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SER OU ESTAR GERENTE?
REFLEXÕES SOBRE A TRAJETÓRIA E O APRENDIZADO GERENCIAIS
1
Carolina Andion
1
“Por trás de um vivido interpessoal existe uma infinitude
de registros fundamentais que mobilizam todos nós”
Frei Gilberto Garcia
Resumo
Este texto visa apresentar algumas reflexões sobre o fenômeno da aprendizagem gerencial.
Para tanto, a autora utiliza o método fenomenológico e analisa a trajetória de um gerente, o
qual atuou durante 20 anos numa empresa pública, exercendo diferentes cargos gerenciais. O
trabalho tem como foco central a experiência vivida pelo gerente e o significado atribuído por
ele a esta vivência. Portanto, não se buscou identificar formas de como promover o
aprendizado gerencial ou de torna-lo mais eficaz, mas sim reviver a experiência, fazendo o
leitor entrar no mundo do fenômeno pesquisado e deixando espaço para que ele reflita sobre
sua experiência, a partir do vivido retratado pelo entrevistado.
Palavras-chave: gerência, papéis gerenciais, aprendizagem gerencial, fenomenologia.
Abstract
This report seeks to present some reflections about the phenomenon of the managerial
learning. For so much, the author uses the phenomenological research to analyse the trajectory
of manager who worked for 20 years in a public company, actuating in different managerial
positions. The work focuses on the experience lived by this manager and on the meaning
attributed by him to this experience. Therefore, this report didn´t try to identify forms to
promote the managerial learning or to turn it more effective. The purpose is to revive the
experience, helping the reader to enter the world of the researched phenomenon and
stimulating him to reflect upon his own experience, based on the experiences lived by the
interviewed.
Key Words: management, managerial roles, managerial learning, phonomenology.
1
Mestre em Administração pela École des Hautes Études Commerciales (HEC) – Montreal e Doutoranda em
Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina.
[email protected]. Artigo recebido
em 21/03/2003.
Revista de Ciências da Administração – v.5, n.09, jan/jul 2003 1
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Ser ou estar gerente? Reflexões sobre a trajetória e o aprendizado gerenciais
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho visa contribuir para uma maior compreensão do exercício do papel
gerencial, em especial no que se refere à aprendizagem gerencial. O objeto deste estudo é a
experiência de vida de um gerente: Nelson, atualmente aposentado, que trabalhou 27 anos
numa empresa estatal do setor elétrico do Paraná, dos quais 20 anos com atuação gerencial,
em diferentes níveis hierárquicos.
Para interpretar o fenômeno da aprendizagem gerencial, este trabalho utiliza como método
a fenomenologia. Criada por Edmund Husserl (1859-1938) e exposta em uma série de
conferências realizadas pelo autor entre 1907 e 1911, a fenomenologia tem como objetivo
compreender a essência dos fenômenos humanos, através da experiência de vida. Para a
fenomenologia, os fatos não podem ser tomados como coisas em si, independentes do sujeito,
como preconizava Durkheim, pois não existe coisa em si fora do vivido, da intencionalidade.
Assim, o método fenomenológico enfatiza não a quantidade de evidências do que é
pesquisado ou ainda a validação através de critérios “objetivos”; ele privilegia a intensidade e
a qualidade dos encontros entre pesquisador e pesquisado, considerando que ambos são, ao
mesmo tempo, objetos e sujeitos da pesquisa.
Com base nestes pressupostos epistemológicos, foi realizada com o pesquisado uma série
de três entrevistas em profundidade (SEIDMAN, 1997). A análise das entrevistas permitiu
revelar as estruturas de experiência vivenciadas pelo gerente. Com isso, foram identificadas
algumas temáticas centrais da vivência no papel gerencial e da aquisição de aprendizado pelo
entrevistado. Tais descobertas não se limitam à particularidade da experiência de um
indivíduo, elas contêm também uma universalidade, uma essência, que pode ser partilhada,
ajudando a interpretar o fenômeno gerencial e a aquisição de aprendizados por parte dos
gerentes não apenas a partir de fontes teóricas, mas através do relato do vivido.
2 ALGUNS PRESSUPOSTOS DA FENOMENOLOGIA
Buscando suplantar os limites e as reduções provocadas pela concepção funcionalista,
esse trabalho tomará por base o paradigma interpretativo. Este último, assim como o
funcionalista, baseia-se no princípio e na crença de que existe uma ordem implícita no mundo
social. Todavia, considera que os esforços dos teóricos do paradigma funcionalista para
estabelecer uma ciência social objetiva são inúteis (MORGAN, 1980). A ciência é então vista
como uma rede de jogos de linguagem, baseada na definição subjetiva de conceitos e regras
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inventados e seguidos pelos seus praticantes. O mundo social, na visão do paradigma
interpretativo, tem um status ontológico muito precário e a realidade social não existe em um
sentido concreto, mas é um produto das experiências subjetivas e intersubjetivas dos
indivíduos. Nesta perspectiva, o fato social é resultado da interpretação do sujeito e,
portanto, não é possível compreendê-lo sem considerar a subjetividade inerente a esta
interpretação. A fenomenologia se apóia nestes pressupostos epistemológicos, dando maior
espaço à subjetividade pouco considerada pelo paradigma funcionalista.
