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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO
PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA TRADUÇÃO
SATYRICON E TRADUÇÃO POÉTICA: TRADUÇÕES BRASILEIRAS
PERANTE SUTILEZAS CRUCIAIS DA POESIA DE PETRÔNIO
LUIZ HENRIQUE MILANI QUERIQUELLI
Florianópolis
2009
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LUIZ HENRIQUE MILANI QUERIQUELLI
SATYRICON E TRADUÇÃO POÉTICA: TRADUÇÕES BRASILEIRAS
PERANTE SUTILEZAS CRUCIAIS DA POESIA DE PETRÔNIO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos da Tradução da
Universidade Federal de Santa Catarina, como
requisito parcial para a obtenção do título de
“Mestre em Estudos da Tradução”
Linha de pesquisa: Teoria, crítica e história da
tradução.
Orientador: Prof. Dr. Mauri Furlan
Florianópolis
2009
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que até hoje, de algum modo, fizeram da minha vida parte da
sua, contribuindo para a realização deste trabalho e para minha própria realização.
Agradeço especialmente aos meus pais, que sempre se doaram de forma
incondicional a mim, e ao meu irmão, que comigo cresceu e sempre me fez crescer.
À minha avó, Neusa, aos meus tios, Sandra e Fernando, e aos meus primos,
Guilherme e Isabela, que completam a parte essencial da minha família.
Ao Mauri, meu orientador neste trabalho, mestre e amigo, que me guia os passos
e me brinda com sua amizade desde que ingressei na vida acadêmica.
À Cíntia, que me compreende a ponto de me amar, e que com ternura me apoiou
durante todo o tempo em que escrevi este trabalho.
E a Deus, que me incita a buscá-Lo sempre que estou longe de mim.
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS ....................................................................................................... IV
LISTA DE QUADROS ......................................................................................................
V
RESUMO ............................................................................................................................
VI
ABSTRACT .........................................................................................................................
VII
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................
1
CAPÍTULO I ......................................................................................................................
6
1.1. A questão petroniana ............................................................................................
7
1.1.1. O tempo e o lugar ........................................................................................
7
1.1.2. O autor .........................................................................................................
14
1.1.3. O texto .........................................................................................................
16
1.2. A Roma de Petrônio ..............................................................................................
19
1.2.1 A dinastia Júlio-Cláudia ...............................................................................
19
1.2.2. As letras no tempo de Nero .........................................................................
23
1.3. Satyricon, sofisticada miscelânea .........................................................................
30
1.3.1. Confluência de gêneros literários ................................................................
30
1.3.2. Mimo............................................................................................................
33
1.3.3. Sátira menipéia ............................................................................................
34
1.3.4. Ficção prosimétrica grega ...........................................................................
39
1.3.5. Uma questão em aberto ...............................................................................
41
CAPÍTULO II .....................................................................................................................
43
2.1. Sutilezas do Petrônio poeta ...................................................................................
44
2.1.1. Reinventando o passado épico ....................................................................
44
2.1.1.1. Encolpius indignado ...........................................................................
48
2.1.1.2. Virgílio “transcrito” ...........................................................................
50
2.1.2. Outros poemas curtos ..................................................................................
51
2.1.2.1. Viver e comer .....................................................................................
52
2.1.2.2. A metáfora da queda ..........................................................................
53
2.1.2.3. Publilius Syrus ...................................................................................
54
2.1.2.4. Poeta sum ...........................................................................................
58
2.1.2.5. Geografia da luxúria ..........................................................................
60
2.1.2.6. Elegia sobre a calvície repentina .......................................................
62
2.1.2.7. Sexo como morte ...............................................................................
64
2.1.2.8. Dignus amore locus ...........................................................................
66
2.1.2.9. Encolpius “epicurista” .......................................................................
67
2.1.2.10. Dinheiro e Fortuna ...........................................................................
69
2.1.2.11. Tempestade no poema .....................................................................
71
2.1.3. A queda de Tróia, pelo Eumolpus de Petrônio ...........................................
73
2.1.3.1. A abertura ..........................................................................................
76
2.1.3.2. Escondidos no cavalo ........................................................................
78
2.1.3.3. Oh pátria! ...........................................................................................
79
21.3.4. Laocoonte ...........................................................................................
79
2.1.3.5. Ecce alia monstra ...............................................................................
80
2.1.3.6. Tróia embriagada, Tróia enganada ....................................................
82
CAPÍTULO III ...................................................................................................................
86
3.1. Teorias da tradução ...............................................................................................
87
3.1.1. Georges Mounin e a tradução de línguas antigas .......................................
87
3.1.2. Antoine Berman e a tradução da letra ........................................................ 93
3.1.3. Paulo H. Bitto e a tradução de poesia .........................................................
104
3.2. As edições brasileiras e seus tradutores ................................................................
109
3.2.1. Miguel Ruas (1970) ....................................................................................
109
3.2.2. Paulo Leminski (1985) ...............................................................................
110
3.2.3. Alex Marins (2003) .................................................................................... 112
3.2.4. Sandra Braga Bianchet (2004) ....................................................................
113
3.2.5. Cláudio Aquati (2008) ................................................................................
115
CAPÍTULO IV ...................................................................................................................
118
4.1. Reinventando o passado épico (traduções) ...........................................................
119
4.1.1. Encolpius indignado ....................................................................................
119
4.1.2. Virgílio “transcrito” ....................................................................................
126
4.2. A queda de Tróia, pelo Eumolpus de Petrônio (traduções) ..................................
130
4.2.1. A abertura ...................................................................................................
130
4.2.2. Escondidos no cavalo .................................................................................
134
4.2.3. Oh pátria! ....................................................................................................
136
4.2.4. Laocoonte ...................................................................................................
137
4.2.5. Ecce alia monstra ........................................................................................
140
4.2.6. Tróia embriagada, Tróia enganada .............................................................
145
CAPÍTULO V .....................................................................................................................
149
5.1. Outros poemas curtos (traduções) .........................................................................
150
5.1.1. Viver e comer .............................................................................................
150
5.1.2. A metáfora da queda ...................................................................................
155
5.1.3. Publilius Syrus ............................................................................................
157
5.1.4. Poeta sum ....................................................................................................
168
5.1.5. Geografia da luxúria ...................................................................................
177
5.1.6. Elegia sobre a calvície repentina ................................................................
184
5.1.7. Sexo como morte ........................................................................................
192
5.1.8. Dignus amore locus ....................................................................................
196
5.1.9. Encolpius “epicurista” ................................................................................
202
5.1.10. Dinheiro e Fortuna ....................................................................................
209
5.1.11. Tempestade no poema ..............................................................................
214
CONCLUSÃO ....................................................................................................................
224
6.1. Avaliação geral de cada tradutor ...........................................................................
225
6.1.1. Miguel Ruas ................................................................................................
225
6.1.2. Paulo Leminski ...........................................................................................
227
6.1.3. Alex Marins ................................................................................................
229
6.1.4. Sandra Braga Bianchet ...............................................................................
231
6.1.5. Cláudio Aquati ............................................................................................
233
6.2. A tradução e a letra de Petrônio: a experiência brasileira .....................................
237
6.3. Como a letra de Petrônio pode sobreviver 239
ANEXOS .............................................................................................................................
242
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................
268
LISTA DE TABELAS
1 Avaliação geral dos poemas traduzidos - Miguel Ruas ................................................
226
2 Sutilezas preservadas nas traduções que receberam avaliação 3 (ótima) - Miguel
Ruas ..............................................................................................................................
227
3 Avaliação geral dos poemas traduzidos – Paulo Leminski ..........................................
228
4 Sutilezas preservadas nas traduções que receberam avaliação 3 (ótima) - Paulo
Leminski .......................................................................................................................
229
5 Avaliação geral dos poemas traduzidos - Alex Marins ................................................
230
6 Sutilezas preservadas nas traduções que receberam avaliação 3 (ótima) - Alex
Marins ...........................................................................................................................
231
7 Avaliação geral dos poemas traduzidos - Sandra Braga Bianchet ............................... 231
8 Sutilezas preservadas nas traduções que receberam avaliação 3 (ótima) - Sandra
Braga Bianchet ............................................................................................................. 232
9 Avaliação geral dos poemas traduzidos - Claudio Aquati ............................................
234
10 Sutilezas preservadas nas traduções que receberam avaliação 3 (ótima) – Claudio
Aquati ...........................................................................................................................
235
LISTA DE QUADROS
1
Correspondências métricas e rítmicas ..........................................................................
105
2
Avaliação geral dos poemas traduzidos - Miguel Ruas ................................................
226
3 Avaliação geral dos poemas traduzidos – Paulo Leminski .........................................
228
4
Avaliação geral dos poemas traduzidos - Alex Marins ................................................
230
5 Avaliação geral dos poemas traduzidos - Sandra Braga Bianchet ...............................
232
6
Avaliação geral dos poemas traduzidos - Claudio Aquati ............................................
234
RESUMO
Habilidosas apropriações de gêneros populares da Antigüidade agregadas a uma
exploração contestadora do cânone greco-romano da época em que Satyricon foi escrito
reforçam a tese de que a obra de Petrônio seja antes um ambicioso projeto literário do
que uma reação moralizante à idade de Nero. Segundo alguns estudos recentes de
teóricos como Connors, Conte e Courtney, a combinação de prosa e verso em Satyricon
é inusitada e sofisticada. A exploração de vários níveis de manipulação da linguagem e
a complexa rede de trocadilhos evidenciadas por tais autores, ao invés de serem somente
detalhes que enriquecem o texto, constituem em alguns casos o principal trabalho
literário existente nele e implicam um cuidado redobrado ao tradutor. Por inspiração de
tais estudos, com base nas teorias da tradução de Mounin, Berman e Britto, neste
trabalho, traduções de quatorze poemas do Satyricon, feitas por cinco tradutores no
Brasil, são analisadas e submetidas a crítica.
Palavras-chave: Satyricon, Petrônio, Tradução poética.
ABSTRACT
Satyricon and poetic translation:
brazilian translations before crucial subtilities of the Petronius poetry
Smart appropriations of Antiquity’s popular genres aggregated to a contesting
exploration of the Greek-Roman canon from the time when Satyricon was written
strengthen the thesis that the Petronius’ workmanship is before an ambitious literary
project than a moralizing reaction to the age of Nero. According to some recent studies
of theorists like Connors, Conte and Courtney, the combination of prose and verse in
Satyricon is unusual and sophisticated. The exploration of some levels of language-
manipulation and the complex punning web evidenced for such authors, instead of
being only details that enrich the text, constitute in some cases the main existing literary
work in it and imply a redoubled care to the translator. For inspiration of such studies
and based on the translation theories of Mounin, Berman and Britto, in this work
translations of fourteen poems of Satyricon, made by five translators in Brazil, are
analyzed and submitted to critique.
Keywords: Satyricon, Petronius, Poetic translation.
1
INTRODUÇÃO
O Satyricon de Petrônio certamente não é apenas um retrato bem humorado do
submundo romano, no primeiro século da era cristã, como muitos indiscriminadamente
tendem a descrevê-lo. Estudos realizados em diferentes épocas, mas sobretudo
recentemente, vêm chamando a atenção para importantes aspectos da obra que nos
permitem vislumbrar sua grandeza propriamente literária. Habilidosas apropriações de
gêneros populares da Antigüidade agregadas a uma exploração contestadora do cânone
greco-romano da época em que foi escrito reforçam a opinião de que o Satyricon seja
antes um ambicioso projeto literário, “um livro sofisticado e escabroso”, do que uma
“reação moralizante à idade de Nero” (PANAYOTAKIS, 1995: 196).
Petrônio combina prosa e verso em sua obra. A tese mais aceita é a de que, ao
fazer isso, participa de uma tradição de sátira já existente em seu tempo, da qual Mênipo
de Gádara teria sido o pioneiro (BAKHTIN, 1981; FRYE, 1957). Alguns compartilham
a opinião de que o Satyricon em particular, ao lado das sátiras de Varro e Sêneca,
representa “uma transformação da sátira menipéia em uma paródia da tira romana”
(RELIHAN, 1993: 88). Estudos recentes ainda vinculam a obra de Petrônio a uma
tradição literária grega que misturava prosa e verso, denominada ficção prosimétrica,
cuja principal representante é uma obra que sobreviveu apenas em fragmentos, chamada
Iolaus (STEPHENS & WINKLER, 1995). Quais sejam as influências de Petrônio, em
um ponto concordância: a combinação de prosa e verso em Satyricon é
extremamente inusitada e altamente sofisticada (CONNORS, 1998).
Ainda que os poemas que permeiam a prosa do Satyricon possam parecer
simples e por vezes até medíocres, um estudo apurado dos procedimentos poéticos
usados por Petrônio pode revelar que eles estão repletos de sutilezas. Tais sutilezas, ao
invés de serem somente detalhes que enriquecem o texto, constituem em alguns casos o
principal trabalho literário existente nele. Tais sutilezas exigem um cuidado redobrado
do tradutor, que deve, pois, estar atento aos vários veis de manipulação da linguagem
e à complexa rede de trocadilhos tecida por Petrônio. Em outras palavras, as sutilezas
dos poemas do Satyricon representam a maior qualidade desses poemas e também
consistem na maior dificuldade para a tradução.
Mas por que a poesia em Satyricon é tão importante e, mais ainda, por que é
especialmente importante na análise e crítica de suas traduções? A obra de Petrônio faz
parte de um distinto grupo de obras cuja presença de poemas em meio à prosa, segundo
2
uma série de importantes estudiosos, é diferenciada pela relação dialógica que existe
entre uma e outra forma literária. Bakhtin e Frye, duas referências na discussão de
formas literárias mistas, mas sobretudo Peter Dronke, autor de Verse with Prose from
Petronius to Dante, chamam atenção para o desvio que Petrônio e alguns outros autores
realizam no curso de uma longa tradição literária, ao dar novas funções e potência ao
uso combinado de verso e prosa.
De acordo com Dronke (1994), a alternância de verso e prosa pode ser um
aspecto intrínseco à organização da obra, ou um aspecto incidental. Nas sátiras de
Mênipo de Gádara, assim como na literatura de seus predecessores e da maior parte de
seus consecutivos, o surgimento da poesia no meio da narrativa era incidental. Por
exemplo, nos escritos de Luciano de Samósata, o mais prolífico praticante da sátira
menipéia do mundo antigo, pouco ou nenhum verso, e onde tende a ser citado, ou
adaptado, para se obterem finais cômicos; apenas ocasionalmente é livremente
inventado. Em meio à imensa gama de obras que usam tanto verso como prosa na
Europa antiga e medieval, o Satyricon é uma das poucas “em que o verso é substância
ao invés de acidente, em que verso e prosa tornaram-se consubstanciais” (DRONKE,
1994: 2).
Como Bakhtin coloca, Satyricon, tal qual os diálogos platônicos, “mostra a
verdade não como algo dado ou imposto, mas como algo que emerge dialogicamente,
entre pessoas que procuram por ela juntas” (BAKHTIN, 1981: 98). No plano lingüístico
e estilístico, essa relação dialógica entre as representações de Petrônio se faz ainda mais
presente. Em termos de dicção e estilo, os elementos menipeus explorados por Petrônio
corroboram uma intencional falta de unidade e decoro; tomando emprestada a expressão
de Dronke, tendem a uma discors concordia. “As diferenças entre aquilo que os
personagens parecem e aquilo que eles são, entre seus discursos e suas ações, sua
retórica e sua natureza, são cruciais para quase todas as porções sobreviventes da obra”
(DRONKE, 1994: 9). Portanto, repletos de sutilezas, os poemas que em geral são
discursos proferidos pelos personagens – contradizem, por vezes, as ações e a descrição
de seus oradores, ora causando efeitos cômicos, por exemplo, ora dando ao leitor a
possibilidade de conjeturar os contra-sensos de uma Roma pervertida culturalmente.
Tanto prosa quanto verso são cuidadosamente concebidos por Petrônio, contudo
a grandeza de seu trabalho poético é discreta e sutil, e até agora não foi seriamente
considerada em nenhum estudo crítico das traduções publicadas no Brasil. Parece-nos,
portanto, que verificar o quanto e de que maneira as traduções brasileiras de Satyricon
3
contemplaram as sutilezas e demais propriedades particulares de seus poemas é algo
relevante, tendo em vista o valor deles mediante a totalidade da obra.
Neste trabalho são analisadas e criticadas cinco diferentes traduções de treze
poemas curtos e um poema longo; os poemas fazem parte do Satyricon, e cada tradutor
teve uma tradução completa da obra oficialmente publicada no Brasil. Entre os
objetivos subjacentes ao intento maior desse trabalho, estão:
aprofundar a discussão de questões sobre as especificidades da poesia de
Petrônio, levantadas nesta introdução, bem como sobre as polêmicas
filológicas a respeito de sua identidade, a datação da obra e a erradia
história dos manuscritos de Satyricon;
apresentar uma breve explanação sobre o contexto histórico cultural de
Petrônio e especialmente sobre o cenário literário a que ele pertenceu;
delimitar uma concepção de tradução literária adequada ao problema;
tecer considerações sobre os projetos e concepções de tradução
implícitos ou explícitos de cada um dos tradutores cujos textos serão
apreciados;
estudar cada poema elegido para a pesquisa a fim de evidenciar e
detalhar suas principais qualidades e, a partir desse estudo, analisar suas
traduções, com base na metodologia a ser explicitada.
Para analisar os poemas tomarei como base e inspiração trabalhos de Catherine
Connors, George Mounin, Antoine Berman e Paulo Henriques Britto. Ainda que
venhamos a recorrer a trabalhos de diversos outros autores, especialistas em Satyricon
ou em temas diretamente relacionados, Connors será a principal referência, o ponto de
partida para o estudo dos poemas latinos. A autora considera três diferentes aspectos (ou
posturas) de Petrônio como poeta: sua paródia épica através da novela, seu uso de
formas poéticas curtas e menos elevadas, e seus dois longos poemas sobre a queda de
Tróia e a Guerra Civil, que representam subprojetos muito particulares, embora
sintonizados com o restante da obra. Tendo em conta tais aspectos, e mantendo um
diálogo amplo com a tradição crítica do Satyricon, Connors analisa com minúcia cada
verso interpolado na prosa. Os procedimentos de Petrônio evidenciados em seus
trabalhos nos servirão de guia para eleger os elementos para os quais dirigiremos o olhar
na crítica das traduções.
4
Considerando que estamos por lidar com um texto escrito em uma língua cuja
sociedade já inexiste, o latim, optamos por assumir e desenvolver as idéias de Mounin a
respeito dos problemas teóricos concernentes à tradução de textos escritos em nguas
antigas, tendo em vista a especificidade de nosso problema. A principal referência tanto
teórica como metodológica será, no entanto, Berman. Sua concepção de texto literário,
em nosso entendimento, coincide plenamente com a poética de Petrônio, e seu conjunto
de categorias destinadas à análise de tradução literária, a “sistemática da destruição”,
nos parece igualmente conveniente para fazer um estudo crítico das traduções dos
poemas do Satyricon.
Também nos serão úteis algumas proposições de Britto, principalmente quando
se fizerem necessárias análises formais dos poemas. Aplicaremos alguns procedimentos
estabelecidos em seu método para análise e crítica de traduções poéticas método
baseado nos conceitos de perda e correspondência. Grosso modo, Britto propõe
relacionar todas as propriedades formais e semânticas do poema original a fim de buscar
“correspondências” no texto traduzido.
Os capítulos que compõe este trabalho visam a cumprir os objetivos anunciados,
no entanto não estão dispostos conforme a ordem que se poderia depreender de nossos
procedimentos metodológicos. A ordem dos capítulos pretende antes levar o leitor deste
trabalho ao encontro do texto e do contexto de Petrônio, para depois debruçar-se sobre o
problema da tradução propriamente. Embora a iniciativa de se estudar a fundo todas as
questões (históricas, culturais, lingüísticas, literárias etc.) subjacentes à obra e seu autor
decorra de nossas escolhas teóricas, entendemos que o leitor pode melhor compreender
a problemática de nosso trabalho se primeiro entender as razões que nos despertaram
um interesse extraordinário pela obra. Por isso, o primeiro capítulo traz um apanhado de
informações sobre a questão petroniana (identidade do autor, datação da obra e
estabelecimento do texto), sobre a época de Petrônio e seu cenário literário, e sobre os
principais gêneros literários manipulados no Satyricon. No segundo capítulo,
examinamos a fundo cada um dos poemas escolhidos para o trabalho, buscando
evidenciar os problemas de tradução existentes neles especialmente os mais sutis. Em
seguida, no terceiro capítulo, apresentamos e desenvolvemos as idéias dos teóricos que
escolhemos para fundamentar nossa análise crítica das traduções; ou seja, primeiro
apresentamos o texto e depois apresentamos a teoria da tradução que julgamos mais
apropriada para esse texto. Ainda no terceiro capítulo, damos informações gerais sobre
cada um dos cinco tradutores e as edições de suas traduções, e também comentamos,
5
dentro do possível, o projeto e a concepção de tradução de cada um. Por fim, partimos
para as análises das traduções, que se dividem, de acordo afinidades temáticas, entre o
quarto e o quinto capítulo.
6
CAPÍTULO I
1.1. A questão petroniana
1.1.1. O tempo e o lugar
1.1.2. O autor
1.1.3. O texto
1.2. A Roma de Petrônio
1.2.1. A dinastia Júlio-Cláudia
1.2.2. As letras no tempo de Nero
1.3. Satyricon, sofisticada miscelânea
1.3.1. Confluência de gêneros literários
1.3.2. Mimo
1.3.3. Sátira menipéia
1.3.4. Ficção prosimétrica grega
1.3.5. Uma questão em aberto
7
1.1. A questão petroniana
Toda sorte de conjecturas sobre a identidade do autor de Satyricon, o tempo em que foi
escrito, o lugar onde a história é ambientada, a extensão da obra original, a montagem
dos fragmentos restantes e sua relação com outras obras literárias da Antiguidade,
constitui aquilo que os estudiosos convencionaram chamar de “questão petroniana”
1
.
Tais pontos, que vêm sendo disputados há séculos pela crítica especializada,
renderam vasta bibliografia, parte da qual inspirou este trabalho. Antes, pois, de tratar
com mais profundidade os pontos específicos contidos nos capítulos que se seguem a
este, é importante expor alguns aspectos gerais que compõem a temática.
1.1.1. O tempo e o lugar
Por muito tempo, o lugar onde se passa a narrativa realista de Satyricon e o ano
estimado em que ela teria acontecido foram pontos tratados superficialmente dentro da
questão petroniana. Apenas recentemente alguns estudiosos investiram seus esforços
para alçá-los a um patamar importante. Entre eles, destaca-se K. F. C. Rose (1962), que
reclama por uma atenção especial para tais pontos, argumentando que eles têm uma
relevância considerável para uma questão mais ampla: a técnica realista de Petrônio.
Para Rose (1962a), Petrônio não fornece detalhes realísticos em abundância; ele
varia em quantidade e freqüência conforme a matéria que trata. Por exemplo, na Cena
Trimalchionis (Jantar de Trimalchio), o maior e mais completo episódio entre os
fragmentos restantes da obra, ele obviamente se empenha por fornecer uma pintura viva
da cidade e de seus habitantes. Já no episódio que se passa em Crotona a preocupação
maior é com a narração das aventuras em si, que se referem muito mais à captura dos
heróis e às intrigas amorosas, e a descrição espacial é deixada em segundo plano.
Portanto, em geral, Petrônio emprega graus variados de realismo, dependendo da
matéria em questão; e como alerta Rose (1962a), devemos nos precaver especialmente
do exagero nos momentos em que Petrônio está satirizando, assim como quando está
descrevendo.
Para ilustrar isso, podemos, por exemplo, comparar a conversa realista e a
descrição dos convivas de Trimalchio com a exagerada vulgaridade do próprio
1
A expressão foi cunhada por Enzo V. Marmorale, que em 1948 publicou seu controverso La questione
petroniana.
8
Trimalchio e não é difícil encontrar outros exemplos semelhantes a este ao longo da
obra. Este aspecto da técnica realista de Petrônio, ou talvez de sua poética, está no cerne
do problema que motiva esta dissertação, pois as sutilezas com que Petrônio tempera os
poemas presentes em meio à narrativa são quase sempre cruciais para dar o tom à fala
dos personagens que os proferem.
A “atmosfera” é em muitos casos um importante aspecto da comédia ou sátira de
Petrônio, pois que o lugar e o tempo em que acontecem certos episódios são dados
relevantes. Todavia não é para a composição da atmosfera de um episódio sujeito à
sátira que os detalhes espaço-temporais se fazem importantes. Como ainda veremos
com minúcia, Petrônio parodia, por exemplo, poemas de Lucano e Pérsio, dois poetas
que lhe são contemporâneos e de algum modo rivais (PARATORE, 1987), e para isso
dados temporais são especialmente relevantes, pois determinam o efeito de uma
paródia.
Além disso, a obra que temos, como se sabe, está toda em fragmentos. Por
vezes, ao longo da narrativa menções a cidades por onde os personagens principais
teriam passado ou a locais específicos destas cidades. Nesses casos, se não houver uma
preocupação com certa reconstituição estimada do itinerário desses personagens, corre-
se o risco de perder detalhes importantes e mal-entender outros.
A Cena Trimalchionis é o episódio que oferece mais informações espaciais.
Passa-se com certeza em uma cidade litorânea
2
, que, pelas menções a Cápua, Cumas e
Baias, pertence à região da Campânia. Mommsen (1978) defende que a Cena se passa
em Cumas, mas esta idéia é muito pouco aceita. Nápoles é o local apontado pela
tradição, desde a idade média. Já Puteoli (também conhecida por Puzzuoli) foi sugerida
pela primeira vez por Ignarra, no séc. XVIII, mas veio a ser de fato defendida por
Ianelli, no século seguinte. Hoje em dia, esta última é admitida como o local da Cena
com grande adesão dos estudiosos (MOMIGLIANO, 1944; ROSE, 1962a).
O único ponto a favor de Nápoles é que Encolpius
3
descreve a cidade como uma
Graeca urbs: Nápoles é originariamente uma cidade grega. Qual tenha sido a intenção
de Petrônio, aos estudiosos parece claro que se trata de uma cidade tipicamente romana,
tanto pelas instituições que se apresentam durante a Cena quanto pela caracterização
dos personagens, considerando que elementos e pessoas estrangeiras nela. Ademais,
2
Cf. Cap. 81.1 e Cap. 90.2 do Satyricon.
3
Cf. 81.3 do Satyricon.
9
acredita-se também que Encolpius quisesse dizer o mesmo que Juvenal, quando este
escreveu sobre Roma:
non possum ferre, Quirites,
Graecam urbem.
4
não posso agüentar, oh Romanos
uma cidade grega
O principal argumento de Mommsen a favor de Cumas é que no capítulo 64,
versículo 5, o magistrado chefe é referido como um praetor, o que eliminaria as outras
hipóteses, pois apenas Cumas, entre as três cidades, era uma pretoria. Porém na Cena os
magistrados são referidos como aediles,
5
e o termo praetor é por vezes encontrado num
sentido não-técnico (ROSE, 1962b).
6
De outro modo, não nada mais que indique
Cumas ao invés de Puteoli.
A objeção tradicional a Puteoli, e a princípio a única, é a passagem da Graeca
urbs, comentada acima. Ademais, todos os detalhes da Cena levam a crer que ela se
passa em Puteoli. Não sentido em listar todos os detalhes, uma vez que coisas como
forum, popinae, insulae e uma senhora vendendo hortaliças remetem quase que a
qualquer cidade italiana. Todavia a cidade da Campânia em questão o é pequena,
considerando que Encolpius se perdeu nela duas vezes
7
, considerando que um porto
onde grandes navios como o de Lichas podem atracar
8
, e considerando ainda que
Trimalchio
9
viveu nessa cidade durante a sua carreira de comerciante e construiu
grandes embarcações ali. O loquaz Hermeros
10
nos conta que há prosperidade na cidade
e os lamentos de Ganymede são claramente aqueles de um típico personagem urbano; é
relevante observar a maneira como Echion o repreende
11
.
Como foi comentado, a cidade é administrada por aediles, e além disso, tal
como é tratada pelos habitantes locais, ela tem o status de uma colonia
12
o que
elimina a hipótese de Nápoles. A cidade ainda tem uma arena, onde gládios teriam sido
4
3.60-61 das Sátiras de Juvenal.
5
Cf. Caps. 44.3 e 53.9 do Satyricon.
6
O praetor era o magistrado que, na Roma antiga, distribuía a justiça, enquanto o aedil era magistrado
que se incumbia da inspeção e conservação dos edifícios públicos. O praetor é correspondente ao juiz
moderno e existia em cidades importantes do império, onde era necessário afirmar o poder romano e
manter a ordem. Já os aediles desempenhavam funções administrativas e se encontravam também em
cidades menores do império
7
Cf. Caps. 6.3 e 79.2 do Satyricon.
8
Cf. Caps 99.5 e 101.9 do Satyricon.
9
Cf. Cap. 76.5 do Satyricon.
10
Cf. Cap. 38 do Satyricon.
11
Cf. Caps. 44.1-3, 16 e 45.4 do Satyricon.
12
Cf. Caps 44.12, 57.9 e 76.10 do Satyricon.
10
promovidos por candidatos a cargos públicos
13
. A prova é, de todo modo, relativamente
simples: a cidade é muito movimentada para ser Cumas, e Nápoles não era uma colonia
até a época antonina.
uma série de outros pontos dentro da questão. Uns suscitam mais
controvérsias ainda; outros reforçam a hipótese de Puteoli. Por exemplo, a existência de
uma pinacoteca no pórtico de um templo, repleta de obras de arte de valor inestimável, é
de algum modo surpreendente. No entanto a passagem
14
é bastante estilizada: Petrônio
faz com que Encolpius confunda as cópias com os originais. As apostas de Trimalchio
nas corridas de carruagem
15
provavelmente dizem respeito às corridas em Roma. A
basilica à qual Hermeros se refere
16
, que teria sido construída cerca de 40 anos antes, é
possível que seja a Basilica Augusta Anniana, de Puteoli. A crypta onde Quartilla
organiza seu ritual de sacrifício
17
não tem necessariamente nada a ver com a crypta
Neapolitana. Estes outros tantos detalhes ainda motivam a polêmica, mas a verdade é
que as objeções a Puteoli têm sido virtuais, e as objeções a Cumas e Nápoles têm sido,
no entanto, fatais.
Em face de tantas controvérsias e considerando o caráter ficcional da obra, não
podemos deixar de cogitar a hipótese de que seu ambiente também o seja, de que seu
ambiente não seja real e histórico, mas ficcional. Se Petrônio nos mostra tanta
capacidade inventiva, tanto potencial criativo, fazendo de tudo à sua volta matéria-
prima para sua literatura, por que o ambiente do Satyricon também não seria outra
invenção de Petrônio, travestido de referências reais? O fato de que as referências
espaciais nos a leve a imaginar certos locais do império romano em nada desmonta essa
hipótese. Afinal, Petrônio naturalmente tiraria de sua experiência real a base para
imaginar lugares ficcionais. Pelo contrário, o grande número de contradições e
imprecisões condiz muito mais com um propósito ficcional do que com um propósito
realista.
Rose (1962a; 1962b), como Momigliano (1944) e Aquati (2008), endossa a
suposição de que o romance começa em Massília (atual Marselha). O que teria passado
no percurso de Massília até Baias onde se acredita que começou a ação dos
13
Cf. Cap. 45.4-6 do Satyricon.
14
Cf. Cap. 83.1 do Satyricon.
15
Cf. Cap. 70.13 do Satyricon.
16
Cf. Cap. 57.9 do Satyricon.
17
Cf. Cap. 16.3 do Satyricon.
11
fragmentos restantes é desconhecido. De lá, Encolpius vai então a Puteoli (ou
Pozzuoli, como alguns preferem), volta a Baias, e depois viaja até Crotona.
Como ainda veremos melhor, o motivo dramático do romance é a fúria do deus
Príapo com o herói Encolpius, quem o teria ofendido provavelmente por profanar um
culto a ele. Isto leva alguns a crerem que o ponto final do itinerário dos heróis é
Lâmpsaco (atual Lapseki, na Turquia), onde se encontra um templo de Príapo.
Encolpius estaria estão numa jornada até este templo, a fim de retratar-se com o deus.
Hoje em dia, como muito tempo, é certamente um consenso que Petrônio
tenha escrito sua obra durante o reinado de Nero, entre os anos 54 e 68 de nossa era. Em
meados do último século, no entanto, surgiram alguns trabalhos que tentaram atacar
esse consenso, sugerindo que ela teria sido escrita no tempo de Antonino Pio, entre 138
e 161. Isto incitou uma série de estudiosos a contra-atacar esses trabalhos, o que fez
com que surgissem novos e mais fortes argumentos para sustentar a hipótese tradicional.
Rowel (apud ROSE, 1962b), num artigo publicado em 1958, deu fortes razões
para comprovar que o gladiador Petraites, mencionado e admirado por Trimalchio, é
uma figura neroniana, reclamando que isso seria suficiente para provar que a obra
pertence ao tempo de Nero. No entanto, como considera Rose (1962b), isso não é
convincente o suficiente, que um gladiador de mesmo nome poderia ter existido em
qualquer outra época do império romano. Mas, considerando que tenha havido um
gladiador chamado Petraites no tempo de Nero, é possível tecer argumentos
relativamente mais fortes para endossar a tese de Rowel.
No Satyricon, um cantor chamado Menecrates
18
e um gladiador chamado
Petraites
19
são referidos como sendo contemporâneos à ão. ainda uma menção a
outro importante cantor chamado Apelles
20
, cujo nascimento (floruit) aconteceu cerca
de 30 anos antes do tempo da ação. Ocorre, pois, que temos um gladiador chamado
Petraites, comprovadamente famoso, no tempo de Nero, e um cantor chamado Apelles
no tempo de Gaius (Calígula). Ora, é virtualmente impossível que uma coincidência
assim pudesse acontecer em algum outro tempo senão no de Nero.
Tanto Rose (1962b) como Marmorale (1948) acreditam que estes, além de todo
o background econômico e social, são os únicos meios legítimos de argumentar e
18
Cf. Cap. 73.3 do Satyricon.
19
Cf. Caps. 52.3 e 71.6 do Satyricon.
20
Cf. Cap. 64.4 do Satyricon.
12
provar que a obra data do tempo de Nero. Centenas de outras alusões no Satyricon têm
sido percebidas, mas elas todas podem ser contestadas facilmente.
É todavia importante mencionar que os estudiosos custaram a admitir que o
tempo da ação em Satyricon seja contemporâneo à sua composição. Em se tratando de
uma obra que tem como um de seus principais atributos a sátira de costumes, isto é
evidentemente estranho, pois o humor de Petrônio é claramente realista, e está, pois,
ligado a figuras históricas, muito provavelmente conhecidas dele.
Seguindo o raciocínio de Rose (1962b), o único argumento razoável contra essa
conclusão aparentemente natural é que Trimalchio, que se diz Maecenatianus quando
chora sobre sua futura tumba, no capítulo 71, teria sido certa vez escravo de Maecenas
(morto em 8 a.C.) pelo que Trimalchio deveria ter pelo menos 80 anos ao final do
reinado de Nero. A expectativa de vida dos romanos nunca foi tão alta, eles chegavam,
no máximo, aos 60 anos. No episódio da tumba, Trimalchio pergunta a Encolpius se a
inscrição que tinha imaginado para ela estava boa, e recita-lhe a pretensa inscrição,
dizendo que foi escravo do glorioso Maecenas e que foi eleito por ele seu servo mais
importante. No entanto, no capítulo 30, quando Encolpius, assim que tinha chegado à
ceia, no triclínio uma inscrição parecida, não havia nenhuma menção ao qualquer
Maecenas. Por isso, é bem possível que o clamor de Trimalchio por seu rico, importante
e suposto ex-amo, pode ser tão vanglorioso quanto falso perfeitamente condizente
com o perfil do personagem.
Alguns estudiosos com autoridade na questão petroniana, como Paratore (1987),
Terzaghi (1933) e Bagnani (1954), negligenciam de alguma forma a busca de uma
precisão maior na datação da narrativa de Petrônio. Isso, porém, para este presente
trabalho tem alguma importância, especialmente no que tange o comportamento de
Petrônio em relação a seus pares ou rivais literários. Certas sutilezas com que permeia
seus poemas aparentemente têm relação direta com o diálogo que pretendia manter ou
com a crítica que desejava fazer a seus contemporâneos escritores.
A obra, pois, pode ser datada do final do reinado de Nero (que durou de 54 a 68
d.C.), que o poema sobre a Guerra Civil apresenta similaridade com diversas
passagens do de Bello Civili escrito por Lucano (39-65 d.C.) ao final de sua vida.
Ademais, pouco se tem observado, como sugere Stubbe (1933 apud ROSE, 1962b), que
o final do poema de Petrônio, por exemplo, não apresenta apenas similaridades, mas é
de fato um eco do poema de Lucano. A menos que isso seja coincidência (considerando
que tanto em Petrônio como em Lucano a passagem final trata da resolução de uma
13
dúvida), pode-se deduzir que Petrônio conhecia os versos de Lucano. Portanto, a data
limite para a composição de Petrônio, o terminus post quem, é aquela na qual ele teria
tomado conhecimento dos versos finais de Lucano. Antes disso ele não poderia ter feito
sua paródia.
Haffter (apud MOMIGLIANO, 1944) acredita que Lucano não pretendia ir além
com o tema das guerras civis, porém veio a falecer antes de finalizar propriamente a
obra, deixando algumas passagens mal acabadas. Esta teoria é apoiada pelo fato de que
Suetônio, em Vitae Lucani, enquanto discute a incompletude do De Bello Civili,
menciona apenas a falta de uma emendatio, nada mais. Contudo Statius, poeta latino do
séc. I, em suas epigramas, parece sugerir que Lucano quisera escrever mais (ROSE,
1962b). Se Haffter estiver certo, então Lucano deve ter recitado sua pretendida
passagem final pouco tempo antes da morte. Mas apenas seus primeiros três livros
foram publicados em vida, e pelas desavenças com Nero, ele se encontrava sem
condições de recitar em público o resto de seu épico. É improvável que ele tenha
recitado mesmo num evento privado passagens de um livro inacabado, e é difícil
enxergar por que Petrônio introduziria em seu pastiche uma alusão a uma passagem
desconhecida, que supostamente tivesse escutado num recital privado de Lucano.
Ademais, Petrônio não demonstra muita simpatia por Lucano e, reiterando, num tempo
em que Lucano se encontrava fora do círculo predileto do imperador é improvável que o
“Árbitro da Elegância” de Nero – tal como Petrônio é descrito por Tácito fosse
convidado para participar do círculo literário estóico, ao qual Lucano pertencia.
Em todo caso, é comum acreditar que Lucano pretendeu ir mais além com seu
épico histórico, e que nesse trecho em questão ele não pretendesse de fato uma
conclusão. A partir disso, depreende-se que a imitação de Petrônio do “final” deve ter
sido escrita depois da morte de Lucano, em 30 de abril de 65, como recorda Rose
(1962b) a partir dos estudos de Heinse e Mössler. Isso fica claro pelo tom de Petrônio,
que obviamente insinua um ataque a Lucano, mas que também sugere que Lucano
estivesse morto (cap. 118): multos iuvenes carmen decepit ... ecce belli civilis ingens
opus quisquis attigerit, nisi plenus litteris sub onere labetur ... etiamsi nondum recepit
ultimam manum.(a poesia decepcionou muitos jovens ... a propósito, o tema das
guerras civis, quem escolhê-lo sem ser grande literato acaba sendo derrubado por este
encargo ... ainda que não tenha recebido a última mão.)
É de se esperar que a crítica e o pastiche de Petrônio tivessem sido escritos logo
após a morte de Lucano, quando a maior parte de seu poema ainda era recente para os
14
círculos literários não-estóicos. Isto se confirma pela interessante alusão de Petrônio no
capítulo 128 às vãs esperanças de se encontrar um tesouro enterrado. Os versos desse
capítulo, considerando que Petrônio os tivesse escrito antes da primavera de 65,
parecem ser claramente uma referência irônica ao escândalo de Caesellius Bassus e os
lendários tesouros da Rainha Dido. Tácito, no livro 16 dos Annais, lembra que no ano
65 uma longa busca foi feita no norte da África por esses tesouros. Portanto, a alusão de
Petrônio à futilidade da busca não poderia ter sido feita antes do começo do verão.
Logo, o período compreendido entre maio e julho é provavelmente a data da Bellum
Civile de Petrônio.
É provável que o uso que Petrônio faz das epístolas de Sêneca nos confirma esta
data. A epístola 91 de neca foi escrita antes de julho de 64, que remete ao incêndio
em Lugdunum, que ocorreu antes do incêndio em Roma (HIRSCHFELD, 1897 apud
ROSE, 1962b). Assim, as epístolas de 92 a 124 teriam sido escritas depois de julho de
64 e antes de maio de 65 (assumindo, como é razoável, que as epístolas estão em ordem
cronológica). O capítulo 118 de Petrônio contém vários possíveis ecos de Sêneca que se
podem encontrar nessas últimas epístolas, e como admite Collignon (1982), lingüista
autor de uma das edições mais bem cuidadas do Satyricon, Sêneca pode muito
provavelmente ter imitado Petrônio.
Enfim, parece não haver uma data precisa da composição da Cena Trimalchionis
e tampouco dos episódios precedentes (ROSE, 1962b), mas o período compreendido
entre o final de 64 e o verão de 65 é uma boa estimava para a composição do que nos
resta do Satyricon.
1.1.2. O autor
São poucos e incertos os registros que nos descrevem o suposto autor de Satyricon. O
mais completo entre eles se encontra nos Annales (ca. 115-117 d.C.), de Tácito (55-117
d.C.), um dos maiores historiadores e prosadores romanos. Tácito nos fala de certo Caio
Petrônio, que teria sido cortesão de Nero, e que teria escrito uma narrativa satirizando os
costumes deste imperador e as baixezas de seu reinado. Esta informação, pela aparente
remissão à Cena Trimalchionis, é basicamente a que desde sempre sustentou a tese de
que o Petrônio de Tácito é mesmo o criador de Encolpius e Trimalchio.
Todavia, Plínio-o-Velho, Plutarco, Macróbio, Isidoro de Servilha e ainda João
de Salisbury também fazem menções a um Petrônio. Nos registros, a discordância em
15
relação ao prenome desse Petrônio, que ora é apresentado como Caio, ora como Públio
ou Tito, é um dos aspectos que alimentam a polêmica a respeito da identidade do autor.
Confrontemos, pois, algumas destas menções, começando pela de Tácito, em
Annales, livro 16, capítulos 18 e 19:
Tratarei um pouco mais detidamente o que respeita a Caio Petrônio.
Consagrava o dia ao sono e a noite aos deveres e prazeres da vida. Se outros
alcançam nomeada pelo trabalho, ele conseguiu-a pela voluptuosidade. E não
tinha a reputação de um homem abismado no deboche, como a maior parte dos
dissipadores, mas a dum voluptuoso, verdadeiro conhecedor do sensualismo
refinado. A indiferença mesmo e o abandono que afixava nas suas ações e nas
suas palavras davam-lhe um ar de simplicidade de que tiravam uma graça
nova. Mas viu-se, contudo, procônsul na Bitínia, e em seguida cônsul,
demonstrar vigor e capacidade. Voltando depois aos vícios, ou à imitação
calculada dos vícios, foi admitido na corte entre os favoritos de predileção.
Nela, era o árbitro do bom gosto; nada mais agradável, mais delicado, para um
príncipe embaraçado na escolha, do que o que lhe era recomendado pelo
sufrágio de Petrônio. Tigelino teve ciúme deste favor: julgou ter um rival mais
hábil do que ele na ciência das voluptuosidades. Dirige-se, pois, à crueldade do
príncipe, contra a qual não podiam alcançar primazia outras paixões, e
denuncia Petrônio como amigo de Cevino: um delator tinha sido comprado
entre seus escravos, sendo outros, a maior parte, lançados nos ferros, e
proibida a defesa ao acusado.
O imperador achava-se então na Campânia, e Petrônio tinha-o seguido até
Cumas, onde recebeu ordem de ficar. Não quis definhar-se entre o temor e a
esperança; e, todavia, não quis também lançar fora bruscamente a vida. Abriu
as veias; depois fechou-as; voltou a abri-las, falando com os seus amigos e
escutando-os: nessas conversas, nada de grave, nenhuma ostentação de
coragem; nenhumas reflexões sobre a imortalidade da alma ou máximas de
filósofos; não queria ouvir senão versos joviais, e poesias ligeiras.
Recompensou alguns escravos, castigou outros; saiu mesmo de casa; por fim,
entregou-se ao sono, para que a sua morte, ainda que forçada, parecesse
natural. Não procurou, como a maior parte dos que pereciam, lisonjear por seu
codicilo ou Nero, os nomes de jovens impudicos e de mulheres perdidas,
traçou a descrição dos deboches de Nero, com os mais monstruosos
refinamentos, e enviou-lhe este escrito fechado com o seu sinete; depois
quebrou o anel, receando que mais tarde viesse a servir para fazer vítimas.
21
Plínio-o-Velho, em Naturalis historia, capítulo 37, versículo 20:
Tito Petrônio, membro do consulado, a ponto de morrer por causa da inveja de
Nero, tendo sido deserdado de seu círculo predileto, quebrou uma preciosa
taça de fluorita adquirida pelo preço de trezentos mil sestércios.
22
Plutarco, em Quomodo adulator ab amico internoscatur:
(...) quando se culpam os devassos e esbanjadores por uma vida feita de
maldades e obscenidades (como Tito Petrônio fez com Nero).
23
21
Tradução direta do latim ao português por Manuel Losa (PARATORE, 1983: 637-638).
22
Tradução minha a partir do texto latino estabelecido por C.D. Fisher (1906).
23
Tradução minha a partir do texto latino estabelecido por Goodwin (1878).
16
Um escólio à sexta sátira de Juvenal nos fala de uma Pôncia, filha de um Públio
Petrônio, que teria sido vítima de Nero (PARATORE, 1983). Qual seja seu verdadeiro
prenome, todos os registros coincidem que esse personagem, Petrônio, foi alguém
malogrado por Nero, e dada a completude do relato de cito, a tradição costuma
designar o autor de Satyricon por Caio Petrônio Árbitro, ou apenas Petrônio Árbitro.
Além disso, a narrativa está repleta de alusões a fatos ocorridos nos tempos de Tibério,
Calígula e sobretudo no de Nero, o que endossa a associação tradicionalmente feita
entre esse Petrônio mencionado pelos autores antigos e o autor de Satyricon.
1.1.3. O texto
Assim Ettore Paratore (1983: 638) abre seu conhecido ensaio sobre o Satyricon:
Manuscritos de vária natureza e extensão, os mais antigos e os mais lacunosos
dos quais remontam ao século IX, transmitiram-nos fragmentos duma obra
narrativa, que tem a forma de satura Menippea, é intitulada Saturae ou
Satyricon (mas a tradição satírica que toma o seu ponto de partida nos Sátiros,
sobretudo a desinência grega do título e o conteúdo forte e audazmente erótico
da obra impõem a grafia Satyricon) e é atribuída a um Petronius Arbiter ou,
nalguns manuscritos, C. Petronius Arbiter.
Sabe-se que o texto de Petrônio foi muito copiado ao longo da idade média
(COURTNEY, 2001) e que inclusive se tornou um best-seller entre os soldados
romanos (LEMINSKI, 1985). Curiosidades à parte, ocorreu que entrementes a maior
parte da obra se perdeu. O grosso daquilo que hoje se conhece de Satyricon foi
oficializado no séc. XVII, em 1664, quando pelos esforços de Pierre Pettit sucedeu-se
sua primeira edição impressa, contendo fragmentos dos livros XIV, XV e XVI, três dos
hipotéticos 24 livros que comporiam toda a obra (COURTNEY, 2001). As partes
faltantes, as lacunas destes livros que restaram, foram supostamente preenchidas por um
certo Nodot, que em 1692 publicou o Satyricon contendo alguns enxertos (SPALDING,
1968). As edições modernas costumam trazer esses enxertos de Nodot entre colchetes.
Entre as edições críticas mais bem reputadas, especialmente pelo tratamento que
dão ao texto latino e pelo aparato crítico que o acompanha, estão as de Bücheler (1862),
Heraeus (1922), Ernout (1922), Sage (1929), M. Rat (1934) e a Konrad Mueller (1961),
cuja excelência é até hoje uma unanimidade no âmbito dos estudos clássicos. Das cinco
traduções que serão analisadas mais adiante, apenas duas explicitam a edição de onde
obtiveram o texto latino: tanto Bianchet como Aquati afirmam terem se baseado no
texto estabelecido por Ernout.
17
O título da obra é outro motivo de contenda, pois também é incerto. O nome
atualmente admitido é atribuído a Marius Victorinus, um gramático do século IV, que a
chamou de Satyricon. Um título disposto assim poderia ser um genitivo plural grego
com libri implícito (CONNORS, 1998). A palavra satyricon (ou satiricon, como
também é encontrada) é composta por satyra (ou satira) e pelo sufixo icus, que significa
“tem relação com”. Ou seja, um livro que tem relação com sátiras. Alguns estudiosos,
no entanto, preferem chamar a obra de Satyrica por crer na existência de uma analogia
ao título de novelas gregas da época, tal como Aethiopica, Ephesiaca, Babyloniaca e
outras. De qualquer modo, um trocadilho de palavras entre satura, uma mistura
gastronômica ou literária, e satyrica, coisas associadas com sátiras eróticas gregas, era
disponível aos leitores.
Outra questão relevante sobre o texto diz respeito a uma série de poemas
atribuídos a Petrônio, que no séc. XII apareceram num florilégio de autores latinos,
conhecido como Florilegio Gallicum (CONNORS, 1998; AZEVEDO, 1962;
MUELLER, 1995, WEIS, 1943). Quase todos estes poemas são epigramas, e a razão
pela qual se os atribuem a Petrônio está diretamente relacionada com o tema desta
dissertação: as matérias tratadas, a maneira como o gênero poético é manipulado
transgressivamente e a fina ironia sobressalente fazem crer que tais poemas poderiam
integrar perfeitamente o Satyricon (CONNORS, 1998).
Todavia dessas epigramas não se conhece nenhuma tradução publicada em
língua portuguesa, e ademais não poderiam estar presentes neste trabalho por uma
simples e definitiva razão: como ainda será mais bem enfatizado, as sutilezas poéticas
de Petrônio que aqui importam estão diretamente ligadas à caracterização dos
personagens que proferem os poemas e ao contexto da narrativa. É verdade que também
estão ligadas ao posicionamento crítico de Petrônio em relação às escolas literárias de
seu tempo, a seus pares e rivais, e nesse caso mesmo um poema isolado, ainda que não
fizesse parte do Satyricon hoje estabelecido, poderia compor o corpus deste trabalho.
No entanto, as epigramas especialmente, mais do que qualquer outra forma poética
usada por Petrônio, estão relacionadas à sua exploração da literatura popular e logo
teriam de ser ditas, em um específico contexto narrativo, por algum personagem, para
que certos efeitos cômicos pudessem ser percebidos (ABBOTT, 1907). Como estão
isoladas, pela natureza e especificidade do problema desta pesquisa, essas epigramas
não poderão ser contempladas.
18
1.2. A Roma de Petrônio
Como vimos, Petrônio muito provavelmente escrevera sua obra durante o reinado de
Nero, conquanto tenha vivido ou certamente se inteirado dos principais acontecimentos
da chamada dinastia Júlio-Cláudia (de 14 a 68 d.C.), que compreende os reinados de
Tibério, Calígula, Cláudio e Nero, consecutivamente, e é posterior ao reinado de
Augusto. Este período é ainda enquadrado na fase clássica da cultura romana, embora
seja por muitos considerado um período de decadência anunciada. Tal estado é decerto
refletido e dilatado no panorama romano traçado por Petrônio, pelo que seja interessante
deter-se um pouco sobre suas particularidades. Além disso, inteirar-se do estado geral
das letras nesse período e particularmente do posicionamento de nosso autor perante as
correntes artísticas e filosófico-literárias contemporâneas é imprescindível.
1.2.1. A dinastia Júlio-Cláudia
A partir de 14 d.C., ano da morte de Augusto – o princeps, sobrinho de César –
costuma-se admitir que o mundo romano inicia o seu descenso. A despeito da
impecabilidade que atribuem ao governo de Augusto, cabe admitir que ainda nele
tiveram início os principais problemas que seus quatro sucessores enfrentariam.
É verdade que Augusto conduziu com brilho o estado romano por mais de 40
anos, buscando manter a paz e a solidez desta instituição a qualquer custa
(ROSTOVTZEFF, 1977). Todavia não tinha o mesmo espírito expansionista de seu tio,
que tanto fortaleceu Roma e lhe impôs uma missão civilizatória; e embora usasse a
vocação agrícola do povo romano como elemento chave da propaganda de seu governo,
acabou por preterir os agricultores, pequenos proprietários de terra. Como nos informa
Corassin (1988), forçado pela oligarquia senatória, Augusto de algum modo desfez esta
classe de pequenos proprietários, distribuindo terras aos veteranos, favorecendo o
surgimento de grandes latifúndios e a ampliação do trabalho escravo. Com isso, aos
poucos a população dividiu-se entre uma aristocracia restrita de grandes proprietários,
cada qual com seu exército de escravos, uma plebe ociosa e revoltada que se
concentrava na cidade, parasitando a casa imperial, e os círculos cada vez maiores de
negociantes, libertos e delatores de profissão.
Este desaparecimento progressivo do trabalho agrícola dos livres e esta extensão
mortífera do latifúndio tinham começado também noutras regiões do império,
19
especialmente no Oriente: cidades famosas decaíam e degradavam-se a aldeias.
No romance de Petrônio, que nos oferece tantos motivos interessantes de vida
vivida, aponta-se frequentemente para esta degradação progressiva da vida nos
lugares consagrados por estas memórias gloriosas. (PARATORE, 1987: 536)
Um dos principais problemas enfrentados por Augusto foi o da redução de
milícias. O exército romano fora tradicionalmente ligado à população de homens livres
que trabalhavam no campo. Segundo Alfoldy (1989), aos legionários rurais eram
oferecidas como recompensa generosas porções das terras conquistadas; isso contribuía
para, entre outras coisas, a manutenção da crescente taxa demográfica do império e para
assegurar a existência de cidadãos romanos por todo o território imperial. Como
Augusto não tinha uma inclinação bélica, voltada para a conquista, e como acabou por
enfraquecer e quase extinguir a classe de pequenos proprietários agrícolas, o império
começou a enfrentar um problema crucial: a redução das milícias, obviamente, e a crise
das finanças imperiais (ALFOLDY, 1989).
O novo sustento da economia romana eram as atividades comerciais e a indústria
nascente. As relações comerciais com o oriente cresciam sempre mais, porém o dinheiro
ficava na mão dos cavalheiros, que na maioria agora eram orientais. Estes libertos
(como os retratados por Petrônio na Cena Trimalchionis) não asseguravam uma ligação
estreita com o poder central de Roma, porque não lhes interessava o investimento de
dinheiro no jogo político dos patrícios (CORASSIN, 1988).
Augusto, que tinha a intenção de manter herdeiros de sangue no poder, perdeu
todos os parentes mais próximos, e segundo Rostovtzeff (1977), ele mesmo teve uma
saúde muito frágil durante toda a vida. Ao pressentir que morreria, teve de adotar o
único membro de sua família capaz de suportar o peso de um governo: Tibério, filho de
sua esposa Lívia com o primeiro marido. A partir de então, até o suicido de Nero, o
trono seria assumido por membros da família Cláudia, sendo que os dois primeiros
(Tibério e Calígula), foram adotados pela família de César e Augusto, a chamada casa
Júlia; daí o nome dado à dinastia desse período.
Tibério (42 a.C. - 37 d.C.), embora tivesse sido um general bem sucedido,
quando teve o império em suas mãos, assim como Augusto, não quis imprimir-lhe um
caráter expansionista, voltado para as guerras, para a conquista de novos domínios.
Procurou conservar o que existia e manter sobretudo a paz, sem maiores programas ou
pretensões governamentais. Segundo Alfoldy (1989), esta conduta de Tibério, apesar de
sua indisposição para a política, tinha uma razão bastante pragmática: durante seu
governo o império conheceu o auge da crise econômica que recém tinha começado,
20
afetando o valor da moeda. Portanto não havia inspiração para investir em qualquer
empresa dispendiosa, como são as guerras.
A sucessão de Tibério coube a Calígula (12 - 41 d.C.), filho rebelde de
Germânico (15 a.C. - 19 d.C.) este um general bem quisto pelo povo romano e pelo
senado, que porém não teve a sorte de viver para suceder Tibério. Segundo Paratore
(1987), Calígula, para a desilusão de todos, instaurou um autêntico regime absolutista,
rompendo o tradicional diálogo entre príncipe e senado. Assim que chegou ao poder,
por exemplo, suspendeu uma norma instaurada por Tibério: a de que toda designação
para cargos públicos feita pelo príncipe fosse ratificada pelo senado. Por este e outros
feitos pouco razoáveis, a historiografia e a publicidade romana (quase toda vinculada à
aristocracia senatorial) “tratou de pintar Calígula com as piores cores, criando a lenda de
sua loucura” (PARATORE, 1987: 540). Em pouco tempo (em 41 d.C.), um assassinato
foi tramado para pôr fim às atitudes desmedidas do jovem imperador, e assim o senado
tentou restabelecer a velha ordem.
Todavia os pretorianos – segundo Grimal (1995), tradicionais opositores do
senado trataram de descobrir um esquecido parente de Calígula, sucessor por direito
hereditário: Cláudio, tio de Calígula, tímido e alheio à vida pública, “homem enfurnado
em seus livros” (PARATORE, 1987: 541). Cláudio (10 a.C. - 54 d.C), dominado por
suas mulheres e por seus libertos, exacerbou o absolutismo de Calígula e o desrespeito
ao senado. Sua quarta mulher, Agripina menor, filha de Germânico, forçou Cláudio a
adotar seu filho Domício (o futuro imperador Nero) e apressou a passagem do trono,
envenenando seu marido (ROSTOVTZEFF, 1977). Neste momento (54 d.C.) o plano de
Agripina, ao que a historiografia revela, era retomar a ligação do Senado com a casa de
Germânico, personificada por ela.
Como analisa Paratore (1987), a princípio, o plano de Agripina parecia fluir. Os
cinco primeiros anos do principado neroniano, o chamado “qüinqüênio feliz”, foi
bastante razoável e pacífico, chegando a lembrar os primeiros anos do governo de
Augusto: “Calpúrnio Sículo cantava, nas suas éclogas, com os modos da écloga IV de
Virgílio, o regresso da idade de ouro; Sêneca, ministro do imperador, visava dar ao
governo a marca do espírito da filosofia mais humana e compreensiva” (PARATORE,
1987: 543). O governo de Nero também retomou a política expansionista que andava
suspensa desde Tibério, empreendendo campanhas bem sucedidas contra a Mauritânia,
a Armênia e contra os Partos. As artes em geral, fossem a favor do projeto helenizante
de Nero ou contra ele, acabaram por insurgir. Somente nesse período houve mais
21
produção artística que em todos os três reinados anteriores, haja vista a apatia atribuída
a eles (ROCHA PEREIRA, 1984).
Todavia Nero começou a passar por cima de sua mãe e do próprio senado. Como
entende Rostovtzeff (1977: 198), “seu espírito ambicioso e confuso levou-o a
acometimentos extremos.” Vendo seu meio-irmão Britânico (41 - 55 d.C.), filho de
Cláudio com Messalina (17 - 48 d.C.) e herdeiro legal do trono, como uma ameaça
constante, Nero o assassina. Em seguida faz o mesmo com sua própria mãe, e com isso
instala o terror na corte e destrói a harmonia que tinha conseguido. Mais adiante, Sêneca
e Burro que o haviam educado e pretendiam orientar-lhe os passos também seriam
silenciados, e o mesmo se passaria com Petrônio e com outros que estavam próximos a
Nero. Governando sozinho, Nero passa a promover cada vez com mais freqüência festas
e distribuições de alimento, a fim de salvar a sua popularidade e consolidar seu reinado,
conforme Tácito descreve em seus Annales (ROSTOVTZEFF, 1977).
Com isso, porém, surge a necessidade urgente de conseguir grandes somas de
dinheiro, para sustentar o panem et circenses. De acordo com Alfody (1989), Nero tenta
então emplacar uma reforma fiscal que tocava os interesses dos grandes proprietários de
terra, ou seja, do senado. Obviamente a reforma não veio, mas o jovem imperador
conseguiu o choque definitivo com a aristocracia romana. Os optimates, tradicionalistas,
membros da mais alta nobreza, não suportavam os atrevimentos daquele plebeu, que
sequer pertencia a alguma linhagem nobre: Nero era da plebéia família Domícia e fora
alçado à família Cláudia por sua mãe, que fez com que Cláudio o adotasse (ALFODY,
1989).
O crescente desagrado provocado pela frivolidade da corte fortaleceu a oposição,
que adquiriu coragem para, ao invés de morrer bravamente, desfechar um golpe.
Nero, que confiava inteiramente na guarda pretoriana, nunca inspecionara os
exércitos nas províncias, e as legiões estavam descontentes. A oposição
aproveitou-se disso. Os exércitos foram informados da conduta de Nero e das
violações da tradição romana especialmente da sua paixão pelo teatro e sua
atuação no palco, e pela preferência que demonstrava a favor dos gregos, em
detrimento dos romanos. (ROSTOVTZEFF, 1977: 198)
Logo, portanto, vieram as tentativas de golpe. A primeira delas, a conjuração de
Pisão e Viniciano, fez com que Nero, por desconfiança e insensatez, matasse alguns dos
mais caros membros de seu círculo predileto. Como avalia Rostovtzeff (1977), isso
representou um tiro no próprio peito, pois daí em diante Nero não podia confiar nem
em si mesmo: estava absolutamente enfraquecido. No oriente, região forte de Nero,
ocorria então a insurreição judaica; no ocidente, na Gália, a insurreição das legiões de
22
Víndex preparavam a subida de Galba ao trono. Assim, em 68 d.C., desesperado, Nero
se suicida.
Tácito define a dinastia Júlio-Cláudia como uma orgia contínua de delitos e de
horrores, capaz de renegar toda a noção de convivência civil e de nos fazer perguntar
como é que o império pôde se manter de pé. Apesar de toda a desgraça, os quatro
autores a que nos referimos até aqui para explanar a dinastia, Rostovtzeff (1977), Rocha
Pereira (1984), Grimal (1995) e Paratore (1987), consentem sobre os êxitos do período
em que ela durou: manteve-se com relativa estabilidade a paz e o funcionamento da
máquina administrativa; abriu-se a cultura romana para as contribuições orientais;
apesar de minar os pequenos agricultores, floresceram as trocas comerciais e a
economia dos consulados como um todo; e, como veremos a seguir, conseguiu-se
alguns avanços nas artes, especialmente na educação e nas letras.
1.2.2. As letras no tempo de Nero
É consentimento entre a crítica literária e a historiografia que uma das principais falhas
dos sucessores de Augusto foi a de não terem sabido assegurar nenhum apoio
significativo das classes culturais. Enquanto que os maiores literatos da época de
Augusto compuseram um verdadeiro tributo à obra do príncipe, interpretando com
penetração a crise espiritual que deu origem a ela, aqueles que fizeram a literatura do
período seguinte não souberam ou não quiseram encontrar uma correspondência no
plano cultural para a obra de seus príncipes. Mesmo Nero, que teve homens de raro
talento e capacidade intelectual ao seu lado, não os soube aproveitar.
Todavia, contra, a favor ou em ignorância a quem estava no trono, existiu muita
arte e vida intelectual durante a dinastia Júlio-Cláudia, notadamente durante o reinado
de Nero. A educação nunca foi tão ambicionada no mundo antigo como nessa época:
No oriente como no ocidente milhares de professores ensinavam às crianças das
cidades o latim ou grego e em algumas, especialmente no ocidente, ensinavam-se
as duas línguas. Os livros publicados em Roma tornavam-se logo conhecidos nas
províncias da Espanha, Gália e África. Todo homem educado no ocidente
conhecia os nomes dos grandes escritores do oriente, dos principais homens de
ciência, professores e filósofos. (ROSTOVTZEFF, 1977: 203)
A narrativa que nos restou de Satyricon começa, por exemplo, com um discurso
proferido numa escola de retórica pelo personagem Agamenon, que se queixa da
decadência da eloqüência clássica, embora ele mesmo mescle uma série de gêneros
23
vulgares em seu discurso, como suposta prova de suas capacidades e de seu domínio.
Seja como for, até Cláudio, segundo Rocha Pereira (1984), a vida cultural,
especialmente a literatura, enfraquece. Em Tibério como em Cláudio (Calígula, educado
entre soldados, foi um autocrata surdo à arte) prevaleceu um sentimento surgido com
força em Augusto, o aticismo: uma atitude purista em relação à língua, surgida como
reação ao asianismo (ROCHA PEREIRA, 1984). Portanto, não havia muita abertura
para novas influências orientais que eram, todavia, latentes.
Num interessante estudo sobre a adolescência dos romanos, Daly (1993) afirma
que Quinto Hortêncio Hortalo (114 a.C. - 50 a.C.), um retor que exerceu muita
influência sobre cero, foi quem introduziu o estilo asiático na tradição romana. A
principal característica atribuída ao chamado asianismo era a exuberância. Segundo
Cícero, Quinto Hortêncio teve mais sucesso quando jovem; por um lado, porque ele
acabou ficando descuidado quando mais velho, e por outro, porque ele era um ícone do
estilo asiático, ou asianista, “algo tolerado quando se era jovem, mas menos permitido
aos mais velhos” (DALY, 1993: 149). O próprio Cícero foi um asianista em sua
juventude. Seus primeiros discursos, segundo ele próprio, tendiam a ser impetuosos e
exuberantes, e quando diz isso, Cícero não está se criticando, mas de alguma forma
elogiando suas tendências juvenis. Segundo Daly (1993), no auge de sua fama ele
encontrou uma dura oposição e de maneira injustificada a acusação do asianismo.
Como escreve Quintiliano (35 - 95 d.C.), “mesmo seus próprios contemporâneos se
aventuraram a atacá-lo, chamando-o de bombástico, asiático, redundante, [...] sensual,
extravagante e quase efeminado em seu ritmo” (DALY, 1993: 150). Contra seus
oponentes – os aticistas, que advogavam um estilo clássico, sóbrio – Cícero declarou ter
sido um asianista quando jovem, porém seu estilo tinha alcançado maturidade àquela
altura.
O mais curioso é que o aticismo, a antítese do asianismo, foi um movimento de
jovens. Seu orador mais proeminente foi Calvo (Gaius Licinius Macer Calvus, 82 a.C. -
47 d.C.), que também veio a ser um poeta e se tornou um dos maiores rivais de Cícero
em eloqüência. Segundo Daly (1993), possivelmente Calvo foi o fundador do aticismo
como uma escola literária consciente.
A diferença básica entre Cícero e homens como Calvo é clara. Enquanto Cícero
enriquecia suas copia rerum et verborum [muitas coisas e palavras], com todos
os meios e artifícios, quer fossem áticas e ‘clássicas’ ou helenistas e ‘modernas’,
e as empregava tão somente de acordo com seu efeito no público geral, os
aticistas foram mais seletivos e artísticos, e preferiram a harmonia clássica à
24
extravagância helenística. Seus ideais estéticos foram ascéticos e mais voltados à
exatidão que os de Cícero. (LEEMAN apud DALY, 1993: 150)
Certamente simpático ao asianismo, Nero, como comentado, quis imitar
Augusto e entendeu que para isso deveria pôr em prática um programa de helenização
dos costumes, que viria a suceder quase um século depois, com Adriano
(BONECQUE & MONET, 1976). É notável a influência grega nos escritores de sua
época, no entanto talvez não tenha sido isso o que mais surtiu efeito para motivar a
produção deles. Contra o imperador, formou-se uma verdadeira coligação no mundo das
letras, “de tal forma que o período neroniano acaba por ser a única fase vital e
significativa da época, sob o aspecto histórico-literário” (PARATORE, 1987: 547).
Filósofos, poetas épicos, poetas satíricos passaram a abominar a transformação
dos costumes expressa nas formas do asianismo mais convulso e patético que entrava
em voga, reclamando pela tradição republicana. Ocorre que tamanha era a
intransigência da elite intelectual tradicionalista, que também acabavam incluindo no
objeto de sua crítica as expressões literárias modernistas, como o Satyricon, que
nenhuma consonância tinha com aquele asianismo desmedido (BAGNANI, 1954).
Esta elite tradicionalista veio a constituir o círculo estóico, o qual em certo
momento, quando o ímpeto terrorista de Nero se manifestou, representava o núcleo
intelectual expressamente contrário ao jovem imperador e a quem mais fosse alheio aos
ideais do grupo. O estoicismo caracterizou-se sobretudo pela consideração do problema
moral, e seus adeptos visavam a austeridade de caráter, a rigidez moral, a
impassibilidade em face da dor ou do infortúnio. Buscavam, pelo equilíbrio e
moderação na escolha dos prazeres sensíveis e espirituais, atingir o que lhes parecia ser
o ideal supremo da felicidade: a imperturbabilidade (SALMON, 1989). No entanto se o
estoicismo grego fora fértil e vivaz, como mais tarde até mesmo o estoicismo romano de
Marco Aurélio (121 d.C. - 80 d.C.) seria, o estoicismo dessa época foi “desolado e
combativo” (PARATORE, 1989). A poesia lírica que tinha alcançado o esplendor no
tempo de Augusto com os poetas elegíacos, no tempo de Nero obscurecia-se e
debilitava-se no clima doentio de uma literatura tendenciosa:
Políticos como Tráseas Peto, paduano como o “pompeiano” Lívio,
ambicionaram decalcar também na prática as pegadas de Catão Uticense; o
filósofo e gramático Ateu Cornuto, liberto de Sêneca, escrevia tragédias, é certo
que com gosto de cores sombrias e desoladas como as empregadas pelo seu
patrono, e educava para um rígido estoicismo o jovem rebento da família dos
seus ex-patrões, Lucano, e o seu aluno predileto, Pérsio, que trazia para a sátira
de tipo horaciano o azedume diatríbico mais retrógrado. (AZEVEDO, 1962: 35)
25
Ao passo que, na época de Augusto, a literatura passara quase que totalmente
para mãos de personagens alheias à política militante e desta constituíra apenas
um comentário discreto, em nome dos mais elevados princípios e ideais que a
iluminavam, agora a própria poesia volta a ser instrumento de luta e, muitas
vezes, os seus criadores mergulham na ação e desejam ardentemente a bela
morte, no clima inflamado pelas suas paixões e pelo gosto teatral e barroco da
época. (COURTNEY, 2001: 47)
É, pois, do círculo estóico que vêm os principais representantes dessa literatura
de combate, por assim dizer. Pérsio
24
e Lucano
25
formam o par dos jovens poetas da
época de Nero, influenciados pela educação estóica de Aneu Cornuto
26
e pelo estilo
diatríbico de Lucílio,
27
e afetados por uma intemperança juvenil, conquanto não
tivessem muito mais que uma cabeça cheia de esquemas” (BAGNANI, 1954). Lucano
concebe a sua Pharsalia, “uma espécie de pamphlet político em defesa dos ideais
republicanos, e constrói-o com ideais claramente anti-virgilianos, substituindo o epos
histórico à epopéia mitológica” (PARATORE, 1987: 547). De Pérsio, que morreu
jovem e não escreveu muito, foram salvas seis sátiras; seu mestre, Cornuto, não
permitiu que seus escritos mais jovens perdurassem. As sátiras de Pérsio consistem num
apanhado de temas diatríbicos sugeridos pelas sátiras de Horácio e Lucílio, expostos
através de um asianismo rebuscado e mascarado de aticismo, que – afinal pertencia
ao círculo dos tradicionalistas (AZEVEDO, 1962).
Sêneca,
28
pelas frustrações por que passou na vida, os exílios, as enfermidades, e
talvez amargurado por se sentir responsável pela subida de Nero ao trono, emprestava à
sua obra alguns dos mais belos exames de consciência cotidianos, “criticando-se a si
mesmo e aos feitos de seu pupilo no poder”, conforme entende Salmon (1989: 203).
Nas Epístolas a Lucílio apresentava sua visão imanentista do ser humano; com o Ludus
de morte Claudii renovava a sátira menipéia, fazendo por detrás uma forte crítica ao
regime autocrático; e nas tragédias expressava suas paixões mais tumultuosas, que
ilustram sua visão dramática do homem (SALMON, 1989).
O outro lado, que afligia os estóicos e tradicionalistas, era o novo mundo de
graecissantes (imitadores de gregos), de retores de cultura exótica, de novos-ricos
vindos da ralé do Oriente, toda uma multidão ruidosa de aventureiros, de malabaristas,
de mimos, de músicos e de apátridas, que parecia contribuir com o propósito do
24
Aulus Persius Flaccus, 34 - 62 d.C.
25
Marcus Annaeus Lucanus, 39 - 65 d.C.
26
Lucius Annaeus Cornutus, 54 a.C. - 68 d.C.
27
Lucilius Junior, um amigo e correspondente de Sêneca, provavelmente autor de Aetna, um poema sobre
a origem da atividade vulcânica, variavelmente atribuído a Virgílio, Cornélio Severo (poeta épico da
idade augusta) e Manílio.
28
Lucius Annaeus Seneca, 4 a.C. - 65d.C.
26
imperador de tirar do Império a sua marca de romanidade (MARMORALE, 1948). Ao
que parece, de acordo com a argumentação de Daly (1993), o debate confuso entre o
asianismo e o aticismo era resultado de uma crise de identidade cultural promovido por
toda uma avalanche de influências extrangeiras, dentro de uma Roma que recém havia
conhecido seu apogeu.
Petrônio, por sua vez não teve simpatia e tampouco compromisso com nenhum
dos dois lados, e sequer com Nero, como se poderia afirmar, pois que pertenceu à sua
corte. Em sua obra traçou uma representação sarcástica deste asianismo convulso e
manifestou igual impaciência e escárnio para com os profissionais do moralismo, para
com os retores da tradição. “Fora e acima dos dois grupos em luta, erguia-se a obra de
um dos maiores gênios da literatura latina, do espírito mais moderno e sem preconceitos
que a cultura romana de ostentar: a obra de Petrônio” (BAGNANI, 1954: 19). Aberto
às riquezas da literatura augusta, plena de clareza e simplicidade, assim como às formas
vulgares que vinham tomando espaço e valor, e aos movimentos modernistas do
asianismo contemporâneo, Petrônio absorveu tudo o que pôde e devolveu à sua obra,
numa representação crítica de tudo o que havia ou se insinuava na cultura romana; sem
tomar nenhum partido senão o da sua própria arte.
Trazendo os solecismos da plebe para a literatura, numa linguagem “pirotécnica
e infernal, as mesmas pequenas frases sentenciosas, os mesmos esboços, as mesas
elipses, as mesmas variações insistentes dum conceito e duma imagem, todos os
artifícios típicos do estilo asiático” (AZEVEDO, 1962: 38), porém com mais
naturalidade e sabor, porque colocados na boca da gente do povo, tagarela e fantasioso,
Petrônio fez o que Pérsio supostamente não tinha conseguido: recorreu a termos
obscenos e licenciosos em proporção muito menor e com mais sutileza. E ademais,
também usou uma série de temas diatríbicos de Horácio, os mesmos que Pérsio usou,
como que em resposta ou ataque a este: por exemplo, abjeção e mesquinhez humanas
(sátira II,8 de Horário), a avidez desmedida e a complacência com receitas culinárias
rebuscadas (sátira II,4 de Horácio) e também o tema dos caçadores de testamentos,
assunto da sátira II,5 de Horácio (CONNORS, 1995).
Lucano, porém, foi certamente o mais atacado por Petrônio. Na boca do
personagem Eumolpus, um velho poeta importuno e degenerado, Petrônio colocou uma
engenhosa paródia da Pharsalia (De Bello Civilis) de Lucano. Em outro momento
ainda, no capítulo 18, quando se concluem as cenas de exorcismos das Canídias
(Enotéas e Proselano) com o típico motivo dos gansos enfurecidos, parece que Petrônio
27
não quis outra coisa senão desmontar as maquinarias de Lucano, reduzindo as Erictos
do exuberante poeta épico aos gansos, personagens da fábula popular (CONNORS,
1995). Igualmente, na cena que conclui aquilo que nos restou de Satyricon (na cena que
conclui a obra que temos), quando Eumolpo em seu testamento impõe aos heredipetae
comerem seu cadáver se quiserem receber a herança (uma piada com o fato de não ter
nada mais para deixar senão suas vestes), e ainda assim, crédulos, eles se põem ansiosos
sobre o cadáver, parece claro que se faz um “contracanto parodiado dos horrores
macabros elaborados por Lucano sobre o tema dos cadáveres” (PARATORE, 1987:
645).
Petrônio também insinua alusões a Sêneca, além de Catulo, Propércio e Ovídio.
Todavia ainda em relação ao diálogo que mantém com as letras de seu tempo cabe um
último comentário a respeito dos retóricos. Como foi dito, a narrativa inicia com um
discurso do personagem Agamenon sobre a situação das artes retóricas. Encolpius, o
personagem narrador, possível alter ego de Petrônio, parece contrapor-se a essa situação
como um todo. Porém, como interpreta Azevedo (1962), num momento assume uma
defesa do asianismo de Teodoro
29
a despeito do aticismo intransigente de Apolodoro
30
e
de Cecílio de Calacte, pois menciona a peste que da Ásia (Pérgamo, pátria de
Apolodoro) se difundiu no Ocidente para degenerar a arte oratória. A seguir, reclama
por Tucídides (460 - 400 a.C.), grande referência dos seguidores de Teodoro, e parece
emprestar algumas expressões da História da guerra do Peloponeso, a obra de
Tucídides (AZEVEDO, 1962). Em seguida, à sua típica maneira, Petrônio faz com que
Agamenon, em uma dissimulada e incoerente apologia a rios gêneros discursivos
(CONNORS, 1995), revele os defeitos que Sêneca atribuía à retórica asiática da
época augustal: “Encólpio cita, como exemplo da decadência das escolas de retórica,
temas de exercícios do gênero das controversiae e suasoriae coligidas por Sêneca, e
toda a discussão se desenrola com cadência e clausuras rítmicas caras ao estilo
ciceroniano” (PARATORE, 1987: 650).
