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“SOB O VÉU DOS VERSOS”
O LUGAR DA POESIA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Flávia Vieira da Silva do Amparo
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal
do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção de título de
Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)
Orientador: Professor Doutor Antonio Carlos Secchin.
Co-orientador: Professor Doutor Claudio Murilo Leal
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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―SOB O VÉU DOS VERSOS‖:
O LUGAR DA POESIA NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Flávia Vieira da Silva do Amparo
Orientador: Antonio Carlos Secchin
Co-orientador: Claudio Murilo Leal
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Examinada por:
_____________________________________________________________________________
Presidente, Professor Doutor Antonio Carlos Secchin
_____________________________________________________________________________
Professor Doutor Sérgio Nazar David
_____________________________________________________________________________
Professora Doutora Helena Parente Cunha
_____________________________________________________________________________
Professor Doutor Sérgio Martagão Gesteira
_____________________________________________________________________________
Professora Doutora Rosa de Carvalho Gens
_____________________________________________________________________________
Professor Doutor Cláudio Murilo Leal (Co-orientador)
_____________________________________________________________________________
Professor Doutor Adriano Espínola (Suplente)
______________________________________________________________________________
Professora Doutora Elódia Xavier (Suplente)
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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Amparo, Flávia Vieira da Silva do.
―Sob o véu dos versos‖: o lugar da poesia na obra de Machado de Assis/ Flávia
Vieira da Silva do Amparo. - Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2008.
xi,346 f; 30cm.
Orientador: Antonio Carlos Secchin
Tese (doutorado) UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Área: Literatura Brasileira, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 323-346
1- Subindo a montanha das musas 2- Ocidentais: do seio de Quimera ao reino
de Pandora 3- Machado de Assis: um homem de teatro 4-―Sob o véu dos versos‖. I.
Secchin, Antonio Carlos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Área: Literatura
Brasileira. III. Título.
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RESUMO
SOB O VÉU DOS VERSOS‖: O LUGAR DA POESIA
NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Flávia Vieira da Silva do Amparo
Orientador: Antonio Carlos Secchin
Co-orientador: Claudio Murilo Leal
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do tulo de Doutor em
Literatura Brasileira.
Cem anos após a morte do escritor Machado de Assis, muito se tem falado sobre o
mestre da prosa, mas ainda existe um imenso preconceito quando o assunto é a poesia do
escritor. Procurando romper o véu que separa o poeta do prosador, esta pesquisa tem como
principal objetivo conhecer e recompor a trajetória de Machado de Assis desde os poemas da
juventude, dispersos nos jornais das décadas de 50 e 60 (séc. XIX), passando pelos
primeiros livros de poesia Crisálidas e Falenas , e por algumas comédias compostas em
verso, até chegar a sua única obra poética da maturidade: Ocidentais. Veremos como as
temáticas da poesia prenunciam questões trabalhadas posteriormente na ficção machadiana,
assim como se filiam a um legado poético de especial valor no universo literário.
Sobretudo, procuraremos resgatar o Poeta por excelência, que ultrapassa o sentido
estrito da palavra, como um intérprete da vida e do homem, disposto a elaborar uma poética
sentido essencial da obra de arte -, independente da maneira usada para revelá-la aos seus
leitores.
Palavras-chave: Machado de Assis, poesia, Crisálidas, Falenas, Ocidentais, ficção,
comédias.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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RESUMEN
SOB O VÉU DOS VERSOS‖: O LUGAR DA POESIA
NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Flávia Vieira da Silva do Amparo
Orientador: Antonio Carlos Secchin
Co-orientador: Claudio Murilo Leal
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em
Literatura Brasileira.
Cien años después de la muerte de Machado de Assis, mucho se ha hablado sobre el
maestro de la prosa, todavia, existe um gran perjuicio cuando el tema es la poesia del
escritor. Intentando romper el velo que separa el poeta del prosador, esta pesquisa tiene
como principal escopo conocer y recomponer la trayetoria de Machado desde los primeros
poemas de su juventud, dispersos en los periódicos de lãs décadas de 50 y 60 (siglo XIX)
pasando por los primeros libros de poesia Crisálidas e Falenas y por algunas comedias
en verso, hasta llegar a su unica obra de madurez: Ocidentais. Estudiaremos como las
tematicas de su poesia prenunciam questiones trabajadas después em la ficción, bien como
se afilian a um legado poetico de especial valor en el universo literario.
Sobre todo, buscaremos resgatar el Poeta em su dimensión mayor, que ultrapassa el
sentido stricto de de la palabra, como interprete de la vida y del hombre, dedicado en
elaborar uma poética sentido esencial de la obra de arte independiente de la forma usada
para revelarla a sus lectores.
Palabras-llave: Machado de Assis, poesía, Crisálidas, Falenas, Ocidentais, ficción,
comedias.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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SUMÉ
SOB O VÉU DOS VERSOS‖: O LUGAR DA POESIA
NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Flávia Vieira da Silva do Amparo
Orientador: Antonio Carlos Secchin
Co-orientador: Claudio Murilo Leal
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Literatura Brasileira, da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do tulo de Doutor em
Literatura Brasileira.
Un siècle après la disparition de Machado de Assis, on parle encore beaucoup du
maître de la prose, mais il y reste toujour un grand prejugé envers la poésie de cet écrivain.
Tout en cherchant rompre le voil qui détache le poète du prosateur, cette recherche envisage
d‘établir et d‘examiner le parcours de Machado de Assis dès ses poèmes de jeunesse, épar
dans les journaux des annés 1850 et 1860, comprennant ses premiers recueils de poèmes
Crisálidas et Falenas -, et quelques comédies composées en vers, pour aboutir à sa seule
ouevre poétique de maturité : Ocidentais. On verra comment les sujets de sa poésie
anticippent des questions ultérieurement reprises dans sa fiction, ainsi que ces sujets se lient
à un certain patrimoine poétique de valeur espéciale dans l‘univers littéraire.
On va chercher surtout reprende le poète par excellence, en dépassant le sens stricte du
mot: poète, alors, en tant qu‘ interprète de la vie et de l‘homme, prêt à créer une poétique
comme sens essentiel de l‘oeuvre d‘art -, indépendamment de la manière employée pour la
dévoiler aux lecteurs.
Mots-clé : Machado de Assis; poésie; comédies en vers; Crisálidas; Falenas, fiction,
comédies.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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DEDICATÓRIAS
Para:
Aquele que conhece de perto a natureza humana e,
mesmo assim, é capaz de nos amar: Jesus Cristo
meu Senhor e Deus, meu Princípio e meu Fim.
e
Os três amores que sustentam minha jornada neste
mundo:
Lara, a que me ensina com sua perspicácia e carinho
as lições do amanhã: minha semente, meu futuro.
Maurício, meu esposo, que comigo caminha lado a
lado, com serenidade e com todo o amor de que
necessito, unindo o que fui ao que sou: meu presente;
Irene, minha mãe, a que administra a vida cultivando
diariamente o bem. Aquela que com toda dedicação
soube adornar de flores meu passado.
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AGRADECIMENTOS:
Agradeço ao meu orientador Antonio Carlos Secchin pela presença marcante em toda
essa difícil trajetória de pesquisa. Pelo apoio sempre solícito, preciso e valioso do amigo, do
crítico e do homem das letras. Aquele que, diante das dificuldades do percurso, me ensinou a
grande arte dos poetas de lapidar as pedras in mezzo del camin”.
Ao professor Claudio Murilo Leal pelas importantes fontes de pesquisa sobre o poeta
Machado de Assis, que abriram caminho aos pesquisadores da poesia do mestre.
Agradeço ao Colégio Pedro II e a todos os que prontamente favoreceram o meu
afastamento das atividades do magistério para a dedicação total à pesquisa: ao Professor
Manoel Almeida, chefe de departamento de Língua Portuguesa, e aos Diretores Jorge
Dimuro e Vera Maria Rodrigues.
A Lene Elsie Fernandes de Faria, minha primeira contadora de histórias, reveladora
dos encantos das páginas literárias que me acompanham até hoje.
Àqueles que souberam semear a bondade em tempo de desencanto, crendo na virtude
do amanhã: lvio e Odete Simões e General Adalberto Pinheiro da Mota.
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SINOPSE
Leitura da obra poética machadiana, a partir
das poesias dispersas da juventude até a obra
da maturidade. Estudo da poética machadiana
como fio condutor de todo pensamento do
escritor, principalmente, como filosofia da
vida prática e teoria da alma humana.
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O voi che avete gl'intelletti sani,
mirate la dottrina che s'asconde
sotto il velame delli versi strani”
“Ó vós que tendes o intelecto são,
atentai à doutrina que se esconde
sob o véu dos versos estranhos.”
(Dante Alighieri - Inferno IX, 61-63)
―O estilo está tanto sob as palavras
quanto nas palavras. É tanto a alma
quanto a carne de uma obra.‖
(Gustave Flaubert. Cartas exemplares. p.188)
11
SUMÁRIO
Introdução, p.12
1. SUBINDO A MONTANHA DAS MUSAS p. 23
1.1- Nos enlevos de Calíope p. 31
1.2- A primeira ponta da vida p. 40
1.3- Tributo à musa do passado p. 62
1.4- De Corina a Carolina: entre a musa poética e a poética da musa p. 71
1.5- Falenas: o sofrimento como tema p. 86
2. OCIDENTAIS: DO SEIO DE QUIMERA AO REINO DE PANDORA p.108
2.1- ―Mundo interior‖: o microcosmo humano p. 125
2.2- A metamorfose p. 135
2.3- Descendo a montanha das musas p. 150
3. MACHADO DE ASSIS: UM HOMEM DO TEATRO p. 160
3.1- ―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖: breve análise ... p. 168
3.1.1- Diálogos femininos e pintura social em ―Antes da missa‖ p. 172
3.1.2- ―O bote de rapé‖: o nariz entra em cena p. 180
3.2- Diálogo entre deuses e homens: Os deuses de casaca p. 193
4. SOB O VÉU DOS VERSOS: poesia e profecia na construção da obra de arte p. 212
4.1- Teste David cum Sybilla: profetas e poetas no desfile dos séculos p. 221
4.2- Poesia e profecia: a interpretação figural dos primeiros doutores cristãos p. 229
4.3- Do altar para o palco da vida: sibilas e profetas na consolidação... p. 241
4.4- Profecia, utopia e interpretação figural na obra de Dante Alighieri p. 248
4.5- Entre o civil e o religioso: novas releituras proféticas p. 260
4.6- Ut pictura poesis: uma interpretação (...) da obra de Michelangelo p. 266
4.7- Sibilas e profetas nos Autos sacramentais da Península Ibérica p. 279
4.8- Último - p. 300
5. CONCLUSÃO
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
12
INTRODUÇÃO
Os dois gêneros que marcaram o início da carreira do escritor Machado de Assis a
poesia e o teatro encontram-se ainda pouco estudados pela crítica, que, na maior parte das
vezes, insiste em manter o parecer do século XIX. A opinião dos críticos é a de que essas
manifestações literárias não revelam o gênio machadiano presente nos contos e,
principalmente, nos romances escritos a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas.
Considerada obra menor, a poesia de Machado permanece numa espécie de limbo, num
lugar à parte da sua produção consagrada pela crítica.
Opiniões de peso contribuíram muito para que tanto a poesia quanto o teatro do
mestre permanecessem ao largo, como ―filhos enjeitados‖ diante de uma prole ilustre.
Primeiramente o parecer de Quintino Bocaiúva sobre a falta de ação no teatro machadiano,
que se propagou como se fosse uma depreciação da obra do autor. Tanto não possuía valor
depreciativo, que Machado o transcreveu na íntegra em seu volume de teatro publicado em
1863, que incluía as peças ―O protocolo‖ e ―O caminho da porta‖.
O que para o jovem dramaturgo soou como elogio, ao revelar em suas peças certo
refinamento e reflexão, como deviam ser as ―obras de pensamento‖, parece ter sido a marca
negativa que o acompanhou no passado e se lançou à posteridade. Em relação ao seu
tempo, não encontrou acolhida diante da crítica, que preferia as peças traduzidas de
aclamados escritores estrangeiros (sobretudo franceses), nem do público em geral, que
valorizava mais as peças de pouco fundo, repletas de peripécias, burlas, arremedos,
caricaturas, sem falar na predileção da platéia pelo melodrama, encenado com notação e
ênfase românticas. O dramaturgo lutava, portanto, contra dois gigantes: a crítica e o
público, o que de maneira alguma poderia fazê-lo prosperar, ainda mais se tratando de um
jovem estreante no cenário dramático.
13
Apesar de estreante, não era desprestigiado como censor e crítico teatral, funções que
desempenharia com louvor, deixando registrada uma série de pareceres que nos fazem
compreender o quanto o público fluminense não era suficientemente maduro para valorizar
o teatro de índole nacional que não fizesse a opção pelo burlesco.
O interesse dessa pesquisa, em relação ao teatro machadiano, volta-se exclusivamente
para as suas comédias escritas em verso, tendo em vista que são as mais minimizadas,
mesmo quando se têm por objeto de estudo os textos teatrais do autor. Outro aspecto
importante é que o fato de serem também composições poéticas permite que tenhamos uma
compreensão mais plena do poeta Machado de Assis, em toda a expansão do seu estro.
Inseridas nesse contexto, encontramos três comédias machadianas: ―Os deuses de
casaca‖, ―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖, que ostentam como pano de fundo as
relações sociais e políticas da vida fluminense, embora a primeira delas opte por uma
abordagem menos explícita do imbricado jogo de poder existente na sociedade. Essa
característica de ―Os deuses de casaca‖, em particular, nos interessa ainda mais, na medida
em que o autor utiliza uma mescla de fantasia e realidade para dar conta de situações que
espelham o universal através da leitura do particular, ou ainda, emprega um certo
deslocamento da realidade a fim de retratá-la de forma mais fidedigna.
Quanto à poesia propriamente dita, o cenário é ainda mais desalentador, se
acompanharmos a fortuna crítica sobre o escritor em relação ao gênero. Dos
contemporâneos de Machado aos estudiosos recentes, muito mais pontos negativos na
apreciação da poética machadiana do que seria razoável supor diante do vasto corpus que
apresenta: só viram o que lhes seria conveniente ver para condenar todo o conjunto.
A maioria dessas vertentes críticas pôs uma coroa imarcescível no Machado
consagrado e canônico, a ponto de considerar tudo o que ele produziu no período anterior
às Memórias póstumas de Brás Cubas como algo ―menor‖. Assim, qualquer pesquisa que
se concentre nas obras que antecedem esse período canônico é considerada negativamente,
como se isso fosse macular a imagem do patrono das nossas letras. Para esses, Ocidentais é
o único livro de poesia que merece a atenção dos leitores, que foi escrito na maturidade
do escritor.
Tratando exclusivamente da poesia de Machado, Manuel Bandeira afirmaria que a
grande questão seria a concorrência entre o prosador e o poeta, dada a dificuldade deste em
14
se impor diante da genialidade daquele. A sombra do Machado prosador se projetaria na
obra poética de tal modo que a obscureceria completamente.
Sílvio Romero, por sua vez, escolheu o poeta como alvo principal de seus ataques,
talvez considerando que era quase impossível diminuir-lhe a imagem, já consagrada à
época, de romancista de talento. Dele e de outros contemporâneos de Machado, ouviríamos
as mais diversas razões para se desprezar o poeta: falta ou excesso de lirismo, pouca
criatividade ou demasiada imaginação, uso repetitivo de vocábulos da língua ou linguagem
erudita e fria, excessivo zelo formal ou emprego de construções pobres com erros de
concordância, estro cosmopolita ou adoção de um nacionalismo epigonal, enfim, pareceres
que, se confrontados, se anulariam mutuamente, tendo em vista que emitem opiniões
divergentes sobre o mesmo objeto de análise: a poesia de Machado de Assis.
Em pesquisa de Mestrado, procuramos traçar um roteiro das críticas antigas e atuais a
respeito do poeta. Em grande parte desse material crítico, verificamos a falta de um critério
ou de um conhecimento mais vasto da sua obra poética, pois a maioria desses estudiosos
procurou analisar em superfície alguns aspectos isolados da poesia do autor, o que
provocou uma imensa distorção na análise e na conclusão de seus pareceres.
Para os que tinham o Romantismo como parâmetro, a falha do poeta estava na falta
de lirismo e imaginação e na frieza da construção dos poemas, enquanto, para os críticos de
índole realista, a fantasia era demasiada, mas a forma deixava a desejar. Forma, métrica,
rima, vocábulos, expressão, tudo isso seria alvo da crítica, exceto o conteúdo da poesia
machadiana.
Esvaziada de sentidos, a poesia seguiu à margem, na sombra ainda mais obscura da
categorização dos críticos, que pretenderam definir o poeta como romântico, na primeira
fase, e parnasiano, na maturidade. Seguindo unicamente por essas sendas, de fato, a poesia
machadiana não apresentaria maior relevo, já que frustra ambas as vertentes, apesar de não
desconsiderá-las, e opta por um diálogo com uma tradição que não se fixa em espaço ou
tempo, mas se processa das mais variadas maneiras, e parte do clássico para construir o
moderno. A obra poética machadiana, erguida sobre o edifício da tradição, acrescentou às
antigas paredes a camada do novo. Não a novidade de vanguarda, mas a releitura e
aprimoramento do antigo, num minucioso trabalho de restauração, de reavivamento do
sentido primordial da poesia.
15
Para acompanharmos o princípio construtivo do poeta, assim como para
desvendarmos essa obra tão incompreendida pela crítica - que permanece ainda, após cem
anos do desaparecimento do autor, ―sob o véu dos versos‖ -, é preciso empreender um
longo percurso, a partir do início da carreira do escritor, resgatando os poemas dispersos da
adolescência e verificando o que dessa obra teria sobrevivido na publicação do primeiro
livro de poesia: Crisálidas. É importante também destacarmos que o poeta não realiza
neste livro uma coletânea dos poemas anteriormente publicados: prefere escrever outros
especificamente para esse fim, incluindo apenas dois ou três poemas de um período mais
remoto. Ainda assim, sem retomar os poemas anteriores, recupera a trajetória de influências
que o formou como poeta, como se estampasse sempre o motivo primordial do processo
criativo.
Dos quatro livros de poesia do escritor, Crisálidas, Falenas, Americanas e Ocidentais,
excluímos de nossa análise apenas o penúltimo, não porque o assunto do livro foi
abordado anteriormente em pesquisa de Mestrado, mas também por nossa proposta de
organização temática. A leitura de Americanas nos conduziria a um outro caminho, distinto
do que nos propusemos a trilhar.
O que nos interessa, de início, é captar as influências clássicas, medievais,
renascentistas, neoclássicas e, também, românticas que formam a base dessa poesia
machadiana dos primeiros livros, a começar pelo topos clássico da subida à montanha das
musas. Também veremos como Machado, sem desprezar completamente o projeto do
jovem poeta, acrescenta um fundamento filosófico à releitura da tradição ocidental em seu
último livro: Ocidentais. Outra vez encontraremos o poeta no cimo do monte, só que, nesse
caso, descendo a encosta, como se efetuasse o último movimento, na forma de uma célebre
despedida.
O movimento de subida e de descida do monte constituirá uma importante vertente na
poesia machadiana, assim como a interpenetração da fantasia e da realidade no processo
criativo aponta para uma íntima relação entre prosa e poesia. A obra machadiana parece se
construir num único bloco, onde o artífice vai esculpindo variações de uma mesma figura,
constituída por um princípio único e indivisível.
Vida e obra, em certos momentos, parecem se fundir, como se uma se conformasse a
outra para dar origem ao grande fiat da criação artística. A arte torna-se o único atributo
16
humano capaz de ter um fim em si mesmo (uma convicção declaradamente assumida por
Machado), e que traz a marca do trascendental. Nas palavras de Schelling: ―A arte leva o
homem inteiro, como ele é, até ali, a saber, ao conhecimento do supremo, e nisso reside a
eterna diferença e o milagre da arte‖
1
.
O que nos motiva: realidade ou ilusão? Em que medida a consciência subjetiva influi
na capacidade de captar a realidade objetiva? Ora envolvido, ora afastado, o poeta sai de si
e a si mesmo retorna como a buscar uma solução no exterior para o constante conflito
interno do homem.
Observando por esse ângulo Machado é essencialmente poeta, visto que, mesmo na
prosa, parte de um ponto de vista da realidade comum a todos os homens, baseada nos
princípios essenciais da vida, para, logo em seguida, abandonar o palco da realidade, como
um espectador da cena, onde tudo é revelado in abstracto, a partir de uma observação
distanciada do narrador. A maioria dos narradores machadianos está ―fora de si‖, por isso
pode captar o subjetivo de maneira objetiva, ao mesmo tempo que, vivendo uma ―segunda
vida‖, pode rir-se daquela primeira sem que se sinta emocionalmente atingido.
Essa atitude do prosador comunga das idéias filosóficas de Arthur Schopenhauer,
quando este trata dos vários sentidos e níveis da realidade, e de como o homem pode
interpretá-la para melhor se conformar ao contexto da vida.
Não será surpreendente, maravilhoso mesmo, ver o homem viver uma
segunda vida in abstracto ao lado da sua vida in concreto? Na primeira,
está entregue a todos os tormentos da realidade, está submetido às
circunstâncias presentes, tem que trabalhar, sofrer e morrer, como os
animais. A vida abstrata, tal como ela se apresenta perante a meditação da
razão, é o reflexo calmo da primeira e do mundo em que ele vive; ela é
esse plano reduzido de que falávamos mais acima. Aí, dessas alturas
serenas da meditação, tudo o que o tinha dominado, tudo o que o tinha
fortemente impressionado embaixo parece-lhe frio, descolorido, estranho
a si mesmo, pelo menos de momento: ele é espectador, ele comtempla.
Quando se retira assim para os cumes da reflexão, assemelha-se ao ator
que acaba de representar uma cena e que, à espera de outra, vai tomar
lugar entre os espectadores, observa com sangue-frio o desenrolar da ação
que continua sem ele, mesmo que sejam os preparativos de sua morte,
depois regressa para agir ou sofrer, como deve.
2
1
SCHELLING. Apud: SUZUKI, Márcio. O gênio romântico. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 102.
2
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. (Trad. M. F. Sá Correia). Rio
de Janeiro: Contraponto, 2001. p. 94-95.
17
Lendo o texto do filósofo, temos a impressão de que estamos diante de uma cena do
Hamlet, de um trecho da obra de Goethe ou de um dos capítulos das Memórias póstumas,
sobretudo porque esses autores não se preocuparam unicamente com a representação de
uma realidade única e incontestável ou da simples criação de tipos esvaziados de sentido,
mas olharam o mundo como espaço de representação, tal como o filósofo concluiu. Não
criaram suas obras como ficção simplificada, ou como espelho de uma realidade, disposta
apenas a distrair leitores/espectadores, mas voltaram a arte sobre si mesma, refletindo sobre
a capacidade criativa do homem, buscando continuamente a idéia primordial de toda a
criação, inclusive, da sua própria origem.
que esse ponto de vista do kataskopos, daquele que observa tudo do alto, é um
princípio poético que reincide na obra de vários autores, desde a era clássica até a
atualidade, e constitui-se um legado inegavelmente vasto e plural da literatura. Machado,
portanto, se apropria desta herança literária, enriquecendo-a com seu toque de genialidade.
De início, ainda preso à forma convencional, propaga esse pensamento em sua obra da
juventude, até que rompe definitivamente com a configuração inicial, mas mantém tanto o
princípio poético quanto a temática anteriormente esboçada.
Pretendemos mostrar o fio que une o Machado-poeta ao Machado-prosador, na
medida em que, no seu processo criativo, o escritor nunca abandonou o sentido clássico do
poeta, na verdade Sumo-Poeta, como um intérprete do mundo, como aquele que
continuamente tece a urdidura da vida, juntamente com a teia do texto literário.
Principalmente, parte de uma idéia que avalia o ―estar no mundo‖ como um longo processo
que, em vez de se constituir uma ação evolutiva, é, na verdade, uma constante refiguração
de modelos antigos, aparentemente recobertos pela tinta do novo.
O Poeta, em sua incessante busca pelos sentidos primordiais da existência, ora ―sai de
si‖ para contemplar o mundo exterior anábase; ora mergulha em si para compreender
outro vasto mundo, que é o seu interior catábase. Dante executaria esse procedimento na
Commedia, assim como Shakespeare em todo o seu teatro, como Goethe, no Fausto, ou,
ainda, como Michelangelo na pintura da Capela Sistina. Poderíamos citar inúmeros outros
artistas, na escultura, na arte, na pintura, na literatura, no teatro, enfim, a todos esses
poderíamos denominar Poetas, visto que pretenderam, com sua arte, dar continuidade ao
18
fio de uma dada tradição e interpretar alguns séculos de nossa história a partir de uma
ligação comum a todos os homens, de todos os tempos.
No entanto, a revelação do artista na obra de arte nunca é uma versão pronta e
acabada desse preceito inicial. Pelo contrário, é uma nova formar de (re)velar o essencial.
O leitor precisa apurar o intelecto para seguir os caminhos do autor, tal como Dante guiado
por Virgílio, mas que pode atingir a plena revelação a partir de uma jornada individual
com a Sabedoria (Beatriz).
Machado, em sua trajetória de escritor, é guiado não apenas por um Virgílio, mas por
uma série de outros mestres de que vai se apropriando e/ou a quem vai deixando pelo
caminho ao revitalizar e desconstruir o pensamento dos antigos e dos modernos, da
tradição e da contemporaneidade, até encontrar uma face própria, a medida de seu talento.
Veremos sua definitiva ascensão ao último círculo literário, o u do escritor, para de
apreciar toda a sua criação poética. Ainda que se tenha a tradição como ponto de partida, há
algo completamente novo e original no texto de Machado de Assis.
Seguindo esse princípio construtivo, Machado não dialoga com os clássicos e os
grandes mestres da literatura, da filosofia, da história, da religião enfim, de várias áreas de
conhecimento, como também vai dialogar com a própria obra, retomando temas
desenvolvidos na juventude e revitalizando assuntos expressos em algum outro
momento.
A primeira parte desta Tese se dedicará, portanto, à analise do corpus da obra
machadiana, poemas e comédias em verso, buscando conhecê-lo como objeto de interesse e
de estudo, sem repetir os preconceitos que encontramos nos pareceres do passado e da
contemporaneidade. O interesse principal dessa pesquisa é refazer o percurso literário do
escritor, incluindo alguns aspectos biográficos que incidiram diretamente na sua produção
literária, com ênfase mais no conteúdo de suas produções do que no estudo das técnicas do
verso, exceto quando tiverem uma implicação direta na compreensão do conteúdo.
Com o propósito de buscar o lugar da poesia (e do poético) na obra machadiana,
interesse formulado no título desta Tese, a segunda parte desta pesquisa tem o objetivo de
compreender a poética machadiana, o sentido intrínseco de sua obra, partindo das
produções da juventude e das idéias esboçadas nos seus primeiros escritos, e relacionando-
as aos conteúdos das produções da maturidade. A intenção de tal pesquisa nasceu da
19
necessidade de olhar a obra de Machado como um todo e não compartimentada em
classificações hierárquicas do que ―deve‖ ou ―não deve‖ ser estudado ou do que ―vale‖ ou
―não vale‖ a pena ser lido.
Seguimos, em certa medida, o conceito que trata das articulações e rearticulações de
estruturas no contexto da obra, partindo da definição de Silviano Santiago, que formulou a
seguinte opinião acerca da obra de Machado de Assis:
é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis
como um todo coerentemente organizado, percebendo que certas
estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob a
forma de estruturas, mais complexas e mais sofisticadas, à medida que
seus textos se sucedem cronologicamente.
3
Procuraremos avaliar a obra da juventude de Machado em contraponto aos escritos da
maturidade, a fim de mostrar quanto o escritor foi fiel a si mesmo das primeiras às últimas
manifestações. A produção deste todo não é aleatória, mas funciona, como descreveu
Silviano Santiago, através de desarticulações e rearticulações da forma e da estrutura, o
que não configura uma brusca ruptura estética.
O discurso machadiano é tão bem articulado e tão profundamente dissimulado que
faz jus ao termo ―meias-tintas‖ empregado pelo cronista, e retomado negativamente por
Sílvio Romero, em sua crítica ao estilo do escritor
4
. Machado usa meias-tintas para retratar
a sociedade, apropriando-se do recurso impressionista que pode ser compreendido
unindo o todo às partes. Para entender o procedimento adotado e reconhecer os efeitos da
―pena‖ do escritor, retomamos o trecho de uma de suas crônicas:
Tirei hoje do fundo da gaveta, onde jazia, a minha pena de cronista. A
coitadinha estava com um ar triste, e pareceu-me vê-la articular, por
entre os bicos, uma tímida exploração. (...) O pugilato das idéias é muito
pior que o das ruas; tu és franzina, retrai-te na luta e fecha-te no círculo
dos teus deveres, quando couber a tua vez de escrever crônicas.
3
SANTIAGO, Silviano. ―Retórica da Verossimilhança‖. In: _____. Uma literatura nos trópicos. São Paulo:
Perspectiva, 1978. p. 29.
4
ROMERO, Sílvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro:
Laemmert, 1897.
20
entusiasta para o gênio, cordial para o talento, desdenhosa para a
nulidade, justiceira sempre, tudo com aquelas meias tintas tão
necessárias aos melhores efeitos da pintura.
5
Examinando atentamente o quadro delineado na crônica, constatamos que o escritor
parece misturar os recursos da literatura e das artes plásticas para pintar a sociedade. Sem
abusar das cores, vai diluindo as opiniões extremas e assume uma postura ao mesmo tempo
isenta e cética, que anula todas as afirmações. Nada parece categórico, e, sob o efeito de
alguma luz, as cores do quadro vão sendo alteradas, ganham outras nuances, de acordo com
o ângulo de visão do espectador. No dizer machadiano, cada um vai observar conforme a
―sua curta ou longa vista‖. Sobre isso é bom recordarmos um outro trecho de crônica, de A
Semana, em que o escritor diz:
A história é isto. Todos somos fios do tecido que a mão do tecelão vai
compondo, para servir aos olhos vindouros, com os seus vários aspectos
morais e políticos. Assim como os sólidos e brilhantes, assim também
os frouxos e desmaiados, não contando a multidão deles que se perde
nas cores de que é feito o fundo do quadro.
6
A obra machadiana nunca nos revela tudo. A leitura suscitará sempre um ato de
indagação, de busca por respostas que o texto sonega, cujas pistas deixa pelo caminho. Por
vezes, a ironia é a única forma de manifestação dentro da complexidade do pensamento
machadiano. O seu desdobrar contínuo, nas camadas de significados do texto, desvenda
sutilmente as máscaras sociais e nos desvela um universo de referências que, ao contrário
de esclarecer, multiplica os enigmas do discurso literário.
Como os tapetes tecidos pelas Parcas da mitologia grega, o escritor assim metaforiza
a história e a História, a um só tempo: os homens são os fios do tecido, no entanto,
dependendo do tecelão, cada quadro será composto de uma maneira, cada aspecto moral e
político, de certa forma, segue a trama do bordado e encontrar-sesob o efeito das cores
que compõem o fundo do quadro.
Mas já não se trata da história narrada e ficcional, nem da História propriamente dita.
O quadro machadiano sintetiza passado, presente e futuro através de um recurso
5
ASSIS. Apud: MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. Trad. de Marco Aurélio Matos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. p 352.
6
ASSIS. O.C. vol. III. A Semana. 7 de julho de 1895. p. 659
21
prefigurativo, pressupondo que entender o antigo e o atual é forma de prenunciar o futuro,
não no que se refere aos acontecimentos, mas no que sinaliza a reiteração de padrões e
arquétipos.
O mundo é um palco onde mudam os atores, mas a peça é a mesma. Avaliando-se por
este ângulo - ao buscar na religião, nos textos místicos, na História, na Bíblia, enfim, numa
vasta bibliografia, o princípio regulador da vida humana -, Machado incorre no conceito de
―figura‖, que Auerbach constitui a partir do estudo na obra dos antigos, principalmente dos
textos posteriores ao cristianismo, a começar dos primeiros Padres da Igreja.
Considerando os estudos de Auerbach, discordamos da idéia de que as obras
machadianas sejam alegorias do Brasil, ou fábulas criadas a partir das questões locais,
como muitos pesquisadores teimam em afirmar. Acreditamos que Machado realiza uma
prefiguração de eventos que ligam o antigo ao novo, e, também, ao que ainda está por vir,
na linha temporal que contempla toda a história da humanidade.
Para enterdermos um pouco da tradição prefigurativa, partiremos do confrontamento
entre paganismo e cristianismo no interior da obra machadiana, e faremos uma longa
incursão pela literatura, pelo teatro e pelas artes clássicas em busca desse fio da tradição no
qual Machado se insere, desde a Bíblia, passando pela poesia de Virgílio, pelos textos de
Santo Agostinho, Dante, Goethe, Shakespeare, além da obra artística e literária de
Michelangelo, e das peças de Calderón e Gil Vicente. Como o Poeta pode interpretar
profeticamente a História do homem? Quem seria o tecelão de que nos fala a crônica?
Unindo os preceitos clássicos aos cristãos, Davi com Sibila, Machado retoma um
princípio inspirado nos sábios do Renascimento europeu. que, pelo viés da ironia, não
pretende extrair dessa fonte nenhuma suma teológica ou lição para gerações futuras.
Apenas constata a repetição contínua do enfadonho teatro da vida, um mundo que ele
procura reinventar através da arte, único espetáculo novo que intenta fornecer aos homens.
Como a teoria de Marcolini esboçada no Dom Casmurro, o texto literário seria a subversão
do libreto de Deus, na verdade, uma ópera cômica, ―divina comédia humana‖, que se opõe
à criação original.
Esse caráter subversivo da obra machadiana lhe renderia o epíteto, criado por
Augusto Meyer, de ―Bruxo do Cosme Velho‖. Por que ―bruxo‖? Decerto porque o escritor
se filia à antiga concepção renascentista do sábio ou do gênio, que no seu quarto de
22
trabalho, entre livros, busca constantemente descobrir a fórmula da vida, o princípio da
existência. Aplicando e unindo conhecimentos pagãos e cristãos, o mago tenta tatear uma
verdade encoberta, procura encontrar um atalho para chegar até Deus, deseja criar para si
um manto de divindade. Se não atinge tais objetivos pelos métodos místicos, tenta obtê-los
pela expansão da Idéia, essência do divino que nele subsiste. Mas o conhecimento
adquirido, como o fruto do Gênesis, gera Bem e Mal, poder criativo e destrutivo, riso e
melancolia.
A melhor síntese do pensamento machadiano, que daria conta desse preceito e, de
certa maneira, explicaria o epíteto que Meyer apenas sugere, consta no poema de Carlos
Drummond de Andrade, ―A um bruxo com amor‖. A sensibilidade do poeta mineiro daria
conta desse Machado essencialmente profético e poético, formulador de enigmas, que
envolvido em sua capa, ―qual novo Ariel‖, desfaz-se no ar sem nos dar mais respostas.
No entanto, continuamente perguntamos: onde reside o poético na obra machadiana?
Qual o lugar da poesia de Machado de Assis? A distância temporal talvez nos ajude a olhar
de forma mais isenta para o dramaturgo e para o poeta, de maneira que, assim como o
escritor fez, deixemos o julgamento para o leitor atento dessas páginas que aqui virão.
23
1- SUBINDO A MONTANHA DAS MUSAS
O primeiro registro que se tem de Machado de Assis no universo literário data de
outubro de 1854, uma publicação no Periódico dos Pobres: na verdade, um modesto poema
intitulado ―Soneto‖ e dedicado a Ilmª Sr. D.P.J.A. Logo nesse começo, podemos registrar
duas impressões: em primeiro plano, a ousadia do rapaz de quinze anos, que almejava
divulgar suas produções literárias mesmo sem participar de nenhum ambiente acadêmico
propriamente dito; em segundo lugar, a intenção de impressionar uma jovem senhora que
seria o motivo do poema, talvez alguma musa inspiradora que lhe tinha despertado os
sentidos.
Quem pode em um momento descrever
Tantas virtudes de que sois dotada
Que fazem dos viventes ser amada
Que mesmo em vida faz de amor morrer!
O gênio que vos faz enobrecer,
Virtude e graça de que sois c'roada,
Vos fazem do esposo ser amada
(Quanto é doce no mundo tal viver!)
A natureza nessa obra primorosa,
Obra que dentre todas as mais brilha,
Ostenta-se brilhante e majestosa!
Vós sois de vossa mãe a cara filha,
Do esposo feliz a grata esposa,
Todos os dotes tens, ó Petronilha!
7
Nos versos finais, Machado revela que a musa se chama Petronilha. Pelo elogio dos
versos, a dama louvada mostra-se um exemplo de filha e esposa, portanto, uma senhora
7
ASSIS, Machado de. Toda poesia de Machado de Assis. (org. Claudio Murilo Leal). Rio de Janeiro; São
Paulo: Editora Record, 2008. p. 601. (A partir desta nota, o livro será identificado pela sigla T.P.)
24
casada que conserva o sobrenome nas iniciais J.A. Indício de amor platônico, vocação
precoce para amar mulheres mais maduras ou simples versos de gratidão? Nota-se no
poema uma espécie de admiração contida e respeitosa, onde se entrevê algum sentimento
forte: ―Que mesmo em vida faz de amor morrer!‖, ao mesmo tempo atenuado pelo respeito
e pelo distanciamento moral: O gênio que vos faz enobrecer,/ Virtude e graça de que sois
c'roada.‖. A oscilação de sentimentos do jovem poeta é evidente, pois aparenta estar ao
mesmo tempo envolvido e distanciado do seu foco de atenção, marcando a atitude dúbia de
quem ousa louvar publicamente uma dama, mas oscila entre a aproximação e o afastamento
do seu, hipotético, objeto de desejo.
A biografia da infância e da adolescência do escritor, tão obscura, não nos permite
afirmar com convicção quais teriam sido os primeiros passos do jovem na carreira, no caso,
antes de 1854. Tão somente as produções publicadas nos periódicos da época foram os
testemunhos dos caminhos percorridos por Machado desde sua estréia literária.
O grande prosador de nossa literatura, portanto, nasce poeta. Ainda em tenra idade,
traçava um objetivo na vida, um plano de futuro que revelava sua maior aspiração:
escrever e, principalmente, ser lido. Encontrou, sobretudo, o terreno ideal para desenvolver
a vocação de escritor, graças ao grande florescimento literário de que gozava a capital do
Império na segunda metade do século XIX.
O Periódico dos Pobres, onde o jovem publicou seu ―Soneto‖, era uma folha de
tiragem trimestral, impressa na tipografia de Antonio Maximiano Morando, situada à Rua
da Assembléia, número 82, segundo os dados que constam no Almanaque Laemmert de
1854.
8
É muito comum encontrarmos publicações atuais que, ao tratarem do primeiro
poema de Machado, atribuam erradamente a Paula Brito a edição desse jornal.
De igual modo, o tulo da publicação de Morando, ao contrário do que muitos
costumam ressaltar, não continha uma intenção depreciativa, nem teria o propósito de se
tornar porta-voz dos menos favorecidos, apesar de ser publicação modesta e barata. Ao que
parece, aproveitava-se da popularidade de jornal homônimo, publicado no Porto, que
gozava de grande prestígio entre os portugueses e que tinha como um dos seus
colaboradores, dentre outros nobres colunistas, o afamado escritor Camilo Castelo Branco.
8
LAEMMERT, Eduardo (org.). Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e Província do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia Laemmert, 1854. p. 568.
25
O perfil da publicação de Morando era anunciado logo no subtítulo da folha: ―noticiosa e
recreativa‖.
No mesmo Almanaque Laemmert, tomamos conhecimento das tipografias que
existiam na Corte no ano de 1854: nada mais, nada menos, do que vinte e sete, todas
próximas à região da espinha dorsal da época, a Rua do Ouvidor
9
. Dentre essas, destacamos
a do próprio Laemmert, a de Maximiano Morando e a de Paula Brito. Por esse ―corredor
literário‖, situado na região central da Corte, Machado andaria desde muito jovem, e o
freqüentaria até o fim da vida.
Não é de se estranhar que o jovem, passado o impacto da primeira investida pública
como escritor, tenha se animado a continuar publicando seus escritos. No ano seguinte, em
1855, aumenta a freqüência das produções no jornal, desta vez na Marmota Fluminense,
de Francisco de Paula Brito. Os poemas dispersos de Machado que datam dessa época,
segundo a compilação de Cláudio Murilo Leal
10
, perfazem 19 poemas escritos em álbuns
de amigos ou publicados no meio jornalístico. O jovem inicia o ano de 1855 com dois
poemas na Marmota Fluminense, segue publicando nos meses seguintes, e arremata a
participação com chave de ouro no último mês do ano, com um soneto encomiástico ao
Imperador D. Pedro II, estrategicamente no dia ―dois de dezembro‖, aniversário do
monarca, e também, não por coincidência, nome da tipografia de Paula Brito.
Outro ponto que nos chama a atenção é a alternância das assinaturas nos poemas, o
que revela a oscilação do jovem quanto à fixação de um nome artístico marcante. Se no
primeiro poema assinaria ―J. M. M. Assis‖, nos seguintes simplificaria para ―Assis‖,
alternando em seguida para ―J. M. M. d‘ Assis‖, sempre omitindo a preposição ou
apostrofando-a. Pode-se alegar que as abreviaturas eram tendência da época, mas as
constantes mudanças na assinatura autoral denunciam a busca por um sobrenome mais
eufônico ou que soasse mais literário. Por outro lado, também parecia não agradá-lo a
composição do próprio nome, Joaquim Maria, preferindo a redução deste nas iniciais J. M.,
assim como o ―Machado‖, finalizado em ―do‖, não combinava com a preposição ―de‖ que
se seguia. Enfim, vencidas as primeiras resistências, a partir de 1859, passaria a assinar
com o nome que lhe seria definitivo: Machado de Assis.
9
Idem. p.569.
10
ASSIS. T.P. Op. cit.
26
Nesse início de carreira, o jovem ia facilmente estabelecendo vínculos e começava a
se adaptar ao meio literário, firmando amizade com jovens poetas e convivendo num
ambiente cercado de escritores de renome, além de outros vultos importantes no panorama
das letras nacionais. As dedicatórias dos poemas igualmente revelam as homenagens do
escritor iniciante e o círculo de amizades a que passaria a pertencer.
Francisco Gonçalves Braga, poeta português que chegou ao Brasil em 1854, parece
ter sido um dos primeiros jovens literatos por quem Machado passou a nutrir grande
afinidade. Alguns dos poemas machadianos da Marmota Fluminense, publicados em 1855,
terão alguma relação com o amigo: nas epígrafes, como se nota em ―Ela‖ e ―A saudade‖,
ou nas dedicatórias, como é o caso de ―A palmeira‖ e Saudades‖. Neste, motivado pelo
afastamento de Braga em visita à terra natal, Machado assim o saúda:
Recebe, ó Braga, o meu canto,
Que eu cá de longe t‘envio;
São orvalhadas do pranto
Secas flores do estio;
É prova da lealdade
Duma constante amizade,
Recebe, que o pensamento
Tenho em Deus, na pátria, em ti;
11
O gosto de Machado pela cultura portuguesa mostrava-se cada vez mais intenso,
tanto motivado pela estirpe materna, quanto pela influência de Braga e de outros poetas
portugueses com quem teria larga convivência.
Numa outra composição no álbum de Braga, Machado saudaria poetas portugueses
e autores clássicos que povoavam o diálogo literário de ambos e seriam a fonte de
inspiração de seus versos. Cita Garret, Elmano Sadino (pseudônimo árcade de Bocage),
Bernardim Ribeiro, Camões, Tasso, Homero e Virgílio. Todos os poetas, salvo o primeiro,
possuem origem ou índole clássica. Machado, no poema, descreveria o gênio poético do
amigo em tom grandiloqüente, coroando-o com os louros apolíneos:
Nessa epopéia, monumento excelso
Que em memória do Vate à pátria ergueste,
Ardente se desliza a etérea chama,
11
Idem. p.606
27
Que de Homero imortal aos sucessores
Na mente ateia o céu com forte sopro!
Euterpe, a branda Euterpe nos teus lábios
Da taça d‘ouro, derramando o néctar
Deu-te a doce com que outr‘ora
Extasiou Virgílio ao mundo inteiro!
―Empunha a lira d‘ouro, e canta altivo
um Tasso em ti se veja o estro excelso
De Camões imortal, te assoma à mente;
E de verde laurel cingida a fronte
Faz teu nome soar na voz da fama!‖
Foram estas frases com que Apolo
Poeta te fadou quando nasceste,
E em doce gesto te imprimiu na fronte
Um astro de fulgor que sempre brilha!
12
Nesse período, o poeta fluminense alternava duas dicções bem marcadas: a
romântica e a clássica; um tom lírico e menos vigoroso, outro épico e eloqüente. Até para
louvar as belezas da paisagem de sua terra, no poema ―O Pão d‘Açúcar‖, percebe-se a
personificação do monte, tal como o episódio do Gigante Adamastor, de Camões: ―Salve,
altivo gigante, mais forte/ Que do tempo o cruel bafejar,/ Que avançado campeia nos
mares,/ Seus rugidos fazendo calar‖
13
. A apóstrofe, abundante em seus versos, poderia ser
justificada por uma questão de métrica, quando ocorrida no interior do poema, mas, posta
no título, denuncia a influência lusitana nas escolhas morfológicas.
Machado teria se nutrido ao mesmo tempo, portanto, de feições clássicas,
renascentistas, neoclássicas e românticas em seus poemas. Parecia viver o clima romântico
do tempo, como denuncia a epígrafe de Álvares de Azevedo no poema O profeta‖ e de
Teixeira e Sousa em ―O gênio adormecido‖, mas os primeiros acordes da lira, no ano de 55,
tinham uma entonação mais afinada com a musa clássica.
ainda outras dedicatórias, direcionadas a pessoas do seu convívio, assim como
vão surgindo trechos de autores brasileiros da época, como os acima citados, ou de poetas
portugueses mais próximos, como Garret, recém-falecido no ano em questão. A nossa
curiosidade se aguça quando nos deparamos com a dedicatória do poema A saudade‖, de
título igual ao citado, embora lhe sendo anterior: ―Ao meu primo, Sr. Henrique José
12
Idem. p. 623
13
Idem. p. 628
28
Moreira‖. Com esse mesmo nome, encontramos o registro de um capitão do 12º Batalhão
de Infantaria da época. Um homônimo, ou de fato o primo de Machado seria um militar de
patente? Trata-se de uma especulação para biógrafos, que nãoindício mais sólido que
ligue um nome ao outro.
Entretanto, o que não se pode negar nos poemas dessa fase - de 55 a 56 - é a
presença do vínculo familiar, seja na dedicatória ao primo, seja nas composições dirigidas à
memória da mãe e da irmã, falecidas em 1849 e 1845, respectivamente.
A familiaridade com o ambiente da Rua do Ouvidor e adjacências nos leva a cogitar
que, de alguma maneira, Machado teve uma freqüência prévia do lugar, pois parecia muito
íntimo e à vontade para ser um recém-chegado que lá se intrometesse e começasse a
publicar poemas. Tudo leva a crer que tenha crescido nesse espaço, talvez levado pelas
mãos do pai, Francisco José de Assis, pintor e dourador, assinante do Almanaque
Laemmert. Se verídico, o fato também explicaria a intimidade de Machado com a língua
francesa, já que o ambiente da Rua do Ouvidor estava impregnado por essa cultura, seja no
linguajar, nos cartazes, nas modas. A rua, enfim, podia ser considerada um pedaço da
França na Corte, e não apenas da França, se considerarmos a índole marcadamente
cosmopolita do lugar.
Como assinante do anuário, certamente o pai de Machado teria circulado por ali.