Porém, é importante esclarecer algumas idéias preconcebidas que podem levar a
preconceitos a respeito da utilização da fenomenologia ecomo método. Como destaca Shultz
(1979), há uma interpretação errônea de que a fenomenologia é baseada não em análise, mas
numa espécie de intuição sem controle ou revelação metafísica. Esse mesmo autor assinala
que a fenomenologia quando concebida por Husserl tinha por objetivo criar uma “ciência
exata”, cujo adjetivo não se refere à possibilidade de representar o conteúdo da ciência de
forma matemática, mas sim a uma análise cuidadosa e consistente que possa revelar a
essência dos fenômenos. Essa essência, ao mesmo tempo particular e universal, nos remeteria
“a uma filosofia primeira, que levaria em conta os requisitos de uma ciência exata digna do
nome” (SHULTZ, 1979, p.54).
Portanto, caracterizar a fenomenologia como não científica é não compreender as suas
bases. Na realidade, o que precisa ser entendido é que a fenomenologia se fundamenta numa
concepção de ciência distinta da visão positivista, esta última mais difundida e utilizada
historicamente nas ciências sociais. Como afirma Shultz (1979, p.54): “A existência do mundo
é tida pela ciência tradicional de forma acrítica. Esta pretende medi-lo com padrões e
ponteiros regulados segundo as escalas de seus instrumentos. Todas as ciências empíricas se
referem ao mundo como um dado, mas elas próprias e os seus instrumentos são instrumentos
deste mundo”.
Para a fenomenologia, somente a dúvida e o questionamento sobre as pressuposições
implícitas em todo o nosso pensamento habitual é que podem garantir a “exatidão”. Por isso,
o objeto primeiro da fenomenologia é a experiência vivida e os significados da existência
humana, os quais procura descrever e interpretar com profundidade e riqueza. Com esse foco
sobre os significados, a fenomenologia difere de outras abordagens metodológicas, as quais
convergem para as relações estatísticas entre variáveis, baseadas na predominância das
opiniões sociais ou na ocorrência ou freqüência de certos comportamentos, resultantes de
testes criados experimental e artificialmente.
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Conforme destaca Van Manen (1990, p. 4), "enquanto as ciências naturais tendem a dar
taxinomia aos fenômenos naturais e explicar casual e probabilisticamente o comportamento
das 'coisas', as ciências humanas [ou a fenomenologia] visam explicar o sentido do fenômeno
humano e entender as estruturas vividas de sentido". Assim, os pressupostos
fenomenológicos respondem a muitos dos limites dos métodos positivistas, trazendo novas
possibilidades para os estudos no campo das ciências humanas e sociais
2
.
3 AS ETAPAS DA PESQUISA
Inicialmente foi definida a questão de pesquisa que serviu de bússola durante todo o
estudo: “Como se dá a aprendizagem gerencial?” Para respondê-la, buscou-se identificar
alguém com uma experiência significativa de aprendizado gerencial que tivesse
disponibilidade para retratar essa experiência. Foi identificado um gerente, com vasta
experiência profissional, que havia entrado como estagiário numa empresa estatal e lá atuado
como gerente durante 20 anos, passando por diferentes níveis hierárquicos.
A coleta de dados teve por base a entrevista em três tempos definida por Seidman (1997).
Foram realizadas três entrevistas em profundidade, de cerca de duas horas cada, com
perguntas abertas relacionadas à questão de pesquisa. A primeira entrevista teve o objetivo de
construir o contexto que influenciou o entrevistado na sua trajetória como gerente e no seu
aprendizado. Foram perguntados detalhes sobre o início de sua experiência como gerente; se
ela tinha sido planejada; o que mudou na relação com os outros (colegas, amigos, família
etc.), na sua percepção do trabalho e também se houve suporte da organização. Alguns
detalhes da história de vida antes de se tornar gerente também foram tratados. Na segunda
entrevista, buscou-se entender os detalhes da experiência de aprendizado gerencial. Foram
explorados exemplos onde o entrevistado tinha vivenciado experiências de aprendizagem, o
significado que o entrevistado atribuía à aprendizagem, os tipos e os instrumentos de
aprendizagem utilizados, entre outros. Esta entrevista concentrou-se nos detalhes da
experiência vivenciada, buscando reviver o fenômeno. Na terceira e última entrevista, o foco
foi o significado da experiência de aprendizado gerencial para o entrevistado. Buscou-se levar
o entrevistado a refletir sobre sua experiência passada e presente, permitindo que ele
compreendesse e conferisse significado a essa experiência.
Durante e após a realização das entrevistas, ocorreu a análise e a elaboração do texto,
através da identificação das temáticas presentes na narrativa do entrevistado. Foi utilizada a
abordagem de leitura seletiva (VAN MANEM, 1990), onde o texto foi lido e relido várias
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vezes, até que foram identificadas algumas frases centrais que revelavam a essência da
experiência descrita. Para tanto, foi necessária uma apropriação reflexiva do conteúdo das
entrevistas para clarear e tornar explícitas as estruturas de significado da experiência de vida
do entrevistado (VAN MANEN, 1990).
Como resultado, o texto, retratado a seguir, contém duas partes: a primeira descreve a
trajetória gerencial de Nelson, sinteticamente, e a segunda aborda as temáticas que retratam a
estrutura da experiência de aprendizado gerencial para ele. O texto foi concebido a partir de
uma escrita que buscou ser fiel ao relato do entrevistado e aos significados atribuídos por ele à
experiência, retratando a sua forma de “diálogo com o mundo” (VAN MANEN, 1990). O fio
condutor da escrita foi o discurso do entrevistado e as estruturas de significado encontradas
neste discurso, as quais permitiram aproximar-se da essência do fenômeno da aprendizagem
gerencial. Assim, as referências teóricas incluídas tiveram uma função de apoiar a
interpretação dessas estruturas de significado, permitindo uma reflexão mais profunda sobre
elas, e não foram os elementos estruturantes do texto.
