. Mostram
igualmente a cruz que ha terra adentro. E quando fallam de São Thomé
dizem que ele é o deus pequeno. Pois ha outro deus que é maior. É bem
crivel que tenham lembrança de São Thomé, pois é sabido que São Thomé
realmente está por traz de Malacca na costa de Siramatl no Golfo do
Ceylão. Na terra dão freqüentemente aos seus fi lhos o nome de Thomé...
(SCHÜLLER, 1911, p. 118).
Trata-se de um documento controverso e já bastante analisado pela
historiografia em diferentes momentos. Segundo Klaus Hilbert (2000),
os principais motivos de tal controvérsia estão na ausência de nomes dos
comandantes da viagem, assim como na ausência de datas e na falta de
referências geográficas mais precisas. Esses pontos foram debatidos por
diversos autores, como F. A. Varnhagen, F. Wieser, J. Schüller, K. Haebler,
C. Brandenburger e F. M. E. Pereira, que variaram entre a total refutação e
a total aceitação do valor histórico do documento
4
.
Ainda de acordo com Hilbert, a referida fonte apresenta três edições
impressas e uma manuscrita encontrada, em 1895, no arquivo dos Príncipes
e Condes Fugger, em Augsburgo por K. Haebler. A versão manuscrita
possui mais informações do que constam nas versões impressas:
4 Para maiores detalhes sobre a fonte e as discussões sobre ela, ver Hilbert (2000), constando
inclusive a bibliografia sobre a referida discuso.
29
[...] mostra na primeira página o título “-1515- New zeytung auss
presillandt, e um surio: “Notícias trazidas por um navio que saiu de
Portugal para descobrir a terra do Brasil mais longe do que antes se sabia e
na volta chegou à ilha da Madeira; escritas da Madeira para Antrpia por
um bom amigo” (HILBERT, 2000, p. 42).
A inserção desses dados somados ao cruzamento com outras fon-
tes possibilitou algumas conclusões. Uma delas foi a seguinte: Johann
Schöner de Nürenberg extraiu informações da “Gazeta” para a confecção
de seu famoso globo terrestre em 1515. Diante disso, estabeleceu-se que
1515 é a data limite para a elaboração do documento. Fixou-se[...] a data
de impressão da carta entre os anos de 1511, ano do suposto surgimento
do nomeBrasil na cartografia, substituindo aTerra de Vera Cruz, e o
ano de 1515, ano da publicação do globo terrestre de Schöner” (HILBERT,
2000, p. 47).
Com todas as análises realizadas, Hilbert chegou ainda às seguintes
conclusões:
Por meio da indicação dos nomes dos armadores da expedição, D. Nuno
Manuel e Crisbal de Haro, chegou-se, através de outras fontes – como a
carta do Embaixador Álvaro Mendes de Vasconselo, o globo de Schöner, e
a cópia manuscrita dos arquivos dos Fugger – à conclusão de que João de
Lisboa era o piloto da embarcação que no ano de 1514 voltou para Portugal
após ter chegado até a região do rio da Prata (HILBERT, 2000, p. 53).
Supostamente a viagem alcançou o rio da Prata antes de seu
descobridor oficial, Juan Diaz de Solis, que oficialmente descobriu o rio
em 1516. Para Klaus Hilbert (2000, p. 55), a “Gazeta” possui seu valor
histórico principalmente como receptor e distribuidor de informações
do Novo Mundo. Excluir sua validade pelos motivos causadores das
controvérsias levaria também à desqualificação, por exemplo, das cartas
de Vespúcio que carecem em grande parte das mesmas informações que a
“Gazeta” (HILBERT, 2000, p. 53).
A “Gazeta” é um significativo documento para esta pesquisa, pois
ela conduz à constatação de que bem antes de os jesuítas surgirem, o
mito de São Tomé já estava presente no continente americano. A carta do
Frei Armenta, datada de 1538, também contribui para essa constatação.
Nota-se que nem a “Gazeta e nem a Carta de Armenta utilizam alguma
denominação indígena para o mito. Ambas se referem diretamente a São
Tomé. Poderiam esses autores, por razões linguísticas, terem produzido
30
o mito de São Tomé, confundindo-o com algum herói indígena que não
aparece nos textos? Sim, poderiam, mas isso não passa de especulação. O
fato é que, para este trabalho, a gênese do mito não é o mais importante.
Se por um lado é certo que o mito de São Tomé não surgiu por
obra jesuítica, por outro, também é certo que surgiu por meio de algum
representante do Velho Mundo. Mesmo que tenha havido um mito ameríndio
motivador da ressignificação em São Tomé ou que tenha sido relacionado
com um mito europeu preexistente, somente um cristão é quem poderia
fazer tal simbiose. Motivações para isso existiam, uma vez que, como se
verá no próximo capítulo, os europeus estavam em busca de explicações a
respeito da origem dos povos indígenas e da eficácia do trabalho apostólico
diante da determinação evangélica da pregação universal (A BÍBLIA,
1995, p. 1259, Mc, 16, 15; HOLANDA, 1996, p. 128-129). Esse contexto era
bastante propício para a gênese de um mito como esse.
1.1 Por que São Tomé? Precedentes
Por que, justamente, São Tomé foi escolhido como o apóstolo da
América? Sabe-se que os europeus procuravam vestígios do cristianismo
no Novo Mundo, afinal a palavra divina mandava os apóstolos pregarem o
evangelho a todas as criaturas, mas por que exatamente Tomé?
O fato de Tomé ter sido eleito como o apóstolo da América está
relacionado ao processo de expansão matima portuguesa. Cabe destacar
que embora os jesuítas da coroa espanhola também tenham se apropriado
do mito sua origem na América se deu entre os portugueses. A expansão
territorial portuguesa se deu inicialmente em direção ao Oriente. Desde
que Vasco da Gama chegou às Índias orientais em 1488, os portugueses
já conheciam o difundido culto que se oferecia ao apóstolo Tomé naquela
região (HOLANDA, 1996, p. 108).
A fama do santo provavelmente impressionou os portugueses, pois
confirmava o que já havia sido descrito por cronistas antigos. Já no século
VI, nos escritos de Gregório de Tours, encontrava-se referência aoscristãos
de São Tomé”. No ano de 833, o rei da Inglaterra teria enviado embaixada
a esses povos. Também na Alemanha se encontram informações de que
Henrique de Morungen, nascido em 1150, teria ido como peregrino até
a Índia, de onde teria levado relíquias do santo, que pelo menos até 1899
estiveram depositadas em um mosteiro dedicado ao apóstolo em Leipzig
(HOLANDA, 1996, p. 108).
31
Além disso, é preciso destacar que referências à missão de São
Tomé entre os gentios do Oriente são antigas e aparecem em textos bas-
tante famosos e influentes no pensamento medieval-renascentista como,
por exemplo, na famosa carta de Preste João
de meados do século XII
(2007) e no livro de Marco Polo, do século XIII, no qual se lê:
O corpo de São Tomé, o apóstolo, encontra-se na província de Maabar,
em um lugarejo de poucos habitantes, sem mercado, porque não há
mercadorias. Assim mesmo, esse lugarejo é muito visitado, por ser o
centro de peregrinação cris e sarracena. Os sarracenos desta região são
muito devotos de São Tomé, porque acham que ele foi um grande profeta
sarraceno, razão por que o chamam de Varria, isto é, santo. Os peregrinos,
para volta, costumam levar um pouco de terra do túmulo do santo, porque
dizem que dando-a de beber, em um pouco d’água, a um doente de febre
terçã, este fi ca imediatamente curado... (POLO, 2000, p. 114).
O padre Antonio Ruiz de Montoya também utilizou a tradição
oriental para endossar a suposição de que foi São Tomé o apóstolo da
América.
Que haja sido São Tomé aquele que, com a sua pregação, ilustrou os índios
do Ocidente, é conjetura de grandes proporções. Tem ela a seu favor o
fato de Cristo Nosso Senhor havê-lo escolhido para Apóstolo da gente
mais prostrada do mundo inteiro, isto é, para negros e índios. Pregou
ele aos brâmanes, como o dizem Orígenes, Eusébio e outros. Doutrinou,
pois, os índios do Oriente. Os etíopes foram lavados e embranquecidos
pela pregação desse Santo Apóstolo, como a rma São João Crisóstomo.
Os abessínios, moradores da Etiópia, ouviram a sua voz e hoje o veneram
como a seu primeiro Apóstolo (MONTOYA, 1985, p. 95).
Os indícios apontam para a grande disseminação da ideia de que
Tomé supostamente foi o apóstolo dos gentios nas índias orientais, inclusive
porque seu sepulcro está em Malaca. Isso aliado a outras coincidências
propiciou a transferência do mito para a América. Ao que tudo indica, na
América, os europeus encontraram entre alguns povos indígenas um herói
civilizador mítico ao qual os nativos associavam petroglifos com formatos
aproximados aos de pegadas humanas
5
. O mesmo acontecia no Oriente,
5 Ao longo do texto, faço diversas referências às pegadas. Como se verá, as supostas pegadas
são, em sua maioria, artefatos rupestres. Todavia, para tornar o texto mais agradável, não faço
insistentes ressalvas sobre o termo, portanto, quando menciono pegadas de São Tomé, estou
sempre me referindo a vestígios arqueológicos com formato semelhante ao de pés humanos e que
foram atribuídos ao apóstolo.
32
lá se acreditava que várias marcas dessa natureza eram obra do apóstolo.
Essa coincidência favoreceu a transposição do santo para o Novo Mundo
(HOLANDA, 1996, p. 109).
Outro ponto que favoreceu a migração do mito, embora também se
acreditasse em transporte sobrenatural e bilocação (MONTOYA, 1985, p.
95), foi a crença de que poderia haver uma ligação terrestre entre o Brasil
e a Ásia, o que facilitaria grandemente a extensão da pregação do apóstolo
(HOLANDA, 1996, p. 111). Já na “Gazeta se reproduz essa ideia, o autor
acreditava que o Brasilo estava a mais de seiscentas milhas de Malaca,
e destacou que “[...] É bem crivel que tenham lembrança de São Thomé,
pois é sabido que São Thomé realmente está por traz de Malaca na costa
de Siramatl no golfo do Ceylão [...] (SCHÜLLER, 1911, p. 118). Percebe-
se que a suposta proximidade entre o local da morte do apóstolo e o Brasil
contribuiu para a construção da crença em sua presença na América. O
autor do documento demonstra que era conhecedor das histórias a respeito
do santo no Oriente, isso é indicativo da difusão de tais informações entre
os navegadores e missionários.
São Francisco Xavier, missionário jesuíta, cofundador da Com-
panhia de Jesus, dedicou-se à evangelização no Oriente, em período
precedente às missões da América. A essa altura, a ideia de que São Tomé
esteve na América já havia sido implantada, mas ainda era incipiente, a
julgar pela pequena quantidade de escritos, que fazem referência ao santo,
produzidos antes da chegada dos jesuítas no Brasil. Francisco Xavier
foi um grande difusor da devoção a São Tomé no Oriente. Em uma de
suas cartas, afirma que Martin Afonso de Souza tinha pedido a ele que
intercedesse junto ao Sumo Pontífice, por intermédio do superior geral
da Companhia, para que fosse concedida indulgência pleria nas oitavas
e no dia do santo para todos aqueles que confessassem e comungassem
(HOLANDA, 1996, p. 108).
Certamente, como discutirei melhor nos capítulos a seguir, as
cartas jesuíticas tiveram nos séculos XVI e XVII ampla circulação,
especialmente entre os próprios jesuítas espalhados pelo mundo. Isso leva
a crer que quando Nóbrega veio para o Brasil, já tinha pleno conhecimento
de todas as características do culto prestado a São Tomé no Oriente.
Quando chegou ao Brasil, já de posse dessas informações, o missionário
encontrou referências ao santo, deparou-se com coincidências, como as
pegadas, e a aproximação fonética entre o possível mito indígena Sumé e
33
São Tomé. Assim sendo, deve ter sido fácil para o jesuíta acreditar que de
fato o apóstolo esteve por aqui.
A partir disso, o mito americano começou a ser construído,
apresentando uma série de similitudes com o culto encontrado no Oriente,
o que era normal, pois o mito precisava ser dotado de coerência. Diante
disso, muitas das características orientais foram transpostas para a Arica.
Exemplos disso podem ser encontrados não só no culto a petroglifos,
comuns nos dois continentes, mas também no culto às relíquias em geral.
No Oriente, utilizava-se terra do túmulo ou mesmo outras relíquias do
santo. Na América, havia a suposta cruz de Carabuco, ligada a Tomé, a
qual teria o poder de curar e de expulsar demônios. O destino final que
brega deu ao santo indica que o mito americano tinha fortes ligações
com o oriental, uma vez que o santo teria saído da América em direção à
Índia. O desfecho não poderia ser outro, pois a tradição cristã afirma que
a morte do apóstolo ocorreu lá e que naquele local está a sua sepultura
(HOLANDA, 1996, p. 108-112, 119-121, 127; LEITE, 1954a, p. 153-154). O
autor da “Gazeta” também ligou o São Tomé americano ao oriental, tendo
em vista sua argumentação que se baseou na presença de pegadas. O autor
destaca a semelhança de seus relatos ao que ele sabia sobre o culto a Tomé
no Oriente, além disso, menciona o local do sepultamento do apóstolo em
Malaca (SCHÜLLER, 1911, p. 118).
Por meio das constatações acima apresentadas, pode-se concluir
que São Tomé foi considerado o apóstolo da América, pois já era, há
muito tempo, considerado o apóstolo dos gentios orientais, fundador
do cristianismo naquela região e objeto de amplo culto popular. Isso
era do conhecimento de muitos navegadores e religiosos que ao
chegarem à América estavam ansiosos para encontrar sinais divinos que
possibilitassem a reordenação de suas concepções de mundo. Somado
a isso, contribuíram as semelhanças entre o mito do herói civilizador
indígena e as características da suposta missão de São Tomé no Oriente.
1.2 A difusão do mito pela América
Ao que tudo indica, o mito de São Tomé se espalhou pela América
pelo Brasil, fato pouco comum, como assinala Sergio Buarque de Holanda,
pois o mito do apóstolo americano seria o único dos mitos edênicos a ser
cunhado na colônia portuguesa, atingindo, posteriormente, a espanhola.
34
Para o autor, todos os demais fizeram o caminho inverso (HOLANDA,
1996, p. 108). É verdade que o mito também pode ter chegado à América
por meio de múltiplos canais, inclusive com europeus não portugueses.
Todavia, o que parece ter dado pujança ao mito foi a inclusão da temática
nas cartas de Manoel da Nóbrega. Essas cartas foram amplamente
divulgadas, inspirando outros escritores coloniais que trataram do tema.
Assim, conjectura-se que os documentos já citados, anteriores aos escritos
de Nóbrega, sejam textos isolados, que atestam a antiguidade do mito na
América. No entanto, o que realmente projetou o mito e contribuiu para
que ele recebesse ressignificações diversas foi a divulgação jesuítica por
meio das cartas de Nóbrega.
Era corrente a ideia de que o santo primeiramente tinha pregado no
Brasil, depois no Paraguai e, por fim, no Peru (HOLANDA, 1996, p. 118;
MONTOYA, 1985, p. 93). Esse pensamento é um pouco contraditório caso
se considere estritamente o narrado nas fontes, pois, segundo Nóbrega, o
santo, ao ser repudiado pelos indígenas, foi embora para a Índia oriental,
onde supostamente foi martirizado. Como o santo teria partido pelo
Atlântico, isso não permitiria que ele sequer passasse pelo Paraguai
(LEITE, 1954a, p. 153-154). Montoya, ao traçar esse caminho, baseou-se
nos escritos de Gavilán, fonte que se refere a um apóstolo, mas não a São
Tomé. Segundo essa mesma fonte, o apóstolo teria sido martirizado no
lago de Titicaca, o que contradiz a argumentação de Nóbrega (GAVIN,
1621, p. 30, 38).
Contradições à parte
6
, é compreenvel que isso tenha acontecido,
afinal se trata de um mito, e como tal, ao que tudo indica, o caminho
percorrido por ele em sua difusão pelo continente realmente parece
ter sido esse. Como já exposto, as primeiras referências ao mito datam
de 1515 e 1538, elas, no entanto, aparentemente, não chegaram a ser
influentes no que diz respeito à difusão do mito pela América. A difusão
do mito já apropriado pelos jesuítas e ressignificado com uma série de
elementos, provavelmente oriundos da cultura indígena e do mito de São
Tomé oriental, começou com três cartas de Manoel da Nóbrega, datadas
de 1549 (NÓBREGA, 1988, p. 77-78, 88-96, 97-102). Essas cartas foram
publicadas emngua espanhola e chegaram a muitos leitores pelo mundo
especialmente jesuítas. Três décadas mais tarde, o mito volta a aparecer,
agora nos escritos de Diego Durán, que encontrou São Tomé no México
6 O assunto será retomado no último capítulo.
35
(DURÁN, 2005). A associação que o autor fez entre um mito asteca e São
Tomé pode, perfeitamente, ter sido inspirada pela leitura dos escritos de
Nóbrega. Na segunda década do século XVII, o mito é novamente citado
nas cartas ânuas de 1613, 1615 e 1626/1627, desta vez dos jesuítas do
Paraguai (FACULTAD DE FILOSOFIA Y LETRAS, 1927). Por fim, em
1639, o mito ganha destaque na “Conquista Espiritual” de Montoya (1985).
Depois disso, ele volta a aparecer em outras obras, em geral de caráter
histórico que se baseiam em grande parte nos escritos anteriormente
citados. Nesse bojo, incluem-se, por exemplo, os trabalhos de Simão de
Vasconcelos ([1663] 1977) e Pedro Lozano (1873).
Sabendo da sequência cronológica na qual o mito é citado nas fon-
tes e também da ampla circulação que tinham as epístolas jesuíticas, é
viável a ideia de que o mito se difundiu pelo continente a partir do Brasil.
Ele foi apropriado por Nóbrega, que foi seguido por Dun, de acordo com
as questões pertinentes ao século XVI e, posteriormente, foi ressignificado
pelos jesuítas do Paraguai, de acordo com as questões próprias do século
XVII, das quais tratarei respectivamente nos capítulos II e III. Logo, pode-
se dizer que Holanda foi feliz ao chamar o mito de São Tomé de “mito
luso-brasileiro” (HOLANDA, 1996. p. 108).
1.3 O mestre dos conhecimentos úteis: a mandioca como dádiva
apostólica
Uma das características que o mito agregou, por meio da ressi-
gnificação jesuítica, foi a de mestre dos conhecimentos úteis. Ou seja, o
santo teria ensinado algumas coisas fundamentais para a vida cotidiana
dos indígenas. Nesse aspecto, parece ser claro que os ressignificadores
europeus do mito de São Tomé incrustaram nele características do mito
indígena ou, ao contrário, incrustaram características cristãs no mito
indígena, possivelmente protagonizado pelo herói civilizador Su
(HOLANDA, 1996, p. 113, 118).
São Tomé aparece como civilizador na medida em que ensina
coisas importantes para os indígenas, com destaque para o cultivo e a
utilização da mandioca, planta natural do Brasil, provavelmente da rego
do atual estado de Rondônia e que compõe a dieta alimentar de imeros
grupos étnicos americanos. Nesse sentido, o São Tomé mítico apresenta
os requisitos de um ente sobrenatural que deu ao grupo importantes
bens culturais. Esta é uma das características defendidas por Deursen e
36
referendas por Egon Schaden para a caracterização acadêmica dos mitos
classificados como herói civilizador (SCHADEN, 1959, p. 24). Assim
sendo, é plausível a ideia de que o mito de São Tomé, que tem um forte
laço de origem Oriental, encontrou um possível mito indígena chamado
de Sumé ao qual foi correlacionado e de quem incorporou algumas
importantes características.
O fato de que teria sido São Tomé o doador da mandioca é forte em
rios escritos.brega, por exemplo, em carta ao mestre Simão escreveu:
“Tambem me contou pessoa fidedigna que as raizes de que cá se faz pão,
que S. Thomé as deu, porque cá não tinham pão nenhum. E isto se sabe da
fama que anda entre elles [...]” (NÓBREGA, 1988, p. 78). Em outra carta
endereçada ao Dr. Navarro, Nóbrega escreve “[...] Delle contam que lhes
dera os alimentos que ainda hoje usam, que são raizes e hervas e com isso
vivem bem [...]” (BREGA, 1988, p. 91).
Frei Vicente Salvador, em sua “História do Brasil”, de 1889, descreve
a tradição de que os indígenas teriam recebido a mandioca do santo e
acrescenta também as chamadas bananas de São To. Sobre este segundo
item encontra-se referência apenas nesse autor, o que não reduz o caráter
mítico do apóstolo como distribuidor de dádivas (SALVADOR, 1982, p.
112). Simão de Vasconcelos destaca a importância da raiz como alimento
para os povos indígenas e para os portugueses, que a incorporaram em sua
alimentação e encontraram nela uma importante fonte de nutrientes. Na
opinião do autor, o pão de mandioca estava abaixo apenas doo europeu
(VASCONCELOS, 1977a, p. 148-149). Isso demonstra que os autores sempre
mantinham a hierarquização que inferiorizava a cultura indígena. Nesse
discurso, a qualidade do pão é o que menos importava, pois dificilmente se
admitiria que o produto indígena era melhor do que o europeu.
Montoya também destaca a mandioca como dádiva do santo no
Guairá, era “[...] tradição, que o Santo Apóstolo lhes deu a mandioca, o
pão principal dos naturais da terra” (MONTOYA, 1985, p. 89). O padre
Pedro Lozano também cita a tradição de que o apóstolo teria dado a raiz da
mandioca para os povos indígenas (LOZANO, 1873, p. 457). Com tantas
referências, é inegável que Tomé tenha sido visto pelos europeus como o
doador da mandioca. Há ainda referências, menos comuns, de que Tomé
teria sido o doador da erva-mate
7
(ARRUDA, 1997, p. 93-94; DONATO,
1997, p. 42-43). Em uma versão do mito do Pai Tu(versão indígena),
este aparece com papel ativo na criação da erva.
7 Ilex paraguariensis.
37
Segundo o mito, o Kaá (palavra com que os Guarani designam a erva) se
originou do corpo de uma virgem. Era uma jovem bonita, de pele muito
clara, conhecida pelo nome de Kamby, que signi ca leite. Vivia Kamby
como seus pais Kaarú e Kaasy na mata de Tacumbú [...] Kamby desprezava
os homens e jurara que não pertencia a nenhum deles. Mas o grande
Rupavê, o mais poderoso dos deuses resolveu castigá-la pelo seu orgulho
que contrariava a obra divina. Mandou à terra guarani o mago Pai Tu
Arandi para transformá-la numa planta de virtudes providenciais. Certa
noite Pai Tumé Arandi chegou, pois, à cabana de Kaarú, acompanhado de
Kaágui Rerekuá, espírito da oresta; de Ñu Poty, espírito do campo; de
Arayá e Pyharé Yara, os espíritos do dia e da noite. Pediu pouso e dormiu
até meia noite. Depois levantou-se acordou a Kaarú e disse-lhe: Venho
do céu, da parte do Rupavê, para levar tua fi lha Kambi [...] Kaarú então
entregou a fi lha, e Pai Tumé [...] conduziu a jovem a Tacumbu, onde lhe
pôs a mão direita sobre a cabeça, dizendo: Tu será a erva maravilhosa da
terra guarani, de tuas folhas sairá saúde, alegria e força para toda gente da
tribo. E da Cabeça de Kamby brotaram folhas verdes [...] para transformar-
se numa árvore. Esta árvore é o “Kaá” – Pai Tumé Arandi, arrancou um
punhado de folhas, sapecou-as e preparou uma infusão, que tomou e deu de
beber aos outros espíritos (SCHADEN apud ARRUDA, 1997, p. 93-94).
A erva-mate é um importante componente da cultura indígena.
Todavia, ao contrário da mandioca, não alcançou a simpatia dos jesuítas.
A ela, devido às suas propriedades estimulantes, atribuíam-se valores
demoníacos e seu aproveitamento comercial pelos espanhóis era um
importante motivo para a desumana explorão da mão-de-obra ingena
(MONTOYA, 1985, p. 40-43).
Há indícios de que foram atribuídas ao santo as origens de outros
alimentos, no entanto, é provável que a mandioca tenha ganhado maior
destaque justamente porque foi o alimento indígena mais utilizado pelos
europeus. Atribuir à mandioca o caráter de dádiva apostólica foi relevante
do ponto de vista simbólico.
As incorporações alimentares, por parte dos europeus, nem sempre
eram voluntárias e nem sempre eram julgadas palaveis. Contudo, diante
das situações de penúria, elas ocorriam e foram elementos práticos do
processo de trocas culturais. No caso da mandioca, um elemento da cultura
indígena foi incorporado à cultura européia. Oseías de Oliveira se refere
aos missionários que atuaram no Guairá, mas certamente para aqueles que
atuaram na colônia lusitana não foi muito diferente, segundo o autor, eles
[...] tiveram que deixar de lado seu hábito alimentar cristão europeu
e adotar os hábitos alimentares dos nativos, ou comiam os mesmos
38
alimentos que os índios, para que não morressem de fome, ou
faziam jejum forçado, as comidas não eram das mais agradáveis,
algumas vezes chegavam a embrulhar o estômago... (OLIVEIRA,
2003, p. 128).
O gostar ou não gostar dos alimentos é um elemento cultural que
viria a ser superado pelos europeus. A mandioca não foi o único alimento
ameríndio utilizado pelos jesuítas, podem-se incluir nesse bojo, abóboras,
ervas e favas dentre outros (MONTOYA, 1985, p. 20). Todavia, a mandioca
parece ter sido o principal. A atribuição da mandioca ao santo conferiu a ela
um caráter simbólico especial. Ela deixou de ser um alimento bárbaro para
se tornar um alimento divino. Se, no campo simbólico, a mandioca deixou
de ser uma planta nativa para se tornar uma planta sagrada, certamente
não sofreu nenhuma melhoria em seu sabor, mas adquiriu uma força
simbólica diferenciada. Isso foi importante naquele momento histórico de
espiritualidade medieval-renascentista, pois a partir de então ela era uma
dádiva divina, quem sabe comparável ao maná do primeiro testamento,
facilitando o seu consumo e livrando esse alimento de qualquer estigma.
1.4 O pregador do deus único
São Tomé, que segundo as narrações, era um homem de grande
estatura, branco, barbado e de olhos azuis, com características físicas
correspondentes ao biótipo europeu
8
, além de distribuidor de dons,
também teria sido o pregador da palavra divina entre os povos indígenas.
Essa suposta pregação, ao que parece, não estava concentrada no caráter
salvacionista da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. As fontes
demonstram que a suposta pregação do santo estava mais relacionada aos
aspectos civilizadores do que propriamente espirituais. Isso leva a crer
que a estratégia de pregação atribuída ao santo era, na verdade, a própria
estratégia empregada pelos jesuítas, que acreditavam que só poderiam
tornar os indígenas cristãos depois de concluído o processo de civilização
(MONTOYA, 1985, p. 20; SALVADOR, 1982, p. 112).
O projeto jesuítico de levar a fé cristã aos indígenas incluía
necessariamente a atitude de civilizá-los. Como foi destacado por Cristina
Pompa, o trabalho missionário pretendia, antes de qualquer coisa, tornar
os indígenas “homens”, isto é, “civis” (POMPA, 2003, p. 70). Não é
8 Em contraste aos indígenas. Não significa que todo europeu tenha o mesmo biótipo.
39
exagero utilizar o conceito de civilização, embora tal conceito tenha
surgido somente no século XVIII. Os termos que o precederam parecem
comportar, ao menos de maneira similar, o sentido a ele atribuído. Refiro-
me aqui ao conceito francês de civilisation descrito na obra de Norbert
Elias. Tal conceito descreveria a auto-imagem da sociedade propositora.
Sob a ótica desse conceito, a sociedade que o assumia acreditava ser
superior a todas as demais. A ideia de civilização abrangia fatos políticos,
econômicos, religiosos, técnicos, morais e sociais. Refere-se a realizações,
mas também a atitudes e comportamentos das pessoas (ELIAS, 1994, p.
53-54).
O conceito de civilization é posterior ao período ora analisado,
porém, Elias afirma que o processo civilizador é anterior, termos como
civilisé, poli, policé ou civilité eram utilizados quase como sinônimos.
Esses termos, para quem os utilizava, eram como a expressão dos seus
padrões comportamentais, considerados superiores aos dos demais.
[...] politesse ou civilité tinham, antes de formado e fi rmado o conceito
de civilisation, praticamente a mesma função deste ultimo: expressar a
auto-imagem da classe alta européia em comparação com outros, que seus
membros mais simples ou mais primitivos, e ao mesmo tempo caracterizar
o tipo especí co de comportamento através do qual essa classe se sentia
diferente de todos aqueles que julgava mais simples e mais primitivo. As
palavras de Mirabeau deixam muito clara a extensão em que o conceito de
civilização foi inicialmente uma continuação direta de outras encarnações
da autoconsciência da corte: “Se eu perguntar o que é civilização, a maioria
das pessoas responderia: suavização de maneiras, polidez, e coisas assim
[...] (ELIAS, 1994, p. 54).
Portanto, civilizar é impor ao outro aquilo que eu tenho como
elemento de valor, seja no campo social ou cultural. Diante disso, o conceito
de civilização corresponde ao processo empreendido pelos jesuítas e
europeus em geral que buscavam impor os padrões cristãos europeus aos
nativos. A ideia civilizacional fica evidente no trecho em que Montoya diz
Vivi todo o tempo indicado na Província do Paraguai e por assim dizer
no deserto, em busca de feras, de índios bárbaros, atravessando campos
e transpondo selvas ou montes em sua busca, para agregá-los ao aprisco
da Santa Igreja e ao serviço de Sua Majestade. E de tais esforços, unidos
aos de meus companheiros, consegui o surgimento de treze “reduções” ou
povoações. Foi, em suma, com tal afã, fome, desnudez e perigos freqüentes
de vida, que a imaginação mal consegue alcançar. Certo é que nossa
ocupação exercida parecia-me estar no deserto. Porque, ainda que aqueles
40
índios que viviam de acordo com os seus costumes antigos em serras,
campos e selvas e povoados, dos quais cada um contava de cinco a seis
casas, já foram reduzidos por nosso esforço ou indústria a povoações
grandes e transformados de gente rústica em cristãos civilizados com
a contínua pregão do Evangelho. Porque, digo, com tudo isso, ou seja
por carecer durante tantos anos do trato com espanhóis e sua linguagem,
e estar obrigado por força das circunstâncias a sempre lidar com o idioma
índio, veio a formar-se em mim um homem quase rústico e alheio à cortesia
da linguagem [...] (MONTOYA, 1985, p. 20) (Destaque meu).
No texto acima, fica claro o desprezo do jesuíta pela organização
social dos indígenas. Destaca-se também o resultado supostamente
alcançado pela missão: “a transformação de gente rústica em cristãos
civilizados”. Percebe-se que os conceitos de cristão e civilizado estão
atrelados e principalmente que não há cristão que não seja necessariamente
civilizado. Por essa ótica, a religião cristã apresentada aos indígenas
antes de ser mística foi comportamental, moralista e excludente, ou seja,
totalmente fechada ao diálogo intercultural.
A pregação jesuítica atacava especialmente aspectos moralmente
inaceitáveis do ponto de vista da civilização cristã. Aspectos como a
poligamia, a nudez e a antropofagia eram vistos como abomináveis obras
demoníacas. A conversão de comportamentos exteriores era perseguida
pelos missionários, tanto que o abandono desses comportamentos, muitas
vezes, era considerado como prova de conversão (MONTOYA, 1985, p.
67-68, 226-227; LEITE, 1954a, 111-113).
A pregação atribuída ao apóstolo é praticamente a mesma que fa-
ziam os jesuítas, frei Vicente Salvador, referindo-se a São Tomé, exclamou
“[...] em paga deste benefício e de lhes ensinar que adorassem e servissem
a Deus e não ao demônio, que não tivessem mais de uma mulher nem
comessem carne humana, o quiseram matar e comer [...]” (SALVADOR,
1982, p. 112). O mito de São Tomé americano, após ser apropriado pelos
jesuítas, adquiriu uma série de características que servem para exemplificar
a circularidade cultural presente na colonização. Pode-se dizer que o mito é
indígena, quando se caracteriza como distribuidor de dons, que é jesuítico,
quando combate a incivilidade refletindo a própria missão jesuítica e que
é propriamente apostólico, quando cumpre as Sagradas Escrituras levando
o evangelho a todas as criaturas. O fato da pregação atribuída ao santo
corresponder àquela que era praticada pelos jesuítas, como se verá nos
capítulos seguintes, revela um elemento de autoidentificação específico,
que permitiu aos jesuítas invocar a condição de sucessores de São Tomé.
41
1.5 O apóstolo taumaturgo
Outro aspecto importante do mito é a capacidade de cura que lhe
foi atribuída, na verdade não diretamente a ele, mas às suas relíquias e
às fontes dágua que ele supostamente teria criado. Essa característica,
segundo Holanda, é mais uma aproximação entre o São Tomé americano
e o oriental. Conforme o autor, consta em relatos que no sepulcro do santo
em Meliapor, onde uma rocha contendo pegadas tinha sido depositada,
havia surgido uma fonte de onde jorrava água milagrosa. Feito semelhante
também teria ocorrido na América. As pegadas de Tomé estavam
frequentemente associadas a fontes dágua (HOLANDA, 1996, p. 112).
Uma dessas fontes foi analisada e descrita da seguinte forma por
Simão de Vasconcelos:
Aqui, para maior con rmação do sobredito, obrou a divina Potência uma
circunstância, que parece traz de sobrenatural. É esta uma fonte perene de
água doce, que brota de outro penedo, junto ao das pegadas, poucos passos
andados, em a raiz do próprio monte, por onde é tradição que desceu o
Santo. A esta fonte chama o vulgo fonte de S. Tomé milagrosa; e a rao
é vária. Uns dizem que é milagrosa, porque nasce milagrosamente da
pedra viva, qual lá a de Moisés no deserto. Outros, porque milagrosamente
nascera ao toque de um do Santo, cuja pegada ali se vira, qual lá a do
pé do cordeiro de S. Clemente: De sub cujus fons vivus emanat. E daqui
querem que derive o nome Toque Toque. Outros, porque milagrosamente
se conserva sempre em um mesmo teor de suas águas, quer de verão, quer
de inverno; sem que redunde por mais chuvas que haja, e sem que deixe de
estar cheia, por mais calmas que abrasem a terra. Outros fi nalmente, porque
cura milagrosamente com suas águas a todo o gênero de enfermidades
(VASCONCELOS, 1977a, p. 124).
O autor prossegue sua análise dizendo que o relatado era aquilo que
ele ouvia dizer, mas que foi ao local ver a fonte com os próprios olhos para
que pudesse emitir parecer. Segundo ele, havia uma formação rochosa
como uma pia batismal que permanecia sempre cheia. No entanto, não
era nela que estava a fonte, mas mais acima, nascia como um pequeno
olho” dágua, cuja quantidade de água corrente era muito pequena, quase
imperceptível. Porém, deixava a pia sempre cheia (VASCONCELOS,
1977a, p. 125).
A respeito da formação por obra do toque dos pés do santo, o autor
argumenta que não viu nela nenhuma marca de pegadas, mas assim
mesmo formou parecer favorável à tese. Isso porque, segundo a tradição,
42
o santo teria fugido por aquele monte abaixo. Vasconcelos teria chegado a
essa constatação posicionando-se sobre o penedo onde se encontravam as
pegadas do santo, de lá olhou em direção ao cume, onde supostamente seria
o local da aldeia da qual Tomé teria partido. Diante disso, constatou que a
fonte estava no caminho entre a aldeia e as pegadas. As pegadas seriam o
local do suposto desaparecimento do santo, logo era possível que o santo
tivesse criado a fonte com um toque dos pés já que necessariamente teria
passado por lá. A respeito do caráter milagroso das águas, Vasconcelos
acreditava que era inquestionável, uma vez que havia muitos sinais disso e
frequentes romarias de enfermos que adquiriam saúde ao banhar-se nelas.
(VASCONCELOS, 1977a, p. 125).
Outro fato comum no Oriente era a utilização de relíquias, como,
por exemplo, o uso cotidiano de colares com pingentes feitos do barro da
sepultura apostólica (HOLANDA, 1996, p. 112-113). No Brasil, Vasconcelos
deixa crer que foi comum, entre os devotos do santo, a raspagem das rochas
onde estavam gravadas as supostas pegadas do santo. Esse costume teria
causado, já no século XVII, o desaparecimento de alguns desses vesgios
(VASCONCELOS, 1977a, p. 113). Observa-se que a utilização das relíquias
estava relacionada ao desejo de curas, sejam físicas ou espirituais.
Aos vários sinais atribuídos ao santo, principalmente pegadas e
fontes dágua, relacionava-se a ideia do poder milagroso de curas. Isso é
válido tanto para a versão oriental quanto para a ocidental do santo. O
atributo terapêutico estava presente com maior ênfase nas fontes dágua.
Além da já citada, Vasconcelos se refere à outra fonte, dessa vez com
águas vermelhas. Tal fonte teria poderes medicinais, especialmente contra
o mal de pedra. Segundo ele, estava localizada em Cabo Frio, próxima
de supostas “bordoadas, estampadas em uma rocha, que também eram
atribuídas ao santo, isso permitiu sua associação ao apóstolo (HOLANDA,
1996, p. 115; VASCONCELOS, 1977a, p. 126).
O caráter terapêutico das supostas relíquias do santo correspondia
em boa medida tanto ao pensamento cristão europeu, que durante a Idade
Média potencializou grandemente os poderes sobrenaturais das relíquias,
quanto provavelmente às metodologias xamânicas de alguns grupos
indígenas. Assim, pode-se dizer que este aspecto foi um dos pontos de
diálogo entre as culturas em meio à reelaboração mitológica.
43
1.6 Metamorfose mítica e o temperamento do apóstolo
Tomando os escritos que relatam a presença de São Tomé pela
América percebe-se que algumas de suas características se modificaram de
acordo com os locais por onde ele supostamente esteve. É perceptível que o
seu temperamento sofreu grandes modificações na medida em que avançou
em direção ao Oeste. Ao que parece tais modificações de comportamento e
também de indumentária, se devem muito mais à variação dos narradores
do que propriamente às mudanças no humor de um possível astolo real.
É a velha história de que quem conta um conto aumenta um ponto e assim
o mito foi sendo recriado a cada novo cronista.
No Brasil quando o santo era perseguido tinha atitude passiva,
procurava sempre fugir e se esquivar dos percalços “[...] dizem tambem
que quando deixou estas pisadas ia fugindo dos Indios, que o queriam
frechar, e quando ali se lhe abria o rio e passava por meio delle a outra
parte sem se molhar, e dalli foi para a Índia [...]” (NÓBREGA, 1988, p.
101). Dessas ofensas era protegido por meios sobrenaturais que faziam
com que as flechas retornassem em direção aos atiradores, apesar disso
ele não esboçava nenhuma atitude de vingança.
Quando o santo entra na colônia espanhola passa a ser impaciente
com a falta de respeito dos indígenas, chega a castigá-los por suas
insolências. A mandioca, por exemplo, em princípio devia amadurecer
em poucos meses, mas, como castigo, o santo fez com que ela demorasse
cerca de um ano para ficar adequada para o consumo (MONTOYA, 1985,
p. 89). Em Cachi, no Peru, fez cair fogo do céu quando os homens tentaram
lhe matar (MONTOYA, 1985, p. 91; TECHO, 1887). No Titicaca teve a
intenção de destruir o altar adoratório dos ídolos dos Colla (HOLANDA,
1996, p. 120; MONTOYA, 1985, p. 91).
A indumentária do santo também se modificou quando ele adentrou
ao oeste do continente. No Brasil, julgando pelas pegadas descritas, ele an-
dava descalço. No Paraguai, parece ter utilizado sandálias e no Peru apare-
ce utilizando sapatos ou sandálias que teriam sido encontradas próximas ao
vulcão Arequipa. Elas teriam três solas, com elas o santo teria caminhado
sobre caudalosas lavas vulcânicas. Na sola interna do calçado, supostamen-
te era possível ver as marcas dos pés do apóstolo, que seriam de homem
tão grande a ponto de causar espanto e admiração nas pessoas. Tal sandália
teria ficado com uma senhora principal do local, que a guardava como uma
valiosa relíquia (HOLANDA, 1996, p. 119; MONTOYA, 1985, p. 92).
44
Além das sandálias, teria sido encontrada uma túnica de material
desconhecido, provavelmente de algodão ou lã, e de cor aproximada a
do girassol (MONTOYA, 1985, p. 92). Em Nicolas del Techo também se
encontra referência a um par de sapatos e a uma túnica do santo, ambos
achados em meio a cinzas de uma floresta incendiada (TECHO, 1887).
Por meio das fontes citadas, conclui-se que embora o santo conser-
vasse uma série de características próprias e pouco variáveis, o que garante
a unidade do mito, ele foi apresentado de formas diferentes pelos diversos
cronistas que se ocuparam de sua história. Certamente, cada um desses
cronistas conferiu a Tomé características que julgavam mais apropriadas
para a figura de um apóstolo cristão em missão junto aos indígenas da
América.
1.7 São Tomé no Peru e a cruz de Carabuco
A partir da obraConquista Espiritual do padre Antonio Ruiz
de Montoya, pode-se encontrar elementos para a descrição da suposta
passagem de São Tomé pelo Peru. Aparentemente, Montoya não esteve no
Peru para levantar as informações de seu relato. Ele se baseia nos escritos
do padre Alonso Ramos Gavilán, agostiniano que escreveu a obra “Historia
Del Célebre Santuario de Nuestra Señora de Copacabana y sus Milagros
e invención de la Cruz de Carabuco” publicada em 1621 (MONTOYA,
1985, p. 91). Depois de Montoya outros autores voltam a tratar do assunto,
a maioria em concordância com o missionário, entre eles estão Nicolas del
Techo em sua “Historia de la Provincia del Paraguay de la Compañía de
Jesús” (1897), publicada pela primeira vez em 1673, e Pedro Lozano em
sua “História de La Conquista del Paraguay Rio de la Plata y Tucuman
(1873), escrita no século XVIII.
Fato interessante sobre esse tema é que ele confirma a ampla
repercussão da obra de Montoya, pois ela inspirou a maioria dos outros
escritores que se referiram a Tomé no Peru. Embora nem sempre o citem, a
inflncia é certa, pois não há praticamente nenhum ponto de discordância
entre seus relatos e os de Montoya (LOZANO, 1873; TECHO, 1897;
VASCONCELOS, 1977).
O que ninguém notou, e Montoya parece ter propositalmente
omitido, é que Gavilán, embora tenha certeza de que um apóstolo passou
pela América, não afirma em nenhum momento que esse apóstolo era
Tomé. Além disso, ele aponta que o suposto apóstolo teria sido martirizado
45
no lago de Titicaca, no Peru. Isso provoca uma contradição com a ideia de
fuga para a Índia. Devido à especificidade do tema voltarei a esse assunto
no último capítulo (GAVILÁN, 1621, p. 30-32).
O fato de Montoya ter transformado o apóstolo de Gavilán em
São Tomé é interessante por demonstrar que os mitos estão em constante
processo de reelaboração, ora muito lenta, ora mais rápida. Essa
reelaboração permite que eles se ajustem para dar respostas às questões
que seus interlocutores elaboram, sem perder sua lógica e coerência. O
fato é que se o mito peruano ainda não era São Tomé, após Montoya tê-
lo descrito, se tornou, pois o jesuíta precisava demonstrar que a missão
apostólica se estendeu por toda a Arica.
Em aspectos gerais, a passagem de Tomé pelo Peru teria sido muito
similar àquela que já se narrou a respeito do Brasil e do Paraguai. Seu
principal objetivo era pregar a fé no deus único e repreender os vícios,
levava consigo uma cruz que afastava os demônios. Segundo a narração,
o santo sempre estava acompanhado por alguns indígenas, mas nunca
de forma tranquila, pois, como o de costume, encontrava resistência
dos demônios que incitavam os indígenas contra ele. O santo vivia sob
constantes ataques e perseguições dos quais se defendia com muito mais
dureza do que supostamente o fez no Brasil (MONTOYA, 1985, p. 91-93).
Um ponto a se destacar da versão peruana do mito é a cruz de
Carabuco. Embora no Brasil não se tenha registrado a associação de São
Tomé com a cruz (HOLANDA, 1996, p. 122), no Peru ela aparece de forma
exuberante. Aparece também no relato de Montoya sobre o Paraguai como
sendo o sinal designado pelo apóstolo para que os indígenas reconhecessem
os seus sucessores. É possível que a cruz do mito no Paraguai tivesse uma
apropriação do mito peruano (MONTOYA, 1985, p. 99).
Nesse ponto, tem-se novamente uma aproximação do mito ocidental
com o oriental. Montoya argumenta que no Oriente o santo teria deixado
como sinal de sua pregação uma grande cruz de pedra, com sinais do
sangue de seu martírio. Nem nisto o santo teria feito o Ocidente diferente do
Oriente, tendo deixado em Carabuco, no Peru, uma grande cruz. Conforme
Montoya, a cruz peruana era de madeira. Isso o levou a crer que não foi
fabricada no Peru, pois lá não havia madeira de qualidade semelhante
àquela do incorruptível lenho. Lá sofriam com a falta até mesmo da mais
ordiria madeira para lenha (MONTOYA, 1985, p. 98-99).
Diante de tal constatação e afirmando possuir um pedaço da cruz,
ele concluiu que ela foi feita em outro lugar e, apesar de suas dimensões,
46
transportada até Carabuco. Mesmo no Paraguai, o autor afirma não ter
conhecido madeira tão incorruptível, daí conclui que a cruz foi fabricada
no Brasil, com madeira de Jacarandá, também chamada pelos espanhóis
de “palo-santo”, que seria tão resistente quanto a da cruz de Carabuco.
Para quem visse impossibilidade em sua teoria, Montoya argumentou:
À objeção pode responder-se que, quem no Oriente, na cidade de Meliapur,
trouxe (carregou) um madeiro de imensa grandeza, que enorme número de
homens e elefantes não podia mover rumo à constrão de uma igreja ou
templo material, bem poderia trazer consigo esse madeiro precioso para
edifício espiritual de sua pregação. E aquele que o passou de uma índia à
outra sem galeões, também lhe podia tornar leve sua cruz até ao peso de
uma palha (MONTOYA, 1985, p. 99).
Erguida no povoado de Carabuco, supostamente, a presença da Cruz
teria emudecido os ídolos. Vendo os indígenas que eles não respondiam
mais, atiram a cruz na água do lago de Titicaca, mas, no dia seguinte,
mesmo sendo tão dura e inicialmente tendo afundado como pedra,
supostamente a cruz amanheceu boiando. Então tentaram queimá-la, mas
o fogo não foi capaz de destruí-la. Diante disso, os indígenas enterraram-
na à margem do lago, de modo que ela permaneceria a maior parte do
tempo soterrada e ao mesmo tempo submersa. Mesmo assim, mais de mil
e quinhentos anos depois, a cruz ainda teria se conservado incorrupta
(MONTOYA, 91-92, 100-101).
O ocorrido teria vindo ao conhecimento de Gavilán a quem Montoya
recorre novamente, depois de um conflito entre grupos indígenas. Uns
teriam começado a acusar os outros de terem más inclinões e de serem
feiticeiros e que seus antepassados tinham tentado apedrejar o santo que
pregava a fé no deus único. Também os teriam acusado terem ateado fogo
à cruz do santo e de tê-la escondido muito bem. Da suposta discussão
teria tomado conhecimento o cura Padre Sarmiento que, supostamente,
descobriu o local exato onde a cruz estava enterrada e, então, a recuperou
(MONTOYA, 1985, p. 101).
A cruz teria feito a partir de então muitos milagres, principalmente
contra raios e inndios. Segundo Nicolas del Techo, fragmentos dela
foram enviados em relicários de ouro pelo padre Diego de Torres Bolo
ao Papa Clemente VIII e a vários cardeais, que os teriam recebido com
grande estima (TECHO, 1897).
A possibilidade de uma prova material da passagem milagrosa do
47
santo chamava muito a atenção dos religiosos. A cruz de Carabuco é um
exemplo disso, mas, sem dúvida, as pegadas e o caminho do Peabiru foram
bem mais ressignificadas como provas da missão apostólica, de modo que
algumas dessas ressignificações alcançam a contemporaneidade. Isso
confirma que a história é um movimento de rupturas e continuidades, há
rupturas quando o mito é ressignificado, mas há continuidades na medida
em que ele não desaparece da vida cultural de populações próximas a
alguns dos elementos materiais associados ao apóstolo.
1.8 As pegadas do apóstolo
A maioria dos cronistas que se dedicaram a escrever a hagiografia de
São Tomé na América apresentou algum indício material que pudesse servir
como prova da passagem do apóstolo pelo continente. Um dos argumentos
mais utilizados foi o de que Tomé teria deixado diversas pegadas gravadas
em rochas. Isso, supostamente, ocorreu em praticamente todos os locais
por onde ele supostamente passou. Essas observações produziram uma
grande quantidade de referências textuais que pretendiam dar conta da
localização e da veracidade de tais vestígios materiais (SCHÜLLER, 1911,
p. 118; NÓBREGA, 1988, 78, 91, 101; LEITE, 1954a, p. 117, 138, 153-154,
379, 388-389, 411-412; MONTOYA, 1983, p. 89, 91-93, 98; LOZANO, 1873,
p. 448, 453-461; VASCONCELOS. 1977a, p. 123-127, entre outras).