Algumas dessas muitas alusões que Petrônio faz aos autores e às escolas
literárias que lhe eram contemporâneos são de grande importância e estão
29
Teodoro (Theodorus) de Gádara. Foi um retórico grego do século 1 a.C., que fundou uma escola de
retórica em Gádara (atual Jordânia), onde ensinou ao futuro imperador romano Tibério a arte da retórica.
30
Apolodoro (Apollodorus) de Pérgamo, um dos dois mais proeminentes professors de retórica do século
1 a.C. ao lado de Teodoro de Gádara. Seu estudante mais famoso veio a se tornar o primeiro imperador
romano, César Augusto.
28
compreendidas no problema deste trabalho. Portanto, serão mais bem explicitadas e
detalhadas nos capítulos que se seguem, de acordo com a conveniência.
29
1.3. Satyricon, sofisticada miscelânea
Parte do que foi dito até aqui já nos permite vislumbrar a complexidade literária do
trabalho de Petrônio. Reiterando a afirmação que abre nossa introdução, o Satyricon
certamente não é apenas um retrato bem humorado do submundo romano, no primeiro
século da era cristã, como muitos indiscriminadamente tendem a descrevê-lo.
Possivelmente, suas habilidosas apropriações de gêneros populares da Antigüidade,
agregadas a uma exploração contestadora do cânone greco-romano da época, façam dele
o ambicioso projeto literário, conforme o reconhecemos. Cabe-nos, portanto, pontuar
algumas questões relativas aos gêneros literários que confluem na obra, especialmente
aquelas que contribuirão para a análise da tradução dos poemas.
1.3.1. Confluência de gêneros literários
Bret Boyce, autor de The Language of the freedmen in Petronius’ Cena Trimalchionis
(1991), importante obra dentro da recente safra de estudos a respeito do Satyricon,
introduz seu trabalho com uma razoável afirmação a respeito da confluência de gêneros
literários na obra de Petrônio:
O mais antigo dos romances, do qual possuímos substanciais reminiscências, ele
[o Satyricon] tem desafiado as tentativas dos críticos de enquadrá-lo em uma
categoria de gênero: classificado como romance erótico, novela
picaresca, sátira menipéia, relato de viagem, mimo e paródia épica, ele é ao
mesmo tempo tudo isso e nada disso; é o produto de um autor que imergiu na
tradição literária e que, não obstante, presta-se a empreender uma ruptura
deliberada nas normas clássicas de estilística, gênero e propriedades tópicas.
(BOYCE, 1991: 1)
A afirmação é tão definitiva quanto sugestiva. Definitiva, porque de fato a maior
parte dos estudiosos relevantes ultimamente tem chegado a essa conclusão; a de que
Petrônio vai além dos neros os quais manipula; de que é um praticante muito peculiar
de qualquer um deles, difícil de ser tomado como exemplo puro; de que procede a uma
exploração contestadora de tais gêneros etc. E sugestiva simplesmente porque nos lista
todos os principais gêneros literários que se reconhece no trabalho de Petrônio (alguns
dos quais trataremos a seguir), além de relembrar uma significativa hipótese: a de que o
Satyricon seria o mais antigo dos romances. Comecemos, portanto, comentando esta
hipótese, para depois estudar a maneira como Petrônio manipula um ou outro gênero.
30
A etimologia do próprio termo romance remonta supostamente a Roma:
acredita-se que deriva da locução romanice loqui, que se distinguia de latine loqui e
barbarice loqui para indicar as variações do latim vulgar, em oposição ao latim clássico
e às línguas bárbaras (D’ONOFRIO, 1981). O Satyricon, pois, é talvez a maior
referência do baixo latim em fins do período clássico. Além disso, como admite
D’Onofrio (1981: 150):
(...) o romance, especialmente nas suas primeiras formas de aparecimento na
literatura ocidental, se apresenta como a confluência de quase todos os gêneros
literários preexistentes; é o mare magnum onde deságuam todas as correntes
vitais da literatura, quer escrita quer oral, quer culta quer popular. O motivo do
surgimento deste nero novo, que engloba elementos da épica, da comédia, da
retórica, da historiografia, da lírica, do conto popular, prende-se a profundas
mudanças sociais.
Ao que parece, portanto, não é uma coincidência que haja essa “confluência de
quase todos os gêneros literários preexistentes” no Satyricon e que, sendo ele talvez a
obra mais antiga com tal conformação, considerem-no o primeiro dos romances no
stricto sensu moderno deste termo. Como vimos também, Petrônio escreve sua obra
num momento de intensa revolução cultural, que afetava diretamente as artes; logo, de
acordo com D’Onófrio, faz todo sentido assentir à sugestão de que o Satyricon seria o
primeiro dos romances. Todavia, é verdade que há narrativas em prosa mais antigas que,
embora tenham surgido como exercícios de retórica, também são consideradas formas
embrionárias do romance por uns, ou romances propriamente por outros (ABBOTT,
1911).
O próprio Satyricon não é aceito como romance por todos. Dentro da taxonomia
de Northrop Frye (1947), por exemplo, o Satyricon, assim como o Asno de ouro, de
Apuleio, se encaixam na categoria “anatomia”, que como ficção em prosa diferencia-se
do romance, do romanesco e da confissão outras três categorias definidas por Frye. A
anatomia é entendida como a forma enciclopédica da ficção em prosa, muito próxima da
novela picaresca, embora esta, por seu realismo, se aproxime mais do romance
propriamente. A estrutura de uma anatomia, como comenta D’Onofrio (1981), não se
fundamenta sobre o enredo, que normalmente é muito fraco, mas sim sobre a
intelectualização dos problemas sociais e morais, discutidos através da forma dialógica.
Discursos, proferidos de preferência no decorrer de banquetes, digressões, reflexões
sobre qualquer tipo de assunto, narrações de viagens imaginárias e fantásticas, de
aventuras ou casos presumivelmente acontecidos, sátira de costumes, mistura sério-
cômico e do religioso-profano, análise dos sentimentos humanos, “tudo isso e mais
31
ainda, bem embaralhado, constitui a matéria de um tipo de narrativa que N. Frye, por
falta de um nome específico, chama de ‘anatomia’” (D’ONOFRIO, 1981: 154).
Sem contestar a classificação proposta por Frye, cabe afirmar que no Satyricon
ainda que ele não apresente toda aquela estrutura fixa que mais tarde se estabeleceria,
repleta de elementos recorrentes e regulares se reconhecem aspectos fundamentais
de um romance, como enredo e motivo dramático razoavelmente bem definidos, além
de arranjos amorosos conflituosos. Ademais, D’Onófrio (1977) em sua análise também
reconhece situações e movimentos, como afastamento, luta, interdição, transgressão,
dano, fuga, derrota, ajuda, reencontro, punição, reparação, contrato enganoso e decisão,
típicos componentes do drama de um herói. “A narrativa petroniana, na sua totalidade,
devia ser uma espécie de romance cíclico em que se representava a vida das cidades
helenizadas da Itália meridional do século 1º. d.C.” (D’ONÓFRIO, 1977: 54). O
“motivo eficiente”, como define Abbott (1911), é o motivo erótico, enquanto que o
“motivo convencional” ao que parece, devido a todas as desventuras do anti-herói
Encolpius – é a fúria de uma deidade ofendida: o deus Príapo.
A propósito, o motivo da ira de Príapo foi o que colocou definitivamente o
Satyricon dentro da tradição do romance. Em 1889, face ao problema de restabelecer a
ordem dos fragmentos, e contestar a Rohde, que teria excluído o Satyricon ao considerar
a evolução do gênero romance, Klebs argumentou que a história estava estruturada
entorno de uma paródia do tema épico de um herói possuído pela ira de um deus
(CONNORS, 1998). Esboçando um esquema de todas as referências a Príapo presentes
no texto, Klebs sustentou que as desventuras de Encolpius eram resultado da ira de
Príapo, incorrida através de várias ofensas, algumas das quais não ficaram totalmente
claras. Por exemplo, logo no começo dos fragmentos sabemos que em suas vagâncias
pela Baía de Nápoles Encolpius interrompeu Quartilla enquanto conduzia um rito de
Príapo
31
, porém depois temos que fazer algumas emendas e inferir os desfechos. Mais
tarde, em Crotona, ele está orando em um santuário de Príapo quando se depara com a
velha Proselenos, que o acompanha até uma ante-sala do santuário da sacerdotisa
Oenothea
32
. Em certo momento, em que se defende das investidas de um ganso
enfurecido, matando-o, ele descobre que ofendeu mais uma vez a Príapo
33
. Assim, a
impotência de Encolpius, bem como outras dificuldades, é tomada como uma
31
Cf. Caps. 16.3 e 17.8 do Satyricon.
32
Cf. Cap. 134.3 do Satyricon.
33
Cf. Cap. 137.2 do Satyricon.
32
manifestação do deus ofendido. Obviamente, Príapo é bem diferente de um deus épico.
Suas preocupações não são patrióticas ou cósmicas, mas individuais: ele zela pelos
jardins e ameaça estuprar os invasores. “Príapo está para Poseidon (que persegue
Odisseu) assim como o romance está para o épico” (CONNORS, 1998: 27).
A intenção aqui não é fazer um estudo aprofundado do Satyricon enquanto
romance e tampouco tomar uma posição na discussão sobre se o Satyricon é ou não é
um romance. Importa-nos o fato de ser romance basicamente porque, assim o sendo, os
poemas contidos na obra devem ter, no mínimo, conexão com a trama, as situações, os
personagens etc. Sabemos que é uma grande narrativa, majoritariamente em prosa, em
que o autor se vale de diferentes gêneros, entre eles alguns que combinam prosa e verso
– são estes os que nos mais interessa. Veremos que Petrônio interrompe a narrativa com
poemas, tendo intenções bem específicas, porquanto sua técnica poética implique uma
série de sutilezas formais e semânticas. Petrônio, como poeta, varia desde motivos
épico-mitológicos, até a sátira e a epigrama, a tragédia, e o épico histórico. Em relação a
seu trabalho poético, entre os gêneros presentes na obra, o mimo, a ficção prosimétrica
grega (o romance erótico grego) e a sátira menipéia são os que mais interessam aqui:
estes três gêneros mesclam prosa e verso, e foram claramente explorados por Petrônio.
1.3.2. Mimo
Muitos têm notado similaridades entre o Satyricon e os motivos do mimo, forma de
teatro popular tipicamente romana. O primeiro a chamar a atenção para tais
similaridades foi Marius Mercator, no século XV, num texto em que denuncia
obscenidades do imperador Juliano (CONNORS, 1998). Desde então, vários autores se
puseram a discernir motivos mímicos no Satyricon, e recentemente Panayotakis (1995)
publicou um importante trabalho, argumentando que as situações mímicas e também os
enredos constituem dispositivos estruturantes ao longo da obra.
O mimo romano, que sobreviveu apenas em fragmentos, parece ter sido
caracterizado por vivas performances, assuntos geralmente obscenos e finais abruptos.
Os papéis femininos podiam ser interpretados por mulheres. Além disso, canções
improvisadas espontaneamente, especialmente durante a cena, parecem também evocar
o universo do mimo. Um dos poemas do Satyricon descreve a maneira como um mimo
acaba e os atores então voltam aos seus papéis na “vida real”; como afirma Slater em
33
seu estudo dos processos de interpretação e manipulação de artifícios na obra, “este
poema deveria figurar como uma epígrafe para o Satyricon inteiro” (1990: 89).
grex agit in scaena mimum: pater ille vocatur,
filius hic, nomen divitis ille tenet.
mox ubi ridendas inclusit pagina partes,
vera redit facies, assimulata perit.
a trupe representa o mimo no palco: aquele é chamado de pai,
este de filho; aquele leva um nome importante.
tão logo a peça encerra os papéis cômicos,
a face da verdade retorna, e a do mimo se vai.
34
Dentro de um contexto narrativo mais amplo, o poema chama atenção para as
sagazes decepções do Satyricon como um todo e indica a auto-consciência que tem de
sua própria ficcionalidade (COURTNEY, 2001). O mimo imitava pessoas reais, ao
invés de reis ou deuses, e entre todas as formas teatrais romanas, o mimo é a “mais
próxima” da vida real: um ator de mimo não usava os calçados especiais (soccus e
cothurnus) que os atores cômicos e trágicos usavam; era um planipes, um pé-chato,
geralmente descalço. Além do mais, ao que parece, os atores mímicos não usavam
máscaras. Assim como o mimo, pois, o Satyricon imita e caricatura certos tipos de
pessoas relativamente “comuns”, de um modo relativamente “transparente”
(CONNORS, 1998). A identificação dos motivos micos nos episódios de Quartilla e
Trimalchio, assim como no mimo enganoso do episódio de Crotona, aguça o humor do
texto em várias ocasiões, por trazer uma imaginação física e viva à leitura das cenas
construídas por Petrônio. Com efeito, dois contextos distintos, o Satyricon e o mimo,
são conciliados em boa parte das situações (PANAYOTAKIS, 1995). Todavia a paródia
épica não parece ter o mimo como um dos aspectos principais, e os longos poemas
sobre Tróia e a Guerra Civil tampouco têm alguma afinidade com os padrões mímicos.
1.3.3. Sátira menipéia
A sátira menipéia, entretanto, é sem dúvida o gênero literário predominante na obra.
Abbot (1911), por exemplo, levanta a hipótese de que o Satyricon seja em si uma
grande sátira menipéia, contudo Cardoso (1989), Paratore (1937) e, entre outros,
especialmente Bakhtin (1981) afirmam enfaticamente que o Satyricon não é mais que
uma grande sátira menipéia. Sem a intenção de discutir tal afirmação, mas antes
34
O poema consta no capítulo 80.9, 5-8 do Satyricon. A tradução é minha, com fins apenas de oferecer
uma idéia do significado do poema perante a discussão que se faz o mimo enquanto gênero.
34
reconhecendo a importância desse gênero e sua onipresença no Satyricon, detenhamo-
nos um pouco sobre suas particularidades.
Bakhtin, uma das grandes autoridades críticas nas discussões sobre a sátira
menipéia, considera-a, em partes, um produto da desintegração do diálogo socrático,
gênero que teve vida breve, mas no entanto suscitou o surgimento de outras tantas
formas literárias. A despeito daqueles que às vezes vêem a sátira menipéia como
produto genuíno do diálogo Socrático, Bakhtin afirma, todavia, que suas raízes
remontam diretamente ao folclore carnavalesco, “cuja influência determinante é ainda
mais considerável aqui que no diálogo socrático” (BAKHTIN, 1981: 96).
Seu nome se deve a um filósofo do século III a.C., chamado Mênipo de Gádara
(ou de Gadare, como alguns preferem), que lhe teria dado uma forma clássica. De
Mênipo propriamente não restou nada, porém Diógenes de Laércio (Diogenes Laërtius,
200 - 250 d.C.) nos informa sobre sua responsabilidade no estabelecimento desta forma
satírica. O gênero foi oficialmente introduzido na tradição literária pelo erudito romano
Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.), que nomeou uma sátira sua de saturae
menippea”, entretanto sabe-se que surgiu propriamente bem antes, com Antistheno, um
discípulo de Sócrates, praticante de diálogos socráticos (COURTNEY, 2001). Sátiras
menipéias foram escritas também pelo contemporâneo de Aristóteles, Heráclito de
Ponto (388 - 312 a.C.), que, segundo Cícero, foi ainda o maior criador do gênero
logistoricus (uma combinação do “diálogo socrático” com histórias fantásticas). Para
muitos, porém, o indiscutível representante da sátira menipéia foi Bión de Borístenes
(325 - 230 a.C.), um literato que viveu na região da atual Ucrânia. Somente depois
destes viria Mênipo de Gádara, que, como foi dito, lhe daria uma forma clássica,
cunhando assim o próprio nome à sátira; e em seguida Varrão, cuja obra nos restou em
fragmentos, e Sêneca, que nos deixou bons exemplares do gênero (CONNORS, 1998).
Reiterando, Bahktin (1981: 97) entende que o Satyricon, assim como o Asno de Ouro de
Apuleio, “não passa de uma ‘sátira menipéia’ desenvolvida até os limites do romance”.
Para ele a noção mais completa do gênero se encontra nas sátiras menipéias de Luciano,
que chegaram perfeitas até nós, mas também o Romance de Hipócrates pode ser
considerado um interessante protótipo. A etapa antiga da evolução da menipéia se
conclui com a Consolação da Filosofia, de Boécio. De acordo com Bahktin, encontram-
se elementos da menipéia em algumas variedades do “romance grego”, no romance
utópico antigo e na sátira romana (em Lucrécio e Horácio).
35
A sátira menipéia exerceu forte influência na literatura cristã antiga e na
literatura bizantina. “Em diferentes variantes e sob diversas denominações de gênero,
ela continuou a desenvolver-se também nas épocas posteriores: na Idade Média, nas
épocas do Renascimento e da Reforma e na Idade Moderna” (BAHKTIN, 1981: 98).
Não é por menos que o Satyricon é sempre associado à novela picaresca e ao romance
de cavaleiro, por exemplo:
A estrutura formal e o tom geral satírico e parodístico do Satyricon fazem correr
instintivamente a mente do leitor para a comparação com os poemas e romances
satíricos do Renascimento, que são paródia do poema e do romance cavaleiresco:
o Morgante de Pulci, o Baldus de Folengo, o Gargantua et Pantagruel de
Rabelais, o Dom Quixote de Cervantes. E, efetivamente, também o Satyricon,
como o Dom Quixote, é a paródia de toda uma orientação sentimental e
aventurosa da prosa narrativa; como o Baldus, leva a paródia até aos tons mais
veristas, contrapondo ao mundo das grandes figuras, o mundo da mais abjeta
vulgaridade contemporânea; como o Baldus, o Morgante e o Gargantua,
exprime o seu mundo também com representações anormais (as feiticeiras que
tentam curar Encólpio, a paradoxal situação crotoniata, a intervenção final de
Mercúrio); como o Gargantua e o Dom Quixote, varia o fundamental tema
parodístico com digressões literárias, de caráter parodístico e polêmico; como
Folengo Rabelais, Petrônio recorre muitas vezes a combinações lingüísticas de
clamorosa singularidade, como que para dar a impressão física, o correspondente
fônico do seu mundo característico, daquela sua inspiração faunesca e priapesca.
(PARATORE, 1987: 646)
Bahktin (1981) lista quatorze aspectos fundamentais da menipéia, que a diferem
especialmente de outros gêneros antigos:
O peso particular do elemento cômico nela, em relação a outros neros,
como o diálogo socrático.
Liberdade em relação a limitações histórico-memoralísticas: a menipéia
está livre das lendas e não está presa a quaisquer exigências de
verossimilhança externa vital.
As fantasias e aventuras são interiormente motivadas, justificadas e
focalizadas por um fim puramente filosófico-ideológico: criar situações
extraordinárias para provocar e experimentar uma idéia filosófica.
Combinação orgânica do fantástico livre e do simbolismo e, às vezes, do
elemento místico-religioso com o naturalismo de submundo extremado e
grosseiro.
Excepcional universalismo filosófico: não se atém a nenhuma corrente, e
de uma forma ou outra, questiona todas.
36
Estrutura assentada em três planos: a ação e as síncrises dialógicas se
deslocam da Terra para o Olimpo e para o Inferno.
Presença do fantástico experimental, uma modalidade específica,
totalmente estranha à epopéia e à tragédia antiga.
Presença da experimentação moral e psicológica, ou seja, a representação
de inusitados estados psicológicos-morais anormais do homem toda
espécie de loucura (“temática maníaca”), da dupla personalidade, do
devaneio incontido, de sonhos extraordinários, de paixões limítrofes com
a loucura, de suicídios etc.
Presença de cenas de escândalos, de comportamento excêntrico, de
discursos e declarações importunas, ou seja, contra-sensos que violam a
ordem universal.
Onipresença de contrastes agudos, jogos paradoxais, passagens e
mudanças bruscas, o alto e o baixo, ascensões e decadências,
aproximações inesperadas do distante e separado, com toda sorte de
casamentos desiguais.
Incorporação freqüente de elementos da utopia social, introduzidos em
forma de sonhos ou viagens a países misteriosos.
Amplo emprego de gêneros intercalados (novelas, cartas, discursos
oratórios, simpósios etc.) e fusão dos discursos da prosa e do verso.
Multiplicidade de estilos e pluritonalidade.
Publicística atualizada: trata-se de uma espécie de gênero “jornalístico”
da Antiguidade, que enfoca em tom mordaz a atualidade ideológica.
Uma menipéia clássica é o Apolokyntosys Claudii de Sêneca, que conta a
história engraçada da morte de Cláudio e da rejeição dos deuses à sua proposta de
deificação. Conforme a análise de Connors (1998), a narrativa descreve uma jornada
fantástica da terra até o céu e, por fim, ao inferno, enquanto alterna entre registros de
humor e seriedade, verdade e ficção, prosa e verso. O verso é usado por vinte vezes, e
pelo narrador; há citações e composições originais. As citações de versos impulsionam a
ação adiante; ou seja, se fossem omitidas, ficaria uma lacuna na narrativa.
35
Os versos
originais não acrescentam nada à narrativa necessariamente, ao contrário, criam irônicas
35
Veremos adiante, na crítica às traduções, que um dos tradutores omitiu a maior das citações feitas no
Satyricon.
37
descontinuidades. Eles não dependem da evocação de um modelo específico para gerar
seus efeitos literários, portanto são mais longos que as citações, as quais precisam ser
curtas a fim lembrar os leitores de algum contexto memorável. Então, por exemplo, a
estação do ano e a época da morte de Cláudio são descritas em hexâmetros grandiosos,
embora o narrador igualmente especifique a data e a época na prosa
36
. O poema em
hexâmetros descreve o desenrolar de uma longa e gloriosa linhagem representando o
reinado de Nero; a majestade da ocasião é cerceada pelo fato de que a linhagem é tão
longa simplesmente porque o Destino tem estado distraído, ouvindo o canto de Apolo.
Ao encontrar Cláudio pela primeira vez, Hércules interpreta o papel de um bufão
cômico, amedrontado, pensando estar face ao seu tredécimo trabalho. Após algumas
indagações iniciais, Hércules se faz trágico (et quo terribilior esset, tragicus fit et ait)
37
e passa a interrogar Cláudio em 14 linhas de “trágicos mas zombeteiros trímetros
jâmbicos” (CONNORS, 1998: 15).
Acima de tudo, parece que as súbitas mudanças e as justaposições incongruentes
(que podem ser tanto intertextuais como intratextuais) diferenciaram, por exemplo, os
trabalhos de Varrão e neca. Primeiro, porque o cômico é a todo momento balanceado
pelo sério, e assim a opinião fica dividida em relação ao que prevalece. Segundo,
porque a flexibilidade e a infinita abertura da prosa é constantemente justaposta com as
limitações inerentes ao metro. Varro aparentemente discute essa justaposição formal no
Bimarcus: em coriambos um metro também conhecido como “jâmbico manco” por
causa da penúltima sílaba, que é longa, conquanto um verso jâmbico deva terminar com
uma breve um orador enfatiza com ironia consciente a lentidão e os limites da poesia;
enquanto que na prosa alguém parece celebrar sua própria realização poética
(RELIHAN, 1993). No nível ético, numerosas justaposições de passados virtuosos
com um presente decadente. Historicamente, o passado mítico é colocado contra o
presente mundano. Intelectualmente, as pretensões dos filósofos são contrastadas com o
engenhoso senso comum. A visão aviária de um sonhador ou de um viajante fantástico é
contrastada com o olhar comum, ordinário.
Parte do impulso de ver Petrônio dentro de uma tradição menipéia deve-se, sem
dúvida, à sarcasticidade e à fragmentação dos antigos textos menipeus. Considerando
Petrônio um satirista menipeu, aumentar-se-ia o número de autores menipeus antigos
36
Tais valores atribuídos aos diferentes metros serão de suma importância para nosso trabalho crítico.
Ainda nos deteremos com mais vagar sobre tal tema.
37
“...e como fosse ainda mais terrível, fez-se trágico e disse”. Tradução minha.
38
relativamente bem preservados de dois (Sêneca e Luciano) para três (CONNORS, 1998:
16). Seria difícil, entretanto, sustentar que o próprio Petrônio pretendeu que seu trabalho
fosse lido estritamente dentro da tradição menipéia (por mais flexíveis e pouco
convencionais que os padrões menipeus possam ter sido). Petrônio não mistura
elementos cômicos com elementos sérios da mesma maneira que Sêneca e Varro. Para
Barchiesi (1991), há modos de tratamento paródico do mito no Satyricon, especialmente
no episódio de Crotona, mas os deuses não são representados diretamente. A narrativa
extensa do Satyricon, que se move de modo bastante realístico pelo espaço e pelo
tempo, não parece se parear com a sátira menipéia, e nela na narrativa não
nenhuma insinuação dos tipos jornadas fantásticas que se encontra em Sêneca ou nos
fragmentos de Varro. “Petrônio mistura verso com prosa, contudo os versos do
Satyricon parecem mais ambiciosos, mais variados, dizem mais a respeito dos
personagens, e estão integrados de modo mais complexo dentro da narrativa, comparado
àquilo que encontramos na tradição menipéia” (BARCHIESI, 1991: 120).
1.3.4. Ficção prosimétrica grega
A ficção prosimétrica grega e suas possíveis relações com a forma do Satyricon vieram
à tona apenas há pouco tempo. Alguns estudos recentes vêm deixando claro que a antiga
ficção em prosa grega possuía um conteúdo muito mais substancial do que o ostentado
por certas histórias idealizantes de amor verdadeiro entre um herói e uma heroína, tema
de algumas novelas remanescentes, de autores como Caritón de Afrodisias (final do séc.
I), Aquiles Tácio (metade do séc. II), Xenofonte de Éfeso (metade do c. II), Longo
(séc. III) e Heliodoro de Émesa (séc. III). Tornou-se então devidamente possível
argumentar que o Satyricon está de algum modo conectado a um gênero estabelecido de
ficção prosimétrica grega, uma espécie de romance não-idealizante (CONNORS, 1998).
A principal referência desse gênero é um fragmento conhecido como Iolaus. É
impossível afirmar se Iolaus (preservado num papiro do séc. II d. C.) influenciou ou foi
influenciado pelo Satyricon, ou se, como Stephens e Winkler (1995: 365) supõem, “os
dois não estavam necessariamente relacionados; uma vez que havia uma variedade
suficiente de tipos de narrativa disponível no primeiro século d.C., tanto Petrônio como
Iolaus poderiam surgir na cena independentemente um do outro”. Referências à
39
iniciação aos ritos de Cybele, a um cinaedus (pederasta, efeminado) e a um gallus
38
são
recobráveis no fragmento. Uma verdadeira iniciação como um gallus nos ritos de
Cybele envolveria castração; tem sido sugerido que Iolaus, o protagonista da narrativa,
estaria aprendendo a disfarçar-se como um gallus a fim de ter acesso a “algo mais”
(DODDS, 1974 apud STEPHENS & WINKLER, 1995); ou seja, segundo certas
leituras, Iolaus seria um personagem que se disfarça para participar de círculos secretos,
que envolvem práticas sexuais. Dentro do breve fragmento dois momentos em que a
narrativa se interrompe com versos. O protagonista anônimo dirige-se a Iolaus e a um
cinaedus em sotádicos,
39
o verso usado alhures pelos galli e cinaedi. Um segundo
exemplo de verso é a citação do Orestes, de Eurípedes, a respeito do valor da amizade:
E Iolaus ensinou pela mística todas as coisas que aprendera, e ele é um gallus
completo, confiante em seu amigo Neikon. “Nada é maior do que um amigo
sincero, nem riqueza nem o ouro; a turba, de um nobre amigo, é uma ridícula
substituta.” (STEPHENS & WINKLER, 1995: 371)
No Orestes, quando Pílades intimida Orestes cometendo suicídio por sugerir que
teriam tramado para matar Helena, Orestes diz que “Nada é maior que um amigo
sincero, nem a riqueza nem o soberano.” No contexto da novela, o elogio do amigo é
cômico, porque a situação de Iolaus é absolutamente absurda (CONNORS, 1998).
Um outro fragmento conhecido como Tinouphis também contém uma mistura de
prosa e verso (tetrâmetro cataléptico jâmbico) (STEPHENS & WINKLER, 1995).
Tinouphis, um profeta condenado à morte, é salvo pelo subterfúgio de um executor. O
subterfúgio envolve uma enorme câmara de execução e um tal tijolo especial,
inventados para permitir a fuga. O evento é descrito primeiro em verso e depois em
prosa: os versos mencionam o tijolo especial e remetem ao salvamento do profeta; a
prosa oferece uma narrativa aparentemente rasa desses eventos, informando que quando
o executor foi questionado sobre por que tinha construído uma câmara (megiston) tão
grande, ele habilidosamente disse que ela assim o era porque Tinouphis era um magos.
Apenas possivelmente, o verso dava uma versão ligeiramente mais obscura e
concentrada dos eventos (exatamente como o tijolo especial permite a fuga?) “enquanto
a prosa explica as coisas de um modo mais pediátrico” (CONNORS, 1998: 18).
38
Certo tipo de papel sexualmente passivo assumido por jovens nesse rito.
39
No caso, refere-se ao metro que compreende tetrâmetros catalépticos (verso grego ou latino terminado
por um pé incompleto) compostos por nicos maiores, e tinha geralmente conotação licenciosa. Também
é conhecido por verso sotádico o verso greco-romano que tanto se pode ler da esquerda para a direita,
quanto da direita para a esquerda, ou invertendo a ordem das palavras, mas não é essa a conotação a que
se refere aqui.
40
Segundo Connors (1998), baseado nessas escassas evidências, parece haver uma
ligeira diferença entre o desenvolvimento do verso nos fragmentos gregos e no
Satyricon. O fragmento conhecido como Iolaus apresenta uma incorporação do verso
relativamente “realística”: o gallus fala num metro apropriado aos galli, e a introdução
da citação de Eurípides é relativamente naturalística. O Tinouphis é sugestivo, mas nem
de longe podemos enxergar nos fragmentos gregos “a justaposição extremamente
planejada de uma versão poética grandiosa da ação com a mais mundana consideração
em prosa, presente no Satyricon” (CONNORS, 1998: 19)
1.3.5. Uma questão em aberto
Assim, a poesia de Petrônio tem algumas semelhanças com aquilo que é evidente nas
reminiscências da sátira menipéia, do mimo e da ficção prosimétrica grega, todavia fica
em aberto a questão sobre se um nero particular exerceria influência dominante sobre
outros no Satyricon. Para Connors (1998), momentos de contraste absurdo e
moralização hipocrítica evocariam a sátira menipéia, versos e performances musicais
espontâneas poderiam fazer com que os personagens se parecessem com habitantes de
um universo mímico, e alguns versos (talvez ligados especialmente a personagens
indecorosos – como, por exemplo, a canção do cinaedus no episódio de Quartilla) quiçá
soariam como coisa de novelista grego.
A respeito dos poetas romanos, Conte (1994: 120) afirma que eles “tinham
tendência a colocar a escolha da linguagem e do gênero em ‘termos dramáticos’, quase
ao ‘topo’ do problema da escolha da forma literária”. Ou seja, para usar a metáfora de
Connors, cujo trabalho me servirá de guia aqui, os sistemas genéricos que os autores
romanos elegiam para trabalhar “são mais guarda-roupa que camisa-de-força”, e isso é
especialmente verdadeiro para um autor que trabalha com uma forma flexível de ficção
em prosa. Determinados a esclarecer as confusas obscuridades do texto fragmentado de
Petrônio, os críticos geralmente tendem a formular seus argumentos de modo a
restringi-lo, em termos de que efeitos o texto “produziria”. Mas talvez, como de certa
maneira consentem Abbott (1911) e Connors (1998), pode-se aprender mais explorando
os efeitos que ele “poderia” ter. Para os leitores, escolher o mimo ou a sátira menipéia
ou a “ficção satírico-criminal” como um gênero rígido que “teria” conseqüências
particulares para a exploração das formas mistas de Petrônio, necessariamente
esconderia aquilo que de mais inventivo e surpreendente a respeito de sua poesia
41
precisamente porque em nenhum dos exemplares remanescentes dessas formas literárias
encontram-se as mesmas maneiras “excitantemente amplas e artísticas” (ABBOTT,
1911: 268) com que Petrônio usou o verso. Para encerrar, faço minhas as palavras de
Connors: “(...) uma vez que o Satyricon é texto tão rico e sofisticado e engraçado, e tão
frustrantemente fragmentado, me parece uma pena desperdiçar qualquer uma de suas
palavras” (CONNORS, 1998: 20).
42
CAPÍTULO II
2.1. Sutilezas do Petrônio poeta
2.1.1. Reinventando o passado épico
2.1.1.1. Encolpius indignado
2.1.1.2. Virgílio “transcrito”
2.1.2. Outros poemas curtos
2.1.2.1. Viver e comer
2.1.2.2. A metáfora da queda
2.1.2.3. Publilius Syrus
2.1.2.4. Poeta sum
2.1.2.5. Geografia da luxúria
2.1.2.6. Elegia sobre a calvície repentina
2.1.2.7. Sexo como morte
2.1.2.8. Dignus amore locus
2.1.2.9. Encolpius “epicurista”
2.1.2.10. Dinheiro e Fortuna
2.1.2.11. Tempestade no poema
2.1.3. A queda de Tróia, pelo Eumolpus de Petrônio
2.1.3.1. A abertura
2.1.3.2. Escondidos no cavalo
2.1.3.3. Oh pátria!
2.1.3.4. Laocoonte
2.1.3.5. Ecce alia monstra
2.1.3.6. Tróia embriagada, Tróia enganada
43
2.1. Sutilezas do Petrônio poeta
Este capítulo é dedicado ao detalhamento do que aqui chamamos de sutilezas da poesia
de Petrônio. Seguindo uma divisão proposta por Connors (1998), os poemas de Petrônio
estão separados em três grupos. Do primeiro deles, constam poemas ou versos esparsos
em que Petrônio procede a uma reinvenção ou reformulação do passado épico,
evocando e transformando diferentes monumentos literários greco-romanos, conforme a
sua maneira de fazer paródia e manipular os gêneros com que trabalha. Julgamos que
dois pequenos poemas que se encaixam nesse grupo temático ofereciam problemas
propriamente tradutórios; são esses que serão avaliados. Do segundo, constam onze
poemas que têm uma peculiar relação com o contexto da narrativa em que se inserem e
especialmente com a composição dos personagens que os proferem. Ou seja, poemas
que têm uma relação dialógica com a prosa que interrompem e que podem ser bem
entendidos através de detalhes contextuais, e poemas que, entre outras coisas, servem
para desenhar, compor, traçar o perfil dos personagens que os proferem. O terceiro e
último contém o poema sobre a Tomada de Tróia, um dos poemas mais extensos do
Satyricon ao lado do poema sobre a Guerra Civil, parodia da Pharsalia de Lucano. Esse
poema representa um subprojeto importante dentro do Satyricon e por isso merece ser
assim separado. Portanto dos trinta poemas que aparecem ao longo da narrativa,
incluindo os dois poemas longos e os menores, analisaremos quatorze.
Neste segundo capítulo, todo texto em prosa ou poema citado em latim
acompanha uma tradução feita por mim para o português. A intenção dessas traduções,
considerando que a língua de partida não é acessível a todos, é apenas oferecer uma
idéia do significado que esteja o mais próximo possível do latim, a fim de facilitar ao
menos a explicação dos trocadilhos e demais jogos de significados. Nessas traduções
não nenhum esforço para contemplar as características formais dos poemas, que
estas podem ser apontadas referindo-se ao próprio texto em latim. Todos os excertos do
Satyricon expostos neste capítulo foram retirados da edição de Konrad Muller (1995).
Tive também à disposição a edição de Ernout, usada pelos tradutores Aquati e Bianchet,
porém a edição de Muller, a mais recente das edições oficiais, me pareceu oferecer um
aparato crítico mais completo, trazendo inclusive todos os comentários e alterações
feitos por outros editores importantes.
2.1.1. Reinventando o passado épico
44
“No Satyricon, o épico está constantemente sendo despedaçado e reformulado em ficção
diante dos nossos olhos (SLATER, 1990: 19). Criações de Virgílio e Homero são
apropriadas e transformadas no Satyricon, num diálogo constante com a tradição lírica e
satírica greco-romana. Nos tópicos seguintes veremos dois poemas compostos por
Petrônio dentro desse processo de reinvenção do épico e vamos enfatizar suas sutilezas.
Outros quatro poemas que respeitam essa temática, mas que no entanto o apresentam
problemas propriamente tradutórios, foram omitidos, que este trabalho não tem a
intenção de oferecer uma coletânea de traduções de todos os poemas do Satyricon, mas
sim de analisar os poemas que apresentam problemas específicos de tradução, tais como
problemas relativos a instituições, história, língua, cultura etc. Antes de seguir adiante,
entretanto, vale a pena deter-se sobre um episódio em prosa do Satyricon em especial,
pois é bastante representativo para compreender os procedimentos parodísticos de
Petrônio, aos quais subjazem suas técnicas poéticas.
Durante a Cena, o anfitrião Trimalchio nos conta uma peculiar história a respeito
da origem do bronze de Corinto:
Cum Ilium captum est, Hannibal, homo vafer et magnus stelio, omnes statuas
aeneas et aureas et argenteas in unum rogum congessit et eas incendit; factae
sunt in unum aera miscellanea. Ita ex hac massa fabri sustulerunt et fecerunt
catilla et paropsides <et> statuncula. Sic Corinthea nata sunt, ex omnibus in
unum, nec hoc nec illud.
40
Tendo capturado o Ílio,
41
Aníbal, homem sagaz e de grande astúcia, amontoou
todas as estátuas de bronze, de ouro e de prata, e tocou-lhes fogo, transformando-
as numa miscelânea bronzeada. Então, daquela massa, os artífices retiraram
partes e fizeram pequenos pratos e tigelas, e estatuetas. Assim nasceu o bronze
de Corinto, feito de todos os metais juntos, nem só de um nem só de outro.
A história de Trimalchio joga com o conhecimento do povo romano a respeito
do autêntico bronze de Corinto. Velleius Paterculus, um historiador romano da época de
Augusto e Tibério, usa, por exemplo, o bronze de Corinto como um indicador para
diferenciar dois gêneros de conquistadores: Cipião Emiliano (Scipio Aemillianus, séc. II
a.C.), a quem ele descreve como sendo culto (elegans), e Múmio (Mummius, séc. II
a.C.), quem ele chama de ignorante, rude (rudis). Mummius seria tão ignorante que
certa vez, quando voltava de uma expedição trazendo peças de bronze de Corinto,
acreditou na promessa de seus carregadores de que se acaso alguma delas se perdesse
durante a viagem eles poderiam substituí-las por outras novas, sem problemas
40
Excerto do Cap. 50 do Satyricon.
41
Nome pelo qual a cidade de Tróia também era conhecida.
45
(EMANUELE, 1989). Trimalchio faz questão de enfatizar sua habilidade para distinguir
um bronze de Corinto falso de um verdadeiro, que ele seria o único a possuir um
exemplar verdadeiro, pois o teria conseguido com um artesão chamado Conrinthus.
42
Em contrapartida, mesmo a história contada por Plínio, o Velho, soa também bastante
fantasiosa, confirmando o quão incerto e confuso era o conhecimento dos romanos em
geral a respeito: o metal teria surgido no saque de Múmio a Corinto, em 146 a.C.; a
amálgama de metais ocorreu acidentalmente quando Corinto foi queimada.
43
Connors (1998) chama atenção para o fato de que, em um plano, a maneira falsa
e completamente implausível com que Trimalchio reconta a história do bronze de
Corinto evidencia suas pretensões estúpidas e ignorantes, e brinca com a falta
conhecimento dos romanos a respeito das origens desse metal, a despeito do valor que
lhe davam. Porém, em outro plano, essa nova versão da história faz todo sentido em
termos artísticos. Estátuas são derretidas e misturadas, e o metal resultante transformado
em tigelas, pratos e estatuetas: a mudança de estátua para estatueta (diminutivo) enfatiza
a mudança de escala. O aparato de ostentação honorífica e religiosa é convertido em
ornamentos de consumo e deleite privado. Igualmente, quando o Satyricon desapropria
motivos, cenas e palavras do épico, e as reinventa em seu crisol criativo, os
monumentos literários das culturas grega e romana são convertidos em ficção, uma
forma mais satisfatória para o deleite privado. De fato, tanto o deslocamento da origem
do lendário bronze, da cidade Corinto para Tróia, quanto o adjetivo aeneas, que (apesar
da diferença na pronúncia) parece ter alguma ressonância em Aeneas (Enéas), o herói
épico de Tróia, são reconhecíveis fragmentos do passado épico confundido e
reformulado na história de Trimalchio. Trimalchio, dessa forma, reescreveu a história
do bronze de Corinto à semelhança da história de Roma, começando pela queda de
Tróia, com a conflação
44
adicional de Enéas e Aníbal. “Esta história do bronze de
Corinto tem uma significância programática ou metapoética, funcionando como uma
metáfora para a reformulação paródica do Satyricon do épico como ficção”
(CONNORS, 1998: 21).
Ocorre que talvez o exemplo mais extremo e concentrado desse procedimento de
destruição e reinvenção do épico venha logo em seguida, no capítulo 68, com a
declamação de um trecho da Eneida por um escravo de Habinnas, chamado Massa, a
42
Cf. Cap. 50.2-4 do Satyricon.
43
Cf. Cap 34.6 da Naturalis Historia, de Plínio.
44
Quando elementos de duas histórias se combinam para formar uma nova.
46
mesma palavra usada antes para se referir à “mistura grosseira” de metais derretidos a
partir da qual o bronze de Corinto é feito. Ele mutila o material épico com sua fraca
técnica vocal (conforme descreve o narrador), misturando versos atelanos aos versos
clássicos da Eneida, o que deixa Encolpius aborrecido e o faz pela primeira vez
“ofender-se com Virgílio”. O verso atelano era usado nas chamadas farsas atelanas, e
foi considerado um tipo de verso grosseiro pela tradição literária. Alguns gramáticos
acreditam que os versos atelanos não tinham um metro fixo, outros no entanto afirmam
que seu principal metro era o septenário jâmbico (BEARE, 1964), o que não se pode
verificar no caso em questão, que no texto que nos resta, aparece apenas o primeiro
verso do quinto livro da Eneida ipsis litteris e nada mais. A mutilação de Virgílio, pela
mistura de seus versos com outros versos atelanos improvisados é apenas mencionada
por Encolpius.
Em seguida à sua declamação, à típica maneira do mimo romano, Massa ainda
realiza imitações esdrúxulas de um tocador de trombeta (usando uma lâmpada), de um
flautista (usando pedaços de cana) e de um carroceiro – certamente em alusão aos temas
bucólicos de Virgílio. Contudo, para terminar, o motivo da “mistura grosseira” (Massa)
imitando uma porção de coisas modula
45
uma cena de mimo para o tema da comida:
quando todos acreditavam que o prato que estava por ser servido fosse um combinado
de aves finas, Trimalchio exalta seu cozinheiro dizendo que fizera tudo aquilo a partir
de um material: carne de porco. E continua dizendo que ele mesmo havia posto em
seu cozinheiro o admirável nome de Daedalus. Conforme sugerem Connors (1998) e
Saylor (1987), mencionando o nome do cozinheiro aqui, Petrônio pode ter seguido a
linha de ação de Virgílio: Massa começa com o primeiro verso do quinto livro da
Eneida, e a obra de Daedalus é eminentemente representada na chegada de Aeneas
(Enéias) a Cumae (Cumas), no começo do sexto livro da Eneida. ainda um jogo de
significados com a etimologia do nome Daedalus, que porém aqui não cabe
comentar.
46
Isso tudo se explica para mostrar que a paródia de Petrônio pode ser muito mais
sofisticada do que se imagina, e sobretudo para mostrar que os poemas, por mais que
possam parecer, nunca são gratuitos, estão sempre inseridos dentro de um contexto e de
um procedimento poético maior, assim como suas qualidades formais. Esse exemplo
45
A idéia de modulação aqui tem a mesma conotação que na teoria musical, ou seja, uma variação na
tonalidade.
46
Cf. CONNORS, 1998: 22.
47
concentrado da história do bronze de Corinto é extremamente representativo para
entender os demais casos, nos poemas. Assim como esse arranjo de detalhes corrobora a
idéia de mutilação do épico, transformado em ficção banal, perfeitamente cabível
naquele contexto do romance, durante a Cena Trimalchionis, uma série de detalhes
preenche e corrompe os significados de outros poemas, mutilando o passado épico. Isso
ficará claro no exame que faremos a seguir.
2.1.1.1. Encolpius indignado
Aqui se faz necessário retomar um tema discutido no capítulo anterior, o da ira de
Príapo como motivo estruturante do romance e aspecto principal da paródia do gênero
épico, em que consiste todo o Satyricon. Vale lembrar que a principal potência do deus
Príapo diz respeito ao seu descomunal dote fálico. Príapo, originário do Helesponto,
teria sido expulso de sua terra pela ameaça que representava, e fora posteriormente
admitido entre os deuses após suas vagâncias, o que tem plena relação com o drama de
Encolpius no Satyricon: uma referência a Petrônio feita por Sidônio Apolinário
(Sidonius Apollinaris, ca. 430-483 d.C.) numa lista de grandes escritores latinos sugere
que as cenas do Satyricon começam em Massília (atual Marselha), de onde Encolpius
teria sido banido (COLLINGNON, 1892). Comentários à parte, ocorre que a potência
de Príapo, que compõe a temática da obra, converte-se recorrentemente em inspiração
para a linguagem empregada por Petrônio: assim como Príapo, Petrônio parece estuprar
ou violar o gênero épico, ou ao menos brincar com essa idéia.
No capítulo 132, por exemplo, aparentemente após um fracasso sexual,
Encolpius é enxotado da casa de Circe. Retirando-se para a cama, Encolpius, ofendido,
dirige-se a seu pênis em versos sotádicos. Reiterando o que foi comentado no
primeiro capítulo, no caso, refere-se ao metro que compreende tetrâmetros catalépticos
(verso terminado por um pé incompleto) compostos por jônicos maiores, que tinha
geralmente conotação licenciosa. Também é conhecido por verso sotádico o verso
greco-romano que tanto se pode ler da esquerda para a direita, quanto da direita para a
esquerda, ou invertendo a ordem das palavras, mas não é essa a conotação a que se
refere aqui. O desabafo de Encolpius começa assim:
ter corripui terribilem manu bipennem
ter languidior coliculi repente thyrso
48
ferrum timui, ....
47
três vezes tive nas mãos o intrépido facão
três vezes e eu, mais mole que o talo de uma couve
de repente temi aquela lâmina, ....
A tripla tentativa de castração, segundo Zeitlin (1971), mimetiza a tripla
tentativa do herói da Eneida de abraçar as sombras da amada falecida.
48
Com o ter de
terribilem, a sílaba ter se repete três vezes, e ao final o som se dissolve em thyrso. O
metro, associado ao poeta grego Sótades (séc. 3 a.C.), é especialmente vinculado aos
cinaedi, que no mundo antigo são figuras taxadas de homossexuais passivos.
49
Acima
de tudo, parece haver um interesse persistente em rearranjar os hexâmetros épicos na
forma de sotádicos: esse processo de conversão de hexâmetro em sotádico é descrito
como um arranjo ou uma leitura invertida dos versos (retro, ou retrorsus).
50
Os
sotádicos podem, assim, ser considerados outra forma de paródia épica romanesca,
assim como a paródia da Matrona e outras, pois colocam um assunto trivial dentro de
um molde que possui traços de origens épicas. De acordo com Demetrius, o rearranjo
sotádico da Ilíada (Canto XXII-133) logra um verso que “parece ter mudado de forma,
assim como as figuras mitológicas mudaram de sexo” (DEMETRIUS, 189, apud
CONNORS, 1998: 31). Analogamente, no caso em questão, a forma do metro é
intimamente relacionada com o conteúdo: num nível social, o cinaedus inverte as
normas que determinam o comportamento social do homem livre; no nível da forma
literária, o metro sotádico inverteria as estruturas normativas do hexâmetro.
Basicamente, tomaremos como sutilezas inerentes a esse poema, a fim de
analisar suas traduções, dois aspectos seus. Um deles é a repetição da sílaba ter, que está
diretamente associada à mimese da tripla tentativa de castração e à suposta alusão à
também tripla tentativa de Enéas de abraçar as sombras de sua amada já falecida. O
outro é, obviamente, o uso dos sotádicos, isto é, a idéia da conversão de hexâmetros
para sotádicos, considerando a carga de significado deste metro e toda a explanação
recém feita.
47
Excerto do cap. 132 do Satyricon.
48
Cf. versos 791-93 do livro 2 e 700-1 do livro 6 da Eneida, de Virgílio.
49
O termo cinaedus, palavra grega que significa algo como “aquele que move as genitálias”, é aplicado
àqueles que cumprem o papel passivo no sexo entre homens. Richlin (1992) argumenta que as
representações romanas do cinaedus constituem traços de uma subcultura real de homossexualidade
passiva.
50
Dque posteriormente, na tradição literária, os versos sotádicos ficaram conhecidos como versos que
podem ser lidos de trás pra frente e vice-versa, porém inicialmente esse efeito era apenas uma
conseqüência da paródia formal em que ele consistia.
49
2.1.1.2. Virgílio “transcrito”
Logo em seguida a este, Petrônio comete outro ataque à tradição épica, em especial a
Virgílio. As maiores dificuldades interpretativas nesse caso talvez escapem ao escopo
deste trabalho, pois não dizem respeito à tradução propriamente, todavia alguns
detalhes que pedem preservação, e neste ponto nos aproximamos do nosso problema.
Numa reversão da reformulação sotádica do hexâmetro épico (CONNORS, 1998), ele
concebe três versos hexâmetros construídos a partir de citações literais de Virgílio. Os
versos constam do capítulo 132 do Satyricon:
illa solo fixos oculos aversa tenebat,
nec magis incepto vultum sermone movetur
quam lentae salices lassove papavera collo.
voltada para baixo, mantinha os olhos fixos no chão
e o vulto não se movia nem mesmo com esse discurso
qual lânguidos salgueiros ou papoulas de lasso caule.
A passagem ofendeu muitos leitores por ser uma das mais transgressivas
paródias épicas do Satyricon. Até mesmo Collignon, sempre propenso a ver Petrônio
como um homem de gostos literários conservadores e tradicionalistas, é forçado a
admitir que as frases de Virgílio foram transcritas “com um despudor singular”
(COLLINGNON, 1982: 131). A sutileza de Petrônio neste caso especificamente está em
pinçar versos inteiros e expressões virgilianas que, postas naquele momento da narrativa
do Satyricon, em que Encolpius dirige-se a seu membro após frustrar os desejos de
Circe, mudam de significado e sugerem interpretações bastante cômicas. A seleção de
Petrônio é engenhosa e cuidadosa, e ademais está completamente coerente com a sua
maneira de manipular os gêneros. Petrônio vinha pouco antes disso dialogando com a
tradição da antiga paródia grega, que convertia os épicos em novelas sobre temas de
comida ou animais, porém quando faz a citação de Virgílio está claramente recorrendo à
sátira menipéia. No capítulo anterior, foi dito que a interrupção da prosa com breves
citações literais de versos épicos era característica do gênero menipeu, o que sugere que
no caso em questão Petrônio está claramente brincando com as regras do gênero: tudo o
que cita são palavras de Virgílio, porém combinadas e contextualizadas como não
fora feito antes. Ou seja, Petrônio cumpre a regra, fazendo a citação literal breve, mas
brinca com a regra, citando e unindo partes dispersas originalmente, resignificando-as.
50
O pronome illa no original de Virgílio se refere à rainha Dido, que enfurecida e
magoada com Enéias se nega a lhe falar, e segue calada e imóvel qual uma rocha ou
uma montanha (nec magis incepto vultum sermone movetur / quam si dura sílex aut stet
Marpesia cautes).
51
No Satyricon, illa passa a se referir a uma implícita “parte do
corpo” (pars corporis) mencionada no parágrafo seguinte. Aí, portanto, é importante
manter o sujeito feminino, já que a citação deve ser, via de regra, ipsis litteris, e já que o
próprio Petrônio parece ter se preocupado em preservar o gênero da palavra, a fim de
sustentar a ambigüidade. A primeira parte do terceiro verso (quam lentae salix) remete,
segundo Connors (1998), à oliveira mencionada na quinta écloga de Virgílio (lenta salix
quantum pallenti cedit olivae...
52
); a segunda parte (lassove papavera collo), por sua
vez, remete à morte de Euryalus, o amado de Nisus na Eneida.
53
Virgílio, ao usar essa
metáfora, estaria aludindo à Catulo e sua comparação entre a morte do amor e uma flor
cortada à beira de um campo.
54
“Catulo e Virgílio estão moldando suas símiles tendo
em conta os versos 8.306-07 da Ilíada, uma símile que compara um soldado caído a uma
flor, e que já justapõe ela mesma o mundo épico da batalha à imagem ‘bucólica’ de uma
flor” (CONNORS, 1998: 32). No caso, o que Petrônio faz é justapor o fracasso sexual
de Petrônio às representações de desgraça e perda da Eneida, evocando não apenas
Dido, mas também Nisus e Euriyalus: “o valoroso auto-sacrifício dos heróis de Virgílio
foi parodicamente depreciado no surto histriônico de Encolpius” (SLATER, 1990: 179).
Assim, sem mais digressões e explanações, outra coisa a ser preservada aí são as
imagens usadas por Virgílio, que se trata de uma paródia dirigida diretamente a ele,
ou seja: os salgueiros lânguidos (lentae salices), que remetem à oliveira da quinta
écloga, e as papoulas de lasso caule (lasso papavera collo), que remete à símile
empregada na Eneida. Ademais, o uso do hexâmetro épico também é bastante
significativo, justamente por corroborar o contraste entre a nobreza do épico e a baixeza
de Encolpius.
2.1.2. Outros poemas curtos
Além de Encolpius, Petrônio faz outros de seus personagens interromperem a narrativa
com breves poemas. Diferente dos três casos que recém analisamos, nos onze poemas
51
Cf. livro 6, versos 470 e 471 da Ilíada, de Virgílio.
52
Bucólicas, V, 16. (Débil salgueiro cede à pálida oliveira)
53
Cf. livro 9, verso 436 da Eneida, de Virgílio.
54
Cf. livro 11 de Catulo, versos 21 a 24.
51
que veremos a seguir, Petrônio parece se preocupar não apenas em reinventar o passado
épico, mas também e principalmente em dilatar o significado de suas paródias,
combinando prosa, personagem e poesia. Trimalchio, Eumolpus, Encolpius e Tryphaena
interrompem a narrativa com poemas que, além de contribuir para a composição de seus
perfis, provocam uma resignificação da prosa, ampliando e “bagunçando”, sob a
regência de Petrônio, todo o universo de temas que compõe a obra.
Alguns dos poemas curtos do Satyricon foram omitidos pelo mesmo motivo
explicado no tópico anterior: suas sutilezas não se encaixam na abordagem deste
trabalho, por não apresentarem problemas tradutórios diretamente ligados às técnicas de
poesia e paródia específicas de Petrônio.
2.1.2.1. Viver e comer
Os poemas interpretados por Trimalchio estão repletos de trocadilhos de linguagem
figurada, os quais transcendem a função de demonstrar as pretensões e limitações
literárias desse personagem medíocre e tipicamente petroniano. O primeiro de seus
poemas é, por exemplo, à primeira vista, uma epigrama trivial e moralista, declamada
enquanto um servo trazia um esqueleto de prata, mais um de seus ornamentos
ostensivos.
eheu nos miseros, quam totus homuncio nil est!
sic erimus cuncti, postquam nos auferet Orcus.
ergo vivamus, dum licet esse bene.
55
pobre de nós, já que todo mísero homem não é nada!
assim seremos todos, depois que o Orco nos levar.
portanto vivamos, enquanto se permite tal deleite.
O aspecto moralista é banal (o rato da cidade, de Horácio, usa o mesmo
raciocínio para convencer o rato do campo a se aventurar na cidade)
56
e a técnica
poética nada impressionante: “ao invés de usar o padrão elegíaco, ele dispõe um simples
pentâmetro depois de dois hexâmetros, e o som das duas monossílabas ao final do
primeiro verso é particularmente rude” (BARNES, 1971: 255). Porém, se voltarmos
nosso olhar do poema para o momento da prosa onde ele se insere, perceberemos que o
poema não é assim tão simplório. No poema, a imagem do Orco que nos leva embora
55
Cap. 34 do Satyricon.
56
Cf. livro 2, cap. 6 das Sátiras, de Horácio.
52
(auferet) representa a morte; logo em seguida, um novo prato (ferculum, da mesma raiz
de aufero) é literalmente trazido,
57
enquanto o poema é “levado embora”. Assim, a
convencional exortação a “viver bem enquanto puder” se torna particularmente
engraçada se lida no contexto da narrativa. A possibilidade de relacionar vida e morte
com comida está embutida através de trocadilhos no próprio poema, pois, como bem
observa Huxley (1970), esse é o infinitivo tanto de sum (ser) como de edo (comer). O
próprio ferculum sugere uma simbologia relacionada à morte, que seus ingredientes
representam os doze signos do zodíaco. Para os astrólogos e para os crêem neles, a
posição das estrelas no nascimento de uma pessoa contém o segredo a respeito de sua
morte, porque a morte de um indivíduo é astrologicamente determinada pelo
alinhamento do zodíaco no momento em que ele nasce. Logo, o prato zodiacal que é
trazido reafirma nele mesmo o fato inevitável de que a morte nos a leva a todos, assim
como Trimalchio havia afirmado com seu esqueleto de prata e com o poema
(CONNORS, 1998).
As sutilezas desse poema aparentemente simples, enfim, não são tão simples.
Recapitulando, a pobreza técnica intencional no uso metro, que diz respeito à
caracterização de Trimalchio; a relação etimológica entre auferet e ferculum, e a
ambigüidade implícita no uso do infinitivo esse, que dizem respeito a todo o discurso
que Petrônio quis claramente construir a respeito de vida, morte, comida e deleite.
2.1.2.2. A metáfora da queda
Depois do jantar Trimalchio declama uma segunda epigrama. também uma rede de
trocadilhos liga os versos ao momento da narrativa. Quando um acrobata cai em cima
de Trimalchio, ele declara o jovem livre, e afirma que o fato (casum) deve ser registrado
com uma “inscrição.” Em seguida chama os inscultores e lhes recita três versos:
quod non expectes, ex transverso fit <ubique,
nostra> et supra nos Fortuna negotia curat.
quare da nobis vina Falerna, puer.
58
o que não esperas, transcorre em qualquer parte,
e acima de nós a Fortuna cuida dos nossos negócios.
Por isso, dá-nos vinho de Falerno, garoto.
57
Cf. cap. 35 do Satyricon.
58
Cap. 55 do Satyricon. As palavras sinalizadas (ubique, nostra) não aparecem em todas as edições do
texto latino. Mueller (1961) as atribui a um gramático chamado Hensius.
53
Outra vez, a técnica poética não é nada impressionante e a justaposição de
prazeres convivais momentâneos a incertezas futuras é banal. O que aguça o humor é a
relação entre o poema e seu encaixe na narrativa. O sentimento moral abrange tanto a
“transformação” trivial e momentânea da vida de Trimalchio pela queda do garoto,
como a “transformação” significante e permanente do garoto pela alforria repentina que
recebeu (caso não seja um blefe de Trimalchio). Uma metáfora convencional da
romanice loqui existente na palavra casus geralmente associava acontecimentos casuais
com a queda; ou seja, algo que caiu do céu, algo que aconteceu: um caso (BARNES,
1971). Esta metáfora convencional torna-se literal e concreta na queda do acrobata.
Com efeito, a ameaça real apresentada pela queda do acrobata é contida ao ser
transformada em metáfora, e ao mesmo tempo, as metáforas convencionais da queda
são motivadas pelo infortúnio do acrobata (CONNORS, 1998). Na discussão que
antecede a libertação do acrobata, a metáfora da queda está implícita na formulação de
que os negócios humanos estão in praecipiti (em precipício, “à beira do abismo”),
59
tal
como na palavra casum empregada por Trimalchio. Em seu poema, Trimalchio de fato
parece estar pensando no acrobata que sentiu vir de cima quando imagina a Fortuna
acima (supra) de nós (WALSH, 1970).
Assim, mais uma vez a técnica poética intencionalmente pobre combinada com
o jogo de significados estabelecido em conjunto com a narrativa são responsáveis pelo
efeito cômico e pela função desse poema. A imagem da Fortuna como algo que vem de
cima ou que está acima, pela alusão ao acrobata, é algo a ser considerado. Essa analogia
à queda, contudo, está implícita em todo o poema, o que dá margem a estratégias de
tradução livre.
2.1.2.3. Publilius Syrus
Uma outra performance mímica desempenhada por Trimalchio sugere conexões que
fogem um pouco de seu controle. Depois que Trimalchio se mete numa discussão
comparando os méritos poéticos de Cícero e de certo poeta mímico chamado Publilius
Syrus, ele “cita” versos de apelo moral a respeito da luxúria, os quais atribui a Publilius,
conquanto sejam provavelmente uma criação de Petrônio (COURTNEY, 2001). Antes
Trimalchio já insinuava um discurso sobre a luxúria, porém aqui ele fica explícito:
59
Cf. cap. 55 do Satyricon.
54
luxuriae rictu Martis marcent moenia.
tuo palato clausus pavo pascitur
plumato amictus aureo Babylonico,
gallina tibi Numidica, tibi gallus spado;
ciconia etiam, grata peregrina hospita
pietaticultrix gracilipes crotalistria,
avis exul hiemis, titulus tepidi temporis,
nequitiae nidum in caccabo fecit tuae.
quo margaritam caram tibi, bacam Indicam?
an ut matrona ornata phaleris pelagiis
tollat pedes indomita in strato extraneo?
zmaragdum ad quam rem viridem, pretiosum vitrum?
quo Carchedonius optas ignes lapideos?
nisi ut scintillet probitas e carbunculis.
aequum est induere nuptam ventum textilem,
palam prostare nudam in nebula linea?
as muralhas de Marte morrem na boca da luxúria.
um pavão aprisionado é engordado para o teu paladar
coberto por um áureo tapete babilônico de plumas;
uma galinha da Numídia a ti, a ti um capão da Gália;
mesmo a cegonha, grata peregrina estrangeira
filha leal, que tem patas graciosas e toca castanholas,
ave exilada no inverno, sinal de tempo quente,
fez ninho no caldeirão da tua perversão.
pra que te serve uma pérola valiosa, uma baga indiana?
acaso pra que a matrona enfeitada de fáleras do mar
arraste, indomável, as patas pra cama alheia?
pra que raios uma esmeralda verde, um vidro precioso?
por que preferes as pedras ígneas de Cartago?
a menos que a honra brilhe dos carbúnculos.
convém envolver uma noiva num tecido de vento
e expô-la nua em público numa névoa de linho?
Talvez seja este um dos momentos em que Petrônio se posiciona de maneira
mais clara em relação à polêmica que envolvia as principais escolas literárias de sua
época o asianismo e o aticismo, movimentos supostamente antagônicos. De alguma
forma, o moralismo e a suposta simplicidade do poeta preferido por Trimalchio
combina perfeitamente com os aticistas, defensores da pureza e da retidão dos costumes.
No entanto, a exuberância de seu estilo é exatamente aquilo que os aticistas
condenavam nos asianistas. De acordo com a historiografia e a tradição crítica, como
vimos no capítulo anterior, muitos dos pretensos aticistas, da escola estóica por
exemplo, como Pérsio e Lucano, fizeram uma literatura apenas travestida de aticismo.
Por trás do rótulo do aticismo, estavam todas as características do asianismo, repugnada
por eles.
Em termos formais, o jogo de palavras do poema, baseado no som ou no sentido,
parece ser uma versão radical do tipo de coisa alhures celebrada ou depreciada em
citações de Publilius (SANDY, 1976). O estilo é enfeitado e a expressão pontuada.
Como observa Connors (1998), a aliteração é bastante recorrente: Martis marcent
55
moenia (1),
60
palato ... pavo pascitur / plumato (2-3), titulus tepidi temporis (7),
nequitiae nidum (8), strato extraneo (11), palam prostrare (16), nudam in nebula (16).
O poema toma Roma como interlocutor, dirigindo-se a ela na segunda pessoa, e
acusando que a cidade estaria sendo devorada pela luxúria, a qual possuiria uma boca
(rictus, 1). A cegonha, contra a sua natureza, faz um ninho (nidum, 8) num caldeirão. Os
bens materiais são representados pelas jóias da matrona indecorosa, e a crítica ao
materialismo se consuma na retórica sarcástica da frase nisi ut scintillet probitas e
carbunculis (“a menos que a honra brilhe dos carbúnculos,” 14).
O poema apresenta o tradicional argumento de que o luxurioso comércio
marítimo seria a ruína da dignidade romana: três aves da primeira metade do poema (o
pavão, a galinha-d’Angola e a cegonha) chegaram a Roma de muito longe, assim como
as jóias e as roupas finas (geralmente associadas à seda)
61
da segunda metade (SANDY,
1976; CONNORS, 1998). As imagens criam conexões analógicas entre os diferentes
objetos de crítica no poema. A primeira luxúria, o pavão, é “coberto por um áureo tapete
babilônico de plumas,” enquanto a noiva descrita no final é envolta numa seda
transparente. O contraste entre a textura do pavão, o tapete de plumas decorado com
ouro e o tecido de brilho fino da noiva contribuem para a estruturação do poema
(SOCHATOFF, 1970). Uma outra ligação entre as aves do começo e a matrona
adornada da segunda parte é o fato de que frequentemente imaginavam-se as plumas do
pavão como se fossem cravadas com pedras preciosas: Fedro, Marcial e Plínio fizeram
essa associação (CONNORS, 1998). Um tipo semelhante de analogia entre as mulheres
e as jóias aparece em uma discussão que Plínio faz a respeito do âmbar, um item
precioso mas tão decadente à época que as mulheres o estimavam. Plínio faz tal
comentário quando diz que Nero num poema chamou o cabelo de Pompéia de “âmbar”
(sucinos), dando assim às mulheres uma terceira opção de cor para seus cabelos (além
do claro e do castanho).
62
Cada uma das aves mencionadas foi estrategicamente escolhida. Na literatura
romana, especialmente do período clássico, copiosos exemplos de sátiras e críticas
morais relacionadas ao consumo do pavão e da galinha-d’Angola, animais delicados e
bonitos. Horácio, Plínio e Cícero versaram sobre o tema (COURTNEY, 2001).
Contudo, a escolha da cegonha merece destaque, particularmente pela maneira como ela
60
Numeração relativa à ordem dos versos.
61
Daí o uso das metáforas ventum textilem (tecido de vento) e nebula linea (névoa de linho).
62
Cf. cap. 37.50 da Naturalis Historia, de Plínio.
56
é predicada no poema. O comportamento migratório da cegonha tem uma singularidade
marcante: acredita-se que a cegonha não costuma mudar seu ninho de lugar e que
sempre regressa a ele, a fim de cuidar dos parentes mais velhos. O conceito romano de
piedade dizia respeito à lealdade familiar, por isso o poema chama a cegonha de
pietaticultrix (“filha leal”, literalmente “cultora da piedade”), embora a acuse em
seguida de fazer ninho no caldeirão da perversão romana. Aqui uma ligação com
toda a temática da infidelidade, presente nas cenas de adultério do Satyricon. Isso fica
claro nos termos seguintes a pietaticultrix: gracilipes crotalistria. Crotalistria (“que
toca castanholas”) deve-se seguramente ao som que a cegonha faz com o bico
(COURTNEY, 2001), mas uma associação adicional: as dançarinas ciganas que
tocavam castanholas levavam naquela época o estigma da lascívia (CONNORS, 1998).
O terceiro termo gracilipes (que tem pés/patas graciosas) vincula a cegonha diretamente
à matrona lasciva e infiel da segunda parte do poema: a matrona, seduzida pelas jóias
preciosas, arrasta seus pés para a cama alheia, para uma cama estranha (tollat pedes ...
in strato extraneo), assim como a preciosa cegonha migra com seus pés graciosos para o
caldeirão romano.
Pouco antes, na prosa, um conviva sentado ao lado de Encolpius tinha chamado
a esposa de Trimalchio, Fortunata, de pica pulvinaris (gralha de sofá) e dito que as
posses de Trimalchio iam até onde um papagaio consegue voar. Na Cena, enquanto
Fortunata (“Dinheirista”) e Scintilla (“Cintilante”) exibiam suas jóias uma para outra,
Trimalchio e Habinnas reclamavam do quanto elas lhes custavam, do quanto elas lhes
eram dispendiosas. Ao longo da mesma cena, Scintilla mostra seus brincos, chamando-
os de crotalia (castanholas). Mais adiante na narrativa, depois do poema e sua menção a
uma matrona, aparece o conto milésio da Matrona de Éfeso. Logo após a declamação do
poema em questão, Trimalchio fala do talento de Fortunata no cordax, uma dança
cigana, embora ela se negue a dançar. Trimalchio, o mesmo que repugna a luxúria
romana, é um grande pervertido degenerado e materialista; isto é, contém em sua
personalidade as mesmas contradições implícitas no poema. Ou seja, evidentemente,
estrategicamente e intencionalmente todos os elementos do poema estão vinculados com
seu contexto narrativo, e portanto não podem ser ignorados.
Por fim, enfatizando e resumindo as sutilezas do poema, vale relembrar e
afirmar propriamente que a exploração radical da aliteração e dos trocadilhos entre as
imagens e seus significados tem a ver com a alusão ao estilo do poeta mico Publilius
que aparente se quer fazer. Igualmente, um forte tom moralista atravessa todo o poema.
57
O tema geral da crítica que se faz à luxúria de Roma (muralhas de Marte) é a ânsia
estúpida pelo exótico. O exótico diz respeito a aves delicadas então cobiçadas e
devoradas e a pedras e tecidos luxuosos, que eram banalizados pelo gosto feminino e
por sua vez provocavam a perversão de toda a virtude romana. Por isso, cada detalhe na
caracterização das aves, cada detalhe na descrição das jóias e das mulheres é
sistematicamente importante, perante o próprio poema, perante a narrativa como um
todo, perante o projeto engenhoso de Petrônio.
2.1.2.4. Poeta sum
Não são poucos os estudiosos que consideram o personagem Eumolpus, ao lado de
Trimalchio e Encolpius, uma das maiores criações de Petrônio. Assim como os retratos
de Trimalchio e Encolpius, o retrato de Eumolpus é desenvolvido de modo gradual e
engenhoso, à medida que o poeta é definido através de suas ações na narrativa, através
de uma linguagem própria usada sob diferentes formas (verso, prosa crítica, anedota,
réplica), e finalmente através de comentários às reações dos outros. Seu próprio nome
que deriva do grego e significa “aquele que canta bem” remete diretamente a uma
vasta tradição poética: Homero, Ovídio, Platão e Sêneca, entre outros, reportaram-se a
Eumolpus como sendo uma entidade maior, ancestral dos poetas (BECKER, 1979).
Com Eumolpus, pois, Petrônio comete o seu maior ataque metaliterário, seja à tradição
épica ou a seus pares e rivais contemporâneos. E o faz porque ridiculariza esta figura,
representante dos poetas, apresentado-a como alguém importuno, arrogante e vaidoso
embora rude, que banaliza a poesia justamente porque a usa sem medida.
Em sua primeira aparição, no capítulo 83, Eumolpus aborda Encolpius
afirmando sua identidade poética: “ego” inquit poeta sum” (“Eu,” disse ele, “sou um
poeta”). Aparentemente ele cque a idade avançada lhe permite vestir-se roto como
quer, e igualmente sugere que seu aspecto de pobreza é a prova de que tem virtudes
poéticas ou seja, é uma caricatura um tanto debochada do estereótipo do poeta. Em
seguida, sem que Encolpius dissesse nada, defensivo, como que arranjando uma
desculpa para exibir sua eloqüência, Eumolpus dirige-se outra vez a Encolpius, de uma
maneira que evoca o contemporâneo Pérsio:
63
“quare ergo” inquis “tam male vestitus
63
Como nota Connors (1998), na primeira sátira de Pérsio (verso 44) há uma fala cuja estrutura é
semelhante: quisquis es, o modo quem ex adverso dicere feci... (quem quer que sejas, já te fiz contradizer-
te...).
58
es?” (“então,” te perguntas, “por que estás tão mal vestido?”). E logo emenda um
poema:
qui pelago credit, magno se faenore tollit;
qui pelago et castra petit, praecingitur auro;
vilis adulator picto iacet ebrius ostro,
et qui sollicitat nuptas, ad praemia peccat:
sola pruinosis horret facundia pannis
atque inopi lingua desertas invocat artes.
64
quem crê no mar, tira dele grande proveito;
quem busca guerras e castros, é coberto de ouro;
o vil adulador jaz bêbado na púrpura bordada,
e quem alicia a mulher alheia, peca pelo prêmio:
só a eloqüência treme em trapos gelados
e com a pobre língua invoca artes esquecidas.
Este breve poema em hexâmetros brinca com a modalidade tradicional da sátira
romana, isto é, o sermo (discurso ou conversação). Eumolpus adota as convenções das
sátiras poéticas e crê que o poeta deveria “realmente” falar em sermones versificados.
“Um livro de poesia satírica ganha vida na forma de sermones” (CONNORS, 1998: 63).
Esses versos também criam outra impressão, a de um livro de poesia vivo, pois
remetem diretamente a algo feito por outros autores romanos. A lista de ocupações
que o poema apresenta (o pescador, o guerreiro, o adulador, o aliciador), mais lucrativas
que a poesia, porém menos íntegras no caso das duas últimas, é muito similar às listas
de ocupações apresentadas de modo programático por Horácio, na primeira de suas
Odes, e por Tíbulo (55 a.C - 19 a.C), no primeiro de seus poemas. Os versos de
Eumolpus, assim como os de Horácio e Tíbulo, podem ser lidos como sendo o começo
de uma antologia poética (LOPORCARO, 1984). Ou seja, Eumolpus, o “representante
ancestral da poesia”, é ele mesmo um livro de poesia vivificado, um importuno que se
apresenta sem que lhe peçam, levantando bandeira pela dignidade da poesia, de um
modo um tanto estúpido e risível. “Obviamente ele sabe a diferença entre ele mesmo e
um livro de poesia, mas se diverte confundindo (ou fingindo confundir) as distinções
entre o que é metafórico e o que é real” (BECK, 1979: 242). Logo em seguida ao
poema, um pensamento expresso pelo narrador Encolpius sugere que Eumolpus pudesse
ser “lido,” ao chamá-lo de “letrado,” termo usado tanto em sentido literal (marcado com
letras) quando figurado (homem das letras).
Enfim, para corroborar a aparente intenção de Petrônio de fazer com que a
entrada de Eumolpus se parecesse à abertura de um livro de poemas, que se prestar
64
Cf. cap. 83 do Satyricon.
59
atenção em algumas qualidades desse seu primeiro poema. Recapitulando, Eumolpus
usa convenções do sermo romano, e compõe um poema à semelhança dos poemas
introdutórios de Horácio e Tíbulo, antes comentados. Assim, o tradicional hexâmetro
característico da maior parte da poesia romana e também dos sermones satíricos e a
elocução típica desse gênero são elementos importantes. Igualmente, o significado dos
elementos que compõem a lista de ocupações bem sucedidas, em contraposição ao
malogro da poesia como profissão, é outro aspecto a ser cuidado. Ou seja, esse contraste
entre as profissões bem sucedidas e a poesia é remarcado no poema.
2.1.2.5. Geografia da luxúria
Depois da cena na galeria de artes, Eumolpus se reencontra com Encolpius, que está de
volta à hospedaria e outra vez reunido com Giton. Eumolpus então exalta a simplicidade
da refeição deles:
ales Phasiacis petita Colchis
atque Afrae volucres placent palato,
quod non sunt faciles: at albus anser
et pictis anas involuta pennis
plebeium sapit. ultimis ab oris
attractus scarus atque arata Syrtis
si quid naufragio dedit, probatur:
mullus iam gravis est. amica vincit
uxorem. rosa cinnamum veretur
quicquid quaeritur, optimum videtur.
a ave caçada na Cólquida Fásica
65
e os pássaros d’África aprazem o paladar,
porque não são fáceis: mas o ganso branco
como o pato coberto de penas pintadas
tem sabor plebeu. os escaros trazidos
das costas mais longínquas e um lavrado de Sirte
66
qualquer que seja, se deu para um naufrágio, é provado:
o ruivo
67
já não tem graça. a amante vence
a esposa. a rosa reverencia o cinamomo.
tudo o que é desejado parece ótimo.
Assim como o poema de Publilius recitado por Trimalchio, os versos de
Eumolpus mapeiam uma geografia moral bastante familiar: a vida na terra natal é
simples e segura; o mar é perigoso e decadente (COURTNEY, 2001). Nessa geografia
65
Referência à antiga cidade de Fásis (Phasis) na Cólquida. Atualmente esta cidade se chama Poti, e
pertence à República da Geórgia.
66
Referência à região do Golfo de Sirte (Syrtis) no mediterrâneo, atualmente conhecido como Golfo de
Sidra.
67
Nome de um peixe, então comum na dieta romana.
60
da luxúria, faisões da Cólquida e galinhas-d’angola são desejados apenas pela raridade e
pelo valor comercial que têm, enquanto que gansos e patos selvagens têm um sabor
plebeu, conforme confirmam Plínio e Horácio (CONNORS, 1998). A rosa, bela mas
popular, se rende ao cinamomo, importado e luxurioso. A analogia entre mulheres e
aves luxuriosas, que predomina no poema de Trimalchio, aparece aqui também, já que o
poema equipara a amante às luxúrias importadas, ao passo que a esposa é equivalente às
aves rasteiras locais.