Finalmente, é importante ressaltar que a pesquisa fenomenológica é sempre uma
interpretação e não a interpretação, pois as experiências vividas são analisadas a partir dos
modelos mentais do pesquisado e do pesquisador, mesmo após o processo de colocação em
suspenso de seus prejulgamentos a respeito do fenômeno pesquisado (epoqué).
4 A EXPERIÊNCIA GERENCIAL DE NELSON: UMA TRAJETÓRIA, MÚLTIPLAS
IDENTIDADES
Nelson é um homem de meia idade, cerca de 48 anos. Começou a trabalhar como
estagiário numa empresa pública do ramo de eletricidade no Paraná. Formou-se em
engenharia em 1972, no auge do fordismo, e dois dias depois já foi contratado como
engenheiro, para trabalhar na área de informática da empresa. “Tirei dois dias de folga...”, diz
orgulhoso. Esse orgulho reflete a conquista de uma aspiração, na qual ele e a família (do
interior) depositaram muitas esperanças. Nelson nasceu em Caçador, interior de Santa
Catarina, e veio para Curitiba, ainda adolescente, para estudar e “ser alguém na vida”. A
família o sustentava na cidade, apostando no seu crescimento profissional.
A aposta deu certo. Cerca de seis a sete anos depois de ser contratado e de alguns
treinamentos na área de informática, Nelson foi convidado para ser gerente da divisão de
informática, onde trabalhou como engenheiro. Ele retrata a experiência desta forma: “Não
houve nenhum preparo para isso, nada... Acharam que eu tinha um melhor perfil e me
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escolheram. Para mim continuou a mesma coisa, tinha o status, mas as atividades
continuavam as mesmas”. Nelson ainda não havia incorporado sua identidade gerencial. Ele
se percebia ainda como um trabalhador, que fazia as atividades como os outros. Contribuía
para isso o fato de, na época, início da década de 1980, a empresa possuir uma gestão
extremamente centralizada, o que fazia com que a influência gerencial diminuísse bastante.
Por outro lado, a área de informática onde trabalhava não tinha um papel tão crucial na
empresa, como iria ocorrer nos anos posteriores.
Nesta divisão, Nelson e sua equipe (cerca de 12 pessoas) desenvolviam programas de
computador voltados para a área de engenharia. A divisão de informática foi crescendo de
importância dentro da empresa. Isso se explica devido ao próprio contexto enfrentado fora da
empresa (aumento da competitividade) e pela conseqüente necessidade de modernização
estrutural vivenciada na década de 1980. Esse contexto aumentou a visibilidade de Nelson e
de sua equipe: “tínhamos um status de relevância, de diferenciação, a área de informática
não era simplesmente uma área operativa que só fazia aquilo que se pedia. Era uma área que
estava à frente de muitas situações na empresa”.
Essa visibilidade, atrelada ao seu desempenho técnico e às suas relações pessoais, fez com
que Nelson fosse convidado a ser chefe de departamento. Nesta passagem, percebe-se que ele
incorpora definitivamente a sua identidade como gerente: “É onde eu sempre achei que a
área gerencial se desenvolvia mais, pois havia um distanciamento maior. Aí você não tinha
como entrar na atividade do dia-a-dia, você tinha a responsabilidade maior de fazer um
planejamento, de orientar a equipe, de cuidar das metas, de controlar. Aí você tinha
realmente um trabalho gerencial”. Sua identidade gerencial parece se cristalizar em torno da
forma do “técnico”, “expert” (SAINSAULIEU, 1998), onde sua dedicação o leva a ser titular
de uma função e de um status no aparelho burocrático da empresa. Esse status passa a ser
percebido por ele como diferente dos outros.
A ampliação da divisão criou assim o departamento de informática, que possuía as suas
próprias divisões (engenharia elétrica, distribuição e sistemas de potência civil). No cargo de
chefe de departamento, Nelson coordenava cerca de 40 pessoas, sem contar os estagiários.
Num terceiro estágio, mais recente, Nelson passou a ser o superintendente de informática.
O presidente nomeado era seu amigo pessoal e o convidou para ocupar o cargo. Nesta
oportunidade, a área já contava com cerca de 400 pessoas. Como descreve Nelson, ele passa a
assumir uma identidade de executivo indispensável nas inovações informáticas implantadas
na empresa (SAINSAULIEU, 1998).
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Ele descreve esta experiência da seguinte forma: “Aí meu papel mudou sensivelmente. Eu
tinha um relacionamento muito grande com o presidente, então o diretor que estava entre
mim e ele era constantemente by passado. O Presidente me ligava às 3 horas da manhã para
inventar os projetos dele. Eu fazia muitas viagens para buscar novas idéias e novos produtos
para a área, recursos para implantar novas tecnologias. Este presidente era fissurado por
informática e ele deu toda a condição para que a área de informática deslanchasse”.