De fato, materialmente, em sua maioria, tais pegadas existem. Sabe-
se, no entanto, que a maioria delas na verdade são petroglifos de sítios
arqueológicos. Sendo em geral classificadas como gravuras ou pinturas
rupestres produzidas no período pré-colonial.
A Arqueologia costuma relacionar os vestígios encontrados em sítios
que se correlacionem. Há diversas formas de classificão na arqueologia
pré-histórica. André Prous apresenta, por exemplo, a ideia de regiões
rupestres para determinar “[...] algumas grandes unidades regionais [...]”
(PROUS, 1992, p. 511). Gabriela Martin (1996, p. 71, 214) apresenta os
conceitos de área arqueológica, horizonte cultural e tradição, grosso
modo, todos estão relacionados e servem para agrupar sítios rupestres
semelhantes, sejam por critérios geográficos, sejam por critérios temáticos.
Embora não seja unanimidade, o conceito de tradição é o mais empregado
no Brasil. O critério de relação adotado, neste caso, é o da temática,
portanto uma tradição comporta representações visuais semelhantes, sem
48
que isso signifique que estejam ligadas a um grupo étnico específico. Além
disso, os vestígios de uma mesma tradição podem apresentar variações
regionais e estar espaço e temporalmente muito distantes uns dos outros
(MARTIN, 1996, p. 71; PROUS, 1992, p. 511).
Na obraArqueologia Brasileira”, André Prous (1992) descreveu ao
todo nove tradições rupestres no Brasil. Gabriela Martin (1996), ao tratar do
nordeste brasileiro, apresenta três tradições. De acordo com as descrições
de Prous, a ocorncia de petroglifos em formato de pegadas é bastante
frequente. Essas representações são verificadas nas tradições Meridional,
Itacoatiara e São Francisco (PROUS, 1992, p. 512-125, 525), e aparecem
também nas descrições de Gabriela Martin (1996, p. 268). Sem encerrar o
assunto, pode-se citar tamm a ocorncia desse tipo de artefato em sítios
estratificados do Pantanal sul-mato-grossense (SCHMITZ, 2005, p. 08) e
ainda no nordeste do mesmo estado, na região do Alto Sucuriú (BEBER,
1994, p. 15, 73). Na região do Pantanal sul-mato-grossense, referências
sobre sítios rupestres classificados como pertencentes ao estilo Alto
Paraguai. Apesar da predominância de figuras geométricas, também há
figuras antropomorfas, incluindo pegadas humanas. Não constam dados
etnoistóricos que permitam ligar esses sítios a algum grupo historicamente
conhecido, tampouco os Guató, habitantes da região, se identificam com
os letreiros (EREMITES DE OLIVEIRA, 2002, p. 224-225). Em uma
pesquisa mais aprofundada, é provável que os registros arqueológicos com
o tema pegadas sejam muito mais abundantes. Ressalta-se ainda que eles
não estão restritos a uma única região ou tradição arqueogica. André
Prous escrevendo sobre o caráter ainda insatisfatório das classificações
existentes, afirma que
[...] Independentemente dos conjuntos estilísticos, a difusão de certos
temas bem determinados talvez seja também um indicador não desprezível:
temas do ‘pé’, da ‘cobra’, da meia-lua (ou canoa) [...] são alguns destes que
o respeitam as ‘fronteiras’ entre as grandes tradições mas se integram
a várias delas, seguindo-se durante milhares de quilômetros [...] (PROUS,
1992, p. 530) (Destaque meu).
A tradição Itacoatiara merece destaque, pois, conforme Gabriela
Martin, suas representações são “[...] de todas as manifestações rupestres
pré-históricas do Brasil, aquelas que mais se têm prestado a interpretações
fantásticas [...]” (MARTIN, 1996, p. 266). Martin considera que as
Itacoatiaras (pedra pintada na língua Tupi) estão espalhadas por várias
regiões do país. Trata-se de petroglifos de tamanhos e feituras diferentes
49
que têm em comum a sua profunda ligação com as águas. Estes estão
gravados, sobretudo, em margens de rios (MARTIN, 1996, p. 266-267).
No nordeste brasileiro, predominam grafismos puros, mas também
se registram antropomorfos, pés, lagartos e pássaros nos seus grandes
paredões, sempre próximos a cursos dágua. A autora destaca que sem
dúvida é a tradição mais enigmática da arte rupestre brasileira. A datação
desses sítios é muito difícil, uma vez que como eles se localizam sempre
ligados a cursos d’água não se pode relacioná-los a outros sítios que
estejam em suas proximidades o que facilitaria a sua datação. Exceção a
esta regra é o sítio do abrigo do Letreiro Sobrado, no vale do São Francisco,
onde se encontraram ocupações datadas entre 1200 e 6000 anos antes do
presente. Essas datações só foram possíveis quando se relacionou o sítio
com fragmentos líticos e fogueiras de onde se coletaram amostras de rocha
grafada (MARTIN, 1996, p. 268).
Martin reconhece que é difícil relacionar tal tradição a algum grupo
humano específico, mas apresenta a evidencia de que esta tradição está
ligada ao culto das águas. Muitos foram os curiosos que procuram a
Pedra do Ingá, o mais famoso sítio dessa tradição, localizada na Paraíba.
Apesar de tão grande interesse, não há nenhum grande estudo sobre ela
realizado por arqueólogos profissionais. Explicações fantásticas, porém,
surgiram muitas, como, por exemplo, a de José Antero Pereira Jr., que
achava que aquelas representações tinham sua origem na escrita da
Ilha de Páscoa (MARTIN, 1996, p. 269-270). Francisco C. Pessoa Faria
acredita que as inscrições da pedra do Ingá estão ligadas ao conhecimento
astronômico pré-histórico, os grafismos seriam representações estilizadas
de constelações zodiacais (FARIA, 1987).
As interpretações fantasiosas, das quais Gabriela Martin trata,
têm uma história bem mais longa. Manoel da Nóbrega, por exemplo, cita
vestígios de São Tomé que se enquadram perfeitamente no que tange à
ligação com as águas, nas características descritas para esta tradição.
[...] suas pisadas estão signaladas juncto de um rio; as quaes eu fui ver
por mais certeza da verdade e vi com os proprios olhos, quatro pisadas
mui signaladas com seus dedos, a quaes algumas vezes cobre o rio
[...]” (NÓBREGA, 1988, p. 101). Além disso, os grafismos puros foram
interpretados como letras atribuídas ao apóstolo e citadas por Simão de
Vasconcelos (1977a, p. 126-127).
Íris Kantor destaca que, no século XVIII, o cirurgião-mor do Rio
de Janeiro, sócio da Academia dos Renascidos e membro da Academia
50
dos Felizes do Rio de Janeiro, estudou as inscrições Lavradas na Serra de
Itaguatiara, na comarca de Rio das Mortes, Minas Gerais. Posteriormente
suas análises foram apresentadas na Academia Real de História Portuguesa
em Lisboa, por Mendonça de Pina e Proença. Tais análises confirmavam
que “[...] as inscrições constituíam documentos arqueológicos da passagem
de São Tomé pela América (KANTOR, 2006, p. 55). Fica claro que a
relação entre algumas das ditas pegadas de São Tomé e a água é grande,
aproximando, portanto, esses vestígios com a hoje chamada tradição
Itacoatiara.
Conforme a maioria das fontes já mencionadas, além de outros
vestígios materiais que supostamente teriam atribuído a Sumé, os indígenas
mostraram aos europeus diversas pegadas, letras e o caminho do Peabiru,
do qual tratarei mais à frente. Essa temática aparece desdeA Nova Gazeta
da Terra do Brasil”, continua nas cartas dos jesuítas do Brasil de meados do
século XVI (NÓBREGA, 1988; LEITE, 1954) e permanece, pelo menos,
até os escritos de Montoya, já no século XVII (MONTOYA, 1985).
Apesar de os temas sobre as apropriações e crenças cultivadas a
respeito ou em torno de sítios arqueogicos chamarem muita atenção dos
meus interlocutores durante a elaboração do trabalho, observa-se que ainda
são diminutas as pesquisas específicas sobre esse tema. Fabíola Andréa
Silva (2002) é um dos poucos exemplos que se pode citar. Ela tratou da
interpretação dos Assurini do Xingu no Parque indígena Kuatinemu, no
estado do Pará, a respeito dos sítios arqueológicos ali encontrados (SILVA,
2002, p. 175-176). Além de seu próprio trabalho, a autora destacou apenas
outras duas iniciativas semelhantes que estavam sendo desenvolvidas.
Uma delas na reserva indígena do Uaça, no Amapá, e a outra no alto Rio
Negro (SILVA, 2002, p. 185).
Dentre os vários tipos de vestígios materiais apropriados, a maior
ênfase dos missionários recaiu sobre as pegadas atribuídas ao apóstolo.
Além disso, muitos grafismos ou pinturas sem significações decifráveis
foram consideradas como escritas feitas em línguas antigas, como a
grega ou a hebraica, supostamente com autoria apostólica (MONTOYA,
1985, p. 93). Encontrou-se lugar até mesmo para as gravuras zoomorfas:
eram animaizinhos que haviam se aproximado do santo para ouvir sua
pregação (LOZANO, 1873, p. 461-462). No âmbito do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, interpretações semelhantes voltaram as ser feitas
no século XIX, demonstrando certa continuidade histórica (LANGER,
2001). Se para os missionários era interessante demonstrar a antiguidade
51
da evangelização no continente, para os acadêmicos era importante
demonstrar que povos mais evoluídos do que nossos indígenas é que deram
origem ao Brasil
9
.
Embora preponderante, a atribuição das pinturas e grafismos ao
apóstolo não era unanimidade. Houve, mesmo entre os religiosos, quem
não compactuasse com tais ideias. Frei Gaspar da Madre de Deus foi
um dos que não concordaram com as evidências apresentadas por seus
colegas. Segundo ele, as pegadas de São Tomé nada mais eram do que
fósseis vegetais (KANTOR, 2006, p. 55). No entanto, a grande maioria dos
autores se utilizou das pegadas como prova da passagem do apóstolo pela
América.
Alfredo Mendonça de Souza destaca que Aires de Casal, em 1817,
estudou as pinturas Rupestres de São Thomé das Letras, Minas Gerais, e
concluiu que “[...] ‘as pretendidas letras não passam de traços e ilegíveis
jeróglicos, a que a ignorância do povo atribue (sic) à mão do Apóstolo São
Thomé, devem seu princípio a partículas ferruginosas, retirando qualquer
significado à arte rupestre [...]” (SOUZA, 1991, p. 56). O texto demonstra
que ainda no século XIX havia referências à associação de São Tomé com
registros rupestres. Isso é indicativo da abrangência e da persistência que
tal mito teve.
A curiosidade é uma característica da maioria dos grupos humanos.
Isso faz com que, ao longo do tempo, cada grupo que entra em contato
com vestígios arqueológicos produza ou se aproprie de explicações para
eles, isso vale inclusive para a sociedade contemporânea. Dessa regra,
provavelmente, não fugiram os indígenas do período da conquista e
colonização da América. Muito embora a temporalidade dos registros
rupestres seja um aspecto complicado na análise arqueológica, pois nem
sempre a datação é fácil (MARTIN, 1996, p. 221), é provável que pelo
menos a maioria dos registros rupestres seja anterior ao período colonial
americano. Logo, pode-se inferir que a maior parte dos povos indígenas
que habitavam as mais diversas regiões onde se localizam as pegadas
no momento inicial da colonização não tenham sido seus autores. O
mais provável é que eles também tenham interpretado essas inscrições
que já estavam nos locais onde seus grupos encontram assentamento.
Essas interpretações foram promovidas a partir de seus próprios códigos
culturais e repassadas aos europeus que por sua vez produziram uma nova
ressignificação atribuindo a autoria a São Tomé.
9 Ver mais sobre esse tema em: (LANGER, 2001; MOTA, 1998, 2006; FERREIRA, 2002).
52
Os trabalhos de Alfred Métraux (1979), Egon Schaden (1959,
1974) e Curt Nimuendaju (1978) indicam que ao menos alguns dos povos
linguisticamente tupi-guarani possuíam em suas culturas a figura do
herói civilizador
10
. É possível que alguns desses grupos tenham associado
pegadas encontradas em sítios rupestres com marcas deixadas por um de
seus heróis civilizadores, quiçá por Sumé. Ao entrar em contato com os
europeus, tal interpretação provavelmente foi repassada e o europeu tratou
de enquadrá-la em sua cultura que, como se verá nos capítulos seguintes,
tinha muitos motivos para atribuir tais sinais a um dos Apóstolos de
Cristo.
Segundo Schaden (1949, p. 35), é muito comum em vários lugares
do mundo a associação de supostas pegadas a seres míticos ou históricos.
Para demonstrar a universalidade da presença das associações propostas,
o autor se reportou à obra “Globus”, na qual, Richard Andree, cita
vários exemplos. Um deles dá conta de que no México havia entre os
indígenas a lenda de que um homem branco teria aparecido e pregado
uma nova religião. Perseguido pelos naturais, tal personagem teria fugido
e se refugiado no cume da montanha Zempualtepec, de onde então teria
desaparecido. Porém, antes de desaparecer supostamente deixou gravadas
as suas pegadas. Percebe-se grande semelhança entre esse relato e o
mito de São Tomé. Há referências à presença de São Tomé no México
(DURÁN, 2005; TODOROV, 1996), por isso é possível que se trate do
mesmo mito ao qual darei maior atenção no próximo capítulo. Schaden
destaca ainda a existência de muitas pegadas atribuídas a Buda. Dentre
as mais conhecidas, destaca-se a chamada Sripada, gravada no cume do
pico de Adão, no Ceilão. Segundo os relatos, aquele foi o último local que
Buda pisou antes de entrar no Nirvana. Há também em Damasco uma
pegada do profeta Maomé. Em certa ocasião, o profeta já tinha descido
parcialmente de seu camelo na cidade, quando lhe teria aparecido o anjo
Gabriel e lhe advertido de que não entraria no paraíso celeste se adentrasse
no terreno (Damasco). Diante disso, Maomé teria voltado a montar o
camelo deixando, porém, estampada sua marca no solo pedregoso. Schaden
comenta sobre outras tradições desse tipo na África, na Gcia Clássica e
entre os cristãos medievais. No mundo cristão, a mais significativa é a que
fala da pegada de Jesus deixada no alto do Monte das Oliveiras. De acordo
com a tradição, ali foi o último lugar onde Cristo pisou antes de subir aos
céus (SCHADEN, 1949, p. 35-36).
10 No próximo capítulo este tema será discutido de maneira mais aprofundada.
53
Ana Clélia Barradas Correia apresentou a visão de alguns autores
que em momentos distintos abordaram a questão do mito de São Tomé
relacionado a vestígios arqueológicos. Segundo a autora, Renato Castelo
Branco em sua “Pré-História brasileira” de 1971 fez a seguinte análise: as
tradições cristãs que circulavam entre os indígenas eram atribuídas a São
Tomé e os Jesuítas utilizavam as pegadas para comprovar tal afirmação
(CORREIA, 1992, p. 52).
Em 1909, Alfredo de Carvalho em artigo intituladoPré-História
sul-americana”, publicado na Revista do Instituto Arqueológico e
Geográfico de Pernambuco, informou sobre a serra das Letras de Minas
Gerais. Para o autor, o local foi habitado por São Tomé que, perseguido,
deixou gravado vários caracteres desconhecidos (CORREIA, 1992, p. 52).
Mesmo no princípio do século XX ainda havia autores que defendiam a
ligação de vestígios rupestres ao apóstolo.
A obra de Angyone Costa “Introdução à Arqueologia Brasileira”
(1934) discordou dos argumentos jesuíticos a respeito da presença previa
do apóstolo Tomé. No entanto, o que chama a atenção nessa obra, é que
apesar de seu título, o autor não cita em nenhum momento a questão dos
vestígios rupestres associados ao mito cristão.
Em muitos momentos, e certamente até na atualidade, no que tange
ao senso comum, os registros rupestres foram traduzidos por pessoas que
com a ansiedade gerada pela curiosidade atribuíram as mais variadas
explicações para tais registros. No entanto, ainda são poucos os trabalhos
que têm por objeto as apropriações e as consequentes ressignificações
oferecidas para a arte rupestre ao longo do tempo por diversos grupos
humanos culturalmente distintos. No âmbito desta pesquisa, não foram
encontrados trabalhos de fôlego que façam essa análise perante as
religiosidades populares alimentadas por semelhantes apropriações,
sejam no Brasil ou no Paraguai. Esse é um promissor campo de pesquisas,
sobretudo, para historiadores, antropólogos e etnoarqueólogos. O trabalho
de Correia (1992), ainda que com algumas limitações, é precursor nesse
sentido, visto que a autora realizou pesquisas de campo e procurou
problematizar tais abordagens no contexto contemporâneo do nordeste
brasileiro.
Diante da constatação de que as interpretões da arte rupestre são
das mais variadas possíveis, e que entre essas está incluída a que mais
particularmente me interessa, exporei em um tópico específico as místicas
construídas em torno da arte rupestre relacionada com o mito de São
54
Tomé e que, em alguns casos, perduram até a atualidade. Esse processo
denuncia algumas permanências e rupturas históricas que se deram em
torno do tema. A seguir, discorro sobre as apropriações e ressignificações
contemporâneas acerca do caminho do Peabiru.
1.9 Os caminhos do apóstolo: São Tomé engenheiro e algumas hipóteses
levantadas
[...] meus companheiros e eu vimos um caminho, que tem oito palmos de
largura, sendo que neste espaço nasce uma erva miúda. Cresce, porém,
aos dois lados dessa vereda uma erva que chega até à altura de quase meia
vara. Esta erva, embora de palha murchada e seca, queimando-se aqueles
campos, sempre nasce, (renasce e cresce) do modo que está dito. Corre esse
caminho por toda aquela ter ra e, como me asseguraram alguns portugueses,
avança sem interrupção desde o Brasil. Comumente o chamam de ‘caminho
de São Tomé. Tivemos o mesmo informe dos índios de nossa conquista
espiritual (MONTOYA, 1985, p. 89).
O polivalente apóstolo também é apresentado pelos cronistas
coloniais como construtor de caminhos. Ao longo de sua suposta passagem
pela América, teria construído dois caminhos. Com frequência, eles
também são citados como provas de sua passagem: Maira na Bahia
e o mais famoso deles o Peabiru, que supostamente ligava o litoral sul
brasileiro até o atual Peru.
Mairapé é o menos famoso, estaria localizado no Recôncavo da
Baia de Todos os Santos (HOLANDA, 1996, p. 115), encontra-se sobre ele
menções em fontes coloniais, mas não se aproxima do seu congênere em
termos do grande interesse despertado. Segundo Simão de Vasconcelos o
Mairapé é
[...] um caminho feito de areia sólida, e pura, de comprimento de meia
légua pelo mar dentro; e a tradição dele é, que foi feito milagrosamente
por S. Tomé, quando andando nesta Bahia pregando aos índios daquela
paragem, eles se amotinaram contra o Santo, ao qual, fugindo da fúria
de seus arcos, foi levantando o mar aquela estrada por onde passasse a
enxuto à vista sua, cobrindo logo o princípio dela de água, porque não
pudessem segui-lo os gentios, que na praia caram admirados de coisa
o extraordiria; e chamaram dali em diante aquela entrada milagrosa,
Mairapé, que vale o mesmo em língua dos brasis, que caminho de homem
branco... (VASCONCELOS, 1977a, p. 126-127).
55
Pedro Lozano, em “História de la Conquista del Paraguay rio de la
Plata e Tucuman” (1973, p. 455-456) também fez referências ao caminho
da Mairapé. Apesar disso, como já destacado, o maior interesse tanto
de cronistas quanto de pesquisadores está no caminho do Peabiru ou
caminho de São Tomé, apresentado com ares de admiração, logo acima,
por Montoya. Isso certamente se deve ao fato de que esse caminho, com
sua longa extensão, teve significativa importância estratégica durante o
período colonial.
Chamado pelos indígenas de Peabiru (Peavirú, Peaviyú ou Tape
avirú) (TORREZ, 1994, p. 30) e pelos europeus de caminho de São Tomé,
a famosa via terrestre acabou sendo mais um elemento de ressignificação
por parte dos europeus. Provavelmente, a ligação entre o caminho e São
Tomé se deu de forma tão rápida quanto à ressignificação de Sumé para
São Tomé. Basta lembrar que a “Nova Gazeta da Terra do Brasil”, já
em 1515, cita a lembrança de São Tomé. Embora não fale do caminho,
faz referências às narrativas sobre riquezas interiores. Riquezas que
posteriormente inspirariam Aleixo Garcia a realizar sua expedição, na qual
utilizou a via (SCHÜLER, 1911, p. 119). O franciscano espanhol Bernardo
de Armenta, que escreveu em 1538, também não menciona diretamente o
caminho, mas relata a lembrança de São Tomé na região entre a Ilha de
Santa Catarina e Assunção (ARMENTA, 1992, p. 155-157). A presença do
mito de São Tomé não demorou a ser associada à autoria do caminho que
logo começou a ser utilizado pelos viajantes.
Desde o princípio da colonização, o caminho de São Tomé foi
amplamente utilizado por espanhóis e portugueses como via de ligação
entre o oceano Atlântico e Assunção e também como via de ligação
comercial, por vezes clandestina, entre São Paulo de Piratininga na
Capitania de São Vicente no Brasil e Assunção no Paraguai. Pelo caminho
transitaram importantes figuras da história platina, como, por exemplo,
o português Aleixo Garcia (LANGER, 2005, p. 20). Outra personagem
de destaque que utilizou uma das rotas do Peabiru foi Álvar Núñez
Cabeza de Vaca, que caminhou da Ilha de Santa Catarina até Assunção.
Na viagem, em 1542, descobriu as Cataratas do Iguaçu (CABEZA DE
VACA, 1944; HOLANDA, 1996, p. 127). Eles foram seguidos por outros
como o soldado mercenário alemão Ulrich Schmidel, além de Pero Lobo
e Francisco Chaves (LANGER, 2005, p. 21). Também foram seguidos por
religiosos, como o franciscano Bernardo de Armenta (1992, p. 155-157) e
os jesuítas Antonio Ruiz de Montoya e José Cataldino (TORREZ, 1994,
56
p. 30). Pessoas de menor relevo histórico também utilizaram o caminho
em seus deslocamentos (BAÉZ, 1926, p. 39), caracterizando esta via
como fundamental para a logística platina dos dois primeiros séculos da
colonização. Mesmo em épocas mais avançadas temporalmente, o caminho
continuou tendo sua importância. Cita-se como exemplo marcante disso
os caminhos tropeiros do sul do Brasil, durante os séculos XVIII e XIX
(CHMYZ & SAUNER, 1971, p. 30).
A extensão total do caminho é calculada na atualidade em cerca de
três mil quilômetros. Suas trilhas passavam pelos atuais estados brasileiros
de São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul e pelos atuais
países sul-americanos Paraguai, Bolívia e Peru. Ele teria sido dividido em
cinco rotas, sendo a mais importante a que se estendia entre São Vicente
e Assunção, passava pelos rios Tibagi e Piquiri no atual estado do Paraná.
Uma segunda via partia de São Vicente, chegava ao rio Paranapanema e
posteriormente atingia o rio Ivaí. A terceira saía de Cananéia até o Vale do
rio Tibagi. Outra rota incluía o interior catarinense, partindo do rio Itapocu
até encontrar o ramal paulista. A última passava pelo vale do rio Uruguai
(LANGER, 2005, p. 21).
Durante o período colonial, o Peabiru teve grande imporncia
geopolítica, ao que tudo indica os espanis transitavam tranquila
e rapidamente entre sua colônia e São Vicente, o mesmo faziam os
portugueses em direção à Assunção. O considerável rendimento da
alfândega de São Vicente, fruto das relações comerciais mantidas com os
espanhóis, começou a preocupar o governador Tomé de Souza que temia
uma ação militar da colônia espanhola. Em 1553, Tomé de Souza manifestou
ao rei sua desconfiança em relação ao caminho. Apesar do medo da ameaça
militar, não foi essa a causa que deu autoridade às medidas tomadas. Um
episódio de espionagem comercial foi o fato que legitimou o fechamento
do caminho. O diplomata Martin de Arue, agindo na Corte portuguesa
como informante de Madri, deu conta de que em 1553 um homem de
São Vicente teria exibido amostras de prata de boa qualidade. Como essa
prata supostamente teria sido coletada nas cercanias de Assunção, Madri
tomou medidas para proteger suas possessões. Irritados, os portugueses
da Corte de Lisboa autorizaram o seu governador a tomar medidas para
o fechamento do caminho, visto como uma ligação perigosa entre as duas
colônias (DONATO, 1997, p. 101).
Tomé de Souza proibiu o tráfego em toda a extensão do caminho.
Não abriu nem mesmo aos Jesuítas, preferiu a indisposição com Nóbrega
57
a oferecer uma exceção. Várias são as passagens das cartas jesuíticas em
que se observam queixas de Nóbrega e de seus colegas. Estava nos planos
de Nóbrega fundar uma missão no Paraguai. Essa interdição dificultou
sobremaneira tal iniciativa (LEITE, 1954b, p. 362-363).
11
Essas questões demonstram que o Caminho do Peabiru teve
grande importância na logística continental dos séculos XVI e XVII. Ele
foi testemunha de muitos viajantes, migrantes indígenas, aventureiros e
bandeirantes e também por isso, certamente sofreu várias apropriações e
ressignificações, principalmente sua atribuição a São Tomé. A atribuição do
caminho a São Tomé, assim como no processo análogo relativo às pegadas,
provavelmente foi inspirada em narrativas indígenas que creditavam
o caminho a algum herói civilizador. Além disso, foi um instrumento
no processo de negação de qualquer status superior ou civilizado aos
indígenas. Creditar o Peabiru ao apóstolo, também era negar a capacidade
de construção de tal obra aos indígenas da América, que foram a todo
tempo inferiorizados e estigmatizados pela celebre afirmação de que não
tinham nem fé, nem lei e nem rei (LEITE, 1954b, p. 252).
Segundo informações do arqueólogo e historiador Johnni Langer
(2005, p. 23), a única escavação arqueogica feita por especialistas no
caminho do Peabiru, ocorreu em 1970. Naquela ocasião, um grupo de
pesquisadores liderados por Igor Chmyz, da Universidade Federal do
Paraná (UFPR), trabalhou no município de Campina da Lagoa, no Paraná.
Chmyz informa que os primeiros vestígios do caminho foram encontrados
naquele município (CHMYZ & SAUNER, 1971, p. 16).
O trabalho da equipe de arqueólogos conseguiu reconstituir um
traçado de cerca de 30 quilômetros do caminho. A primeira extremidade
estava “[...] orientada para o rio Piquiri, alguns quilômetros abaixo da
foz do rio Cantu. A outra aponta para as sedes dos municípios de Campo
Mourão e Peabiru” (CHMYZ & SAUNER, 1971, p. 16). Nas áreas em que
a agricultura de soja ainda não havia sido implantada e as matas ainda
eram mais densas, trechos do caminho eram perfeitamente visíveis. O
caminho apresentava as seguintes dimensões: 1,40 m de largura e 0,40 m
de profundidade. Não se constatou nenhum tipo de revestimento, o chão
era de terra batida, contradizendo assim aos cronistas que descreviam a
cobertura com gramíneas. Nos trechos já ocupados pela soja ou outras
culturas, não era possível identificar vestígios do caminho (CHMYZ
11 Retomarei esse assunto no último capítulo do livro.
58
& SAUNER, 1971, p. 16). Atualmente, embora se tenha notícias de
pequenos trechos ainda visíveis, a maior parte desses sítios já deve ter sido
comprometida, haja vista que a derrubada das matas no estado do Paraná
avançou sensivelmente entre as décadas de 1970 e 1990, restando poucas
reservas naturais. Ao longo do caminho, foram encontrados espaçadamente
diversos sítios arqueogicos, sendo aterros, casas subterrâneas e uma
galeria subterrânea (CHMYZ & SAUNER, 1971, p. 16).
Segundo Chmyz, os sítios arqueológicos estudados por ele e sua
equipe, incluindo o caminho indígena, nas regiões Oeste e Sudoeste do
Paraná estão ligados à chamada tradição Itararé (CHMYZ & SAUNER,
1971, p. 20). Trata-se de uma tradição arqueológica ligada ao grupo
linguístico Jê. Seriam os antepassados dos Kaingang e Xokleng atuais,
os responsáveis pela construção do caminho do Peabiru (CHMYZ, 2004,
p. 21). A teoria tem grande importância ao excluir os Guarani enquanto
possíveis construtores do caminho.
Diante dos primeiros dados levantados, da ligação inicial à tradição
Itararé, surgiu um problema a ser respondido. Nas palavras do autor:[...]
Como é que um membro do grupo Jê poderia continuar sua caminhada
entrando em território Tupi-Guarani e vice-versa? [...] (CHMYZ, 2004,
p. 22). Devido a essa questão, o autor chegou a colocar em dúvida a
possibilidade de atribuição do caminho a algum grupo determinado. O
caminho saía do litoral, ocupado pelo grupo linguístico Tupi-Guarani,
passava pelo planalto Curitibano e pelo centro do Paraná, territórios
historicamente dominados por povos linguisticamente Jê, na margem do
rio Paraná entrava novamente em terras Tupi-Guarani (CHMYZ, 2004,
p. 22).
Dados mais recentes, com datações até então não publicadas, dão ao
autor a certeza de que o caminho foi feito pelos grupos Jê, pois a Tradição
Itararé é anterior à Tupi-Guarani no atual Paraná. Ou seja, a ocupação
indígena encontrada pelos europeus era diferente da configuração do
momento em que o caminho foi construído (CHMYZ, 2004, p. 22).
O fato de não terem sido os Guarani os construtores do caminho,
não significa que esses não o tenham utilizado, é certo que eles utilizaram
o Peabiru com o conjunto de seus ramais. Afinal, isso facilitava em boa
medida a locomoção. O fato, por exemplo, de os Guarani terem guiado
Aleixo Garcia e Cabeza de Vaca sinaliza que eles conheciam o caminho
e ensinaram os europeus a utilizá-lo. É significativo nessa trama que em
certa altura da viagem Cabeza de Vaca, acompanhado de seus guias, tenha
59
saído do tronco do Peabiru. Pesquisas realizadas por Chmyz demonstram
que na época de Cabeza de Vaca o local desviado era ocupado pelos Jê,
ou seja, os Guarani não podiam seguir pelo caminho sem um inevitável
confronto com seus inimigos, por isso o desvio (CHMYZ, 2004, p. 22).
Seguindo as ideias de Chmyz, está claro que os Guaranio foram
os construtores do caminho. Apesar disso, eles se serviram dele quando
foi possível e conveniente. Ou seja, se apropriaram de um elemento
material encontrado no sítio em que se instalaram. Provavelmente dessa
apropriação material ramificou-se uma apropriação simbólica na qual
o caminho foi atribuído a um herói civilizador, Sumé. Isso cabe muito
bem na lógica cosmológica Guarani, da qual tratarei melhor no próximo
capítulo. Essa lógica aponta que o herói aparece como um distribuidor
de dádivas e disciplinador de comportamentos. Os europeus por sua vez
promoveram sua própria ressignificação, transformando o Peabiru em
caminho de São Tomé.
Ao longo do tempo, foram cunhadas muitas outras versões
explicativas para a origem do caminho, a maioria carente de embasamento.
Apesar disso, continuam a ser defendidas por alguns. A mais eminente
dessas teses é a que atribui o caminho aos Incas, de modo que eles seriam
os construtores da via. Desde o século XIX, prestigiados autores brasileiros
defenderam essa ideia, entre eles estão Ladislau Netto, diretor do Museu
Nacional, na década de 1870; Antonio Tocantins, o Barão de Capanema;
Jaime Cortesão; Augusto Pinto e mais contemporaneamente Herni
Donato e Luiz Galdino (LANGER, 2005, p. 22-23).
Como parte de um projeto arquitetado pelo Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro para a construção de uma identidade nacional
brasileira desvinculada da imagem primitiva do indígena e voltada para
a Europa (MOTA, 2006), buscou-se a todo custo encontrar no território
nacional vestígios de ocupação humana anterior aos indígenas nacionais.
Esses vestígios deviam caracterizar a existência de uma civilização mais
desenvolvida do que a dos nativos aqui encontrados pelos europeus. Nessa
busca insacvel, os intelectuais do IHGB encontraram escritas fenícias,
hebraicas, cidades perdidas e muitos outros vestígios que poderiam provar
uma virtual ocupação civilizada anterior aos primitivos povos indígenas
com os quais a nação precisava conviver. Isso ocasionou a criação de
diversos mitos arqueológicos pelo Brasil afora (LANGER, 2001).
Nesse contexto, surgiram as teorias de que o território brasileiro
sofreu grande influência dos Incas. A Amazônia era vista como a região
60
sob maior influência, segundo Tocantins, eles teriam fugido dos espanhóis
e se refugiado na Ilha de Marajó. Assim a cerâmica arqueológica Marajoara,
a mais famosa da América do Sul no século XIX, teria sido fabricada por
um grupo mais civilizado do que os pobres indígenas nacionais. Nesse
momento, surgiram as explicações modernas que sugerem a origem incaica
para o caminho do Peabiru, pois os construtores da identidade nacional,
assim como os primeiros conquistares, pensavam que tão grande feito não
poderia ter sido realizado por povos primitivos. Em 1882, na Exposição
Internacional de Paris, o pavilhão antropológico e arqueológico brasileiro
recebeu o nome de Pavilhão Inca, caracterizando o ponto máximo dessas
teorias (LANGER, 2005, p. 22).
Hernâni Donato é um contemporâneo defensor da teoria incaica,
ao que parece o autor chega a essa conclusão por falta de uma opção
mais convincente dentro de seu arcabouço de pesquisa. Após descrever a
incontestável qualidade das vias incas, por vezes superiores às européias
daquele momento, indaga o autor: “Por que não poderiam os executores
de tais obras assim magníficas abrir trilha que, mesmo sem o esplendor
das rotas imperiais andinas, mas com eficiência de serviço, chegasse
desde Cuzco a São Vicente, Cananéia, Santa Catarina?” (DONATO, 1997,
p. 72). De acordo com Donato, de Cuzco, coração do império andino,
as vias partiam para as quatro direções do continente sul-americano.
Dessas, as mais importantes eram mais largas, pavimentadas, protegidas,
arborizadas e guarnecidas, estendiam-se de norte a sul. Tal cuidado se
devia, principalmente, porque por ali transitava o próprio Inca. Todavia,
outras de importância secundária se direcionariam para leste e oeste e
tinham qualidade inferior, este talvez fosse o caso do Peabiru (DONATO,
1997, p. 73-74).
O autor concorda com a ideia de que a técnica empregada na
construção do caminho não era compatível com a cultura dos povos
indígenas brasileiros, corrobora nesse sentido com as ideias de inferioridade
cultural do indígena nacional, apresentadas por seus predecessores desde
o século XIX.
Em trechos, este piso vegetal, serpeteando pelo continente com uma
largura de oito palmos; em outros, lajes tecnicamentes (sic) aparadas e
dispostas. Não se tratava de concepção e realização para o tupi, o tamoio,
o guarani, vagantes por aquela imensidade. Tais valores não foram apenas
descritos ou imaginados. Podem ser vistos, em certos lugares, ainda hoje,
1997 (DONATO, 1997, p. 84).
61
Embora estudos mais criteriosos ainda não tenham apresentado
respostas totalmente elucidativas sobre o Peabiru, de um modo geral, a
tese da origem andina atualmente está bastante debilitada. Segundo
Langer, ela é enfraquecida por dois motivos básicos. O primeiro deles é
o fato de não existirem vestígios em escavações arqueológicas criteriosas
que possam atestar a presença Inca no Brasil. A partir do século XIX
dezenas de artefatos foram encontrados pelo Brasil, realmente alguns
deles têm inegável origem andina. No entanto, isso não quer dizer que
esses materiais foram fabricados no local em que foram localizados e nem
que foram trazidos pelos Incas. Conforme os estudos arqueológicos, esses
artefatos, como, por exemplo, o machado de cobre, encontrado em Iguape,
no estado de São Paulo, adentraram no Brasil já no período pós-conquista,
fruto de contatos com europeus ou mesmo entre indígenas de diferentes
grupos étnicos. A partir do século XVIII, poderiam ser fruto da atividade
de colecionadores. Em alguns casos, as peças atribuídas aos Incas não
passavam de fraudes, como a pedra de Urubici ou a máscara de bronze de
Guaratuba. Há ainda confusões com artefatos indígenas dos sambaquis,
como um ídolo de pedra antropomorfo, oriundo de Iguape.
Langer apresenta também uma nova teoria surgida recentemente,
segundo a qual a origem do Peabiru é explicada com a afirmação de que
os indígenas teriam construído o caminho com base no caminho da Via
Lacta. Tal feito estaria ligado à mobilidade Guarani que ficou conhecida
na etnologia como a busca pela terra sem males
12
. Baseando-se no
historiador Luiz Galdino, Langer refutou esta Teoria, pois, segundo ele,
embora muitos grupos étnicos tivessem ligações com os astros, no caso
dos Guarani, essas migrações, que foram marchas rumo ao Atlântico,
ocorreram após o início da colonização européia, logo não se poderia
ligá-las à construção do caminho que certamente é da época pré-colonial
(LANGER, 2005, p. 23).
A refutação apresentada por Langer pode ser complementada e
corrigida no que diz respeito à unidirecionalidade e à limitação do período
das migrações, uma vez que estas já ocorriam, em menor escala, no período
pré-colonial e em direções diversas. Nesse sentido, cabe acompanhar as
ideias de Bartomeu Melià a esse respeito. A cultura Guarani comporta o
12 De acordo com Chamorro, a expreso “terra sem males” já aparece no “Tesoro de la lengua
guaraní” de Antonio Ruiz de Montoya. Na etnologia é Nimuendaju quem, em 1914, dá destaque a
ela como provável motor das migrões Apapokúva. Alguns anos depois, Métraux recorre a es
hipótese para estudar, os já extintos, Tupinambá (CHAMORRO, 2008, p. 168).
62
conceito de tekoha. Teko tem como um dos principais significados: modo
de ser. Assim sendo, “[...] el tekoha es el lugar donde se dan condiciones
de posibilidad del modo de ser guaraní []” (MELIÀ, 1989, p. 495).
A semântica do termo “[...] corre menos por el lado de la producción
económica que por el de un modo de producción de cultura []” (MELIÀ,
1989, p. 495). Para Melià, o tekoha é composto por três espaços: (1) a mata
preservada: local reservado para a caça e a pesca; (2) o terreno cultivável;
e (3) a casa, bem definida como espaço social e político (MELIÀ, 1989, p.
495). A harmonia e o bom funcionamento desses três espaços designam o
bem da terra. O Guarani é um ser amplamente religioso, mas a terra não
é vista como um deus. Porém, está repleta de experiências religiosas. Para
ele, a terra é o principal fundamento para a manutenção da economia de
reciprocidade. Para que a plenitude da vida seja alcançada, a terra deve
propiciar a realização de boas festas, ou seja, a terra tem imporncia vital
como espaço cerimonial (MELIÀ, 1989, p. 496-498; 1991, p. 09).
Também é bastante presente o horizonte de instabilidade dessa
terra perfeita, qualquer desequilíbrio, seja, ecológico, social, espiritual, ou
um cataclismo qualquer traz o mal para a terra. Cabe ao líder religioso
da comunidade, o xamâ, identificar o mal. Essa identificação não se
dá por uma mera constatação técnica, mas por “[...] un discernimiento
donde entran en consideración tanto factores ecológicos, como tensiones
y perturbaciones sociales e inquietudes religiosas [...]” (MELIÀ, 1989,
p. 502). A partir de então se inicia a busca pela terra sem males. Essa
busca nem sempre se dá por meio de migrações, pode-se caracterizar de
várias maneiras que vão desde a migração real até a busca de um caminho
espiritual celebrada ritualmente e praticada com ascetismo (MELIÀ,
1989, p. 501-502). Sob esse ponto de vista, Melià tem um posicionamento
marcadamente crítico para com as teorias explicativas que partem
do princípio de que a busca pela terra sem males é necessariamente
caracterizada por um deslocamento físico.
Melià recorda ainda que na verdade são poucas as migrações reais
histórica ou etnograficamente documentadas, destacando-se, entre essas,
aquelas que caminharam em direção aos Andes e originaram o povo
Chiriguano (MELIÀ, 1989, p. 504). Ou seja, quando as migrações de fato
ocorreram, elas nem sempre rumaram em direção ao Atlântico (MELIÀ,
1991, p. 73). Métraux, ao tratar da busca pela terra sem males, afirma que
apesar de predominarem entre os indígenas aqueles que acreditam que
sua localização está ao leste, isso não é regra, pois havia vários defensores
63
da ideia de que a encontrariam rumando ao oeste (MÉTRAUX, 1979, p.
178, 184).
Francisco Noelli, ao se referir à invenção da busca pela terra sem
males, destaca que os dois primeiros autores que trabalharam com o tema
em relação aos povos Tupi-Guarani, Nimuendaju e Métraux, iniciaram
um discurso generalizante que influenciou a maioria dos estudos sobre
os povos genericamente chamados Guarani. Graciela Chamorro, ao
comentar Noelli, destaca que “[...] Noelli comenta que Métraux, ao
‘comprovar cientificamente’ as intuições de Nimuendaju sobre aterra sem
males, acabou inaugurando um mito acadêmico sobre esses indígenas”
(CHAMORRO, 2008, p. 168). Para Noelli, não tem fundamento a
ligação incondicional entre migrações e terra sem males. Suas ideias se
fundamentam nos escritos de León Cadogan sobre os Mbyá, para os quais
o ingresso na terra sem males o se dá com a necessária migração terrena.
Arqueologicamente, com base nas ideias de Brochado, o autor defende
que as migrações estão mais para um legado presente no imagirio
das pessoas do que para um habitus dos grupos linguisticamente Tupi-
Guarani. Somente em situações críticas é que os Guarani utilizavam a
mobilidade espacial como forma de resistência (NOELLI, 1999, p. 141-143;
CHAMORRO, 2008, p, 168-171).
Outro aspecto importante a ser ressaltado é o fato de que a
organização social Guarani antes das reduções se dava geralmente por
pequenos agrupamentos humanos liderados por um xamã
13
(BECKER,
1992, p. 35; MELIÀ, 1989, p. 502). Segundo Melià, os grupos Guarani,
apesar de sua relativa unidade linguística e cultural, por vezes eram
inimigos e viviam como tal separados (MELIÀ, 1997, p. 18). É muito
improvável que a busca pela terra sem mal tenha alguma relação com a
construção do Peabiru. Isso é dedutível pela complexidade do assunto, com
as suas diversas formas de concretização, que nem sempre implicavam em
migrações reais. Além disso, tem-se ainda a organização social baseada
em pequenos grupos. Esses fatores dificultariam a associação dos esforços
necessários para a construção de tão vultosa obra, como parece ter sido o
caminho do Peabiru. Para afastar de vez essa teoria, basta recordar que
o arqueólogo Igor Chmyz demonstrou que o Peabiru foi construído por
13 Os líderes religiosos indígenas foram genericamente denominados desta forma pelos etnólogos,
mas o termo tem origem no tunguz, saman e chegou ao meio acamico ocidental por meio da
Rússia. Stricto sensu se refere apenas a um fenômeno religioso da Sibéria e da Ásia Central
(ELIADE Apud CHAMORRO, 2008, p. 113).
64
grupos linguisticamente Jê, anteriores aos Guarani na ocupação daquele
território (CHMYZ, 2004, p. 22).
1.10 Permanências contemporâneas
Na atualidade ainda existem permanências de cultos a São Tomé
associados a vestígios materiais. Farei menções apenas a algumas dessas
ocorncias. Sabe-se que um trabalho mais exaustivo a respeito da mística
popular que gravita em torno de alguns desses sítios trará resultados mais
satisfatórios sobre essas questões contemporâneas. Inicialmente, cito
algumas reminiscências que aqui, devido aos limites deste trabalho, não
serão abordadas de forma intensa. Por exemplo, na região de São Thomé
das Letras no estado de Minas Gerais e no município que antes de sua
emancipação era chamado de São Tomé e após recebeu o nome do suposto
herói mítico Sumé no estado da Paraíba. Na região de Assunção, capital
do Paraguai, fica a cidade de Yaguarón, lá existe um morro chamado de
Santo Tomás (Tomé) onde a mística popular diz haver pegadas do santo.
O local dista cerca de cinquenta e cinco quilômetros da capital e fica
muito próximo de Paraguarí que foi uma estância jesuítica. Nesse local,
desenvolvem-se cultos populares ligados a São Tomé
14
.
Em sua dissertação, Ana Clélia Barradas Correia (1992) procurou
fazer análises a respeito da mística popular construída e alimentada em
torno de pegadas na região nordeste do Brasil. Delimitado o espaço a
ser pesquisado, a autora foi a campo com o objetivo de localizar vários
sítios relacionados a São Tomé, muitos deles não foram encontrados. Ela
localizou três locais onde ainda no final da década de 1980 e seguinte
se realizavam algum tipo de culto, um deles é diretamente ligado a São
Tomé. Isso demonstra que o mito persistiu ao tempo e não deixou de ser
apropriado e consequentemente ressignificado pela população.
O primeiro sítio do qual Correa tratou está localizado na praia de
Piatã, distante aproximadamente vinte quilômetros da cidade de Salvador,
Bahia. Neste local, havia, segundo a autora, um grande cruzeiro dedicado
ao apóstolo. A cruz contava com uma cobertura de palha e estava à
beira-mar, mas longe do alcance das marés. O cruzeiro ficava próximo
ao caadão da Avenida Otávio Mangabeira. Atrás do cruzeiro, na areia,
14 E-mail pessoal de Adelina Pusineri, diretora do Museo Etnogfico “Andrés Barbero” Paraguai,
de 25/02/2008.
65
existiria uma pedra, na qual estariam as gravuras de pegadas humanas.
Este local aparece diversas vezes em citações de cronistas e historiadores
coloniais (BREGA, 1988, p. 91; LOZANO, 1873, p. 453). De acordo
com a descrição, era um local muito popular, onde anualmente se realizava
uma festa em louvor a São Tomé. No dia 20 de dezembro de 1990, a autora
esteve no local para acompanhar os festejos. Havia uma placa que dava
informações sobre o cruzeiro, tal placa afirmava que a tradição da festa se
estendia por trezentos e oitenta e oito anos.
Em sua pesquisa de campo, a autora não conseguiu ver a pedra
com as pegadas. Localizada à beira-mar, supostamente, ela ficava a maior
parte do tempo encoberta pela água ou pela areia. A população oferecia
para esse fato várias explicações místicas. Segundo uma delas, a pedra
só apareceria de tempos em tempos, mais precisamente de sete em sete
anos. De acordo com os informantes, quando isso ocorria rapidamente a
notícia se espalhava atraindo grande quantidade de pessoas. Havia ainda
quem acreditasse que a pedra aparecia cada vez em um local diferente.
Outra versão afirmava que as pegadas é que mudavam de pedra. Embora
essa questão da mobilidade das pegadas não fosse consenso entre os
participantes, ninguém sabia exatamente onde as pegadas apareciam
(CORREIA, 1992, p. 81-82).
A descrição que a autora colheu no local foi a seguinte:
[...] a marca de pé humano, esquerdo, ‘perfeitíssimo’, com o calcanhar para
a terra e os dedos para a água, é atribuída ao apóstolo São Tomé. A pata
de animal, segundo eles, seria o rastro de um cachorro. As depressões
circulares são vistas como marcas do cajado do santo. Faria parte ainda
do conjunto uma fi gura identifi cada com uma cruz cristã, símbolo da
religiosidade do autor das pegadas (CORREIA, 1992, p. 82).
Apesar de ter a possibilidade de realizar uma sondagem para tentar
localizar a pedra, a autora sabiamente preferiu não fazer, em respeito ao
local turístico da capital baiana e principalmente à religiosidade popular
que ali se desenvolvia. Tal atitude poderia ser uma intervenção complicada
nessa mística que previa certos espaços de tempo em que por motivos
sobrenaturais as pegadas viriam à tona.
Segundo Correia, diz a tradição contemporânea que aquele sítio
foi encontrado por um pescador em 1602. Essa descoberta supostamente
ocorreu na mesma data em que oficialmente a Igreja comemora o dia
de São Tomé. A partir disso os moradores começaram a acreditar que
66
as pegadas eram de São Tomé e que ele teria passado por ali em tempos
imemoriáveis realizando milagres. Para Calasans, citado por Correia:
[...] o culto às pegadas de São Tomé na Bahia, indicaria ‘a in uência que
a igreja, decerto através dos padres da Companhia de Jesus, teria tido na
determinação da data. Na realidade, as pegadas eram conhecidas pelos
jesuítas ainda no século XVI, quando esses realizavam romarias ao local,
que inclusive já era chamado de ‘São Tomé’ [...] A data de 21 de dezembro
de 1602, ainda de acordo com Calasans,valeria apenas para ofi cializar o
culto popular’ (CORREIA, 1992, p. 83).
Esta referência, citada pela autora, e que não é questionada por ela,
é muito vaga de significado. É pouco provável que, em 1602, os jesuítas
fossem inventar ou reinventar a tradição de São Tomé, desvinculando-a
da tradição indígena. Isso porque durante esse período o mito ainda estava
em processo de ressignificão por parte dos jesuítas que, como as fontes
demonstram, em momento algum o desvincularam do elemento indígena.