Todavia os perigos que Eumolpus condena no poema tornam-se realidade
quando os protagonistas, a bordo do navio de Lichas, são surpreendidos por uma
tempestade, que leva a embarcação ao naufrágio. Nesse momento eles estão
acompanhados por Tryphaena, mais uma rival dos admiradores de Giton. Tryphaena
viaja por causa do prazer (voluptatis causa).
68
Ela ostenta um nome que deriva da
palavra luxúria em grego, e estava então rumo ao “exílio” em Tarentum, cidade
notoriamente luxuriosa.
69
Tudo isso leva a crer que tal personagem incorpora aquelas
mulheres licenciosas contra as quais o poema se volta (BALDWIN, 1976). Os poemas
moralistas de Trimalchio e Eumolpus, que ligam mulheres licenciosas ao comércio
marítimo, tornam-se particularmente significativos aqui e coerentes dentro da obra
se lidos mediante as desgraças que acometem Encolpius, no navio de Lichas: no mar, a
representante da luxúria, Tryphaena, cobiça seu amado Giton; no mar, a bordo de um
navio mercante, ele experimenta o naufrágio.
Ou seja, todos os elementos do poema de Eumolpus são programaticamente
escolhidos, para que adiante, na cena do naufrágio, possam ser retomados pelo leitor
sintonizado com Petrônio, apto a fazer tais tipos conexões. Todos esses elementos
também dizem respeito à técnica realista de Petrônio, pois estão diretamente
relacionados com a realidade romana de então. Referências a certas luxúrias exóticas
trazidas pelo comércio marítimo e suas respectivas origens (como a cidade de Fásis, na
Cólquida, o golfo de Sirte e a África), bem como referências a trivialidades da cultura
romana de então (aves típicas da dieta romana e a popular rosa, por exemplo) são
componentes importantes dentro da “geografia da moral” de Eumolpus. Todos eles,
juntos, reforçam o específico discurso moralista que o personagem quer fazer aqui e
contribuem para composição das analogias comentadas, que serão reafirmadas depois:
mulheres licenciosas, aves e demais luxúrias trazidas pelo comércio marítimo, causa da
68
Cf. cap. 101 do Satyricon.
69
Cf. cap. 100 do Satyricon.
61
ruína romana. Todos eles, pois, em detalhe e em conjunto, constituem a sutileza desse
poema.
2.1.2.6. Elegia sobre a calvície repentina
Após Gitão e Encolpius, a mando de Eumolpus, rasparem a cabeça, numa tentativa
frustrada de se disfarçarem para fugir da ira dos tripulantes e passageiros do navio de
Lichas, Eumolpus lhes dedica uma elegia a respeito da calvície repentina.
70
Tal poema,
como observa Courtney (2001), é uma versão engraçada e extravagante do tipo de
moralismo a respeito da mortalidade presente nas epigramas de Trimalchio. A calvície
está ligada às “fases” da vida, vernantesque comas tristis abegit hiemps (o inverno
severo faz desaparecer as cabeleiras resplandecentes), e a palavra para a mancha da
calvície (area) também evoca a eira (area); ambas são chamuscadas (adusta) pelo sol
(COURTNEY, 2001). Em geral a calvície é o sinal da mortalidade do corpo:
o fallax natura deum: quae prima dedisti
aetati nostrae gaudia, prima rapis.
Oh falaz natureza dos deuses: as alegrias que à nossa
juventude primeiro deste, primeiro tiras.
Esse momento parece indicar uma quebra; os versos recomeçam em
hendecassílabos e se dirigem a Encolpius em termos mais pessoais. As alusões à
natureza continuam, enquanto Eumolpus diz o quão atraentes são Encolpius e Giton
com seus cabelos (mais encantadores que Phoebus e sua irmã) e o quão ridículos eles se
parecem então (lisos qual um bronze polido ou uma trufa redonda). E a calvície, ele
completa, mostrará o quão rápido a morte virá:
ut mortem citius venire credas,
scito iam capitis perisse partem.
E para que creias que a morte vem mais rápido,
fica sabendo que parte de tua cabeça já perecera.
Depois do poema, o “infortúnio” da calvície repentina e seus maus presságios
são deixados para trás tão logo a escrava de Tryphaena devolve a felicidade a Encolpius
e Giton, restituindo-lhes os cachos ao tirá-los de uma peruca de sua senhora.
Inicialmente, a maneira como Eumolpus banaliza a morte em seus versos parece
ridícula. Mas assim como os de Trimalchio, os poemas curtos de Eumolpus são
70
Cf. cap 109 do Satyricon.
62
construídos de modo a combinar o que é geral e metafórico nos versos com o que é
particular e concreto na narrativa (CONNORS, 1998). Seu primeiro poema o faz entrar
no texto como se fosse um livro de poesia; seu segundo poema sobre a luxúria e os
perigos das viagens marítimas que trouxeram esse mal para Roma pressagia
ironicamente seu próprio envolvimento na viagem posterior, no navio de Lichas, e a
luxuriosa Tryphaena. Sua elegia sobre os cabelos o é diferente. De acordo com uma
visão supersticiosa dos fatos, a calvície repentina de Encolpius e Giton foi vinculada
diretamente ao naufrágio e, logo, à morte de Lichas. O personagem Hesus, que viu
Encolpius e Giton enquanto raspavam suas cabeças, interpreta a ão deles como um
mau agouro, porque no mar somente aqueles ameaçados por um naufrágio cortariam
seus cabelos e os dedicariam aos deuses: execratusque omen, quod imitaretur
naufragorum ultimum votum (“e execrou o presságio, pois lhe pareceu ao último voto
dos náufragos”). E depois ele completa, audio enim non licere cuiquam mortalium in
nave neque ungues neque capillos deponere nisi cum pelago ventus irascitur(“ouço
falar que não é permitido a nenhum mortal a bordo de um navio cortar suas unhas ou
cabelos, a não ser que o vento e o mar estejam enfurecidos”).
71
Lichas resolve punir os
culpados com quarenta chibatadas cada como forma de expiar sua transgressão, mas o
castigo é interrompido quando Giton e Eumolpus são reconhecidos, embora Lichas
insistisse na punição mais tarde, levando-a adiante com o consentimento de Tryphaena.
Eumolpus intervém fisicamente e verbalmente para impedir o espancamento, e o acaba
interrompendo provocando uma briga, a qual só termina com o apaziguamento de
Tryphaena.
72
Assim, na interpretação supersticiosa, ao ordenar que Encolpius e Giton
cortassem o cabelo para se disfarçar, Eumolpus torna-se ele mesmo parte da causa do
naufrágio. Quando o navio é devastado pela tempestade e Lichas morre, os versos
banais de Eumolpus a respeito da calvície repentina sussurram como uma lembrança da
morte que acompanha um mau presságio.
Todos os detalhes da composição do poema antes mencionados (formais e
semânticos) tecem um discurso que combina perfeitamente com a situação narrativa
onde ele está inserido. Este, assim com os outros poemas curtos, contribui para a
caracterização do personagem, está em concordância com a exploração crítica de formas
poéticas populares feita na obra, e não apenas cumpre uma função na narrativa, como
também a complementa, fornece novas informações e sugere novas possibilidades
71
Cf. caps. 103 e 104 do Satyricon.
72
Cf. cap 106 do Satyricon.
63
interpretativas. O uso da elegia, um tipo de poema-lamento, geralmente bastante sóbrio
e moralista, deve ser remarcado: o poeta ridículo de Petrônio resolve se lançar a uma
elegia sobre o cômico tema da calvície num momento inoportuno, numa espécie de mea
culpa dissimulada. Na primeira parte do poema ele mantém as convenções da elegia
antiga, usando dois dísticos elegíacos
73
e respeitando tom sóbrio de lamento, porém na
segunda, como dissemos, há uma quebra inusitada para hendecassílabos e uma mudança
no tom das palavras, que passam a ser menos gerais e mais pessoais, dirigidas a
Encolpius e Giton. Essa é uma sutileza importante a ser notada: Eumolpus continua
usando a poesia clássica sem cuidado e conveniência, como manda seu figurino,
enquanto que a quebra do padrão da elegia e o uso de termos informais pode ser
interpretado como um descuido do personagem, um descuido que denuncia sua
dissimulação; e fora isso, Petrônio continua brincando com os padrões dos gêneros que
manipula, como o faz em todo o Satyricon. A associação da calvície com a natureza, a
comparação das fases da vida com as estações, as analogias a elementos naturais são
evidentemente intencionais, e constituem outra sutileza importante. A ambigüidade no
emprego da palavra area (que sugere tanta a “área” calva como a eira) é, por exemplo,
um detalhe bem pontual que reflete essa associação (vida-natureza) presente em todo o
poema.
2.1.2.7. Sexo como morte
Encolpius como poeta diferencia-se de Trimalchio e Eumolpus por um simples motivo:
ele é o narrador, e assim sendo controla a narrativa e pode manipular as conexões dela
com seus poemas de modo mais completo que outros personagens. Como entende Beck,
“Encolpius compõe a maior parte de seus poemas não para declamá-los para seus
companheiros, mas como se fizesse um comentário auto-deprecatório bastante
sofisticado a respeito de sua naïveté perdida” (BECK, 1975: 272). Ou seja, é como se
nos poemas Encolpius se permitisse ser ingênuo, idealista, suplicando por uma pureza
que já se foi ou nunca existiu, enquanto que na prosa é malicioso, sarcástico, debochado
e realista. Dois de seus poemas aparecem quando ele perde Giton para Ascyltus; os
outros se concentram nos episódios com Circe e Oenothea em Crotona. Ele não declama
73
Dístico elegíaco era o metro geralmente utilizado na composição de elegias e epigramas na Antigüidade
greco-romana. Trata-se de uma estrofe de dois versos dactílicos, sendo o primeiro um hexâmetro e o
segundo um pentâmetro.
64
nunca na frente de Eumolpus, “e constrói os poemas de um modo que as próprias
imagens e metáforas poéticas, bastante convencionais e irrelevantes segundo ele
mesmo, ironicamente cortam a idealização erótica que elas projetam ostensivamente”
(CONNORS, 1998: 69). Antes de narrar o jantar de Trimalchio, Encolpius celebra os
prazeres do amor quando fala de uma noite passada com Giton:
qualis nox fuit illa, di deaeque,
quam mollis torus. haesimus calentes
et transfudimus hinc et hinc labellis
errantes animas. valete, curae
mortales. ego sic perire coepi.
74
que noite foi aquela, oh deuses e deusas,
que leito macio. nos abraçamos ardentes
e pelos lábios vertemos de um lado pro outro
nossas almas errantes. Adeus, preocupações
mortais. Eis que então eu comecei a morrer.
O sexo é explicitamente celebrado: almas passam de uma boca para a outra aos
beijos, o amante se despede das preocupações mortais, e o sexo, pelo uso da palavra
perire, é representado como “morte” (ADAMS, 1892). Ainda que os motivos sejam os
padrões (pois, de fato, Petrônio repete o tema da mistura de almas no cap. 132), a
particular linguagem da paixão empregada no poema, que enfatiza a errância, a partida e
a morte, nos leva a crer que foi escolhida para se obter o máximo efeito irônico, que
logo em seguida, na prosa, Encolpius, como narrador, resume secamente a narração de
sua noite de prazeres com: sine causa gratulor mihi (e sem razão me pus contente).
Alcyltos leva Giton para a cama; assim que descobre a traição, Encolpius pensa em
fazer do sono deles a morte; depois de uma luta parodicamente mortal, Ascyltos
determina que Giton escolha qual companhia prefere, e Giton parte com Ascyltos. No
poema, errantes se refere simplesmente às almas que vagam de uma boca para a outra,
mas quando a traição e a partida se sucedem, outras acepções da palavra relacionadas ao
erro e ao abandono parecem perfeitamente possíveis também. Em outros contextos,
transfundo pode ser usado para falar de afeições transferidas indiscriminadamente;
75
considerando a escolha que Giton faz logo em seguida ao poema, a presença desse
termo aí torna-se ironicamente profética.
Aparentemente não há nenhuma sutileza no plano formal desse poema. Além da
celebração exagerada dos prazeres amorosos feita através de metáforas banais
(intencionalmente usadas), está, pois, o emprego de termos que ganham polissemia em
74
Cap. 79 do Satyricon.
75
Cícero, nas Filípicas, faz tal uso (CONNORS, 1998).
65
seu contexto narrativo e resignificam o poema pela mistura dos temas da errância,
partida, morte e traição amorosa, com a celebração comovida do sexo, como perire,
errantes e transfundo.
2.1.2.8. Dignus amore locus
No tópico 2.1.1 mostramos um poema que Encolpius declama após seu fracasso
sexual com Circe. Um outro poema seu, que aparece também após o fracasso, descreve
um lugar perfeito para o amor. Esse poema traz várias referências a uma paisagem
idílica, porém mais uma vez contém uma série de termos ambíguos, que ganham outros
significados dentro da narrativa, e jogam com os temas do fracasso e do
desapontamento, ao mesmo tempo em que brincam com referências épicas. No capítulo
131, pois, Encolpius fala de seu dignus amore locus:
mobilis aestivas platanus diffunderat umbras
et bacis redimita Daphne tremulaeque cupressus
et circum tonsae trepidanti vertice pinus.
has inter ludebat aquis errantibus amnis
spumeus et querulo vexabat rore lapillos.
dignus amore locus: testis silvestris aedon
atque urbana Procne, quae circum gramina fusae
et molles violas cantu sua rura colebant.
o plátano balangante propagara sombras estivais
e Daphne cingida de bagas, e ciprestes trêmulos
e pinos tosados, com seus vértices trépidos.
entre essas plantas corria um riacho espúmeo de águas errantes
e as pedras sacudia com sua água querelante.
o lugar perfeito para o amor: são testemunhas o rouxinol silvestre
e a Procne citadina, que espalhadas ao redor da relva
e das tenras violetas, lavravam seus campos com o canto.
A paisagem idílica contém a sombra de várias árvores, um riacho e o canto dos
pássaros. Mas as frases que são de fato usadas para designar essas características
tradicionais sugerem desapontamento e frustração. Ao se escolher a palavra grega
Daphne ao invés da latina laurus para o loureiro, o desejo de Apolo contrariado por
Daphne é evocado (CONNORS, 1998; COURTNEY, 2001). O adjetivo redimita
“cingida de” transfere ironicamente para o loureiro o vocabulário apropriado para o uso
das coroas de louro.
76
O cipreste remete ao desapontamento de Apolo na morte de sua
amada Cyparissus.
77
O pino também é associado em outros contextos à tentativa
76
No livro 3 da Eneida, verso 81, há esse mesmo uso de redimita.
77
Cf. Ovídio, Metamorfoses, livro 1, versos 452-567, e livro 10, versos 106-142.
66
malograda de Pan vencer Pitys (CONNORS, 1998). Os pássaros cujo som lavra os
campos são o rouxinol e a Procne (também conhecida como andorinha da cidade),
silvestris aedon atque urbana Procne; a história etiológica de Procne e Philomela é
seguramente um bom presságio para um ato de amor. O riacho indiretamente também
sugere problemas para esses amantes. A metáfora de uma água querelante, queixosa,
usada para descrever o som do riacho (querelo ... rore), e as conotações geralmente
violentas de vexo sugerem que essa paisagem ideal para os amantes deve conter em si
mesma suas nuances entre prazer e desagrado. E por último, o adjetivo para o plátano
(mobilis, “móvel”, “balangante”) também leva conotações de inconstância e
mutabilidade (BECK, 1995).
Assim como no poema anterior, também neste, não a forma, mas a seleção
cuidadosa de vocábulos que cobrem os versos de hipertextualidade constitui-se a
principal sutileza do poema. Portanto, mais uma vez o peso do trabalho parodístico de
Petrônio no poema recai sobre uso de específicos termos; neste caso: mobilis, Daphne,
redimita, pinus, Procne, querelo, vexabat... Termos combinados de tal maneira que o
poema passa a oferecer múltiplas leituras, sendo que uma delas certamente leva a veia
cômica de nosso autor.
2.1.2.9. Encolpius “epicurista”
Expulso da casa de Circe (provavelmente pelo fracasso sexual), Encopius retira-se para
a cama. Estruturalmente, a cena tem um paralelo com o solilóquio de Encolpius na
praia, depois de perder Giton (cap. 81). É difícil falar muito a respeito da função dos
versos sobre Tântalo no capítulo 82, mas considerando as conexões feitas em outros
textos entre o desejo frustrado de Tântalo
78
e a frustração de um desejo erótico, Di
Simone (1993) elaborou o razoável argumento de que os versos sobre Tântalo poderiam
perfeitamente seguir o episódio da impotência descrito no capítulo 132. Depois de seus
78
Na mitologia grega, Tântalo foi um mitológico rei da Frigia ou da Lídia, casado com Dione. Ele era
filho de Zeus e da princesa Plota. Segundo outras versões, Tântalo era filho do Rei Tmolo da Lídia (deus
associado à montanha de mesmo nome). Teve três filhos: Níobe, Dascilo e Pélope. Certa vez, ousando
testar a onisciência dos deuses, roubou os manjares divinos e serviu-lhes a carne do próprio filho Pélope
num festim. Como castigo foi lançado ao Tártaro, onde, num vale abundante em vegetação e água, foi
sentenciado a não poder saciar sua fome e sede, visto que, ao aproximar-se da água esta escoava e ao
erguer-se para colher os frutos das árvores, os ramos moviam-se pra longe de seu alcance sob a força do
vento. A expressão suplício de Tântalo refere-se ao sofrimento daquele que deseja algo aparentemente
próximo, porém inalcançável, a exemplo do ditado popular “Tão perto e, ainda assim, tão longe”
(GRIMAL, 1983).
67
sotádicos e da citação “descarada” de Virgílio, Encolpius se envergonha de sua falta de
vergonha e fica vermelho por isso, embora ninguém pudesse vê-lo (coepi secreto ...
rubore perfundi, “... comecei a ser tomado por um rubor secreto”). Depois,
recuperando-se de sua vergonha, ele se encoraja a falar em sua própria defesa e profere
um poema em versos elegíacos, coroando sua apologia da candura:
quide me constricta spectatis fronte Catones
damnatisque novae simplicitatis opus?
sermonis puri non tristis gratia ridet,
quodque facit populus, candida lingua refert.
nam quis concubitus, Veneris quis gaudia nescit?
quis vetat in tepido membra calere toro?
ipse pater veri doctos Epicurus amare
iussit et hoc vitam dixit habere τέλος.
por que me olhais com a fronte franzida, Catões
e condenais esta obra de original simplicidade?
a graça nada triste de um linguajar puro faz sorrir,
o que quer que faça o povo, minha língua cândida replica.
pois quem não sabe o que é uma transa, os prazeres de Vênus?
quem se proíbe esquentar os membros num leito tépido?
o próprio pai da verdade, o douto Epicuro, amar
ordenou e disse que vida tem esse τέλος.
Porque era notadamente difícil fazer o Catão jovem sorrir, como Plutarco
chegou a comentar,
79
seu olhar severo servia como uma imagem popular de retidão
moral. Uma famosa anedota chegou a dramatizar isso: quando Catão fazia parte de uma
platéia em uma edição da Floralia,
80
o público ficou aparentemente relutante a exortar as
atrizes do mimo a fazer o strip-tease de costume. Com efeito, Catão tornou-se árbitro do
espetáculo a que tinha ido assistir. Dando-se conta de que sua presença estava inibindo
o espetáculo, Catão foi embora, levando consigo seu olhar severo. A anedota sobre
Catão e a retirada de seu olhar severo opõe mimo e moral, determinando para cada qual
um tempo e um espaço apropriado: o público, os atores e Catão todos conheciam as
regras.
81
Marcial, por sua vez, pergunta maliciosamente se Catão teria ido à Floralia e
sentado na primeira fileira apenas para fazer de sua retirada um espetáculo
(COURTNEY, 2001). O poema de Encolpius sobre Catão, assim como outras tantas
referências ao mimo, associa a narrativa do Satyricon à licença festiva do mimo.
Sendo parte de um padrão de referências oportunistas ao Epicurismo no
Satyricon, numa clara correspondência de forma e conteúdo, o poema termina com a
79
Catão foi um político romano, protótipo de retidão moral. Plutarco em Vidas Paralelas, livro 1, cap. 2,
refere-se à dificuldade de fazer Catão sorrir, especialmente quando ainda era jovem.
80
Floralia era um festival da Roma Antiga celebrado em honra da deusa Flora.
81
Valério Máximo, Sêneca e Marcial fazem menção a essa anedota (COURTNEY, 2001).
68
palavra que designa o fim (τέλος) e que sinaliza uma distorção paródica de idéias mais
complexas, presentes no περί τέους de Epicuro, uma obra que não sobreviveu, mas foi
referenciada por autores antigos (PURINTON, 1993, apud CONNORS, 1998). Além
disso, Encolpius também toma representações feitas do próprio Epicuro como modelo.
Courtney (2001) afirma cero e Ateneu ambos enfatizam a coragem de Epicuro ao
afirmar nesse trabalho o περί τέους que os prazeres físicos são centrais para “o
bem”: de acordo com Ateneu, Epicuro fala essas coisas em tom de exclamação;
82
e
Cícero, nas Controvérsias Tusculanas, imagina que Epicuro tenha deixado o pudor de
lado ao dizê-lo: quid tergiversamur, Epicure, nec fatemur eam nos dicere voluptatem,
quam tu idem, cum os perfricuisti, soles dicere? (“Por que hesitamos, Epicuro, e não
dizemos que estamos falando do mesmo tipo de prazer do qual tu mesmo falou a
respeito certa vez quando dispensou o rubor da vergonha?”). Ao deixar de lado o rubor
da vergonha, Encolpius alude indiretamente ao gesto que Cícero em sua imaginação
atribuiu ao próprio Epicuro: antes de citar Epicuro no poema, ele se descreve a si
próprio nos mesmos termos que Cícero usou para descrever o suposto comportamento
de Epicuro.
Analisa ainda Courtney que mesmo na tradição epicurista não a noção de um
poder do olhar para induzir alguém à vergonha. Por isso Sêneca cita Epicuro em uma
discussão sobre a inibição do poder da vergonha: sic fac, inquit, omnia, tamquam
spectet Epicurus (“faz, ele disse, qualquer coisa, mesmo que Epicuro esteja olhando”).
Sêneca traduz a imagem à situação romana, sugerindo que alguém imagine Catão
(aparentemente o Catão velho) ou Cipião, ou se se preferir uma opção menos severa,
Laélio, observando tudo o que se faz (COURTNEY, 2001). Essa noção de que todas as
ações de alguém estão disponíveis ao olhar de Epicuro é seriamente traduzida para os
romanos por Sêneca, substituindo um Catão por Epicuro. Petrônio, por sua vez,
interpolando a narrativa com o padrão elegíaco, explora parodicamente essa noção,
contrastando Catones com Epicuro, e afirma: “o que quer que faça o povo, minha língua
cândida replica.”
2.1.2.10. Dinheiro e Fortuna
82
Ateneu, conhecido como Ateneu de Náucrates (séc. 200 d.C.), faz tal comentário em sua única obra, “O
banquete dos eruditos”.
69
No capítulo 137, quando Encolpius aplaca Oenothea, oferecendo-lhe dinheiro como
compensação por ter matado seu ganso, ele celebra o feito num poema. Encolpius
começa o poema declarando que a riqueza pode controlar a fortuna para que ela obedeça
a nossa vontade:
quisquis habet nummos, secura navigat aura
fortunamque suo temperat arbitrio.
uxorem ducat Danaen ipsumque licebit
Acrisium iubeat crederem quod Danae.
carmina componat, declamet, concrepet omnes
et peragat causas sitque Catone prior.
iuirsconsultus “parret, non parret” habeto
atque esto quicquid Servius et Labeo.
multa loquor: quod vis nummis praesentibus opta,
et veniet. clausum possidet arca Iovem.
quem tem dinheiro, navega com vento seguro
e controla a fortuna conforme a sua vontade.
pode desposar Dânae e fazer
o próprio Acrísio acreditar em Dânae.
componha poemas, declame, mexa com todo mundo
meta-se em causas e seja melhor que Catão.
jurisconsulto, haverá de dispor do “está claro, não está claro”
e haverá de ser tal qual Sérvio e Labeão.
eu falo demais: escolhe o que queres com dinheiro na mão,
e terá. o baú possui Júpiter preso dentro dele.
A partir da afirmação geral de que o homem controla a fortuna como quer, o
poema procede a uma versão depreciada e racionalizada do mito de Dânae,
83
na qual a
visita de Júpiter como um banho (ou uma chuva) de ouro se transforma no suborno
ilícito de um amante. Depois da lista de feitos bem sucedidos por conta do dinheiro (o
poema, a declamação, o sucesso como advogado), o final do poema afirma que o baú
(objeto onde se guardam tesouros, fortunas) contém Júpiter preso dentro dele,
revertendo claramente o mito, segundo o qual Dânae é atirada ao mar dentro de um baú,
com seu filho Perseu. O poema é introduzido como uma celebração de Encolpius da
aplacação de Oenothea, depois de ter-lhe oferecido dinheiro. Em outros poemas, no
83
Na mitologia grega, Dânae é filha de Acrísio e Eurídice. Acrísio, rei de Argos, era descontente por não
ter um herdeiro homem e maldizia sua filha. Um dia Acrísio consultou o oráculo e soube que mesmo que
se escondesse no fim da Terra, seria morto pelo filho de Dânae. Segundo uma versão do mito, Acrísio
aprisiona a filha num calabouço, para que ninguém pudesse fecundá-la. Zeus, porém Júpiter na versão
romana do mito, malogra o plano de Acrísio e se infiltra no calabouço na forma de chuva (uma chuva de
ouro, segundo a versão romana), fecundando Dânae. Acrísio então prende a filha grávida num baú e a
manda jogarem no mar. Poseidon, no entanto, a pedido de Zeus (Júpiter), salva a vida da princesa, que vai
parar com seu filho na ilha de Sérifo. Polidetes, o monarca local, e Dites, seu irmão, acolhem a náufraga,
que ali a luz a seu filho Pérsio. Dites se apaixona por Dânae, e mais tarde, quando Pérsio crescera,
temendo que este se revoltasse por ciúmes da mãe, encoraja-o a ir derrotar a Medusa, esperando que fosse
derrotado e pudesse assim ficar em paz com sua mãe. Pérsio, porém, vence o monstro e na volta,
festejando a vitória nos jogos comemorativos, acaba acertando um dardo por acaso em Acrísio, que estava
presente na platéia, cumprindo assim a profecia (GRIMAL, 1983).
70
entanto, como lembra Connors (1998: 75), “essas generalizações mais plácidas contêm
insinuações de decepções futuras.” Isto é, em outros poemas, como naquele que
nomeamos Geografia da Luxúria, proferido por Eumolpus, generalizações serenas sobre
a vida insinuam decepções que estão por vir na narrativa. De qualquer maneira, a
afirmação de que a riqueza pode tornar o mar seguro é obviamente implausível.
Encolpius desmonta a oposição convencional entre acaso e desígnio, entre fortuna e
arbitrium, da qual se vale, por exemplo, Horácio, ao representar o vento Notus como
um árbitro do mar Adriático.
84
Assim como o baú mítico de Dânae, jogado à toa no mar
por Acrísio para proteger-se do perigo, “o próprio poema contém os materiais da
anulação de seu orador” (CONNORS, 1998: 75). O “naufrágio” fatal que Acrísio
obviamente pretendia para Dânae e Perseu nunca viria a acontecer. Colocar Dânae
banhada de ouro num baú como forma de custódia não significou proteção para Acrísio,
e a lição que a moral romana quer sublinhar é a de que um baú cheio de dinheiro não é
proteção contra as adversidades da fortuna. Aí, portanto, ao que parece, outra ironia
metaliterária. Num engenhoso ensaio seu, Barchiesi (1984) argumenta que o nome
Árbitro é uma descrição especialmente perspicaz do tipo de controle tácito que Petrônio
exerce sobre sua narrativa:
o poema também está aberto a uma leitura auto-reflexiva que desvela a
ficcionalidade do acaso: sinalizando ironicamente a usual incapacidade de
Encolpius de sujeitar a fortuna a seu arbitrium, ele [o poema] reconhece que o
máximo controle sobre a fortuna no Satyricon é sem dúvida de Petrônio Árbitro.
(BARCHIESI, 1984: 173)
Despojado das regras tradicionais de gêneros estabelecidos, livre de
impedimentos impostos por personagens lendários, Petrônio arma um complô contra
seu próprio desígnio ou seja, até a fortuna tem vez no seu texto (BARCHIESI, 1984).
Nesse poema, portanto, a “bagunça” que faz com todos os elementos e personagens do
mito de Dânae é em si a sutileza, a graça... paradoxalmente, a qualidade do poema no
contexto da narrativa e da obra como um todo. Petrônio brinca com a tradição
mitológica e com a moral romana, diluindo o significado moral do mito ao perverter
seus elementos, e se afirma como árbitro de sua literatura, ao mesmo tempo em que
ridiculariza seu herói e a si mesmo.
2.1.2.11. Tempestade no poema
84
Livro I das Odes, 3-15.
71
Esse aparente discurso construído no Satyricon que opõe acaso e desígnio, sugerido no
item anterior, pode ser percebido com mais clareza ao se interpretar o naufrágio “real”
sofrido pelos personagens. No episódio de Lichas, Petrônio justapõe uma tempestade
literal a outra figurativa, enquanto alude ao uso moralizante do naufrágio como
metáfora da imprevisibilidade da vida. O uso dessa figura era recorrente entre alguns
literatos de seu tempo o “rival” Lucano fez tal uso, por exemplo e portanto, a
escolha desse tema e a manipulação que Petrônio faz dele não são gratuitas
(MORFORD, 1967).
A primeira justaposição é discernível num trocadilho sutil presente num poema
“épico” do capítulo 108, declamado por Tryphaena no momento em que ela repreende
seus companheiros por brigarem. “Por que travar batalhas como essa,” ela pergunta,
“quando o próprio mar está cheio de incerteza e perigo?”
“quis furor” exclamat “pacem convertit in arma?
quid nostrae meruere manus? non Troius heros
hac in classe vehit decepti pignus Atridae,
nec Medea furens fraterno sanguine pugnat.
sed contemptus amor vires habet. ei mihi, fata
hos inter fluctus quis raptis evocat armis?
cui non est mors una satis? ne vincite pontum
gurgitibusque feris alios immititte fluctus.”
“que furor,” ela exclama, “converte a paz em guerra?
que desgraça mereceram nossas mãos? o herói de Tróia
não leva na esquadra a prenda do átrida traído,
85
nem a furiosa Medeia luta pra ver o sangue do irmão.
mas o amor desprezado tem força. ai de mim! quem
em meio a estas ondas evoca o fado brandindo as armas?
pra quem uma morte não basta? não ousai vencer o mar
e nem lançai outras ondas neste turbilhão feroz.
Como Slater (1990) bem observa, a presença de exclamat no primeiro verso
acentua uma tensão entre a realidade vivida e as convenções literárias: “O ouvinte/leitor
de repente quer saber: Enéas e os outros personagens do épico realmente falavam entre
si em hexâmetros? Que partes das falas deles teria sido excluída quando o narrador
insere exclamat ou ait no meio de uma passagem em discurso direto?” (SLATER, 1990:
173). Outros detalhes lingüísticos dessa passagem também confrontam realidade vivida
com linguagem literariamente figurada. O último verso de Tryphaena justapõe
claramente o “turbilhão” real (gurgitibus), para onde o navio se dirige, às “outras
ondas” metafóricas (alios ... fluctus), referentes à briga: assim como Trimalchio, ela usa
85
Referência ao espartano Menelau, filho de Atreu (por isso átrida), esposo de Helena, cujo rapto deu
inicio à Guerra de Tróia.
72
oportunamente o verso para criar correspondências entre linguagem figurada e realidade
vivida. Logo após o poema, Encolpius como narrador usa esse trocadilho como um
gancho para descrever a elocução de Tryphaena, que traz para a sua linguagem os
perigos meteorológicos sugeridos no poema: haec ut turbato clamore mulier effudit
(“assim que a mulher precipitou aquelas palavras num clamor tempestuoso”). O verbo
turbo pode ser usado no sentido de “agitar” o mar; effundo pode ser encontrado ao se
falar da chuva que “precipita”; e clamor também é usado para se referir ao “trovão”
(COLLIGNON, 1892; ZEITLIN, 1971). Embora nenhuma dessas palavras
individualmente sugira a metáfora de uma tempestade para todos os leitores, uma vez
combinadas e contextualizadas, para um leitor em sintonia com a prática de Petrônio, a
própria mistura caótica de motivos épicos no poema poderia sugerir uma tempestade de
modelos literários, pressagiando a tempestade épica que destruirá o navio mais adiante,
no capítulo 114.
Não Lucano, mas também Virgílio e Sêneca exploraram bastante esse uso
figurativo da tempestade, e Petrônio, em todo o episódio que se passa no navio de
Lichas, enche a narrativa de alusões a esses usos feitos por seus pares literários. Em dois
dos poemas atribuídos a Petrônio que apareceram pela primeira vez no florilégio
medieval mencionado no capítulo 1 também existe esse mesmo jogo dialético que
envolve fortuna, naufrágio e arbítrio. Muller (1995), Sullivan (1968), Courtney (2001) e
Connors (1998) acreditam que tais poemas fariam parte desse episódio, o que nos indica
que Petrônio aparentemente teve uma larga intenção de explorar essa temática em todo
o episódio do navio, e através dela estabelecer um diálogo crítico com específicos
autores da tradição romana.
As referências a Menelau, Helena e Medeia, o uso do hexâmetro e a cena da
tentativa de conciliação feita pela mulher cobiçada, elementos explicitamente épicos do
poema; a interrupção do verso com o comentário do narrador e as referências literais e
metafóricas à tempestade, através de termos específicos ou através da mescla caótica de
modelos literários, tencionando realidade e ficção, esses elementos todos constituem-se
a sutileza do poema, difíceis de serem percebidos senão analisados tanto em detalhe
como em conjunto.
2.1.3. A queda de Tróia, pelo Eumolpus de Petrônio
73
Assim como os poemas mais curtos analisados até aqui, os dois poemas mais extensos
do Satyricon, proferidos por Eumolpus, são absolutamente dissimulados na
simploriedade que aparentam. No entanto, de modo mais objetivo e pontual que nos
poemas menores, nesses dois grandes poemas, sobre a queda de Tróia e sobre a Guerra
Civil ainda que siga fazendo alusões críticas a diversos fatos históricos, problemas e
casos curiosos das mais diversas ordens relativos a Roma, personagens mitológicos e
políticos, entre outros alvos de sua veia cômica Petrônio deixa mais explícitos os
personagens literários e as obras as quais parodia: no poema sobre a queda de Tróia,
Virgílio e, indiretamente, Sêneca são os “atacados”; no poema sobre Guerra Civil é
indubitavelmente Lucano e sua principal obra que Petrônio, através de seu Eumolpus,
está parodiando. Neste tópico vamos nos concentrar no poema sobre a queda de Tróia,
procedendo ao mesmo tipo de análise poética que vimos fazendo até aqui. O poema
sobre a Guerra Civil, entretanto, por ser demasiado grande (295 versos) e por conter
técnicas de paródia muito concentradas e complexas (o que demandaria um longo e
demorado trabalho de análise), teve que ser omitido neste trabalho, pois excederia seus
limites. Os poemas aqui analisados certamente dão conta dos objetivos propostos: o de
tomar consciência dos problemas teóricos da tradução dos poemas do Satyricon, e o da
avaliação de algumas traduções de tais poemas feitas ao português do Brasil.
“Galerias de arte em ficções antigas são verdadeiros viveiros de significados: em
suas atmosferas confinadas e luxuriantemente descritivas, uma ecfrase
86
causa rebuliço,
intensificando em muito os temas e obsessões do romance” (CONNORS, 1998: 84). Na
galeria de artes de Petrônio, Encolpius e Eumolpus revelam seus interesses e opiniões
quando põem a arte em palavras. A princípio não fica claro porque Encolpius vai à
galeria de artes, se foi apenas um esconderijo rápido para a fuga, se entrou ali por
acidente, ou se teria entrado ali intencionalmente para ver as obras de arte embora ele
estivesse claramente aflito por causa da perda de Giton. Assim como fez com o mito de
Dânae no poema que analisamos pouco, Encolpius, em suas observações sobre os
personagens e os mitos representados nas obras da galeria, inverte e modifica suas
estruturas, pervertendo o significado deles conforme a sua vontade, deixando a ecfrase à
mercê de seu senso crítico debochado. Seus comentários são repletos de alusões
retóricas a Ovídio e Virgílio especialmente à Eneida. Entretanto, a maneira como
86
Ecfrase é, lato sensu, a descrição de algo. O entendimento mais comum desse termo, no entanto, diz
respeito à longa descrição de uma obra de arte visual que aparece em meio a uma narrativa. Por exemplo,
na Eneida, uma longa ecfrase dos muros de Dido, detalhando a Guerra de Tróia. Tanto na Ilíada como
na Eneida há ecfrases de muralhas (FOWLER, 1991).
74
Encolpius manipula esses elementos épicos ao trazer as obras de arte à prosa tem uma
abordagem e uma função bastante específicas: assim como a maioria de seus poemas, a
ecfrase de Encolpius pretende idealizar o desejo que as figuras míticas carregam,
sugerindo por conseguinte a frustração desse desejo, o que condiz perfeitamente com os
motivos do seu personagem e do romance como um todo.
Contudo, ainda mais interessante para o nosso trabalho aqui é como Petrônio
prolonga a ecfrase da sua obra através de Eumolpus. Eumolpus se insinua na história
justo no momento em que Encolpius tecia seus comentários na galeria. Sua entrada
seguida de um poema moralista sobre a dignidade da poesia foi analisada no item
2.1.2.4. Assim como Encolpius, porém com menos detalhes, Eumolpus também oferece
suas considerações a respeito das obras e seus respectivos mitos, a partir dos motivos e
obsessões de seu personagem obsessões estas que são mais bem explicitadas adiante,
nos capítulos 85-87, quando faz uma digressão e insere o conto milésio do garoto de
Pérgamo, expondo suas inclinações pederastas, no capítulo 88, onde ele faz uma
denúncia (desinformada) da decadência moderna da arte (SLATER, 1990), e no capítulo
89, com sua interpretação poética da pintura sobre a Guerra de Tróia.
Não um consenso em relação ao motivo que teria levado Petrônio a inserir
o poema sobre a Guerra de Tróia. Walsh (1970: 47), a partir de sua avaliação da forma
literária do poema, conclui que “Petrônio demonstra o quão fatalmente fácil é escrever
tragédias como as de Sêneca”, e Sullivan (1968) argumenta mais particularmente que
Petrônio parodia Sêneca fazendo um ataque político a ele, a fim de ganhar a predição de
Nero. O foco principal da argumentação de Zeitlin (1971) é o conteúdo do poema; ela
argumenta que a história de Petrônio sobre o cavalo de Tróia subverte valores augustos
presentes na Eneida e epitoma os temas do engano e do disfarce, que atravessam o
Satyricon. A leitura de Slater (1990: 96) e o processo de interpretação em primeiro
plano, argumentando que “o fracasso do poema em atingir as expectativas da ecfrase
(...) é parte do padrão de falhas de interpretação que caracteriza o resto do romance
também.” A abordagem de Connors (1998) procura considerar todas essas linhas
argumentativas, pois volta sua atenção para as conexões entre forma e conteúdo,
contexto narrativo e poema, e levando em conta também o contexto mais amplo da
Roma de Nero. “O uso obsessivo de repetição e similaridade no poema de Eumolpus
chama atenção insistentemente para o próprio status do poema, uma imitação
87
tardia do
87
Considere-se o conceito romano de imitação, que não era pejorativo.
75
tratamento épico que Virgílio deu ao tema do segundo livro da Eneida” (CONNORS,
1998: 86). Sob esse aspecto, o poema é uma instância máxima daquele fenômeno
caracteristicamente neroniano descrito de modo sucinto por Gowers (1993, apud
CONNORS, 1998: 87): “Nero e seus escritores, a despeito do golfo que havia entre eles,
compartilharam a herança enfadonha da perfeição augusta, as responsabilidades de uma
nova promessa e os esperados padrões de uma outra idade de ouro ... Tudo o que
surgisse estava fadado a ser ‘tardio.’” Além disso, uma preocupação explícita com a
repetição e a imitação na história de Tróia tem uma ressonância especial para Roma,
onde as lendas traçam a identidade histórica do povo no crisol da conflagração troiana.
Se Roma era Tróia renascida, sempre que os romanos olhassem para ou através de
Tróia, em certa medida, estariam implicados em considerações sobre a relação de sua
própria cidade – e eventualmente de seus imperadores – com o passado épico distante.
2.1.3.1. A abertura
Por causa da proeminência da queda de Tróia na Eneida, o documento cultural central
na Roma antiga, os leitores de Petrônio terão lido esse poema tendo sempre em mente a
versão de Virgílio. O passado troiano é inelutavelmente o passado virgiliano. Eumolpus
imita a primeira parte da destruição de Tróia narrada na Eneida. Assim como na
narrativa de Virgílio, absolutamente mais extensa, a narrativa de Petrônio inclui a
construção do cavalo, a decepção dos troianos, a resistência de Laocoonte, a chegada
das serpentes e o ataque delas a Laocoonte e seus filhos, e a matança dos troianos pelos
gregos. Diferente de Virgílio, Eumolpus diminui o papel de Sinon, e não narra a
passagem do cavalo na cidade. Uma crítica cética alegaria que a semelhança entre os
dois textos não é forte ou particularmente significante, pois o poema de Eumolpus é
composto em trímetro jâmbico, ao invés do hexâmetro épico, e, como num testemunho
de eventos míticos, tem a estrutura do discurso de um mensageiro trágico (SLATER,
1990). Entretanto, toda a literatura latina está sobre a sombra de Virgílio: o metro não
sinaliza independência da influência de Virgílio, mas submissão a ela, fazendo do
poema uma versão menos extensa, e secundária, da história épica de Tróia.
Por meio de uma introdução a seu poema, Eumolpus anuncia que vai tentar
“explicar” (pandere) a pintura da queda de Tróia em verso (cap. 89). O anúncio de
Eumolpus não vem a ser uma surpresa, uma que vez que posto em termos
76
convencionais.
88
Além disso, o anúncio de Eumolpus é também particularmente
apropriado para iniciar o poema, pois pandere pode ser usado no sentido de “abrir” em
empregos mais físicos e concretos da palavra. De fato, essa palavra é usada pelo Enéias
de Virgílio ao narrar a maldita abertura dos portões de Tróia. Os portões são abertos
primeiro para que os troianos pudessem sair para verificar se o litoral estava realmente
desocupado, após a partida dos gregos, panduntur portae (“os portões são abertos,”
livro 2, verso 227 da Eneida), e depois quando o cavalo é puxado pra dentro da cidade
(moenia pandimus urbis, “abrimos os muros da cidade,” livro 2, verso 234 da Eneida).
O poema de Eumolpus, embora não repita as descrições que Virgílio faz da abertura dos
portões de Tróia, considera todos os eventos, desde a admissão do cavalo dentro da
cidade até a própria abertura do cavalo. Como conclui Connors (1998: 88):
A metáfora escolhida por Eumolpus para descrever seu projeto poético acaba
criando uma estreita correspondência entre a abertura do significado da pintura,
proporcionada por suas palavras, e a abertura de Tróia, proporcionada pelo
artefato dos gregos, a partida decepcionante, o cavalo inscrito, e a mentira de
Sinon.
Poderíamos esperar que Eumolpus oferecesse uma descrição ecfrástica da
pintura. Entretanto, em sua abertura, o poema não apresenta evidências de que seja uma
ecfrase de alguma pintura, tais como indicadores espaciais ou referências a uma técnica
artística. É, por exemplo, especialmente difícil imaginar os primeiros versos em termos
visuais, pois suas referências parecem mais temporais que espaciais:
iam decuma maestos inter ancipites metus
Phyrgas obsidebat messis et vatis fides
Calchantis atro dubia pendebat metu,
cum Delio profante [ferro] caesi vertices
Idae trahuntur scissaque in molem cadunt
robora, minacem quae figurabunt equum.
a décima safra sitiava então os infelizes frígios
em meio a medos ambíguos, e a confiança do profeta
Calcas pendia dúbia num medo sombrio,
a mando do délio, os cumes do Ida abatidos
são trazidos, e caem aos montes os carvalhos cindidos
que darão forma ao cavalo ameaçador.
Esses versos são sobremodo diferenciados por conta da sintaxe bastante
“torturada” que eles apresentam, o que pode sugerir que o controle de Eumolpus sobre o
discurso literário seja imperfeito ou insatisfatório (WALSH, 1968). É claro que é o
88
Lucrécio no livro 1 de De rerum natura, verso 55, Virgílio, no livro 4 das Geórgicas, verso 284, e no
livro 6 da Eneida, verso 723, e Statius no livro 5 de Silvae, cap. 3, verso 156, apresentam elocução
semelhante para abrir o poema (CONNORS, 1998).
77
exército grego quem sitia Tróia e confecciona o cavalo, mas messis, não os gregos, é o
sujeito gramatical de obsidebat e o pronome quae (referente a robora), em lugar dos
gregos, é o sujeito de figurabunt. Evidentemente, o poeta não nomeia os gregos até que
o escondimento deles no cavalo seja descrito de modo bastante elaborado o que será
feito nos versos seguintes.
Portanto, primeiro, como aspecto constitutivo de todo o poema, o trocadilho
da abertura, que é sugerido por vários jogos de significados (a abertura do significado
da pintura, a abertura do poema, a abertura dos portões de Tróia, a abertura do cavalo
etc.). Depois, mais específico dessa primeira parte do poema, a idéia da sintaxe
“torturada”, como indicador da mediocridade poética de Eumolpus. E, por fim, a
intencional não designação dos gregos como atores da tomada de tróia, da desgraça
troiana. Nesse começo do poema, reiterando, é a “décima safra” que sitia Tróia (não o
exército grego) e são os “carvalhos” que confeccionam o cavalo (não os gregos). Ainda
em relação a isso, há um último detalhe a se observar: “délio” (referente à ilha de Delos)
era o nome usado especialmente pelos romanos para se referir a Apolo, deus admitido
pelos romanos, mas originalmente grego (GRIMAL, 1983). Ou seja, não foi à toa que
Eumolpus usou o epíteto délio e não mencionou o nome Apolo, o que poderia levar o
leitor a pensar imediatamente nos gregos, quebrando essa tensão, essa expectativa que
aparentemente se quis gerar ao não mencionar os gregos nesses primeiros versos.
2.1.3.2. Escondidos no cavalo
Após descrever a aflição dos gregos e a preparação para a construção do cavalo,
Eumolpus então passa a falar mais especificamente sobre o artefato elaborado pelos
gregos para minar os troianos, após dez anos de guerra:
aperitur ingens antrum et obducti specus,
qui castra caperent. huc decenni proelio
irata virtus abditur, stipant graves
Danai recessus, in suo voto latent.
é aberto um amplo antro com cavidades ocultas
que instalariam o exército. ali é escondido um orgulho
inflamado por dez anos de guerra; apertam-se nos recessos
os bravos dânaos, enfurnando-se na própria oferenda.
A forma lingüística aqui é apropriada a seu respectivo conteúdo literário: o poeta
“esconde” o exército grego até que os guerreiros tomem seus lugares dentro do cavalo.
É como se ele “desse cobertura” aos gregos até eles entrarem no cavalo. O tema do
78
escondimento perpassa esses versos: três dos verbos usados têm o sentido de esconder
(obducti, abditur e latent), e os gregos, mencionados no último verso dessa parte,
ainda são designados através de um epíteto, “dânaos.”
89
Todo esse jogo semântico
ligado à idéia de esconder-se é sutil embora evidentemente intencional. À parte, o uso
do trímetro jâmbico continua, assim como no resto do poema.
2.1.3.3. Oh pátria!
No décimo primeiro verso o poeta quebra decisivamente com a ficção ecfrástica:
o patria, pulsas mille credidimus rates
solumque bello liberum
oh pátria, julgamos banidos os mil navios
e livre da guerra a nossa terra
A exclamação o patria e o verbo em primeira pessoa credidimus mudam o ponto
de vista da narrativa, de um observador de uma obra de arte para alguém que
testemunhou os eventos retratados, contribuindo para confirmar assim a suspeita de que
o poema seja um tipo de discurso de mensageiro (SLATER, 1990). E além disso, pela
gravidade histórico-textual da frase o patria dentro de toda a literatura ligada à queda de
Tróia, ela tende a mudar o rumo do poema, deixando de lado uma descrição ecfrástica
centrada numa imagem particular, e partindo para uma exploração mais literária dos
textos ancestrais. Segundo Connors (1998: 89):
No livro 2, versos 241 e 242 da Eneida, Enéas exclama: o patria, o divum domus
Ilium et incluta bello / moenia Dardanidum! Esta exclamação alude a um verso
da Andrômaca de Ênio citado no livro 3 das Tusculanas de Cícero: O pater o
patria o Priami domus, que por sua vez imita o verso 394 da Andrômaca de
Eurípides e é parodiado por Plauto no verso o Troia, o patria, o Pergamum, o
Priame periisti senex (verso 933 das Baquíades).
Portanto, quando Eumolpus abandona a obrigação de descrever a pintura, ele o
faz aludindo à exclamação mais intimamente vinculada à literatura sobre a queda de
Tróia, o patria. A frase chega a parecer mesmo uma exigência em textos literários sobre
a queda de Tróia; ao incluí-la Eumolpus caminha sobre uma linha tênue entre a mais
alta tradição literária e a banalidade.
2.1.3.4. Laocoonte
89
Relativo a Dânao: na Mitologia grega, filho de Belo, irmão gêmeo de Egito e pai de cinqüenta filhas, as
danáides.
79
Na representação de Laocoonte, Eumolpus continua com a exploração dos textos
ancestrais, partindo especialmente da versão de Virgílio. “Eumolpus faz de seu
Laocoonte uma pálida imitação daquele descrito por Virgílio (WALSH, 1968):
enquanto o Laocoonte de Virgílio é dotado de uma validis ... viribus (“força
descomunal,” livro 2 da Eneida, verso 50), o Laocoonte de Eumolpus tem apenas uma
invalidam manum (“mão fraca,” verso 23); na Eneida (versos 50-53) o dardo perfura o
cavalo, mas no poema de Eumolpus o dardo apenas resvala na armadilha (ictus resilit,
verso 22).
Além disso, o Laocoonte de Eumolpus tenta perfurar os flancos do cavalo não
uma, mas duas vezes, primeiro com uma cuspis (dardo) e depois com uma bipennis
(machadinha de dois gumes): iterum tamen confirmat invalidam manum / altaque latera
pertemptat (“outra vez, contudo, ele firma sua mão fraca / e volta a atentar os flancos do
cavalo,” versos 23 e 24). Os sons similares de uterum (começo do verso 21, na primeira
tentativa) e iterum (começo do verso 23, segunda tentativa) parecem enfatizar essa idéia
de repetição. A ação reprisada de Laocoonte vem a representar a própria reiteração de
Vírgilio pretendida por Eumolpus, e a escolha da machadinha de dois gumes (bipenni)
como substituta do dardo na segunda tentativa é uma figura bastante apropriada para a
idéia da duplicação na manipulação que Eumolpus faz do material de Virgílio. A
fraqueza de Laocoonte e o detalhe adicional da segunda tentativa de perfurar o cavalo
confirmam a fraqueza poética de Eumolpus em sua tentativa “secundária” de dar
expressão literária à história que ganhou forma de autoridade com Virgílio
(CONNORS, 1998).
2.1.3.5. Ecce alia monstra
O poema faz a transição da resistência de Laocoonte para a ameaça das serpentes
através da frase ecce alia monstra (cap. 89, versos 29-34):
ecce alia monstra: celsa qua Tenedos mare
dorso replevit, tumida consurgunt freta
undaque resultat scissa tranquillo minor,
qualis silenti nocte remorum sonus
longe refertur, cum premunt classes mare
pulsumque marmor abiete imposita gemit
eis que surgem outros portentos: onde a excelsa Tênedos
encheu o mar com seu dorso, águas túmidas se levantam
80
e a onda rebentada volta menor ao mar tranqüilo,
tal como o som de remos numa noite silenciosa
é levado longe, entrementes os navios premem o mar
e sua superfície geme ao bater contra a quilha.
A frase ecce alia monstra, como observa Collignon (1892: 138), imita Virgílio
ao anunciar a chegada das serpentes na Eneida (livro 2, versos 203-205):
ecce autem gemini a Tenedo tranquilla per alta
(horresco referens) immensis orbibus angues
incumbunt pelago pariterque ad litora tendunt
mas eis que de Tênedos, pelo tranqüilo mar alto
(digo horrorizado!), serpentes gêmeas com suas imensas espiras
deitam-se no pélago, e rumam emparelhadas ao litoral
Roland G. Austin, tradutor da Eneida, compara o ecce autem (verso 203, livro 2)
com outras expressões usadas nos versos 318, 526 e 673, também do livro 2 da Eneida.
Segundo ele, “a fórmula em cada caso marca uma interrupção da ação em andamento”
(AUSTIN, 1964, apud CONNORS, 1998). Petrônio, cuja audiência deveria conhecer
bem essa famosa passagem de Virgílio, não surpreende o leitor aí. Petrônio faz o que
seria esperado quando se retira da narrativa sobre Laocoonte com o ecce alia monstra,
no verso 29. No entanto, assim como fez antes com os gregos, ele não menciona
especificamente as serpentes até o verso 35 algo de certa maneira imprevisto. Em
contrapartida, Eumolpus sugere que a própria ilha de Tênedos seja um monstro
marítimo, quando diz que ela encheu o mar com seu dorso, termo que pode ser usado
pra descrever uma encosta ou o dorso de um ser vivo (BORGHINI, 1991). Assim como
a cuspis e a bipennis de Laocoonte apenas resvalam no cavalo, a onda bate no
“monstro” e volta mansa, minor. Alongando ainda mais o período, habitualmente longo
em textos latinos, ele acrescenta uma comparação óbvia e tediosa entre as ondas que
quebram em Tênedos e as águas batendo nos remos de um navio que navega pelo mar à
noite. Na Eneida a aproximação das serpentes vindas de Tênedos pressagia a
aproximação noturna dos navios guerreiros gregos, vindos também de Tênedos. Na
imitação de Eumolpus, as próprias serpentes são comparadas a navios assim que
aparecem (versos 35-37):
respicimus angues orbibus geminis ferunt
ad saxa fluctus, tumida quorum pectora
rates ut altae lateribus spumas agunt.
olhamos pra trás: as ondas traziam às rochas
serpentes gêmeas espiraladas, cujos peitos túmidos
impeliam espumas das laterais como grandes navios.
81
Virgílio faz conexões simbólicas entre as serpentes e os navios e Tênedos:
primeiro as serpentes e depois os navios mortais emergem do esconderijo atrás de
Tênedos. Eumolpus sugere essas conexões simbólicas e um passo além. Sua símile
representa Tênedos, fonte das serpentes monstruosas e dos navios perigosos em
Virgílio, como sendo ela mesma um monstro ameaçador, que assim como os navios se
move furtivamente pela noite. Assim, Tênedos figurativamente se transforma nas
serpentes “reais” e nos navios que Virgílio escondeu por detrás dela. As serpentes
esperadas pelos leitores são elas mesmas num primeiro momento escondidas pela
representação que Eumolpus faz de Tênedos como um monstro marítimo. Como
sintetiza Connors (1998), esses versos de fato podem ser lidos como uma brincadeira
metaliterária:
Virgílio literalmente esconde as serpentes “atrás” de sua Tênedos; Eumolpus
figurativamente esconde as cobras “atrás” de sua descrição de Tênedos; o verbo
respicimus tem o sentido primário de olhar pra trás na direção de Tênedos, mas
também pode sugerir o olhar pra trás de Eumolpus, na direção de seu modelo
virgiliano. (CONNORS, 1998: 91)
Essas e outras engenhosas manipulações de Petrônio, com as quais ele cumpre a
tarefa da imitação principal fundamento poético da literatura romana ao mesmo
tempo que impõe seu espírito criativo, tornam sua literatura e especialmente sua poesia
algo único. A intenção última de Petrônio é fazer algo engraçado e genial: olhando seus
poemas de frente, de trás, por baixo, por cima, por dentro, qualquer leitor encontrará
motivo para rir e para se deleitar com a genialidade deles.
2.1.3.6. Tróia embriagada, Tróia enganada
As miles um tanto banais na descrição de Tênedos e das serpentes demonstram a
fascinação de Eumolpus com a construção de estreitas congruências entre o metafórico
e o real. A símile final do poema também põe o metafórico e o real em um justo
alinhamento (versos 56-60):
cum inter sepultos Priamidas nocte et meto
Danai relaxant claustra et effundunt viros.
temptant in armis se duces, ceu vi solet
nodo remissus Thessali quadrupes iugi
cervicem et altas quatere ad excursum iubas.
foi quando à noite os dânaos soltaram as travas e derramaram
seus homens entre os filhos de Príamo, derrubados pelo vinho.
82
os líderes se atentam nas armas, vigorosos como um cavalo
que solto dos laços do jugo de uma carruagem da Tessália
costuma sacudir o pescoço e a longa crina, pronto pra corrida.
A escolha da palavra effundunt (derramaram) para descrever o surgimento dos
gregos de dentro do cavalo assemelha a ação deles ao derramamento de vinho, que tinha
levado os troianos ao sono da embriaguez. Em seguida, a mile compara seu tenor, os
homens que saem do cavalo, a cavalos, o próprio veículo da símile.
90
Tenor e veículo
numa boa símile geralmente não estão muito próximos (FILIPAK, 1983). Nesse sentido
Zeitlin (1971: 75) questiona: “Por que os homens que saem do cavalo de Tróia são
comparados a cavalos reais? Isso é simplesmente engraçado? É para nos mostrar que
Eumolpus é um mau poeta com uma sensibilidade estética estéril?Talvez sim, e isso,
como admite Beck (1979), faz parte do modo como Petrônio compõe seu personagem.
Mas assim como o cavalo de Tróia, o cavalo na símile tem mais do que parece ter à
primeira vista. Símiles comparando homens se preparando ou indo para a batalha com
cavalos correndo soltos são bastante comuns em épicos: no final do sexto livro da
Ilíada, quando Paris volta ao combate ele é comparado a um cavalo que escapa de um
estábulo e corre em direção ao rio, sacudindo a crina e exultando de sua força
(CONNORS, 1998). Segundo Connors (1998), Ennio
91
faz uma imitação bem próxima
da passagem de Homero, e Virgílio em diferentes passagens descreve um cavalo que
escapa do cercado ou do jugo, enfatizando sua força vigorosa. A passagem de Petrônio,
na qual homens que se preparam para a batalha são comparados a um cavalo
desencilhado sacudindo a crina, alude a essa símile épica, diminuindo e depreciando sua
força: o cavalo em questão não escapou, mas foi solto (remissus) do jugo de uma
carruagem tessália. Ou seja, “modelos épicos são evocados para serem justapostos em
uma imitação enfraquecida de suas glórias tradicionais” (CONNORS, 1998: 92).
Os exemplos anteriores da insistência de Eumolpus em colocar o metafórico e o
real num justo alinhamento demonstram uma fascinação com a reiteração e a
semelhança ao recontar a história da queda de Tróia. Contudo há um número ainda mais
cruel de momentos de repetição no poema. O poema de Tróia é geralmente criticado por
sua repetição de palavras ou sons: iam e diferentes formas de metus, iubae e iubar são
particularmente notáveis. Também evidente é o som repetitivo dos muitos verbos
compostos com re- (um prefixo que por si só denota vários tipos de duplicação,
90
Tenor e veículo são dos termos usados na teoria da metáfora. A interação entre tenor (a idéia, o
significado) e veículo (a imagem, a metáfora) produz a resultante semântica em que consiste a símile.
91
Quinto Ennio (Rudiae, 239 a. C. - Roma, 169 a. C.) dramaturgo e poeta épico romano.
83
reciprocidade etc.): reflet, reducta, resilit, replevit, resultat, refertur, respicimus.
Considerando isso, provavelmente não é por acidente que Eumolpus repete o começo do
verso laxat claustra Sinon (“Sinon abre a clausura,” verso 259, livro 2 da Eneida) no
começo de um verso seu: Danai relaxant claustra (“os dânaos abrem a clausura,” verso
57). Portanto todos esses pequenos detalhes conciliados corroboram a intenção de
enfado e aborrecimento (ligado ao personagem Eumolpus) e a idéia da repetição, da
reiteração (ligada à imitação cômica que se faz do poema de Virgílio principalmente).
Embora não seja algo imediatamente útil para nosso trabalho aqui, vale ainda
comentar um ponto muito importante que diz respeito ao poema sobre a guerra de Tróia.
Como admite Connors (1998), a disposição obsessiva de repetição, semelhança e
imitação imperfeita significa tanto a falta de controle literário de Eumolpus quanto o
reconhecimento consciente de Petrônio da condição tardia de sua própria literatura e da
literatura de seu tempo. Ademais, a própria ênfase temática do poema na repetição é
devidamente arranjada em seu contexto narrativo: a galeria de artes é o espaço das três
histórias de capturas, as quais se passam no mesmo lugar, Tróia. Em sua ecfrase,
Encolpius conta que Ganymede foi seqüestrada por Zeus apaixonado, e o pagamento
pelo seqüestro na forma de cavalos foi entregue por seu pai nas imediações de Tróia
(cap. 83). A própria Tróia cai na armadilha do cavalo de madeira (cap. 89). E segundo
Eumolpus, em Pérgamo, geralmente associada a Tróia pelos romanos (COURTNEY,
2001), é onde ele teria feito a promessa enganosa de um cavalo que lhe rendeu um belo
rapaz imitação depreciada da tomada de Tróia/Pérgamo através do estratagema de um
cavalo (caps. 85-87). A narrativa do Satyricon sobre a obsessão amorosa de Encolpius
(por Giton) é espelhada nas histórias de Zeus e Ganymede, de Eumolpus e o garoto de
Pérgamo, e do logro de Tróia pelos gregos: “os temas gêmeos do engano e do disfarce
exemplificados pelo Cavalo de Madeira constituem talvez padrão mais consistente e
persuasivo ao longo do Satyricon ... O Cavalo de Madeira é um símbolo da queda de
Tróia; e é também uma metáfora do Satyricon em si” (ZEITLIN, 1991: 63).
Em um sentido amplo, a cidade de Roma foi de fato feita de fragmentação e
reinvenção do passado épico. Organizando imitações da mesma trama (a captura de
Tróia ou sua versão análoga através do estratagema do cavalo) em pinturas, em poesia e
na própria vida de Eumolpus, a galeria de artes de Petrônio reconstitui os interesses
culturais e políticos dos romanos, que construíram a própria Roma tal qual uma Tróia
renascida. A rima de Eumolpus, ibat iuventus capta, dum Troiam capit (“os mais jovens
iam presos [dentro do cavalo], enquanto prendiam Tróia,” verso 27), remete a uma
84
formulação de Horácio em suas epístolas sobre a conquista cultural de Roma pelos
gregos: Graecia capta ferum victorem cepit et artis / intulit agresti Latio (Grécia
capturada capturou seu feroz vencedor e trouxe as artes ao Lácio agreste)”
(COURTNEY, 2001: 94). A reiterar a fórmula capta ... capit, a Troiae Halosis de
Eumolpus sugere que a vitória grega sobre Tróia seja o original no qual mais tarde a
conquista cultural de Roma pelos gregos é modelada (CONNORS, 1998). No poema,
portanto, todos os elementos de alguma forma ligados a essa temática são escolhidos
minuciosamente, a fim de que combinem com as demais analogias que concorrem no
episódio da galeria, num primeiro plano, e com todo o discurso do Satyricon e seu
conjunto, num segundo plano.
85
CAPÍTULO III
3.1. Teorias da tradução
3.1.1. Georges Mounin e a tradução de línguas antigas
3.1.2. Antoine Berman e a tradução da letra
3.1.3. Paulo H. Bitto e a tradução de poesia
3.2. As edições brasileiras e seus tradutores
3.2.1. Miguel Ruas (1970)
3.2.2. Paulo Leminski (1985)
3.2.3. Alex Marins (2003)
3.2.4. Sandra Braga Bianchet (2004)
3.2.5. Cláudio Aquati (2008)
86
3.1. Teorias da tradução
Até aqui viemos apontando, à luz de especialistas na obra de Petrônio, uma série
problemas inerentes aos poemas do Satyricon. Vimos que as paródias feitas por
Petrônio em seus poemas se manifestam em diferentes veis de linguagem, através de
distintas relações intertextuais, contextuais e, por que não dizer, hipertextuais. O
objetivo maior deste trabalho é verificar como algumas traduções brasileiras
consideraram esses problemas, que aqui chamamos de sutilezas da poesia de Petrônio
o que será feito nos próximos três capítulos. Antes, porém, tendo recém apresentado os
poemas e suas particularidades, vamos apresentar agora os pressupostos teóricos os
quais julgamos convenientes para a análise de suas traduções.
Pode-se dizer que os procedimentos usados por Petrônio jogam com o
significado das características formais dos poemas (metro e ritmo) e com o significado
das palavras em si, seja explorando potencialidades do latim, seja usando o peso
histórico e o peso literário que têm certas palavras, figuras de estilo em geral e
especialmente símiles; tudo geralmente sempre feito de modo combinado, ou seja,
propondo trocadilhos, combinando no poema a forma e o significado de suas palavras,
que, justapostas ao personagem que as profere, aos detalhes da narrativa, a implícitas
referências épicas e a referências a literaturas menores, produzem distintos efeitos.
Portanto, acredita-se que uma teoria da tradução apropriada ao corpus deste trabalho
deve considerar três fatos inerentes a ele: o fato de ter sido escrito em latim, na Roma do
século I d.C.; o fato de se tratar de literatura clássica; e o fato de se tratar mais
especificamente de poesia antiga, com todas as implicações que isso pode vir a ter.
Levando em conta essas questões, foram eleitos três autores cujas considerações
teóricas vêm a contribuir com os objetivos desse trabalho, no que se refere ao
embasamento para a crítica das traduções. São eles Geoges Mounin, Antoine Berman e
Paulo Henriques Britto. Cada um deles, com suas proposições teóricas, nos
ferramentas para refletir sobre cada um daqueles três fatos que distinguem nosso corpus.
Suas idéias e proposições serão discutidas nos tópicos que seguem.
3.1.1. Georges Mounin e a tradução de línguas antigas
Georges Mounin (pseudônimo de Louis Leboucher), lingüista francês que viveu até
meados dos anos 90, participou de alguns dos principais debates da lingüística no século
87
XX. Sua obra, essencialmente teórica, centra-se no campo da lingüística, porém
compreende um grande número de temas afins, entre eles literatura e tradução. Seus
trabalhos mais importantes relacionados à teoria da tradução são Linguistique et
traduction, de 1976, La machine à traduire, de 1964, Les Belles Infidèles, de 1955, e
Les Problèmes théoriques de la traduction, de 1963. Neste último, partindo de uma
série de pressupostos da lingüística moderna, especialmente daqueles difundidos por
sucessores de Wilhelm von Humboldt, Mounin chega a considerar com bastante
profundidade uma das questões que aqui nos interessa particularmente: a tradução de
línguas antigas.
A lingüística do século XX beneficiou-se especialmente de uma ciência social
irmã, a antropologia, para admitir as línguas como “visões de mundo” e promover assim
uma mudança de paradigma, derrubando certas noções tradicionais, como a noção de
sentido que se tinha antigamente. A antiga noção de sentido estava apoiada na
concepção da língua como “língua-repertório”, tal como chama Mounin. Essa noção
implicava em que as línguas teriam, ou melhor, consistiriam num grande repertório de
termos que serviriam para se referir às estruturas do universo e às estruturas universais
do espírito humano:
Havia nomes e pronomes nas línguas porque havia seres no universo, verbos nas
línguas porque havia processos no universo, adjetivos nas línguas porque havia
qualidades dos seres do universo; advérbios nas línguas porque havia qualidades
dos processos e qualificações das próprias qualidades, no universo; preposições e
conjunções porque havia relações lógicas de dependências, de atribuição, de
tempo, de lugar, de circunstância, de coordenação, de subordinação, tanto entre
os seres, como entre os processos, e como entre os seres e os processos no
universo. (MOUNIN, 1975: 48)
Sob a noção de língua-repertório, acreditava-se que uma operação de tradução
seria a simples substituição de um termo do repertório de uma língua pelo termo
equivalente no repertório de uma outra língua. Tais termos eram colocados em
igualdade, eram considerados equivalentes, porquanto se acreditava que o pensamento
humano – em qualquer tempo, em qualquer parte – distribuía sua experiência em
categorias lógicas ou psicológicas universais. Esta crença na equivalência repousava em
outra crença: a de que as nguas compartilhavam a mesma substância do conteúdo. Ou
seja, se todas as línguas podiam se comunicar porque falavam do mesmo universo e
porque o organizavam da mesma maneira, tirante as diferenças lexicais, o conteúdo
deveria ser o mesmo.
88
No entanto, os chamados neo-humboldtianos, inspirados pelas teses filosóficas
de Humboldt sobre a linguagem, vieram a contestar essas concepções da lingüística
tradicional, fazendo uma série de alegações. Recusavam-se a encarar a língua como um
instrumento passivo da expressão; consideravam-na um princípio ativo, que impõe ao
pensamento um conjunto de distinções e valores: “Todo sistema lingüístico contém uma
análise do mundo exterior, que lhe é peculiar e que difere da de outras línguas”
(MOUNIN, 1975: 50). Como entende Ullmann, todo sistema lingüístico, “depositário
da experiência acumulada pelas gerações passadas, fornece à geração futura uma
maneira de ver, uma interpretação do universo; lega-lhe um prisma através do qual ela
terá de ver o mundo não-lingüístico” (ULLMANN, 1952 apud MOUNIN, 1975: 50).
Assim como Ullmann, outros tantos lingüistas se esforçaram para chegar a
interpretações razoáveis das teses de Humboldt e promover assim uma mudança em
suas concepções de língua e consequentemente em suas concepções de tradução.
Logo perceberam que cada língua reflete uma cultura e um mundo diferente
não um mundo imaginado, mas um mundo físico mesmo: uma ngua falada em
determinada região do planeta é também condicionada por suas características
geográficas, climáticas etc., e isso simplesmente já a torna diferente de uma outra
língua, que se desenvolveu em uma outra região. Cada língua, portanto, percebe o real à
sua maneira, e assim cria elementos próprios e prioriza usos específicos desses
elementos conforme a sua realidade.
Essas constatações transtornaram a problemática da tradução, pois como admite
Mounin, as estruturas do universo estão longe de se refletirem mecanicamente, isto é,
logicamente, em estruturas universais da linguagem. André Martinet em uma de suas
obras principais expressa um consenso da lingüística neo-humboldtiana que vale a pena
ser remarcado: “A cada língua corresponde uma organização particular dos dados da
experiência (...). Uma língua é um instrumento de comunicação segundo o qual a
experiência humana é analisada diferentemente em cada comunidade” (MARTINET,
1960 apud MOUNIN, 1975: 62). À primeira vista, todas essas teses destroem
teoricamente a possibilidade de traduzir, que afirmam profundas diferenças entre as
línguas e suas estruturas, que de alguma forma afirmam um abismo entre as línguas.
No entanto, Mounin sugere que é somente no reconhecimento e na aceitação dessas
diferenças entre as línguas, e logo entre as culturas e seus prismas e seus mundos, que o
tradutor, o ponto de contato entre duas línguas, poderá considerar e quiçá solucionar os
problemas da tradução. “Os problemas teóricos da tradução podem ser
89
compreendidos, e talvez resolvidos, se aceitarmos em lugar de os evitarmos, de os
negarmos, ou mesmo de os ignorarmos esses fatos aparentemente destruidores de
qualquer possibilidade de traduzir” (MOUNIN, 1975: 62).
Dando um passo adiante nessa discussão, Mounin entende queo se pode
encerrar a tradução dentro das fronteiras da lingüística descritivista moderna ou da
lingüística estrutural. Ele compara tal método de análise lingüística àquele que é próprio
da álgebra a parte da matemática que estuda as leis e processos formais de operações
com entidades abstratas. Se a lingüística estrutural fosse suficiente para pensar a
tradução, reduziríamos seus problemas “à passagem mecânica das rmulas lingüísticas
de um sistema [como o português] para as fórmulas lingüísticas de um outro sistema”
como o francês, por exemplo (MOUNIN, 1975: 209).
Assim como Mounin, todos nós que alguma vez nos deparamos com a
experiência da tradução, sabemos que as coisas não são assim. Para ele, ainda que em
toda língua seja possível reconhecer um sistema, ainda que toda língua tenha sua
morfologia e sintaxe, há uma outra parte o léxico que resiste a esse tratamento. Essa
outra parte, ainda em alusão à matemática, seria comparável à aritmética a parte da
matemática em que se investigam as propriedades elementares dos números inteiros e
racionais. Ou seja, ele sugere que atentemos principalmente para o estudo e
interpretação dos signos lingüísticos.
A tradução, portanto, nos termos de Mounin, não pode se restringir ao domínio
da álgebra lingüística, do cálculo não-interpretado das estruturas formais, mas deve
sempre, e finalmente, voltar-se para o campo da aritmética lingüística, para o mundo das
significações. Em suas palavras, “como atividade prática, a tradução não se pode
contentar com essa posição metodológica, cientificamente inatacável, da lingüística
moderna: esperar que as leis da estruturação semântica sejam descobertas para depois
utilizá-las.” (MOUNIN, 1975: 214)
A partir disso, privilegiando a dimensão semântica, o léxico das línguas, Mounin
defende a tese de que tradução e etnografia, semântica e cultura estão intimamente
ligadas. Etnografia é entendida como uma descrição completa da cultura total de uma
determinada comunidade, e cultura como o conjunto de atividades e de instituições
através das quais essa comunidade se manifesta. Definições simples; tão coerentes
quanto suficientes para seu intento: sustentar a idéia de que, idealmente, para se
traduzir, deve-se ter uma noção bastante adequada da cultura correspondente à língua da
qual se traduz. Em outras palavras, antes de se empreender uma tradução, deve-se fazer
90
uma etnografia da cultura que produziu o contexto em que o texto original foi escrito. É
por isso que Mounin considera que “o conteúdo da semântica de uma língua é a
etnografia da comunidade que fala essa língua.” (MOUNIN, 1975: 214)
Essas considerações têm implicações muito pertinentes para a tradução, bem
como para a sua crítica. Entender que a tradução não é uma operação apenas lingüística,
mas, sim, uma operação sobre fatos associados a todo um contexto cultural, uma
operação sobre fatos a um tempo lingüísticos e culturais, significa entender, por
exemplo, que a tradução de uma série de termos (de significantes) oportunamente
empregados em certos textos é possível a partir de uma perfeita compreensão do
contexto histórico-cultural em que se deu o emprego deles. Suponhamos, como disse
Michel Bréal, o autor do primeiro tratado de semântica, escrito no final do século XIX,
“que para conhecer as magistraturas romanas só contássemos com a etimologia e não
com a história de termos como consules (os que tomam assento juntos), praetor (o que
caminha na frente), tribunus (o homem da tribo) etc.: nós leríamos os textos latinos, sem
entretanto, os compreender” (BRÉAL, 1897 apud MOUNIN, 1975: 215). Duas
condições seriam, portanto, indispensáveis ao tradutor ideal: estudar a língua estrangeira
e estudar sistematicamente a etnografia da comunidade da qual esta língua é a
expressão. Todo signo lingüístico reflete e também refrata a ideologia de certa
comunidade lingüística, como diria Mikhail Bakhtin (1995). Não é por menos que
Eugene Nida estabelece o seguinte princípio: “As palavras não podem ser
compreendidas corretamente quando isoladas dos fenômenos culturais localizados dos
quais constituem os símbolos” (NIDA, 1945 apud MOUNIN, 1975: 217).
Assim, no entendimento de Mounin, todo tradutor idealmente deveria, antes
de iniciar o seu trabalho, realizar uma etnografia da comunidade onde o texto foi
produzido. Pois ainda que o estudo de uma língua estrangeira possibilite a aquisição das
definições lingüísticas dos enunciados, não se pode somente com o estudo compreender
perfeitamente as definições referenciais. Ou seja, estudar uma língua e estudar os
enunciados que lhe são próprios não basta para compreender as coisas às quais cada
enunciado se refere. Para o tradutor, seria preciso, portanto, ir colher in loco todas as
definições referenciais da língua de uma determinada comunidade, para compreender e
traduzir o mais integralmente possível o sentido dos enunciados dessa língua, tornando-
se assim um etnógrafo mesmo.
No entanto, se esse procedimento considerado ideal por Mounin pode ser
eventualmente inviável para muitos dos tradutores de línguas que se encontram em
91
atividade, parece impossível para aqueles que traduzem de línguas de sociedades
mortas, como são o latim e grego clássico, por exemplo. Pois como fazer uma
etnografia do império romano se ele não existe mais? É precisamente esse o ponto em
que o problema da tradução de uma língua como o latim se releva, na teoria de Mounin.
Como ter acesso às significações de uma vasta gama de termos presentes em textos que
exprimem visões de mundo e civilizações que já inexistem?
A resposta a esta pergunta trará inevitavelmente a filologia como solução.
