Flávia Letícia Biff Cera
regulados para atuarmos nos conformes da sociedade, caso contrário somos considerados
anormais:
dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer que o poder, no século
XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu cobrir toda a superfície que se
estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante ao jogo duplo das
tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de
outra. Portanto, estamos num poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida,
ou que se incumbiu, se vocês preferirem, da nossa vida em geral, com o pólo do
corpo e o pólo da população.
Observemos o(s) conceito(s) de povo(s) de Agamben (2002, p. 184) que são
explicitados em seu livro homo sacer – O poder soberano e a vida nua. Existem dois tipos
de povo para o autor: o Povo e o povo. O primeiro se configura como um “corpo político
integral” e o segundo, subconjunto do primeiro, como “multiplicidade fragmentária de corpos
carentes e excluídos” – para aquele “uma inclusão que se pretende sem resíduos”, para este
“uma exclusão que se sabe sem esperança”, o que permite ao filósofo italiano, lucidamente,
demonstrar a configuração política atual: “vida nua (povo) e existência política (Povo),
exclusão e inclusão, zoé e bios”. O “povo”, complementa o autor, “é aquilo que não pode ser
incluído no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual desde já está
sempre incluído”. Para fins de esclarecimento: o povo aqui representa o chamado “povão”, as
massas, já o Povo é o dito “povo brasileiro”, na sua constituição de cidadãos e de homens
políticos. Podemos estabelecer aqui um paralelo com a sociedade de massa descrita por
Arendt, porque incluir na exclusão nada mais representa do que a incapacidade de haver
integração da sociedade em uma organização baseada no bem comum. Não existe mais bem
comum, existem interesses representados.
Esta diferenciação é um sinal de racismo, nele se justifica a percepção da vida que
merece viver e que merece morrer. A morte aqui significa também, ou principalmente, a
morte política, a expulsão, a rejeição. Estabelece-se uma cesura biológica, esta é a sua
primeira função: “fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se
dirige o biopoder” (FOUCAULT, 2002, p. 305).
Podemos perceber que tanto o animal laborans quanto o homo sacer configuram o
mesmo homem, o homem reduzido à vida nua, o homem passível das manobras mais
desumanas que serão justificadas nas chamadas políticas, o homem subordinado a uma
indiferença que o deixa sem direitos a ter direitos. Duarte (2004, p.44) nos diz que a partir do
momento que política se relacione “com a manutenção do metabolismo vital da sociedade,
Revista de Ciências da Administração – v.7, n.14, jul/dez 2005 7