Talvez Francisco assinasse o catálogo de Laemmert com o propósito de informar-se sobre
possíveis clientes, inteirando-se dos estabelecimentos listados na publicação para oferecer
serviços, além de encontrar ali os principais fornecedores de material para execução do seu
ofício. Alguns biógrafos não descartam um interesse do pintor pela literatura, embora o fato
de ser assinante não o vinculasse a um gosto literário. O conteúdo eclético do Almanaque,
de utilidade pública, caracterizava a publicação como uma espécie de ―listão‖ de produtos e
serviços, como os da atualidade; portanto, atraía uma gama de leitores com os mais
diferentes gostos.
Levando-se em consideração os cinco anos de intervalo entre a morte da mãe de
Machado, em 1849, e as segundas núpcias de Francisco, em 1854, - embora alguns
levantem a hipótese de que ele poderia ter vivido maritalmente com Inês antes da
oficialização do casamento , o pai teria sozinho de educar o filho, e nada mais natural do
que levá-lo consigo aos lugares onde desempenhava o seu ofício. No anuário de Laemmert
29
havia uma lista de pintores e douradores que ofereciam serviços, voltados principalmente
para a pintura de tabuletas ou restauração e douração de imagens de santos, o que indicaria
a provável clientela de Francisco: os estabelecimentos comerciais e as igrejas.
É uma hipótese bem plausível a de que o jovem houvesse freqüentado esses lugares,
tendo em vista a familiaridade com que se estabeleceu no espaço literário, além da
influência que nele exerceram os costumes, a religião e o ambiente clerical. São inúmeros
os poemas, os contos, romances, crônicas e outros textos em que Machado retrata os
interiores das igrejas, seus rituais e, principalmente, o seu encantamento pelos sinos, como
afirma numa crônica de 1892: ―Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas
igrejas‖
14
.
Por outro lado, no extremo oposto, seria levado também ao ambiente mais profano e
materialista da Corte: a Rua do Ouvidor, plena de burburinho e de estabelecimentos
comerciais. Seguindo por essas ambíguas vias, teria sido criado entre santos e tabuletas,
entre o espiritual e o material, entre os sinos e os pregões, entre o latim e o francês.
Admitindo-se tal reconstrução biográfica, podemos dizer que Machado soube tirar
proveito do ensinamento de ambos os ambientes, que, com pouca idade, demonstraria
conhecimento tanto da cultura e da língua francesa, quanto da cultura clássica. Apesar de
não haver freqüentado regularmente uma escola, o seu aprendizado, segundo relatam as
biografias, se completaria com lições de um padre-mestre referindo-se ao pároco da
Igreja da Quinta, no bairro onde residia , havendo ainda relatos de que teria aprendido
francês com o ―forneiro‖ de uma padaria francesa, ou seja, num ambiente comercial.
Quem sabe, atando as duas pontas da experiência da infância, pelos próprios
conhecimentos travados, não teria encontrado o caminho para desenvolver a vocação de
escritor, entre a galhofa das ruas agitadas da região central da Corte e a melancolia dos
sinos das catedrais?
O primeiro emprego como aprendiz de tipógrafo pode ter sido obtido mediante a
iniciativa do pai, que possivelmente desejaria ver o filho ocupando um ofício que lhe
garantisse a sobrevivência e que pudesse aumentar a renda da família. A tarefa, no entanto,
14
ASSIS. Obra Completa. Vol.3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. p. 539 (a partir desta nota, o livro será
citado com a sigla O.C.)
30
não se adequava ao perfil do rapaz, que ele preferia ler o conteúdo das publicações a ter
de imprimi-lo no papel.
Fugindo à vocação do pai, Machadinho teria optado pela atividade intelectual,
talvez à revelia da família, que não poderia vislumbrar futuro num rapaz pobre que
desejava desenvolver uma singular aptidão: ser escritor. Não seria o único, dentro do
contexto familiar dos poetas da nossa literatura, a contrariar os auspícios paternos em favor
do sonho literário: assim aconteceria com Casimiro, Drummond, Bandeira e tantos outros
escritores antes ou depois de Machado, e que negaram a vocação paterna, trocando o
legado familiar, os ―bens e o sangue‖, pela arte e pelo encanto das letras.
Segundo estudos de Ubiratan Machado, a morte de Francisco José de Assis teria
ocorrido em 1864, quando Machado tinha vinte e cinco anos
15
, portanto, bem após a data
fixada pelos biógrafos, que a delimitaram no começo da adolescência do escritor. Essa
informação também desmentiria a hipótese de o jovem ter abandonado Maria Inês, a
madrasta, após a morte do pai, pois, no período em questão, não morava mais com a
família e, ao que tudo indica, garantia a própria subsistência através de um incansável
trabalho, como revisor de provas, poeta, crítico, autor teatral, tradutor, dentre outras
atividades literárias e contribuições nos jornais. Aliás, a estréia de Machado no mundo das
letras, em 1854, coincide com o ano em que Francisco se casa com Maria Inês, cerca de
vinte anos mais nova do que ele. Teria sido esse o motivo principal da busca do jovem pela
emancipação financeira?
Não se sabe muito acerca dessa convivência entre madrasta e enteado, mas o fato é
que Machado, muito afetuoso e apegado aos vínculos familiares e de amizade, jamais fez
qualquer referência a Maria Inês. Ao contrário, morrendo Francisco, o escritor
simbolicamente colocaria mãe e pai unidos, na dedicatória de Crisálidas, seu primeiro livro
de poesia, como uma forma de eternizá-los lado a lado.
Em relação ao pai, especificamente, a lembrança e a dedicatória na obra do autor só
aconteceriam após a morte de Francisco José de Assis. Enquanto viveu, o pai nunca surgiu
em sua produção, seja como temática ou, ainda, em dedicatórias de poemas. Tampouco a
palavra ―pai‖ entraria no vocabulário de seus versos, a não ser em referência a Deus.
15
MACHADO, Ubiratan. Dicionário Machado de Assis. Rio de Janeiro: ABL, 2008. p. 28
31
Traçado o percurso dos primeiros passos de Machado de Assis, convém revelar o
conteúdo das produções dispersas que vão da estréia, em 1854, à publicação de Crisálidas,
em 1864. As temáticas seguidas pelo jovem poeta estão centradas na relação afetiva, seja
amorosa, familiar ou de amizade, o que se revela muito natural nas produções de um poeta
adolescente. Não podemos esquecer de que ter 15 anos naquele tempo não correspondia
sequer à juventude, mas ainda aos últimos suspiros da infância, principalmente para o sexo
masculino.
1.1- Nos enlevos de Calíope
―A palmeira‖ foi o segundo poema do escritor, e o primeiro a ser publicado na
Marmota Fluminense, de Paula Brito. A confissão amorosa na composição é revelada num
monólogo direcionado à palmeira, erguida no cimo do monte: ―Como é linda e verdejante/
Esta palmeira gigante/ Que se eleva sobre o monte!‖. Seria, portanto, a primeira subida do
poeta ao clássico refúgio das musas - a montanha - lugar de inspiração e isolamento. A
árvore, alta e inalcançável, ouve as queixas do poeta e guarda os seus segredos: ―Ó
palmeira, eu te saúdo,/ Ó tronco valente e mudo,/ Da natureza expressão!/ Aqui te venho
ofertar/ Triste canto, que soltar/ Vai meu triste coração.‖
16
No poema ―Ela‖, publicado seis dias depois do precedente, em 12 de janeiro de
1855, o foco principal é, novamente, o louvor a uma dama não nomeada. Entretanto, ao
descrevê-la, o jovem destaca seu gosto por ouvi-la cantar: ―Com sua boca mimosa/ Solta
16
ASSIS, Machado de. ―A palmeira‖. In: SOUSA, J. Galante de. (org). Machado de Assis: Poesia e Prosa.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. p. 17- 19.
32
voz harmoniosa/ Que inspira ardente paixão,/ Dos lábios de Querubim/ Eu quisera ouvir
um sim /Pr‘a alívio do coração!‖
17
Talvez aqui haja um prenúncio do enlevo musical que acompanharia Machado por
toda a vida, tão fortemente marcada pelos espetáculos dramáticos e líricos da juventude e,
principalmente, pelas cantoras e atrizes, suas primeiras musas, que alimentaram as ilusões
amorosas do rapaz. Esses espetáculos casavam tão bem a arte, a beleza feminina e a
música, que desde cedo arrebataram o coração do neófito bardo.
Em 15 de julho do mesmo ano, Machadinho revelaria mais patentemente o gosto
pelas divas do Teatro Lírico em outro poema publicado no jornal de Paula Brito. Mesmo
omitindo o nome da cantora, o poeta manifesta-se mais ousado ao declarar que a
composição ―Teu canto‖ destinava-se ―a uma italiana‖.
Tu és tão sublime
Qual rosa entre as flores
De odores
Suaves;
Teu canto é sonoro
Que excede ao encanto
Do canto
Das aves.
Eu sinto nest‘alma,
Num meigo transporte,
Meu forte
Dulçor;
Se soltas teu canto
Que o peito me abala,
Que fala
De amor.
Se soltas as vozes
Que podem à calma,
Minh‘alma
Volver;
Minh‘alma se enleva
Num gozo expansivo
De vivo
Prazer.
Donzela, esta vida,
Se eu tanto pudera,
17
Idem. p. 22.
33
Quisera
Te dar;
Se um beijo eu pudesse
Ardente e fugace
Na face
Pousar.
A epígrafe do texto - ―É sempre nos teus cantos sonorosos/ Que eu bebo inspiração‖
- refere-se a uma outra composição que seria publicada alguns dias depois, no mesmo
veículo, em 24 de julho. Os versos de ―Meu anjo‖ alternam-se em decassílabos e
hexassílabos, com a franca intenção de variar ritmicamente o canto de amor dirigido à
musa:
És um anjo d‘amor – um livro d‘ouro,
Onde leio meu fado
És estrela brilhante do horizonte
Do bardo enamorado
Foste tu que me deste a doce lira
Onde amores descanto
Foste tu que inspiraste ao pobre vate
D‘amor festivo canto;
É sempre nos teus cantos sonoroso
Que eu bebo inspiração;
Sem procurarmos virtuosismo no bardo de pouca idade, o que podemos inferir da
leitura de seus poemas é que nessas composições há uma intenção clara de variação
rítmica, que revela a índole do poeta de testar as formas do verso, apurar a métrica e
aprimorar a linguagem, ainda que não atingisse plenamente o objetivo e mantivesse a
escolha por rimas banais, em ―ão‖, ―ar‖, ―or‖.
Um outro dado importante para compreendermos a trajetória de Machado no
universo literário e cultural da Corte é a sua opção por uma cantora italiana, o que
comprova que o rapaz de pouca idade freqüentava os espetáculos ricos, embora não
saibamos exatamente de que forma obtinha acesso a tais eventos. Nada mais natural que
estivesse fascinado pelas beldades que ocupavam o centro das atenções na época, e que
observasse de perto o grande assédio que recebiam do público, principalmente dos homens
influentes e endinheirados que as cobriam de jóias, flores e presentes. Assim, Machado se
animava a galanteá-las com versos através dos jornais, como única manifestação de apreço
de um poeta sem posses.
34
O interesse do vate pelas cantoras líricas prosseguiria em franca ascensão, e, em
1856, não esconderia mais a admiração em metáforas, palavras vagas, dissimuladas ou sem
clara indicação da destinatária dos versos. O título da composição traria nome e sobrenome
da musa inspiradora: ―À madame Arsène Charton Demeur‖. No poema, o jovem
implorava para que a cantora não se ausentasse do Brasil.
Oh sol que o céu das artes ilumina,
É cedo o ocaso teu na nossa terra!
Um dia mais, um dia mais de enlevos:
Fica, Charton contigo a luz gozamos;
Sem ti sombria treva a cena envolve!
Nas estrofes seguintes, mostra a sua ambição literária ao desejar para si o gênio de
Musset, para louvar Arsène com a dignidade merecida e ter o seu nome, junto ao dela,
levado à posteridade:
Quem me dera, Charton, sentir na mente,
De Alfred de Musset, o gênio em chamas
De imenso ardor, para com voz altiva
Levantar-te um padrão, mais duradouro
Que o mármor ou que o bronze, que lembrasse
Junto do nome teu, meu nome obscuro!
Mas não posso obter do austero fado
Glória maior que admirar-te o gênio
Num pobre canto, que o teu canto inspira!
Musa gentil dos versos que ora teço,
(...)
Recorda o canto meu, - recorda o vate
Que mais que todos te admira o canto,
Talento e garbo que ostentas na cena!
18
Apesar de declarar sua obscuridade, o ―eu-lírico‖ almeja que a musa recorde o seu
canto, mesmo em outras terras. Se a dama não podia atribuir qualidade à composição, ao
menos a aceitasse como lembrança do mais entusiasta dos seus admiradores. O poeta ainda
arremata os versos com a exaltação da Charton, frente a uma outra cantora da época, com a
qual rivalizava: a Stoltz: ―Grande é Stoltz, mas Stoltzs muitas;/ Charton uma que no
mundo impera!‖.
18
ASSIS.T.P. p. 631.
35
O gosto pela diva revela-se também na produção de Gonçalves Braga, que dedica-
lhe uma série de seis poemas no livro Tentativas poéticas, culminando na composição de
despedida, com data de 16 de março de 1856. indicações no livro de que muitos desses
poemas foram escritos no álbum de Charton, o que demonstra certa proximidade entre ela e
o jovem poeta. É provável que Machado e Braga freqüentassem os mesmos espetáculos, os
mesmos salões, e pertencessem à fiel falange dos ―chartonistas‖. Talvez, influenciado pelo
amigo, Machado tenha-se animado a oferecer o poema à dama, por ocasião de sua
despedida dos palcos brasileiros.
O sucesso que as cantoras líricas provocavam naquele tempo também foi tema de
umas das crônicas de José de Alencar, de 17 de setembro de 1854. Em Ao correr da pena,
o escritor fala do assédio a essas damas e de como muitos senhores chegavam a perder a
cabeça, pelo enleio de presenteá-las. Para exemplificar tal apreço, relata o episódio de
um dos admiradores da Charton, surpreendido pelo cancelamento do espetáculo lírico por
causa de uma indisposição da estrela principal.
Um velho diletante do meu conhecimento, ainda do tempo do magister
dixit, e para quem a palavra da autoridade é um evangelho, teve a infeliz
lembrança de justamente nesta noite encomendar um magnífico buquê
para oferecer à Charton no fim da representação. Apenas se declarou o
relâche par indisposition, o homem perdeu a cabeça, e, o que foi pior,
com os apertos da saída perdeu igualmente a bengala, e deixou ficar,
com os ares de novo um chapéu comprado pela Páscoa.
19
Em A mão e a luva, há uma descrição detalhada do que eram as falanges de
admiradores, que, segundo afirma no relato, realizavam uma verdadeira ―batalha campal‖
em defesa de suas musas, no caso, cantoras líricas. O episódio faz parte de um dos
capítulos do romance de Machado e é narrado com dicção clássica, parodiando cenas da
Ilíada. O trecho, além de mostrar a rivalidade entre dois ―partidos‖ - o dos seguidores de
Mlle. Lagrua e o dos admiradores de Mlle. Charton , aponta também para a possibilidade
de Machado ter sido testemunha ocular desses acontecimentos.
A Corte divertia-se, como sempre se divertiu, mais ou menos, e para os
que transpuseram a linha dos cinqüenta divertia-se mais do que hoje,
19
ALENCAR, José. Teatro completo. Vol. 1. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro, 1977. p. 47.
36
eterno reparo dos que não dão à vida toda a flor dos seus primeiros
anos. Para os varões maduros, nunca a mocidade folga como no tempo
deles, o que é natural dizer, porque cada homem as coisas com os
olhos da sua idade. Os recreios da juventude não são decerto igualmente
nobres, nem igualmente frívolos, em todos os tempos; mas a culpa ou o
merecimento não é dela, a pobre juventude, é sim do tempo que lhe
cai em sorte. A Corte divertia-se, apesar dos recentes estragos do cólera -;
bailava-se, cantava-se, passeava-se, ia-se ao teatro. O Cassino abria os
seus salões, como os abria o Clube, como os abria o Congresso, todos três
fluminenses no nome e na alma. Eram os tempos homéricos do teatro
lírico, a quadra memorável daquelas lutas e rivalidades renovadas em
cada semestre, talvez por um excesso de ardor e entusiasmo, que o tempo
diminuiu, ou transferiu, Deus lhe perdoe, a coisas de menor tomo.
Quem se não lembra, ou quem não ouviu falar das batalhas feridas
naquela clássica platéia do Campo da Aclamação, entre a legião
casalônica e a falange chartônica, mas sobretudo entre esta e o regimento
lagruísta? Eram batalhas campais, com tropas frescas, e maduras
também, apercebidas de flores, de versos, de coroas, e até de
estalinhos. Uma noite a ação travou-se entre o campo lagruísta e o campo
chartonista, com tal violência, que parecia uma página da Ilíada. Desta
vez, a Vênus da situação saiu ferida do combate; um estalo rebentara no
rosto da Charton. O furor, o delírio, a confusão foram indescritíveis; o
aplauso e a pateada deram-se as mãos, e os s. A peleja passou aos
jornais. (...)
Os que escaparam daquelas guerras de alecrim e manjerona hão de sentir
hoje, após dezoito anos, que despenderam excessivo entusiasmo em
coisas que pediam repouso de espírito e lição de gosto.
20
No contraponto entre os hábitos culturais do tempo de juventude e os do momento
da escrita, constata-se a semelhança entre o contexto narrado no romance e a realidade
vivida pelo escritor em sua época de rapaz. Mistura-se ao relato do narrador a nostalgia do
passado, frente às mudanças de comportamento dos jovens do seu presente. No entanto, o
olhar não é de condenação, porém de constatação: ―... mas a culpa ou o merecimento não é
dela, a pobre juventude, é sim do tempo que lhe cai em sorte.‖ O jovem Machado
tirara, portanto, o bilhete premiado, por ter nascido em época tão fecunda de nossas letras e
por encontrar lugar e oportunidade ideais para o pleno desenvolvimento de seu gênio.
Mas a maneira isenta de o escritor tratar a história, principalmente a dos dias idos e
vividos, fez com que pusesse na fala do narrador uma crítica ao passado, mesmo após
recordá-lo com tanto gosto. Declara, com consciência de escritor maduro, que houve
―excessivo entusiasmo‖. Assim resumia os arroubos juvenis, lembrando-se, certamente, das
20
ASSIS, Machado de. A mão e a luva. In:____. O.C. Vol 1. p. 204-205.
37
ações do passado, dos poemas que dedicou com veemência e dos arrebatamentos de
outrora, motivado pelas melodiosas e apaixonantes vozes das musas de seu tempo.
À madame de La Grange dedicaria um poema em 1859, louvando o talento da
cantora com belos versos: ―Talhou-te larga a púrpura do gênio/ A mão severa e pura dos
destinos,/ Imprimiu-te na voz a harpa de um século/ E a alma te encarnou em sons
divinos.‖
Em crônicas posteriores, da década de 70, não negaria ter carregado nos ombros a
célebre Augusta Candiani, como um de seus mais fervorosos admiradores. Certamente
essas foram cenas saudosas que seriam relembradas por Machado, da mesma forma que as
cenas descritas no romance acerca da ―guerra‖ entre lagruístas e chartonistas.
Escreveria algumas dedicatórias particulares, como o poema ―Um nome‖ no álbum
de Luísa Amat, outra cantora lírica, esposa do empresário e fundador da Imperial Academia
de Música, José Amat. Estava o rapaz infiltrado nesse ambiente, passeando pelos salões,
indo aos bailes e saraus onde desfilavam as mais aclamadas atrizes e cantoras da época. A
presença de Machado, desde cedo, no meio rico e teatral, demarcaria a influência desses
dois ambientes em sua obra.
Ainda nos poemas dispersos, encontramos composições dedicadas a atrizes, como
D. Gabriela da Cunha, amor cultivado em prosa e verso, seja com elogios nos jornais da
época, seja através de poemas fervorosos. A admiração seria alimentada pela diva com
declamações e interpretações especiais que ela realizaria de alguns dos poemas do jovem
Machadinho, além de atuar, posteriormente, como protagonista de ―O caminho da porta‖,
peça machadiana.
Em 1859, o escritor dedicaria à musa do teatro o poema ―A D. Gabriela da Cunha‖,
em que não pouparia elogios à atriz. Assim conclui o texto: ―Faz uma flor de cada espinho
acerbo,/ Tira de cada treva um arrebol;/ Para fazê-la abre teus lábios, verbo!/ Para tirá-la
abre os seus raios, sol!‖
21
.
Em 1861, ofereceria ainda um outro poema à atriz, e à filha desta: Ludovina
Moutinho. A insistência do poeta em ofertar composições a Gabriela da Cunha e conceder-
lhe tantos elogios através dos jornais indicaria, segundo biógrafos, uma paixão recolhida
que culminaria na composição do poema ―Versos a Corina‖, sendo esta um pseudônimo
21
ASSIS.T.P. p. 694.
38
dado pelo autor à célebre artista. Nada comprova a concretização das relações entre
Gabriela e Machado, mas fica muito clara a admiração do poeta, no poema de 1861:
Enfim! Sobre esta cena, a tua e nossa glória,
Onde a musa eloqüente e severa da história
Toma-te a mão, e te abre à fascinada vista
O campo do futuro, ó grande e nobre artista,
Vejo-te, enfim! Ermo, calado e nu,
Esperava a madona e a madona eras tu.
Mercê do mar sereno e do lenho veloz,
A mesma, a mesma sempre, eis-te enfim entre nós!
Eras daqui. Que importa uma ausência? O teu nome
A ausência não descora, o ouvido não consome,
Da lembrança e da luz que ficaram de ti,
Andasses longe, embora, ele vivia aqui.
O que é o mar? Barreira inútil. A lembrança
Tem asas e a transpõe. E depois a esperança
De ver no mesmo céu a mesma estrela dantes
Punha no ânimo a paz. Aos louros verdejantes
De que ornavas a fronte outros inda juntastes.
Bem-vinda sejas tu, tu que por fim voltastes
No brilho e no vigor dos teus dias melhores
Luzente de mais luz, c‘roada de mais flores
E que vens, assentando outras datas gloriosas,
Dar ao palco viúvo a melhor das esposas.
Apesar de não dispormos de dados mais concretos que associem o nome de
Gabriela ao de Corina, uma correspondência entre o período em que Machado compõe
elogios e versos à artista e a época em que publica as primeiras estrofes do poema das
Crisálidas. Não se restringiria aos versos de admiração à diva: ainda escreveria, em 1862,
um drama intitulado ―Gabriela‖, cujos originais se perderam.
Nas páginas finais do seu primeiro livro de poesia, o autor colocaria uma nota
instigante sobre o poema ―O dilúvio‖. Machado destaca um verso dessa composição- ―E
ao som dos nossos cânticos‖- e faz a seguinte afirmação: ―Estes versos o postos na boca
de uma hebréia. Foram recitados no Ateneu Dramático pela eminente artista D. Gabriela da
Cunha, por ocasião da exibição de um quadro do cenógrafo João Caetano, representando o
dilúvio universal‖.
Na verdade, a hebréia a que se refere Machado é a Sulamita, noiva de Salomão e
personagem dos Cânticos bíblicos. O livro é a exaltação da primeira noite do rei com sua
39
esposa. Através de metáforas, a relação amorosa é descrita em detalhes neste livro bíblico,
interpretado posteriormente como a relação entre Cristo e a Igreja.
Machado teria, portanto, aproveitado a oportunidade para fazer Gabriela da Cunha
declamar o seu poema, colocando-a em situação semelhante a Sulamita, cantando os
poemas de amor compostos pela lira de Salomão. Talvez quisesse fazer dela uma nova
―hebréia‖, papel encenado pela atriz na peça ―O dilúvio universal‖, lendo os versos de
amor de seu ―esposo‖, disfarçados em canto místico.
Um estudo aprofundado das metáforas eróticas do poema ―O dilúvio‖, declamado
por Gabriela da Cunha, foi efetuado em nossa pesquisa anterior, na dissertação de
mestrado
22
. Atentando para o caráter aparentemente religioso do poema, embora construído
com intenção oposta, ―o dilúvio‖ machadiano é um desaguar de metáforas amorosas que,
apropriadamente, declamadas pela atriz, realizariam uma fusão entre a artista e a esposa de
Salomão, a hebréia. Concretizaria assim os auspícios dos versos aqui transcritos: Dar ao
palco viúvo a melhor das esposas‖.
Em 1866, data da partida definitiva da artista para Portugal, Machado inseriria mais
uma vez uma referência a Corina na peça Os deuses de casaca. O personagem Apolo,
figura divina associada aos poetas, sente atração pela mulher do pai, Júpiter, cultivando,
assim, um amor proibido. Cupido tenta convencê-lo a abdicar da divindade para se tornar
humano e unir-se a Juno, que havia decidido ser uma mortal. Assim Cupido a descreve: ―É
bela ainda como outrora,/ Bela, e altiva, e grave, e augusta, e senhora. (...) Oh, vaidade!
Humana embora, Juno é ainda divina.‖ Apolo pergunta então qual o nome que teria na terra
e Cupido responde: ―Um [nome] mais belo: Corina!‖.
Inegavelmente, o poeta nutriu por Gabriela Augusta da Cunha um forte sentimento,
denunciado nos versos da peça ao referir-se a Juno como ―augusta e senhora‖, objeto
proibido no campo dos desejos do jovem Apolo, e tão ―augusta‖ quanto aquela. Assim
como o deus grego Apolo, o poeta fluminense estaria arriscando sua ―divindade‖, sua
vocação poética, para seguir o amor de uma dama mais velha e comprometida?
22
AMPARO, Flávia Vieira da S. do. Um verme em botão de flor. Dissertação de Mestrado em Literatura
Brasileira, UFRJ, 2004.
40
No prefácio, por sua vez, o escritor atribuiria à ausência das damas o principal
motivo de fracasso da obra: ―Damas, sem vosso amparo, a obra se acabou!‖
23
A partir de
então, esqueceria Corina/Gabriela, e buscaria um amor mais realizável, que pudesse ser
correspondido, logo, sem os sobressaltos dos amores proibidos.
1.2 - A primeira ponta da vida
alguns parágrafos, destacamos a presença dos poetas clássicos na dicção
machadiana, principalmente por influência de Francisco Braga. Em 1856, percebe-se uma
metamorfose nos versos de Machado, provavelmente sob o influxo de novas leituras e de
autores que entravam no cardápio do poeta aprendiz. O jovem tendia a efetuar leituras de
várias fontes, e seu conhecimento se ampliava para além do campo português, com a
inclusão de autores franceses como Victor Hugo ou espanhóis como Manuel José Quintana.
Neste período também se deixaria marcar pelo sentimento religioso e patriótico de um João
de Lemos, em poemas como Consummatum est!‖, e pela religiosidade afetiva e
melancólica de um Cowper, no lamento pela ausência da mãe.
A partir de então, a face romântica apareceria com freqüência bem maior e chegaria
a dominar os versos machadianos. Apesar disso, ainda se perceberia uma alternância entre
o sacro dos hinos religiosos, do sentimento patriótico e da poesia profética, e os temas
amorosos, próprios do estilo romântico, portanto mais profanos, de poemas como
Cognac‖, inspirado na lírica alvaresiana, principalmente nas ―Idéias íntimas‖.
23
ASSIS. ―Os deuses de casaca‖. In: _____. Machado de Assis: teatro. vol 2. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 2004. p.120
41
Desse período, seguindo a ascensão do bardo à montanha poética, encontramos
―Minha musa‖, mesmo título de uma das composições de Álvares, que define um pouco do
que seria o escritor em 1856, tomado pelos sentimentos místicos e religiosos e, ao mesmo
tempo, pelos amorosos e melancólicos. Dependia, talvez, de como a musa se apresentasse
ao poeta, se na forma de saudade da mãe e da irmã, ou se nas vaporosas imagens femininas.
MINHA MUSA
A Musa que inspira meus tímidos cantos
É doce é risonha, se amor lhe sorri;
É grave e saudosa, se brotam-lhe os prantos,
Saudades carpindo, que sinto por ti.
A Musa que inspira-me os versos nascidos
De mágoas que sinto no peito a pungir,
Sufoca-me os tristes e longos gemidos,
Que as dores que oculto me fazem trair.
A Musa que inspira-me os cantos de prece,
Que nascem-me d‘alma, que envio ao Senhor,
Desperta-me a crença, que à vezes dormece
Ao último arranco de espr‘ranças de amor.
A Musa que o ramo das glórias enlaça,
Da terra gigante meu berço infantil,
De afetos um nome na idéia me traça,
Que o eco no peito repete: - Brasil!
A Musa que inspira meus cantos é livre,
Detesta os preceitos de vil opressão,
O ardor, a coragem do herói lá no Tibre,
Na lira engrandece, dizendo Catão!
O aroma da espr‘ança, que n‘alma recende,
É ela que aspira, no cálix da flor;
É ela que o estro na fronte me acende,
A Musa que inspira meus cantos de amor!
24
O poeta varia de tema de acordo com o gosto da ―Musa‖. Assim, cada estrofe
delimita uma temática. Enquanto as duas primeiras estrofes dividem-se entre o riso e a
melancolia dos amores perdidos e dos revelados, a terceira trata da religiosidade,
mostrando que a musa é quem alimenta a crença religiosa, não deixando o eu-lírico
24
ASSIS. T.P. 634.
42
esmorecer mesmo diante dos reveses do cotidiano. Na quarta estrofe, a face patriótica é
manifesta através da exaltação da terra que lhe serve de berço, enquanto as duas últimas
exaltam a liberdade do homem e a inspiração criadora, demarcando a democracia política
unida à liberdade de expressão literária. De fato, assim como o poema vai-nos revelando as
nuances da musa, inteiramo-nos das temáticas mais trabalhadas nos primeiros poemas de
Machado de Assis.
De 55 a 56, o escritor teria diversos poemas publicados na Marmota Fluminense, de
Paula Brito. Pelo espaço concedido ao jovem autor, podemos dizer que o editor foi, sem
dúvida, o primeiro a reconhecer o talento de Machado, ainda em formação. Ele permitiu até
mesmo que, sob o pseudônimo de As., o aprendiz trouxesse a público seus primeiros
esboços críticos acerca da literatura em uma série de três artigos intitulados: ―Idéias vagas‖,
onde falava sobre a poesia, o teatro e a religião, respectivamente em junho, julho e
setembro de 1856.
25
Através desses textos, conhecemos as concepções do novel escritor acerca da
poesia, como obra da inspiração do Criador. A poesia para o Machado de então era
inspiração divina, o sopro de Deus interpretado pela genialidade do poeta. O articulista
esboçava a sua concepção literária: uma pincelada clássica na imaginação romântica.
Começa o texto falando da Grécia, de Homero, dos louros que coroavam os poetas de
outrora e de como o valor da lírica havia declinado no decorrer dos séculos. Enfatiza os
sofrimentos de Camões e fala de sua rejeição no solo pátrio. Termina por definir o que seria
a missão do poeta e como esse papel era incompreendido em seu tempo:
Ele tem uma missão a cumprir nesse mundo uma missão santa e nobre,
porque é dada por Deus! É um pregador incansável um tradutor fiel
das idéias do Onipotente.
O mundo, porém, não compreende aquela alma tão grande como o
universo tão divina como a mais bela porção do espírito de Deus.
A visão religiosa do fazer poético machadiano obedecia, portanto, a um conceito
milenar. Para Machado, o poeta, outrora coroado de louros na Grécia, tornar-se-ia um
deslocado no ambiente literário daquele momento. A sina do poeta seria sofrer, apesar de
25
MASSA, Jean-Michel. Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: MEC; Instituto Nacional do Livro,
1965. p. 29 a 35.
43
tradutor das palavras de Deus: aquele século faria do intérprete divino um renegado visão
que se coadunava com o pensamento romântico da segunda geração de poetas.
No último parágrafo do texto, Machado se dirige aos leitores para pedir perdão por
sua incapacidade. aqui se estabelece uma relação do escritor com seu público, recurso
que utilizaria por toda a vida. Encerra o texto agradecendo aqueles que lhe abriram espaço
no jornal para expor suas idéias, ainda que ―vagas‖, como as chamaria: ―Aqui terminam as
minhas idéias sobre a poesia, e sobre os poetas. Perdoai-me, leitores, a minha fraca
linguagem; é de um jovem que estréia nas letras, e que pede proteção e benevolência.
Ainda existem alguns Mecenas piedosos: animai o escritor.‖
26
Certamente, o ―Mecenas‖
era Paula Brito, apoiando as iniciativas do jovem Machado. Seria essa a primeira investida
do autor no campo da crítica, com apenas 16 anos.
No artigo seguinte, tratando do teatro, o aprendiz de crítico faria oposição entre
duas grandes nações: França e Inglaterra. Colocaria a primeira como pátria da criação, da
inspiração e da cultura, enquanto condenaria os avanços científicos ingleses, segundo ele
apenas concentrados nas questões materiais do progresso. O tom profético do poeta exalta o
espírito inventivo francês como obra espiritual e divina, declarando: Viva Deus!‖. Por
outro lado, usando a dicção bíblica, imitando o discurso de Cristo contra Jerusalém e do
apóstolo João contra a Babilônia, dirige-se, nestes termos, à pátria da Revolução Industrial:
Inglaterra! Inglaterra! Rainha da Indústria! centro de toda revolução
material! Eis-te desmentindo a distância [invenção das locomotivas]
com teus dourados pensamentos de civilização! Eis-te aí excêntrica e
vaidosa, falando em progressos, mas ocultando debaixo dessas idéias
progressistas os projetos de uma desmedida ambição! Culpado!... Evitai
que no meio de teus banquetes com o último rei da Babilônia alguma mão
invisível trace a tua sentença de morte!
No meio, pois, destes desvarios, de progressos e civilização, é o teatro
olhado como o verdadeiro lugar de distração e ensino; - o verdadeiro meio
de civilizar a sociedade e os povos.
27
O episódio do banquete citado no trecho é narrado no livro bíblico de Daniel, onde
o rei de Babilônia, Belsazar, retira os instrumentos sagrados, saqueados pelo pai em
Jerusalém, para serem usados no seu festim. Subitamente uma mão invisível, de que se
26
ASSIS, Machado de. Idéias vagas. Apud: MASSA. Dispersos de Machado de Assis. Op. cit. p. 31.
27
Idem. p. 31-32
44
avistam os dedos, surge e escreve sentenças na parede contra o reinado de Belsazar. Diante
do pavor do rei, ninguém consegue entender o que ali foi escrito, apenas o profeta Daniel é
capaz de interpretar os dizeres.
28
Ainda aqui, a temática é romântica se pensarmos no The Vision of Belshazzar‖, de
Byron. No entanto, enquanto no poema do bardo inglês há certa identificação com o festim
de Belsazar, em contraponto com as mãos que vêm ―estragar o prazer‖ da festa, Machado
protesta contra os ingleses e apóia a punição do rei babilônico. Um protesto contra Byron e
sua nação? Talvez não se identificasse com a face maldita dos românticos, embora adotasse
outras vertentes em sua lírica, assim como exaltaria a poesia e o gênio de Álvares de
Azevedo por toda vida, embora lhe rejeitasse a prosa com veemência.
As referências de Machado na sua primeira crítica literária chamam-nos a atenção,
pois expõem alguns pontos interessantes: primeiramente a formação religiosa do rapaz,
que, além de entender a poesia como inspiração divina, assume a posição de profeta para
condenar o progresso inglês, o que denota uma tendência conservadora. Outro ponto é a
afirmação de que a arte, no caso, o teatro, seria um meio civilizador, hipótese que
sustentaria posteriormente nas suas ―Idéias sobre o teatro‖, de 1859.
Encontraremos essa mesma visão - do papel da arte na educação das massas - em
alguns escritos da década de 60, e também nos pareceres do Conservatório Dramático,
prova de que o escritor não a abandonaria tão cedo, se é que a deixou algum dia. Talvez a
arte assumisse definitivamente o papel de redentora do homem, como a única sobrevivente
do ―naufrágio das ilusões‖.
No terceiro artigo das Idéias vagas, temos, enfim, um retrato, senão do crítico, do
pregador por excelência. Discorrendo sobre grandes oradores como Cícero e Monte
Alverne, Machado traça um perfil da religião através do conceito de bem e mal, evocando
os mártires da Idade Média e relembrando o misticismo de Chateaubriand. Chega a clamar:
―Religião, inspirai-me!‖. Seu objetivo é tratar da eloqüência de Monte Alverne, o que
mostra sua franca adesão, naquele momento, ao catolicismo:
Mont‘Alverne, o homem eloqüente e virtuoso, cuja vida se tem passado
na austeridade e solidão do Claustro, é uma prova da solidez dos nossos
28
O episódio consta no livro de Daniel 5: 1-29.
45
princípios religiosos! Se o seu horizonte acaba na parede sombria de uma
cela humilde, os seus limites intelectuais chegam até Deus, isto é, perdem-
se no infinito!
29
As palavras de Machado denunciam sua formação religiosa, o que confirma a
hipótese de que as lições iniciais do jovem aconteceram em ambiente eclesiástico. Aliás, a
nota sobre o poema ―Monte Alverne‖, dedicado ao padre Silveira Sarmento e que consta
nas Crisálidas, mostra claramente a influência que o ambiente religioso exerceu em sua
formação.
A dedicatória desta poesia ao padre-mestre Silveira Sarmento é um justo
tributo pago ao talento, e à amizade que sempre me votou este digno
sacerdote. Pareceu-me que não podia fazer nada mais próprio do que
falar-lhe de Monte Alverne, que ele admirava, como eu.
Não nesta poesia um tributo de amizade e de admiração:
igualmente a lembrança de um ano de minha vida. O padre-mestre, alguns
anos mais velho do que eu, fazia-se nesse tempo um modesto preceptor e
um agradável companheiro. Circunstâncias da vida nos separaram até
hoje.
Até esse momento, a influência dos clássicos e dos românticos mais místicos e
religiosos seriam a fonte de inspiração de Machado, talvez porque as lições do padre-mestre
ainda estivessem muito vivas em sua memória. Não se restringiria a esse tipo de devoção
mística por muito tempo. A poesia dos ultra-românticos exerceria em seu espírito
determinado impacto e passaria a dissipar essa devoção inicial.
O crescente interesse de Machado pela lírica romântica seria visível nos poemas de
56 e 57, certamente pelo contato que passaria a estabelecer com poetas, seus
contemporâneos, que adotavam a escola romântica como modelo em suas composições.
Pelo relato que nos chegou através do prefácio das Crisálidas, tomamos
conhecimento de que, por volta deste período, Machado fazia parte da sua primeira
―panelinha literária‖, encabeçada pelo advogado e escritor Caetano Filgueiras. O doutor
reunia em seu escritório os poetas Casimiro de Abreu, Machado de Assis, J. Joaquim
Cândido de Macedo Júnior e Francisco Gonçalves Braga, às vezes contando também com a
presença de Augusto Emílio Zaluar.
29
MASSA. Dispersos de Machado de Assis. Op. cit. p. 35
46
Posteriormente, em 1858, chegaria ao Brasil o poeta satírico português Faustino
Xavier de Novaes, irmão de Carolina, a futura esposa de Machado de Assis. Não se sabe ao
certo como os dois poetas foram apresentados, mas é possível que Faustino tenha
participado de algumas das reuniões no escritório de Filgueiras, provavelmente por
intermédio de Casimiro de Abreu, de quem era amigo.
Alguns biógrafos definem o ano de 1857 como o do início desses encontros entre
os poetas do grupo de Filgueiras, mas tudo indica que o contato entre os membros do grupo
tenha ocorrido anteriormente, e que eles se encontravam, desde 1855, na Tipografia de
Paula Brito. A amizade não ficaria circunscrita ao período desses encontros, ultrapassaria
os limites do escritório do advogado e seria mantida por longos anos, até que a vida, ou a
morte, os dispersasse. Prova disso foi a relação afetuosa entre Faustino e Machado, que
seriam parceiros também no periódico ―O futuro‖, fundado pelo primeiro, amizade que
culminaria no enlace matrimonial entre a irmã do poeta e o escritor fluminense, embora
aquele não mais estivesse vivo para testemunhar a união.
Em outras publicações, atestamos novamente a permanência dos vínculos. Não
podemos nos esquecer de que Faustino, Zaluar, Machado e Filgueiras foram colaboradores
do Jornal das Famílias, de Garnier, na década de 60, e que todos escreveram em verso ou
em prosa nessa publicação destinada ao público feminino, sem contar os artigos de crítica e
os prefácios escritos por Machado na ocasião do lançamento dos livros de Zaluar, de
Filgueiras, e nas publicações póstumas da obra de Faustino.
Concentrando-nos especificamente nos anos de estréia, podemos afirmar que a
atmosfera romântica teria predominância nas reuniões do escritório de Filgueiras,
refletindo-se diretamente na produção machadiana de então. Seria também um marco
importante na vida do jovem, que entraria em contato regularmente com outros poetas,
alguns com formação acadêmica e obras publicadas, e que, certamente, tinham acesso a
livros e leituras que enriqueceriam a experiência e o aprendizado do curioso novato.
O próprio Zaluar foi, entre 1852 e 1854, diretor do educandário de meninos
Colégio de São Sebastião‖, que depois seria transformado em ―Colégio Zaluar‖. A
instituição garantia preparação para o comércio e para as academias do Império. Talvez sob
o pretexto de receber instrução comercial os jovens ali se reunissem, embora a literatura,
pelos relatos que nos chegaram, acabasse predominando nesse ambiente de estudo.
47
Um ponto importante da lírica machadiana, nas poesias dispersas do início da
carreira, é a série de quatro poemas em que lamenta a morte da mãe: ―O meu viver‖,
―Saudades‖, ―Lágrimas‖ e ―Minha mãe‖, além no poema ―Um anjo‖, em homenagem a
Maria, sua falecida irmã. A insistência do poeta no tema indicaria as tendências absorvidas
nos encontros do escritório de Filgueiras, e, ao mesmo tempo, aponta as leituras que os
poetas deviam trazer para essas reuniões.
No poema ―Um anjo‖, dedicado à irmã, a esperança numa outra vida e a
religiosidade são o porto onde o poeta busca alento para suportar as dores pessoais. Ele
focaliza o motivo de sua tristeza, que, por ser aguda, transborda no papel, mas encontra
também na escrita o refúgio, através de um desabafo sentimental. A morte, sob a ótica do
transcendental, funciona como escape às angústias e à desesperança. O consolo numa outra
vida, num lugar etéreo e perto de Deus, é o bálsamo que acalenta o poeta ao recordar a
morte da menina: ―Foste a rosa desfolhada/ Na urna da eternidade,/ Pr‘a sorrir mais
animada,/ Mais bela, mais perfumada/ Lá na etérea imensidade‖.
30
Encontramos nessa composição a epígrafe: ―Se deixou da vida o porto/ Teve outra
vida nos céus‖. O trecho faz parte de um poema de Zaluar incluído no livro Dores e flores,
publicado pela tipografia de Paula Brito em 1851. Nos versos do poeta português,
encontramos uma lamentação pela morte prematura do Príncipe Imperial D. Pedro Afonso,
filho de D. Pedro II, ocorrida no ano de 1850. Num curto espaço de tempo, seria o segundo
príncipe a morrer, ainda nos primeiros anos de vida, para tristeza da família real.
Identificando sua dor com a do monarca, Machado honraria a memória da irmã, também
morta prematuramente, com esses versos de Zaluar dirigidos à realeza.
Ainda no poema ―Um anjo‖, Machado manifestaria, mais patentemente, a
influência da lírica de Álvares de Azevedo, retomando a idéia presente no poema
―Anjinho‖, da Lira dos vinte anos, que trata da morte de uma criança como forma de
libertação da alma pura, que retornaria para o lugar de onde proveio.
Seguindo a lírica alvaresiana, Machado lamentaria mais pungentemente a perda da
mãe em poemas que denotam uma grande amargura, a solidão e o franco desejo de morrer
para unir-se a ela novamente no céu. O poeta maldiz a existência, seguindo a tendência da
geração mal-de-siècle, sentindo a morte rondá-lo em tenra idade.
30
ASSIS. T.P. p. 637.
48
Assim diria em ―O meu viver‖, que poderia muito bem ter o substantivo do título
trocado pelo antônimo: ―Quero despir-me desta vida má,/ Quero ir viver com minha mãe
nos céus,/ Quero ir cantar os meus amores todos,/ Quero depois em ti pensar, meu Deus!‖.
Continuaria o lamento no poema ―Saudades‖, título recorrente na produção do
período, em que dois temas caros aos ultra-românticos - juventude e morte tornam-se os
pontos centrais para onde convergem os auspícios do poeta. O detalhe que vem enriquecer
a análise dos primeiros passos de Machado é o acréscimo de uma figura feminina, um
amor, ao lado da mãe. Assim, usaria a sua orfandade para intensificar a dor amorosa e, de
certa forma, justificar o desejo de morrer. Trataria a amada por ―meu anjo‖, em contraponto
à expressão ―minha mãe‖, trabalhando dois planos no verso: o da segunda pessoa ti- e
o da terceira pessoa ela.
Tenho de ti saudade, só lastimo
Ter cedo minha mãe perdido a vida;
Choro tanto por ela... por ti sofro
Minha vida, mulher, é tão sentida.
Parece que no céu bem negra nuvem
Já marcou meu destino pelo mundo!
Tenho de ti saudade, ó meu anjo.
No meu peito o pesar é tão profundo!
Se perdi minha mãe sendo tão moço,
Se padeço de ti tanta saudade,
Não posso existir no mundo triste;
É melhor eu morrer nesta idade!
É curioso o recurso empregado pelo poeta nas primeiras investidas no campo ultra-
romântico. Talvez não conseguisse fingir uma dor amorosa tão forte que justificasse o
desejo de morrer. Então, situou a mãe junto à mulher amada como justificativa para tal
desígnio. Entretanto, deixaria marcadas as diferenças existentes entre as duas: ―Choro
tanto por ela... por ti sofro‖ versos que revelam, pela presença do advérbio de
intensidade, que a perda da mãe produzia uma contrição maior que a ausência do amor de
uma mulher.
Temos a impressão de que o poeta procurava, nesse período, um motivo forte que o
fizesse produzir poemas melancólicos, daí a insistência no tema da morte materna, talvez a
49
maior perda de sua vida, que poderia lamentar com veracidade sem sair da temática ultra-
romântica.
O poema ―Lágrimas‖, também dirigido à mãe, nos faz lembrar os versos de
―Lembrança de morrer‖, de Álvares de Azevedo, quando o bardo da Lira dos vinte anos
declara o motivo maior de sua saudade: ―Só levo uma saudade é dessas sombras/ Que eu
sentia velar nas noites minhas... / De ti, ó minha mãe, pobre coitada/ Que por minha tristeza
te definhas!‖. No poema de Álvares, no entanto, o eu-lírico tem a mãe junto ao leito para
ampará-lo no sofrimento e seria essa a boa recordação que deixaria no mundo.
Ao contrário da evocação alvaresiana, mas nela se inspirando, o eu-lírico maldiz a
vida exatamente por estar sozinho no mundo e por ter perdido a mãe, não conseguindo
superar a saudade que dela sente:
Há uma dor que não se apaga d‘alma,
Lágrima triste que pendente existe
Da face do infeliz:
É gemido que mata e não se acalma,
Que torce o coração, e se persiste,
A existência maldiz.
Essa dor eu senti quando vi morta
Minha terna mãe... perdão meu Deus.
Se quero já morrer;
Esta vida de dor, perder que importa?
Quero com minha mãe morar nos céus,
Com os anjos viver.
Eu perdi minha mãe... era uma santa,
Que tinha a minha vida nesse mundo,
Minh‘alma e meu amor!
E foi o meu pesar, minha ânsia tanta,
Que a vida quis deixar num ai profundo,
Morrer também de dor.