Mounin, que entende a filologia como uma etnografia não-orgânica do passado,
considera que, assim como a etnografia, a filologia é uma tradução; mais precisamente,
ela constitui uma pré-edição do texto a ser traduzido. E não são poucos os estudiosos
com autoridade que corroboram essa concepção de filologia aplicada à tradução de
textos antigos. “A língua não é o único objeto da filologia, [diz Saussure] (...). Este
primeiro estudo dos textos o leva a dar também atenção à história literária, dos
costumes, das instituições, etc.” (SAUSSURE apud MOUNIN, 1975: 223). Santoli, por
exemplo, declara que a filologia é simplesmente “o conhecimento integral de
determinadas civilizações,” e Jespersen elabora uma formulação semelhante, ao definir
a filologia como “a compreensão da cultura total de uma nação qualquer” (MOUNIN,
1975: 224). Retomando a questão da tradução de termos ligados à magistratura romana,
levantada por Michel Bréal na citação feita anteriormente, podemos afirmar que, se
dispensarmos o trabalho filológico, não poderemos realizar uma tradução minimamente
satisfatória de qualquer texto latino. Sem, portanto, servir-se de procedimentos
filológicos, a fim empreender uma etnografia não-orgânica de Roma em dado período
histórico, um tradutor de latim certamente terá dificuldades para captar o sentido de
certos termos elementares.
Em toda a primeira parte deste capítulo, através de esforços próprios mas
principalmente através de análises feitas por outros estudiosos de cultura clássica,
especialistas no Satyricon, boa parte do que fizemos foi tentar esboçar um estudo
filológico do contexto de Petrônio, foi tentar encontrar razões das mais diversas ordens
que nos auxiliassem a compreender distintos empregos da língua usada por Petrônio, da
língua que moldou seu pensamento e que foi de alguma forma moldada por ele. Pela
concepção de Mounin, concepção que aqui se assume, qualquer tradução de um texto
latino deveria a priori proceder a um estudo filológico, independente da estratégia, da
modalidade, do estilo, enfim, do caminho que venha a seguir.
92
Voltando rapidamente à discussão mais geral sobre a diferença entre as línguas,
a fim de encerrar esta exposição sobre parte das contribuições teóricas de Mounin, vale
recordar Zellig S. Harris, outro importante intérprete de Humboldt. Ele nos concita a
levar em conta “que a estrutura da linguagem não se amolda necessariamente à estrutura
da experiência subjetiva, do mundo subjetivo das significações” (HARRIS, 1954: 151).
Parafraseando Harris, não é indispensável lembrar que, embora entre as línguas haja
evidentes diferenças em todos os seus níveis possíveis (léxico-morfológico, sintático,
semântico, pragmático), um indivíduo nem sempre pode se expressar, ou expressar uma
idéia ou sentimento que experimenta em sua própria linguagem, motivo pelo qual ele
questiona: por que motivo nos acontece com tanta freqüência não saber dizer tudo que
queremos, ou ter a impressão de ter dito muito mal o que pensávamos? Mounin chega a
comentar essa questão levantada por Harris, e evidentemente vincula o problema à
realidade do tradutor. Além de todas as barreiras impostas pelas divergências entre as
línguas, que se lidar ainda com os limites que qualquer língua oferece para expressar
determinados sentimentos, idéias e experiências em geral. Frequentemente a qualidade
de um grande escritor, por exemplo, consiste nessa capacidade que alguns têm de
transcender os limites da linguagem e expressar com precisão e arte aquilo que deseja,
fazendo assim alta literatura. Ao tradutor, portanto, especialmente ao tradutor literário,
caberia também a tarefa de alcançar na língua de chegada, por assim dizer, a mesma
potencialidade inventiva que o autor do texto de partida imprimiu em seu texto,
aproveitando ao máximo os recursos da língua e superando seus limites. Sobre isso,
porém, Mounin, que é lingüista, fala pouco ou quase nada.
3.1.2. Antoine Berman e a tradução da letra
Antoine Berman, lingüista francês, que viveu a o começo dos anos 90, é um dos
grandes críticos da tradição ocidental de tradução, tendo sido ele mesmo um tradutor
literário, especialista em romantismo alemão e literatura hispânica. Em uma de suas
obras teóricas mais maduras, La traduction et la lettre, ou L’auberge du lointain (A
tradução e a letra, ou o albergue do longínquo), surgida por ocasião de um seminário
realizado em 1984, e publicada pela primeira vez como livro em 1985, Mounin chega a
considerar o que ele chamou de movimento de retradução moderno. Tal movimento,
histórico em sua essência, remete a uma necessidade de aproximação à nossa origem
manifestada especialmente por certos proeminentes literatos ocidentais que, no século
93
XX, empreenderam traduções de clássicos da antiguidade greco-romana. Estas
traduções vieram a ter considerável significância para os rumos da literatura e da cultura
moderna de um modo geral. Ao submeter nossas línguas tardias à queimadura do grego
clássico e do latim, quando estas línguas se tornaram novas e estranhas, ao sujeitá-las ao
peso da alteridade e antiguidade delas, Berman entende que tais tradutores buscaram
“‘reabrir’ o acesso às obras que constituem nosso solo religioso, filosófico, literário e
poético; às obras que modelaram decisivamente nosso modo de sentir e existir”
(BERMAN, 2007: 109).
Mas por que “reabrir”? Berman corrobora um ponto de vista contrário ao da
tradição ocidental de tradução, uma tradição de tradução extremamente etnocêntrica,
como ele mesmo considera, e domesticadora, como considera Venuti (2002); uma
tradição defensora de uma tradução que “deixa o leitor o mais possível em paz e leva o
autor ao seu encontro” (SCHLEIERMACHER, 2007: 6). As obras literárias gregas e
romanas exerceram uma influência dominante durante muito tempo na criação literária
ocidental, desde seu surgimento até à época clássica moderna, e foram quase sempre
oferecidas aos leitores por meio de traduções livres, adaptações ou imitações. O
Renascimento havia promovido uma revolução, que se caracterizou por uma reação à
prática medieval e a um retorno aos textos originais, com traduções tais como as
concebemos atualmente. No entanto, com a revolução científica que impulsionou a
modernidade, no século XIX, se por um lado houve um movimento de ruptura da
literatura – que queria ser moderna – com qualquer tradição que propiciasse uma origem
ou modelos para imitação, por outro ocorreu uma crescente dominação da filologia
sobre todos esses textos fundadores.
Aos poucos, uma onda de filólogos, não propriamente tradutores, em reação às
traduções anteriores que entendiam ser transmissões livres (inexatas) e aspirando a
uma exatidão pretensamente modesta, “tendeu cada vez mais a acatar de forma
autoritária todos os prestígios da cientificidade e, portanto, a desqualificar os outros
modos de tradução, que não têm primeiramente tal aspiração” (BERMAN, 2007: 111).
Essa aspiração, que se tornou obsessão, ao invés de nos aproximar dos clássicos, acabou
por nos distanciar completamente deles. Pois a filologia, de um modo geral, ao se
aproximar da tradução, produziu desastres. Na intenção de fazer com que os textos
fossem “pela primeira vez” acessíveis em sua integridade, ela os tornou entediantes e
estranhos à nossa sensibilidade; ela os embalsamou.
94
Como afirma Berman (2007: 113), “o movimento de retradução do século XX
esbarra imediatamente na espessa muralha que a filologia erigiu ao redor das obras
clássicas.” A tentativa de oferecer um acesso efetivo às nossas origens malogrou, pois,
com a inventiva filológica, que, ao contrário, tornou-as inacessíveis; fechou o acesso
para nós. Definitivamente, se a filologia teve um papel importante na busca pela
integridade semântica, morfológica e sintática dos textos clássicos, ela procedeu a
traduções que desrespeitaram o estado das línguas modernas e suas literaturas;
traduções sem horizonte, tal como aponta Berman. Seria preciso então reinstituir uma
tradição interrompida, a fim de restabelecer uma relação viva com os clássicos. Seria
preciso reabrir o acesso ao nosso solo cultural.
Se tomarmos com ponderação as considerações de Mounin e levarmos em conta
os desastres causados pela filologia, assim considerados por Berman, logo deveremos
buscar outros caminhos para a tradução de textos literários escritos em línguas de
sociedades já mortas, como o latim. Continuando a acompanhar a linha de raciocínio de
Berman, chegaremos ao ponto em que ele aponta a maneira pela qual certas traduções,
realizadas no século XX, reabriram o acesso ao solo fecundo da literatura da
antiguidade clássica, aproximando-nos de sua origem épica e mítica. Para Berman,
tradutores como Hölderlin, Chateaubriand e especialmente Klossowski, que traduziu a
Eneida, de Virgílio, para o francês, realizaram trabalhos que constituem bons exemplos
daquilo que ele chama de traduzir a “letra”.
Traduzir a letra, pois, seria restituir na língua de chegada toda a urdidura que
compõe a literalidade do texto de partida. Seria traduzir sua forma e sentido com tal
sofisticação que pudesse elevar o texto traduzido à mesma altura do original, sem, no
entanto, proceder a uma adaptação ou a uma imitação, sem, no entanto, deixar de
realizar uma “verdadeira tradução”, como considera Schleiermacher. É diferente,
portanto, da tradução literal, como é vulgarmente conhecida; é diferente da tradução de
“palavra-por-palavra”, caricaturalmente ilustrada pelos “calcos" que a filologia moderna
produziu.
Assim, traduzir a “letra” de textos literários latinos, por exemplo, tem
implicações específicas, e tal intento pode surtir efeitos efetivamente inovadores nas
línguas e sistemas literários modernos. Como se sabe o latim é uma língua sintética,
flexional, de ordem livre. Assim como observa Foucault (apud BERMAN, 2007: 115):
95
A frase latina [...] pode obedecer simultaneamente a duas ordens: a da
sintaxe, que as declinações tornam sensível; e outra, puramente plástica, que
uma ordem das palavras sempre livre, mas nunca gratuita, revela.
Seja em relação aos valores flexionais ou ao arranjo de palavras na frase, de
qualquer maneira o português, bem como o francês e as demais línguas neolatinas, se
distanciou do latim, enrijecendo sua estrutura, assumindo regras que determinam o
posicionamento das palavras, renunciando, por exemplo, certas funções dos adjetivos e
condenando algumas inversões. Como Foucault também aponta, referindo-se ao francês,
“a sintaxe prescreve a ordem, e a sucessão das palavras revela a exata arquitetura do
regime” (ibidem). A ordem puramente plástica do latim, como define Foucault, fica
evidente, sobretudo nos gêneros discursivos que constam dos textos literários latinos.
Na Eneida, por exemplo, “o dizer épico está fundamentalmente ligado a esse jogo
‘livre’ de palavras latinas, às suas possibilidades de rejeição, de inversão, de suspensão,
etc.” (BERMAN, 2007: 117). Como o próprio Klossowski explica no prefácio à sua
tradução:
O poema épico de Virgílio é, de fato, um teatro onde são as palavras que
mimetizam os gestos e o estado de alma dos personagens, do mesmo modo
que pelas suas posições, mimetizam também os acessórios próprios da ação.
São as palavras que tomam uma atitude, não o corpo; que se tecem, não as
roupas; que brilham, não as armaduras; que ribombam, não o trovão; que
ameaçam, não Juno; que riem, não Citeréia; que sangram, não as feridas.”
(KLOSSOWSKI apud BERMAN, 2007: 117)
Mas se na literatura latina a mímesis própria da língua se insinua naturalmente, a
rigidez imposta pelas regras das línguas modernas, criadas ao longo de uma formação
calcada num racionalismo ansioso, trata de reprimi-la e apagá-la. É, pois, especialmente
neste ponto que uma tradução da letra, uma tradução “estrangeirizadora” que abnega o
imperativo da fluência nas línguas de chegada (VENUTI, 2000), uma tradução “que
deixa o autor o mais possível em paz e leva o leitor ao seu encontro”
(SCHLEIERMACHER, 2007: 6), faz-se urgente e necessária.
Entre outras coisas, é essa substância mimética (plástica) da língua latina que
confere à sua literatura uma simplicidade tão potente. Ora, parece que a tradição
ocidental de tradução leva os tradutores a fugir do desafio em que consiste esta
simplicidade, ao invés de enfrentá-lo, e não é de hoje que pensadores preocupados com
a tradução literária vêm considerando tal problema. Madame de Stäel apontava algo
nesse sentido quando comenta no início do século XIX:
96
Mas, para que este trabalho seja realmente proveitoso, é preciso que não se
dê, como os franceses, sua própria cor a tudo que se traduz; e mesmo
transformando em ouro tudo que toca, não se deixaria de obter um
resultado, não se podendo dele alimentar; não se encontraria nele alimentos
novos para o pensamento, defrontando-se sempre com o mesmo rosto, com
enfeites minimamente diferentes. (STÄEL, 2004: 143)
Nessa mesma direção, Giacomo Leopardi também já observava no século XVIII:
O fato é que a principal beleza da escrita deriva da naturalidade e não da
afetação ou do rebuscamento. Ora, o tradutor necessariamente simula, isto é,
esforça-se por exprimir o caráter e o estilo do outro, e repete o dito do outro à
maneira e gosto deste. Observem, então, como é difícil uma boa tradução em
se tratando de alta literatura, de uma obra que deve ser composta de
propriedades que parecem discordantes, incompatíveis e contraditórias.
(LEOPARDI, 2005: 163)
Não é por menos que Berman inclui o “embelezamento” entre as categorias que
compõe aquilo que chama de “sistemática da destruição” da tradição ocidental. Os que
respeitam essa tradição, acanhados pela potente simplicidade do texto clássico, ou
menosprezando-a presunçosamente, recorrem a recursos de embelezamento do texto a
fim de tentar alcançar um efeito equivalente, que, porém, não se equipara à potência da
naturalidade, enfatizada por Leopardi.
A tradução da letra é totalmente compatível com as idéias a respeito da tradução
de um pensador como Étienne Dolet. Dolet, em certo texto, prescreve cinco princípios
que considera básicos para qualquer tradutor. Entre eles, um que demanda do
tradutor um perfeito conhecimento tanto da língua de partida quando da língua de
chegada. “Assim não violará e nem diminuirá a majestade de cada uma das línguas”
(DOLET, 2006: 201). Ao condenar a violência cometida pelas traduções
obsessivamente filológicas, Berman observa que se deve traduzir a partir de certo
estado de sua língua e de sua literatura. Tal consideração parece ter um fundamento
muito semelhante ao da consideração de Dolet, que sugere um respeito à “majestade” de
cada língua. Portanto, “a poesia estrangeira se traduz a partir da nossa poesia
contemporânea”, porquanto a “tradução é impensável sem as possibilidades poéticas
abertas pelos poetas de nossa língua (BERMAN, 2007: 114).
Todavia, o tradutor de modo especial o tradutor de literatura latina não se
comporta de modo simplesmente passivo em relação ao horizonte poético de sua língua.
Ele também intervém nele em três níveis diferentes: quando resgata formulações
poéticas derivadas do latim; quando se apropria de formulações dos poetas de sua
língua; e quando acaba por inventar novas formulações inevitavelmente requeridas ao se
97
pretender uma tradução da letra. O tradutor, pois, capta, de ideologias historicamente
separadas, diferentes formas discursivas (e aqui argumentamos de acordo com o
pensamento de Bakhtin), para então intervir criativamente na linguagem, após submeter
aquelas formas à sua consciência individual.
Enfim, somos levados a entender que o tradutor pode e deve reinstituir as
propriedades que constituem a letra do texto latino, sem decalcá-las em sua língua, nem
violentá-la gratuitamente. Para que isso seja possível, um tradutor do latim precisa
buscar o “não-normatizado”, precisa fugir de tudo aquilo que o aprisiona em sua língua,
precisa resgatar a liberdade permitida pela frase latina, precisa reinventar a língua nativa
a partir das melhores qualidades que se pode encontrar em suas raízes. Não por menos,
Berman concebe uma tradução do latim assim realizada como uma memória repatriante
da língua, por meio da qual podemos ressuscitar os clássicos romanos, e pela qual
também podemos inovar e reavivar qualquer língua derivada do latim, como o
português.
Se por um lado Mounin oferece formulações mais gerais, que nos esclarecem
questões lingüísticas inerentes à tradução em si e particularmente à tradução de línguas
antigas, como o latim, em detrimento de ferramentas analíticas propriamente ditas,
Berman, por outro lado, embora também ofereça um conceito lingüístico de tradução
bastante elaborado, se preocupa em oferecer um conjunto de ferramentas analíticas que
vêm a ser muito úteis para nosso trabalho. Um capítulo inteiro de A tradução e a letra,
sua obra que aqui nos serve de referência, é dedicado à definição de diferentes
modalidades de “tendências deformadoras”, como ele as define. Tal capítulo leva o
título mencionado aqui de A analítica da tradução e a sistemática da
deformação”. Como o nome sugere, a partir da identificação de diferentes
modalidades de deformação do texto literário observadas em uma infinidade de
traduções domesticadoras que predominam na tradição ocidental de tradução, Berman
sugere um método de análise crítica de traduções literárias. São treze as tendências
identificadas por ele: a racionalização, a clarificação, o alongamento, o enobrecimento e
a vulgarização, o empobrecimento qualitativo, o empobrecimento quantitativo, a
homogeneização, a destruição dos ritmos, a destruição das redes significantes
subjacentes, a destruição dos sistematismos textuais, a destruição (ou a exotização) das
redes de linguagens vernaculares, a destruição das locuções e idiotismos, o apagamento
das superposições de línguas.
98
A racionalização diz respeito às estruturas sintáticas do texto de partida e à sua
pontuação. “A racionalização re-compõe as frases e seqüências de frases conforme uma
certa idéia de ordem de um discurso” (BERMAN, 2007: 48). Essa tendência procura
corrigir o elemento da imperfeição, que por vezes representa, como entende Berman,
uma condição de possibilidade. A informidade significante, ou a significativa ausência
de uma forma bem definida no texto, indica que o texto afunda nas profundezas
polilógicas da língua, ou seja, mergulha no mar de possibilidades da língua. Uma
tradução que procure racionalizar o texto fatalmente acaba minando essas
possibilidades.
A clarificação é uma tendência bem próxima à racionalização, porém tem mais a
ver com a clareza sensível das palavras, isto é, uma clarificação do sentido da palavra.
“Onde o original se move sem problema (e com uma necessidade própria) no
indefinido, a clarificação tende a impor algo definido. (...) A clarificação é inerente à
tradução, na medida em que todo ato de traduzir é explicitante” (BERMAN, 1975: 50).
É como se o esforço tido pelo tradutor para compreender o texto de partida
especialmente para compreender suas passagens mais ambíguas, mais difíceis – se
refletisse numa busca de clareza de sentido no texto traduzido, numa tentativa de tornar
seu texto mais compreensível, mais claro, em detrimento de uma ambigüidade, uma
indefinição, uma polissemia muitas vezes querida pelo autor daquele texto.
O alongamento é, em certa medida, uma conseqüência das tendências anteriores:
na tentativa de dar uma ordem mais “lógica” para frases que transgridem as convenções
da língua, tornando-as mais inteligíveis, e um sentido mais claro para palavras ou
expressões que parecem demasiado ambíguas, o tradutor frequentemente acaba por
alongar o texto, em muitos casos dobrando a quantidade de palavras em relação ao texto
de partida. Pode-se argumentar que isso diz respeito também a uma diferença entre as
línguas – algumas são mais sintéticas, outras têm mais artigos, preposições e conectivos
em geral. No entanto, Berman, comparando diversas experiências de tradução, verifica
que essa tendência existe em qualquer tradução que se faça, não importe a língua de
partida e a língua de chegada. O alongamento tem implicações geralmente prejudiciais
às qualidades literárias do texto; Berman é enfático neste sentido ao mencionar um
exemplo: “O Moby Dick ‘alongado’ [de Armel Guerne], de oceânico torna-se inchado e
inutilmente titânico. O alongamento, aqui, agrava a informidade originária da obra,
fazendo-a passar de uma informidade plena à uma informidade vazia” (BERMAN,
1975: 51).
99
O enobrecimento é geralmente observado na tradução dos clássicos. Na tentativa
de obter um texto à altura do original, isto é, do texto de partida, alguns tradutores
procuram empolar seu texto. “Chega-se a traduções ‘mais belas’ (formalmente) do que
o original. (...) A estética vem aqui completar a lógica da racionalização: todo discurso
deve ser um belo discurso. Em poesia, isto produz a ‘poetização’; na prosa, uma
‘retoricização’” (BERMAN, 1975: 52). O avesso do enobrecimento é a tentativa de
encontrar equivalências para partes do texto de partida que jogam com a oralidade,
partes do texto em que se manipula, por exemplo, o linguajar rural ou os falares
urbanos. Algumas traduções, julgando essas passagens “populares”, recorrem ao que
Berman chama de pseudo-gíria, que vulgariza o texto de modo inconveniente,
provocando uma confusão entre o oral e o falado.
O empobrecimento qualitativo tem a ver com a perda da corporeidade icônica de
uma palavra. Muitas vezes determinada palavra consiste num ícone daquilo que ela
significa, muitas vezes ela evoca fortemente certas qualidades ou características de seu
significado. A palavra borboleta, por exemplo, parece de alguma forma evocar o som
emitido pelo bater das asas de uma borboleta. Isso seria uma qualidade iconográfica da
palavra borboleta, pois contribui para torná-la um ícone daquele animal que ela designa.
Berman o exemplo da palavra peruana chuchumeca, geralmente traduzida por
“puta”: “... consegue-se devolver o sentido, mas nunca a verdade sonora e significante
desta palavra. É assim com todos os termos chamados normalmente de ‘saborosos’,
‘densos’, ‘vivos’, ‘coloridos’ etc., epítetos que remetem a essa corporeidade icônica da
palavra” (BERMAN, 1975: 54).
O empobrecimento quantitativo diz respeito a uma economia desnecessária e
inoportuna, a uma subutilização do repertório lexical. Isso acontece geralmente na
prosa, mas também pode acontecer na poesia. Na prosa, por exemplo, muitas vezes se
usam várias e diferentes palavras para se referir à mesma coisa, e isso é intencional, é
próprio do estilo, é legítimo. uma proliferação de significantes e cadeias (sintáticas)
de significantes perfeitamente cabível, cujos efeitos podem contribuir para a dinâmica
de uma narrativa e especialmente para a dinâmica de uma descrição. Berman cita o
escritor argentino Roberto Arlt. Em um de seus romances Arlt usa, em diferentes
oportunidades, as palavras semblante, rostro e cara para se referir à mesma coisa. Em
uma tradução desse romance para o francês, as três palavras foram traduzidas por
“visage”. A tradução, pois, não respeitou a triplicidade pretendida pelo escritor. Como
100
entende Berman (1975: 54), “é atentar contra o tecido lexical da obra, o seu modo de
lexicalidade, a abundância.”
A homogeinização é uma tendência que se nota no todo de uma tradução, sendo
assim difícil de demonstrá-la com exemplos isolados. É, de certa forma, uma resultante
de todas as tendências citadas: “ela agrupa a maioria das tendências do sistema de
deformação. No entanto, é preciso considerá-la como uma tendência em si, que
mergulha profundamente suas raízes no ser do tradutor” (BERMAN, 1975: 55). Ou seja,
a homogeinização está relacionada com a concepção de tradução do tradutor, ou melhor,
é uma tendência inerente ao seu modo de conceber, de fazer, de pensar, de encarar a
tradução, e muitas vezes é uma tendência instintiva. Berman cita o comentário de um
tradutor de Tolstoi para exemplificar essa tendência: “O tradutor, querendo ou não, é
obrigado a dar ao texto uma penteada; se ele se permite deliberadamente uma correção,
uma construção defeituosa [...], ela não será de modo algum equivalente àquelas do
original” (SCHLOEZER apud BERMAN, 1975: 55). A metáfora da penteada é perfeita
para explicar a tendência da homogeinização. De fato, o tradutor é levado a atenuar
irregularidades do texto de partida, muitas vezes por sentir que uma simulação de tal
irregularidade na tradução poderia não ser bem sucedida, mas também por temer que
seu texto pareça ruim ou feio, condenando assim sua tradução.
A destruição dos ritmos é evidente e dispensa muitas explicações quando se fala
em tradução de poesia falaremos um pouco mais a respeito logo adiante, quando
estivermos tratando da busca de correspondências formais segundo o pensamento de
Paulo H. Britto. Um dos exemplos mais significativos de prejuízos causados pela
destruição dos ritmos está ligado à mimese. Grandes escritores clássicos, especialmente
os antigos, têm como qualidade central de sua literatura a mimese, que se apóia quase
sempre no ritmo para representar o real. Uma vez destruído o ritmo, perde-se a mimese,
e o texto perde muito com isso. No Satyricon, como em toda a literatura greco-romana
antiga, a mimese é constante. No entanto, um aspecto inerente à poesia do Satyricon
particularmente que é diretamente afetado por uma outra tendência deformadora
observada por Berman, a destruição das redes significantes subjacentes.
Como vimos, praticamente em todos os poemas do Satyricon, certos
significantes dentro do poema ou em seu entorno (na prosa) se correspondem e se
encadeiam, formando redes de trocadilhos sob a superfície do texto. No entendimento
de Berman, isso é o subtexto que constitui uma das faces da rítmica e da significância
da obra. “Assim, ressurgem certas palavras que formam, quer seja pelas suas
101
semelhanças ou seus modos de intencionalidade, uma rede específica” (BERMAN,
1975: 56). Podemos citar, por exemplo, os poemas moralistas de Trimalchio (item
2.1.2.3) e Eumolpus (item 2.1.2.5) cujos elementos sugerem uma rede de trocadilhos
(por ex., pássaros, mulheres e luxúrias). Os elementos são repetidos quase que
obsessivamente, e o discurso formado pelo encadeamento deles alguém poderia supor
– se manifesta no inconsciente do leitor. Trata-se sem dúvida de algo de difícil tradução,
porém o simples reconhecimento dessas redes significantes subjacentes pelo tradutor
pode levá-lo a uma conduta bastante diferenciada.
Por mais desorganizada que possa parecer, por mais caótica, por mais
heterogênea que seja, uma obra literária genuína contém uma organização intrínseca,
uma lógica própria, um sistema, que lhe consistência, firmeza, sustentação. A
destruição dos sistematismos, como Berman define os elementos que formam em
conjunto o sistema de um texto, é outra resultante de diferentes tendências
deformadoras, assim como a homogeinização. Assim como esta, a destruição dos
sistematismos se percebe no todo da obra, e é difícil de se apontar em casos isolados.
Essa tendência, aliás, está curiosamente relacionada com a homogeinização:
Embora o texto da tradução (...) seja mais homogêneo que o do original, ele
também é mais incoerente, mais heterogêneo e mais inconsistente. É um pout-
pourri de diversos tipos de escrituras. Tanto que a tradução tende sempre a
parecer homogênea e incoerente ao mesmo tempo. (BERMAN, 1975: 58)
A homogeinização, portanto, não dissimula a sistematicidade de um texto, assim
como a sistematicidade, no texto de partida, não significa homogeneidade. A maioria
das traduções tende a deixar o texto homogêneo e, ao mesmo tempo, carente de um
sistema orgânico que lhe dê consistência.
Um outro aspecto bastante característico do Satyricon também é objeto de uma
das tendências apontadas por Berman, a destruição ou a exotização das redes de
linguagens vernaculares. O vernáculo está mais presente na prosa, e por isso tal
tendência é mais freqüentemente observada em traduções de romances modernos,
porém como vimos, no Satyricon, o linguajar do povo está presente tanto na prosa
quanto nos poemas, que por vezes têm de ser medíocres, “baixos”, “vulgares”. O
apagamento ou a destruição dos vernaculares prejudica em muito a textualidade
original. Muitas vezes os tradutores tentam conservá-los, exotizando-os. A exotização
ocorre de duas maneiras. A primeira recorre a um procedimento tipográfico: coloca-se
em itálico o que não estava destacado no original, isolando o termo para que se entenda
102
que ali (ou havia) um significado peculiar. A segunda caminha para a vulgarização,
ao passar um vernacular estrangeiro para um vernacular local. Por exemplo, substitui-se
uma gíria estrangeira por uma local. Para Berman (1975: 59), “infelizmente, o
vernacular não pode ser traduzido a outro vernacular. as coinés, as nguas ‘cultas’,
podem entretraduzir-se. Tal exotização, que transpõe o estrangeiro de fora pelo de
dentro, consegue ridicularizar o original.” Berman, portanto, condena tanto a
destruição quanto a exotização, afirmando a impossibilidade de se traduzir o vernáculo.
A destruição das locuções também está relacionada com o vernacular.
Locuções, modos de dizer, expressões idiomáticas, provérbios, idiotismos etc. que
dizem respeito ao vernacular – geralmente carregam um sentido ou uma experiência que
também se encontra em locuções de outras línguas. Por exemplo, a expressão brasileira
“Deus ajuda quem cedo madruga” tem equivalentes em outras línguas:
Le monde appartient à ceux qui se lèvent tôt. (francês)
[O mundo pertence aos que levantam cedo.]
L’heure du matin a de l’or dans la bouche. (alemão)
[A hora da manhã tem ouro na boca.]
L’oiseau du matin chante plus fort. (russo)
[O pássaro da manhã canta mais forte.]
Al que madruga, Dios le ayuda. (espanhol)
[A quem madruga, Deus ajuda] (BERMAN, 1975: 60)
Traduzir, no entanto, como assevera Berman, não é buscar equivalências. Se, por
exemplo, substituíssemos o provérbio alemão ou o russo, que usam metáforas bastante
distintas, pelo nosso “Deus ajuda quem cedo madruga”, estaríamos deixando de
incorporar elementos novos à língua, afirmando nosso etnocentrismo. Para Berman,
existe em nós uma consciência-de-provérbio que percebe imediatamente um novo
provérbio, e ignorá-la limita fatalmente os horizontes da tradução. Esses argumentos
servem não apenas para a tradução de provérbios, mas também para a tradução de
qualquer tipo de locução, inclusive e principalmente para aquelas que são usadas em
meio a um texto literário, como parte de seus elementos vernaculares. Nesse ponto,
Berman assume uma postura explicitamente estrangeirizante enquanto teórico da
tradução.
103
A última das tendências apresentadas por Berman também vem a ser muito
propícia para analisar traduções do Satyricon. Algumas obras principalmente as obras
em prosa trazem superposições de línguas que ocorrem de duas maneiras: dialetos
coexistem com uma coiné (ou com a língua culta), ou rias coinés coexistem. Um
exemplo do primeiro caso, usado por Berman, é a obra de Guimarães Rosa, em que o
português clássico e os falares nordestinos se interpenetram. Do segundo caso um
exemplo é o escritor Roa Bastos, cujo espanhol é modificado sintaticamente por outras
duas línguas puramente orais, o quíchua e o guarani. Ambos os casos estão ameaçados
pela tradução, que tende ao apagamento das superposições de línguas. Entre o
vernacular e a coiné uma relação de tensão e integração, que é quase impossível de
se preservar na tradução. Retomando Bakhtin (1995), cujas considerações a respeito de
gênero na obra de Petrônio foram discutidas no primeiro capítulo, urge lembrar que o
Satyricon, enquanto precursor do romance moderno, reúne heterologia (diversidade de
tipos discursivos), heteroglossia (diversidade de línguas) e heterofonia (diversidade de
vozes). As traduções, pois, tendem a anular esses três aspectos, conseguindo raramente
correspondências satisfatórias.
Essa relação de tendências deformadoras proposta por Berman nos servirá de
ferramental analítico, assim como as considerações de Mounin a respeito da tradução de
textos antigos nos servirão de parâmetro para poder avaliar o conceito de tradução e as
abordagens de cada tradutor. Berman, no entanto, embora trate de tradução literária a
todo o momento, refere-se quase sempre à tradução de prosa, principalmente de
romance. Por essa limitação, adotamos o método de análise formal de poesia de Paulo
Henriques Britto como referência para a análise formal de alguns poemas. Alguns
procedimentos do método de Britto serão empregados eventualmente, quando tal tipo de
análise for necessário. Além disso, seu conceito de correspondência também será
assumido em nosso trabalho. O método, bem como o conceito, será explanado a seguir.
3.1.3. Paulo H. Bitto e a tradução de poesia
Paulo Henriques Britto, além de escritor e tradutor literário, é um importante crítico e
pensador da tradução no Brasil, especialista em tradução de poesia. Do conjunto de seus
ensaios e artigos insinua-se um interessante pensamento teórico a respeito da tradução
literária. Tão interessante quanto seu pensamento é seu método de análise formal de
poemas que visa à crítica comparada de traduções. Pensamento e método são
104
expressados em diversos textos de Britto.
92
Entretanto, a produção de Britto nos últimos
seis anos vem aprimorando e estendendo aquilo que foi pela primeira vez apresentado
em 2002, num texto seminal chamado “Para uma avaliação mais objetiva das traduções
de poesia”.
Nesse ensaio, Britto opera com o conceito de “correspondência” certamente
em contraposição a conceitos como o de equivalência, por exemplo. Considerando que
o texto poético trabalha com a linguagem em todos os seus níveis semânticos,
sintáticos, fonéticos, rítmicos, entre outros idealmente, como entende Britto, um bom
poema deve articular todos esses níveis, ou pelo menos rios deles, no sentido de
chegar a um determinado conjunto harmônico de efeitos poéticos. “A tarefa do tradutor
será, pois, a de recriar, utilizando os recursos da língua-meta, os efeitos de sentido e
forma do original ou, ao menos, uma boa parte deles” (BRITTO, 2002: 45). Assim, o
tradutor deveria tentar alcançar em sua tradução o maior número possível de elementos
que sejam correspondentes aos percebidos no poema ou no texto original.
A noção de correspondência em Britto é bastante desenvolvida. Subordinada a
esta noção está a noção de “perda”. A perda numa tradução aumenta à medida que o
grau das correspondências diminui poderíamos dizer o grau de proximidade. É
precisamente nesse ponto, em analisar os elementos dos dois poemas (o poema inicial e
o traduzido) e graduar as correspondências alcançadas no poema traduzido, que reside a
força do método de Britto. Vejamos, a partir de exemplos, como podem se dar as
correspondências no vel da forma, especialmente em relação às características
métricas e rítmicas do poemas, que nos interessam particularmente:
Quadro 1: Correspondências métricas e rítmicas
- / | - / | - / | - - | / / - / - / - / - - / /
pentâmetro jâmbico decassílabo jâmbico
pentâmetro decassílabo
verso longo verso longo
Assumimos os sinais usados por Britto (2002) para representar as características métricas e rítmicas dos
versos, onde:
92
Entre eles “O lugar da tradução” (1995), “What Maisie knew: translating James's late style” (1997),
“Tradução e criação” (1999), “Desconstruir para quê?” (2003), “Traduzir Thomas Pynchon” (2005), “As
afinidades eletivas da poesia (2005), “Fidelidade em tradução poética: o caso Donne” (2006),
“Correspondências estruturais em tradução poética” (2006), “Correspondência formal e funcional em
tradução poética” (2006), As condições de trabalho do tradutor” (2007), “É possível transgredir no
momento poético atual?” (2007) e “É possível avaliar traduções?” (2007).
105
| = separador de sílabas
/ = sílaba com acento primário
\ = sílaba com acento secundário
- = sílaba átona
|| = pausa
O quadro acima, proposto por Britto, mostra diferentes graus de
correspondência, considerando os padrões de versificação do inglês e do português. O
inglês, assim como o latim, divide o verso em pés, ao passo que o português divide o
verso em sílabas. Na primeira linha do quadro, na coluna da esquerda, um verso com
cinco pés: três jambos (-
/ | - / | - /
), um dáctilo (
- -
) e um espondeu (
/ /
). Na coluna da
direita, um verso com as mesmas dez divisões (
- / - / - / - - / /
), dispostas na mesma
ordem, porém divididas de acordo com a versificação portuguesa em sílabas, não em
pés. Ou seja, seria o grau mais alto de correspondência na tradução de um verso como
esse, considerando a versificação de cada língua. Na segunda linha, o verso da primeira
coluna é apresentado como um pentâmetro jâmbico, embora não seja um pentâmetro
jâmbico perfeito, pois contém duas irregularidades que resultam no dáctilo e no
espondeu finais. Ou seja, simplifica-se a definição do verso. Logo, na coluna da direita,
o correspondente na versificação portuguesa também aparece simplificado: decassílabo
jâmbico. O grau de correspondência, portanto, diminui. Na terceira linha, dispensa-se a
menção ao tipo de de verso: um simples pentâmetro corresponde a um simples
decassílabo. E na última linha consideram-se convenções poéticas para descer mais um
grau:
(...) se considerarmos que o pentâmetro é um metro relativamente longo no
inglês em oposição ao trímetro, por exemplo e que o decassílabo e o
alexandrino no português são metros relativamente longos em comparação
com os hexassílabos e heptassílabos — poderíamos dizer que um alexandrino em
português corresponde a um pentâmetro inglês, na medida em que ambos são
“versos longos”. (BRITTO, 2002: 46)
As correspondências, obviamente, não se limitam apenas ao metro e ao ritmo do
poema; elas também podem existir em outros elementos da forma, como, por exemplo,
as rimas, externas e internas (assonâncias e aliterações), e quaisquer outros tipos de
figura de linguagem, que digam respeito à forma ou ao conteúdo do poema. O tradutor
precisa ter plena consciência das qualidades do poema que se presta a traduzir, para
então poder buscar o máximo grau de correspondência em sua tradução, às vezes
privilegiando um aspecto em detrimento de outro, sempre procurando minimizar as
perdas à medida do possível. Sem dúvida, o tradutor eventualmente vai se deparar com
106
barreiras impossíveis de se transpor, em decorrência de graves diferenças entre as
línguas.
Britto indica que pode haver uma infinidade de problemas e casos específicos
que requerem julgamento diferenciado. Isso fica claro quando ele levanta questões
como:
Até que ponto o item em questão é relevante no original? No caso analisado
aqui, vimos que a estrutura métrica do original apresenta regularidades, mas não
chega a ser rigorosa. Concluímos que a contagem estrita de s ou sílabas não
seria relevante aqui, e que seria suficiente trabalhar com os elementos “verso
longo” e “verso curto”. [...]
Até que ponto é possível o grau máximo de correspondência? Quando não
houver na língua-meta elementos correspondentes aos itens trabalhados no
original, a exigência de correspondência terá que ser afrouxada. [...]
Até que ponto uma correspondência exata seria de fato desejável? Pode haver
casos em que seja necessário utilizar uma correspondência funcional e não
formal. (BRITTO, 2002: 61-62)
Tomaremos aqui o método de Britto como referência, porém não faremos uma
análise comparada, explicitando todos os elementos e suas respectivas perdas ou
correspondências etc. Nosso foco está na tradução das sutilezas dos poemas de Petrônio,
não numa tradução total dos poemas. Aqui, incondicionalmente privilegiamos a
tradução das sutilezas que expusemos na primeira metade desse capítulo, por acreditar
que elas constituem a importância principal da poesia dentro do Satyricon, perante a
poética, perante as concepções literárias de Petrônio. Reiterando nossa interpretação,
considerando que o texto poético trabalha com a linguagem em todos os seus níveis,
Britto entende que, idealmente, um bom poema deve articular todos os níveis da
linguagem, ou pelo menos vários deles, no sentido de chegar a um determinado
conjunto harmônico de efeitos poéticos. Isso, por tudo o que se discutiu, não vale
inteiramente para Petrônio. Afirmamos repetidas vezes que, com freqüência, Petrônio
faz o poema parecer medíocre e o preenche com os mais diversos elementos, visando a
distintos efeitos em geral cômicos. Por isso, perante os poemas do Satyricon, não
entendemos exatamente que a tarefa do tradutor seja “a de recriar, utilizando os recursos
da língua-meta, todos os efeitos de sentido e forma do original ou, ao menos, uma boa
parte deles” (BRITTO, 2002: 45). Entendemos que o privilégio na tradução deve ser
dado sempre às sutilezas apontadas, que dão graça aos poemas e refletem parte essencial
da genialidade de Petrônio.
107
Efetivamente, recorreremos com bastante freqüência às ferramentas de análise
propostas por Berman para explicar e classificar certos processos de apagamento,
destruição ou deformação, e recorreremos a Britto sempre que se fizer necessário falar
em perda e correspondência, e fazer uma análise formal da estrutura métrica do poema,
o que por vezes será imprescindível. Enfim, porque nos parece minimamente suficiente
os conceitos e métodos de análise propostos por Mounin, Berman e Britto, seguimos
agora para o objetivo principal de nosso trabalho: a análise das traduções.
108
3.2. As edições brasileiras e seus tradutores
Publicadas no Brasil, diretas do latim, cinco traduções de todo o conjunto
estabelecido de fragmentos do Satyricon. As traduções dos poemas que serão analisadas
adiante foram extraídas dessas cinco edições brasileiras. ainda uma tradução indireta
do francês, feita por Marcos Santarrita, publicada pela editora Abril. Esta tradução, no
entanto, não nos interessa aqui; interessa-nos somente as traduções feitas diretamente do
texto latino. Igualmente, traduções feitas de trechos isolados da obra também não foram
consideradas, pois nos pomos a avaliar o conjunto.
Antes de começarmos a análise das traduções, faremos uma breve apresentação
dessas edições elegidas para o trabalho e de seus respectivos tradutores. Consideramos
importante, por exemplo, registrar alguma informação dada pelo tradutor a respeito de
seu projeto de tradução, comentar a maneira como ele ou a editora organizou o texto, ou
simplesmente explicitar informações básicas como o ano da primeira edição.
3.2.1. Miguel Ruas (1970)
A primeira tradução do Satyricon publicada no Brasil foi feita por Miguel Ruas, lançada
em 1970 pela editora Atenas e relançada no ano seguinte pela Ediouro. Todas as edições
da tradução de Ruas vêm acompanhadas de uma introdução assinada por Giulio Davide
Leoni, ex-professor de Língua e Literatura Italiana e de Literatura Latina da PUC-SP. A
introdução é rica em informações a respeito da questão petroniana e de todo o contexto
da Roma de Petrônio, e seu autor também apresenta uma série de interessantes
considerações críticas sobre a obra, embora sejam claramente destinadas a enaltecê-la.
Ao longo de seu texto, Ruas faz 72 notas, esclarecendo os mais diversos pontos,
desde informações históricas e termos latinos específicos até particularidades de
Petrônio, particularidades literárias e conexões do texto com outras obras da
Antigüidade. Ruas nada fala a respeito de seu projeto de tradução, sua abordagem, suas
escolhas etc., e tampouco explicita a edição em cujo texto latino se baseou para fazer a
tradução. Não há também informações biográficas a respeito de Ruas, e a editora,
quando contatada, não respondeu ao pedido de dados biográficos do tradutor. Sabe-se
apenas que Ruas também traduziu, do grego clássico, um dos diálogos de Platão, o
Fédon, e do italiano, uma obra de Benedetto Croce, Aspectos morais da vida política.
109
Outra característica de sua tradução é a maneira como o texto é dividido. Em
todas as edições do texto latino estabelecido por filólogos, o Satyricon aparece dividido
em pequenos capítulos cujos versículos são indicados, e os episódios, embora tivessem
temas explícitos, não levam título. Ruas, ou sua editora, parece reorganizar o texto
deliberadamente: ele divide a narrativa por episódio, desconsiderando a tradicional (e
supostamente original) divisão em pequenos capítulos. Isso a princípio não prejudica
nosso trabalho, uma vez que os poemas ao menos permanecem ali, em seu lugar da
narrativa. No entanto, a divisão de Ruas, de alguma forma, pode sugerir, por exemplo,
que a obra de Petrônio seja um típico romance moderno, o que é contestável,
considerando as discussões a respeito dos gêneros literários feita no primeiro capítulo.
Essa questão, porém, transcende os limites deste trabalho.
3.2.2. Paulo Leminski (1985)
A segunda tradução do Satyricon, direta do latim, surgida no mercado editorial
brasileiro é a de Paulo Leminski, lançada em 1985, pela editora Brasiliense. A tradução
de Leminski destaca-se entre as demais por diversos motivos, que em geral decorrem de
sua personalidade:
Paulo Leminski, nascido no ano de 1944, em Curitiba-PR, foi seminarista do
mosteiro paulista São Bento, onde ingressou em 1958 e aprendeu o latim. Além
deste idioma, ainda estudaria profundamente o inglês, o francês e o grego.
Foi professor de História e Redação em cursos pré-vestibulares, diretor de
criação e redator de publicidade. Atuou em vários veículos de comunicação e
escreveu biografias de, entre outros, Cruz e Souza, Jesus Cristo e Bashô. Casado
com uma poeta e cineasta, Berenice Mendes, também se envolveu com a arte
áudio-visual. Como músico e compositor (lado pouco conhecido seu) obteve
considerável sucesso, tendo inclusive uma letra gravada por Caetano Veloso,
Verdura. A face mais conhecida de Leminski diz respeito à atividade literária.
Sua extensa bibliografia abarca poesia, romances, novelas, contos, peças teatrais,
roteiros televisivos e cinematográficos, ensaios críticos, artigos jornalísticos e
traduções.
Somente durante os anos de 1984 e 1985, publica cinco grandes traduções. Entre
os autores das obras traduzidas estão, James Joyce, John Fante e Petrônio.
93
Leminski apresenta um breve prefácio à sua tradução de Satyricon, intitulado
“Um romance jovem de dois mil anos”, e um interessante posfácio, intitulado “Latim
com gosto de vinho tinto”, em que tece uma série de considerações críticas a respeito de
Petrônio e sua obra, em uma linguagem bastante simples e bem humorada, como é
93
Nota biográfica extraída do DITRA Dicionário de tradutores literários no Brasil
(www.dicionariodetradutores.ufsc.br). O verbete sobre Leminski, preparado por Luiz H. Queriquelli e
Mauri Furlan, foi publicado em 3 de junho de 2005.
110
próprio de seu estilo. A simplicidade e o bom humor, que existem no estilo de
Petrônio, são exacerbados na tradução de Leminski. Algumas considerações feitas pelo
tradutor no prefácio valem à pena ser registradas:
Esta tradução, feita diretamente do original em latim, procurou, sobretudo,
preservar os valores orais e populares da linguagem de Petrônio, transpostos para
uma linguagem viva e crua de hoje. Essa crueza da linguagem de Petrônio
sempre foi maquilada nas traduções para as línguas modernas, onde giros
eufemísticos, ditados pelo moralismo, substituem o verdadeiro nome das coisas,
coisa de que Petrônio não tinha nenhum medo. As traduções francesas, guiadas
pelo decoro gaulês, são particularmente “traidoras”, edulcoradas, atenuantes. O
extremo sintetismo do latim, a língua do veni, vidi, vici, tem que ser estendido
numa língua moderna, principalmente se quisermos preservar valores de
oralidade, dicção e naturalidade de diálogos. No original, o texto do Satyricon
tem muito menos palavras que qualquer tradução para um idioma atual.
(LEMINSKI, 1985: 5)
De fato Leminski luta contra a tendência do alongamento em toda a sua
tradução, apesar de arcar com muitas perdas por isso. Todavia, ele não considera sua
busca por uma economia de palavras uma liberdade tomada. Em contrapartida, admite
ter tomado liberdades na tradução dos poemas:
Onde tomei liberdades, foi na trans-criação dos freqüentes poemas que, com
função burlesca, entremeiam a ação do Satyricon, entre outras coisas, uma sátira
dos costumes literários da época. Com efeito, esses poemas são compostos numa
linguagem muito diferente dos trechos em prosa. Estes são rápidos, orais, em
ordem direta. Os poemas estão escritos numa linguagem rebuscada e empolada,
retórica no mau sentido da palavra, tecido de lugares-comuns acadêmicos, cujo
ridículo não devia escapar aos leitores de Petrônio, esse extraordinário designer
de linguagem, capaz de duas dicções tão distintas. No caso dos poemas, mantive
sempre o sentido geral, aliviando-os, porém, do pesado lastro de alusões
mitológicas que, evidentemente, faziam sentido para um leitor da
Antigüidade. Ou, hoje, para um especialista, versado em cultura greco-latina.
Esta não é uma tradução para especialistas. É um compromisso entre uma
fidelidade essencial ao texto latino do Satyricon, às vezes, aliteral, e o não
menos legítimo compromisso de envolver diretamente o leitor de hoje na vida de
um texto de dois mil anos vivo. (LEMINSKI, 1985: 6)
Leminski mantém a divisão tradicional em pequenos capítulos e cobre o texto de
notas de rodapé contendo informações das mais diversas ordens, assim como a tradução
de Ruas. Leminski, no entanto, não se limita a fornecer uma simples informação ao
leitor; frequentemente ele imprime explicitamente seus juízos e suas interpretações nas
considerações que faz, manifestando sua admiração por Petrônio e demonstrando de
maneira muitas vezes controversa suas idiossincrasias de escritor. Vale expor alguns
exemplos de suas notas:
“Perfluebant per frontem sudantis acaciae rivi, et inter rugas malarum tantum
erat cretas, ut putares detectum parietem nimbo laborare.” Pela extraordinária
111
precisão de registro realista aliada a uma hiperbólica ênfase “expressionista”,
esta frase, sozinha, é uma das grandes obras da literatura latina. (p. 39)
“Scholastici et arietilli.” A estupidez de Trimalcião produz trocadilhos
intraduzíveis. (p. 55)
É quase inacreditável essa tirada de crítica social, voltada para o povo miúdo,
numa literatura, como a romana, feita por e para a mais alta aristocracia. (p. 62)
A cultura nouveau riche de Trimalcião é um verdadeiro “samba do crioulo
doido”. (p. 71)
O virtuosismo de registro dessa fala bêbada, por Petrônio, certamente, seria
depois superado por Joyce. (p. 79)
Sem dúvida será considerado em nossa crítica o projeto e a concepção de
tradução explicitados por Leminski em seu prefácio, de modo absolutamente coeso e
bem justificado. Todas as manifestações de Leminski ao longo de sua tradução, bem
como suas informações biográficas, longe de influenciar prejudicialmente nossa crítica,
serão consideradas no sentido de mais bem entender as escolhas e os procedimentos
assumidos por ele. Leminski, de fato, demonstra ter percebido com grande acuidade as
qualidades e as particularidades da literatura e, em especial, da poesia de Petrônio, o que
nos ajuda no sentido de poder inferir certas estratégias que ele fatalmente terá usado na
tradução de um ou outro verso. Lamentavelmente, não é dito aonde se buscou o texto
latino no qual a tradução foi baseada, isto é, não é explicitada a edição do texto em latim
estabelecido.
3.2.3. Alex Marins (2003)
Oito anos depois da tradução de Leminski, lançada pela editora Brasiliense, a editora
Martin Claret lança uma tradução de Satyricon atribuída a Alex Marins. A edição da
Martin Claret não apresenta nenhuma informação a respeito do tradutor ou da fonte do
texto em latim. Quando contatada, a editora não forneceu nenhum dado a respeito do
tradutor; disse apenas que ele fez uma série de trabalhos para a editora numa certa época
e depois não manteve mais contato com a empresa. No mercado editorial brasileiro,
todas as traduções supostamente feitas por Marins são editadas pela Martin Claret
nenhuma outra editora jamais publicou qualquer tradução de Alex Marins.
A Martin Claret foi recentemente processada por plágio comprovado de três
traduções, as quais ela publicou sob nomes-fantasia (Boris Solomonov e Pietro Nassetti)
de tradutores que nunca existiram. uma série de outras traduções da Martin Claret
112
que estão sendo investigadas, sob a suspeita de plágio, entre elas, todas as supostas 33
traduções de Alex Marins: Leviatã (Hobbes); Assim Falou Zaratustra (Nietzsche);
Elogio da Loucura (Erasmo de Roterdã); Fedro (Platão); Manuscritos Econômico-
Filosóficos (Marx); Meditações (Marco Aurélio); Eugênia Grandet (Balzac); O
Desespero Humano (Kierkegaard); Dos Deveres (Cícero); Satíricon (Petrônio);
Desobediência Civil e outros ensaios (Thoreau); Para Além do Bem e do Mal
(Nietzsche); A Ilha do Tesouro (Stevenson); Segundo Tratado Sobre o Governo
(Locke); O Príncipe e o Mendigo (Mark Twain); O Último Adeus de Sherlock Holmes
(Conan Doyle); A Megera Domada (Shakespeare); O Livro da Jângal (Kipling); A
Riqueza das Nações (Adam Smith); O Último dos Moicanos (Fenimore Cooper); O
Livro de (cujo autor, segundo a Martin Claret, é Jó); Discurso Sobre as Origens e
Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens (Rousseau); As Mulherzinhas (Louise
M. Alcott); Thaís (Anatole France); Tristão e Isolda; Crítica da Razão Pura (Kant);
Confissões (Santo Agostinho); Crime e Castigo (Dostoievski); O Suicídio (Durkheim);
As Aventuras de Huckleberry Finn (Mark Twain); Moby Dick (Melville); Ben-Hur (L.
Wallace); O Livro de Ouro da Mitologia (Th. Bulfinch). De fato é muito raro encontrar
um tradutor que tenha tal tamanha e eclética gama de obras clássicas traduzidas (do
original, segundo a editora). No entanto, seja esse tradutor real ou virtual, a tradução de
Satyricon editada pela Martin Claret está disponível ao leitor brasileiro há mais de cinco
anos, e o texto será analisado neste trabalho.
A primeira edição dessa tradução (2003) é antecedida por um brevíssimo
prefácio assinado por Mário da Silva Brito, que cita a descrição de Petrônio por Tácito
nos Annales (sem explicitar o tradutor), explica alguns dos principais pontos da
narrativa do Satyricon, e menciona os aspectos centrais da questão petroniana. Há
também, no final do livro, uma pequena nota biográfica a respeito de Petrônio, que se
resume a um comentário da descrição de Tácito. A divisão em pequenos capítulos é
mantida, mas a menção aos versículos é dispensada. Um detalhe merece uma nota
nossa: ao longo dos 141 capítulos do Satyricon, Marins não apresenta uma nota sequer
explicando qualquer expressão ou termo presente no peculiar latim de Petrônio.
3.2.4. Sandra Braga Bianchet (2004)
No ano seguinte à publicação da Martin Claret, a editora Crisálida lança a tradução de
Sandra Braga Bianchet. Essa edição é a única bilíngüe entre traduções do Satyricon
113
publicadas no Brasil. O texto latino, como dissemos no capítulo I, é mesmo texto
estabelecido pelo filólogo Ernout (1922), e Bianchet mantém todas as divisões em
pequenos capítulos e versículos, bem como as marcações em geral. A tradutora oferece
uma introdução, apresentando de maneira sucinta mas bastante completa a questão
petroniana, faz algumas notas ao longo do texto a fim de explicar neologismos e
informações históricas ou mitológicas, e também assina um posfácio intitulado
Satyricon, de Petrônio: fonte para o estudo do latim vulgar”, resumo de sua tese de
doutorado. O preparo da edição como um todo demonstra um cuidado bastante
acadêmico, o que reflete seu perfil de tradutora:
Mineira de São Geraldo da Piedade, Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet, ou
Sandra Braga Bianchet, como assina seus textos, tem tido desde cedo uma
carreira acadêmica e profissional dedicada ao estudo de línguas. Licenciou-se em
Português, Latim, Inglês e Alemão pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), onde também se tornou mestre em Estudos Lingüísticos. Pela USP se
formou doutora na área de Língua e Literatura Latina, orientada por outra
tradutora participante deste dicionário, Zélia de Almeida Cardoso. Na mesma
universidade em que se iniciou na vida acadêmica, hoje leciona no seu curso de
bacharelado em Latim.
No início da carreira profissional, Bianchet foi professora de inglês e alemão em
cursos não universitários, e dedicou-se a trabalhos de tradução de textos técnicos,
em geral da área de Medicina, escritos em inglês e alemão, conquanto sua
especialidade viesse a ser o Latim. Ao aprofundar-se nos estudos acadêmicos,
dissertou em seu mestrado sobre implicações da sintaxe latina na língua
portuguesa. O trabalho foi intitulado: Indicativo e/ou Subjuntivo em Orações
Completivas Objetivas Diretas do Português: uma volta ao Latim. Em seguida,
quando pleiteou o título de doutora, optou por estudar particularidades do latim
vulgar. Para tanto tomou por empreitada a tradução de Satyricon, de Petrônio,
um dos poucos clássicos da literatura latina que nos guarda indícios de como a
língua dos romanos era falada pelo vulgo enquanto viva.
Sua postura tradutória tende à estrangeirizadora, segundo a noção em Venuti. No
Satyricon trazido por Bianchet para o português, percebe-se claramente
construções frasais típicas da língua latina. Por princípios de tradutora, procura
não pôr o leitor em risco de ler um texto que não é mais o que ele gostaria de
ler.
Recentemente publicou, em co-autoria com Antônio Martinez Rezende, o
Dicionário do Latim Essencial, revelando virtudes de lexicógrafa.
94
Mantendo a integridade do texto estabelecido por Ernout, o texto latino que
consta dessa edição da editora Crisálida indica todos os trechos lacunosos do
Satyricon.
95
Em referência à estimativa de que o que temos do Satyricon é parte de três
dos possíveis vinte e quatro livros que teriam existido, Bianchet declara que “apesar de
suposta tamanha lacuna, o Satyricon, tal como está conservado e editado, permite uma
94
Nota biográfica extraída do DITRA Dicionário de tradutores literários no Brasil
(
www.dicionariodetradutores.ufsc.br). O verbete sobre Bianchet, preparado por Luiz H. Queriquelli e
Mauri Furlan, foi publicado em 22 de fevereiro de 2006.
95
Cf. item 1.1.3.
114
leitura fluente, sem grandes dificuldades” (BIANCHET, 2003: 10). E em nota a essa
afirmação, completa:
Em função dessa fluência na leitura do texto, optou-se, na presente tradução, por
não se tentar preencher qualquer tipo de lacuna. Essa função fica a cargo do
leitor, que certamente terá elementos para fazê-lo à medida de sua imaginação e
conhecimento prévio. (BIANCHET, 2003: 10)
Bianchet apresenta, como já foi dito, um prefácio breve conquanto rico de
informações e, no posfácio, um interessante estudo a respeito do emprego do latim
vulgar na Cena Trimalchionis.
96
Sobre seu projeto de tradução, suas escolhas, suas
pretensões, sua abordagem, Bianchet, ao contrário de Leminski, fala pouco ou nada. No
entanto, depreende-se de algo dito nessa nota citada, do estilo de seu texto obviamente,
e da notável preocupação que a tradutora demonstra ter com a preservação das
estruturas latinas e de todo o vocabulário de Petrônio, que sua tradução não é uma
tradução popular, como se poderia dizer a respeito da tradução de Leminski; é uma
tradução que procura preservar os mínimos detalhes do texto do Satyricon, a despeito da
atualidade ou do franco conhecimento de alguns desses detalhes. É uma tradução para
um leitor informado sobre cultura antiga.
3.2.5. Cláudio Aquati (2008)
A mais recente tradução de Satyricon publicada no Brasil é a de Cláudio Aquati,
lançada em 2008 pela Cosac Naify. Aquati talvez seja uma das maiores senão a maior
autoridades em Saytiricon no Brasil atualmente. Graduado em Letras-Português e
Letras Clássicas, Aquati, que seguiu carreira na área de Estudos Clássicos, apostou no
Satyricon tanto em sua dissertação de mestrado, defendida em 1991, quanto em sua tese
de doutorado, defendida em 1997. O trabalho de mestrado foi uma tradução da Cena
Trimalchionis acompanhada de um estudo crítico, e o de doutorado foi intitulado “O
grotesco no Satíricon”.
Certamente, esses estudos se refletem em sua tradução e resultaram no
impecável ensaio que Aquati publica como posfácio à sua tradução. Nesse ensaio o
tradutor toca em uma série pontos muito significativos: a estrutura do romance, a
herança literária do Satyricon (suas referências na literatura antiga), os gêneros que o
96
Neste trabalho não nos aprofundamos nessa questão, a do uso do latim vulgar por Petrônio, porque ele
o faz especialmente na Cena Trimalchionis, para dar cor à fala de personagens plebeus. Isso, no entanto,
não acontece nos poemas, onde se notam estruturas clássicas.
115
influenciam (como o romance grego e o gênero épico), as temáticas-chave (como a
transgressão e a sátiras de costumes), a história erradia dos fragmentos até chegar às
edições modernas hoje admitidas, e as influências do Satyricon sobre os principais
clássicos que vieram depois dele. Ao final do livro, há um apanhado de imagens,
incluindo fotos de objetos diversos e obras de arte, mapas, esquemas etc., que
contribuem em muito para se imaginar a Roma e os cenários específicos da obra de
Petrônio. Aquati também apresenta uma tradução sua do perfil que Tácito traça de
Petrônio, como uma nota biográfica do autor, e ainda dedica algumas páginas para fazer
sugestões de leitura dentro da vasta bibliografia crítica a respeito do Satyricon.
A edição da Cosac Naify apresenta um texto introdutório escrito pelo poeta
francês Raymond Queneau e traduzido por Paulo Werneck para o português. O texto é
rico em informações, esclarece algumas polêmicas relacionadas à questão petroniana, e
apresenta um discurso muito bem construído a fim de enfatizar qualidades de Petrônio e
da obra perante a literatura canônica universal, além levantar a questão tão óbvia quanto
intrigante de por que esses fragmentos do Satyricon sobreviveram à Idade Média e não
foram queimados junto aos demais.
Aquati, assim como Miguel Ruas, separa o texto em episódios, intitulando-os
deliberadamente, e sugerindo que os episódios sejam correspondentes a capítulos de um
romance. Todavia as indicações aos pequenos capítulos e aos versículos em que o texto
é tradicionalmente disposto são mantidas. As notas de Aquati ao longo da tradução são
além de criteriosas e informativas, muito interessantes, especialmente para explicar
detalhes das paródias geniais de Petrônio, sejam esses detalhes referentes a aspectos da
mitologia greco-romana, à linguagem de Petrônio, ou a particularidades do mundo
romano da época, demonstrando a intensa pesquisa que realizou. Confiram-se algumas
dessas notas, selecionadas ao acaso:
O texto diz “pueros capillatos”, referência a um tipo de escravo a quem se
deixava os cabelos crescer como objetivo de enfeitar a casa, e que também era
destinado aos prazeres sexuais de seus senhores. (p. 42)
Não era incomum entre os romanos misturar mel ao vinho. (p. 49)
Condimento romano para pratos refinados, era basicamente uma salmoura (e
molho dessa salmoura) elaborada pelos antigos a partir de vísceras de diversos
peixes, como a anchova, o atum e o garo (fruto do mar conhecido entre os
romanos, mas mal identificado entre nós, talvez um peixe como a anchova ou
mesmo uma lagosta) e fartamente temperada com orégano, salsinha, erva-doce,
arruda, menta etc. Produzia-se principalmente na costa sul da Espanha e
alcançava preços muito altos. (p. 52)
116
Trimalquião confunde-se completamente: Diomedes e Ganimenes são Castor e
Pólux. Helena não era sua ire também não foi raptada por Agamênnon, e sim
por Paris; não foi Helena quem substituiu Ifigência por uma corça, mas a deusa
Diana; os parentinos nada m a ver com o ciclo troiano; Agamênnon não
entrega sua filha a Aquiles; Ájax não enlouquece pelo motivo alegado, mas
porque lhe foram negadas as armas de Aquiles. (p. 81)
Trata-se de um jogo infantil de adivinhação: uma criança se faz de cavaleiro e
outra de cavalo. O cavaleiro deve montar mantendo um certo número de dedos
da mão levantados. O “cavalo” deve adivinhar o número de dedos escolhido pelo
cavaleiro. Na passagem, contudo, não se descarta certo apelo sexual no contato
entre Trimalquião e o garoto. (p. 87)
A fonte do texto latino, como já dissemos antes, é o texto estabelecido por Ernout em
1922. Aquati usa a terceira edição desse texto, lançada em 1950, em Paris. Assim como
Bianchet, Aquati não explicita em palavras seu projeto de tradução, sua concepção ou
seu tipo de abordagem teórica enquanto tradutor, mas sugere, por seu texto, por toda a
preparação e por todo o aparato de sua tradução, uma concepção semelhante à de
Bianchet, considerando que seus perfis também são parecidos. O trabalho filológico que
Mounin julga ser imprescindível para um tradutor do latim, foi por Aquati
extenuantemente cumprido, ao que parece. Vale registrar que seu texto, na prosa e
também no verso, como veremos a seguir, tem inegável qualidade literária. Cláudio
Aquati demonstra ter pesado com muita razoabilidade as demandas do texto latino e a
tarefa de oferecer um bom texto ao leitor brasileiro.
117
CAPÍTULO IV
4.1. Reinventando o passado épico (traduções)
4.1.1. Encolpius indignado
4.1.2. Virgílio “transcrito”
4.2. A queda de Tróia, pelo Eumolpus de Petrônio (traduções)
4.2.1. A abertura
4.2.2. Escondidos no cavalo
4.2.3. Oh pátria!
4.2.4. Laocoonte
4.2.5. Ecce alia monstra
4.2.6. Tróia embriagada, Tróia enganada
118
4.1. Reinventando o passado épico (traduções)
Até o final deste e do próximo capítulo analisaremos as traduções dos poemas que
examinamos no capítulo anterior, feitas pelos cinco tradutores recém apresentados. O
foco de nossa análise, cabe repetir, são as sutilezas da poesia de Petrônio que tentamos
evidenciar anteriormente. Antes ou durante a análise das traduções, essas qualidades,
esses procedimentos poéticos que chamamos de sutilezas, serão recapituladas conforme
a necessidade e a conveniência.
Este capítulo IV corresponde aos poemas analisados no item 2.1.1, ou seja,
contém as traduções de dois breves poemas compreendidos na temática da reinvenção
do passado épico. Nos poemas ligados a essa temática, com mais especificidade e
aparente intencionalidade do que nos outros poemas curtos, Petrônio indica estar
reinventando passagens ou contos presentes na tradição épica, que constitui a memória
histórica dos romanos. outros quatro poemas que se encaixam nessa mesma
temática, jogando com referências homéricas, por exemplo, porém foram dispensados
deste nosso estudo. A razão dessa omissão é simples: os quatro poemas dispensados têm
a mesma índole dos outros dois que discutemos a seguir, pelo que julgamos
desnecessário incluir todos os seis poemas, em respeito aos limites deste trabalho.
Coincidentemente, em ambos os poemas a seguir, Virgílio é o foco da paródia.
4.2.1. Encolpius indignado
No capítulo 132 do Satyricon, como vimos, Encolpius, outra vez tima de Príapo, é
enxotado da casa de Circe após um fracasso sexual. Nesse momento, o anti-herói do
Satyricon, ao se retirar para a cama, parodia Enéias (o herói da Eneida) dirigindo-se a
seu pênis em versos sotádicos:
Ter corripui terribilem manu bipennem,
ter languidior coliculi repene thyrso
ferrum timui, quod trepido male dabat usum.
Nec iam poteram, quod modo conficere libebat;
namque illa metu frigidior rigente bruma
confugerat in viscera mille operta rugis.
Ita non potui supplicio caput aperire,
sed furciferae mortifero timore lusus
ad verba, magis quae poterant nocere, fugi.
119
Evidenciamos especialmente o uso do verso sotádico por dois fatores. O
primeiro diz respeito a sua conotação: o sotádico tinha conotação licenciosa e estava
ligado a homossexuais na Roma antiga; ou seja, é cômico parodiar Enéias num verso
como esse. O segundo diz respeito a sua forma: os sotádicos também eram entendidos
como uma leitura invertida de hexâmetros épicos; ou seja, mesmo na forma uma
paródia. Além disso, outra sutileza importante é o uso da aliteração de maneira
particular: a sílaba ter aparece três vezes nos dois primeiros versos, e o som se dissolve
em thyrso. Esse trocadilho entorno do número três (ter significa três) mimetiza a
tripla tentativa de auto-castração, que parodia a tripla tentativa do herói da Eneida de
abraçar a sombra de sua amada falecida. O som de ter repetido três vezes se dissolve em
thyrso (talo). A tripla tentativa heróica se dissolve na fraqueza e covardia anti-heróica,
ridicularizando mais uma vez o passado épico.
Tradução de Miguel Ruas
Três vezes empunhei o terrível machado, e três vezes
O braço cedeu, mais mole que a haste de uma couve,
Temendo contra mim voltar o gume. Impossível era
Realizar meu desejo. Cheio de medo, o culpado,
Mais frio que os gelos do inverno, refugiara-se
Nas minhas entranhas, dissimulando-se entre mil dobras.
Para o suplício não podendo a cabeça descobrir-lhe,
E vendo meu plano desfeito pelo medo mortal do patife,
Recorri à palavra, a única arma que poderia atingi-lo.
Poderíamos logo, numa primeira vista, apontar três tendências deformadoras na
tradução de Ruas, o alongamento como conseqüência da clarificação e da
racionalização. Para citar um simples exemplo, onde Encolpius dizferrum timui” (temi
o ferro), Ruas explica e acrescenta, “temendo contra mim voltar o gume”. O “temer o
ferro” que contém uma ambigüidade em si, além de ser uma expressão sintética, foi
interpretado (racionalizado) pelo tradutor, e assim clarificado na tradução, resultando
numa frase mais longa, com mais palavras. No entanto, urge deixar claro aqui não
apontaremos todas as tendências deformadoras que se pode observar na tradução, nem
buscaremos verificar todas as correspondências e perdas, mas nos serviremos das
ferramentas de Berman e Britto somente para falar da tradução das sutilezas em questão.
Comecemos, portanto, pela tradução dos sotádicos. Uma possibilidade levantada
por Britto em alguns de seus trabalhos é a busca de uma correspondência funcional; ou
seja, em relação ao nosso caso, usar um verso da tradição de poesia em ngua
portuguesa que tivesse conotação licenciosa, análoga à conotação dos sotádicos no
120
contexto da Roma de Petrônio. Infelizmente não conhecimento de um verso assim;
isto é, em nossa tradição de poesia, por mais que possam ter existido poetas que fizeram
uma literatura erótica ou trataram de temas homossexuais, nenhuma forma poética por
si ganhou uma conotação semelhante à que tinha o verso sotádico, segundo alguns
autores (STEPHENS & WINKLER, 1995; CONNORS, 1998; RICHLIN, 1992).
Resta-nos buscar alguma correspondência métrica, portanto, que o metro do
poema latino tem valor especial. Os sotádicos, relembrando, são tetrâmetros
catalépticos: versos de quatro pés, sendo que o último é quebrado, incompleto (por isso,
cataléptico). Segundo Connors (1998) e Garrison (2004), esse aspecto que também
caracterizava outra forma poética satírica usada por Petrônio, o coliambo tornava o
verso engraçado para os leitores de poesia na Antigüidade, pois segundo os autores, o
quebrado causava uma surpresa de algum modo hilária para quem esperasse um
quarto regular. Embora seja difícil provocar esse efeito num leitor atual de poesia,
por mais versado que seja, o tradutor pode tentar buscar alguma correspondência nesse
sentido. Por exemplo, buscar simplesmente terminar o verso com uma sílaba fraca, uma
sílaba átona, seria algo razoável. Igualmente, o tradutor pode buscar apenas uma
quantidade de acentos fortes (acentos primários) cujo efeito rítmico se aproxime ao
efeito do tetrâmetro. Por exemplo, uma simples busca de quatro acentos fortes no verso.
Embora o tetrâmetro implique quatro pés, não necessariamente quatro acentos fortes,
poderíamos entender quatro acentuações fortes na tradução como uma alusão aos quatro
pés. Ou, por último, o tradutor pode simplesmente desconsiderar a questão da forma,
julgando-a irrelevante ou intraduzível – o que é possível e até mesmo plausível.
Ruas, ao que parece, não priorizou alguma aproximação do efeito rítmico; 3
dos 9 versos têm 4 acentos fortes, conforme nossa proposta. No entanto, conseguiu com
que todas as últimas sílabas fossem átonas, em possível alusão aos pés catalépticos dos
sotádicos:
/ / - - - / - - / - - / - || - / / - (7)
Três vezes empunhei o terrível machado, e três vezes
- / - - / - / - - / - - - / - (5)
O braço cedeu, mais mole que a haste de uma couve,
- / - - - / - - - / - || - - / - / - (5)
Temendo contra mim voltar o gume. Impossível era
- - - / - - / - / - - / - || - - / - (5)
Realizar meu desejo. Cheio de medo, o culpado,
- / - / - - - / - || - - / - - (4)
Mais frio que os gelos do inverno, refugiara-se
- / - - / - || - - - / - - - / / - (5)
Nas minhas entranhas, dissimulando-se entre mil dobras.
- - - / - - - / - - / - - - / - (4)
121
Para o suplício não podendo a cabeça descobrir-lhe,
- / - - / - - / - || - - / - - / - - / - (6)
E vendo meu plano desfeito pelo medo mortal do patife,
- - / - - / - || - / - / - - - - / - - / -
Recorri à palavra, a única arma que poderia atingi-lo. (6)
O efeito da tripla repetição do som ter foi parcialmente perdido, e a tensão
gerada por essa aliteração foi dissolvida com menos efeito que no poema de Encolpius,
onde se obtivera um efeito ironicamente preciso com a palavra thyrso, no final do
segundo verso. Ruas usa “três .. terrível ... três”, e depois “talo”, que já não está mais no
final do verso. De qualquer maneira, evidentemente, Ruas demonstrou consciência
(reproduziu algo) dessa aliteração, e manteve ao menos o som da letra t em seus versos.
De um modo geral, Ruas logrou soluções razoáveis para as sutilezas que
remarcamos nesse poema. Houve destruição quase que total do ritmo original, salvo
pelas sílabas átonas finais, que podem ser interpretadas como uma tentativa de
correspondência aos pés catalépticos. Nota-se também a presença de outra tendência
deformadora: a destruição parcial de uma rede de significados subjacente à superfície do
poema. Essa rede é aquela que aproveita simultaneamente os possíveis significados de
ter e thyrso, levando em conta o contexto da narrativa e a paródia que se faz, e as
interpretações que tal aliteração sugere.
Não se sabe se deliberadamente, ou se por uma incompletude da edição do texto
latino que lhe serviu de base, mas Leminski em sua tradução pula do capítulo 129 para o
capítulo 135. Esse poema, portanto, não consta da tradução de Leminski.
Tradução de Alex Marins
Três vezes minha mão alcançou a terrível lâmina de dois gumes,
E três vezes ele escapou ao aço ameaçador,
Mais mole que a haste de um repolho, e também rápido,
De forma que o que eu poderia, atingir, não mais podia,
Porque ele se encolhia em mil pregas,
Temendo passar pelo gélido frio do inverno.
Não pude persuadi-lo a aparecer, ao meu procurado,
Que como um tímido patife descobrira meus planos,
E às palavras, armas mais ferinas ainda, recorri.
Concentrando-nos nas sutilezas que remarcamos nesse poema e deixando de
lado a consideração de quaisquer outras perdas ou deformações dadas algumas
pontuações questionáveis e deformações várias que se poderiam apontar nota-se que
Marins não se ateve às qualidades rítmicas do poema. Somente três dos nove versos têm
quatro acentos fortes, considerando que, como dissemos há pouco, um verso com quatro
122
acentos fortes (primários) poderia sugerir alguma correspondência com o sotádico, que
tem quatro pés. Além disso, alguns dos versos terminam com uma sílaba átona, o que
enfraquece qualquer hipótese de que o tradutor teria buscado alguma correspondência
aos pés catalépticos.
/ / - / / - - / - - / - / - - - - / - (8)
Três vezes minha mão alcançou a terrível lâmina de dois gumes,
- / / - - - - / - / - - - / (5)
E três vezes ele escapou ao aço ameaçador,
- / - - / - - - / - || - - - / - - (4)
Mais mole que a haste de um repolho, e também rápido,
- / - \ / - - / - - / || - - - / - (5)
De forma que o que eu poderia, atingir, não mais podia,
- / - - - / - / / - (4)
Porque ele se encolhia em mil pregas,
- / - - / - - / - - / - / - (5)
Temendo passar pelo gélido frio do inverno.
- / - - - / - - - - / - / - - / - (5)
Não pude persuadi-lo a aparecer, ao meu procurado,
\ / - - / - - - / - || - - / - - / - (4)
Que como um tímido patife descobrira meus planos,
/ - / - || / - / - / - / - - - / (7)
E às palavras, armas mais ferinas ainda, recorri.
Igual a Ruas, Marins usa a aliteração “Três ... terrível ... três” para traduzir a
tripla repetição de ter. O efeito de dissolução que existe em thyrso desaparece na
tradução de Marins, que traduz o termo por “haste”. As sutilezas do poema de Encolpius
foram, portanto, quase totalmente apagadas por Marins, que apenas preservou
parcialmente a aliteração de ter. Resumindo, não se nota nenhuma busca de
correspondência no ritmo, o que configura uma perda cabal, confirmando a tendência da
destruição dos ritmos, e destruição quase total da rede subjacente de significados
ligada a ter e thyrso, que constitui outra perda significativa.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Três vezes agarrei com a mão esta terrível faca de dois gumes,
três vezes, subitamente mais mole do que caule de planta sem raiz,
temi sua falta de sensibilidade, que dava vantagem a este mal alarmante.
E eu já não conseguia executar o que ainda há pouco tanto queria,
pois aquele inverno, mais frio do que o insensível medo,
refugiara-se em minhas vísceras enclausuradas em suas numerosas rugas.
Assim, não pude enfrentar o castigo de cabeça erguida,
mas, ridicularizado por um mortífero temor de meu membro viril,
recorri a estas palavras, que mais podiam fazer-lhe mal.
Embora não tenha nada a ver com os sotádicos originais, compostos em
tetrâmetros, Bianchet consegue um efeito rítmico coeso em seu poema. Ela compõe
123
quatro versos iniciais com 7 acentos fortes cada um, provoca uma quebra com um verso
de 4 acentos, e termina o poema alternando versos de 5 e 6 acentos fortes:
/ / - - - / - / - - - / - / - - - / - (7)
Três vezes agarrei com a mão esta terrível faca de dois gumes,
/ / - || - - - / - - / - - - / - - / - - - / (7)
três vezes, subitamente mais mole do que caule de planta sem raiz,
- / - / - - - - - - / - || - / - - / - - - - / - - / - (7)
temi sua falta de sensibilidade, que dava vantagem a este mal alarmante.
- / - - - / - - - / - / - / - / - - / - (7)
E eu já não conseguia executar o que ainda há pouco tanto queria,
- - - - - / - || - / - - - - / - / - (4)
pois aquele inverno, mais frio do que o insensível medo,
- - / - - \ / - - || - - - / - - - - - / - / - (5)
refugiara-se em minhas vísceras enclausuradas em suas numerosas rugas.