A trajetória de Nelson se confunde então com a evolução da própria área de informática
dentro da empresa. Como se pode perceber pelo seu relato, ele acompanhou todas as fases da
área, desde o seu surgimento, redefinindo a sua identidade e o seu papel durante cada fase
vivenciada. Sua identificação com a empresa e com a sua atividade era muito grande e isso
fazia com que sua dedicação ao trabalho aumentasse cada vez mais: “Para mim, isso
representou uma mudança drástica na minha vida. Eu não tinha tempo. O tempo que eu tinha
era dedicado exclusivamente para cuidar das atividades do Presidente. Da mesma forma que
o Presidente by passava o diretor, eu by passava os gerentes de departamento. Eu cobrava,
fazia ponte e ia direto nos funcionários. Acompanhava diretamente”.
O envolvimento de Nelson com o trabalho foi se ampliando cada vez mais, até o momento
em que ele sofreu uma grande frustração. Ela ocorreu em 1994, quando houve uma mudança
de governo. O governo que assumiu era de um partido contrário àquele do presidente que o
havia convidado para o cargo. Nelson foi afastado do cargo de uma forma que o marcou
muito: “Eu estava viajando e quando eu cheguei tinha outro cara no meu lugar. Como eu
assinava jornal na época eu descobri pelo jornal que tinha outro superintendente em meu
lugar. Não se preocuparam em me avisar. Essa foi a coisa que mais me marcou. Você é
gerente num dia e no outro você descobre que não é mais pelo jornal”.
Ele voltou para a chefia de departamento de produção na área de informática e lá se
manteve por cerca de um ano e meio, até que assumiu um antigo amigo seu na presidência da
empresa, o qual o afastou do cargo e o retirou da área, encaminhando-o para a área de
marketing. Nelson passou a ser então vendedor da empresa, exercendo uma atividade que ele
não dominava e não tinha experiência. Toda esta mudança fez Nelson refletir a respeito de sua
relação com a empresa e o trabalho: “Quando eu deixei a superintendência eu pensei: eu
tenho que investir na minha pessoa e não na empresa”.
E, a partir de então, foi o que ele fez. Buscou fazer uma especialização na área de
marketing e em pouco tempo passou a ser gerente da divisão de marketing da empresa.
Manteve-se mais alguns anos na gerência, até se aposentar, em 1999.
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A história de Nelson retrata uma passagem por diferentes níveis hierárquicos e realidades
distintas, que influenciaram na construção da sua identidade pessoal e profissional e
possibilitaram a ele inúmeros aprendizados. A seguir são apresentadas as temáticas
significativas que emergiram na narrativa, as quais permitem realizar algumas reflexões sobre
a universalidade do vivido de Nelson, fornecendo maior compreensão sobre o fenômeno
gerencial.
5 TORNANDO-SE GERENTE: A AQUISIÇÃO DE NOVAS IDENTIDADES
O processo de aprendizagem na trajetória do gerente parece ser não apenas cognitivo, mas
principalmente vivencial, representando a passagem por múltiplas identidades, muitas vezes
até contraditórias. No caso de Nelson, ele foi contratado como engenheiro, assumindo um
papel de técnico. Pouco depois, ele tornou-se gerente de divisão. Não foi a simples passagem
para o cargo gerencial que o fez incorporar a nova identidade, ao contrário, no início ele ainda
se sentia como “um deles” (membros da equipe): “O relacionamento com a equipe ia além do
trabalho. Nós jogávamos futebol juntos, fazíamos churrasco juntos. Isso não envolvia apenas
o pessoal da divisão, mas também os familiares. Não tinha muita hierarquia. Eu era gerente
porque alguém decidiu que eu seria gerente. Existia um relacionamento mais próximo com
aquelas pessoas que eu tinha mais afinidade”.
A aquisição das habilidades gerenciais e de uma forma de pensar mais ampla e estratégica
se deu com a experiência de vida e o aprofundamento dos relacionamentos e das vivências.
Para Nelson, isso só veio a ocorrer quando ele assumiu o papel de chefe de departamento, mas
nos primeiros anos ele não se sentia um “verdadeiro gerente”. “Não houve uma preparação...
agora você passa a ser gerente e você deixa de dar prioridade às questões pessoais e passa a
dar prioridade às normas da empresa... na verdade, dentro da empresa o que mudou foi a
freqüência de cursos. Como a área era muito pequena, você não podia parar e dizer agora eu
vou só gerenciar... a gente tinha que colocar a mão na massa”.
É interessante notar que essa mudança de identidade se dá quando ele começa a perceber
que é o seu papel fazer com que os interesses da organização fossem concretizados: “Neste
momento da mudança da divisão para o departamento o envolvimento é maior. Você deixa o
relacionamento externo à empresa influenciar menos nas suas decisões. Quando você chega
no departamento as coisas ficam mais distantes. Não que eu tenha mudado o meu
comportamento... Procurei nunca encarar o status de forma diferente porque algum dia eu
podia perder a posição, como aconteceu”. Apesar de assumir a incorporação de um novo
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status dentro da empresa, Nelson nunca se desvencilhou totalmente da sua função de técnico.
Na verdade, a sua identidade de trabalhador ou “fazedor” (HILL, 1992) representava uma
certa segurança, uma âncora, caso ele viesse a deixar de ser gerente.
Na narrativa de Nelson fica claro que para ele a condição gerencial era encarada como
passageira, como transitória, e que era preciso ficar ligado às bases: “Você perde o status de
gerente, você volta a desenvolver as atividades que desenvolvia anteriormente. Sempre
busquei, mesmo como gerente, estar próximo ao treinamento profissional. Porque eu via que
muda a política governamental, muda o governo, você pode perder o seu cargo. Eu sempre
tentei influir no trabalho técnico; apesar de ser gerente, eu sempre queria colocar a mão na
massa[...] Eu estava muito próximo, principalmente naqueles projetos que eu era cobrado.