É mais provável que tal desvinculação tenha ocorrido bem depois dessa
data, e que mesmo assim não tenha tido participação dos jesuítas. Com
o passar do tempo, dos séculos, a história transmitida oralmente pode
ter sofrido modificações, quem sabe motivadas inclusive por aspectos
ideogicos que permearam a sociedade durante seus diferentes momentos
históricos. Poderia ter sido, por exemplo, durante o Segundo Reinado, em
pleno século XIX, quando se iniciou um movimento de construção da
identidade nacional no qual os ingenas passaram para o segundo plano,
dada a opção de europeização da identidade nacional, fato que levou
à desvalorização de tudo o que estivesse relacionado à cultura indígena
(MOTA, 2006). Desvalorização que perdura trazendo, por exemplo, além
do preconceito inerente, dificuldades para a conservação e exploração
turística de nossos sítios arqueológicos (MORAIS, 2005, p. 99).
Em relação aos festejos, Correia destaca que antes da tarde de 20
de dezembro o local já havia recebido os preparativos iniciais. O cruzeiro
tinha sido recentemente pintado na cor azul e branca. Na tarde do dia da
festa, o local foi enfeitado com flores de papel colorido, fitas, folhagens
e bandeirinhas. Antes de tudo, os populares já haviam pedido donativos
aos barraqueiros para financiar as bebidas que regariam a parte profana
da festa. Após a decoração, ao entardecer, a imagem do santo chegou de
carro ao local, conduzida por duas senhoras de setenta e cinco anos que a
colocaram sobre uma mesa em frente à cruz. A imagem media cerca de 45
67
cm, era de madeira, estava em precário estado de conservação. Na mão do
santo havia um cajado, que em vários locais, inclusive lá, se identificaram
supostas marcas junto às pegadas (CORREIA, 1992, p. 84-85).
Após a chegada das rezadeiras, que vieram em grupo, todos
cantavam e tocavam pandeiro. O canto tinha o seguinte refo: “São
Tomé meu amor, o povo da farra chegou” (CORREIA, 1992, p. 85). As
participantes, em sua maioria eram mulheres, simples, negras em sua
maioria, e moradoras das imediações. Vinham com os cabelos enfeitados
com flores e folhagens. Elas levaram flores, toalha e incenso para concluir
a decoração do santo. Cerca de quarenta devotos participaram dos festejos.
As orações eram cantadas, uma delas seria a seguinte ladainha: “Glorioso
São Tomé refúgio dos pecadores rogai por nós que recorremos a vós”
(CORREIA, 1992, p. 86). Aos homens eram reservadas apenas atividades
aparentemente não religiosas como acender a fogueira e cuidar dos fogos
de artifício.
Ao final da parte religiosa da festa, cantaram o hino de nosso senhor
do Bonfim. Todos aplaudiram e deram vivas ao santo. Logo em seguida os
homens soltaram os fogos que anunciaram o final das rezas (CORREIA,
1992, p. 86).
Ainda segundo a descrição, após o fim das orações, as pessoas
teriam se acomodado em banquinhos, formando uma roda, deu-se início ao
que a autora chamou de parte “profana” da festa, com uma roda de samba
e batidas de facas no fundo de pratos. A participação contemplou a todos
os presentes que alegremente festejaram animados pela bebida fartamente
distribuída. Correia afirma ter ouvido uma conversa saudosista entre as
senhoras mais idosas. Elas recordavam os anos anteriores nos quais a festa
era mais bonita e prestigiada (CORREIA, 1992, p. 87-88).
Após o término dos festejos, uma das mulheres levou a imagem para
casa e na manhã seguinte a devolveu à igreja. Nas festas contemporâneas,
não há a participação oficial da Igreja. O pároco da época não comparecia
ao cruzeiro da praia. A celebração do dia 21, data oficial de comemoração
do santo, foi simples e rápida, bastante criticada pelas devotas. Segundo
uma das informantes, o padre em ocasiões anteriores já havia inclusive
dificultado a saída da imagem, possivelmente em represaria à parte
profana da festa (CORREIA, 1992, p. 88).
Conforme Dona Badu, informante de Correia, no passado a
organização da festa era diferente, muito mais pomposa. Segundo ela,
68
havia a celebração de missa campal sobre um grande palanque armado
na praia. Havia até o acompanhamento da banda de música do Corpo
de Bombeiros. Nos “primeiros tempos”, a procissão era naval. Ao final
da celebração, a imagem era conduzida pelos fiéis por terra até a igreja
matriz. Não há, de acordo com a autora, ninguém que se recorde da época
exata em que supostamente o culto começou a sofrer modificações, com
aparente perda de importância no âmbito eclesiástico oficial (CORREIA,
1992, p. 88).
A autora apresentou dois trechos de documentação da primeira
metade do século XX, que descrevem a realização da cerimônia. As
descrições documentais da festa não eram tão pomposas quanto a feita pela
informante acima citada, mas, sem dúvida, apresentam maior esplendor do
que a observada por Correia (1992, p. 90).
Segundo a autora, “[...] a partir dos relatos acima comparados entre
si e com a observação da festa nos dias atuais, podemos comprovar o
enfraquecimento da tradição reclamado pelas ‘rezadeiras’ presentes nos
festejos [...]” (CORREIA, 1922, p. 90). É pouco cautelosa uma afirmação
direta nesse sentido. É fato que pelas evidências observadas, a festa
diminuiu, perdeu adesão, mas em se tratando de uma tradição mística
os parâmetros de medida para dizer se ela está mais fortalecida ou
enfraquecida não são necessariamente os observados. A importância da
significação que isso representa na vida das pessoas que dela participam
pode ter maior importância do que o quantitativo de participantes. Tal
afirmação da autora seria menos perigosa se a observação etnográfica
tivesse sido feita por um período mais longo e não apenas durante o dia
da festa. Ao que parece, o dia da festa é apenas o ápice de um processo
devocional contínuo. Os critérios são muito subjetivos, isso prejudica a
afirmação da autora.
A curta duração de boa parte das observações de campo dos traba-
lhos etnográficos e etnoarqueológicos é hoje um mal frequente no Brasil,
isso às vezes fragiliza alguns trabalhos. Esse problema, de modo geral,
não é causado pela incapacidade dos pesquisadores, mas principalmente,
pelas limitações de financiamento das pesquisas, am da dificuldade que
a maioria encontra para se ausentar por períodos longos das instituições
em que trabalham, visto que a maioria divide o tempo entre o ensino e a
pesquisa. Esses são desafios que as Ciências Humanas precisam enfrentar,
pois seu objeto de estudo nem sempre pode ser levado para um laboratório
de Universidade.
69
No caso de Correia, talvez o mais aconselhável e possível não fosse
pensar se a tradição estava mais forte ou mais fraca, mas apenas constatar
que ela sofreu mudanças ao longo do tempo. A adjetivação, nesse caso, é
perigosa. A partir daí, na impossibilidade plena de analisar sua significância
em todo o período histórico, teriam sido mais interessantes análises sobre
os significados que os eventos têm no presente, questão sobre a qual a
autora não se aprofundou. Um estudo mais profundo precisaria ir além
da data em que a festa se realizou, expandindo-se aos preparativos, tanto
materiais, quanto devocionais ou rituais, que eventualmente poderiam ter
significados bem mais complexos do que a festa em si.
No município de Oeiras, que foi a primeira capital do estado do
Piauí, há um sítio arqueológico composto por gravuras em formato de
pegadas. Lá não há associação direta a São Tomé, mas uma ressignificação
que atribui um dos petroglifos a Deus e o outro ao diabo (CORREIA,
1992, p. 90-103).
No município de Luis Correia, no Piauí, em uma colônia de
pescadores de Barrinha, a autora também encontrou algumas gravuras
com formato de pés humanos. Ela acredita que algumas dessas gravuras
não são frutos da ação humana, mas sim das águas da maré que atritando
contra a rocha teriam formado as marcas. Outras três figuras seriam de
fato fruto da ação humana.
O que chama mais atenção neste caso é que as pegadas eram
atribuídas a Nossa Senhora, uma figura feminina. Segundo a explicação
dos informantes, ao fugir de Nazaré com o menino Jesus, montada em
um jumento, a virgem teria passado por aquela região e ali parou para
descansar. Nessa parada, deixou as marcas de seus pés e as do seu animal.
Embora haja essa tradição entre os moradores, não foi identificado nenhum
culto. Observa-se que os moradores atuais tratam as marcas mais como
curiosidades do que como símbolos místicos. Todavia, segundo alguns,
no passado havia algumas senhoras que acendiam velas perto das marcas.
Apesar disso, ao que tudo indica o culto não teve grandes proporções
numéricas em termos de participantes (CORREIA, 1992, p. 104-107).
O caso da pegada de Deus e do diabo e o da pegada de Nossa
Senhora, no Piauí, são exemplos de que as populações humanas frequen-
temente buscam dar alguma explicação para registros rupestres que
encontram em seus locais de assentamento. Como esses moradores não são
os autores de tais vestígios, fazem ligações diretas às místicas e crendices
de sua própria cultura. Esses casos demonstram que esta problemática é
70
ainda bastante carente de pesquisas mais complexas e exaustivas e que o
tema de São Tomé na Arica persiste, denunciando uma continuidade
histórica. Todavia, o mito não é estático, pelo contrário, vem assumindo
novos significados, oferecendo respostas adequadas para o seu tempo.
O caminho do Peabiru também não foi esquecido na atualidade.
Na década de 1990, surgiram várias iniciativas para a incorporação do
caminho em rotas turísticas. Atualmente, é possível encontrar na Internet
diversos exemplos de páginas que tratam desse assunto. Mesmo em uma
observação geral, pouco aprofundada, pode-se constatar que não há muita
preocupação científica por ts disso. A maioria dos textos analisados
reproduz explicações míticas a respeito da origem do caminho (SANTA
CATARINA, 2007; PAUTA, 1995 p. 06-07; AGENCIA ESTADUAL,
2004; SECRETARIA DE ESTADO, 2007; PREFEITURA, 2007; PICKI-
UPAU, 2007).
No estado de Santa Catarina, em um site sobre Turismo “A Confraria
de São Tomé” apresenta o Projeto do Circuito Turístico Internacional
do “Caminho Sagrado de São Tomé”. Este projeto é uma parceria entre
a Confraria de São Tomé e o Governo do Estado de Santa Catarina que
têm como objetivo mostrar “A verdadeira saga dos Jesuítas, nos moldes do
famoso caminho de Santiago de Compostela. O projeto ligado à Confraria
utiliza como base para atração de turistas o aspecto religioso, cultivando
a ideia de que o caminho realmente foi aberto por São Tomé. A Confraria
de São Tomé “[...] é uma organização não governamental instituída para
implantar, promover e zelar por qualquer iniciativa cultural, artística ou
turística que leve o nome do Santo Apóstolo de Cristo no mundo e zelar
pelos bens materiais e imateriais”. Apesar de ter nominalmente atribuições
amplas, ela “[...] foi criada principalmente para administrar as obras de
implantação de um circuito turístico denominado ‘Caminho Sagrado
de São Tomé com início na cidade de Garuva - SC (O CAMINHO
SAGRADO, 2007).
Nenhum dos projetos turísticos que pude analisar noticiou alguma
preocupação com uma pesquisa arqueológica sistemática e séria sobre o
assunto. A maioria utiliza explicações míticas para atrair seus visitantes.
Na atualidade, é cada vez mais urgente a criação de novas oportunidades
de geração de rendas. Nesse contexto, o patrimônio arqueológico entendido
como bem de natureza especial e de uso comum ao povo brasileiro pode
ser incluído nas expectativas de geração de rendas oriundas da atividade
turística (MORAIS, 2004, p. 98). O turismo arqueológico é uma tendência
71
mundial como parte do chamado turismo cultural. O Brasil possui um
grande potencial a ser explorado. Uma pesquisa do Ministério do Turismo,
divulgada em 2006, revelou que o turismo cultural está em terceiro lugar
na preferência do brasileiro, perdendo apenas para o ecoturismo e o
turismo de aventura (CAVALCANTI & VELOSO, 2007, p. 156). Apesar
disso, ao contrio do que acontece, por exemplo, no México, Peru e
Egito, no Brasil esse potencial ainda é muito pouco explorado. Funari
destaca que nos falta uma política cultural que envolva a população, que
faça com que o patrimônio arqueogico, incluindo sítios pré-históricos e
históricos, urbanos ou não, adquiram sentido para as populações locais.
Há certa alienação da população em relação ao patrimônio arqueológico,
especialmente ao pré-histórico, isso provavelmente se deva ao desprezo
em relação às populações indígenas, o mesmo se repete com os sítios
históricos relacionados aos escravos (FUNARI, 2003, p. 116-117; FUNARI
& PINSKI, 2004, p. 10).
Não pode ser papel do turismo arqueológico alimentar ou criar
mitos. A melhor opção talvez fosse a exposição de todos os mitos
criados em torno do caminho, seguida de uma explicação acadêmica
para o assunto. Um turismo realmente arqueológico necessariamente
precisa ser enriquecido com as explicações interpretativas revestidas
do rigor científico que, na maioria das vezes, são oriundas da séria
pesquisa acadêmica (CAVALCANTI & VELOSO, 2007, p. 159). Como
o patrimônio arqueológico é público, pertencente à União, as políticas
municipais de turismo precisam estar sintonizadas às exigências legais
estabelecidas pela legislação brasileira para o exercício da arqueologia,
fato nem sempre observado. Nesse sentido, é fundamental a existência
de uma plataforma acadêmica na elaboração e execução dos projetos
(MORAIS, 2005, p. 98-102).
1.11 O Sumé de Varnhagen e a política de integração dos povos
indígenas
No século XIX, durante o segundo reinado, as elites nacionais
brasileiras buscaram meios para a construção de uma identidade nacional
que possibilitasse a consolidação do jovem Estado Nacional. Foram
empreendidos vários esforços, por exemplo, do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB), no que tange ao universo intelectual.
72
Em tal contexto, os povos indígenas passaram a ser vistos como
problema nacional. Diversos intelectuais apresentaram suas propostas
para a solução dessa questão. Muitos desses escritos foram publicados
pela “Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. A intensa
ocupação do território nacional pelas populações indígenas foi a principal
motivadora de tais preocupações. Primeiramente, havia a preocupação
com delimitação das fronteiras nacionais. Também era forte a questão
relacionada à posse de terras, visto que os territórios ocupados pelas
populações indígenas, de um modo geral, interessavam aos artífices dos
poderes locais, que viam neles grandes oportunidades de exploração
econômica. Nessa conjuntura, o Estado imperial implantou uma série
de medidas indigenistas que visavam civilizar e integrar os indígenas à
sociedade brasileira. Optou-se pela construção de uma identidade nacional
branca e européia, na qual não havia espaço para as populações indígenas,
de modo que a eles caberia a integração. A construção da pretensa
identidade nacional foi acompanhada da anulação da diversidade étnica
(MOTA, 1998; 2006).
A ordem do dia na política estatal brasileira era a integração dos
povos indígenas. A incorporação e a expropriação de suas terras ocupavam
lugar importante na pauta da jovem nação. A política indigenista da época
não se pautou nas necessidades dos povos indígenas, como se tentava
fazer pensar, mas sim nas necessidades da sociedade envolvente. Tal
indigenismo favorecia a expansão das grandes propriedades agrias e a
projetos específicos de colonização (MOTA, 1998, p. 150-152).
A relevância do problema é caracterizada pelo fato de que quase
20% dos artigos publicados na Revista do IHGB, entre 1839 e 1889,
tratavam da questão indígena (MOTA, 2006, p. 125). No interior do IHGB,
o debate se desenvolveu em torno de quatro vias de integração do indígena:
(1) integração via catequese religiosa, (2) integração via branqueamento
das populações indígenas, (3) integração pela guerra e (4) integração pelo
trabalho (MOTA, 1998).
Varnhagen era contrio ao projeto catequético. Em sua opinião,
os jesuítas, com seu vagaroso método, eram os grandes responsáveis
por ainda haverem tantos indígenas “selvagens” vagando pelos sertões,
envergonhando a nação e degradando a humanidade (MOTA, 1998, p. 157).
Em detrimento às outras proposições existentes e em total contraposição
aos catequistas, Francisco Adolfo Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro,
era defensor ferrenho da superioridade das populações brancas em relação
73
às indígenas. Caso os indígenas se recusassem a aceitar sua inferioridade
e a se integrar espontaneamente na sociedade nacional, ele defendia a
integração por meio da força militar. No caso da impossibilidade do
estabelecimento de um pacto social com os selvagens, ele foi um dos que
propuseram o extermínio de populações indígenas (FERREIRA, 2007, p.
69; MOTA, 1998 p. 160-161; OLIVEIRA, 2000, p. 138).
Em sua vasta obra, Varnhagen objetivava legitimar o domínio
das elites na construção do Estado Nacional e apresentava as classes
subalternas e as etnias reticentes como teimosos que insistiam em não se
integrar ao jovem Estado. Seus principais objetivos eram a construção de
uma nação branca e européia, a criação de um Estado forte e centralizado e
a constituição do homem branco brasileiro, fruto da miscigenação entre as
raças existentes (MOTA, 1998, p. 162). Apesar da crueldade de Varnhagen,
ele não pode ser julgado de maneira anacrônica. É preciso lembrar que no
arcabouço teórico da época não há externio de sociedades indígenas,
porque tais sociedades não existem. O que há é a sociedade nacional,
européia, além dela haveria apenas a selvageria (CUNHA, 1986, p. 171).
Evidente que isso não o torna mais simpático, todavia, relativizar os
julgamentos é sempre necessário na História, sob pena de se incorrer no
pecado capital chamado anacronismo.
A partir da perspectiva de superioridade da raça branca européia
e da ideia de que a melhor solução para os indígenas era a integração,
pacífica ou não, à sociedade nacional, Varnhagen escreveu um texto
intitulado “Sumé. Lenda Mytho-Religiosa Americana, Recolhida em
outras eras por Um Indio Moranduçura. Agora traduzida e dada à luz com
algumas notas por Um Paulista de Sorocaba”, publicado pela primeira vez
na Espanha em 1855. Nele, o autor ressignificou o mito do Sumé de forma
a fiar suas proposições. Com a justificativa de que os indígenas já teriam
recusado a mensagem civilizadora de um enviado divino, ele defendeu sua
tese de submissão forçada.
Com base nos cronistas que davam notícias sobre o mito durante os
séculos XVI, XVII e XVIII, Varnhagen construiu uma narrativa na qual
um fictício narrador indígena apresenta a pregação de Sumé e a recusa
indígena aos valores divinos. Logicamente, os valores divinos por ele
elencados não passam dos valores do mundo ocidental europeu, como, por
exemplo, a instituição do matrimônio, a propriedade privada, a residência
fixa, o batismo e, principalmente, a adequação à vida em sociedade civil
(OLIVEIRA, 2000, p. 101).
74
Vale destacar que ao longo do texto, Varnhagen não denomina o
mito como São Tomé, mas sim como Sumé. Ele faz referência ao santo
católico apenas uma vez, quando questiona,Será Sumé o mesmo
apostolo Thomé, a quem coube tambem em partilha o annunciar o verbo
no Oriente?” (VARNHAGEN, 1855, p. 07-08). O autor narra a trajetória do
santo em conformidade com as cartas de Nóbrega e com a “Crônica” de
Simão de Vasconcelos, mas mantém certa reserva em denominar o mito
como sendo São Tomé. Tal reserva, talvez seja indicativa de uma eventual
descrença dele ou da sociedade oitocentista, na proposição de que o santo
realmente tivesse passado pela América. É possível que gradualmente o
mito tenha perdido parcialmente a credibilidade no meio letrado. No caso
de Varnhagen, isso é relativizado, pois na sequência ele afirma “[...] vós
ordenastes aos doze escolhidos que fossem por toda a terra [...] e elles por
certo vos obedeceram [...]” (VARNHAGEN, 1855, p. 08), depois disso ele
continua a narração sem voltar a falar diretamente do apóstolo.
Em linhas gerais, sua narrativa segue na mesma linha daqueles
autores que o inspiraram, ou seja, Sumé prega aos indígenas, estes recusam
a palavra, reagem contra ele de maneira violenta e então o ser mítico
inspirado por Deus retira-se para continuar sua missão em outra área. A
diferença é que na narrativa de Varnhagen afloram expressões civilizadoras
e a suposta ira de Deus que justificariam seus ideais civilizatórios.
Em uma de suas abordagens aos indígenas, Sumé teria pregado:
“Venho ensinar-vos a conhecer o verdadeiro Tupan, e a amal-o, amando a
virtude”, diante de suas palavras os indígenas teriam caído em gargalhadas
desdenhando da pregação. Uma voz vinda das alturas teria advertido:
“Malditos os que escarnecem dos ministros do Senhor [...]”. Após a
adverncia prosseguiu Sumé: “Ouvide-me [...] que venho ensinar-vos o
modo de vos regerdes pelas leis da sociedade civil, e de fazerdes productiva
a madre terra, mais fecunda que mil de vossas mulheres” (VARNHAGEN,
1855, p. 10). Nesses trechos, já são percepveis as ideias de que o enviado
de Deus defendia a civilização. Assim, os indígenas por não aceitarem essa
civilização receberam, em consequência, a irritação de Deus. Desta ira
divina, teria vindo o castigo, no caso, a submissão aos brancos europeus.
Em certo ponto, Sumé teria se deparado com um povo que fazia
guerra a outro grupo. A causa da guerra seria a repreensão a uma rebelião
promovida pelo grupo subjugado, vendo isso ele teria pensado que ali seria
ouvido, pois em sua visão, eles eram “[...] respeitadores das instituições da
sociedade civil [...]”, prossegue então o narrador,
75
Porque a sociedade civil não pode subsistir sem a idéa do castigo.
Pois as multidões que não temem se desenfream, e se fazem barbaramente
arrogantes.
E ás vezes o predomínio da recta rao, que é a suprema lei, constante,
immutavel e eterna para os homens, só pode alcançar-se por meio da
força.
Porque embora chamem alguns ao homem animal racional, é certo que
elle é antes um animal “susceptivel de razão”; e só raciocina bem, quando
cultiva com esmero suas faculdades mentaes.
Assim o castigo, e por conseguinte a guerra, muitas vezes servem a
melhorar e a puri car as almas; e são os fi adores da ordem e do predominio
da razão.
Os homens na essência vaidosos, invejosos e egoistas, quando não sujeitos
pelas leis e suas penas, são para os outros homens mais cruéis do que bestas
féras.
Pois só por meio da sociedade podem os mesmos homens chegar a apreciar
como virtudes a caridade e a piedade que tanto agradam ao Senhor.
E não duvideis que as leis foram feitas para proveito e segurança dos
homens e para a sua felicidade.
Porêm todo o que se liga em sociedade a par dos gozos e direitos, contrae
obrigações e deveres para com os outros associados (VARNHAGEN, 1855,
p. 23-25).
Prosseguindo seu argumento, Varnhagen afirma que a providência
divina sujeitou os animais aos homens e da mesma forma desde que criou
os homens desiguais em aspectos físicos e intelectuais, os sujeitou uns
aos outros. Segundo ele, a desigualdade antes de ser ruim é um predicado
indispensável à vida e à conservação do corpo social. A igualdade,
desejada por alguns, seria um verdadeiro absurdo encontrada apenas nos
silenciosos sepulcros (VARNHAGEN, 1855, p. 26).
E mais, Deus quando permitiu que houvesse neste mundo homens
mais fortes, valentes, destros, sábios e prudentes do que outros
[...] desde logo estabeleceu a sujeição destes primeiros. E dotando o homem
do instincto de admirar a memoria, os monumentos, e quase a sombra dos
heroes, incutiu em seu animo a tendencia de respeitar mais a sua geração
que outra sem passado algum, e nos legou a instituição da nobreza e com
mais rao a da realeza.
E em verdade vos digo que nunca bemdiráo (sic) tanto quanto devem ao
Senhor os povos a quem elle brindar com um soberano benefi co e justo; e
com magistrados rectos e íntegros que afugentem da pátria a desolação e o
cahos (VARNHAGEN, 1855, p. 26-27).
76
Nesse trecho do texto, Varnhagen defendeu o ideal de superioridade
dos brancos europeus em relação às outras populações especialmente às
indígenas. Também fica explícita sua opinião de que o uso da força bélica,
às vezes, é inevitável para a implantação da ordem civil. Independente de
qualquer coisa, a civilização deveria ser imposta por aqueles que já eram
civilizados. Ao indígena selvagem cabia integrar-se à sociedade. Observa-
se ainda que na perspectiva do autor os povos indígenas eram privilegiados
por terem recebido de Deus um governo civil capaz de guiá-los para a reta
observância dos valores civis.
Findada a suposta guerra que serviu de pano de fundo para o enredo
do texto, o povo vencedor teria novamente se fracionado em pequenas
tribos”, entregaram-se aos “[...] antigos vicios e barbárie”. Acreditavam
em falsos pajés e ídolos, viviam com várias mulheres, entregavam-
se à preguiça e praticavam a antropofagia. Sumé mais uma vez pregava
sem que lhe dessem ouvidos, desalentado, segue para outra paragem
(VARNHAGEN, 1855, p. 28-31).
Segundo o autor, diante de tanta repulsa, Sumé lamentava a má
sorte daquele povo que sofreria com a ira de Deus. Então, trovões e
relâmpagos pareciam querer acabar com a ideia de silêncio daqueles
homens. Os povos corriam como loucos, guerreavam entre si, não tinham
território e nem pátria, suas fronteiras iam somente até ao alcance de suas
flechas e aos poucos iam se exterminando mutuamente, até que todos
teriam se enfraquecido (VARNHAGEN, 1855, p. 35). Percebe-se bem a
visão eurocêntrica negativista do autor em relação à ausência de valores
ocidentais, como a propriedade privada e a ideia de pátria, nas sociedades
indígenas.
Varnhagen continua e como fechamento diviniza seus valores e
ideais civilizatórios.
E Sumé sentado sobre uma pedra de granito chorava a sorte do povo
condenado, que deveria perecer ou fundir-se em outro povo pela presença
de algum conquistador mais forte de espírito e coração e bem quisto do
Senhor.
E o afl igiam os trabalhos, e as fomes e os grilões e as mortes que teriam
logar de uma e outra parte para conseguir-se a regeneração que elle agora
offerecia pacifi ca.
Porque uma tal regeneração só haveria de conseguir-se com a lei do Senhor;
na qual unicamente podem os homens estar unidos e por conseguinte
fortes.
77
E os míseros que a não seguem, debilitando-se de dia para dia, tem de ceder
e de succumbir ante a simples presença dos mais fortes (VARNHAGEN,
1855, p. 35-36).
A notícia de tais percalços teria se espalhado entre os indígenas e
esses teriam então fugido do litoral para o sero. Na fuga, teriam levado
grande quantidade de mariscos como suprimento, deixando na costa
montes de ostras, nos quais sepultaram os que faleceram durante os
preparativos da funga. Esta era a explicação do autor para o surgimento
dos sambaquis
15
.
Varnhagen em pleno século XIX se apropriou do mito do Sumé – São
Tomé, conferindo-lhe um novo sentido, de certo modo similar àquele que
os jesuítas o deram, mas por outro lado bastante divergente. Se Varnhagen
e jesuítas concordavam com a ideia de que um enviado de Deus já havia
pregado a boa nova para os indígenas, discordam na ressignificação
implementada por cada um deles. Como se verá no capítulo III, os jesuítas
se autoproclamaram sucessores do apóstolo, imbuídos da obrigação de
continuar a sua obra evangelizadora. Varnhagen, por sua vez, via, no
fracasso do pregador divino, portas abertas para a manifestação da ira
divina, que se daria pela subjugação promovida pelos brancos europeus em
relação aos indígenas. Dessa forma, a integração por meio da força seria
divinamente legitimada, de forma que os europeus seriam uma espécie de
vingadores divinos.
15 Sítios arqueológicos litorâneos são formados por materiais orgânicos, como conchas de mariscos
e ossos de peixes, empilhados ao longo do tempo. Sofrem a ação da intempérie, o que acaba por
promover uma fossilizão química, pois a chuva deforma as estruturas dos moluscos e dos ossos
enterrados. Isso difunde o cálcio por toda a estrutura e petrifica os detritos e ossadas porventura
ali existentes. Embora sejam encontrados em outros locais, são mais incidentes no litoral do
Atlântico.
79
II
“Uma nova humanidade”: a inclusão do outro na cosmologia cristã
Expostas as principais características do mito de São Tomé na
América, suas relações com a cultura material e alguns processos que
permitem visualizar rupturas e permanências históricas em relação ao
mito, passo a discutir as suas apropriações e ressignificações nos dois
primeiros séculos da colonização. O principal objetivo do presente capítulo
é expor e problematizar as formas com que os europeus se apropriaram
e ressignificaram o mito de São Tomé durante o século XVI e suas
principais utilizações no contexto da reelaboração da cosmologia cristã, na
qual a América e, principalmente, os povos indígenas do continente foram
incluídos. No próximo capítulo, serão abordadas as questões relativas ao
século XVII.
2.1 O conceitual mitogico
Este trabalho não tem por objetivo formular ou sintetizar teorias
sobre o conceito de mito. O objetivo aqui é demonstrar como, em um caso
concreto, um determinado mito foi apropriado e ressignificado por atores
imersos em realidades sociais historicamente construídas e datadas. Por
isso, não concentrarei demasiados esforços em busca de uma definição
correta ou uma definição cientificamente hegemônica do conceito, pois,
como afirma Everaldo Rocha:
[...] o mito é [...] um fenômeno de difícil defi nição. Por trás dessa palavra
pode estar contida toda uma constelação, uma gama versifi cada de idéias.
O mito faz parte daquele conjunto de fenômenos cujo sentido é difuso,
pouco nítido, múltiplo. Serve para signi car muitas coisas, representar
várias idéias, ser usado em diversos contextos (ROCHA, 1991, p. 07).
80
No mesmo sentido, caminha Mircea Eliade ao falar sobre uma
possível definição de mito.
Seria difícil encontrar uma defi nição do mito que fosse aceita por todos
os eruditos e, ao mesmo tempo, acessível aos não especialistas. Por outro
lado, será realmente possível encontrar uma única defi nição capaz de
cobrir todos os tipos e todas as funções dos mitos, em todas as sociedades
arcaicas e tradicionais? O mito é uma realidade cultural extremamente
complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas
múltiplas e complementares.
A defi nição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por
ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata
um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do
‘princípio’. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos
Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade
total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição. É sempre, por tanto, a narrativa
de uma ‘criação: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.
O mito fala do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente.
Os personagens dos mitos são Entes Sobrenaturais, eles são reconhecidos,
sobretudo pelo que fi zeram no tempo prestigioso dos ‘primórdios’. Os
mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade
[...] de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas
vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ‘sobrenatural’) no Mundo. É
essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte
no que é hoje. E mais: é em rao das intervenções dos Entes Sobrenaturais
que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural (ELIADE,
1991, p. 11).
Neste trabalho, opto por levar em consideração diversas caracte-
rísticas presentes em alguns autores que definiram tal conceito. Essen-
cialmente, mito é a uma narrativa, tipicamente anônima, a respeito de seres
sobrenaturais relacionados à origem de alguma prática cultural, instituição,
lugar ou grupo social. O mito também explica o lugar dos grupos sociais no
mundo e sua relação com os outros grupos, bem como os valores culturais
por ele assumidos e venerados. Portanto, o mito surge e é utilizado pelas
sociedades, na maioria das vezes, para explicar o que é racionalmente
inexplivel em um dado momento, mas que precisa de alguma forma ser
explicado para que o funcionamento da sociedade seja possível dentro da
estruturação básica de sua cosmologia e também de seu próprio sistema
sociocultural. Ele tem a função de dar explicações simbólicas para fatos
concretos ouo. A origem da humanidade e do universo são os principais
temas que os mitos explicam, mas não os únicos. Eles têm a função de
81
estabilizadores sociais e agem como fortalecedores da integração e coesão
da sociedade (CHAUI, 2004, p. 23; EDGAR & SEDGWICK, 2003, p. 214;
ELIADE, 1991, p. 07-13; ROCHA, 1991, p. 7).
Em síntese, eles explicam as origens de uma enorme gama de
ideias que fazem parte da vida social e cultural da humanidade. Explicam
ainda a instituição da ordem entre essas ideias (cosmogênese), a origem
da sociedade (sociogênese) e o sentido de outros elementos que não
estejam necessariamente ligados à origem histórica ou mítica da sociedade
(EDGAR & SEDGWICK, 2003, p. 214-216; MITCHELL, S.d, p. 327;
DICIONÁRIO, 1986, p. 768-769).
Com frequência, o conceito de mito é utilizado como sinônimo
de mentira. Porém, não é neste sentido que aqui é empregado. Mito não
é o mesmo que fábula, uma vez que os mitos são verdades e são vivos.
Evidentemente que se os conceitos de verdade e mentira fossem aqui
discutidos, provavelmente, ter-se-ia mais algumas páginas e nenhuma
conclusão. Todavia, a verdade e a vida imputadas ao mito não possuem o
sentido lato senso que se costuma lhe atribuir, “[...] o mito não é verdadeiro
no seu conteúdo manifesto, literal, expresso, dado. No entanto, possui um
valor e, mais que isso, uma eficácia na vida social” (ROCHA, 1991, p.
11). Eliade (1991, p. 7) designa o mito como “[...] uma ‘história verdadeira
e ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e
significativo”.
Embora seja uma narrativa, o mito não é uma história qualquer,
pois ele “[...] funciona socialmente. Existem bocas para di-los e ouvidos
para ouvi-los. O mito está aí na vida social, na existência. Suaverdade,
consequentemente, deve ser procurada num outro nível, talvez, numa
outra lógica” (ROCHA, 1991, p. 10). Para Eliade (1991, p. 08), o mito[...]
fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo,
significação e valor à existência [...]”.
Nessa perspectiva, o mito de São Tomé na América será analisado
não como uma história fabulosa que para os contemporâneos pode até
parecer absurdo, mas como uma verdade historicamente datada. Verdade
uma vez que é assim que foi pensado pelos seus ressignificadores. Mesmo
no caso de Montoya, que como se verá, instrumentalizou o mito a favor
da obra inaciana, o mito não estava desprovido dessa realidade, pois sua
instrumentalização só foi possível porque era coerente naquele momento
histórico. O mito de São Tomé atuou entre outras coisas como um
harmonizador entre as culturas indígenas e a cristã europeia.
82
Como afirma Karen Armstrong (2005, p. 09) “[...] O mito trata do
desconhecido; fala a respeito de algo para o que inicialmente não temos
palavras. Portanto, o mito contempla o âmago de um silêncio [...]”.
No caso do objeto em análise, havia inúmeras perguntas. A busca
por respostas soava de diferentes formas para indígenas e europeus. Dessa
forma, é razoável afirmar que o provável mito indígena do Sumé respondia
a perguntas, como, por exemplo, a origem de certos vestígios rupestres,
caminhos, alimentos, rituais praticados, utilizados ou consumidos pelos
indígenas e, talvez, a respeito da origem dos missionários cristãos. Portanto,
eles precisavam de uma explicação para que esses questionamentos,
com suas devidas respostas, compusessem a sua compreensão sobre a
estruturação e o funcionamento do mundo, ou seja, de sua cosmologia.
Já para os europeus crisos, o mito de São Tomé agiu inicialmente
resolvendo duas questões, a manutenção do paradigma monogenista
16
e,
principalmente, a da inclusão dos povos indígenas americanos na rota de
evangelização apostólica. Isso foi necessário porque, na época, carecia-
se de uma resposta à lacuna gerada pela bula papalSublimis Deus, de
Paulo III, publicada em 1537. Se, por um lado, ela resolvia um anseio dos
religiosos confirmando a humanidade dos indígenas, por outro, criava
um novo problema. Sendo humanos, por que então teriam ficado de
fora da evangelização apostólica inicial ordenada pelo próprio Jesus em
seu evangelho? Eis o que diz o evangelho:[...] Ide pelo mundo inteiro,
proclamai o evangelho a todas as criaturas [...]” (A BÍBLIA TEB, 1995, p.
1259, Mc. 16, 15). Assim sendo, o mito respondeu a essa interrogação: os
indígenas tinham recebido a evangelização apostólica por meio do apóstolo
Tomé. Como o mito de São Tomé foi apropriado e ressignificado será
discutido, mais adiante, ainda neste capítulo. Devido a essas duas funções
apontadas acima e às quais a personagem Sumé ou São Tomé inicialmente
serviu, é pertinente conceituar os relatos na categoria de mito. Isso porque
de uma forma ou de outra eles acabam explicando a origem de sociedades,
práticas culturais e de uma realidade social vigente.
Inicialmente, apresento uma reflexão a respeito da origem indígena
do mito do Sumé. Embora não seja possível apresentar uma conclusão
irrefutável, chega-se à conclusão de que é muito provável que tenha havido
um mito originariamente indígena que foi associado ao mito cristão de
16 Pensamento defensor da ideia de que a origem de toda a humanidade se deu a partir de ancestrais
comuns. Os cristãos defendiam que a humanidade foi criada por Deus, e que todos são descendentes
de Adão e Eva (Conf. A BÍBLIA TEB, 1995, p. 12-13, Gen. 2, 5-24).
83
raiz oriental. Em seguida, discutirei a ressignificação do mito deo To
por parte dos europeus de forma a incluir o indígena na cosmologia cristã.
Por julgar pertinente à estrutura do trabalho, tratarei no último capítulo do
processo intercultural que em tese pode ter servido para que os indígenas
incluíssem os cristãos em sua cosmologia, visto que supostamente a vinda
dos cristãos estava prevista por um ente mítico.
2.2 Sumé: mito indígena?
Uma das perguntas mais instigantes que surgiram no decorrer desta
pesquisa foi a seguinte: Sumé era de fato um autêntico mito indígena ou
na verdade uma criação europeia? Apesar das exposições e da análise que
farei a seguir, ainda assim não é possível responder a esta questão com total
certeza. A impossibilidade de uma posição afirmativa deve-se à escassez de
fontes diretas indígenas que tratem desse tema. Embora haja testemunhos
indígenas do período colonial sobre diversos temas, a respeito do mito
do Sumé, nada foi encontrado. Soma-se a isso o caráter inconclusivo, das
fontes europeias, sobre essa matéria, que são, em sua maioria, de origem
eclesiástica. Exporei a seguir, a partir das considerações de alguns autores
e também de minhas próprias pesquisas, uma possibilidade interpretativa
que leva a crer que há grande probabilidade de que tenha havido um mito
indígena que foi associado ao Tomé do cristianismo.
2.2.1 Abordagem antropológica
Ao analisar as mitologias de alguns grupos pertencentes à família
linguística Tupi-Guarani, percebe-se que existe entre elas e também entre
alguns outros grupos, uma ideia que se apresenta como relativamente
comum sobre a presença da figura do herói civilizador (MÉTRAUX, 1979,
p. 12). Evidentemente que, à revelia de Métraux, apenas essa semelhança,
de maneira geral, não leva a presumir uma suposta unidade cultural e
tampouco étnica, entre os diversos grupos.
Embora existam opiniões distintas a essa, Schaden referenda a
definição de herói civilizador dada por Van Deursen, estudioso de heróis
civilizadores de diversos grupos indígenas da América: “Um herói
civilizador é um ente mítico ao qual se atribuem podêres (sic) sobrenaturais
e que ou desempenhou um papel importante na transformação da terra
84
depois da criação ou do dilúvio, ou então deu à tribo importantes leis,
instituições, bens de cultura” (DEURSEN
17
apud SCHADEN, 1959, p.24).
A vantagem dessa fórmula está em sua grande abrangência, pois
os mitos classificados como heróis civilizadores são figuras por vezes
muito distintas e que variam em relação à forma com que se apresentam
e ao papel que desempenham. Outro ponto importante a salientar é que,
provavelmente, a categoria herói civilizador não é encontrada em nenhuma
mitologia indígena, é, antes de tudo, uma invenção conceitual científica
(SCHADEN, 1959, p. 24-26).
Tais características correspondem em grande parte àquelas atri-
buídas pelos cronistas a Sumé. Pode-se, portanto, considerar que existe
uma grande possibilidade de que Sumé seja de fato um mito do arcabouço
cultural indígena. Apesar de não se ter certeza da existência de um herói
com a nomenclatura Sumé, é provável que a origem do São Tomé americano
tenha se dado da associação do mito cristão oriental com alguma narrativa
mitológica indígena. Esse processo ocorreu porque os europeus, buscando
encontrar uma religião nativa, o fizeram com base em sua própria cultura,
ou seja, procurando a si mesmos no outro, e encontrando similitudes com
sua própria cultura, traduziram o (s) mito (s) indígena (s) para os padrões
cristãos (POMPA, 2003, passim).
Mircea Eliade defende que nas ditas “sociedades primitivas”, mas
não somente nelas, os rituais e atos humanos obedecem a modelos traçados
por seus deuses, heróis civilizadores ou ancestrais míticos. De acordo com
essa teoria, os seres humanos repetem de maneira constante aquilo que foi
ensinado ou ordenado pelo herói civilizador (ELIADE, 1992, p. 29-30).
Tal obediênciao se verifica irrestrita nem no Su dos cronistas e nem
entre a maioria dos heróis civilizadores dos Tupinambá e dos Guarani.
Quando os heróis fazem alguns tipos de exigências que contrariam a
vontade dos integrantes do grupo social, é verificada, nas descrições,
certa rebeldia em relação a eles. Essa característica foi utilizada pelos
missionários para justificar a rebeldia indígena ante o evangelho, já que
teriam recusado a pregação de Sumé (São Tomé) quando este lhes tentou
incutir os hábitos civilizados da cristandade. Apresentarei agora as ideias
de alguns importantes antropólogos a respeito dos heróis civilizadores dos
grupos da família linguística Tupi-Guarani.
17 DEURSEN. A. Van. Der Heilbringer – Eine ethnologische Studie uber den Heilbringer bei den
nordamerikanischen Indianern. Groningen, 1931.
85
Na obra “A Religião dos Tupinambás” (1979), o antropólogo
suíço, naturalizado americano, Alfred Métraux, com base em relatos
coloniais, especialmente no de André Thevet, procurou fazer uma síntese
da mitologia Tupinambá. Segundo o autor, para os Tupinambá os seus
civilizadores correspondem, de forma aproximada, ao papel ocupado pelos
deuses naquelas que ele chamou de “sociedades mais adiantadas”. Para
os Tupinambá, de forma semelhante ao que ocorre com outrastribos
sul-americanas, essas entidades possuidoras de poderes superiores aos da
média dos feiticeiros eram os artífices do mundo. O que os diferencia do
deus ocidental é que os heróis civilizadores se caracterizam mais como
transformadores do que como criadores. Isso porque, mesmo quando
são apresentados como criadores, sempre sua criação é parcial, sendo a
obra completada apenas posteriormente e à custa de diversos incidentes
(MÉTRAUX, 1979, p. 01).
Ao menos pela leitura que Métraux fez de André Thevet, observa-
se que a mitologia Tupinambá abrigava vários heróis civilizadores. A
cada um deles eram atribuídos feitos diferentes. Na tradição de outros
povos do mesmo grupo lingstico, normalmente, havia um único herói
que respondia por todos os eventos. Essa multiplicidade de heróis do caso
Tupinambá, segundo a tese de Métraux, era apenas aparente, fruto de uma
“confusão” de Thevet. Nessa linha, é que o antropólogo fez sua análise, na
qual defende que a maioria dos heróis descritos era na verdade apenas um
(MÉTRAUX, 1979, p. 01).
Baseando-se em “La Cosmographie universelle” de 1558 e nas
Singularitez de la France Antarctique de 1575 de autoria do franciscano
francês André Thevet, Métraux relata que o primeiro dessa suposta série
de heróis é Monan. Segundo o autor, Thevet inadvertidamente confundiu
o herói com o deus cristão ao defini-lo como criador do céu, da terra,
dos pássaros e dos animais nela existentes. No entanto, o próprio francês
teria demonstrado a diferença entre a divindade cristã e o herói indígena
ao destacar que este último não teria sido o criador nem do mar, nem das
chuvas, e o oceano e os rios só teriam aparecido após o incêndio do mundo
e do dilúvio. Ou seja, a criação supostamente feita pelo herói foi parcial, o
que é um traço característico dos heróis civilizadores dos grupos da família
linguística Tupi-Guarani por ele analisados (MÉTRAUX, 1979, p. 01-02).
O frade frans conferiu a Monan o atributo da imortalidade.
Métraux afirma que Thevet inventou essa característica, pois a noção
de imortalidade não fazia parte da cultura daquele grupo indígena.
86
Um segundo herói que aparece nos escritos de Thevet, Mairemonan,
para Métraux, é na verdade o mesmo que Monan e teria sido morto por
mãos humanas. Ele argumenta ainda, com base na etnografia moderna
de Nimuendaju
18
, que, por exemplo, os Chiapas, não vêem os demônios
criadores do universo e com quem mantêm contato, como seres imortais.
Portanto, a imortalidade de Monan seria mais um dos blefes de Thevet
(MÉTRAUX, 1979, p. 02).
Na opinião de Métraux, apesar de Thevet não afirmar isso em
nenhuma parte, está implícito em suas ideias o pensamento de que
Monan deve ter sido quem criou o homem, uma vez que foi ele quem
destruiu a primeira leva humana que habitou a terra, em virtude de
culpas desconhecidas. Também teria sido ele quem repovoou a terra,
transformando-a drasticamente por meio de incêndios e de inundações
(MÉTRAUX, 1979, p. 02).
Ao lado de Monan aparece outro herói, chamado de Maire pelos
Tupinambá, ou seja, Maire-monan. De acordo com Thevet, Maire designa
transformador, adjetivo apropriado a quem
[...] deu ordem, de acordo com o seu bel-prazer, a todas as coisas, afeiçoando-
as de vários modos e, em seguida, convertendo-as em diversas guras e
formas animais, de pássaros e de peixes, de conformidade com as regiões;
até mudando o homem em animal para puni-lo, como bem lhe parecia por
sua maldade (THEVET apud MÉTRAUX, 1979, p. 2)
19
.
Métraux continua a defender que na verdade há um único mito.
Para ele, Thevet se embaraça ao tentar distinguir um do outro, atribuindo a
ambos, ao longo de seu texto, as mesmas qualidades. Essa imprecisão seria
alinhavada colocando Maire-monan como parente de Monan, no sentido
de que este último é quem teria ensinado ao primeiro a arte de transformar.
Maire-monan, entre os Tupinambá, seria visto como um grande feiticeiro,
que vivia retirado, em jejum e rodeado de adeptos. Era julgado como
o senhor dos poderes ilimitados, da ciência completa, dos rituais e dos
ministérios ritualísticos. Segundo a narrativa, eram dádivas suas diversas
práticas sagradas ou mágicas dos Tupinambá. Ele é quem teria ensinado a
esses indígenas o hábito da tonsura ou tosquia e da depilação ou retirada
dos cabelos, além do achatamento do nariz de recém-nascidos. Ele também
18 Bruchstucke aus Religion und Uerberlieferung der Sipáia-Indianer” in Anthropos, St-Gabriel-
Mödling, 1921-1922, XVI-XVII.
19 Thevet, A. La cosmographie universelle. Paris, 1757.
87
teria recomendado que comessem apenas carne de animais ligeiros, em
detrimento aos grandes e lentos, pois assim os seres humanos seriam
sempre ágeis (MÉTRAUX, 1979, p. 02-03).
Todavia, a principal ação civilizadora do herói teria sido a introdução
da agricultura entre os Tupinambá e os ensinamentos sobre a distinção
entre os bons e maus vegetais, bem como seus possíveis usos medicinais.
Também teria sido ele o responsável pela implantação da organização
social dos Tupinambá. Sua atividade ia além, era visto como exímio
transformador, uma vez que operando metamorfoses dava origem a novas
coisas ou animais (MÉTRAUX, 1979, p. 03).
O Antropólogo se queixa de que Thevet informou pouco sobre
as peripécias da vida de Maire-monan, todavia, reservou lugar para
seu desfecho. Maire-monan teria sido convidado para uma festa e sido
obrigado a saltar três fogueiras acesas. Obteve sucesso na primeira prova,
mas, ao tentar saltar a segunda fogueira, evaporou e foi consumido pelas
chamas. Sua cabeça explodiu e produziu o trovão, enquanto as labaredas
transformaram-se nos raios. Logo depois o herói-civilizador subiu ao céu e
virou estrela, juntamente com outros dois companheiros seus (MÉTRAUX,
1979, p. 04).
Até aqui, só foram reproduzidos os atos de Maire-monan que Thevet
formalmente atribuiu ao herói. No entanto, na visão defendida por Métraux,
os atos de outros três personagens também deveriam ser atribuídos a ele,
pois eram oriundos de um mesmo herói civilizador. Entre esses outros
três, está Sommay ou Sumé (o Sumé, confundido com São Tomé). Segundo
o autor, Sumé foi citado apenas incidentalmente no texto de Thevet
como “um grande Pajé e Caraíba”, ele seria o pai dos irmãos Aricoute e
Tamendonare, os provocadores do dilúvio. Tal dilúvio teria sido motivado
por um desentendimento entre os irmãos e teve como consequência a
morte de Maire-monan. Dessa explicação, conclui Métraux que os mitos
de Maire-monan e Sumé estão ligados e na verdade são o mesmo, com
nomes diferentes, isso porque Sumé é quem era o pai dos irmãos e Maire
Monan morre em virtude de uma punição pelo dilúvio provocado pelos
filhos. Além disso, nos testemunhos portugueses os atributos de Sumé
são os mesmos peculiares a Maire-monan. Assim sendo, para Métraux a
divisão em dois heróis civilizadores seria um erro de Thevet, percebido
pelo próprio franciscano que estabeleceu em sua narrativa uma ligação de
parentesco entre os mitos, com o fim de corrigir sua falha (MÉTRAUX,
1979, p. 04).
