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E ainda se poderiam ser incluídos na economia da salvação cristã. Este,
que a princípio era um problema teológico, apresentava também algumas
implicações práticas, pois a não humanidade do indígena favoreceria
àqueles que tinham interesse na escravização irrestrita dos povos
indígenas (VASCONCELOS, 1977a, p. 114). Devido a essa dúvida, como
relata Vasconcelos, muitos deles foram explorados de maneira cruel, com
a justificativa de sua possível não-humanidade. Além da exploração física,
percebe-se, no fragmento abaixo, que a questão da definição de humanidade
era em si uma conceituação etnocêntrica, pois estava diretamente ligada à
capacidade de recepção dos sacramentos da Igreja Católica.
Chegaram a ter para si muitos daqueles primeiros povoadores, não só idiotas,
mas ainda letrados, que os índios da América não eram verdadeiramente
homens racionais, nem indivíduos da verdadeira espécie humana; e por
conseguinte, que eram incapazes dos Sacramentos da Santa Igreja: que
podia tomá-los para si, qualquer que os houvesse, e servir-se deles, da
mesma maneira que de um camelo, de um cavalo ou de um boi, feri-los,
maltratá-los, matá-los, sem injúria alguma, restituição ou pecado. E o pior
é, que pôs o interesse dos homens em praxe usual tão desumana opinião. E
começou a execução desta nova doutrina na ilha Espanhola, primeira que
foi no descobrimento dos índios, e primeira na execução da ruína deles;
e foi lavrado pelo Reino de México, e por toda a Nova Espanha. Naquela
ilha, testemunha Fr. Bartolomeu de las Casas, Bispo de Chiapa, varão de
grande autoridade, que chegaram os espanhóis a sustentar seus libréus
com carne dos pobres índios, que para o tal efeito matavam, e faziam em
postas, como a qualquer bruto do mato. A História Geral das Índias cap.
33, falando da mesma ilha espanhola diz, que usavam aqueles moradores,
dos índios, como de animais de serviço tendo por cousa sua aqueles que
podiam apanhar, quais feras do campo; e que os faziam trabalhar em suas
minas, maltratando-os, acutilando-os, e matandoo-s, como lhes parecia. E
que chegara a fi car a ilha por esta razão um deserto; porque de um milhão
e meio que havia, chegou a não haver quinhentos [...] (VASCONCELOS,
1977a, p. 114-115).
Em 1537, o papa Paulo III publicou sua Bula “Sublimis Deus”.
Assim, pôde-se observar uma posição pontifícia oficial sobre o assunto.
Nela o pontífice reconheceu a humanidade natural dos indígenas e, por
consequência, que também eram portadores de almas. Se por um lado o
papa resolveu um impasse da época, acabou gerando outro, pois, a partir
de então, os indígenas eram oficialmente humanos. Sendo assim, passou
a ser preciso encontrar uma explicação que fosse capaz de incluí-los na
cosmogonia cristã, ou seja, uma origem comum: se Deus criou o homem