- / || - / - - - / - - / - - - / - / - (6)
Assim, não pude enfrentar o castigo de cabeça erguida,
- - - - - - / - - - - / - - - / - - / - - / (5)
mas, ridicularizado por um mortífero temor de meu membro viril,
- - / - / - - / - - - - / - / - / (6)
recorri a estas palavras, que mais podiam fazer-lhe mal.
Duas tendências deformadoras são óbvias aí: o alongamento e a destruição do
ritmo; uma coisa está ligada à outra, no caso. Todavia, uma terceira tendência que se
poderia, de alguma forma, apontar: a do enobrecimento. Versos de 7, 6 e 5 acentos
possuem alguma correspondência ao sepnário, ao hexâmetro e ao pentâmetro. Estes
metros são considerados clássicos, nobres, na poesia latina. O simples uso desses
correspondentes e o arranjo de algum modo harmônico feito por Bianchet sugerem uma
tendência a enobrecer os versos que originalmente não são nobres. Perde-se, portanto,
qualquer possibilidade de conseguir alguma comicidade na forma.
Igualmente aos outros dois tradutores, Bianchet usa “Três ... terrível ... três” para
a tripla repetição de ter, e anula do efeito de thyrso, traduzindo o termo por “caule”. As
sutilezas que julgamos importantes no poema são, portanto, na tradução de Bianchet,
perdidas quase que totalmente. Em relação à sutileza presente no uso do sotádico, em
nossa interpretação, a tradução inclusive inverte o efeito, enobrecendo os versos.
Tradução de Cláudio Aquati
Três vezes tive nas mãos a terrível bipene;
três vezes eu, mais lasso que o caule de uma couve,
temi repentinamente o ferro que,
em razão de meu tremor, mal podia usar.
Nem poderia realizar aquilo que há pouco eu tinha vontade
porque com medo, mais gelada que o inverno petrificante,
aquela parte se refugiara em minhas entranhas,
coberta por mil rugas.
Assim, não pude descobrir-lhe a cabeça para o suplício,
mas logrado pelo temor mortal do patife,
124
recorri às palavras: elas teriam uma capacidade maior de feri-lo.
Aquati, neste, assim como em outros poemas de sua tradução, parece proceder
de maneira a assumir o alongamento da frase, em benefício do ritmo do verso. Isso não
significa que ele busca uma correspondência rítmica ao original; ele simplesmente
parece prezar por boas cadências rítmicas, compondo versos de metros variados:
/ / - / - - / - - / - - / - (6 e 13)
Três vezes tive nas mãos a terrível bipene;
/ / - / || - / - - / - - - / - (6 e 12)
três vezes eu, mais lasso que o caule de uma couve,
- / \ - - - / - / - \ (3 e 11)
temi repentinamente o ferro que,
- - / - - - / || / - / - / (5 e 12)
em razão de meu tremor, mal podia usar.
/ - - / - \ - / - / - \ / - / - - / - (6 e 18)
Nem poderia realizar aquilo que há pouco eu tinha vontade
- - - / - || - - / - - - / - - - - / - (4 e 17)
porque com medo, mais gelada que o inverno petrificante,
- - - / - - - - / - / - - / - (4 e 14)
aquela parte se refugiara em minhas entranhas,
- / - - / / - (3 e 6)
coberta por mil rugas.
- / || - / - \ - / - - / - - - - / - (5 e 16)
Assim, não pude descobrir-lhe a cabeça para o suplício,
- - / - - - - / - / - - / - (4 e 13)
mas logrado pelo temor mortal do patife,
- - / - - / - || / - - / - - - - - / - - / - - / - (7 e 23)
recorri às palavras: elas teriam uma capacidade maior de feri-lo.
O poema começa com três alexandrinos (versos de 12 ou 13 sílabas) e um
hendecassílabo, seguidos de outros versos maiores, exceto um de 6 sílabas. Apesar da
discrepância no número sílabas, os versos têm de 3 a 7 acentos fortes no máximo.
dois versos a mais que no poema de Encolpius, o que demonstra que Aquati
definitivamente não se preocupou com a busca de uma correspondência na forma dos
versos e na forma do poema como um todo. Notadamente, o tradutor se ateve ao
conteúdo, e se guiou por seu senso rítmico para dispor as palavras numa cadência mais
ou menos poética, apesar de alguns versos bastante prosaicos, como o último, por
exemplo. Enfim, a escolha do sotádico não teve correspondência alguma na tradução de
Aquati, que exacerbou o alongamento e seguiu também a tendência da destruição dos
ritmos, desconsiderando o ritmo original, mantendo apenas a existência de algum ritmo
que garantisse cadência ao poema.
Exatamente igual aos outros tradutores, Aquati optou por “Três ... terrível ...
três”, para a tradução do ter
... terribilem ... ter”, e o acúmulo desses sons não se
125
dissolveu como no poema latino, com a palavra thyrso, que foi traduzida por “caule”.
Com isso, perde-se parte significativa de toda essa rede de significados ligada a ter e
thyrso, que joga com as noções quantidade (três), intensidade (ter é um prefixo
intensificador), expectativa e decepção hilárias, etc., sutilezas cruciais do poema,
elementos essenciais da paródia.
4.2.2. Virgílio “transcrito”
O padrão métrico do sotádico é o tetrâmetro cataléptico, usado por Petrônio no poema
cujas traduções acabamos de analisar. Mas vimos que, independente do metro, os
sotádicos – cujo nome remete ao satirista grego Sótades (III a.C.) – tinham outra
característica marcante: na literatura satírica antiga, também eram entendidos como
versos épicos clássicos reformulados de maneira a inverter o significado das coisas
97
(CONNORS, 1998). Pois, como vimos, logo depois de ter usado seu padrão, Petrônio
brinca com essa idéia de inversão inerente ao sotádico, e inverte a “regra” da
reformulação, não reformulando, mas citando literalmente hexâmetros de Virgílio,
porém invertendo o significado deles pela maneira e pela situação em que são
apresentados. Ainda no capítulo 132 do Satyricon, Petrônio compõe um brevíssimo
poema com citações literais de Virgílio, pinçadas de diferentes contextos de sua obra:
illa solo fixos oculos aversa tenebat,
nec magis incepto vultum sermone movetur
quam lentae salices lassove papavera collo.
Recapitulando, os dois primeiros versos são ipsis litteris os versos 469 e 470 do
sexto livro da Ilíada, de Virgílio, e se refere à rainha Dido, que enfurecida e magoada
com Enéias se nega a lhe falar, e segue calada e imóvel qual uma rocha ou uma
montanha. No entanto, o pronome illa”, que no poema de Virgílio é relativo à Dido,
passa a ser relativo à “parte do corpo” (“pars corporis”) de Encolpius censurada por ele
naquele momento mudança que constitui um elemento cômico fundamental aí. E, no
entanto, illa não está mais imóvel como uma rocha ou uma montanha; agora está
imóvel qual um salgueiro lânguido ou uma papoula de lasso caule: no terceiro verso,
quam lentae salicesremete à oliveira mencionada na quinta écloga de Virgílio (lenta
97
Sótades aparentemente foi dado a essa idéia de inversão no plano formal de sua paródia: foi ele o autor
dos primeiros palíndromos, que também foram chamados de sotádicos (BOWDER, 1982). No entanto,
não estamos nos referendo a palíndromos quando falamos em inversão aqui.
126
salix quantum pallenti cedit olivae...), e lassove papavera colloremete à metáfora
usada para a morte de Euryalus, o amado de Nisus na Eneida. Já explicamos antes,
extensivamente, as muitas questões envolvidas na escolha de tais citações. As diversas e
sofisticadas implicações dessas escolhas representam a principal sutileza desse poema.
Uma dessas questões dizia respeito ao cumprimento de uma das regras do gênero
menipeu: a citação literal de versos clássicos no meio da narrativa em prosa, que no
caso é feita de maneira inusitada por Petrônio, porque ele combina trechos extraídos de
lugares diferentes, e porque ele o faz também com a intenção de inverter a regra do
sotádico.
Tradução de Miguel Ruas
Inclinando a cabeça, para a terra ele abaixara os olhos
E, às minhas palavras, sua fisionomia não revelava maior emoção
Que os salgueiros de ramos flexíveis e as papoulas cansadas.
Considerando que os primeiros versos são citações ipsis litteris de Virgílio,
talvez fosse o caso de também citar alguma tradução clássica cuja qualidade tem
reconhecimento unânime na língua portuguesa, como a de Odorico Mendes.
98
Independente de o tradutor ter admitido essa possibilidade ou não, em nosso
julgamento, ao menos o gênero do pronome (illa) deveria ser mantido no feminino, pois
originalmente ele se refere à rainha Dido, considerando que Petrônio o mantém, criando
uma dubiedade hilária, e considerando que ele resolve com acuidade a questão sintática,
ao ligar illa a pars corporis”, que é mencionada logo em seguida ao poema, na
prosa. Entretanto, embora preserve as símiles do terceiro verso, Ruas não se sabe se
por ignorância ou intenção traduz os versos de Virgílio mudando o gênero do
pronome, explicitando a referência ao pênis desfalecido de Encolpius. A perda é
significativa com isso, especialmente para o leitor antenado com a prática de Petrônio.
Nos termos de Berman, poderíamos dizer que há, ao mesmo, duas tendências
deformadoras implicadas nisso: a destruição de uma rede subjacente de significados e a
racionalização, que é evidente aí: Ruas, ciente do contexto da narrativa, sabia que
Encolpius se referia ao pênis, e por isso, imprimindo seu entendimento na tradução,
traduziu illapor “ele”. Aparentemente ele não percebeu que Petrônio usaria o termo
“parte do corpo” em seguida, para dar coerência ao pronome illa. O mesmo aconteceu
com Alex Marins e Sandra Braga Bianchet:
98
Tradução desses versos por Odorico Mendes (1858: 481): “Ella aversa no chão pregava os olhos; / Nem
mais seu rosto á practica se move (...)”
127
Tradução de Alex Marins
Prosseguiu cabisbaixo,
A expressão intocada pelo que eu dizia
Como um salgueiro desfalecido
Ou uma papoula cansada.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
ele, voltado para baixo, mantinha seus olhos fixos ao chão
e não deslocava sua cabeça, com esse início de discurso, mais
do que os flexíveis salgueiros, ou as papoulas de hastes inclinadas.
Além de proceder da mesma maneira que Ruas (em relação à tradução de illa),
sugerindo um sujeito masculino com “Prosseguiu cabisbaixo”, Marins talvez para
manter o sintetismo do verso latino, em contraposição à tendência do alongamento
não traduziu boa parte do primeiro verso (“solo fixos oculos ... tenebat”, “tinha os olhos
fixos no chão”). Considerando que se trata de uma citação literal de Virgílio, isso é
questionável.
O único tradutor que demonstrou consciência da prática de Petrônio foi Aquati:
Tradução de Cláudio Aquati
Aquela parte, cabisbaixa, mantinha os olhos fixos no solo,
e nem por força daquele sermão que recebera
seu rosto se movia mais que os flexíveis salgueiros
ou as papoulas de frouxo caule.
Todavia é preciso observar que na tradução de Aquati também existe a mesma
tendência deformadora presente nas traduções anteriores, a racionalização, porém o
tradutor incorre nessa tendência de modo contrário: ciente da ligação de illa com
pars corporis”, Aquati imprimiu seu entendimento na tradução, usando Aquela parte”
para illa”, destruindo igualmente a referência à rainha Dido que existe no poema de
Virgílio.
Outro ponto relevante é o fato que os versos de Virgílio, assim como o terceiro
verso “montado” por Petrônio com palavras de Virgílio, são hexâmetros, o metro pico
da poesia épica latina, seu gênero mais nobre. A reformulação sotádica invertida feita
por Petrônio brinca com essa idéia de nobreza justaposta à sátira ridicularizante, pelo
contexto em que as palavras de Virgílio são postas. Odorico Mendes optou por uma
tradução funcional, ao colocar os versos de Virgílio em decassílabos, o metro nobre e
tipicamente épico na língua portuguesa. Isso talvez pudesse ser mantido, ou algo
análogo poderia ser feito. No poema anterior entendemos que a existência de quatro
128
acentuações fortes poderia ser considerada uma alusão, ainda que fraca, aos quatro pés
do tetrâmetro levando em conta que quatro pés não significam quatro acentos fortes.
Além da quantidade de sílabas poéticas, vamos considerar a mesma possibilidade nas
traduções do poema em questão:
Tradução de Miguel Ruas
- - / - - / - - - / - || \ - - / - / - (5)
Inclinando a cabeça, para a terra ele abaixara os olhos
\ / - - / - || \ \ - - / - - - - / - - / - - / (6)
E, às minhas palavras, sua fisionomia não revelava maior emoção
\ - / - \ / - - / - || \ \ / - - / - (5)
Que os salgueiros de ramos flexíveis e as papoulas cansadas.
Tradução de Alex Marins
- - / - - / - (2)
Prosseguiu cabisbaixo,
- - / - - / - - - \ - / - (3)
A expressão intocada pelo que eu dizia
- - - / - - - - / - (2)
Como um salgueiro desfalecido
- / - - / - - / - (3)
Ou uma papoula cansada.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
\ - || - / - - - / - || - / - - / - / - - / (6)
ele, voltado para baixo, mantinha seus olhos fixos ao chão
- / \ - / - - - / - - / - / - - - / - / (7)
e não deslocava sua cabeça, com esse início de discurso, mais
- - - / - - / - || - - - / - / - - - / - (5)
do que os flexíveis salgueiros, ou as papoulas de hastes inclinadas.
Tradução de Cláudio Aquati
- / - / - - - / - || - / - / - / - - / - (7)
Aquela parte, cabisbaixa, mantinha os olhos fixos no solo,
- / - / - \ / - - / - - - / - (5)
e nem por força daquele sermão que recebera
- / - - - / - / - - / - - / - (6)
seu rosto se movia mais que os flexíveis salgueiros
- \ - / - - / - / - (3)
ou as papoulas de frouxo caule.
O único que conseguiu alguma regularidade na acentuação foi Ruas, que compôs
seus versos com 5, 6 e 5 acentos fortes, o que não garante que isso tenha sido
intencional no sentido de aludir ao hexâmetros originais, uma vez que a própria noção
de correspondência com que estamos trabalhando no plano da métrica até agora é
bastante fraca – uma concessão que fazemos, que os tradutores não parecem se
importar com padrões métricos. O significado do hexâmetro que representa um
129
elemento de nobreza, contrastante com a prática satírica de Petrônio não encontra
correspondência nessas quatro traduções, o que configura outra perda, além de
confirmar duas tendências deformadoras: a destruição dos ritmos e a destruição das
redes subjacentes de significados; nesse caso, a destruição de outra parte da rede
subjacente de significados que existe no poema.
4.3. A queda de Tróia, pelo Eumolpus de Petrônio (traduções)
Embora seja um projeto à parte dentro do Satyricon motivo pelo qual o colocamos
num tópico separado no capítulo II – o poema sobre a tomada de Tróia também poderia
ser visto dentro do grupo de poemas que reinventam o passado épico. Levando isso em
conta, analisaremos suas traduções ainda nesse capítulo IV, deixando-as junto às
traduções dos dois poemas menores recém analisadas.
No capítulo II dedicamos não poucas páginas para explicar os possíveis
significados de inúmeros detalhes do poema sobre a tomada de Tróia dentro de um dos
subprojetos mais importantes do Satyricon, cujo padrão seja talvez o mais consistente
de toda a obra: os temas gêmeos do engano e do disfarce exemplificados pelo Cavalo de
Madeira. “O Cavalo de Madeira é um símbolo da queda de Tróia; e é também uma
metáfora do Satyricon em si” (ZEITLIN, 1991: 63). Nesse subprojeto, profundamente
crítico em sua essência, Petrônio trata de situar historicamente sua literatura dentro da
literatura romana, reconhecendo sua condição tardia e usando isso a seu favor, botando
o poema na boca de seu esdrúxulo representante da poesia, Eumolpus. Não é por menos
que o poema sobre a tomada de Tróia talvez o ápice desse projeto enfatiza
obsessivamente as idéias de repetição, semelhança e imitação imperfeita, tanto na forma
quanto no conteúdo. Vejamos, portanto, como os tradutores responderam às sutilezas
que destacamos nesse poema aparentemente simplório à primeira vista, como quase
todos do Satyricon, e genial num olhar mais atento aos muitos detalhes cuidadosamente
pensados, que refletem a malandragem e a genialidade de Petrônio.
4.3.1. A abertura
Eumolpus, no capítulo 89, dentro de uma galeria de artes, diante de um quadro sobre a
tomada de Tróia, sugere que vai iniciar uma ecfrase da obra, ao dizer que tentará
pandere” a obra em versos:
130
Itaque conabor opus versibus pandere.
E em seguida apresenta a abertura de seu poema:
iam decuma maestos inter ancipites metus
Phyrgas obsidebat messis et vatis fides
Calchantis atro dubia pendebat metu,
cum Delio profante [ferro] caesi vertices
Idae trahuntur scissaque in molem cadunt
robora, minacem quae figurabunt equum.
O verbo pandere, como vimos, tem dois sentidos, um mais físico (abrir) e outro
mais abstrato (explicar). O poema, relembrando, é uma imitação explícita dos versos da
Eneida em que Enéas narra a tomada de Tróia. Nos versos, o herói de Virgílio usa duas
vezes esse verbo em seu sentido físico, para descrever a abertura dos portões de Tróia.
Embora Eumolpus não faça uso de pandere nesse sentido ao longo do poema, o uso que
faz desse verbo ao anunciar o início de seus versos sugere que – assim como os troianos
abriram os portões da cidade ele vai, de um modo, “abrir” o significado da obra e
“abrir” o poema.
Tradução de Miguel Ruas
Vou, por isso, tentar descrever-te essa obra na linguagem das Musas.
Já há dez estios, na angústia e entre perigos vividos
Assediados estavam os Frígios tristonhos.
Periclitava a fé do adivinho Calcas, pelo temor suspensa,
Quando, obedecendo à voz do deus de Delos,
Os flancos do Ida despojados foram de suas florestas;
E os carvalhos caíram em massa
Para na imagem de um cavalo ameaçador transformar-se.
A ambigüidade de pandere” se perde na tradução de Ruas, que traduz apenas o
sentido abstrato, mais comum, do verbo (explicar, expor, descrever), confirmando as
tendências da racionalização e da clarificação, ignorando parte de uma rede subjacente
de significados.
Em relação a esses primeiros versos, evidenciamos no capítulo II duas sutilezas,
cujos objetivos são basicamente dois: afirmar a mediocridade poética de Eumolpus e
suscitar a idéia de esconder ou dar cobertura aos gregos até que eles estejam dentro do
cavalo. A primeira sutileza seria, portanto, a sintaxe “torturada” desses versos, que
corrobora a mediocridade de Eumolpus, sugerindo que seu controle sobre o discurso
literário seja imperfeito ou insatisfatório (WALSH, 1968). As palavras estão jogadas
numa ordem confusa. Há, conforme Berman (2007), uma informidade significante, ou a
131
significativa ausência de uma forma bem definida no texto. E isso está, de certa forma,
ligado à segunda sutileza: em nenhum momento é dito explicitamente que os gregos
sitiavam os troianos; é decuma ... messis(décima safra), uma referência aos dez anos
de guerra, o sujeito de obsidebat(sitiava, assediava), e é o pronome quae(que, os
quais), relativo a robora (carvalhos), o sujeito de figurabunt (darão forma a,
constituirão). Ao que parece, os gregos são encobertos no próprio poema pelas palavras,
que não os explicitam até que eles se escondam no cavalo.
Ruas mantém esse encobrimento figurado, e o diz que era o exército grego
quem sitiava os frígios, nem diz que os gregos dariam forma ao cavalo ameaçador, mas
“arruma” as palavras e as sentenças, de modo a deixá-las menos estranhas no português.
Por exemplo, além de dispor as sentenças numa ordem que se poderia dizer embelezada
e fluente, Ruas diz que “Assediados estavam os Frígios tristonhos”, isto é, usa a voz
passiva e omite o sujeito, deixando a idéia mais digerível. Portanto, apenas a segunda
sutileza foi parcialmente mantida; a primeira, ligada à mediocridade poética de
Eumolpus, foi destruída pela clarificação e pelo enobrecimento.
Tradução de Paulo Leminski
Vou tentar te explicar tudo em versos.
Dez anos depois, a bravura troiana
Ainda zombava dos ímpetos helênicos.
De nada valiam os augúrios dos profetas.
Foi quando abateram uma floresta,
Madeira para o fatídico cavalo,
Igual a Ruas, Leminski não traduz a ambigüidade de “pandere”. Já no poema,
diminui o número de versos, descarta detalhes do texto latino, acrescenta outros detalhes
deliberadamente, e clarifica o sentido de termos como “decuma ... messis” (décima
safra), traduzindo por “Dez anos depois”. Os versos “iam decuma maestos inter
ancipites metus / Phyrgas obsidebat messis et vatis fides / Calchantis atro dubia
pendebat metu” (a décima safra sitiava então os infelizes frígios em meio a medos
ambíguos, e a confiança do profeta Calcas pendia dúbia num medo sombrio) Leminski
traduz por “Dez anos depois, a bravura troiana / Ainda zombava dos ímpetos helênicos.
/ De nada valiam os augúrios dos profetas.” Já nesses primeiros versos, ambas as
sutilezas são plenamente apagadas: a sintaxe é relativamente clara, e os gregos são
explicitados em “helênicos”.
Tradução de Alex Marins
132
(...) e, por esse motivo, vou explicá-lo na linguagem das Musas.
Do sítio a Tróia, no décimo ano,
Crítica era a situação, e campeava o medo;
Em Calchas, o profeta, trêmula adejava a fé,
Próxima da negra dúvida. Falou Apolo, então,
E de bosques foram despidos os morros de Ida.
Carvalhos caíram, em pilha, para que
De um bravo cavalo a imagem fosse construída.
A ambigüidade de pandere outra vez não é traduzida. Deliberadamente ou
não, mas Marins consegue complicar tanto quanto Eumolpus a sintaxe desses primeiros
versos. As sentenças são embaralhadas, algumas funções originais são invertidas, certas
informações distorcidas: iam decuma maestos inter ancipites metus / Phyrgas
obsidebat messis ...(a décima safra sitiava então os infelizes frígios em meio a medos
ambíguos ...) é traduzido por “Do sítio a Tróia, no décimo ano, / Crítica era a situação, e
campeava o medo”. O significado de decuma ... messisé clareado, assim como a
referência aos troianos (“Phyrgas”, frígios). Não da mesma forma sugestiva que
Eumolpus, mas Marins acabou mantendo os gregos implícitos. Assim, pode-se dizer
que ambas as sutilezas foram enfraquecidas, mas relativamente preservadas, conquanto
tortuosamente.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Por isso, tentarei desvendar-lhe essa obra em versos:
Já a décima colheita sitiava os tristes Frígios
em meio a temores ambíguos e a autoridade abalada
do adivinho Calcante hesitava em pérfido temor,
quando, sob o comando de Apolo, são arrastados
os cumes do Ida e sucumbem em grande volume
os carvalhos derrubados, para darem forma ao cavalo ameaçador.
O emprego de “desvendar” para traduzir pandereinsinua uma tentativa de se
aproximar da ambigüidade do termo latino, ainda que ninguém diga desvendar um
portão”. Não nenhuma aparente intenção de deixar o texto, dentro das possibilidades
da ngua portuguesa, num arranjo confuso, mas também nota-se que Bianchet não
procurou embelezar o texto ou retirar-lhe a estranheza. Diferente de Leminski e Marins,
Bianchet não clareia o significado de decuma ... messis”, e mantém sua função
sintática, corroborando a segunda sutileza dessa abertura do poema: o encobrimento
figurado dos gregos.
Tradução de Cláudio Aquati
133
Então, usarei versos para tentar explicar a pintura:
Era já a décima safra.
Encontravam-se os infelizes frígios oprimidos
entre temores que passavam de um extremo a outro.
Em razão de um medo atroz,
oscilava hesitante a confiança do vate Calcante.
Eis senão que a um prenúncio de Delos
despoja-se o topo do monte Ida
e os carvalhos cortados caem em quantidade
para se transformar num cavalo ameaçador.
Aquati não preserva a ambigüidade de pandere”. Embora seus versos, como
observamos, tenham cadência poética, a disposição deles sugere uma organização
textual muito mais prosaica que poética. Isto é, são compostos de modo a facilitar a
narração, a leitura fluída. Isso se depreende tanto do rearranjo lógico das sentenças
como da pontuação clarificante. A primeira sutileza, portanto, é perdida. A segunda
sutileza, o encobrimento figurado dos gregos, embora de forma menos sugestiva que no
poema latino, é mantida por Aquati, que manteve implícitos os autores do lendário
embuste, como requeria o procedimento de Petrônio.
Notamos antes também que o uso do trímetro jâmbico no poema de Eumolpus,
ao invés dos hexâmetros épicos de Enéias, denota submissão dessa imitação
depreciativa de Petrônio à obra de Virgílio, que faz sombra a toda a literatura latina
posterior. metros na tradição de poesia em língua portuguesa considerados
“inferiores” ao decassílabo heróico (o correspondente funcional ao hexâmetro épico),
que poderiam ser usados no sentido de buscar um efeito correspondente ao que existe
pela diferença entre o hexâmetro (mais nobre) e o trímetro jâmbico (menos nobre). No
entanto, como nenhum dos tradutores se ateve a esse aspecto, dispensaremos a análise
comparada da estrutura métrica dos poemas até o fim deste tópico.
4.3.2. Escondidos no cavalo
Após os seis primeiros versos, Eumolpus encerra a abertura do poema escondendo,
enfim, os gregos no cavalo:
aperitur ingens antrum et obducti specus,
qui castra caperent. huc decenni proelio
irata virtus abditur, stipant graves
Danai recessus, in suo voto latent.
134
Nessa parte o que chamamos de encobrimento figurado fica mais que explícito
em sua intencionalidade: o poeta “dá cobertura” ao exército grego até que os guerreiros
tomem definitivamente seus lugares dentro do cavalo. Reiterando, o tema do
escondimento perpassa esses versos: três dos verbos usados têm o sentido de esconder
(obducti, abditur e latent), e os gregos, mencionados no último verso dessa parte,
ainda são designados através de um epíteto, “dânaos.”
Tradução de Miguel Ruas
Abriram-se antros imensos e cavernas obscuras.
Aí se oculta o valor, por dez anos de luta irritado:
Nos sombrios refúgios comprimem-se os filhos de Dânaos.
Tradução de Paulo Leminski
dentro dele, mil guerreiros armados.
Tradução de Alex Marins
Um grande oco abriu-se, secreta caverna,
Para uma hoste ocultar. De uma guerra de dez anos,
A coroação chegara, e severos gregos
Unidos à espera ficaram, em votivas preces.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
É aberta uma enorme cavidade com orifícios ocultos,
para esconder os soldados. A essa altura, irritada por uma guerra de dez anos,
a força se debilita, os perniciosos gregos apressam
seu movimento de retirada e se escondem naquela oferenda.
Tradução de Cláudio Aquati
Abrem-se um enorme covil e um fojo secreto,
capazes de entranhar um exército.
Oculta-se nesse local uma coragem enfurecida
em razão de uma luta já velha de uma década.
Os dânaos preenchem os profundos recessos,
e se escondem nessa oferenda.
Essa parte do poema consiste num exemplo perfeito daquilo que Berman chama
de proliferação de significantes e cadeias (sintáticas) de significantes; o uso de três
verbos com o sentido de esconder, e o arranjo das sentenças de modo a revelar os
gregos apenas quando eles realmente se escondem na armadilha podem ser assim
entendidos. Berman menciona esse recurso estilístico quando fala em empobrecimento
quantitativo, isto é, quando o tradutor reduz essa multiplicidade de significantes. É o
que acontece, em maior ou menor intensidade, com alguns de nossos tradutores. Ruas
não traduz o final do último verso dessa parte (“in suo voto latent”, enfurnando-se na
135
própria oferenda). Leminski, reduz os quatro versos a um: “dentro dele, mil guerreiros
armados”. Marins apaga os sentidos de abditure latent”. O sentido de abditur
também se perde na tradução de Bianchet, e Aquati é o único que preserva essa
multiplicidade lexical como um todo, usando “secreto”, “entranhar”, “Oculta-se” e “se
escondem”, além de conservar, assim como Ruas, o epíteto “dânaos”.
Algumas discordâncias, algumas discrepâncias de significados entre as
traduções, poderiam ser mais bem comentadas, entretanto, porque não comprometem ou
não dizem respeito propriamente à sutileza em questão, limitamo-nos a considerar
apenas a tradução dessa multiplicidade semântica ligada à noção de “esconder-se”.
4.3.3. Oh pátria!
O décimo primeiro verso representa uma quebra no poema: Eulmopus que vinha até
então fazendo uma ecfrase ficcional do quadro sobre a tomada de Tróia, assume um
modo discursivo típico de mensageiros de fatos lendários (SLATER, 1990). A
exclamação o patriae o verbo em primeira pessoa credidimusmudam o ponto de
vista da narrativa, de um observador de uma obra de arte para alguém que testemunhou
os eventos retratados:
o patria, pulsas mille credidimus rates
solumque bello liberum
O patria”, como observamos a partir de Connors (1998), parece ser uma
expressão obrigatória em qualquer texto que queira dialogar com a tradição literária
ligada ao tema da Guerra de Tróia. Ao assumi-la, Eumolpus caminha entre a mais alta
tradição literária e a banalidade, o que parece ter sido pretendido por Petrônio.
Tradução de Miguel Ruas
Oh! pátria! acreditamos que os mil navios gregos
A âncora levantado haviam; e libertado da guerra o nosso solo
Tradução de Paulo Leminski
Afastam-se as naves, o mais hábil dos ardis.
Ó Tróia, ó tróia, terás o mais triste dos fins...
Tradução de Alex Marins
Ó pátria, que mil barcos se foram,
Pensamos, redimida a terra pela guerra.
136
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Oh, pátria! Acreditamos que os milhares de navios tinham partido
e que nosso solo estaria livre da guerra
Tradução de Cláudio Aquati
Ó pátria! Acreditamos expulsas as mil naus
e a terra livre da guerra
De certa forma, todos os tradutores preservaram os aspectos observados.
Desconsiderando certa incoesão nos versos de Marins, o único que destoou na tradução
das sutilezas foi Leminski, que trocou o patriapor “Ó tróia”, e não fez uso do verbo
em primeira pessoa, que reforçava a mudança de ponto de vista narrativo, importante no
momento. De qualquer maneira, é evidente que Leminski não está buscando uma
proximidade com o conteúdo ou com a forma poema. Em seu prefácio, o tradutor deixa
bem claro que havia tomado liberdades na tradução dos poemas, buscando uma “trans-
criação” deles, a fim de manter apenas certa função burlesca que lhes atribui. Pois no
caso em questão, Leminski leva ao extremo a liberdade a que se permite: após os versos
citados acima, ele interrompe sua tradução do poema, justificando-se em nota:
No original, este poema, muito longo, é uma síntese empolada e tediosa da
guerra de Tróia, conforme a Ilíada e a Odisséia, que os antigos sabiam de cor.
Damos apenas os primeiros versos. (LEMINSKI, 1985: 115)
Se não temos como saber a razão por que Leminski não apresenta a tradução do
capítulo 130 ao 134, aqui o tradutor declara sua abstenção. Como sabemos, por todo o
estudo que fizemos do poema, Leminski com isso priva seus leitores de uma série de
detalhes tão hilariantes quanto inteligentes, que contribuem para depreciar a figura de
Eumolpus, e fazem o poema falar e brincar com a tradição literária, em sua condição
consciente de imitação tardia e parodística da obra de Virgílio, ao mesmo tempo em que
alfineta autores contemporâneos. Seguimos, portanto, analisando o restante do poema,
infelizmente sem os versos de Leminski.
4.3.4. Laocoonte
Vimos que assim como o próprio poema, o Laocoonte de Eumolpus é intencionalmente
uma pálida imitação do Laocoonte de Virgílio. Alguns aspectos explicitam essa
inferioridade: o Laocoonte de Eumolpus tem apenas uma invalidam manum (mão
137
fraca), enquanto o Laocoonte de Virgílio é dotado de uma força descomunal. Na Eneida,
o dardo perfura o cavalo, mas no poema de Eumolpus o dardo apenas resvala na
armadilha (“ictus resilit”):
(...) Namque Neptuno sacer
crinem solutus omne Laocoon replet
clamore vulgus. Mox reducta cuspide
uterum notavit, fata sed tardant manus,
ictusque resilit et dolis addit fidem.
Iterum tamen confirmat invalidam manum
altaque bipenni latera pertemptat. (...)
Outros detalhes ainda reforçam o caráter secundário dessa representação. O
Laocoonte de Eumolpus tenta perfurar o cavalo não uma, mas duas vezes: primeiro
com uma cuspis (dardo) e depois com uma bipennis (machadinha de dois gumes). Os
sons semelhantes de uterum (verso 21, primeira tentativa) e iterum (verso 23, segunda
tentativa) corroboram a idéia de repetição, e o uso da machadinha de dois gumes na
segunda tentativa também é significativo. Todos esses detalhes em conjunto nos
informam que os temas da fraqueza e da secundariedade subjazem a esta parte do
poema.
Tradução de Miguel Ruas
(...) Com os cabelos revoltos,
Laocoonte, o sacerdote de Netuno, começou a soltar seus clamores.
Brandindo a lança, ele alveja depois o ventre do animal.
Mas o destino sua mão atrasa; o dardo pula, ao estratagema dando
Aparência de verdade. Uma segunda vez, portanto, erguendo os braços sem
[forças
Com um golpe de machado procura sondar-lhe os flancos profundos.
Ruas não distorce o sentido de ictus resilit” ao traduzir “o dardo pula”, e
preserva a função de invalidam manum”, mantendo a idéia de fraqueza com “braços
sem forças”, conseguindo correspondências razoáveis para tais elementos. No entanto,
perde a repetição de sons (“uterume iterum”) que alude à representação reiterada de
Laocoonte bem como à dupla tentativa de atingir o cavalo, e não menciona os “dois
gumes” da segunda arma, elemento que está ligado à idéia de secundariedade do poema
e da representação em si. Com isso, parte da rede subjacente de significados ligada a
fraqueza e secundariedade é destruída na tradução.
Tradução de Alex Marins
(...) pois Laocoonte, de Netuno
O descabelado sacerdote, a multidão berrante inspirou.
De sua lança, primeiro sacou, e o ventre do cavalo
Golpeou, mas pelo destino imobilizada foi sua mão,
138
E da arma a haste se curvou, à fraude dando um ar
De veracidade. Da segunda vez, de aço armou sua mão
Enfraquecida, o machado ricocheteou no sólido flanco.
A idéia de ictus resilité pulverizada por Marins, que a traduz primeiro na
confusa construção “E da arma a haste se curvou”, e depois a esclarece em “o machado
ricocheteou no sólido flanco”. A função de “invalidam manum” é perfeitamente mantida
em “mão enfraquecida”, porém a repetição de sons (“uterume iterum”) e os dois
gumes da segunda arma não existem na tradução de Marins. Nela, além da destruição da
rede subjacente de significantes, ficam claras outras duas tendências: o alongamento,
evidente nessa pulverização ocorrida, e o enobrecimento, dadas as construções frasais
inusitadas, cheias de inversões e termos incomuns.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
(...) pois o sacerdote de Netuno,
Laocoonte, de cabelos soltos, invade toda a multidão
com seu clamor. Brandindo sua lança sem demora,
e fez um sinal no ventre do cavalo, mas os destinos imobilizam suas mãos,
Uma vez mais, no entanto, ele firma sua mão debilitada
e com uma machadinha penetra os flancos profundos.
Bianchet perverte o sentido e a função de ictus resilit”, ao dizer primeiro que
“Brandindo a lança (...) fez um sinal no ventre do cavalo”, e depois afirmando que “com
uma machadinha penetra os flancos”, quando, no segundo caso, apenas fora dito que
Laocoonte atenta ou tenta atingir (“pertemptat”) os flancos do cavalo. Dos elementos
observados, o único mantido é invalidam manum, que Bianchet traduz por “mão
debilitada”. Os demais, a repetição de sons e os dois gumes da segunda arma, inexistem.
Cometendo impropriedades e não conseguindo correspondências, Bianchet destrói a
rede subjacente de significados ligados a fraqueza e secundariedade nessa parte do
poema, comprometendo o projeto dessa paródia específica.
Tradução de Cláudio Aquati
(...) pois o sacerdote de Netuno,
Laocoonte, de cabelos desgrenhados,
cumula o povo de clamores
e, brandindo em seguida um dardo, visa o ventre do cavalo.
O destino, contudo, retém suas mãos e o golpe resvala
e faz crescer a confiança naquela armadilha.
Mas ele de novo procura dar firmeza à fraca mão
e com sua bipene sonda os flancos profundos.
139
Aquati é o único que mantém o elemento dos dois gumes da segunda arma, com
“bipene”. Ele também preserva a idéia e a função de invalidam manum”, com “fraca
mão”, e mantém com precisão o significado de ictus resilit”, com “o golpe resvala”,
conquanto sua tradução de “latera pertemptat” por “sonda os flancos” seja questionável.
Assim como nas outras, não nenhuma correspondência à repetição de sons (“iterum
... uterum”) na tradução de Aquati, no entanto, pode-se dizer, ele foi o tradutor que
menos destruiu a rede subjacente de significados ligada aos temas da fraqueza e da
secundariedade, sem com isso cometer impropriedades ou incorrer em outras tendências
deformadoras. A destruição do ritmo é comum a todos os tradutores, marcadamente
nesse poema sobre a tomada de Tróia, porém já relevamos isso antes, desconsiderando a
questão métrica nessa análise especificamente.
4.3.5. Ecce alia monstra
No verso 29 do poema, tentando sintetizar, podemos dizer que ao usar a construção
tipicamente virgiliana ecce alia monstra”, a fim de dar uma guinada na narrativa,
Eumolpus passa a narrar a convencional aproximação dos portentos a Tróia. Através de
sutilezas, a própria ilha de Tênedos é representada como um monstro, e as serpentes,
num primeiro momento, são escondidas atrás da descrição da ilha, numa brincadeira
metaliterária.
ecce alia monstra: celsa qua Tenedos mare
dorso replevit, tumida consurgunt freta
undaque resultat scissa tranquillo minor,
qualis silenti nocte remorum sonus
longe refertur, cum premunt classes mare
pulsumque marmor abiete imposita gemit
respicimus angues orbibus geminis ferunt
ad saxa fluctus, tumida quorum pectora
rates ut altae lateribus spumas agunt.
A representação da ilha como sendo ela mesma um monstro começa quando é
dito que “a excelsa Tênedos encheu o mar com seu dorso” (“celsa ... Tenedos mare
dorso replevit”). O termo dorso pode ser usado tanto para se referir a uma costa
litorânea como às costas de um animal. O tema da fraqueza continua: assim como as
armas de Laocoonte, a onda bate no monstro e volta mansa, minor”. A mediocridade
de Eumolpus também segue implícita: ele se demora tediosamente na descrição,
acrescentando uma comparação óbvia das ondas que voltam menores com o som de
140
remos de um navio: qualis silenti nocte remorum sonus longe refertur(tal como o
som de remos numa noite silenciosa é levado longe). Essa comparação embaralha ainda
mais as símiles do poema, pois o novo monstro é assemelhado também aos navios
gregos que se aproximam silenciosamente à noite. Embora sirva como gancho para a
descrição das embarcações que virá imediatamente após, ela é um tanto excessiva,
alonga demais o período e complica um pouco entendimento da frase, o que faz sentido
com a mediocridade poética de Eumolpus. também algo semelhante ao que foi
feito na abertura poema, em que os gregos foram figurativamente encobertos até se
esconderem dentro da armadilha: pelo uso ecce alia monstra”, fica evidente para o
leitor que se está imitando o momento em que Virgílio narra a chegada das serpentes,
porém Petrônio brinca com a expectativa do leitor e esconde as serpentes atrás de sua
descrição de Tênedos, deixando para pô-las em cena no verso 35. Quando aparecem,
as serpentes são comparadas a navios: um jogo figurativo entre os navios, as
serpentes e Tênedos. Tênedos tem dorso como a serpente e se aproxima silenciosamente
pelo mar como os navios. Os navios fazem o mar gemer, como uma serpente faz com
sua vítima. As serpentes impelem espumas das laterais como navios e são metonímia da
própria Tênedos.
Tradução de Miguel Ruas
Mas eis outros prodígios: no lugar onde a altiva Tenedo
99
O mar enche com seu imenso dorso, levantam-se as ondas
E, fendendo-se, refluem tranquilamente,
Tal como na noite silenciosa o rumor de remos longínquos,
Quando as vagas põem sulcos no mar, e gemidos na branca superfície,
Sob a impulsão das naves que sustenta.
Voltamo-nos para ver: duas serpentes juntas ondulando
As vagas impelem de encontro aos rochedos;
Com os dorsos levantados, a altos navios semelhantes,
A espuma afastam de seus flancos. (...)
Ruas, com aparente consciência, mantém a ambigüidade de dorso”, que
contribui para a representação da ilha como um monstro, e inclusive clarifica essa
função ao dizer adiante que as serpentes têm “dorsos”, aos invés de peitos como consta
do poema latino. O elemento da fraqueza (próprio da imitação de Eumolpus) presente
em minor”, é distorcido com “tranquilamente”, e o efeito se perde. No poema latino, a
onda rebentada volta menor ao mar tranqüilo (undaque resultat scissa tranquillo
99
No latim, o nome da ilha no nominativo aparece de duas maneiras: Tenedos e Tenedus. A
correspondência morfológica no português para a primeira maneira é Tênedos (bastante usada,
semelhante ao espanhol Ténedos) e para a segunda Tênedo. Ruas opta pela segunda alternativa,
dispensando o acento.
141
minor). A comparação tediosa e óbvia da onda com o som dos remos é perfeitamente
mantida, e a organização do longo período é apropriadamente conservada. A remissão
direta à Eneida que supostamente aconteceria com “ecce alia monstra talvez seja
impossível numa tradução hoje, mas de qualquer maneira Ruas preservou essa
construção também, e igualmente não fez nenhuma grande mudança na ordem dos
versos e seus elementos, mantendo a descrição das serpentes após a descrição de
Tênedos e dos navios, corroborando o encobrimento figurativo das serpentes durante os
primeiros versos sobre a chegada dos portentos. Observam-se, portanto, na tradução de
Ruas, as tendências da clarificação, presente na tradução de pectorapor “dorsos”, a
fim de evidenciar a analogia desses dorsos com o dorso da ilha e consequentemente a
representação dela como um monstro, e da rede de significados ligada ao tema da
fraqueza, subjacente ao poema todo, com a tradução de minor”, cuja ambigüidade tem
um lado depreciativo, por “tranquilamente”, nada ambíguo nem depreciativo. Vale
afirmar que, no entanto, como um todo, as sutilezas dessa parte do poema são
minimamente comprometidas pela tradução de Ruas.
Tradução de Alex Marins
Porém mais prodigiosos signos seguiam-se agora:
No altaneiro Tenedo, o mar seu dorso imenso eleva,
Fluem e refluem os vagalhões. Repelida, a rebentação
A calmaria sulca, na volta, e soa como o rumor distante
De remos no silêncio da noite, quando os barcos
Cavalgam o mar e a superfície geme como sob o peso de
Quilhas deslizantes. Olhamos de novo: duas serpentes
Ondulavam juntas, pela força das águas conduzida
Para as rochas; cheios os troncos, como altivas naves,
A espuma afastam para os lados. (...)
Marins traduz ecce alia monstra por “Porém mais prodigiosos signos
seguiam-se agora”, demonstrando certa prolixidade, confirmando a tendência do
alongamento. O elemento minordesaparece, embora a comparação tediosa das ondas
que voltam com o som remos seja razoavelmente mantida. O jogo figurativo entre os
três portentos também não é destruído: Tenedo (como o tradutor prefere) tem “dorso” e
parece se insinuar pela noite, os navios fazem a superfície do mar gemer como
serpentes, e as serpentes com seus “troncos” (tradução para “pectora”) impelem a
espuma como navios. Pela aparente intenção de fugir de certa simplicidade da frase
latina, buscando apenas termos de uso estritamente literário, esbanjando-se de
142
construções inusitadas, inversões etc., Marins incorre aqui mais uma vez na tendência
do enobrecimento.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Eis que surgem outros prodígios: no lugar onde a elevada Tênedos
encheu o mar com sua encosta, braços de mar intumescidos se erguem
e a onda mais fraca retumba tranquilamente,
tal como na noite silenciosa o som dos remos se reproduz ao longe,
quando as armadas comprimem o mar
e a arrebentação por elas impelida lamenta seus enganos desesperançosamente.
Volvemos nossos olhos: as ondas lançam nas pedras
serpentes de duas cabeças, cujos peitos intumescidos,
tal como as grandes embarcações, removem as espumas para o lado.
Bianchet sugere algumas interpretações interessantes e outras questionáveis com
sua tradução. A ambigüidade e o efeito de dorso” são esterilizados com encosta”, que
afirma Tênedos como uma ilha simplesmente e não ao leitor a chance de pensá-la
como mais um monstro. No entanto, curiosamente, Bianchet traduz fretapor “braços
do mar”; o adjetivo de fretaé o mesmo que de pectora”: tumida”. Ao que parece,
há a possibilidade de comparar o próprio mar às serpentes, tomando a ele também como
outro portento. Ao dizer “braços ... intumescidos” e “peitos túmidos” (duas partes de um
corpo) a possível analogia é enfatizada, ainda que fatalmente clarificada pela tradutora.
A idéia de fraqueza em minor permanece com “mais fraca”. pulsumque marmor abiete
imposita gemit(e sua superfície geme ao bater contra a quilha) Bianchet traduz por “e
a arrebentação por elas impelida lamenta seus enganos desesperançosamente”.
marmor (a superfície do mar) é traduzido por “arrebentação”, e esta, ao invés de
gemer ao bater contra a abiete (abies, abietis: abieto, quilha) dos navios, “lamenta
seus enganos desesperançosamente”. Evidentemente a tradutora se afasta bastante do
sentido dessa comparação, destruindo mais uma vez o jogo figurativo entre os
portentos, pois assim como Tênedos não tem mais dorso em sua tradução, os navios
também não gemem como a vítima de uma serpente. Além disso, o alongamento é
gritante: as cinco palavras no latim de Petrônio viram dez no português de Bianchet.
Tradução de Cláudio Aquati
Sucedem outros prodígios:
no lugar em que a altiva Tênedos ocupa o mar
com a linha de sua costa, as águas se erguem
e se encrespam, e resulta uma onda que rebentada
é mais baixa que o mar sereno,
tal como no silêncio da noite ouve-se ao longe
o som de remos quando frotas sulcam o mar
e geme sua superfície marmórea tocada pela nau que flutua.
Voltamo-nos para ver: serpentes de espiras gêmeas
143
levam as ondas para os rochedos
e, feito embarcações de alto costado,
seu peito túmido vai abrindo as espumas para os lados.
Aquati também apaga a dubiedade de dorso”, traduzindo o termo por “linha de
sua costa”. A ambigüidade de minor (menor), que tem um lado depreciativo,
contribuindo para a temática da fraqueza subjacente ao poema, tem seu efeito
enfraquecido em “mais baixa”, que informa apenas o caráter físico da onda. Como
ressaltamos, no poema latino a onda é menor no tamanho e também sugere a
inferioridade da imitação de Eumolpus.
Certo ponto pede um comentário mais aprofundado. Há, quase que
imperceptível, um procedimento de racionalização seguido de clarificação na tradução
de um trecho: a comparação entre as ondas que voltam menores com o som de remos
que se vai ao longe numa noite silenciosa. O poema diz celsa qua Tenedos mare /
dorso replevit, tumida consurgunt freta / undaque resultat scissa tranquillo minor, /
qualis silenti nocte remorum sonus / longe refertur(onde a excelsa Tênedos / encheu o
mar com seu dorso, águas túmidas se levantam / e a onda rebentada volta menor ao mar
tranqüilo, / tal como o som de remos numa noite silenciosa / é levado longe) para
depois dizer que tudo isso acontece no momento em que os navios estão chegando:
cum premunt classes mare / pulsumque marmor abiete imposita gemit(quando os
navios premem o mar / e sua superfície geme ao bater contra a quilha). Não foi à toa
que enfatizamos o fato de que essa comparação alonga demais o período e dificulta a
compreensão da frase, e que isso é coerente com a mediocridade poética de Eumolpus.
Aquati traduz “e resulta uma onda que rebentada / é mais baixa que o mar sereno, / tal
como no silêncio da noite ouve-se ao longe / o som de remos quando frotas sulcam o
mar / e geme sua superfície marmórea tocada pela nau que flutua.” Sintaticamente
qualis silenti nocte remorum sonus / longe referturé independente de cum premunt
classes mare”. No entanto, talvez tentando dar ao texto uma idéia de narrativa
encadeada, lógica, coerente, Aquati troca o sentido de sonus ... refertur (o som é
levado), que era diretamente comparativo a unda ... resultat minor (a onda volta
menor), por “ouve-se ... o som”, vinculando esta oração a uma subordinada adverbial
temporal: “quando frotas sulcam o mar”. uma mudança sutil aí, que deixa o texto
traduzido mais fluído, mas que, entretanto, destrói a intencional rudez do texto original.
Talvez alguém possa julgar que isso seja petulância crítica, porém a intenção é apenas
demonstrar que no detalhe, na sutileza, efeitos importantes podem se perder frente ao
144
imperativo da fluência e da beleza, como parece ter sido o caso. A informidade
significante dessa parte do poema, ou sua falta de acabamento formal, decorrente do
estilo tosco de Eumolpus, foi destruída pela racionalização e clarificação da tradução de
Aquati.
4.3.6. Tróia embriagada, Tróia enganada
Vimos que na parte final do poema o uso da palavra effundunt (derramaram)
assemelha a saída dos gregos de dentro do cavalo ao derramamento do vinho, que tinha
embriagado os troianos, levando-os ao sono e ao descuido na vigilância da cidade:
cum inter sepultos Priamidas nocte et meto
Danai relaxant claustra et effundunt viros.
temptant in armis se duces, ceu vi solet
nodo remissus Thessali quadrupes iugi
cervicem et altas quatere ad excursum iubas.
Notamos que assim como no trecho anterior, em que Eumolpus compara
Tênedos às serpentes que saem detrás da própria Tênedos, justapondo o metafórico ao
real e o real ao metafórico, numa símile confusa porque banal e mal feita,
100
nesse
trecho o poeta enfadonho repete a dose: os guerreiros, ao saírem exaltados de dentro do
cavalo, são comparados a cavalos. No entanto, por trás da mediocridade de Eumolpus,
outra vez está Petrônio brincando com a tradição épica: símiles comparando homens se
preparando ou indo para a batalha com cavalos correndo soltos são bastante comuns em
épicos. Lembramos que além de Homero e Ennio, Virgílio em diferentes passagens
descreve um cavalo que escapa do cercado ou do jugo, enfatizando sua força vigorosa.
Petrônio reitera essa comparação, porém brincando mais uma vez com a fraqueza da
imitação de seu personagem: o cavalo de Eumolpus não escapou, mas foi solto
(“remissus”) do jugo de uma carruagem tessálica.
Além disso, observamos que Eumolpus repete o começo do verso laxat
claustra Sinon(Sinon abre a clausura, verso 259, livro 2 da Eneida) no começo de um
verso seu: Danai relaxant claustra (os dânaos abrem a clausura, verso 57). O
acréscimo do prefixo re, que é usado obsessivamente em inúmeros outros verbos do
poema, está ligado a toda a temática da reiteração, da repetição, que subjaz ao poema.
100
Segundo as regras clássicas, numa boa símile o veículo nunca está tão próximo do seu tenor
(FILIPAK, 1983). Nesses dois casos, veículo e símile são a mesma coisa, o que sinaliza uma infração
radical e intencional às regras. Petrônio faz seu poeta vaidoso e importuno parecer sempre mais medíocre.
145
Tradução de Miguel Ruas
Entre os filhos de Príamo, na noite sepultados e no vinho.
Os gregos abrem as portas do cavalo, dispersando-se os guerreiros.
Preparam-se os chefes para seu vigor pôr à prova.
Semelhantes aos corcéis dos montes tessálios: uma vez desfeito,
O nó que os contém, levantam a cabeça e sacodem as longas crinas,
Prontos para se lançarem na corrida veloz. (...)
O trocadilho sugerido pelo uso de “effundunt” é destruído com “dispersando-se”.
A idéia de reiteração presente em relaxanté igualmente apagada. Seu correspondente
morfologicamente exato em português seria “relaxam”, porém a palavra não serve no
contexto desse poema. É sem dúvida muito difícil traduzir esse aspecto, assim como
todo o jogo que ele compõe: a proliferação dos significantes que representam a temática
da reiteração; desse jogo os prefixos re ao longo do poema são parte essencial.
A mediocridade da mile de Eumolpus e a remissão aos modelos épicos
tradicionais permanece na tradução de Ruas; em seu poema os guerreiros continuam
comparados a um cavalo que corre exaltado ao se ver livre. O detalhe que enfatiza a
idéia de fraqueza na imitação é relativamente mantido: em lugar de dizer que os gregos
saem vigorosos como um cavalo que solto do laço/nó do jugo de uma carruagem
tessália costuma sacudir o pescoço e a longa crina, pronto para a corrida (“ceu vi solet /
nodo remissus Thessali quadrupes iugi / cervicem et altas quatere ad excursum iubas”),
Ruas diz “uma vez desfeito, / O que os contém, levantam a cabeça e sacodem as
longas crinas, / Prontos para se lançarem na corrida veloz”. Apesar de que o possa
ser desfeito pela força do cavalo que escapa, dizer que o foi desfeito também pode
dar a entender que o animal foi solto.
O termo Thessalius (tessálio), cujo genitivo é Thessali”, explicam Courtney
(2001) e Connors (1998), era muito usado como metonímia do carro tessálio (ou
carruagem da Tessália), usado em corridas, o que é muito provável ter acontecido no
poema. Ruas fala em “corcéis dos montes tessálios”, o que outro entendimento aos
versos, embora não perturbe demais a sutileza em questão.
Tradução de Alex Marins
Quando o cavernoso cavalo os gregos abriram, e seus heróis
Lançaram sobre os filhos de Príamo,
Na noite afogados todos ou embrutecidos pelo vinho.
Como corcéis tessálios de sua canga libertos, quando empinam
A cabeça e as longas crinas sacodem, sua força armada os
Capitães experimentaram, as espadas sacaram, os escudos
Brandiram, e combateram. (...)
146
O trocadilho de effundunt também desaparece na tradução de Marins, que
traduz o termo por “lançaram”, perdendo a idéia de derramar os guerreiros assim como
se derrama o vinho. Marins, que talvez conhecesse a tradução de Ruas, fala em corcéis
tessálios, perdendo também a referência à carruagem da Tessália. Entretanto, mais
importante, a remissão ao modelo épico que compara guerreiros indo à batalha a cavalos
que escapam do jugo é preservada, e o elemento depreciativo, que brinca com a
fraqueza da imitação, é mantido à risca com “de sua canga libertos”. A idéia de
reiteração que há em relaxantaqui também não foi correspondida. Assim, as redes de
significados, uma ligada à embriaguez fatal dos troianos e outra ligada ao caráter
secundário da poema, que reitera o poema de Virgílio, foram parcialmente destruídas
nessa parte da tradução de Marins.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
quando, em meio aos Priâmides sepultados, à noite e sob o efeito do vinho,
os gregos tiram a trava e soltam seus homens.
Os generais lançam-se às armas, assim como quando
um cavalo da Téssalia, relaxado, com as rédeas soltas,
sacode a cabeça e suas altivas cristas para uma corrida.
Mais uma vez a tradução de effundunt”, desta vez por “soltam”, não contempla
seu efeito original. Todavia, outras sutilezas são traduzidas, a despeito da dificuldade.
Recém comentamos que o correspondente morfologicamente exato de relaxantem
português seria “relaxam”, porém nenhuma das atuais acepções de relaxar no português
brasileiro é adequada ao contexto desse poema, ou melhor, ao sentido de relaxantno
poema. De fato, Bianchet não consegue manter o prefixo re ou qualquer outra idéia de
reiteração na tradução de relaxant”, porém, tomando certa libertade, consegue encaixar
o verbo relaxar oportunamente em outro lugar do poema. A tradutora atribui o adjetivo
“relaxado” ao cavalo, ao dizer que ele é solto das rédeas. Ainda que tenham sido
perdidas as imagens da carruagem e do jugo, esta especialmente significativa, a
conotação de fraqueza se mantém com “rédeas soltas”, assim como todo o padrão do
modelo épico (guerreiros e cavalos). Portanto, fazendo certos ajustes, Bianchet manteve
em proporção notável parte das sutilezas desse final do poema.
Tradução de Cláudio Aquati
Foi quando os gregos abriram seus esconderijos
e espalharam seus homens entre os filhos de Príamo,
que se encontravam mergulhados na noite e no vinho.
Os chefes experimentam-se nas armas
147
da forma como costuma fazer o corcel da Tessália:
livre do nó do jugo, ele sacode a cabeça
e a longa crina, pronto pra corrida.
Aquati, assim como os outros tradutores, não preservou a idéia de derramar ou
despejar (relativa ao despejo de vinho) presente em effundunt”; não se diz
“esparramar” uma bebida num copo, por exemplo. Com isso, destruiu o trocadinho que
compara a saída dos gregos de dentro da armadilha ao despejo do vinho, que embriagou
e derrubou os troianos, deixando-os vulneráveis enquanto dormiam. Da mesma forma, a
noção de reiteração implícita em relaxantfoi apagada. A outra sutileza, entretanto,
constituída pela combinação do modelo épico que compara guerreiros indo à batalha a
cavalos em fuga não é prejudicada, e a imagem do jugo é apropriadamente mantida,
embora isso não aconteça com a imagem da carruagem.
148
CAPÍTULO V
5.1. Outros poemas curtos (traduções)
5.1.1. Viver e comer
5.1.2. A metáfora da queda
5.1.3. Publilius Syrus
5.1.4. Poeta sum
5.1.5. Geografia da luxúria
5.1.6. Elegia sobre a calvície repentina
5.1.7. Sexo como morte
5.1.8. Dignus amore locus
5.1.9. Encolpius “epicurista”
5.1.10. Dinheiro e Fortuna
5.1.11. Tempestade no poema
149
5.1. Outros poemas curtos
No capítulo anterior, tendo em conta o estudo feito no capítulo II, analisamos as
traduções de dois pequenos poemas e do poema maior sobre a tomada de Tróia. Os três
poemas foram assim agrupados por estarem diretamente ligados à temática da
reinvenção do passado épico. Os poemas que serão analisados a seguir, como
dissemos, embora parodiem eventualmente algum elemento dos grandes épicos antigos,
não têm seu foco nessa prática especificamente. Eles estão, em última instância, a
serviço do contexto narrativo em que se encaixam. Esses poemas curtos, entremeados
na narrativa, resignificam ou dilatam as possibilidades interpretativas de certo momento
da história, além de terem uma função bastante direcionada na composição do perfil dos
personagens que os proferem. Isto é, o perfil de um ou outro personagem é manifestado
e desenhado especialmente pelos pequenos poemas que eles declamam. Por essa
especificidade e pelo volume considerável deles, as traduções desses outros poemas
curtos foram agrupadas neste quinto capítulo.
5.1.1. Viver e comer
O primeiro dos poemas que terão suas traduções analisadas neste capítulo é também o
primeiro dos poemas declamados por Trimalchio, no capítulo 34 do Satyricon:
eheu nos miseros, quam totus homuncio nil est!
sic erimus cuncti, postquam nos auferet Orcus.
ergo vivamus, dum licet esse bene.
Sintetizando o exame que fizemos, podemos dizer que três sutilezas
significativas nessa epigrama: a pobreza técnica intencional no uso metro, que diz
respeito à caracterização de Trimalchio; a relação etimológica entre auferet e ferculum,
e a ambigüidade implícita no uso do infinitivo esse, que dizem respeito a todo o
discurso que Petrônio quis claramente construir a respeito de vida, morte, comida e
deleite. A pobreza técnica está no uso irregular do padrão elegíaco, pico de elegias e
epigramas: ao invés de usar apenas hexâmetros datílicos ou fazer o uso intercalado de
hexâmetros e pentâmetros datílicos (o que constitui o dístico elegíaco), Trimalchio
dispõe um pentâmetro após dois hexâmetros.
150
Antes de recitar o poema, o anfitrião do jantar manda trazer um ornamento
exótico e macabro, um esqueleto de prata. No poema ele diz que o Orco (que representa
a morte) nos leva (“auferet”). Após o poema, uma refeição é trazida em umferculum”,
espécie de bandeja cujo nome tem a mesma raiz de auferet.
101
Em seguida à menção ao
Orco, no poema, ele aconselha que vivamos enquanto se permite essebem. Esse é o
infinitivo tanto de ser como de comer. Enfim, uma rede subjacente de significados
ligada a um discurso sobre vida, morte, comida e deleite. Se por um lado o conteúdo
desse discurso representa perfeitamente a banalidade e a glutoneria de Trimalchio, por
outro, o arranjo sofisticado dessas sutilezas na linguagem também representa
perfeitamente a genialidade poética de Petrônio.
Tradução de Miguel Ruas
Nada mais é que um leve sopro a existência!
Presa de Orco, este será de todos nós o aspecto
Vivamos, pois, enquanto gozar podemos!
Mais adiante analisaremos o aspecto métrico das traduções de uma só vez,
comparando-as todas. Por ora, é possível considerar outros aspectos na tradução de
Ruas. A idéia de que o Orco nos leva, presente em sic erimus cuncti, postquam nos
auferet Orcus(assim seremos todos, depois que o Orco nos levar) foi destruída com
“Presa de Orco”. Igualmente, logo em seguida, na prosa, ferculum é traduzido
simplesmente por “prato”, desatendendo esse trocadilho. Quando Trimalchio diz sic
erimus cuncti”, está provavelmente se referindo ao aspecto do esqueleto recém trazido,
e portanto, ao traduzir “este será de todos nós o aspecto”, Ruas comete uma evidente
clarificação. Todavia, a tradução de essepor gozar é uma solução razoável para a
ambigüidade ser/comer.
Tradução de Paulo Leminski
Ai, ai, pobres de nós, mortais!
Como o fio da nossa vida é tênue!
Assim seremos nós depois dos funerais.
Vivamos pois, enquanto é tempo.
Ao traduzir “Assim seremos nós depois dos funerais”, Leminski não incorre na
mesma clarificação que Ruas, porém da mesma forma que este, ao dispensar o sentido
101
Literalmente, ferculum significa “aquilo que serve para levar”. No contexto do poema, portanto,
ferculum também pode sugerir algo como um andor, um caixão, ou até mesmo uma barca do rio
Aqueronte.
151
de “auferet”, destrói o trocadilho de que a morte nos leva, assim como o poema é levado
embora para que o ferculum seja trazido. uma racionalização seguida de
clarificação também, pois ambos interpretam (racionalizam) o que significa ser
levado pelo Orco, e clarificam a idéia de morte na tradução.
Esse trocadilho-chave brinca com a banalidade essencial da vida e a banalidade
da glutoneria, simbolizada pelo próprio autor da epigrama. Uma epigrama é um tipo de
poema proverbial, ou seja, um tipo de poema que traz um dito popular em si. “Vivamos
(...) enquanto é tempo” – um pensamento caro aos romanos, presente em Horácio
(“Carpe diem”, Colhe o dia) e Catulo (Vivamus, mea Lesbia, atque amemus”,
Vivamos, minha Lésbia, e amemos) é exatamente o que dizemos nós, brasileiros, ao
proverbiarmos a idéia de que a vida é breve e por isso devemos aproveitá-la. O verso
final da epigrama (“ergo vivamus, dum licet esse bene”) é, pois, o Carpe diemde
Trimalchio. Ao compor esse verso com a ambigüidade de esse”, Petrônio a seu
personagem a locução que lhe é mais apropriada para expressar esse pensamento
proverbial, porque conecta as palavras dele a todo o discurso que está sendo feito por
trás. Leminski ao ignorar isso, e traduzir simplesmente “Vivamos (...) enquanto é
tempo”, destrói a locução de Trimalchio (Petrônio) e, para usar um termo de Berman,
despreza a consciência-de-provérbio que há no leitor, que reconheceria imediatamente o
pensamento em questão, mesmo que as palavras fossem traduzidas literalmente. Além
de tudo, ao mesmo tempo em que destruiu a locução, Leminski apagou a ambigüidade
de esse”, destruindo também a rede subjacente de significados ligada a vida, morte,
comida e deleite.
Tradução de Alex Marins
O homem nada mais é que um sopro
E a trama de seus anos é curta e frágil.
O túmulo segue nossos passos; cabe a nós,
Sabiamente, usar o prazer para embelezar,
O mais que pudermos, os nossos instantes.
Os versos de Marins constituem mais um poema inspirado no poema de
Trimalchio do que uma tradução dele propriamente. As três sutilezas são destruídas, e
sequer a essência proverbial da epigrama permanece. postquam nos auferet Orcusé
traduzido por “O túmulo segue nossos passos”; a relação entre auferet e ferculum
inexiste na tradução de Marins, que também traduz ferculum simplesmente por “prato”.
O ergo vivamus, dum licet esse beneressoa em “cabe a nós, / Sabiamente, usar o
152
prazer para embelezar, / O mais que pudermos, os nossos instantes”, num gritante
alongamento. apenas uma tímida tentativa de expressar a significativa ambigüidade
de “esse” em “prazer”, que pode sugerir o ato de aproveitar a vida e o ato de comer.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Ai, ai! Infelizes de nós! Como toda a humanidade é um nada!
Assim seremos todos, depois que o Orco nos levar.
Então, vivamos, enquanto é permitido viver bem.
Tradução de Cláudio Aquati
Ai de nós, infelizes! Como o homem não é nada!
Assim seremos todos nós, depois que nos levar o Orco.
Vivamos, pois... enquanto é permitido estar bem!
Bianchet e Aquati não clarificaram o significado contextual de sic erimus
cuncti”, e convenientemente mantiveram o significado mais puro de auferet com
“levar”. Na prosa, entretanto, ferculumse tornou “bandeja grande”, na tradução de
Bianchet, e “prato”, na de Aquati, sendo destruído em ambos os casos o efeito gerado
pelo uso combinado das duas palavras (auferet e ferculum), num contexto em que a
idéia de levar suscita mais de uma interpretação. Outro elemento destruído foi a
ambigüidade de esse”. Nas interpretações dos dois tradutores “esse” pendeu para o
sentido do verbo ser, tendo sido excluída a possibilidade do verbo comer. Ainda assim,
ao menos a imagem do Orco nos levando embora foi mantida, o que por si só
contribui para preservar parte da rede de significados do poema.
Passemos, pois, para a análise métrica tendo em conta a primeira sutileza
observada: a pobreza da técnica poética de Trimalchio. A epigrama, assim como a
elegia, tem um tipo de estrofe padrão chamado dístico elegíaco. O dístico elegíaco é
composto por um hexâmetro seguido de um pentâmetro, ambos datílicos. Trimalchio ao
invés de se preocupar com esse padrão, cujo uso legitima o poeta, ou usar apenas
hexâmetros, como também era possível, compõe dois hexâmetros e um pentâmetro,
mostrando negligência ou ignorância às regras.
Tradução de Miguel Ruas
/ - / / - / - / - - - - / -
Nada mais é que um leve sopro a existência!
/ - - / - || / - - / - / - / - / -
Presa de Orco, este será de todos nós o aspecto
- / - / - / - - / - / -
Nº. de sílabas e
acentos fortes
12 e 6
15 e 7
11 e 5
153
Vivamos, pois, enquanto gozar podemos!
Tradução de Paulo Leminski
/ / || / - - / - /
Ai, ai, pobres de nós, mortais!
- - / - - - - / - / -
Como o fio da nossa vida é tênue!
- / - / - / - / - - - /
Assim seremos nós depois dos funerais.
- / - / - / - / -
Vivamos pois, enquanto é tempo.
Tradução de Alex Marins
- / - / - / / - / -
O homem nada mais é que um sopro
- / - - - / - / / - / -
E a trama de seus anos é curta e frágil.
- / - - / - / - / - || / - /
O túmulo segue nossos passos; cabe a nós,
- - / - / - - / - - - - /
Sabiamente, usar o prazer para embelezar,
- / - - / - - / - - / -
O mais que pudermos, os nossos instantes.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
/ / - - / - - / || - - / - - - / - / - / -
Ai, ai! Infelizes de nós! Como toda a humanidade é um nada!
- / - / - / - || - / - / - - - /
Assim seremos todos, depois que o Orco nos levar.
- / - / - || - / - - - / - - - /
Então, vivamos, enquanto é permitido viver bem.
Tradução de Cláudio Aquati
/ - / - - / - || - - / - - - / -
Ai de nós, infelizes! Como o homem não é nada!
- / - / - / - / || - / - - - / - / -
Assim seremos todos nós, depois que nos levar o Orco.
- / - / || - / - - - / - - /
Vivamos, pois... enquanto é permitido estar bem!
8 e 5
9 e 3
12 e 5
8 e 4
9 e 5
11 e 5
13 e 6
13 e 4
11 e 4
19 e 8
15 e 6
15 e 5
14 e 5
16 e 7
13 e 5
Nenhum tradutor se preocupou muito com a idéia de alternância métrica
(hexâmetros e pentâmetros) inerente à epigrama, exceto Leminski talvez. Leminski
compõe dois versos curtos (8 e 9 silabas), um longo (12 sílabas) e outro curto (8
sílabas), o que pode ter alguma relação com o desvio de regra original. Os demais todos
usaram versos longos predominantemente, e nenhum deles demonstrou buscar algum
efeito rítmico análogo ao dátilo (/ - -), a célula rítmica característica dos versos
originais.
Entretanto, baixando nosso nível aceitável de correspondência, como fizemos
antes, e considerando o número de acentos fortes dos versos, observamos que todos os
154
tradutores (notadamente Ruas, Leminski e Aquati) parecem ter tido um cuidado: o de
garantir que o verso final tivesse uma quantidade menor de acentos fortes em relação
aos demais, o que pode ser admitido como uma possível analogia ao pentâmetro final da
epigrama de Trimalchio.
5.1.2. A metáfora da queda
No capítulo 55, em seu segundo poema, também de caráter epigramático, Trimalchio
continua desrespeitando as convenções métricas, além de repetir e banalizar o
pensamento proverbial de que se deve aproveitar o presente, pois o futuro é incerto:
quod non expectes, ex transverso fit <ubique,
nostra> et supra nos Fortuna negotia curat.
quare da nobis vina Falerna, puer.
Nesses versos, sequer o uso dos dátilos é priorizado, o que sugere que o metro
não tem nenhuma importância. Que a narrativa tenha sido interrompida com uma
epigrama medíocre de Trimalchio, isso é absolutamente coerente e nada surpreendente.
Entretanto, o que mais importa nesse poema é um mínimo detalhe seu: o fato de que a
deidade do imprevisível, a Fortuna, está acima de nós (“supra nos Fortuna negotia
curat”). Como vimos, Trimalchio improvisa esses versos depois que um escravo
acrobata cai sobre sua cabeça. Saindo ileso do acidente, Trimalchio resolve alforriar o
jovem, pedindo para registrarem o fato (casum) com seu poeminha. A palavra casus
que vem de cado, cadere (cair) e cujo acusativo singular é casum – era usada no
linguajar romano para se referir a fatos fortuitos. Antes disso, numa discussão,
Trimalchio e seus convivas comentavam que os negócios humanos estão in praecipiti
(em precipício, à beira do abismo). Ou seja, na narrativa, para contar o caso, cria-se um
jogo de palavras ligado ao tema da queda, e no poema, cuidando de nossos negócios que
estão in praecipiti, está a Fortuna acima de nós, assim como estava o escravo antes de
cair em cima de Trimalchio. É como se a sorte viesse de cima: assim como Trimalchio
safou-se de algum dano maior, o garoto recebeu seu maior prêmio, a liberdade.
Tradução de Miguel Ruas
Chegam os males sempre de improviso
E do nosso destino cuida sozinha a Fortuna:
Oh! menino vamos! Falerno serve a todos!
Tradução de Paulo Leminski
155
O imprevisto ocorre
quando você menos espera
Sobre nós, reina o Acaso.
Traz mais vinho, Valério.
Tradução de Alex Marins
Os bens, os males são incertos
Como a sorte que nos governa.
Bebamos! Nas vagas do Falerno,
Escravos, afogai nossas mágoas.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
O que vem sem ser esperado torna-se atravessado
e, mais do que nós mesmos, Fortuna cuida dos negócios.
Por isso, dá-nos garrafas de vinho Falerno, garoto.
Tradução de Cláudio Aquati
O que não esperas acontece pelas costas
– e, acima de nós, Fortuna cuida de seus afazeres.
Portanto, dá-nos vinhos falernos, ó escravo!
Apenas Leminski e Aquati tiveram cuidado de manter, convenientemente, o
sentido físico da preposição supra. Os demais incorreram em interpretações artificiosas
de supra nos Fortuna negotia curat(acima de nós a Fortuna cuida dos nossos/seus
negócios), destruindo a rede de significados subjacente ao poema e seu arranjo na
narrativa:
- “do nosso destino cuida sozinha a Fortuna” (Ruas);
- “Como a sorte que nos governa” (Marins);
- “mais do que nós mesmos, Fortuna cuida dos negócios” (Bianchet).
Leminski traduziu “Fortuna” por “Acaso”, perdendo a remissão à deusa romana,
porém sugerindo que o Acaso seja uma entidade. Isso condiz com um pressuposto dado
por ele em seu prefácio: o de que aliviaria seu leitor do “pesado lastro de alusões
mitológicas que (...) faziam sentido para um leitor da Antigüidade” (LEMINSKI,
1985: 6). A sutileza, no entanto, foi mantida: a entidade superior que governa a sorte
dos homens está literalmente sobre nós na tradução de Leminski. Vale notar que o
tradutor também ignorou a referência ao cobiçado vinho de Falerno (outra marca da
ostentação estúpida do novo-rico Trimalchio), tomando a liberdade de dar ao escravo
liberto o nome de Valério, supostamente para preservar alguma alusão ao som de
156
Falerno. Da tradução de Aquati não muito que dizer. O tradutor manteve as palavras
simplórias de Trimalchio, assim como a sutileza cita de Petrônio, sem destruir a letra
do texto latino, a despeito das características métricas que não eram importantes no
caso.
5.1.3. Publilius Syrus
O terceiro poema recitado por Trimalchio, ainda no capítulo 55, é mais complexo dos
três, seja pelo arranjo interno de suas sutilezas ou pela relação com o contexto narrativo
onde ele se insere:
luxuriae rictu Martis marcent moenia.
tuo palato clausus pavo pascitur
plumato amictus aureo Babylonico,
gallina tibi Numidica, tibi gallus spado;
ciconia etiam, grata peregrina hospita
pietaticultrix gracilipes crotalistria,
avis exul hiemis, titulus tepidi temporis,
nequitiae nidum in caccabo fecit tuae.
quo margaritam caram tibi, bacam Indicam?
an ut matrona ornata phaleris pelagiis
tollat pedes indomita in strato extraneo?
zmaragdum ad quam rem viridem, pretiosum vitrum?
quo Carchedonius optas ignes lapideos?
nisi ut scintillet probitas e carbunculis.
aequum est induere nuptam ventum textilem,
palam prostare nudam in nebula linea?
Trimalchio atribui o poema a um poeta mímico chamado Publilius Syrus,
conquanto tenhamos muitas razões para crer que ele seja mais uma das paródias
tipicamente petronianas. Notamos que a extravagância no uso de algumas figuras é uma
possível alusão irônica ao estilo de Syrus, o poeta vulgar admirado por Trimalchio. A
aliteração é usada em abundância: Martis marcent moenia (1),
102
palato ... pavo
pascitur / plumato (2-3), titulus tepidi temporis (7), nequitiae nidum (8), strato extraneo
(11), palam prostrare (16), nudam in nebula (16). Além da aliteração, detalhamos
também a exploração obsessiva dos trocadilhos entre as imagens e seus significados.
Um forte tom moralista atravessa todo o poema, e o tema geral da crítica que se faz à
luxúria de Roma (muralhas de Marte) é a ânsia estúpida pelo exótico. O exótico diz
respeito a aves delicadas então cobiçadas e devoradas – e a pedras e tecidos luxuosos,
que eram banalizados pelo gosto feminino e por sua vez provocavam a perversão de
102
Numeração relativa à ordem dos versos.
157
toda a virtude romana. Cada detalhe na caracterização das aves, cada detalhe na
descrição das jóias e das mulheres é sistematicamente importante. A cada análise que
faremos a seguir, traremos à tona os pontos explicados com profundidade no capítulo II.
O metro não é explorado com nenhuma intencionalidade específica, seja de maneira
irregular ou medíocre, como na primeira epigrama de Trimalchio, seja com alguma
sofisticação extraordinária; outra vez, portanto, não vamos nos ater a este aspecto na
análise.
Tradução de Miguel Ruas
Desfazem-se as muralhas num luxo insaciável.
Para teus palácios, oh! Roma, engordam-se os pavões
Revestidos de dourado manto, tal um tapete babilônico,
E as galinhas da Numídia e os capões da Gália.
E até a cegonha, essa estrangeira benvinda,
Modelo da filial piedade e de gracioso andar,
Que no inverno exila e anuncia os dias quentes,
Fez hoje o seu ninho no antro da devassidão.
A quem destinas tu a pérola que dos mares índicos vem?
Queres que a matrona ornada com as gemas marinhas
Vá, cheia de luxúria, recostar-se sobre cobertas exóticas?
Que queres fazer da verde esmeralda, pedra tão preciosa?
Por que desejas o brilho das pedras de Cartago?
Sem dúvida, para que a tua probidade refulja à sua luz;
E é justo, afinal, que a esposa, vestida de gaze tênue,
A todos exiba sua nudez?