88
Maire-atá é o terceiro herói reconhecido em Maire-monan e
consequentemente em Sumé, ele também seria pai de gêmeos míticos.
Maire-atá teria abandonado a mãe dos gêmeos e fugido para uma
localidade próxima a Cabo Frio. Nesse local, ele agia como grande
feiticeiro, prevendo o futuro. Segundo Métraux, esse mito possui suas
peculiaridades e isso permitiria considerá-lo à parte. Mesmo assim, o autor
considera que os textos portugueses sobre Sumé fazem dele um sinônimo
do mito comum. O personagem mítico Maire-a é outro que também teria
laços de parentesco com Maire-monan (MÉTRAUX, 1979, p. 04).
Na visão do antropólogo suíço, apenas um dos grandes caraíbas
designados por Thevet não podia ser ligado a Monan, tal herói era: Maire-
pochy ou Maire po-chi. Ele teria sido expulso da aldeia juntamente com sua
esposa. No mato, fizeram grandes roças e tiveram exuberantes colheitas.
Em momento de penúria, o herói teria convidado os seus cunhados que
de pronto atenderam. Disso resultou o mal para toda a família, incluindo
os pais dos parentes, pois eles foram transformados em animais. Tiveram
o mesmo destino o velho cacique e sua esposa, que desdenharam dos
poderes sobrenaturais de Maire-pochy (MÉTRAUX, 1979, p. 05).
A cosmologia dos Tupinambá, narrada por Thevet, é bastante com-
plexa e de certa forma confusa. Métraux é partidário fiel da teoria de que
tais mitos na verdade, ao menos em sua maioria, eram apenas um. Para
ele, Thevet teria se confundido[...] fundido, em um só, diferentes mitos
ou diferentes versões do mesmo mito, considerando como figuras distintas
o mesmo deus cujo nome vem seguido de epítetos vários, ou muda em
função das ações a ele atribuídas” (MÉTRAUX, 1979, p. 07).
Em Yves d`Évreux, aparece um grande Mara de Tupã, ou seja,
um enviado de deus. Este teria ensinado muitas coisas aos indígenas, entre
elas o cultivo da mandioca. Todavia, os indígenas não teriam acolhido por
completo seus ensinamentos. Diante disso, o herói resolveu ir embora, mas
deixou seus ensinamentos escritos em rochedos e as marcas de seus pés,
de seu bastão e dos pés dos animais que o acompanhavam. Em seguida,
partiu em direção ao oceano para outro país (MÉTRAUX, 1979, p. 07).
Essa descrição é muito semelhante àquelas dadas pelos jesuítas a respeito
de Sumé. Isso é um forte indício de que realmente algum mito indígena
pode ter contribuído para o surgimento do Tomé americano.
Para defender ainda mais sua posição, Métraux cita as descrições
dos jesuítas Simão de Vasconcelos e Manoel da Nóbrega a respeito de
89
Sumé. Segundo Métraux, o autor anônimo
20
da cartaInformações do
Brasil, foi induzido ao erro ao afirmar a existência de dois entes, um deles
Çumé (São Tomé) e seu companheiro Maira. O erro seria ainda maior, pois
o jesuíta os colocou em oposição Çumé (São Tomé) como representação do
bem e Maira representação do mal. Esse último seria o companheiro de
São Tomé, mal visto pelos indígenas (MÉTRAUX, 1979, p. 08). Nóbrega
não é o único a apresentar dois seres em oposição. Léry também faz alusão
a dois heróis, um bom e outro mau (LÉRY, 1980, p. 196). Na passagem
citada por Métraux, Maire-monan tem atitudes más, transformando
homens em animais, mas, para o autor, isso se justificaria na medida em
que um único herói tem várias faces. Nesse caminho, cada denominação
corresponderia a uma forma comportamental do mito.
Hans Staden faz referência a Maire-humane, herói a quem os
indígenas imitavam na tonsuragem dos cabelos. A partir de uma série de
comparações e do levantamento de hipóteses diversas, Métraux define sua
posição na existência de um único herói civilizador, ou pelo menos de um
herói principal que englobaria as várias denominações que aparecem entre
os cronistas. Tamanha diversidade seria fruto de erros e confusões desses
autores (MÉTRAUX, 1979, p. 09).
Suas conclusões, embora sejam afirmativas, precisam ser relati-
vizadas, tendo em vista que a sustentação documental por ele utilizada é
insuficiente para que se tenha uma postura inflexível a respeito do assunto.
É fato que em seu conjunto os diversos mitos realmente compartilham de
características similares, quando não idênticas. Todavia, também é fato a
existência de diferenças e a complexidade dos sistemas culturais. Esses
sistemas complexos, bem podem comportar mitos como os dos heróis
civilizadores que tenham características similares, porém com diferenças,
sejam maiores ou menores. Essas diferenças são as que aos olhos dos
narradores europeus, filtrados pelas lentes do eurocentrismo, podem ter
passado despercebidas. Métraux construiu uma tese, por meio da qual, de
certa forma, apenas desmontou a narrativa de Thevet sobre a cosmologia
Tupinambá.
Os erros de Thevet, se é que são erros, são compreenveis, pois
Métraux não percebeu que o texto de Thevet não é um trabalho de
etnografia aos moldes modernos. As fontes documentais coloniais,
eclesiásticas ou não, por mais que tragam dados etnográficos, devem
20 Conforme Serafim Leite (1954, p. 145-154), trata-se do Pe. Manoel da Nóbrega.
90
sofrer a crítica tradicional do fazer historiográfico. Deve-se ter em vista
que elas foram escritas em contextos próprios, com demandas próprias e
para destinatários específicos. Por mais que a maioria dos autores fosse
de origem europeia, assim como os indígenas, eles não compunham um
bloco cultural monolítico. Cada um tinha sua origem em um microcosmo
diferente. Esses aspectos precisam ser levados em conta antes de se valer
de seus dados como se fossem verdades inquestionáveis. Apesar disso, a
voz dos povos indígenas aparece nas entrelinhas e faz destas fontes um
ambientertil principalmente quando se aborda a perspectiva do encontro
(MONTERO, 2006, p. 12-13). Isso corrobora com a ideia de Ginzburg,
quando afirma que a subjetividade não torna uma fonte inutilizável.
Dizer o contrário seria o mesmo que afirmar que nenhuma fonte é digna
de crédito, pois nem mesmo um inventário é completamente objetivo
(GINZBURG, 1987, p. 21-22).
Além de reduzir a eventual multiplicidade de heróis civilizadores
dos Tupinambá, Métraux também tenta construir a unidade cultural Tupi-
Guarani. Ele faz isso por meio de comparações de dados da mitologia
Tupinambá com a etnografia moderna dos Guarani. Em decorncia desses
procedimentos, seu trabalho é criticado por Cristina Pompa. Segundo a
autora, a busca de semelhanças e a unidade cultural levou-o à negligência
em relação às diferenças, que são reveladoras dos diferentes níveis de
impacto colonial (evangelização, epidemias, escravidão etc.) nas diferentes
épocas e regiões junto a diversos grupos (POMPA, 2003, p. 105).
Poder-se-ia dizer que, ao não levar em conta em suas análises o
fenômeno da etnicidade, Métraux foi um dos criadores de um Tupinambá
genérico. Evidentemente que essas observações, embora pertinentes, não
retiram todo o valor de sua obra, já consagrada como clássico da etnologia
sul-americana. Ela foi escrita em um momento específico da história
(1928) em que as preocupações de rigor acadêmico eram outras, deve,
portanto ser lida como uma obra datada. Am disso, devem-se reconhecer
os méritos do autor que escreveu o trabalho com apenas vinte e três anos
de idade.
Sendo um ou vários os heróis civilizadores dos Tupinambá, o que
mais interessa para este trabalho é que de fato existe uma concordância
entre autores coloniais, o que fortalece a possibilidade de que Sumé
(mesmo que o nome não seja este) de fato tenha sido um herói civilizador
presente na cultura indígena sul-americana. A seguir, exporei algumas
observações de etnólogos modernos a respeito dos heróis civilizadores
91
dos grupos chamados de Guarani. Tais mitos, como se verá, apresentam
algumas semelhanças em relação aos mitos dos Tupinambá.
A primeira grande obra de Curt Nimuendaju, editada pela primeira
vez em 1914, foi “Os mitos de criação e destruição do mundo como
fundamentos da religião dos Apapokuva Guarani
21
. Apapokuva (homens
de arco longo) não era a autodenominação do grupo estudado. Trata-se de
uma denominação que Nimuendaju atribuiu aos Guarani do extremo sul
do atual Mato Grosso do Sul, com a finalidade de distingui-los de outros
grupos da mesma família (NIMUENDAJU, 1978, p. 30).
Em sua obra, o autor trata de aspectos linguísticos, religiosos,
mitológicos, cataclismológicos e sobre a busca pela terra sem mal. Focarei,
de maneira especial, na descrição dos principais heróis civilizadores dos
Apapokuva.
Ñanderuvusú (nosso grande pai) é a primeira personagem dessa
mitologia. Apresenta um caráter divino e criador, manifesta-se somente à
noite com uma forte luz em seu peito. Deu início à terra, que está sobre um
suporte em forma de cruz, kurusu, sem o qual, conforme relatos Kaiowá,
a terra seria destruída. Ñanderuvusú também dotou a terra de água. Ao
seu lado há um auxiliar, Ñanderú-Mbaekuaá (nosso pai, o conhecedor
das coisas). A inferioridade deste, em força e importância, perante
Ñanderuvusú, é atestada pela posição que ocupou na criação da mulher.
[] ‘¡encontremos una mujer!, requiere el criador y ‘Mbaekuaá’ no sabe
responder más que con una nueva pregunta: ‘¿cómo encontrar una mujer?’.
¡En la vasija!, decide Ñanderuvusú. Hace una vasija, la tapa y después de
un rato le pide a Ñanderú-Mbaekuaá que vaya a ver. Este encuentra una
mujer y la trae consigo [] (NIMUENDAJU, 1978, p. 68).
A partir de então já havia três personagens sobre a terra, os dois já
citados e a mulher Ñandesý (nossa mãe). De início, ela não tinha nenhum
caráter divino, de modo que era totalmente terrena. Mbaekuaá a deflorou,
por ordem de Ñanderuvusú, no entanto, ela era esposa dos dois e sempre
que um estava ocupado com o ato criador ela estava com o outro. Apesar
de dividirem a mesma esposa, cada um desejava ter seu próprio filho, por
isso ela engravidou de gêmeos (NIMUENDAJU, 1978, p. 68).
Desse ponto em diante Ñanderú-Mbaekuaá desaparece da
narrativa indígena, não se sabe qual foi seu fim. Ao que parece, ele
21 Aqui traduzido.
92
teve papel secundário na criação, de forma que as coisas fundamentais
foram criadas por Ñanderuvusú. Este último teria ficado sozinho com
a mulher. Todavia, esta convivência foi curta. Segundo a narrativa,
Ñanderuvusú construiu sua casa no centro da terra e nas redondezas
fez sua chácara. Ele trabalhava semeando milho e na medida em que
ia trabalhando as plantas brotavam e aparecia o milho verde. Ao voltar
para a casa, Ñanderuvusú ordenou a Ñandesý, que fosse buscar milho
na roça. Esta injuriada e irritada, por não acreditar ser possível já haver
fruto, lhe respondeu com malícia afirmando que estava grávida apenas de
Mbaekuaá (NIMUENDAJU, 1978, p. 68-69).
Ñanderuvusú teria então agido como um “legítimo Guarani”, sem
nada reclamar esperou a mulher partir para a roça, pegou então seu adorno
de plumas, seu mbaraká (chocalho ritual) e a cruz e partiu para nunca mais
voltar, de maneira duradoura, para a terra. Onde bifurca o caminho que
conduz ao céu e para a morada do primeiro jaguar, teria plantado a cruz,
de modo que seus braços fecham o caminho de sua morada e abrem o do
jaguar. Outra versão do mito diz que ele fechou o caminho do céu com duas
plumas de papagaio em forma de cruz de Santo André (NIMUENDAJU,
1978, p. 69).
A mulher abandonada, querendo seguir ao marido, foi devorada
pelo jaguar. Seus filhos, no entanto, salvaram-se milagrosamente, e foram
criados pelos jaguares. Ñanderykeý, o filho de Ñanderuvusú se esforçou,
de maneira vã, para reconstituir sua mãe a partir dos restos encontrados. É
seu pai quem a fez forte novamente e a levou para viver até hoje ao leste,
no além mar, na terra sem mal (NIMUENDAJU, 1978, p. 69).
Ñanderykeý consegue encontrar seu pai que a seu pedido lhe
confiou suas armas e talismãs e o cuidado da terra. Ñanderuvusú se retirou
então para as mais remotas paragens. Neste ato, Ñanderuvusú entregou
o governo do mundo ao seu filho. Apesar disso, se já não é ele quem
governa no mundo, é, todavia, assim como foi o criador, aquele quem
destruirá a terra. A destruição da terra depende de uma única palavra sua
(NIMUENDAJU, 1978, p. 69-70).
O outro filho de Ñandesý é Tyvýry, cujo pai é Mbaekuaá. Assim
como seu pai, este gêmeo ocupa posição secundária na mitologia deste
grupo Guarani. Além das personagens já apresentadas, a mitologia
Apapokuva conta com Tupã. Este seria o filho mais novo de Ñandesý e
Ñanderuvusú, concebido após a reconstituição da mulher e sua instalação
junto à morada de Ñanderuvusú. Tupã não tem ligações com nenhuma
93
outra personagem da mitologia, além de sua mãe. Ele é o filho preferido
dela, mas ocupa posição secundária nesse universo mitogico. Assim,
Nimuendaju conclui que foi preciso muita imaginação para ligar o
Tupã dos Apapokuva ao deus cristão, como foi feito por boa parte dos
missionários (NIMUENDAJU, 1978, p. 74-75).
Em linhas gerais, pode-se dizer que as personagens mais
importantes da mitologia Apapokuva são Ñanderuvusú, como criador, e
Ñanderykeý, que recebe do pai o poder de governar o mundo. É ele quem
ocupa a posição de herói civilizador. Entre os feitos de Ñanderykeý, citados
por Nimuendaju, está a criação de algumas frutas silvestres. Além disso,
para agradecer ao gambá, que amamentou seu irmão, ele concedeu-lhe a
prerrogativa de parir sem dor e de carregar comodamente seus filhotes em
uma bolsa. Ele também é o responsável pela criação do fogo e de alguns
animais perigosos como as serpentes e vespas. Em retribuição ao fato de
terem lhe contado qual a real circunstância da morte de sua mãe, o herói
cura o pássaro yakú e concede ao papagaio o poder de imitar todas as
nguas humanas. Os gêmeos, notadamente Ñanderykeý, também têm o
poder de ressuscitar aos outros com um assopro. Ele manifesta seu lado
bom ao cuidar do iro desamparado e sua ira ao aniquilar os jaguares
que mataram sua mãe (NIMUENDAJU, 1978, p. 70-81).
Além desses entesticos, a mitologia Apapokuva, registrada
por Nimuendaju, comportava alguns demônios e a reverência a alguns
seres históricos que já haviam morrido, em especial aos paié antigos.
Nesses aspectos, não vou me aprofundar, pois o foco elementar de meu
interesse está nos heróis civilizadores. Nimuendaju destaca que ao menos
em alguns pontos há semelhanças entre a mitologia dos Apapokuva e a
de outros grupos linguisticamente Tupi-Guarani. Em especial, o autor se
refere à série de heróis civilizadores com ligações genealógicas que, entre
os Apapokuva, corresponderia na primeira geração a Ñanderuvu e
Ñanderú Mbaekuaá e na segunda por Ñanderykeý e Tyvýry. Eles poderiam
ser comparados com os mitos dos Tupinambá da linhagem de Monan
(Nimuendaju, 1978, p. 130). Embora sinalize a relativa unidade cultural
Tupi-Guarani, as conclusões de Nimuendaju não caminham na direção
do desprezo das diferenças existentes e nem no sentido de eliminação
de fronteiras étnicas, que como é sabido não se estabelecem apenas por
diferenças ou semelhanças culturais (BARTH, 2000).
Egon Schaden (1959; 1998) também atestou a presença dos heróis
civilizadores entre os Guarani modernos. O autor destaca que embora
94
tenha sido Ñanderuvusú o criador, coube aos gêmeos “[...] a formação
ou elaboração dos pormenores; as ações dos gêmeos têm relação mais
imediata com a vida e o destino dos homens” (SCHADEN, 1959, p. 120).
Para Schaden, a categoria de herói é peculiar àquele que age pondo ordem
no mundo, organizando a vida social e não na criação do cosmo. Em seu
sentido mais amplo, cabe ao deus a tarefa criadora (criação do mundo, da
humanidade etc.) e aos heróis a função disciplinadora e organizadora, o
herói atua no cotidiano, solucionando os problemas menores (1959, p. 123).
Na visão do autor, Ñanderykeý ocupa a posição central nas
representações religiosas e rituais dos Apapokuva. Ao contrário de seu
pai, que só voltará para decretar o fim da terra, o herói age nas questões
que afligem diretamente à humanidade. Entre os Ñandeva, por exemplo,
reza-se a Ñanderykeý para afastar as almas más ou anguêry (SCHADEN,
1998, p. 141). Ele é visto como aquele que dá abrigo e cuida do povo, está
diretamente ligado à busca pela terra sem mal, que, supostamente, é sua
morada (SCHADEN, 1959, p. 124).
Há de fato uma grande quantidade de heróis civilizadores, tanto
entre os Tupinambá coloniais, quanto entre os Guarani modernos. É
possível que Sumé tenha sido um desses heróis do grupo a ou do b, ou
mesmo de ambos, e que tenha sido interpretado de forma equivocada pelos
europeus. Essa é uma possibilidade, pois com tamanha diversidade étnica
e cultural, certamente a existência de uma série de mitos semelhantes
pode ter favorecido a invenção de um que sintetizasse as principais
características de todos. Isso porque algumas dessas características
tinham caráter civilizador, fato que provocou forte identificação entre os
missionários e os heróis indígenas. Tendo em vista que antes de evangelizar
os indígenas, na visão dos missionários, era preciso humanizá-los, isso se
daria por meio da civilização, entendida como a imposição do seu próprio
modo de vida ao outro (POMPA, 2003, p. 70).
Essa síntese de vários mitos em um, como defendeu Métraux e
outros, inclusive contemporâneos, é problemática, conforme a já exposta
crítica de Cristina Pompa. Antes dela, Schaden já alertava para o problema.
Tanto a origem, quanto o significado e a função do mito só podem ser
compreendidos no interior da configuração cultural em que nasceram
ou estão integrados. Além disso, um mito pode nascer em uma dada
cultura e ser transmitido para outra, guardando semelhanças, mas não
necessariamente significados e funções que lhes eram próprios na origem
(SCHADEN, 1959, p. 10-11).
95
2.2.2 A abordagem historiográfica
Em alguns momentos, a historiografia tentou dar respostas a
respeito do mito do Sumé. Apresentarei agora o pensamento de alguns
desses autores, procurando demonstrar suas potencialidades e fragilidades.
No livro “Visão do Paraíso”, especificamente no capítulo “Um mito luso-
brasileiro”, Sergio Buarque de Holanda (1996) não foi e nem pretendeu
ser conclusivo a respeito da origem do mito. Ele teceu apenas algumas
especulações sobre o possível mito indígena.
Primeiramente, baseado na grande quantidade de referências
encontradas nos cronistas, o autor destacou que é digna de crédito a ideia
de que os indígenas americanos não eram alheios à existência de pegadas
ou de marcas parecidas com pegadas, pois “[...] aos europeus recém-vindos
tratavam logo os naturais de mostrar essas impressões, encontradas em
várias partes da costa [...] (HOLANDA, 1996, p. 111). Pelo que já foi
apresentado até aqui, isso de fato é inquestionável.
Mais adiante, Holanda volta a especular fazendo a seguinte
afirmação:
Parece de qualquer modo evidente que muitos pormenores dessa espécie
de hagiogra a do São Tomé Brasileiro se deveram sobretudo à colaboração
dos missionários católicos, de modo que se incrustaram, a nal tradições
cristãs em crenças originárias dos primitivos moradores da terra.
Que a presença das pegadas nas pedras se tivesse associado, entre estes,
e já antes do advento do homem branco, à passagem de algum herói
civilizador, é admissível quando se tenha em conta a circunsncia de
semelhante associação de achar disseminada entre inúmeras populações
primitivas, em todos os lugares do mundo. E é de compreender-se, por
outro lado, que entre missionários e catequistas essa tendência pudesse
amparar o esforço de convero do gentio à religião cristã (HOLANDA,
1996, p. 113) (Destaques meus).
Destacando os trechos em negrito, percebe-se que Holanda deixa
claro que acreditava na existência de crenças anteriores e que essas crenças
sofreram alguma ação que tratou de cristianizá-las. A cristianização
ocorreu por meio da ligação dos mitos aqui encontrados com as crenças que
os cristãos traziam a respeito da evangelização de São Tomé no Oriente.
Cabe destacar que, para o referido historiador, parece não haver um único
mito, mas provavelmente vários que em locais diferentes receberam
alguma inflncia cristã e acabaram transformados em São To para os
cristãos (HOLANDA, 1996, p. 108-129).
96
Entre 1538 e 1546, o franciscano Frei Bernardo de Armenta
trabalhou em uma das primeiras missões itinerantes da região platina. Seu
trabalho compreendeu a região entre a Ilha de Santa Catarina e Assunção,
incluindo o Guairá. Baseado nessa atuação missionária, Holanda cogita
a ideia de que este missionário, juntamente com seu companheiro, o Frei
Alonso Lebron, teriam avivado com suas ações o possível mito indígena
de Sumé. Assim sendo, um fato histórico teria inspirado os indígenas a
atribuírem algumas qualidades cristãs a um mito primitivo de origem
nativa.
Justificando sua ideia, o autor destaca que os indígenas censuravam
ao Frei Alonso de Lebron, pois ele, juntamente com Álvar Núñez Cabeza
de Vaca, era acusado de “[...] encerrar em sua casa mais de trinta índias
dos doze aos vinte anos de idade [...]” (HOLANDA, 1996, p. 127). Já o
Frei Armenta seria bem visto pelos indígenas, os quais supostamente
atribuíam a ele a identificação mítica de Paý Zu. Com isso, Holanda liga
historicamente os atos de Armenta à lembrança mítica que supostamente
se criou entre os indígenas a respeito de Zumé e a Lebron à lembrança
criada em torno do companheiro de Zumé, que era mal visto. Cabe aqui
alguma ressalva, pois o próprio Zumé ou Sumé nem sempre foi bem quisto
pelos indígenas. Am disso, em um documento escrito pelo pprio
Armenta, no primeiro ano de sua missão, o frei já mencionava a lembrança
da evangelização do apóstolo Tomé, sendo improvável que ele próprio
tenha sido o motivador desse mito.
[...] otra mayor maravilla, y es que habrá cuatro años que se levantó un indio,
que em más de doscientas lenguas habló por espíritu de profecía, diciendo
que vendrían presto verdaderos cristianos, hermanos de Santo Tomé, a los
baptizar. Y mandaba que no hiciesen mal a algún cristiano, mas que les
hiciesen mucho bien. Y tanto era el bien que hacían, que de los hombres que
escaparon huyendo del desbarato del Río de la Plata, supe que le barrían
el camino por do pasasen, y caminando, los mandaban poner debajo de un
árbol, hechas enramadas a do descansasen, y les ofrecían muchas cosas de
comer y muchos plumajes, y se tean por bienaventurados los indios que
los tenían en sus buhíos o chozas. Y llamábase este indio Etiguara, el cual
ordenó muchos cantares que ahora los indios cantan, en que hallo manda
que se guarden los mandamientos de Dios [] (ARMENTA, [1538] 1992,
p.155-156).
A partir desse trecho da carta de Armenta, e também da “Nova
Gazeta da Terra do Brasil” (1515), pode-se concluir que a ideia de que
97
São Tomé esteve na América já existia antes mesmo da chegada do
missionário, inclusive apresentando uma ideia profética a respeito da vinda
dos religiosos (esta ideia foi marcantemente explorada no século seguinte,
especialmente entre os missionários jesuítas do Guairá). É, portanto,
inconsistente a defesa da tese de que os fatos históricos ligados a Armenta
é que avivaram o mito. Apesar disso, não se exclui a possibilidade de que
algum evento histórico, provavelmente um pouco anterior ao início da
conquista e colonização oficiais, tenha realmente avivado esses possíveis
mitos ingenas.
Outro estudioso que recentemente escreveu a respeito do mito
do Sumé / São Tomé foi Herni Donato, cuja obra é intitulada “Sumé
e Peabiru: mistérios maiores do século da descoberta (1997). Esta obra
é limitada em relação ao cumprimento de alguns padrões acadêmicos.
Em alguns momentos, por exemplo, não se visualiza o rigor documental
desejável em uma pesquisa histórica.
Para Donato, um fato é claro: muito tempo antes da chegada dos
europeus, Sumé já existia e fazia parte das culturas ameríndias. Isso fica
implícito em algumas partes de seu trabalho, destacando-se, por exemplo,
o início de seu texto:
Em São Vicente, 1501, a surpresa. A exceção. Vestida de mistério, galgando
a Serra do Mar, oferecia-se ao europeu estrada defi nida, antiga, visivelmente
utilizada. Oito palmos de largura, mergulhando nas distâncias interioranas.
Os que, no amanhecer do Brasil, viram o primeiro trecho, reconhecendo-a
à altura das melhores de Portugal, admirados, perguntaram:
- Que é isto? Quem realizou este trabalho?
- Peabiru! – respondeu o brasílico.
[...]
- E quem abriu este caminho tão longo e bem feito?
- Pay Sumé.
Foi tudo o que soube explicar: Pay Sumé. Sumé – São Tomé? (DONATO,
1997, 13-14).
Sem que se leve em consideração a fragilidade histórica do texto,
pois não tem embasamento em nenhuma fonte confiável, especialmente
para o ano de 1501, verifica-se aqui que o tratamento dado pelo autor ao
mito de Su é a de sua existência pré-cristã.
Segundo Donato, Sumé é um nome que na verdade expressa todos
os mitos ameríndios que previam de alguma forma o retorno de um deus
ou herói civilizador. Para o autor, este mito do Sumé é “[...] o mais sensível
98
traço de ligação entre povos e regiões do Novo Mundo [...]” (DONATO,
1997, p. 26). Assim sendo, para Donato (1997, p. 27-28) os mitos do grande
sacerdote Tulá, Quetzalcoatl, Sommay, Maira, Manco Capac, Zemi, Zamna
ou Zamima, Kukulcan, Bochica, Viracoucha e Maire humane são, na
verdade, o mesmo mito: o de Sumé, que antes dos cristãos teria de alguma
forma atuado civilizando os indígenas americanos. Uma generalização
nessas proporções é bastante problemática, ainda mais quando não
embasada em fontes confiáveis, atitude que o autor não apresenta, retirando
assim qualquer credibilidade científica de seu trabalho.
Além de o mito possuir diversas variações de nome, para Donato
(1997, p. 59-60), que defende a existência histórica de Sumé, não se tratava
apenas de uma pessoa, mas de várias. Todas essas teriam realizado ações
muito parecidas entre os povos indígenas americanos e por isso suscitado
esses mitos entre eles. Mitos que na essência eram um só. Em outro
trabalho, o autor deixa esta sua opinião bem mais explícita e vai além
ao explicar a origem das pessoas que iniciaram o mito. Em suas próprias
palavras:
Depois de muito estudo, estou convencido de que esse Sumé, que não
foi um único indivíduo, na verdade representou um grupo de monges
escandinavos que em meados do século XII deixaram seu bispado na
Islândia, passando-se para a América. Terão sido os primeiros sacerdotes
a falar do cristianismo em nosso continente. Segue-se hoje a orientação
de que da Islândia teriam passado para a América do Norte; daí para a
Central o Caribe; do Caribe para o nosso Maranhão e daqui para o interior
continental. Curioso observar que a mítica indígena, bem assim a crônica
colonial central e sul-americanas, coincidem em relação ao Sumé e a estes
personagens ainda misteriosos (DONATO, 2001, p. 373).
Essa hipótese é vazia de provas e evidências que a sustentem.
Mesmo em uma análise superficial, poder-se-ia questioná-la. Seria possível
um homem viver tempo o bastante para tornar-se monge, incluindo
as formações e preparações necessárias, e após isso ele ainda teria que
percorrer a pé todo o caminho entre a Islândia e a América? Ainda teria
que se considerar que seriam necessárias longas paradas em cada grupo
indígena para que o evangelho fosse pregado, compreendido e assimilado,
preservando assim, ainda no século XVI, lembranças dessas palavras.
Apesar da fragilidade dessa hipótese, o autor não destoa de Sergio Buarque
de Holanda quando defende uma causa histórica pré-colonial para as
99
coincidências que os colonizadores supostamente encontraram em Sumé,
as quais facilitaram a ligação dele ao São Tomé católico.
Cristina Pompa (2003, p. 51, 56 e p. 187-190) também faz referências
a Sumé. Como sua obra é mais ampla que as demais e possui objetivos
distintos, não há uma parte destinada apenas ao mito. Ele é analisado no
conjunto da obra. Com base nos escritos de Thevet, Pompa vê em Sumé
um herói civilizador Tupinambá profundamente ligado à cosmologia e à
cosmogonia (entendimento sobre a formação do mundo e da humanidade)
indígena.
A partir de minhas pesquisas, com base nos relados dos diversos
cronistas e na produção epistolar jesuítica (MONTOYA, 1985; NÓBREGA,
1988; VASCONCELOS, 1977; LEITE, 1954a; 1954b), é possível concordar
com Sergio Buarque de Holanda e Hernâni Donato, no sentido de que é
possível que tenha havido um ou mais mitos pré-coloniais que podem ter
inspirado a transposição do mito São Tomé para o Ocidente. Isso porque são
realmente numerosos os relatos nos quais indígenas dão indicações sobre
pegadas, falam a respeito da origem da mandioca e de outros momentos
da vida do mito, que logicamente quase sempre já aparece traduzido como
São Tomé pelos autores.
Considero possível a tese de Holanda e Donato quando eles
defendem a hipótese de um Sumé histórico ou avivado por fatos históricos.
Todavia, pelos motivos expostos anteriormente, discordo com relação
à determinação de datas e/ou eventos específicos, pois pelo menos até o
momento não encontrei vestígios de qualquer natureza que possibilitem
essa compreensão. Em relação ao aspecto temporal dos fatos, é importante
destacar que em geral nas culturas indígenas a noção de tempo é concebida
de formas diversas e distintas da concepção cristã ocidental. As realizações
do mito de Su estão situadas no tempo mítico. Conforme Eliade destaca
(2002, p. 44-45), o fato histórico pode ser transferido para o tempo mítico
em um curto período, sem prejudicar a operacionalização do mito na
cosmologia das sociedades envolvidas.
É possível que fatos envolvendo cristãos ocidentais possam ter
ocorrido na Arica antes do início da colonização oficial, mesmo que
tenham ocorrido em um curto espaço de tempo pretérito, podem ter sido
lançados ao tempo mítico. Se isso for verdadeiro, tal processo criou ou
avivou o mito do Sumé e seus possíveis congêneres, que logo serviram de
inspiração para os cristãos na formulação das crenças sobre a passagem de
São Tomé pela América.
100
Alguns dos personagens míticos dos Apapokuva, pertencentes
ao contexto dos grandes paié foram identificados por Schaden como
seres históricos. Eram grandes pajés que tiveram seus prodígios, às
vezes, realizados a menos de cem anos, mitologicamente perpetuados
(SCHADEN, 1959, p. 129). Schaden concorda que muitos mitos heróicos
podem ter origem histórica. No entanto, adverte que o mito não pode ser
reduzido a isso. Existem outras possibilidades, muitas delas aceitáveis,
para a formação de mitos. Qualquer abordagem exclusivista deve ser
refutada, pois se os mitos têm lógicas próprias nas culturas em que se
formam, cada uma dessas culturas também pode ter lógicas diferenciadas
para a formação de seus mitos (SCHADEN, 1959, p. 08-09).
uma peculiaridade no mito do Su. Em muitos casos, ele ofere-
ce benefícios para a população (característica heróica). Contudo, em muitos
casos, ele acaba excluído da sociedade, quase sempre de maneira violenta.
Este fato vai contra a ideia de herói proposta por Mircea Eliade, na qual
os homens das sociedades rotuladas como “primitivas” são fiéis ao herói
em todas as situações (ELIADE, 1992, p. 40). Como se vê nos fragmentos
abaixo, a suposta adesão ao mito ora estudado não foi irrestrita.
[...] os antepassados deles tinham tratado muito mal o Santo. Dissera-lhes
este que aquelas rzes de mandioca haviam de amadurecer em questão de
poucos meses, mas que eles, em castigo, somente teriam num ano: o que
ainda hoje ocorre (MONTOYA, 1985, p. 89).
Também é tradição antiga entre eles que veio o bem-aventurado São Tomé
a esta Bahia, e lhes deu a planta da mandioca e das bananas de São Tomé,
[...] e eles, em paga deste benefício e de lhes ensinar que adorassem e
servissem a Deus e não ao demônio, que não tivessem mais de uma mulher
nem comessem carne humana, o quiseram matar e comer, seguindo-o com
efeito até uma praia donde o santo se passou de uma passada ilha de Maré,
distância de meia légua, e daí não sabem por onde (SALVADOR, 1982,
p.112).
Nos fragmentos transcritos, pode-se constatar que frequentemente
quando a figura mitológica, já cristianizada, tentou de alguma forma
convencer os indígenas a aderirem aos pressupostos religiosos do
cristianismo, teve suas propostas rapidamente recusadas. Sofreu, por isso,
diversos ataques, aos quais reagiu, inclusive com alguns castigos. Se por
princípio o herói civilizador age em benefício da sociedade e por isso é por
ela seguido, nem sempre tal modelo é verificado. O caso do Sumé talvez
101
possa ser enquadrado no que Schaden chamou de “herói egoísta”, que age
de acordo com seus próprios interesses em detrimento da vontade social
(SCHADEN, 1959, p. 23-24). Ou melhor, ele seria um misto do bom herói
e do egoísta, quando distribui dons, como a mandioca, por exemplo, é bem
visto; mas quando tenta impor certos comportamentos sociais julgados
como inconvenientes pelos indígenas, é perseguido e frequentemente
revida. Essas particularidades demonstram que definições exclusivistas e
performáticas não podem ser aplicadas ao conceito de herói civilizador.
2.3 A espiritualidade medieval-renascentista como inspiradora de
relações de “circulação cultural”.
Os primeiros anos de contato entre indígenas e europeus foram
permeados por diversas operações de tradução cultural. Isto, sem
dúvida alguma, gerou movimentos de circularidade cultural. A noção
de tradução é trabalhada de forma bem sucedida por Cristina Pompa.
Em sua já citada obra, a autora desenvolve, com a clareza de exemplos
pticos, reflexões a respeito da situação em que missionários e ingenas
portadores de culturas completamente desconhecidas entre si entraram
em contato. Discute também como que diante desses contatos ambos
procuravam compreender o significado da cultura oposta. Como não se
conheciam mutuamente, frequentemente essas traduções eram feitas a
partir de seu próprio código cultural que projetado na cultura do outro,
possibilitava várias interpretações equivocadas. Era como se tentassem ler
russo sabendo apenas o código do português.
Em meio a esses movimentos de tradução, ocorreram também
movimentos de circularidade cultural. O conceito de circularidade
cultural aqui empregado é aquele que Carlo Ginzburg desenvolveu
e aplicou de forma eloquente em sua obra “O Queijo e os Vermes”
([1976]1987). A definição dada pelo autor é a seguinte: “[...] temos, por um
lado, dicotomia cultural, mas por outro, circularidade, influxo recíproco
entre cultura subalterna e cultura hegemônica [...]” (GINZBURG, 1987, p.
21). De acordo com Vainfas (1997), o conceito de circularidade cultural
já aparecia implícito na obra de Bakhtin ([1965]1999), mas foi explicitado
apenas por Ginzburg.
Existe uma perspectiva de pesquisas que analisa as relações
interculturais a partir das relações entre indivíduos (missionários e
102
indígenas) e não entre culturas, pois a abrangência desse termo dificultaria
a compreensão dos processos concretos de produção das formas de (re)
significação (MONTERO, 2006). Todavia, neste trabalho, seguirei a
alise levando em consideração as trocas entre culturas, pois isso parece
ser o mais viável para a análise do objeto ao qual me dedico. Isso porque
o mito de São Tomé aparece em quase toda a Arica em momentos e
circunstâncias diferentes, daí minha opção em buscar uma explicação mais
geral para as ressignificações que o mito sofreu. A aplicação do conceito
de circularidade cultural destaca o fluxo recíproco de elementos culturais
entre as culturas em contato. Evidentemente, esse fluxo atinge, em um
primeiro momento, apenas aos indiduos diretamente envolvidos no
processo, e não às culturas como um todo. No entanto, quando essas (re)
significações são publicadas por meio dos escritos e/ou outras formas de
socialização, são absorvidas, por meio de práticas ou ideias, ao menos por
parte de um corpo social. Assim, essa circularidade cultural é socializada,
atingindo índices de maior ou menor interferência na cultura do outro.
Portanto, é possível, no presente trabalho, pensar em trocas entre culturas,
tendo em vista que o mito do SuméSão Tomé, não se restringiu a uma
troca entre indivíduos. Ele se difundiu e se constituiu, como defendo aqui,
especialmente para os cristãos, em uma das pontes de ligação entre as
cosmologias indígena e cristã.
O conceito de circularidade cultural pressupõe a dicotomização
entre as culturas dos grupos estudados. Todavia, cabe ressaltar que não há
aqui a menor intenção de se ignorar o fato de que as culturas indígenas e as
europeias não eram estanques e que não formavam dois blocos monolíticos.
Porém, para que a análise seja possível é válido para os séculos XVI e
XVII, em um nível macro, considerá-las como integrantes de dois blocos
distintos e antagônicos, não presumindo nenhum grau de superioridade
de uma sobre a outra, mas apenas a diferença. Certamente, estes blocos
tinham, em seu interior, uma grande diversidade. No entanto, diante do
outro apresentavam consideráveis contrastes, que permitem que neste
trabalho sejam pensados de forma genérica sem grandes prejuízos.
Ressalto que, ao tratar de um tema mais específico, ligado a
uma determinada etnia ou situação específica de contato, esse tipo de
consideração pode se tornar problemática. Mas, em alguns casos, como
aqui, a generalização é necessária, ou impossibilitaria a análise nos termos
propostos. Caso, por exemplo, se relativizasse qualquer possibilidade
de unidade cultural, a ponto de se pensar que não há cosmologia cristã,
103
mas somente a cosmologia do cristão a ou b, nos moldes em que se
apresenta, minha pesquisa seria inviável. Aqui, prefiro pensar que de
fato existem variações entre as percepções cosmológicas de indivíduos
de um mesmo grupo, mas que apesar disso, há uma cosmologia na qual
as diferenças individuais são superadas sob a forma de uma unidade
relativa. Logicamente que essa cosmologia geral não é estática, mas está
em constante processo de reelaboração, sobretudo em momentos que
surgem perguntas inusitadas como: Quem são os índios? Quem são esses
barbudos? Ou, como os índios podem ter ficado sem a evangelização
prometida? Essas questões certamente surgiram no período dos primeiros
contatos dos europeus com os povos indígenas. Trato da cosmologia cristã
com plena consciência de que seria muito difícil definir uma cosmologia
ocidental uniforme (MONTERO, 2006, p. 53). O mesmo vale para uma
cosmologia indígena já que a categoria indígena não leva em consideração
diferenciações culturais e étnicas. Portanto, quando utilizo esse conceito
penso, especificamente, na maneira com que os cristãos compreenderiam
o mundo e a humanidade como elementos de uma ação divina criadora e de
uma ação divina redentora, ambas explicadas pelas Sagradas Escrituras.
A essa cosmologia era necessário incorporar a nova realidade encontrada
no Novo Mundo. Por isso, é que, de acordo com as fontes arroladas, pôde-
se chegar à interpretação de que houve um verdadeiro processo de inclusão
do indígena na cosmologia cristã. Certamente, o mesmo processo ocorreu
na perspectiva dos indígenas, de diversos modos, em relação aos cristãos.
Para empregar o conceito de circularidade cultural nessa situação,
é necessário desprezar as noções de culturas subalternas e hegemônica,
aplicadas por Ginzburg no contexto da Europa do século XVI, noções essas
que têm forte influência da herança marxista de Bakhtin. No contexto da
América Colonial, tais noções podem, se aplicadas, conotar uma ideia
de defesa a uma visão eurocêntrica de inferioridade cultural dos grupos
indígenas, posição da qual não compartilho.
A partir dos primeiros contatos, as traduções e os movimentos de
circularidade cultural foram intensos, geraram uma série de apropriações
e ressignificações culturais. Uma delas foi a tradução de Sumé para São
Tomé, resultando posteriormente em outras ressignificações no contexto da
reelaboração cosmológica cristã. Essa tradução certamente foi favorecida
pela espiritualidade daquele momento que aqui estou chamando de
medieval-renascentista.
Foi esse contexto que propiciou a gestação e a difusão de uma série
104
de mitos que determinavam a América como o local do paraíso terrestre,
tema que foi tratado com muita propriedade por Sergio Buarque de
Holanda (1996) em sua “Visão do Paraíso”.
A ideia de espiritualidade medieval-renascentista, que está sendo
empregada neste trabalho, está relacionada à concepção de Jacques Le
Goff (1999; 2008) a respeito de uma longa Idade Média. Para esse autor,
o medievo não acaba definitivamente no século XVI, com ascensão do
Renascimento, pelo contrário, perdura pelo menos até o século XVIII. A
ruptura renascentista precisa ser relativizada. Seria ingenuidade pensar
que toda a população europeia abandou de maneira quase instantânea
suas concepções religiosas medievais. Concepções marcadas por uma
espiritualidade cristã permeada por superstições resultantes de sua
própria concepção que se deu a partir da intensa união de elementos
cristãos e pagãos (VALCHEZ, 1995). Há, portanto, apesar do surgimento
do racionalismo, grande influência dos valores espirituais do período
medieval sobre os fatos que se desenvolveram durante os séculos XVI
e XVII e isso faz com que haja uma inevitável junção entre a história
medieval e a história da Arica colonial.
Todorov, embora considere que o ano de 1492 seja a melhor data
para se determinar o prinpio da Idade Moderna, apresenta um Cristovão
Colombo profundamente imerso em valores medievais. Segundo o autor,
o navegador, como leitor de Marco Polo, supostamente, tinha intenções
que iam muito além da obtenção de lucros materiais, de forma que sua
viagem teria sido idealizada, principalmente, para promover a expansão
do cristianismo e uma cruzada para libertar a Terra Santa. Colombo, como
homem de sua época, era cristão fervoroso, mas um cristão que acreditava
em ciclopes, sereias, amazonas e homens com caldas. Essas suas crenças
eram tão fortes que ele conseguiu encontrar com alguns de seus mitos.
Colombo é um caso, mas certamente reflete um tipo de europeu não raro
no processo das navegações, conquistas e colonizações que ocorreram no
continente americano durante os séculos XVI e XVII (TODOROV, 1996,
p. 6-17).
Essa espiritualidade motivou os viajantes a expressar em seus relatos
não apenas a realidade dos indígenas, mas também a alteridade absoluta
em relação à Europa, ou seja, aquilo que eles já conheciam por meio de
seus mitos edênicos, dos relatos de Preste João etc. (POMPA, 2003). Essa
constatação reforça o alerta a respeito do trato que se dá às fontes históricas
coloniais.
105
Vale ressaltar que esse mesmo tipo de espiritualidade possibilitou
que os missionários se apropriassem de vários elementos da cultura
indígena. Para citar alguns exemplos, destaco a compreensão e incorporação
das estratégias indígenas de emprego da oralidade nas pregações, fato
importante nas missões Guarani, pois eles são essencialmente orais.
A oralidade é a responsável pela transmissão de todas as tradições e
ainda tem papel fundamental para a atribuição de liderança, uma vez
que o líder Guarani é um excelente orador. A oralidade também tem
lugar central no arcabouço religioso dos Guarani (CHAMORRO, 2008).
Além disso, fizeram parte dessas apropriações a incorporação de hábitos
alimentares e até adaptações dos mandamentos cristãos para o contexto
pagão. Os religiosos chegaram, com isso, à supressão temporária do sexto
mandamento judaico-cristão, que se referia à castidade e censurava à
poligamia, um dos principais problemas encontrados pelos missionários em
muitas sociedades indígenas. Essa suavização temporária das exigências
cristãs objetivava um impacto a conta gotas nas tradições indígenas,
evitando assim o repúdio imediato à doutrina cristã (CAVALCANTE,
2007; MONTOYA, 1985; OLIVEIRA, 2003).
Por seu turno, representantes dos povos indígenas também se
apropriaram de aspectos da cultura europeia. Um exemplo que ilustra isso
é o que se observou quando os pajés, exercendo seu papel de guardiões da
tradição, conseguiram expulsar alguns padres. Logo em seguida, voltam ao
seu posto de líderes espirituais. No entanto, apropriam-se do ritual católico
do batismo e fazem os batismos às avessas, ou seja, os desbatismos para
livrar os indígenas daquele mal que eles anteriormente haviam recebido
22
(MONTOYA, 1985, p. 201-202; CHAMORRO, 2008, p. 73-74).
O período em que ocorreram os primeiros contatos entre indígenas
e europeus e o início da colonização da Arica foi o mesmo em que o
Velho Mundo viveu a sua lenta transição entre o pensamento medieval e
o renascimento racional, a recuperação da cultura clássica e a descoberta
no indígena da alteridade absoluta. Do ponto de vista europeu, como
já dito, apesar do incipiente culto à razão, as ideias e as concepções de
mundo ainda estavam muito ligadas aos ideais religiosos medievais.
Isso, juntamente com o desconhecimento total dessa nova humanidade
encontrada na Arica, possibilitou, ou ao menos favoreceu, uma série de
22 Outros exemplos e discussões sobre trocas culturais podem ser encontrados, entre outros,
nos seguintes trabalhos: AGNOLIN, 2001; 2006; CAVALCANTE, 2007; MONTOYA, 1985;
OLIVEIRA, 2003, e POMPA, 2003.
106
apropriações ressignificadoras e mesmo a construção de novos mitos. Esses
mitos explicavam, do ponto de vista cristão, o surgimento do Novo Mundo
e de seus habitantes. Tais mitos adquirem, portanto, caráter ontológico.
Um caso de destaque nesses movimentos de tradução, circulação cultural
e invenção de mitos é a suposta presença de São Tomé na América. Do
ponto de vista europeu, ele fez a ponte necessária entre as expressões da
religião indígena e o catolicismo. Esta ressignificação mitológica é um
exemplo de interculturalidade entre Europa e América já nos século XVI
e XVII. O mito que apresenta elementos culturais cristãos e indígenas
apontava e continua apontando para a necessidade e possibilidade de um
diálogo entre a cultura ocidental e a indígena, diálogo esse que não precisa
eliminar quaisquer características de nenhuma das partes envolvidas
(CHAMORRO, 2008, p. 109-115).
2.4 A inclusão do indígena na cosmogonia e cosmologia judaico-cristã
Visto que é possível que de fato o mito de São Tomé possua uma
raiz indígena, é também provável que a ressignificação de Sumé para
São Tomé tenha ocorrido por meio do processo que estou denominando
de circularidade cultural. Com base no primeiro registro sobre São Tomé
na América, a já citadaNova Gazeta da Terra do Brasil, de 1515, sabe-
se que essa ressignificação ocorreu já nos primeiros anos de contatos. No
entanto, não é possível determinar exatamente em quais circunstâncias
isso ocorreu.
Agora, o que particularmente interessa são as formas por meio das
quais o mito de Tomé foi apropriado pelos diferentes atores da conquista
e quais os significados que sua presença teve nos diferentes tempos
e espaços. A partir da ideia de “pluralidade dos modos de emprego e a
diversidade de leituras proposta por Chartier (1990, p. 26), analisarei as
apropriações do mito a partir da diversidade de leituras e entendimentos
que ele sofreu. Tratarei, portanto, o mito sob a perspectiva de um texto
mítico, que é lido e apropriado por diversos atores em diversos momentos
e filtrado através de diversos códigos.
Nessa perspectiva de apropriação, são fatores cruciais os interesses
e o lugar social de cada leitor, pois as representações que produziram a
respeito do mito são invariavelmente[...] determinadas pelos interesses
de grupo que as forjam. Daí o necessário relacionamento dos discursos
107
proferidos com a posição de quem os utiliza (CHARTIER, 1990, p.
17). Com esse olhar, exponho, a seguir, como o mito de São Tomé foi
apropriado durante o século XVI especialmente pelos religiosos jesuítas
que escreveram os textos que possibilitam analisar o assunto.
É fato que no momento inicial da conquista, tanto indígenas quanto
europeus vivenciaram algo extraordinário, pois estavam diante do outro,
do desconhecido. Cada um dos lados não compreendia os códigos culturais
do outro e, ainda mais, esse outro não fazia parte da cosmologia de seu
oposto. Surgiu, dessa forma, uma série de questões. Os cristãos europeus
precisaram reorganizar sua cosmologia de modo que incluíssem o Novo
Mundo e, principalmente, seus habitantes na lógica da sociedade cristã.