31
Portanto, para o poeta estreante, não era a tristeza de amor a maior motivação para
maldizer a existência, mas a tragédia real que o marcaria desde menino, das perdas e das
lacunas familiares. Também não conseguia deixar de evidenciar a formação religiosa, que
contrasta com o ambiente lúgubre e maldito dos românticos que intenta seguir. Chega a
31
ASSIS. T.P. p. 640
50
desdizer a pretensão inicial do poema, presente nos versos: ―a existência maldiz e ―se
quero já morrer‖, ao interpô-los com o verso: ―perdão, meu Deus!‖. A insistência na
temática da morte, pelo motivo apontado, é justificada também com palavras que abonam a
figura materna: ―era uma santa‖ –, o que torna autêntico o desejo do filho de morrer por ela,
transformando a blasfêmia e a maldição em adoração mística e benévola.
Seja por influência da leitura de poetas malditos ou por vivenciar acontecimentos
tão trágicos na vida - ou por ambos os motivos -, Machado não tinha anteriomente escrito
versos que tratassem de modo tão pungente da morte e da melancolia como esses dedicados
à mãe. Seria um ensaio para a fase seguinte, a partir de 1857, em que o poeta se deixaria
guiar pelo spleen romântico e pela, embora atenuada, voluptuosidade amorosa.
O outro texto dedicado ao tema é ―Minha e‖, que, dessa vez, apresenta uma
suavização da morte pela evocação sentimental da memória, enfatizando também o vetor
religioso, como já se percebia nas outras composições. O eu-lírico reza pela mãe e recebe a
proteção dos clamores que ela do céu lhe envia: canção atenuada e sem os acessos
melancólicos dos outros versos. Machado escreve com delicadeza e lirismo, naquela que é,
sem dúvida, a mais bela composição dedicada à memória da mãe.
O jovem encerra o poema não pedindo a morte como termo à vida, mas cedendo as
possíveis glórias e louros literários do futuro, aquilo que mais almejaria como escritor, para
ter a mãe ao seu lado novamente.
Por ela rezarei eternamente
Que ela reza por mim no céu também:
Nas santas rezas do meu peito ardente
Repetirei um nome: - minha mãe!
Se devem louros ter meus cantos d‘alma
Oh! do porvir eu trocaria a palma
Para ter minha mãe!
32
A pretensão de Machado, neste caso, parece ser a evocação da infância, outro tema
caro aos românticos, que seguindo a linha de ―Meus oito anos‖ de Casimiro de Abreu.
Novamente, Machado teria dificuldades em trazer cenas da infância que remetessem às
boas lembranças, às saudades, aos felizes tempos de criança. Teria que recorrer à mãe como
única maneira de trazer para o presente uma imagem positiva da infância.
32
ASSIS. T.P. p. 642.
51
Mesmo na maturidade, a fase preliminar da vida não lhe seria tema recorrente: pelo
contrário, uma quase ausência dela em seus escritos, excetuando-se, talvez, o ―Conto de
escola‖ e o brevíssimo relato das travessuras de Brás quando menino. Seus personagens
parecem começar a vida na adolescência ou na maturidade, fases que povoaram tantas de
suas histórias: o menino já teria nascido homem.
O passado difícil em casa de estranhos - os pais eram agregados na chácara de uma
família rica -, as mortes sucessivas dos familiares, a própria fragilidade física e os
preconceitos sofridos não seriam imagens saudosas, nem ele parecia disposto ao
confessional puro e simples. Teria sempre um perfil mais contido em relação aos poetas
dessa fase, mesmo aos 17 anos. Ainda assim, não deixaria de confirmar, no prólogo das
Crisálidas, o quanto a obra e a vida se fundiriam no começo de carreira literária; mas
falaria também de um ―duelo infausto entre a aspiração e a realidade‖:
Vai longe esse tempo. Guardo a lembrança dele, tão viva como a saudade
que ainda sinto, mas já sem aquelas ilusões que o tornavam tão doce ao
nosso espírito. O tempo não corre em vão para os que desde o berço foram
condenados ao duelo infausto entre a aspiração e a realidade. Cada ano foi
uma lufada que desprendeu da árvore da mocidade, não só uma alma
querida, como uma ilusão consoladora.
Apesar da ênfase imitação de Cowper , logo no título do poema machadiano,
parece que há uma inegável influência de um dos contemporâneos do poeta, que, ao lado de
Álvares de Azevedo, seria então a grande inspiração machadiana: Casimiro de Abreu.
comentamos a coincidência nas temáticas escolhidas pelos dois autores.
Existia também uma correspondência na idade, nascidos ambos em 1839, além da
forte presença feminina nos poemas, representada principalmente pelas imagens pueris da
mãe e da irmã. Os dois poetas seriam marcados por uma lacuna paterna, pois, apesar de
relembrarem a família, excluíam o pai das boas recordações, das dedicatórias, enfim, a
figura paterna só apareceria em negativo, como uma sombra velada que não pode se
materializar em imagem poética, a não ser obliquamente.
Lendo a biografia de Casimiro, tomamos ciência do empenho do pai em colocá-lo
na carreira do comércio, e de todos os esforços feitos para demover o filho dos objetivos
literários. Assim o poeta escreveria acerca dos anos que passou na atividade comercial que
o pai lhe impusera:
52
(...) lembro-me perfeitamente, foi n‘um dia de setembro. Abafado o grito
de lamento da minha vocação contrariada, fui sentar-me à carteira d‘um
escritório e embrenhei-me no mundo dos algarismos. Abracei a vida
comercial, essa vida prosaica que absorve todas as faculdades n‘um único
pensamento, - o dinheiro, e que se não debilita o corpo, pelo menos
enfraquece e mata a inteligência. Fatal dia! Negra hora.
33
Encontraria Machado em Casimiro o eco das suas mais íntimas confissões, que não
ousaria trasladar para o papel? O que não se pode negar é a influência que a leitura das
obras de Casimiro de Abreu e de Álvares de Azevedo passaria a exercer nos poemas de
Machado a partir de 1856, a ponto de fazê-lo abandonar a dicção lusitana de Gonçalves
Braga, para se deixar enlevar pelo ―licor de Granada‖ que lhe turvaria os olhos: o
romantismo com feições mais brasileiras.
A primeira constatação da influência casimiriana verifica-se na escolha temática dos
poemas, e, principalmente, na semelhança entre alguns títulos. Comecemos por ―Minha
mãe‖, citado. Apesar de Machado afirmar que o poema é uma ―imitação de Cowper‖, a
inspiração revela-se muito mais tributária de Casimiro. Vejamos o poema:
Quem foi que o berço me embalou da infância
Entre as doçuras que do empírio vêm?
E nos beijos de célica fragrância
Velou meu puro sono? Minha mãe!
Se devo ter no peito uma lembrança
É dela que os meus sonos de criança
Dourou: - É minha mãe!
Quem foi que o entoar canções mimosas
Cheia de um terno amor anjo do bem
Minha fronte infantil encheu de rosas
De mimosos sorrisos? - Minha mãe!
Se dentro do meu peito macilento
O fogo da saudade me arde lento
É dela: minha mãe.
Qual o anjo que as mãos me uniu outrora
E as rezas me ensinou que da alma vêm?
E a imagem me mostrou que o mundo adora,
33
ABREU, Casimiro de. ―A virgem loura‖. In: ____. As primaveras. 2 ed. Lisboa: Tipografia do Panorama,
1867. p.218.
53
E ensinou a adorá-la? Minha mãe!
Não devemos nós crer num puro riso
Desse anjo gentil do paraíso
Que chama-se uma mãe?
Um poema homônimo de Casimiro, publicado no livro As primaveras, cantaria a
ausência materna com entonação semelhante ao poema machadiano, apresentando igual
estrutura e, em alguns versos, usando as mesmas imagens e palavras. Apesar de o livro de
Casimiro de Abreu ter sido publicado em 1859, data posterior à publicação do poema de
Machado, a composição do poema é de 1855, ano em que estivera em Lisboa.
É possível que Casimiro tenha lido o poema para os companheiros, ou que
Machado dele tivesse conhecimento através de publicação esparsa ou correspondência
entre amigos, e mostrasse uma imediata identificação com a dor do poeta. Da mesma
forma, pela leitura de versos tão pungentes, talvez encontrasse a motivação para escrever o
lamento pela ausência da própria mãe.
A única diferença é que Machado trata de uma perda irreversível, enquanto
Casimiro fala de uma ausência temporária, já que, como dissemos, o vate compôs os versos
longe de casa, em Portugal. Coincidentemente, para Machado a pátria lusitana também
seria uma evocação materna.
Para fazermos um cotejo entre os dois poetas, transcreveremos a seguir um
fragmento do poema de Casimiro:
Minha mãe
Da pátria formosa distante e saudoso,
Chorando e gemendo meus cantos de dor,
Eu guardo no peito a imagem querida
Do mais verdadeiro, do mais santo amor:
- Minha mãe!
Nas horas caladas das noites d‘estio
Sentado sozinho co‘a face na mão,
Eu choro e soluço por quem me chamava
- ―Oh filho querido do meu coração!‖
- Minha mãe!
No berço, pendente dos ramos floridos,
Em que eu pequenino feliz dormitava:
54
Quem é que esse berço com todo o cuidado,
Cantando cantigas, alegre embalava?
- Minha mãe!
De noite, alta noite, quando eu já dormia
Sonhando esses sonhos dos anjos dos céus,
Quem é que meus lábios dormentes roçava
Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus?
- Minha mãe!
Feliz o bom filho eu pode contente
Na casa paterna de noite e de dia
Sentir as carícias do anjo de amores,
Da estrela brilhante que a vida nos guia!
- Uma mãe
(...)
(Lisboa- 1855)
34
Independentemente de que ambos possam ter buscado inspiração em Cowper, as
duas composições apresentam muitas semelhanças, além do tulo: a alternância ―minha
mãe‖ e ―uma e‖ nas repetições ao fim de cada estrofe, a imagem da mãe acalentando o
filho no berço, as canções da infância, a comparação da mãe a um anjo ―anjo gentil do
paraíso‖, no poema de Machado, ou ―anjo de amores‖, neste.
R. Magalhães Jr. destaca a grande admiração de Machado pelo poeta em seu
formidável estudo ―Casimiro de Abreu e Machado de Assis‖, revelando aos leitores que a
deferência de Machado pelo escritor não foi arroubo da juventude ou demonstração de
simples amizade, mas uma grande estima literária. Casimiro seria sempre um modelo de
poeta, ainda que sob os eflúvios românticos.
Segundo Magalhães Jr., Machado lamentaria a morte do amigo publicamente em
1860, no Correio Mercantil, e ainda relembraria o poeta, passado um ano de sua morte, no
Diário do Rio de Janeiro. O nome de Casimiro aparece também no ensaio ―Instinto de
nacionalidade‖ e num trecho do conto ―Questão de vaidade‖, resgatando uma página
memorável, compartilhada entre ambos na juventude:
Conversava eu um dia com um de meus amigos poetas, que a morte
levou, um talento que todos admiravam, um coração que muitos
conheceram.
34
ABREU. Op. cit. p.11-12
55
- Não sei, dizia-me Casimiro de Abreu, como se pôde inventar a
valsa, a melhor de todas as danças, para dançá-la em um salão, diante de
cem olhos. (...)
- Casimiro, objetava eu, para dois corações que se amam, a multidão
não é isolamento? (...)
Casimiro adorava a valsa. Todos conhecem a bela poesia das
Primaveras que traz este título.
35
O conto foi publicado em 1864, mesmo ano do lançamento das Crisálidas. Do
grupo de Filgueiras, Machado foi o último a publicar seus poemas, quando os três amigos -
Casimiro, Braga e Macedo - haviam falecido. Curiosamente, todos partiram no ano de
1860 e, praticamente, pelo mesmo motivo: a tuberculose. Machado retomaria a memória
daqueles dias ao convidar Filgueiras para prefaciar o livro, como um tributo aos amigos e a
uma época muito especial de sua vida. Nas primeiras páginas do livro, ficaria gravado o
depoimento emocionado e efusivo de Caetano, enquanto no prólogo o autor deixaria
registrada sua saudade, embora sem as ilusões e a euforia dos tempos de juventude.
A escolha do nome da obra também se filia ao espírito do grupo, marcado pela
precocidade e pela modéstia, na intenção de mostrar que o livro de estréia se tratava de uma
iniciativa imperfeita, com versos de poeta iniciante. Seguiria a tendência dos tulos das
obras dos amigos, que Tentativas poéticas, de Braga, denunciava o esforço do autor na
composição, ainda imperfeita; Primaveras, de Casimiro, indicava o começo da vida,
quando as flores da juventude ainda estão desabrochando; portanto, a primeira fase por que
um escritor deveria passar.
O título Crisálidas guardaria o mesmo desígnio dos outros, retratando uma
metamorfose ainda incompleta, um processo de aprimoramento, a promessa de obra melhor
no futuro. Machado viveria para pôr seu objetivo em prática, ainda que a fantasia da
juventude tivesse morrido no caminho: foram-se as ilusões, restou o refinado escritor, o
grande lascivo do nada.
Ainda enfatizando a importância do grupo de Filgueiras no começo da carreira de
Machado, retomando os primeiros passos do poeta antes da publicação deste primeiro livro
de poesia, comprovamos as nuances a que o poeta vai se submeter, e as freqüentes
―metamorfoses‖ de seu engenho poético.
35
ASSIS, Machado de. ―Questão de vaidade‖. Apud: MAGALHÃES JR, R. Ao redor de Machado de Assis.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958. p. 29
56
um certo pudor nos sentimentos amorosos no que se refere aos poemas de 56,
em que retoma a imagem materna ao lado da mulher amada para intensificar o sentimento
de desespero e de morte que, pouco a pouco, vai se alterando e dando espaço a outros
sentimentos mais intensos, sem as reservas de antes.
Freqüentando um grupo de escritores formado por homens de maior experiência,
seria natural que o jovem Machado de Assis encontrasse apoio e incentivo para suas
primeiras incursões afetivas, talvez motivado pelas leituras efetuadas nesses encontros, ou
pelas vivências e confissões dos outros membros do grupo. Um dado que sustenta tal
hipótese é o testemunho de Filgueiras no prefácio das Crisálidas, no que tange ao período
das reuniões em seu escritório:
Éramos, pois, cinco. Líamos e recitávamos. Denunciávamos as novidades:
zurzíamos as profanações: confundíamos nossas lições: -- segredávamos
nossos amores!
O quinto, o menino, depunha, como todos nós, sua respectiva
oferenda. Balbuciando apenas a literatura, ainda novo para os seus
mistérios, ainda fraco para o seu peso, nem por isso lhe faltava ousadia;
antes sobrava-lhe sofreguidão de saber, ambição de louros. Era vivo, era
trêfego, era trabalhador.
Aprazia-me de ler-lhe no olhar móvel e ardente a febre da
imaginação; na constância das produções a avidez do saber, e
combinando no meu espírito estas observações com a naturalidade, o
colorido e a luz de conhecimentos literários que ele, sem querer sem
dúvida, derramava em todos os ensaios poéticos que nos lia (...)
36
Nota-se que, apesar da pouca diferença entre as idades de Braga, Casimiro,
Macedinho (o mais jovem de todos) e Machado, este era o menos experiente do grupo,
tanto literariamente quanto nas vivências pessoais. Filgueiras chegaria a declarar, nas
primeiras linhas do prefácio, que Machado não tinha ―nome‖, ou seja, era um poeta
desconhecido diante dos outros, que possuíam livros publicados e, principalmente, fama
de trovadores. Além disso, o jovem o dispunha de recursos financeiros da família para
custear o valor de uma publicação, como Casimiro de Abreu pôde fazer.
36
FILGUEIRAS, Caetano. ―Prefácio de Crisálidas”. In: ASSIS, Machado de. Crisálidas. Rio de Janeiro:
Livraria B.L.Garnier, 1864.
57
Machado também não se valia de título ou de uma boa formação escolar, seus
estudos foram irregulares e informais. Certamente, a amizade com Paula Brito e com os
jovens poetas que circulavam por sua tipografia permitiram o entrosamento desse
desconhecido rapaz na casa do Dr. Filgueiras. O próprio Machado, posteriormente, não
negaria a importância do aprendizado literário absorvido em tais encontros entre poetas e
cultores das letras.
Como afirma Filgueiras, nenhum entrave impediria que a ousadia do jovem e a sua
avidez pelos ensinamentos dos veteranos fossem se revelando a cada momento e que, por
sua vez, Machado começasse a dar mostras de sua capacidade intelectual, embora ainda
sem estilo próprio. Contudo, passaria a aproveitar os ensinamentos dessas reuniões
literárias na sua produção para jornais.
Destaca-se a expressão usada por Filgueiras para definir o jovem poeta em contato
com o conhecimento: ―febre da imaginação‖, o que é bem diferente de um arrebatamento
sentimental. Machado teria, desde cedo, uma tendência à reflexão. Muito mais do que se
entregar ao puro devaneio romântico ou à expansão dos sentimentos, processava tudo nas
cavernas do cérebro.
Os poemas dessa fase, 1857, estão visivelmente marcados pela nova experiência e
passam a conter boas doses de erotismo, mesmo quando o assunto incita a uma disposição
mais religiosa. O poema ―Deus em ti é exemplo disso, pois há, contrariando o título, mais
desejo amoroso do que êxtase espiritual nos seus carmes:
É quando eu sinto embriagar-me o peito
Um místico vapor,
E à luz fecunda desses olhos belos
Da minha alma ter vida e alento a flor;
É quando as tranças dessa fronte loura
Prendem o meu olhar,
E sinto o coração tremer ardente,
Como uma flor aos zéfiros do mar;
É ao ouvir-te as místicas idéias
Tão cheias de paixão,
Nessa eloqüência lânguida e profunda
Que fala ao coração:
É ao sentir as tuas asas brancas,
Ó meu anjo de amor,
58
Que eu reconheço a mão do rei da terra
E creio no Senhor!-
37
A última estrofe chega a ser profana, tendo em vista que é pela beleza da mulher
que o poeta passa a acreditar em Deus, ou seja: por Ele ter criado um ser tão divino, o poeta
manifesta a fé, invertendo o ponto de vista da crença religiosa do ―crer para ver‖. Portanto,
é a criatura que revela o Criador, e não o inverso.
O interessante é a singeleza com que o poeta o diz. Os versos soam tão cândidos
que a questão passa despercebida, envolta numa espécie de petrarquismo, onde a amada é
mais etérea do que carnal. Machado destoava, nesse singelo começo, da forma de evocação
romântica, que, em vez de falar do corpo da mulher amada, resolvia louvar-lhe: as
místicas idéias/ Tão cheias de paixão,/ Nessa eloqüência lânguida e profunda/ Que fala ao
coração‖. A força da idéia, da inteligência, sobrepujava a dos sentidos, traindo, de certa
forma, o poeta que experimentava o molde romântico para tecer versos de amor.
Outras composições de 1857, no entanto, apontam mais claramente a disposição
romântica do poeta, que esqueceria a timidez e a contenção desses primeiros versos de
temática amorosa, mostrando mais livremente o desejo pela mulher. aqui não precisaria
aproveitar a memória da mãe para evocação dos amores e das desilusões, nem glorificar o
intelecto da amada no lugar do corpo. Aperfeiçoaria os cânticos de adoração ao feminino e
se dedicaria mais aos sentidos do que aos sentimentos.
Assim se revelaria no poema ―O sofá‖, possivelmente inspirado em leituras mais
licenciosas, como a do livro, homônimo do poema, de Crébillon Fils. Talvez almejasse,
como o protagonista do livro de Fils, ser transmutado em sofá, para ver, ouvir, sentir as
impressões íntimas de maneira privilegiada. Eis o poema:
Oh! Como é suave os olhos
Sentir de gozo cerrar,
Sobre um sofá reclinado
Lindos sonhos a sonhar,
Sentindo de uns lábios d‘anjo
Um medroso murmurar!
Um sofá! Mais belo símbolo
37
ASSIS. T.P. p. 646-647.
59
Da preguiça outro não há...
Ai, que belas entrevistas
Não se dão sobre um sofá,
E que de beijos ardentes
Quanta boca aí não dá!
Um sofá!Estas violetas
Murchas, secas como estão
Sobre o seu sofá mimoso,
Cheirosas, vivas então,
Achei um dia perdidas,
Perdidas: por que razão?
Talvez ardente entrevista
Toda paixão, toda amor
Fizesse ali esquecê-las...
Quem não sabe? sem vigor
Estas flores só recordam
Um passado encantador!
Um sofá! Ameno sítio
Para colher um troféu,
Para cingir duas frontes
De amor num místico véu.
38
O apelo erótico do poema é inconteste, mas o autor se vale de metáforas para
suavizar as idéias. Machado revelaria desde então uma tendência à sugestão erótica, com
propósito insinuativo ou provocativo, sem revelar de todo o conteúdo ou a intenção real,
encobertos pelo véu das metáforas. Nunca nos diria tudo, restaria sempre algo dissimulado
no subsolo do texto, deixaria unicamente uma intenção no ar, ou apostaria na
semitransparência das palavras. Não uma página da obra machadiana, da juventude ou
da maturidade, em que o desejo seja revelado por completo, o que acentua o contexto
erótico nas entrelinhas. Essas lacunas metafóricas dos textos machadianos, o leitor as
poderá preencher, isso se conseguir mergulhar na intimidade necessária para interagir nesse
jogo de ocultações/revelações que seu texto provoca.
É óbvio que o jovem aprendiz ainda não se valia conscientemente do recurso, como
o mestre faria depois, mas ensaiava as possibilidades do dizer, sem atentar contra a moral
da época. A pior desgraça de um escritor daquele tempo era o juízo moral da sociedade: ser
taxado de imoral significava o banimento das rodas oficiais, dos ambientes de família e a
38
ASSIS. T.P. p.647-648
60
exclusão da obra do círculo literário. Mal saída do invólucro, a poesia quedaria
marginalizada, freqüentada apenas pelos estudantes, como os folhetos e livros proibidos, e
impressa oficiosamente.
Seguindo pelas vias ultra-românticas, Machado dedicaria um belo poema, em 1858,
à memória de Álvares de Azevedo, talvez sua composição mais rica do período. O refrão
do poema demonstra a habilidade do poeta para com os decassílabos, e, em toda a
composição percebe-se a criatividade do autor: ―Morrer, de vida transbordando ainda,/
Como uma flor que ardente calma abrasa!/ águia sublime das canções eternas:/ Quem no
teu vôo espedaçou-te a asa?‖.
Outra informação importante advém da dedicatória a Manuel Antônio de Almeida,
um dos grandes incentivadores de Machado no início da carreira. Alguns biógrafos chegam
a afirmar que o romancista foi mais um Mecenas na vida do poeta novel, reconhecendo o
talento do jovem e abrindo-lhe muitas portas no meio literário.
Devemos considerar também a brusca mudança de paradigma nesse despontar
literário de Machado de Assis: de uma formação religiosa e eclesiástica para uma
experiência entre poetas boêmios e ultra-românticos, das leituras religiosas de um Monte
Alverne para os êxtases amorosos da lírica de um Álvares de Azevedo.
Outra composição que figura entre os dispersos, e que merece destaque, foi escrita
no álbum de João Dantas de Sousa, autor de Flores incultas e redator do jornal A Saudade.
Machado constrói o poema ―Missão do poeta‖ conversando com a Musa. Em certa medida,
relembra os poemas dialogados de Álvares de Azevedo - como ―Tarde de outono‖ e ―Meu
sonho‖ -, ou ainda os célebres diálogos entre Macário e Penseroso.
No poema de Machado, descrente do seu ofício, o bardo ouve a musa que o anima a
continuar cantando, mesmo quando ele já não crê mais nas ilusões.
POETA
E como crer então? Tenho aqui morta
Uma ilusão de minha primavera...
O sonho é como um feto que se aborta,
Um porvir que se ergueu numa quimera!
A realidade é fria. Erga-se embora
61
A flor do coração a um céu dourado,
Vem a turba maldita em negra hora,
E as flores mata de um porvir sonhado!
MUSA
Por que descrer assim? É dura a estrada,
Mas há no termo muito amor celeste,
A glória, poeta, é uma flor dourada,
Que só nasce da rama do cipreste.
POETA
De um cipreste!... É bem triste esse conforto!
Quem sabe? uma esperança mal cabida.
Essa luz que se vaza sobre o morto
Paga-lhe a dor que o sufocaria em vida?
MUSA
Mas é tua missão... Do pesadelo
Hás de acordar radiante de alegria!
Deus pôs na lira do infortúnio o selo,
Mas há de dar-lhe muita glória, um dia!
É forçoso sofrer... Deus no futuro
Guarda-te a c‘roa de uma glória santa,
Vem sonhar, este céu é calmo e puro!
Vem, é tua missão!... Ergue-te e canta!
39
O escritor não dialoga apenas com a Musa, mas com a visão defendida nas Idéias
vagas‖, escritas anteriormente. O poeta destina-se a uma missão irrevogável, mesmo
quando a crença inicial se encontra abalada em suas frágeis concepções. Há duas
instâncias no interior do poeta: a que questiona a razão prática - e a que consola e inspira
o sentimento. Essa dialética apela para o poder criativo, para a centelha divina, que tanto
produz a obra, quanto a designa para ―uma glória santa‖.
A Musa ainda seria revisitada muitas vezes, e cada incursão à montanha poética
traria uma feição diferente. Ainda nos seus últimos versos, nas Ocidentais, Machado de
39
ASSIS. T.P. p. 661.
62
Assis buscaria inspiração ―No alto‖, mesmo que o bem e o mal já estivessem tão
confundidos, e a utopia não mais achasse lugar na colina do poeta.
1.3- Tributo à musa do passado
Que cismas, homem? Perdido
No mar das recordações
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.
(Machado de Assis)
40
Crisálidas é um tributo de Machado ao grupo de amigos que se reunia no escritório
de Filgueiras, seja pelas homenagens, pelo prefácio ou pelas dedicatórias. O escritor lança
às experiências literárias do passado o olhar mais maduro do jovem de 25 anos, que analisa
e, de certa forma, corrige as impressões de outrora, dos seus dezessete verdes anos.
Apesar da lembrança saudosa, Machado não compilaria os seus dispersos. O livro
contaria, quase exclusivamente, com poemas recentes do autor, na década de 60, ao que
tudo indica escritos expressamente para compor o livro. Há, entretanto, algumas exceções
que desejamos destacar mais atentamente para justificar o perfil dessa publicação como
tributo aos seus primeiros mestres de poesia.
Ao contrário dos outros autores, a obra de Machado não foi publicada de imediato,
talvez por falta de recursos, ou por certo pudor do poeta. Também não seria uma obra
40
ASSIS. ―Os dois horizontes‖. In: ASSIS. T.P. p. 65
63
publicada por uma editora pequena, mas contaria com o apoio de uma grande chancela:
B.L. Garnier. No entanto, encontraria um ambiente literário distinto daquele dos amigos,
não mais dominado pela lira dos ultra-românticos. Outros gêneros tomaram a cena, o
romance e o folhetim vinham conquistando o gosto do público, estavam em grande
ascensão. Eram tempos de prosa, e Machado rendia louvores à musa poética.
Embora ainda sob influências românticas, o primeiro livro de poesia traz consigo
mais memória do que convicção. Basta lermos a carta do posfácio para verificarmos que a
feição do escritor era outra, sua face religiosa não exibia a mesma devoção que detectamos
nas primeiras composições. Machado, em 1864, era um homem de letras mais experiente,
respeitado no meio literário, caminhando entre grandes escritores. Ocupava o lugar de
crítico teatral talentoso, havia publicado traduções, como Queda que as mulheres tem para
os tolos, e textos dramáticos de sua autoria , como ―Desencantos‖, singelo texto teatral,
assim como um volume de teatro, de 1863, com as duas peças: ―O protocolo‖ e ―O
caminho da porta‖.
Apesar da mudança em algumas concepções, na abertura do livro encontramos
aquele ilustre diálogo entre a Musa e o Poeta, como voz que tenta alimentar o fogo da
inspiração de antigamente, acendendo a faísca de inspiração que aparentava estar perdida.
Assim, o vate deseja retomar a coroa de louros da velha Grécia para colocá-la na ―fronte do
mancebo‖. Embora reconheça que foi desfolhada pelo tempo pretérito, ainda a emprega
para relembrar os cânticos do ontem com o vigor do talento e da experiência do agora. É
isso o que deixa transparecer na construção do poema ―Musa consolatrix‖:
Musa consoladora,
Quando da minha fronte de mancebo
A última ilusão cair, bem como
Folha amarela e seca
Que ao chão atira a viração do outono,
Ah! no teu seio amigo
Acolhe-me, e terá minha alma aflita,
Em vez de algumas ilusões que teve,
A paz, o último bem, último e puro!
Comparando o poema de abertura, ―Musa consolatrix condizente com as
concepções do poeta que até agora pudemos identificar - ao posfácio do livro, vemos que
não um consórcio amigável entre o poeta e o crítico. um abismo entre o que a carta
64
de Machado diz e o que sua poesia contém. O crítico de si mesmo contraria a ―missão do
poeta‖, contesta tudo que se refere à inspiração, ao sopro divino como sustentação criativa
do autor. Um pretende cantar a inspiração, enquanto o outro declara que ela inexiste. Não
conciliação. O crítico refuta as produções do passado, mas não rompe completamente
com a memória ao invocar antigos companheiros e o tempo que o coroou escritor.
Essa marca de indefinição e o pudor do crítico parecem ter sido os maiores
empecilhos para que a obra do poeta conseguisse se firmar diante de um ambiente pouco
propício. Estava preso ao passado, mas com a convicção dos tempos mais modernos, e sob
um impiedoso olhar autocrítico. Não podia usar o mesmo artifício dos poetas de sua
geração, marcados pelo ar de juventude, com o pretexto da idade para justificar a
imperfeição dos versos, nem podia cantar sem culpa os excessos juvenis. Deixaria para
Filgueiras a missão de abrir o livro e sairia pela tangente no posfácio.
Não, o meu livro não vai aparecer como o resultado de uma vocação
superior. Confesso o que me falta que é para ter direito de reclamar o
pouco que possuo. O meu livro é esse pouco que tu caracterizaste tão bem
atribuindo os meus versos a um desejo secreto de expansão; não curo de
escolas ou teorias; no culto das musas não sou um sacerdote, sou um fiel
obscuro da vasta multidão dos fiéis. Tal sou eu, tal deve ser apreciado o
meu livro; nem mais, nem menos.
Foi assim que eu cultivei a poesia. Se cometi um erro, tenho
cúmplices, tu e tantos outros, mortos, e ainda vivos. Animaram-me, e bem
sabes o que vale uma animação para os infantes da poesia. Muitas vezes é
a sua perdição. Sê-lo-ia para mim? O público que responda.
Não incluí neste volume todos os meus versos. Faltou-me o tempo
para coligir e corrigir muitos deles, filhos das primeiras incertezas. Vão
porém todos, ou quase todos os versos de recente data. Se um escrúpulo
de não acumular muita coisa sem valor me não detivesse, este primeiro
volume sairia menos magro do que é; entre os dois inconvenientes preferi
o segundo.
Na carta estava contida a negação de seu primeiro parecer crítico sobre a poesia: a
vocação superior do poeta. No entanto, declarava-se um seguidor fiel das musas, embora
fosse um poeta obscuro. embutido o desejo de ser um sacerdote? Então, pode-se dizer
que continuava acreditando no antigo parecer, embora não achasse que esse dom existisse
em si. Por que não usou a experiência crítica para reformular os antigos poemas? A falta de
tempo é apresentada como desculpa, mas o que parece pesar é o desinteresse pela obra da
juventude. De fato, o autor não teve a preocupação de difundir os primeiros escritos. Sua
65
obra poética seria recuperada na atualidade, colhida por pesquisadores em álbuns e em
edições antigas dos jornais.
A abundância de pseudônimos é outra indicação do rigor do crítico. Machado se
valeria do artifício com freqüência, recolhendo posteriormente em livro apenas as obras
que houvessem obtido boa acolhida do público. Teria mais liberdade nas escolhas e estaria
atento às críticas feitas, sem que denunciasse sua autoria. Veria a si mesmo de fora, com o
olhar distanciado, e ainda garantiria a isenção das opiniões, podendo colhê-las ao vivo, sem
se sentir ferido pelas críticas.
A poesia suscita a eterna dúvida: missão ou perdição do escritor? Tal parecer
incomodava o escritor, pois não conseguia se desvencilhar da feição clássica do poeta como
intérprete divino, nem tinha como negar a genialidade e a subjetividade românticas.
No livro, optaria pela tradução de poemas de autores consagrados, principalmente
franceses, recolheria outras composições que escrevera sob pseudônimo e selecionaria
poemas recentes, muitos deles declamados publicamente nos saraus, em datas especiais, ou
no teatro. Por essas escolhas, percebe-se que o autor elegeu os poemas que contavam com o
aval prévio do público e que, por isso, antecipavam a recepção crítica posterior que
alcançariam.
Os poemas não-datados ou anteriores a 1860 que nos interessam em particular são
―As rosas‖, ―Monte Alverne‖, ―Maria Duplessis‖ e ―Última folha‖, todos ligados à
experiência poética da juventude. Destacamos também a homenagem a Faustino Xavier de
Novais através da publicação da sátira ―Embirração‖, como paródia da poesia machadiana
―Aspiração‖.
―As rosas‖, dedicado ao prefaciador Filgueiras, é poema sem data. Tudo indica que
tenha sido composto no período das reuniões literárias. Machado se valeria outra vez de
nota explicativa no fim das Crisálidas para esclarecer a origem da composição. Diria que a
escolha era uma homenagem ao tulo de um livro de poesia do amigo: ―O Dr. Caetano
Filgueiras trabalha tempos num livro de que são as rosas o título e o objeto‖.
41
Talvez
funcionasse como uma espécie de incentivo ao advogado, que havia publicado o primeiro
livro aos 16 anos, e só tornaria a publicar os Idílios, em 1872, portanto, oito anos depois de
41
ASSIS. T.P. p.89
66
prefaciar a obra machadiana. Parece que, após tanto tempo, até o título anunciado por
Machado acabou sofrendo modificação.
Como já analisamos, o poema ―Monte Alverne‖, dirigia-se ao padre-mestre Silveira
Sarmento, e também foi digno de nota no fim do livro, como se o jovem quisesse relembrar
daqueles que tiveram um papel determinante na sua formação. Apesar do título de ―padre-
mestre‖, Machado destaca a pouca idade do sacerdote, ―alguns anos mais velho do que eu‖,
e reforça a idéia de ―modesto preceptor‖, indicando que a formação seria mais uma troca
de experiências do que um ensino formal, tanto que o chama de ―agradável companheiro‖.
Machado refere-se à companhia desse jovem, e, por duas vezes, fala de ―tributo e
admiração‖, e que essa amizade teria marcado um determinado ano de sua existência.
Acrescenta também que ―circunstâncias da vida‖ haviam separado os dois. É uma
afirmação interessante, pois faz suscitar muitas questões, inclusive a de que Machado possa
ter exercido alguma função dentro da Igreja, ainda muito jovem, antes dos seus 15 anos.
Quem sabe um aspirante à carreira eclesiástica?
―Maria Duplessis‖ é uma rememoração da amizade por G. Braga, que publicou
poema com mesmo título, em Tentativas poéticas. Machado explicaria, em nota final, que
as traduções foram feitas na mesma época, como um desafio para ambos, um exercício a
partir do original francês de Dumas Filho.
Em 1858, eu e meu finado amigo F. Gonçalves Braga resolvemos fazer
uma tradução livre ou paráfrase de Alexandre Dumas Filho. No dia
aprazado, apresentamos e confrontamos o nosso trabalho. A tradução dele
foi publicada, não me lembro em que jornal.
42
Machado, provavelmente, enganou-se na data, pois a composição de Braga foi
publicada em livro em 1856, dois anos antes, portanto, da indicação que consta na nota das
Crisálidas. Talvez o poeta fluminense tenha reformulado a tradução em 1864, quando seu
conhecimento de francês estava mais avançado, advindo daí o engano nas datas.
Tendo em vista que a amizade entre ambos os escritores pode ser comprovada
desde 1855, é muito provável que o episódio da tradução tenha ocorrido nesse ano. Não
tendo publicado o poema na ocasião, Machado teria como reformular e rever sua tradução
42
Idem. ibidem.
67
no lançamento das Crisálidas, já que, como tradutor, era muito respeitado pelos seus
confrades.
Cotejando as traduções, nota-se que Machado foi mais feliz na transposição que o
amigo, o que só reforça a hipótese da reescrita. Para compará-las, escolhemos a estrofe
mais conhecida do poema de Dumas Filho para, em seguida, observarmos as traduções de
Braga (A) e de Machado (B), respectivamente.
Pauvre fille! On m'a dit qu'à votre heure dernière,
Un seul homme était là pour vous fermer les yeux,
Et que, sur le chemin qui mène au cimetière,
Vos amis d'autre fois étaient réduits à deux!
A)
Pobre mulher! Na extrema hora da vida
Um homem viu teu último momento,
Dois amigos d‘amigos teus d‘outr‘ora
Conduziram teu fúnebre saimento!
B)
Pobre mulher! em tua última hora
Só um homem tiveste à cabeceira;
E apenas dois amigos dos de outrora
Foram levar-te à cama derradeira.
Além de mais fiéis ao original, os versos machadianos foram bem mais
significativos que os de Braga, evitando as repetições de palavras e o excesso de preposição
do penúltimo verso. Braga, além dessas escolhas, abusa das apóstrofes para manter a
métrica.
Por fim, temos o poema ―Última folha‖, que nos interessa particularmente por ser
uma homenagem, embora velada, a Casimiro de Abreu. Machado usaria o mesmo recurso
do autor das Primaveras ao nomear o poema que encerra o livro de ―Última folha‖, a
derradeira chamada à musa do passado, o reconhecimento de que as ilusões tinham
murchado, juntamente com a vida dos seus estimados companheiros de outros tempos.
A epígrafe de Victor Hugo, presente no poema machadiano, assinala a efemeridade
da vida: ―Tout passe, tout fuit‖, assim como mostra a evasão dos anseios e planos de futuro,
certamente confessados nos encontros literários no escritório de Filgueiras. Do mesmo
68
modo, a musa dos primeiros poemas e as ilusões de rapaz parecem ceder espaço a um novo
tempo, em que não se podia simplesmente dedilhar a lira romântica e acreditar que a musa
favorecia o vate, embora constantemente ela surgisse em seus poemas.
O poema que finaliza as Crisálidas, na verdade, é um lamento desiludido, último
sopro de uma Musa alquebrada. O diálogo entre ambos os poemas, o das Primaveras e o
das Crisálidas, funciona como resposta ao poeta morto, que, mesmo partindo tão cedo,
havia alcançado um lugar na galeria dos grandes escritores da literatura brasileira. A
composição marcaria a descida da montanha das musas, reduto do romantismo da geração
casimiriana, e a definitiva despedida de Machado do estilo que marcou uma fase de grande
importância na sua carreira.
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.
Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
E as alvas margaridas.
Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda no poente
Não quebra os raios pálidos e frios
O sol resplandecente.
Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
Abre-se, como um leito mortuário;
Espera-te o silêncio da planície,
Como um frio sudário.
Desce. Virá um dia em que mais bela,
Mais alegre, mais cheia de harmonias,
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.
Então coroarás a ingênua fronte
Das flores da manhã, e ao monte agreste,
Como a noiva fantástica dos ermos,
Irás, musa celeste!
Então, nas horas solenes
69
Em que o místico himeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;
Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Bafeja a brisa suave
Cedros que o vento abalou;
E o rio, a árvore e o campo,
A areia, a face do mar,
Parecem, como um concerto,
Palpitar, sorrir, orar;
Então sim, alma de poeta,
Nos teus sonhos cantarás
A glória da natureza,
A ventura, o amor e a paz!
Ah! mas então será mais alto ainda;
Lá onde a alma do vate
Possa escutar os anjos,
E onde não chegue o vão rumor dos homens;
Lá onde, abrindo as asas ambiciosas,
Possa adejar no espaço luminoso,
Viver de luz mais viva e de ar mais puro,
Fartar-se do infinito!
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia!
43
A ―alma do poeta de que nos fala Machado identifica-se com as aspirações do
passado. Também pode se referir ao bardo Casimiro de Abreu, um diálogo com o canto do
poeta, em seu último livro, que, com a morte do corpo, pôde enfim ―fartar-se do infinito‖
sem padecer as dores e as angústias da vida terrena. Basta lermos o poema de Casimiro no
fecho das Primaveras, para notarmos como acontece o diálogo entre ambos os textos.
Última folha
Meu Deus! Meu Pai! Se o filho da desgraça
43
ASSIS. T.P. p.85
70
Tem jus um dia ao galardão remoto,
Ouve estas preces e me cumpre o voto
- A mim que bebo do absinto a taça!
- ―Feliz serás se como eu sofreres,
Dar-te-ei o céu em recompensa ao pranto‖ –
Vós o disseste E eu padeço tanto!...
Que novos transes preparar-me queres?
Tudo me roubam meus cruéis tiranos:
Amor, família, felicidade, tudo!...
Palmas da glória, meus lauréis do estudo,
Fogo do gênio, aspiração dos anos!...
Mas teu filho já não se rebela
Por tal castigo, pelas mágoas duras;
- Minh‘alma of‘reço às provações futuras...
Venha o martírio... mas perdão p‘ra ela!...
A doce virgem se assemelha às flores...
O vento quebra no seu verde ninho.
- Velai ao menos pelo pobre anjinho,
- Pagai-lhe em gozo o que me dais em dores!
44
A ―doce virgem‖ é, na verdade, a personificação da poesia, como o próprio
Casimiro a definiria num texto em prosa chamado ―A virgem loura‖. Descreve-a, nesse
texto, como uma mulher por quem se apaixonou ainda na infância, mas a vida teria feito de
tudo para afastá-la de si. No fim do texto, confessa: - Mas quem era a Virgem Loura? (...)
Pois não adivinharam?!... Era a poesia.‖
45
Pela indicação do poeta, pode-se afirmar que a virgem que deseja ver preservada
após a sua morte é sua obra poética. Assim, a oração devotada do poeta ao ―Pai‖, que tanto
representa Deus quanto a autoritária figura paterna, é para que se cumpra o voto de
conceder alegria após tantas provações e dores a que foi submetido em vida, recompensa de
quem se submeteu às imposições paternas sem se rebelar, aceitando tudo, e sacrificando a
vocação de poeta. A única felicidade possível é o gozo do reconhecimento literário, ainda
que póstumo.
Machado, apegado à vocação clássica, utiliza a Musa como símbolo da poesia ou
da inspiração poética. Tinha preferência por essa representação, no lugar da virgem loura‖
44
ABREU. Op.cit. p.159
45
Idem. p. 218.
71
casimiriana, de feição mais pura, embora exista uma afirmação indireta no verso
machadiano ―seus cabelos de ouro‖, em relação à figura. Nota-se que a evocação é a
mesma de Casimiro: que se mantenha o vigor da poesia, que se preserve o gozo, a ―última
harmonia‖ como eco do desejo da ―alma do poeta‖.
Além de dialogar com Casimiro, Machado construiu o livro realizando a ligação
entre o primeiro e o último poema. Havia clamado pela ―Musa Consolatrixna abertura do
livro, aquela que conforta o poeta e lhe garante a tranqüilidade, a paz e o ―último bem,
último e puro‖. Encerra, com outra musa, a da memória, única capaz de guardar a ―última
harmonia‖ do poeta, o eco do passado, que o presente não mais alimentava as ilusões de
outrora.
1.4- De Corina a Carolina: entre a musa poética e a poética da musa
Acompanhando a subida do poeta à montanha das musas e a sua ascensão no ambiente
literário, notamos a interpenetração de elementos que se filiam à vida e à obra do autor. A
musa machadiana tanto pode ser inspiração dos mestres do passado quanto transfiguração
das experiências pessoais da juventude. Entre realidade e ficção, percebem-se fronteiras
tênues que ora negam a experiência, ora reafirmam suas convicções. Como tradutor da
própria realidade, o escritor filtra os dados do cotidiano e os expõe sob o rigor de sua
consciência estética. Seja na afirmação ou na negação da realidade, ainda é sobre o mesmo
palco que luzes e sombras aparecem diante do público, cabendo ao espectador confiar ou
não na acuidade de sua visão e na presteza de suas percepções.
72
Nas Crisálidas, identificamos as influências do escritor e vimos as homenagens ao
grupo que o formou. Ainda que se tenha observado uma feição romântica no livro, ele
também comporta uma concepção contrária a essa estética, denunciada no prefácio e
confirmada no posfácio pelo próprio escritor. A rememoração do passado parece dar um
tom romântico aos versos, mas o exame incisivo do crítico parece concluir que as ilusões
não dispõem mais de espaço em sua poética.
A partir do tema da metamorfose, o poeta recolhe da tradição clássica o mote para
seus versos. Declinando do ultra-romantismo cultivado nos poemas dispersos, Machado
renega os sentimentos de outrora, mas vale-se da memória como inspiração. O passado é,
sem dúvida, fonte que não transborda em sentimentos, mas em evocações. A musa ostenta,
portanto, ares épicos, no que se tange à evocação do passado para eternizar os antigos
feitos, embora a ―batalha‖ do poeta seja pela conquista do amor.
Se pensarmos numa Ilíada, por exemplo, pode-se dizer que um conflito amoroso
que influi no campo de guerra: o rapto de Helena, que desencadeia o conflito, e a disputa
por Briseis, que provoca a ira de Aquiles, e, conseqüentemente, sua retirada do combate.
O poema do livro que mais revela essa característica é, sem dúvida, ―Versos a
Corina‖. De início, percebe-se que a própria concepção do poema se fundamenta numa
retomada clássica, com seus seis cantos destinados a fazer o elogio da musa. O verso É o
amor que une Ovídio à formosa Corina é uma referência direta ao livro Amores, de
Ovídio, de feição erótica, cuja musa apresenta o mesmo pseudônimo escolhido por
Machado para nomear a amada.
Os Amores seriam muito difundidos e lidos pelos jovens brasileiros, graças à tradução
de José Feliciano de Castilho, que verteu o poema do latim para o português. Poeta da
admiração de Machado, o tradutor português foi citado num dos prefácios machadianos
(mais precisamente, Os deuses de casaca) como um dos grandes cultores do verso
alexandrino em língua vernácula.
O teor erótico dos versos de Ovídio é francamente revelado na ―Advertência‖ no
frontispício do volume traduzido por Castilho, que, ao que parece, em vez de aconselhar os
jovens a desistirem da leitura, conforme a suposta pretensão do tradutor, parece atraí-los
ainda mais pela curiosidade:
73
ADVERTÊNCIA IMPORTANTE.
Adolescentes de um e outro sexo!
Sob um tulo que vos poderá atrair, este livro contém mistérios de
iniqüidade. Se o abrísseis, depois desse pregão, de vós mesmos vos
podereis queixar. Não é para vós que foi escrito. Quem o apresentasse, ou
o permitisse à inocência, só esse seria o seu envenenador.
46
Apesar da advertência, os versos traduzidos por Castilho não chegam a expor
explicitamente o intercurso amoroso, sublimado em metáforas enviesadas que apenas o
sugerem. Inspirando-se na lírica ovidiana, na tradução de Castilho, Machado mantém a
sublimação do erotismo nos poemas de Crisálidas, associando o corpo feminino à flor, à
brisa, à areia, enfim, metamorfoseando a mulher em elementos vários da natureza, para que,
como a chuva de ouro de Dânae, pudesse fecundar o território do desejo sob o disfarce da
metáfora erótica. A sugestão, nesse caso, é sempre mais convincente do que a ação
propriamente dita.
Mesmo com a retomada da temática ovidiana, a vertente pagã do amor não seria
exclusiva na lírica de Machado. A faceta religiosa, tendência do autor, desponta quando o
poeta une o Cântico dos cânticos bíblico, em que o rei Salomão saúda a esposa, aos versos
de Ovídio, embora neste o propósito fosse o de exaltar a amante.
É interessante essa ligação entre o amor permitido e o interditado, entre a inspiração
pagã e a cristã, entre a união conjugal e o desejo proibido. Sulamita ou Corina, a musa
oscila entre a eternidade dos sentimentos e a efemeridade das paixões. Encetemos a leitura
do poema, que tornou Machado conhecido, à época, como ―o vate de Corina‖.