O poema de Syrus diz que as muralhas de Marte (referência à cidade de Roma)
morrem na boca da luxúria (luxuriae rictu Martis marcent moenia), uma imagem
bastante forte para iniciar a alegoria da luxúria em que consiste o poema. Ruas, que não
menciona o deus protetor da cidade, diz que as muralhas se desfazem num “luxo
insaciável”, ao invés de dizer que a luxúria tem boca, e no verso seguinte explica
(racionaliza) o sentido de Martis” com “oh! Roma”. Ao invés de dizer que um pavão é
engordado para o paladar (palato) da luxúria (que tem boca), Ruas fala em palácios, e
segue destruindo a alegoria. Um ponto importante, no entanto, ele preserva no começo
do poema: o poeta tem Roma como seu interlocutor, e se refere a ela como tu, sempre
na segunda pessoa; Ruas usa o pronome relativo “teus” depois do vocativo “oh! Roma”.
Isso, no entanto, fica confuso a partir da metade do poema traduzido, quando Ruas troca
o interlocutor por “perola”.
As aves mencionadas no terceiro e no quarto verso o pavão (pavo), a galinha-
d’Angola ou galinha da Numídia (gallina ... Numidica), e o capão da Gália (gallus
158
spado)
103
– são apropriadamente mantidas, assim como a descrição das plumas do
pavão como um tapete babilônico dourado. A descrição das plumas do pavão está
diretamente relacionada com outras imagens do poema, pelo que sua preservação ou a
consecução de uma correspondência é bastante importante.
A descrição da cegonha, que toma quatro versos do poema, é um ponto
especialmente sensível. Vimos que, além de também ser uma ave delicada – cujo
consumo é imoral, e isso condiz com o tema do poema –, mais detalhes que
complexificam sua representação. Seus primeiros predicados falam de uma
peculiaridade ligada ao comportamento migratório dessa ave: “grata peregrina hospita /
pietaticultrix (grata peregrina estrangeira, filha leal). Além de ser monogâmica,
acredita-se que, embora seja uma ave migratória, a cegonha sempre regressa ao seu
ninho de origem, a fim de cuidar dos pais e parentes mais velhos. O conceito romano de
piedade dizia respeito a lealdade familiar, por isso o poema chama a cegonha de
pietaticultrix (filha leal, literalmente “cultora da piedade”). Ruas encontra
correspondências bastante razoáveis até aí: “essa estrangeira benvinda, / Modelo da
filial piedade”, ainda que tenha incorrido num alongamento para explicar pietaticultrix.
A partir desse ponto, o poema começa a depravar a imagem da cegonha gradativamente,
primeiro dizendo que tem patas graciosas (gracilipes) e toca castanholas (crotalistria),
depois dizendo que é sinal de tempo quente (titulus tepidi temporis), e por fim dizendo
que fez ninho no caldeirão de perversão de Roma (nequitiae nidum in caccabo fecit
tuae). Ao representar a cegonha como uma dançarina cigana (figura estigmatizada na
época) e depois dizer que ela fez ninho no caldeirão da perversão romana, o que
contradiz a monogamia e a piedade filial, o poema acusa Roma de ter corrompido até
mesmo a pobre cegonha. Ruas, de alguma forma, encontra uma boa correspondência
para o último verso da descrição, o mais expressivo para o contraste
dignidade/depravação: “Fez hoje o seu ninho no antro da devassidão.” Entretanto, Ruas
simplesmente exclui o significado de crotalistria”, destruindo tanto o efeito gradativo
da depravação como a ambigüidade sugestiva do termo, que remete ao som que a
cegonha faz com o bico, ao mesmo tempo em que a compara a uma lasciva dançarina
cigana. Listamos no capítulo II vários detalhes que ligam a prosa ao poema, arranjando-
o no contexto narrativo. Por exemplo, enquanto Fortunata (“Dinheirista”) e Scintilla
(“Cintilante”) exibiam suas jóias uma para outra, Trimalchio e Habinnas reclamavam do
103
Aves delicadas, símbolo da ânsia luxuriosa e imoral pelo exótico provocada pelo comércio marítimo,
em ascensão na época de Nero como em toda a dinastia Júlio-Cláudia.
159
quanto elas lhes custavam, do quanto elas lhes eram dispendiosas. Ao longo da mesma
cena, Scintilla mostra seus brincos, chamando-os de crotalia (castanholas). Logo após a
declamação do poema em questão, Trimalchio fala do talento de Fortunata no cordax,
uma dança cigana, embora ela se negue a dançar. Assim, ao excluir o elemento
crotalistriade sua tradução, Ruas corta um dos principais ligamentos do poema com
o tecido narrativo.
Ruas traduz gracilipes (que tem patas graciosas) por “de andar gracioso”,
destruindo parcialmente uma conexão implícita no poema: assim como a cegonha voa
com suas patas graciosas para o caldeirão da perversão romana, a matrona dos versos 10
e 11 arrasta suas patas para uma cama alheia (“an ut matrona ... tollat pedes ... in strato
extraneo?”, acaso pra que a matrona arraste as patas pra cama alheia?). Comentamos no
capítulo II que era comum descrever a plumagem do pavão como se fosse cravada com
pedras preciosas; por isso no poema ele é descrito como sendo coberto por um áureo
tapete babilônico de plumas (“plumato amictus aureo Babylonico”). Isso tem relação
com toda a lúxuria provocada pelas jóias descritas ao longo do poema. Ruas mantém
uma importante proliferação de significantes, as várias menções a jóias (“pérola”,
“gemas marinhas”, “verde esmeralda”, “pedras de Cartago”), e ao invés de buscar uma
correspondência que preserve a relação cegonha-matrona, ele sugere uma relação mais
explícita entre o pavão e a matrona: assim como o pavão é coberto por um “dourado
manto, tal um tapete babilônico”, a matrona vai “cheia de luxúria, recostar-se sobre
cobertas exóticas”. Podemos entender isso como uma busca de correspondência à
essência da principal sutileza implícita no poema, que relaciona aves a mulheres dentro
de toda a alegoria crítica da luxúria romana.
A retórica sarcástica da frase nisi ut scintillet probitas e carbunculis(a menos
que a honra brilhe dos carbúnculos) é bastante comprometida com “Sem dúvida, para
que a tua probidade refulja à sua luz”, que já não sugere tanta ironia pela elocução usada
e pelo evidente enobrecimento pretendido com a escolha dos termos. A relação entre o
brilho do áureo tapete babilônico de plumas, que veste o pavão e aparece no começo, e
o brilho fino do tecido de vento (ventum textilem”) feito de névoa de linho (“nebula
linea”), que veste a noiva e aparece no final, contribuindo para a estruturação do poema,
é enfraquecido e praticamente destruído na tradução de Ruas, que simplesmente fala em
uma “esposa vestida de gaze tênue”.
Por fim, pode-se dizer que Ruas explorou timidamente o principal aspecto
formal do poema, a exploração abundante da aliteração, que provavelmente é uma
160
referência irônica ao estilo de Syrus, o poeta mímico admirado por Trimalchio, que o
prefere a Cícero.
104
Encontramos aliterações mais ou menos fortes em “Revestidos de
dourado manto, tal ... tapete”; “Modelo da piedade ... de ... andar”; “no inverno ...
anuncia ... quentes ... ninho no antro”; “cheia ... luxúria”; “recostar ... cobertas
exóticas”; “pedra ... preciosa”; “vestida ... tênue ... todos”. É difícil dizer, contudo, que
Ruas tenha priorizado a aliteração, ou talvez buscado um efeito correspondente ao
existente no poema de Syrus, isto é, o estranhamento causado pela notável
extravagância no uso da aliteração.
Tradução de Paulo Leminski
Luxo, luxúria, murcham os muros de Roma.
Pavões pascem nos jardins dos palácios,
Senhores envoltos em sedas da Ásia,
Aves exóticas da Numídia e da Índia,
Íbis, lânguidas, lúbricas, peregrinas,
A infâmia fez ninho entre nós.
Mas nós nos comprazemos em pérolas e safiras.
E as matronas buscam seu prazer adúltero,
sob o beneplácito dos maridos.
A esmeralda brilha mais que o vidro verde.
De que vale a opala, o ônix e a ametista,
se o ancestral pudor perdeu sua luz?
Para que vestir as noivas com um manto de seda?
Melhor mostrá-las nuas para o rol dos candidatos.
Mais uma vez Lemisnki faz jus a seu projeto de transcriação dos poemas,
concentrando-se no tom moralista que atravessa o poema de Syrus, reorganizando,
resignificando, excluindo e acrescentando os elementos do poema latino conforme sua
interpretação e sua vontade. Analisemos, portanto, que correspondências Leminski
buscou em sua transcriação. Ao que parece, logo no primeiro verso, com evidente
intencionalidade, o tradutor enfatiza a aliteração recorrente e abundante no poema de
Syrus: “Luxo, luxúria, murcham ... muros ... Roma”. Uns fortes outros fracos, seguem-
se outros casos ao longo do poema, incluindo alguns exemplos de paronomásia e
assonância: “Pavões pascem ... palácios”; Senhores envoltos em sedas da Ásia”; “Aves
exóticas”; “Numídia .. Índia”; “lânguidas, lúbricas”; “ninho entre nós ... nós nos”;
“brilha ... vidro verde”; “maridos ... esmeralda ... mais ... ametista”; “opala ... ônix ... o
... pudor perdeu ... Para”; “manto ... Melhor mostrá-las”. A aliteração abundante do
104
Na prosa, antes de recitar o poema, Trimalchio diz que julga o estilo de Syrus melhor que o de Cícero,
em seguida cita um poema bastante moralista repleto de vícios estilísticos: uma ironia nisso, ligada à
estupidez de Trimalchio.
161
poema recitado por Trimalchio é, sem dúvida, satisfatoriamente correspondida na
tradução de Leminski.
Assim como Ruas, Leminski destrói a alegoria da luxúria como um monstro que
devora Roma, devora pássaros bonitos e delicados, devora a dignidade das mulheres e a
honra dos homens. Na tradução de Leminski, as muralhas de Marte (Roma) não morrem
na boca da luxúria (“luxuriae rictu Martis marcent moenia”), e um pavão confinado não
é engordado para seu paladar (“tuo palato clausus pavo pascitur”); apenas “murcham os
muros de Roma”, e “pavões pascem nos jardins dos palácios”, o que representa uma
perda notável. Outro detalhe apagado constitui um aspecto fundamental da enunciação
no poema de Syrus: o discurso é todo dirigido a um interlocutor específico, Roma, que é
remetido sempre em segunda pessoa. Isso desaparece no poema de Leminski.
A seda trazida do oriente, aves, pedras e jóias exóticas diversas, tapetes da
babilônia, elementos ora implícitos ora explícitos no poema latino, são o veículo da
crítica que se faz à ânsia pelo exótico, à luxúria provocada pelo comércio marítimo na
época. Leminski entende isso e distingue muito bem esses elementos, tomando a
liberdade de dispô-los como quer em sua transcriação. Por exemplo, ao invés de falar
que o pavão é coberto por um áureo tapete babilônico de plumas, ele fala em “Senhores
envoltos em sedas da Ásia”. A referência à galinha da Numídia e ao capão da Gália
ressoa em “Aves exóticas da Numídia e da Índia”. Embora a França fique longe da
Índia, entendemos que claramente Leminski priorizou a rima interna, como
notamos antes. Além disso, o poema latino fala em uma baga (pérola) da Índia (“bacam
Indicam”), ou seja, Leminski não tirou a Índia da sua imaginação. A cegonha virou
“Íbis”, somente depravadas na representação: “lânguidas, lúbricas, peregrinas, / A
infâmia fez ninho entre nós.” Ou seja, a oposição dignidade-perversão, presente na
representação da cegonha, desaparece. Leminski parece ter percebido a insinuação de
lascívia que se faz com gracilipes crotalistria”, mas igual a Ruas apaga a menção às
castanholas, cortando uma ligação importante com o contexto narrativo do poema.
Os versos quo margaritam caram tibi, bacam Indicam? / an ut matrona ornata
phaleris pelagiis / tollat pedes indomita in strato extraneo?” (pra que te serve uma
pérola valiosa, uma baga indiana? acaso pra que a matrona enfeitada de fáleras do mar
arraste, indomável, as patas pra cama alheia?) são racionalizados, clarificados e de
alguma forma enobrecidos em “Mas nós nos comprazemos em pérolas e safiras. / E as
matronas buscam seu prazer adúltero, / sob o beneplácito dos maridos.” É interessante
observar dois pontos aí. Primeiro, Leminski claramente busca o sintetismo do verso
162
latino, um importante elemento a se corresponder. E segundo, o sarcasmo e o caráter
retórico da frase an ut matrona ... tollat pedes indomita in strato extraneo?” (acaso pra
que a matrona arraste, indomável, as patas pra cama alheia?) vai parar nos versos finais
da tradução de Leminski: “Para que vestir as noivas com um manto de seda? / Melhor
mostrá-las nuas para o rol dos candidatos.” É realmente curioso observar como
Leminski dissocia as sutilezas do poema e, às vezes descartando, às vezes
reaproveitando, reorganiza-as em sua tradução.
Tradução de Alex Marins
Em abismos de prazer, desmoronam-se os baluartes de Roma.
Para que os degustes, engordam-se os belos pavões engaiolados,
Preparam-nos com penas como com tecidos de ouro da Babilônia,
E assim a guiné, e assim o capão.
Até mesmo a cegonha, viajora tão bem-vinda,
Pássaro de exílio no inverno, elegante, tagarela,
Que nos traz as novas de dias mais quentes,
Aninha-se agora em tua maldita panela.
Que pérola é inatingível, que fruto da Índia, para ti,
Para que tua esposa, coberta de tesouros marinhos,
Possa meter barbaramente na cama de um estranho?
De que serve a verde esmeralda, precioso vidro,
Para que brilham as gêmeas de Cartago,
Se a honestidade não refulge entre tais carbúnculos?
Será direito uma noiva vestir-se em gazes leves como o vento,
E depois vir nua a público, envolta em musselina?
Marins consegue poucas aliterações significativas em sua tradução: “abismos de
... desmoronam ... baluartes de Roma”; “degustes, engordam ... engaiolados”; “com ...
como com”; “elegante, tagarela”. Além do uso extravagante da aliteração, outra vez a
alegoria da luxúria como um monstro é destruída pela tradução. Em lugar das muralhas
de Marte morrerem (desfazerem-se) na boca da Luxúria, os baluartes de Roma
desmoronam-se em abismos de prazer. A idéia não é mal vertida, no entanto a alegoria
é, logo de início, destruída, ou talvez distorcida: o interlocutor continua sendo tu, mas
também pode ser qualquer pessoa, não necessariamente Roma ou sua Luxúria. Após
dizer que "Em abismos de prazer, desmoronam-se os baluartes de Roma", o poema
traduzido diz “Para que os degustes, engordam-se os belos pavões engaiolados”. Uma
vez não expressa a idéia de que a luxúria tem boca, o leitor não reconhece a alegoria, e
pode pensar que o interlocutor seja simplesmente algum conviva de Trimalchio. O
poema latino oferece essa possibilidade, mas também oferece uma outra, que é mais
interessante e criativa.
163
Os versos tuo palato clausus pavo pascitur / plumato amictus aureo
Babylonico, / gallina tibi Numidica, tibi gallus spado (um pavão aprisionado é
engordado para o teu paladar coberto por um áureo tapete babilônico de plumas; uma
galinha da Numídia a ti, a ti um capão da Gália) na tradução de Marins viram “Para que
os degustes, engordam-se os belos pavões engaiolados, / Preparam-nos com penas como
com tecidos de ouro da Babilônia, / E assim a guiné, e assim o capão.” Por mais que
Trimalchio seja chegado a bizarrices culinárias, é muito difícil imaginar que aves sejam
preparadas (cozinhadas) com penas e tapetes de ouro. Os elementos existem: as aves
exóticas estão para ser degustadas, mas uma evidente impropriedade na interpretação de
Marins compromete significativamente essa parte do poema.
Na representação da cegonha a oposição dignidade-perversão é destruída. O
adjetivo pietaticultrix desaparece, e gracilipes crotalistria é traduzido por
“elegante, tagarela”. Com “elegante”, desfaz-se a conexão entre as patas da cegonha,
que contradiz sua piedade filial fazendo ninho no caldeirão da perversão romana, e as
patas da matrona infiel, que se deita na cama de um estranho. Com “tagarela”, perde-se
a associação com lascívia das dançarinas ciganas, e consequentemente com seus ecos na
prosa (o cordax e os brincos de Scintilla, chamados de crotalia). No entanto,
comentamos no capítulo II que a associação feita entre aves e mulheres no poema
também existe na prosa. Pouco antes de Trimalchio recitar o poema, um conviva
sentado ao lado de Encolpius tinha chamado a esposa de Trimalchio, Fortunata, de pica
pulvinaris (gralha de sofá), sugerindo que ela fosse ociosa e falante. Observamos que a
cegonha é chamada de crotalistria(que toca castanholas) por um motivo primário,
evidente, que se refere ao som a ave faz com o bico,
105
e por um motivo secundário, que
associa a ave às lascivas dançarinas ciganas. Aparentemente, Marins considerou o
motivo primário do adjetivo “crotalistria”, e o traduziu por um termo que também liga a
cegonha à prosa, mais especificamente à personagem Fortunata. Com efeito, podemos
afirmar que Marins alcançou uma correspondência funcional para crotalistria”, isto é,
manteve a função que o termo tinha de ligar o poema diretamente à prosa, com
“tagarela”.
No verso quo margaritam caram tibi, bacam Indicam?”, o poema questiona o
valor de certas luxúrias como uma pérola ou uma baga da Índia. Marins mantém os
elementos, porém mais uma vez compromete a retórica do poema com sua tradução:
105
A cegonha não pode cantar, por isso só emite sons batendo o bico.
164
“Que pérola é inatingível, que fruto da Índia, para ti”. O mesmo acontece com o verso
nisi ut scintillet probitas e carbunculis(a menos que a honra brilhe dos carbúnculos),
cujo sarcasmo e força retórica desaparecem em “Se a honestidade não refulge entre tais
carbúnculos?”
Antes lembramos que a menção à matrona no poema tem uma importância
perante toda a temática da infidelidade no Satyricon. Mais adiante na narrativa, por
exemplo, após esse poema, aparece o conto milésio da matrona de Éfeso, um dos
episódios mais representativos da obra. Além da matrona de Éfeso, outras matronas
também aparecem na história, sempre ligadas a algum tipo de imoralidade. A matrona
do poema é vinculada (pela relação entre as patas) à cegonha que também trai sua
piedade filial. Portanto, no poema, assim como em toda a obra, um discurso sobre a
infidelidade ligado à matrona, uma das instituições sociais mais moralmente respeitadas
da Roma Antiga. Ao traduzir matronapor “esposa” (esposa não contempla o valor
social de matrona), e desfazer a conexão dela com a cegonha que trai sua lealdade
familiar, Marins destrói, assim, parte de uma rede subjacente de significados que vai
muito além de poema, comprometendo uma sátira de costumes bastante direcionada e
particularmente forte.
Tradução de Sandra Braga Biachet
O desejo de luxo enfraquece as muralhas com a gargalhada de Marte.
Para satisfazer teu paladar; mantém-se em cativeiro um pavão,
coberto por suas plumas de ouro de Babilônia,
para ti, a galinha da Numídia, para ti, o galo eunuco.
Mesmo a cegonha, esse importado bem-acolhido exemplo de dedicação materna
do estrangeiro, com seus pés graciosos, tocadora de castanhola,
ave em exílio do inverno, sinal de tempos arrefecidos,
acabou de fazer seu ninho de malícia em nosso lar.
Que fim levou teu estimado tesouro, a pérola indiana?
Estará servindo para que a indomável matrona, enfeitada com jóias marinhas,
levante as pernas em uma cama importada?
A que fim se destinou a verdejante esmeralda, esse precioso vidro?
Para que desejas as pedras brilhantes de Cartago?
Que outra razão haveria, senão que tua probidade ostente o brilho dos rubis?
É justo que uma mulher casada ponha sobre si roupas tecidas com vento,
que se exponha nua na frente de todos usando uma névoa de linho?
Bianchet conseguiu algumas aliterações, porém pela semelhança fraca ou pela
distância entre os fonemas na maioria dos casos, não é possível dizer que são aliterações
expressivas: “muralhas ... Marte”; “satisfazer teu ... mantém ... cativeiro pavão”;
“coberto ... Babilônia”; “galinha ... galo ... cegonha”; “importado ... acolhido ... de
dedi
cação”; estrangeiro ... seus pés graciosos ... castanhola”; “exílio ... sinal ...
165
arrefecidos ... malícia”; “indomável matrona ... marinhas .. uma cama”; se destinou ..
esmeralda, esse precioso ... desejas ... brilhantes”; “probidade brilho rubis”; “nua na ...
névoa”. Isso demonstra que a tradutora não se ateve a esse aspecto, assim como, até
aqui, nota-se que em geral ela não se ateve aos aspectos formais dos poemas, que
frequentemente contêm sutilezas importantes.
Os elementos do primeiro verso foram bastante embaralhados, o que
comprometeu tanto sua idéia mais óbvia (a de que Roma é depreciada pelo luxo) como
a alegoria da luxúria: “O desejo de luxo enfraquece as muralhas com a gargalhada de
Marte”. A interpretação de Bianchet até seria sintaticamente possível (embora
contextualmente incabível) se não fosse pelo verbo marcent (enfraquecem-se,
desfazem-se, morrem) que implica o sujeito moenia (muralhas). rictué traduzido por
gargalhada, e a boca não é da luxúria, mas de Marte, o que condena o arranjo da
alegoria.
A menção às aves exóticas é razoavelmente preservada, mas no primeiro verso
da representação da cegonha, Bianchet incorre num alongamento desnecessário, e
distorce algumas noções ao invés de dar-lhes correspondência semântica precisa, o que
justificaria ou pelo menos explicaria o alongamento: “Mesmo a cegonha, esse
importado bem-acolhido exemplo de dedicação materna / do estrangeiro”. O termo
“importado” foi acrescentado sem razão, e “exemplo de dedicação materna” não condiz
com o pietaticultrix”, pois a piedade da cegonha, de acordo com o conceito romano de
piedade e de acordo com a crença sobre os hábitos dessa espécie, é uma piedade de filho
para pai, e não o contrário. Todavia, os adjetivos gracilipes crotalistria foram
preservados literalmente, o que contribui para manter as duas conexões implícitas que
esses termos sugerem.
A infidelidade da matrona, cuja importância perante o Satyricon recém
comentamos, inexiste na tradução de Bianchet, que traduz strato extraneopor “uma
cama importada”. Guiados pelo contexto, somos levados a entender que extraneoé
um dativo, dando a strato extraneoo sentido de uma cama alheia, a cama de um
estranho. É admissível que Bianchet tenha traduzido tollat pedes ... in” por “levante as
pernas em”,
106
mas é difícil admitir que strato extraneotenha o sentido de cama
106
tollat(do verbo tollo, tollere) pode ter tanto o sentido de levar como o de levantar. A preposição in,
pelas regras clássicas, se reger ablativo (como é o caso de strato) tem o sentido de “em”, mas se reger
acusativo, tem o sentido de “para”. Com base nessas regras, tollat pedes in stratoseria “levante os pés
numa cama”, mas Boyce (1991) argumenta que em usos vulgares de in regendo ablativo, eventualmente é
observado o sentido de “para”, ao invés de “em”. No caso em questão isso é perfeitamente possível.
166
importada”, considerando toda a lógica do discurso e a temática que o envolve. Além
disso, na tradução de Bianchet, assim como na de Marins, a retórica e o sarcasmo do
verso nisi ut scintillet probitas e carbunculis (a menos que a honra brilhe dos
carbúnculos) desaparece. Bianchet o traduz por “Que outra razão haveria, senão que tua
probidade ostente o brilho dos rubis?”, incorrendo outra vez num alongamento danoso.
Tradução de Cláudio Aquati
Na fauce do prazer ilimitado
desmoronam as muralhas de Marte.
Para a gula de alguns em gaiolas engorda-se o pavão
vestido de uma plumagem dourada qual tapetes da Babilônia.
Para outros, engorda-se uma galinha da Numídia;
para outros, ainda, engorda-se um capão das Gálias.
Até mesmo a cegonha – grata viajante estrangeira,
paladina da piedade, pés delgados, tocadora de castanholas,
ave que expulsa o inverno, sinal de tempos quentes
– fez recentemente seu ninho num caldeirão de sevícias.
Preciosa, qual é a finalidade de uma pérola?
A que se reserva a margarita indiana?
Acaso para que a matrona enfeitada de adornos do mar
arraste irrefreável seus pés para uma coberta alheia?
Para que a verde-esmeralda, vidro precioso?
Para que as ígneas pedras de Cartago?
Será para que do carbúnculo brilhe honradez?
Convém vestir uma mulher casada
com um tecido leve como o vento,
e expô-la nua ao público numa roupa fina como a névoa?
Aquati é o único que respeita a integridade do primeiro verso, contribuindo para
a sutil e crucial alegoria que estrutura o poema. A tradução de rictupor “Na fauce” é
perfeitamente cabível, assim como a de luxuriae por “do prazer ilimitado”. Além
disso, a preservação do epíteto Martis ... moenia (muralhas de Marte) é bastante
conveniente. São, no entanto, poucas as aliterações na tradução que produzem efeitos
razoáveis, em respeito à principal qualidade formal do poema de Syrus: “desmoronam
... muralhas ... Marte”; gula ... alguns ... gaiolas engorda; “paladina da piedade, pés
delgados, tocadora de”; “enfeitada de adornos do”; “arraste irrefreável”. De qualquer
forma, a escolha de “arraste” e “irrefreável” para a tradução de tollate indomita
parece, ao menos, ter sido intencional, no sentido de conseguir algum efeito aliterante.
Embora tenha mantido a integridade do primeiro verso, Aquati não preservou a
enunciação do poema, cuja voz se dirige a uma segunda pessoa (tu). Isso compromete
Bianchet assume as regras clássicas, porém julgamos mais condizente admitir, aqui, o desvio vulgar da
regra, e por isso vimos propondo a interpretação “acaso pra que a matrona arraste, indomável, as patas pra
cama alheia?” para “an ut matrona ... tollat pedes indomita in strato extraneo?
167
um pouco o caráter acusatório do poema, por dissolver o objeto de seu moralismo
(Roma) em várias pessoas:
Para a gula de alguns em gaiolas engorda-se o pavão (...)
Para outros, engorda-se uma galinha da Numídia;
para outros, ainda, engorda-se um capão das Gálias.
Todavia, não obstante essa alteração aparentemente consciente, Aquati conserva
todos os elementos centrais do poema as aves, pedras e jóias exóticas diversas, os
tapetes da babilônia e a seda trazida do oriente – os quais, como dissemos, são o veículo
da crítica que se faz à ânsia pelo exótico, à luxúria provocada pelo comércio marítimo
na época. Estão no poema de Aquati o pavão, cuja plumagem é dourada – como
imaginavam os antigos e se assemelha a tapetes da Babilônia, a galinha da Numídia e
o capão das Gálias, a cegonha piedosa de “pés delgados, tocadora de castanholas”, “a
margarita indiana”, “a verde-esmeralda”, as “pedras de Cartago”, além da seda “leve
como o vento” e “fina como a névoa”. Com esse cuidado na preservação das qualidades
dessas luxúrias, Aquati também logra preservar as sutis ligações internas e externas do
poema, as quais já comentamos reiteradamente:
- a cegonha lasciva e as matronas fúteis de Trimalchio e Habinnas (Fortunata e
Scintilla);
- a cegonha traidora e a matrona infiel do poema;
- o brilho e a exuberância da plumagem do pavão e o contraste estruturante com
o brilho, a suavidade e a perversa transparência da seda da noiva;
A gradação que vai da dignidade à perversão na descrição da cegonha persiste
plausivelmente na tradução. E ademais, diferente dos outros tradutores, Aquati
consegue sarcasmo, retórica e síntese relativamente correspondentes na tradução de
nisi ut scintillet probitas e carbunculis”: “Será para que do carbúnculo brilhe
honradez?”.
5.1.4. Poeta sum
Recordando, no capítulo 83, em sua primeira aparição, Eumolpus, o caricato e bufônico
representante da poesia, após afirmar-se poeta, recita o primeiro de seus poemas:
168
qui pelago credit, magno se faenore tollit;
qui pelago et castra petit, praecingitur auro;
vilis adulator picto iacet ebrius ostro,
et qui sollicitat nuptas, ad praemia peccat:
sola pruinosis horret facundia pannis
atque inopi lingua desertas invocat artes.
Como observamos, esses primeiros versos de Eumolpus remetem a dois outros
poemas: aquele que abre o livro de Tíbulo, e a primeira das Odes de Horácio. Tanto o
poema de Horácio como o de Tíbulo listam uma série profissões lucrativas em oposição
à condição pobre do poeta. Assim como estes, o poema de Eumolpus também relaciona
profissões lucrativas (dignas ou não), lamentando ao final o destino ingrato do homem
das letras. Essa evocação da tradição literária e outros significativos detalhes na prosa,
explicados com profundidade no capítulo II, nos levam a entender que Petrônio
representa seu personagem como se fosse um livro de poesia vivificado, personificado.
O próprio Eumolpus tem consciência disso, mas parece brincar com o real e o
metafórico sempre que se pronuncia.
Um detalhe formal antes enfatizado, que corrobora a idéia de um livro de poesia
que entra em cena na forma de um personagem, é a utilização do sermo, a modalidade
discursiva típica da sátira romana. Sermo pode significar fala, conversa, conversação,
diálogo, discurso, sermão etc. Isto é, denota um discurso de caráter dialógico,
dialogado. O poema de Eumolpus, arranjado em hexâmetros, é de fato a primeira
conversa que ele tem com o narrador da história. Ou seja, o livro de poesia
personificado fala pela primeira vez em sermones versificados; nada mais propício para
o jogo metaliterário que se faz aí.
Tradução de Miguel Ruas
O que confia no mar grandes lucros alcança;
E o cinturão de ouro exibe o que a guerra enfrenta;
Ébrio, o adulador recostado vive sobre púrpura bordada;
O que corrompe as matronas, do adultério recebe o prêmio;
Somente a eloqüência tirita sob os trapos gelados
E com voz miserável invoca em vão as artes desertadas.
O sermo é considerado um gênero literário didático, e por isso implica
uma eloqüência fácil, embora não iniba idéias complexas. Ruas preserva plenamente a
lista de profissões lucrativas, e não compromete assim a idéia básica do poema:
contrapor a poesia às demais profissões, no que diz respeito à lucratividade, a despeito
da dignidade, numa atitude satírica em relação à própria poesia. No entanto,
169
especialmente no segundo verso, o tradutor tende ao enobrecimento, pela construção
inusitada e um pouco empolada. Os versos de Eumolpus são simples, têm um
encadeamento bastante lógico e compreensível, típico do modo de falar de quem
conversa com outra pessoa: qui pelago credit, magno se faenore tollit; / qui pelago et
castra petit, praecingitur auro (quem crê no mar, tira dele grande proveito; quem
busca guerras e castros, é coberto de ouro). Ao dizer “E o cinturão de ouro exibe o que a
guerra enfrenta”, além de trocar a simplicidade da expressão praecingitur auro
coberto de ouro) pela sofisticada metáfora do “cinturão de ouro”, Ruas opta por uma
inversão tipicamente poética, que no entanto vai contra a didática do sermo.
Na tradução do quarto verso dois pontos a serem observados. Primeiro, existe
certa impropriedade na tradução de nuptas por matrona. Nem toda noiva ou esposa era
uma matrona na Roma Antiga. Como dissemos, a figura da matrona ainda que tenha
sua dignidade satirizada na obra de Petrônio, e por isso a tradução de Ruas não é tão
comprometedora era um signo de respeito, uma instituição moral naquela sociedade;
ser considerada matrona era mais que ser simplesmente uma esposa. Segundo, ao
traduzir ad praemia peccatpor “do adultério recebe o prêmio” Ruas incorre numa
clarificação. O verso diz et qui sollicitat nuptas, ad praemia peccat(e quem alicia a
mulher alheia, peca pelo prêmio).
107
A expressão ad praemia peccat pode ser
entendida como “peca, mas sai no lucro” ou “peca pra levar o prêmio”, que é a mulher;
parece ser essa a idéia. O pecado, que estava implícito no poema latino, é explicitado na
tradução. Com isso, Ruas ainda acaba por alongar demais seu verso, correndo risco de
afetar outra qualidade do verso original: o hexâmetro. Vejamos, entretanto, se isso
acontece:
- - - / - - / || / - / - - / -
O que confia no mar grandes lucros alcança;
- - - / - / - / - - / - / -
E o cinturão de ouro exibe o que a guerra enfrenta;
/ - || - - - / - - / - / - - - / - - - / -
Ébrio, o adulador recostado vive sobre púrpura bordada;
- - - / - - / - || - - / - - / - / -
O que corrompe as matronas, do adultério recebe o prêmio;
- / - - - / - - / - - - / - - / -
Somente a eloqüência tirita sob os trapos gelados
- - / - - / - - / - / - / - - - / -
E com voz miserável invoca em vão as artes desertadas.
107
Literalmente, “pelos prêmios”.
170
Embora a tradição de poesia portuguesa não considere pés de verso, mas sim
sílabas poéticas, vale a pena levar em conta a aparente tentativa de Ruas de
corresponder a métrica dos versos latinos em português, segundo os padrões latinos, isto
é, considerando pés. Se observarmos com atenção, veremos que o tradutor, de alguma
maneira, preocupa-se com isso:
Nº. de
pés
- - - / | - - / || / - | / - | - / -
- - - / | - / | - / | - - / - | / -
/ - || - - - / | - - / - | / - | - - / - | - - / -
- - - / | - - / - || - - / - | - / - | / -
- / | - - - / | - - / - | - - / - | - / -
- - / | - - / | - - / | - / | - / - | - - / -
5
5
6
5
5
6
péon (4ª) | anapesto || troqueu | dátilo | troqueu
péon (4ª) | jambo | jambo | péon (3ª) | troqueu
troqueu || péon (4ª) | péon (3ª) | troqueu | péon (3ª) | péon (3ª)
péon (4ª) | péon (3ª) || péon (3ª) | anfíbraco | troqueu
jambo | péon (4ª) | péon (3ª) | péon (3ª) | anfíbraco
anapesto | anapesto | anapesto | jambo | anfíbraco | péon (3ª)
Os versos de Ruas têm sempre 5 ou 6 pés. Assim, em relação ao metro, é
possível enxergar alguma proximidade entre os versos traduzidos e os versos latinos.
Todavia, no poema traduzido, a acentuação é bastante irregular, enquanto que no poema
latino predominam basicamente troqueus (/ -). Considerem-se os dois primeiros versos,
por exemplo:
/ - | / - | / - | / - | - - / - | / -
qui pelago credit, magno se faenore tollit;
/ - | / - - | / - | / - || - / - - | / -
qui pelago et castra petit, praecingitur auro;
Em relação ao ritmo, portanto, que é determinado principalmente pela posição
dos acentos fortes, não se pode dizer há alguma correspondência. Em outras palavras, há
certa proximidade, ainda que comprometida pelos pentâmetros, no metro, mas não no
ritmo propriamente. Talvez possa haver certo exagero analítico nessa avaliação formal
do poema, ou por outro lado uma tentativa forçada de encontrar correspondências,
porém isso tem um motivo razoável: dada a dificuldade que vimos observando até aqui
de encontrar correspondências formais nas traduções, faz-se necessário refletir e abrir o
leque de possibilidades de correlação nesse nível da linguagem, considerando as
diferenças entre as tradições poéticas do latim e do português, o enorme intervalo
temporal que separa o Satyricon das traduções brasileiras, e o estado das culturas
poéticas daquele e deste momento. Ruas, bem como Leminski, cada qual a seu modo,
parece ousar a fim de encontrar na forma de seus poemas alguma possibilidade que
171
remeta ao poema latino, sem perder de vista o compromisso com o plano do significado,
além de outros níveis importantes.
Tradução de Paulo Leminski
Quem se faz ao mar,
acumula mil tesouros.
Quem escolhe a via das armas,
anda coroado de ouro.
O parasita dos magnatas
recebe grandes heranças.
E o gigolô das altas damas
veste-se da mais fina seda.
Só o poeta, envolto em farrapos,
não tem onde cair morto.
Definitivamente, o princípio assumido por Leminski de priorizar em sua
tradução uma linguagem simples, ágil e bem temperada, tal como ele enxerga a
linguagem de Petrônio, combina perfeitamente com o sermo romano. A linguagem fácil
de Leminski e a preservação da estrutura do discurso do poema latino contribuem em
muito para a correspondência desse aspecto. A oposição lucro, prazer, riqueza etc.
versus miséria, existente entre as profissões (ou ocupações) descritas e a poesia,
permanece na tradução de Leminski, que apenas toma a liberdade de trocar o pecador
que alicia a mulher alheia, mas sai no lucro, pelo “gigolô das altas damas”, que se veste
de roupa fina. Dessa forma, cabe constatar que Leminski, até aqui, mantém dois
aspectos fundamentais desse poema: a locução do sermo, e a lista de profissões
contrapostas à poesia, a qual remete à tradição literária (especialmente a Horácio e
Tíbulo) ao mesmo tempo em que condiz com a encenação histriônica de Eumolpus, que
sem se dar o respeito, protesta por sua dignidade de poeta.
Nº. de sílabas
/ - / - / 5
Quem se faz ao mar,
- - / - / - / - 7
acumula mil tesouros.
/ - / - / - / - 7
Quem escolhe a via das armas,
/ - - / - - / - 7
anda coroado de ouro.
- - - / - - - / - 8
O parasita dos magnatas
- / - / - - / - 7
recebe grandes heranças.
- - - / - - - / - 8
E o gigolô das altas damas
/ - - - / / - / - 8
172
veste-se da mais fina seda.
/ - / - / - - / - 9
Só o poeta, envolto em farrapos,
/ / / - - / / - 7
não tem onde cair morto.
Perante este poema e perante o que observamos até aqui, podemos dizer que
Leminski não busca uma correspondência matemática, exata, em suas traduções; ele
parece buscar uma correspondência mais geral, se assim podemos chamar. Seus versos,
na maioria das vezes, poderiam ser considerados livres, o que não significa que não
tenham ritmo ou mesmo relação com seus correspondentes no Satyricon. Assim como
faz em outros casos, nessa tradução Leminski também aumenta o número de versos,
aparentemente com um propósito bem direcionado: garantir que todos os versos sejam
curtos,
108
em suposta alusão ao sintético verso latino. Além disso, como enfatizamos na
escansão, assim como os versos de Eumolpus, os de Leminski têm um ritmo trocaico.
Versos como “Quem se faz ao mar”, “Quem escolhe a via das armas” e “Só o poeta
envolto em farrapos”, por exemplo, são inteira ou predominantemente compostos por
troqueus. Assim, à sua maneira, Leminski obtém correspondências formais na tradução,
contemplando parcialmente as três sutilezas do poema.
Tradução de Alex Marins
Quem confia no acaso do mar, amontoa lucro imenso;
Quem segue as armas e a guerra, pode cingir-se de ouro;
O adulador barato deita-se ébrio em leito púrpura;
O devasso ganha dinheiro com o adultério.
Só a eloqüência treme esfarrapada no inverno,
E, desvalida, invoca as artes desprezadas.
Marins mantém a relação de profissões vantajosas contrapostas à miséria do
poeta, ainda que à custa de acréscimos e alterações: a idéia de acaso que aparece em
“acaso do mar” não tem nenhum correspondente no poema latino, e além disso
defendemos que o prêmio em “ad praemia peccatnão é um prêmio em dinheiro, mas a
própria mulher alheia aliciada pelo pecador. O acréscimo de “acaso” é sem razão, mas
relevável. a interpretação do quarto verso é um pouco comprometedora, e tem algum
paralelo com a interpretação de Leminski: um devasso que ganha dinheiro com o
adultério só pode ser entendido como um prostituto. Trate-se de um prostituto ou de um
aliciador de mulheres casadas, em ambos os casos lucro e imoralidade, como reza o
sermo de Eumolpus, mas independente disso, tanto Leminski como Marins
108
Versos de até 9 sílabas poéticas são considerados versos curtos na tradição de poesia portuguesa.
173
racionalizaram o verso e clarificaram a interpretação que tiveram dele. Tivessem
mantido os elementos do poema latino, dariam ao leitor a chance de interpretar o
significado de “prêmio”. Este é o ponto.
De alguma forma, Marins usa uma elocução adequada para o sermo, não
comprometendo o estilo discursivo, exceto em relação a um detalhe. No poema latino, o
uso de “qui” no começo do primeiro, segundo e quarto verso, dá constância ao discurso,
sugere a idéia de uma listagem pela repetição do termo, e com isso ainda gera a
expectativa de uma quebra dessa constância. Essa quebra acontece nos dois últimos
versos, cuja conotação inversa conclui o modelo dialético do sermo.
109
Tanto Leminski
como Marins traduzem o qui(quem) somente nos dois primeiros versos, e o ignoram
no quarto verso, o que compromete os efeitos da expectativa e da quebra, que fecha o
poema. De qualquer maneira, esse detalhe perdido – que pode ser visto como um
detalhe formal é bastante sutil e não apaga a polaridade do poema, que nas duas
traduções é mantida pelo conteúdo dos versos, razoavelmente traduzido.
/ - / - - / - - / || - - / - / - / -
Quem confia no acaso do mar, amontoa lucro imenso;
/ / - / - - / - || / - - / - - / -
Quem segue as armas e a guerra, pode cingir-se de ouro;
- - - / - / - / - - / - / - / - -
O adulador barato deita-se ébrio em leito púrpura;
- - / - / - - / - \ - / -
O devasso ganha dinheiro com o adultério.
/ - - / - / - - - / - - / -
Só a eloqüência treme esfarrapada no inverno,
- - - / - / - / - - - / -
E, desvalida, invoca as artes desprezadas.
Indo contra as convenções da poesia portuguesa, e analisando o poema de
Marins como fizemos com o de Ruas, segundo os padrões latinos, poderíamos enxergar
a estrutura métrica do poema traduzido da seguinte maneira:
Nº. de
pés
/ - | / - - | / - | - / || - - / - | / - | / -
/ / - | / - - | / - || / - - | / - - | / -
- - - / | - / - | / - - | / - | / - | / - -
- - / - | / - - | / - | \ - | / -
/ - - | / - | / - | - - / - | - / -
- - - / | - / | - / - | - - / -
7
6
6
5
5
4
troqueu | dátilo | troqueu | jambo || péon (3ª) | troqueu | troqueu
antibáquio | dátilo | troqueu || dátilo | dátilo | troqueu
péon (4ª) | anfíbraco | dátilo | troqueu | troqueu | dátilo
péon (3ª) | dátilo | troqueu | troqueu | troqueu
dátilo | troqueu | troqueu | péon (3ª) | anfíbraco
péon (4ª) | jambo | anfíbraco | péon (3ª)
109
De fato, essa oposição antítese-tese é fundamental na caracterização do sermo, um estilo discursivo
absolutamente dialógico.
174
Nessa leitura do poema já predominam troqueus, e o número de pés varia
entorno de 6, aproximando-se dos hexâmetros do poema latino. No entanto, nos três
últimos versos, se dividirmos os péons de acento na sílaba em um pirríquio e um
troqueu, e o péon de acento na 4ª sílaba em um pirríquio e um jambo o que é possível
–, a escansão ficaria assim:
Nº. de
pés
/ - | / - - | / - | - / || - - / - | / - | / -
/ / - | / - - | / - || / - - | / - - | / -
- - - / | - / - | / - - | / - | / - | / - -
- - | / - | / - - | / - | \ - | / -
/ - - | / - | / - | - - | / - | - / -
- - | - / | - / | - / - | - - | / -
7
6
6
6
6
6
troqueu | dátilo | troqueu | jambo || péon (3ª) | troqueu | troqueu
antibáquio | dátilo | troqueu || dátilo | dátilo | troqueu
péon (4ª) | anfíbraco | dátilo | troqueu | troqueu | dátilo
pirríquio | troqueu | dátilo | troqueu | troqueu | troqueu
dátilo | troqueu | troqueu | pirríquio | troqueu | anfíbraco
pirríquio | jambo | jambo | anfíbraco | pirríquio | troqueu
Neste caso, ainda que o ritmo dos versos de Marins continue irregular, pode-se
dizer que uma predominância de troqueus, como no poema latino, e além disso, o
poema termina todo com 6 pés em cada verso, à exceção do primeiro, que tem 7. Essa
leitura, assim como a que fizemos do poema de Marins, não é válida enquanto análise
de poesia em língua portuguesa, pois nossas convenções não admitem pés de verso, mas
somente sílabas poéticas. No entanto, julgamo-la válida para verificar a suposta
tentativa do tradutor de reproduzir as qualidades formais do poema latino. E nesse
sentido, pelo que recém observamos, parece evidente que Marins teve em conta o ritmo
trocaico bem como os 6 pés dos versos de Eumolpus. Logo, a despeito do acréscimo, da
clarificação e da perda que examinamos antes, podemos dizer que Marins contemplou
razoavelmente as sutilezas desse poema: a imitação dos poemas de Horácio e Tíbulo, a
elocução e o modelo dialógico do sermo, e os hexâmetros trocaicos, que dão um efeito
artificial à fala e à encenação de Eumolpus.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Quem se confia ao mar se enriquece com o grande lucro;
quem busca as batalhas e o serviço militar é cingido de ouro,
o desprezível bajulador se deita bêbado em púrpura bordada,
e quem seduz as mulheres casadas tropeça em prêmios.
Somente a eloqüência treme em farrapos gelados,
e, com a língua indigente, invoca as artes abandonadas.
Apesar da leve redundância presente em “enriquece com o grande lucro”,
inexistente no poema latino, a tradução de Bianchet não compromete a lista de
ocupações vantajosas, a não ser em um ponto: a tradução de ad ... peccat(peca por)
175
por “tropeça em”. Isso, sem dúvida, confunde o sentido do verso, que é mostrar que
mesmo um imoral pode ter vantagem, apesar do pecado.
A eloqüência fácil, didática, do sermo, não encontra plena correspondência na
tradução, que por vezes parece ir na direção contrária, buscando alguma construção
inusitada, como “Quem se confia ao mar”, ou vocábulos desusados, estritamente
literários, como “cingido”. Todavia, o modelo dialógico do sermo não é em nada
comprometido.
/ - - / - / || - - / - - / - / -
Quem se confia ao mar se enriquece com o grande lucro;
/ / - - / - - - / - - - / || / - / - - / -
quem busca as batalhas e o serviço militar é cingido de ouro,
- - - / - - - - / - / - / - - / - - - / -
o desprezível bajulador se deita bêbado em púrpura bordada,
- / - / - - / - - / - || - / - / -
e quem seduz as mulheres casadas tropeça em prêmios.
- / - - / - / - - / - - / -
Somente a eloqüência treme em farrapos gelados,
- - / - - / - / - / - - - - / -
e, com a língua indigente, invoca as artes abandonadas.
/ - = troqueu
Bianchet, outra vez, compõe apenas versos longos e, como enfatizamos na
escansão, não existe nenhuma busca intencional de correspondência em relação ao ritmo
troicaco. Poderíamos supor cesuras ( | ) e verificar a quantidade de hipotéticos pés de
verso no poema de Bianchet, mas seria duplamente forçado levar em conta esse dado,
primeiro porque a tradutora não demonstra ter se preocupado com o ritmo e com a
medida dos versos, e segundo porque a divisão em pés é inconveniente em se tratando
de poesia em língua portuguesa, tendo sido adota pouco somente de modo
experimental e porque a possibilidade de considerar a quantidade de pés era explícita.
Assim, a terceira sutileza do poema, que diz respeito ao contraste coloquial-formal,
existente pela justaposição do sermo aos hexâmetros trocaicos é apagada na tradução.
Tradução de Cláudio Aquati
Quem confia no oceano colhe grandes proveitos.
Quem busca as batalhas e os acampamentos militares
cobre-se de ouro.
O vil adulador dorme bêbado em púrpura bordada,
e quem procura mulheres casadas
tem seu erro transformado em recompensa.
Somente a eloqüência passa frio sob panos rotos
e, com seu pobre discurso, invoca as artes abandonadas.
176
Aquati fica bem próximo do vocabulário do poema latino, sem fazer recurso a
grandes alterações ou clarificações, e mantém uma linguagem simples, conservando
tanto a eloqüência e o modelo dialógico do sermo, quanto a lista de ocupações
vantajosas contrapostas à miséria da poesia, que imita os poemas de Horácio e Tíbulo.
Com isso, é possível dizer que o tradutor manteve duas das sutilezas satisfatoriamente.
/ - / - - / - || / - / - - / -
Quem confia no oceano colhe grandes proveitos.
/ / - - / - - - - - / - - - / -
Quem busca as batalhas e os acampamentos militares
/ - - - / -
cobre-se de ouro.
- / - - - / || / - / - - / - - - / -
O vil adulador dorme bêbado em púrpura bordada,
- / - / - - / - - / -
e quem procura mulheres casadas
/ - / - - - / - - - / -
tem seu erro transformado em recompensa.
- / - - - / - / - / - / - / -
Somente a eloqüência passa frio sob panos rotos
- - - / - - / - || - / - / - - - - / -
e, com seu pobre discurso, invoca as artes abandonadas.
/ - = troqueu
Aquati, como vimos observando, prefere quebrar alguns versos em dois a
compor uma linha prosaica demais para ser considerada um verso. Isso acontece aqui, e
aparentemente tem um bom efeito, pois de fato, embora não tenham medida regular, as
linhas de Aquati são versos, e isso corrobora a terceira sutileza do poema: o contraste
coloquial-formal causado pela justaposição do sermo ao hexâmetro, ou simplesmente do
sermo ao verso, como reconhecemos na tradução. Além disso, com mais ou menos
sucesso, o tradutor parece ter tentado imprimir um ritmo ligeiramente trocaico em seus
versos, o que corresponde ao poema latino.
5.1.5. Geografia da luxúria
No segundo poema curto declamado por Eumolpus, vimos que, mais uma vez, a seleção
minuciosa e cuidadosamente programada dos elementos constitui, em detalhe e em
conjunto, a sutileza do poema:
ales Phasiacis petita Colchis
atque Afrae volucres placent palato,
quod non sunt faciles: at albus anser
et pictis anas involuta pennis
plebeium sapit. ultimis ab oris
attractus scarus atque arata Syrtis
177
si quid naufragio dedit, probatur:
mullus iam gravis est. amica vincit
uxorem. rosa cinnamum veretur
quicquid quaeritur, optimum videtur.
Notamos que, assim como o poema que Trimalchio atribui a Syrus, esse poema
de Eumolpus tem uma intenção bem clara; ambos mapeiam uma geografia moral cujo
significado reflete um pensamento tão comum quanto moralizante na antiguidade: a
vida na terra natal é simples e segura; o mar é perigoso e decadente. A idéia de
geografia diz respeito à menção a luxúrias de regiões longínquas, cobiçadas apenas pela
raridade, e preferidas aos modestos frutos locais. No episódio em que Eumolpus recita o
poema, Encolpius e Giton estão fazendo uma refeição bastante simples, pois que o poeta
os elogia com o poema, aproveitando para vestir-se de moralismo e criticar os vícios
romanos, assim como fez Trimalchio em sua cena: Eumolpus lamenta que flores, aves e
outras iguarias exóticas sejam mais queridas que os proventos locais. Além disso,
amantes são comparadas às luxúrias exóticas, enquanto que esposas são comparadas aos
bens da terra natal, digna e segura. Ou seja, outra vez está presente a analogia entre aves
e mulheres.
O que de mais interessante na análise que fizemos é que todo esse discurso
moralista e advertente antecipa um episódio trágico do Satyricon: o naufrágio do navio
de Lichas. Nesse episódio está presente a prostituta Tryphaena, pretensa amante de
Giton (uma ameaça a Encolpius), que está em viagem à luxuriosa cidade de Tarento
(mais uma referência geográfica associada à luxúria), quando o mar traga o navio
(referência ao comércio marítimo, causa e veículo da luxúria degradante). Ou seja, todas
as analogias do poema de Eumolpus e a crítica existente nele se refletem e se
confirmam no episódio trágico do naufrágio. Essa rede subjacente de significados, que
atravessa verso e prosa, está entre as mais sofisticadas sutilezas de Petrônio. Portanto,
sem preciosismo, mas buscando coerência não só na idéia geral do discurso, mas no
conjunto dos elementos, vamos às traduções.
Tradução de Miguel Ruas
O faisão da Cólquida e as galinhas da África
Ao nosso paladar agradam: são aves raras.
Mas o pato e o ganso de penas coloridas
Um sabor bem plebeu nos oferecem.
O sargo vindo de praias longínquas e os peixes
Sobre as costas do Sirtes rejeitados,
Eis o que recebe todas as honras. O mugem
Parece agora grosseiro. O amante destronou a esposa.
178
A rosa teme o cinamomo. A raridade regula o preço das coisas.
Nem todas as referências originais estão intactas na tradução de Ruas, mas
coerência em todos os casos. ales Phasiacis petita Colchis(a ave caçada na Cólquida
Fásica), uma referência à antiga cidade de Fásis (Phasis) na Cólquida, de fato, é o
faisão. Embora não seja de conhecimento de todos, mas a referência a Fásis está
implícita em Faisão, e a menção à Cólquida já supre a função dar uma referência
geográfica. Pode-se reconhecer uma clarificação na tradução de “ave caçada na
Cólquida Fásica” por “Faisão”, mas isso não compromete em nada o poema de Ruas.
Sargos são peixes bem diferentes de escaros (scarus), e o ruivo (mullus) não tem nada a
ver com o mugem, também conhecido no Brasil como tainha. Entretanto, se a idéia é
citar um peixe exótico, um sargo cumpre a função, e se para um romano um ruivo era
um prato comum, para um brasileiro uma tainha também é, de onde se depreende que
Ruas optou por uma tradução funcional nos dois casos.
arata Syrtis(lavrado de Sirte), que pode se referir a qualquer fruto, qualquer
provento do golfo de Sirte, é interpretado como peixes por Ruas, que clarifica sua
interpretação na tradução. A noção de “rejeitados” inexiste literalmente no poema
latino, embora faça sentido: Eumolpus não diz propriamente que as iguarias exóticas
são rejeitas ou desvalorizadas no lugar de onde vêm, mas ao dizer isso, Ruas reforça a
suposta estupidez dos romanos, que valorizam o que é raro simplesmente por ser raro.
Porém é curioso observar que o tradutor não faz isso em vão: si quid naufragio dedit,
probatur(qualquer que seja, se deu para um naufrágio, é provado) a entender que
qualquer que seja a iguaria exótica, por pior que seja, se foi trazida à custa de um
naufrágio, é provada. “probatur é traduzido com alguma liberdade em “Eis o que
recebe todas as honras”, e a conotação de “quid” ressoa em “rejeitados”.
Por último, mais um ponto a ser notado na tradução de Ruas: o poema diz
amica vincit uxorem (a amante vence a esposa), mas Ruas traduz “O amante
destronou a esposa.” Com isso, por conta própria, Ruas toma a liberdade de sugerir uma
crítica moralista à homossexualidade, o que condiz perfeitamente com o tom do poema
e com o moralismo contraditório de Eumolpus: Giton é o amante de Encolpius; ambos
eram a audiência do poeta naquele momento. Apesar de distorcer a analogia
luxúria/amante que se contrapõe a frutos-da-terra/esposa, Ruas abre uma nova
possibilidade interpretativa através de sua recriação.
Tradução de Paulo Leminski
179
Não quero o que posso ter,
nem me interessa a vitória fácil.
As aves da África e da Ásia,
porque são raras,
agradam mais ao paladar
que a galinha do nosso quintal.
O difícil faz o preço das coisas.
A amante vale mais que a esposa.
O inalcançável é o máximo.
Se Ruas havia tomado alguma liberdade, era possível imaginar que Leminski
tomaria toda liberdade. Os dois primeiros versos vieram da pena de Lemiski, que
sintetizou seu entendimento do poema ali, e apresentou-os como uma tese central.
Leminski resume as referências a regiões longínquas do império e a contraposição de
luxúrias exóticas a proventos da terra natal nos quatro versos seguintes. As espécies de
peixes, os lavrados e as plantas mencionadas desaparecem. Em relação a isso, restam
apenas os quatro primeiros e metade do quinto verso do poema latino. Estes, porém,
ainda passam pelo filtro de Leminski, que simplifica e adapta qualquer referência antiga
supostamente difícil para seu leitor imaginado: “As aves da África e da Ásia, / porque
são raras, / agradam mais ao paladar / que a galinha do nosso quintal.” A referência à
Cólquida Fásica (a cidade de Fásis) ressoa em “Ásia”, ou “aves ... da Ásia”. Fásis, que
atualmente se chama Poti (República da Geórgia), embora pertença à Europa, está
próxima à fronteira com a Ásia, e assim parece razoável a correspondência
simplificadora de Leminski: se Roma fica na Europa, melhor enfatizar que as luxúrias
vêm de longe.
Respeitando o projeto do tradutor, mais interessante é a sua tradução do versos
que mencionam o pato e o ganso colorido. Eumolpus exalta essas aves, comuns na mesa
dos romanos, pelo sabor simples, plebeu, que elas têm. Evidentemente optando por uma
tradução funcional, Leminski troca o pato e ganso pela ave doméstica rasteira mais
comum na dieta brasileira: a galinha. Vale enfatizar, portanto, que a galinha do poema
de Leminski não é correspondente à galinha do poema latino. Parece claro também que
si quid naufragio dedit, probaturressoa em “O difícil faz o preço das coisas”. Como
comentamos, a idéia do verso é dizer que se os peixes foram trazidos à custa de um
naufrágio, se chegaram a Roma passando por tal dificuldade, são provados, não importa
o quão ruim pareçam.
O final do poema latino talvez seja a única parte que tem sua integridade
relativamente preservada por Leminski. amica vincit uxorem. [...] quicquid quaeritur,
180
optimum videtur.” se transforma em “A amante vale mais que a esposa. / O inalcançável
é o máximo.” No poema latino, não só o fato de que as luxúrias são trazidas pelo
comércio marítimo, mas principalmente a menção aos peixes reforçam a acusação do
mar como fonte da corrupção e da ameaça, acusação que fará sentido adiante, no
Episódio do naufrágio. Não se pode negar que o poema de Leminski tenha harmonia e
coerência no arranjo de seus elementos, mas embora isso baste para conservar uma das
teses do poema (o que é fácil e simples não tem graça; o difícil, o cobiçado, é mais
interessante), não atende à segunda tese do poema, programaticamente essencial: a vida
na terra natal é simples e segura; o mar é perigoso e decadente. Portanto, se por um lado
a tradução de Leminski continuidade ao discurso de indignação à Luxúria,
cumprindo a função imediata do poema na narrativa, por outro ela corta os fios da rede
que o liga ao episódio do naufrágio.
Tradução de Alex Marins
O faisão trazido de Colquida
E as guinés da África
Têm bom gosto porque são aves raras,
Enquanto o branco ganso comum e o pato
De vívidas penas mosqueadas
Proporcionam um sabor simplesmente ordinário.
O bodião apanhado em praias distantes,
E cuja pesca, em Sirtes, vale um naufrágio,
Faz furor, pois já estamos fartos de tainhas.
A amante supera a esposa.
O cravo faz a rosa enrubescer.
O que é apenas raro passa pelo melhor.
A maior parte das referências originais e o teor das críticas e comparações são
conservados na tradução de Marins. A clarificação nada danosa existente em faisão”
existe aqui também. Pássaros da África (“Afrae volucres”) restringem-se a “guinés da
África”, funcionalmente válido. O ganso branco (albus anser) e o pato pintado (“pictis
anas involuta pennis”) são mantidos, e a tradução de scarus(escaros) por “bodião”, o
nome popular desse peixe, é especialmente conveniente.
Assim como Ruas, Marins, que deve ter lido a tradução de seu colega, opta por
uma tradução funcional, trocando o ruivo (mullus”), popular na Roma de Petrônio, pela
tainha, popular no nosso Brasil. A referência aos genéricos lavrados (“arata”)
desaparece, embora permaneça a menção a Sirte. Além disso, Marins troca o cinamomo
pelo cravo, valendo-se das tradicionais e simbólicas figuras do cravo e da rosa. A
despeito dessas alterações ou exclusões, Marins consegue manter uma razoável
181
coerência na escolha dos correspondentes às luxúrias do poema latino. Ademais, como
afirmamos, o teor moralista continua presente, dando base às duas teses do poema,
antes já explicitadas. Dessa forma, pode-se dizer que Marins com sua tradução
condições para que o leitor faça as ligações e perceba as sutilezas de Petrônio nesse
poema.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Aves caçadas na Cólquida de Medéia
e pássaros africanos agradam ao paladar,
porque não são fáceis de se encontrar: mas um ganso branco
e uma pata de penas coloridas
têm sabor trivial. Aprecia-se um sargo,
arrastado dos mais distantes litorais e os sulcos de Sirtes,
se presenteados pela tempestade:
a mula já está carregada. A amante vence
a esposa. A rosa teme o cravo.
Qualquer coisa que é almejada parece ser a melhor.
Igualmente aos outros tradutores, Bianchet também recorre a alterações,
exclusões e acréscimos idiossincráticos. ales (um nominativo singular, cujo plural
seria alitia) é traduzido por “Aves”, e substituição da referência a Fásis pela referência à
personagem mitológica, que teria sido princesa da lquida, ofusca a referência ao
faisão. Isso, no entanto, não acarreta uma perda significativa, pois a referência à
Cólquida, uma região longínqua que fornece a iguaria exótica, permanece. E além disso,
pode-se interpretar tal substituição como uma tentativa de correspondência: a ave
exótica é vinculada a uma personagem mitológica feminina bastante ameaçadora, o que
combina perfeitamente com o padrão de analogias do poema.
O poema, sucinto, diz apenas que os pássaros exóticos não são fáceis (“quod non
sunt faciles”), mas Bianchet clarifica o que estava subentendido: “porque não são fáceis
de se encontrar”. Por outro lado, o poema fala em um pato branco e uma gansa pintada.
Pato e ganso são palavras usadas em muitos casos e línguas para se referir ao mesmo
animal. Provavelmente considerando isso, e considerando também que gansa não soa
muito bem, Bianchet, de modo conveniente, inverte os gêneros ao falar em “pata” e
“ganso”, o que pode ser entendido como uma correspondência cabível a essa oposição
de gêneros – algo que existe também entre a rosa e o cinamomo.
Bianchet, assim como Ruas, fala em sargo ao invés de escaro ou bodião.
comentamos que, embora ambos sejam peixes, não se trata da mesma espécie, porém
isso não afeta a função da menção ao escaro, que um sargo é tão exótico quanto.
182
Bianchet é a primeira a respeitar a menção a arata Syrtis”, que traduz os termos por
“os sulcos de Syrtes”. Entretanto, Bianchet exclui a referência ao ruivo (“mullus”) e
confunde consideravelmente as sentenças probatur: mullus iam gravis est”, que traduz
por “a mula já está carregada”. A tradutora parece sugerir a idéia, nada incabível, de que
se a iguaria exótica valer o preço de um naufrágio, “mande trazê-la!”, ou seja, pode
carregar a mula, o animal de carga. Isso, porém, parece muito artificial, pois não
qualquer correspondente no poema latino, seja explícito ou implícito numa idéia. As
liberdades tomadas pelos tradutores antes comentadas todas têm correspondência a
algum elemento que compõe o poema. De qualquer forma, fazendo um balanço da
tradução, é possível afirmar que apesar dessa mudança, Bianchet logrou preservar as
duas teses do poema, que o conectam duplamente à narrativa.
Tradução de Cláudio Aquati
O faisão caçado na Cólquida e as aves da África
agradam ao paladar porque não são comuns.
Mas o ganso branco e o pato de penas coloridas
sabem a plebe.
O escaro trazido das praias mais distantes
e os produtos colhidos pelos Sirtes,
se algum naufrágio os forneceu, aprovam-se.
O ruivo agora é indigesto. A amante vence a esposa.
A rosa teme o cinamomo. Se há procura, ótimo parece.
Syrtis”, já comentamos, é uma referência à região do golfo de Sirte, uma cidade
localizada ao norte do Mediterrâneo, hoje conhecido como golfo de Sidra. Na tradução
de “arata Syrtis” por “produtos colhidos pelos Sirtes”, Marins parece, pois, ter cometido
uma mudança de classe indevida, que o termo é um genitivo singular, e caso tivesse a
conotação de “pelos Sirtes” deveria ser um ablativo plural (syrtibus). Além disso, pode-
se reconhecer certo enobrecimento na tradução de sapit por “sabem”, com a
conotação hoje erudita de “ter sabor”. A despeito disto, que é absolutamente legítimo,
Aquati, outra vez, fica convenientemente próximo ao texto latino, e mantém todos os
elementos cruciais às sutilezas do poema, sem com isso minar a sua letra, sua
literariedade, pois que oferece bons versos livres em português. Nenhuma das luxúrias
ligadas à rede de analogias que atravessa verso e prosa teve sua descrição distorcida
ou contrafeita aqui, e o tradutor sequer distanciou-se da sintaxe latina. Uma vez que
desconsideramos o metro do poema nesse caso, eis uma tentativa razoavelmente bem
sucedida daquilo que Berman chamaria de tradução da letra.
183
5.1.6. Elegia sobre a calvície repentina
No terceiro poema curto de Eumolpus, assim como nos demais, o real e o metafórico
estão plenamente confundidos:
Quod solum formae decus est, cecidere capilli,
vernantesque comas tristis abegit hiemps.
Nunc umbra nudata sua iam tempora maerent,
areaque attritis ridet adusta pilis.
O fallax natura deum: quae prima dedisti
aetati nostrae gaudia, prima rapis.
Infelix, modo crinibus nitebas
Phoebo pulchrior et sorore Phoebi.
At nunc levior aere vel rotundo
horti tubere, quod creavit unda,
ridentes fugis et times puellas.
Vt mortem citius venire credas,
scito iam capitis perisse partem.
Eumolpus declama sua elegia sobre a calvície no capítulo 109, em meio ao
episódio em que, a seu mando, Giton e Encolpius raspam a cabeça, tentando se disfarçar
para fugir da ira dos tripulantes e passageiros do navio de Lichas. Pelo exame que
fizemos antes, observamos que analogias no poema vinculam a natureza e suas estações
às fases da vida, enfatizando a calvície enquanto sinal de mortalidade. A esses temas
mais sóbrios e gerais a natureza, a vida, a morte alude o poema em sua primeira
metade, escrita em dísticos elegíacos. A segunda metade do poema, mais informal,
porque dirige-se a Encolpius e Giton, lamentando o estado deles, é escrita em
hendecassílabos. Vimos que a quebra do padrão métrico representa uma quebra no tom
do discurso, ao mesmo tempo em que denuncia a dissimilação de Eumolpus, que com a
recitação tentava safar a vida de seus companheiros. Elementos do poema e da prosa
estão ligados a superstições populares sobre a queda ou o corte de cabelo em relação à
morte, e sob um ponto de vista, esses versos de Eumolpus pressagiam a morte de Lichas
durante o naufrágio. Como vimos fazendo, a cada análise traremos à tona as sutilezas
examinadas conforme a conveniência.
Tradução de Miguel Ruas
Das nossas cabeças caiu seu mais belo ornamento:
Os cabelos, que o triste vento do inverno levou.
Privadas de sua sombra, nossas frontes estão de luto;
E os nossos crânios, brilhando sob o sol,
Parecem satisfeitos com sua calvície.
Oh! deuses, oh! deuses pérfidos! Vós nos arrebatais primeiro
184
As primeiras alegrias que nos destes!
Oh! tu, infortunado, quão belo eras antes com teus cabelos!
Não eras mesmo mais belo do que o Febo e que Diana?
Agora, mais polido que um bronze, como um cogumelo
Luzindo sob a chuva, foges e temes as zombarias
Das mulheres belas. Acredita-me: a morte avança
E a largos passos aproxima-se de ti,
Pois uma parte de tua cabeça já deixou de viver.
Notamos que a calvície está ligada às “estações” da vida: vernantesque comas
tristis abegit hiemps” (e o inverno severo faz desaparecer as cabeleiras resplandecentes).
A palavra para a mancha da calvície (area) também evoca a eira (area); ambas são
chamuscadas (adusta) pelo sol. Esses pontos sugerem uma analogia da vida do homem
com o ciclo da natureza, e comparam nossas cabeças a uma pastagem talvez, ao dizer
que mancha da calvície é uma eira.
110
Ruas preserva a comparação da velhice ao
inverno, mas apaga a ambigüidade sugestiva de area”, traduzindo o termo por
“crânios”. Ademais, fora o alongamento, uma nítida clarificação na tradução de
areaque attritis ridet adusta pilis” (e a eira chamuscada ri dos pêlos sovados) por “E os
nossos crânios, brilhando sob o sol, / Parecem satisfeitos com sua calvície.”
Os versos o fallax natura deum: quae prima dedisti / aetati nostrae gaudia,
prima rapis(oh falaz natureza dos deuses: as alegrias que à nossa juventude primeiro
deste, primeiro tiras) são traduzidos por “Oh! deuses, oh! deuses pérfidos! Vós nos
arrebatais primeiro / As primeiras alegrias que nos destes!” A vinculação da calvície à
mortalidade do corpo que está ligada à superstição sobre a queda dos cabelos,
presságio da morte de Lichas – e tom de lamento, próprio da poesia elegíaca, continuam
na tradução. No entanto, a menção explícita à natureza, acusada de dar e tirar as belezas
(alegrias) de nosso corpo, menção importante para firmar as analogias feitas nessa
primeira parte, é dispensada por Ruas. Parece evidente, mas vale reiterar que, no clima
de presságio do poema, a natureza que nos tira a vitalidade, começando pelo cabelo, é a
mesma que causa a tempestade, a qual tira a vida de Lichas.
Os versos finais da segunda parte, assim como os da primeira, têm um tom
sombrio, por advertir a iminência da morte: ut mortem citius venire credas, scito iam
capitis perisse partem(e para que creias que a morte vem mais rápido, fica sabendo
que parte de tua cabeça já perecera). Nos dois finais interlocução (um dirige-se à
natureza, e o outro a Encolpius ou Giton), e ambos se referem à morte, porém um é mais
110
Área de terra batida onde se malham, trilham, secam e limpam cereais e legumes.
185
sóbrio e outro mais informal o que tem paralelo com o metro usado em cada caso. Na
tradução dos versos finais, Ruas mantém o tom de advertência e respeita o que de
comum entre os dois finais: “Acredita-me: a morte avança / E a largos passos aproxima-
se de ti, / Pois uma parte de tua cabeça já deixou de viver.” Sobre o metro falaremos um
pouco mais adiante.
Tradução de Paulo Leminski
Onde foram parar as belas folhas
que cobriam as árvores na primavera?
Um verão, um outono, e eis que
leva-as embora o vento.
Onde as belas cores da infância,
a luz, a força e as formas da adolescência?
Quão longe vão, efêmeras alegrias!
Leva-as o vento, como leva as cabeleiras.
Rosa, onde as pétalas? Árvore, onde o verde?
Pela cabeça, começamos a morrer?
Leminski, nessa tradução, parece ter pretendido transcriar apenas a primeira
parte da elegia de Eumolpus. A analogia da vida do homem com o ciclo da natureza está
nos quatro primeiros versos: Leminski toma a liberdade de explicitar a implícita
analogia dos cabelos com as folhas das árvores, além de tornar implícito o inverno. Os
versos o fallax natura deum: quae prima dedisti / aetati nostrae gaudia, prima rapis
(oh falaz natureza dos deuses: as alegrias que à nossa juventude primeiro deste, primeiro
tiras) ressoa em “Onde as belas cores da infância, / a luz, a força e as formas da
adolescência? / Quão longe vão, efêmeras alegrias!” E, em seguida, a idéia do inverno,
cujo vento frio leva embora as folhas, parece ecoar em “Leva-as o vento, como leva as
cabeleiras.”
O único elemento da segunda parte, pode-se dizer, é o verso final da tradução,
“Pela cabeça, começamos a morrer?”, que lembra ut mortem citius venire credas, scito
iam capitis perisse partem” (e para que creias que a morte vem mais rápido, fica
sabendo que parte de tua cabeça já perecera). Enfim, Leminski recria ou transcria
apenas a primeira parte do poema, exacerbando o papel da natureza e mantendo, ainda
que de forma atenuada, a associação da calvície com a mortalidade do corpo. Sutilezas
como a presente na palavra areadesaparece na tradução, assim como o contraste
entre a primeira e a segunda parte, que denuncia a dissimulação de Eumolpus, seja
através da mudança de tom ou da mudança no metro.
Tradução de Alex Marins
186
Nossa cabeleira, coroa única de beleza, tece de cair,
Obscuro inverno usurpou a colheita da primavera;
Lamentam nossas frontes sua sombra arrebatada
Peladas sobrancelhas queimadas riem das lâmpadas perdidas.
Ó perfídia! Ó deuses! Vossa primeira dádiva,
Orgulho dos dias de juventude, é a primeira que tomais.
Infortunado! Teu cabelo brilhava mais belo e mais brilhante
Do que Febo durante o dia e Febe durante a noite!
Agora, mais liso que o bronze ou um cogumelo
Que se ergue da chuva no jardim,
Foges e temes as zombarias das jovens.
A morte aproxima-se, crê-me, em seu largo passo;
Sabe pois que tua cabeça
Já está meio morta.
Outra vez, impropriedades comprometem a tradução de Marins. Por exemplo,
logo no início, cecidere capilli(caem os cabelos) é traduzido por “Nossa cabeleira ...
tece de cair”; uma expressão tão incompreensível quanto incabível. areaque attritis
ridet adusta pilis(e a eira chamuscada ri dos pêlos sovados), verso que compara a
mancha da calvície a uma eira, importante pela sutileza que contém e por reforçar a
associação do homem à natureza, é traduzido por “Peladas sobrancelhas queimadas riem
das lâmpadas perdidas”, o que nos leva a questionar se Marins realmente se baseou no
texto latino.
De alguma maneira, compreende-se a analogia básica da elegia, e embora a
tradução complique a simplicidade original, entende-se que o poema trata da calvície, e
que ela é sinal da mortalidade do corpo, informações fundamentais. A tradução dos
finais da primeira e da segunda parte conserva o tom de advertência, embora, assim
como Ruas, Marins exclua a menção explícita à natureza, no quinto verso: o fallax
natura(oh falaz natureza). É curioso observar também que a tradução de Marins para
citius(mais rápido) em ut mortem citius venire credas(e para que creias que a
morte vem mais rápido) é praticamente a mesma que a de Ruas. Ruas fala que a morte
se aproxima “a largos passos”, e Marins fala no “passo largo” da morte. Além disso, ao
dispensar a menção à natureza, Ruas transfere o adjetivo antes atribuído a ela (fallax)
aos “deuses”, chamando-os de “pérfidos”. Marins começa seu verso com “Ó perfídia! Ó
deuses!” Se a tradução de Ruas não é literal, a de Marins não é nada original.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Teus cabelos, estes que são o único enfeite de tua beleza, caíram
e tuas cabeleiras reflorescentes o impiedoso inverno fez desaparecer.
E agora, tuas têmporas já se afligem com a dissipação da própria sombra despida
e o espaço desocupado, queimado de sol, zomba dos pêlos destruídos.
187
Oh, insidiosa natureza dos deuses: as primeiras alegrias
que concedeste a nossa juventude são as primeiras que arrebatas.
Oh, infeliz! Ainda há pouco tu e teus cabelos brilhavam,
mais belos do que Febo e do que a irmã de Febo.
Mas, agora, mais liso do que o bronze, ou
do que um cogumelo arredondado de jardim, que uma tempestade fez brotar,
evitas e temes as garotas, que riem de ti.
Para que acredites que a morte chegará mais cedo,
sabe que parte de tua cabeça já morreu.
Em relação aos pontos importantes, que destacamos na análise do poema, pode-
se dizer que Bianchet atende às principais analogias do poema e, à sua maneira, mantém
seus elementos-chave. No entanto, por vezes, Bianchet perde a letra do texto latino em
sua tradução, incorrendo em clarificações e alongamentos gritantes. É de se questionar,
por exemplo, se a prosaica frase “E agora, tuas mporas já se afligem com a dissipação
da própria sombra despida”, tradução de Bianchet para Nunc umbra nudata sua iam
tempora maerent(agora lamentam-se as têmporas, despidas de sua sombra), pode ser
considerada um verso, a despeito de qualquer ritmo que apresente. Além disso, sua
tradução para “area (eira), “espaço desocupado”, é tão ingênua quanto imprópria,
contribuindo para que sua tradução pareça um calco filológico. As analogias estão aí: a
associação do homem e sua vida à natureza e seu ciclo, o fim da vida que leva os
cabelos e o inverno que leva as folhas das árvores, que leva a beleza da primavera assim
como a calvície leva os belos cabelos etc., todas elas existem na tradução de Bianchet, e
corroboram a função do poema como um presságio do desastre que está por vir na
prosa. Isso representa a sutileza crucial do poema, mas não é o poema. Se não houver
poema, se houver apenas frases traduzidas sem levar em conta a poeticidade do texto
latino, não há poema, e a sutileza perde a graça.
Tradução de Cláudio Aquati
Único ornamento de beleza, caíram os cabelos,
e as cabeleiras primaveris carregou-as o triste inverno.
Agora, despojadas de sua sombra lamentam-se as têmporas,
e a cabeça queimada dos pêlos raspados ela se ri.
Ó ilusória natureza dos deuses: a alegria primeira
que tu deste à nossa juventude é a primeira que tiras.
Ó infeliz! Há pouco eram os cabelos a causa do teu brilho,
eras mais belo que Febo e a irmã de Febo.
Mas agora, mais polido que o bronze
ou o redondo cogumelo do jardim, que a umidade fez brotar,
tu evitas e temes as garotas zombeteiras.
Da mesma forma que deves acreditar
que a morte vem rapidamente, uma coisa deves saber:
parte de tua cabeça já pereceu.