Em contrapartida, os indígenas necessitavam da mesma reorganização
para assim incluir os invasores em sua compreensão da organização e do
funcionamento do mundo. Essas reorganizações se fizeram necessárias,
uma vez que, ao menos parcialmente, seus entendimentos anteriores
haviam sido invalidados. A partir dessa problemática, os cristãos
precisaram, respeitando o princípio monogenista, encontrar o lugar dos
povos indígenas em sua cosmogonia, ou seja, na sua compreensão sobre a
criação do mundo e da humanidade. E em sua cosmologia, o seu modo de
compreender o funcionamento do mundo que previa a pregação apostólica
em todas as partes da Terra e, portanto, também na América.
Como já explicitei, apesar das relações interculturais dos agentes
anteriores à conquista do Novo Mundo, os contatos ocorridos entre
indígenas e europeus representaram algo a mais. Neste caso, pelo menos
de início, nenhuma das partes tinha noção acerca dos códigos culturais de
seus novos interlocutores. Isso é evidente quando se observa a seguinte
referência:
[...] A famosaanedota barroca contada por Lévi-St rauss (1996) e recontada
recentemente por Viveiros de Castro (2002), que relata como os europeus
discutiam a existência da alma dos índios enquanto estes testavam os
corpos europeus em sua capacidade de apodrecer, é emblemática desta
busca do sentido da alteridade a partir dosdigos de cada um (POMPA,
2003, p. 25).
Os cristãos, por sua vez, logo iniciaram os questionamentos a
respeito da origem desses novos seres. A primeira pergunta, que gerou
longos debates, foi sobre a humanidade dos indígenas. Por isso, os cristãos
se perguntavam se os índios eram realmente humanos e se tinham alma.
108
E ainda se poderiam ser incluídos na economia da salvação cristã. Este,
que a princípio era um problema teológico, apresentava também algumas
implicações práticas, pois a não humanidade do indígena favoreceria
àqueles que tinham interesse na escravização irrestrita dos povos
indígenas (VASCONCELOS, 1977a, p. 114). Devido a essa dúvida, como
relata Vasconcelos, muitos deles foram explorados de maneira cruel, com
a justificativa de sua possível não-humanidade. Além da exploração física,
percebe-se, no fragmento abaixo, que a questão da definição de humanidade
era em si uma conceituação etnocêntrica, pois estava diretamente ligada à
capacidade de recepção dos sacramentos da Igreja Católica.
Chegaram a ter para si muitos daqueles primeiros povoadores, não só idiotas,
mas ainda letrados, que os índios da América não eram verdadeiramente
homens racionais, nem indivíduos da verdadeira espécie humana; e por
conseguinte, que eram incapazes dos Sacramentos da Santa Igreja: que
podia tomá-los para si, qualquer que os houvesse, e servir-se deles, da
mesma maneira que de um camelo, de um cavalo ou de um boi, feri-los,
maltratá-los, matá-los, sem injúria alguma, restituição ou pecado. E o pior
é, que pôs o interesse dos homens em praxe usual tão desumana opinião. E
começou a execução desta nova doutrina na ilha Espanhola, primeira que
foi no descobrimento dos índios, e primeira na execução da ruína deles;
e foi lavrado pelo Reino de México, e por toda a Nova Espanha. Naquela
ilha, testemunha Fr. Bartolomeu de las Casas, Bispo de Chiapa, vao de
grande autoridade, que chegaram os espanhóis a sustentar seus libréus
com carne dos pobres índios, que para o tal efeito matavam, e faziam em
postas, como a qualquer bruto do mato. A História Geral das Índias cap.
33, falando da mesma ilha espanhola diz, que usavam aqueles moradores,
dos índios, como de animais de serviço tendo por cousa sua aqueles que
podiam apanhar, quais feras do campo; e que os faziam trabalhar em suas
minas, maltratando-os, acutilando-os, e matandoo-s, como lhes parecia. E
que chegara a fi car a ilha por esta razão um deserto; porque de um milhão
e meio que havia, chegou a não haver quinhentos [...] (VASCONCELOS,
1977a, p. 114-115).
Em 1537, o papa Paulo III publicou sua Bula “Sublimis Deus”.
Assim, pôde-se observar uma posição pontifícia oficial sobre o assunto.
Nela o pontífice reconheceu a humanidade natural dos indígenas e, por
consequência, que também eram portadores de almas. Se por um lado o
papa resolveu um impasse da época, acabou gerando outro, pois, a partir
de então, os indígenas eram oficialmente humanos. Sendo assim, passou
a ser preciso encontrar uma explicação que fosse capaz de incluí-los na
cosmogonia cristã, ou seja, uma origem comum: se Deus criou o homem
109
uma única vez, cristãos e indígenas teriam que ter a mesma descendência.
E como explicar que os indígenas estavam separados há tanto tempo e tão
distantes do Velho Mundo?
Certamente, esse tema alimentou inúmeras discussões e algumas
delas foram materializadas em forma de textos, dentre os quais se
encontra a obra de Diego Durán (2005), “Historia de las Indias de Nueva-
España e Islas de Tierra Firme. Tal obra é dividida em três tratados, sendo
o primeiro deles concluído em 1581 e os dois últimos em 1579, o autor
escreveu a obra em ordem inversa à apresentação final (DURÁN, 2005a,
p. XIV-XV). Baseado em uma obra de origem indígena, o autor se propõe
a escrever uma história do povo mexicano (Asteca), desde sua origem até a
conquista do México, enfatizando o aspecto religioso.
Espanhol, nascido em 1537, Durán viveu no México desde os cinco
ou seis anos de idade e lá, em 1556, ingressou no convento dominicano,
onde estudou e atuou como missionário na Mesoamérica. O autor utilizou
o primeiro capítulo e parte do segundo de sua obra para expor sua opinião
a respeito da origem dos povos indígenas. Logo no início do primeiro
capítulo, expressa suas dúvidas e angústias e em seguida apresenta sua
opinião: são hebreus!
Para tratar de la cierta y verdadera relacion del orígen y principio destas
naciones indianas, á nosotros tan abscondido y dudoso, que para poner la
mera verdad fuera necesaria alguna revelacion divina ó espíritu de Dios
que lo enseñara y diera á entender; empero, faltando esto, será necesario
llegarmos á las sospechas y conjeturas, á la demasiada ocasion que esta
gente nos da con su bajísimo modo e manera de tratar, y de su conversacion
tan baja, tan propia á la de los judíos, que podriamos ultimadamente a rmar
ser naturalmente judíos y gente hebrea [] (DURÁN, 2005a, p. I).
De onde Durán tirou tal ideia? De onde mais poderia ser se não
da “[...] Sagrada Escriptura, donde clara y abiertamente sacaremos ser
verdadera esta opinión [...]” (2005a, p. I). Com comparações e analogias,
ele argumenta com embasamento bíblico, em defesa da hipótese da origem
judaica dos indígenas que, assim sendo, se integrariam à cosmogonia
cristã, pois eram frutos da mesma ação criadora que gerou os habitantes
do Velho Mundo.
Inicialmente, argumenta Durán, que esses povos eram origirios
de estranhas e remotas regiões e para a sua vinda a esta terra percorreram
um longo e prolixo caminho no qual se gastaram muitos anos. Para chegar
110
a essa informação, Durán afirma ter se baseado em relatos, pinturas e
depoimentos de anciãos. Segundo o autor, alguns indígenas diziam que
nasceram de fontes d’ água; outros de cavernas, e outros ainda que foram
gerados pelos deuses, mas tudo isso seriam fábulas, uma vez que
[...] ignoran su orígen y principio, dado que siempre con esen auer venido
de tierras estrañas, y así lo he hallado pintado en sus antiguas pinturas,
donde señalan grandes trabajos de hambre, sed y desnudez, con otras
innumerables afl icciones que en él pesaran, hasta llegar á esta tierra y
poblalla, con lo qual con rmo mi opinion y sospecha de que estos naturales
sean de aquellas diez tribus de Israel, que Salmanasar, Rey de los Asirios,
cautivó y trasmigró de Asiria en tiempo de Oseas, Rey de Israel, y en tiempo
de Ezequías, Rey de Jerusalem, como se podrá ver en o cuarto Libros de
los Reyes, cap. 17, donde dize que fué transladado Israel de su tierra á
los Asirios, hasta el dia de hoy etc., de los quales dize es tierra remota
y apartada que nunca habia sido auitada. A la qual auia largo y prolijo
camino de año y medio, donde agora se hallan estas gentes de todas las
islas y tierra fi rme del mar Océano, hácia la parte de Ocidente (DURÁN,
2005a, p. 2).
As narrativas e pinturas indígenas foram literalmente encaixadas
na cosmologia cristã, atribuindo aos povos indígenas a mesma origem dos
cristãos, isto é, indígenas e cristãos foram criados no mesmo momento e
pelo mesmo deus. Assim, a existência indígena começou a ganhar sentido
para o mundo europeu. A partir daí, o nativo começou a integrar a lógica
de organização e funcionamento do mundo cristão. Os argumentos de
Durán não param por aí. Ele prossegue afirmando que as dez tribos
23
citadas tinham recebido a promessa divina de que se multiplicariam como
as areias do mar e isso, segundo o autor, “[...] clara y manifiestamente se
vee quán grande aya sido el multipliico [...] (DURÁN, 2005a, p. 02). Ainda
aponta que a mortandade de indígenas, bem como a conquista europeia,
eram espécies de castigos divinos, por terem eles se afastado do verdadeiro
Deus. Logo, tudo o que sofriam já estava registrado e justificado na bíblia,
conforme as as referências indicadas pelo autor.
[...] Deuteronomio, cap. 4, y 28 y 32; Isaias, 20, 28, 42 capitulos; Jeremias,
Ezequías, Miqueas, Sophonias, donde se hallará el castigo rigurosísimo
que Dios prometió á estos diez tribus por sus grandes maldades, y
23 O antigo povo de Israel era dividido em doze tribos, que receberam os nomes dos filhos de
Jacó. Após a morte do rei Salomão ocorreu um cisma, no qual dez dessas tribos tomaram rumo
ignorado. (Conf. A Bíblia Teb, p. 388-391, 1º Livro dos Reis, 11-12).
111
abominaciones y nefandas idolatrías, apartándose del culto de su verdadero
Dios [] (DURÁN, 2005a, p. 3).
Segundo o autor, os indígenas também receberam a sua suposta
covardia como um castigo divino. Ele tenta comprovar isso com o
argumento de que eles não resistiram ao Marques del Valle, que com
apenas trezentos homens conseguiu conquistar aquela terra. E mais, ainda
em sua época, supostamente, continuavam a guardar esse temor. Por isso,
é que não acreditavam os espanis, inclusive nas coisas relacionadas à fé
da Igreja Católica. Concluindo o parágrafo, Dun clama por misericórdia
para aqueles que abraçaram a fé com liberalidade (DURÁN, 2005a, p.
3-4). Grande ironia, os indígenas não davam fé aos espanhóis porque eram
covardes e a covardia era fruto de um castigo divino. O autor não considera
a possibilidade de os indígenas terem deixado de confiar nos espanhóis
por causa de todos os malefícios e traições que esses lhes trouxeram e
fizeram.
Dun trabalha com relatos colhidos entre os anciãos indígenas,
relatos que, segundo ele, tinham entre si muitas diferenças, mas que, em
sua maioria, tratavam dos longos caminhos, trabalhos, infortúnios e pestes
que os povos indígenas passaram até chegar ao México. Com base nisso,
ele conclui que essa história só poderia ser a narrada no Livro do “Êxodo
e no “Levídico. Essa história se refere à narrativa em que Moisés tira o
povo da escravidão do Egito e o leva para a terra prometida, cruzando,
inclusive, com pé enxuto, o Mar Vermelho (DURÁN, 2005a, p. 4-5). Em
seguida argumenta:
[] Qué mas clara raçon se puede dar de questos sean judíos, que ver quán
mani estamente y al proprio relaten la salida de Egipto, el dar Moisés con
la vara en mar, el abrirse y hacer camino, el entrar Pharaon con su ejército
tras ellos y volver Dios las aguas á su lugar, donde todos quedaran en el
profundo ahogados [] (DURÁN, 2005a, p. 5).
Outro argumento utilizado por Dun é o de que ele teria visto uma
figura que representava o capítulo dezesseis do livro deNúmeros”, no qual
a terra traga Coré, Datan e Abiron. Os indígenas teriam dito que, no longo
caminho que percorreram até chegar ao México, em certa ocasião estavam
hospedados junto a alguns morros e a terra teria se aberto e tragado alguns
homens de má índole que viviam entre eles. No mesmo quadro, o autor
via uma chuva de areia e pequenos granizos. Logo após questionar sobre
112
a frequência das chuvas, conclui, por analogia, que se travava do Ma
enviado por Deus (DURÁN, 2005a, p. 05).
Quando questionou um ancião de cem anos a respeito do início do
mundo, Durán teria recebido uma resposta que se aproximava da narrativa
do “Gênesis”. Segundo o autor, o indígena lhe pediu que pegasse tinta e
papel, pois não seria capaz de guardar em sua mente toda a história que
ouviria.
En el principio, antes que la luz ni el sol fuese criado, estaba esta tierra en
obscuridad y tiniebla y vacia de toda cosa criada; toda llana, sin cerro ni
quebrada, cercada de todas as partes de agua, sin árbol ni cosa criada, y
lurgo que nació la luz e el sol en Oriente, aparecieron en ella unos hombres
gigantes de deforme estatura y poseyeron esta tierra; los quales, deseosos
de ver o nacimiento del sol y su ocaso, propusieron de lo ir á buscar, y
dividiéndose en dos partes, los unos caminaran hácia Poniente, los otros
cia Oriente: estos caminaran hasta que la mar les atajó el caminho; de
donde determinaron volverse al lugar donde auian salido, y vueltos á este
lugar, que tenia por nombre Iztacçulin ineminian, no allando remedio
para poder llegar al sol, enamorados de su luz y hermosura, determinaron
de edi car una torre tan alta que llegase su cumbre al cielo; y llegando
materiales para el efecto, hallaron un barro y betun muy pegadiço, con
el cual, á mucha priesa empeçaron á edifi car la torre, y auiéndola subido
lo mas pudieron, que dicen parecia llegar al cielo, enojado o Señor de las
alturas dijo á los moradores del cielo: ‘Aueis notado cómo los de la tierra
han edifi cado una alta torre para subirse a, enamorados de la luz del sol
y de su hermosura! vení y confundámoslos, porque no es justo que los de
la tierra, viviendo en la carne, se mezclen con nosotros’. Luego en aquel
punto salieron los moradores del cielo por las cuatro partes del mundo,
así como rayos, y les derribaron el edi cio que auian edifi cado; de lo cual,
asombrados los gigantes y llenos de temor, se dividieron y derramaron por
todas las partes de la tierra (DURÁN, 2005a, p. 6-7).
Durán avaliza essa clara analogia aos episódios da criação do
mundo e da torre de Babel, ambos narrados no livro doGênesis, pois
estava persuadido a acreditar que os anciãos ouviram esses relatos de seus
antepassados (DURÁN, 2005a, p. 7). É possível que Dun tenha ouvido
um relato como esse, todavia, provavelmente, já fosse fruto de uma mistura
cultural na qual o mito cosmogônico cristão pode ter sido mesclado com o
indígena, sofrendo evidentemente as transformações recorrentes no texto.
Quanto aos gigantes, o autor pondera que não pode negar a existência de
gigantes no Novo Mundo, pois já havia visto alguns ingenas de estatura
incomum e que em uma procissão de Corpus Christi viu um desses que era
113
mais alto que todos os demais. Essa constatação serviu-lhe para reforçar
a possibilidade de os indígenas terem realmente lembrança dos episódios
do “Gênesis”, confirmando assim uma origem una para a humanidade
(DURÁN, 2005a, p. 7).
Na América do norte, logo os europeus encontraram diversos tipos
de idolatrias e rituais pagãos entre os indígenas do México. Dun utiliza
isso como mais uma prova de que sua tese seria digna de fé. Os ritos, as
idolatrias, as superstições, a grande quantidade de sacrifícios de humanos,
a queima de incensos, o sacrifício dos próprios filhos, oferecendo-os como
vítimas aos deuses, os sacrifícios de crianças, o consumo de carne humana
e a matança de presos de guerras seriam todos atos característicos daquelas
dez tribos de Israel. E ainda mais, o que forçava o autor a acreditar em sua
tese era o fato da dificuldade que supostamente tinham os indígenas de se
desgarrarem de seus ídolos. Ao findar sua argumentação, cita o Salmo 105:
“[...] que en viéndose atribulados de Dios, clamaban á él y perdonábalos
com su misericordia; pero luego olvidados se volvian á idolatrar y á
sacrificar sus hijos é hijas á los demonios, y derramando la sangre de los
inocentes la ofrecian á los ídolos de Canan [...]” (DURÁN, 2005a, p. 8).
Apesar de sua obra ter permanecido inédita até 1867 e, por conta
disso, provavelmente, ter tido pouca repercussão em sua época, essa
tese resolveu, ao menos para o autor, alguns problemas. O primeiro
problema que Durán consegue resolver era o que dizia respeito à origem
da nova humanidade. Ela não poderia ser outra a não ser a mesma
que a do mundo cristão ocidental. Do contrário, causaria um grande
questionamento às bases do cristianismo principalmente ao princípio
monogenista representado pela narrativa do livro do “Gênesis” da bíblia
judaico-cristã. Em segundo lugar, se os indígenas estavam admitidos na
humanidade era necessário explicar o porquê de todo o seu desvio do
correto caminho da vida cristã. A explicação dada foi clara, pertenciam
às dez tribos hebraicas que em muitos momentos se afastaram de Deus
e foram inclusive castigadas por isso. Um dos castigos que Deus lhes
teria atribuído era a vinda dos cristãos para conquistar o Novo Mundo.
Assim, Durán juntamente com os demais europeus poderiam dormir com
a consciência tranquila diante da dizimação indígena, já que não faziam
mais do que cumprir a vontade de Deus.
Publicada em 1590 a obra “Historia Natvral y moral de las Indias” é
um registro monumental a respeito dos primeiros contatos entre europeus
e indígenas na América. Nela, o jesuíta espanhol José de Acosta, que
114
esteve nas novas terras de 1571 a 1587, trata de uma série de assuntos a
respeito dos habitantes do Novo Mundo especialmente daqueles com quem
conviveu no México e no Peru.
Acosta, em momento algum, coloca em questão a humanidade dos
indígenas. Porém, também se debruça sobre a problemática da origem do
povoamento humano na América. Após vencer a discussão dos filósofos
antigos a respeito da possibilidade ou não de haver vida na chamada Zona
Tórrida e da inevitável constatação de que havia abundância de seres
humanos naquela região do globo, o autor construiu uma argumentação a
respeito da origem daqueles seres humanos.
O seu pressuposto inicial é a defesa do monogenismo, isto é, todos os
homens tinham a mesma origem. Diante disso, ele discute algumas teorias
a respeito e também apresenta sua opinião (ACOSTA, 2006, p. f 22v).
Apesar de partir do princípio bíblico, Acosta parece ser mais racional do
que os outros que tentaram oferecer explicações sobre a origem do homem
americano. Ele não tentou responder de forma detalhada às perguntas sobre
a origem desse homem. Diferentemente de outros autores que apresentarei,
não era seu objetivo dizer se eram judeus ou se eram os habitantes de
Ofir etc. Pelo contrário, como se verá, ele refuta a essas explicações. Esse
jesuíta partiu do princípio de que o homem americano é origirio do
Velho Mundo (Ásia, África ou Europa) e procurou uma resposta a respeito
de como ele teria atravessado para a América (ACOSTA, 2006, f 38r).
Vale destacar que, em sua opinião, não houve nenhuma outra arca,
além da de Noé. Assim, também é certo afirmar que os homens não
vieram para a América carregados por anjos. Portanto, a travessia se deu
por indústria humana. Diante disso, havia três possibilidades para que a
passagem tivesse ocorrido. Em uma primeira, os homens poderiam ter
vindo por conta de sua vontade própria com navios à vela, assim como
os espanhóis fizeram em sua época. Isso até seria possível, tendo em
vista que já na Antiguidade se conhecia a navegação. No entanto, devido
às dificuldades para realização de tal feito nesse período, o autor julgou
essa possibilidade pouco provável, tendo em vista que a navegação era,
sobretudo, costeira, quando se saia para mar aberto, dependia-se da
leitura astronômica para a navegação, mas esse recurso nem sempre era
satisfatório. Em dias nublados, os navios ficavam à deriva ou por conta do
instinto de seus comandantes. Ainda não se conhecia a pedra imã e, por
consequência, a bússola. Diante de tais dificuldades, para Acosta, esta era
115
a hipótese menos provável para a travessia dos primeiros povoadores da
América (ACOSTA, 2006, p. f 38r-f 40v).
A segunda possibilidade seria a de que os primeiros povoadores
fossem navegadores que tivessem sido trazidos por tormentas e ventos
infortúnios para a América, portanto, contra a sua vontade. Esta era a
hipótese mais provável, caso a vinda do homem tivesse se dado por via
marítima, mas ela criava outra problemática: como teriam vindo os animais
que aqui se encontravam? Isso porque, se o homem chegou após o dilúvio
universal, e se todos os animais que habitam a terra são descendentes
daqueles que foram salvos pela arca de Nóe, os animais que aqui habitavam
também vieram do Velho Mundo (ACOSTA, 2006, p. f 43r-f 48r).
Após essas duas hipóteses, em sua concepção, menos prováveis, o
autor defende uma terceira possibilidade como sendo a mais provável. A
passagem teria se dado por terra. Ele acreditava que havia algum ponto
de ligação terrestre entre o continente americano e o Velho Mundo e, por
esse ponto, teriam passado os primeiros seres humanos e os animais que
povoaram o Novo Mundo. Caso tal ligação não existisse, ele defendia que
ao menos os continentes já estiveram mais próximos, possibilitando assim
a travessia. Curiosamente defende uma ideia muito próxima às modernas
teorias arqueológicas sobre o povoamento humano da América (ACOSTA,
2006, p. f 48v, f 53v e f 43r [54r]).
Outro ponto que ele destaca, é que os seres humanos que povoaram
a América certamente eram selvagens, sem nenhuma política. Para o autor,
isso era bem provável, pois, mesmo na Europa, ainda no século XVI, havia
humanos que só eram assim reconhecidos por conta de sua aparência física,
mas que pelos hábitos se aproximavam mais a animais. Esses selvagens
caçadores teriam chegado à América ou por acidente ou por necessidade
de buscar novas terras. Em alguns lugares, essa selvageria teria aos poucos
se amenizado quando alguns desses indivíduos reivindicaram o mando e
formaram reinos, como ocorreu, por exemplo, no México. Apesar disso,
ainda havia povos em completo estado de selvageria, como os Chiriguanas
e os Brasiles. Essa diferenciação era justificada pela hipótese de que os
primeiros povoadores americanos, embora fossem todos originários do
Velho Mundo, eram representantes de vários grupos diferentes (ACOSTA,
2006, p. f 53v e f 43r [54r]). Acosta não menciona em que período tal
passagem teria acontecido, deixando a entender, no entanto, que foi em
tempos muito antigos.
116
Simão de Vasconcelos é outro autor que em sua “Crônica da
Companhia de Jesus” (1977) expõe as preocupações cristãs ocidentais de
se encontrar um lugar para o indígena na cosmologia cristã. Vasconcelos
nasceu na cidade do Porto, em 1597. Ainda menino, mudou-se com
a família para o Brasil e aos dezenove anos ingressou nas fileiras da
Companhia de Jesus. Alcançou destaque entre os jesuítas do Brasil durante
o século XVII. Sua obra, que ora está em análise, foi concluída em 1663.
Trata-se, no entanto, de uma crônica sobre os jesuítas no Brasil desde os
preparativos para a missão, ainda em Portugal, por volta de 1549, até um
pouco mais que o fim da vida de Nóbrega, que ocorreu em 1570. Portanto,
é apresentada a primeira fase do jesuitismo no Brasil.
A “Crônica” é composta por dois volumes e dividida em quatro
livros de crônicas. Antes do primeiro livro de crônicas, o leitor encontra
dois “livros das notícias”, que formam uma espécie de contexto para a obra.
Nestes livros, o autor faz um relato do Brasil no período inicial da missão
jesuítica. O relato contempla diversos povos indígenas, os aspectos da
natureza da região e a fé, ou a ausência dela, entre os indígenas. Também
há relatos a respeito do mito de São Tomé e sobre as preocupações dos
jesuítas a respeito da origem dos povos indígenas. Tais preocupações
demonstram que o enquadramento dos indígenas na cosmologia cristã
foi uma questão fundamental durante o século XVI. No trecho abaixo,
observa-se que essa preocupação era forte.
E como a curiosidade do homem em procurar saber é tão natural,
pretenderam (depois de adquirida mais notícia das línguas dos índios)
algumas respostas das dúvidas que tinham: e faziam-lhes as perguntas
seguintes. Em que tempo entraram a povoar aquelas suas terras os
primeiros progenitores de suas gentes? De que parte do mundo vieram?
De que não eram? Por onde, e de que maneira passaram a terras tão
remotas, sendo que não havia entre os antigos uso de embarcações muito
mais capazes, que as de suas ordinárias canoas? Como não conservaram
suas cores? Como não conservaram suas línguas? Como chegaram
a degenerar de seus costumes e a estado tão grosseiro alguns dos seus,
especialmente Tapuias, que pode duvidar-se deles se nasceram de homens,
ou são indivíduos da espécie humana? Que Religião seguiam? E fi nalmente
perguntavam-lhes, que bondades eram as desta sua terra, e as deste seu
clima em que viviam? Estas e outras semelhantes perguntas iam fazendo
os nossos portugueses exploradores aos índios, segundo as ocasiões que
achavam (VASCONCELOS, 1977a, p. 79-80).
117
Neste pequeno trecho em que o autor transmite as preocupações
jesuíticas do início da missão na América portuguesa, percebe-se que,
assim como no relato de Durán sobre o México, a primeira preocupação
dos missionários era definir um lugar para os indígenas no interior da
cosmologia cristã. Este lugar já era assegurado, pois sua humanidade
já estava confirmada pela bula papal. Isso fica evidente, pois todas as
perguntas conotam uma origem comum aos indígenas e cristãos. A questão
era determinar como os grupos indígenas haviam chegado ao continente
americano e como tinham se degenerado, perdendo suas características
iniciais. As perguntas sobre a terra e o clima são colocadas em segundo
plano, de modo que o fundamental é encontrar um elo para a humanidade,
reafirmando o princípio monogenista.
Vasconcelos (1977a, p. 80) pondera que “[...] podiam mal satisfazer
nações tão bárbaras, a perguntas de tanta dificuldade [...]”. Isso porque,
como os próprios indígenas teriam dito com[...] seu modo grosseiro
[...] não tinham uso de livros, nem outros arquivos mais que os de suas
memórias [...] (VASCONCELOS, 1977a, p. 80). Fica evidente que o
preconceito diante das culturas orais é bastante antigo. Para Vasconcelos, a
palavra falada tinha pouco valor se comparada à escrita. Essa última é que
garantiria a correta preservação da memória histórica. Apesar da pouca
credibilidade dada pelo autor, ele destaca quais teriam sido as repostas
dadas pelos indígenas.
[...] antes de chegar o dilúvio havia um homem de grande saber, a que eles
chamavam Pajé (que vale o mesmo que Mago, ou adivinhador, e entre nós
Profeta) o qual tinha por nome Tamanduaré, e que seu grande Tupã, que quer
dizer excelência superior, e vem a ser o mesmo que Deus, falava com este,
e lhe descobria seus segredos: e entre outros lhe comunicara, que havia de
haver uma inundação da terra, causada de águas do Céu, e alagar o mundo
todo, sem que fi casse monte, ou árvore, por mais alta que fosse. Até que
rastejando os relatores; porém logo variam. Acrescentavam que excetuara
Deus uma palmeira de grande altura que estava no cume de certo monte, e
se ia às nuvens, e dava um fruto a modo de cocos; e que esta palmeira lhe
assinalou Deus para que se salvasse das águas ele, e sua família somente:
e que no ponto em que o dito Pajé, ou Profeta, a tal notícia teve, se passou
logo ao monte, que havia de ser de sua salvação, com toda sua casa. Eis que
estando neste viu certo dia que começavam a chover grandes águas, e que
iam crescendo pouco, e pouco e alagando toda a terra, e quando já cobriam
o monte em que estava, começou a subir ele, e sua gente aquela palmeira
sinalada, e estiveram nela todo o tempo que durou o dilúvio, sustentando-
se com a fruta dela; o qual acabado, desceram, multiplicaram, e tornaram a
118
povoar a terra. Este era o dizer fabuloso daqueles naturais: e segundo isto,
tem para si, que antes do dilúvio havia já povoadores em sua terra, e que
aquele Mago, ou Adivinhador com sua família já a povoava antes das águas
do dilúvio, e que fi cou também povoado depois dele (VASCONCELOS,
1977a, p. 80-81)
24
.
Prosseguindo, o autor informa que esta mesma tradição é encontrada
entre povos indígenas de outras partes da Arica. Para fundamentar essa
afirmação, ele se utiliza dos escritos de outros autores, como o jesuíta
Afonso de Ovalle do Chile e Antonio Herrera que também tratam do “[...]
disparate desta gente [...]” (VASCONCELOS, 1977a, p. 81).
Na explicação indígena, havia ainda o mito do Viracocha, também
narrado por José da Acosta. Após o dilúvio, Viracocha teria saído de um
grande lago e dado origem à geração daquela gente. Outros explicavam
dizendo que homens nunca vistos, saídos do interior de montes,
criados pelo sol, teriam dado princípio àquela parcela da humanidade
(VASCONCELOS, 1977a, p. 81). Seguindo a narração das respostas que
os indígenas teriam dado aos questionamentos dos primeiros jesuítas,
Vasconcelos afirma que
[...] a tradição de seus antepassados era, que vieram da outra parte da
terra, que eles não sabiam. Que era gente de cor branca: e que vieram
embarcações pelo mar, e que aportaram em uma paragem, que eles por
suas semelhanças descreviam, e os portugueses entenderam que vinha
a ser a do Cabo Frio, E vindo a contar a história, diziam, que vieram a
este seu Brasil lá da outra parte da terra dois irmãos com suas falias,
em tempos antiqssimos, antes que algum outro nascido entrasse nele,
quando ainda as matas estavam virgens, os campos bravios, e as feras, e
aves viviam isentas de seus arcos, e que estes vinham fugindo das próprias
pátrias, por causa de guerras que tiveram. E que chegaram a dar fundo suas
embarcações em uma baía segura, e formosa, que depois se chamou Cabo
Frio. Aqui, chegados saltaram em terra, e começaram a fazer diligência
por várias partes divididos, em busca de gente com quem falassem, e de
quem tomassem notícias donde estavam, e do que deviam fazer; porém
debalde, porque a terra ainda não tinha conhecido homem algum, e tudo
achavam em suma solidão e silêncio, senhoreado somente das feras, das
aves: mas como já a experiência lhes ia ensinando o que os homens não
puderam; vendo a frescura, e fertilidade dos montes, dos campos, dos
bosques, e rios, vieram a resolver entre si, que a fortuna os tinha conduzido
a gozar de um achado grande, o que mais puderam desejar para largueza,
24 Há relatos semelhantes entre os Mbyá do Paraguai pesquisados por León Cadogan na primeira
metade do século XX (1992, p. 96-99).
119
e abundância de suas falias. E com efeito fundaram ali uma povoação, a
primeira que viu o Brasil, e ainda a Arica; de que já se acabou a memória
(VASCONCELOS, 1977a, p. 81-82).
O jesuíta prossegue a história dizendo que algum tempo depois, por
causa de uma contenda entre as esposas dos dois irmãos, que disputavam
entre si o domínio de um papagaio falante, um dos irmãos teria ido
embora com sua família pelo rio da Prata e dado origem aos povos
indígenas daquela região. Os que ficaram no Brasil teriam se multiplicado
assustadoramente e dado origem a todas as diversas nações ali existentes.
E a respeito da cor da pele, como teria mudado?
[...] Responderam com a graça seguinte. Façamos uma experncia, diziam:
trocai vós outros conosco os trajos, e andai nus ao sol, e à chuva, quais nós
andamos; e vereis logo, que de brancos vos heis de tornar da nossa cor. E
quanto a mudança das línguas, diziam, que com o discurso dos tempos,
variedade de lugares, e divisões que tinham feito entre si, por causa de
seus ódios, e guerras, foram forçados chegar a esquecer-se dos vocábulos
pátrios, e ajustar-se de outros de novo inventados (VASCONCELOS,
1977a, p. 83).
É pouco provável que esses relatos ou respostas, tal qual foram
apresentados, com exceção do dilúvio, que é encontrado em várias
culturas e citado por outros autores
25
, sejam realmente de algum indígena.
Criou-se uma explicação, supostamente indígena, baseada em alguns
casos, na ressignificação de mitos, que garantia origem unívoca para
toda a humanidade. Explicou-se a presença indígena na América a
partir de modelos possíveis naquele momento histórico, como o uso de
embarcações, por exemplo. Atribuiu-se a cor de pele branca aos primeiros
moradores da terra, não coincidentemente a mesma que a dos europeus.
Foram explicados, de forma simples, os motivos pelos quais esses povos,
embora de uma mesma origem, haviam se degenerado tanto a ponto de
naquele momento serem culturalmente tão diferentes dos conquistadores,
mas na essência humana permaneciam iguais. Isso era fundamental para a
manutenção da ordem cosmológica cristã que se desfiguraria se houvesse
a possibilidade desses homens terem uma origem diferente da do restante
da humanidade.
A explicação atribuída aos indígenas não satisfaz totalmente a
25 Por exemplo, NÓBREGA, 1988, p. 91 e 100-101; SCHADEN, 1959 e 1998, e NIMUENDAJU,
1978.
120
inquietação geral daquele momento principalmente por sua falta de
coerência bíblica. Vasconcelos desqualifica a ideia de que esses povos
surgiram a partir de sobreviventes de um dilúvio ocorrido no Novo Mundo.
Isso porque ninguém teria escapado do dilúvio universal a não ser Noé e
sua falia e segundo o autor, tal família não foi a primeira a povoar a
América. Além disso, ele afirma que[...] são ridículos todos os outros
modos com que os nossos índios sonharam, que escaparam do dilúvio, ou
sobre árvores, ou montes [...] (VASCONCELOS, 1977a, p. 84). Endossar
o dilúvio indígena seria contradizer a bíblia, então ele explica que como
essa lembrança era tão recorrente entre várias “nações”, provavelmente,
trata-se de uma lembrança distorcida do “[...] verdadeiro dilúvio [...]”
(VASCONCELOS, 1977a, p. 84).
Para se ver como a questão da origem dos povos indígenas inquie-
tava os europeus, especialmente os religiosos daquele período, citarei, a
seguir, por meio de paráfrases, diversas passagens da obra de Vasconcelos,
nas quais o autor argumenta sobre a imprecisão da época em que teriam
chegado os primeiros povoadores da América. Além disso, Vasconcelos
permite visualizar, pela quantidade de autores que cita e pela diversidade
de teorias a que se refere, a proporção desses questionamentos, bem como
a necessidade de uma resposta que não fugisse aos pressupostos bíblicos.
A vultuosidade da questão confirma que as preocupações destacadas não
eram casos isolados, mas sim que estavam presentes na pauta de muitos
pensadores que tentavam explicar o Novo Mundo.
Alguns afirmavam que o primeiro povoador era Ofir Índico, filho
de Jectan e neto de Heber, de quem a sagrada escritura fala no capítulo
dez do livro do “Gênesis”. A Ofír teria cabido senhorear o último ponto
da costa da Índia Oriental. Depois de cumprir essa missão, ele teria
passado à Arica para povoá-la e senhoreá-la. Teria entrado pelo Peru
e México e dali expandido sua povoação. Essa teoria era apresentada pelo
padre João de Pineda, da Companhia de Jesus, em sua obra “De Rebus
Salomonis”. A mesma opinião teria sido partilhada por Arias Montano.
Para Vasconcelos, esta era uma boa teoria, pois, por interdio dela, os
habitantes da América, de pronto, deveriam ter tomado o nome de índios,
tendo em vista que a origem humana das índias ocidentais era comum às
orientais, mais antigas. Dessa explicação, também deriva a ideia de que a
América era o mesmo lugar chamado de Ofir na Sagrada Escritura. De
acordo com os defensores dessa ideia, o povoamento inicial da América
teria se dado cerca de 1.700 anos depois do dilúvio universal e 2.088 anos
121
antes do nascimento de Cristo (VASCONCELOS, 1977a, p. 84).
Outros defenderam que os primeiros povoadores da América eram
os confusos construtores da torre de Babel. Estes, frustrados por não
terem conseguido seu objetivo e confundidos por Deus, por meio da
diversificação das línguas, teriam vindo parar na América. Segundo essa
teoria, a povoação do continente ocorreu logo após o episódio de Babel
que teria se dado 131 anos após o dilúvio universal e 2.174 anos antes de
Cristo (VASCONCELOS, 1977a, p. 84-85).
Houve outros que defendiam que os primeiros povoadores eram
servos do rei Salomão. Eles teriam sido enviados, como era o costume, pelo
Mar Vermelho à região de Ofir, de lá costumavam trazer metais preciosos
e madeira de boa qualidade. Para alguns, essa região era a América,
especialmente, o Peru, o México e o Brasil. Essa hipótese era considerada
muito provel. Foi apresentada pelo Padre João de Pineda em sua obra
“De Rebus Salomonis”; pelo dominicano Fr. Gregório Garcia em seu livro
“De Indorum Occidentalium Origine”; por Vatablo, primeiro defensor
dessa opinião; e ainda por Postello, Goropio, Arias Montano Genebrando,
Marino Lixiano, Antônio Possivino, Rodrigo Yepes, Bosio e Manuel de Sá
(VASCONCELOS, 1977a, p. 85).
Para Vasconcelos, a ideia anteriormente exposta era bastante
verossímil, tendo em vista que ninguém poderia negar que o grande
sábio Salomão teve à sua disposição todas as terras do mundo. Isso seria
confirmado pelo sétimo capítulo do livro daSabedoria. Contudo, o
autor questiona: se Salomão sabia das riquezas existentes na América, por
que não haveria de mandar buscá-las para que fossem incorporadas ao
tesouro do templo? Sabendo que ele dispunha de uma armada nos portos
do Mar Vermelho que de três em três anos realizava incursões em busca
de riquezas, por que não poderia chegar à América? O autor argumenta
dizendo que a viagem poderia ter saído pelo Mar Vermelho direto para a
Índia Oriental, costeando a Malaca e Samatra e daí para as Ilhas de São
Lourenço, ao Cabo da Boa Esperança e em seguida ao Brasil, de onde teria
costeado toda a América. Segundo ele, havia menos distância entre o Cabo
da Boa Esperança e a costa do Brasil e da Nova Espanha, do que de lá à
velha Espanha, África e Fenícia, onde comumente os cronistas afirmavam
ter alcançado a frota de Salomão. Se essa hipótese fosse verdadeira, os
primeiros habitantes da América teriam chegado por volta de 2.933 anos
depois da criação da Terra e 1.028 anos antes do nascimento de Cristo.
A opinião de que a América era Ofir não fora aceita por todos,
122
havia quem defendesse que Ofir, na verdade era Angola ou Mina ou ainda
a Índia. No entanto, era cogitada a hipótese de que os navegantes ao se
dirigirem a Ofir teriam ficado à deriva e, contra a sua própria vontade,
teriam sido levados para a América, acabando por serem os seus primeiros
povoadores (VASCONCELOS, 1977a, p. 85-86).
Havia ainda, segundo o autor, aqueles que defendiam que os
primeiros povoadores da América eram troianos, companheiros de Enéias.
Após a derrota do exército troiano frente aos gregos, os sobreviventes
teriam se dividido pelo mundo em busca de um lugar para habitarem. Um
desses grupos teria se lançado ao oceano e encontrado a América, iniciando
assim sua povoação. Quem levantou informações sobre essa teoria foi o
Padre João Pineda. Sendo aceita essa tese, a povoação da América teria se
iniciado cerca de 2.806 anos depois da criação e 1.156 anos antes da vinda
de Cristo (VASCONCELOS, 1977a, p. 86-87).
Outra hipótese apresentada por Vasconcelos foi a que defendia que
os primeiros habitantes da Arica eram africanos, que, após a destruição
de Cartago pelos romanos, foram obrigados a procurar outro local para
viver. Um desses grupos teria sido levado pela força do vento, contra a
sua vontade, até a costa do Brasil. O jesuíta argumenta que a viabilidade
dessa proposta repousava no fato de Estrabão ter informado que, quando
dominados pelos romanos, os cartagineses tinham trezentas cidades na
África e que só em Cartago teria havido uma população de setecentas mil
pessoas. Assim sendo, justificar-se-ia que tenham tido que buscar outros
locais para abrigar tamanha multidão. Caso essa teoria fosse verdadeira,
pelas contas do autor, a povoão da América teria se iniciado 3.833 anos
após a criação do mundo e 149 anos antes do nascimento de Cristo.
Vasconcelos cita ainda a hipótese, já defendida por Dun, de que os
primeiros povoadores da América eram originários de dez tribos de Javé.
Essas tribos teriam sido mantidas presas no templo de Enéias e por graça
divina teriam sido conduzidas a uma terra nunca antes habitada e que
estaria a uma distância de um ano e meio de caminhada. Segundo o autor,
essa história era endossada pelo livro de “Esdras”. A terra a que eles foram
conduzidos teria sido a América. Os argumentos em defesa dessa hipótese
dizem respeito ao fato de que os missionários reconheciam nos ingenas
características negativas que supostamente também seriam dos judeus,
como a preguiça, a covardia, a mentira, a preservação da descendência
familiar, casando-se com a cunhada, quando da morte de um irmão, e o
fato de se banharem a cada vez que passavam por um rio. De acordo com
123
essa possibilidade, o povoamento da América teria se iniciado por volta de
3.226 anos após a criação do mundo e 724 anos antes da vinda do redentor
(VASCONCELOS, 1977a, p. 87).
Haveria ainda aqueles que concordavam com Diodoro Sículo,
defendendo a teoria de que os primeiros habitantes do Novo Mundo
eram fenícios africanos. Estes, em um tempo muito antigo, teriam saído
a navegar para fora dos portões de Hércules e costeando a África, teriam
sido levados pelos ventos até uma paragem muito rica em recursos naturais.
Essa paragem só podia ser a América. Tais fatos teriam acontecido quase
que simultaneamente aos da hipótese anterior (VASCONCELOS, 1977a,
p. 87-88).
Certo é que o debate foi grande e a maioria dessas teorias sofria
algum tipo de oposição. José de Acosta, por exemplo, refutava a ideia
daqueles que acreditavam que o Peru era a mesma Ofir que aparece no
livro dos Reis. Segundo alguns de seus argumentos, ainda que houvesse
ouro na América, seu valor não chegaria a superar a fama de riqueza, que
tinha na Antiguidade, as Índias Orientais. Com tanta riqueza nas Índias
Orientais, seria uma incoerência de Salomão desviar suas frotas à última
parte do mundo, que era a América. Havia aqueles que defendiam que
Ofir seria uma redução fonética de Piru. Para Acosta, essa comparação
era de pouco crédito, pois ao que tudo indicava Peru era um nome dado
pelos espanhóis àquela terra, já que seus nativos não o conheciam e nem
o usavam para designar seu território. Além disso, mesmo que existisse
proximidade fonética, esse seria um argumento muito fraco para justificar
a vinda de enviados de Salomão (ACOSTA, 2006, f 34r-f 35v).
Contra aqueles que reconheciam alguma origem judaica nos povos
indígenas, Acosta rebatia com os seguintes argumentos: esses povos, em
sua maioria, ao contrário dos judeus não conheciam as letras. Os indígenas
não praticavam a circuncisão, por outro lado, os judeus prezavam pela
manutenção de sua língua e costumes. Tanto era o valor que davam as suas
particularidades que seriam facilmente diferenciados de outros grupos
em qualquer lugar do mundo. No entanto, isso não se observava entre
os povos indígenas. Acosta questiona por que somente na América eles
teriam abandonado todo o seu judaísmo? Essa contradição ficava ainda
mais evidente, pois a hipótese se baseava no livro de Esdras que, segundo
Acosta, registrava que os judeus se organizavam para o fortalecimento de
sua religião. Como entre os povos indígenas não se observavam heranças
da religião judaica, tornava-se contraditória a ideia de que os judeus tinham
124
sido os primeiros povoadores da América. Em relação à preguiça e à
covardia, o autor opõe-se à ideia dizendo que tal afirmação era inverídica,
pois não se aplicava a todos os povos indígenas. Havia, segundo ele, alguns
que eram muito dispostos e guerreiros (ACOSTA, 2006, p. f 51v-f53 r).
Em sua “Historia de la Conquista del Paraguay rio de la Plata
y Tucuman” (1873), o jesuíta Pedro Lozano, que viveu na província do
Paraguai durante boa parte do século XVIII, época em que escreveu a obra
referenciada, cita e discute todas as hipóteses acima expostas, em grande
parte com base em Acosta e Vasconcelos. Para evitar a prolixidade, não
entrarei novamente no mérito apresentado sobre cada uma delas. Contudo, é
válido ressaltar que a obra de Lozano confere considerável espaço para essa
discussão com mais de dez páginas sobre o assunto. O autor permaneceu
na linha de defesa do monogenismo e de que a povoação da América se
deu após o dilúvio universal. Um fato novo levantado por ele foi o da
possibilidade de que os primeiros habitantes da América tenham sido de
origem espanhola, dinamarquesa ou norueguesa. Outro ponto importante
que o autor defende é que a povoação ocorreu antes do nascimento de
Cristo. Uma das grandes provas disso era a tradição da pregação apostólica
que corria pelo continente. Para ele, tal pregação certamente tinha como
responsável São Tomé (LOZANO, 1873, p. 345-357).
Foram inúmeras as proposições a respeito de quando e quem iniciou
a povoação da Arica. Grande parte delas buscava alguma fundamen-
tação bíblica. Todos os autores tiveram o cuidado de propor eventos
supostamente ocorridos após o dilúvio universal. Dessa forma, a sagrada
escritura não seria contrariada, pois esta era vista como a soberana
verdade, pela qual todas as perguntas deveriam encontrar suas respostas.
A inquietação diante da nova humanidade americana era grande e
despertava o interesse de muitos. É importante constatar que independente
da maneira por meio da qual os seres humanos vieram, uma coisa era certa,
sua origem era o Velho Mundo, pois tinham de ter, obrigatoriamente, a
mesma origem que o conquistador. O papa havia confirmado em sua bula
que os indígenas eram humanos e estes só podiam ter uma única origem.
A preocupação expressa pelos autores citados demonstra que a inclusão
dos povos indígenas na cosmologia cristã não foi um processo simples, o
que pode ser confirmado pela quantidade de discussões sobre o tema.
Como bem destacou Cristina Pompa (2003, p. 69), em meados do
século XVI, época em que as missões jesuíticas se iniciaram no Brasil,
a humanidade dos indígenas não era mais posta em questão. Isso teria
125
sido uma atitude herética, pois o papa já a havia reconhecido em 1537.
Entretanto, o reconhecimento dessa humanidade estava intrinsecamente
ligado à capacidade dos indígenas para se tornarem cristãos. Como se
trata de um documento importante, muito referenciado, porém pouco
citado, farei a transcrição da tradução de Paulo Suess. Caso o leitor deseje,
encontrará a versão latina na obraCrônica da Companhia de Jesus
(VASCONCELOS, 1977a, p. 115-116.).
Paulo, Bispo, servo dos servos de Deus, a todos os éis cristãos que
tomarem ciência da presente Carta, saúde e bênção apostólica.
Deus altíssimo de tal modo amou o gênero humano que criou o homem não
só capaz de participar dos bens como as demais criaturas mas até mesmo
de alcançar o inacessível e invisível Sumo Bem e vê-lo face a face. Tendo
sido criado, segundo testemunho da Sagrada Escritura, para atingir a vida
e felicidade eterna, e como ningm pode chegar à vida e felicidade senão
pela fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, é forçoso admitir que faz parte
da condição e natureza humana poder receber a fé em Cristo, e que todo
aquele que compartilha a natureza de homem haverá de ser apto a receber
a mesma [fé]. Não cremos haja alguém tão insensato que julgue poder,
ele mesmo, um fi m quando não pode de modo algum conseguir o meio
sumariamente necessário.
É neste sentido que entendemos ser, a própria Verdade, que não se engana
nem pode enganar, dito, ao destinar pregadores da fé para o exercício da
pregação: ‘Ide, pois, ensinai todas as gentes. Disse ‘todas’, sem nenhuma
restrição, já que todas possuem a capacidade de [aprender] a doutrina da
fé.
O adversário do gênero humano, que tudo faz para arruinar os bons,
conhecendo e invejando [essa graça], imaginou um modo espantoso de
impedir a pregação da palavra de Deus para a salvação dos povos. Incitou
alguns sequazes seus que, desejosos de satisfazer a própria cobiça, atrevem-
se a afi rmar por aí que os índios ocidentais e meridionais (e outros povos
cuja notícia presentemente chegou ao Meu conhecimento), sob pretexto de
que são incapazes de [receber] a fé católica, devem ser assujeitados, como
animais brutos, à nossa serventia, e os reduzem à servidão, in igindo-lhes
maus tratos que não fazem nem aos demais brutos que os servem.