De imediato, na primeira estrofe, ocorre a ―gênese‖ de Corina, que tanto pode ser Eva,
criada pelas mãos de Deus, quanto Vênus, nascida da espuma do mar. Trabalhando o
conceito clássico do amor, que divide a índole feminina em ativa ou contemplativa,
operando a distinção entre a Vênus pura e a sensual, Machado busca reunir ambas as
naturezas numa única mulher. Assim, resquícios de amor cortês, o ―amor de alma‖
puramente contemplativo de um Dante ou de Petrarca, fundidos ao amor concreto e sensual
de um Ovídio. O poeta diz que Corina nasceu ―de um beijo e de um olhar‖, da volúpia e da
pureza; portanto, simultaneamente ativa e contemplativa.
46
CASTILHO, José Feliciano de. ―Advertência‖. In: OVÍDIO. Amores. (tradução parafrástica de Antonio
Feliciano de Castilho). Rio de Janeiro: Bernardo Xavier Pinto de Sousa, 1858. p. 5.
74
Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo
Numa hora de amor, de ternura e desejo,
Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,
Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;
Depois, depois vestindo a forma peregrina,
Aos meus olhos mortais, surgiste-me, Corina!
De um júbilo divino os cantos entoava
A natureza mãe, e tudo palpitava,
A flor aberta e fresca, a pedra bronca e rude,
De uma vida melhor e nova juventude.
Minh‘alma adivinhou a origem do teu ser;
Quis cantar e sentir; quis amar e viver;
A luz que de ti vinha, ardente, viva, pura,
Palpitou, reviveu a pobre criatura;
Do amor grande elevado abriram-se-lhe as fontes;
Fulgiram novos sóis, rasgaram-se horizontes;
Surgiu, abrindo em flor, uma nova região;
Era o dia marcado à minha redenção
Era assim que eu sonhava a mulher. Era assim:
Corpo de fascinar, alma de querubim;
A união de elementos que se relacionam ao masculino e ao feminino, força e
delicadeza, é representada respectivamente pela pedra e pela flor. Também se percebe a
composição da imagem feminina partindo de conceitos clássicos e medievais: corpo/alma,
beleza exterior (formas perfeitas) e alma pura. Assim, o poeta determina que a mulher
amada tenha: ―Corpo de fascinar, alma de querubim‖.
Duas figuras gregas são evocadas para compor a imagem sonhada: grave como Juno,
e bela como Helena!‖. A deusa mitológica, como se sabe, é símbolo do amor conjugal,
enquanto Helena é o exemplo típico de infidelidade, de amor proibido, provocador de
conflitos e destruição. que o poeta idealiza essa mulher de maneira que não seja leviana
como Helena, nem rancorosa como Juno, mas que retenha no caráter o que cada uma dessas
figuras possui de melhor: fidelidade e beleza.
O amor platônico e o sexual se casariam na criação poética de Corina, instituindo o
ideal a partir das exigências do real, e vice-versa. O desejo procura a forma física, enquanto
a alma busca a pureza das idéias, a castidade do coração. Não por acaso, os versos reforçam
a idéia ao contraporem a fusão do ser‖ à ―efusão de amor‖: a contenção que estreita os
amantes num beijo -, e a expansão - no derramamento lírico e amoroso, que resulta na plena
satisfação do desejo.
75
Neste fundo sentir, nesta fascinação,
Que pede do poeta o amante coração?
Viver como nasceste, ó beleza, ó primor,
De uma fusão do ser, de uma efusão de amor.
Viver, - fundir a existência
Em um ósculo de amor,
Fazer de ambas uma essência.
47
A construção da imagem da musa, entre o beijo e o olhar, segue elementos pagãos, ―a
união do céu e da terra‖, embora também evoque o ―olhar de vida do Senhor‖, que marca a
presença do elemento cristão. Essa disposição entre temperamentos - ativo/contemplativo -
e a fusão de elementos pagãos/cristãos são atitudes amplamente apregoadas pelos
neoplatônicos do Renascimento, embora ambas as concepções estivessem presentes no
contexto filosófico, artístico e literário de períodos anteriores.
Tomando como base a rica de Dante, podemos dizer que no poema machadiano há o
contraste entre ambas as disposições: ―vedere‖ e ―ovrare‖. No ―Purgatório‖ da Commédia
(canto XXVII), duas figuras bíblicas - Raquel e Lia - representam uma dessas tendências.
A disposição ativa de Lia determina que sua beleza apenas seja manifesta pela ação de se
adornar, enquanto a formosura de Raquel reside no rosto ao natural. Assim, em Lia o
artifício é que gera o encanto, ao passo que a arte pura, obra da natureza, é que coroa
Raquel.
Sappia qualunque il mio nome dimanda
ch‘i‘mi son Lia, e vo movendo intorno
le belle mani a farmi uma ghirlanda.
Per piacermi a lo specchio, qui m‘addorno;
ma mia suora Rachel mai non si smaga
dal suo miraglio, e siede tutto giorno.
Ell‘è d‘i suoi belli occhi veder vaga
com‘io de l‘addornarmi con le mani;
lei lo vedere, e me l‘ovrare appaga.
48
47
ASSIS. T.P. p. 72.
48
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. (Trad. Ítalo Eugênio Mauro). São Paulo: Ed. 34, 1998. p.180
(―Purgatório‖, canto XXVII, verso: 100 ao 108). ―Saiba quem quer que de mim perguntar:/ com minhas belas
mãos, meu nome é Lia,/ uma grinalda aqui vou arrumar,/pra no espelho me ver com alegria;// mas minha irmã
76
A fala de Lia mostra um contraste entre a sua índole e a da irmã, evidenciado pelos
verbos ―vedere‖ e ―ovrare‖ do último verso. Na tradução literal, temos: ―para ela, o ver,
para mim o fazer satisfaz‖. É a clássica distinção entre aparência exterior obtida pelo
adorno: ovrare; e essência, atributo natural e intransferível. Na tradição medieval, o amor
platônico é o mais sublime dos sentimentos, pois prevê a satisfação da alma, sentimento
que não se deteriora e, por isso, eterno. Opõe-se a ele o amor sexual, instintivo e profano,
ligado unicamente ao desejo, que se extingue após a satisfação da volúpia do corpo. Assim
o ―ver‖ é como uma devoção religiosa: a mulher é tanto mais amada quanto mais intocável
for; enquanto o ―fazer‖ - o amor ativo - é mera execução do impulso humano.
Na tradição grega, ―ver‖ está relacionado diretamente a ―saber‖. Advém dessa
concepção a idéia de que o amor platônico revela a verdadeira sabedoria, o encontro
perfeito, tal como o cantado por Dante, que alcança o mais alto conhecimento através do
amor que sente por Beatriz.
Num dos últimos cantos do ―Paraíso‖ (XXIX), o poeta contrapõe o saber ao amar,
dando ênfase ao primeiro, pois, sem ele, o verdadeiro amor jamais seria manifesto. O ―ver‖
seria a condição necessária para a manifestação da sabedoria:
E dei saper che tutti hanno diletto
quanto la sua veduta si profonda
nel vero in che si queta ogni intelletto.
Quinci si può veder come si fonda
l‘esser beato ne l‘atto che vede,
non in quel ch‘ama, che poscia seconda;
e del vedere è misura mercede,
Che grazia partorisce e buona voglia:
Cosi di grado in grado si procede.
49
Observando a obra de outros autores, verificamos exemplos de oposição do ativo e do
contemplativo. Por exemplo, nas Artes, destacamos a construção do túmulo do Papa Júlio
Raquel nunca se afasta/ do espelho seu, sentada todo dia,/ a olhar seus belos olhos ela gasta;/ e eu a com
minhas mãos me embelecer;/ para ela: olhar; para mim só o fazer basta.‖
49
Idem. canto XXIX , versos 106 a 114. p. 199 . Trad: ―Que todos têm deleite, hás de saber/ conforme a sua
visão mais se aprofunda/ na Verdade que aquieta o seu querer.// Daí verás que a ventura se funda/ no ato de
ver, isto é, na conhecença,/ e não no amor , que só após secunda;// e desse ver mede-se a recompensa/ que
vem da Graça de quem bem a acolha -/ que grau a grau o seu favor dispensa.‖
77
II, em que Michelangelo Buonarroti, inspirado na rica dantesca e no pensamento então
vigente, concebe duas estátuas uma de Lia, outra de Raquel para comporem os nichos
laterais do seu conhecido ―Moisés‖ (embora apenas esta última imagem tenha sido
esculpida por ele), assim como ambos os temperamentos (ativo e contemplativo) seriam
referências constantes na sua concepção artística.
De tal maneira o amor contemplativo era valorizado no período do Renascimento que
Michelangelo, em sua lírica, escreve um dos poemas mais concretos e perfeitos em relação
à tônica amorosa. A imagem criada pelo artista mostra o dilema do amor transcendental, de
alma, frente à atração sica, do corpo. Como negação do desejo sexual e para alcance
máximo da realização contemplativa, o poeta, não podendo ascender até a mulher amada
(como Dante faz), deseja que todo seu corpo se transforme num olho, para que dela possa
desfrutar inteiramente:
Os olhos meus, que perto ou longe vão,
podem ver onde está teu belo rosto
mas onde vêem, senhora, é-nos imposto
não hi chegar co os braços, ou co a mão.
A alma, como engenho inteiro e são,
mais livre nos meus olhos sobe o posto
de tua beleza, mas o ardor desposto
não dá ao corpo, aqui tal distinção.
Mortal, sem asas, como seguiria
de um anjo o vôo, e entre aflições terrenas?
-lo, tão só, não me há de alevantar.
Oh! Se és no céu, por mim, de igual valia,
faz de meu corpo todo um olho apenas
e seja eu todo, em mim, te desfruitar.
50
Camões também aborda num de seus sonetos a oposição Raquel/ Lia para enfocar o
amor que ultrapassa os limites da vida e se estende para a eternidade. Trata-se de ―Sete
anos de pastor‖, em que a serenidade de Jacó ganha destaque, apesar da força do
sentimento que nutre por Raquel, principalmente porque o ―ver‖ suplanta a possibilidade do
50
BUONARROTI, Michelangelo. Cinqüenta poemas. (Trad. Mauro Gama). Cotia; SP: Ateliê Editorial, 2007.
p. 69.
78
―ter‖, como se o servir fosse a condição essencial para estar próximo do objeto de
contemplação: ―Os dias na esperança de um só dia/ Passava, contentando-se com vê-la.‖
Camões exalta mais a atitude servil do patriarca bíblico do que a disposição para
tomar posse do objeto amado: o contemplativo Jacó, por amar sua ―pastora‖, dedica-lhe
uma vida de trabalho, e, por ela, seria servo até o fim dos seus dias: - Mais servira se não
fora/ Pera tão longo amor tão curta a vida.‖
51
A retomada do tema é importante para entendermos a intenção de Machado, que
parece ser a fusão do ativo (beijo) e do contemplativo (olhar) numa única imagem
feminina. A idealização estaria na complementação entre ambos os caracteres, desfazendo
a antiga separação entre corpo e alma. Corina seria a mulher completa, recriada pelo poeta
com traços mitológicos e cristãos; uma Eva, enfim, que não se corrompe, uma Helena que
não trai, mas que não deixa de ser desejável aos olhos e agradável também aos outros
sentidos do corpo.
nos ―Versos a Corina‖ uma das mais belas estrofes machadianas, sumariamente
podada na edição de 1901 de suas Poesias completas. O trecho evoca as musas dos grandes
autores universais, e dele provém também a divisa adotada pela Academia Brasileira de
Letras, como símbolo da imortalidade literária: ―Esta a glória que fica, eleva, honra e
consola‖. Retirado do contexto, o verso original do lema parece tratar das glórias literárias;
no entanto, sua verdadeira intenção era exaltar a glória amorosa, que o poema eterniza a
musa, celebrando o amor acima de todos os bens do mundo, a mesmo da obra que
inspirou.
És tu a maior glória de minha alma,
Se o meu amor profundo não te alcança,
De que me servirá outra esperança?
Que glória tirarei de alheia palma?
Que valem glórias vãs? A glória, a melhor glória,
É esta que nos orna a poesia da história;
É a glória do céu, é a glória do amor.
É Tasso eternizando a princesa Leonor;
É Lídia ornando a lira ao venusino Horácio;
É a doce Beatriz, flor e honra do Lácio,
Seguindo além da vida as viagens do Dante;
É do cantor do Gama o hino triste e amante
51
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos de Camões. São Paulo: Ed. Saraiva, 1968. p. 11.
79
Levando à eternidade o amor de Catarina;
É o amor que une Ovídio à formosa Corina;
O de Cíntia a Propércio, o de Lésbia a Catulo;
O da divina Délia ao divino Tibulo.
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola;
Outra não há melhor, se faltar esta esmola,
Corina, ao teu poeta, e se a doce ilusão,
Com que se alenta e vive o amante coração,
Deixar-lhe um dia o céu azul, tão tranqüilo,
Nenhuma glória mais há de nunca atraí-lo.
Irá longe do mundo e dos seus vãos prazeres,
Viver na solidão a vida de outros seres,
Vegetar como o arbusto, e murchar, como a flor,
Como um corpo sem alma ou alma sem amor.
A ênfase no final da estrofe reitera o que abordamos acerca de Corina: ela reúne terra
e céu. A ilusão, nesse caso, parece ser necessária para a plena satisfação do corpo e da
alma, é a ―esmola‖ do coração, aquilo de que não se pode abdicar, sob o risco de viver:
―como um corpo sem alma ou alma sem amor‖.
Antes de encontrar Corina, o poeta buscava o ideal ora numa instância, ora noutra:
―Desci ao chão do vale que se abria/ Subi ao cume da montanha alpestre‖. A catábase e a
anábase, movimentos de Dante na Commedia e de Orfeu no mito grego, não podem
satisfazer o anseio de união que reside no poeta. A inspiração é buscada no alto, reduto das
musas e da poesia, mas nenhuma resposta se obtém. Assim, pronunciando uma blasfêmia
atroz, o poeta acaba por unir-se definitivamente à terra, elemento prosaico por natureza:
―Se a blasfêmia o meu lábio poluíra,/ Quando depois de tempo e de cansaço,/ Beijei a terra
no mortal abraço/ E espedacei desanimado a lira.‖
A descida do monte, movimento antipoético, expõe a queda do poeta no terreno do
prosaico, o despedaçamento da lira, assim como ocorreu com Orfeu: sua sica pode até
interferir no mundo dos mortos, mas Eurídice não tem corpo, não consegue ascender ao
mundo dos vivos. Corina é capaz de intermediar ―um desejo da terra e um toque do
Senhor‖, toque de materialidade na etérea poesia.
O esboço dos dois caracteres femininos ativo e contemplativo aparece no poema
das Crisálidas, mas torna-se um dos traços marcantes da escrita machadiana, ainda quando
tratamos da sua obra em prosa. Basta lembrarmos dos romances da chamada ―primeira
fase‖, todos com oposições entre as personagens femininas: em Ressurreição, entre Lívia e
80
Raquel; em Helena, entre a protagonista e Eugênia, e em Iaiá Garcia, entre Lina (Iaiá) e
Estela. No prefácio de Ressurreição, o próprio autor revelaria: ―tentei o esboço de uma
situação e o contraste de dois caracteres‖.
52
Desde a coincidência ou similitude dos nomes
das personagens, até a criação de seus perfis, existe uma correspondência quase exata com
o conceito feminino esboçado na lírica de Dante e no neoplatonismo, quando se trata da
oposição entre Lia e Raquel.
Um olhar mais atento para essas figuras machadianas é o suficiente para notarmos o
contraste intrínseco entre elas. Por um lado temos a representação dos caprichos femininos,
seja pela educação ou pela índole das moças, como se nota em Iaiá e Eugênia. Elas
representam mais instinto e vontade do que sabedoria e ponderação. Por outro lado,
personagens como Helena e Estela são capazes de renunciar ao desejo para manterem a
dignidade pessoal. Por isso não conciliação em nenhum desses romances, tudo termina
em dissolução. É impossível tomar posse do objeto amado: caso isso ocorresse, o
sentimento estaria fadado ao desgaste.
Como no ritual do amor cortês, a impossibilidade da união é que sustenta a trama
amorosa. No momento em que a união se mostra possível com a viuvez de Estela, por
exemplo o afastamento espacial, e definitivo, se faz necessário.
Em relação a Dante, a epígrafe de ―Versos a Corina‖ é indício da sintonia de Machado
para com a obra e o pensamento do florentino: Tacendo il nome di questa gentilissima- o
véu do pseudônimo calaria, portanto, o nome verdadeiro da ―dama gentil‖. Assim como
Dante, Machado teria se inspirado numa mulher real para compor os ―Versos a Corina‖,
ainda que não se possa afirmar com exatidão se a musa foi, de fato, a atriz Gabriela da
Cunha.
A epígrafe do poema de Machado faz parte de Vita Nuova, obra em verso e prosa,
onde Dante narra sua experiência afetiva desde o momento em que conheceu Beatriz - aos
nove anos -, até a morte da amada. Entremeado ao relato, há poemas detalhadamente
explicados pelo autor, todos voltados para a temática amorosa. O trecho selecionado integra
o capítulo XXIII do livro, onde Dante relata o delírio que teve num período de grave
enfermidade, quando pressente e presencia a morte de Beatriz, e, diante do fato, deseja
morrer juntamente com ela.
52
ASSIS. Ressurreição. In:____. O.C. vol 1. p. 116.
81
A visão que se lhe revela é terrível, aparecem mulheres desgrenhadas que o condenam,
lamentos e maldições e os elementos do céu são abalados. Tudo prenuncia o fim do
mundo, o derradeiro esfacelamento da Terra. Podemos até afirmar que o capítulo do delírio
de Vida Nova é o embrião da Commedia, que a imagem de Beatriz vai trazer o poeta de
volta à realidade, estando ele numa espécie de delírio de morte. A dama, nesse caso, o faz
voltar à vida, assim como, na obra-prima de Dante, o conduziria ao Paraíso.
―Não durma mais‖ e ―não se torture‖. Ante essas vozes, a minha fantasia
teve fim, justamente no ponto em que eu estava para pronunciar ―Ó
Beatriz, bendita seja‖; já havia começado a falar ―Ó Beatriz, quando
despertando, abri os olhos e vi que estava enganado. (...) mais
reconfortado e dando-me conta da enganosa imaginação, respondi: ―Vou
dizer o que aconteceu comigo‖. Então, do começo ao fim, eu lhes contei o
que havia visto, calando o nome da mais que gentil. Depois, já curado
da doença, dispus-me a dizer palavras a respeito do que me havia
sucedido, julgando que fosse coisa agradável de ouvir. Compus então a
canção que começa com Mulher piedosa e de bem pouca idade. (grifo
nosso)
53
A cena de Dante, apreciada por Machado e evocada na epígrafe, traz muitas
informações importantes, não em relação aos ―Versos a Corina‖, mas também quanto à
obra machadiana da maturidade. As Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo,
retomam o tema do delírio e da morte, com a ressalva de que Vírgília, a amada de Brás, não
é nenhuma Beatriz. Como o Virgílio de Dante, a personagem só poderá conduzir seu par ao
Inferno e ao Purgatório, sem fazê-lo, portanto, atingir o Paraíso sonhado, e tampouco a
plena realização amorosa.
No delírio de Brás, é Pandora que o recebe na terra dos gelos eternos, lugar tão frio
quanto os círculos mais malditos do Inferno dantesco. Acometido por uma enfermidade, tal
como o personagem de Vida Nova, nem mesmo a presença de Virgília, ―ao do leito
derradeiro‖, impede que Brás seja mortalmente vitimado pela idéia fixa que o enfermou. A
busca pelo utópico emplastro aliviador das dores da humanidade resume o desejo ustico
da glória mundana: fama e riqueza, quando, na verdade, o imenso vazio existencial clama,
ainda que obliquamente, pelo fim das angústias pessoais. Na obra de Dante, a máxima cura,
53
ALIGHIERI, Dante. Vida Nova. In: ____ (et al.). Retrato do amor quando jovem. (Trad. Décio Pignatari).
São Paulo: Cia das Letras, 2006. p.52.
82
a utopia dantesca, é Beatriz, que resume o conhecimento e o ideal, sendo, portanto, o
caminho para a remissão e para a definitiva ascensão do poeta.
Se na prosa o contraste entre caracteres é absoluto e indissolúvel, no poema das
Crisálidas, o jovem Machado segue a utopia dantesca com toda a convicção, formulando a
imagem de uma musa ideal que deve ser eternizada em versos, ao contrário do que faria na
maturidade. Nas Memórias, embora pelo mesmo viés, o escritor renegaria a versão otimista
da morte como libertação e acrescentaria à sinfonia melancólica do mundo o coro
descompassado do riso cômico.
Comparando o delírio dantesco ao machadiano, encontramos pontos em comum ou
inversamente proporcionais: Pandora leva Brás para o alto da montanha, mas está longe de
ser uma musa: é mãe e inimiga; portanto, mostrará flagelos e delícias. Em vez de revelar as
glórias futuras, essa ―antimusa desnuda as vãs ambições do homem, mostrando ―a
necessidade da vida e a melancolia do desamparo‖.
O teor do diálogo entre a Natureza e Brás, em que se discute o valor da vida humana,
se assemelha ao discurso ouvido por Dante em seu delírio: ―Em seguida, ressoa / uma voz
sem verdade e sem razão,/ uma voz de mulher ou de mil cobras:/ - Você, da Morte é
uma das obras‖
54
. Brás, por sua vez, sente-se devorado pela impiedade de Pandora,
chamando-a de ―absurda‖, por destruir o que criou. Pandora, entretanto, replica que não
precisa mais de Brás, por isso o consumia impiedosamente, do mesmo modo que fez com
outros antes dele, e que faria com os que se seguiriam depois. Chega a chamá-lo de
―verme‖ apegado às inúteis migalhas de vida.
Há um contraponto interessante entre Pandora e Beatriz. Brás, dirigindo-se à primeira,
mostra o desejo de continuar vivo, mesmo diante de sua inutilidade, e de tantos flagelos
impostos pelo viver: ―Quem me pôs este amor à vida senão tu?. Contrariamente, no poema
do capítulo XXIII de Vida Nova, Dante assim dialoga com Beatriz: ―Quem me trouxe/ esta
vontade de morrer? Você!‖. Embora o poeta sinta uma grande desilusão diante do
falecimento da amada, e chegue a desejar a própria morte, é esta mesma dama que lhe
permite retornar à realidade, ao suspender as alucinações no leito de morte do poeta,
operando uma espécie de ―ressurreição‖.
54
Idem. p.54.
83
No romance machadiano, Pandora ri-se do desejo de Brás, síntese dos anseios
humanos: para que viver se a vida não passa de uma busca desenfreada pela Quimera da
felicidade, que jamais pode ser alcançada sem que se desfaça como uma visão do
impalpável?
No entanto, veremos mais adiante, que, embora a filosofia da obra machadiana da
maturidade desacreditasse o ideal, há vestígios, no final da vida do autor, de uma
reincorporação de certa vertente libertadora do amor, principalmente com o retorno de
temas biográficos, como no Memorial de Aires. Na última cena desse livro, parece que
ouvimos o eco, embora com laivos de solidão, dos ―Versos a Corina‖: ―Esta a glória que
fica, eleva, honra e consola‖. Enfim, Carmo e Aguiar encontrariam consolo frente às
angústias da vida, ainda que sem glória e elevação: achariam, na convivência mútua, o
emplastro para aliviar suas dores, mesmo diante do legado indiscutível das misérias
humanas.
Como ocorre na Vita Nuova, de Dante, onde o próprio autor revela o motivo da
inspiração dos versos, Machado também deixaria registrado, em uma carta enviada à noiva
Carolina, que o poema das Crisálidas havia se baseado em dados da realidade.
Curiosamente, o escritor fala em dois amores, um correspondido (ativo) e outro não-
correspondido (contemplativo); e de um terceiro Carolina que reuniria razão e emoção,
perfeita fusão do sentimento e do intelecto: a mulher ideal.
Pelo teor da resposta de Machado, o discurso procurava abrandar os ciúmes da futura
esposa em relação à musa das Crisálidas.
―És tão dócil como eu; a razão fala em nós ambos. Pedes-me cousas tão
justas, que eu nem teria pretexto de te recusar se quisesse recusar-te
alguma cousa, e não quero./.../
Acusas-me de pouco confiante em ti? Tens e não tens razão; confiante
sou; mas se não contei nada é porque não valia a pena contar. A minha
história passada do coração resume-se em dous capítulos: um amor
correspondido; outro, não-correspondido. Do primeiro nada tenho que
dizer; do outro não me queixo; fui eu o primeiro a rompê-lo. Não me
acuses por isso; há situações que se não prolongam sem sofrimento.(...) A
tua pergunta natural é esta: Qual destes dous capítulos era o de Corina?
Curiosa! era o primeiro. O que te afirmo é que dos dois o mais amado foi
o segundo./ Mas nem o primeiro nem o segundo se parecem nada com o
terceiro e último capítulo do meu coração. Diz a Staël que os primeiros
amores não são os mais fortes porque nascem simplesmente da
necessidade de amar. Assim é comigo; mas, além dessas, uma razão
84
capital, e é que tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho
conhecido. Espírito e coração como os teus são prendas raras; alma tão
boa e elevada, sensibilidade tão melindrosa, razão o reta não são bens
que a natureza espalhasse às mãos cheias pelo teu sexo. Tu pertences ao
pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar.
55
Diante de versos tão inspirados e reveladores como os do poema das Crisálidas,
Carolina tinha muitas razões para sentir ciúmes da musa que os havia inspirado. Talvez por
esse mesmo motivo o escritor teve o pudor de cortar a estrofe ao reeditar a obra poética na
maturidade. Afinal, o ―eterno‖, cantado no poema, fora corroído pela traça do minuto, e
nada mais restava da glória de Corina depois daquele momento, a não ser a sombra do
ciúme.
A sexta parte dos ―Versos a Corina‖ é um canto de lamento, pois a musa tomou o
―caminho do mar‖ e se distanciou do poeta. a quebra da ilusão inicial: o ideal sonhado
não se concretiza, a mulher que reunia amor e desejo, enfim, se restringe a uma lembrança -
nem beijo, nem olhar. O poeta retoma a dupla concepção de amor por ele idealizado, mas
admite que tudo não passou de um sentimento quimérico:
Eu só quis, numa ventura calma,
Sentir e ver o amor através de uma alma;
De outras vãs não valeu o esplendor,
A beleza eras tu: - tinhas a alma e o amor.
Pelicano do amor, dilacerei meu peito,
E com meu próprio sangue os filhos meus aleito;
Meus filhos: o desejo, a quimera, a esperança;
Por eles reparti minh‘alma. Na provança
Ele não fraqueou, antes surgiu mais forte;
É que eu pus neste amor, neste último transporte,
Tudo que vivifica a minha juventude:
O culto da verdade e o culto da virtude,
A vênia do passado e a ambição do futuro,
O que há de grande e belo, o que há de nobre e puro. (grifo nosso)
Se o amor a Corina é ―o último transporte‖, o distanciamento da amada é a definitiva
perda, o corte derradeiro da ilusão, ainda que, como fênix, o sentimento surja ainda mais
55
ASSIS. O.C. Vol.3. p. 1.029.
85
forte e seja a motivação para compor o poema. A poesia seria o espaço de realização do
impossível, de celebração do quimérico, mesmo que sob a égide de uma esperança
corroída, passível de esfacelamento ao mais leve sopro da desilusão.
Outro elemento do poema é o pelicano, símbolo medieval relacionado ao sacrifício.
Como se percebe em alguns hinos sacros, a Igreja comparava o desvelo dessa ave a Cristo,
pois, no passado, julgava-se que esse animal, por trazer alimento dentro do bico, alimentava
suas crias com a própria carne. Por causa disso, associaram a figura ao sacrifício do pai
pelos filhos e, conseqüentemente, ao martírio do Salvador.
A imagem do pelicano foi também usada por Dante na Commedia
56
. Embora tratada
como símbolo católico, tem implicações várias na maçonaria e na alquimia, e todas as
concepções, cristãs ou pagãs, a relacionam à dedicação, ao esforço humano ou divino para
se atingir um ideal à custa da própria vida.
No poema machadiano, o sacrifício advém da busca pela imortalidade dos versos,
único meio de eternizar a musa e de uni-la ao nome do poeta para sempre, como acontece
aos clássicos. Para tal, o poeta precisa doar seus sentimentos, sua própria essência, para
revivê-los em seguida, ainda mais fortes que antes. Os seus ―filhos‖ o desejo, a quimera e
a esperança - mesmo efêmeros, trazem em si o vigor da juventude, que é integralmente
depositado nesse ―último transporte‖: o canto derradeiro, o acorde final da lira de Orfeu.
56
―Paraíso‖. Canto XXV, verso 112 a 114.
86
1.5- Falenas: o sofrimento como tema
Se Corina marcou a trajetória poética de Machado em seu primeiro livro do gênero,
Carolina seria a inspiração para muitos dos poemas de Falenas. Lançado em 1870, no ano
seguinte ao casamento do poeta, o livro traz várias composições que se relacionam ao
período do noivado.
A borboleta (falena), após um período de reclusão no casulo, havia enfim vindo à luz.
Apesar das asas negras e do vôo crepuscular, o inseto machadiano nascia com a promessa
de fundir os três gêneros: o lírico, o épico e o dramático. Assim, o livro comportaria desde
poemas curtos até os longos e narrativos, e o escritor se enveredaria por vias profusas, ora
esboçando um gosto por temas dramáticos e trágicos, ora explorando o viés herói-cômico,
inspirado num Cruz e Silva e num Boileau, como nas estrofes de Pálida Elvira.
O lirismo de Falenas é, visivelmente, mais contido, mas ocorre um grande salto de
qualidade na lírica machadiana. O livro exibe uma poesia consistente tanto nas temáticas
quanto nos modelos adotados. Apesar da insistência no tema da musa, não existe uma
feição única no livro. A estética romântica estava diluída, enquanto a atmosfera clássica, as
paisagens exóticas, os temas universais passavam a ocupar a atenção do poeta.
O poema de abertura indica a continuidade do diálogo com a musa e a fidelidade ao
tema clássico. Prelúdio foi escrito inicialmente no álbum de Carolina
57
, e tudo indica que
Machado tenha retomado o tema de Octave Feuillet para render homenagem à amada, ainda
no período do prelúdio amoroso do casal.
O álbum de Carolina, por sua vez, tinha sido alvo de outros versos: os do irmão
Faustino Xavier de Novaes, que abriam o volume e falavam satiricamente da existência dos
álbuns como veículo de sedução dos poetas. De maneira irônica, Faustino escreve um
poema para alertar à irmã dos perigos que corria ao apegar-se a tal objeto.
57
MACHADO, Ubiratan. Dicionário Machado de Assis. Op. cit. p. 276.
87
Um álbum já tens! E eu creio
Que dás valor à Poesia;
Mas que não saibas receio
Quanto a moda deprecia
Esse tão puro recreio!
Julgas com ele inocente!
Mostrar que essa arte divina
Dos sábios não é somente?
- Que a luz que o gênio ilumina,
De fogo te inunda a mente?
Mas...nestas folhas mimosas
Poderás tu, algum dia,
Verter lágrimas piedosas,
Sobre a sentida poesia
Dessas Musas caprichosas?
Ai!...talvez...que nessa idade,
Em que abrasa o peito o ardor,
Olha tudo a mocidade
Por um prisma encantador,
Que a face muda a verdade!
A poesia sempre bela
Quase nunca é proveitosa
Para a candidata donzela:
Que mesmo se é venenosa
Doçuras só lhe revela.
Mas se um álbum tens embora!
É mister dar-lhe valor:
Começas a ouvir agora
Mentidas frases damor,
Lamentos de quem não chora...
Se um beldade te chamar,
E te disser que enlouquece,
Que nasceu para te amar,
Indaga se te conhece,
Ou se ouviu de ti falar.
Se outro bradar que ama em vão,
Que, ao ver-te, ficou perdido,
Não lhe preste atenção!
- Talvez cumpra o teu pedido
Tendo doutra a inspiração...
Nem por mais que o cauto exprima,
Creias, aqui consagrados,
Ardentes votos destima:
88
Faço versos, por pecados,
Sei a quanto obriga a rima...
Atenta bem neste espelho!
E da fraterna amizade
Aceita o justo conselho:
- Se velho não sou, na idade,
Já, nestas coisas, sou velho.
58
Pela descrição de Faustino, Carolina apreciava poesia, e, ao que tudo indica,
acompanhava com interesse a movimentação de poetas e os saraus literários na casa dos
Novaes. Ambiente igualmente favorável encontraria no Brasil, freqüentando os concertos
promovidos por um amigo da família, Artur Napoleão.
No Porto, Faustino foi colaborador assíduo do jornal A Grinalda, de propriedade de
João Marques Nogueira Lima, que reunia a nata dos poetas da cidade. Faustino abriria o
primeiro número do jornal, em 1855, com um poema satírico, bem como publicaria muitas
composições no jornal. A relevância desse veículo se deve ao fato de que alguns poemas do
álbum de Carolina viriam a público, assinados por três diferentes poetas.
Um estudo de Jean-Michel Massa sobre Carolina
59
, ainda pouco comentado pelos
estudiosos brasileiros, levanta questões sobre sua vida antes da chegada ao Brasil. O
pesquisador francês destaca alguns poetas do Porto que teriam dedicado versos à moça,
dentre os quais Augusto de Morais, João Marques Nogueira Lima (o proprietário de A
Grinalda) e, especialmente, J. Candido Furtado, todos pertencentes ao círculo de amizade
de Faustino.
Sobre Candido Furtado, Massa fala de uma maneira enfática, tendo em vista que esse
escritor dedicou à Carolina um poema de amor muito efusivo, intitulado Sorrisos,
sugerindo certa intimidade com a irmã de Faustino. A composição foi publicada em A
Grinalda em 1860. Como Massa não transcreve inteiramente a composição, optamos pela
edição original onde consta a íntegra do poema.
58
NOVAES, Faustino Xavier de. Poesias. 2ed. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1856. P.150-
151
59
MASSA, Jean-Michel. "Caroline: quelques documents retrouvés‖. In: Bulletin de la Faculté des Lettres de
Strasbourg. n 42. Strasbourg: Faculté de Lettres, 1964. p. 566.
89
SORRISOS
(No álbum da Exª Snrª D. Carolina Augusta Xavier de Novaes).
- IMITAÇÃO DE VICTOR HUGO -
Já que eu rocei com meus lábios
O teu cálix damor, anjo do céu...
Já que aspirei teu hálito fragrante;
Quando um beijo me deste delirante-
E teu seio arquejou, junto do meu; ...
Já que vejo brilhar sobre esta fronte
Um raio do teu astro divinal; ...
Já que no lago ameno desta vida
Bóia a folha de um lírio desprendida
Dessa tua existência virginal; ...
Já que te ouvi falar essa linguagem
Em que a alma transpõe seus castos véus; ...
Já que vi, na expansão de um gozo infindo,
E teus olhos chorando sobre os meus...
Eu posso dizer hoje aos anos tristes:
Passai! Gelo e velhice a mim não vem!
Impeli! vossa lúgubre corrente;
Tenho nalma uma flor sempre virente,
Quem ma pode roubar? ... louco! ... ninguém!
Ela encerra o meu néctar de ventura,
E nunca há de pender, murcha ao tufão:
Se em vós há pó e cinza e esquecimento...
Nesta alma há luz eterna! Há mais alento
E ainda mais amor no coração!‖ -
(Porto Abril de 1860)
60
Realidade ou fantasia do poeta, o que merece destaque é o sentimento que Carolina
nele despertou. Talvez fossem apenas mentidos versos de amor, como replicara Faustino,
apenas com a finalidade de imitar Hugo ou de fornecer belos versos à dama. Toda essa
efusão amorosa já estava prevista na advertência do irmão, na abertura do álbum de
Carolina. O tom, no entanto, é realmente diferente dos outros dois poemas de amor,
genéricos por assim dizer, publicados em edições anteriores de A Grinalda por Nogueira
Lima e Augusto de Morais. Também são transcrições do álbum de Carolina, conforme
indicam as dedicatórias.
60
FURTADO, J. Candido. ―Sorrisos‖. In: A Grinalda. Ano III. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira,
1860. p.28-29.
90
Todas essas informações vêm confirmar que a futura esposa de Machado teria
convivido num ambiente favorável à literatura, cercado de escritores, principalmente de
poetas. Não teria, portanto, se furtado dos galanteios, nem, talvez, deixado de vivenciar
algum amor concreto. A publicação do poema de J. Candido Furtado, com sua franca
dedicatória à dama, mostra-nos que, se isso realmente aconteceu, não se tratava de um amor
secreto.
Dando continuidade ao estudo de Falenas, em Prelúdio, Machado retorna à terra da
poesia, da qual se despedira na Última folha das Crisálidas. Vale lembrar que, nesse
poema, Machado pedia à musa que descesse do alto da montanha, como um canto de
despedida: Musa, desce do alto da montanha/ Onde aspiraste o aroma da poesia,/ E deixa
ao eco dos sagrados ermos/ A última harmonia!.
Com o distanciamento da musa Corina, talvez quisesse enveredar por outras vias, ou
pensasse que não mais restava inspiração para compor novos versos. O que fica patente é o
etorno da poética da musa, ainda que as ilusões de outrora tivessem se dispersado da
fronte do mancebo.
Machado, ao escrever Prelúdio, toma como mote uma das cenas da peça Dalila, de
Octave Feiullet, em que Amélia Sertorius pede que a levem numa jornada à Alemanha para
curar-se de sua loucura, provocada por uma mágoa de amor.
Lembra-te a ingênua moça, imagem da poesia,
Que a André Roswein amou, e que implorava um dia,
Como infalível cura à sua mágoa estranha,
Uma simples jornada às terras da Alemanha?
O poeta é assim: tem, para a dor e o tédio,
Um refúgio tranqüilo, um suave remédio:
És tu, casta poesia, ó terra pura e santa!
Quando a alma padece, a lira exorta e canta;
E a musa que, sorrindo, os seus bálsamos verte,
Cada lágrima nossa em pérola converte.
61
A dor e o sofrimento cercam a montanha do poeta, mas o clássico refúgio das musas
a terra da poesia - ainda parecia ser o melhor lugar para converter lágrimas em pérolas: o
canto alivia a angústia da alma, é suave remédio, como diz o poema. A presença do
61
ASSIS. T.P. p. 93.
91
nossa, no último verso, é uma mostra de que o poeta se solidariza com a dor da moça e
compartilha das mesmas aflições.
Amor e loucura seriam assuntos muito próximos tanto de Carolina quanto de
Machado; afinal, a vinda da moça para o Brasil, terra estranha, foi motivada pela doença
mental que acometeu o irmão Faustino Xavier. A doença do poeta demandava muitos
cuidados, mas também serviu de ponte para que Machado e Carolina, reunidos à volta do
enfermo, se conhecessem e se aproximassem. Alguns biógrafos alegam também uma
desilusão amorosa de Carolina em Portugal. Portanto, ambos os pretextos teriam a cura
como objetivo, seja física (do irmão), ou sentimental (da própria Carolina). Assim, o poeta
parece querer consolá-la:
A outra terra era má, o meu país é este;
Este o meu céu azul,
Se um dia padeceste
Aquela dor profunda, aquele ansiar sem termo
Que leva o tédio e a morte ao coração enfermo;
Se queres mão que enxugue as lágrimas austeras,
Se te apraz ir viver de eternas primaveras,
Ó alma de poeta, ó alma de harmonia,
Volve às terras da musa, às terras da poesia!
Tens, para atravessar a azul imensidade,
Duas asas do céu: a esperança e a saudade.
Uma vem do passado, outra cai do futuro;
Com elas voa a alma e paira no éter puro,
Com elas vai curar a sua mágoa estranha.
A terra da poesia é a nossa Alemanha.
Enfim, o Brasil seria o ponto de união do amor e da dor, e o casal encontraria, um no
outro, o consolo para os dramas pessoais. Machado ainda diria em carta que o fato de a
noiva ter sofrido era um dote que sobrepujava os demais, demarcando uma perspectiva
interessante em relação à vida, colocando o sofrimento como condição intrínseca para a
formação do caráter.
Além disso tens para mim um dote que realça os demais: sofreste. É
minha ambição dizer à tua grande alma desanimada: ―levanta-te, crê e
ama; aqui está uma alma que te compreende e te ama também‖./ A
92
responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a
com alegria, e estou que saberei desempenhar este agradável encargo./
Olha, Querida, também eu tenho pressentimento acerca da nossa
felicidade; mas que é isto senão o justo receio de quem não foi ainda
completamente feliz? Obrigado pela flor que me mandaste; dei-lhe dous
beijos como se fosse em ti mesma, pois que apesar de seca e sem perfume,
trouxe-me ela um pouco de tua alma. (Machadinho).
62
O epíteto de ―Querida‖, que aparece na carta, também marca a presença de Carolina
na obra de Machado, principalmente na poesia, como veremos adiante. A flor citada na
missiva, ―apesar de seca e sem perfume‖, traz um pouco da alma de ―Carola‖, por isso é
beijada. Como o episódio da Pedra de Bolonha, do Werther de Goethe, em que o
protagonista se alegra ao ver o criado pelo fato de ter estado junto a Carlota (e precisa
refrear sua vontade de abraçá-lo), na carta de Machado, a amada é capaz de transmitir o
fulgor da sua presença para a flor, de maneira que aquilo que era inútil e sem valor passa a
ter uma importância extrema.
Assim como o autor se inspirou em Vida nova, de Dante, para tratar de Corina, as
cartas de amor de Machado ganham um tom próximo das cartas do Werther, de Goethe,
obra também baseada numa musa real: Charlotte Buff. A evocação da Alemanha em
Prelúdio traz um pouco da pátria de Goethe não apenas na referência, mas também
quando trata do sofrimento como tema. A poesia e o amor parecem oferecer a cura, o alívio
da alma de todas as ―mágoas estranhas‖.
Os poemas subseqüentes vão abordar o tema da dor e das decepções, em muitos
aspectos. Desde os tulos, se percebe a atmosfera de tristeza dos versos de Falenas, seja
porque essas borboletas têm um ar soturno, ou porque a musa de Machado está envolvida
por uma atmosfera de mortes e de perdas familiares, muito semelhante ao que o poeta havia
vivenciado desde a infância.
Por outro lado, alguns poemas do livro apresentavam também o humor e o riso, como
―Cegonhas e rodovalhos‖ e ―Uma ode de Anacreonte‖, e, ainda, outras composições
explorariam o perfil tragicômico, como ―Pálida Elvira‖ e ―No espaço‖. Contudo, ainda
quando o poeta trata de ―Ruínas‖ e de ―Sombras‖, uma mensagem de consolo em cada
62
ASSIS. O.C. Op.cit. p. 1.030.
93
verso, como se a pena do autor assumisse a responsabilidade de falar da dor, mas também
de oferecer a cura, como havia proposto no início.
Podemos dividir o livro em três partes: Lírica formada pelo núcleo de poemas e
traduções, iniciado com Prelúdio e encerrado com ―Lira chinesa‖; Dramática com o
longo poema ―Uma ode de Anacreonte‖, e ―Épica‖ - com a narrativa em versos de ―Pálida
Elvira‖, que recebe, na página de rosto, o nome de ―conto‖, suprimido pelo autor na edição
de 1901.
A primeira parte lírica - interessa-nos em especial, uma vez que ―Pálida Elvira‖
recebeu um extenso estudo em nossa dissertação de mestrado
63
, e ―Uma ode de
Anacreonte‖, apesar de ser um poema dramático, não se enquadra no gênero ―comédia‖ que
será tratado, em especial, no capítulo sobre o teatro de Machado de Assis, incluindo as
peças ―Os deuses de casaca‖, ―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖.
Na leitura de Falenas, nos interessa prosseguir o estudo sobre o processo criativo do
escritor, entremeando vida e obra. O artista segue compondo a partir de experiências
vividas ou lidas, e acrescenta a tudo isso o toque da autoria, as pinceladas de estilo da pena
de escritor. Assim, tamisa a matéria da vida com a sensibilidade necessária, e recolhe
apenas aquilo que de fato tem relevância em seu projeto estético.
Dentre a parte rica do livro, dedicamos especial atenção àquelas composições
relacionadas à temática do sofrimento, e que possuem alguma ligação com Carolina.
―Ruínas‖, por exemplo, o segundo poema de Falenas, mostra o encontro do vate com
―austera moça‖, ambos com um histórico de melancolias e de mágoas, e que se solidarizam
para transporem, juntos, o cerco das ruínas.
Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,
Sítios caros da infância.
Austera moça
Junto ao velho portão o vate aguarda;
Pendem-lhe as tranças soltas
Por sobre as roxas vestes;
Risos não tem, e em seu magoado gesto
Transluz não sei que dor oculta aos olhos,
- Dor que à face não vem, - medrosa e casta,
Íntima e funda; - e dos cerrados cílios
Se uma discreta e muda
63
AMPARO. Op.cit. p. 91-110.
94
Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;
Melancolia tácita e serena,
Que os ecos não acorda em seus queixumes,
Respira aquele rosto. A mão lhe estende
O abatido poeta. Ei-los percorrem
Com tardo passo os relembrados sítios,
Ermos depois que a mão da fria morte
Tantas almas colhera. (...)
64
Ao clima triste da paisagem, acrescem-se duas figuras, o vate e a moça, que percorrem
os sítios do ontem e do agora, e se detêm em cada trecho, como se dividissem entre si o
peso dos desgostos sentidos. No entanto, não se trata de uma melancolia exasperada, que
produz desespero e desconsolo, mas ―tácita e serena‖, dor refletida, transmutada em
experiência. O monólogo do poeta mostra a identificação entre ele e a moça e, o que é mais
relevante, há uma espécie de reconhecimento, como se o rosto dela fosse um eco do
passado, uma imagem que retornava ao raso da memória.
―Quem és? Pergunta o vate; o sol que foge
No teu lânguido olhar um raio deixa;
(...)
Conhecem-te estas pedras; das ruínas
Alma errante pareces condenada
A contemplar teus insepultos ossos.
Conhecem-te estas árvores. E eu mesmo
Sinto não sei que vaga e amortecida
Lembrança de teu rosto.
A lembrança ―vaga e amortecida‖ parece-se com uma recordação da infância, uma
identificação materna. O mais provável, no entanto, é a retomada da questão das almas que
se reencontram e se reconhecem, como as metades perdidas que vagam em busca do par
perfeito. O rosto, como em espelho, reflete a sombra do outro, onde uma
correspondência plena, e que faz tudo soar com familiaridade.
Sem se desvencilhar da poética da musa, o poeta continua o diálogo, desta vez com a
―Musa dos olhos verdes‖, a que traz a aurora da esperança e faz renascer um novo dia,
rompendo as sombras existentes em seu íntimo.
64
ASSIS. T.P. p. 94.
95
Casta filha do céu, virgem formosa
Do eterno devaneio,
Sê minha amante, os beijos meus recebe,
Acolhe-me em teu seio!
Já cansada de encher lânguidas flores
Com as lágrimas frias,
A noite vê surgir do oriente a aurora
Dourando as serranias.
Asas batendo à luz que as trevas rompe,
Piam noturnas aves,
E a floresta interrompe alegremente
Os seus silêncios graves.
Dentro de mim, a noite escura e fria
Melancólica chora;
Rompe estas sombras que o meu ser povoam;
Musa, sê tu a aurora!
65
A musa que surge em meio às ruínas, aos vermes e às sombras do livro é a imagem do
ideal, como a ―aurora‖ que rompe a escuridão da noite, além de ser definida como ―consolo
do ancião‖ e ―sonho de criança‖, satisfazendo os anseios das duas pontas da existência.