[...] Por que isso? Porque eu sempre via um risco de um dia você estar gerente e no outro dia
você não estar mais. Eu estava me autopreservando... O impacto seria menor, eu estava
sempre preocupado em dar um passo à frente, mas também estava com os dois pés atrás, no
sentido de não me sentir um alienígena pelo fato de deixar de ser gerente. Poderia acontecer,
como acabou acontecendo não é?”
A mudança de trabalhador para gerente se consolida definitivamente quando ele assume a
superintendência, onde Nelson se transforma num verdadeiro executivo e busca atender às
expectativas que a empresa (representada pelo presidente) deposita nele. Ele começa então a
vivenciar o estresse do cargo, apesar de sentir-se realizado por conseguir efetuar muitas das
coisas que sempre sonhou dentro da empresa: “Foi muito estressante. Puxa! Foi estressante
porque da mesma forma que eu recebia todas as facilidades, não existia obstáculo nenhum
para realizar o que quisesse. Em compensação a cobrança era enorme, era terrível. Todo dia
tinha pedido do presidente”.
Depois de atingir o auge, vendo suas realizações sendo colocadas em prática e dando
resultados, Nelson experimenta uma nova redefinição identitária. Ele deixa a superintendência
e mesmo a gerência, um pouco mais tarde, e volta a ser funcionário... Neste momento ele se
sente frustrado, como se fosse “jogado fora”: “eu não estava mais adequado”.
A experiência de vida do Nelson nos mostra que a aprendizagem gerencial inclui a
habilidade de lidar com essas diferentes lógicas identitárias pelas quais o gerente atravessa na
sua trajetória. No caso dele, houve passagem por diferentes identidades, retornos, crises, o que
causou um grande desgaste emocional, mas principalmente muito aprendizado e
autoconhecimento. Aprender a ser gerente neste caso implicou muito mais do que adquirir
habilidades cognitivas; aprender a ser gerente foi também, e principalmente, uma viagem
pessoal de autoconhecimento que significou, ao mesmo tempo, a capacidade de se adaptar às
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mudanças e de manter-se fiel às suas convicções. Para Nelson, o que o ajudou a manter-se
inteiro diante de todas essas mudanças foi o fato de manter a sua personalidade e estilo:
“Mesmo passando por vários níveis hierárquicos, sempre mantive a minha personalidade”.
Segundo ele, esse aprendizado não se deu nos treinamentos, nem da faculdade. Esse
aprendizado foi adquirido através da vivência e em conjunto com os outros.
6 O APRENDIZADO GERENCIAL, A EXPERIÊNCIA DE VIDA E A REFLEXÃO
O aprendizado gerencial no caso de Nelson ocorreu em sua grande parte no dia-a-dia de
trabalho, através da convivência com os outros, como retrata seu depoimento: “Aprendizado é
identificar em cada um dos níveis hierárquicos os pontos onde você deve focar as suas ações,
as suas atividades. É um aprendizado evolutivo, em que você vai somando as experiências.
Cada nova circunstância, papel, você vai se adaptando. Tem algo que é dado, a função... isso
já está escrito, mas têm outras coisas que você tem que descobrir [...] A gente vai aprendendo
na convivência, vendo o que os outros fazem”.
Como ele era engenheiro, a aprendizagem formal da faculdade pouco contribuiu para a
sua atividade como gerente. A maior parte dos aprendizados adquiridos, especialmente no que
se refere às relações interpessoais, foi absorvida na prática, convivendo com seus
subordinados. Para ele: “a aprendizagem gerencial é a habilidade para lidar com as
situações que acontecem no dia-a-dia. Em muitas dessas situações tivemos um treinamento
prévio, de modo que a gente adquirisse as habilidades. Mas na maioria das situações não
adianta você ter o aprendizado teórico, você acaba até esquecendo. O tempo para decidir é
muito pequeno”.
Uma das experiências mais relevantes retratadas por ele neste sentido foi a avaliação de
desempenho que todo gerente tinha que desenvolver com a sua equipe. Ele tinha que avaliar
diretamente seus subordinados, com muitos dos quais ele mantinha um relacionamento
externo. Além disso, a empresa exigia que nem todos fossem bons; era preciso qualificar o
melhor, o médio e o pior, o que impactaria mais tarde nas promoções salariais. Para ele, esta
experiência foi extremamente difícil, porém uma grande fonte de aprendizado: “apesar de
todo treinamento, de como avaliar, de ter lido, na hora as questões não são aquelas que você
planejou ou pensou. Como é que você vai dizer para um colega seu que o desempenho dele é
pior do que um outro que talvez não tenha um relacionamento informal com você? Só com a
repetição, ano após ano, é que você adquire mais habilidade. Então eu comecei a anotar o
desempenho, registrava dados, para não fazer coisas apenas subjetivas”.
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Percebe-se que, a partir da vivência, o gerente vai adquirindo algumas sistemáticas de
trabalho, ou seja, a partir do relacionamento e da participação, o gerente absorve aprendizados
e isso influencia o seu posicionamento perante outras situações semelhantes. É o que
Gherardi, Nicollini e Odela (1998) denominam de aprendizagem situada. Este tipo de
aprendizagem é típico dos adultos e não segue um formato linear. Baseia-se na ocupação em
atividades e na participação com outros membros da comunidade, permitindo a assimilação
dos padrões culturais do contexto (curriculum situado).