Nós, portanto, que, embora sem merecimento, fazemos na terra as vezes do
próprio Senhor Nosso, procurando com todo o empenho conduzir ao mesmo
aprisco as ovelhas do seu rebanho a Nós con adas, que se acham fora do
redil; e querendo trazer o remédio adequado para essa situação, Nós, com
autoridade apostólica, pela presente Carta decretamos e declaramos: Os
ditos índios e todos os demais povos que no futuro vierem ao conhecimento
dos cristãos, embora vivam fora da fé de Cristo, não são nem deveram
ser privados de liberdade e de propriedade de bens. Pelo contrário, podem
livre e licitamente usar, possuir, e gozar de tal liberdade e propriedade, e
126
o poderão ser reduzidos à escravidão; e tudo que se vier a fazer de modo
diferente há de considerar-se nulo, vão, de nenhum valor ou importância; e
que os ditos índios e os outros povos deverão ser atraídos à fé de Cristo pela
pregação de palavra de Deus e pelo exemplo de uma vida correta.
Às cópias da presente Carta, assinadas poro de um norio público, e
munidas do selo de uma pessoa constituída em dignidade eclesiástica, se
deverá prestar a mesma fé que se prestaria ao original. Sem que obstem
[determinações] anteriores ou quais quer outras em contrário.
Dada em Roma, junto a S. Pedro, em 2 de junho do ano de 1537 da
Encarnação do Senhor, de Nosso Ponti cado. (Selo) Papa Paulo III. B.
Zis. Otta escrevente (SUESS, 1992, p. 273-275).
A afirmação da humanidade dos indígenas estava diretamente
relacionada à capacidade que eles teriam de receber a fé católica, bem como
os sacramentos da Igreja. Apesar de a bula garantir direitos iguais a todos,
mesmo que estivessem fora da cristã, era condão imprescindível para a
confirmação dessa humanidade a capacidade que os indígenas teriam para
receber o evangelho. Apesar de os autores religiosos não questionarem
mais a humanidade indígena, eles fizeram um considerável esforço para
afirmar essa humanidade.
O líder jesuíta Manoel da Nóbrega, autor de vasta quantidade de
epístolas, é considerado o autor do primeiro documento literio escrito
no Brasil, o “Diálogo Sobre a Conversão do Gentio” (LEITE, 1954b, p.
317). Trata-se de um diálogo literário entre um Irmão ferreiro e um Irmão
intérprete, datado de 1556/1557. Nele ambos apresentam o indígena com
seus costumes, seus desvios e principalmente com sua “[...] capacidade
para se converter, pois é homem como todos os outros [...] (LEITE, 1954b,
p. 54*). Serafim Leite destaca que o diálogo é uma síntese das leis que se
pretendiam dar aos indígenas naquele momento. Essa síntese contemplava
as seguintes determinações: 1ª) não comer carne humana e nem guerrear
sem licença do governador; 2ª) ter apenas uma mulher; 3ª) não andar nu;
4ª) acabar com os feiticeiros; 5ª) viver em justiça entre si e com os cristãos
e 6ª) que vivam em local fixo, facilitando assim a pregação (LEITE,
1954b, p. 54*). Este documento traz impcita ou explicitamente uma série
de preceitos nos quais os jesuítas acreditavam naquele momento.
Um dos aspectos que se encontra no texto é a inclusão dos indígenas
na cosmogonia e cosmologia cristã. Nóbrega também determina uma
origem comum e bíblica para indígenas e europeus.
127
Gonçalo Alvarez: ― Pois como tiverão estes pior criação que os outros e
como não lhes deu a natureza a mesma policia que deu aos outros?
Nogueira: ― Isso podem-vos dizer chãmente, falando a verdade, que lhes
veo por maldição de seus avoz, porque estes creemos serem descendentes
de Chaam, fi lho de Nóe, que descobrio as vergonhas de seu pai bebado,
e em maldição, e por isso, fi carão nus e tem outras mais miserias. Os
outros gentios, por serem descendentes de Set e Japher, era rezão, pois
eram fi lhos de benção, terem mais alguma vantagem. E porem toda esta
maneira de gente, huma e outra, naquilo em que se crião, tem huma mesma
alma e hum ente[n]dimento, e prova-sse polla Escriptura, porque logo os
primeiros dous irmãos do mundo hum segio huns custumes e outro outros.
Isac e Ismael ambos foram irmãos. Isac foi mais politico que ho Ismael que
andou nos matos. Hum homem tem dous fi lhos de igual entendimento, hum
criado na aldea e outro na cidade; o da aldea empregou seu entendimento
em fazer hum arado e outras cousas da aldea, o da cidade em ser cortesão e
politico: certo está que ainda que tenham diversa criação, ambos tem hum
entendimento natural exercitado segundo sua criação. E o que dizeis das
sientias que acharam os philosophos que denota aver entendimento grande,
isso não foi geral benef cio de todolos humanos, dado polla naturaleza, mas
foi especial graça dada por Deus, nam a todos os romanos nem a todos os
gentios, senão a hum ou a dous, ou a poucos, pera proveito e fermosura de
todo ho universo. Mas que estes, por não ter essa policia, fi quem de menos
entendimento para receberem a fee os outros que a tem, nam provareis vós
nem todas as rezõis acima ditas; antes provo quanto esta policia aproveita
por huma parte, ajuda por outra. Veja Deus isso e julque-o; julgue-o tãobem
quem ouvir ha esperientia des que começou a Igreja, e ver que mais se
perdeo por sobejos e soberbo[s] entendimentos que não por simplicidade e
pouco saber. Mais fácil he de converter hum ignorante que hum malicioso
e soberbo. A principal guerra que teve a Igreja forão sobejos entenderes:
daqui vieo os hereges e os que mais duros e contumases fi caraam; daqui
manou a pertinácia dos judeos, que nem como serem convencidos por suas
proprias Scripturas nunqua se quizeram render à fee; daqui veio a dizer
São Paulo: Nós pregamos a Jesu Christo cruci cado aos judeus escandalo
e às gentes estulticia. Dizei-me, meu Irmão, qual será mais facil de fazer?
Fazer crer a hum destes, tão faciles a creer, que nosso Deus moreo, ou a
hum judeu que esperava ho Mesias poderosso e senhor de todo o mundo?
(LEITE, 1954b, p. 336-338).
Para Nóbrega, os povos indígenas eram descendentes de Chaam, o
filho de Nóe que, segundo o livro do “Gênesis”, teria sido amaldiçoado
pelo pai, por tê-lo visto nu e embriagado e nada ter feito. Seus iros,
ao contrio, escondendo o rosto para não ver a nudez do pai, cobriram
Nóe. Este ao saber do ocorrido amaldiçoou Cann que era filho de Ham
(Chaam). A maldição designava Cann à escravio na qual serviria aos
128
outros dois filhos de Noé e a descendência deles (A BÍBLIA, 1995, p. 19,
Gen. 9, 18-27).
O fato de os indígenas serem filhos de Chaam lhes garantia a
necessária essência humana, pois amaldiçoados ou não, todos tinham uma
alma de mesma natureza. Ao mesmo tempo, Nóbrega justificava o motivo
dos “vícios” que esses gentis tinham, resultados de sua suposta origem.
Além disso, Nóbrega argumenta que mesmo a fraqueza da ignorância
dos indígenas pode ser considerada um ponto positivo, uma vez que, ao
contrário dos judeus, os indígenas não esperavam nenhum messias, era
como se fossem vasos novos esperando a primeira planta. É evidente que
isso não era verdade. No entanto, foi assim que, no momento inicial, os
jesuítas os perceberam. Como relatou o Ir. Antonio Bzquez, em 1555, os
indígenas eram “sem lei, sem fé e sem rei” (LEITE, 1954b, p. 252).
Como se vê no trecho doDiálogo Sobre a Conversão do Gentio,
que cito a seguir, Nóbrega afirma a humanidade dos indígenas e, assim
como a própria bula papal, liga-a diretamente à capacidade de se receber a
fé. Assim, todo homem é da mesma natureza e todo homem pode ouvir a
pregação, conhecer a Deus e salvar sua alma.
Gonçalo Alvarez: ― Dizei-me Iro Nugueira, esta gente são proximos?
Nugueira: ― Parece-me que ssi.
Gonçalo Álvares: ― Por que rezão?
Nugueira: ― Porque nunqua me acho seo com elles, e com seus machados
e fouces.
Gonçalo Alvarez: ― E por isso lhe chamais proximos?
Nugueira: ― Si, porque proximos, chegados quer dizer, e elles sempre
se chegão a mim, que lhes faça o que am mister, e eu como a proximos
lhos faço, cuidando que cumpro o preseito de amar ao proximo como a
mim mesmo, pois lhe faço o que eu queria que me fi zessem, se eu tivesse
semelhante necessidade.
Gonçalo Alvarez: ― Pois a pessoas mui avisadas ouvi eu dizer que estes
o erão proximos, e por ão-no muito, nem tem pera si que estes são
homens como nós.
Nugueira: ― Bem! Se elles não são homens, não serão proximos, porque
soos os homens, e todos, mãos e boons, são proximos. Todo o homem he
huma mesma natureza, e todo pode conhecer a Deus e salvar sua alma, e
este ouvi eu dizer que era o proximo. Prova-se no Evangelho do Samaritano,
onde diz Christo N. S. que aquelle he proximo que usa de misericordia
(LEITE, 1954b, p. 325-326).
Apesar de a humanidade do ingena não ser mais posta em dúvida
pelos autores citados, é visível a busca pela afirmação dessa humanidade.
129
Isso demonstra que em meados do século XVI o tema ainda era recorrente.
Confirmar a humanidade indígena era fundamental, pois isso era pré-
requisito para que a evangelização fosse eficaz. Além disso, aceitando a fé,
o indígena comprovava definitivamente sua condição humana. Sendo os
indígenas humanos, os jesuítas e outros religiosos conseguiriam garantir, ao
menos juridicamente, a manutenção da integridade física dessa população,
uma vez que o documento papal limitava bastante a escravização indígena.
O indígena livre seria, em tese, entregue aos cuidados dos religiosos para a
missão de catequese. Certamente isso nem sempre foi cumprido ou mesmo
acatado pela legislação civil.
O processo de reconhecimento e afirmação da humanidade
indígena foi muito importante para o projeto civilizador cristão, isso
porque a humanidade indígena garantiria que era possível transformá-los
em gente civilizada, o que significava dizer, gente cristã. Ela também foi
fundamental no processo de construção de uma humanidade, no sentido
mais amplo possível, de construção de uma igualdade. Esse processo
foi fortemente influenciado pelo encontro, ou talvez desencontro na
perspectiva do indígena, e pela afirmação desse outro humano até então
desconhecido. Isso aconteceu no momento em que se cruzavam duas
viagens/confrontações ao outro, o outro antigo, representado pela cultura
clássica e o outro geogfico, representado pelos povos indígenas do Novo
Mundo. A junção dessas humanidades ajudou a definir a humanidade
moderna (AGNOLIN, 2001, p. 20-21).
2.5 A inclusão do povo indígena na economia da salvação cristã
Para evitar a prolixidade, não cabe aqui a inclusão detalhada do
projeto cristão de salvação, pois se trata de um tema bastante comum e
conhecido pela maioria. É importante lembrar apenas de alguns pontos
que são fundamentais para esta análise. O primeiro é o caráter universal
da salvação proposta por Cristo, e o segundo o caráter universal de
sua pregação, imposto aos apóstolos pelo mesmo Cristo. Conforme o
evangelho de João, Cristo teria dito o seguinte “ [...] eu vim para que os
homens tenham vida e a tenham plenamente [...]” (A BÍBLIA Teb, 1995, p.
1321, Jo, 10, 10). A vida plena a que Cristo se referia inclui a vida terrena,
mas, não só e nem principalmente, pois o mais importante para o Cristão
é a vida eterna, que como se vê tem um caráter inclusivo e universal é
para todos os homens (= humanidade). Cristo não tipifica o destinatário
130
da vida, trata-se de um dom universal para todo o gênero humano. Com a
morte expiatória de Cristo, todos adquirem a redenção do pecado original
que é o responsável pela morte.
Como já mencionei, segundo o evangelho de Marcos, Jesus teria dito
“[...] Ide pelo mundo inteiro e proclamai o evangelho a todas as criaturas
[...]” (A BÍBLIA, 1995, p. 1259, Mc, 16, 15). Tal passagem foi, inclusive,
citada na bula “Sublimes Deus”. Esses dois preceitos de universalidade
criaram mais um problema para os cristãos europeus. Visto que é um fato
confirmado pelo papa, o de que os indígenas são humanos assim como
todos os demais já conhecidos e capazes, e, portanto, aptos de receber a fé
católica, como se justificaria a sua exclusão do primeiro projeto missionário
cristão executado pelos apóstolos, conforme ordem do próprio Cristo?
É diante deste problema que os jesuítas fizeram a primeira
apropriação do mito de São Tomé no século XVI. Ou seja, os indígenas não
ficaram de fora da pregação universal, pois São Tomé esteve na América
e pregou o evangelho a eles. É esta ideia, já brevemente esboçada por
Manuela Carneiro da Cunha (1990, p. 102), que defendo como a principal
apropriação do mito de São Tomé durante oculo XVI. Montoya, já no
século XVII, ainda evocava a citada passagem do evangelho como prova
da passagem do apóstolo pela América (MONTOYA, 1985, p. 95).
Independente das circunstâncias e dos objetivos que motivaram
a tradução do mito de Sumé para São Tomé, vale destacar que a partir
da chegada dos jesuítas ao Brasil ele foi novamente apropriado e
adquiriu a conotação desejada pelos interlocutores daquele momento.
Interlocutores esses aqui representados especialmente pelo Padre Manoel
da Nóbrega. Ressalta-se a ideia de Chartier, já expressa neste trabalho,
de que as apropriações e consequentes representações oriundas dessas,
são determinadas pelos interesses dos grupos que as elaboram. Tendo
isso em vista, faz-se necessário em uma análise como esta, determinar a
relação dos discursos produzidos com a posição social de quem os utiliza
(CHARTIER, 1990, p. 17).
Quando chegaram ao Brasil em 1549, os jesuítas vieram para
contribuir com a conquista dessa porção do Novo Mundo. Evangelizar
os indígenas e torná-los assim, sobretudo, civilizados era o seu grande
objetivo. Civilizar era o passo anterior e fundamental para cristianizar,
tendo em vista que só os civilizados é que seriam de fato capazes de
assimilar os preceitos cristãos (POMPA, 2003, p. 70). Esse ideal civilizador
se caracterizava pela atitude etnocêntrica de projetar a sociedade cristã
131
europeia sobre os novos povos, sem considerar como positivos a maioria
dos elementos próprios das culturas que pretendiam civilizar. Esse ideal
de civilização é o que predominava nas nações europeias daquele período
(ELIAS, 1994, p. 54). Obviamente a sociedade europeia que se pretendia
projetar nas indígenas era a de um modelo ideal de cristianismo, que na
prática não se via em lugar algum, menos ainda nas Cortes da Europa.
Concomitantemente aos esforços empreendidos para se caracterizar
definitivamente a humanidade dos povos indígenas, os jesuítas trataram
de difundir o mito de São Tomé pela América utilizando para isso sua
correspondência epistolar. A difusão dessas cartas tornou o mito de São
Tomé algo muito popular, tanto que depois ele começou a aparecer em outros
pontos fora da América portuguesa. A ideia da presença do apóstolo foi
fundamental para afastar o pensamento de que os povos indígenas teriam
ficado de fora da evangelização apostólica. Os propósitos disseminados
pelos jesuítas devem ter chegado ao dominicano Diego Dun no México
e este, por analogia, tratou de ligar um mito local, Topiltzin, a São Tomé e
assim também respondeu a esse anseio dos religiosos do século XVI.
É importante salientar que a difusão da correspondência jesuítica
era ampla e atingia a um público diverso. As famosas cartas de edificação
foram publicadas em espanhol em pelo menos duas grandes edições no
século XVI, uma em 1551 e outra em 1555. O espanhol era a língua franca
do momento, e muitas cartas do Brasil foram traduzidas do Português
ou do Latin para que um número maior de leitores tivesse conhecimento
das obras que Deus realizava aqui, por intermédio da Companhia de
Jesus (HUE, 2006). Por uma questão de argumentação, deixo para o
próximo capítulo uma análise mais profunda a respeito da circulação da
correspondência jesuítica. Por ora, é importante ter em mente que essa
circulação foi fundamental, pois tornou pública a representação oriunda da
apropriação que os jesuítas fizeram do mito de São Tomé em meados do
século XVI, especificamente a partir de 1549 no Brasil.
Em pelo menos três das cartas de Nóbrega, que se preservaram
até hoje, encontram-se menções à pregação apostólica de São Tomé aos
indígenas. Uma delas é a destinada ao Padre Mestre Simão, datada de
1549, hoje publicada em duas conhecidas coletâneas (NÓBREGA, 1988,
p. 77-78; LEITE, 1954a, p.115-118). Nela, além de dizer que Tomé esteve
aqui, o missionário transmite a informação de que a mandioca, da qual
com a farinha se faz pão, era uma das dádivas do apóstolo.
132
Outra carta de Nóbrega na qual se encontram informações sobre
São Tomé é a que foi destinada ao Dr. Navarro, presente também nas duas
coletâneas citadas (NÓBREGA, 1988, p. 88-96; LEITE, 1954a, p. 132-145).
Nessa carta, Nóbrega reforça que a mandioca seria uma dádiva de São
Tomé, além de outros prodígios realizados pelo Santo e seu companheiro.
Têm noticia egualmente de S. Thomé e de um seu companheiro e mostram
certos vestigios em uma rocha, que dizem ser delles, e outros signaes em
S. Vicente, que é no fi m desta costa. Delle contam que lhes dera alimentos
que ainda hoje usam, que são raizes e hervas e com isso vivem bem; não
obstante dizem mal de seu companheiro, e não sei porque, sio que, como
soube, as frechas que contra elle atiravam voltavam sobre si e os matavam.
Muito se admiravam de ver o nosso culto e veneração que temos pelas
cousas de Deus [...] (NÓBREGA, 1988, p. 91).
Esta informação a respeito de São Tomé vem logo após o reconhe-
cimento da humanidade dos indígenas. Apesar de todos os horrores que
o religioso vinha descrevendo, como a antropofagia e a poligamia, ele diz
“[...] tudo herdaram do primeiro e segundo homem, e aprenderam daquelle
qui homicida erat ab initio [...]” (NÓBREGA, 1988, p. 91). Apesar de toda
sua degradação e de terem herança apenas dos primeiros pecadores e do
demônio, mantinham o caráter essencial de seres humanos. E como São
Tomé veio à Arica,o foram excluídos do projeto de salvação de Jesus
Cristo. Prossegue o autor dizendo que sabiam do dilúvio, não é claro como
a história verdadeira, mas sabiam e isso era visto como uma herança da
pregação cristã, mais um indício de que o apóstolo teria cumprido com a
sua missão.
O terceiro escrito preservado no qual Nóbrega dá notícias de São
Tomé, é a carta intitulada “Informação das Terras do Brasil” também de
1549 (BREGA, 1988, p. 97-102; LEITE, 1954a, p. 145-154; HUE, 2006,
p. 31-42). Todas essas cartas são de 1549, o primeiro ano de atividades
jesuíticas no Brasil. São documentos nos quais o autor descreve o curioso
e o maravilhoso daquilo que encontrou no Brasil. Entre todas as coisas da
natureza, ele também reservou um espaço para os povos indígenas, pessoas
das quais quando aqui chegou já tinha por certo que eram humanos. No
entanto, não titubeou em argumentar em defesa tanto de sua humanidade,
como também da presença de um protocristianismo. Esse protocristianismo
teria sido iniciado por São Tomé, que como Apóstolo do Oriente, não teria
deixado de cumprir seu papel. Afinal os indígenas apesar de pertencerem,
133
segundo as concepções apresentadas, às piores linhagens, de todo modo,
eram homens e por isso faziam parte dos planos universais de Cristo.
Com isso, poder-se-ia dizer que, se os indígenas não seguiam os
preceitos cristãos, a culpa não era de Cristo ou dos apóstolos, pois Tomé
cumpriu o mandamento e evangelizou até mesmo a mais longínqua porção
de pessoas. A culpa pela decaída era dos próprios indígenas que, por seus
vícios e com a facilidade com que se aliavam ao demônio, preferiam a vida
longe de Deus, pueril e pecaminosa, desprezando o santo e sua pregação.
Embora provavelmente não fosse a intenção dos jesuítas, o tiro poderia
sair pela culatra, pois essa questão, como destaca Íris Kantor, não era
banal. Ela permitia a alteração do status do indígena de gentio ou pagão
para infiel o que trazia uma grave implicação, uma vez que poderia ser
utilizada como argumento para a justificação da guerra justa (KANTOR,
2006, p. 54).
Diante do acima exposto, da circulação e divulgação de cartas
jesuíticas de maneira assaz eficiente e da temporalidade com que o mito
de São Tomé aparece nas fontes,
26
pode-se concordar com Sergio Buarque
de Holanda. Para o autor, o mito de São Tomé teve sua difusão a partir
da colônia portuguesa, atingindo, posteriormente, as colônias espanholas
(HOLANDA, 1996, p. 117).
O historiador jesuíta Pedro Lozano, em sua já citada obra, trata
dessa questão com base justamente na determinação que Cristo fez para
que o evangelho fosse pregado a todos os povos. Ele argumenta que a
despeito dos opositores, que diziam que os apóstolos por seu número
reduzido não teriam sido capazes de pregar pelos quatro cantos do mundo,
a missão evangélica havia sido perfeita. Por quê? Pergunta o religioso: não
teria sido possível aos apóstolos vir à quarta parte de mundo se estiveram
em todas as outras três principais partes? Seu principal argumento
em defesa da pregação apostólica na América estava nos vestígios de
cristianismo que foram identificados entre os indígenas.
Em sua busca por semelhanças, os europeus encontraram em vários
locais a suposta veneração à santa cruz. Em Chiapas, Frei Bartolomé de
Las Casas teria percebido que os indígenas daquele local já tinham sido
instruídos sobre os mistérios da Santíssima Trindade, e também sobre o
26 Cartas de Nóbrega, 1549. Crônica da Companhia de Jesus de Simão de Vasconcelos, 1663.
História de las Indias [...] de Diego Durán, 1581. Conquísta Espiritual [...] de Antonio Ruiz de
Montoya, 1639. Historia del Celebre Santuario de Nuestra Señora de Copa Cabana [...] de Alonso
Ramos Gavilán, 1621.
134
parto milagroso de Nossa Senhora e acerca da paixão e morte de Jesus
Cristo. Tal instrução teria sido dada por homens brancos e barbudos que
vestiam túnicas e adoravam a Santíssima Virgem. No Peru, os povos
indígenas, supostamente, tinham fé na ressurreição da carne, isso porque
eram contrios à violação das sepulturas de seus ancestrais.
Todas as eventuais semelhanças entre práticas culturais indígenas
e cristãs foram cooptadas para endossar a tese de que algum apóstolo de
Cristo teria pregado aos povos indígenas antes da chegada dos missionários
modernos. Embora houvesse quem atestasse que o apóstolo da América
teria sido São Bartolomeu, Lozano defende que é mais provável, por todos
os indícios e com base nos autores que falam a respeito, que o apóstolo
do Novo Mundo tenha sido São Tomé. Enfim, com base em muitas
comparações, a conclusão de Lozano é a de que os povos indígenas
americanos receberam o anúncio apostólico, assim como os povos das
outras ts partes do mundo (África, Ásia e Europa). Deste modo, teria
se cumprido o mandamento bíblico, que aponta que Cristo enviou os
apóstolos aos quatro cantos da Terra (LOZANO, 1873, p. 435-450).
Foi, no entanto, o dominicano Diego Dun quem explicitou de
forma mais clara e evidente a apropriação e ressignificação de São Tomé
como uma ligação do ingena à miso apostólica de pregação universal.
Durán concluiu sua obra a respeito da história e religião Asteca em 1581.
É possível que antes de escrevê-la tenha tido conhecimento das cartas de
Manoel da Nóbrega, que a essa altura já estavam publicadas e falavam
a respeito da presença do apóstolo Tomé no Brasil. Durán se destacou
como intérprete da cultura Asteca, tendo em vista que sua história não se
limitou a uma descrição externa das práticas religiosas indígenas. Mesmo
que seu interesse fosse a destruição dessa religião pagã, ele sabia que era
fundamental compreender internamente essa cultura. Do contrário, os
padres continuariam a ser enganados pelo sincretismo que acontecia às
suas vistas, mas que, como eles não compreendiam, não eram capazes de
repreender (TODOROV, 1996, p. 199-215).
Por ter sido criado desde a infância no México e ter se dedicado
arduamente a conhecer e interpretar a cultura indígena, sem que
necessitasse para isso se afastar das mais ardentes e rigorosas opiniões
dogmáticas do catolicismo, Dun tornou-se, segundo Todorov, um exemplo
de “[...] mestiço cultural [...]” (TODOROV, 1996, p. 214). Ou seja, alguém
que supostamente teria absorvido e compreendido uma série de elementos
culturais indígenas, sem ter se desvinculado de sua cultura europeia.
135
Essa sua mestiçagem fez com que ele encontrasse na religião
Asteca, por meio de analogias, uma série de semelhanças com a religião
cristã. Por exemplo, na festa de Tezcatlipoca enfeitavam o templo com
flores, como os cristãos faziam na sexta-feira santa; ascendiam um fogo
a cada cinquenta e dois anos, visto como o fogo que os cristãos ascendem
na páscoa; o tambor tocado ao pôr do sol foi interpretado como os sinos
da Ave Maria; e a água era vista como purificadora dos pecados, o que
possibilitou uma analogia direta com o batismo cristão. Até mesmo uma
divindade trina, Tezcatlipoca que teria múltiplas encarnações, reduzindo-
as a ts, concluiu que adoravam o Pai, o Filho e o Espírito Santo
(TODOROV, 1996, p. 204).
Como Dun justifica todas essas semelhanças da cultura indígena
com a cultura cristã? Atribuindo esses costumes a resquícios de uma
evangelização apostólica prévia, proferida por São Tomé (Santo Tomas).
Las açañas y maravillas de Topitlzin y de sus heroycos son tan celebrados
entre los indios y tan mentados y cassi con apariencias de milagros, que no
se que me atreva á afi rmar ni escribir de ellos, sino que en todo me sujeto
á la correcion de la santa iglesia catolica, porque aunque me quiera atar al
sagrado evangelio que dice por San Marcos, que mandó Dios á sus sagrados
apostoles que fuesen por todo el mundo y predicassen el evangelio á toda
criatura, prometiendo á los que creyessen y fuesen batiçados la bida eterna,
no me ossare a rmar en que este baron fuese apóstol bendito, en pero gran
fuerça me hace su bida y otras á pensar que, pues estas eran criaturas de
Dios, recionales y capaces de la bien abenturança, que no las dejaria sin
predicador, y si lo hubo fue Topiltzin, al qual aportó á esta tierra, y según
la relacion del se da era cantero que entallaba imagenes en piedra y las
labraba curiosamente, lo qual lemos del glorioso Santo Tomas, ser O cial
de aquel arte, y tambien sabemos aver sido predicador de los indios y
que escarmentado dellos pidió á xpo, quando le aparecio en aquella feria
dande andaba, que le ynbiase donde fuese servido, ecepto á los yndios; y
no me maravillo se excusasen los sagrados apostoles de benir entonces
á tratar con gente tan desabrida y tan inconstante y torpe y tan tarda de
juicio para creer las cossas de su salvacion, y tan mudables y presta á creer
los fabulosos agueros, sin ningun fundamento ni apariencia do bien; que
hombre de mediano juicio abrá en nuestra nacion española que se persuada
que con chupar los cavellos con la voca, se quita el dolor de cabeza, ni
que le hagan en creyente que refregándole el lugar que le dvele de saquen
piedras ni aguijas ó pedasillos de navajas, como á estos les persuadieron
los enbaydores; ni que la salud de los niños dependia de tener la caveza
tresquilada, desta manera ó de otra; cossa por cierto de baxisimo y corto
136
juicio terrestre y abominable y que para despersuadillos de aquello lleguen
á trasquilar su hijo y quitalle aquellos pegones de cavellos y cruces que
les ponian y ser tanta la fe que en aquello tenian descoloridos y mortales
del turbados temiendo que en quitandole aquello á su hijo avia luego de
morir. No me espanto que los agora los tratamos se exasperen y hullan do
tratallos, pues los apostoles con rmados e llenos de gracia pedian no yr á
los yndios, aunque no nos a de acobardar esso, pues lo mas está ya por el
suelo (DURÁN, 2005a, p. 73-74).
Embora Durán faça ressalvas em afirmar concretamente que To-
pitlzin, seja o São Tomé, fica evidente que a opinião do frei é essa. Ele
faz uma relação direta da humanidade dos indígenas, que seriam seres
racionais e capazes de receber as graças divinas, com o texto do evangelho
de São Marcos, que determina a universalidade da pregação. Logo, os
indígenas não poderiam ficar de fora dessa pregação e não ficaram, pois,
como já foi dito, ele encontrou diversas semelhanças entre as crenças e
ritos astecas e as práticas cristãs. Isso foi considerado um forte indício
de que um apóstolo também passou pelo México. Mas qual apóstolo?
Provavelmente influenciado pela leitura de Nóbrega não foi difícil fazer a
analogia, afinal Tomé é mestre em esculpir, as pegadas do sul tornaram-
se esculturas no norte. Tomé foi o pregador dos índios, não esclarece,
porém, se ele está considerando os das Índias orientais ou ocidentais, no
entanto, qualquer que seja o caso, está revelada a influência recebida da
disseminação do mito de São Tomé pela América.
A principal apropriação e consequente ressignificação realizada
pelos evangelizadores cristãos da América na segunda metade do século
XVI foi a utilização do mito de São Tomé para a inclusão dos indígenas na
cosmologia cristã. Tornando-os assim participantes plenos da economia da
salvação e ao mesmo tempo garantindo a perfeição da palavra de Deus.
Ainda nos escritos do século XVI, encontra-se a gestação da ideia
das profecias que previam a vinda dos jesuítas para a América. Nóbrega
foi quem em primeiro lugar levantou essa hipótese e expôs a promessa de
retorno que o santo teria feito “[...] Dizem también que les prometió que
aa de tornar outra vez a verlos [...] (LEITE, 1954a, p. 154). Mais tarde,
no século XVII, os jesuítas do Guairá assumiram esse trecho da carta
de Nóbrega como o prenúncio de sua própria chegada. Essa é a principal
apropriação, que como será demonstrado no próximo capítulo, ocorreu
durante o século XVII.
137
Durán também fala das profecias, entretanto, para ele Tomé previu
a vinda dos espanis em geral, que teriam sido enviados por Deus.
Além disso, todos os problemas por eles trazidos eram um castigo ou
vingança pelo mau tratamento que os Astecas teriam dispensado ao santo
apóstolo (DURÁN, 2005a, p. 75; 78). Vale lembrar que Varnhagen adotou
perspectiva semelhante no Brasil do século XIX.
139
III
Sucessores de São Tomé
Apropriações jesuíticas no antigo Guai
Neste último capítulo, objetivo discutir as apropriações e ressignifi-
cações do mito de São Tomé realizadas pelos membros da província jesuítica
paraguaia no âmbito das redões jestico-guaranis, principalmente na
região do Guairá, durante o século XVII. Nesse local e período, os jesuítas
incorporaram a identidade de sucessores do apóstolo Tomé e, com isso,
buscaram algumas formas de favorecimento da missão jesuítica perante
suas instâncias superiores, especialmente, da coroa espanhola que detinha
os poderes do padroado real.
3.1 O Guairá
A análise, nesta parte do trabalho, está delimitada à região do
Guairá durante o período das missões jesuíticas que lá se desenvolveram
na primeira metade do século XVII. Diante disso, é fundamental que,
antes de adentrar ao assunto principal, tenha-se um panorama a respeito
dessa região. Com esse intuito, farei uma pequena exposição que visa
contextualizar a abordagem a que me proponho.
Em termos territoriais, o Guairá compreendia ao que hoje são
as regiões noroeste, parte da norte, e central do atual estado do Para
(MOTA & NOELLI, 1999), sendo delimitado, aproximadamente, pelos
rios Tibagi, Piquiri, Iguaçu, Paranapanema e Paraná (MOTA, 1994, p. 66).
Vale ressaltar que as fronteiras atualmente estabelecidas não existiam,
portanto essas delimitações servem apenas como um referencial espacial,
não estático baseado nos locais de ocorncia das reduções. Isso não exclui
a possibilidade da área de influência de tais missões ter atingido regiões
mais amplas do que as do atual estado do Paraná.
140
Região do antigo Guairá
Baseado em (MONTOYA, 1985, p. 174).
A partir da chegada dos europeus ao continente sul-americano, a
região começou a ser cruzada e explorada por diversos expedicionários,
aventureiros e viajantes de todas as espécies. Durante praticamente todo o
século XVI, essa região permaneceu sob o domínio indígena. As primeiras
ocupações fixas de espanhóis ocorrem apenas em meados do século XVI,
Ciudad Real del Guayrá em 1550, Ontiveros em 1554 (OLIVEIRA, 2003,
p. 57) e Villa Rica del Espírito Sancto em 1570 (MARTINS, 2005). A
primeira localizava-se nas margens do rio Paraná confluindo com o Piquiri;
a segunda a cerca de cinquenta quilômetros de Salto de Guairá; e a última
na junção dos rios Corumbataí e Ivaí a cerca de cem quilômetros da atual
Maringá, no estado do Para (MOTA, 1994, p. 69). Entre as mais norias
viagens realizadas no período, pode-se destacar a expedição de Aleixo
Garcia que saiu da Ilha de Santa Catarina e tinha por objetivo descobrir a
procedência do ouro ali encontrado. A expedição que se iniciou em 1522
durou aproximadamente três anos e percorreu vários territórios Guarani
até atingir as proximidades do Império Inca. No retorno, o conquistador
acabou morto por indígenas (MOTA & NOELLI, 1999).
141
Em 1581, Pero Lobo, acompanhado de oitenta portugueses e de di-
versos ingenas da costa, intentou continuar os reconhecimentos inicia-
dos por Aleixo Garcia. Logo em seguida, destaca-se a viagem de Álvar
Núñez Cabeza de Vaca, que a serviço da coroa espanhola desembarcou na
Ilha de Santa Catarina e, após cruzar todo o território do Guai, chegou a
Assunção. O relato deixado por Cabeza de Vaca é importante, pois é o pri-
meiro documento a informar a quase total ocupação do território em ques-
o por grupos de língua Guarani com os quais se estabeleceram diversos
contatos, tendo inclusive realizado trocas de objetos por serviços (MOTA
& NOELLI, 1999). Esse fato contribui para desconstruir a ideia de vazio
demográfico, implantada por alguns estudiosos nas reflexões a respeito do
período colonial do atual estado do Paraná (MOTA, 1994, p. 7-51).
Durante a maior parte do século XVI, o território do Guairá foi
utilizado principalmente como uma zona de trânsito sem o estabelecimento
de grandes povoações ou a intenção de uma colonização expressiva da
região. Existia, todavia, o interesse espanhol pela utilização da mão-de-
obra indígena. No entanto, devido à grande resistência, a operacionalização
dessa exploração não era fácil. Mais tarde as missões religiosas franciscanas
deram importante contribuição aos interesses dos colonizadores. De certa
forma, elas atuaram como intermediárias nesse processo (CHAMORRO,
2007a, p. 253; NECKER, 1990, p. 79). Apesar disso, nesse período, os
povos indígenas mantiveram um domínio relativo da região. Do ponto de
vista administrativo, foi apenas em 1608 que a coroa espanhola criou a
Província do Guairá subordinada a Assunção.
3.2 O Guairá Missioneiro
Entre 1538 e 1546, o comissário da Ordem de São Francisco, Frei
Bernardo de Armenta, juntamente com Frei Alonso Lebron, trabalhou
na região compreendida entre a Ilha de Santa Catarina e Assunção. Tais
missionários, juntamente com a comitiva de Cabeza de Vaca, cruzaram o
território do Guairá pelo menos uma vez, lá entraram em contato com os
Guarani (HOLANDA, 1996, p. 126-127). Na ocasião, Armenta escreveu
uma carta, na qual registrou a lembrança da presença de São Tomé entre
esse grupo indígena (ARMENTA, 1992, 155-157). Todavia, esse trabalho
missionário não chegou a se concretizar como um projeto sistemático de
evangelização, pois ficou restrito a missões itinerantes com abordagens
isoladas e de pouca eficácia.
142
Entre 1582 e 1585, os franciscanos Alonso de San Buenaventura e
Luis Bolaños realizaram a evangelização e o batismo de vários Guarani nas
imediações dos rios Ivaí e Piquiri, região que dava fácil acesso à Ciudad
Real e à Villa Rica (OLIVEIRA, 2003, p. 69). Nesse período, os padres
fundaram dois povoados[...] en el camino que va de Jerez al Guai, los
pueblos de Curumiaí e Pacoiú” (NECKER, 1990, p. 79).
Apesar das tentativas missionárias dos franciscanos, por causa de
fatores como a escassez de religiosos e a consequente impossibilidade
de estabelecimento de reduções fixas, eles ficaram restritos ao trabalho
itinerante. Por isso, a atuação franciscana no Guairá não conseguiu alcançar
resultados de proporções nem sequer próximas aos conseguidos pelos
jesuítas, que noculo seguinte conseguiriam conquistar definitivamente
o Guairá (NECKER, 1990, p. 78).
Em decorncia da fragilidade e da curta duração das missões
franciscanas, Necker (1990, p. 79) concluiu que elas não tiveram grandes
consequências. Todavia, constata-se que elas estavam profundamente
ligadas aos interesses estatais em prol da submissão desses povos aos
colonizadores, “[...] en ningún caso se trataba de una empresa puramente
religiosa. La acción de los Franciscanos se insertaba e intervenía en la
confrontación política, militar y social que enfrentaba a los indios y a los
españoles […].
Como participantes do projeto de conquista do Guai, os
franciscanos conseguiram algo que muito havia se buscado, porém nunca
conseguido com as armas, que foi a pacificação e a submissão (relativa)
dos Guarani aos espanhóis. Isso possibilitou a tentativa de evangelização
proferida pelos franciscanos, mas também a submissão dos indígenas às
encomiendas (NECKER, 1990, p. 79).
A Companhia de Jesus, segunda ordem religiosa a atuar na região,
foi fundada por Icio de Loyola, na Capela Montmartre em Paris no
ano de 1534. Inicialmente, não teve objetivos especiais perante a Contra-
Reforma. No entanto, devido às circunstâncias históricas daquele momento,
a Companhia acabou por se tornar uma grande defensora do catolicismo,
configurando-se como a palatina da Contra-Reforma (WRIGHT, 2006, p.
22-42).
Reconhecida em 1540 pelo Papa Paulo III que aprovou suas
constituições Regimini Militantis Ecclesiae, a Companhia iniciou suas
missões na América do Sul em 1549, quando o Pe. Manoel da Nóbrega e
143
seus companheiros aportaram no Brasil como parte integrante da comitiva
do primeiro governador geral Tomé de Souza. Em 1568, chegam ao Peru;
em 1585, a Tucumã, e em 1586 ao Paraguai. Os jesuítas se aliaram e
serviram durante considerável espaço de tempo às coroas portuguesa
e espanhola. No entanto, não deixaram de gozar de relativa autonomia,
que conseguiam manter devido à sua grande estrutura organizacional,
opondo-se por diversas vezes a governadores e autoridades locais
(ASTRAIN, 1995).
O interesse jesuítico pelas missões no território do Guairá surge bem
antes da chegada de jesuítas ao Paraguai. Em 1553, foi fundada a primeira
província jesuítica da América, no caso, a brasileira. Naquele momento,
os castelhanos ainda não permitiam a ida de jesuítas para suas possessões
coloniais, atitude oposta a do rei português. D. João III incentivou e
patrocinou as primeiras expedições jesticas em ultramar, incluindo a do
Brasil (VASCONCELOS, 1977a, p. 170-172).
Nóbrega já demonstrava a sua intenção de expandir as missões
para o Paraguai, especificamente para o Guairá, tendo em vista os relatos
que recebia dos viajantes que cruzavam o território, julgava-o um terreno
fértil para a conversão do gentio. Como primeiro provincial do Brasil,
eclesiasticamente ele adquiriu a dignidade de prelado, tendo poderes
bastante ampliados, sendo praticamente o provincial da América. De
posse dessa prerrogativa, fez várias gestões para que ele próprio fosse ao
Paraguai, feito que pessoalmente não conseguiu realizar (LEITE, 1954a,
p. 22-23).
Em 1555, escreveu ao superior geral Inácio de Loyola. Na carta,
Nóbrega expressou seu desejo e até mesmo supostas solicitações espanholas
e indígenas para a presença de jesuítas no Paraguai.
Desta Capitanía de S. Vicente a ciento y cinquenta leguas poco más o menos
está edifi cada una ciudade de castellanos llamada Paraguai [Asunción],
los quales tienen sujusgado cien leguas a la redonda mucho número de
gentiles de diversos generationes. Estes es el más maduro fructo para
se recoger que ay agora en estas partes, et omnes hi tam castellani quan
gentiles petunt panem et non est qui frangat eis, porque los obreros que
allá tienen no son sino de maldad. Yo soy importunado cada día assí de
los hespañoles por cartas que me mandan, como de los mesmos Indios que
vienen de muy lexos con grandes peligros a buscarnos. Hasta agora por
no tener persona su ciente y por otros respectos no he mandado. Espero
por el P. Luis da Grãa y con su consejo me determinaré, y creo que se van
144
ordenando cosas que será allá mi ida necessaria, y la certeza escriviré por
otra vía a V. P. después que todo estuviere determinado y resoluto (LEITE,
1954b, p. 168-169).
No mesmo ano de 1555, em correspondência endereçada a Inácio de
Loyola, José de Anchieta fez praticamente os mesmos comenrios acima
expostos por Nóbrega, os paraguaios estariam ansiosos por recebê-los
(LEITE, 1954b, p. 197). É provável que mais ansiosos do que eles estavam
os missionários, pois entre outras situações viviam em conflito com
o primeiro bispo do Brasil, Pero Fernandes Sardinha, o que dificultava
sobremaneira os seus trabalhos na colônia portuguesa. No entanto,
não conseguiam concretizar o intento de ir ao Paraguai, uma vez que,
por razões políticas, não podiam cruzar pela região do Guairá, já que a
partir de 1553 o governador Tomé de Souza havia proibido o trânsito pelo
caminho do Peabiru.
Outra evidência de que Nóbrega fazia o possível para desencadear
a missão paraguaia é uma carta escrita por Inácio de Loyola e destinada
ao Padre Pedro Ribaneira, que se encontrava em Bruxelas. O superior
destacou a grandeza da seara que estava a cem léguas de Assunção “[...]
los Indios, y desa parte ay en ellos más dispositión para venir al baptismo
[...]” (LEITE, 1954b, p. 264). Trata tamm das intenções do provincial do
Brasil, “El Pe. Nóbrega estava determinado de yr él mesmo al Paragai, y
podrá ser accepta aý un collegio o casa, para poder della ynbiar por todos
los contornos gente que predique y baptize y ayude aquella gentilidad a
salvarse []” (LEITE, 1954b, p. 265). Nessa carta de 1556, o superior
tratou da intenção que Nóbrega tinha de fundar uma missão no Paraguai e
também do intuito que o provincial brasileiro tinha de ir pessoalmente ao
Paraguai. Pelo tom da carta, o superior geral parece favorável a tal projeto.
Em carta de 1557, o Padre Luís da Grã, dirigindo-se a Inácio
de Loyola, falou a respeito de um encontro que teve com Nóbrega em
Piratininga. Nessa ocasião, Nóbrega já tinha iniciado o caminho em direção
ao Paraguai, mas pediu a opinião de Luís da Grã a respeito desse intento.
Este padre era contrio à viagem e, por isso, Nóbrega desistiu. Da G
deve ter se posicionado contra, uma vez que a essa altura Nóbrega já estava
doente e um pouco debilitado. Além do mais, o caminho entre São Vicente
e Assunção tinha se transformado em uma zona de conflito, com o trânsito
fechado pelos portugueses e os espanhóis fazendo guerra contra os povos
indígenas da região, com o objetivo de obrigá-los a pagar o serviço pessoal.
145
Ficou, no entanto, o próprio Luís da Grã comprometido em ir ao Paraguai
em um momento mais oportuno (LEITE, 1954b, p. 362-363).
Após esse episódio, Nóbrega voltou a insistir no assunto. Em carta
posterior, mas ainda de 1557, enviada ao Padre Miguel de Torres, Nóbrega
argumentou que a ida ao Paraguai seria muito produtiva, pois pelo que
ele sabia os “carijós” eram muito mais receptivos ao evangelho do que
as “feras bravas” do Brasil. E ainda, segundo ele, naquele momento, São
Vicente estava ficando despovoada devido às imigrações que os moradores
faziam em direção a Assunção. Seria, portanto, mais proveitoso uma casa
em Assunção do que deixar todos os jesuítas em São Vicente. Havia, ainda,
a facilidade para que se ministrasse o sacramento da ordem aos candidatos
da Companhia, visto que Assunção já tinha seu bispo e estava mais próxima
de São Vicente do que Salvador. Além disso, naquele momento, o Brasil
estava sem bispo. Nóbrega enviou as respostas das cartas de consulta que
havia feito a Roma aos demais irmãos do Brasil especialmente a Da Grã
para avaliação, chegou-se a uma conclusão colegiada de que, melhoradas
as condões de segurança do caminho, os jesuítas de São Vicente iriam ao
Paraguai. A essa altura, Nóbrega parece já ter aceitado a impossibilidade
de ir pessoalmente, pois estava na Bahia e doente, aguardando a nomeação
do novo provincial, que ocorreu em 1559. O nomeado foi o padre Luís da
Grã (LEITE, 1954b, p. 402-403).
Em 1586, oriundos do Peru, chegaram a Córdoba os primeiros
jesuítas. Um pouco depois, após conturbada viagem marítima, financiada
pelo bispo de Tucumã, Francisco de Vitória, chegaram à cidade os primeiros
jesuítas oriundos do Brasil (ASTRAIN, 1995, p. 14-20). Eles, enfim,
conseguiram realizar o desejo de Nóbrega, mas já sob o provincialato de
José de Anchieta, que assumiu o cargo em 1577. Segundo nota do editor
espanhol da edição de 1892 daConquista Espiritual” de Montoya, houve
então certo impasse em relação a qual província jesuítica deveria ficar
ligada à missão do Paraguai: Brasil ou Peru, que a essa altura também
já tinha a dignidade de província. Entendeu-se que o mais adequado era
que se subordinasse ao Peru, pois ambas pertenciam ao domínio espanhol.
Com isso, dois dos brasileiros retornaram à sua origem e os três, que
optaram por ficar, foram incorporados à província peruana (MONTOYA,
1985, p. 32-33). Logo em seguida, os missionários seguiram para Assunção
(ASTRAIN, 1995, p.20). Assim sendo, o desejo de Nóbrega de estabelecer
uma missão no Paraguai sob a responsabilidade da província brasileira
acabou definitivamente frustrado.
146
Dessa primeira missão sabe-se, por meio de Montoya, que seus
missionários realizaram durante algum tempo os ofícios religiosos
próprios da Companhia. No entanto, devido à grande distância em que
ela se encontrava, os superiores provinciais ficavam impedidos de visitá-
la e, por isso, optaram por desativá-la temporariamente. Assim, com
exceção do Pe. Tomás Filds (ASTRAIN, 1995, p. 32), que doente não pôde
viajar, os demais retornaram ao Peru. Este, que não foi, tinha por objetivo
guardar a casa de eventual invasão por parte outras ordens religiosas. Esse
fato evidencia que o interesse jesuítico se mantinha, apesar do retrocesso
temporário (MONTOYA, 1985, p. 29).
Em 1603, a história do estabelecimento dos jesuítas no Paraguai teve
um novo capítulo. O superior geral da ordem em Roma, que a essa altura já
era o Pe. Cláudio Aquaviva, com intuito de reativar o trabalho apostólico
no Paraguai, resolveu fundar a vice-província do Paraguai. Logo em
seguida, antes ainda da implementação da determinação anterior, em 1605,
mudou de ideia e, não sem resistência da parte dos religiosos da província
peruana, criou a província do Paraguai. Foi nomeado primeiro provincial
o Pe. Diogo de Torres Bollo, que trouxe consigo mais seis missionários
europeus para fortalecer os trabalhos. Esse passo foi fundamental para a
posterior ocupação jesuítica do Guairá (ASTRAIN, 1995, p. 32-35).
Por volta de 1610, o provincial Diogo de Torres Bollo enviou os
Padres José Cataldino e Simão Masseta à cidade de Guai, ponto de
partida para a as missões por redução que ocorreriam na província de
mesmo nome. Na cidade de Guairá e depois na de Villa Rica, exerceram
o ministério sacerdotal entre os espanhóis. Logo em seguida, voltaram
seu interesse para a conversão do gentio. Assim sendo, partiram pelo
rio Paranapanema e, nas proximidades da confluência com o rio Pirapó,
fundaram a primeira redução, batizada de Loreto em homenagem a Nossa
Senhora de Loreto, que desde o inicio foi a padroeira da igreja que se
ergueu naquele local (MONTOYA, 1985, p. 38).
Cerca de seis meses após a fundação da primeira redução do
Guairá, o Padre Antonio Ruiz de Montoya foi enviado em missão a esta
província. Após uma dura viagem, Montoya chegou à redução de Loreto e
se uniu ao trabalho apostólico dos padres Simão Masseta e José Cataldino
(MONTOYA, 1985, p. 40-50).