Nesse caso, o poeta contrariava a tradicional concepção lírica dos olhos verdes como
―enganadores‖, baseada na cantiga camoniana, retomada, aliás, por Gonçalves Dias em seu
belo poema ―Olhos verdes‖. A musa de Machado, assim como no poema ―Musa
consolatrix, serve unicamente como alento e consolo à alma do poeta, na verdade, ainda
não tinha assumido os ares de Pandora: aquela que trazia, juntamente com a esperança,
todos os males da vida humana.
A atmosfera de mistério, os ecos do passado, as perdas pessoais são os temas de
―Sombras‖, poema que retoma o clima melancólico. Temos novamente o diálogo entre o
poeta e a dama, que, dessa vez, não nomeada, nem marcada com vocativos. O ambiente
agora é o de um templo cristão, povoado de sombras e espectros do passado, e o poeta
aconselha a moça que fixe o olhar na cruz do Senhor, único lugar iluminado da igreja.
65
ASSIS.T.P. p. 96.
96
Essa cruz simboliza o martírio divino e a morte, mas também a redenção, que anula o
passado a partir de uma aliança futura - talvez apontando o casamento como uma
possibilidade libertadora: ―Pejam sombras, bem vês, a escuridão do templo;/ Volve os
olhos à luz, imita aquele exemplo;/ Corre sobre o passado impenetrável véu;/ Olha para o
futuro e vem lançar-te ao céu."
O ―véu‖, que aparece em outros momentos e tem profunda relação com o casamento -
tanto na acepção da cerimônia em si, dos paramentos da noiva, quanto na acepção da
virgindade que conota aqui significa a separação entre o passado e o futuro, o
rompimento com um compromisso ou estado anterior. O ―impenetrável véu‖ era a proteção
necessária, o divisor dos tempos, o marco de um reinício.
A religiosidade, antiga característica da lírica de Machado, transfere-se inteiramente
para o âmbito da relação amorosa. A comparação entre o cerimonial sagrado e a união do
casal é um recurso empregado pelo poeta, tomando como modelo o livro dos Cânticos, que
serve como parâmetro lírico, assim como o Eclesiastes seria inspiração filosófica na prosa.
Nota-se, porém, o rompimento do poeta com a religião, com o institucional, com a crença
católica. A partir de então, toda a relação com o sagrado se dará unicamente no uso de
determinadas imagens, ou como metáfora de algo relacionado à vida.
Para Machado, assim como revela o poeta nas suas composições, o ideal presente na
instituição ―família‖ assume o papel do sagrado. O lar seria o reino da bem-aventurança,
justa expectativa de quem nunca de gozar plenamente do acolhimento de um ambiente
doméstico propriamente dito.
Minha Carola,
Dizes que, quando lês algum livro, ouves unicamente as minhas palavras,
e que eu ocupo o teu pensamento e a tua vida? mo disseste tanta vez, e
eu sempre a perguntar-te a mesma cousa, tamanha me parece esta
felicidade. Pois, olha; eu queria que lesses um livro que eu acabei de
ler dias, intitula-se: “A Família”. Hei de comprar um exemplar
para lermos em nossa casa como uma espécie de Bíblia Sagrada. É um
livro sério, elevado e profundo; a simples leitura dele dá vontade de
casar./ Faltam quatro dias; daqui a quatro dias terás a melhor carta que
eu te poderei mandar, que é minha própria pessoa, e ao mesmo tempo
lerei o melhor. (grifo nosso)
66
66
ASSIS. O.C. Op.cit. p. 1.031.
97
O amor é, portanto, o único altar em que o escritor queima o incenso literário, e a esse
sentimento oferece total devoção. ―A família‖ assume a esfera das coisas santificadas, a
ponto de um livro com esse título passar a ser comparado à Bíblia Sagrada.
O universo da escrita, por sua vez, serve como parâmetro para estabelecer
determinadas significações, tanto que o escritor equipara a sua pessoa a uma carta que pode
ser lida pela amada, assim como lerá também o melhor texto na pessoa de Carolina.
Exprimindo essa aproximação entre o ler e o amar, temos o poema ―Livros e flores‖,
que une ambos os objetos da devoção do escritor - a literatura e a musa que o inspira: Teus
olhos são meus livros./ Que livro melhor,/ Em que melhor se leia/ A página do
amor?‖.
A ligação do poeta a esse amor ―divino‖, como o de uma Beatriz, aparece em outros
poemas. Em ―Quando ela fala‖, chega a afirmar: ―Minh‘alma, já semimorta,/ Conseguira ao
céu alçá-la/ porque o céu abre uma porta/ Quando ela fala.‖ A amada seria aquela criatura
angélica que o conduziria ao ―céu‖, metáfora da felicidade e ápice da realização pessoal. A
mesma concepção é adotada em ―Pássaros‖, onde o amor transcendental mais claramente se
afigura.
Porque o céu é também aquela estância
Onde respira a doce criatura,
Filha do nosso amor, sonho da infância,
Pensamento dos dias juvenis.
Lá, como esquiva flor, formosa e pura,
Vives tu escondida entre a folhagem,
Ó rainha do ermo, ó fresca imagem
Dos meus sonhos de amor calmo e feliz!
(...)
Da tua imagem vaporosa e linda,
Único alento que me prende aqui.
E dirão mais que estrelas de esperança
Enchem a escuridão das noites minhas.
Como sobem ao monte as andorinhas,
Meus pensamentos voam para ti.
A erotização dos poemas das Crisálidas, seguindo a lírica ovidiana, é atenuada ao
máximo, restando a faceta do amor mais etéreo e espiritual. Parece que existe ainda um eco
de Dante na escrita machadiana, basta lermos o trecho transcrito para encontrarmos
98
elementos que seguem a sublimação do amor e da amada, que incidindo na questão de um
―sentimento superior‖ que eleva a alma a outras estâncias. Por outro lado, mesmo que a
ênfase espiritual se destaque, há o esfacelamento da convicção religiosa estrito senso.
Isso fica nitidamente exemplificado no poema Ite, missa est‖, expressão latina que
anuncia o fim da missa. Se em ―Monte Alverne‖ a admiração motiva o canto do poeta, em
Ite, missa est só existe a celebração do fim. Cada estrofe finalizada é uma ilusão
religiosa que se esvai, enquanto o eu-lírico se admite como ―servo do altar de um deus
esquivo‖. A cruz, único lugar iluminado do templo no poema ―Sombras‖, neste é beijada
pelo ―servo‖, antes que sua luz, por completo, se esmaeça.
Pobre servo do altar de um deus esquivo,
É tarde; beija a cruz;
Na lâmpada em que ardia o fogo ativo,
Vê, já se extingue a luz.
Cubra-te agora o rosto macilento
O véu do esquecimento.
Ite, missa est.
67
Do ―impenetrável véu‖ ao ―véu do esquecimento‖, tudo parece apontar para o
definitivo aniquilamento do passado, tanto ―dele‖, quanto ―dela‖: do eu-lírico e da musa. O
―véu‖ que aparece em ―Sombras‖ e em Ite, missa est indica a ―separação‖, a barreira
posta entre o ontem e o amanhã. É manto que cobre os olhos para que não vejam mais os
fantasmas, as mágoas, os desacertos, as dores, as ilusões, tudo em nome do ―amor
tranqüilo‖, que veremos num outro poema: ―Noivado‖.
Nessa composição, visivelmente dirigida a Carolina (noiva do poeta à época),
Machado busca a grande celebração: a sacralização do amor, único sentimento capaz de
transcender a vida, e de se lançar à eternidade. É interessante como o poema ficou
esquecido pelos estudiosos de Machado, sendo essa a mais bela composição machadiana
relacionada à esposa, juntamente com o soneto ―A Carolina‖, publicado após a morte da
companheira. Podemos dizer que ambos os poemas se complementam ao exaltar o amor, a
um tempo, de maneira intensa e serena, apontando para a hipótese da nova união após a
67
ASSIS.T.P. p.105.
99
morte. Também o epíteto ―querida‖, usado nas cartas dirigidas a Carolina, reaparece nos
dois poemas, logo nos primeiros versos.
Em ―Noivado‖, temos a imagem do altar que se remete à cerimônia matrimonial. O
pôr-do-sol anuncia o término do dia, enquanto a tarde traz o véu como de noiva, marcando
a definitiva separação entre o diurno e o noturno. É a noite que vai abrigar os noivos sob a
luz da lua, enquanto a ―flor querida‖ ajeita o cálix para receber o ―orvalho‖.
Os elementos apontam, metaforicamente, para a união amorosa do casal, destacando-
se a ―flor‖ como a representação do feminino, enquanto o ―orvalho‖ adquire as conotações
do masculino. Toda a natureza é reflexo dos anseios dos noivos, e cada movimento indica
um sentimento da alma de cada um, ou uma ação desejada por ambos. As manifestações
naturais são encadeadas aos pares, sempre evocando o masculino e o feminino: sol/terra,
vento/ folhas, flor/orvalho.
Vês, Querida, o horizonte ardendo em chamas?
Além destes outeiros
Vai descambando o sol, e à terra envia
Os derradeiros raios;
A tarde, como noiva que enrubesce,
Traz no rosto um véu mole e transparente;
No fundo azul a estrela do poente
Já tímida aparece.
Como um bafo suavíssimo da noite,
Vem sussurrando o vento,
As árvores agita e imprime às folhas
O beijo sonolento.
A flor ajeita o cálix: cedo espera
O orvalho, e entanto exala o doce aroma;
Do leito do oriente a noite assoma;
Como uma sombra austera.
Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos,
Vem, minha flor querida;
Vem contemplar o céu, página santa
Que amor a ler convida;
Da tua solidão rompe as cadeias;
Desce do teu sombrio e mudo asilo;
Encontrarás aqui o amor tranqüilo...
Que esperas que receias?
68
68
ASSIS. O.C. Vol. III. p. 45
100
O último verso parece uma resposta às inquietações esboçadas na carta dirigida à
noiva: A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto melindrosa; mas eu aceito-a com
alegria, e estou que saberei desempenhar este agradável encargo. Olha, querida, também eu
tenho pressentimento acerca da mª felicidade; mas o que é isto senão o justo receio de quem
não foi ainda completamente feliz?
69
O poeta complementa a pergunta, afirmando que a noiva não precisava temer o futuro,
pois o casamento eternizaria o amor, fazendo-os passar ―do sol da terra‖ ao ―sol da
eternidade‖. Observa-se também o uso das metáforas religiosas para esboçar a união
amorosa, e não para demonstrar uma devoção, no sentido mais estrito.
Olha o templo de Deus, pomposo e grande;
Lá no horizonte oposto
A lua, como lâmpada, já surge
A alumiar teu rosto;
Os círios vão arder no altar sagrado,
Estrelinhas do céu que um anjo ascende;
Olha como de bálsamo recende
A c‘roa do noivado.
Irão buscar-te em meio do caminho
As minhas esperanças;
E voltarão contigo, entrelaçadas
Nas tuas longas tranças;
No entanto eu preparei teu leito à sombra
Do limoeiro em flor; colhi contente
Folhas com que alastrei o solo ardente
De verde e mole alfombra.
Pelas sombras do tempo arrebatados,
Até a morte iremos,
Soltos ao longo do baixel da vida
Os esquecidos remos.
Firmes, entre o fragor da tempestade,
Gozaremos o bem que amor encerra,
Passaremos assim do sol da terra
Ao sol da eternidade...
70
O epílogo do poema lembra, em muitos aspectos, mais um trecho da correspondência
dos noivos: ―Depois... depois, querida, ganharemos o mundo, porque é verdadeiramente
69
Idem. p. 1.029.
70
Idem. p. 48.
101
senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das ambições estéreis. Estamos
ambos neste caso; amamo-nos; e eu vivo e morro por ti
71
‖. O ganharemos o mundo‖, o
se aplica à conquista material, mas tem a mesma conotação do ―soltar os remos do baixel
da vida‖ diante da maior das tempestades. Que importam as ambições mundanas ou o
naufrágio, se dentro do barco, ou um num recanto da terra, ―cabe o mundo inteiro‖? O amor
tranqüilo se alojaria nesse espaço restrito e imenso onde tudo o que é essencial se
multiplica por dois.
A sombra do limoeiro em florparece remeter à ―sombra da macieira‖, presente nos
Cânticos: ―Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os jovens;
desejo muito a sua sombra, e debaixo dela me assento. O seu fruto é muitíssimo doce ao
meu paladar.‖ (Cânticos 2:3). que o dulçor de um fruto não se coaduna ao azedume do
outro. Qual seria, portanto, o motivo da escolha do poeta, nessa composição, ao remeter-se
à ―sombra do limoeiro em flor‖?
Pode-se dizer que a imagem de um limoeiro em flor é belíssima, ainda mais porque,
sendo a árvore tão singela e com frutos desprovidos de doçura, o espetáculo da floração
resume todo o encanto que essa árvore pode reunir.
Por outro lado, a temática do poema se assemelha, em muitos aspectos, à de um poeta
português chamado Joaquim Pinto Ribeiro Júnior, importante escritor do Porto, cidade da
noiva de Machado. A composição de Ribeiro Júnior a que nos referimos intitula-se ―A
noiva‖, e faz parte do livro Lágrimas e flores, publicado em Portugal em 1856, no mesmo
ano e na mesma tipografia em que Faustino Xavier publicara suas Poesias. É muito
provável que o poeta fizesse parte do círculo de literatos que freqüentava a casa dos
Novaes, no Porto, já que também era um dos colaboradores de A Grinalda.
A noiva
A festa é finda: alonga-se
Das turbas o rumor,
Expira em cada sírio
Um instante d‘amor;
Ficou só virgem tímida
71
Em recente pesquisa do acadêmico Sérgio Paulo Rouanet dos originais das cartas machadianas, descobriu-
se um equívoco na transcrição: no lugar de queimaremos o mundo‖, como consta na edição da Nova
Aguilar, o escritor havia escrito: ―ganharemos o mundo‖.
102
Que, envolta em branco véu,
Tinha a beleza mágica
D‘essas visões do céu;
(...)
E bela inocência
Ouvindo a extrema voz,
A noiva sobre o tálamo
Grinalda e véu depôs;
Tira os pingentes lúcidos,
E, entre tanto esplendor,
Só viu nos seios úmida
Da laranjeira a flor;
―Porque, diz, entre o júbilo
Que hoje me doa o céu,
Um pensamento lúgubre
No coração nasceu?
No alvor eu disse as mágoas:
―Ide, feliz serei!‖
Mal cobre inda os tugúrios
A noite, e já chorei!
Ai, qual grinalda fúnebre,
A c‘roa nupcial
Faz nossa imagem súbito
Morrer no chão natal;
Esquece-a o lago límpido,
Qual da andorinha azul
A sombra vã se prófuga
Passou, buscando o sul!
Ó maternas carícias,
Risos, fala d‘amor
À sombra odora e plácida
Do limoeiro em flor:
Saudosas noites límpidas
D‘ inocente folgar,
Cumpria pois tão rápidas
Ver-vos assim voar?
Faz da ventura a árvore
Uma só flor abrir
E um astro cai no túmulo
Quando o outro vai surgir!‖
Dizia e o alto pórtico,
Rico d‘áureo lavor,
Já vacilante e pálida
Vê o esposo transpor.
72
72
RIBEIRO JR , Joaquim Pinto. Lágrimas e flores. Porto: Typographia de Sebastião José Pereira, 1856. p.
166-169
103
O poeta portuense trata do desencontro do Sol e da Lua: quando um deles desponta, o
outro descamba no horizonte, e vice-versa. A união, portanto, é impossível, e resulta numa
eterna insatisfação. A noiva fica obrigada a depor a grinalda no altar, que o noivo a
abandona. Entretanto, o suplício não finda, pois, pálida e vacilante, o amado retornar,
mas já então é chegada sua hora de partir.
Desconstruindo essa imagem de desencontro, Machado homenageia Carolina com o
poema Noivado‖, como se mostrasse uma nova versão da ―Noiva‖; apenas nesse caso, o
encontro do casal é completo e não se realiza unicamente no plano terreno, mas também no
celestial, ultrapassando a questão limítrofe do tempo. Contudo, a bela imagem de Ribeiro
Júnior, a ―sombra do limoeiro em flor‖, é mantida, assim como a imagem da noite, em que
se tem o ―inocente folgar‖.
Arte e vida seguem numa harmoniosa confluência na obra machadiana do período. É
difícil separá-las sem dano para a compreensão do todo de sua poética, e decerto torna-se
necessário muito cuidado para não esvaziá-la de sentido, conduzindo-a somente pela
vertente biográfica. Há certa reserva por parte da crítica quando se fala dos aspectos
pessoais na obra de um autor. Onde acabaria o homem e começaria o escritor?
Ao contrário de diminuir o valor de uma obra, o perfil intimista desse Machado jovem
o particulariza, principalmente porque ele não expõe abertamente o contexto biográfico,
mas o dissimula sob o véu das metáforas. Vivendo no período intimista por excelência,
época do romantismo mais exacerbado, não havia motivo para o poeta encobrir as marcas
pessoais do seu texto. No entanto, sempre um recato em exteriorizar-se, uma contenção
nos sentimentos. São as referências de leitura e o confronto entre textos que nos permitem
estabelecer conexões entre arte e vida na obra machadiana, partindo da leitura e da
interpretação dos poetas clássicos que também usaram a realidade como inspiração da obra:
Dante, Ovídio e Goethe, para citar alguns exemplos aqui analisados.
Apesar de o alvo de nosso estudo ser o poeta, principalmente em início de carreira,
não se pode desprezar a matéria biográfica que serve de objeto para a composição de textos
da maturidade. A idéia de ―eternidade‖, de um amor além da existência terrena, permanece
em outros momentos em que Machado se refere à presença de Carolina em sua vida e, por
que não dizer, também em sua obra.
104
O poema dedicado à esposa em 1904, após sua morte, é um canto de lamento que
relembra os versos de Alma minha gentil que te partiste‖ de Camões. A Carolina é um
dos mais conhecidos poemas de Machado e refaz a trajetória dos dias idos e vividos do
casal do Cosme Velho.
Novamente, quando se trata da separação entre ambos, tudo não passa de um estágio
provisório: ―Trago-te flores, restos arrancados/ da terra que nos viu passar unidos/ e ora
mortos nos deixa e separados‖. Portanto, a terra é o único empecilho para a união. Tão logo
o vínculo material se rompa, os dois poderão se reencontrar em outro plano, pois, se a
morte dela é fato consumado, o poeta também jaz sem vida diante dessa ausência (no verso
―ora mortos, nos deixa...‖ o uso do plural indica a morte de ambos, uma real, e outra
metafórica). Essa atitude reforça a idéia das ―almas gêmeas‖ de que tratamos anteriormente,
ou seja, ―mortos e separados‖, como no mito do andrógino platônico.
Ao contrário do que se afirma sobre a distância entre o escritor da juventude e o da
maturidade, muito mais coisas entre o menino e o homem do que até agora se notou. O
estilo se apurou com o tempo, o rigor crítico se intensificou, os conhecimentos tornaram-se
mais consistentes, não dúvida em relação a tudo isso. No entanto, muitas temáticas
seriam trabalhadas por toda a vida, incluindo a questão sobre a eternidade do amor, não
aquele ilustrado em livros, mas o que passava pela experiência pessoal.
Se um dos motivos do livro Falenas é a presença de Carolina, no fim da vida de
Machado a grande inspiração será sua ausência, ou seja, o canto de tristeza pela morte da
esposa. Nesse caso, o Memorial de Aires se configura como obra biográfica, algo
ficcionalizada, como o poderia deixar de ser, dissimulada no discurso autoral. No
entanto, vida e obra se fundem quando comparamos trechos de uma carta de Machado com
falas de Aires no Memorial. Em carta ao amigo Joaquim Nabuco, em 20 de novembro de
1904, assim Machado relataria o falecimento da esposa:
Foi-se a melhor parte de minha vida, e aqui estou só. Note que a solidão
não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com
ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa companheira de 35 anos de
casados tinha comigo; mas não imaginação que não acorde, e a vigília
aumenta a falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eu contava morrer
antes dela, o que seria um grande favor. Aqui me fico, por ora na mesma
casa, no mesmo aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me
105
lembra a minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento,
não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará.
73
Ainda que acusem Machado de cético, a carta revela uma crença no amor, numa
existência além do plano material. Talvez, pelo viés literário, Machado tenha construído
uma idéia de eternidade, um Paraíso como o que Dante alcança pelas mãos de Beatriz. O
Machado de cabelos brancos não desmentia os versos do jovem de outrora, mas reafirmava
o pensamento contido nos ―Versos a Corina‖: ―Essa é a glória que fica, eleva, honra e
consola‖, a glória do amor, que redime o homem, é o que o eleva para além da fama
literária. Também daria continuidade às idéias poetizadas em ―Noivado‖ ou esboçada nas
cartas anteriores ao casamento.
O Memorial de Aires, último romance de Machado, apesar de alguns críticos
resistirem à idéia de autobiografia, incontestavelmente, mostra indícios de que o escritor
desejava prestar à esposa a última homenagem. O próprio Mário de Alencar revelaria a
confidência do amigo de que Carmo era a representação de Carolina
74
, o que também
podemos comprovar pela leitura de cartas do período. Mario chegaria a declarar que ―a
alma religiosa de Machado de Assis achara, enfim, na dor da saudade a forma de uma
religião.(...) Vivia no seu coração a imagem da companheira morta e era natural que ela
vivesse também na sua obra literária‖.
75
um trecho do Memorial em que Aires faz à irmã uma declaração de teor
semelhante à confissão feita pelo escritor na carta a Nabuco, acima transcrita, e traz
novamente o pensamento que aqui referimos sobre a transcendência do amor.
(12 de janeiro)
Na conversa de anteontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a
minha mulher, que esenterrada em Viena. Pela segunda vez falou-
me em transportá-la para o nosso jazigo. Novamente lhe disse que
estimaria muito estar perto dela, mas que, em minha opinião, os mortos
ficam bem onde caem; redargüiu-me que estão muito melhor com os
seus.
- Quando eu morrer, irei para onde ela estiver, no outro mundo, e ela virá
ao meu encontro, disse eu.
76
73
ASSIS. O.C. Op. cit. p. 1.071.
74
ALENCAR, Mario de. Alguns escritos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa; MEC, 1995. p. 40.
75
Idem. p. 38.
76
ASSIS. O.C. vol.1. p. 1.099.
106
Todo o diário de Aires gira em torno da viuvez, do casamento, da fidelidade e da
vida conjugal. duas pontas da vida representadas pelo antes e depois de Machado: tanto
Aguiar quanto Aires são seus auter egos, o primeiro representando o homem casado que
suporta as dores e perdas da vida ao lado da esposa fiel e dedicada; o outro é o viúvo que
realiza a leitura dos dias idos e vividos, buscando resgatar o teor da existência em cada uma
das ações e dos sentimentos humanos.
Atando as duas pontas, o casal Tristão e Fidélia são representações perfeitas da
união que rompe com todos os obstáculos terrenos - ao contrário de Félix e Lívia, ou de
Bento e Capitu, onde o desconcerto da união, que o ciúme faz destoar a sinfonia dos
apaixonados.
Tristão, até no nome, é o contrário de Félix de Ressurreição. Nem mesmo a
memória do marido de Fidélia, ou de qualquer outro homem, pôde interromper seu
propósito de desposar a jovem viúva. Fidélia, por sua vez, ao contrário de Lívia, não teme
ser feliz pela segunda vez, quebrando os votos antigos ao contrair novo matrimônio.
Também Machado e Carolina precisaram romper as decepções amorosas do passado,
apostando que ambos poderiam ser felizes juntos.
Até a irmã de Aires, Rita, encontra correspondência real na pessoa de D. Rita
Calazans, senhora que abrigou os Novaes no Brasil e que serviu de intermediadora para
convencer a família de Carolina, que se opunha ao casamento da moça.
Se no Dom Casmurro a ópera não é eufônica, em Memorial a música vai com o
texto, como uma ópera de Wagner. Isso porque o músico alemão rompeu com o tradicional
conflito entre músicos e libretistas, ao escrever os próprios libretos, de maneira que se
casassem perfeitamente à música que compunha.
Sem os empecilhos e disputas, comuns nas narrativas machadianas, o ―amor
conjugal‖ finalmente é tema concretizado, fazendo com que o espaço da casa, das alegrias
particulares, se sobreponha aos acontecimentos externos. O universo de Carmo e Aguiar se
restringe ao espaço íntimo da família, ao ―recantoonde o mundo inteiro cabe. Alegrias ou
dores, tudo é submetido à partilha diária dos afetos mútuos.
À solidão daqueles, se contrapõe a juventude de Fidélia e de Tristão. O casal, na
verdade, reproduz o contexto de duas óperas: o Fidélio de Beethoven, e o Tristão e Isolda
107
de Wagner. Enquanto a primeira peça clássica possui como subtítulo o ―Amor conjugal‖,
mostrando a luta da jovem Leonore pela liberdade do esposo Florestan, preso injustamente;
Tristão e Isolda revela o amor que resiste aos empecilhos terrenos, sendo plenamente
realizável apenas num outro plano. A morte de ambos é a única forma de estarem juntos
para sempre. Louvor ao amor conjugal e superação dos obstáculos existenciais são duas
temáticas inspiradas na situação de vida de Machado antes e depois daquele momento.
O último romance machadiano retomaria alguns dos aspectos tratados na obra da
juventude, e o sofrimento como tema permaneceria, que atenuado pelo amor que
transcende e que eleva a obra. Memorial de Aires seria um novo retorno à terra da
Alemanha em busca da cura, que, desta vez, pelas mãos de Wagner e Beethoven, como
se Machado compusesse sua última sinfonia, assim como o Prelúdio havia sido a canção
inicial.
108
2- OCIDENTAIS: DO SEIO DE QUIMERA AO REINO DE PANDORA
“Dois horizontes fecham nossa vida...”
(Machado de Assis)
“Que sonhas, poeta? do alto, a quem acenas?
(Goethe “Fausto”)
Única obra poética da maturidade, Ocidentais merece nossa particular atenção não
apenas por ser valorizada pela crítica, mas por se tratar da continuação do diálogo que
acompanhamos desde os primeiros versos - de um Machado ainda desconhecido no
ambiente literário -, passando por Crisálidas e Falenas, seus dois primeiros livros de
poesia.
A exclusão de Americanas desse estudo pode gerar alguma estranheza, mas se
justifica pelo fato de seus poemas, em particular, seguirem uma temática distinta da dos
outros três aqui estudados. Em nossa pesquisa de mestrado, a obra foi analisada em
contraponto com os textos de dois grandes escritores indianistas: Gonçalves Dias e José de
Alencar, assim como de outros autores que elegeram o índio como tema, incluindo Basílio
da Gama, autor de O Uraguai.
Basicamente, interessa-nos o diálogo de Machado com seus mestres e o percurso da
musa em sua obra, assim com a presença da evocação clássica na configuração do poético.
Se, por um lado, o poeta rompia com o padrão anterior, mais sensorial e emotivo, por outro,
mantinha a fidelidade aos autores que o inspiraram na juventude, assim como buscava
retomar certas imagens de temática mitológica.
Embora a musa não apareça nomeada, o poeta abre espaço a personagens clássicos
como Prometeu e Pandora - Homem e Natureza , que não abordará a relação entre
ambos de maneira amistosa ou equilibrada. A tensão entre os dois será o principal foco da
poesia de Ocidentais.
109
A montanha, lugar de evocação da musa, comparece, agora, tanto no começo do
livro, com ―O desfecho‖, onde o autor retoma o mito de Prometeu atado ao Cáucaso;
quanto no último poema, ―No alto‖, quando, enfim, chega ao topo da montanha. Sem poder
contar com a musa, nem com o celeste Ariel, resta-lhe a ―figura má‖ que o fará descer pela
outra vertente da montanha. O terreno, neste caso, contrapõe-se ao etéreo e torna-se a
derradeira morada do poeta, junto aos homens e à realidade prosaica. Perdidas as ilusões,
espedaçada a lira, restava-lhe a prosa chã do cotidiano.
Comecemos pelo título do livro, que, segundo Eugênio Gomes, seria um
contraponto à obra As orientais, de Victor Hugo. Decerto não se trata de imitação, mas de
referência, tendo em vista a fama da obra hugoana, que certamente não teria passado
despercebida pela crítica contemporânea a Machado. Publicada em 1829, As orientais
influenciaram uma vasta geração de poetas, com paisagens exóticas e poemas marcados
pela cultura oriental, principalmente árabe, como uma espécie de reinvenção das aventuras
e do cenário das Mil e uma noites.
Machado de Assis, antes da publicação de Ocidentais, faria referência à obra de
Hugo em algumas crônicas, que são importantes fontes para entendermos a escolha do
título da obra machadiana. Antes, porém, convém relembrar que a epígrafe de um dos
poemas das Crisálidas havia sido retirada de Hugo: ―Tout passe, tout fuit‖. Esses versos
hugoanos fazem parte do poema ―Les Djinns‖, de As orientais.
On doute
La nuit
L‘ écoute: -
Tout fuit,
Tout passe;
L‘ espace
Efface
Le bruit.
77
O poema de Hugo traz como citação um trecho do Canto V do ―Inferno‖, de Dante,
episódio que conta a história de Paolo e Francesca, amantes que, punidos pelo adultério,
seguem unidos para o eterno suplício. Os ―djins‖ orientais também seriam criaturas duplas:
sempre aos pares, inspirariam o homem ao bem e ao mal.
77
HUGO, Victor. Les orientales.Paris: Librarie de L. Hachette, 1859. p.107
110
Sobre esses versos de Hugo, que aparecem na última estrofe de ―Les Djinns‖,
Machado falaria em uma crônica do Diário do Rio de Janeiro, mais precisamente em
março de 1865; portanto, no ano seguinte à publicação das Crisálidas. Tanto na epígrafe de
―Última folha‖, quanto na crônica, Machado inverteria os versos do poeta francês,
originariamente: ―Tout fuit, tout passe‖. Talvez o equívoco machadiano aponte para o fato
de o escritor tê-los citado apenas de memória, reconstituindo-os a partir das leituras da
mocidade.
Na crônica, o escritor ressalta alguns detalhes do poema de Hugo, como, por
exemplo, a metrificação. O escritor francês aplica um curioso recurso em ―Les Djinns‖, de
gradual acréscimo de sílabas métricas, chegando ao clímax do poema com os decassílabos.
Partindo desse ápice, o poeta, até o final do poema, adotaria um processo de decréscimo de
sílabas. A visão dos ―djins‖ finalmente se esvai com os versos dissílabos, compostos por
palavras curtas da língua francesa.
(...) lembramos daquela formosa oriental de Victor Hugo, ―Os djins‖.
Apostamos que os leitores, não se estão recordando do assunto da
poesia, como até da forma métrica, que varia conforme se aproximam os
―djins‖, e cresce desde o verso de duas sílabas
Murs , ville
Et port,
Até o verso de dez sílabas, indo depois a decrescer, a decrescer, até
chegar à última estrofe. Hoje pode-se dizer do convênio [da paz] , como
dos djins orientais:
Tout passe
Tout fuit;
78
O texto de Machado é revelador, pois demonstra que, na escrita das Crisálidas, o
poeta não tomava unicamente como modelo o romantismo hugoano, apesar de empregar
algumas temáticas comuns ao Romantismo. De certa forma, o escritor foi moldado pela
escola romântica, sentia-se inclinado a seus modelos, porém tinha consciência de que essa
estética estava relacionada ao campo das ilusões, que não lhe servia mais. Havia o apelo da
realidade, sempre adversa, principalmente após a perda das fantasias de juventude, que
cederam espaço às reflexões mais sólidas e consistentes da idade madura. O ―oriente‖, tal
78
ASSIS. Obras completas de Machado de Assis. 2º vol. Rio de Janeiro; São Paulo: Livro do Mês S.A, 1962.
p. 332.
111
como o cantado por Hugo, havia se esfacelado. Ficara, no entanto, a paisagem dos
versos, as imagens caras ao poeta, a engenhosidade da imaginação criativa, enfim, um
pouco do gênio romântico.
É essencial relembrarmos da terceira parte de ―Versos a Corina‖, em que o eu-lírico
se despede de sua ―infância poética‖, quando havia sido aleitado pela ―Quimera‖
romântica. A debandada das ilusões seria motivo suficiente para ceder espaço às agonias e
dores da humanidade, semeadas pela vida afora pelas mãos de uma Natureza contraditória,
e ceifadas no devido tempo com um definitivo golpe de misericórdia.
Na leitura do poema Versos a Corina‖, observamos que, de certa forma, as
―nuvens flamejantes‖ pareciam cobrir o horizonte do poeta, como indício da mudança de
paradigma: no lugar da bondosa e amável mãe-Quimera, surgia uma outra Natureza - mãe e
inimiga.
Quando voarem minhas esperanças
Como um bando de pombas fugitivas;
E destas ilusões doces e vivas
Só me restarem pálidas lembranças;
E abandonar-me a minha mãe Quimera,
Que me aleitou aos seios abundantes;
E vierem as nuvens flamejantes
Encher o céu de minha primavera;
No poema das Crisálidas o escritor ainda definiria o Romantismo como a ―mãe
Quimera,/ Que me aleitou aos seios abundantes‖, do mesmo modo que trataria, numa
crônica de 1892, a tendência que o acompanhara na juventude de ―leite romântico, licor de
Granada‖. Granada, aliás, era a cidade de Juana, a amada do ―Sultão Achmet‖, a quem
Hugo dirigiu os famosos versos:
A Juana La Grenadine,
Qui toujours chante et badine,
Sultan Achmet dit un jour :
- Je donnerais sans retour
Mon royaume pour Médine,
Médine pour ton amour.
79
79
HUGO. Op.cit. p. 108.
112
A crônica machadiana de que tratamos faz parte de um conjunto de reflexões de A
Semana, em que Machado se vale de alguns poemas de As orientais para refletir sobre os
assuntos de seu tempo. Destacava, assim, determinadas questões que envolviam as
reformas no mundo oriental sob os influxos do Ocidente. Em 25 de dezembro de 1892,
tendo como assunto o assassinato de cinco odaliscas em Constantinopla, o cronista abriria
sua coluna com a seguinte afirmação:
É desenganar. Gente que mamou leite romântico pode meter o dente no
rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta gótica e oriental, deixa o
melhor pedaço de carne para correr à bebida da infância. Oh! Meu leite
romântico! Meu licor de Granada! Como ao velho Goethe, aparecem
novamente as figuras aéreas que outrora vi ante meus olhos turvos.(...)
Cinco odaliscas! Murmura esse nome, leitor: faze escorrer da boca essas
quatro sílabas de mel, e lambe depois os beiços, ladrão. Pela minha parte,
achei-me, em espírito, diante de cinco lindas mulheres, com o véu
transparente no rosto, as calças largas e os pés metidos nas chinelas de
marroquim amarelo, - babuchas, que é o próprio nome. Todas as orientais
de Hugo vieram chover sobre mim as suas rimas de ouro e de sândalo.
80
Apesar do tom jocoso da crônica, se usarmos como base de nossas reflexões o
poema de Crisálidas, veremos que estão muito próximas as imagens da Quimera que aleita
o poeta em seus seios, e a do ―leite romântico‖, ou ―licor de Granada‖, de que fala o
cronista.
A referência a Goethe, em especial, parece ser uma retomada das inquietas
sombras da Dedicatória do Fausto, que o narrador machadiano também evocaria no Dom
Casmurro: ―Tornai, vós, trêmulas visões, que outrora/ Surgiram já à lânguida retina./ Tenta
reter-vos minha musa agora?/ Inda minha alma a essa ilusão se inclina?‖.
81
Assim como as
visões surgiam diante dos olhos do ―velho Goethe‖, tematizando o retorno das ilusões, de
semelhante modo Machado retomaria muitas das questões do Romantismo em sua lírica,
ainda que em Ocidentais apresentasse um ―eu‖ cindido e contraditório.
Outra referência a Goethe vem embutida na imagem da ―mãe Quimera‖ que aleita o
poeta em seus ―seios abundantes‖, presente no poema, e que, indiretamente, seria retomada
no trecho da crônica de 1892.
80
ASSIS. O.C. Op. cit. Vol III. p. 563-564
81
GOETHE. J.W. Fausto: uma tragédia. 1ª parte. (Trad. Jenny Klabin Segall). São Paulo: Ed. 34, 2004. p.29.
113
uma parte do Fausto em que percebemos certa similitude com a imagem
machadiana: trata-se da fala de Mefistófeles no ―Quarto de trabalho‖, tentando convencer
Fausto a fazer o pacto. O personagem emprega a expressão: ―seio da sapiência‖, para
designar a fonte onde Fausto deve buscar alimento, comparando-a ao ―mátrio leite‖,
rejeitado pela criança de início, mas que o hábito a faz apreciar: ―Com o hábito é que vem o
apreço;/ Assim recusa o mátrio leite/ a criancinha no começo/ Mas chupa-o em breve com
deleite./Eis como ao seio da sapiência, se aguçará vossa apetência‖
82
. A Sapiência,
portanto, sustentaria Fausto com o leite do seu seio, assim como a Quimera machadiana
estava pronta a lhe oferecer, outrora, ―o leite romântico‖.
O ―licor de Granada‖, por sua vez, é uma alusão clara a Hugo e à sua obra, repleta
de paisagens orientais, incluindo um poema intitulado ―Granadaem homenagem à bela
cidade espanhola de fortes traços árabes. O escritor, como se pode perceber, admitiria as
influências românticas do início de sua carreira, mas não as abandonaria de todo na
maturidade. Continuamente dialogaria com os grandes escritores do Romantismo, ainda
que atenuasse muitas de suas convicções.
Em 26 de fevereiro de 1893, alguns meses depois da crônica acima transcrita,
Machado torna a convocar os versos de As orientais numa crônica para provar que todo o
alvoroço de uma época se esvaía, bem como o furor das batalhas do passado, as lutas
religiosas entre turcos e cristãos, deixando espaço unicamente para o que ele chama
ironicamente de ―conflito das lealdades‖.
Alá cumprimentou o Senhor, Maomé a Cristo. Tudo o que era contraste,
fez-se harmonia, o oposto ajustou-se ao oposto. Ondas e ondas de sangue
custou o conflito de dous livros. A cruz e o crescente levaram atrás de si
milhares e milhares de homens. Houve cóleras grandes. Houve também
grandes e pequenos poetas que cantaram os feitos e os sentimentos
evangélicos, ora pela nota marcial, ora pela nota desdenhosa. Um deles
dedilhou no alaúde romântico a história daquele sultão que requestava
uma cantarina de Granada, e lhe prometia tudo:
Je donnerais sans retour
Mon royaume pour Médine
dine pour ton amour.
- Rei sublime, faze-te primeiramente cristão, respondeu a bela Juana;
danado é o prazer que uma mulher pode achar nos braços de um
incrédulo.
82
Idem. p. 185.
114
Tempos de Granada! não é preciso que os sultões se cristianizem.
Agora é a Sublime Porta, com a sua chancelaria, as suas circulares
diplomáticas, os seus gestos ocidentais, que desaprendeu o crê ou morre
para celebrar a festa de um grande incrédulo do Corão. Onde vão as
guerras de outrora? Onde param os alfanges tintos de sangue cristão?
Naturalmente estão com as espadas tintas de sangue muçulmano. Vivam
os vivos!
83
Nesse caso, o cronista relacionaria Granada especificamente ao poema ―Sultão
Achmet‖ de As orientais, como contraponto ao pensamento cristão do Ocidente. Citando
os versos de Hugo, Machado trataria ironicamente de uma nova tendência, não mais fixada
no furor das lutas, das grandes paixões, do matar ou morrer pelo ideal. Substituindo esse
mundo oriental, emergia a fusão diplomática do Ocidente, que assimilaria as oposições de
modo pacífico, com o único objetivo de sobrepor-se às vontades, tornando-se uma verdade
hegemônica, universal.
Enfim, o que é igual não se combate, nem é objeto da oposição, apenas se solidifica
no poder. À aparente uniformidade do mundo Ocidental, contrapõe-se a diversidade do
Oriental. Ocorre que a eliminação da parte oposta não se impõe através dos conflitos
armados, mas pela assimilação das idéias, pelo sincretismo, que a tudo reúne ao redor de si,
apenas para garantir a sua permanência. Seria uma eliminação silenciosa, na verdade, e
dissimulada sob aparência de um discurso de pacificação. No lugar de guerras, quando os
inimigos põem-se frente a frente sem maquiar as reais intenções, os acordos diplomáticos
seriam uma cruel máscara que, sob o signo da lealdade, embutiam interesses materiais.
Machado voltaria a falar da obra hugoana em 21 de fevereiro de 1897, novamente
nas páginas de A semana, tratando do livro como um todo e analisando-lhe as temáticas.
Merece destaque o trecho em que o escritor fala da recepção crítica de As orientais,
principalmente pelos poetas da sua geração: apesar de ser uma obra publicada trinta anos
antes, continuavam fiéis à proposta hugoana.
Assim como os versos de Hugo iam decrescendo na métrica até chegarem a duas
sílabas, na epígrafe de ―Última folha‖ o poeta parece se despedir das influências românticas
ao resumir o sentimento de outrora na epígrafe: ―tudo passa, tudo foge‖. De igual modo, na
trilha dessa observação, a paixão pelo ―leite romântico‖ também vai declinando no
83
ASSIS. O.C. vol. 3. Op. cit. p. 576.
115
percurso poético de Machado, até sobrarem apenas os dois versos hugoanos, resumo desse
processo: ―Tout fuit, tout passe‖.
Lembras-te, não? Se és do meu tempo não esqueceste que tu e eu, quando
expeitorávamos os primeiros versos que os rapazes trazem consigo, as
Orientais contavam já trinta anos e mais. Mas era por elas que ainda
aprendíamos poesia. Trazíamos de cor as páginas contemporâneas da
revolução helênica, e do bravo Canáris, queimador de navios, e da batalha
de Navarino, e da marcha turca, e de toda aquela ressurreição de um país
antigo, meio cristão. En Grece! cantava o poeta, pedindo que lhe selassem
o cavalo e lhe dessem a espada, que queria partir já, já, contra os turcos;
mas a lira mudava subitamente de tom, e o poeta perguntava a si mesmo
quem era ele. Confessava então não ser mais que uma folha que o vento
leva, nem amar outra cousa mais que as estrelas e a lua. Tão pouca cousa
não era nos demais versos em que cantava os heróis gregos, mas Hugo
lembrava-se de Byron...
84
Machado apreende a contradição poética do livro de Hugo ao mostrar que um
desejo de captar o grandioso, o exótico, ao mesmo tempo em que se quer recorrer à
simplicidade, à paisagem comum a todos os poetas, apegando-se à própria realidade. A
lembrança de Byron seria um alerta para todos aqueles que desejavam viver o ideal no
plano real, extrapolando a mera inspiração poética para enfrentar, de fato, o campo de
batalha, como fizera o poeta inglês. Portanto, estava erguido o muro entre vida e realidade,
entre realização estética e idealização prática. Para tratar das questões subjetivas da alma
humana, o escritor precisaria partir de um plano objetivo, demandando um distanciamento
crítico.
Ainda sobre a questão oriental, discorrendo sobre o desmembramento da Turquia, o
cronista prosseguiria em suas reflexões acerca do Oriente, tecendo um retrato irônico das
relações de ―paz‖ impostas pelas alianças políticas, em detrimento da cultura e da soberania
do país: ―Os alfaiates levarão muito tempo a medir e cortar a bela fazenda turca para
compor o terno que a civilização ocidental tem de vestir: e, porque as medidas políticas
diferem das comuns, vê-lo-emos talvez brigar por dous centímetros.
85
O mundo Ocidental, portanto, era a chave de tudo, a síntese da civilização:
assimilaria a cultura dos outros povos, dominaria os territórios, absorveria as diferenças e
os contrastes, em nome de uma paz destrutiva. O delírio de Brás é uma espécie de síntese
84
ASSIS. O.C. Op. cit, vol 3. p.766
85
Idem. p.734
116
do pensamento humano, principalmente da utopia ocidental, que, buscando dominar uma
Natureza múltipla e imprevisível (capaz de gerar no seu âmago o bem e o mal), fomenta a
ilusão de que caminhamos para a evolução da espécie, para a unificação das diferenças e
para o tão desejado ―progresso‖ do pensamento humano e do homem em si.
De acordo com o discurso do defunto-autor no delírio, o mal maior que Pandora
nos legou, de todos os que sua lendária caixa pôde espalhar pelo universo, foi, sem dúvida,
a esperança, que sustenta a crença numa felicidade quimérica e aumenta a intensidade das
outras dores humanas.
Pensamos, nesse aspecto em especial, na afinidade entre a obra machadiana e a
filosofia de Schopenhauer. Em O mundo como vontade e representação, o filósofo
formularia a seguinte teoria: ―O desejo extingue-se, e torna-se incapaz de produzir a dor, se
não existe nenhuma esperança para lhe fornecer alimento‖. E se aprofundaria na questão,
estabelecendo a noção de que o sábio deve ter sangue-frio, para não se submeter às ilusões
da vida.
(...) toda alegria intensa é um erro, uma ilusão, porque o prazer do desejo
satisfeito não é de longa duração, e também porque todo o nosso bem, ou
toda a nossa felicidade, só nos é dado por um tempo, e como por acaso, e
pode, por conseguinte, ser-nos arrebatado num momento. Todas as nossas
dores vêm da perda de uma ilusão semelhante; deste modo os nossos bens
e os nossos males vêm todos de um conhecimento incompleto.‖
86
A única certeza desse universo complexo e contraditório é a de que todas as coisas
estão fadadas à corrosão do tempo. A Quimera machadiana, cantada na juventude,
assumia outros ares. Todo o ideal já estava consumido pela dura constatação da realidade, o
reinado era definitivamente de Pandora. No entanto, o saber filosófico não produziria uma
imunidade às dores humanas, ao contrário, o conforto que Brás busca na ciência, com a
invenção do emplastro, parece ser uma contestação do pensamento de Schopenhauer:
nenhum emplastro, nenhum saber pode isentar o homem das suas dores, nem fazê-lo atingir
um conhecimento completo de si mesmo ou dominar suas ilusões.
Essa é a tônica das Ocidentais: a civilização do Ocidente sob uma ótica literária, a
partir de uma filosofia pautada numa realidade em que o sofrimento assume o centro das
86
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Op. cit. p. 98.
117
discussões, assim como reflete a condição humana, as ilusões da vida, a destruição pela
morte. Definitivamente a imagem que se tem da civilização ocidental é a de uma
humanidade cindida, entre razão e sentimento, entre interior e exterior, entre pensamento e
ação, entre forma e fundo.
Não mais espaço para a utopia ou para o ideal, mas, contraditoriamente, ambos
constituem o princípio básico da existência humana. De certa forma, a imagem de Pandora
é uma contra-resposta às antigas aspirações poéticas do escritor delimitadas nos ―Versos a
Corina‖ a partir da concepção do poeta como ―pelicano do amor‖ que a si mesmo dilacera
em nome dos ideais. O que se constata é que o homem não tem domínio algum sobre sua
vontade, pelo contrário, um poder que o domina e do qual não pode fugir, que aflige
tanto o corpo quanto o intelecto.
Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o
pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em
derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à
indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor
bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade
das cousas, atrás de uma figura nebulosa, esquiva, feita de retalhos, um
retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos
todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada
menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou
deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela
ria, com um escárnio, e sumia-se como uma ilusão.
87
Partindo do conhecido trecho das Memórias stumas, podemos confrontar duas
figuras: Quimera e Pandora. A primeira seria o ideal perseguido em vida, enquanto a
segunda representaria a terrível realidade, ainda que advinda de um delírio. Apesar de
Pandora conduzir Brás à montanha para admirar os séculos, como a ninfa no episódio da
―máquina do mundo‖ de Os lusíadas, a Natureza machadiana não é nenhuma Tétis a fazer
o Gama contemplar a grandeza dos feitos futuros, está antes para Satanás a conduzir Cristo
ao monte para oferecer-lhe as delícias do mundo, mediante uma total submissão: ―Tudo
isso te darei se, prostrado, me adorares‖.