Para que a aprendizagem ocorra, é essencial que haja uma reflexão a respeito do vivido.
É essa reflexão que vai permitir compreender o significado da experiência. Isso aconteceu no
caso do Nelson: “Na medida em que você executava a tarefa e fazia uma reflexão, você já
tinha uma retroalimentação, você já se preparava para uma próxima ocorrência daquele
fato”.
Conforme Mesirow (apud LUCENA (2001), pode-se constatar, neste caso, que a
aprendizagem gerencial se aproxima mais de uma abordagem construtivista, onde as
experiências são interpretadas, dando origem a novos significados, os quais vão orientar as
ações subseqüentes. Esse processo não é solitário; ele só ocorre através da interação e da
comunicação com os outros.
7 A GERÊNCIA E O APRENDIZADO GERENCIAL COMO CONSTRUÇÕES
COLETIVAS
A aprendizagem gerencial se dá essencialmente na relação com o outro. Isso faz com
que ela seja mais perturbadora do que o mero aprendizado técnico. Para Nelson, as maiores
dificuldades no gerenciamento ocorriam no campo das relações interpessoais. Por ser
engenheiro, sua formação era mais técnica; mas, apesar de não ter tido um aprendizado
teórico prévio a este respeito, intuitivamente ele buscava construir uma relação afetiva com os
seus funcionários, visando facilitar os processos de trabalho: “Eu sempre tentei fazer com que
as atividades gerenciais não atrapalhassem as relações pessoais (o depois do expediente).
Conseguimos manter um grupo que se reunia todo mês fora da empresa para jantares e
outras coisas durante 17 anos. Um grupo de oito pessoas que veio junto, desde quando eu era
da divisão, até a superintendência. A gente se reunia não para discutir a empresa e sim
banalidades. Mas sempre surgia o assunto da empresa. [...] Isso dava um convívio mais
familiar. Se existisse alguma barreira ela era eliminada por esse relacionamento. Isso
prevenia as crises”.
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Percebe-se aqui que, conforme destaca Koter (1993), a construção de relacionamentos
interpessoais e cooperativos é um trabalho essencial da tarefa gerencial. Além de facilitar as
relações entre a equipe, essa rede de relacionamentos também parece influenciar na tomada de
decisões e, no caso analisado, se estendeu para as esferas da própria estrutura formal. Por
serem de confiança, alguns dos melhores amigos de Nelson também se tornaram gerentes:
Naquela ocasião tinha grupo de futebol, grupo de casais, viajávamos juntos... uma série de
atividades que a gente fazia para manter a unidade da equipe. Esses momentos ajudavam no
aprendizado, porque a gente evitava falar da empresa, mas também se falava e isso facilitava
perceber como a pessoa se comportava fora da empresa, como era a integração dela com a
família, se era uma pessoa ligada à família. Isso ajudava você a tomar algumas decisões”.
Portanto, percebe-se que a relação gerente-subordinados parece estar longe de ser
resumida a uma mera cadeia de causa e efeito, onde o gerente controla e o subordinado
obedece, conforme apresenta boa parte das teorias funcionalistas sobre liderança e
gerência. Ao contrário, o que se pode constatar, por meio da análise da narrativa de
Nelson, é que o gerenciamento se dá através de um processo de influência mútua, onde
relações formais e informais estão em jogo. Neste caso, o aprendizado gerencial
transcende em muito a dimensão técnica e se configura como uma aprendizagem social,
onde o gerente tem um papel de artesão (SHON, 1982) na construção de relações
duráveis que permitam exercer o seu papel.
8 O INDIVÍDUO E O PAPEL GERENCIAL: CONFLITOS E
COMPLEMENTARIDADE DE LÓGICAS
O exercício do papel gerencial muitas vezes conflita com os valores e as crenças do
indivíduo. Por outro lado, a personalidade do indivíduo também será fundamental para
compor a identidade do gerente.
Como agente responsável por fazer acontecer os objetivos organizacionais, Nelson se
percebia e era percebido muitas vezes como guardião das normas da empresa: “Quando eu
passei para chefe de departamento, eu passei a ver não só o lado individual. Você passa a ver
mais o lado da empresa. Você começa a exigir que as regras sejam cumpridas. Enquanto
estava na divisão eu era mais complacente”. Entretanto, o exercício do papel conflitava
algumas vezes com as suas crenças e o seu estilo pessoal: “Incomodava no sentido que
algumas regras estabelecidas pela empresa eram diferentes daquilo que a gente pensava. Eu
tinha uma proximidade muito grande com as pessoas da minha equipe. A prioridade dos
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indivíduos não era mais a posição do gerente. A regra da empresa se sobrepunha aos
interesses de cada um”.
Tornar-se gerente, neste sentido, significava adquirir uma lógica mais “racional”,
moldando-se às exigências da empresa. Porém, percebe-se que há também espaço para que
ocorra o contrário. O gerente, a partir de seu aprendizado, começa a influir nos rumos da
empresa, imprimindo a sua marca pessoal no exercício da gerência: “A empresa tinha suas
regras, mas dentro destas regras sempre tinha a possibilidade de interpretação. Eu
interpretava as regras da maneira que machucasse menos as pessoas. Sempre tive a
tendência a ser paternalista. Muito poucas vezes usei o cargo gerencial para impor as
decisões, sempre busquei o consenso”. Apesar de ter enfrentado muitas mudanças no seu
papel ao longo da trajetória gerencial e apesar das pressões das regras da empresa, Nelson
afirma que construiu um estilo gerencial próprio que tinha por base as suas crenças pessoais.