188
No plano do significado, o único aspecto não contemplado na tradução de
Aquati é a ambigüidade de area (eira), traduzido por “cabeça” simplesmente. Os
demais aspectos todos continuam: as analogias (vida, homem, natureza e morte), o
paralelo entre os finais da primeira e da segunda parte, o contraste entre elas
(sobriedade-informalidade), o tom de lamento próprio da elegia etc. Tudo isso, à custa
de um aumento no número de versos, está no poema composto por Aquati, que parece
aproveitar o privilégio da posição que ocupa, enquanto quinto tradutor a publicar uma
tradução de Satyricon no Brasil.
Nº. de sílabas
Tradução de Miguel Ruas
- / - - / - - / - / / - - / -
Das nossas cabeças caiu seu mais belo ornamento:
- - / - - / - / - - / - - /
Os cabelos, que o triste vento do inverno levou.
- / - - - / - || - - / - - / - / -
Privadas de sua sombra, nossas frontes estão de luto;
- - - / - || - / - - - /
E os nossos crânios, brilhando sob o sol,
- / - - - / - - / - - / -
Parecem satisfeitos com sua calvície.
/ / - / / - / - - || / - - - - / - / -
Oh! deuses, oh! deuses pérfidos! Vós nos arrebatais primeiro
- - / - - - / - - - / -
As primeiras alegrias que nos destes!
/ / - - - / - || / / - / - / - - - - / -
Oh! tu, infortunado, quão belo eras antes com teus cabelos!
- / - / - - / - - - / - - - / -
Não eras mesmo mais belo do que o Febo e que Diana?
- / - - - / - - / - - - - - / -
Agora, mais polido que um bronze, como um cogumelo
- / - - - / - || / - - / - - - - / -
Luzindo sob a chuva, foges e temes as zombarias
- - / - / - || - - / - - || - / - / -
Das mulheres belas. Acredita-me: a morte avança
- / - / - - - / - - - /
E a largos passos aproxima-se de ti,
- - - / - - / - - / - - - / - - /
Pois uma parte de tua cabeça já deixou de viver.
Tradução de Paulo Leminski
/ - / - - / - / - / -
Onde foram parar as belas folhas
- - / - - / - - - - - / -
que cobriam as árvores na primavera?
- - / - - / - - / -
Um verão, um outono, e eis que
/ - - - / - / -
leva-as embora o vento.
/ - / - / - - / -
14
14
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17
11
18
15
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16
15
12
17
10
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9
7
8
189
Onde as belas cores da infância,
- / - / - - / - - - - / -
a luz, a força e as formas da adolescência?
/ / - / || - / - - - - / -
Quão longe vão, efêmeras alegrias!
/ - - - / - || - - / - - - / -
Leva-as o vento, como leva as cabeleiras.
/ - || / - / - - || / - - || / - / -
Rosa, onde as pétalas? Árvore, onde o verde?
- - - / - - - / - - - /
Pela cabeça, começamos a morrer?
Tradução de Alex Marins
/ - - - / - || - / - / - - - - / - || / - - - /
Nossa cabeleira, coroa única de beleza, tece de cair,
- / - / - - / - - / - - - - / -
Obscuro inverno usurpou a colheita da primavera;
- / - / - / - / - / - - - / -
Lamentam nossas frontes sua sombra arrebatada
- / - - - / - - / - / - - / - - - / -
Peladas sobrancelhas queimadas riem das lâmpadas perdidas.
/ - / - || / / - || / - - / - / - -
Ó perfídia! Ó deuses! Vossa primeira dádiva,
- / - - / - - - - / - || / - - / - - - /
Orgulho dos dias de juventude, é a primeira que tomais.
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Infortunado! Teu cabelo brilhava mais belo e mais brilhante
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Do que Febo durante o dia e Febe durante a noite!
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Agora, mais liso que o bronze ou um cogumelo
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Que se ergue da chuva no jardim,
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Foges e temes as zombarias das jovens.
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A morte aproxima-se, crê-me, em seu largo passo;
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Sabe pois que tua cabeça
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Já está meio morta.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
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Teus cabelos, estes que são o único enfeite de tua beleza, caíram
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e tuas cabeleiras reflorescentes o impiedoso inverno fez desaparecer.
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E agora, tuas têmporas já se afligem com a dissipação da própria sombra despida
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e o espaço desocupado, queimado de sol, zomba dos pêlos destruídos.
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Oh, insidiosa natureza dos deuses: as primeiras alegrias
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que concedeste a nossa juventude são as primeiras que arrebatas.
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Oh, infeliz! Ainda há pouco tu e teus cabelos brilhavam,
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mais belos do que Febo e do que a irmã de Febo.
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Mas, agora, mais liso do que o bronze, ou
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do que um cogumelo arredondado de jardim, que uma tempestade fez brotar,
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evitas e temes as garotas, que riem de ti.
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Para que acredites que a morte chegará mais cedo,
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sabe que parte de tua cabeça já morreu.
Tradução de Cláudio Aquati
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Único ornamento de beleza, caíram os cabelos,
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e as cabeleiras primaveris carregou-as o triste inverno.
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Agora, despojadas de sua sombra lamentam-se as têmporas,
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e a cabeça queimada dos pêlos raspados ela se ri.
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Ó ilusória natureza dos deuses: a alegria primeira
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que tu deste à nossa juventude é a primeira que tiras.
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Ó infeliz! Há pouco eram os cabelos a causa do teu brilho,
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eras mais belo que Febo e a irmã de Febo.
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Mas agora, mais polido que o bronze
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ou o redondo cogumelo do jardim, que a umidade fez brotar,
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tu evitas e temes as garotas zombeteiras.
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Da mesma forma que deves acreditar
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que a morte vem rapidamente, uma coisa deves saber:
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parte de tua cabeça já pereceu.
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Como vimos, a primeira parte do poema é escrita em dísticos elegíacos, ou seja,
um hexâmetro seguido de um pentâmetro. Já a segunda parte rompe com esse padrão e
passa a ser feita toda em hendecassílabos. A tradição de elegia em língua portuguesa
não prescreve um metro específico para esse tipo de poema, no entanto isso não
significa que correspondências não são possíveis: alternar versos maiores e menores na
primeira parte do poema e usar um metro fixo na segunda parte não seria impossível a
um tradutor que primasse pela forma do poema. Talvez, usar alexandrinos (12 sílabas) e
decassílabos na primeira parte, e hendecassílabos na segunda, a fim de marcar a
191
diferença entre uma e outra, seria uma opção razoável. No entanto, nenhum tradutor
parece ter buscado algum efeito métrico correspondente, seja em relação aos dísticos
elegíacos da primeira parte, ou aos hendecassílabos da segunda. O uso diferenciado do
metro nesse poema diz respeito à mudança no tom do discurso de Eumolpus, que
denuncia sua dissimulação. Ao destruir as nuances no metro, os tradutores destroem
essa importante sutileza da ação do personagem e do andamento da cena como um todo.
Todavia, cabe observar que Ruas, Leminski e Aquati compõem versos de metros
variados, mas, ao menos, respeitam a convenção da poesia portuguesa que admite
versos de até 20 sílabas. Em geral, versos de até 12 ou 13 sílabas têm classificação;
versos que têm entre 12 e 20 sílabas são considerados amétricos ou são compostos por
versos menores, como é o caso do chamado verso de arte maior, feito de dois
hemistíquios. Marins e Bianchet, no entanto, sequer respeitam essa convenção, e
compõem versos com mais de 20 sílabas, absolutamente prosaicos algo digno de ser
salientado. Lemisnki compõe versos com no máximo 12 sílabas, mas opta por uma
tradução livre. Todos os demais incorrem no alongamento, porém esta tendência faz
com que as traduções de Marins e Bianchet tendam mais à prosa que à poesia, o que é
problemático.
5.1.7. Sexo como morte
No capítulo 79, antes de narrar a primeira aparição de Eumolpus e da Cena
Trimalchionis, Encolpius relembra uma noite de amor com Giton em um de seus
poemas curtos:
qualis nox fuit illa, di deaeque,
quam mollis torus. haesimus calentes
et transfudimus hinc et hinc labellis
errantes animas. valete, curae
mortales. ego sic perire coepi.
Notamos que a particular linguagem da paixão empregada no poema, cuja ênfase
recai sobre a errância, a partida e a morte, parece ter sido escolhida para se obter o
máximo efeito irônico. E nesse caso, diferente dos poemas de Trimalchio e Eumolpus, o
personagem tem o domínio do ridículo. Vimos que Encolpius, o narrador da obra,
profere esse poema imediatamente antes de declarar-se traído por seu amado Giton, que
foi seduzido pelo companheiro de aventuras e rival Ascyltos. No poema, ele exalta o
192
amor com a ingenuidade de um apaixonado, mas por trás da ingenuidade o sarcasmo
e o realismo de quem sabe que foi traído. Após o poema, Encolpius diz que flagrou os
dois dormindo à noite juntos na cama, e pensou em matá-los, mas não o fez. Ascyltos e
Giton acordam, e Encolpius trava uma luta parodicamente mortal com seu rival. A
escolha de perireem ego sic perire coepi(eis que então eu comecei a morrer) tem
vários sentidos ou motivos: o primário talvez, a representação do sexo como morte,
condiz com a descrição do amante ingênuo, lúbrico e extasiado; um segundo condiz
com o drama romântico do protagonista: depois dessa noite inesquecível, uma vez
apaixonado por Giton, seus problemas teriam começado, pois Encolpius põe a vida em
risco várias vezes ao longo do Satyricon, disputando Giton com rivais, entre eles
Ascyltos; o terceiro, ligado a este segundo, é o motivo mais imediato, o contexto
narrativo do poema: Encolpius declama o poema imediatamente antes de confessar que
quis matar os traidores durante o sono deles, e de dizer que travou uma luta mortal com
o rival.
Outros dois termos específicos têm um sentido secundário ligado ao contexto
narrativo. Ao dizer no poema haesimus calentes et transfudimus hinc et hinc labellis
errantes animas(nos abraçamos ardentes e pelos lábios vertemos de um lado pro outro
nossas almas errantes), Encolpius está claramente celebrando o sexo na condição de
amante apaixonado, mas a escolha dos termos transfudimuse errantesimplica uma
segunda interpretação. O verbo transfundo pode ser usado para falar de afeições
transferidas indiscriminadamente, e errantes diz respeito à vagância, mas também ao
erro; no contexto da traição de Giton, que ora se afeiçoa por Encolpius, ora por
Ascyltos, os dois termos levam o leitor a pensar não apenas nas almas que se revezam
nos corpos, mas em Giton, cujos pretendentes se revezam em seu corpo.
Tradução de Miguel Ruas
Que noite foi aquela, oh deuses!
Quanta doçura naquele leito! Em abraços ardentes
Confundíamos os lábios e as almas delirantes.
Adeus, preocupações terrenas.
E docemente sentia-me morrer.
A tradução de transfudimus hinc et hinc labellis errantes animas(pelos lábios
vertemos de um lado pro outro nossas almas errantes) por “confundíamos os lábios e as
almas delirantes”, atende ao motivo primário do poema, a celebração do sexo, mas
destrói qualquer possibilidade de dupla interpretação antes sugerida por transfudimus e
193
errantes. O fato de labellis ser um ablativo, e não um acusativo como seria pela
tradução de Ruas (confundíamos os lábios), reforça a tese de que aqui transfudimus tem
a conotação de transferência, transfusão, versão (ato de verter). Daí a nossa sugestão:
verter as almas pelos lábios, ou através dos lábios. A idéia de verter a alma de um lado
pro outro, assim como os personagens se dão uns para os outros, poligamicamente,
parece ser mais rica nesse contexto. Além disso, a tradução de errantes por
“delirantes” pode até trazer a noção de um amante desgovernado, mas perde a referência
direta à vagância e ao erro.
No último verso, na tradução de ego sic perire coepipor “E docemente sentia-
me morrer”, uma evidente racionalização seguida de clarificação: Ruas, sem dúvida,
reconheceu o motivo primário do uso de perire a representação do sexo como
morte, que condiz com o amante ingênuo, lúbrico e extasiado –, e clarificou-o
acrescentando “docemente” e trocando coepi(comecei) por “sentia-me”. Com isso, o
tradutor impediu o leitor de reconhecer os outros motivos do termo perire”, e
consumou a destruição da rede subjacente de significados que liga o poema a elementos
de seu contexto narrativo.
Tradução de Paulo Leminski
Que noite, deuses e deuses!
Que cama macia! Pelas bocas em beijos,
mil vezes trocamos nossas almas.
Adeus, angústias da vida!
É assim que eu quero morrer.
A tradução de Leminski para transfudimus hinc et hinc labellis errantes
animas”, “Pelas bocas em beijos, mil vezes trocamos nossas almas”, de alguma forma,
atende à ambigüidade de transfundimos”, no entanto, assim como o tradutor excluiu
parte da representação do sexo (“haesimus calentes”, nos abraçamos ardentes), ele
também excluiu o adjetivo “errantes”, tirando assim parte da força do trocadilho.
O verso “É assim que eu quero morrer”, tradução de ego sic perire coepi”,
também encerra a possibilidade interpretativa na exaltação do sexo. Embora tenha sido
mantido o sentido de morrer na tradução de perire”, a perda da noção de começar a
morrer (coepi”) apaga os outros dois sentidos dessa frase: a ligação com o início da
nefasta paixão de Encolpius por Giton, que poria sua vida em risco, e a ligação com o
contexto narrativo do poema logo em seguida, Encolpius pensa em matar seus
traidores, e depois tem uma luta “mortal” com seu rival. A idéia de “começar a morrer”
194
provavelmente não foi bem digerida nem por Ruas nem por Leminski, que clarificaram
a única interpretação que tiveram da frase.
Tradução de Alex Marins
Ah, deuses, ah, que noite aquela,
E que cama macia. Em um ardente abraço,
Em beijos e beijos unimos como uma só
Nossas almas inquietas.
Adeus à luta mortal.
Minha destruição começara.
Ao escolher “unimos” para a tradução de transfudimos”, Marins parece ter
considerado o sentido de fusão, e não o de transfusão, que denota transmissão,
transferência. Como já argumentamos no capítulo II, esse verbo eventualmente era
usado para falar de transferência de afeições, sentido que foi claramente empregado no
caso. Mais curiosa, no entanto, é a tradução de valete, curae mortales (adeus,
preocupações mortais) por “Adeus à luta mortal”. Em seguida, a tradução termina com
o verso “Minha destruição começara.” Marins sugere talvez que as preocupações
mortais mencionadas por Encolpius são as disputas travadas com seus rivais por causa
de Giton, porém é difícil encontrar uma razão que justifique essa mudança deliberada de
“preocupações mortais” (“curae mortales”) por “luta mortal”. É muito difícil entender
por que Encolpius, dentro do poema em que narra uma noite de amor, exaltando os
prazeres, se despede de uma luta mortal, dizendo que sua “destruição começara”. É fácil
entender que a paixão por Giton causou, paradoxalmente, a desgraça de Encolpius, que,
apaixonado, acaba se metendo em lutas mortais com outros rivais, mas ao que parece
isso está apenas implícito em “ego sic perire coepi”; o resto é a prosa que explica.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Que noite foi esta, deuses e deusas,
que cama macia! Ardentes, permanecemos agarrados
e roçamos nossos lábios aqui e ali,
almas errantes. Adeus, preocupações
mortais. Foi assim que eu comecei a morrer.
Bianchet aparentemente assume o motivo primário do poema, a celebração do
sexo, e toma certa liberdade na tradução de transfudimus hinc et hinc labellis errantes
animas(pelos lábios vertemos de um lado pro outro nossas almas errantes): “roçamos
nossos lábios aqui e ali, almas errantes”. Não fica claro se “almas errantes” é um
vocativo ou uma oração coordenada. O curioso é que Bianchet, que por vezes
195
demonstra um respeito bastante rigoroso à sintaxe latina, neste caso parece ignorar a
função de almas errantes, que originalmente é um acusativo (animas errantes), isto é,
objeto direto de tranfudimus”. Seja como for, basta notar que na tradução dessa parte
do poema, a tradutora considerou apenas uma interpretação possível, aquela ligada à
temática mais óbvia do poema, que é o sexo.
No entanto, a outra sutileza, aquela presente em “ego sic perire coepi”, foi
mantida pela tradução franca de Bianchet, sem nenhuma transcriação idiossincrática:
“Foi assim que eu comecei a morrer”. A tripla possibilidade de interpretação da frase
final do poema foi, assim, mantida.
Tradução de Cláudio Aquati
Que noite foi aquela, ó deuses e deusas!
Que leito macio!
Ardentes nós nos abraçamos e usamos nossos lábios
para trocarmos de um para o outro
as nossas almas sem destino.
Adeus, ó inquietações da vida...
Mas, no que me toca, foi esse o princípio do fim.
A frase “[...] usamos nossos lábios para trocarmos de um para o outro as nossas
almas sem destino”, a despeito do alongamento notório, parece uma boa solução para
manter o duplo sentido suscitado por transfudimus e errantes”. A construção
“trocamos de um para o outro”, inclusive, amplia a possibilidade de enxergar uma
referência à poligamia ou à transferência de afeições, e “sem destino”, ainda que não
contenha em si noção de erro (relativa à traição), mantém a noção de vagância e de
alguma maneira nega a monogamia, ou o amor eterno, bem ao gosto de Petrônio.
Na tradução da sentença final, “Mas, no que me toca, foi esse o princípio do
fim”, Aquati evidentemente demonstra ter reconhecido e acabou por clarificar os
motivos secundários de “perire coepi”. Tanto a condenação ao drama nefasto que
Encolpius enfrenta ao longo da obra, quanto a menção à luta “mortal” com Ascyltos que
é narrada logo depois do poema são possíveis de se ler na tradução. Ocorre que, à custa
dessa clarificação, Aquati perdeu a representação bastante propícia do sexo como morte,
que no fim das contas é uma síntese abstraída de todo o poema: o amante se acaba, se
consome plenamente no sexo, e o resultado desse ato condena sua vida eternamente.
5.1.8. Dignus amore locus
196
No capítulo 131, em um outro poema, após o fracasso sexual com Circe, Encolpius
descreve um lugar perfeito para o amor. Esse poema traz várias referências a uma
paisagem idílica, porém mais uma vez contém uma série de termos ambíguos, que
ganham outros significados dentro da narrativa, e jogam com os temas do fracasso e do
desapontamento, ao mesmo tempo em que brincam com referências épicas:
mobilis aestivas platanus diffunderat umbras
et bacis redimita Daphne tremulaeque cupressus
et circum tonsae trepidanti vertice pinus.
has inter ludebat aquis errantibus amnis
spumeus et querulo vexabat rore lapillos.
dignus amore locus: testis silvestris aedon
atque urbana Procne, quae circum gramina fusae
et molles violas cantu sua rura colebant.
Observamos que assim como no poema anterior, sobre a noite de amor com
Giton, também neste, não a forma, mas a seleção cuidadosa de vocábulos que cobrem os
versos de hipertextualidade constitui-se a principal sutileza do poema. Outra vez,
portanto, o peso do trabalho parodístico de Petrônio recai sobre uso de termos
específicos: mobilis, Daphne, redimita, pinus, Procne, querelo, vexabat, entre outros.
Esses termos são combinados de tal maneira que o poema passa a oferecer múltiplas
leituras. Antes detalhamos com certa profundidade possíveis conexões e evocações
feitas pela escolha de um ou outro termo, e o discurso que Petrônio parece querer fazer
com a combinação deles; essas informações e conclusões a que chegamos serão
reafirmadas ao longo das análises.
Tradução de Miguel Ruas
Sombras estivais os plátanos em torno derramavam
E com eles os ciprestes e Dafne coroada de bagas,
E os pinheiros esbeltos com as copas farfalhantes.
Entre as árvores corria um regato espumante, contra os seixos
Chocando-se as ondas caprichosas. Recanto para o amor
Propício: o testemunho invoco do rouxinol dos bosques
E da andorinha urbana que volteava sobre a relva,
E as delicadas violetas, o ar enchendo com seu canto apaixonado.
Olhando à média distância, o quadro que a tradução de Ruas nos oferece, assim
como o poema latino, apresenta uma paisagem idílica propícia para o amor. No detalhe,
porém, é onde moram as sutilezas do poema. Os mobilis ... platanus (plátanos
balangantes), que remetem ironicamente a um falo frouxo, perdem seu adjetivo na
tradução de Ruas, entretanto o correspondente grego do loureiro (Daphne) tem seu
nome mantido preservando a alusão ao desejo de Apolo contrariado por Daphne. A
197
ironia presente em redimita também tem correspondência na tradução: o loureiro
cujos ramos coroam as cabeças dos homens, é “coroado” (ou cingido) por suas bagas
segundo o poema. certa brincadeira metalingüística aí, pois redimire (cingir) era o
verbo apropriado para se referir ao ato de vestir alguém com uma coroa de louros;
Virgílio fez esse uso, por exemplo. É como se a musa de Apolo, Daphne, tivesse sua
cabeça cingida por uma coroa de louros. No caso, a planta é cingida por suas bagas; o
elemento central da brincadeira é justamente o fato de que a planta se chama Daphne.
De modo semelhante, embora isso não garanta que algum leitor faça a
associação, a menção ao cipreste (cupressus), preservada pelo tradutor, evoca o
desapontamento de Apolo na morte de sua amada Cyparissus. Também dentro da
temática do desapontamento está a menção ao pino. Vimos que o pino remete ao
fracasso de na tentativa de conquistar a ninfa Pitys, que para escapar do desejo do
deus, transforma-se em um pino. Ao se ler trepidanti vertice pinus(pino de vértice
trépido), é possível fazer uma associação à pobre Pitys em pânico (palavra que vem de
Pã), tremendo de medo enquanto Pã está à espreita. Ruas, que fala em “pinheiros
esbeltos com as copas farfalhantes”, leva a interpretação para outro lado, e dificulta a
associação à ninfa, pois “farfalhantes” tem uma conotação que inspira muito mais
alegria que temor.
As nuances de prazer e desagrado, presentes na descrição do riacho, quase
desaparecem na tradução. Vimos que a metáfora de uma água querelante (querelo ...
rore) pode sugerir tanto o ato de gemer quanto o ato de reclamar, e o verbo vexo, vexare
(usado em vexabat”) tem sempre uma conotação agressiva, o que pode se referir tanto
à energia sexual quanto à fúria de Circe despontada. Ruas, ao descrever o “regato
espumante”, menciona suas “ondas caprichosas”, “chocando-se” contra os seixos.
“ondas caprichosas” não contém a ambigüidade de querelo ... rore”, e “chocando-se”,
ainda que possa ter uma conotação agressiva, dificilmente fará algum leitor brasileiro
lembrar-se da agressividade do sexo ou da fúria de alguém frustrado.
Notamos ainda que a menção à Procne citadina (urbana procne), também
conhecida como andorinha da cidade, alude à história de Procne e sua irmã Philomela,
uma história nada auspiciosa, sobretudo para Encolpius, que decepciona e deixa Circe
revoltada, assim como Tereus decepciona e deixa a princesa Procne revoltada. Ruas
mantém a menção ao pássaro com “andorinha urbana”, embora o uso do nome Procne,
um uso possível, talvez contribuísse para levar o leitor a pensar na história de Procne e
Philomela mais diretamente. Portanto, fazendo um balanço das perdas e das
198
correspondências conseguidas por Ruas, podemos afirmar que toda a rede de
hipertextualidades do poema, que insinua um discurso sobre fracasso e desapontamento,
é relativamente comprometida na tradução, considerando que ela contém elementos
talvez incorrespondíveis hoje em dia, em nosso contexto literário-cultural.
registramos no capítulo II, quando analisávamos as traduções dos dois
poemas curtos em que Petrônio faz uma paródia explícita de Virgílio, que Leminski, em
sua tradução, sem que justificasse, salta do capítulo 129 para o 135. O poema sobre o
dignus amore locus de Encolpius consta do capítulo 131, e logo, também não
dispomos de uma tradução dele feita por Leminski.
Tradução de Alex Marins
O altivo plátano, o loureiro carregado de bagos,
O trêmulo cipreste espalhavam sombras de verão.
E o pinheiro esbelto farfalhava aos ventos.
Um riacho espumante de água vadia
Brincava entre eles, e cantava nas pedras,
Em sonora corredeira.
Era um lugar para o amor.
Assim provava o rouxinol nos bosques,
Assim a andorinha vinda da cidade,
Enquanto saltavam na relva as delicadas violetas,
E envolviam em canção o seu secreto amor.
Logo de início, o adjetivo atribuído ao plátano, “altivo”, inverte o sentido
cômico de mobilis”, que remete à frouxidão do falo de Encolpius. Ao falar em
“loureiro carregado de bagos”, Marins perde a brincadeira metalingüística antes
existente em bacis redimita Daphne” (Daphne cingida de bagas). Certamente inspirado
em Miguel Ruas, Alex Marins usa exatamente os mesmos termos que seu colega usara
para traduzir a descrição do pinho: “E o pinheiro esbelto farfalhava aos ventos.” Com
isso, o tradutor incorre na mesma inversão de conotação que dificulta a associação à
ninfa Pitys. Apenas “cipreste” conserva uma possível remissão a Cyparissus.
Na descrição do riacho, Marins enfatiza o lado prazenteiro da representação:
“Um riacho espumante de água vadia / Brincava entre eles, e cantava nas pedras, / Em
sonora corredeira.” Entretanto, as nuances de desagrado, existentes nos ambíguos
termos quereloe vexabat”, desaparecem. Marins, assim como Ruas, opta por nomes
mais populares na tradução de urbana Procne”: “a andorinha vinda da cidade”. A
mesma crítica feita antes, vale aqui: o uso do nome Procne talvez contribuísse para levar
o leitor a pensar mais diretamente na história de Procne e Philomela, o que é
199
conveniente no caso. Enfim, são poucas as sutilezas do poema que sobrevivem na
tradução de Marins, sendo assim bastante comprometida a rede de hipertextualidades do
poema.
Tradução de Sandra Braga Biachet
O plátano flexível espalhava suas sombras de verão,
e também o loureiro, coroado de seus frutos, e ainda os agitados ciprestes,
além de pinheiros podados por um turbilhão de vento trepidante a sua volta.
Entre essas árvores, um rio espumante brincava com as águas
errantes e sacudia as pedrinhas com sua ruidosa água.
Lugar sob medida para o amor: testemunha disso é o rouxinol silvestre,
e também a amiga das cidades, Procne, que, soltos ao redor da grama e das
delicadas violetas, cultivavam estes campos com seu canto.
“Plátano flexível” é uma tradução bem pura para mobilis platanus”; o contexto
pode até ajudar, mas é difícil perceber uma conotação maliciosa e cômica em “flexível”.
A tradução de bacis redimitapor “coroado de seus frutos” corrobora a brincadeira
metalingüística, porém a opção pelo nome latino “loureiro” ao invés do grego “Daphne
prejudica as analogias. Petrônio tinha à sua disposição a palavra laurus, mas parece ter
usado Daphne intencionalmente.
A tradução da descrição do pino merece comentário à parte. A palavra vertex
(cujo ablativo singular é vertice) pode designar tanto um turbilhão como o cume de uma
árvore ou de um monte, por exemplo. Parece mais cabível imaginar o cume de uma
árvore que trepida ao ser balançada (pelo vento ou não) do que pensar num vento que
trepida. Bianchet, no entanto, prefere entender trepidanti verticecomo “turbilhão de
vento trepidante”. A interpretação da tradutora não coincide com a nossa, que em
trepidanti vertice pinus(pino de vértice trépido) uma possibilidade de associação à
ninfa Pitys, uma possibilidade bastante condizente com o discurso cômico sobre
fracasso e desapontamento, supostamente implícito no poema e absolutamente explícito
na prosa.
As nuances de prazer e desagrado existentes em amnis ... querulo vexabat rore
lapillos” (o riacho revoltava as pedras com sua água querelante) são niveladas a um tom
prazenteiro e tenro com a tradução de Bianchet: “um rio ... sacudia as pedrinhas com
sua ruidosa água”. Exceto pela palavra “ruidosa”, que pode sugerir alguma conotação
ligada ao desagrado, o rio representado na tradução é bastante mimoso. Em
contrapartida, a preservação do nome grego Procne mantém possibilidade de se fazer
uma alusão ao mito da princesa Procne, que embora contenha um caso de amor em seu
200
enredo, possui uma temática que envolve desapontamento, vingança e até mesmo
castração – temas bastante consoantes ao contexto do poema.
Tradução de Cláudio Aquati
Derramara sombras estivais o oscilante plátano,
também Dáfinis coroada de bagas e os tremulantes ciprestes;
também, com seu trêmulo vértice, o pinheiro de aparada fronde.
Entre as árvores, um espúmeo regato de águas erradias
brincava, e os seixos fazia rolar com sua água murmurante.
Local perfeito para o amor:
testemunham-no o silvestre rouxinol e a citadina Prócne,
aves que, espalhadas em torno dos prados
e das delicadas violetas,
alegravam os campos com seu canto.
A tradução de mobilispor “oscilante”, assim como o “flexível” de Bianchet,
não contém comicidade ou malícia em si, mas pode ser lido com tal conotação dentro do
contexto do poema. Todavia, “Dáfinis coroada de bagas”, ciprestes” e o pinheiro de
“trêmulo vértice” preservam a hipertextualidade dos elementos e de suas representações
dentro poema.
Não se pode dizer que a tradução de Aquati para amnis ... querulo vexabat rore
lapillos(o riacho revoltava as pedras com sua água querelante) contempla as nuances
de prazer e desagrado, deleite e agressão, existentes em querulo e vexabat”. Ao
traduzir essa passagem por “um ... regato ... os seixos fazia rolar com sua água
murmurante”, Aquati, assim como os demais tradutores, tendem a assumir o lado
prazenteiro, deleitoso, ou simplesmente físico da representação. No entanto, a tradução
de urbana Procne por “citadina Prócne” logra uma correspondência bastante
satisfatória. Aquati, portanto, a despeito de duas correspondências apenas parciais,
consegue manter a maior parte daquilo que constitui a rede subjacente de
hipertextualidades do poema, que, evocando basicamente a mitologia grega, constrói
um discurso cômico sobre os temas do fracasso e do desapontamento, no momento em
que Encolpius martiriza-se por seu fracasso na cena de sexo com Circe.
No capítulo II, no final do item em que apresentamos o estudo sobre o dignus
amore locus(item 2.1.2.9), expusemos o razoável argumento elaborado por Di Simone
(1993) de que os versos sobre Tântalo tradicionalmente apresentados no capítulo 82
deveriam constar do capítulo 132, após Encolpius frustrar o desejo de Circe.
Estruturalmente, as duas cenas são paralelas: uma trata-se do solilóquio de Encolpius na
201
praia, depois de perder Giton (cap. 81), e outra trata-se do solilóquio de Encolpius na
cama, após frustrar Circe (cap. 132). Entretanto, considerando as conexões feitas em
outros textos entre o desejo frustrado de Tântalo e a frustração de um desejo erótico, é
muito mais possível e cabível que esses versos constassem originalmente do capítulo
132. Aqui basta dizer que não temos o direito de exigir dos tradutores a ciência dessa
questão.
5.1.9. Encolpius “epicurista”
Ainda no capítulo 132, Encopius profere uma espécie de apologia da candura, em
dísticos elegíacos:
quid me constricta spectatis fronte Catones
damnatisque novae simplicitatis opus?
sermonis puri non tristis gratia ridet,
quodque facit populus, candida lingua refert.
nam quis concubitus, Veneris quis gaudia nescit?
quis vetat in tepido membra calere toro?
ipse pater veri doctos Epicurus amare
iussit et hoc vitam dixit habere τέλος.
Notamos que tal poema vem depois dos sotádicos e da citação “descarada” de
Virgílio, que também aparecem no capítulo 132 e cujas traduções analisamos antes.
Depois da citação “descarada”, Encolpius se envergonha de sua falta de vergonha e fica
vermelho por isso, embora ninguém pudesse vê-lo (coepi secreto ... rubore perfundi, “...
comecei a ser tomado por um rubor secreto”). Em seguida, recuperando-se da vergonha,
ele se encoraja a falar em sua própria defesa, e profere o poema acima, onde provoca os
ditos Catões (Catones) e elogia os hábitos ingênuos e o linguajar sincero do povo, que
não esconde ou dissimula seus instintos. Explicamos que na cena que precede o poema
e dentro do próprio poema, referências feitas através de paródia a personagens,
fatos e temas bastante específicos, presentes no imaginário romano do tempo de
Petrônio. Entre os personagens estão, num primeiro plano, Epicuro e Catão, e num
segundo plano, Cícero, Plutarco, Marcial, Sêneca, e ainda Cipião e Laélio. Entre os
temas, estão o moralismo extremo, representado especialmente pela figura do político
Catão, e a contracultura correspondente a esse moralismo, simbolizada pelo mimo, tipo
de teatro absolutamente popular e escrachado. Entre os fatos, há um real e outro
imaginário. O real é um episódio em que Catão vai a uma festa popular; durante a
apresentação de um mimo, sua presença se torna tão inibitória a todos, que Catão
202
resolve se retirar para que a festa continue. O outro é um fato imaginado por Cícero;
referindo-se a certa passagem de uma obra de Epicuro, em que o filósofo chega a
afirmar que os prazeres físicos são centrais para “o bem”, Cícero supõe que Epicuro,
referência moral para os romanos, tenha deixado o rubor da vergonha de lado ao fazer
tal afirmação.
No poema, além do significado intrínseco do dístico elegíaco, pontos
especialmente importantes, pois que dão consistência a todas essas associações
complexas. São eles: a provocação do primeiro verso, dirigida aos “Catões”; todo o
discurso que elogia a ingenuidade do povo, mas especialmente o verso quodque facit
populus, candida lingua refert(o que quer que faça o povo, minha língua cândida
replica); e os últimos versos que mencionam Epicuro, empregando um conceito central
dentro de sua filosofia, o conceito de télos (τέλος): ipse pater veri doctos Epicurus
amare / iussit et hoc vitam dixit habere τέλος (o próprio pai da verdade, o douto
Epicuro, amar / ordenou e disse que vida tem esse τέλος).
Tradução de Miguel Ruas
Por que me olhais com olhos severos, oh! Catões,
A minha obra tão ingênua de um estilo cândido
E numa linguagem simples conto os costumes do povo.
Quem não conhece o amor e as alegrias de Vênus?
Quem pode proibir, pois, que nossos sentidos se acendam
Na tepidez do leito? Em sua doutrina recomendou-o
O próprio pai da verdade, o douto Epicuro,
Sustentando que a vida não tem outro fim.
Ruas mantém a provocação dirigida aos ditos Catões, no primeiro verso, e
enfatiza a ingenuidade e a candura que os costumes do povo inspiram. A tradução de
quodque facit populus, candida lingua refert (o que quer que faça o povo, minha
língua cândida replica) por “E numa linguagem simples conto os costumes do povo”,
resultado de uma evidente liberdade tomada pelo tradutor, atenua bastante a força
retórica de candida lingua refert(minha língua cândida replica), mas não chega a
desfazer ou apagar qualquer das associações implícitas. A tradução dos últimos versos
mantém convenientemente a menção a Epicuro e ao conceito de télos. A tradução de
télos por “fim” não é imprópria, mas assim como Petrônio usa a palavra grega,
seguramente com intencionalidade, talvez fosse mais adequado fazer o mesmo
empréstimo, que τέλος reforça a menção explícita à filosofia epicurista, distorcida
irônica e provocativamente na paródia.
Nº de sílabas
203
- / - / - / - / - / - /
Por que me olhais com olhos severos, oh! Catões,
- / - / - / - / - - - / - / - -
A minha obra tão ingênua de um estilo cândido
- / - - / - / - / - - / - - / -
E numa linguagem simples conto os costumes do povo.
/ - - / - / - - - / - - / -
Quem não conhece o amor e as alegrias de Vênus?
/ / - - - / / || - / - - / - - / -
Quem pode proibir, pois, que nossos sentidos se acendam
- - - / - / - || - / - - / - - - - / -
Na tepidez do leito? Em sua doutrina recomendou-o
- / - / - - / - || - / - - / -
O próprio pai da verdade, o douto Epicuro,
- - / - - / - - / - - /
Sustentando que a vida não tem outro fim.
12
14
15
13
15
17
13
12
Em relação ao metro, Ruas consegue resultados bastante razoáveis. Os versos
são bem ritmados; os dois primeiros, por exemplo, têm um ritmo notoriamente jâmbico.
Além disso, certo equilíbrio no número de sílabas, e um detalhe adicional aproxima
os versos de Ruas dos versos de Petrônio, no que se refere ao efeito do dístico elegíaco:
cada par de verso tem um verso maior e outro menor, ainda que não seja sempre nessa
ordem. Os pares de versos do poema em português têm 12 e 14, 15 e 13, 15 e 17, e por
fim 13 e 12 sílabas.
O poema em questão, reiterando, consta do capítulo 132, e portanto,
infelizmente também não dispomos de uma tradução dele feita por Leminski.
Tradução de Alex Marins
Por que me franzis o cenho, Catões de nossos dias,
E condenais minha obra de singela inocência?
Bondoso apreço sorri em minha página pura,
Um estilo coloquial relata os feitos do povo.
Pois quem conhece o ato do amor,
Os prazeres de Vênus?
Quem nos proibiria
De aquecer nossos membros em uma cama meio cálida?
O sábio Epicuro, pai da verdade,
Ensina esta doutrina e diz que nela jaz
O fim correto de toda vida.
A provocação do primeiro verso é mantida, mas ainda no início do poema
algumas traduções abalam a integridade do discurso construído no poema. Por exemplo,
a tradução de sermonis puri(de um linguajar puro) por “em minha página pura” é
particularmente imprópria. “Um estilo coloquial relata os feitos do povo” não tem a
204
retórica de quodque facit populus, candida lingua refert(o que quer que faça o povo,
minha língua cândida replica), e ainda compromete a contraposição da ingênua
imoralidade popular, simbolizada pelo mimo, ao radicalismo moralista, simbolizado por
Catão. Talvez a mais grave das impropriedades esteja na tradução de “nescit” (não sabe,
desconhece, ignora) em nam quis concubitus, Veneris quis gaudia nescit?” (pois quem
não sabe o que é uma transa, os prazeres de Vênus?); Marins traduz o verso por “Pois
quem conhece o ato do amor, / Os prazeres de Vênus?”, invertendo a retórica da
pergunta.
Os versos finais não mencionam explicitamente a doutrina de Epicuro: ipse
pater veri doctos Epicurus amare / iussit et hoc vitam dixit habere τέλος” (o próprio pai
da verdade, o douto Epicuro, amar ordenou e disse que vida tem esse τέλος). Eles
apenas implicitamente vinculam a apologia aos instintos sexuais e o elogio da
ingenuidade dos hábitos e do pensamento do povo àquela afirmação de Epicuro
comentada por Cícero através do conceito de télos, distorcendo de forma provocativa e
irônica a doutrina filosófica de Epicuro. Como recém notamos, quem antes usou
deliberadamente a palavra doutrina na tradução desses versos, franqueando o que estava
apenas implícito, foi Miguel Ruas. Aparentemente, Marins outra vez recorreu à tradução
de Ruas a fim de encontrar a sua. No entanto, o tradutor confunde em muito o sentido
da paródia com sua tradução: “O sábio Epicuro, pai da verdade, / Ensina esta doutrina e
diz que nela jaz / O fim correto de toda vida.” Epicuro teria dito que os prazeres físicos
são centrais para “o bem”, e não que eles são o télos da nossa vida. O poema distorce
intencionalmente a afirmação de Epicuro, atribuindo a ele a afirmação de que a
finalidade de nossa vida seria o amor (especialmente o amor erótico, no caso). Se
lermos a segunda parte da tradução de Marins, veremos que esse uso pérfido porque
distorcido da autoridade de Epicuro, que certamente provocaria os moralistas romanos
seguidores da doutrina epicurista, perde seu efeito e fica confuso: “Pois quem conhece o
ato do amor, / Os prazeres de Vênus? / Quem nos proibiria / De aquecer nossos
membros em uma cama meio cálida? / O sábio Epicuro, pai da verdade, / Ensina esta
doutrina e diz que nela jaz / O fim correto de toda vida.” Exceto pela manutenção da
provocação inicial aos Catões, a tradução de Marins destrói parte substancial da rede
subjacente de significados ligada àquelas personalidades, temas e fatos que
mencionamos antes.
- / - - / - / - || - / - / - / -
Nº de sílabas
14
205
Por que me franzis o cenho, Catões de nossos dias,
- - - / - - / - - - / - - / -
E condenais minha obra de singela inocência?
- / - / - - / - / - / - - / -
Bondoso apreço sorri em minha página pura,
- - / - - - / - / - / - - / -
Um estilo coloquial relata os feitos do povo.
- / - / - / - - /
Pois quem conhece o ato do amor,
- - / - - / -
Os prazeres de Vênus?
/ - - - - / -
Quem nos proibiria
- - / - - / - - / - / - / - / - -
De aquecer nossos membros em uma cama meio cálida?
- / - - - / - || / - - / -
O sábio Epicuro, pai da verdade,
- / - / - - / - / - / - /
Ensina esta doutrina e diz que nela jaz
- / - / - - / - / -
O fim correto de toda vida.
14
14
14
9
6
6
15
11
13
9
Os versos de Marins são razoavelmente bem ritmados, com predominância de
jambos (- /), troqueus (/ -) e anapestos (- - /). uma curiosa regularidade no início: os
quatro primeiros versos todos têm 14 sílabas poéticas. Isso não encontra, entretanto,
nenhum paralelo na tradução. Na tradução de Marins não nada semelhante à
alternância de versos maiores e menores correlativa ao dístico elegíaco, que
encontramos na tradução de Ruas. Portanto, tudo o que podemos afirmar é Marins
apresenta versos livres de metros variados, mas bem ritmados, isto é, seu texto tem
poeticidade. Nesse plano, contudo, não há qualquer correspondência ao poema latino.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Por que vocês me olham com a testa franzida, Catões,
e condenam esta obra de inovadora simplicidade?
Ela agrada por sua maneira pura, não amarga de falar
e através de uma linguagem clara reproduz o que o povo faz.
De fato, quem é que não conhece os amantes ou os prazeres de Vênus?
Quem se opõe a que seus membros se aqueçam em cama tépida?
O próprio pai da verdade, o sábio Epicuro nos recomendou isso
em sua obra e disse que a vida possui esse τέλος.
Bianchet mantém razoavelmente todos os elementos importantes: a provocação
inicial aos Catões, a ênfase na pureza e na simplicidade que os hábitos e o linguajar do
povo inspiram, o elogio ao despudor, e a distorção do pensamento de Epicuro. A
tradução do quarto verso, quodque facit populus, candida lingua refert(o que quer
que faça o povo, minha língua cândida replica), perde em força retórica com “e através
de uma linguagem clara reproduz o que o povo faz”. Porém o uso palavra grega
τέλος,
206
mantendo o empréstimo antes feito por Petrônio, tem mérito. Esse termo reforça a
remissão à filosofia de Epicuro, por ser um conceito central dentro dela, usado de
maneira imprópria e intencional por Encolpius.
- / - / - / - - / - - / - - /
Por que vocês me olham com a testa franzida, Catões,
- - / - - - / - - - - / - - - - / -
e condenam esta obra de inovadora simplicidade?
/ - / - - - - / - / - || - - / - - - /
Ela agrada por sua maneira pura, não amarga de falar
- - / - - - / - / - - - / - - / - /
e através de uma linguagem clara reproduz o que o povo faz.
- / - - / - - - / - - - / - - - - / - - / -
De fato, quem é que não conhece os amantes ou os prazeres de Vênus?
/ - / - - - / - - / - - / - / - -
Quem se opõe a que seus membros se aqueçam em cama tépida?
- / - / - - / - || - / - - - / - - - - - / / -
O próprio pai da verdade, o sábio Epicuro nos recomendou isso
- / - / - / - - / - - / - - / -
em sua obra e disse que a vida possui esse τέλος.
Nº de sílabas
15
17
18
18
21
15
21
15
O poema de Bianchet é bem ritmado. Na maioria dos versos pode-se reconhecer
certa predominância de jambos (- /), anapestos (- - /) e péons de acento na quarta sílaba
(- - - /), no entanto, assim como no poema latino, no poema de Bianchet também
existem versos trocaicos, como o terceiro e o sexto, por exemplo. A tradutora outra vez
compõe versos demasiadamente longos, desrespeitando uma convenção da poesia
portuguesa que admite versos de até vinte sílabas, mas a despeito disso, na segunda
metade do poema, Bianchet apresenta dois pares de versos com 21 e 15 sílabas, nos
quais se pode reconhecer algum paralelo com o dístico elegíaco: a cadência produzida
pela intercalação de um verso maior com um verso menor. Enfim, é possível afirmar
que, além de manter aqueles elementos essenciais às sutilezas da paródia, Bianchet
ainda consegue correspondências métricas bastante razoáveis.
Tradução de Cláudio Aquati
Por que me olham com o cenho franzido, ó Catões,
e condenam uma obra dotada de uma simplicidade inaudita?
Nela sorri a graça não austera da linguagem cristalina,
e o que o povo faz, uma linguagem franca traduz.
Pois quem não sabe o que é uma relação sexual,
quem desconhece os prazeres de Vênus?
Quem proíbe aquecer os membros num leito tépido?
O próprio pai da verdade, o douto Epicuro,
recomendou essas coisas em sua doutrina,
e disse que essa é a finalidade da vida.
207
Algumas das críticas feitas a Miguel Ruas valem aqui. Aquati também mantém a
provocação dirigida aos Catões, no primeiro verso, e enfatiza a candura e o despudor
inspirados pelos costumes do povo. Na tradução de quodque facit populus, candida
lingua refert(o que quer que faça o povo, minha língua cândida replica) por “e o que o
povo faz, uma linguagem franca traduz”, Aquati não toma a mesma liberdade que Ruas,
e mantêm-se próximo do texto latino. Porém, de certa forma, assim como Ruas, Aquati
atenua a força retórica de candida lingua refert (minha língua cândida replica),
traduzindo a frase por “uma linguagem franca traduz”, o que não chega a desfazer ou
apagar qualquer das associações implícitas.
A tradução de Aquati não deixa de manter convenientemente a menção a
Epicuro e ao conceito de télos, mas o uso do termo “finalidade”, embora não seja
impróprio, fica sujeito a crítica: assim como Petrônio usa a palavra grega, seguramente
com intencionalidade, talvez fosse mais adequado fazer o mesmo empréstimo, que
τέλος reforça a menção explícita à filosofia epicurista, distorcida irônica e
provocativamente na paródia. Além disso, a tradução de Epicurus amare iussit
(Epicuro amar ordenou) por “Epicuro recomendou essas coisas em sua doutrina”
merece comentário. Aquati pode ter pretendido duas coisas ao tomar tal liberdade na
tradução: primeiro, evitar que o leitor confunda o atual conceito cristão de amor com o
conceito subjacente ao poema de Petrônio, que está muito mais ligado ao amor erótico,
ou aos prazeres físicos, como Epicuro supostamente teria se expressado, e segundo,
reforçar a idéia de “citação” distorcida do pensamento de Epicuro, considerando que o
tradutor pudesse estar consciente da sutileza.
- / - / - - / - - / - / - /
Por que me olham com o cenho franzido, ó Catões,
- - / - - - / - - / - - - - - - / - - / -
e condenam uma obra dotada de uma simplicidade inaudita?
/ - - / - / - - - / - - - / - - - / -
Nela sorri a graça não austera da linguagem cristalina,
- - / - - || - - - / - / - - /
e o que o povo faz, uma linguagem franca traduz.
- / - / - / - - - - / - /
Pois quem não sabe o que é uma relação sexual,
/ - - / - - / - - / -
quem desconhece os prazeres de Vênus?
/ - / - - / - / - - / - / - -
Quem proíbe aquecer os membros num leito tépido?
- / - / - - / - || - / - - / -
O próprio pai da verdade, o douto Epicuro,
- - - / - - / - - / - - / -
Nº de sílabas
14
20
18
14
13
10
13
13
13
208
recomendou essas coisas em sua doutrina,
- / - / - / - - - - / - - / -
e disse que essa é a finalidade da vida.
14
Não muito o que afirmar em relação às características métricas do poema de
Aquati. Assim como o poema de Bianchet, o de Aquati possui um ritmo
predominantemente jâmbico e anapéstico, mas em possível alusão ao ritmo do poema
latino dispõe de alguns versos trocaicos: o terceiro, o sexto e o sétimo verso. Não
nenhuma analogia explícita ou sutil ao dístico elegíaco, porém os versos são
cadenciados e nunca longos demais, o que contribui para a poeticidade da tradução.
5.1.10. Dinheiro e Fortuna
No capítulo 137, depois de matar o ganso de Oenothea, Encolpius aplaca a velha
enfurecida, oferecendo-lhe dinheiro como compensação, e em seguida declama outro
poema:
quisquis habet nummos, secura navigat aura
fortunamque suo temperat arbitrio.
uxorem ducat Danaen ipsumque licebit
Acrisium iubeat crederem quod Danae.
carmina componat, declamet, concrepet omnes
et peragat causas sitque Catone prior.
iurisconsultus “parret, non parret” habeto
atque esto quicquid Servius et Labeo.
multa loquor: quod vis nummis praesentibus opta,
et veniet. clausum possidet arca Iovem.
Vimos que nesses versos, Petrônio brinca com a tradição mitológica e com a
moralidade romana, diluindo o significado moral do mito de Dânae ao perverter seus
elementos. Nesse poema, assim como em todo o resto da obra, Petrônio também se
afirma como árbitro de sua literatura, ao mesmo tempo em que ridiculariza seu herói e a
si mesmo. Segundo o mito, o rei Acrísio, pai de Dânae, temeroso do oráculo, cuja
profecia dizia que ele seria morto pelo filho de Dânae, prende a filha num calabouço,
dentro de um baú. No entanto, Júpiter, na forma de uma chuva de ouro, insinua-se no
calabouço e no baú, e fecunda Dânae. Dânae e seu filho Perseu, a mando de Acrísio, são
então atirados ao mar dentro do baú. Mãe e filho, porém, conseguem se salvar, e mais
tarde Perseu, consagrado como herói ao vencer a Medusa, acaba matando seu avô por
acidente numa festa comemorativa. Com isso, entre outras, a lição que a moral romana
209
parece querer sublinhar é a de que um baú cheio de dinheiro não é proteção contra as
adversidades da fortuna.
O poema, entretanto, “bagunça” todas essas referências tácitas e explícitas no
mito, e é absolutamente imoral: Encolpius quer sugerir, com sua insolência
característica, que com dinheiro se pode, sim, controlar a fortuna. O poema afirma
sarcasticamente que com dinheiro é possível subornar Acrísio a fim de desposar Dânae,
algo impensável segundo o mito.
111
Depois de dizer que basta ter dinheiro para ser
respeitado como poeta ou advogado, no verso final, o poema afirma que Júpiter, e não
Dânae, está guardado no baú: clausum possidet arca Iovem (o baú possui Júpiter
preso dentro dele). Pode-se interpretar isso de diversas maneiras, mas independente da
interpretação, o principal é que as coisas estão todas fora do lugar, bagunçadas. A moral
é virada de cabeça pra baixo, Dânae é desposada e Acrísio subornado acredita que ela é
virgem, e Júpiter acaba preso dentro do baú. Está tudo errado, conforme quer o árbitro
Petrônio.
Tradução de Miguel Ruas
Quem moedas possuir navegará sempre com vento
Favorável, e a sorte intervirá sempre em seu favor;
Poderá Danae desposar e, se quiser, Acrísio convencer
De que a filha jamais fora violada. Se for poeta
Ou declamador, todo o auditório o aplaudirá.
Se lidar no fórum, maior talento que Catão terá.
Jurisconsulto sentenciará: “É evidente” ou “não é evidente”,
Em resumo: expressa teu desejo com o dinheiro na mão
E ele satisfeito será. Entre suas paredes
Um cofre poderá encerrar até Júpiter.
Miguel Ruas clarifica a jura de Dânae, mas consegue soluções bastante
razoáveis para a tradução de todos os versos, compondo um bom poema. O poema
latino diz uxorem ducat Danaen ipsumque licebit / Acrisium iubeat crederem quod
Danae (pode desposar Dânae e fazer o próprio Acrísio acreditar em Dânae).
Supostamente Dânae jura virgindade ao seu pai, mas isso sabe quem conhece o mito.
Talvez pensando no leitor desinformado, Ruas clarifica a questão: “Poderá Danae
desposar e, se quiser, Acrísio convencer / De que a filha jamais fora violada.” Outra
liberdade tomada por Ruas na tradução está especialmente ligada à “bagunça” do mito.
O poema se encerra com a frase clausum possidet arca Iovem(o baú possui Júpiter
111
De acordo com o mito, Acrísio também era revoltado por não ter um filho homem, e vivia maldizendo
Dânae por ter nascido mulher. A sátira do poema, portanto, deprecia o drama do avarento Acrísio, que no
mito impede a qualquer custa a concepção do filho de Dânae: no poema, ele se esquece da profecia e,
cegado pelo dinheiro, acredita na filha desposada, supostamente ao mentir-lhe que ainda era virgem.
210
preso dentro dele), que é absolutamente sintética, sugestiva, ambígua, embora a
inversão seja clara: Júpiter, e não Dânae, está preso dentro do baú. Ruas, no entanto,
alonga essa frase e se permite imprimir-lhe uma estrutura semelhante à das demais
frases do poema: “Entre suas paredes / Um cofre poderá encerrar até Júpiter.” Ainda
que não seja tão comprometedor, isso tem algum efeito destrutivo, pois a consistência
da frase final, sintética e incisiva, é desconcentrada.
Tradução de Paulo Leminski
Quem tem dinheiro, não tem problemas.
Até as ondas do mar lhe obedecem.
Se é poeta, é poeta genial.
Se filósofo, profundo como o céu azul.
Se político, é a virtude encarnada.
Quem tem dinheiro não sofre.
O raio de Júpiter é a chave de um cofre.
Assim como Petrônio destrói o mito de Dânae, pervertendo sua moral e
bagunçando seus elementos, Leminski destrói o poema de Petrônio. Petrônio demonstra
consciência de seu ato e joga com isso; Lemisnki não. O tradutor pode alegar ter
justificado no prefácio que aliviaria seu leitor do pesado lastro de alusões mitológicas,
mas não pode justificar a destruição dos principais elementos do poema sem converter
sua destruição em nada que dialogue com o poema original, uma vez que seu texto é
apresentado como tradução. Ainda que Leminski use a figura de Júpiter em seu poema,
não se pode dizer que nele qualquer reminiscência do mito de Dânae pervertido, o
elemento-chave do poema latino. Além disso, talvez reconhecendo algum paralelo com
o poema antes analisado, que menciona Epicuro e provoca os ditos Catões, Leminski
acrescenta uma idéia antes inexistente: “Se filósofo, profundo como o céu azul.” Uma
vez que o poema menciona Catão, Leminski também inseriu o “filósofo”, talvez
tentando clarificar o paralelo que supôs existir. Isso se constitui uma possibilidade
interessante sugerida pelo tradutor, todavia não justifica nem compensa o apagamento
em questão.
Tradução de Alex Marins
O homem endinheirado sempre tem vento em suas velas,
E compõe seu destino com toda liberdade.
Se quiser poderá desposar a própria Dánae,
E fazer Acrisius acreditar no que ela lhe disser.
Se for um poeta ou orador público,
Sacudirá a massa;
Superará Catão e sua causa ganhará.
Imaginai-o advogado; imporá seus
211
“É evidente” e “Não é evidente”,
Será Sérvio e Labeo a uma só vez.
Em suma: com dinheiro na mão,
Expressas um desejo, e o que queres acontece.
Júpiter está encerrado ao lado de teu cofre.
Os argumentos do discurso de Encolpius encontram bons correspondentes na
tradução de Marins, e exceto por um detalhe, a perversão do mito de Dânae subsiste.
“Se quiser poderá desposar a própria Dánae, / E fazer Acrisius acreditar no que ela lhe
disser” é uma boa tradução para uxorem ducat Danaen ipsumque licebit / Acrisium
iubeat crederem quod Danae”, pois logra uma construção simples conquanto literária
em português, sem fazer recurso a grandes alterações ou clarificações. Diferente de
Ruas, Marins não explicita a suposta jura de virgindade de Dânae, e mantém a
insinuação tácita.
Talvez fosse conveniente padronizar os nomes. Marins usa a ortografia
portuguesa para traduzir o nome da princesa (Dánae), ao invés da brasileira (Dânae), e
mantém os nomes latinos Acrisius e Labeo, ao passo que opta pelos equivalentes
portugueses Catão e Sérvio. Ao menos dentro dos limites do poema, os nomes poderiam
estar todos em latim ou todos em português, segundo a ortografia brasileira. No entanto
isso é um detalhe que não compromete a paródia. Talvez algo comprometedor seja uma
pequena impropriedade na tradução de clausum possidet arca Iovem(o baú possui
Júpiter preso dentro dele), que Marins traduz por “Júpiter está encerrado ao lado de teu
cofre”. A noção de “ao lado” não possui paralelo algum no poema latino. Ao colocar
Júpiter “ao lado” do baú Marin torna a perversão do mito ainda mais misteriosa no
sentido interpretativo. E isso, por um lado, chega a ser interessante, ainda que não se
possa afirmar que foi intencional por parte do tradutor, mas por outro lado, desvia o
foco do leitor, que talvez se concentre na interpretação dessa nova imagem, ao invés de
contemplar a bagunça feita por Petrônio.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Quem tem dinheiro pode navegar sob brisa segura
e temperar seu destino com sua própria vontade.
Pode casar-se com Dânae e ter o direito de ordenar
ao próprio Acrísio que acredite em Dânae.
Pode escrever poemas, declamar, tocar todos bem ao fundo,
ganhar todas as causas e ser superior a Catão.
Como jurisconsulto, pode impor seu “é evidente, não é evidente”
e ser tudo que Sérvio e Labeão foram.
Resumindo: o que quiseres, peça com dinheiro vivo,
que chegará até a ti. Teu cofre mantém Júpiter preso a ti.
212
Na tradução de Bianchet, em geral, o discurso de Encolpius e seus argumentos
estão bem conservados, mas a representação pervertida do mito Dânae sofre algumas
distorções. A tradução de uxorem ducat Danaen ipsumque licebit / Acrisium iubeat
crederem quod Danaepor “Pode casar-se com Dânae e ter o direito de ordenar / ao
próprio Acrísio que acredite em Dânae” não é impossível, mas sabemos que uxorem
ducat”, no contexto em que é usado, sugere algo mais simples e físico (desposar,
acasalar) que “casar”, que evoca diretamente a instituição do casamento. No caso em
questão, para que a paródia satírica tenha efeito, talvez fosse mais conveniente sugerir
apenas o ato físico, que tira a virgindade de Dânae.
Além disso, Bianchet imprime a sua interpretação racionalizada na tradução do
final clausum possidet arca Iovem(o baú possui Júpiter preso dentro dele) por “Teu
cofre mantém Júpiter preso a ti.” A mesma crítica feita a Ruas vale para Bianchet: essa
frase que encerra o poema é absolutamente sintética, sugestiva, ambígua, embora a
inversão seja clara: Júpiter, e não Dânae, está preso dentro do baú. Bianchet, entretanto,
alonga a frase e se permite imprimir-lhe uma estrutura distinta da original, que combina
melhor com o final, quando o poema então se dirige à segunda pessoa. Ainda que não
seja tão comprometedor, isso tem algum efeito destrutivo, pois a parcimônia e
consistência da frase final, sintética e incisiva, se perdem. Além disso, é possível
afirmar que, também nesse caso, a mudança desvia o foco do leitor, que pode perder de
vista a bagunça programada por Petrônio.
Tradução de Cláudio Aquati
Todo aquele que tem dinheiro, navegue com ventos seguros
e equilibre o destino a seu arbítrio.
Despose Dânae e ser-lhe-á permitido
que ordene ao próprio Acrísio acreditar em Dânae.
Componha poemas, declame;
exprobre todos e advogue causas: será melhor que Catão.
Jurisconsulto haverá de ter à sua disposição o “é claro, não é claro”,
e haverá de valer todo Sérvio e Labeão.
Falo muito: escolhe o que queres com dinheiro à vista,
e isso virá. Um baú manterá Júpiter trancafiado.
Aquati com sua tradução não compromete substancialmente o discurso de
Encolpius, que inverte a lição da moral romana a de que o dinheiro não evita os
infortúnios. O poema traduzido preserva as comparações extremadas presentes no
poema latino, que servem para representar o poder do dinheiro, segundo o pensamento
insolente do anti-herói do Satyricon. A perversão do mito de Dânae tem sua integridade
213
quase que inteiramente mantida. A referência ao mito que consta da primeira parte está
particularmente bem vertida: “Despose Dânae e ser-lhe-á permitido / que ordene ao
próprio Acrísio acreditar em Dânae.” No entanto, na tradução do final do poema, em
que Júpiter e o baú são mencionados, há um ponto questionável.
Defendemos que a frase clausum possidet arca Iovem” tem o sentido de “o baú
possui Júpiter preso dentro dele” ou simplesmente “o baú possui Júpiter preso”, tendo
em vista duas coisas: no mito original, o baú possui Dânae presa, enquanto que na
perversão de Petrônio, o baú possui Júpiter preso; a simplicidade da frase a torna
fortemente sugestiva, ainda que não comprometa o objetivo básico da paródia, que é
bagunçar os elementos do mito, a fim de perverter seu sentido moral e o sentido de seus
elementos. Possidere é o infinitivo presente de dois verbos. O primeiro é o verbo
possideo, possidere, que funciona conforme a segunda conjugação e tem três acepções:
a primeira a idéia de possuir, ter a posse, ter em mãos; a segunda a idéia de ter
posses, possuir propriedades; e a terceira a idéia de tomar posse, ocupar, tornar-se dono.
O segundo é o verbo possido, possidere, que funciona conforme a terceira conjugação, é
irregular (pois aparece nos tempos presente, imperfeito e futuro) e tem apenas uma
acepção: a de tomar posse, ocupar, tornar-se dono. Possidet, como aparece em “clausum
possidet arca Iovem”, está na terceira pessoa do singular, e pode ser tanto um indicativo
presente do verbo possideo, quanto um indicativo futuro do verbo possido.
Considerando que o contexto do poema nos indica que o baú possui ou contém Júpiter
dentro dele, possidet pode se tratar do verbo possideo, um indicativo presente
conjugado na terceira pessoa do singular. Aquati, no entanto, parece entender que se
trata do verbo possido ao usar o tempo futuro na tradução, embora se valha de uma
acepção que somente o verbo possideo possui, ao traduzir possidet” por “manterá”, em
“Um baú manterá Júpiter trancafiado”. Nesse ponto, portanto, ao que parece, Aquati
cometeu uma impropriedade. Isso não compromete em muito a paródia de Petrônio,
mas outra possibilidade interpretativa a ela, o que pode desviar o foco do leitor de
seu objetivo primário: fazer que com ele perceba que Petrônio é árbitro de sua literatura,
e bagunça as referências mitológicas e a tradição literária conforme a sua vontade,
indiferente à fortuna.
5.1.11. Tempestade no poema
214
O último poema curto examinamos antes, no capítulo II desta dissertação, aparece no
capítulo 108 do Satyricon, e é proferido por Tryphaena, à bordo do navio de Lichas, a
fim de interromper uma briga:
“quis furor” exclamat “pacem convertit in arma?
quid nostrae meruere manus? non Troius heros
hac in classe vehit decepti pignus Atridae,
nec Medea furens fraterno sanguine pugnat.
sed contemptus amor vires habet. ei mihi, fata
hos inter fluctus quis raptis evocat armis?
cui non est mors una satis? ne vincite pontum
gurgitibusque feris alios immititte fluctus.”
Haec ut turbato clamore mulier effudit (...)
Observamos que o uso caótico de referências épicas e modelos literários,
agregado às justaposições do real ao metafórico na representação da tempestade,
promove uma tempestade figurativa no poema, e de alguma forma pressagia a
tempestade real que está por vir na narrativa, a qual leva o navio ao naufrágio. As
referências a Menelau, Helena e Medeia, o uso do hexâmetro épico e a própria cena em
si, uma tentativa de conciliação feita pela mulher cobiçada, são os elementos
explicitamente épicos do poema. Associados a eles estão a interrupção do primeiro
verso pelo comentário do narrador que tenciona realidade e ficção, e sugere
instabilidade no clima do poema – e as referências literais e metafóricas à tempestade. A
sutileza do poema (a tempestade figurada que se insinua nele) constitui-se de todos
esses elementos, difíceis de serem percebidos senão analisados tanto em detalhe como
em conjunto.
Tradução de Miguel Ruas
Que furor vos faz – exclama – da paz passar à guerra?
Quais os crimes das nossas mãos? O herói de Tróia
Neste navio não leva o refém arrebatado ao filho de Atreu;
Nem aqui combate Medeia, de sangue fraterno sedenta.
Somente um amor desdenhado acende vossa cólera.
E, dizei-me, entre estas ondas agitadas, a morte
Devemos invocar com as armas nas mãos? Não nos basta
Uma só morte? O mar não ultrapasseis em crueldade
E a este abismo feroz não acrescenteis as vagas do vosso sangue.
Depois que a mulher disse essas palavras com voz patética (...)
Ruas mantém a “interrupção” do primeiro verso com o verbo dicendi
(“exclama”), corroborando uma suposta tentativa de provocar instabilidade no começo
do poema. As referências épicas são bem vertidas e contextualizadas, não obstante
215
alguma clarificação. Por exemplo, “non Troius heros / hac in classe vehit decepti pignus
Atridae (o herói de Tróia não leva neste navio a prenda do átrida traído) é
evidentemente clarificado em “O herói de Tróia / Neste navio não leva o refém
arrebatado ao filho de Atreu”. Helena e Menelau estavam implícitos em pignus e
Atridae, mas “o refém arrebatado ao filho de Atreu” facilita em muito a compreensão do
leitor.
Contudo uma outra clarificação prejudica um pouco a justaposição de
referências metafóricas e literais à tempestade, talvez a principal sutileza do poema. As
frases ei mihi, fata hos inter fluctus quis raptis evocat armis?(ai de mim! quem em
meio a estas ondas evoca o fado brandindo as armas?) e ne vincite pontum
gurgitibusque feris alios immititte fluctus(não ousai vencer o mar e nem lançai outras
ondas neste turbilhão feroz) remetem às ondas do mar, que provavelmente acometiam o
navio naquele momento, e aos ímpetos violentos dos passageiros e tripulantes que
brigavam enquanto o mar se enfurecia. As ondas da primeira frase (fluctus) são
certamente as ondas do mar, mas as ondas da segunda frase (alios ... fluctus), lançadas
no turbilhão do mar, são os ímpetos violentos metaforizados. Ruas oferece uma
tradução apropriada para a primeira frase (“E, dizei-me, entre estas ondas agitadas, a
morte devemos invocar com as armas nas mãos?”), mas se esforça para deixar claro o
significado das “outras ondas” da segunda frase, destruindo o trocadilho e
consequentemente parte de todo o jogo figurativo do poema: “O mar não ultrapasseis
em crueldade e a este abismo feroz não acrescenteis as vagas do vosso sangue.” O
tradutor usa outra palavra para fluctus, “vagas”, para diferenciar de “ondas”, que já tinha
usado antes, e deixa claro que essas vagas dizem respeito à briga: “as vagas do vosso
sangue”.
Analisamos que logo após o último verso, Encolpius como narrador usa o
trocadilho da tempestade como um gancho para descrever a elocução de Tryphaena, que
traz para a sua linguagem os perigos meteorológicos sugeridos no poema. Na prosa, ele
retoma a narrativa com haec ut turbato clamore mulier effudit (assim que a mulher
precipitou aquelas palavras num clamor tempestuoso). O verbo turbo pode ser usado no
sentido de “agitar” o mar; effundo pode ser encontrado ao se falar da chuva que
“precipita”; e clamor também é usado para se referir ao “trovão” (COLLIGNON, 1892;
ZEITLIN, 1971). Embora nenhuma dessas palavras individualmente sugira a metáfora
de uma tempestade, uma vez combinadas e contextualizadas, essa interpretação torna-se
216
absolutamente possível. Ruas, no entanto, não admite ou não percebe tal possibilidade,
ao traduzir o trecho por “Depois que a mulher disse essas palavras com voz patética”.
Tradução de Paulo Leminski
Que loucura é esta
que em guerra transforma a nossa festa?
Acaso alguma adúltera Helena
fugiu para uma remota Tróia?
Quem sabe Medéia abandonada,
sobre os filhos do amante exerce vingança?
Apenas o ciúme esta rixa atiça.
Cesse todo o conflito a esse furor insano.
Aceitem minha morte como um beijo.
Quem sabe entre as ondas deste oceano,
acharei mais piedade que entre vós!
Estes versos, ditos em altos brados (...)
A interrupção do primeiro verso com a prosa através do verbo dicendi
exclamatinterrupção que provoca instabilidade no poema e remete ao mar instável
e tempestuoso simplesmente desaparece na tradução de Leminski. Aparentemente, a
pretensão de usar um suposto conhecimento comum (ou desconhecimento) do brasileiro
sobre mitologia antiga como critério para sua tradução levou Leminski a fazer duas
alterações deliberadas: explicitar Helena, excluindo a menção indireta a Menelau, e em
relação a Medeia, trocar o assassinato de seu irmão Apsirto pelo assassinato de seus
próprios filhos, fato mais conhecido, certamente por causa de Eurípedes e toda a
tradição literário-teatral. Essas alterações em si não comprometem muito as qualidades
do poema latino, pois a maneira como essas referências épicas são usadas na tradução
têm praticamente a mesma função que no original. Tryphaena manipula o tema do
ciúme, e a princípio quer convencer seus companheiros de que não nenhum motivo
realmente digno para alguma briga. Ao dizer que, no navio de Lichas, Enéias não está
levando Helena, e nem Medeia está matando seu irmão (dois grandes dramas motivados
pelo ciúme), a personagem quer dizer que não nenhum motivo maior para qualquer
luta, mas em seguida reconhece a força do ciúme (o de Lichas por ela, o dela, de
Eumolpus e Encolpius por Giton etc.) na origem das brigas, embora termine clamando
pela paz numa atitude consciente e sensata. Na tradução de Leminski o argumento do
ciúme permanece.
O final do poema é totalmente mudado na tradução, e portanto a justaposição
das referências literais às referências metafóricas à tempestade inexiste. No entanto,
comentamos antes que todo esse jogo figurativo entorno da tempestade tem a função de
217
pressagiar a tempestade real que está por vir na narrativa. Na transcriação de Leminski,
o pedido de Tryphaena para que aceitem sua morte seguido da declaração “Quem sabe
entre as ondas deste oceano, acharei mais piedade que entre vós”, um apelo bastante
dramático feito a fim de cessar a briga, de alguma forma também insinua ou mesmo
anuncia o naufrágio trágico. Podemos entender isso como uma destruição deliberada e
idiossincrática do tradutor, ou podemos entender como uma busca de correspondência à
função narrativa da sutileza do poema. Se assumirmos a segunda possibilidade, temos
que afirmar que clarificação na prática de Leminski, pois fica explícito o presságio
ou o anúncio do naufrágio e da tragédia.
Por último, cabe constatar que a tradução de haec ut turbato clamore mulier
effudit (assim que a mulher precipitou aquelas palavras num clamor tempestuoso) por
“Estes versos, ditos em altos brados” não contempla aquela sugestiva combinação de
termos que invoca a tempestade na elocução de Tryphaena, a não ser talvez pelo uso de
“altos brados”, que pode levar o leitor atento a pensar em raios.
Tradução de Alex Marins
Que fúria é essa que faz da paz a guerra? Que crime temos em nossas
mãos? Neste barco nenhum herói de Tróia traz consigo troféu roubado ao filho
de Atreu, nenhuma Medéia furiosa combate aqui o sangue irmão. Somente o
amor desprezado é que vos força. Ah! Deverá a morte ser cortejada no mar
por armas desembainhadas? A quem não basta sua própria morte?
Não ultrapasseis o mar, não acrescenteis a
Este selvagem abismo as vagas novas do sangue.
Tal discurso, pronunciado com um timbre de voz que traía a emoção de Trifena
(...)
Assim como na tradução de Leminski, na de Marins a interrupção do primeiro
verso com exclamatum verbo dicendi, tipicamente usado pelo narrador na prosa
desaparece junto de todas as suas implicações. Estranhamente, Marins apresenta sua
tradução dos primeiros versos não em versos, mas em prosa, como se fosse um único
parágrafo. Apenas a tradução dos dois últimos versos do poema latino é disposta em
versos por Marins. Isso talvez possa ser decorrente de algum erro de editoração, mas
independente da causa, isto é, tenha sido a mudança acidental ou deliberada, o fato é
que isso compromete o papel do poema como interrupção da prosa no Satyricon.
Retomaremos esse ponto adiante, quando fizermos a análise métrica das traduções.
As referências épicas estão particularmente bem preservadas. Ainda que
“Medéia furiosa combate aqui o sangue irmão” seja sintaticamente discordante com
218
Medea furens fraterno sanguine pugnat(Medeia furiosa luta pelo sangue do irmão), a
tradução é cabível. No entanto, a sentença “Somente o amor desprezado é que vos
força”, tradução para sed contemptus amor vires habet(mas o amor desprezado tem
força), afeta um pouco a coerência do discurso. Com essa afirmação, Tryphaena
reconhece que por mais insensata que seja uma briga, o ciúme deixa qualquer um
furioso, favorecendo as brigas; a tradução de Marins leva o discurso para outro
caminho.
O trocadilho entre as ondas reais e as ondas metafóricas desaparece nessa
tradução também. O tradutor, provavelmente inspirado por Miguel Ruas, explicita os
ímpetos bélicos antes metaforizados, usando as mesmas palavras que este: “vagas novas
do sangue”. As primeiras ondas, as reais, sequer são citadas. Ademais, na retomada da
prosa, não nada correspondente à principal característica que destacamos nessa parte
do poema latino: a representação da elocução de Tryphaena conforme a tempestade. As
insinuações de Encolpius em haec ut turbato clamore mulier effudit (assim que a
mulher precipitou aquelas palavras num clamor tempestuoso), que brincavam com a
idéia de tempestade nas palavras da mulher, inexistem na tradução de Marins: “Tal
discurso, pronunciado com um timbre de voz que traía a emoção de Trifena”.
Tradução de Sandra Braga Bianchet
Que fúria transformou a paz em guerra?
Por que nossas mãos se alistaram no exército? Nenhum herói troiano
está transportando nesta armada a garantia do enganado Atrida,
nenhuma Medéia desvairada está lutando contra o sangue fraterno,
mas um amor desprezado incita-nos a usar a força. Pobre de mim!
Quem, em meio a estas ondas, evoca os destinos com as armas arrebatadas?
A quem não é suficiente uma única morte? Não superai o mar,
não lançai outras ondas neste bravio turbilhão de água.
Quando aquela mulher proferiu seu brado perturbado (...)
Igual a Leminski e Marins, Bianchet dispensa a interrupção do primeiro verso
com exclamat”, deixando de lado todas as implicações cruciais que isso tem. Além
disso, na primeira parte do poema, a tradutora mantém-se exageradamente próxima do
latim em alguns casos e opta por soluções forçosas em outros, logrando interpretações
possíveis, mas desarmônicas entre si. A tradução de quid nostrae meruere manus?
(que desgraça mereceram nossas mãos? ou o que foi que mereceram nossas mãos?) por
“Por que nossas mãos se alistaram no exército?”, ou a de pignuspor “garantia” não
são, por exemplo, muito convenientes no contexto do poema. Contraditoriamente, nos
219
dois verbos finais, quando deveria usar o presente do subjuntivo (supereis e lanceis),
Bianchet usa o imperativo (superai, lançai). Ainda assim, a tradutora consegue preservar
parte fundamental das referências épicas, e não altera a coerência do discurso sobre o
ciúme.
Tem mérito a tradução da segunda metade do poema: os trocadilhos das ondas
são devidamente mantidos, e Bianchet não incorreu em nenhuma racionalização nem
tendeu a clarificar as metáforas, demonstrando sintonia com a prática de Petrônio. Na
retomada da prosa, porém, os termos escolhidos na tradução não trazem consigo a
sugestão da tempestade na elocução de Tryphaena.
Tradução de Cláudio Aquati
Que fúria – exclama ela converte em arma a paz?
Que castigo mereceram nossas mãos?
O herói troiano não transporta nesta esquadra
a esposa do átrida enganado,
nem a enlouquecida Medéia luta com o sangue fraterno,
mas, desprezado, o amor ganha forças.
Ai de mim! Em meio a ondas como estas,
quem brande as armas para provocar o destino?
Que é esse que não se sacia com uma morte apenas?
Não derroteis semelhante mar, nem lanceis mais ondas
aos seus abismos inclementes.
Ao ouvir o discurso dessa mulher, vertido numa voz entre alta e emocionada (...)
Apropriadamente, Aquati enfatiza o enxerto de uma expressão prosaica no meio
do hexâmetro épico que abre o poema, ato fortemente sugestivo e programático. O
discurso sobre o ciúme está bem mantido e o conjunto das referências épicas
devidamente conservado. Na tradução do poema em si, não qualquer impropriedade
possível de se apontar. A tendência do alongamento existe não nas traduções de
Aquati, mas nas de todos os tradutores que se preocuparam em traduzir o maior número
possível de elementos do poema latino. Isto se faz verdadeiro aqui também.
Aparte, na tradução desse poema, temos que reconhecer o bom senso usado por
Aquati ao bem temperar seu vocabulário e suas construções frasais, primando por um
texto literário. Os trocadilhos da segunda metade do poema permanecem plausivelmente
na tradução, e apenas a retomada da prosa não atende às qualidades que destacamos em
nossa análise: assim como os outros tradutores, Aquati também não imprime nas
palavras com que Encolpius descreve a locução de Tryphaena a mesma sugestão da
tempestade que havia em Petrônio.