No entanto, o que Brás observa no ―desfile dos séculos‖ é que a glória prometida
dos reinos do mundo não passa de fantasia: render-se a seus encantos é padecer por uma
87
ASSIS. O.C. vol.1. p. 523.
118
glória inútil, por um bem que mão alguma pode reter para sempre, e que segue produzindo
misérias, reproduzindo fracassos, trocando continuamente de dono. A Pandora machadiana
vai além ao mostrar que rendição ou rebelião não fazem a mínima diferença. O suplício é
intrínseco ao homem, toda moeda que lhe vem à mão tem duas faces: bem e mal, flagelos e
delícias.
A Natureza na obra machadiana segue a mesma premissa apregoada pelo poeta
italiano Giacomo Leopardi, em seu poema ―La ginestra‖: ―È madre in parto ed in voler
matrigna./ Costei chiama inimica;‖
88
O poeta italiano, um dos mestres de Machado,
endossaria também a Pandora machadiana e e inimiga , partidário de uma espécie de
filosofia poética que justificaria o sofrimento humano, assim como a constante luta pela
sobrevivência e a busca pela felicidade, através do eterno confronto entre homem e
natureza.
Idéia muito semelhante veríamos reproduzida no Romantismo alemão,
principalmente na obra de Goethe. A própria angústia de Werther não se resume no
sentimento que nutre por Carlota, mas ressoa no conflito que o sentimento produz em seu
interior. A mesma natureza que o havia inspirado a amar aparece revolta e o incita a
destruir a si mesmo. Uma das reflexões do romance-diário de Goethe muito se aproxima da
descrição da Pandora das Memórias póstumas, e da Natureza representada na obra de
Leopardi.
O que me consome o coração é essa força dominadora que se oculta na
totalidade da Natureza, e que nada produz que não destrua o que a rodeia,
e por fim a si mesma... E assim vagueio atormentado por aí. Céu, terra e
suas forças ativas em volta de mim! Nada vejo senão um monstro que
engole eternamente e eternamente volta a mastigar e engolir.
89
Tudo leva a crer que Leopardi tenha se inspirado na obra goethiana para compor
―La ginestra‖, cujo título designa uma planta de belas flores douradas que cresce em
lugares desérticos ou arenosos. Seria o símbolo da beleza florescendo no ambiente mais
desfavorável, tanto que o poema de Leopardi receberia o subtítulo de Il fiore del deserto‖,
como um epíteto de resistência para definir a bela ―ginestra‖.
88
LEOPARDI, Giacomo. Poesie di Giacomo Leopardi. Torino: Società Editrice Italiana di M. Guigoni, 1857.
p. 170.
89
GOETHE. J.W. Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre: LP&M Pocket, 2003. p. 80
119
Além da idéia de Natureza adversa presente no Werther, temos a mesma imagem da
―ginestra‖ de Leopardi (giesta, em português), descrita no livro do escritor alemão como
símbolo da força da Natureza, manifesta na resistência de determinadas espécies, mesmo
diante das piores adversidades. Esse instinto de sobrevivência provoca grande impacto no
intelecto humano, ao mesmo tempo em que revela ao homem a sua fragilidade perante a
natureza que o cerca.
Quando o estridor e o bulício ao meu redor me faziam fixar a vista na
terra e no musgo que arranca o seu sustento da dura rocha e na giesta que
cresce ao longo da árida duna de areia... Ah! então a vida interior e
misteriosa que anima a Natureza, sempre ativa e potente, se desvelava
inteira para mim.
90
No original alemão, Goethe usaria a palavra ―geniste‖ para designar a planta, o que,
certamente, pode ter influenciado a escrita de Leopardi, tanto na escolha do tema quanto na
do título de sua composição. A imagem da flor, cercada de fragilidade e beleza, resistindo
no terreno árido, resumiria a tônica da sobrevivência dos seres e mostraria a extensão do
poder da natureza, desafiando a compreensão humana. Até porque a frágil flor surge com
maior capacidade de resistir às oposições da natureza do que o próprio homem em sua
enganosa idéia de superioridade.
Na lírica machadiana encontraríamos dilema semelhante em ―Uma criatura‖. Poema
que fala de uma Natureza que devora inclusive aquilo que cria, que é a extensão de si
mesma, como vimos no trecho do Werther aqui transcrito.
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E o mar, que se rasga à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
O que temos diante dos olhos é uma natureza convulsa e abismal, que reúne terra e
céu (vales e montanhas), indistintamente funde as antíteses, e devora a si mesma com uma
―fome insaciável‖. Goethe, no Werther, também falaria desse instinto destruidor: ―Um
90
Idem. p. 78.
120
monstro que engole eternamente e, eternamente, volta a mastigar e engolir‖. Ao contrário
de eliminar-se, a destruição a faz reviver ainda mais intensa, como a fênix pronta a se
incendiar, para retornar inteiramente revigorada.
Encontramos esse princípio contraditório da Natureza também no Fausto de
Goethe. Como a Pandora machadiana que traz em sua bolsa os bens e os males,
Mefistófeles se autodefine como parte de uma Energia criadora que possui um objetivo
dúbio: ―Sou parte da Energia/ Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.‖
91
A
mesma concepção ambígua encontraríamos no poema machadiano.
Pois essa criatura está em toda obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças dobra.
Ama de igual modo o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
Esse ―divino estatuto‖ - ou ―estatuto universal‖, como o designaria Machado no
delírio de Brás -, é observável a partir de um ponto de vista privilegiado: o alto da
montanha. Werther também subiria até a colina para admirar o espetáculo da natureza. A
subida ao monte, anábase poética, funciona como uma espécie de síntese do tempo e do
espaço, reunião do céu e da terra, onde o universo se reduz à expressão mínima, ao mesmo
tempo em que a visão se amplia ao máximo para lhe contemplar a grandeza. É o instante
supremo da revelação profética, como se o poeta pudesse compreender passado, presente e
futuro. No entanto, em vez de ser unicamente uma retomada do platonismo, que aponta o
alto como lugar de manifestação divina, o poeta se sente atordoado pela revelação.
O personagem goetheano seria inundado por dois sentimentos: atração, devido à
grandiosidade da revelação diante de seus olhos, que produz um momentâneo efeito de
poder; e retração, sentimento de impotência, que tanto o impede de interferir no fluxo da
natureza, quanto lhe a consciência de que esse fluxo também o domina e o arrasta
incondicionalmente com sua força destruidora.
91
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 139.
121
Como eu abraçava tudo aquilo no meu cálido coração e me sentia
deificado por aquela torrente que me trespassava, enquanto as majestosas
formas do mundo viviam e moviam-se em minha alma! Montanhas
ingentes me rodeavam, abismos profundos estendiam-se a meus pés, as
torrentes despenhavam-se para baixo, os rios fluíam sob meus olhos, mata
e montanha troavam; eu as via, todas essas forças inescrutáveis, atuarem e
criarem-se mutuamente, uma dentro da outra, nas profundezas da terra; e
logo por cima da terra e debaixo do céu, formigavam as inumeráveis raças
dos seres vivos; tudo, tudo povoado de mil formas diferentes; e depois os
homens, recolhidos em suas casinholas, confortando-se e iludindo-se uns
aos outros, reinando segundo seus princípios sobre o vasto universo!
92
Ao contrário da clássica subida à montanha das musas para buscar inspiração, o
poeta moderno tem o dom visionário com que consegue englobar todos os tempos num
único espaço/tempo, espécie de ―redução dos séculos‖. A revelação, porém, ao acrescentar
um conhecimento sublime do sentido da vida, traz também a consciência da falibilidade do
homem: não como equilibrar o exterior, muito menos o interior. Ainda que suba ao
monte ou dele desça, que adquira saberes e ciência, ou conheça toda a grandeza dos
sentimentos, o homem não consegue dominar, ou sequer conhecer, sua própria natureza.
Novamente, encontramos em Schopenhauer a definição de sujeito que se aproxima
desse ponto de vista, existente na obra machadiana e no pensamento de outros poetas:
Mas o próprio sujeito, o princípio que conhece sem ser conhecido, não cai
sob estas condições visto que é sempre pressuposto por elas
implicitamente. Não se lhe pode aplicar nem a pluralidade, nem a
categoria oposta, a unidade. Portanto, nós não conhecemos nunca o
sujeito; é ele que conhece em toda parte em que há conhecimento.
93
alguns princípios filosóficos na obra de Schopenhauer adquiridos através das
leituras do Rig-Veda, segundo ele mesmo afirma. Por exemplo, no que concerne à idéia de
mundo, o filósofo parte de um pensamento oriental (da sabedoria hindu), segundo o qual
―Maya‖ seria o véu da ilusão ―que ao cobrir os olhos dos mortais, lhes faz ver um mundo
que não se pode dizer se existe ou não existe, um mundo que se assemelha ao sonho‖.
94
92
Idem. Ibidem.
93
SCHOPENHAUER. Op.cit. p. 11.
94
Idem. p.14.
122
Também no ―Prólogo do Teatro‖ do Fausto, de Goethe, a fala do ―Poeta
demonstra uma nostalgia da juventude, quando as ilusões ainda eram possíveis,
descrevendo um mundo de sonhos, como o de ―Maya‖, que o Véu, neste caso, oculta
todos os males.
Pois restitui-me os tempos santos,
Em que me formava eu, ainda,
Em que um tesouro de áureos cantos
Da alma me fluía em fronte infinda,
Do mundo um véu cobria os males,
Milagres a alva prometia,
Em que mil flores eu colhia
Que enchiam com abundância os vales.
Nada tinha e o bastante me era,
O anelo da verdade e o gosto da quimera.
Sim! Restitui-me o flâmeo ardor,
O imo êxtase, pungente e rude,
A força do ódio, o afã do amor,
Oh! restitui-me a juventude!(grifos nossos)
95
O trecho relembra, em muitos aspectos ―Última folha‖ ou ―Musa consolatrix, em
que o poeta apela à musa antes que as ilusões voem como ―pombas fugitivas‖, ou que o
tempo as desfolhe da ―fronte do mancebo‖. No entanto, o apreço à temática goethiana não
se restringiria aos poemas de Crisálidas e de Falenas: seria retomado em Ocidentais sob
um ponto de vista crítico e filosófico.
Nesse livro, percebemos a mesma tônica das ilusões e desilusões, marcando as
forças de atração e repulsão da alma humana frente às questões do ―Eu‖ e do universo.
Assim como Fausto hesita, durante toda a tragédia, entre Deus e Mefisto, também o eu-
lírico machadiano oscilará entre sua própria natureza microcosmo humano -, e a Natureza
que o cerca macrocosmo divino.
O conhecimento filosófico, entretanto, viria romper com esse véu da ilusão, frente
ao mundo que nos rodeia, embora o conhecimento que o sujeito tem de si mesmo
permanecesse encoberto. Na poesia, a subida ao monte pode ser vista como um descortino,
o rompimento do véu, permitindo uma visão clara do mundo como representação. Por outro
lado, o sujeito poético, adquirindo esse saber, ao contrário do que desejaria a filosofia de
95
Idem. p. 41.
123
Schopenhauer, não consegue dominar a vontade ou compreender suas próprias
contradições. O mundo interior comporta, portanto, véus indevassáveis.
Partindo dessas observações, podemos penetrar no ponto central da lírica de
Ocidentais, percebendo a obra como uma releitura dos grandes clássicos da civilização
ocidental, passando por Dante, Shakespeare, Camões, Goethe, Hugo, dentre outros, e
fazendo, inclusive, uma revisão de certas tendências do pensamento filosófico.
Prometeu seria, nesse caso, símbolo máximo do poeta que luta contra a própria
realidade, atado ao ofício de escritor, o seu Cáucaso. No cimo do monte, tem visão
privilegiada da vida e dos homens sem, contudo, poder se desvencilhar da ave que lhe
corrói o fígado. Na obra machadiana, podemos chamar esse pássaro impiedoso, tal como o
corvo de Poe, de consciência estético-filosófica.
Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.
Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilhão,
Uns cingidos de luz, outros ensangüentados...
A rendição de Prometeu no poema de Machado não se dá pelo suplício em si - a dor
de estar preso ou de ter o fígado eternamente consumido -, mas por não suportar mais a
visão do enfadonho espetáculo dos homens, o constante ―desfilar dos séculos‖, como Brás
pôde ver no cimo do monte. Essa seria a eterna mesmice dos homens, entre flagelos e
delícias, seguindo a procissão dos séculos, ora cheios de luz, ora cobertos de sangue,
conforme o tempo de rir ou de chorar.
Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.
Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.
96
96
ASSIS. T.P. p. 299.
124
Consoante a conhecida afirmação de Brás (―não transmiti a ninguém o legado da
nossa miséria‖), interromper o fluxo da existência humana é o único recurso eficiente para
pôr fim ao sofrimento: ―Acabara o suplício e acabara o homem‖. Prometeu, figura mítica
que rouba o fogo divino para dá-lo à humanidade, não divisa bem algum no homem pelo
qual se sacrificou, nem pode contemplar qualquer feito que possa advir da doação feita por
ele: não centelha que brilhe, dentro ou fora, nessa criatura e vil. Os séculos passam
―lentamente como dobre de finados‖, eterna monotonia secular de iras e ganâncias
humanas, em desenfreada busca pela quimera da felicidade.
É necessário, portanto, decretar o fim do sofrimento, lançando-se definitivamente
ao abismo: ―E caddi come corpo morto cade‖, parece que ouvimos o eco desses versos de
Dante (final do Canto V, do ―Inferno‖) no poema machadiano, quando o poeta diz ―ao
abismo um corpo morto rui‖. O deprimente espetáculo humano se encerra a partir da
quebra da corrente da existência, o que justifica o ―saldo positivo‖ de Brás: ―Não transmiti
a ninguém o legado da nossa miséria‖.
2.1- Mundo interior: o microcosmo humano.
O diálogo entre Fausto e Mefistófeles, que antecede o pacto, nos revela o maior
desejo do homem: ―a aspiração suprema‖, ou seja, atingir a totalidade do universo e, assim,
gozar de todos os prazeres sem temer dor alguma. Resume o antigo desejo de Adão e Eva
no Gênesis: adquirir o conhecimento do bem e do mal e igualar-se a Deus.
125
Entrego-me ao delírio, ao mais cruciante gozo
Ao fértil dissabor como ao ódio amoroso.
Meu peito, da ânsia do saber curado,
A dor nenhuma fugirá do mundo,
É o que a toda a humanidade é doado,
Quero gozar no próprio Eu, a fundo,
Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito,
Juntar-lhe a dor e o bem-estar no peito,
E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser,
E, com ela, afinal, também eu perecer.
97
Mefistófeles, porém, desfaz as ilusões do Doutor, ao afirmar que essa totalidade
desejada é impossível de ser atingida pelo homem, pois é reservada apenas ao Ser Divino.
Ainda que as criaturas acumulem virtudes, adquiram saberes supremos e desvendem os
grandes mistérios, ainda assim, afirma Mefistófeles: ―nomearia um cavalheiro como esse/
Dom Microcosmo se o conhecesse.‖(grifo nosso) - e, mais adiante, conclui ―No fim
sereis sempre o que sois/ Por mais que os pés sobre altas solas coloqueis,/ E useis perucas
de milhões de anéis,/ Haveis de ser sempre o que sois‖.
98
Seguindo essa ótica, nenhum conhecimento, portanto, pode conferir ao homem a
capacidade totalizadora que ele almeja. Sempre haverá de ser o mesmo, diante do bem ou
do mal, indistintamente; seria apenas Dom Microcosmo, senhor de um ―pequeno mundo‖.
Machado parece refletir profundamente acerca dessas questões, do Macrocosmo e
do Microcosmo. Assim, faria a oposição entre o mundo exterior e o interior, que, ao
contrário, esse ―mundo interior‖ parece ainda mais complexo e abismal; portanto,
indevassável ao olhar do próprio ser.
Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol à ínfima luzerna.
Ouço que a natureza, - a natureza externa, -
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida,
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.
97
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 175.
98
Idem. p.177.
126
O poeta, logo de início, apontaria duas visões sobre a Natureza, o Macrocosmo,
identificadas pela expressão ―ouço que‖, ou seja, não é o julgamento pessoal que está sendo
expresso pelo eu-lírico, mas os conceitos formulados pela opinião geral. Na primeira
estrofe, apresenta uma visão idealista da natureza, que seria uma definição harmoniosa de
que tudo se encaixa no universo, e de que tudo nele está construído para equilibrar os seres,
do mínimo ao máximo: ―do sol à ínfima luzerna‖. Na segunda estrofe, porém, verifica-se
uma visão com laivos de pessimismo, que muito se assemelha à idéia da Natureza-Pandora,
que reúne bem e mal, tanto namora quanto intimida. Como no poema ―Uma criatura‖, ela
pode cingir em seu âmago o ―belo e o monstruoso‖, ou ainda, uma hidra de Lerna junto às
flores mais sublimes.
Partindo dessas duas concepções, o poeta passa a refletir sobre a principal questão
do poema: o mundo interior. A partir de então, os versos vão revelar a experiência do Eu,
envolvido num mergulho em sua mais profunda consciência, até declarar o completo
desnorteamento frente ao abismo que descobre em si.
E contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro de mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,
Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia, - e dorme.
Inversamente proporcional, o vasto Macrocosmo estaria refletido no interior do
homem; portanto, não se consegue chegar a nenhuma convicção sobre o exterior e o
interior, ambos são abismos, onde o segredo, como u, encobre o discernimento. Nem a
mais sábia intuição consegue adentrar esse mundo, embora, como esfinge, ele atraia,
desafie, permanecendo inviolável. É como no mito de Maya, que vimos anteriormente: o
véu da ilusão continuamente encobre os olhos dos mortais e lhes faz ver um mundo que
não se pode dizer se existe ou não existe, um mundo que se assemelha ao sonho‖.
Nada é palpável no poema. O ―ouço que‖, não passa de mera hipótese. No entanto,
o ―eu‖ sente, vê, intui, todo um universo interior, de ―vida imortal‖ e ―eterno cataclismo‖
criação permanente e permanente destruição. A imagem do íntimo assemelha-se a um
127
grande espelho invertido, que reflete no interior do homem a grandeza e o mistério da
natureza externa: no seu âmbito enorme, revela, todavia, um abismo ainda mais insondável.
O que Machado parece trazer à tona é a subjetividade do homem que domina todo o
universo e o submete à sua própria vontade. Nesse ponto, podemos considerar que na
acepção machadiana o Macrocosmo é uma invenção humana, projetada pela sua própria
ilusão. Toda realidade está submetida a essa concepção individual, à idéia que cada um traz
de si em relação ao mundo.
É interessante observar que nas Memórias, o relato do delírio não se apresenta, de
fato, como uma experiência de morte de Brás, ou um relato de definitiva passagem de um a
outro plano. Lembremo-nos de que ele apenas ―delira‖, e, em seguida, retorna ao leito de
agonia. Resta a dúvida: realidade ou sonho? Quando morre ―em definitivo‖, Brás
simplesmente não descreve, não fala quase nada desse outro universo, pelo contrário, vai
tratar apenas das experiências que teve no mundo dos vivos.
De igual modo, em muitas narrativas, Machado ilustra os enganos do homem em
relação ao ambiente que o cerca, empregando diversos elementos para demonstrar essa
hipótese. Em ―idéias de canário‖, por exemplo, usa o pequeno pássaro para ilustrar que o
ponto de vista e a opinião diversificam-se de acordo com o ambiente em que cada um se
encontra.
Como o axioma do Dr. Pangloss, de Voltaire, ―O nariz foi feito para o uso dos
óculos‖, o homem crê que tudo ao seu redor foi feito para si e que todo o Universo a ele
está submetido. Assim, existem várias verdades que se adaptam de acordo com a situação
que se pretende configurar. Tudo está submetido à subjetividade humana, ao ―Dom
Microcosmo‖.
A dúvida, por sua vez, é um sentimento intrínseco ao homem, que oscila entre razão
e vontade, entre o bem e o mal, sem chegar a uma concepção exata do seu próprio Eu. Essa
oscilação configura uma marca das personagens machadianas, sempre indecisas em relação
à realidade que as cerca. Do mesmo modo, a poesia de Ocidentais demarca esse território
das vacilações humanas que geram eternos suplícios, a principal delas: a ambigüidade da
natureza humana.
Entre Deus e o diabo, oscila o homem - como Mefisto parece concluir diante da
contínua insatisfação de Fausto, que ora se entrega e ora se lamenta pelos resultados:
128
Tornamos aos confins do vosso entendimento, lá, onde a vós mortais, o
juízo se alucina. Por que é que entraste em comunhão conosco, se és
incapaz de sustentá-la? Almejas voar e não te sentes livres da vertigem?
Pois fomos nós que a ti nos impusemos, ou foste tu que te impusestes a
nós?
99
Usando a forma ―nós‖, Mefisto situa o homem como centro da oposição Deus x
diabo, continuamente alternando de crença, mas seguindo unicamente suas próprias
convicções ou ilusões. De igual modo, Machado configuraria esse dualismo do homem no
conto ―A igreja do diabo‖, onde se conclui que dificilmente a natureza humana pode optar
por um único lado.
O princípio da dubiedade e da contradição será expresso nos poemas de Ocidentais
tanto nas composições do autor quanto nas traduções dos clássicos. Em ―Perguntas sem
resposta‖, por exemplo, Machado trabalha com o princípio da harmonia e do equilíbrio
clássicos, representado por nus (configurada como estrela), em oposição aos discursos
da fé e da esperança - que no poema parecem gerar dor e sofrimento -, na pessoa de Maria.
Vênus formosa, Vênus fulgurava
No azul do céu da tarde que morria,
Quando à janela os braços encostava
Pálida Maria.
(...)
E o coração, que de prazer lhe bate,
Acha no astro a fraterna melodia
Que à natureza inteira dá rebate...
Pálida Maria.
Maria pensa: ―Também tu, decerto,
Esperas ver, neste final do dia,
Um noivo amado que cavalga perto,
Pálida Maria?‖
Maria enxerga no astro, assaz distante, um reflexo dos próprios anseios, e chega a
chamar Vênus pelo seu nome: ―Pálida Maria‖. Porém, ao contrário de ―pálida‖, sabemos,
logo na primeira estrofe, que Vênus ―fulgura‖. Além do distanciamento espacial, uma
oposição marcada entre a palidez de Maria e o brilho de Vênus. Por outro lado, enquanto a
99
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p.493.
129
primeira preocupa-se com o noivo e com a felicidade, a outra parece indiferente ao destino
dos homens. As perguntas da moça ficam sem resposta, embora sua ilusão tente submeter
as coisas ao redor à sua subjetividade, ou seja, o ―microcosmo humano‖ percebe o
macrocosmo como espelho de sua alma, e, assim, tenta impor-se ao divino.
O noivo de Maria, entretanto, morre, e toda a expressão de júbilo que a tomava
anteriormente transforma-se em tristeza e angústia. Se outrora notou em Vênus o reflexo de
seus anseios pelo noivo, outra vez percebe, através do filtro da subjetividade, uma
expressão melancólica no astro fulgurante, como se ele fosse solidário aos seus
sentimentos.
Quando três sóis passados, rutilava
A mesma Vénus, no morrer do dia,
Tristes olhos ao alto levantava
Pálida Maria.
E murmurou: ―Tens a expressão do goivo,
Tens a mesma roaz melancolia;
Certamente perdeste o amor e o noivo,
Pálida Maria?‖
Vênus, porém, Vênus brilhante e bela,
Que nada ouvia, nada respondia,
Deixa rir ou chorar numa janela
Pálida Maria.
100
O poema ―Perguntas sem resposta‖ nos remete ao episódio que encerra o romance
Quincas Borba, que, por sua vez, é um contraponto à cena inicial em que Rubião admira a
enseada de Botafogo e acredita ser possuidor de tudo o que o cerca, incluindo a paisagem:
Olha para si, para as chinelas (...), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os
morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de
propriedade‖.
101
A ―sensação de propriedade‖, do ponto de vista material de Rubião na leitura de si e
do mundo, equivale à interpretação equivocada de ―Pálida Maria‖ em relação à estrela, que
a sua curta visão tende a interpretar como solidária a seus sentimentos. Ambas as situações
100
ASSIS. T.P. p. 312.
101
ASSIS. O.C. vol 1. p. 643.
130
apontam para a interpretação subjetiva do homem, que submete o Macrocosmo à sua ilusão
de ―propriedade‖ ou de ‗espelhamento‖.
Na primeira situação, o indivíduo assume o papel totalizador, ―o mundo pertence a
mim‖, enquanto, na outra situação, crê no espelhamento humano/divino: ―o mundo
representa a minha vontade‖. No Quincas Borba, a cena seguinte é marcada pela afirmação
do narrador: ―Que abismo entre espírito e coração!‖, frase que se coaduna plenamente
com as idéias presentes em ―Mundo interior‖. O narrador mergulha na alma de Rubião para
colher todas as contradições que nela encontra. Eis o abismo do homem.
O último capítulo de Quincas Borba apresenta a completa insanidade do
personagem que acreditou que tudo poderia possuir, das chinelas ao céu, incluindo a bela
Sofia. A mesma conclusão do poema ―Perguntas sem resposta‖ surge nesse trecho final do
romance, quando o narrador assim arremata a cena da demência e da pobreza de Rubião:
―Eia! Chora os dous recentes mortos, se tens grima. Se tens riso, ri-te! É a mesma
cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto
para não discernir os risos e as lágrimas dos homens‖.
102
Como o Cruzeiro diante das dores e alegrias humanas, Vênus, fulgurante, deixa rir
ou chorar Maria, indiferente ao que o destino lhe reserva. Chegamos à mesma conclusão de
Mefisto: o homem será sempre o que é - Dom Microcosmo-, independente de sua condição
material ou de sua ciência. Nenhuma criatura humana pode controlar plenamente a razão
ou o sentimento, nem pode definir o seu destino.
Também a filosofia de Quincas estaria, nessa gina final do romance, desmentida,
juntamente com a idéia de que ―Humanitas‖ era o universo, atribuindo ao homem uma
essência divina que se distribuía e se espelhava em todas as coisas que o cercam, regendo-
as segundo um princípio subjetivo de sobrevivência.
Humanitas é o princípio. nas cousas todas certa substância recôndita e
idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e
indestrutível, - ou, para usar linguagem do grande Camões:
Uma verdade que nas cousas anda,
Que mora no visíbil e invisíbil
102
Idem. p. 806.
131
Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que
Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o
homem.
103
Seguindo a filosofia de Quincas, esse papel divino dado ao homem subverte o
princípio cristão, ao atribuir a Humanitas um perfil messiânico, de sacrificar um
determinado ser pelo bem da coletividade. A equiparação de Humanitas ao Salvador é feita
de maneira oblíqua através da citação de versos camonianos. O trecho integra a Elegia XI,
do bardo português, em louvor a Cristo: ―Um saber infinito, incompreensível/ Uma verdade
que nas cousas anda/ Que mora no visíbil e invisíbil./ Esta potência, enfim, que tudo
manda,/ Esta Causa das causas revestida,/ Foi desta nossa carne miseranda.‖
104
Portanto, segundo a filosofia de Quincas, não é a centelha divina que se espalha em
todo o universo, visível e invisível, mas sim a vontade humana que se projeta em cada
indivíduo para garantir a sobrevivência da espécie. Não importa, pois, que uma criatura
esteja se extinguindo, e sim que outro ser leve adiante o princípio de resistência e
permanência da humanidade.
A ilusão de Quincas Borba é a mesma de Rubião, supor que todo o Universo está
submetido ao homem. O que Machado pretende mostrar é a indiferença desse Cosmo
diante dos anseios humanos. Ambos os personagens são destruídos por sua filosofia, ou
melhor, seguindo a etimologia da palavra: FILO-SOFIA. O primeiro, abraçando uma teoria
científica, de aparente enriquecimento do espírito - ―paixão pelo saber‖; Rubião, na sua
busca pela satisfação do corpo, seguindo o desejo que mostrara desde o início - ―paixão por
Sofia‖. Conclui-se que nem a ciência, nem os desejos materiais podem elevar o homem a
essa posição superior, ao almejado céu do Ideal.
Nem corpo, nem espírito encontram a plenitude almejada, como podemos também
verificar no Fausto: nem ciência, nem Margarida, nem poder algum podem redimir o
homem, calar a dor ou suprir esse desejo de totalidade que tenta alcançar em seu ―Mundo
interior‖.
A desilusão humana aparece também em outros poemas de Ocidentais,
principalmente nas traduções de ―O corvo‖, de Poe, e do monólogo To be or not to be‖, de
103
Idem. Cap. VI. p. 648.
104
CAMÕES, Luís de. Obras de Luís de Camões. Vol. III. Lisboa: Imprensa Nacional, 1861.
132
Shakespeare. Ao que parece, Machado não formulava sua filosofia na escrita da poesia,
mas traçava o roteiro da tradição literária acerca dos temas universais.
No poema de Poe, observamos a mesma configuração fáustica: um homem que
busca no saber ou no misticismo sua verdadeira face ou o desvendar dos segredos da vida.
Assim, no interior do quarto, onde o busto da Sabedoria (Palas) orna a parede, o homem
interroga o pássaro negro, mas suas indagações resultam em uma resposta repetitiva, cada
vez mais vazia e angustiante: ―nunca mais‖.
O ―eu-lírico‖ de Poe assemelha-se ao Fausto de Goethe, cercado pelos livros
―laudas antigas‖, refletindo sobre ―velhas doutrinas‖, no seu quarto de trabalho.
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho.
(...)
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso, em vão, à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.
(...)
Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: ―um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
105
A resposta do corvo, ao contrário do que o poeta deseja, não vem trazer alento ao
coração, apenas resulta num eco que ressoa na consciência, anulando toda a sabedoria ou
esperança depositada no homem: ―Nunca mais‖. De início, tenta crer que é a providência
divina que o procura para aliviar-lhe as dores, mas, diante da resposta, suplica ainda mais
aflito: ―Ave ou demônio que negreja,/ Profeta ou o que quer que sejas!‖. Deus ou um ente
105
ASSIS. T.P. p. 304-308.
133
maligno, não importa, o homem apenas deseja uma resposta para suas incertezas, mas,
como no poema machadiano, não pode desvendar ―um segredo que atrai, que desafia e
dorme‖.
o conhecido solilóquio de Hamlet, ―ser ou não ser‖, continuidade à questão
existencial. O personagem é símbolo da impotência humana diante do vasto universo, que
ora conspira, ora se mostra indiferente. Mais do que isso, Hamlet representa a consciência
plena de que o riso ou o choro são a mesma coisa, vingar-se ou não da morte do pai o
resulta em proveito ou perda. O personagem, portanto, se recusa a seguir o plano da
existência, rejeita o papel de homem e vaga pelas margens da vida, tal como o defunto-
autor.
Nietzsche, em O nascimento da tragédia, compararia a personalidade de Hamlet ao
indivíduo dionisíaco, mostrando que, nas duas situações, teríamos um sujeito que
reconhece a inutilidade de se ajustar, ou de compreender um mundo ―fora do eixo‖, a
começar pela natureza contraditória do indivíduo.
Nesse sentido, o indivíduo dionisíaco assemelha-se a Hamlet: ambos têm
visão profunda, que lhes permite enxergar a verdadeira essência das
coisas; ambos adquiriram conhecimento, e a náusea decorrente inibe-lhes
a ação; e qualquer ação da parte deles seria incapaz de alterar a eterna
natureza das coisas; consideram ridículo ou humilhante, o fato de serem
chamados a corrigir um mundo que está fora de eixo. O conhecimento
aniquila a ação; a ão depende dos véus da ilusão: eis a doutrina de
Hamlet.
106
Hamlet, portanto, é um dos personagens que atingem o âmago da problemática
existencial do homem; assim, ele mesmo assume o perfil da indiferença, recusando-se a
encenar o papel que o ―grande teatro da vida‖ lhe impõe, arrancando definitivamente o véu
das ilusões. Distancia-se, pois, da cena e retorna para dar fim ao tedioso espetáculo
humano, como faz Prometeu no poema de Machado: ―acabara o suplício e acabara o
homem‖. No caso do personagem shakespeariano, era preciso cerrar o pano para o
definitivo aniquilamento do ato.
106
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Apud: BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do
humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 491.
134
Shakespeare foi um dos primeiros autores a problematizar a realidade partindo de
um filtro de consciência individual, revelando que a natureza dupla (ou múltipla) do
homem o leva irreversivelmente à contradição. Assim lemos, na tradução de Machado, a
síntese da condição humana delineada pelo personagem de Shakespeare:
(...) Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida coisa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde,
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor de decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.
107
O mundo interior do homem abriga o maior dos abismos. A questão principal da
natureza humana envolve o sentido primordial do ser e do não ser. Segundo o pensamento
shakespeariano, sem conhecermos o curso da existência e o que nos espera no devir,
estamos sujeitos ao poder subversivo e persuasivo da nossa consciência, que nos induz a
sobreviver e a resistir. O homem luta por quimeras e, enfim, percebe que seu objeto de
desejo não passa de nulidade, que ele, ainda assim, abraça com a avidez de ―grande lascivo
do nada‖.
2.2- A Metamorfose
107
ASSIS. T.P. p. 313.
135
“O mais feliz dos homens é aquele que
consegue ligar o fim de sua vida ao início”
(Goethe)
Acompanhando a trajetória do poeta Machado de Assis, constatamos expressiva
freqüência, no gosto do autor, pelo tema da metamorfose. nos tulos de seus primeiros
livros de poesia Crisálidas e Falenas notamos a referência à transição do verme em
borboleta, como um anseio de transcendência do sujeito. De início, parecia buscar
inspiração no sublime, partindo das Metamorfoses ovidianas; no entanto, em Falenas¸ -
se que o prenúncio dessa transfiguração não implicava uma possibilidade evolutiva
satisfatória, como seria de se esperar de uma metamorfose, ou um estágio superior da
condição humana: as borboletas crepusculares (falenas) traziam em si a metáfora do
sofrimento, insetos de hábitos noturnos atraídos pela luz da chama que, enfim, os
incendeia.
Na peça ―Os deuses de casaca‖, mais uma vez, a metamorfose ocupa o centro da
ação, numa maneira enviesada de o escritor falar da realidade controversa do universo
humano e de suas relações de poder, a partir da esfera fantástica (mitológica) dos deuses do
Olimpo. O deslocamento da realidade espacial e/ou temporal era um dos principais
recursos machadianos para tratar de referenciais concretos sem se dirigir abertamente aos
entes e às instituições do seu tempo.
Ainda sobre o tema da metamorfose, uma das cenas fantásticas que mais
encantavam Machado na obra de Dante, além do episódio de Paolo e Francesca, consta no
Canto XXV do ―Inferno‖, em que ladrões, figuras históricas da época de Dante, eram
atacados por serpentes. Certamente, oferecendo aos leitores uma amostra dos grandes
poetas que o inspiraram, Machado escolhe o Canto XXV para figurar entre as traduções de
Ocidentais, tratando especificamente do tema em questão.
No trecho traduzido por Machado, observamos a construção da cena, ambientada
num dos círculos do Inferno dantesco, onde quatro ladrões são punidos. O primeiro, Cianfa,
136
abre o Canto blasfemando contra Deus, fazendo-lhe um gesto de ofensa: ―Acabara o ladrão,
e, ao ar erguendo/ As mãos em figas, deste modo brada:/ Olha Deus, para ti o estou
fazendo!‖. Dante (personagem), vendo alma tão rebelada, se alegra quando uma serpente se
enrola no homem e lhe veda a boca e as mãos para que não fale, nem faça mais gesto
algum, a não ser fugir com o réptil envolto no corpo.
Então, entra Caco, o centauro guardião daquele círculo do Inferno, coberto de várias
serpentes e buscando a ―alma danada‖ que havia bradado tantas ofensas. Em seguida
aparecem em cena outras três figuras, que procuram saber para onde foi Cianfa.
Posteriormente, tomamos conhecimento de que os três homens são almas condenadas:
Agnel, Puccio Sciancato e Buoso Donati.
O primeiro logo seria agarrado por uma serpente de seis pernas, que a ele se
fundiria de modo a se tornarem uma forma única, embora indefinida. Tudo indica que essa
criatura de seis pernas seja Cianfa, que retorna metamorfoseado ao lugar de onde fugiu. Na
tradução de Machado temos:
Leitor, não maravilha que aceitá-lo
Ora te custe o que vás ter presente,
Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo.
Eu contemplava-os, quando uma serpente
De seis pés temerosa se lhe atira
A um dos três e o colhe de repente.
(...)
Como se fossem derretida cera,
Um só vulto, uma cor iam tomando,
Quais tinham sido nenhum deles era.
(...)
Os outros dois bradavam: ―Ora pois
Agnel, ai triste, que mudança é essa?
Olha que já não és nem um nem dois!‖
Há, nesse caso, uma transformação incompleta, onde Agnel se torna parte da
serpente, sem, contudo, ser completamente assimilado por ela. É interessante também o
diálogo do poeta, na primeira estrofe transcrita, com a intenção de interpelar o leitor, como
se o público fosse duvidar da cena ali exposta, a que o autor, prontamente, se antecipa. Esse
recurso antecipatório, que pressupõe uma opinião do leitor, é amplamente utilizado na
Commedia, assim como seria muito bem aproveitado na obra machadiana.
137
Tão logo Agnel sai, Buoso Donati, o terceiro ladrão, sofre uma completa
transformação após ser picado no umbigo por uma víbora da ―cor de um bago de pimenta‖.
Toda ênfase do Canto recai na figura de Buoso, tanto que Dante admite ser essa a mais
completa e fantástica das metamorfoses descritas em livro: estando a víbora diante do
ladrão, este vai assumir a forma daquela, enquanto a serpente se transforma em homem.
Frente a frente, um ao outro contemplava,
E à chaga de um, e à boca de outro, forte
Fumo saía e no ar se misturava.
Cale agora Lucano a triste morte
De Sabelo e Nasídio, e atento esteja
Que o que lhe vou dizer é de outra sorte.
Cale-se Ovídio e neste quadro veja
Que se Aretusa em fonte nos há posto
E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja.
Pois duas naturezas rosto a rosto
Não transmudou, com que elas de repente
Trocassem a matéria e o ser oposto.
108
O que mais chama a atenção na cena, além do fato de que os três homens eram
desafetos de Dante na esfera real, é que o poeta florentino opera sua transformação
evocando outros autores clássicos Lucano e Ovídio -, afirmando que a cena supera as
metamorfoses mais conhecidas da literatura. Essa ―ousadia‖ do autor da Commedia parece
agradar sobremaneira a Machado. Até porque mescla a esfera do real e a do ficcional,
assim como estabelece um diálogo literário através da apropriação de uma temática
clássica, com a finalidade de atualizar o fio da tradição, e, principalmente, com a intenção
de superar as versões canônicas.
Antes do lançamento das Ocidentais, em 1901, Machado havia mostrado
interesse no episódio da obra dantesca, o que fortalece a hipótese de que o escritor revelava
um gosto especial pela cena da metamorfose de Buoso Donati. Trata-se de uma referência
que surge num conto das Histórias sem data, de 1884, intitulado ―As academias de Sião‖.
O conto narra os eventos na cidade de Bangkok, em Sião, onde duas Academias
discutem a seguinte questão: por que homens femininos e mulheres másculas? Uma das
108
ASSIS. T.P. p. 330
138
Academias formula a teoria da ―alma sexual‖, ou seja, é a alma que determina a índole
sexual do sujeito, enquanto a outra crê na ―alma neutra‖. Diante da controvérsia das teorias,
os filósofos entram em grande discussão, até que um dos grupos resolve eliminar o outro
para legitimar-se como único detentor da verdade.
Nota-se que a legitimação não ocorre por elementos que comprovem a teoria ou por
estudos sérios sobre o assunto. Para atingir a irrefragável superioridade, uma das
Academias parte para a eliminação física dos integrantes do outro grupo, o que se
através de um grande massacre nas ruas de Bangkok. A teoria da alma sexual tornava-se,
desse modo, a única verdade científica admissível, através da anulação completa da
oposição.
Toda essa altercação entre os sábios se origina da observação do comportamento do
rei Kalaphangko, que possui modos delicados e femininos. No entanto, uma de suas
concubinas, Kinnara, de gestos másculos e firmes, resolve verificar a teoria dos filósofos
testando em si mesma determinada fórmula stica. Convida o rei para a experiência e
realiza uma cerimônia de transmigração de almas pelo método ―Mukunda‖ (aprendido de
um velho bonzo). Ela e o rei invocam secretamente a fórmula mística e trocam de corpos.
O que nos interessa é a forma como o narrador machadiano, trabalhando sempre
com a ironia, vai conduzir o evento da metamorfose do rei e da concubina, relembrando o
episódio do Canto XXV de Dante.
Kinnara proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e
ficou pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também. O dela caíra
no tapete. (...)
Mas a alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu
vaso físico e penetrou no corpo de Kinnara, enquanto a desta se
apoderava do despojo real. Ambos os corpos ergueram-se e olharam um
para o outro, imagine-se com que assombro. Era a situação do Buoso e da
cobra, segundo conta o velho Dante; mas vede aqui a minha audácia. O
poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a sua metamorfose
vale mais que a deles dous. Eu mando-os calar a todos os três. Buoso e a
cobra não se encontraram mais, ao passo que os meus dous heróis, uma
vez trocados continuam a falar e a viver juntos cousa evidentemente
mais dantesca, em que me pese a modéstia.
109
109
ASSIS. O.C. vol II. p. 470.
139
Machado inspira-se nas histórias fantásticas do ―Inferno‖ dantesco para compor sua
narrativa e, repetindo ironicamente o procedimento de Dante no Canto XXV, manda calar
os três escritores, afirmando que a sua metamorfose seria ainda mais perfeita que a deles.
Mesmo deslocando a cena para um lugar distante no tempo e no espaço, Machado traz à
tona questões que lhe são contemporâneas. A luta entre os sábios, por exemplo, reencena o
episódio das duas tribos que disputam um campo de batatas, no Humanitismo de Quincas
Borba. Ambas as situações ilustram a eterna luta por poder, no campo das realizações
humanas, estejam elas na esfera científica ou na da simples sobrevivência. Não existe
acordo entre dois pensamentos diferentes, principalmente no mundo Ocidental. Para que
uma vontade se imponha e domine, é preciso eliminar o que lhe é adverso.
Em Machado, percebe-se o gosto pela parábola, pela fábula, pelas histórias, enfim,
exóticas ou fantásticas, que se deslocam de um determinado contexto para tratar, com certo
distanciamento, das questões da realidade. Já no prefácio das Histórias sem data, coletânea
que inclui contos como ―As academias de Sião‖ e ―A igreja do diabo‖, o escritor explicaria
o motivo do título. No caso, não se tratava de uma simples questão de ―falta de data‖, mas
da reunião de textos que versavam sobre a ―substância das coisas: ―... este título histórias
sem data parecerá a alguns ininteligível, ou vago. Supondo, porém, que o meu fim é definir
estas páginas como tratando, em substância, de cousas que não são especificamente do dia,
ou de um certo dia, penso que o título está explicado
110
. A ―metamorfose‖, portanto,
operada no contexto, trazia oculto, no fundo das cenas representadas, um determinado
retrato da realidade.
O procedimento não seria utilizado unicamente na prosa de Machado, mas em todas
as formas de sua escrita, em todos os gêneros que trabalhou, incluindo a poesia. O escritor
se incluía numa tradição literária que concebia o texto com diferentes níveis de leitura,
sempre oferecendo ao público determinada matéria, de que apenas um seleto leitor, ou os
leitores mais atentos, poderiam extrair uma camada mais substancial.
Tanto Dante quanto Shakespeare e Goethe, para citar alguns exemplos, se valeriam
de uma escrita em dois planos, um explícito e outro implícito, com a finalidade de alcançar
um leitor especial dentre os seus leitores comuns. Em carta a Carl Iken, em 27 de setembro
110
Idem. p. 368.
140
de 1827, Goethe revelaria o seu método criativo, a forma por ele utilizada para compor o
texto literário.
Como muita coisa de nossa experiência não pode ser pronunciada de
forma acabada e nem comunicada diretamente, muito tempo elegi o
procedimento de revelar o sentido mais profundo ao leitor atento por meio
de configurações que se contrapõem umas às outras e ao mesmo tempo se
espelham umas nas outras.
111
O texto literário é concebido como uma construção de sentidos, não como um
significado pronto e acabado. O verdadeiro fundamento da grande obra de arte está no ―vir
a ser‖, não do dito ou revelado. Portanto, todo escritor genial, escrevendo em prosa ou em
verso, desencadeia uma relação poética com o texto, aguardando sempre novos
desvendamentos por parte de leitores ideais.
Tratando especificamente do uso da escrita poética para compor a maior parte das
cenas de sua tragédia, Goethe explicaria de que maneira o verso conseguia amenizar as
imagens mais fortes do Fausto.
Algumas cenas trágicas estavam escritas em prosa; em virtude de sua
naturalidade e força elas tornaram-se agora, comparadas com o material
restante, inteiramente insuportáveis. Por isso procuro atualmente transpô-
las para versos, pois assim a idéia irá transluzir como que através de um
véu, mas o efeito imediato do assunto monstruoso será abafado.
112
O uso do verso, como a própria palavra diz, pressupõe existência de dois lados de
uma mesma questão: o aparente anverso que se mostra ao primeiro olhar; e o
subentendido verso a face velada. O recurso do velamento poético subentende um
leitor-intérprete da obra de arte, enquanto o poeta revela-se como uma espécie de profeta
que traz uma mensagem de vital importância para a obra, mas tão densa que não pode ser
oferecida ―às almas sensíveis‖. Estaria reservada, neste caso, aos ―leitores ruminantes‖,
capazes de digerir adequadamente o pensamento do autor.
111
GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto: uma tragédia. 2ª parte. (Trad. Jenny Klabin Segall). São Paulo: Ed.
34, 2007. p. 7.
112
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op. cit. p. 489. (Carta de Goethe a Schiller, em 5 de maio de 1798).
141
De modo semelhante, segundo estudos de Northrop Frye, a obra de Shakespeare
apresenta ao leitor dois diferentes níveis de leitura, principalmente as comédias escritas em
verso.
O fato de as peças serem geralmente em verso demonstra, entre outras
coisas, que havia dois níveis de significação: uma significação
apresentada ou evidente e uma significação subjacente, dada pelas
metáforas e imagens utilizadas, ou por certos acontecimentos ou discursos
subordinados e subliminares. Estes foram denominados ―nível explícito‖
e ―nível implícito‖. Às vezes, os dois níveis nos oferecem diferentes
versões do que está acontecendo.
113
Goethe, confessadamente, considerava-se discípulo de Shakespeare. Quando o autor
alemão fala em espelhamento e contraposição de imagens, não podemos deixar de perceber
certas semelhanças entre a atitude do poeta e o pensamento shakespeariano, principalmente
se avaliarmos alguns recursos presentes nas comédias escritas em verso, como destaca
Frye, e em vários outros momentos da obra.
Antecedendo os dois escritores, Dante tratava da relação autor/ texto/leitor como
o ponto essencial de diálogo, dirigindo-se a uma classe especial de leitores, os de ―intelecto
são‖, que podem ultrapassar o sentido usual e penetrar nas águas mais profundas dos seus
versos. Seriam aqueles que atentam para determinada doutrina que se esconde ―sotto il
velame delli versi strani‖. Chega a advertir o público descompromissado, ou de pouco
intelecto, a abandonar a leitura de sua obra para não se extraviar do rumo pretendido pelo
autor.
Ó vós que em pequenina barca estais,
E o lenho meu que canta e vai, ansiados
De podê-lo escutar, acompanhais,
Voltai aos vossos portos costumados,
Não vos meteis no mar em que, presumo,
Perdendo-me estaríeis extraviados.
Ninguém singrou esta água que eu assumo;
Conduz-me Apolo e Minerva me inspira,
E nove Musas indicam-me o rumo.
114
113
FRYE, Northrop.
114
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Op. cit. p.19.
142
Dante é ousado na sua escrita. Assim como pediu para dois grandes autores se
calarem diante da metamorfose que ele opera num dos seus personagens, aqui dispensa os
leitores menos capazes, revelando que sua inspiração, divina por sinal, ultrapassa os
sentidos usuais e abre um caminho nunca antes explorado no universo literário.