Ele valorizava acima de tudo a difusão do conhecimento e a proximidade.
Constata-se que, embora a regras da organização atuem como limitadoras da plena
expressão individual do gerente, esta sempre se apresenta, de forma mais ou menos intensa,
no exercício do papel gerencial. No caso do Nelson, esta expressão individual aparece na
manutenção das suas crenças e do seu estilo gerencial, ao longo do tempo, os quais foram
mantidos nos diferentes níveis hierárquicos pelos quais ele passou.
9 A FRUSTRAÇÃO E O SOFRIMENTO COMO FONTES DE APRENDIZADO: A
IMPORTÂNCIA DA REFLEXÃO
Quando perguntado sobre as experiências mais relevantes, em termos de aprendizado,
que teve em sua trajetória, Nelson não teve dúvidas: os momentos de frustração. Para ele, nem
os momentos de maior realização profissional, quando esteve na superintendência de
informática, foram mais intensos, em termos de aprendizado, do que aqueles momentos de
crise e decepção que vivenciou, especialmente quando perdeu o cargo: “Isso para mim foi
muito marcante. Você trabalha a vida inteira, você tem uma dedicação para a empresa e de
repente os caras chegam e te dizem, não você não vale nada [...] Depois disso, eu entrei em
estresse... saber que você dedicou a vida inteira por uma empresa, trabalhou, construiu, no
outro dia você não é mais nada, você é mais um número... Não adianta você conhecer, saber,
produzir etc. Peraí, eu tenho que cuidar agora da minha vida; aí eu procurei me dedicar mais
aos meus afazeres”.
Revista de Ciências da Administração – v.5, n.09, jan/jul 2003 13
Ser ou estar gerente? Reflexões sobre a trajetória e o aprendizado gerenciais
A primeira reação foi uma grande decepção em relação à empresa e às pessoas que foram
responsáveis pela forma como a mudança foi conduzida; o foco inicial foi para as
externalidades (MACCALL et al., 1988). Mas, num segundo momento, houve uma reflexão
pessoal que mudou a percepção de Nelson sobre a empresa e a sua relação com o trabalho.
Essa mudança foi fruto de uma profunda reflexão individual que o levou a uma mudança de
comportamentos e de valores: “Eu sempre priorizei bastante o trabalho e pouco a família.
Nesta época, a família se adaptava aos meus horários. A família reclamava, pois eu
trabalhava cerca de 17 horas por dia. Isso dificultou um pouco, gerou uma desarmonia
familiar. No momento em que perdi eu inverti, busquei apoio na família e isso deu uma
conotação diferente. [...] Isso mudou a importância que eu dava a outras dimensões. Hoje eu
não abro mão do meu lazer, da minha família. No trabalho, tenho um envolvimento
dimensionado em função das outras atividades”.
Neste momento, o Nelson executivo deu lugar para o Nelson pessoa. O movimento que
havia se instalado de profundo investimento na empresa, inclusive com abandono de outras
dimensões da vida – como deixar de ser professor, esquecer da saúde e da família – começou
a ser repensado. Será que valia a pena? Nelson decidiu que não. Passou a ter como prioridade
investir em si mesmo. Primeiramente fez uma especialização em marketing e, em 1999,
decidiu se aposentar.
Perguntado sobre como foi deixar de ser gerente, ele respondeu: “A empresa devia nos
preparar para deixar de ser gerente, da mesma forma como nos treina para ser gerente [...]
Ser gerente influencia toda a nossa vida. Muitas vezes a gente muda a vida por causa da
empresa”. Para ele, se desfazer da identidade gerencial pressupõe um aprendizado, da mesma
forma que adquiri-la. Mas como fazer isso? O grande aprendizado, na sua experiência, foi
compreender sua identidade gerencial como uma passagem. Hoje ele compreende que Nelson
é mais do que um gerente é um indivíduo, com múltiplas relações e dimensões na sua vida:
“Hoje eu sou uma pessoa diferente. Depois de você levar uma cacetada, você aprende que
você não pode ter um só pilar na vida. Tem que ter diversos pilares, pois se tiver um
problema com um, os outros sustentam”. Em outras, palavras podemos dizer que para Nelson
não se é gerente, se está gerente. A gerência é percebida então como uma condição
passageira, que exige preparo antes, durante e depois de seu exercício.
Esse posicionamento assumido pelo entrevistado só foi possível graças a um processo de
reflexão que o levou a se reposicionar. Essa reflexão crítica, segundo Mesirow (apud
LUCENA (2001), provém do domínio da emancipação e está ligada à auto-reflexão que
permite ao indivíduo conceber sua própria história: “Se eu não passasse pelo que eu passei,
Revista de Ciências da Administração – v.5, n.09, jan/jul 2003 14
Carolina Andion
talvez eu não tivesse essa euforia por estar onde estou. E isso é fruto de minha reflexão, do
meu reposicionamento”. Esse reposicionamento levou Nelson a redirecionar a sua carreira.
Após se aposentar em 1999, ele fez seleção para o mestrado e foi aceito. Atualmente se dedica
integralmente ao mestrado e também desenvolve atividades voluntárias junto ao CDI –
Comitê de Democratização da Informática –, ONG que desenvolve trabalhos de inclusão
digital para jovens. No final da última entrevista, quando perguntado se estava feliz, ele
respondeu: “Essa nova identidade foi muito boa para mim. Se todos os indivíduos estivessem
na condição que eu estou, o mundo seria melhor”.
