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Depois de fazer a prova e os retoques, cada modelo desfila rapidamente, para que o
caimento da peça seja verificado durante a caminhada. A seguir são fotografadas
fotógrafa que trabalha para o estilista, e despem-se novamente. Elas vão para a sala ao
lado, para a maquiagem e a produção de cabelos. O processo é demorado, e muitas
vezes também há vários pares de mãos trabalhando sobre a mesma manequim.
Ao todo, foram oito horas de trabalho contínuo, e sem que qualquer um dos
funcionários deixasse o ambiente do camarim. Eu mesma, provavelmente já
constrangida por minha inutilidade e contagiada pela produtividade de todos na sala, lá
pelas tantas me percebi sentada no chão
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a costurar meias enquanto batia papo com os
assistentes. Cada parte do processo ali realizado envolve tempo, e o tempo é contado.
Assim que maquiagem e arrumação de cabelos são terminadas, minutos antes do início
do desfile, as modelos são definitivamente vestidas pelos assistentes.
Após as horas divididas com o estilista e seus funcionários no camarim, horas tensas
que precedem os poucos e definidores minutos do desfile, estava a tal ponto envolvida
no processo que torcia, mesmo sem querer, pelo êxito daqueles com os quais antes
jamais tivera intimidade alguma. Era uma situação limite, possivelmente semelhante
aos momentos que antecedem o desfile de uma escola de samba, um jogo importante
para uma equipe de futebol, a estréia de uma peça de treatro, ou quem sabe até uma
defesa de tese: meses de trabalho e investimento fisico e emocional prestes a serem
postos à prova.
Não tenho dúvidas de que foi esse o desfile que menos teve minha atenção. Meu estado
de espírito tinha sido contagiado pela preocupação e pela tensão das pessoas e do
momento. Estava eu também ansiosa a espera do resultado, de olhos fixos nos olhos do
público, analisando cada pequena reação. E tudo isso estrategicamente posicionada.
Porque se em todos os desfiles que assisti meu lugar era nos fundos, longe dos VIPs, ou
ainda mais frequentemente de pé (o que era péssimo para o conforto mas que acabou,
sem que pudesse prever, me possibilitando fazer belas fotografias), nesse desfile cujos
bastidores tinha acompanhado meu convite era especial: terceira, com direito a papelada
de divulgação e presentinho.
Assim, tão bem posicionada, tinha meu olhar alinhado diretamente com o de uma
importante jornalista de moda com a qual cruzara diversas vezes nessa vereda, entre Rio
e São Paulo, pela moda espetáculo. Já havia sido alertada que a aprovação dela era
definidora.
A expressão de seu rosto, por trás de enormes óculos escuros (e eles fazem parte do
dress code dos críticos de moda, mesmo no ambiente fechado e pouco iluminado do
desfile) não era fácil de ser decifrada. Lá pelas tantas, entretanto, ela abaixa levemente
os óculos para olhar melhor o tecido de uma saia. Com os óculos na ponta do nariz,
rosto levemente inclinado para a direita, franze o cenho e esboça um sorriso. E eu vibro
de alegria.
No final do desfile sigo a risca o que me havia pedido o estilista quando o entrevistei:
presto muita atenção no que diz a letra da última música, entoada na voz de Maria
Betânia. Incomodado com críticas que recebera no passado, críticas essas que diziam
ser sua moda “pouco abrasileirada”, o estilista faz de sua coleção de 2005 uma espécie
de protesto. Ele diz tentar através dela responder as críticas, trazendo elementos
segundo ele “definidores de brasilidade”, como sua moderna estampa op art feita com
formas inspiradas numa vista aérea da ala das baianas de uma escola de samba. Passada
a expectativa e a tensão as quais eu tinha me entregado durante o desfile, observo os
aplausos de pé. E ouvindo atentamente a letra da música de fechamento, não consigo
conter o choro:
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A fotografia que abre esse capítulo foi feita exatamente nesse momento: ela é meu ponto de vista do
lugar no instante em que costuro meias nos bastidores do desfile.