
estilhaçados; a casa que é labirinto
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, conduzindo-o ao seu centro; a ampulheta que se quebra
numa batida forte nas paredes da arca, jorrando seus contidos momentos; o cálice
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que,
separado, também acaba por ser quebrado. A narrativa nesse ponto, à primeira leitura, parece
caótica, mas os sentidos ai estão.
Eu estava no escuro de uma peça e ao abaixar-me e procurar com os dedos precisar
um objeto subiram-me pelo tato sensações de lata e pele de rês, aldrava de bronze,
cantoneiras com símbolos [...]. Meus braços abertos e a arca era do tamanho deles
[...] Estava forrado, assim, de um material que não era processável [...]. Tempo de
um tempo ali, depurado, sobre o assoalho [...] Repouso isolado de tudo, calado no
ângulo mais escuro da peça, afundado, adernado, sem pulso, sem relógio. A arca
mantinha o tempo em sua chave de braço, o ar do tempo interrompido e
pressionado, chaveado. [...] Eu procurava abri-la, e forçava sem muito ímpeto o
tampo curvo. [...] Toquei no ferrolho que girou e rangeu. [...] Abri a arca [...] Havia
uma data gravada [...] e iniciais de nome que se usava naquele tempo. [...] Toquei a
palma da mão nas silhuetas das coisas dentro dela. [...] (METZ, op. cit., p.40/41)
O narrador, as mãos no fundo da arca, toca em coisas que lembram uma cidade em
miniatura e em coisas várias, sentidas, cheiradas, ouvidas: roldanas; argolas; um olho postiço
de vidro, que ele usa para perscrutar o interior da arca; cálice; o adeus de alguém morto por
um raio, as mãos no ar. E as palavras, dele próprio e de mais alguém, que ele separa: “Fui
mexendo e separando mais uma palavra da outra, as minhas para um lado e as dele para outro”
(METZ, op. cit., p.42).
[...] e as superfícies ficaram ásperas e coisas começaram a cair ao lado da arca e a
desmoronar em pedaços de porcelana que desciam num centro de pó com furos na
escuridão, por onde as coisas se metiam de qualquer jeito, vindas do alto e
espatifando, caindo para um fundo de onde só ouvia o som de empilhamento e pó e
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O labirinto, “ao mesmo tempo fortaleza e prisão, fixa simbolicamente um duplo movimento – do interior
para o exterior; da força á contemplação; da multiplicidade à unidade; do espaço à ausência de espaço; do
tempo á ausência de tempo. [...] Como se sabe, o labirinto é também símbolo da passagem da vida para a
morte. Na mitologia egípcia, o labirinto era o lugar onde se enterravam os mortos, o lugar do desnacer, que é
outra maneira de nascer, a passagem de uma vida a outra. Mas o labirinto é também um centro, um círculo,
quer dizer: um espaço místico que simboliza a duração suspensa, como assinala Mircea Eliade, o lugar
imóvel do tempo e do espaço e, por isso, o lugar da origem.” (MONEGAL, op. cit, p.95)
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Cálice – “O simbolismo mais geral da taça aplica-se ao Graal [...] cálice que recolheu o sangue de Cristo e
que contém, simultaneamente [...] a tradição momentaneamente perdida e a bebida da imortalidade. O cálice
contém o sangue – princípio da vida – sendo, portanto, homólogo do coração e, em conseqüência, do centro.
[...] O Graal é, etimologicamente, tanto um vaso quanto um livro, o que confirma dupla significação de seu
conteúdo: revelação e vida. Uma tradição pretende que ele tenha siso esculpido numa esmeralda caída da
fronte de Lúcifer. Essa pedra lembra [...] o terceiro olho, associado ao sentido de eternidade. O Graal era
também chamado de vaissel: símbolo do navio, da arca contendo os germes do renascimento cíclico, da
tradição perdida. Observar que o crescente da lua, equivalente à taça, é também uma barca. [...] É ainda a
expressão da imortalidade ou do conhecimento obtido ao preço da morte no estado presente, logo, do
renascimento iniciático ou supra-humano.” (CHEVALIER &GHEERBRANT, 1997. p. 858).
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