
eterno reparo dos que já não dão à vida toda a flor dos seus primeiros
anos. Para os varões maduros, nunca a mocidade folga como no tempo
deles, o que é natural dizer, porque cada homem vê as coisas com os
olhos da sua idade. Os recreios da juventude não são decerto igualmente
nobres, nem igualmente frívolos, em todos os tempos; mas a culpa ou o
merecimento não é dela, — a pobre juventude, — é sim do tempo que lhe
cai em sorte. A Corte divertia-se, apesar dos recentes estragos do cólera -;
bailava-se, cantava-se, passeava-se, ia-se ao teatro. O Cassino abria os
seus salões, como os abria o Clube, como os abria o Congresso, todos três
fluminenses no nome e na alma. Eram os tempos homéricos do teatro
lírico, a quadra memorável daquelas lutas e rivalidades renovadas em
cada semestre, talvez por um excesso de ardor e entusiasmo, que o tempo
diminuiu, ou transferiu, — Deus lhe perdoe, — a coisas de menor tomo.
Quem se não lembra, — ou quem não ouviu falar das batalhas feridas
naquela clássica platéia do Campo da Aclamação, entre a legião
casalônica e a falange chartônica, mas sobretudo entre esta e o regimento
lagruísta? Eram batalhas campais, com tropas frescas, — e maduras
também, — apercebidas de flores, de versos, de coroas, e até de
estalinhos. Uma noite a ação travou-se entre o campo lagruísta e o campo
chartonista, com tal violência, que parecia uma página da Ilíada. Desta
vez, a Vênus da situação saiu ferida do combate; um estalo rebentara no
rosto da Charton. O furor, o delírio, a confusão foram indescritíveis; o
aplauso e a pateada deram-se as mãos, — e os pés. A peleja passou aos
jornais. (...)
Os que escaparam daquelas guerras de alecrim e manjerona hão de sentir
hoje, após dezoito anos, que despenderam excessivo entusiasmo em
coisas que pediam repouso de espírito e lição de gosto.
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No contraponto entre os hábitos culturais do tempo de juventude e os do momento
da escrita, constata-se a semelhança entre o contexto narrado no romance e a realidade
vivida pelo escritor em sua época de rapaz. Mistura-se ao relato do narrador a nostalgia do
passado, frente às mudanças de comportamento dos jovens do seu presente. No entanto, o
olhar não é de condenação, porém de constatação: ―... mas a culpa ou o merecimento não é
dela, — a pobre juventude, — é sim do tempo que lhe cai em sorte.‖ O jovem Machado
tirara, portanto, o bilhete premiado, por ter nascido em época tão fecunda de nossas letras e
por encontrar lugar e oportunidade ideais para o pleno desenvolvimento de seu gênio.
Mas a maneira isenta de o escritor tratar a história, principalmente a dos dias idos e
vividos, fez com que pusesse na fala do narrador uma crítica ao passado, mesmo após
recordá-lo com tanto gosto. Declara, com consciência de escritor maduro, que houve
―excessivo entusiasmo‖. Assim resumia os arroubos juvenis, lembrando-se, certamente, das
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ASSIS, Machado de. A mão e a luva. In:____. O.C. Vol 1. p. 204-205.