Metamorfoses, máscaras, véus e espelhos: um constante jogo de ocultações e
revelações, visando sempre um leitor ideal. Essa atitude resume o instinto poético desses
autores, que guardam suas revelações apenas para o leitor experimentado.
Como vimos nas Idéias vagas‖, texto crítico da juventude, o temperamento
romântico de Machado admitia o poeta como um ser escolhido, um profeta que traz aos
homens um pouco da centelha divina, a revelação sublime da obra de arte. No entanto,
sobrevivendo ao ―naufrágio das ilusões‖, a visão do poeta como ser sublime não mais se
coadunava com o espírito do prosador da maturidade, embora a arte, para Machado, jamais
tenha perdido o papel de libertadora do homem, nem o poeta deixado de existir, mesmo
quando nos fala através do prosador.
A literatura restaria como única ponte entre o real e o transcendental, resquício do
Romantismo que sobreviveu no âmago da obra machadiana. Essa atitude subjetiva para
interpretar dados de uma realidade objetiva se revela na prosa através do desdobramento do
narrador ora envolvido, ora distanciado -, assim como na poesia, especificamente nas
Ocidentais, verificamos quase sempre o embate entre planos opostos, que se evidenciam
pelo contraste: quase sempre, o aniquilamento de um precede a extinção do outro.
O escritor marca a oposição entre o que se foi, o que se é, e o que se deseja ser: os
três eixos temporais. Contudo, não é possível chegar a uma conclusão definitiva de qual
seria o tempo ideal, mais perfeito e acabado, nem se conseguem reverter as sucessivas
metamorfoses de cada fase da existência. A natureza humana estaria fundada nesse ―vir a
ser‖, sempre mutável e incompleta, conhecendo tudo, como na filosofia schopenhaueriana,
sem jamais conhecer-se plenamente.
Seguindo a tradição dos grandes autores aqui citados, mas renovando certos
conceitos através de uma refinada ironia um dos ―véus‖ mais empregados pelo escritor -,
143
Machado concebe um pacto entre autor e leitor similar ao que observamos nos textos de
Goethe, de Shakespeare, e, principalmente, de Dante.
Vale lembrar o capítulo curto do Esaú e Jacó em que o narrador machadiano fala da
provável epígrafe do livro, extraída do Canto V, da Commedia: ―Dico, che quando l‘anima
mal nata...‖. A explicação subseqüente está de acordo com a idéia de que o leitor precisa
entrar no jogo de revelações e ocultações proposto pelo autor, assim como os personagens
(como as peças de um tabuleiro de xadrez) também colaboram na escrita do livro. Para tal,
seria preciso acompanhar os lances de ambos para penetrar nos sentidos mais ou menos
obscuros da narrativa.
Ora, está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse pôr alguma,
e não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as
pessoas da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de
lunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou
totalmente escuro.
Por outro lado, proveito em irem as pessoas da minha história
colaborando nela, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie
de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos. (...) Talvez
conviesse pôr aqui, e quando em quando, um diagrama das posições belas
ou difíceis. (...) pode ser que tenhas visão bastante para reproduzir na
memória as situações diversas. Creio que sim. Fora com diagramas! Tudo
irá como se realmente visses jogar a partida entre pessoas e pessoa, ou
mais claramente, entre Deus e o Diabo.
115
O uso dos diagramas seria uma maneira de o autor esclarecer determinados
―lances‖, deixando pistas no caminho, mas, logo de início, opta por oferecer um par de
lunetas ao leitor para que ele se encarregue de compreender os aspectos menos explícitos
da história. Assim como na obra de Dante, o narrador/eu-lírico confessa que nem tudo no
livro está às claras, e que se torna necessária a interferência do leitor.
O que fica subentendido é o pacto que desde autor e leitor efetuam diante das
‗vidas‖, das animas mal natas que vão se apresentar no livro. Como no Canto V, onde
Minós avalia as almas condenadas e as lança num dos círculos do Inferno, também o
julgamento final de cada personagem dependerá da exposição que delas fará o autor e da
interpretação conclusiva do leitor.
115
ASSIS. O.C. Vol I. p. 966.
144
O que se percebe na obra machadiana, da juventude à maturidade, é que o
pensamento de determinados autores, as citações e as referências estarão presentes tanto na
prosa quanto na poesia. Embora exista uma metamorfose, uma aparente mudança do
romântico para o parnasiano ou para o realista, como se convencionou classificar (ainda
que relativizemos esses rótulos), Machado mantém uma linha que o acompanha por toda a
trajetória, seguindo o percurso de uma tradição poética que põe a obra no centro da cena,
tendo como fim último a sua própria concepção, recurso metapoético.
Além desse diálogo com seus antecessores, retomando ou reformulando o legado
dos mestres, há também uma fidelidade do escritor a si mesmo, que vai além da escolha das
temáticas, tendo em vista que continuamente estabelece vínculos entre o novo e o antigo,
entre os modelos do passado e os do seu presente.
Sílvio Romero, com o propósito de ―desclassificar‖ o desafeto da vida inteira,
critica a fidelidade de Machado a determinados temas e modelos, desde o início da carreira
até a publicação das Poesias completas, de 1901. Porém, discordamos do caráter negativo
das afirmações de Romero, que considera o fato de se manter fiel a um pensamento como
indício de ausência de criatividade do autor.
É por isso que o Sr. Machado de Assis, tendo começado, por certo, os
seus primeiros ensaios poéticos aos quinze ou dezesseis anos, já nos
aparece em 1864, aos vinte e cinco um poeta feito, com um volume
publicado, contendo produções das épocas diversas do fundamental
decênio de sua formação, de posse de um estilo, que ele polirá durante
cinqüenta anos, mas nunca lhe mudará o colorido e a essência, porque o
metal que o constitui é sempre o mesmo. É por isso que ele nunca
escreveu versos superiores aos dedicados a ―Corina‖, publicados nas
Crisálidas. É por isso que a última folha das Ocidentais batizada ―No
alto‖ poderia ocupar o lugar da derradeira página, chamada ―Última
folha‖, das aludidas Crisálidas escrita quarenta anos antes, ou vice-
versa.
116
Um outro crítico, Frota Pessoa, diria que Machado era um poeta ―correto e frio, sem
vibrações, vestindo idéias românticas com forma parnasiana‖.
117
uma grande ocorrência
de análises formais da poesia machadiana por parte dos leitores contemporâneos do autor.
A maioria deles se preocupa excessivamente com a forma, fazendo um levantamento
116
ROMERO, Sílvio. ―Poesias Completas‖. In: MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro da
consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p. 256
117
Idem. p. 258.
145
exaustivo das rimas, do ritmo dos versos, da métrica. Outros chegaram a fazer
levantamento estatístico da ocorrência e da repetição de determinadas palavras, tudo isso
com o propósito de se desfazer da imagem de um ―perfeito poeta‖.
O que os contemporâneos esperavam da poesia de Machado? Primeiramente, a
escolha dos ―Versos a Corina‖ como o poema mais bem realizado do escritor patenteia a
índole dos críticos de então, ainda muito presos a determinados estilos, do mesmo modo
que demonstra o tipo de poesia cultuado no Brasil: versos passionais, arrebatados, emotivos
e sentimentais. Em contrapartida, o poeta também sentiu o rigor da crítica dos cultores do
Parnasianismo, que discutiam apenas sobre os aspectos formais de sua poesia. Esses
últimos se davam conta de que os versos soltos, o uso de palavras correntes na língua (no
lugar de preciosismos lexicais), não condiziam com o apuro formal da geração de poetas do
final do século XIX.
De 1889 para os nossos poetas deixaram de cultivar o verso solto, que
em profusão abunda neste último livro do Sr, Machado de Assis. Ele
sempre usou e abusou desse verso (...) Mas não é tão fácil como quer o
Sr. Machado de Assis, pois, desde que não obedece à disciplina das
consoantes, é subordinado a outras exigências do compêndio de
metrificação, não podendo terminar em palavra aguda, nem esdrúxula,
além de não lhe ser permitido emparelhar os assonantes.
118
O que fica patente é a dificuldade dos críticos em enquadrarem Machado numa
tendência, partindo dos padrões comuns à época, principalmente se atentarmos para o
conteúdo de sua poesia, muito mais voltado para as questões universais do homem - filiado
ao espírito da Weltliteratur -, do que para uma tendência nacionalista/localista como a da
maioria dos poetas de seu tempo. Machado também não se coadunava à poética dos
―compêndios de metrificação‖ dos parnasianos, apesar de ser um poeta de elevada correção
formal.
Sem dúvida, manteria um gosto clássico, como também aproveitaria muitas das
temáticas românticas ao enfocar o subjetivismo do homem na sua leitura de mundo. Essa
poesia filosófica de Machado não tinha precedentes no Brasil, daí sua desfiliação, e o
estranhamento que causou em seus contemporâneos.
118
TEIXEIRA, Múcio. ―Poesias Completas‖. In: MACHADO, Ubiratan. Roteiro da Consagração. Op. cit. p.
239
146
À época, o mais competente leitor da poesia machadiana, que soube enxergar o
estro do poeta, sem elogios demasiados, nem infundados preconceitos, foi José Veríssimo.
Seu artigo sobre as Poesias completas, de Machado, até hoje, é o mais avalizado acerca do
poeta, principalmente por percebê-lo como um caso à parte no seu tempo.
Como é um escritor à parte em nossa literatura contemporânea, assim é o
Sr. Machado de Assis também um poeta à parte na nossa poesia. E quer
como prosador, quer como poeta, não o é por nenhuma extravagância de
pensamento ou de estilo, mas somente pela originalidade do seu engenho,
pela singularidade de seu temperamento.
119
Não se pode negar que em Ocidentais, além de prestar homenagens aos mestres,
Machado dialoga também com o poeta que foi e continuava sendo. A configuração das
Poesias completas sustenta essa hipótese, na medida em que, entre publicar um livro com
as poesias da juventude e publicar um livro novo, o escritor optou pela união dos dois,
como uma tentativa de reaver o fio poético, esgarçado em determinados pontos da vida.
Dois poemas, em especial, tratam dessa metamorfose do poeta, dos primeiros livros
ao último: ―A uma senhora que me pediu versos‖ e ―Soneto de Natal‖. Naquele, o eu-lírico
recomenda à senhora que busque em si mesma a poesia que pensa encontrar nos versos que
lhe pediu, enquanto no soneto natalino reflete sobre o Natal e sobre a falta de inspiração
para falar do tema. Em ambos os casos, o poeta admite que não é capaz de executar a tarefa
da maneira desejada, seja porque a alma está ―ressequida‖, seja porque algo dentro de si
mudou, a ponto de sustar a inspiração.
Em ―A uma senhora que me pediu versos‖ fica patente a comparação entre o poeta
da juventude e o da maturidade:
Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.
Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.
119
VERÍSSIMO, José. ―O Sr. Machado de Assis, poeta‖. In: MACHADO, Ubiratan. Roteiro da
Consagração. Op. cit. p. 242.
147
Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas ressequidas.
Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.
120
A confissão do poeta resumiria sua metamorfose: as flores que oferece são outras,
trazem a melancolia das ―almas ressequidas‖. Nenhum resquício de ilusão restou no
coração do poeta, entretanto não deixa de ofertar suas flores, ainda que não sejam as
mesmas.
A estrofe final guarda uma contradição irreconciliável acerca da crença do poeta.
Apesar de falar de Deus e dos ―sóis‖ e ―luas‖ (lugares comuns da poesia?), usa a expressão
―Creio bem que Deus os fezpara, em seguida, acrescentar: para outras vidas, ou seja,
para outras pessoas. A afirmação inicial é negada no último verso, confirmando
obliquamente a sua descrença, quase a justificá-la como sendo uma questão de parcialidade
divina: não é ele que deixa de crer, mas é Deus que o exclui de seus planos.
No ―Soneto de Natal‖, além de retornar ao assunto divino, retratando a atitude de
um homem diante de um evento religioso - ―Noite cristã, berço do Nazareno‖ trata
também da dificuldade de compor um soneto motivado pela circunstância. Esse homem,
que identificaremos mais adiante com o poeta, parece aguardar um milagre natalino, um
renascimento das atitudes do passado, uma retomada dos instantes de alegria que marcaram
sua infância.
Um homem era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, -
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
120
ASSIS. T.P. p. 334
148
Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
―Mudaria o Natal ou mudei eu?‖
121
A rememoração do passado retorna nesse poema, comparando o estado anterior ao
atual, porém suas palavras afirmam que não é possível encontrar um meio de reviver o
antigo modo de sentir. O passado e o presente, segundo afirma, não podem se reconciliar; o
poeta de Ocidentais rasura o bardo da juventude, sem, contudo, poder se desvencilhar
completamente dele.
As Poesias completas teriam esse perfil de reafirmação e de negação, refutando os
sentimentos daquele que um dia cantou ―A morte no Calvário‖ e ―Redenção‖ - poemas de
índole religiosa -, mas relembrando saudosamente das ―lépidas cantigas‖ de outra idade. Há
uma aparente tentativa de transpor as velhas sensações da infância para o tempo da
maturidade, porém o ―metro adverso‖ se opõe ao ―verso doce e ameno‖ que o poeta tenta
em vão recuperar.
Para ilustrarmos a oposição de sentimentos, veremos como os versos machadianos
passam por uma transformação na forma e no conteúdo. O poema ―Redenção‖, publicado
em 1859, trataria do nascimento de Cristo com efusão e êxtase religiosos, apontando o
Natal como momento de resgate do homem, como instante de purificação e de
manifestação dos sonhos. Toda a atmosfera natalina favoreceria a imaginação e a
inspiração.
Tu foste Belém provecta
- Berço de um maior profeta
Sacrificado na cruz!
Batera a hora na ampulheta eterna,
E esse fato de um Deus que se agitava
No seio da fecunda humanidade
Surgira à luz. A natureza toda
Estremeceu e se arraigou mais bela!
Mas linda a flor dos campos nessa noite
121
Idem. p. 324.
149
O seio abrira. No seu leito o homem
Nessa noite sentiu mais puros sonhos
Por sua mente revoar... E as almas
Que esta terra de abrolhos maculará
Sentirão todas um chuveiro de ouro
122
Comparando o ―Soneto de Natal‖ ao poema ―Redenção‖, fica evidente a distância
entre as duas visões que neles se apresentam. A metamorfose havia se completado,
irreversível, como o próprio poeta conclui, apesar de optar pelo questionamento no fim do
soneto: ―Mudaria o Natal ou mudei eu?‖.
Como na transformação de Agnel, na Commedia, o poeta admirava-se da mudança,
mas não podia se desvincular completamente do outro, nem tornar-se totalmente novo:
Olha que já não és nem um nem dois!‖. Ainda assim, mesmo sem o ―chuveiro de ouro‖ da
inspiração de Natal, o poeta constrói o soneto através do recurso metapoético: tratando da
própria dificuldade de escrever, conclui os quatorze versos necessários à composição.
Machado poria os dois poetas frente a frente: o aspirante à montanha das musas e o
poeta veterano que chegara ao alto do monte. Como a contemplar o próprio rosto, ainda
que não reconhecesse mais nos traços daquele a feição mais recente, talvez desejasse ver
cumprida a teoria goethiana: O mais feliz dos homens é aquele que consegue ligar o fim
de sua vida ao início‖, ou talvez, nas próprias palavras machadianas reformuladas a partir
da idéia de Goethe, pensasse ainda em ―atar as duas pontas da vida‖.
2.3- Descendo a montanha das musas
“Chegou já o tempo justo de minha vida,
com tempestuoso mar, qual frágil barca,
num porto comum, onde se submetem
motivo e razão de toda obra triste e pia.
E de onde a afetuosa fantasia,
de que a arte me faz ídolo e monarca,
conheço bem agora o tamanho do erro que abarca
e quanto mal a seu pesar todo homem deseja.
(Michelangelo Buonarroti)
122
ASSIS. T.P. p. 675.
150
―O poeta chegara ao alto da montanha‖ - com esse verso Machado iniciaria o último
poema de Ocidentais: ―No alto‖. Certamente, o escritor tinha consciência de sua despedida
do gênero lírico ao conceber o projeto das suas Poesias completas, em 1901. Assim, além
de retomar um topos poético da rica clássica também encontraria uma forma de dialogar
com o poeta do passado, articulando no alto da montanha a definitiva síntese entre ―o que
se foi‖ e ―o que se é‖, apesar de não existir uma resposta definitiva para ―o que será‖,
pergunta que surge no poema.
uma inversão do curso natural da poesia e, em vez de subir, o poeta resolve
descer a encosta. Como em ―Última folha‖, deixa ―ao eco dos sagrados ermos/ A última
harmonia‖. Toda visão etérea se desfaz, restando apenas o elemento prosaico por natureza.
O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma coisa estranha,
Uma figura má.
Então, volvendo os olhos ao sutil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.
Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,
Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro lhe deu a mão.
123
Em relação ao poema, a associação mais freqüentemente feita pela crítica, assim
como pelos estudiosos da poesia de Machado, é à peça de Shakespeare, A tempestade.
Obviamente, a citação de Ariel permite a relação imediata com a obra do dramaturgo
inglês, assim como a ―figura má‖ é logo assimilada à representação de Caliban, outro
123
ASSIS. p.347
151
personagem da peça shakespeariana.
Menos comum, quiçá inexistente, é a explicação acerca da introdução de Ariel no
contexto da poesia, ou seja, qual seria a relevância do personagem shakespeariano para a
compreensão do poema de Machado? Outro ponto importante é que, afora a observação de
Romero, até o momento nenhum crítico estabeleceu uma ligação entre os poemas de
Crisálidas e os de Ocidentais e, mais especificamente, entre as composições que encerram
os dois livros.
Não se pode negar que, na proposta do autor em reunir os livros anteriores
acrescentando a eles um mais recente, uma tentativa de confrontar o antigo e o novo, o
poeta do passado e o do presente. Ocidentais, além de ser uma homenagem aos mestres de
Machado, viria a ser uma retrospectiva de sua obra poética da juventude, uma síntese das
duas pontas da vida do poeta.
Partindo dessa perspectiva, podemos estabelecer o primeiro vínculo entre ―A
tempestade‖ e ―No alto‖, considerando que tanto a peça quanto o poema tratam da
despedida de seus autores de um determinado gênero, comportando ambos uma natureza
metatextual: o dramaturgo analisa e avalia sua carreira, assim como o poeta tece reflexões
acerca da própria obra poética (stricto senso) que ali se encerra.
No caso de A tempestade, é senso comum entre os críticos a afirmação de que o
personagem principal, Próspero, age como uma espécie de auter ego do dramaturgo, tendo
em vista que, durante toda a peça, discorre sobre o ato de representar. Além disso, chama-
nos a atenção que essa obra, de 1611, tenha sido a última produção integralmente escrita
por Shakespeare, marcando, assim, o encerramento de sua carreira como escritor de teatro.
(...) a personagem central, Próspero, tem características que podem sugerir
uma auto-identificação com Shakespeare. Então ela poderia ser peça de
Shakespeare, num sentido bastante especial, a despedida de sua arte, se
quisermos, especialmente se considerarmos o discurso de Próspero, em
que ele promete jogar seu livro ao mar.
124
Como a ilha de Próspero, a montanha machadiana é um lugar especial, assinalado
por duas vertentes: uma ascendente, tendo a companhia de Ariel (espírito de ar e de fogo), e
outra descendente, por onde a ―figura má‖ o conduzirá: o outro lado da encosta.
124
FRYE, Northrop. Sobre Shakespeare. p. 211.
152
Além de resumir o passado (ascendência) e o futuro (descendência), se associarmos
essa ―figura má‖ a Caliban (ser ligado à terra e à água), chegamos ao contraponto entre o
etéreo e o terreno. Não apenas isso: no poema machadiano, especificamente, percebe-se
que a montanha é o lugar da fantasia, das imagens etéreas e sublimes do poético
pertencente ao gênero alto -, enquanto o mundo terreno se associa à realidade prosaica - ao
gênero baixo.
Tanto em Shakespeare quanto em Machado, a questão principal envolve o conflito
de dois caracteres, o contraste entre duas figuras. Fantasia e realidade estariam sendo
confrontadas num lugar especial, um locus amoenus representado pela ilha ou pela
montanha, ambos os ambientes sendo uma espécie de isolamento ―mágico‖ da realidade.
A peça finaliza-se com Próspero libertando Ariel após a execução de rios
serviços. O espírito passa toda a peça transformando-se continuamente, assumindo diversos
papéis, mas sempre invisível aos olhos dos outros: articulando esta e aquela cena, incitando
a movimentação dos personagens que habitam a ilha, interferindo em cada ação, enfim,
surge como um ator em cena, que busca cumprir o script traçado pelo autor. Numa das
seqüências, Ariel dirige-se a Próspero, após cumprir mais uma tarefa, e lhe pergunta: ―Foi
bem feito?‖ - como se tudo ali fosse representação.
O protagonista shakespeariano decide abandonar definitivamente a magia com que
rege aquela ilha, lançando o seu livro de encantamentos ao mar. Resolve também
abandonar o local. Porém, mesmo contrariado, precisa levar Caliban consigo, como se ele
fizesse parte de toda a realidade, dura e cruel, que o aguardava no reino de Milão. Próspero
desiste de um reino de sonhos para tomar posse de um reino verdadeiro na Itália.
A despedida do personagem inicia-se na cena do casamento de Miranda e
Ferdinando e se completa quando o dramaturgo encerra a representação, como se o
abandono da ilha fosse metáfora do abandono do palco, pedindo que a platéia o liberte com
as suas palmas. Vejamos primeiramente a cena do casamento:
(...) criai ânimo,
senhor; nossos festejos terminaram.
Como vos preveni, eram espíritos
todos esses atores; dissiparam-se
no ar, sim, no ar impalpável. E tal como
o grosseiro substrato desta vista,
as torres que se elevam para as nuvens,
153
os palácios altivos, as igrejas
majestosas, o próprio globo imenso,
com tudo o que nele contém, hão de sumir-se,
como se deu com essa visão tênue,
sem deixarem vestígio. Somos feitos
da matéria dos sonhos; nossa vida
pequenina é cercada pelo sono.
A ilha de Próspero, assim como a figura de Ariel, é tecida de sonhos; desfeita a
fantasia, desfaz-se também o pequenino cerco da vida. O microcosmo de Próspero se
rompe para dar lugar ao mundo o macrocosmo - que ele não domina. Caliban faz parte
desse mundo fora do homem, universo material que ele não compreende inteiramente,
apesar de tentar submetê-lo ao domínio racional. O epílogo da peça confirma o caráter
metatextual da peça shakespeariana, a partir do momento que Próspero só pode abandonar a
Ilha, lugar que domina plenamente, após a aprovação do público: ―Libertem-me de minha
atroz prisão ainda agora,/ Com palmas, com aplauso, com mãos tão generosas/ E as cálidas
palavras que das bocas vão soprar e/ Meus planos vão frustar ou minhas velas enfurnar‖.
125
No poema de Machado, é o poeta que faz o questionamento, ―O que será?‖, sem
obter a resposta de Ariel. Inverte-se o panorama representado na peça de Shakespeare. A
fantasia parece causar receio ao poeta, dando-lhe um ―tom medroso e agreste‖, enquanto a
realidade apresenta-se muito mais segura, na medida em que, diante do desnorteio da cena
inicial, a figura má apresenta-lhe um novo caminho, de descida, apoiado em sua mão.
Esse guia malévolo, por assim dizer, subverte o panorama anterior, atraindo o poeta
para baixo. Ao contrário de Próspero, o poeta de ―No alto‖ não domina o bem ou o mal,
mas necessita da orientação de ambos. Esse ponto de distanciamento entre Machado e
Shakespeare nos faz pensar numa outra possibilidade de interpretação do poema, partindo,
desta vez, de um outro autor, mas sem nos distanciarmos do nosso foco de atenção, que é a
questão da dualidade.
Goethe retomaria em seu Fausto alguns personagens de Shakespeare, incluindo
Ariel, que aparece em dois momentos cruciais da peça: na subida do monte no ―Sonho da
Noite de Valpúrgis‖, na primeira parte, assim como logo na abertura da segunda parte,
escrita na maturidade do poeta, quando Fausto se encontra na ―Região amena‖, ou locus
125
SHAKESPEARE, William. A tempestade. (Tradução de Beatriz Viégas-Faria). Porto Alegre: LP&M,
2007. p. 114.
154
amoenus, como anteriormente havíamos nomeado o espaço da ilha e da montanha.
Os estudos sobre a tragédia goethiana a aproximam da peça de Shakespeare, bem
como o dramaturgo inglês parece ter se inspirado no Doutor Fausto, de Marlowe, para
compor A tempestade. Próspero e Fausto, dois sábios ou magos, dominam a ciência e o
saber dos livros, e, também senhores de artes mágicas, dominam a alquimia e as forças
místicas. Até o nome de ambos seriam sinônimos, segundo nos relata Harold Bloom.
O nome de Próspero, o mago criado por Shakespeare, é a tradução italiana
de Faustus (o favorecido), pseudônimo latino adotado em Roma por
Simão Mago, o Gnóstico. Tendo Ariel, um espírito ou anjo (o nome em
hebraico significa ―leão de Deus‖) a seu serviço, em contraste com
Mefistófeles de Marlowe. Próspero é um anti-Fausto shakespeariano, a
incontestável superação de Marlowe.
126
Seguindo esse diálogo entre autores, enquanto Shakespeare parece querer negar o
Fausto de Marlowe com a criação de Ariel, Goethe reúne ambos, Próspero e Fausto,
retomando tanto o Ariel de Shakespeare quanto o Mefistófeles de Marlowe. Talvez por
isso, em muitas ocasiões o Fausto goethiano apareça submisso e arrependido, enquanto,
noutras, surge autoritário e decidido, quase impondo a Mefistófeles suas vontades.
O diálogo de Machado no alto da montanha também retoma a tradição tanto de
Shakespeare quanto de Goethe, na medida em que não cita o nome da ―figura má‖,
mantendo a ambigüidade que aponta ao mesmo tempo para Caliban e Mefistófeles. A
própria natureza dúbia de Mefisto o faz parecer ambíguo, já que se diz parte de uma energia
capaz de criar Mal e Bem, assim como, no poema machadiano, o Mal é que oferece auxílio,
enquanto o Bem se desfaz.
Machado, no poema, aproxima-se muito da mentalidade goethiana ao desmentir a
fantasia, veículo das ilusões e incertezas da vida. Seguindo a filosofia de Schopenhauer,
como havíamos comentado, também renegaria o mais torvo dos males: a esperança,
representada pelo ―O que será?‖, lançado a Ariel, como uma pergunta sem resposta que
ecoa pelos ares e se esvai juntamente com a figura aérea e vaga.
No ato da peça de Goethe denominado ―Noite de Valpúrgis‖, assim como no poema
de Machado, temos uma subida ao monte. No caso do Fausto, trata-se do Blocksberg,
famosa montanha das bruxas e dos seres maléficos, para onde, inicialmente, Mefisto
126
BLOOM. Op.cit. p 803.
155
conduz o protagonista. No entanto, o propósito da figura não é levar Fausto ao cimo,
mas afastá-lo da subida, talvez como se quisesse impedir a visão ampla do personagem, e
desviar sua atenção da figura de Margarida que aparece para ele como um espectro.
Diante da proposta de desistir da subida, Fausto e Mefisto dialogam:
FAUSTO:
Gênio da oposição! Bem hei de acompanhar-te!
Mas a esperteza admiro; aos cimos
Do Brocken, nesta noite, os passos dirigimos,
Para ficarmos cá, de parte.
MEFISTÓFELES:
Pois vê que flamejar garrido!
É um clube alegre reunido.
Nunca estás só com o povo miúdo.
FAUSTO:
Quisera no alto estar, contudo!
Vejo fogo e espirais de escuma.
Para o demônio a massa ruma.
Mais de um enigma, lá se solve.
MEFISTÓFELES:
E mais de um lá, também se envolve.
Fiquemos cá, onde é quieto, e desande
A bel-prazer o mundo grande!
É praxe antiga e de ótimos efeitos
Serem, no grande mundo, os pequeninos feitos.
127
Fausto deseja rumar para o alto, para o lugar, segundo afirma, onde os enigmas são
resolvidos. Mefisto desmente essa concepção ao asseverar que outros enigmas maiores
poderiam envolvê-lo no alto‖. A figura maléfica o aconselha a ficar no meio da jornada,
aproveitando os prazeres do ―povo miúdo‖, ou a tranqüilidade do pequeno mundo, em vez
de desvendar os mistérios do ―grande mundo‖. um convite para que Fausto retroceda:
Fiquemos cá, onde é quieto, e desande/ A bel-prazer o mundo grande!‖
No ato seguinte, ―Sonho da noite de Valpúrgis‖, ao contrário de Mefistófeles, Ariel
127
GOETHE. Fausto. 1ª parte. Op.cit. p. 453.
156
incita os personagens a subirem a montanha: Deu-te o empíreo, amante e vasto,/ Deu-te o
gênio asas viçosas,/ Segue teu ligeiro rasto/ para o morro, lá, das rosas‖
128
Ariel é o último
personagem a falar no Brocken; segue-se um coro, a anunciar que toda visão está se
esvaindo: ―Nuvrejão, véu de neblina,/ Dissolvem-se na aurora./ Vento na haste, ar na
campina,/ E tudo se evapora.‖
O retorno ao monte, dessa vez não nomeado, ocorre na segunda parte da tragédia de
Goethe, escrita na velhice. Como na peça de Shakespeare, A Tempestade, essa também
seria a derradeira despedida do poeta do mundo das letras. Em sua biografia, Goethe admite
que, desde a infância, quando assiste a um teatro de marionetes encenando o tema, o
Doutor Fausto havia lhe provocado grande impressão.
Na juventude, esboça os primeiros escritos do seu Fausto (Urfaust), que chegou até
nós pela transcrição de uma senhora a partir do original do poeta alemão (destruído por ele
mesmo). Por toda vida Goethe se dedicará à tragédia, sendo essa, portanto, uma obra que
reúne escritos da juventude e da velhice.
Se, de início, Goethe encontra inspiração na peça de Marlowe, na primeira parte
oficial da tragédia, publicada em 1808, se deixa também guiar pelo Próspero de
Shakespeare. A última parte, Fausto II (1832), mescla uma série de influências, medievais
e clássicas, desde os autos calderonianos aos mitos milenaristas, e demais ideologias que
formaram o mundo ocidental.
O elemento que une a primeira à segunda parte do Fausto parece ser Ariel, que
fecha a cena do ―Sonho da Noite de Valpúrgis‖ incitando a subida à montanha (antes que
toda a cena se evapore), e abre o primeiro ato do Fausto II, em que o protagonista desperta
no alto do monte, lugar identificado apenas como locus amoenus (região amena).
Ariel, seguido de uma ronda de gênios, canta diante de Fausto:
Sílfides, vós, que o envolveis em cerco aéreo,
Lidai agora a vosso modo etéreo!
Da alma extraí-lhe o dardo da amargura;
Do remorso abafai a voz tenaz;
Livrai-lhe o ser da visões de negrura!
São quatro as pausas da noturna paz,
Desde já, preenchei-as com brandura.
(...)
128
Idem. p. 487.
157
Das sílfides cumpri o anseio pio,
À luz sagrada restituí-o.
O alvorecer é a hora do dia que dissipa as dores antigas, os males da noite. Ariel
evoca o dia e pede que Fausto beba do rio Letes para esquecer os sofrimentos anteriores.
Todas as criaturas etéreas anunciam a vinda do sol, como alívio às dores sofridas pelo
protagonista da tragédia. A fala de Fausto, porém, contradiz o etéreo e o fantasioso
conclamado por Ariel, e o personagem admite que se sente atraído para baixo, para os
vínculos materiais e terrenos que Mefistófeles lhe oferece. Não nele espaço para o
sonho, o devaneio ou a ilusão. A realidade soa mais real que toda a região amena anunciada
por Ariel.
Aqui encontramos o ponto de contato com o poema de Machado: reconhecendo, por
fim, que não é possível retomar o caminho inicial, que sempre aparece impalpável e
utópico, opta por descer a montanha, deixando-se conduzir para o outro lado da encosta.
Não o lugar do nascer do sol, como no mito platônico, mas a vertente do oeste (onde a
figura má surge, associada ao ocaso, no declinar das ilusões).
Como na abertura da segunda parte da tragédia de Goethe, em que Fausto as
costas ao sol, o poeta de ―No alto‖ desconsidera o ponto de partida e aceita o derradeiro
destino. Entre um mundo vasto e irreal (que se desfaz sem deixar resposta) e outro restrito
e tangível (que lhe estende a mão), o poeta escolhe o último, aquele que lhe garante mais
segurança: o universo prosaico e terreno.
Na tragédia de Goethe, a fala do protagonista contempla muitos aspectos da rica
machadiana, principalmente da obra poética da maturidade em diálogo com a da juventude.
Olha para o alto! Os cumes da montanha
Da soleníssima hora dão o aviso;
O pico cedo a luz eterna ganha,
Que mais abaixo se aproxima lenta.
Dos Alpes já viçosos prados banha,
Cujo verdor com nitidez salienta;
Gradualmente ilumina a extensa pista.
Surge o astro! e eu me desvio, ah não o agüenta,
Já deslumbrada, a dolorida vista.
É assim, pois, quando a férvida esperança,
Do anelo máximo que na alma exista,
Se abrem portais da bem-aventurança.
158
Mas jorra então, de páramos extremos,
Um mar de chamas que em temor nos lança.
Da vida o facho incandescer quisemos,
E nos envolve um fogo que nos traga.
É ódio, é amor, em cuja chama ardemos,
Do prazer e da dor mutuando, a vaga?
Retoma à terra o olhar, que em suave manto
De infância nos envolve, e o peito afaga.
Que fique atrás de mim, o sol, portanto!
A catarata que entre pedras ruma,
Contemplo agora com crescente encanto.
De queda em queda se despenha e escuma
Mil turbilhões espúmeos derramando,
Enche o ar de nuvens de escumosa bruma.
Que esplêndido, do turbilhão brotando,
Surge , magnífico, o arco multicor!
Nítido ora, ora no éter se espalhando,
Imbuindo-o de aromático frescor.
Vês a ânsia humana nele refletida;
Medita, e hás de perceber-lhe o teor:
Temos, no espelho colorido, a vida.
129
A conclusão lograda por Fausto, no ―lugar ameno‖, casa-se ao pensamento
esboçado no poema machadiano: a esperança apenas conduz o homem ao medo e à mais
voraz das ilusões (o ar ―medroso e agreste‖, de que nos fala o poema de Machado). O
terreno é, pois, o espaço seguro que vela os olhos do homem ao seu inútil desejo de
expansão (que a subida ao monte sempre incita), de maneira que ele não ultrapasse os
limites além do que os seus sentidos poderiam suportar.
Seguem-se, desse modo, os conselhos de Mefistófeles, que anteriormente afirmara
que, se os enigmas no alto se solucionam, outros mais haveriam de surgir. A vida do
homem, como o arco-íris que surge diante do olhar de Fausto, mostra-se variada e profusa,
alternando-se nas certezas e nas incertezas (Nítido ora, ora no éter se espalhando). Se a
verdade suprema não pode ser nitidamente contemplada (o sol), é na alma do homem (arco-
íris) que Fausto todos os espectros refletidos, de um a outro ponto, onde o pequeno
mundo, espelhando indiretamente a luz, a vincula ao fluido intenso da vida.
Se pensarmos na bela síntese poética de Machado realizada por Drummond, em seu
poema ―A um bruxo com amor‖, podemos arrematar o capítulo casando o pensamento de
129
GOETHE. 2ª parte . Op.cit. p. 45-47
159
Shakespeare, Goethe e Machado, assim como de seus personagens, na escrita poética: ―Dás
volta a chave,/ envolves-te na capa,/ e qual novo Ariel, sem mais resposta,/ sais pela janela,
dissolves-te no ar.‖
Entre o Bruxo do Cosme Velho (epíteto conferido a Machado por Augusto Meyer),
e os auter egos Fausto e Próspero, uma confluência de três magos que revisitam o
nascimento de seus enigmas para conceder ao leitor a visão mais plena, embora velada, de
suas principais indagações acerca do homem, da vida e da obra de arte.
3- MACHADO DE ASSIS: UM HOMEM DO TEATRO.
A falta de lirismo na poesia e a de ação no teatro foram duas sentenças proferidas
pela crítica que assumiram o caráter de verdades absolutas. O interessante é que nem na
160
época de Machado, nem na atualidade, os críticos que mantiveram essa visão negativa
procuraram ler, com o aprofundamento devido, a poesia e o teatro machadiano.
Recentemente, no entanto, temos observado um aumento do interesse de editoras em
trazer a público os textos teatrais de Machado de Assis. As publicações relacionadas ao
teatro reúnem, além do teatro completo do autor, alguns poemas dramáticos publicados
nos livros de poesia e de crônicas, que nunca antes haviam sido classificados como peças
teatrais.
Dentre os textos publicados, podemos destacar a coleção Clássicos do teatro
brasileiro, organizada pela FUNARTE, que dedica o terceiro volume ao estudo dos textos
teatrais de Machado de Assis, Qorpo-Santo e Coelho Neto (FUNARTE, 2002); o livro
Teatro de Machado de Assis organizado por João Roberto Faria (Nova Fronteira, 2003) e
os dois volumes Machado de Assis: teatro (Cia. Editora Nacional, 2004). Dos três livros,
apenas o de João Roberto Faria traz uma boa introdução, ambientando o teatro de
Machado no cenário da época e procurando emitir algum juízo sobre as peças.
Quanto aos estudos sobre o teatro, há críticos que se têm debruçado sobre o assunto.
Merecem destaque algumas obras: Panorama do teatro brasileiro, de Sábato Magaldi;
Minoridade crítica, de Luís Antonio Giron, Machado de Assis e o teatro das convenções,
de Cecília Loyola e As novidades velhas: o teatro de Machado de Assis e a comédia
francesa, de Helena Tornquist. Enquanto os dois primeiros dedicam um capítulo a
Machado, os dois últimos livros oferecem um estudo detalhado de vários textos teatrais
do autor.
Cecília Loyola, procura desfazer a imagem preconceituosa dos críticos do passado,
mostrando que a ironia é um ponto determinante para a compreensão do teatro
machadiano:
Entretanto, se a cada ano vemos crescer o manancial crítico referente à
obra dita maior do autor, tal não é a sorte da dramaturgia. Os textos
estão numa espécie de limbo, eventualmente iluminados por sua
prática teatral inconstante. Talvez a estranheza provocada pela
modernidade radical desta cena seja ainda, de algum modo, a mesma
sentida por alguns contemporâneos de Machado, por exemplo, aquela
que selou, precocemente, o destino crítico da dramaturgia. Quintino
Bocaiúva escreveu a propósito das duas primeiras comédias,
sentenciando, para o futuro, o conjunto da obra. Assim é que a solução
161
analítica, meio adjetiva, meio substantiva, tornou-se a associação aos
provérbios de Musset.
O estranhamento contemporâneo, que ali frieza e não ironia,
artificialidade e não opção dramática, faz-nos pensar o quanto do
passado está em nossos dias, o quanto de nós se pode perceber no
século XIX. (...) o texto machadiano obriga o estudioso (...) a
compreender a teia de relações que a proferiu e aquela que a tem
perpetuado.
130
A autora escolhe algumas peças teatrais do escritor para desenvolver sua análise, mas,
mesmo se preocupando em reavaliar as produções machadianas, não seleciona nenhuma
comédia em verso, o que acentua a exclusão do poeta dramático da cena crítica.
O texto de Helena Tornquist é o único dos aqui apontados a lançar uma reflexão
acerca da classificação dos gêneros na obra dramática de Machado, por vezes mostrando os
frágeis limites entre o narrativo, o lírico e o dramático em seus textos. Sobre o teatro em
verso de Machado, a autora anota que é recente o reconhecimento das peças Antes da
missa, O bote de rapé e Uma ode de Anacreonte, anteriormente agrupadas em volumes de
crônica ou poesia.
A inclusão de diálogos como Antes da missa e O bote de raem
volumes de crônicas (lembremos que somente com a edição organizada
pelo Instituto Nacional do Livro esses textos foram incorporados à
dramaturgia de Machado) e a permanência de Uma ode de Anacreonte
no volume Poesias, em sucessivas edições, o exemplos eloqüentes da
precariedade das classificações de gênero.
131
Partindo das observações de Tornquist, chegamos a uma questão central: a que gênero
pertence o teatro em verso de Machado? Convém destacar a constante mescla que Machado
promove dos gêneros, tanto na prosa quanto na poesia. Basta lermos um poema como
―Pálida Elvira‖, para notar como o escritor opera uma verdadeira fusão do lírico, do épico e
do dramático em sua obra, além de reaproximar a poesia do sentido original do termo
―lírico‖, retomando a relação deste termo com a música.
Na prosa, por exemplo, quando nos deparamos com certas palavras do narrador Brás
Cubas, temos a nítida impressão de estarmos diante da melhor definição da atitude do poeta
e do dramaturgo ao realizar a mistura de gêneros em sua obra:
130
LOYOLA, Cecília. Machado de Assis e o teatro das convenções. Rio de Janeiro, UAPÊ, 1997. p. 17.
131
TORNQUIST, Helena. As novidades velhas: o teatro de Machado de Assis e a comédia francesa. São
Leopoldo: UNISINOS, 2002. p. 299.
162
Não, alma sensível, eu não sou nico, eu fui homem; meu cérebro foi
um tablado em que se deram peças de todo gênero, o drama sacro, o
austero, o piegas, a comédia louçã, a desgrenhada farsa, os autos as
bufonerias, um pandemonium, alma sensível, uma barafunda de cousas e
pessoas, em que podias ver tudo, desde a rosa de Esmirna até a arruda do
teu quintal, desde o magnífico leito de Cleópatra até o recanto da praia
em que o mendigo tirita o seu sono. Cruzavam-se nele pensamentos de
vária casta e feição. Não havia ali a atmosfera somente da águia e do
beija-flor; havia também a da lesma e do sapo. Retira, pois, a expressão,
alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos, que isso às vezes é dos
óculos.
132
O trecho das Memórias póstumas nos remete ao processo criativo dos livros
machadianos, onde o sublime e o grotesco estão ironicamente unidos para provar que tudo
pode ser matéria-prima da obra de arte. O artista deve testar as formas e, principalmente,
reformulá-las.
A maioria dos críticos prefere fazer recortes de gênero no estudo das obras de
Machado de Assis ou, então, enfatiza o suposto ―recorte‖ temporal de sua produção. Assim,
temos pesquisas sobre a prosa machadiana dedicadas aos contos, romances e crônicas, ou
estudos da poesia ora voltados para o todo de sua produção, ora para a análise específica de
alguns poemas. Também se verifica uma separação nítida entre as obras produzidas na
juventude e na maturidade do escritor, na maioria das vezes, menosprezando a primeira
fase, ou só aproveitando os dados biográficos desta para reforçar a genialidade da segunda.
Da mesma forma, observa-se que os estudos sobre os textos dramáticos de Machado
ainda estão muito concentrados na definição do que seja ou não texto teatral, ou em
análises que buscam saber se as peças do autor possuem qualidade ou merecem maior
atenção por parte da crítica. Assim, a organização de antologias sobre o teatro machadiano
esbarra na questão do que pode ou não ser considerado intrinsecamente teatral, o que pode
justificar a ausência do teatro em versos nessas coletâneas.
Interessa-nos principalmente conhecer mais a fundo o poeta, sob vários ângulos,
tanto como produtor, quanto como leitor de poesia. Veremos de que maneira a poesia
machadiana se constrói no contexto dramático, através de algumas de suas comédias.
Destacamos três peças: Os deuses de casaca, Antes da missa e O bote de rapé.
132
ASSIS. O.C. Vol I. p 555.
163
A partir de tudo que pudemos perceber na poesia de Machado de Assis, por
exemplo, suas muitas aproximações com obras de cunho dramático (de Goethe e de
Shakespeare), procuraremos agora avaliar outras formas de manifestação do verso
machadiano, principalmente no que se refere à sua inserção dramática.
Machado, certamente, iniciou seu gosto pela observação e pelo desvendamento da
―alma humana no interior dos teatros, aonde ia freqüentemente. Acompanhando o
percurso do escritor, comprovamos a presença de Machado nos espetáculos da Corte desde
os 16 anos, seja no Teatro Lírico ou no Ginásio Dramático, em companhia do amigo
Francisco Gonçalves Braga. Sua formação inicial seria marcadamente influenciada pela
música, assim como pela cena teatral, seja na escolha das temáticas, seja na forma peculiar
de ambientar as cenas das suas narrativas.
A primeira obra publicada em livro por Machado foi Queda que as mulheres têm
para os tolos, em 1861, que alguns classificam como peça teatral e outros, mais
acertadamente, a consideram ensaio satírico‖, tratando-se de tradução de texto, em
francês, do escritor belga Victor Hénaux.
133
De sua própria autoria, no mesmo ano, viria a público a ―fantasia dramática‖
Desencantos, também editada pela tipografia de Paula Brito. Machado intensifica sua
produção no gênero, publicando, em 1863, o volume Teatro, contendo duas peças: O
protocolo‖ e ―Caminho da porta‖.
Há um número considerável de textos dramáticos cujos originais se perderam, como
―O pomo da discórdia‖, peça escrita em versos, e ―Gabriela‖, ao que tudo indica inspirada
na atriz Gabriela da Cunha. Devemos considerar também, como vimos anteriormente, que
vários poemas machadianos foram especificamente criados para declamação no palco,
como uma espécie de prólogo das peças, como é o caso de ―O dilúvio‖.
Ainda no mundo do teatro, o escritor refinaria o seu aparato crítico e a capacidade
de observação quando assume a função de crítico, desempenhada por um bom tempo na
juventude, bem como viria a ser um dos censores do Conservatório Dramático, graças à sua
reconhecida atuação no meio teatral, tanto como autor, quanto como apreciador do
espetáculo cênico.
133
Massa foi o primeiro pesquisador a desmentir que esse texto era da autoria de Machado, conforme Lucia
Miguel Pereira pretendeu. Em recente edição da Universidade de Campinas (HÉNAUX, 2008), há o cotejo
entre o texto original de Hénaux e a tradução de Machado.
164
Jean-Michel Massa fala-nos um pouco sobre o papel de crítico teatral,
desempenhado por Machado, nos folhetins da Corte:
Escrever sobre o teatro novo era um ato através do qual o escritor se
engajava.
Machado de Assis ficou orgulhoso de ser o escolhido para assumir tais
responsabilidades. Sentia-se no lugar de honra (...) ―Lá estive no posto
oficial que me confere o cargo de cronista: e pude embeber-me, como
todos, em um mare magnum de emoções novas.‖
134
Nessas crônicas sobre o teatro, Machado dava o braço à leitora e a convidava a
apreciar o espetáculo através de suas observações, do olhar crítico que gentilmente deitava
ao papel. Pelas descrições, a leitora, principal alvo dos folhetins, podia projetar-se nos
salões e reviver as cenas narradas. O escritor fluminense, por sua vez, começava a
desenvolver um talento especial para interpretar os gestos das senhoras nos teatros,
ocupando-se não apenas em observar a representação teatral, como também em analisar o
comportamento das damas que iam assistir ao espetáculo.
Cortesmente, fazia de sua leitora o árbitro de suas preferências estéticas,
delimitando as fronteiras que ela não podia ultrapassar. Atribui-se, desta
maneira, um profundo conhecimento do coração feminino. Por exemplo:
o jogo das coquettes espectadoras das sessões de teatro quando
manejavam o leque: ―Também é uma arte o estudo de abrir e fechar este
semicírculo dos salões e dos teatros. Um bom fisiologista conhece o
caráter mais impenetrável pelo modo de agitar o leque‖.