147
3.3 Padre Antonio Ruiz de Montoya e sua “Conquista Espiritual”
Como Montoya é o principal interlocutor que oferece a base para a
análise das apropriações do mito deo Tomé na região do Guairá durante
o século XVII, é importante conhecer um pouco sobre esse sacerdote
jesuíta e sua obra “Conquista Espiritual”. Nela ficaram grafadas, entre
outros assuntos, as principais ideias geradas a respeito da presença de São
Tomé e suas apropriações nesse período e região.
Filho de mãe indígena e pai espanhol, Montoya nasceu em Lima
no dia 13 de junho de 1585 (CHAMORRO, 2007b, p. 09). Por ter ficado
órfão muito cedo, teve uma juventude bastante inconstante, cheia de
altos e baixos, passando parte de sua juventude no educandário jesuíta
Real Colégio de San Martín, de Lima (CHAMORRO, 2007a, p. 252-
253). Abandonou os estudos básicos em Letras Humanas para se dirigir
à Espanha a fim de se tornar soldado. No entanto, esse seu impulso foi
abandonado quando prestes a embarcar confessou-se com um sacerdote
jesuíta que o impeliu a ficar na América e concluir seus estudos.
Após desistir da vida soldadesca, Montoya retomou os estudos e
convertido chegou a pensar em ingressar na ordem franciscana. Todavia,
isso não aconteceu e, após a conclusão do curso de Letras Humanas, em
1606, ingressou como noviço na Companhia de Jesus. Em Lima, além
de Letras Humanas, estudou Gramática e Retórica, chegando a graduar-
se como mestre em duas faculdades. Posteriormente, em Córdoba, fez
incursões pela Filosofia e pela Teologia (CHAMORRO, 2007a, p. 253).
A informação de que Montoya estudou apenas o mínimo necessário
para ordenar-se sacerdote (MONTOYA, 1985, p. 14) pode levar a uma falsa
ideia de rudez intelectual. Mas, apesar do fato de sua formação teológica
não ter alcançado níveis de maestria, sua prévia formação jesuítica e,
principalmente, sua eximia produção linguística advogam em seu favor.
Ele não foi só um exímio missionário de campo, mas também dotado de
uma invejável capacidade intelectual.
Em 1612, foi ordenado sacerdote em Santiago del Estero, atual
Argentina. Logo em seguida, partiu para Assunção, onde, com base em
escritos de José de Anchieta e do franciscano Luis Bolaños, iniciou seus
estudos de língua Guarani. Nessa fase preparatória, Montoya contou com
a ajuda de alguns criollos como Rodrigo Melgarejo, grande intérprete da
ngua Guarani. A partir de sua chegada à redução de Loreto, iniciou o
aprofundamento prático na língua Guarani, solidificando aquilo que havia
148
aprendido nos meses anteriores. Isso lhe permitiu tornar-se um dos maiores
sistematizadores da língua Guarani (CHAMORRO, 2007a, p. 253).
Em 1612 ou mais tardar em 1613, o provincial Pe. Diogo de Torres
Bollo enviou Montoya para as missões do Guairá, missões essas que já
haviam sido iniciadas em 1610 pelos padres José Cataldino e Simão
Masseta, ambos italianos e pioneiros das famosas missões do Paraguai
(MONTOYA, 1985, p. 14). A partir de então, Montoya dedicou a maior
parte de sua vida ao trabalho missioneiro, de forma que suas outras
atividades, como a de linguista e a de procurador da ordem, gravitaram
eminentemente em torno do propósito missionário. Dedicou cerca de vinte
e cinco anos de sua vida ao trabalho direto nas reduções. A partir de 1620,
foi superior geral das reduções do Guairá, e de 1637 a 1638 superior geral
das reduções do Paraguai (MAEDER, J. A. E., 1989; p. 13; MONTOYA,
1985, p. 14).
A primeira fase de trabalhos no Guairá não foi fácil, por mais
exagero que as fontes possam conter a atividade naquela região não poderia
ter sido fácil. Se, como se viu no século XVI, a região já era conflituosa,
no XVII, as tensões aumentaram ainda mais. Além de área de passagem,
a região do Guairá se tornou importante fonte de cativos para a economia
escravista paulista (MONTEIRO, 1995). Essa região foi conquistada[...]
palmo a palmo com o uso da espada, do arcabuz, da besta, da cruz, de
doenças e de acordos [...]” (MOTA & NOELLI, 1999).
Nesse contexto de instabilidades e conflitos constantes, por meio
de uma série de estratégias, de acordos com os indígenas e também com
as autoridades espanholas, os jesuítas, liderados por Montoya, e sob a
luz das ordenanças de Alfaro, que pretendiam controlar as encomiendas
e evitar os abusos cometidos contra os povos indígenas, conseguiram
formar cerca de treze reduções (CHAMORRO, 2007a, p. 253-254). Sem
perder de vista o ideal civilizador dos religiosos, é importante destacar o
papel fundamental do componente Guarani nessa empreitada. Eles agiram
como senhores de sua história e, por meio de uma lógica própria, com
acordos, provavelmente, visando possíveis vantagens, viabilizaram o
sucesso das reduções do Guairá. Alguns líderes Guarani, diante da pressão
de bandeirantes e encomendeiros, viram as reduções como refúgios,
“[...] os únicos espaços menos ruins que lhes restavam para sobreviver”
(CHAMORRO, 2008, p. 100).
Essa afirmação é comprovada pela documentação que demonstra
que tentativas de missões jesuíticas junto a outros grupos étnicos, como,
149
por exemplo, os Guaicuru, fracassaram por causa da inexistência de
acordos e negociações que caminhassem para o sentido de uma associação
entre jesuítas e indígenas (ASTRAIN, 1995, 72-75). Essa é também uma
abordagem necessária para que não se despreze a historicidade indígena
e consequentemente sua capacidade de conduzir a própria história
(EREMITES DE OLIVEIRA, 2001, p. 122).
No caso do Guairá, a principal vantagem que os padres tinham para
oferecer aos indígenas era a isenção da obrigação de prestação do serviço
pessoal de que os reduzidos gozariam, ao menos temporariamente, ao se
integrarem a alguma redução administrada pelos jesuítas. A conquista dessa
isenção facilitou os trabalhos jesuíticos junto aos Guarani, mas transformou
a ordem em inimiga do povo (colonos – espanhóis e criollos). Isso porque,
ao contrário das missões franciscanas que atuaram como conciliadoras
de tensões no contexto das encomiendas, as missões jesuíticas do Guairá
foram limitadoras da utilização da mão-de-obra indígena (CHAMORRO,
2007a, p. 254; NECKER, 1990, p. 79). Essa situação rendeu aos jesuítas
uma série de conflitos com colonos e autoridades, que se tornaram seus
inimigos e, de certa forma, conseguiram manchar a imagem jesuítica.
Isso fez com que esses religiosos constantemente estivessem envolvidos
em contendas, seja na colônia ou na metrópole. Vale ressaltar que a
atuação histórica dos Guarani não foi pautada em uma homogeneidade de
opiniões em relação a esse processo. Muitos, por exemplo, vários pajés
foram emitentes opositores ao projeto jesuítico atuando como guardiões
das tradições (CAVALCANTE, 2007, p. 17; MONTOYA, 1985, p. 237;
OLIVEIRA, 2003, p. 150; CHAMORRO, 2008, p. 69-115).
A partir de 1632, os ataques paulistas sobre as reduções do Itatin, do
Guairá e do Tape se intensificaram. Essa situação fez com que, reunida em
Córdoba, no ano de 1637, a congregação da província jesuítica resolvesse
impetrar recursos para defender as reduções e obter a condenação desses
atos em Roma e em Madri. Esses recursos solicitavam a defesa dos
indígenas e, principalmente, a licença para que eles pudessem utilizar
armas de fogo para se defenderem (MAEDER, 1989, p. 14). Diante de tal
decisão, a congregação nomeou o Pe. Antonio Ruiz de Montoya como
procurador da província jesuítica do Paraguai junto à Corte espanhola. Em
1638, ele partiu levando consigo, além dos apelos de seus superiores, toda
a sua experiência missionária.
A viagem, que inicialmente não devia ser tão demorada, acabou
se prolongando até 1643. Tal demora foi motivada por uma conjunção de
150
fatores. O momento político era conturbado, vivia-se uma fase crítica que
resultou no fim da União Ibérica em 1640, além disso, o próprio Montoya
enfrentou dificuldades com uma doença pessoal (MONTOYA apud
REBES, 2001, 251-252).
Durante o período em que permaneceu em Madri, dedicou-se
a duas principais atividades: defender as missões jesuítico-guaranis,
finalidade primeira que o levou àquela metrópole; e concentrar esforços
para a impressão das suas grandes obras linguísticas: “Tesoro de la Lengua
Guarani (1639),Arte de la Lengua Guarani” eVocabulário de la Lengua
Guarani” (1640), e a catequética “Catecismo de la Lengua Guarani” (1640)
que foram importantes ferramentas para os missionários do século XVII
(MAEDER, 1989, p. 15).
Além das suas obras linguísticas, produzidas anteriormente e
publicadas naquele momento, Montoya escreveu e publicou na Espanha
sua obra “Conquista Espiritual” (1639) e alguns outros documentos em
formato de cartas e memoriais ao rei, que têm acesso mais difícil se
comparado às obras de maior vulto. Nesse sentido, é valioso o trabalho de
Maria Isabel Artigas de Rebes (2001), que recopilou grande parte desses
documentos de Montoya que estavam dispersos por diversos arquivos e
publicações de menor circulação. Alguns memoriais ao rei também podem
ser encontrados no volume “Jesuítas e Bandeirantes no Guairá” da coleção
“De Angelis” (1951).
Quando obteve a concessão para a utilização de armas nas reduções,
Montoya retornou à América, mas seus superiores não permitiram sua volta
para as reduções. Ele ficou em Lima com o objetivo de ajudar na defesa
da Companhia na contenda contra o bispo D. Bernardino de Cardenas,
que estava em pleno curso (ASTRAIN, 1995, p. 163). O missionário
permaneceu em sua cidade natal até o fim de sua vida que se deu em 1652.
Há quem defenda que posteriormente seus restos mortais foram levados
para o Paraguai (MAEDER, 1989, p. 17-18), mas esta informação não é
plenamente confiável, pois, de acordo com Chamorro (2007a, p. 257), as
fontes históricas não são conclusivas quanto a essa informação.
3.3.1 Contexto da produção da “Conquista Espiritual” e seu caráter
ufânico
A análise dessa documentação exige um longo levantamento de
suas intertextualidades e a aplicação do chamado “paradigma indiciário”
151
(GINZBURG, 1990), processo que busco fazer mais adiante quando analiso
o mito de São Tomé na obra de Montoya. Por ora, é possível levantar
alguns aspectos importantes para uma compreensão de como pode ter se
desenvolvido a atividade de Montoya junto ao rei Felipe IV na Corte de
Madri e como isso pode ter influenciado no estilo de escrita da “Conquista
Espiritual”.
Como já mencionei e bem destacou Graciela Chamorro (2007a, p.
253-254), os jesuítas do Paraguai assumiram em seu projeto missionário
uma postura diferente daquela dos franciscanos do próprio Paraguai e
dos jesuítas do Brasil. Ou seja, não foram mediadores de conflitos a favor
da utilização da mão-de-obra indígena, pelo contrário, com base nas
ordenanças de Alfaro e em cédulas reais, se opuseram às encomiendas que
eram uma forma velada de escravidão indígena.
Essa postura jesuítica rendeu-lhes o status de persona non grata
perante a maioria da população colonial, o que fez com que sofressem
algumas represálias. Pode-se destacar dessas represálias, como exemplo,
as dificuldades que os jesuítas enfrentaram, em 1608, após libertarem
do serviço pessoal os indígenas que a eles próprios serviam. Esse ato fez
com que os inacianos tivessem cortadas suas esmolas e até mesmo que
encontrassem dificuldades para comprar no mercado local produtos a preço
justo (ASTRAIN, 1995, p. 53-65). Tais represálias se intensificaram após
a publicação das ordenanças de Alfaro, documento amplamente apoiado
pelos jesuítas. Uma das acusações que impetram aos jesuítas foi a de que
eles[...] contradecían a la legítima autoridad, puesto que los Gobernadores
del Paraguay e del Tucun habían autorizado el servicio personal usado
hasta entonces [...]” (ASTRAIN, 1995, p. 62). O fato é que daí por diante os
jesuítas do Paraguai tiveram poucos momentos de tranquilidade frente à
população provincial, tais circunstâncias são narradas por Antonio Astrain
em sua já citada obra.
Dado que os jesuítas ficaram com uma imagem maculada pelas
diversas campanhas contrárias que receberam, o trabalho de Montoya na
Corte de Madri seria mais árduo do que se poderia pensar. Isso porque a
fama dos maus atos da Companhia de Jesus no Paraguai já havia alcançado
os corredores palacianos de Madri. Prova disso é a carta de apresentação
dirigida ao Rei, que Montoya levou consigo. Nela, os jesuítas não apresen-
taram apenas os problemas enfrentados com os ataques dos paulistas, mas
também enfocaram defensivamente as perseguições e as supostas difama-
ções que vinham sofrendo por parte de autoridades coloniais.
152
[] haciendo grandes papeladas Vuestro Gobernador y Cabildo de la
Ciudad de Asunción engañado, enviando informaciones e informes con
cosas mal fundadas y supuestas contra los Indios, tocando a los que los
tienen a su cargo [] (REBES, 2001, p. 155).
Y a su reclamo y persuación, como se entiende, Vuestro Gobernador del
Río de la Plata, D. Mendo de la Cueba y Venavides hizo lo mismo, 156
mostrando en esto, como en otros cosas, su mal afecto a la Compía y a
los fi eles reducidos, con muy grande ofensa de Nuestro Señor y de V.M.;
porque lo mismo es quitar a los Indios eles vasallos de V.M. que en su
servicio derraman sangre y dan sus vidas, las armas de las manos con
que defi enden sus pueblos, mujeres e hijos, que dárselas a sus enemigos
declarados, dejándoles el paso franco sin resistencia a estas Provincias y
a los Reinos del Perú, adonde tengo fresco y nuevo aviso se van entrando
a prisa y que Vuestro Goernador de Santa Cruz de la Sierra quedaba al
presente en Chuquisaca pidiendo ayuda y favor para salirles al camino
a D. Juan de Lyzaraso, vuestro Presidente de las Charcas, que con celo,
delidad y vigilancia acude siempre a las cosas de Vuestro Real servicio
(REBES, 2001, p. 155-156).
[]vuestros Gobernadores no les molesten, como muchas veces lo hacen
más, antes, los defi endan de tantos émulos y contrarios como tienen,
multiplicando informes contra ellos y los Padres que los adoctrinan:
pagando muchosos hace a la Compañía de Jesús que les es sirviendo
continuamente el hacerlo, para procurar su descrédito para con V.M. y sus
Reales Consejos, con relaciones siniestras que ellas mismas muestran la
pasión con que se escriben suspendiendo el juicio de ellas hasta que a la
Compañía se le hagan notorias y responda a ellas que al presente no puede,
por haberles negado el Gobernador del Paraguay con mano poderosa
los tantos de lo actuado aunque los han pedido jurídicamente, como m s
largamente informar, con los papeles que le envió el Procurador General de
las Indias de la Compía de corte [...] (REBES, 2001, p.156).
Diante desse quadro, a estratégia de Montoya foi argumentar em
defesa da imagem da Companhia de Jesus e, somente em um segundo
momento, defender a manutenção das reduções jesuítico-guaranis. A
construção da defesa foi pelo caminho do reconhecimento do valor da
missão jesuítica na propagação da fé católica, que foi defendida como
um atributo do rei. A estratégia não foi no sentido de defesa dos povos
indígenas por si só, uma vez que eles tinham plenos valores humanos e,
por isso, mereciam respeito ou algo nesse sentido.
É evidente que na Espanha os jesuítas possuíam simpatizantes e
também desafetos, por isso Montoya precisou de uma estratégia muito
bem arquitetada para conseguir a liberação da utilização de armas de fogo
pelos Guarani reduzidos. Essa estratégia certamente foi construída à custa
153
de muitas conversas, por certo irrecuperáveis, mas também por meio de
petições e de sua importante obra “Conquista Espiritual”.
A título de análise preliminar, apresento agora como essa estratégia
de defesa foi construída em duas petições publicadas naColeção de
Angelis”. O Primeiro documento a ser analisado é a “Cópia de um memorial
apresentado por Antônio Ruiz de Montoya na côrte (sic) de Espanha em
que expõe as razões que levaram os paulistas a atacar as reduções e cidades
de Guairá e a êle (sic) a defendê-las com mão armada. Pede se visitem as
reduções dos índios e se lhes ponha tributo. Madri, 1639 (CORTESÃO,
1951, p. 430-432).
Esse memorial foi apresentado por Montoya ao rei da Espanha no
ano de 1639, ou seja, ainda nos momentos iniciais de sua atuação junto
àquela Corte. Nesse memorial, ele faz uma descrição dos fatos ocorridos
e também uma defesa da Companhia de Jesus em face às queixas que
haviam sido prestadas contra os trabalhos da ordem no Paraguai. Montoya
inicia sua argumentação enfatizando que as reduções foram construídas
“[...] a costa de inmensos trabajos y de cinco martyres sacerdotes [...]”
(CORTESÃO, 1951, p. 430). A exaltação e a aclamação dos martírios foi
uma das estratégias que ele continuou a utilizar com muita ênfase em sua
“Conquista Espiritual”. Expor e tornar públicas as várias ocasiões em que
jesuítas morreram em nome da fé, certamente, constituía-se em um fator
de grande peso quando a intenção do autoro era apenas convencer com
a razão, mas também, por meio da emoção, sobretudo da fé cristã, que
via nos atos de marrio grande valor meritório (OLIVEIRA, 2003, p. 76;
112-113).
Prosseguindo, ele ressalta a grandiosidade da obra jesuítica, como,
por exemplo, a existência de vinte e cinco povoados jesuítico-guaranis,
isso sem considerar os onze destruídos pelos bandeirantes. Ora, que
outra ordem havia conseguido tanto êxito na execução da missão real
de propagar a fé? É válido lembrar que a missão de evangelizar os povos
indígenas da América era do Rei, e que, teoricamente, as ordens religiosas
eram apenas subsidiárias da missão real.
Em seguida, ele destaca que não foram apenas as reduções que
se tornaram vítimas dos assaltos paulistas, mas também as três cidades
espanholas da região do Guairá, que ficaram destruídas e despovoadas. A
partir de então, o autor faz uma junção entre os problemas das reduções e
os problemas civis, abrangendo, com seus argumentos, possíveis perdas
em relação ao domínio civil de territórios e riquezas.
154
Nesse sentido, tratando da remoção das duas grandes reduções
que resistiram por mais tempo no Guai, destaca que dos treze povos
apenas dois foram salvos “[...] con inmenso trabajo e costa (y con licençia
de la R. audiencia de los Charcas como consta de los papeles que se an
presentado) [...]” (CORTESÃO, 1951, p. 430). De um lado, ele volta a
evocar o mérito do trabalho jesuítico e do outro deixa claro que promoveu
a fuga-salvamento com o consentimento das autoridades civis. Logo em
seguida, ressalta que os cerca de dez mil indígenas estavam “[...] mui bien
sementados y en mui buenos puestos, y con aumentos conocidos [...]”. Essa
afirmação da integridade dos indígenas era uma defesa contra acusações
que vinha sofrendo por parte de “[...] fautores de los dichos agressores [...]”.
Segundo o jesuíta, essas acusações denunciavam que ele havia matado
os ditos indígenas. A motivação para tais calúnias seria uma tentativa de
reduzir a gravidade dos delitos cometidos pelos bandeirantes que eram os
de “[...] aver consumido las dichas once Reducciones vendiendo los indios
y matandolos, quemando las yglesias y desterrando dellas el santísimo
sacramento y haziendo las abominaciones que constam por informaciones
authenticas [...]” (CORTESÃO, 1951, p. 431). Percebe-se que, nesse relato,
o autor não fica restrito ao problema indígena, mas inclina a gravidade
dos atos bandeirantes para a destruição de igrejas e a profanação do
sacramento eucarístico. Isso certamente causaria maior escândalo aos
membros da Corte do que a morte ou escravização de indígenas. Isso foi
um ponto a mais para a comoção do rei e de seus conselheiros no sentido
de autorizar a utilização de armas de fogo, principal objetivo de Montoya
em tal viagem.
Além da questão religiosa, Montoya lança um novo apelo demons-
trando o suposto risco da perda de domínios territoriais e riquezas
minerais.
[...] Demas de lo qual an cometido otro delito de abrir camino y paso a la
villa Imperial de Potossi como tambien consta por las dichas informaciones
y cartas del Presidente de los Charcas don Juan de Iliçaru y de obispos,
y governadores, y avisos que dello a dado el conde de Chinchon Virrey del
Peru, lo qual asi mismo an pretendido paliar falsamente con descredito de
los predicadores evangelicos y del mismo evangelio deziendo que por aver
la comp.ª de Jesus convertido aquella gentilidad y fundado aquelos pueblos
avia avierto el dicho camino lo qual se ve claramente ser falso y ageno de
verdad. Porque estando las dichas tres ciudades fundadas por mandado y
onden de los Señores Reyes pasados cien años a y estar en la derechura
de la dicha villa de san Pablo con la villa Imperial de Potosi destruyron
155
las dichas ciudades a fuerça de armas y juntamente las dichas once
reducciones que estavan en contorno de las dichas tres ciudades, demas de
las quales destruyeron siete pueblos de Indios que estavan encomendados a
las dichas ciudades solo con animo de limpar el dicho camino para passar
libremente al Peru (como se hara demonstracion mui clara por un mapa que
el suplicante trae de toda aquella tierra) [] (CORTESÃO, 1951, p. 431).
Montoya destaca que com os avanços paulistas ficava em risco a
vila de Potosí, grande fonte de prata, isso certamente gerou preocupação
à coroa espanhola, tendo em vista o grande prejuízo que a perda de Potosí
representaria. E, ainda, contra-ataca possíveis argumentos das autoridades
civis e eclesiásticas que buscariam imputar a culpa de tais calamidades
aos jesuítas. O missionário argumenta na sequência, que esboçou alguma
resistência aos invasores, com três mil arqueiros, mas não conseguiu
resistir. As forças dos inimigos eram maiores, além de cinco mil indígenas
Tupi, os paulistas possuíam ao seu lado duzentos mosqueteiros. Esse fato
teria pesado contra os bravos defensores da coroa espanhola que, em sua
retirada, tiveram a morte de muitos indígenas e graves ferimentos em três
padres. Nesse trecho, percebe-se que Montoya desejava passar a ideia de
que os Guarani reduzidos poderiam ser bravos defensores do rei e de suas
possessões, mas armados com mosquetes, os inimigos sempre levariam
vantagem em relação a eles, que tinham apenas arcos e flechas. Essa
argumentação, além de promover o indígena, não por sua humanidade,
mas por sua utilidade, também soava como um ensaio ao pedido maior que
o procurador ainda iria fazer, ou seja, a autorização para a utilização de
armas de fogo em legítima defesa pelos Guarani reduzidos.
Uma das formas, por meio das quais Montoya tentou provar que os
Guarani removidos do Guairá estavam bem, foi a tentativa de pagar os
tributos referentes aos indígenas que já estavam reduzidos há mais de dez
anos, perdendo assim a isenção. Todavia, ele alegou que o governador de
Assunção não aceitou receber tais valores, bem como se recusou a visitar
as reduções. Provavelmente como uma tentativa de demonstrar que os
indígenas reduzidos eram súditos fiéis ao rei, o jesuíta suplicou que se
cobrassem os impostos, observando que os mesmos fossem de proporções
justas. Montoya concluiu seu memorial pedindo ao rei que mantivesse e
fortalecesse com o envio de mais missionários às missões dos Itatines,
Ghiriguanos, e as da parte do Paraguai, pois elas eram uma forma de
garantir a segurança da região. Em caso de qualquer invasão paulista, os
padres poderiam dar alarme ao governador em Assunção.
156
Nesse memorial, percebe-se que Montoya está preocupado com a
manutenção das reduções e com a salvaguarda da imagem jesuítica. Para
sensibilizar o rei perante suas preocupações, ele não foca sua defesa apenas
na problemática das mortes e escravização de indígenas e na consequente
perda de fiéis e súditos reais. O missionário constrói um discurso no qual
demonstra que a inércia das autoridades coloniais diante dos ataques
paulistas às reduções, colocava em risco, não apenas o sucesso das missões
e a vida dos indígenas, mas também interesses civis de soberania de
territórios e de riquezas. Certamente, a estratégia de Montoya foi de muita
inteligência, pois de fato era mais provável que esses interesses geopolíticos
tivessem maior prestígio perante o rei e a Corte do que a integridade de
missões indígenas. Assim sendo, Montoya tratou de refletir a imagem
dos indígenas reduzidos e dos próprios missionários como súditos fiéis,
e em caso de necessidade, hábeis defensores da soberania espanhola nas
regiões próximas a Potosí e a Assunção. Nota-se que, a não ser por uma
sutil inferência, o autor ainda não chega a explicitar o desejo da liberação
do uso de armas de fogo pelos indígenas. Dessa forma, percebe-se que ele
havia preparado uma estratégia de defesa na qual havia passos a vencer. O
primeiro deles era construir uma imagem positiva dos indígenas reduzidos
e dos emissários da missão. A exaltação do sacrifício físico dos jesuítas
seja por marrios, ferimentos, pobreza ou fome foi um dos argumentos
mais recorrentes, em parte no documento ora analisado e, principalmente,
na “Conquista Espiritual”.
No ano de 1640, após a apresentação do memorial acima citado e
à publicação da “Conquista Espiritual”, Montoya apresenta ao rei uma
petição na qual solicita a autorização para o uso de armas de fogo, desde
que em legítima defesa, pelos Guarani reduzidos. Esse documento também
está publicado pela coleção “De Angelis” sob o título “Cópia da petição do
padre Antônio Ruiz de Montoya a sua Majestade. Relatando os estragos
dos índios infiéis e dos paulistas nas reduções da Companhia de Jesus e
pedindo-lhes licença para que as ditas redões possam ter armas de fogo
e assim defender-se das invasões dos paulistas” (CORTESÃO, 1951, p.
433-434).
Nessa petição, Montoya é bem mais objetivo, não se prolongando
em defesas, o que leva a acreditar que o rei e a Corte já estavam mais
favoráveis aos jesuítas e as reduções jesuítico-guaranis. Inicialmente,
ele fez uma breve defesa das reduções em relação aos ataques paulistas.
Em seguida, uma pequena exaltação dos trabalhos jesuíticos, lembrando
157
que a fundação de reduções era também, se não principalmente, uma
empreita estatal, pois foram fundadas “[...] con tanto trabaxo y gasto de
la R. hacienda [...] (CORTESÃO, 1951, p. 433). Voltou a destacar que os
paulistas chegaram a provocar a morte de padres e que os ataques eram
graves empecilhos para a propagação do evangelho, missão de quem eram
os jesuítas signatários do rei.
Logo em seguida, ele uniu à sua argumentação o fato de que as
reduções ficavam distantes de Assunção, o que impossibilitava, em caso
de novos ataques, que recebessem apoio bélico da capital. Brevemente,
solicitou a liberação da utilização de armas de fogo pelos Guarani
reduzidos, tendo em vista que não haveria outra alternativa para evitar a
destruição das reduções e o consequente despovoamento de vasta área sob
o domínio espanhol.
A objetividade da petição indica que um bom trabalho de
convencimento e de defesa já havia sido feito por Montoya. Certamente,
os memoriais por ele apresentados foram muito importantes no âmbito
da Corte, assim como, também, se não principalmente, foi importante
a “Conquista Espiritual”. Ela prestou decisiva contribuição. Apesar do
avanço nos objetivos de Montoya, a liberação final para a utilização de
armas de fogo só foi concedida em 1644. O êxito foi construído aos poucos,
mas com grande habilidade pelo jesuíta.
A “Conquista Espiritual” não foi fruto do deleite, ou da simples
vontade de escrever de seu autor. Ela foi escrita com um objetivo definido
que era o de servir como instrumento de convencimento perante a Corte
espanhola em relação à pretensa necessidade de concessão do direito do
uso de armas de fogo nas reduções. Ela foi escrita em Madri, nos primeiros
meses de 1639, ano no qual se publicou a sua primeira edição
27
. A obra
tinha objetivos e públicos claros. Há indícios de que a obra foi solicitada
pelos seus interlocutores de Madri, pois, segundo consta em uma carta de
Montoya, citada por Maeder, a obra foi escrita a pedido do ouvidor das
Índias Don Juan de los Palafox (MAEDER, 1989, p. 21).
A função da obra, em um primeiro momento, foi a de expor de forma
escrita e organizada os fatos ocorridos nas missões jesuítico-guaranis do
27 Em 1879, uma versão nas Línguas Guarani e Portuguesa foi publicada nos “Annaes da Bibliotheca
Nacional” do Rio de Janeiro. A segunda edição espanhola foi publicada em Bilbao no ano de 1892.
Na década de 1980, foi traduzida pelos jesuítas Arnaldo Bruxel e Arthur Rabusque para a Língua
Portuguesa do Brasil, sendo publicada em 1985 pela editora Martins Livreiro. Em 1989, outra
edição foi publicada na Argentina (MELIÀ, et al, 1987, 231-232).
158
Paraguai. Mas, Montoya foi além e construiu uma obra ufânica, que tem
todas as características de um escrito que pretende sensibilizar, emocionar,
provocar comoção, enfim, convencer àqueles que tinham poder para
interceder e tomar ações que garantissem a segurança dos indígenas
reduzidos.
A motivação para a escrita da obra, além de ser expressa na carta
anteriormente citada, aparece no interior do próprio texto como se pode
ver:
A mim obrigou-me também tudo isso a deixar aquele deserto e solidão,
e a vir a esta Corte Real e para junto de Sua Majestade. Foi vencendo
cerca de 2000 léguas, com perigo e risco do mar, de rios e inimigos que se
conhecem, para pedir instantemente o remédio contra tantos males, que
importam numa ameaça de grandíssimos estorvos de seu serviço régio,
melhor diria, de danos e perigos em perder-se a melhor das jóias de sua
coroa real (MONTOYA, 1985, p. 20).
Além desse trecho, do início da obra, pode-se perceber claramente a
intenção da mesma em um trecho de suas últimas páginas.
Estas coisas, contadas por atacado, foram a causa de minha vinda à fonte
da justiça e aos pés reais (do rei!). Para mim isso vem a ser uma tarefa
ditosa, pois espero com fi rme confi ança alcançar o remédio devido, para
que aquelas ovelhas, gozando de suas veigas, digo de suas terras, a eles
repartidas pela natureza, retomem a usar da liberdade comum a todos,
bem como, submeter-se com o tributo que sua pobreza permite, vivam
amparados do poder com que Sua Majestade, que Deus aumente, defende
seus vassalos (MONTOYA, 1985, p. 252).
Vistos os objetivos da obra, não se poderia esperar um conteúdo
diferente do encontrado. O autor faz um relato heróico das missões,
destacando os difíceis momentos vividos pelos jesuítas, que apesar de
vários martírios, que simbolizavam a maior recompensa para muitos dos
missionários, não desistiram da missão divina e real a eles atribuída.
O trabalho jesuítico era o de uma conquista, vide pelo próprio nome da
obra de Montoya:Conquista Espiritual. Conquista essa, que apesar de
não utilizar armas, era feita em nome do rei, que pelo poder do padroado
tinha a responsabilidade de conduzir os indígenas à fé cristã. Apesar
disso, é grave erro imaginar que a conquista espiritual foi apenas um
apêndice da material, pois é irrefutável que os valores religiosos medieval-
renascentistas motivaram as ações missionárias de muitos religiosos
159
e mesmo de cristãos laicos. A viagem de Colombo, por exemplo, teve
elevada motivação religiosa (TODOROV, 1996, p. 06-17).
Dentre a infinidade de situações ufânicas narradas por Montoya,
uma delas desperta maior interesse no contexto deste trabalho, uma vez
que se constitui no objeto principal de análise neste capítulo. Montoya apre-
senta os jesuítas como sucessores do apóstolo Tomé. Percorrer os caminhos
de produção e utilização da “Conquista Espiritual” foi fundamental para
que se desenvolvesse o posicionamento analítico, que será demonstrado, a
seguir, em relação à obra, enquanto fonte histórica deste trabalho.
3.4 Jesuítas, sucessores de São Tomé
No século XVII, as apropriações mais intensas do mito de São Tomé
se deslocaram do Brasil para a província jesuítica do Paraguai. Na carta
ânua, de 8 de abril de 1614, na qual o Padre Diogo de Torres Bollo trata dos
assuntos ocorridos na província em 1613, há um razvel espaço dedicado
à apresentação do mito de São Tomé. É perceptível que nesse período a
ênfase recaiu sobre o aspecto da profecia que São Tomé teria proferido
a respeito da missão jesuítica que acontecia naquele momento. Essa foi a
principal apropriação do mito que se delineou durante o século XVII, de
modo que sua presença na “Conquista Espiritual” de Montoya é marcante
e reveladora do ufanismo daquela obra.
Otra cosa importante hay, que no puedo omitir, para que su paternidad
tenga más satisfacción todavía de haber fundado esta (nuestra) Provincia;
pues, ya que ha sido aprobada por la voluntad de Dios, y correspond
su fundación a una profecía apostólica, más cariño tendrá para con ella.
Pues es un hecho que el apóstol Santo Tomás ha andado por todas las
regiones del Perú; más admirable es todavía que este Santo haya visitado
este último rincón del mundo y esta tan apartada provincia preparando
desde tan antiguo el terreno para el más grande bene cio que Dios había
de hacer a estos indígenas por medio de nuestros Padres (FACULDAD DE
FILOSOFÍA Y LETRAS, 1927, p. 333-334).
Chama atenção que o provincial já utiliza a possível profecia na
tentativa de obter algum tipo de reconhecimento especial para a província
recém criada. Em seu relato, o jesuíta afirma que era comum entre os
indígenas a lembrança de que “[...] uno santo apóstol [...]” esteve pregando
aos seus antepassados. Para o missionário, esta tradição foi transmitida
160
entre eles, geração após geração. Segundo Diogo de Torres Bollo, entre
os indígenas o santo era conhecido como Pai Sume, mesma forma com
que supostamente os indígenas do Brasil se referiam ao mito que foi
relacionado ao São Tomé americano. O santo teria vindo pelo mar do
Brasil e subido até o rio Tibagiba (Tibagi), uma conhecida paragem
dos indígenas do Guai. Dali, ele teria seguido terra adentro, depois ao
Ubay (Ivaí), e ainda ao Pichirí (Piquiri), sempre pregando a mensagem
divina. Depois disso, teria desaparecido (FACULDAD DE FILOSOFÍA Y
LETRAS, 1927, p. 334).
O autor lembra que os indígenas viviam na maior parte das vezes em
margens de rios, pois isso facilitava a sobrevivência devido à possibilidade
da pesca
28
. Assim, era coerente que o caminho do santo tivesse se dado
por regiões marginais fluviais. Algumas marcas supostamente deixadas
pelo santo em rochas nas nascentes do rio Piquiri eram vistas como provas
da veracidade de sua passagem pelo Guairá. O autor também se refere ao
caminho do Peabiru (FACULDAD DE FILOSOFÍA Y LETRAS, 1927, p.
334-335).
Falava-se que o santo havia profetizado muitas coisas, mas em
primeiro lugar
[...] que vendrían sacerdotes a esta región de donde pronto otra vez se
retirarían; que a estos seguirían otros con una cruz en la mano, estos serían
sus verdaderos padres; los cuales les enseñarían la santa ley de Dios, les
abrirían el camino de la salud y no se separarían de ellos […] (FACULDAD
DE FILOSOFÍA Y LETRAS, 1927, p. 335).
Note-se que, no trecho acima, o padre Diogo de Torres Bollo deixou
claro que a profecia do apóstolo se referia exatamente aos jesuítas e não
a quaisquer outros missionários que já tivessem trabalhado anteriormente
na região, no caso, os franciscanos e eventualmente clérigos
29
. Isso é
um demonstrativo da reivindicação e da apropriação da identidade de
sucessores do apóstolo por parte dos jesuítas.
Na sequência da profecia, o apóstolo teria revelado que após a
chegada dos jesuítas os indígenas migrariam de sua terra natal em direção
28 Essa é uma característica dos chamados Guarani. Graciela Chamorro, com base em ideias do
arqueólogo Brochado, diz que esses povos preferiam a proximidade com as águas, geralmente
estavam em distâncias de no máximo 300 metros de rios, lagos ou do oceano (CHAMORRO,
2008, p. 41).
29 Todos os sacerdotes católicos são clérigos, mas era usual a utilizão desse termo para designar
os pertencentes ao clero secular.
161
ao rio Paranapanema. Nas margens desse rio, dizia a profecia, se instalariam
dois povoados. Para o padre, tal profecia era digna de fé, pois tudo
ocorreu exatamente como o profetizado (FACULDAD DE FILOSOFÍA Y
LETRAS, 1927, p. 335). Historicamente, sabe-se que os jesuítas fundaram
as duas primeiras reduções do Guairá nas margens do rio Paranapanema.
Evidentemente, à primeira vista, não foi a profecia que determinou a
história, mas a história é que determinou a profecia. Seria possível que tal
situação ocorresse sem a intencionalidade do jesuíta, ou seja, é possível
que os indígenas mitificassem um fato histórico ressignificando um mito
próprio de seu herói civilizador e depois o retransmitissem aos jesuítas
que, por sua vez, se apropriaram disso para a sua auto-afirmação. A
possibilidade anterior seria tão possível quanto o contrio. No caso, os
próprios jesuítas, com base na matriz mítica que encontraram, visto que
a fama de São Tomé já era antiga, teriam mitificado sua própria ação
missionária. Independente de uma ou outra situação, o importante é notar
que os jesuítas se utilizaram dessa ressignificação como uma forma de
autopromoção perante a própria ordem religiosa e, mais adiante, de forma
mais importante, perante a Corte espanhola.
Na carta ânua de 1615, o provincial padre Pedro Oñate reproduz
uma carta do padre José Cataldino, na qual o religioso voltou a mencionar
a ideia de que, segundo os indígenas, as reduções, tal qual aconteceram,
já haviam sido profetizadas pelo apóstolo no passado (FACULDAD DE
FILOSOA Y LETRAS, 1929, p. 31). Na carta dos anos de 1626 e 1627
ao provincial Nicolas Mastrillo, Dun reproduziu uma correspondência
do padre Antonio Ruiz de Montoya, na qual o assunto volta à tona. Nessa
epístola, Montoya relatou que de inicio tinha dado pouco crédito para a
possibilidade da profecia, mas que, naquele momento, estava convencido
de sua veracidade, isso porque teria ouvido a mesma história em diferentes
“nações” muito distantes umas das outras (FACULDAD DE FILOSOA
Y LETRAS, 1929, p. 326).
A recorncia do tema nas cartas ânuas deixa evidente que o mito
de São Tomé já era conhecido pelos jesuítas do Paraguai, mesmo antes de
Montoya ter escrito a “Conquista Espiritual”. Todas as referências acima
citadas enfatizam a questão da profecia, na qual o santo, supostamente,
teria anunciado a missão jesuítica entre os Guarani. É possível que os
jesuítas tenham ouvido os Guarani falar do eventual herói civilizador
indígena, mas é bem provável que o enredo da história por eles propagada
tenha sido apropriado dos escritos de Manoel da Nóbrega. Muitas são as
162
coincidências entre as indicações de Nóbrega, do século XVI, e as que
apareceram no século XVII. Por exemplo, o caminho pelo qual o apóstolo
teria ido até o Guairá tinha início no Brasil, e o mito indígena no Brasil
era chamado de Sumé, mesmo nome com o qual apareceu na primeira
ânua citada. Am disso, como já expus anteriormente, o primeiro jesuíta a
propor a ideia de profecia foi Manoel da Nóbrega. Esses incios somados
aos que apresentarei, a seguir, indicam que os jesuítas da província
paraguaia construíram um discurso por meio do qual assumiram a
identidade de sucessores do apóstolo Tomé na evangelização da Arica.
Estranhando nós um acolhimento tão fora do comum, disseram-nos que,
por tradição antiqüíssima e recebida de seus antepassados, sustentavam
que, quando São Tomé – a quem comumente chamam ‘Pay Zumé’ na
Província do Paraguai e “Pay Tu’ nas do Peru – fez a sua passagem por
aquelas terras, disse-lhes estas palavras:
A doutrina que eu agora vos prego, perdê-la-eis com o tempo. Mas,
quando depois de muitos tempos vierem uns sacerdotes sucessores meus,
que trouxerem cruzes como eu trago, ouvirão os vossos descendentes esta
(mesma) doutrina’ (MONTOYA, 1985, p. 86).
Com o trecho acima, Montoya iniciou, naConquista Espiritual,
sua argumentação a respeito da presença do apóstolo Tomé na América.
O apóstolo, supostamente, teria evangelizado previamente os indígenas e,
como se vê no fragmento, teria previsto a vinda dos jesuítas. Esses teriam
o anunciado papel de reavivar a fé que os indígenas tinham esquecido, da
qual lhes restava apenas uma vaga lembrança. Isso também fica explícito
no fragmento abaixo.
Muito mais perto da certeza chega, por conseguinte, a tradição existente no
Paraguai (no sentido) de que passou por ali o Santo, que, como profetizou
a renovação de sua pregação evangélica na Índia Oriental, diz: ‘Quando o
mar atingir a esta pedra, por divina disposição hão de vir homens brancos
de terras muito remotas, para pregarem a doutrina que eu agora vos ensino
e para renovarem a memória da mesma, assim seja da mesma maneira
predisse o Santo a entrada dos (padres) da Companhia nestas partes
(províncias ou regiões) do Paraguai, das quais estou tratando, fazendo-o
quase pelas mesmas palavras:
‘O que eu vos prego, ireis olvidá-lo. Mas, quando vierem uns sacerdotes,
sucessores meus, que trouxerem cruzes como a trago eu, então tornareis a
ouvir a mesma doutrina que vos ensino’.
Dessa instrução e doutrina fi cou-lhes até os nossos tempos o conhecimento
do mistério escondido da Santíssima Trindade, ainda que, já esquecidos
163
dele, celebrassem de modo supersticioso uma afamada festividade a
prosito deste misrio no Peru. Acharam-se quando a isso ts estuas
do sol, que chamam de ‘Apointi, ‘Churinti, ‘Intiqua’ ouQui: o que quer
dizer o Pai e Senhor Sol, o Filho do Sol e o Irmão do Sol (MONTOYA,
1985, p. 96).
Montoya se apropriou do mito de São Tomé invocando a ideia de
profecia missionária, já expressa nos escritos de Nóbrega e reforçada nas
cartas ânuas. Porém, agora explorada de maneira mais objetiva, com o
intuito de conferir importância à missão jesuítica do Paraguai colonial.
Para Montoya, esse argumento poderia ser poderoso no conjunto de sua
obra que, como se viu, tinha por objetivo sensibilizar a Corte espanhola
para a liberação do uso de armas de fogo pelos Guarani reduzidos. Afinal,
os jesuítas não seriam mais simples religiosos, mas, sim, sucessores de um
apóstolo de Cristo. Dessa forma, sua missão gozava da mesma dignidade
que a desse primeiro evangelizador, haja vista que, pela argumentação de
Montoya, no fundo, a missão de Tomé e a missão dos Jesuítas formavam
uma unidade, que teve um intervalo já previsto nos ditames divinos e
anunciado pelo astolo.
Lendo atentamente a obra e analisando as fontes citadas pelo autor,
percebe-se que Montoya inseriu deliberadamente o tema com o objetivo de
construir a imagem dos jesuítas como sucessores de São Tomé. Analisando
os seis capítulos
30
da “Conquista Espiritual”, nos quais se trata do tema
ora estudado, percebe-se uma argumentação frágil que leva à conclusão
acima explicitada. Em primeiro lugar, é muito contrastante na narrativa
a mudança de atitude dos indígenas quando, supostamente, receberam
o bem os missionários, sob a justificativa da lembrança de São Tomé.
Percebe-se certa contradição que leva a concluir que esse fato narrado
naConquista Espiritual, provavelmente, não passa de uma construção
textual que na realidade não aconteceu.
Os indígenas teriam revelado a lembraa do apóstolo Tomé durante
uma entrada realizada por Montoya e pelo Pe. Cristóvão de Mendoza a
uma província chamada Tayati, “[...] habitada por gentios da mesma nação
e língua que a anterior ou passada [...]” (MONTOYA, 1985, p. 86).
A suposta acolhida surpreendeu os padres, pois os indígenas teriam
dado “[...] mostras extraordirias de amor, com danças e folguetos ou
regozijos: coisa que até ali não tínhamos experimentado. Saíam as mulheres
30 Capítulos XXI à XXVI.
164
a nosso encontro para recepcionar-nos, trazendo seus filhinhos nos braços:
o que era sinal muito certo de paz e amor [...]” (MONTOYA, 1985, p. 86).
Em seguida, Montoya justificou que a inesperada acolhida teria ocorrido
porque aqueles indígenas se lembravam de São Tomé e aguardavam a
vinda dos seus sucessores, que então haviam chegado.
Um primeiro fato que chama atenção é que, conforme Montoya, os
protagonistas da acolhedora recepção eram da mesma “nação e língua” da
anterior. Pelo que se observa no contexto da obra, a “nação” anterior não
ficava muito distante de onde a suposta boa acolhida teria acontecido, pois
os padres caminhavam em direção às povoações mais próximas daquelas
em que se encontravam. A localidade em que os missionários teriam estado
anteriormente foi onde se fundou a redução de São Francisco Xavier. Lá,
num primeiro momento, os padres foram recebidos e tratados com intensa
hostilidade, correndo alto risco de morte. Segundo Montoya, um dos
indígenas que os acompanhava foi morto naquela ocasião e os padres por
pouco não tiveram o mesmo destino.
[...] Apenas souberam da nossa presença em suas terras os que tinham feito
rtir aquele índio fi zeram em breve uma grande junta ou assembléia,
achando-se com fome canina de comer-nos. Precipitavam-se eles quais
tigres
31
raivosos por aquelas serras e as mulheres do povoado em que
estávamos, já começaram a celebrar com pranto nossas exéquias [...]
(MONTOYA, 1985, p. 84).
Para Montoya, a morte dos padres só não ocorreu porque um
cacique principal, já convertido, foi visitá-los e vendo a situação defendeu
os religiosos, que acabaram livres por causa do prestígio do líder indígena
(1985, p. 84).
Como já mencionado, ao escrever aConquista Espiritual,
Montoya já havia relato a profecia de São Tomé em carta ânua anterior.
Nela, confirmava seu relato afirmando ter ouvido as histórias sobre o santo
em vários locais diferentes (FACULDAD DE FILOSOFÍA Y LETRAS,
1929, p. 326; CORTESÃO, 1951, p. 233-234). Isso, no entanto, não anula
a contradição do missiorio. A situação descrita no pagrafo anterior é
o primeiro indício de que Montoya não vivenciou um bom acolhimento,
que tenha sido expressamente motivado pela suposta lembrança que os
indígenas teriam de São Tomé. É muito improvável que uma povoação,
31 Melhor tradução seria jaguares ou onças.
165
que aparentemente possuía características culturais ao menos semelhantes
às daquela que foi extremamente agressiva, tivesse uma atitude
completamente oposta. Do mesmo modo, é muito improvável que uma
tivesse tão rápida e clara lembrança de São Tomé, enquanto a outra de
nada teria se lembrando.
Considerando ainda que, como o próprio Montoya afirma, os
jesuítas sempre levavam[...] nas mãos uma cruz de duas varas de
comprimento e de um dedo de grossura, para que se mostrasse nossa
pregação por meio dessa insígnia” (MONTOYA, 1985, p. 86). A cruz
deveria facilitar o reconhecimento dos jesuítas, pois como o próprio Tomé
teria dito, os sucessores dele portariam cruzes (1985, p. 96). Por que então
o reconhecimento não ocorreu já no povoado anterior? A conclusão a que
se pode chegar é que de fato tal encontro não aconteceu nas circunstâncias
narradas pelo autor. O mais provável é que ele tenha inserido esse tema
naConquista Espiritual, em nome dos jesuítas, com o objetivo de se
apropriar da condição de sucessor de São Tomé no projeto evangelizador
cristão universal, previsto no evangelho e evocado por Montoya como
prova da veracidade da presença de São Tomé na Arica (MONTOYA,
1985, p. 95). A lembrança da missão apostólica determinada por Cristo
tem a função de provar que Tomé esteve aqui e que, portanto, é plenamente
possível que tenha profetizado a vinda dos jesuítas, pois o apóstolo não
teria conseguido, ou talvez não tivesse pretendido, concluir a missão. O
foco do autor é defender o argumento de que os jesuítas representavam
a sequência de uma missão iniciada anteriormente pelo apóstolo e que
deveria ser mantida e defendida pela coroa espanhola que, por meio do
padroado, detinha a responsabilidade de levar a fé católica aos habitantes
do Novo Mundo.