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto teve como finalidade, através de uma análise fenomenológica da
experiência de vida de um gerente, permitir uma maior compreensão a respeito da trajetória e
da aprendizagem gerencial. Buscou-se mostrar que o fenômeno gerencial transcende a
concepção funcionalista presente na maioria dos estudos no campo da administração
3
. O papel
do gerente é bem mais complexo do que preconizam os livros de administração tradicionais, e
sua identidade é construída tendo por base o tempo e o espaço em que se situa o gerente.
Portanto, essa construção será sempre particular, sendo dificilmente enquadrada, na sua
totalidade, nos esquemas prescritivos da maioria das teorias administrativas.
Pôde-se perceber, através da interpretação da experiência de vida de Nelson, que o
exercício da gerência e seu aprendizado pressupõem a vivência e o confronto de múltiplas
identidades. Esse aprendizado não se dá de forma linear e cognitiva, mas passa pela vivência e
pela reflexão constantes a respeito das experiências. Além disso, o processo de aprendizado
ocorre socialmente e a relação com o outro é então uma dimensão essencial no fenômeno
gerencial. Neste processo, o sofrimento e a frustração têm um papel importante, pois através
deles, os gerentes entram em contato consigo, encarando seus limites e podendo então
redirecionar suas carreiras.
Enfim, o caso do Nelson nos permite concluir que o gerente é sobretudo um indivíduo
e essa dimensão deve ser preservada, tanto por ele, quanto pela organização. Em outras
palavras, o gerente não pode deixar de ser um participante ativo da organização (pois dele
dependem muitos dos resultados organizacionais). Porém, como afirma Guerreiro Ramos
(1984), para ser efetivamente autônomo ele não pode ser psicologicamente enquadrado. Ele
deve possuir uma consciência crítica desenvolvida, mantendo o seu próprio juízo de valor a
respeito da organização, dos seus pares e de si mesmo. É através desta reflexão crítica
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Ser ou estar gerente? Reflexões sobre a trajetória e o aprendizado gerenciais
permanente, que o gerente pode conservar um contato intenso com o seu “eu” e, ao mesmo
tempo, exercer o seu papel na organização. Citando Guerreiro Ramos (1984), é esta atitude
crítica “que suspende e coloca em parênteses a crença no mundo comum, permitindo ao
indivíduo alcançar um nível de pensamento conceitual e, portanto, de liberdade”.
NOTAS
1
Este artigo é fruto de um trabalho aprovado para o XXVI ENANPAD na área de Organizações/Comportamento
Organizacional.
2
Isso faz com que se amplie o número de estudos que utilizam este método, em especial nas ciências da saúde e
na educação. Ver por exemplo: Ryan (1996); Epstein et. al. (2000); Harkins e Drower (1995); Bourton (2000) e
Chapman e Orb (2000).
3
Para perceber a influência desta visão destacam-se algumas definições representativas de liderança que têm sido
apresentadas nos últimos 50 anos, as quais são citadas por Yukl (1998 p. 2): (1) “A liderança é o comportamento
de um indivíduo, dirigindo as atividades de um grupo para um objetivo comum” (HEMPHILL; COONS, 1957);
(2) “A liderança é o processo de influenciar as atividades de um grupo, para o atingimento de um objetivo
(RAUCH; BEHLING, 1984); (3) “Líderes são aqueles que constantemente dão contribuições efetivas para a
ordem social (HOSKING, 1988); “Liderança é um processo de criar propósitos (direção significativa) ao
esforço coletivo e de provocar esforços extras a serem gastos na busca do objetivo” (JACOBS; JACQUES,
1990); “Liderança é a habilidade de iniciar uma mudança evolucionária que seja mais adaptativa”
(SCHEIN,1992).
REFERÊNCIAS
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organizations. Management Learning, v. 29, n. 3. 1998.
GUERREIRO RAMOS, A. Modelos de homem e teoria administrativa. Revista de Administração
Pública. Rio de Janeiro, FGV, v. 18, n. 2, p.3-12. 1984.
HILL. Becoming a manager. Boston: Havard Business School Press, 1992
KOTER, J.P. What Leaders really do. In: Managers as leaders. Boston; Havard Business School
Prees, 1993.
LUCENA, E. A natureza da aprendizagem de gerentes-proprietários do setor de varejo de
vestuário de Florianópolis. Florianópolis, 2001. p. 14-61. Tese (doutorado) - Engenharia de
Produção, Universidade Federal de Santa Catarina.
McCALL, M. et. al. The lessons of experience: how successful executives develop on the job. New
York: The Free Press, 1988.
MORGAN, G. Paradigms, methapors and puzzle solving in organization theory. Administrative
Science Quartely. v. 25, 1980.
SAINSAULIEU. La construction des identités au travail Sciences Humaines.Paris : hors série, n. 20,
mar.-abr. 1998.
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Carolina Andion
SEIDMAN, I. Interviewing as a qualitative research: a guide for reserchers. New York: Teachers
College Press, 1997.
SHON, D. A. The Reflexive Practioner: how professionals think in action. Basic Books, 1982.
SHULTZ Fenomenologia e Relações Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
VAN MANEN, M. Researching lived experience. New York: State of New York Press, 1990.
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