135
Não é de admirar que Machado tenha comparado este ato de interpretar as ações
com o caráter de fisiologista, que hoje corresponderia ao de psicólogo. Demonstrava, com
essa afirmação, uma tendência semelhante ao de Garcia, do conto ―A causa secreta‖, um
anatomista da alma, embebendo as emoções que se podia absorver das duas cenas: a teatral
e a social. O jogo das máscaras sociais aparecia no tablado e na platéia, e o observador por
excelência desenvolve um olhar com que procura ver como os outros estão vendo, da
mesma maneira que relata o que este ato provoca no outro e em si. Vida e arte se
confundem, ficção e realidade se unem no movimento da catarse.
134
MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. [trad. Marco Aurélio de M. Matos]. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.p.254.
135
Idem. p. 255.
165
A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e
remorsos; mas Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos lances
dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um
personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça
reminiscências pessoais do vizinho.
136
No trecho acima, retirado do conto ―A causa secreta‖, percebe-se que enquanto um
dos personagens aprecia a cena teatral, o outro aprecia a cena social, buscando pontos de
contato entre ficção e realidade, entre o que é representado e o que é vivido. A mesma
posição de observador que interpreta uma cena dramática, partindo de uma experiência
pessoal, surgiria no Dom Casmurro, quando Bento faz uma releitura de Otelo, após assistir
à peça, partindo da idéia da culpabilidade da protagonista, não da peça de Shakespeare, mas
de sua encenação em particular.
A emoção que Machado de Assis absorveu como um espectador diante do tablado o
influenciou em suas produções literárias. Ao falar de influência, não podemos esquecer da
expressão usada por Machado em sua crítica teatral: mare magnum; um imenso mar que
flui para o seu interior, ou seja, influi. O olhar, no entanto, não permanece isento nesta
apropriação. Tal como o vivisseccionista em favor da sua ciência, ele começa a
desmembrar a tradição e a retirar dela o conteúdo das experiências literárias, ainda que
termine por matá-la ou regenerá-la, conforme o mito de Prometeu, só para poder consumir-
lhe as entranhas novamente.
A arte tem por uma de suas funções a busca de novos caminhos para
interpretar/representar a alma humana. Na visão de Ronaldo Lima Lins, ―a primeira palavra
foi, sem sombra de dúvida, uma chave nova que se conquistou para se abrir um
caminho‖
137
. Seguindo esta premissa, podemos dizer que o texto machadiano está
encharcado dessas reflexões. Podemos acrescentar que o caminho pode ser um labirinto de
significações quando o que está em jogo é o interior conflitante do homem. Prosseguindo
na conjectura de Lins, temos:
136
ASSIS. O.C. vol. II. p. 512.
137
LINS, Ronaldo Lima. Os gêneros: conflito e significação. In: _____. Violência e Literatura. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
166
Num mundo regido pelo medo da morte, tudo deve ser estar
necessariamente em função do conflito principal. (...) A questão do
conflito primordial nos interessa na medida em que, refletindo as
angústias da alma humana, a arte representa, digamos assim, um pólo
catalisador para onde convergem os principais vetores da problemática
da existência e de onde partem, no terreno da emoção e da reflexão, as
esperanças e frustrações do homem.
138
Baseado no que o texto de Lins afirma, podemos dizer que Machado fazia de sua
arte um pólo catalisador da grande problemática que é a existência humana. Talvez pelo
fato de o escritor dar ênfase a tais questões conflitantes, os críticos o classificaram como
um incurável pessimista. Afinal, essa afirmação pode ser considerada uma verdade? A
resposta é sim e não, pois o pessimismo machadiano não se desvincula da galhofa, uma
espécie de riso catártico usado para duelar com a melancolia. Definitivamente, para ventilar
a consciência, sempre a janela do riso sendo aberta diante das portas que o pessimismo
fechou.
Como bem pôde observar Bilac, em um artigo de A Cigarra de 24 de outubro de
1895, o tão falado ―pessimismo‖ machadiano era apenas um olhar sincero à volta de si, ou
melhor, um dissecar de si mesmo.
(...) aquele mesmo amor da psicologia e aquela fina ironia que fazem
Machado de Assis ser, sobre um artista, um pensador para quem a alma
humana não tem segredos. Dirão que o pensador é pessimista; que a sua
análise, fria e cruel, deixa uma dolorosa impressão de desconsolo; que a
sua ironia dói como uma punhalada; dirão que... Ah! meus irmãos! a vida
é aquilo mesmo! Machado escreve, torturando a si mesmo, rasgando as
suas próprias entranhas, pondo a nu os seus nervos. Que importa?
Abençoadas dores humanas, essas que criam tão belas páginas.
O vivisseccionista é sempre a representação da imagem do leitor crítico, que leva o
texto às últimas conseqüências, que o analisa fibra a fibra, como um bom ―leitor
ruminante‖. Esse leitor maquina sobre a matéria lida, passando e repassando seu conteúdo
nas ―cavernas do cérebro‖. A partir da citação de Bilac, é possível estabelecer uma
aproximação entre Machado e Gustave Flaubert, que, em algumas cartas, disse aniquilar
todo o sentimentalismo para compor seus personagens. Por trás do cético, do pessimista,
138
Idem. p.180
167
havia uma alma mutilada no ato da escrita. Madame Bovary, para Flaubert, era o grande
desafio de sua vida, por vezes, uma luta contra a própria subjetividade.
Ao escrever esse livro [Madame Bovary], eu sou como um homem que
tocasse piano com bolas de chumbo sobre cada falange. Mas quando eu
souber mais meu dedilhado, se me cair nas mãos uma ária de meu gosto
e que eu possa tocar com os braços soltos, vai ser talvez muito bom. Eu
acredito, de resto, que nisso eu estou certo. O que você faz não é para
você, mas para os outros. A arte não tem nada a esclarecer para o artista.
Tanto pior se ele não gosta de vermelho, do verde ou do amarelo; todas
as cores são belas, trata-se de pintá-las.
139
Novamente temos uma imagem que remete ao mito de Prometeu: para trazer o fogo
divino aos homens, aquilo que sua escrita produz, o escritor abdica de si mesmo, doa as
próprias entranhas, muitas vezes sem o devido reconhecimento.
O que, então, se busca reconhecer nas peças machadianas? Não entraremos na
questão levantada a partir do parecer de Quintino Bocaíuva, se as peças servem para ser
lidas ou para ser representadas, mas buscaremos localizar a quê se filia a idéia primordial
da obra, suas influências, e em que medida a escolha do verso colabora na construção do
sentido.
Desobedecendo ao critério cronológico, começaremos a leitura pelas peças de 1878,
―Antes da Missa‖ e ―O bote de rapé‖, deixando Os deuses de casaca, apesar de sua escrita
em 1866, para o fim, exatamente porque muitos princípios dessa peça foram retomados no
decorrer da obra, podendo ser também considerada o embrião de um dos romances do final
da vida do escritor.
3.1 - “Antes da missa” e “O bote de rapé” – uma breve análise da sociedade
fluminense do século XIX
139
FLAUBERT, Gustave. Cartas exemplares. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p.79
168
No ano de 1878, Machado publica cinco textos no jornal O Cruzeiro: ―O bote de
rapé‖, ―Um cão de lata ao rabo‖, ―Filosofia de um par de botas‖, ―Antes da missa‖ e
―Elogio da vaidade‖, que fogem de uma classificação tradicional e da matéria que se podia
esperar que figurasse no meio jornalístico. O que aí notamos é uma mistura de gêneros, que
vai da escrita teatral ao diálogo filosófico e, talvez, pela dificuldade em definir a que
gênero pertencem, figurem na seção ―Miscelânea‖ da edição Obra completa da Nova
Aguilar.
Há ainda outro curioso texto, e pouco referido, da autoria de Machado publicado no
mesmo veículo. Trata-se de ―A sonâmbula‖, ópera cômica bem curta, que, apesar do nome,
segue uma concepção distinta da ópera de Bellini, embora também trate da infidelidade
conjugal. O texto machadiano consta dos Dispersos coligidos por Jean-Michel Massa, e
retoma uma temática apreciada por Machado: o charlatanismo dos adivinhos e
prestidigitadores.
Nessas produções publicadas em O Cruzeiro, Machado pratica um exercício de
estilo, combinando gêneros diferentes, experimentando formas e modelos, enfim, buscando
uma nova expressão literária que culminaria na publicação das Memórias póstumas de Brás
Cubas, rompendo definitivamente com a estrutura tradicional das narrativas até então
veiculadas no Brasil.
O jornal O Cruzeiro começou a circular no início de 1878 e, ao que tudo indica,
Machado foi um de seus principais organizadores, um mentor intelectual, digamos assim.
Essa função desempenhada por ele no periódico foi registrada em uma de suas cartas. Em
correspondência destinada a Salvador de Mendonça em 8 de outubro de 1877, havia um
convite ao amigo para colaborar no jornal:
Meu caro Salvador. / Escrevo-te à pressa, à última hora, e por isso me
dispensarás se te não digo uma série de cousas que sempre que dizer
entre bons amigos que se não falam muito. / Antes de tudo, estimo a
tua saúde e a de tua senhora e filhos. / Vai aparecer no 1.º do ano de 78
um novo jornal, O Cruzeiro fundado com capitais de alguns
comerciantes, uns brasileiros e outros portugueses. O diretor será o Dr.
Henrique Correia Moreira, teu colega, que deves conhecer. / Incumbiu-
169
me este de te propor o seguinte: / 1.º Escreveres duas correspondências
mensais. / 2.º Remeteres cotações dos gêneros que interessem ao Brasil,
principalmente banha, farinha de trigo, querosene e café, e mais, notícias
do câmbio sobre Londres, Paris etc., e ágio do ouro. / 3.º Obteres
anúncios de casas industriais e outras. / Como remuneração: / Pelas
correspondências, 50 dólares mensais./ Pelos anúncios, uma porcentagem
de 20%./ Podes aceitar isso? No caso afirmativo, convém remeter a
primeira carta de maneira que possa ser publicada em janeiro. Caso não
te convenha, o Dr. Moreira pede que vejas se nosso amigo, Rodrigues,
do Novo Mundo, pode aceitar o encargo, e em falta deste algum outro
brasileiro idôneo./ Os industriais que quiserem mandar os anúncios
poderão também remeter se lhes convier, os clichês e gravuras. Quanto
ao preço dos anúncios, não esainda marcado, mas regulará o do Jornal
do Comércio, ou ainda alguma coisa menos./ Esta carta vai por via de
Europa. No primeiro paquete escreverei outra, para remediar o extravio
desta, se houver./
Desculpa-me a pressa, e escreve ao/ Teu do coração./ MACHADO DE
ASSIS.
140
Nessa missiva, informações acerca do mês e do ano do lançamento do jornal,
mas não isso. Pelo detalhamento feito por Machado na carta, ficamos sabendo também
como se estruturaria o jornal, qual o seu público, que assuntos seriam abordados, quais os
patrocinadores, e, o mais interessante, nos inteiramos de que Machado seria o principal
responsável pelo plantel de O Cruzeiro, selecionando aqueles que se incumbiriam de
prover-lhe artigos e textos, isto é, os intelectuais de talento que colaborariam na publicação.
Neste período, Machado desfrutava de reconhecimento pela sua capacidade
intelectual, tendo lançado livros de poesia e de teatro, assim como traduções, mas suas
contribuições nos jornais recebiam maior destaque. Assim como no decênio de 60, deu seus
primeiros passos como cronista, no de 70, faria suas incursões pelo romance, estreando
com Ressurreição, em edição de Garnier, e prosseguindo na escrita de outros três livros do
gênero - A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia -, trabalhados inicialmente sob a forma de
folhetim.
Naquele período, final dos anos 70, o escritor consolidava uma fase de consagração
como prosador de narrativas mais longas, é o que deixa transparecer em outra carta, escrita
um ano antes, dirigida ao mesmo Salvador de Mendonça. Na missiva, Machado elogia o
artigo publicado por Salvador na revista Novo Mundo sobre seu livro de poesia,
Americanas, e fala do lançamento do romance Helena: ―Vai com este vapor um exemplar
140
ASSIS. O.C. vol. III. p. 1.035.
170
da Helena, romance que publiquei no Globo. Dizem aqui que dos meus livros é o menos
mau; não sei; lá verás. Faço o que posso e quando posso.‖ (13 de novembro de 1876).
Obviamente há uma grande carga de modéstia nas palavras do escritor, mas,
segundo consta na carta, Machado dá importância ao fato de Helena ter recebido elogios da
crítica, no sentido de ser uma produção melhor que as anteriores. Talvez o escritor
estivesse se referindo ao artigo, sem assinatura, publicado em A Reforma, em 19 de outubro
de 1876.
Helena é um trabalho que pode competir com os mais bem acabados do
gênero.
antes nos havia dado o Sr. Machado de Assis um outro romance, que,
pela finura das observações, desenho dos caracteres, estudo psicológico e
amenidade dos episódios, anunciava a posição eminente que teria de
ocupar entre os romancistas nacionais, o vigoroso autor de Ressurreição.
Helena, que lhe seguiu, é um grande progresso.
141
Uma outra crítica a Helena, posterior à escrita da carta de Machado, também
destaca o romance como uma das melhores produções machadianas. Todavia o que nos
interessa é a ressalva que o autor do artigo, A. C. Almeida, faz à figura do poeta: ―Nota-se,
contudo, uma coisa: que o estamos considerando como romancista (grifo nosso). Do
Machado poeta não diríamos o mesmo, se bem que ande-lhe (sic) aureolado o nome por
apoteose balofa e louvaminheira.‖
142
Definitivamente, o prosador começava a ocupar o vasto terreno literário de onde o
poeta, a princípio, era banido. Como um autor que respeitava o julgamento do outro sobre
seus escritos, Machado parecia avaliar atentamente o que se afirmava sobre sua obra e
buscava a justa medida de sua vocação.
A vida literária de Machado girava em torno dos jornais e foi esse o veículo que lhe
serviu de escola e oficina, que lhe apurou o estro. Além de O Cruzeiro e O Globo, citados
aqui, Machado havia colaborado em outros periódicos, como A Marmota Fluminense,
(transformada posteriormente em A Marmota), O Futuro, O Espelho, Gazeta de Notícias,
Jornal das Famílias, Jornal da Tarde e Diário do Rio de Janeiro.
141
MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro de consagração. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p.
107.
142
Idem. p. 108.
171
Quando destacamos os seis textos de O Cruzeiro, foi especialmente pelo fato de o
periódico trazer a público textos de natureza distinta da que a maioria dos jornais tinha por
hábito veicular. Normalmente, o que se lia nas diversas seções jornalísticas, além das
notícias e anúncios, eram traduções, romances em capítulos, novelas, contos, crônicas e
poemas. O anedotário também era bem farto, assim como as ilustrações, charges e
caricaturas. É curioso como O Cruzeiro rompe com esse padrão ao também oferecer aos
leitores textos teatrais e reflexões filosóficas.
Dois textos de Machado em O Cruzeiro nos interessam particularmente, por serem
peças teatrais escritas em verso: ―O bote de rapé‖ e ―Antes da missa‖. Ambas as comédias
apresentam um aspecto singular: o papel da mulher na sociedade fluminense do século
XIX. O interesse de Machado pela questão feminina é muito natural se observarmos que,
por muitos anos, ele foi um dos principais colaboradores do Jornal das Famílias, e sua
vasta publicação neste periódico se estende de 1863 a 1878, o que comprova sua constância
na publicação de textos particularmente voltados para o público feminino. A publicação
oferecia às leitoras páginas de romance, contos, histórias morais, lições religiosas,
anedotas, receitas de economia doméstica, culinária, partituras musicais, modas e trabalhos
manuais - de artesanato a lições de corte e costura.
Desse universo tipicamente feminino, Machado retirou muitos perfis que viria a
desenvolver em sua obra. Da mesma forma, a convivência com tal meio ofereceu-lhe um
vasto conhecimento da ―alma sensível‖, em confronto com o universo masculino, dos
leitores, aparentemente, ―sisudos‖, mas que, da mesma forma, representavam a frágil
intelectualidade da capital do Império, com seus ―medalhões‖, francamente favorecidos
pelo patriarcalismo.
Assim, procuraremos fazer um estudo mais atento dessas duas peças, ―Antes da
Missa‖ e ―O bote de rapé‖, que, aliás, ainda não mereceram um estudo acurado dos críticos
da obra machadiana, assim como de Os deuses de casaca. A índole da sua comédia em
verso parece ser, sobretudo, a de apresentar a face caricata e burlesca da sociedade
fluminense, principalmente da elite, mas quase sempre de uma maneira enviesada, como
seu estro de escritor exigia: na aparência, apenas rindo da superficialidade dos tipos sociais,
mas guardando, nas entrelinhas, críticas mordazes.
172
3.1.1- Diálogos femininos e pintura social em “Antes da Missa”
Em ―Antes da missa‖, observa-se o ―diálogo entre duas damas‖ subtítulo que
acompanha a peça de Machado. Uma delas, Laura, se encaminha para a prática religiosa, a
ida à missa, mas, antes de cumprir o ritual ―sagrado‖, vai visitar uma amiga, Beatriz.
chegando, ambas entregam-se a falatórios do dia-a-dia, ao sublime ―falar da vida dos
outros‖ e, nesse âmbito, revelam igual ―religiosidade‖. O curto espaço de tempo da peça,
que se reduziria aos poucos minutos entre o encontro das amigas e o início da missa, não
impede que o desenrolar das falas conta de uma sucessão de acontecimentos da vida de
várias pessoas da convivência de ambas.
Aqui, um simples diálogo desvela uma maliciosa contradição existente no perfil da
capital do Império: ações ingênuas, à primeira vista, escondem pretextos e intertextos
menos inocentes, intrigas e falatórios. Há toda uma convenção social e religiosa sendo
cumprida e, ao mesmo tempo, um universo de outras questões sendo transgredido.
A comédia é o espaço de desequilíbrio da ordem para a introdução de uma
desordem ou de uma nova ordem, antagônica à primeira. Antes do compromisso sagrado da
―missa‖, as duas damas fazem todas as coisas condenáveis nas premissas cristãs. O
discurso das senhoras favorece a vaidade, a intriga, a mentira, as dissensões e outros
aspectos e sentimentos nada nobres e até contrários ao caráter apregoado na religião.
Para elas, um novo mandamento: em vez do ―amai-vos uns aos outros‖, do
discurso cristão, passa-se ao ―falai-vos uns dos outros‖, impulsionado pelas novas ―modas‖
sociais. Fica bem nítido, em determinado momento da peça, que essa nova versão bíblica
passa a vigorar: Laura, ao ser questionada por Beatriz por manter amizade com pessoas de
173
caráter duvidoso, afirma que não outra forma de agir, que ―Enfim, é nossa obrigação/
Aturarmo-nos, uns aos outros.‖
143
uma subversão do mandamento divino, que acaba
por se tornar uma obrigação e passa a vigorar como uma das regras sociais de auto-
tolerância, que os membros da sociedade têm seus defeitos expostos, mas se relacionam
mutuamente com cordialidade, pelo menos quando estão à vista de todos.
Há um dado importante que Machado insere na peça e que nos permite enxergar um
novo panorama no Rio de Janeiro. Referimo-nos à abertura maior da sociedade, que
culmina na saída das mulheres do ambiente recluso, do interior da casa, para o espaço das
ruas, onde podiam conferir as modas, as casas de comércio, onde examinavam e
compravam artigos de luxo vindos da Europa e começavam a externar a vaidade, a
ostentação, a assimilar outras regras sociais e a adquirir, afora o culto religioso herdado do
período colonial, uma nova doutrina: o culto da beleza. O principal desígnio feminino
parece ser, então, o alardear de aparatos e dotes nos saraus e bailes da capital.
A crítica machadiana atinge em cheio a futilidade das mulheres, a valorização dos
atributos físicos, o culto da riqueza e o franco desejo de ascensão social, que, em
contrapartida, casavam-se perfeitamente com as frivolidades masculinas, no plano do
―trabalho‖, como o apego a cargos políticos, diplomas, condecorações e títulos de nobreza.
Antes de avançarmos, registremos que as personagens da peça, curiosamente,
chamam-se Laura e Beatriz. As duas figuras podem ser logo associadas a Beatrice, de
Dante, e a Laura, de Petrarca, musas idealizadas por seus poetas, colocadas no pedestal
mais alto da adoração e, por assim dizer, divinizadas por seus cultores. No entanto, a dupla
é parodiada na comédia machadiana: Laura, que em Petrarca é exemplo de pureza e
virtude, passa a ser a informante de Beatriz acerca dos assuntos e intrigas do baile a que a
amiga não pôde comparecer.
De igual modo, Beatriz, a que conduz Dante ao Paraíso na Divina Comédia, é quem
vai desviar Laura do caminho da missa, das obrigações sagradas e, por pouco, não a
impede de cumprir seu propósito religioso. Literalmente desvirtuadas, as duas ―heroínas‖
vão conduzindo os espectadores/leitores da peça pelas vielas e becos da maledicência.
143
ASSIS, Machado de. Teatro de Machado de Assis, Qorpo- Santo e Coelho Neto. Rio de Janeiro: Funarte,
2002. p. 263.
174
Cada freqüentador do baile terá a vida devassada pelas duas damas. Cada qual terá
evidenciado seu maior defeito, sua principal falha de caráter. Por este aspecto, até podemos
estabelecer uma outra comparação com a obra de Dante, além do nome de Beatriz, já que é
possível localizar nos personagens citados na peça todos os sete pecados capitais apontados
pelo poeta florentino em sua obra. No caso machadiano, há um desfilar dos sete pecados da
Capital do Império através das pessoas que freqüentam o baile de D. Laura. A
representação dos tipos sociais mostra-nos uma sociedade caricata e burlesca - para usar
aqui os mesmos adjetivos empregados por Machado na definição do perfil oficial da
sociedade brasileira numa de suas crônicas:
O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país oficial,
esse é caricato e burlesco. A sátira de Swift nas suas engenhosas viagens,
cabe-nos perfeitamente. No que respeita à política nada temos a invejar
ao reino de Lilliput.
144
Como não se inveja o reino de Lilliput, a sociedade pintada por Beatriz na peça se
apresenta como uma versão caricata da Commedia de Dante e, nesta medida, nada deixaria
a desejar ao ―Inferno‖ dantesco, retocado, porém, com as tintas da galhofa. Conduzidos
pela personagem, ou melhor, induzidos por ela, visitamos a ―vida dos outros‖ e ficamos
frente a frente com as indiscrições sociais e os pecados amplamente praticados pelos
personagens: ira, preguiça, avareza, gula, luxúria, inveja e vaidade - com destaque especial
para este último.
Logo no início do diálogo, as damas tratam-se de maneira ofensiva. Beatriz evoca a
preguiça como um aspecto do caráter da outra, enquanto Laura a trata de ―caloteira‖, por
não ter ido ao baile em sua casa. A preguiça, então, um dos pecados dantescos, abre o
discurso da peça:
Beatriz: Ora esta! Pois tu, que és a mãe da preguiça,
já tão cedo à rua! Onde vais?
Laura: Vou à missa;
A das onze, na Cruz. Pouco passa das dez;
Subi para puxar-te às orelhas. Tu és
A maior caloteira...
144
ASSIS, Machado de. "Comentários da Semana", Diário do Rio de Janeiro, 29/12/1861.
175
Nota-se que elas não o poupar nem a si mesmas, e que a língua das damas está
mesmo afiada e pronta para o exercício da maledicência. Mas o que confere nota especial à
peça é que tudo acontece ―Antes da missa‖, o que satiricamente esboça a hipocrisia social,
o desprezo dos sentidos religiosos, a corrosão dos valores éticos e dos padrões morais.
Apesar de tudo, o propósito machadiano, mais explícito, é simplesmente fazer rir. No
entanto, se seguirmos os conselhos dados por Machado em determinada crônica da
maturidade, é preciso ―raspar a casca do riso‖ para ver o que em seu interior. Então,
dentro da comédia, encontraremos uma crítica mordaz, um retrato social eivado de
contradições.
O encadeamento do texto em verso torna o diálogo fluido e ainda mais cômico. A
fala de Laura emenda-se no discurso de Beatriz, mostrando uma parceria perfeita entre as
damas, um dueto afinado quando o assunto são as mazelas alheias.
A justificativa de Beatriz para ter faltado ao baile de Laura é completamente fútil, o
que nos remete a outro pecado capital: a vaidade. Beatriz se indispôs com o marido porque
não queria repetir o vestido com que fora, naquele mesmo mês, a outro baile. A sua vaidade
está acima da vontade do marido, que não consegue fazê-la atender ao seu apelo:
Vou, não vou; e a teimar deste modo, perdemos
Duas horas. Chorei! Que eu, em certos extremos,
Fico que não sei mais o que fazer de mim.
Chorei de raiva. (...)
Os excessos de Beatriz se sucedem: a recusa, a raiva, o choro, a briga com o marido
- tudo por causa de um simples vestido. Então, pode-se dizer que temos aqui um diálogo
entre a ―Mãe da preguiça‖ e a ―Rainha da vaidade‖. Nenhum desses epítetos, no entanto,
combina com uma pessoa que está se preparando para ir à missa. Aliás, num outro texto de
Machado de Assis, o conto ―Missa do galo‖, ocorre algo semelhante, pois a conversa entre
o jovem Nogueira e a madura Conceição, a ―santa‖, tem lugar minutos antes da missa do
galo, e tampouco parece configurar um momento religioso; pelo contrário, a cena vem
cercada de erotismo, embora velado, e de duplas interpretações.
176
A conversa entre as damas da peça de Machado, por sua vez, não apresenta dupla
interpretação. O diálogo entre ambas é franco e aberto, pelo menos quando não estão
tratando de si mesmas. Neste último caso, o teor da conversa muda e passam a vigorar as
meias-verdades. Então, no jogo de dissimulações, entra em cena mais um dos pecados
capitais: a inveja. Em dois momentos distintos, as personagens acham, cada qual, que a
outra é mais feliz. Na primeira parte, é Beatriz que lamenta sua sorte e exalta a vida de
Laura, mais precisamente pelo fato de a amiga ter conseguido um livro melhor e mais
barato que o seu:
Beatriz: Deixa ver. Tão bonito! e tão mimoso! Gosto
De um livro assim; o teu é muito lindo; aposto
Que custou alguns cem...
Laura: Foi comprado em Paris;
Cinqüenta francos.
Beatriz: Sim? Barato. És mais feliz
De que eu. Mandei vir um, há tempos, de Bruxelas;
Custou caro, e trazia as folhas amarelas,
Umas letras sem graça, e uma tinta sem cor.
Para essas senhoras o livro é apenas mais um acessório. O conteúdo de suas páginas
não interessa, apenas a aparência e o valor financeiro são importantes. Machado mostra que
o público leitor da época, principalmente o feminino, não estava apto para julgar o
conteúdo de uma obra, ainda estava afeito à aparência. Ou seja, bastava ao volume ter uma
bela embalagem e ser produzido na Europa para o público considerá-lo de alta qualidade.
O diálogo das damas prossegue, e é informado ao leitor que o fornecedor do livro
de Laura é o mesmo que lhe abastece de sapatos, tecidos e chapéus. Concluiu-se que a
moda feminina não se restringia às vestimentas, mas se ampliava ao hábito de adquirir
livros como parte da composição do traje social. São essas as entrelinhas machadianas. A
leitura inexiste, o livro é apenas mais um objeto decorativo.
Ainda seguindo o discurso da inveja, Laura também repete a frase da amiga,
achando-a mais feliz que outras mulheres em relação ao casamento, que, mesmo se
desentendendo com o marido por causa do vestido do baile, consegue rapidamente fazer as
pazes.
Laura: (...) Ah! feliz, tu, feliz,
177
Como os anjos do céu! tu sim, minha Beatriz!
Brigas por um vestido azul; mas chega o urso
Do teu tio, desfaz o mal com um discurso,
E restauras o amor com dois goles de chá!
Começam, então, a tratar dos maridos e da vida de casada. Enquanto Laura declara
que são uns ―aborrecidos‖, esperando que a outra confirme a versão, obtém de Beatriz,
contrariamente, a afirmação de que o marido é um bom homem. Laura, então, desconversa
e muda de opinião, mas continua tentando achar no esposo da amiga alguma falha de
caráter. Passa a interrogá-la com perguntas indiscretas, como: O teu que tal?‖, ―Ama-te?‖,
―O teu costuma andar tarde na rua?‖, ―Não costuma ir ao teatro?‖, ―Não sai para ir jogar o
voltarete?‖. E, não se sentindo vencida, finaliza com certo descrédito quanto às
afirmações de Beatriz:
Laura: Pois olha, eu suspeitava, eu tremia de crer
Que houvesse entre vocês qualquer coisa... Há de haver
Lá um arrufo, um dito, alguma coisa... Nada?
Nada mais? É assim a vida de casada
(...)
Como no começo, as damas não poupam a si mesmas das indiscrições e tentam
saber de algum segredo uma da outra para, talvez, passarem-no adiante. A inveja fica
explícita no diálogo na mesma medida em que a hipocrisia encobre as verdades acerca da
própria intimidade. O anseio que têm em revelar a vida dos outros, também possuem para
resguardar as próprias. as duas personagens parecem ser felizes e, mesmo assim, uma
lamenta a sorte da outra.
Preguiça, vaidade e inveja, portanto, foram reveladas no discurso de ―Antes da
Missa‖, mas, na descrição que as amigas fazem da sociedade, encontramos mostras de
outros ―desvios‖ que compõem os sete pecados descritos em Dante.
A gula está personificada na figura da moça Farias, que demonstra um apetite
extraordinário e passa o baile inteiro comendo e valsando:
Beatriz: A Farias foi lá à tua casa?
Laura: Foi;
Valsou como um pião, e comeu como um boi.
Beatriz: Come muito, então?
178
Laura: Muito, enormemente; come
Que só vê-la comer; tira aos outros a fome.
Sentou-se ao pé de mim. Olha, imagina tu
Que varreu, num minuto, um prato de peru,
Quatro croquettes, dois pastéis de ostras, fiambre;
O cônsul espanhol dizia: ―Ah, Dios, que hambre!‖
a luxúria vem representada por dois personagens: doutor Soares e Carmozina
Vaz. Enquanto este não pode ver uma moça que promete casamento, aquela ―devora‖ os
olhos de um outro rapaz, Antonico. Cercado de duplo sentido, o diálogo acerca de
Carmozina talvez encerre o comentário mais maldoso de toda a peça.
Beatriz: A Carmozina. Foi leviana; andou mal,
Lá porque ela não come ou só come o ideal...
Laura: O ideal são talvez os olhos do Antonico?
Beatriz: Má língua!
Em seguida, Laura e Beatriz ilustram a avareza através dos personagens Mateus
Aguiar e o sogro. Ao que tudo indica, o sogro aplica um golpe no próprio genro para
conseguir dinheiro. Outros dizem que foi um plano articulado pelos dois para lograr os
credores. Tanto numa acepção quanto na outra, o apego aos bens materiais, e uma
preocupação em burlar as leis para acumular riquezas.
Laura: Alguma gente. Vai o Mateus Aguiar.
Sabes que perdeu tudo? O pelintra do sogro
Meteu-o no negócio e pespegou-lhe um logro.
Beatriz: Perdeu tudo?
Laura: Não tudo; há umas casas, seis,
Que ele pôs, por cautela, a coberto das leis.
Beatriz: Em nome da mulher, naturalmente?
Laura: Boas!
Em nome de um compadre; e inda há certas pessoas
Que dizem, mas não sei, que esse logro fatal
Foi tramado entre o sogro e o genro; e natural.
A ira havia dado mostras de sua presença logo no início da peça, com o choro de
raiva de Beatriz, ao contrariar o marido e se recusar a pôr o vestido. Mas a discussão é
passageira e logo apaziguada pelo tio da moça. O mesmo não acontece com a mulher do
Mesquita, que teima com o marido, querendo ir à Europa, e torna-se alvo de sua fúria.
179
Laura: Cuido que ela quer ir à Europa; ele disse
Que antes de um ano mais, ou dois, era tolice.
Teimaram, e parece (ouviu-o o Nicolau),
Que o Mesquita passou da língua para o pau,
E lhe fez um discurso hiperbólico e cheio
De imagens. A verdade é que ela tem no seio
Um sinal roxo; enfim vão desquitar-se.
Aproveitando-se da agudeza da língua das senhoras, Machado extrai da cena
imagens de fina ironia, cercada de comicidade. Ao afirmar que Mesquita fez ―um discurso
hiperbólico e cheio de imagens‖, notamos o contraste desta frase refinada com o verso
anterior em que Laura fala abertamente ―passou da língua para o pau‖. Temos aqui o misto
de comicidade e ironia sutil, que há duas traduções para o ato de Mesquita surrar a
esposa: a primeira, franca e aberta, seria a tradução literal, enquanto a segunda, formal e
metafórica, a tradução irônica. A distância entre ambas evoca a comicidade da cena e
aponta para uma questão muito arraigada naquela sociedade: a dissimulação presente no
discurso oficial e cerimonioso e a irreverência do discurso mal-intencionado e, portanto,
extra-oficial.
Assim reunidas, as mazelas sociais compõem o pano de fundo da peça ―Antes da
missa‖ e ninguém escapa dessa rede de intrigas, nem mesmo as protagonistas, apesar da
afirmação de que são felizes. Com em ―Missa do galo‖, em que a ―ida ao teatro‖ do marido
de D. Conceição é metáfora do adultério, as duas personagens admitem que os maridos
saem para jogar o voltarete. Talvez, nessa afirmação, estejam escondidas outras metáforas,
essenciais para o jogo social, para a manutenção das aparências, principalmente no âmbito
matrimonial.
3.1.2- “O bote de rapé”: o nariz entra em cena
180
A outra comédia, objeto de nosso estudo, denomina-se: ―O bote de rapé‖. A
introdução da palavra ―rapé‖ logo no título desta obra parece um indício de que o universo
masculino será o núcleo da peça. No decorrer da leitura, entretanto, percebemos que
também uma reflexão em torno do universo feminino, de onde vão surgir algumas
indagações e, novamente, se dará ênfase à saída das mulheres do ambiente familiar para as
ruas, para o mundo das compras, do comércio e da vaidade da Rua do Ouvidor.
O que, a princípio, é um dado novo em ―O bote de rapé‖, e que causa estranheza ao
leitor, é o fato de o nariz do personagem Tomé ganhar vida e assumir um papel que lhe
permite dialogar e expressar sua vontade, fazer reflexões ―profundas‖ sobre a sua natureza,
e governar as vontades do dono. Aliás, não se pode dizer que Tomé é dono do próprio
nariz, visto que se dobra facilmente às vontades deste. O fato de estar sem rapé faz do
personagem um completo inútil, que não consegue esboçar qualquer reação e pensa em
dar uma pitada, já que, sem isto, não consegue tornar-se senhor de suas ações.
O tema é, de fato, provocador, diante da simplicidade da cena e da curta duração da
peça. A comédia é compõe-se de poucos personagens: o casal Tomé e Elisa, afora um
caixeiro que pouco participa da cena. Mas o que nos chama a atenção é o outro personagem
- o nariz intruso, que, apesar de constituir uma pequena parte do corpo de um dos
personagens, torna-se o alvo principal da ação de ―O bote de rapé‖. Tudo girará em torno
do nariz de Tomé, partindo da constatação de sua própria fragilidade diante da abstinência
do tabaco. Apesar de serem dois - o personagem e seu nariz - a vontade parece residir no
segundo, que é uma espécie de metáfora da alma ou do amor-próprio do primeiro.
Aqui, abriremos um grande parêntese para tratar desse estranho personagem da
peça machadiana. E, para completarmos a tarefa, faremos uma pequena ―viagem à roda do
nariz‖, à maneira de Maistre, para darmos conta da importância deste terceiro personagem,
que intermedia a ação dos outros dois - Elisa e Tomé.
uma especial predileção de Machado pelo tema, que também comparece em
outros momentos de sua escrita. De início, o nariz parece ser o centro da vaidade, o cume
do amor-próprio, o lugar onde residem as vontades humanas. Para exemplificar, basta uma
181
leitura de uma narrativa machadiana de 1872, anterior, portanto, à peça em análise. Trata-se
do conto ―Uma loureira‖, publicado no Jornal das Famílias, sob o pseudônimo de ―Lara‖,
em que o narrador analisa a figura do Comendador Nunes, protagonista da história, da
seguinte forma:
Era um homem de 45 anos, um tanto calvo, bem apessoado, nariz não
vulgar, se atendermos no tamanho, mas vulgaríssimo se lhes estudarmos
a expressão. O nariz é um livro, até hoje, pouco estudado pelos
romancistas, que alíás se presumem grandes analistas da pessoa humana.
Eu, quando vejo alguém pela primeira vez, não lhe estudo a boca, nem os
olhos, nem as mãos, estudo-lhes o nariz. Mostra-me o nariz, e eu te direi
quem és.
145
O nariz, segundo o que se pode depreender da leitura, torna-se o resumo da própria
personalidade do indivíduo. De uma forma irônica, Machado descreve obliquamente o
caráter do Comendador, definindo-o como uma pessoa de expressões vulgares. A questão
da vaidade, do amor-próprio, fica patente, que a importância dada ao cargo e ao
posicionamento social é sempre levada em conta quando Machado coloca o nariz em
evidência, ou seja, quando o utiliza como tema de destaque num determinado contexto.
No conto em questão, um outro trecho que confirma definitivamente essa
propriedade do nariz na vida do Comendador, que se torna a fonte do seu orgulho, a
―nobreza‖ de seu caráter, apesar de representar externamente, para os outros, a revelação de
sua verdadeira face, de sua franca vulgaridade.
O nariz do comendador Nunes era a coisa mais vulgar deste mundo; não
exprimia coisa nenhuma de jeito, nem de elevação. Era um promontório,
nada mais. E todavia, o comendador Nunes tirava grande vaidade do
nariz, por lhe haver dito um sobrinho que era nariz romano. Havia, é
verdade, uma corcova no meio da extensa linha nasal do comendador
Nunes, e naturalmente, foi por zombaria que o sobrinho chamou àquilo
romano.
Tratando a parte do corpo como relevo, no sentido estritamente topográfico,
Machado nos apresenta questões de relevo social. Como uma descrição territorial, a face do
comendador servia a dois estados, divisados pela ―cordilheira nasal‖, que, neste caso, além
145
ASSIS, Machado de. ―Uma loureira‖. In: Jornal das Famílias: maio de 1872, pág. 140-141. (Exemplar da
Biblioteca Pública do Rio de Janeiro)
182
da questão de espaço, se estende à questão dos estados do homem, da face social que cada
qual apresenta ou representa. Há, sobretudo, um conflito entre o exterior e o interior do
personagem, entre o que ele é no plano social e o que mostra ser em relação à própria
personalidade. Nunes, ao mesmo tempo em que possui destaque social como comendador,
não consegue deixar de mostrar traços de personalidade vazia e de excessos de vaidade. O
nariz parece ser o ponto de união entre o pessoal e o social, o lugar onde os dois planos se
deixam ver e são vistos.
Por outro lado, é interessante o fato de Machado usar a expressão ―nariz romano‖
no conto. Se pegarmos o sentido de ―nariz empregado pelos romanos, do latim nasus,
veremos que está intimamente ligado a alguns outros sentidos, além de designar a parte do
corpo humano. ―Nariz‖ para os romanos podia tanto ser um indício de cólera, no sentido
real, ou mofa, zombaria, no sentido figurado. A natureza do nasus romano é, por assim
dizer, antitética, pois conjuga sentidos contrários a um tempo: cólera e escárnio, fúria e
riso, o princípio trágico e o cômico. Machado parece se inteirar desta dicotomia que, na
verdade, reafirma o princípio do equilíbrio humano, a complementaridade dos contrários.
No conto ―Uma loureira‖, essa complementaridade é exposta no momento em que o
comendador contempla o próprio nariz e enxerga o que a própria imaginação deseja ver.
Incapaz de discernir a zombaria do sobrinho, o nariz passa a ser o motivo de seu orgulho,
quando, ironicamente, é de fato a sua vergonha, a sua nudez diante da sociedade.
Posteriormente, em Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado dedica um
capítulo ao assunto, com o mesmo objetivo de enfatizar a vaidade humana. O capítulo
XLIX do romance, denominado ―A ponta do nariz‖, retrata o momento posterior ao que
Brás Cubas perde a noiva, Virgília, para outro homem mais rico e de melhor posição social.
Para se consolar de sua inferioridade diante do rival, Brás passa a olhar para a ponta do
nariz, chegando à conclusão da importância de tal ato: ―Nariz, consciência sem remorsos,
tu me valeste muito na vida...‖ e monologa com o nariz, com uma espécie de consciência
saudosa de defunto ao relembrar as questões de outrora, sempre sob a ótica irônica, como
um exercício necessário para a sobrevivência do ego humano.
Em seguida, o narrador desenvolve longas reflexões sobre o exercício da vaidade: o
de mirar a ponta do nariz e esquecer-se do mundo exterior para acalentar o amor-próprio.
183
Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar a ponta do nariz,
com o fim único de ver a luz celeste. Quando finca os olhos na ponta do
nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no invisível,
apreende o impalpável, desvincula-se da Terra, dissolve-se, eteriza-se.
Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso
do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é
universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu
próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo
efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o
equilíbrio da sociedade.
146
E, novamente, vemos a questão do equilíbrio humano, sob as tintas da galhofa e da
melancolia do defunto-autor. Sobrepondo o nariz às questões de foro íntimo e social, faz
dele o lugar da reunião dessas dicotomias. Olhar para si é esquecer-se dos outros, admirar-
se é submeter ao olvido as comparações com o mundo exterior. Diante de tudo isso, o
narrador conclui: ―Há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que
a subordina ao indivíduo‖. Poderia ter dito ―pecados capitais‖ para a sobrevivência do ser
humano naquela sociedade, pois os sentimentos que movem o personagem Brás Cubas,
neste capítulo, são a inveja e a vaidade; esta, representada pelo nariz, permite que o amor-
próprio sobreviva diante das humilhações e das limitações sociais a que o personagem está
sujeito ou permite que ele sujeite os outros às suas próprias vontades.
Em 1882, um ano depois da publicação das Memórias póstumas, Machado traria a
público, nas páginas da Gazeta de Notícia, outro conto que desenvolvia a temática do nariz,
radicalizando ainda mais o conceito de vaidade e amor-próprio, tratado nos outros textos.
Em ―O segredo do Bonzo‖, inspirado nas narrativas fantásticas de Fernão Mendes Pinto,
Machado formula um conceito interessante sobre ilusão e realidade. Diogo Meireles, típico
charlatão, consegue provar que, se algo existe na imaginação, mas não existe na realidade,
de fato passa a existir, mas, quando ocorre o inverso, inexiste.
As nuances entre ilusão e realidade parecem ser dos temas preferidos de Machado,
mas, ao destacarmos esse conto, o fazemos pelo fato específico de o autor usar como
ilustração da teoria de Meireles o caso dos narizes da cidade de Fuchéu. Em resumo,
estando as pessoas dessa localidade acometidas de rara enfermidade que deformava os
narizes, o Sr. Diogo decide desnarigá-las e, no lugar, pôr um nariz imaginário,
146
ASSIS. O.C. Op. cit. vol. I. pág. 565.
184
convencendo a todos de que o órgão invisível de fato existia, apesar de ninguém conseguir
vê-lo na realidade.
Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia
delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes
substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim
curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no
lugar do órgão cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava o
órgão substituto, e que esse era inacessível aos sentidos humanos, não se
davam por defraudados, e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra
prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o
fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles continuavam a
prover-se dos mesmos lenços de assoar.
147
Embora logrados, os habitantes da cidade continuavam cultivando a vaidade, pois
era melhor ater-se a um nariz ideal do que ter de suportar a deformidade do real. Assim, a
sublimação do indivíduo permanece e ele passa a acreditar naquilo que lhe é mais
proveitoso, desde que mantenha o seu amor-próprio. Logo, o real não importa à
humanidade, e sim a ilusão, ainda que absurda e impalpável.
O absurdo também é tema de um famoso escritor russo, Nikolai Gogol, em seu
conhecidíssimo conto ―O nariz‖. Assim como o comendador Nunes, personagem de
Machado, o major Kovalyov, do conto de Gogol, tem particular apreço por seu cargo e
posição na sociedade, mas tudo fica ameaçado quando o major acorda sem o nariz.
Caminhando pela estética do absurdo, a ironia de Gogol não poupa críticas à sociedade
russa do século XIX. A história torna-se mais inverossímil na medida em que Kovalyov sai
em busca do seu próprio nariz e o encontra, para seu espanto, trajando um uniforme de alto
funcionário do governo.
Ao se deparar com o improvável, Kovalyov tenta dialogar com o próprio nariz, que
se nega a reconhecê-lo e foge. Se é inconcebível que um nariz possa falar, como acontece
também em ―O bote de rapé‖, é ainda mais incrível imaginá-lo vestindo um uniforme,
descrito da seguinte maneira: ―usava um uniforme bordado em ouro, com uma gola alta,
147
ASSIS. O.C. vol. II. p. 328.
185
calças de camurça e uma espada do lado. Pelo chapéu de plumas podia-se concluir que ele
se considerava um conselheiro de Estado.‖
148
O major Kovalyov passa toda a narrativa tentando reaver o que perdeu, e sempre há
um lamento por parte dele quando pensa nos privilégios sociais que deixará de ter por estar
deformado. Viver ―desnarigado‖, sem encontrar algo que substitua o nariz subtraído, é
como perder valor na sociedade, ser colocado à margem. No diálogo com o nariz, o major
faz a seguinte afirmação para tentar convencê-lo da importância de sua figura e da sua
necessidade de tê-lo no lugar adequado:
Claro que eu... aliás, eu sou major. O senhor vai admitir que não é
adequado, para mim, andar sem nariz. Uma velha que venda laranjas
descascadas na ponte Voskresensky pode se sentar sem nariz. Mas,
tendo a possibilidade de obter... e, além disso, conhecendo muitas damas
na família do conselheiro civil Tchehtarev e em outras... o senhor pode
concluir... Não sei, senhor... (...) Desculpe-me... se examinar a questão de
acordo com os princípios do dever e da honra...o senhor vai entender...
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Percebe-se que o major se preocupa unicamente com o seu papel na sociedade,
afinal ele não é qualquer um, como a pobre velha da ponte Voskresensky. O dever e a
honra de que fala no trecho são, na verdade, vaidade e status. Num determinado momento,
chega a desejar que houvesse alguma outra coisa no rosto substituindo o nariz, desde que
não permanecesse com aquele vazio entre os olhos e a boca. Como acontece com o alferes
Jacobina, personagem machadiano de ―O espelho‖, a farda e a ocupação parecem ser o
fulcro da vida do major Kovalyov. Com muita ironia, o narrador do conto de Gogol
insinua: ―É preciso dizer que Kovalyov se ofendia com facilidade. Perdoava tudo o que
dissessem a respeito dele mesmo, mas não perdoava insulto à sua categoria ou à sua
ocupação.‖
O papel social excede o moral, a ele se sobrepõe. O grande conflito não é perder o
nariz, mas o prestígio, o valor naquela sociedade. Poder-se-ia aplicar ao conto de Gogol a
mesma filosofia defendida em ―O espelho‖: ―Cada criatura humana traz duas almas
consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro‖.
150
O nariz
148
GOGOL, Nikolai. ―O nariz‖. In: _____. O nariz e A terrível vingança. (Trad. Arlete Cavaliere). São Paulo:
EdUSP, 1990. p. 17-18.
149
Idem. p.18-19.
150
ASSIS. O.C. Op.cit. p. 346
186
de Kovalyov almejava um cargo superior ao que exercia no corpo do major, a alma exterior
estava cindida. Ao se reunirem novamente no final do conto, eis que a imagem exterior e
interior se reconciliam e retornam aos contornos de outrora. Assim, ao mirar-se no espelho,
Kovalyov encontra a mesma sensação de Jacobina, reconhece-se e tem de volta a posição e
o cargo. Novamente estabilidade no retorno a si mesmo, ou melhor, no retorno, embora
paradoxal, ao ―eu exterior‖ perdido.
Embora