Na sequência da obra, o autor escreveu cinco capítulos para
defender seu ponto de vista. No entanto, como exporei, sua argumentação
é frágil e fundamentada, no que se refere ao mito, quase que totalmente
em escritos de terceiros. Esse é mais um dos fatores que contribuem
para o fortalecimento da hipótese de inserção deliberada da temática
na obra, uma vez que quase a totalidade do texto é narrativa e tem base
predominantemente na memória do autor. Todavia, para tratar das questões
relacionadas a São Tomé, o missionário recorreu insistentemente a outros
autores que tratam da suposta presença apostólica em outras regiões da
América e não do Guai, local onde a revelação da lembrança de Tomé
lhe teria sido feita pelo povo indígena indicado na citação daConquista
166
Espiritual. Isso também contribui para pôr em dúvida a veracidade da
narração, pois em termos argumentativos seria mais interessante ao autor
narrar outros feitos de Tomé na região do Guairá, contudo, ele concentrou
a maior parte de sua argumentação em fatos supostamente ocorridos no
Brasil e principalmente no Peru. A única referência que ele fez ao Paraguai
também se baseou no testemunho de terceiro, no caso, o testemunho do
Dr. Lourenço de Mendoza, prelado de Assunção, que tratava da existência
de pegadas de São Tomé em uma rocha em Assunção
32
(MONTOYA,
1985, p. 89).
Um dos argumentos utilizados por Montoya é o de que os indígenas
chamavam os padres de Abaré que, segundo o autor, significa homem
casto. Esse nome não teria sido atribuído a nenhum indígena, mas
somente ao suposto São Tomé. Isso é visto por Montoya como um sinal
de reconhecimento da sucessão jesuítica em relação a Tomé. Todavia,
a castidade ou a monogamia eram valores negativos na cultura dos
chamados Guarani. Assim sendo, Abaré seria uma nomeação pejorativa,
o que contradiz a possível calorosa acolhida que os religiosos teriam
recebido pelo fato de serem sucessores do apóstolo, tendo em vista que,
em um primeiro momento, um Aba não seria pessoa digna de honrarias
(MONTOYA, 1985, p. 87).
No capítulo intitulado “De outros Rastos Deixados por São Tomé
nas Índias Ocidentais” o autor dá indicativos de que se apropriou de fatos
ocorridos fora do Guairá.
Em todo o Brasil é fama constante entre os moradores portugueses e entre
os nativos que vivem na Terra Firme, que o Santo Apóstolo começou a sua
marcha desde a Ilha de Santos, situada ao sul, em que hoje se vêem rastos
indicadores deste princípio de caminho ou vereda [...] (MONTOYA, 1985,
p. 89).
Por meio desse trecho, pode-se concluir que Montoya conhecia o
conteúdo das cartas de Nóbrega e/ou de outros jesuítas do Brasil. Essas
cartas tinham ampla circulação e ao que tudo indica foram o estopim
da disseminação continental do mito de São Tomé. Isso fica ainda mais
evidente em outra passagem do texto de Montoya.
‘E não pregou somente o Santo Apóstolo a todas essas províncias e nões,
mas também no Brasil, pois escreve o Pe. Manoel da Nóbrega, Provincial
32 Provavelmente a atual Yaguarón, cidade próxima à Assunção.
167
da Companhia de Jesus naquela Província, que os naturais dela sabem
a respeito de São Tomé e lhes consta que ele passou por aquela terra, e
que mostram alguns rastos e sinais dele (de sua passagem), vistos pelo
mesmo padre com os seus próprios olhos’. Até aqui palavras desse autor
(MONTOYA, 1985, p. 96).
O sistema de comunicação epistolar jesuítico era eficaz e
proporcionava uma boa circulação de ideias. Como esse aspecto foi
importante para a circulação do mito pela América, é interessante que
se observe com maior atenção o seu funcionamento. O fundador da
Companhia de Jesus, Inácio de Loyola, preocupou-se, desde o início,
com a unidade da mesma. Um exemplo disso foi a “Ratio Studiorum”,
documento que estabelecia regras uniformes para o ensino ministrado no
âmbito da Companhia. A comunicação era, nesse contexto, de importância
fundamental. Como se sabe a produção de cartas dos jesuítas, em geral, foi
bastante grande, o que não ocorreu por um simples acaso, mas, sim, devido
às diretrizes da Companhia de Jesus. Esse processo pode ser visualizado
em profundidade no artigo de Fernando Torres LondoñoEscrevendo
Cartas: Jesuítas, Escrita e Missão no século XVI” (2002).
Após o surgimento da Companhia de Jesus no século XVI, esta se
espalhou rapidamente pelos quatro cantos do mundo. Loyola, temendo a
desagregação de seus membros, criou uma série de medidas integradas
às constituições da Companhia. Entre elas, estabeleceu prazos para o
envio de correspondências e a obrigação de os religiosos manterem uma
frequente comunicação com seus superiores. A instituição epistolar
jesuítica foi criada em 1547, em uma circular assinada por Juan Polanco,
secretário de Loyola, apresentam-se nela vinte razões para a manutenção
de correspondência regular. Entre as principais razões destacam-se:
manter a coesão do grupo, facilitar a administração, atrair novos membros
ao grupo e divulgar o trabalho da Companhia a externos, com o objetivo
de angariar apoios (HUE, 2006, p. 18).
Dado que os primeiros membros da companhia, incluindo seu
fundador, eram todos mestres em letras e que, posteriormente, muitos
doutores também se agregaram às suas fileiras, a tradição da escrita
não teve muita dificuldade para se solidificar na Companhia, embora,
tenham existido alguns poucos casos de resistência. Havia basicamente
dois tipos de cartas, as de edificação, que deveriam mostrar a graça de
Deus manifestada pela ação jesuítica nos diversos cantos do mundo, e as
hijuelas (adendo), que descreviam o cotidiano das casas, os problemas, as
168
evoluções dos irmãos etc. Ao contrário das de edificação, que deviam ser
lidas pelo maior número de jesuítas e benfeitores possível, esse segundo
tipo de carta ficava reservado aos superiores provinciais e ao governo
geral da Companhia (HUE, 2006, p. 18).
As cartas de edificação eram copiadas e reenviadas às outras partes
do mundo onde houvesse jesuítas. Devido à grande diversidade linguística e
por ser a língua oficial da Igreja, estabeleceu-se o latim como língua para a
escrita dessas comunicações internas. Posteriormente, para as publicações
em edições destinadas não só a religiosos, optou-se pela língua espanhola.
Criou-se então um sistema de comunicação, que apesar de lento, para os
padrões atuais, era eficiente. Para se ter uma ideia, estima-se que Inácio
de Loyola tenha escrito cerca de seis mil oitocentas e quinze cartas entre
1525 e 1556 (HUE, 2006, p. 14).
As cartas do Brasil foram publicadas em dois grandes volumes
editados em Coimbra, sendo o primeiro em 1551 e o segundo em 1555,
ambos em língua espanhola, que era considerada a língua internacional
da época. Esses volumes, raros hoje em dia, foram difusores das ideias
jesuíticas, bem como das imagens e representações, construídas por eles, a
respeito da América e de seus habitantes nativos, incluindo o mito de São
Tomé americano (HUE, 2006, p. 24-27).
Com isso, como já se viu, percebe-se que a ideia de que o mito se
difundiu a partir do Brasil, é perfeitamente viável (HOLANDA, 1996,
117). Vale lembrar que Nóbrega, apesar de não ter explorado com afinco,
foi o primeiro a levantar a teoria da profecia apostólica (NÓBREGA, 1988,
p. 102).
No fragmento de texto abaixo, Sergio Buarque de Holanda defende
a ideia de que Montoya de fato se apropriou do discurso profético atribuído
a Tomé. A suposta profecia foi encarada como se de fato fosse o anúncio
do apostolado jesuítico na Província do Paraguai.
Num ponto, entretanto, parece fora de discussão a missionários que
identi caram o Sumé brasílico e o Pay Tumé peruano ao discípulo de
Jesus: na ajuda que ele teria prestado à obra de convero do gentio. O
próprio Nóbrega já escrevera que, segundo tradição dos índios, anunciara-
lhes São Tomé, ao partir para a Índia, quehavia de tornar a vê-los. Por
sua vez os missionários jesuítas do Paraguai não hesitaram em interpretar
essa promessa como ancio de seu próprio apostolado [...] (HOLANDA,
1996, p. 125).
169
A defesa que Montoya fez a respeito da veracidade da passagem
de São Tomé avança ainda para o Peru. Nesse ponto da argumentação,
o autor deixa claro que se baseia na obra do agostiniano Pe. Frei Alonso
Ramos Gavilán. A obra em questão é a “Historia del Célebre Santuario de
Nuestra Señora de Copacabana e sus Milagros e Invención de la Cruz de
Carabuco, publicada em Lima no ano de 1621.
Por meio de citações e referências a essa obra, Montoya defende que
era forte a tradição da presença de Tomé no Peru. Lá ele teria pregado o
culto divino a um só deus. Insatisfeito com os resultados de sua pregação,
o apóstolo teria repreendido os indígenas que passaram a vê-lo como má
pessoa. Ainda com base em Gavilán, Montoya apresentou as possíveis
características físicas do Apóstolo, sendo homem branco e barbado,
características que não diferem das comumente relatadas. Além disso,
segundo o relato, o apóstolo utilizava uma manta, sapatos, e um báculo.
Tomé também teria deixado suas corriqueiras pegadas. O autor cita o
caminho que o santo teria construído, de modo que seu traçado ia do Brasil,
para o Paraguai, Tucumã e finalmente o Peru. E, por último, apresenta a
história da milagrosa Cruz de Carabuco (MONTOYA, 1985, p. 91-101).
O leitor mais atento da “Conquista Espiritual” percebe, por meio
dos trechos citados por Montoya, que em momento algum Gavilán cita
nominalmente São Tomé. A análise direta da obra do agostiniano permite
confirmar isso. De fato, em nenhum momento o autor se refere a São Tomé.
Para ele, era certo que um apóstolo passou pelo Peru e que realizou muitos
feitos, muitos deles intimamente ligados aos que se atribuíam a Tomé no
Brasil, entretanto, Gavilán não cita o nome do possível apóstolo.
[] Enderezó Cristo a sus Apóstoles, a diversas partes del mundo para
que en todas ellas predicasen su Santo Evangelio. Y supuesto esto, tengo
por cosa cierta haber pasado a estas partes uno de los discípulos []
(GAVILÁN, 1621, p. 28).
Lo que a personas curiosas he oído platicar, tocante a este glorioso Santo,
cuyo nombre, aún de cierto no se sabe, es haber venido a estas partes del
Perú, por el Brasil, Paraguay e Tucun [] (GAVILÁN, 1621, p. 38).
É certo que Montoya evita afirmar que Gavilán tratava do apóstolo
Tomé, mas o título do capítulo, em que o apóstolo peruano é mais
explorado, como prova da veracidade da história de São Tomé, éA
propósito de outros rastos que do santo se acharam no Peru. Esse título
induz intencionalmente o leitor a acreditar que se continua a tratar de São
170
Tomé. Além do mais, nos dois capítulos seguintes que tratam da cruz de
Carabuco, Montoya se utiliza da mesma estratégia para ligar o possível
artefato a São Tomé.
Montoya chega a citar o trecho no qual Gavilán descreve a direção
que o santo teria percorrido (1985, p. 93), mas exclui propositalmente
a parte em que o agostiniano diz não saber de que apóstolo se tratava.
Gavilán afirma ainda que, ao passar pelo Santuário de Nossa Senhora
de Copacabana em 1619, Don Lorenzo de Grado, que havia sido bispo
do Paraguai e naquele momento era de Cuzco, afirmou que no Paraguai
também havia fama da passagem de um apóstolo. Todavia, também não
cita o nome de São Tomé que eventualmente poderia ter sido revelado pelo
bispo, o que demonstra que alguns tinham reservas em afirmar que São
Tomé teria estado na América (GAVIN, 1621, p. 38).
Ao que tudo indica Gavilán, Montoya, Nóbrega e Diego Dun
falavam do mesmo mito. No entanto, Gavilán assumiu uma postura mais
cautelosa e se reservou ao direito de não transpor o mito encontrado
diretamente para São Tomé. Ele não é diferente dos outros ao proclamar
a passagem de um dos apóstolos de Cristo pela América, cumprindo,
portanto, a missão da pregação universal estabelecida por Cristo. Os
nomes que supostamente os indígenas atribuíam ao apóstolo eram Tunupa
e Taapac (GAVILÁN, 1621, p. 29-30). Nomes que facilmente permitiriam
uma flexibilização fonética para Tomé, fato que o autor optou por não
fazer. Ao contrio dele, Montoya optou pela utilização e divulgação da
apropriação que fez desse mito.
Citando uma relação do ouvidor Dr. Don Francisco de Alfaro,
Montoya afirma que no Peru chamam o apóstolo de Pay Tu
(MONTOYA, 1985, p. 95-96). Percebe-se que o autor não fez referência a
Tomé ou Tomás no espanhol. Se tivesse feito, certamente, Montoya citaria,
mas não havendo, ele trata de transpor o Tumé para Tomé, assim como
transformou o apóstolo de Gavilán em Tomé.
Outro aspecto que Montoya omite, provavelmente de maneira
proposital, quando adota o livro de Gavilán como prova da passagem
de Tomé pela América, é a maneira com que se deu o fim da passagem
do Santo pela América. Segundo as ideias de Nóbrega, São Tomé, após
os maus tratos que recebeu, teria ido embora, seguindo em direção
ao mar, supostamente foi para a Índia (BREGA, 1988, p. 101).
Tradicionalmente, a Igreja considera que Tomé morreu no Oriente,
especificamente nas proximidades de Malaca, na costa de Siramath, no
171
Golfo do Ceilão (HOLANDA, 1996, p. 111). Já o apóstolo de Gavilán teria
sofrido o marrio ali mesmo em terras peruanas, criando, nesse ponto,
uma disformidade entre o seu mito e o de outros cronistas, sobretudo com
Nóbrega.
[...] sucedió a nuestro Santo, para cuya seguridad no bastó ser inculpable
se vida, ni grande la autoridad, que con ella tea granjeada, solo porque
predicaba verdades como se verá ahora. Teníanle en gran veneración
tanto, que le vinieron a llamar Taapac, que quiere decir, hijo del Criador.
Tentáronle con riquezas, convidáronle con blanduras, añadieron amenazas,
pretendiendo con el se dejase de aquella doctrina y siguiese sus ceremonias
y ritos, adorando con ellos al Sol, y honndole con sacri cios, de lo cual él
hizo ningún caso antes con más instancia, y menos temor perseveró en su
predicación y ásperas reprehensiones, con las cuales los Indios se irritaron
de suerte que le empalaron cruelmente, atravesándole por todo el cuerpo
una estaca, que llaman ellos chota, hecha de Palma, de que estos Indios
usan hasta hoy en la guerra, como arma no poco ofensiva [] (GAVILÁN,
1621, p. 30).
Além de ser morto na América, o corpo do apóstolo teria sido
colocado em uma balsa e atirado ao Lago de Titicaca
33
(GAVIN, 1621,
p. 31-32). Montoya excluiu de seu texto a questão do destino final de Tomé
certamente porque percebeu a contradição entre as fontes por ele utilizadas.
Essa omissão reforça a ideia de que ele não teve contato direto com o mito
ou, se teve, não o foi exatamente da forma narrada. Isso lhe impossibilitou
de dar um testemunho pessoal mais consistente a respeito de algo que ele
próprio tivesse ouvido, de forma semelhante ao que ele fez quando tratou
de outros temas tratados na obra.
Defender a presença de Tomé na América e, principalmente, o
aspecto profético da suposta mensagem do apóstolo permitiu a Montoya
identificar os jesuítas do Paraguai como sucessores do apóstolo. Com
isso, simbolicamente, ele conferiu dignidade de missão apostólica às
reduções jesuíticas, fato que deve ter tido considerável importância para
o intento de Montoya junto à Corte espanhola. Além disso, certamente,
essa apropriação pode ter motivado diversos missionários para que, apesar
dos diversos obstáculos, permanecessem fieis à sua missão. Não se pode
esquecer que os missionários eram humanos e como tais precisavam
33 Banha a fronteira entre os atuais Peru e Bolívia. Com aproximadamente 8.300 Km
2
,
é o segundo
maior lago navegável da América Latina. Com 3.821 metros acima do nível do mar, é o que tem
maior altitude no mundo.
172
de estímulos para realizar o projeto no qual estavam envolvidos. Nesse
sentido, serem sucessores de São Tomé significava muito mais do que
serem simples religiosos.
Especulativamente, pode-se fazer ainda a seguinte relação, no
século XVII, São Tomé estava para os jesuítas, assim como João Batista
esteve para Jesus Cristo. Ou seja, João Batista foi o anunciador de Cristo
no Velho Mundo e São Tomé o anunciador dos jesuítas no Novo Mundo.
Nesse contexto, os jesuítas ocupariam no Novo Mundo a posição estrutural
do próprio Jesus Cristo.
Expostas as reflexões acima, defendo a hipótese de que no século
XVII, especialmente, os jesuítas da província paraguaia se apropriaram
do já antigo e divulgado mito de São Tomé, de modo que assumiram a
identidade de sucessores do apóstolo ou, num plano estrutural mais
audacioso, o lugar do próprio Cristo. Certamente, essa relação estabelecida
foi positiva para o desenvolvimento dos trabalhos jesuíticos no contexto
reducional. São dois os pólos de ajuda que o mito de São Tomé deu aos
jesuítas. Em primeiro lugar, a construção de uma auréola sacra para as
reduções, não apenas porque eram desejadas pela Igreja, mas porque
tinham sido profetizadas por um dos doze apóstolos de Cristo. Essa
identificação entre jesuítas e São Tomé contribuiu para o sucesso dos
trabalhos missioneiros, de um lado serviu de argumentação ufanista
e de outro serviu como um importante elemento motivacional para os
missionários.
Diante da análise documental realizada, acredito ter conseguido
chegar a uma tese plausível para explicar as apropriações e ressignificações
do mito de São Tomé realizadas pelos europeus, durante os séculos XVI
e XVII. Sendo assim, creio ter alcançado os principais objetivos deste
trabalho. Entretanto, perguntas ainda pairam no ar, momentaneamente
sem a possibilidade de respostas muito satisfatórias. Os questionamentos
mais difíceis estão na possibilidade da produção de uma análise na qual
esse processo intercultural possa ser inteiramente demonstrado a partir
da perspectiva indígena. Considerando todos os fatos apresentados pelas
fontes e as interpretações produzidas, como responder à questão sobre
o grau de influência que essas apropriações podem, ou não, ter exercido
sobre os povos indígenas? Teriam os indígenas, de fato, confundido os
jesuítas com algum de seus mitos heróicos e por isso os recebido bem?
Essa situação contribuiu para o sucesso das reduções e/ou desestruturação
indígena? No momento, as fontes não me habilitam para dar qualquer
173
explicação de caráter conclusivo a esse respeito. Todavia, há algumas
reflexões já realizadas que julgo interessante apresentar.
3.5 Os paradigmas dos mitos de retorno
Na primeira vez que li o relato, no qual Montoya descreve a suposta
boa acolhida que os jesuítas receberam em função da lembrança por parte
dos indígenas da profecia de São Tomé, a primeira impressão que tive foi
que aqueles indígenas confundiram os jesuítas com algum protagonista
de um mito de sua própria cultura e, assim, abriram as portas para os
religiosos, facilitando o seu trabalho (MONTOYA, 1985, p. 86).
Essa primeira análise, impulsiva certamente, foi motivada pela
coerência com os outros mitos ameríndios nos quais alguma divindade
ou herói teria partido com a promessa de retorno e teria alguma missão
prevista (CAVALCANTE, 2006). Pode-se citar, por exemplo, Quetzacoatl,
um misto de figura histórica e mítica, grande governante e divindade,
que teria partido rumo ao Atlântico. Segundo alguns relatos, prometia
voltar, supostamente, o conquistador do México atual, Hern Cortez, foi
confundido com ele (TODOROV, 1966, p. 113-114).
Explicações que atribuem o sucesso dos conquistadores a confusões
ou enganos cometidos pelos indígenas, que teriam recebido os europeus
como se eles fossem alguma divindade ou herói civilizador retornando, não
sã o novid ades na literat ur a histor iog ráf ica e ant ropológica. Há també m t ese s
de que os indígenas teriam acolhido os missionários por verossimilhança
aos seus próprios líderes religiosos. Evidentemente que cada autor utilizou
métodos e fontes que em princípio podem ser considerados válidos, mas
esse tipo de teoria vem sendo duramente questionada por uma corrente
representada pelo antropólogo Gananath Obeyesekere (1997), natural do
Sri Lanka. O professor da Princeton University, com base, principalmente,
na ideia de racionalidade prática, questiona a tese de Marshall Sahlins,
na qual, o influente antropólogo, defende que o capitão inglês James Cook
teria sido recebido como o deus Lono pelos havaianos (SAHLINS, 2003).
O debate entre os dois autores é longo, sofisticado e, às vezes,
provocativo. Assim, não poderei me aprofundar na argumentação dos
debatedores. Tentarei expor apenas as principais ideias, a fim de que se
perceba que a teoria do retorno não é consensual.
A polêmica entre Obeyesekere e Sahlins se iniciou em 1983,
quando Sahlins proferiu uma palestra em Princeton, defendendo a ideia
174
de que Cook foi recebido pelos havaianos como o seu deus Lono. Essa
palestra provocou a ira de Obeyesekere que, como natural do Sri Lanka,
se auto-identificou com os havaianos, assumindo a posição de nativo.
Como em sua própria lembrança não identificou nenhum caso em que os
nativos tivessem deificado algum europeu, resolveu escrever um livro que
contestasse as ideias de Sahlins. O fato da obra de Obeyesekere ter sido
premiada e alcançado grande repercussão acirrou ainda mais os ânimos.
Em consequência disso, já se somam mais de oitocentas páginas de debate
(SAHLINS, 2001; 2003; OBEYESEKERE, 1997). Segundo Cristhian
Teófilo da Silva (2002, p. 405), o que aconteceu ou não com Cook é o que
menos importa. Na verdade, o que se discute é a forma com que se atribui
sentido às ações e emoções de pessoas que estão distantes e em tempos
remotos.
Obeyesekere não concorda com a tese de que o capitão Cook foi
recebido como um deus pelos havaianos. Para ele, isso na verdade, é
um mito europeu. A deificação de Cook é vista, pelo autor, como uma
invenção da imaginão européia do século XVIII que, conforme o autor,
funciona por meio de mitos modelos. Dizer que os havaianos deificaram o
capio Cook assim que ele chegou, é, para Obeyesekere, reproduzir o mito
europeu da conquista, da civilização e do imperialismo. É equivalente a
negar a capacidade racional dos nativos (OBEYESEKERE, 1997, p. 3).
Para Obeyesekere, existe uma racionalidade prática, que une os
seres humanos por meio de sua natureza biológica comum e por processos
cognitivos que são comuns a todos os humanos. Assim sendo, o fato de o
universo cultural de alguém ser construído por influências ambientais não
significa que as pessoas sejam obrigadas a segui-lo sempre. Ele é contrio
às ideias antropogicas que insistem na inflexibilidade cosmológica,
grupo na qual, segundo sua opinião, as teorias de Sahlins se enquadrariam
(OBEYESEKERE, 1997, p. 20-21).
Em síntese, Obeyesekere, acredita que interpretações como as
de Sahlins são frutos de trabalhos antropológicos etnocêntricos que
continuam a reproduzir o mito da superioridade européia e o mito do
colonialismo. Sahlins, em “Como pensam os nativos” (2001), defende-se
atacando as proposições que seu opositor elaborou em “The Apotheosis
of Captain Cook” (1997). Para Sahlins, Obeyesekere despreza a alteridade
havaiana e os utiliza como ventloquos de europeus. O autor argumenta
que Obeyesekere aofingir defender os havaianos de um suposto
eurocentrismo nutre-os da mais alta proporção de racionalidade burguesa.
175
Obeyesekere teria feito isso sob a ideia de que a racionalidade prática é uma
propensão universal humana “[...] com exceção dos mitológicos ocidentais,
evidentemente [...]” (SAHLINS, 2001, p. 20-24, 139).
Para Sahlins,
Em última análise, o antietnocentrismo de Obeyesekere vira um
etnocentrismo simétrico e inverso, com os havaianos conscientemente
praticando uma racionalidade burguesa e os europeus incapazes, por mais
de duzentos anos, de fazer qualquer coisa além de reproduzir o mito de que
os nativos’ os consideram deuses [...] (SAHLINS, 2001, p. 22).
Argumentos e contra-argumentos são incontáveis em ambas as
extremidades. O fato é que se tem, de um lado, um antropólogo norte-
americano que defende uma racionalidade nativa mitoprática que acolhe
homens como deuses e, de outro, um antropólogo do Sri Lanka nos
Estados Unidos que percebe os navegadores europeus do século XVIII
como portadores de uma racionalidade mito-poética que cria deuses para
os homens (TEÓFILO DA SILVA, 2002, p. 408).
Uma questão a ser considerada é a própria definição de
racionalidade. Equipará-la ao conhecimento científico pode ser um grande
equívoco. Como destaca Teófilo da Silva (2002, p. 410), o fascínio que as
ciências exercem sobre os ocidentais torna fácil fazê-la ser o paradigma de
avaliação de respeitabilidade de outros discursos, como, por exemplo, o de
que Lono foi recebido como deus. Isso, sem dúvida, é um erro categórico.
Para o autor,
[...] Sahlins e Obeyesekere não levaram su cientemente a sério os efeitos
que seus próprios jogos de linguagem produzem sobre os conceitos nativos,
levando-nos a descon ar da integridade da racionalidade havaiana que
permite associações entre o Capitão Cook e o deus Lono (TEÓFILO DA
SILVA, 2002, p. 410).
Talvez tenha faltado a ambos um pouco de reflexão sobre o próprio
conceito de deus e sobre o fascínio que ele exerce sobre a nossa própria
sociedade. Assim, saber se os havaianos acreditavam ou não em Cook
tem menos imporncia do que saber “[...] até que ponto a interpretação
de Cook como o deus Lono pelos havaianos seria uma identificação
racionalmente válida em termos antropológicos [...] (TEÓFILO DA
SILVA, 2002, p. 411).
176
O maior problema está em reconhecer como racionalidade aquilo
que em nossa cultura não é considerado racional. Essa não é uma questão
fácil e nem confere ganho de causa a Sahlins. Será necessário ainda
muitos debates para que se chegue a alguma posição definitiva (se isso
for possível). Nesse sentido, Teófilo da Silva (2002, p. 413) afirma que
“[...] a fórmula de Sahlins: ‘diferentes culturas, diferentes racionalidades
necessitaria imediata reformulação, na verdade: ‘diferentes antropólogos,
diferentes racionalidades’ [...]”.
O que desejo com essa exposição é frisar que as interpretações dos
mitos de retorno, como a possível confusão que os Guarani teriam feito
entre seu herói Sumé e os Jesuítas, neste momento, não é um ponto pacífico
nas Ciências Humanas. Evidentemente que a argumentação empírica dos
debatedores acima apresentados se refere ao contexto cultural havaiano,
isso torna o debate circunscrito em relação àquele caso específico, mas
universal em relação à teoria que se desenvolve.
Concordo com Sahlins quando este diz que diferentes culturas têm
modelos próprios de ação, consciência de determinação histórica, ou que
em diferentes culturas há racionalidades diferentes (SAHLINS, 2003, p.
62). Assim sendo, fica difícil endossar uma possível racionalidade prática
universal comum ao gênero humano, como propõe Obeyesekere. Todavia,
é perfeitamente possível que diversas sociedades indígenas possuam uma
gica racional própria que lhes permita distinguir os invasores dos seres
sobrenaturais comuns aos seus arcabouços culturais. No caso das reduções
do Guairá, por exemplo, é ponto pacífico que um dos motivos que levaram
os Guarani a se associarem aos jesuítas, foi por ser esta a melhor, ou a
menos pior, alternativa diante do processo colonial que se desenvolvia
de forma cruel. Livrar-se da encomienda poderia significar livrar-se da
morte (CHAMORRO, 2008, p. 71). Isso é um indício que, embora não
anule totalmente, testemunha contra possíveis teorias que afirmem que
os jesuítas foram recebidos como os sucessores de Sumé ou confundidos
com seus poderosos Xamãs, como afirma Necker (1990), em relação aos
Franciscanos. Ou seja, cada situação deve ser analisada a fundo de acordo
com as particularidades de cada uma das culturas envolvidas.
A título de exemplo, apresento algumas interpretações que podem
ser repensadas, não necessariamente invalidadas, a partir da argumentação
revisionista proposta por Obeyesekere. Saliento que não pretendo me
aprofundar na descrição dos métodos e critérios dos autores aqui expostos,
isso porque minha intenção não é firmar uma posição definitiva sobre o
177
assunto. Espero apenas abrir o debate sobre essa questão. No já clássico
A Conquista da América” (1993), Tzvetan Todorov delineia a ideia de que
os nativos mesoamericanos teriam confundido, em um primeiro momento,
os espanhóis com divindades. O autor também trabalha com a ideia de
que toda a invasão já estava prevista em algum presságio. Mesmo que
eventualmente tais profecias tivessem sido elaboradas após a ocorncia
dos fatos históricos, elas seriam importantes elementos para cultura
nativa. Supostamente, elas serviam para que os indígenas conseguissem
compreender o que estava acontecendo. Essa compreensão se dava de
forma coerente ao seu sistema cultural, no qual a profecia ocupava um
papel importante. Os astecas precisavam encontrar ou relacionar os fatos
acontecidos com seus maus presságios (TODOROV, 1993, p. 69, 72, 74).
Os astecas teriam deificado aos espanhóis e estes, especialmente
Hernán Cortez, teriam se favorecido de um jogo de signos e significados,
facilitando assim o sucesso de seus interesses. Ao não conseguir reduzir
os espanhóis ao seu sistema de alteridade relativa, empregado diante de
outros povos mesoamericanos, os astecas teriam renunciado a esse sistema
de alteridades humanas. Diante disso, os nativos teriam sido levados
a optar pela outra possibilidade de alteridade, ou seja, entre homens e
deuses. Observa-se que os espanis, especialmente Colombo, têm a
mesma dificuldade, mas reduzem o diferente à categoria animal, já os
astecas elevam (ou reduzem?) os espanis à categoria divina (TODOROV,
1993, p. 74).
Para Todorov, Cortez soube se aproveitar da confusão simbólica e
se favoreceu com isso. Prova disso foi a participação do conquistador na
elaboração do mito sobre a volta do deus Quetzacoatl. Segundo Todorov,
relatos da conquista, especialmente os de Sahagún e Durán, apresentam
Cortez como Quetzacoatl. Este seria um dos motivos para a suposta
passividade indígena diante da dominação que se iniciava. Para o autor,
Quetzacoatl inicialmenteo era um deus de destaque no panteão asteca,
mas, com a figura de Cortez, tornou-se extremamente importante e atuante.
A ideia de Todorov é que o próprio Cortez soube instrumentalizar o mito
indígena conferindo-lhe força. A identificação Cotez-Quetzacotl teria sido
cunhada pelo próprio Montezuma, rei asteca. Todavia, Cortez, sabendo
disso, produziu um mito bem indígena que fortaleceria a sua própria figura
(TODOROV, 1996, p. 114). A ligação do conquistador ao deus asteca teria
sido, ao menos parcialmente, responsável pela queda desse povo frente
aos conquistadores. Para produzir suas interpretações, Todorov não
178
parte do vazio, em geral, parte de fontes documentais, se foram bem ou
mal interpretadas é outra questão. É a negação da racionalidade prática
indígena que é questionável aos olhos de Obeyesekere. Essa racionalidade
lhes permitiria compreender que os espanhóis eram humanos e não deuses
(OBEYESEKERE, 1997, p. 16-18).
Obeyesekere formula vários argumentos contrários às ideias de
Todorov, como, por exemplo, com relação à suposta manipulação de signos
que Cortez teria feito, induzindo os astecas a acreditarem que os cavalos
eram imortais. Esse procedimento de Cortez supostamente era garantido
com o enterramento dos quadrúpedes durante a noite subsequente à
morte desses animais, sem que isso fosse visto pelos nativos, que então
acreditariam que os animais eram imortais (TODOROV, 1996, p. 108).
Obeyesekere questiona: seriam os astecas suficientemente ingênuos para
acreditar que os cavalos eram imortais? Nas batalhas, os indígenas não
viram os cavalos feridos, sangrando e até mortos? Seria possível enterrar
os animais sem deixar vestígios para que nenhum indígena visse as
sepulturas? Para Obeyesekere, é provável que Cortez não tenha sido um
mestre dos signos indígenas, mas que tivesse pensado sobre os indígenas
a partir da perspectiva européia de “pensamento selvagem”. Assim, ele
próprio teria sido vítima do sistema de signos. Isso porque, na concepção
do autor, o modo europeu de pensar a cultura selvagem é o modo colonial
que inferioriza e subestima as capacidades racionais dos nativos. Nessa
perspectiva, alimentado por esse pensamento, Cortez teria acreditado estar
manipulando os signos astecas, e ainda teria acreditado que o viam como
Quetzacoatl, enquanto na realidade os indígenas não o viam dessa forma
(OBEYESEKERE, 1997, p. 18).
Para o autor, embora ao contrário de Sahlins, Todorov tenha
consciência ética de denunciar a crueldade da conquista, ele erra ao achar
que o signo sempre determina a experiência. E ao caminhar por essas
veredas, ele estaria contribuindo para a perpetuação do “mito modelo”
sobre a “mentalidade selvagem”. Por isso, Obeyesekere afirma “[...]
What Todorov says of Columbus is also true of Todorov:Columbus has
discovered America but not the Americans’” (OBEYESEKERE, 1997, p.
16-19).
Outra obra que pode ser analisada sob a luz das proposições de
Obeyesekere é “Indios Guaranies y Chamanes Franciscanos de Louis
Necker (1990). O autor afirma que os Guarani viam os freis franciscanos
como poderosos magos e quiçá até como messias. Segundo Necker, as
179
culturas Guarani tinham importantes personagens, os Xas, que devido
ao seu contato com os espíritos, gozavam de amplo poder sobre a natureza
e também sobre a vida humana, e o poder de curar ou matar, até a distância.
Em alguns casos, eles prometiam conduzir os indígenas à desejada terra
sem mal. Ainda, segundo Necker, os Xamãs eram verdadeiros “homens
deuses”, alguns se auto-intitulavam “[...] creadores del cielo y de la tierra
[...] ou[...] señores de la muerte, de las mujeres y de las cosechas [...]”
Alguns deles teriam afirmado ser o herói civilizador Pay Su, que
retornou à Terra (NECKER, 1990, p. 48).
Os Xamãs indígenas gozavam de grande prestígio diante do
povo. Conforme Necker, há indícios suficientes para dizer que os
Guarani viam nos franciscanos verdadeiros Xamãs. A iniciar pelo fato
de chamarem o missionário frei Bolaños de Pay Bolaños, mesma forma
com que supostamente se referiam ao herói civilizador Pay Sumé. Havia
também, em lendas, atribuições de poderes sobrenaturais ao franciscano.
Por exemplo, em uma ocasião em que o lago de Yapacaraí estaria para
transbordar, o franciscano teria introduzido sua sandália nas águas que,
a partir de então, nunca mais ultrapassaram o limite por ele determinado.
O frei, milagrosamente, teria feito surgir uma fonte dágua e demonstrado
poderes frente ao mundo animal, além de possuir o poder de agir à
distância, de curar e o de levitar. Ainda costumava dormir fora das
reduções, assim como os Xamãs faziam. Essas aproximações fazem com
que Necker afirme que não há dúvidas de que os Guarani consideravam
aos franciscanos como verdadeiros Xamãs (NECKER, 1990, p. 50-54).
Uma afirmação de Necker é muito significativa, ao iniciar sua
análise ele diz “[...] Esto objetivo nos obliga a cambiar nuestros hábitos
de pensamiento, naturalmente etnocéntricos, a hacer un esfuerzo para
salir de nosotros mismos [] (1990, p. 47). Importa ressaltar já que, à
luz de Sahlins, sem entrar em méritos metodológicos, ou nos caminhos
que levaram Necker a tais conclusões, ele de fato teria deixado de lado o
etnocentrismo e tentando compreender a relação entre os franciscanos e
os Guarani a partir da lógica cultural dos Guarani. Já do ponto de vista de
Obeyesekere, Necker não poderia ter sido mais etnocêntrico, provavelmente
ele seria acusado de reproduzir o mito damentalidade selvagem, que
é apontado como um instrumento de dominação para a justificação do
colonialismo, negando aos indígenas a possibilidade de terem sua própria
racionalidade prática que os salvaguardaria de tais confusões.
No artigo “O ‘Pessimismo Sentimental’ e a experiência etnográfica”
180
(1997a, 1997b), Sahlins anuncia esse caloroso debate, tece duras críticas à
vertente antropológica que tende a negar o conceito de culturas como objeto
antropológico. Para essa corrente, o conceito é por demais abrangente
e incomensurável, não permitindo assim uma análise satisfatória dos
processos interculturais. No plural, culturas, seria ainda responsável pela
criação de uma alteridade colonial, responsável pelo endosso da posição
de superioridade dos países de centro, ou seja, a afirmação das diferenças
seria um instrumento velado para a afirmação da superioridade. Sahlins
rejeita essa argumentação. Para ele, nem a Antropologia e nem a ideia
de culturas empregada por ela estão relacionadas ao colonialismo. Ele
fecha seu argumento afirmando que justamente no momento em que as
sociedades têm afirmado e defendido a alteridade cultural, alguns intentam
decretar a morte da cultura em defesa de um pretenso antietnocentrismo
(SAHLINS, 1997a, 1997b, 2001, p. 25-29).
Como se percebe, o debate está posto, é rico e caloroso, e deve
inspirar reflexões mais críticas a respeito das análises sobre os chamados
mitos de retorno. As duas principais posições que protagonizam esse
debate são: de um lado a ideia de Obeyesekere, que defende a existência de
uma racionalidade prática universal inerente à espécie humana, e de outro
a visão de Sahlins que prega a existência de diferentes racionalidades para
diferentes culturas. Creio ser possível pensar que, guardadas as devidas
proporções, ambas podem estar corretas. Isto porque se por um lado é
plausível que os seres humanos sejam portadores de uma racionalidade
natural, por outro é inegável que cada cultura expressa sua racionalidade
por meio de representações e assumindo posições diferentes, que, quase
sempre, parecem irracionais aos olhos etnocêntricos de seus observadores
externos.
Como na grande maioria dos casos em que se estudam eventos
históricos sob a ótica dos possíveis mitos do retorno, a temporalidade é
bastante distanciada do momento presente, isso só é possível de forma séria
com base na utilização de fontes históricas, dentre as quais se destacam as
documentais. Mais do que nunca a aplicação na análise desses materiais
das velhas e sempre atuais críticas interna e externa é imprescindível. Não
seria necessário lembrar que todas as fontes têm seus próprios contextos
de produção e recepção, que se desvendados podem revelar inúmeras
informações, muitas vezes mais importantes do que o próprio teor textual
dos documentos.
Precisamente sobre as duas posições que se opõem nesse debate,
181
pesa negativamente sobre ambas o caráter exclusivista que seus autores
reclamam. A partir do momento que alguma ciência assume o homem como
seu objeto, ela deve afastar-se de qualquer regra ou modelo exclusivista,
pois já está claro que o ser humano é dinâmico tanto do ponto de vista
cultural quanto do social. Isso inviabiliza a imposição ou enquadramento
das diferentes sociedades em modelos específicos que supostamente
serviriam para todos.
Outra situação importante a ressaltar é a figura do indivíduo no
interior das sociedades. Por mais que em muitos casos haja um pensamento
relativamente uniforme no interior de uma sociedade a respeito de algum
assunto, não há garantia alguma de que todos os membros desse corpo
social estejam pensando da mesma maneira. Diante dessa proposição,
pode-se repensar ou questionar, por exemplo, a ideia de Todorov de que os
astecas teriam renunciado à alteridade humana e elevado os conquistadores
à categoria de deuses (TODOROV, 1996. p. 74). Até que ponto a crítica
interna e externa das fontes que Todorov analisou lhe poderia garantir que
o coletivo dos astecas operacionalizou sua relação com os espanhóis dessa
forma? Poderia essa realidade serlida apenas para alguns indivíduos ou
seria uma realidade universal? São questões que, por si só, não invalidam
qualquer trabalho, mas sinalizam para o particularismo de cada caso
histórico. Creio que cada nova pesquisa deva ser tratada como uma folha
em branco, na qual o historiador ou antropólogo ou qualquer outro que se
dedique a essas questões deve escrever sua história, uma vez que optar por
atalhos de modelos pré-concebidos pode ser uma cômoda armadilha.
182
Conclusão
O mito do São Tomé americano foi apropriado e ressignificado
por diversas personagens ao longo da história. Especialmente durante os
séculos XVI e XVII, teve papel importante na construção de um lugar
para o indígena no interior do plano criacionista e salvacionista da religião
cristã.
O mito de São Tomé foi utilizado para dar sentido a uma série
de situações que surgiram como frutos dos primeiros contatos entre
conquistadores e indígenas. É certo que os europeus e, de modo especial,
os portugueses, já conheciam as histórias da missão apostólica de Tomé
junto aos orientais. Desse modo, não foi difícil associar a figura desse
apóstolo com a de um possível mito indígena que, provavelmente, era
representado por feitos semelhantes àqueles relacionados ao São Tomé
oriental especialmente aqueles relacionados com a cultura material.
Pegadas, caminhos, inscrições rupestres, cruzes e fontes milagrosas
são alguns dos vestígios que supostamente Tomé deixou, tanto na Índia
quanto na América. Todos esses elementos culturais foram apropriados
e ressignificados de variadas maneiras na América. Ao longo do tempo,
serviram como prova da real presença de São Tomé no continente.
Atualmente, além disso, alimentam um ou outro foco de religiosidade
popular. São ainda, cada vez mais potencializados como mercadorias da
instria turística. No entanto, a indústria do turismo nem sempre es
comprometida com as sérias análises acadêmicas. Isso faz com que, por
vezes, continue a reproduzir discursos míticos a despeito de um turismo
cultural embasado em um comprometimento com os ideais acadêmicos
de formação humanística. O verdadeiro mosaico de projetos turísticos,
principalmente relacionados ao Peabiru, é revelador da ausência de uma
política pública séria no que diz respeito ao turismo cultural e no que
diz respeito ao turismo arqueológico. Neste último caso, os projetos
nem sempre seguem a ordenação jurídica vigente para o exercício da
Arqueologia no Brasil.
O mito do São Tomé americano, e talvez isso seja válido para outros
mitos de outros contextos, sofreu as ressignificações que eram pertinentes
183
àquele momento histórico, vivido por aqueles agentes específicos.
Essas ressignificações não foram fruto do acaso ou da mera imaginação
européia, pois elas se processaram da forma com que foram apresentadas
obedecendo a uma lógica interna da cultura religiosa cristã européia e
também respeitando aos questionamentos próprios de cada momento.
A dúvida a respeito da humanidade ou não dos indígenas foi
perturbadora para os primeiros missionários e conquistadores. Muitos
debates opuseram de um lado os defensores da humanidade indígena que
desejavam ardentemente unir suas almas ao rebanho do papa. Do outro
lado, os algozes escravistas que propagavam a ideia de que os indígenas
não tinham sequer alma e que, portanto, serviam apenas para a submissão
e a consequente exploração de sua mão-de-obra em regime escravista.
Na prática, havia uma disputa para se decidir qual seria a melhor forma
de submissão dessas populações: ou com violência física aberta, ou com
violência étnica. Isso demonstra que o indígena era visto como um ser
desprovido de qualquer capacidade de decisão sobre seu próprio destino.
Essa visão demorou muito tempo para ser superada, sendo ainda válida
para muitos setores da sociedade nacional especialmente para aqueles
interessados na manutenção dos problemas fundiários que envolvem a
usurpação de terras indígenas.
Após muita discussão, o papa deu o veredicto afirmando que
os indígenas eram humanos e tinham almas. Diante disso, os ilustres
missionários receberam cartão verde para intensificar ainda mais seu
processo de violência étnica. É justo dizer que em alguns casos a violência
étnica dos missionários permitiu a permanência física dos povos indígenas
durante maior tempo do que se todos eles tivessem sido escravizados,
como muitos foram, por exemplo, pelos bandeirantes, escravos esses que
de fato tiveram uma sobrevida muito curta. Todavia, a violência étnica não
pode ser medida simplesmente pela quantidade de mortos, uma vez que
seus danos, na maioria das vezes, são imensuráveis.
Voltando ao ato declaratório do papa que conferiu aos indígenas a
humanidade plena, seguramente se pode dizer que o gesto papal trouxe
nova problemática para os pensadores cristãos, que além de se preocuparem
com a origem dos povos indígenas, passaram a se preocupar com as
questões neotestamentárias da pregação universal e da universalidade da
graça divina. Era preciso responder não somente de que região do Velho
Mundo os indígenas vieram, mas também qual teria sido o apóstolo que
supostamente cumpriu a determinação de Cristo, demonstrando, portanto,
184
a total eficácia dos textos bíblicos. A ausência de uma explicação poderia
colocar em maus lençóis a história da salvação contada a partir dos relatos
blicos.
Seguindo essa lógica, é que o São Tomé americano serviu no século
XVI para incluir o indígena na cosmologia cristã. Isso foi possível por meio
de sua inclusão na economia da salvação cristã, que foi explicada a partir
da suposta pregação do apóstolo que não teria falhado ao cumprir a missão
imputada por Cristo de levar o evangelho a todos os povos do mundo.
No século XVII, os cristãos, os jesuítas, os indígenas e os problemas
já eram outros. No emaranhado de disputas que se travaram na região do
Guairá e envolveram jesuítas, indígenas, colonos espanhóis e bandeirantes
portugueses, os jesuítas buscavam estratégias de fortalecimento de sua
imagem. Nesse cenário é que foi enfatizada a ressignificação do mito que
foi arquitetada com o objetivo de elevar os inacianos ao status de sucessores
do apóstolo, o qual teria previsto a vinda dos jesuítas e o sucesso de sua
missão. Ideias que continuaram a ser propagadas pelos historiadores da
Companhia de Jesus que, no século XVIII, escreveram sobre os feitos dos
dois primeiros séculos de trabalho apostólico na América.
As apropriações e ressignificações não cessaram após o término
do período jesuítico. Elas continuaram e avançaram pelo século XIX no
contexto ideológico das políticas de integração indígena ao Estado Nacional
brasileiro. Permanecem ainda hoje nos meios populares sob formas de
espiritualidades marginais, não reconhecidas pela Igreja Católica. Mesmo
em meios intelectuais, como os Institutos Históricos e Geográficos o tema
continua a receber ressignificações.
Tais apropriações e ressignificações nunca ficaram paralisadas,
é possível que elas ainda continuem a ser reinventadas. Certo é que elas
sempre se processam para dar sentido a algum anseio das pessoas imersas
ao grupo social que as forjam em cada momento específico da história.
Outra questão importante que foi debatida é a ideia de uma possível
confusão por parte dos indígenas, pois estes teriam confundido os jesuítas
com alg um ente mít ico por eles esperado. Esse tipo de ideia só deve ser aceita
após uma série de medidas, como a crítica das fontes e o conhecimento das
culturas envolvidas. Medidas estas que ajudam o pesquisador a se desviar
das armadilhas impostas por modelos prontos de interpretação cultural.
Cada caso deve ser analisado em suas especificidades para evitar que, na
tentativa de explicar mitos indígenas, se produzam mitos não indígenas.
185
Diante disso, surge uma questão inquietante: e os povos indígenas
como ficam em meio a isso tudo, em meio a esse emaranhando de
ressignificações míticas? É muito difícil determinar qual de fato foi a
participação desses povos como agentes diretos na promoção de tais
ressignificações. Uma coisa, no entanto, é certa, eles foram tratados e
compreendidos ideologicamente de diversas formas ao longo da história e
esses tratamentos, em parte, certamente se pautaram em ressignificações
como essas que o mito de São Tomé sofreu.
Essa constatação, longe de desprezar o caráter ativo de sujeitos
de sua própria história exercido pelos indígenas, leva a compreender
que as lutas empreendidas por esses povos foram constantemente
influenciadas pela necessidade de vencer a mitos dos povos não-índios.
Seja lutando contra os espanhóis e bandeirantes, por meio de uma
associação temporária com os jesuítas, ou contra os ideólogos brasileiros
do século XIX, que previam o seu desaparecimento por meio de uma total
assimilação à sociedade nacional. Ou ainda, lutando contra aqueles que
tomaram suas terras em assalto no século XX, estão exigindo seus direitos
em uma permanente queda de braços contra os mitos ocidentais. Mitos
que negam as culturas e as religiões indígenas, o mito do progresso que
passa como um trator sobre as culturas tradicionais que não comportam a
exploração econômica intensiva e sem limites da terra. São tantos os mitos
já derrotados, que mesmo que ainda permaneçam tantos outros a serem
vencidos, os povos indígenas já podem ser considerados como vencedores
diante daqueles que previam o seu total desaparecimento ou sua plena
submissão. Só o fato de eles persistirem vivos e organizados, recuperando
a lentos, mas contínuos passos a sua dignidade, permite que se tenha
cada vez mais certeza a respeito de sua condição de agentes plenos de sua
própria história, sujeitos, é claro, a todas as contingências possíveis, mas
sem perderem sua personalidade e capacidade de resistência.
Espero que este estudo além de propiciar uma compreensão a
respeito do tema analisado possa inspirar outros trabalhos relacionados à
compreensão tanto dos temas que ficaram em aberto ao longo do texto,
quanto acerca da luta constante dos povos indígenas contra os mitos
modernos. Mitos esses que insistem em taxá-los como seres inferiores por
uma sociedade pseudoigualitária como a brasileira.
186
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