220
Passemos, pois, a uma análise métrica das traduções, a fim de observar os efeitos
rítmicos conseguidos e eventualmente alguma busca de correspondência ao hexâmetro
épico, considerando implicações de seu uso no contexto. Nessa parte, a tradução de
Marins, por não estar apresentada em versos, será desconsiderada.
Tradução de Miguel Ruas
- - / - / || - / - || - / - / - / -
Que furor vos faz – exclama – da paz passar à guerra?
/ - / - - / - / || - / - /
Quais os crimes das nossas mãos? O herói de Tróia
/ - - / - / - - / - - - / - - / - - /
Neste navio não leva o refém arrebatado ao filho de Atreu;
- - / - / - - / - - / - - / - - / -
Nem aqui combate Medeia, de sangue fraterno sedenta.
- / - - / - - / - / - / - / - -
Somente um amor desdenhado acende vossa cólera.
- - / - || - - - / - - - / - || - / -
E, dizei-me, entre estas ondas agitadas, a morte
- / - - - / - / - - / || - - / -
Devemos invocar com as armas nas mãos? Não nos basta
/ - / / - || - / - - - - / - - - / -
Uma só morte? O mar não ultrapasseis em crueldade
- / - / - - / - - - - / - / - - / - / -
E a este abismo feroz não acrescenteis as vagas do vosso sangue.
Tradução de Paulo Leminski
- - / - / -
Que loucura é esta
- / - - / - / - / -
que em guerra transforma a nossa festa?
- / - / - / - - / -
Acaso alguma adúltera Helena
- / \ - - - / - / -
fugiu para uma remota Tróia?
- / - - / - - - / -
Quem sabe Medéia abandonada,
- - / - - / - / - - / -
sobre os filhos do amante exerce vingança?
- / - - - / - - / - / -
Apenas o ciúme esta rixa atiça.
/ - / - - / - - - - / - / -
Cesse todo o conflito a esse furor insano.
- / - / - / - / - / -
Aceitem minha morte como um beijo.
- / - - / - / - - / -
Quem sabe entre as ondas deste oceano,
- - / - - / - / - /
acharei mais piedade que entre vós!
Tradução de Sandra Braga Bianchet
- / - - - / - / - / -
Que fúria transformou a paz em guerra?
- / - - / - - / - - / - - || - / - / - / -
Nº. de sílabas
14
12
19
17
14
15
15
16
19
5
9
9
9
9
11
11
13
10
10
10
13
20
221
Por que nossas mãos se alistaram no exército? Nenhum herói troiano
- / - - / - / - / - || - - - / - - - / - / - -
está transportando nesta armada a garantia do enganado Atrida,
- / - - / - - - / - / - / - / - / - - / -
nenhuma Medéia desvairada está lutando contra o sangue fraterno,
- - - / - - / - || - / - - - - / - / - || / - - /
mas um amor desprezado incita-nos a usar a força. Pobre de mim!
/ || - / - / - / - || - / - - / - - / - - - - / -
Quem, em meio a estas ondas, evoca os destinos com as armas arrebatadas?
- / - / - - / - - / - - / - || - - - / - /
A quem não é suficiente uma única morte? Não superai o mar,
- - / / - / - / - - / - - / - / -
não lançai outras ondas neste bravio turbilhão de água.
Tradução de Cláudio Aquati
- / - || - / - / - || - / - / - /
Que fúria – exclama ela converte em arma a paz?
- - / - - - / - / - /
Que castigo mereceram nossas mãos?
- / - / - - - / - / - / -
O herói troiano não transporta nesta esquadra
- / - - / - - - / -
a esposa do átrida enganado,
/ - - - / - - / - / - - - / - - / -
nem a enlouquecida Medéia luta com o sangue fraterno,
- - - / - || - / / - / -
mas, desprezado, o amor ganha forças.
/ - / || - / - / - / - / -
Ai de mim! Em meio a ondas como estas,
/ / - / - - - - - / - - / -
quem brande as armas para provocar o destino?
/ / / - - - - - / - / - / - / -
Quem é esse que não se sacia com uma morte apenas?
- - - / - - / - / || - - / - / -
Não derroteis semelhante mar, nem lanceis mais ondas
- - - / - - - / -
aos seus abismos inclementes.
20
20
22
21
20
16
14
12
12
9
17
10
11
13
15
14
8
O poema de Tryphaena tem um ritmo irregular – possivelmente mais uma alusão
à tempestade e ao caos metaliterário que acomete o poema, o que não significa que os
versos não sejam ritmados. No entanto, o uso do hexâmetro e as referências épicas
bastante simbólicas evocam inevitavelmente todo o imaginário das grandes epopéias
antigas, e além disso, pela cena e o papel que representa, Tryphaena invoca mais
especificamente a figura de Helena, tentando apaziguar um conflito. Portanto,
independente de alguma regularidade ou rigidez métrica que o próprio poema latino não
tem, uma busca de correspondência à simples conotação do hexâmetro, como um metro
marcadamente épico, bastaria aqui. Evidente que na tradição de poesia portuguesa o
metro épico por excelência é o decassílabo, mas também outros metros nobres na
poesia clássica, que poderiam ser explorados. Independente disso, não há qualquer
obrigação de se comporem versos isométricos, visto que qualidades rítmicas diversas
222
podem ser obtidas pelos tradutores e visto que a alusão aos temas épicos está mais que
explícita nos termos do poema.
Os quatro poemas, de um modo geral, têm também um ritmo notadamente
irregular, entretanto, em todos eles há predominância de anapestos (- - - /), jambos (- /) e
péons de acento na quarta sílaba (- - - /), o que insinua um ritmo crescente, progressivo.
Isso é uma qualidade conseguida pelos tradutores, e condiz perfeitamente com a
grandiloqüência épica.
Nenhum deles optou por um metro fixo, o decassílabo heróico, por exemplo,
mas exceto Bianchet, todos compuseram versos de medidas aceitáveis dentro das
convenções, o que ratifica sua poeticidade. As linhas de Bianchet são bem estruturadas,
mas extravasam o limite do verso. Se a tradutora simplesmente as tivesse quebrado,
como fez Aquati, deixando a tradução com mais versos que o poema latino, mas
respeitando o limite silábico de um verso em português (20 sílabas) e ao mesmo tempo
preservando a integridade do texto de Petrônio, talvez lograsse melhores resultados.
Contudo, reiterando, a característica comum às quatro traduções, a impressão de um
ritmo crescente, que sugere grandiloqüência, em nossa perspectiva, é absolutamente
condizente com os motivos épicos, e indica uma significativa busca de correspondência
nesse nível por parte dos tradutores.
223
CONCLUSÃO
6.1. Avaliação geral de cada tradutor
6.1.1. Miguel Ruas
6.1.2. Paulo Leminski
6.1.3. Alex Marins
6.1.4. Sandra Braga Bianchet
6.1.5. Cláudio Aquati
6.2. A tradução e a letra de Petrônio: a experiência brasileira
6.3. Como a letra de Petrônio pode sobreviver
224
6.1. Avaliação geral de cada tradutor
Analisadas todas as traduções dos poemas escolhidos para este trabalho, é chegada a
hora de tentarmos tecer considerações mais abrangentes e conclusivas a respeito do
desempenho de cada tradutor. A fim de obter uma visão geral, uma visão do conjunto
dos poemas traduzidos por cada um dos cinco tradutores, estabelecemos uma maneira
de quantificar as avaliações que fizemos. Sem a intenção muitas vezes ingrata de reduzir
a subjetividade e os méritos de cada tradutor a números, determinamos as seguintes
graduações:
Graus para a avaliação da tradução de cada sutileza:
1 - Não houve correspondência
2 - Correspondência parcial
3 - Correspondência alta
Graus para a avaliação geral de cada poema traduzido:
1 - Correspondeu a poucas das sutilezas do poema ou a nenhuma delas
2 - Correspondeu a parte significativa das sutilezas do poema
3 - Correspondeu à maior parte das sutilezas ou às principais delas
A avaliação detalhada dos poemas, segundo as sutilezas destacadas em cada um,
foi feita a partir desses três graus estabelecidos, e consta dos anexos deste trabalho.
Dessa avaliação detalhada depreendemos uma avaliação geral, a qual comentamos
agora.
6.1.1. Miguel Ruas
Miguel Ruas, o primeiro a publicar uma tradução do Satyricon para o português no
Brasil, foi particularmente bem sucedido. De um modo geral, o tradutor demonstrou
respeito à integridade do texto latino, incorrendo poucas vezes em tendências
deformadoras totalmente comprometedoras. Esta postura rendeu-lhe um desempenho
considerável, segundo nossa avaliação:
225
Tabela 1: Avaliação geral dos poemas traduzidos - Miguel Ruas
Poema Avaliação geral
Encolpius indignado 2
Virgílio “transcrito 1
Tomada de Tróia – A abertura 2
Tomada de Tróia – Escondidos no cavalo 3
Tomada de Tróia - Oh pátria! 3
Tomada de Tróia – Laocoonte 2
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra 3
Tomada de Tróia - Tróia embriagada, Tróia enganada 2
Viver e comer 2
A metáfora da queda 1
Publilius Syrus 2
Poeta sum 2
Geografia da luxúria 3
Elegia sobre a calvície repentina 2
Sexo como morte 1
Dignus amore lócus 2
Encolpius “epicurista” 3
Dinheiro e Fortuna 3
Tempestade no poema 2
Quadro 2: Avaliação geral dos poemas traduzidos - Miguel Ruas
Miguel Ruas
3
2
1
Avaliação geral 3 Avaliação geral 2 Avaliação geral 1
Nº de poemas que receberam
essa avaliação
6 10 3
Percentual 32% 53% 16%
Tomada de Trói
a - Escondidos no cavalo
Tomada de Tróia - Oh pátria!
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra
Geografia da luxúria
Encolpius “epicurista”
Dinheiro e Fortuna
Encolpius indignado
Tomada de Tróia - A abertura
Tomada de Tróia - Laocoonte
Tomada de Tróia - Tróia embriagada, Tróia enganada
Viver e comer
Publilius Syrus
Poeta sum
Elegia sobre a calvície repentina
Dignus amore locus
Tempestade no poema
Virgílio “transcrito”
A metáfora da queda
Sexo como morte
Apenas em três dos dezenove poemas que consideramos neste trabalho
112
Ruas
teve um desempenho ruim, segundo nossa avaliação. Na maior parte das traduções seu
desempenho foi razoável, e em um terço delas o desempenho foi ótimo. Os motivos
pelos quais, segundo nossos critérios, certas traduções não foram tão bem sucedidas são
recorrentes ao longo das análises que fizemos, foram bastante comentados, e não
cremos que aqui seja necessário listá-los, reiterando os problemas das traduções. No
112
A efeito de análise, as partes do grande poema sobre a tomada de Tróia foram consideradas pequenos
poemas.
226
entanto, como forma de enfatizar e registrar o que foi perseverado nas melhores
traduções, preparamos a seguinte relação:
Tabela 2: Sutilezas preservadas nas traduções que receberam avaliação 3 (ótima) - Miguel Ruas
Poema
O que foi preservado ou recriado para que a tradução fosse
bem sucedida
Tomada de Tróia - Escondidos no cavalo
- A multiplicidade de significantes que juntos constroem
um discurso metaliterário
Tomada de Tróia - Oh pátria!
- Uma referência específica à tradição literária,
imprescindível à paródia
- Uma mudança significativa na enunciação
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra
- Trocadilhos que compõem uma rede subjacente de
significados, ligados a certa distorção que se faz na
paródia
- Uma informidade significante, um desvio de estilo ligado
à composição do personagem
Geografia da luxúria
- Referências a itens cobiçados na época de Petrônio,
recriadas com coerência, através de correspondentes
funcionais
- Analogias importantes, recriadas mediante o contexto da
prosa
Encolpius “epicurista”
- Uma referência específica à tradição filosófica,
imprescindível à paródia
- A alternância métrica (maior-menor) do dístico elegíaco,
significativa no caso
Dinheiro e Fortuna
- Os elementos de um mito parodiado, dispostos de
maneira pervertida tal como Petrônio o fez
Talvez uma qualidade de Ruas, que lhe possibilitou algum sucesso considerável,
seja sua atenção para o que há de estranho em poemas aparentemente simplórios demais
para pertencerem a uma obra clássica; sua atenção para aquilo que pistas sobre a
sátira cita e sutil de Petrônio, um autor absolutamente metaliterário. Inferimos isso
porque Ruas com consciência ou não captou diferentes tipos de procedimentos: a
ambigüidade de termos específicos, multiplicidades de significantes que constroem
discursos metaliterários, referências à tradição filosófico-literária imprescindíveis a uma
ou outra paródia, sutilezas como mudanças significativas na enunciação, trocadilhos e
redes subjacentes de significados, informidades significantes, entre outros. Ademais,
seu pioneirismo na tradução do Satyricon no Brasil tem alguma importância, e sob essa
condição, sua sensibilidade para o texto de Petrônio tem um valor especial, pelo que
damos um reconhecimento diferenciado ao respeito que Ruas demonstrou pela
integridade desse texto.
6.1.2. Paulo Leminski
227
Sem a intenção de contestar necessariamente o projeto de tradução de Leminski, sua
concepção tradutória ou sua literatura, podemos dizer, a partir de nossa análise, segundo
nossos critérios, que em raras oportunidades Leminski foi feliz em suas transcriações.
Seu estilo idiossincrático levou-o a apagar as principais características de muitos dos
poemas que analisamos neste trabalho, sem contar a omissão injustificada de cinco
pequenos poemas de Encolpius e a omissão declarada da maior parte do poema sobre a
tomada de Tróia de algum modo indignante, uma vez que se sabe de toda a paródia
que existe por trás dele, absolutamente sofisticada e interessante.
Tabela 3: Avaliação geral dos poemas traduzidos - Paulo Leminski
Poema Avaliação geral
Encolpius indignado -
Virgílio “transcrito -
Tomada de Tróia – A abertura 1
Tomada de Tróia – Escondidos no cavalo 1
Tomada de Tróia - Oh pátria! 2
Tomada de Tróia – Laocoonte -
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra -
Tomada de Tróia - Tróia embriagada, Tróia enganada -
Viver e comer 1
A metáfora da queda 3
Publilius Syrus 2
Poeta sum 3
Geografia da luxúria 2
Elegia sobre a calvície repentina 2
Sexo como morte 2
Dignus amore locus -
Encolpius “epicurista” -
Dinheiro e Fortuna 1
Tempestade no poema 1
Quadro 4: Avaliação geral dos poemas traduzidos - Paulo Leminski
Paulo Leminski
3
2
1
Sem avalião
Avaliação geral 3 Avaliação geral 2 Avaliação geral 1 Sem avaliação
Nº de poemas que
receberam essa
avaliação
2 5 5 7
Percentual 11% 26% 26% 37%
A metáfora da
queda
Poeta sum
Tomada de Tróia - Oh pátria!
Publilius Syrus
Geografia da luxúria
Elegia sobre a calvície
repentina
Sexo como morte
Tomada de Tróia - A abertura
Tomada de Tróia - Escondidos no cavalo
Viver e comer
Dinheiro e Fortuna
Tempestade no poema
Encolpius indignado
Virgílio “transcrito”
Tomada de Tróia - Laocoonte
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra
Tomada de Tróia - Tróia embriagada, Tróia enganada
Dignus amore locus
Encolpius “epicurista”
Temos que considerar que em algumas das traduções que receberam avaliação 2
Leminski apresentou soluções de recriação extremamente interessantes e plausíveis,
228
como as que destacamos na análise de sua tradução de “Publilius Syrus”, por exemplo,
no entanto o apagamento de outros elementos no mesmo poema fez com que essas
traduções não fossem conceituadas da melhor maneira. Por vezes ele aproximou-se da
tradução, por vezes distanciou-se dela.
Tabela 4: Sutilezas preservadas nas traduções que receberam avaliação 3 (ótima) - Paulo Leminski
Poema
O que foi preservado ou recriado para que a tradução fosse
bem sucedida
Metáfora da queda
- O sentido físico da preposição supra, que no poema
latino sugere uma brincadeira metaliterária em torno do
tema da queda.
Poeta sum
- A locução e o modelo dialético do sermo romano, que
davam uma conotação de conversa à fala metrificada de
Eumolpus.
- Os elementos que evocam a tradição literária,
especialmente Horácio e Tíbulo, cumprindo a função
parodística e, ao mesmo tempo, a função de compor o
personagem num jogo metaliterário hilário e depreciativo.
Em suas duas traduções mais bem conceituadas, Leminski foi bem sucedido
porque preservou de alguma forma as sutilezas, mas também porque seu estilo coincidiu
com as características do poema, como afirmamos especialmente em “Poeta sum”.
Entretanto, cabe considerar, como reconheceu Cláudio Aquati no posfácio à sua
tradução, que Leminski teve um papel importante na difusão do Satyricon no Brasil,
pois a intenção última de sua tradução foi a de fazer com que o Satyricon fosse visto
como literatura popular pelo leitor brasileiro de hoje. Tanto seu prestígio enquanto
escritor como seu estilo leve e bem humorado certamente contribuíram ao menos para
que mais leitores entrassem em contato com a obra de Petrônio, e vislumbrassem a
grandeza desse autor. Tivesse Leminski um pouco menos de rejeição aos estudos
eruditos sobre a poesia do Satyricon, talvez usaria suas qualidades de poeta para elevar
as qualidades da poesia de Petrônio.
6.1.3. Alex Marins
As traduções de Marins, assim como as de Leminski, foram marcadas por uma notável
distância do texto latino. No entanto, diferente de Leminski, Marins o demonstrou
intenção de transcriar os poemas com sua tradução, a despeito dessa distância. Em não
poucos casos, a tradução de Marins sugeriu não uma falta de consciência dos
procedimentos poéticos de Petrônio, mas também nos levou a questionar se o tradutor
229
sequer teria compreendido algum sentido do texto latino, a julgar por incoerências e
contradições encontradas, e até mesmo a questionar a autenticidade do texto traduzido.
Tabela 5: Avaliação geral dos poemas traduzidos - Alex Marins
Poema Avaliação geral
Encolpius indignado 1
Virgílio “transcrito 1
Tomada de Tróia - A abertura 2
Tomada de Tróia – Escondidos no cavalo 1
Tomada de Tróia - Oh pátria! 2
Tomada de Tróia – Laocoonte 2
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra 2
Tomada de Tróia - Tróia embriagada, Tróia enganada 2
Viver e comer 1
A metáfora da queda 1
Publilius Syrus 1
Poeta sum 3
Geografia da luxúria 3
Elegia sobre a calvície repentina 1
Sexo como morte 1
Dignus amore lócus 1
Encolpius “epicurista” 1
Dinheiro e Fortuna 2
Tempestade no poema 1
Quadro 5: Avaliação geral dos poemas traduzidos - Alex Marins
Alex Marins
3
2
1
Avaliação geral 3 Avaliação geral 2 Avaliação geral 1
Nº de poemas que receberam
essa avaliação
2 6 11
Percentual 11% 32% 58%
Poeta sum
Geografia da luxúria
Tomada de Tróia - A abertura
Tomada de Tróia - Oh pátria!
Tomada de Tróia - Laocoonte
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra
Tomada de Tróia - Tróia embriagada, Tróia enganada
Dinheiro e Fortuna
Encolpius indignado
Virgílio “transcrito”
Tomada de Tróia - Escondidos no cavalo
Viver e comer
A metáfora da queda
Publilius Syrus
Elegia sobre a calvície repentina
Sexo como morte
Dignus amore locus
Encolpius “epicurista”
Tempestade no poema
Isso fica evidente na avaliação geral: mais da metade dos poemas (58%) recebeu
a pior avaliação e apenas dois deles receberam avaliação 3 (ótima). Parece claro que
bastaria simplesmente um maior compromisso com o texto de Petrônio para que Marins
fosse mais bem sucedido em suas traduções. Em suas duas melhores traduções,
230
especialmente em “Poeta sum”, uma atenção ao conjunto de detalhes do poema latino
rendeu-lhe sucesso considerável.
Tabela 6: Sutilezas preservadas nas traduções que receberam avaliação 3 (ótima) - Alex Marins
Poema
O que foi preservado ou recriado para que a tradução fosse
bem sucedida
Poeta sum
- A locução e o modelo dialético do sermo romano, que
davam uma conotação de conversa à fala metrificada de
Eumolpus.
- Os elementos que evocam a tradição literária,
especialmente Horácio e Tíbulo, cumprindo a função
parodística e, ao mesmo tempo, a função de compor o
personagem num jogo metaliterário hilário e depreciativo.
Geografia da luxúria
- Referências a itens cobiçados na época de Petrônio,
recriadas com coerência, através de correspondentes
funcionais
- Referências geográficas relevantes
- Analogias importantes, substituídas por correspondentes
funcionais
- O teor moralista, conveniente ao perfil do personagem e
às intenções da paródia
No caso de Marins, é particularmente difícil encontrar razões que nos levem a
compreender melhor suas escolhas e seu desempenho; não sabemos em que texto se
baseou para fazer a tradução, não sabemos de suas concepções, não sabemos sequer se
essa pessoa existe. Perante tal obscuridade, oferecemos nossas avaliações com base
exclusivamente nos critérios estabelecidos aqui.
6.1.4. Sandra Braga Bianchet
Bianchet teve um desempenho consideravelmente bom em nossa avaliação, mas se por
um lado, nos casos de Leminski e Marins, a distância do texto latino representou um
problema crucial, por outro lado, no caso da tradutora, o apego ao latim, às formas
latinas, representou por vezes algo igualmente problemático. No entanto,
inegavelmente, em se tratando da poesia de Petrônio cujas sutilezas são complexas,
especialmente porque têm uma infinidade de pontos de ligação intertextuais,
intratextuais e hipertextuais a tendência prudente de Bianchet de manter-se próxima
ao latim, ao invés de recriar, mostrou-se bastante conveniente.
Tabela 7: Avaliação geral dos poemas traduzidos - Sandra Braga Bianchet
Poema Avaliação geral
Encolpius indignado 2
231
Virgílio “transcrito 1
Tomada de Tróia - A abertura 3
Tomada de Tróia - Escondidos no cavalo 2
Tomada de Tróia - Oh pátria! 3
Tomada de Tróia - Laocoonte 1
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra 2
Tomada de Tróia - Tróia embriagada, Tróia enganada 3
Viver e comer 2
A metáfora da queda 1
Publilius Syrus 1
Poeta sum 2
Geografia da luxúria 2
Elegia sobre a calvície repentina 2
Sexo como morte 3
Dignus amore locus 2
Encolpius “epicurista” 3
Dinheiro e Fortuna 2
Tempestade no poema 2
Quadro 6: Avaliação geral dos poemas traduzidos - Sandra Braga Bianchet
Sandra Braga Bianchet
3
2
1
Avaliação geral 3 Avaliação geral 2 Avaliação geral 1
Nº de poemas que
receberam essa avaliação
5 10 4
Percentual
26% 53% 21%
Tomada de Tróia - A abertura
Tomada de Tróia - Oh pátria!
Tomada de Tróia - Tróia embriagada, Tróia enganada
Sexo como morte
Encolpius “epicurista”
Encolpius indignado
Tomada de Tróia - Escondidos no cavalo
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra
Viver e comer
Poeta sum
Geografia da luxúria
Elegia sobre a calvície repentina
Dignus amore locus
Dinheiro e Fortuna
Tempestade no poema
Virgílio “transcrito”
Tomada de Tróia - Laocoonte
A metáfora da queda
Publilius Syrus
Assim como Ruas, Bianchet saiu-se bem na avaliação geral, obtendo avaliação
razoável em metade de suas traduções e avaliação ótima em um quarto delas. A
diferença básica entre os dois é que um insinuou inclinações literárias em seu estilo de
tradução, e outra não escondeu sua inclinação para questões lingüísticas. De uma
maneira ou de outra, Bianchet nos ofereceu algumas boas traduções.
Tabela 8: Sutilezas preservadas nas traduções que receberam avaliação 3 (ótima) - Sandra Braga Bianchet
Poema
O que foi preservado ou recriado para que a tradução fosse
bem sucedida
Tomada de Tróia - Abertura
- A ambigüidade do trocadilho existente em pandere, que
fazia referência à Eneida e ao mito de Tróia, pelo sentido
físico do termo, e ao mesmo indicava a abertura do poema.
232
- A estranheza do poema de Eumolpus, sua informidade
significante.
- O encobrimento figurado dos gregos, principal
característica metaliterária desse início do poema.
Tomada de Tróia - Oh pátria!
- Uma referência específica à tradição literária,
imprescindível à paródia
- Uma mudança significativa na enunciação
Tomada de Tróia - Tróia embriagada,
Tróia enganada
- O uso oportuno do prefixo re-, ligado a toda idéia de
reiteração, repetição, tema metaliterário do poema.
- A conotação de fraqueza existente na descrição do cavalo
desencilhado.
Sexo como morte
- A tripla possibilidade de interpretação do poema,
especialmente pela tradução da frase final.
Encolpius “epicurista”
- A referência a uma figura política específica, ligada à toda
manipulação que se faz do imaginário romano da época.
- Uma referência específica à tradição filosófica,
imprescindível à paródia
- A alternância métrica (maior-menor) do dístico elegíaco,
significativa no caso, e o ritmo trocaico, correspondente ao
original.
A sensibilidade de Bianchet às potencialidades da língua latina e sua atenção aos
inúmeros diálogos que Petrônio estabelece com a tradição literária ficam claros, por
exemplo, na reprodução de sutilezas como o uso estratégico do prefixo re-, no poema
sobre a tomada de Tróia, e no esforço por manter ou recriar referências específicas,
como no poema “Encolpius ‘epicurista’”. Um de seus principais problemas,
recorrentemente apontado em nossas análises, é a composição de versos. As traduções
que Bianchet apresentou para os poemas de Petrônio são em geral demasiadamente
prosaicas, e em poemas cujo metro contém alguma sutileza relevante isso é
particularmente comprometedor. Eventualmente, a simples quebra de algumas linhas
em duas bastaria para que o limite do verso fosse respeitado. A despeito disso, aquele
leitor que não tem conhecimento do latim e procura um texto bastante próximo do seu
correspondente latino, independente de qualquer maior elaboração literária, encontra na
edição de Biachet traduções bastante interessantes.
6.1.5. Cláudio Aquati
Indiscutivelmente Aquati é o tradutor que obteve o melhor desempenho em nossa
avaliação. É notável em seu trabalho um equilíbrio entre o ideal e o possível. A tentativa
de contemplar o conjunto dos elementos do poema parece ter guiado sua empresa. A
condição privilegiada de Aquati ele foi o quinto a publicar sua tradução no Brasil
pode ter contribuído para o seu sucesso, mas ele, que dedicou anos ao estudo do
233
Satyricon, parece não ter dispensado a tarefa árdua de mergulhar num trabalho
filológico longo e extenso a respeito da obra. As traduções de Aquati combinam
elaboração literária e apreço filológico, um bom exemplo de busca pelo ideal defendido
por Berman para a tradução: a letra.
Tabela 9: Avaliação geral dos poemas traduzidos - Cláudio Aquati
Poema Avaliação geral
Encolpius indignado 2
Virgílio “transcrito 2
Tomada de Tróia - A abertura 2
Tomada de Tróia - Escondidos no cavalo 3
Tomada de Tróia - Oh pátria! 3
Tomada de Tróia – Laocoonte 3
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra 1
Tomada de Tróia - Tróia embriagada, Tróia enganada 2
Viver e comer 2
A metáfora da queda 3
Publilius Syrus 3
Poeta sum 3
Geografia da luxúria 3
Elegia sobre a calvície repentina 3
Sexo como morte 2
Dignus amore locus 3
Encolpius “epicurista” 2
Dinheiro e Fortuna 2
Tempestade no poema 3
Quadro 7: Avaliação geral dos poemas traduzidos - Cláudio Aquati
Cláudio Aquati
3
2
1
Avaliação geral 3 Avaliação geral 2 Avaliação geral 1
Nº de poemas que
receberam essa avaliação
10 8 1
Percentual
53% 42% 5%
Tomada de Tróia - Escondidos no cavalo
Tomada de Tróia - Oh pátria!
Tomada de Tróia - Laocoonte
A metáfora da queda
Publilius Syrus
Poeta sum
Geografia da luxúria
Elegia sobre a calvície repentina
Dignus amore locus
Tempestade no poema
Encolpius indignado
Virgílio “transcrito”
Tomada de Tróia - A abertura
Tomada de Tróia - Tróia embriagada, Tróia enganada
Viver e comer
Sexo como morte
Encolpius “epicurista”
Dinheiro e Fortuna
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra
Os números são significativos: apenas uma das traduções de Aquati teve
avaliação 1 e mais da metade delas recebeu a melhor avaliação. Como dissemos, o
234
equilíbrio foi decisivo para seu sucesso. Pela relação a seguir, podemos notar que seu
foco variou conforme a especificidade de cada poema.
Tabela 10: Sutilezas preservadas nas traduções que receberam avaliação 3 (ótima) - Cláudio Aquati
Poema
O que foi preservado ou recriado para que a tradução fosse
bem sucedida
Tomada de Tróia - Escondidos no cavalo
- A proliferação de significantes ligada ao tema do
encobrimento.
Tomada de Tróia - Oh pátria!
- Uma referência específica à tradição literária,
imprescindível à paródia
- Uma mudança significativa na enunciação, que enfatiza a
quebra, a modulação, representada pelos versos 11 e 12 do
poema
Tomada de Tróia - Laocoonte
- Um dos elementos que enfatizam a idéia de repetição,
reiteração (os dois gumes da arma);
- Aspectos da representação que enfatizam a idéia de
fraqueza (a mão fraca e o golpe que resvala)
Metáfora da queda
- As palavras simplórias de Trimalchio
- A referência física dada pela preposição “supra”,
principal ponto de ligação com a rede subjacente de
significados daquele momento da narrativa
Publilius Syrus
- Os elementos dos primeiros versos que compõem a
alegoria da lúxuria como um monstro
- Todos os itens exóticos que compõem o discurso crítico
à luxúria
- as sutis ligações internas e externas do poema (a cegonha
lasciva e as matronas fúteis de Trimalchio e Habinnas, a
cegonha traidora e a matrona infiel do poema, o brilho e a
exuberância da plumagem do pavão e o contraste
estruturante com o brilho, a suavidade e a perversa
transparência da seda da noiva)
- A gradação que vai da dignidade à perversão na
descrição da cegonha
- Sarcasmo, retórica e síntese presentes em uma das frases
que fecham o poema
Poeta sum
- A locução e o modelo dialético do sermo romano, que
davam uma conotação de conversa à fala metrificada de
Eumolpus.
- Os elementos que evocam a tradição literária,
especialmente Horácio e Tíbulo, cumprindo a função
parodística e, ao mesmo tempo, a função de compor o
personagem num jogo metaliterário hilário e depreciativo.
- O ritmo trocaico do versos latino
Geografia da luxúria
- Todos os itens exóticos que compõem o discurso crítico
à luxúria
- Referências geográficas e analogias relevantes
- O teor moralista, conveniente ao perfil do personagem e
às intenções da paródia
Elegia sobre a calvície repentina
- As analogias (vida, homem, natureza e morte)
- O paralelo entre os finais da primeira e da segunda parte
- O contraste as duas partes (sobriedade-informalidade)
- O tom de lamento próprio da elegia
Dignus amore locus
- A hipertextualidade dos elementos e de suas
representações dentro poema (o mito evocado por cada
elemento e os significados trazidos por eles, que distorcem
o suposto romantismo da representação)
Encolpius “epicurista” - A referência a uma figura política específica, ligada à
235
toda manipulação que se faz do imaginário romano da
época.
- A ênfase sobre a candura e o despudor inspirados pelos
costumes do povo
- O sintetismo de uma frase central
- A alternância métrica (maior-menor) do dístico elegíaco,
significativa no caso, e o ritmo trocaico, correspondente
ao original.
Tempestade no poema
- O enxerto de uma expressão prosaica no meio do
hexâmetro épico que abre o poema, ato fortemente
sugestivo e programático
- O discurso sobre o ciúme
- O conjunto das referências épicas
- A reprodução do significado do hexâmetro épico pela
impressão de um ritmo crescente, que sugere
grandiloqüência
Se compararmos as tabelas em que relacionamos o que foi preservado ou
recriado nas melhores traduções, veremos que traduções de um mesmo poema foram
conceituadas da melhor maneira por méritos diferentes. Ou seja, traduções de um
mesmo poema que receberam conceito 3 nem sempre preservaram ou recriaram as
mesmas coisas. Isso significa que uma tradução nos pareceu ótima não porque
correspondeu a todas as sutilezas do poema; especialmente no caso de poemas mais
complexos, tal feito é quase impossível. Determinada tradução nos pareceu ótima
porque o tradutor nos trouxe o nimo daquilo que representa Petrônio naquele poema,
porque o tradutor nos trouxe parte considerável das sutilezas daquele poema. Essa
talvez seja uma lição que se pode tirar da experiência de Aquati: ele claramente esteve
livre da ilusão de uma tradução irreparável, mas levou em conta o conjunto das
qualidades de cada poema e buscou preservar ou recriar o máximo que pôde,
privilegiando o que parecia ser crucial.
236
6.2. A tradução e a letra de Petrônio: a experiência brasileira
Apresentadas as avaliações gerais que fizemos de cada tradutor, chega o momento de
retomarmos a tese central. Sem qualquer torneio, repetimo-la da maneira mais simples
possível: as sutilezas dos poemas do Satyricon representam a maior qualidade desses
poemas e também consistem na maior dificuldade para a tradução.
De fato, por tudo o que se considerou no capítulo II, parece plausível admitir que
as – por nós chamadas – sutilezas da poesia de Petrônio são o grande diferencial de seus
poemas e, sob certa perspectiva, amesmo a razão de ser de sua literatura. Não fosse
pelas sutilezas de sua poética, que se estendem por verso e prosa no Satyricon, por meio
das quais ele expressa seu senso criativo, manipulando e pervertendo gêneros e
tradições, Petrônio seria apenas mais um autor medíocre do período de Nero, apagado
pela sombra de Virgilio. Independente de como a reconheçam, essa postura de Petrônio
– que o leva a esconder, por debaixo da mediocridade que sua época lhe fadou, os traços
de sua genialidade – é a maior responsável pela sobrevivência do Satyricon.
Talvez seja possível chegar a afirmar que, da maneira como Petrônio faz ficção
prosimétrica, da maneira como faz ficção misturando prosa e verso, o autor chega a
criar um nero poético particular. Seus poemas não são grandes sozinhos; eles
dependem, ao mesmo tempo, de uma série de vínculos, estão amarrados a um sem
número de fios, e a genialidade de Petrônio está exatamente na composição dessa trama,
na qual os poemas estão compreendidos. Mais interessante ainda para nós foi perceber,
ao longo das análises, que esse gênero poético insinuado por Petrônio também exige
uma concepção tradutória apropriada: a tradução dos poemas do Satyricon se frente
ao desafio de manter as conexões, os fios, que lhes dão vitalidade e grandeza, ao mesmo
tempo que leveza. Portanto, a tradução dos poemas do Satyricon é a tradução de seu
arranjo de sutilezas.
Para verificar o segundo pressuposto de nossa tese, o mais importante deles, por
que singularidade a este trabalho e justifica sua inserção nos Estudos da Tradução,
analisamos as cinco traduções do Satyricon oficialmente publicadas no Brasil até hoje.
Melhor dizendo, analisamos as traduções feitas por Ruas, Leminski, Marins, Bianchet e
Aquati dos treze poemas curtos e do poema longo sobre a tomada de Tróia, mediante as
sutilezas evidenciadas no estudo que fizemos. Ou seja, tomamos o caso brasileiro da
tradução do Satyricon a fim de verificar a validade de nossa tese. Por tudo o que
vimos, refletimos e concluímos até aqui, podemos dizer que, sim, a julgar pela
237
experiência brasileira, as sutilezas do poema do Satyricon consistem em umas das
principais dificuldades para a tradução, senão na principal delas, considerando que elas
representam a própria qualidade desses poemas. Isso, no entanto, não nos isenta de fazer
algumas ressalvas.
Quisemos insinuar algumas coisas com a organização dessa dissertação.
Partimos de uma concepção de tradução que pressupõe a necessidade de se proceder ao
estudo da obra, do autor e seu contexto antes de iniciar qualquer tradução concepção
que buscou legitimação pela escolha de Mounin e Berman como autores referenciais.
Como nos dispusemos a criticar, fizemos este estudo da maneira mais aprofundada
possível, e ele nos evidenciou aquilo que veio a ser o mote para este trabalho, aquilo que
entendemos ser a maior importância da obra, especialmente dos poemas: as sutilezas de
seu autor. Não por acaso, dois dos autores mais conceituados na nossa avaliação, Aquati
e Bianchet, sabidamente realizaram semelhante estudo.
No entanto, não temos o direito presunçoso de condenar qualquer tradutor ou
tradução porque uma ou outra sutileza (ou a maioria delas) não foi percebida ou
traduzida, especialmente porque não podemos exigir dos tradutores a mesma concepção
que assumimos. O tradutor é livre para assumir a concepção que mais lhe faz sentido e
assim adotar suas estratégias. Aceitamos e temos o dever de aceitar que os tradutores
brasileiros usem o verso livre, ainda que o verso para os romanos e para Petrônio fosse
a priori metrificado. Aceitamos e temos o dever de aceitar que o tradutor tome certas
liberdades coerentes com seu estilo e sua concepção, pelo que admitimos, por exemplo,
traduções em que Leminski apenas aproveitou o tema geral do poema latino em sua
prática “transcriadora”.
Por outro lado, nos pareceu legítimo e cabível elaborar críticas mais incisivas
frente a casos em que o tradutor evidentemente negligenciou a obra; Leminski com suas
omissões declaradas e não-declaradas é também o maior exemplo disso, mas também
Marins em poemas que não apresentaram nenhum paralelo com o texto original se
inclui nisso. Assim, ainda que não possamos exigir do tradutor a consciência da
sutileza, nos pareceu direito, nessa tarefa crítica, apontar e comentar casos dessa
natureza.
Não podemos afirmar de forma definitiva que as sutilezas de Petrônio,
pormenorizadas neste trabalho, são o que de mais importante e desafiante para um
tradutor, pois, em grande parte, creditamos nossa tese ao estudo filológico que fizemos
e à compreensão de letra que assumimos. Ainda assim, cremos que independente de sua
238
concepção e suas estratégias, ao tradutor sensível, elas se lhe apresentarão como o
desafio mais estimulante.
Enfim, seja-nos simpática ou não a postura de tradutor pesquisador, é inevitável
reconhecer e enfatizar a procedência, a plausibilidade, de dois dos principais
argumentos defendidos pelas teorias que assumimos: a necessidade do recurso à
filologia como resgate da cultura que produziu um texto antigo e a necessidade de se ter
como valor pressuposto a literariedade do texto. Se Ruas ou Bianchet, mas
especialmente Aquati, se teve algum sucesso, é porque não dispensou nenhum desses
dois princípios, aparentemente condizentes com qualquer projeto de tradução dos
poemas do Satyricon.
6.3. Como a letra de Petrônio pode sobreviver
Com nossa tese retomada e reconsiderada, ainda algo a dizer. Porque tivemos a
oportunidade de aprofundar nosso conhecimento sobre o texto latino, de fazer com
razoabilidade uma leitura e uma análise fundamentada das traduções, e de comparar
essas traduções, talvez seja possível deixar algo de útil para quem deseje aceitar o
desafio de traduzir os poemas do Satyricon. A seguir, relacionamos uma série de
indicações ou advertências que ressaltam alguns pontos indispensáveis ao tradutor que
queira contemplar as qualidades da poesia de Petrônio:
É necessária a consciência do conjunto, a consciência de toda a
composição da obra (intertextualidade);
É igualmente necessária a consciência das inúmeras remissões à tradição
greco-romana, especialmente à tradição literária, seja canônica ou
popular, e ao imaginário romano da época de Petrônio, incluindo fatos
históricos e dados culturais das mais diversas ordens (hipertextualidade).
Qualquer estratégia é lida para a preservação ou para a recriação das
sutilezas. Ou seja, não importe a tendência da tradução, seja ela livre ou
conservadora, domesticadora ou estrangeirizadora, no caso de Petrônio, é
imprescindível a consciência de seus procedimentos literários e da
complexidade deles. Dessa maneira, nada é descartado sem razão.
239
Quando falamos em conjunto ou composição (intertextualidade), estão
subentendidos todos os temas estruturantes da obra, responsáveis por
ligar a prosa, os episódios, ao interior dos poemas, como, por exemplo, a
tomada de Tróia e o estratagema do cavalo.
Também quando falamos em conjunto, mas especialmente quando
falamos em consciência das remissões à tradição greco-romana, está
implícita a necessidade de se ter conhecimento dos gêneros que Petrônio
manipula, especialmente daqueles que envolvem diretamente os poemas.
É preciso saber das regras desses gêneros e das transgressões de
Petrônio.
Não convém a ambição de contemplar, na tradução, todas as sutilezas,
todos os procedimentos literários sutis, que Petrônio realiza em um
poema. Mas, considerando que o conjunto, a combinação, a harmonia
dessas sutilezas é geralmente o que de mais impressionante, convém
buscar traduzir, corresponder, o máximo de sutilezas possíveis, primando
por sutilezas de naturezas diferentes e pelas mais significantes. Por
exemplo, as traduções mais bem sucedidas do poema Publilius Syrus
foram aquelas que trouxeram um pouco de cada um dos seus diferentes
elementos: a alegoria da luxúria como um monstro, a enunciação que
envolve Roma como interlocutor, os itens exóticos que envolvem o
moralismo de Trimalchio, as analogias internas (entre os elementos do
poema) e externas (entre os elementos do poema e os da prosa), as
nuances das representações (como a representação da cegonha) e os
recursos retóricos.
Aspectos formais, de modo particular aspectos métricos, rítmicos e
figuras de linguagem sintáticas, como assonâncias e aliterações, entre
outros, devem ser considerados especialmente quando tiverem um
significado particular, uma função parodística.
É imprescindível uma atenção constante, permanente, vigilante, ao
sintetismo do latim, às ambigüidades, às múltiplas interpretações que
determinadas raízes sugerem, assim como às possibilidades semânticas
abertas por certos empregos. No texto de Petrônio se refletem todas as
alterações da norma clássica promovidas pelo latim vulgar. No poema
240
Geografia da Luxúria, por exemplo, comentamos um caso em que a
preposição in é usada em desacordo com a norma clássica. Além disso,
Petrônio está sempre abrindo as possibilidades interpretativas das
palavras à sua maneira metaliterária. Na abertura do poema sobre Tróia,
por exemplo, enfatizamos as ambigüidades presentes em pandere.
De todos os poemas analisados neste trabalho, cinco deles não tiveram nenhuma
tradução que recebesse a melhor avaliação. Segundo nossos critérios, que reconhecem
as sutilezas como aspecto elementar, no caso desses poemas, nenhuma tradução
publicada no Brasil chegou a lograr um grau de correspondência que expressasse, em
português, o efeito produzido pela composição original, ou seja, o efeito produzido pela
combinação das sutilezas. São eles:
Encolpius indignado
Virgílio “transcrito”
Viver e comer
Dinheiro e Fortuna
Tomada de Tróia - Ecce alia monstra
É obviamente questionável que nenhuma das traduções deles tenha recebido o
maior conceito, assim como todas as avaliações dos demais poemas o são, assim como
qualquer crítica o é. Contudo, se alguma intenção ou vontade maior do que aquela
expressa em nossa tese, essa vontade é a de que o leitor brasileiro possa ter a mesma
satisfação e deleite que tivemos ao descobrir o Petrônio poeta. Trabalho certamente
para quem se interesse por Petrônio. Seria maravilhoso se depois desse trabalho, o
tradutor que se dispusesse a traduzir a obra de Petrônio tivesse mais atenção para seus
poemas. Seria maravilhoso se o panorama crítico que oferecemos tivesse qualquer
serventia para o tradutor ou estudioso interessado no Satyricon. Parafraseando Catherine
Connors, uma vez que o Satyricon é um texto tão rico e sofisticado e engraçado e sutil,
e tão frustrantemente fragmentado, nos parece uma pena desperdiçar qualquer uma de
suas palavras, nos parece uma pena correr o risco de perder o que de mais aprazível
nos poucos poemas que nos restaram.
241
ANEXO I
1. Graus para a avaliação geral dos poemas
Graus para a avaliação da tradução de cada sutileza:
1 - Não houve correspondência
2 - Correspondência parcial
3 - Correspondência alta
Graus para a avaliação geral de cada poema traduzido:
1 - Correspondeu poucas das sutilezas do poema ou nenhuma delas
2 - Traduziu parte significativa das sutilezas do poema
3 - Traduziu a maior parte das sutilezas ou as principais delas
2. Avaliação específica de cada sutileza e avaliação geral dos poemas - Miguel Ruas
- No primeiro poema analisado, que chamamos de “Encolpius indignado”,
racionalizações e clarificações. Destacamos, por exemplo, a tradução de ferrum timui”,
cuja interpretação de Ruas impeliu-o a uma clarificação (2). Houve alguma busca de
correspondência aos sotádicos, pelo uso de versos catalépticos apenas (2). A aliteração
polissêmica das sílabas ter que se dissolve em thyrso foi parcialmente correspondida
pelo tradutor (2).
Avaliação geral: 2
- No segundo poema, por nós intitulado “Virgílio transcrito”, incorrendo numa
racionalização, Ruas destruiu a principal sutileza do poema: a ambigüidade hilária de
illa”, que no contexto de Virgílio se referia à rainha Dido, enquanto que no contexto de
Petrônio se refere ao pênis desfalecido de Encolpius (1).
Avaliação geral: 1
- Na abertura do poema sobre a guerra de Tróia, Ruas racionaliza e clarifica o termo
pandere”, destruindo a dubiedade extremamente significativa que ele continha,
considerando o contexto da abertura do poema e considerando a tradição épica (1). Nos
versos de abertura propriamente, Ruas mantém o que chamamos de encobrimento
figurado dos gregos (3), mas “arruma” as palavras e sentenças que no poema latino
estavam intencionalmente desorganizadas ou “torturadas”, como definimos (1).
Avaliação geral: 2
- Nos versos que encerram a abertura do poema, onde o tema do escondimento fica
explícito, Ruas deixa de traduzir um dos três verbos que denotam o ato de “esconder”,
atenuando a multiplicidade de significantes que configurava esta parte. No entanto,
traduz os outros dois (3), e também preserva o epíteto “dânaos”, que também corrobora
a “cobertura” figurativa dada aos gregos até que eles tomassem lugar dentro do cavalo
(3).
242
Avaliação geral: 3
- A quebra, a modulação, representada pelos versos 11 e 12 do poema, promovida
especialmente pelo uso da expressão “oh! pátria” e pelo uso do verbo em primeira
pessoa, foi integralmente correspondida por Ruas (3).
Avaliação geral: 3
- Na representação de Laocoonte, por um lado, Ruas respeita a depreciação do herói: o
tradutor não distorce o sentido de ictus resilit e preserva a função de invalidam
manum(3). Por outro lado, porém, perde a repetição de sons (“uterum” e “iterum”) que
alude à representação reiterada de Laocoonte bem como à dupla tentativa de atingir o
cavalo, e não menciona os “dois gumes” da segunda arma, elemento que está ligado à
idéia de secundariedade do poema e da representação em si (1). Com isso, parte da rede
subjacente de significados ligada os temas da fraqueza e da secundariedade é destruída
na tradução.
Avaliação geral: 2
- Nos versos sobre a chegada dos portentos, Ruas mantém a ambigüidade de dorso”,
que contribui para a representação da ilha como um monstro (3). O elemento da
fraqueza presente em minor”, é distorcido com “tranquilamente”, e o efeito se perde
(1). A comparação tediosa e óbvia da onda com o som dos remos é perfeitamente
mantida, e a organização do longo período é apropriadamente conservada (3). A
remissão direta à Eneida que supostamente aconteceria com ecce alia monstratalvez
seja impossível numa tradução hoje, mas de qualquer maneira Ruas preservou essa
construção também (3), e igualmente não fez nenhuma grande mudança na ordem dos
versos e seus elementos, mantendo a descrição das serpentes após a descrição de
Tênedos e dos navios, corroborando o encobrimento figurativo das serpentes durante os
primeiros versos sobre a chegada dos portentos (3).
Avaliação geral: 3
- No final, quando o ataque dos gregos é finalmente narrado, o trocadilho sugerido com
effundunté destruído (1), assim como idéia de reiteração presente em relaxant(1).
A mediocridade da símile de Eumolpus e a remissão aos modelos épicos tradicionais
permanece na tradução de Ruas; em seu poema os guerreiros continuam comparados a
um cavalo que corre exaltado ao se ver livre (3). Entretanto, o detalhe que enfatiza a
idéia de fraqueza na imitação, a imagem do próprio cavalo escapando do laço, não é
plenamente mantido (2). O termo Thessalius (tessálio), metonímia de carro tessálio (ou
carruagem da Tessália), é traduzido por corcéis dos montes tessálios”, o que outro
entendimento aos versos, embora não perturbe demais a sutileza em questão (1).
Avaliação geral: 2
- Na tradução do primeiro dos poemas curtos analisados, que intitulamos “Viver e
comer”, a idéia bastante significativa de que o Orco nos leva foi destruída com “Presa
de Orco”. Na prosa, ferculumé traduzido simplesmente por “prato”, desatendendo o
trocadilho em questão (1). Notamos que quando Trimalchio diz “sic erimus cuncti”, está
provavelmente se referindo ao aspecto do esqueleto recém exibido, e portanto, ao
243
traduzir “este será de todos nós o aspecto”, Ruas comete uma evidente clarificação (1).
A despeito dessas perdas, a tradução de essepor gozar é uma solução razoável para a
ambigüidade ser/comer (3). Em relação ao metro, apesar de não ter correspondido a
idéia de alternância métrica (hexâmetros e pentâmetros) inerente à epigrama e tampouco
o ritmo datílico (1), Ruas se preocupou em fazer com que o último verso fosse menor
em relação aos demais, o que é análogo ao desvio de regra existente no poema latino
(2).
Avaliação geral: 2
- No poema sobre a metáfora da queda, Ruas destrói o detalhe que constitui a principal
sutileza do poema: a idéia de Fortuna está literalmente acima de nós (1).
Avaliação geral: 1
- O poema que Trimalchio atribui a Publilius Syrus talvez seja o mais complexo de
todos os que analisamos. O começo dele diz que as muralhas de Marte (referência à
cidade de Roma) morrem na boca da luxúria, imagem extremamente representativa para
iniciar a alegoria da luxúria em que consiste o poema. Ruas, que não menciona o deus
protetor da cidade, diz que as muralhas se desfazem num “luxo insaciável”, ao invés de
dizer que a luxúria tem boca (1), e no verso seguinte explica (racionaliza) o sentido de
Martiscom “oh! Roma” (1). Ao invés de dizer que um pavão é engordado para o
paladar (palato) da luxúria (que tem boca), ele fala em palácios (1). O tradutor usa o
pronome relativo “teus” depois do vocativo “oh! Roma”, preservando Roma como
interlocutor do poeta. Isso, no entanto, fica confuso a partir da metade do poema
traduzido, quando Ruas troca o interlocutor por “perola” (2). As aves e a descrição das
plumas do pavão, que têm diversas e imprescindíveis implicações dentro do poema e
seu contexto, são bem correspondidas por Ruas (3). Na descrição da cegonha, repleta de
sutilezas de difícil reprodução, o tradutor tem um desempenho razoável: consegue
contrastar as nuances de dignidade e perversão, e traduz apropriadamente a noção de
pietaticultrix(3). uma perda considerável no apagamento de crotalistria”, que
destrói tanto o efeito gradativo da depravação da cegonha quanto os ligamentos com os
diversos pontos da prosa feitos através desse termo especificamente (1). Da mesma
forma, na tradução de gracilipes outros ligamentos destruídos (1). Em
compensação, Ruas mantém uma importante proliferação de significantes, as várias
menções a jóias (3), e ao invés de buscar uma correspondência que preserve a relação
cegonha-matrona, ele sugere uma relação mais explícita entre o pavão e a matrona (3).
A retórica sarcástica da frase nisi ut scintillet probitas e carbunculisé comprometida
enobrecimento na tradução (1). A relação entre o brilho do áureo tapete babilônico de
plumas e o brilho da seda que veste a noiva é enfraquecido e praticamente destruído na
tradução de Ruas, que simplesmente fala em uma “esposa vestida de gaze tênue” (1), e
por fim, pode-se dizer que Ruas explorou timidamente o principal aspecto formal do
poema, a exploração abundante da aliteração (1).
Avaliação geral: 2
- Na tradução do primeiro dos pequenos poemas proferidos por Eumolpus, Ruas
preserva plenamente a lista de profissões lucrativas, e não compromete assim a idéia
básica do poema: contrapor a poesia às demais profissões (3). Entretanto, o tradutor
tende ao enobrecimento, pelas construções inusitadas e um pouco empoladas, o que
244
contradiz a locução fácil e didática do sermo (1). No quarto verso, além de uma
clarificação comprometedora de ad praemia peccat”, certa impropriedade na
tradução de nuptas por matrona (1). Segundo a análise que fizemos, os versos de Ruas
têm alguma proximidade métrica aos hexâmetros de Petrônio, mas não rítmica
propriamente (2).
Avaliação geral: 2
- Na tradução do poema de Eumolpus que intitulamos “Geografia da luxúria”, como
dissemos, nem todas as referências originais estão intactas na tradução de Ruas, mas
constatamos que há coerência em todos os casos (3). Tanto na tradução de “arata
Syrtiscomo no uso do termo “rejeitados”, inexistente no poema latino, Ruas clarifica
sua interpretação, porém compensa isso com outras correspondências, perfeitamente
cabíveis (3). Ao traduzir amica vincit uxorem (a amante vence a esposa) por “O
amante destronou a esposa”, Ruas toma certa liberdade e muda um pouco o significado
original, mas guiado pelo contexto, observamos que ele sugere uma possibilidade
interpretativa bastante conveniente, sem com isso prejudicar a orientação do discurso
(3).
Avaliação geral: 3
- Ao traduzir o poema que chamamos de “Elegia sobre a calvície repentina”, Ruas
preserva a comparação da velhice ao inverno (3), mas apaga a ambigüidade sugestiva de
area”, traduzindo o termo por “crânios”. Ademais, observamos que fora o
alongamento, uma nítida clarificação na tradução de areaque attritis ridet adusta
pilis(e a eira chamuscada ri dos pêlos sovados) por “E os nossos crânios, brilhando
sob o sol, / Parecem satisfeitos com sua calvície” (1). Na tradução dos versos finais da
primeira parte da elegia, Ruas convenientemente preserva a vinculação da calvície à
mortalidade do corpo e o tom de lamento, mas a menção explícita à natureza, acusada
de dar e tirar as belezas (alegrias) de nosso corpo, menção fundamental, é dispensada
por Ruas (2). na tradução dos versos finais da segunda parte Ruas mantém o tom de
advertência e respeita o que de comum entre os dois finais (3). Em relação às
características métricas do poema latino, bastante significativas, não
correspondência, mas o tradutor ao menos compõe versos razoavelmente ritmados, com
no máximo 20 sílabas, em respeito às convenções poéticas (2).
Avaliação geral: 2
- Intitulamos “Sexo como morte” um dos primeiros poemas curtos de Encolpius,
proferido a fim de antecipar a decepção com Giton. Na tradução de transfudimus hinc
et hinc labellis errantes animas(pelos lábios vertemos de um lado pro outro nossas
almas errantes) por confundíamos os lábios e as almas delirantes”, Ruas atende ao
motivo primário do poema, a celebração do sexo, mas destrói qualquer possibilidade de
dupla interpretação sugerida por transfudimus e errantes (2). Além disso, a tradução de
errantespor “delirantes” pode até trazer a noção de um amante desgovernado, mas
perde a referência direta à vagância e ao erro (1). No último verso, incorrendo em
racionalização e clarificação, o tradutor impediu o leitor de reconhecer motivos bastante
sugestivos do termo perire”, e consumou a destruição da rede subjacente de
significados que liga o poema a elementos de seu contexto narrativo (1).
245
Avaliação geral: 1
- Em “Dignus amore locus”, título dado por nós a outro poema curto de Encolpius, os
mobilis ... platanus” (plátanos balangantes), que remetem ironicamente a um falo
frouxo, perdem seu adjetivo na tradução de Ruas (1), entretanto o correspondente grego
do loureiro (Daphne) tem seu nome mantido – preservando a alusão ao desejo de Apolo
contrariado por Daphne (3). A ironia presente em redimita”, assim como a menção ao
cipreste (cupressus), também tem correspondência na tradução (3). Na representação do
pino, Ruas distorce o significado dos termos, impedindo a associação ao mito da ninfa
Pitys, assediada por (1). Igualmente, as nuances de prazer e desagrado, presentes na
descrição do riacho, quase desaparecem na tradução (1). Na tradução de urbana
procneRuas mantém a menção ao pássaro com “andorinha urbana”, embora uso do
nome Procne, um uso possível, talvez contribuísse para levar o leitor a pensar na
história de Procne e Philomela mais diretamente (2).
Avaliação geral: 2
- Na análise de “Encolpius ‘epicurista’” vimos que a tradução de quodque facit
populus, candida lingua refert(o que quer que faça o povo, minha língua cândida
replica) por “E numa linguagem simples conto os costumes do povo”, resultado de uma
evidente liberdade tomada pelo tradutor, atenua bastante a força retórica de candida
lingua refert (minha ngua cândida replica), mas não chega a desfazer ou apagar
qualquer das associações implícitas (2). A tradução dos últimos versos mantém
convenientemente a menção a Epicuro e ao conceito de télos (3), e Ruas consegue
resultados análogos ao metro do dístico elegíaco e ao ritmo jâmbico de forma bastante
razoável (3).
Avaliação geral: 3
- Em “Dinheiro e Fortuna”, verificamos que Ruas clarifica a jura de Dânae, mas
consegue soluções bastante razoáveis para a tradução a maioria dos versos, compondo
um bom poema (3). O tradutor também alonga a última frase e se permite imprimir-lhe
uma estrutura semelhante à das demais frases do poema. Ainda que não seja tão
comprometedor, isso tem algum efeito destrutivo, pois a consistência da frase final,
sintética e incisiva, é desconcentrada (2).
Avaliação geral: 3
- No poema de Tryphaena, o último que analisamos, Ruas mantém a “interrupção” do
primeiro verso com o verbo dicendi (“exclama”), corroborando uma suposta tentativa de
provocar instabilidade no começo do poema (3). As referências épicas são bem vertidas
e contextualizadas, não obstante alguma clarificação (3). No entanto, incorrendo em
racionalização e clarificação, Ruas destrói o trocadilho das ondas, no final do poema
(1), e também na retomada da prosa, o tradutor não admite ou não percebe a noção de
tempestade sugerida pela maneira como Encolpius descreve a elocução de Tryphaena
(1).
Avaliação geral: 2
246
3. Avaliação específica de cada sutileza e avaliação geral dos poemas - Paulo
Leminski
- Como já registramos, Leminski não apresenta tradução para os poemas que
intitulamos “Encolpius indignado”, “Virgílio ‘transcrito’”, “Dignus amore locus”,
“Encolpius ‘epicurista’”, e para as partes do poema sobre a tomada de Tróia intituladas
“Laocoonte”, “Ecce alia monstra” e “Tróia embriagada, Tróia enganada”. Em relação a
Leminski, estes poemas e estas partes, portanto, não têm avaliação.
- Ao anunciar o poema sobre a tomada de Tróia, na prosa, Leminski não traduz a
ambigüidade de pandere (1). Nos versos de abertura, ambas as sutilezas são
plenamente apagadas: a sintaxe é relativamente clara, e os gregos são explicitados em
“helênicos” (1).
Avaliação geral: 1
- O uso de três verbos com o sentido de esconder, e o arranjo das sentenças de modo a
revelar os gregos apenas quando eles realmente se escondem na armadilha, principais
características dos quatro versos que fecham a abertura do poema, inexistem na
tradução de Leminski, que reduz os quatro versos a um (1).
Avaliação geral: 1
- Na tradução dos versos 10 e 11, que provocam uma virada no poema, Leminski de
alguma forma manteve a evocação tradicional a Tróia (“o patria”) (3), mas não usou o
verbo em primeira pessoa, que representa mais explicitamente a mudança no modo do
discurso (1).
Avaliação geral: 2
Em relação ao poema que intitulamos “Viver e comer”, ao traduzir sic erimus cuncti,
postquam nos auferet Orcuspor “Assim seremos nós depois dos funerais”, Leminski
dispensa o sentido de auferete destrói o trocadilho de que a morte nos leva, assim
como o poema é levado embora para que o ferculum seja trazido. uma
racionalização seguida de clarificação aí também, pois Leminski racionaliza o que
significa ser levado pelo Orco, e clarifica a idéia de morte na tradução (1). No final do
poema, com “Vivamos (...) enquanto é tempo”, o tradutor destrói a locução de
Trimalchio (Petrônio) e despreza a consciência-de-provérbio que no leitor (1). Além
de tudo, ao mesmo tempo em que destruiu a locução, Leminski apagou a ambigüidade
de esse”, destruindo também a rede subjacente de significados ligada a vida, morte,
comida e deleite (1). Todavia, em relação ao metro, Leminski parece ter se preocupado
com a idéia de alternância métrica própria do dístico elegíaco, e compôs versos com
uma quantidade de sílabas respeitante às convenções poéticas, embora não tenha
reproduzido o ritmo datílico do poema latino (2).
Avaliação geral: 1
- No poema sobre a metáfora da queda, o tradutor teve o cuidado de manter,
convenientemente, o sentido físico da preposição supra (3). Leminski traduziu
Fortunapor “Acaso”, perdendo a remissão à deusa romana, porém sugerindo que o
247
Acaso seja uma entidade (3). O tradutor também ignorou a referência ao cobiçado vinho
de Falerno (outra marca da ostentação estúpida do novo-rico Trimalchio), tomando a
liberdade de dar ao escravo liberto o nome de Valério, supostamente para preservar
alguma alusão ao som de Falerno (2).
Avaliação geral: 3
- A aliteração abundante do poema que Trimalchio atribui a Publilius Syrus é, sem
dúvida, satisfatoriamente correspondida na tradução de Leminski (3). Leminski destrói a
alegoria da luxúria como um monstro que devora Roma; em sua tradução, as muralhas
de Marte (Roma) não morrem na boca da luxúria e um pavão confinado não é
engordado para seu paladar (1). Outro detalhe importante, a idéia de Roma como
interlocutor do poema, desaparece no poema de Leminski (1). Ao invés de falar que o
pavão é coberto por um áureo tapete babilônico de plumas, ele fala em “Senhores
envoltos em sedas da Ásia” (3). A referência à galinha da Numídia e ao capão da Gália
ressoa em “Aves exóticas da Numídia e da Índia” (3). A cegonha virou “Íbis”, somente
depravadas na representação: “lânguidas, bricas, peregrinas, / A infâmia fez ninho
entre nós.” Ou seja, a oposição dignidade-perversão, presente na representação da
cegonha, desaparece (2). Leminski parece ter percebido a insinuação de lascívia que se
faz com gracilipes crotalistria”, mas igual a Ruas apaga a menção às castanholas,
cortando uma ligação importante com o contexto narrativo do poema (1). Os versos
quo margaritam caram tibi, bacam Indicam? / an ut matrona ornata phaleris pelagiis /
tollat pedes indomita in strato extraneo?” são racionalizados, clarificados e de alguma
forma enobrecidos (1). No entanto, com essa tradução, o tradutor claramente busca o
sintetismo do verso latino, um importante elemento a se corresponder (2), e além disso,
o sarcasmo e o caráter retórico da frase an ut matrona ... tollat pedes indomita in strato
extraneo?” (acaso pra que a matrona arraste, indomável, as patas pra cama alheia?) vai
parar nos versos finais da tradução de Leminski: “Para que vestir as noivas com um
manto de seda? / Melhor mostrá-las nuas para o rol dos candidatos.” (3)
Avaliação geral: 2
- Na tradução do primeiro poema de Eumolpus (“Poeta sum”), a linguagem fácil de
Leminski e a preservação da estrutura do discurso do poema latino contribuem em
muito para a correspondência das características do sermo (3). A oposição lucro, prazer,
riqueza etc. versus miséria, existente entre as profissões (ou ocupações) descritas e a
poesia, permanece na tradução de Leminski, que apenas toma a liberdade de trocar o
pecador que alicia a mulher alheia, mas sai no lucro, pelo “gigolô das altas damas”, que
se veste de roupa fina (3). O tradutor não compõe versos regulares como os hexâmetros
originais, mas além de primar pelo sintetismo do verso latino, compondo bons versos
breves, como enfatizamos na escansão, assim como os versos de Eumolpus, os de
Leminski têm um ritmo trocaico (2).
Avaliação geral: 3
- Na tradução do poema que intitulamos “Geografia da luxúria”, os dois primeiros
versos vieram da pena de Lemiski, que sintetizou seu entendimento do poema ali, e
apresentou-os como uma tese central (2). As espécies de peixes, os lavrados e as plantas
mencionadas desaparecem (1). Em relação a isso, restam apenas os quatro primeiros e
metade do quinto verso do poema latino. Estes, porém, ainda passam pelo filtro de
248
Leminski, que simplifica e adapta qualquer referência antiga supostamente difícil para
seu leitor imaginado (1). Evidentemente optando por uma tradução funcional, Leminski
troca o pato e ganso pela ave doméstica rasteira mais comum na dieta brasileira: a
galinha (3). Parece claro também que si quid naufragio dedit, probaturressoa em “O
difícil faz o preço das coisas” (2). O final do poema latino talvez seja a única parte que
tem sua integridade relativamente preservada por Leminski. amica vincit uxorem. [...]
quicquid quaeritur, optimum videtur.se transforma em “A amante vale mais que a
esposa. / O inalcançável é o máximo” (3).
Avaliação geral: 2
- Leminski, na tradução da “Elegia sobre a calvície repentina”, parece ter pretendido
transcriar apenas a primeira parte da elegia de Eumolpus. A analogia da vida do homem
com o ciclo da natureza está nos quatro primeiros versos: Leminski toma a liberdade de
explicitar a implícita analogia dos cabelos com as folhas das árvores, além de tornar
implícito o inverno (2). O único elemento da segunda parte, pode-se dizer, é o verso
final da tradução, “Pela cabeça, começamos a morrer?”, que lembra ut mortem citius
venire credas, scito iam capitis perisse partem(2). Sutilezas como a presente na
palavra areadesaparece na tradução, assim como o contraste entre a primeira e a
segunda parte, que denuncia a dissimulação de Eumolpus, seja através da mudança de
tom ou da mudança no metro. (1)
Avaliação geral: 2
Em relação ao poema “Dignus amore locus”, a tradução de Leminski para
transfudimus hinc et hinc labellis errantes animas”, “Pelas bocas em beijos, mil vezes
trocamos nossas almas”, de alguma forma, atende à ambigüidade de transfundimos
(3), no entanto, assim como o tradutor excluiu parte da representação do sexo
(“haesimus calentes”, nos abraçamos ardentes), ele também excluiu o adjetivo
errantes”, tirando assim parte da força do trocadilho (1). O verso “É assim que eu
quero morrer”, tradução de “ego sic perire coepi”, também encerra a possibilidade
interpretativa na exaltação do sexo. Embora tenha sido mantido o sentido de morrer na
tradução de perire”, a perda da noção de começar a morrer (“coepi”) apaga os outros
dois sentidos dessa frase (2).
Avaliação geral: 2
Em “Dinheiro e Fortuna”, Ainda que Leminski use a figura de Júpiter em seu poema,
não se pode dizer que nele qualquer reminiscência do mito de Dânae pervertido, o
elemento-chave do poema latino (1). Além disso, talvez reconhecendo algum paralelo
com o poema antes analisado, que menciona Epicuro e provoca os ditos Catões,
Leminski acrescenta uma idéia antes inexistente: “Se filósofo, profundo como o céu
azul.” Uma vez que o poema menciona Catão, Leminski também inseriu o “filósofo”,
talvez tentando clarificar o paralelo que supôs existir. Isso se constitui uma
possibilidade interessante sugerida pelo tradutor, todavia não justifica nem compensa o
apagamento em questão (2).
Avaliação geral: 1
249
No poema clamado por Tryphaena, a interrupção do primeiro verso com a prosa através
do verbo dicendiexclamat” – interrupção que provoca instabilidade no poema e remete
ao mar instável e tempestuoso simplesmente desaparece na tradução de Leminski (1).
Aparentemente, a pretensão de usar um suposto conhecimento comum (ou
desconhecimento) do brasileiro sobre mitologia antiga como critério para sua tradução
levou Leminski a fazer duas alterações deliberadas: explicitar Helena, excluindo a
menção indireta a Menelau, e em relação a Medeia, trocar o assassinado de seu irmão
Apsirto pelo assassinato de seus próprios filhos, fato mais conhecido, certamente por
causa de Eurípedes e toda a tradição literário-teatral (2). O final do poema é totalmente
mudado na tradução, e portanto a justaposição das referências literais às referências
metafóricas à tempestade inexiste, no entanto, todo o jogo figurativo entorno da
tempestade tem a função de pressagiar a tempestade real que está por vir na narrativa;
na transcriação de Leminski, o pedido de Tryphaena para que aceitem sua morte
seguido da declaração “Quem sabe entre as ondas deste oceano, acharei mais piedade
que entre vós”, um apelo bastante dramático feito a fim de cessar a briga, de alguma
forma também insinua ou mesmo anuncia o naufrágio trágico (2). Por último, cabe
constatar que a tradução de haec ut turbato clamore mulier effudit por “Estes versos,
ditos em altos brados” não contempla aquela sugestiva combinação de termos que
invoca a tempestade na elocução de Tryphaena (1).
Avaliação geral: 1
4. Avaliação específica de cada sutileza e avaliação geral dos poemas - Alex Marins
- Em “Encolpius indignado”, Marins não se ateve às qualidades rítmicas do poema.
Somente três dos nove versos têm quatro acentos fortes, considerando que um verso
com quatro acentos fortes (primários) poderia sugerir alguma correspondência com o
sotádico, que tem quatro pés. Além disso, alguns dos versos terminam com uma sílaba
tônica, o que enfraquece qualquer hipótese de que o tradutor teria buscado alguma
correspondência aos pés catalépticos (1). Marins usa a aliteração “Três ... terrível ...
três” para traduzir a tripla repetição de ter (2). O efeito de dissolução que existe em
thyrso desaparece na tradução de Marins, que traduz o termo por “haste” (1).
Avaliação geral: 1
- Em Virgílio ‘transcrito’”, além de proceder da mesma maneira que Ruas (em relação
à tradução de illa), sugerindo um sujeito masculino com “Prosseguiu cabisbaixo” (1),
Marins talvez para manter o sintetismo do verso latino, em contraposição à tendência
do alongamento – não traduziu boa parte do primeiro verso (“solo fixos oculos ...
tenebat”, “tinha os olhos fixos no chão”). Considerando que se trata de uma citação
literal de Virgílio, isso é questionável (1).
Avaliação geral: 1
- Na abertura do poema sobre a tomada de Tróia, a ambigüidade de pandere” outra vez
não é traduzida (1). As sentenças são embaralhadas, algumas funções originais são
invertidas, certas informações distorcidas: iam decuma maestos inter ancipites metus /
Phyrgas obsidebat messis ...(a décima safra sitiava então os infelizes frígios em meio
a medos ambíguos ...) é traduzido por “Do sítio a Tróia, no décimo ano, / Crítica era a
250
situação, e campeava o medo” (1). O significado de decuma ... messisé clareado,
assim como a referência aos troianos (“Phyrgas”, frígios) (1). Não da mesma forma
sugestiva que Eumolpus, mas Marins acabou mantendo os gregos implícitos (3).
Avaliação geral: 2
- Nos versos que encerram a abertura do poema, onde o tema do escondimento fica
explícito, Marins apaga os sentidos de abditur e latent”, comprometendo a
multiplicidade de significantes que configurava esta parte, perdendo o efeito da
“cobertura” figurativa dada aos gregos até que eles tomassem lugar dentro do cavalo
(1).
Avaliação geral: 1
- A quebra, a modulação, representada pelos versos 11 e 12 do poema, promovida
especialmente pelo uso da expressão “oh! pátria” e pelo uso do verbo em primeira
pessoa, foi correspondida por Marins, a despeito de certa incoesão provocada por uma
impropriedade na pontuação (2).
Avaliação geral: 2
- Na representação de Laocoonte, a idéia de ictus resilit” é pulverizada por Marins, que
a traduz primeiro na confusa construção “E da arma a haste se curvou”, e depois a
esclarece em “o machado ricocheteou no sólido flanco” (1). A função de invalidam
manum” é perfeitamente mantida em “mão enfraquecida” (3), porém a repetição de sons
(“uterum e iterum”) os dois gumes da segunda arma não existem na tradução de
Marins (1).
Avaliação geral: 2
- Marins traduz ecce alia monstrapor “Porém mais prodigiosos signos seguiam-se
agora”, numa clara demonstração de prolixidade, confirmando a tendência do
alongamento (1). O elemento minordesaparece, embora a comparação tediosa das
ondas que voltam com o som remos seja razoavelmente mantida (2). O jogo figurativo
entre os três portentos também não é destruído: Tenedo (como o tradutor prefere) tem
“dorso” e parece se insinuar pela noite, os navios fazem a superfície do mar gemer
como serpentes, e as serpentes com seus “troncos” (tradução para pectora”) impelem a
espuma como navios (3).
Avaliação geral: 2
- No final do poema, o trocadilho de effundunt” desaparece na tradução de Marins, que
traduz o termo por “lançaram”, perdendo a idéia de derramar os guerreiros assim como
se derrama o vinho (1). Marins fala em corcéis tessálios, perdendo também a referência
à carruagem da Tessália (1). Entretanto, mais importante, a remissão ao modelo épico
que compara guerreiros indo a batalha a cavalos que escapam do jugo é preservada (3),
e o elemento depreciativo, que brinca com a fraqueza da imitação, é mantido à risca
com “de sua canga libertos” (3). A idéia de reiteração que há em “relaxant” aqui
também não foi correspondida (1).
251
Avaliação geral: 2
- Em Viver e comer”, as três sutilezas são destruídas, e sequer a essência proverbial da
epigrama permanece. postquam nos auferet Orcusé traduzido por “O túmulo segue
nossos passos” (1); a relação entre auferet e ferculum inexiste na tradução de Marins
(1), que também traduz ferculum simplesmente por “prato” (1). O ergo vivamus, dum
licet esse beneressoa em “cabe a nós, / Sabiamente, usar o prazer para embelezar, / O
mais que pudermos, os nossos instantes”, num gritante alongamento (1). Há apenas uma
tímida tentativa de expressar a significativa ambigüidade de esseem “prazer”, que
pode sugerir o ato de aproveitar a vida e o ato de comer (2). Marins usou versos longos
predominantemente, e não demonstrou buscar algum efeito rítmico análogo ao dátilo (/ -
-), a célula rítmica característica dos versos originais (1).
Avaliação geral: 1
- No poema sobre a metáfora da queda, Marins destrói o detalhe que constitui a
principal sutileza do poema: a idéia de Fortuna está literalmente acima de nós (1).
Avaliação geral: 1
- Em “Publilius Syrus”, Marins consegue poucas aliterações significativas em sua
tradução (1). Outra vez a alegoria da luxúria como um monstro é destruída pela
tradução. Em lugar das muralhas de Marte morrerem (desfazerem-se) na boca da
Luxúria, os baluartes de Roma desmoronam-se em abismos de prazer (1). A idéia não é
mal vertida, no entanto a alegoria é, logo de início, destruída, ou talvez distorcida: o
interlocutor continua sendo tu, mas também pode ser qualquer pessoa, o
necessariamente Roma ou sua Luxúria (2). Os versos tuo palato clausus pavo pascitur
/ plumato amictus aureo Babylonico, / gallina tibi Numidica, tibi gallus spado na
tradução de Marins viram “Para que os degustes, engordam-se os belos pavões
engaiolados, / Preparam-nos com penas como com tecidos de ouro da Babilônia, / E
assim a guiné, e assim o capão.” Por mais que Trimalchio seja chegado a bizarrices
culinárias, é muito difícil imaginar que aves sejam preparadas (cozinhadas) com penas e
tapetes de ouro (1). Na representação da cegonha a oposição dignidade-perversão é
destruída. O adjetivo pietaticultrixdesaparece, e gracilipes crotalistriaé traduzido
por “elegante, tagarela”. Com “elegante”, desfaz-se a conexão entre as patas da
cegonha, que contradiz sua piedade filial fazendo ninho no caldeirão da perversão
romana, e as patas da matrona infiel, que se deita na cama de um estranho (1). Com
“tagarela”, perde-se a associação com lascívia das dançarinas ciganas, e
consequentemente com seus ecos na prosa (1). No entanto, a associação feita entre aves
e mulheres no poema também existe na prosa. Com efeito, podemos afirmar que Marins
alcançou uma correspondência funcional para crotalistria”, isto é, manteve a função
que o termo tinha de ligar o poema diretamente à prosa, com “tagarela” (3). No verso
quo margaritam caram tibi, bacam Indicam?”, o poema questiona o valor de certas
luxúrias como uma pérola ou uma baga da Índia. Marins mantém os elementos, porém
mais uma vez compromete a retórica do poema com sua tradução: “Que pérola é
inatingível, que fruto da Índia, para ti” (1). O mesmo acontece com o verso nisi ut
scintillet probitas e carbunculis(a menos que a honra brilhe dos carbúnculos), cujo
sarcasmo e força retórica desaparecem em “Se a honestidade não refulge entre tais
carbúnculos?” (1). Ao traduzir matronapor “esposa” (esposa não contempla o valor
social de matrona), e desfazer a conexão dela com a cegonha que trai sua lealdade
252
familiar, Marins destrói, assim, parte de uma rede subjacente de significados que vai
muito além de poema, comprometendo uma sátira de costumes bastante direcionada e
particularmente forte (1).
Avaliação geral: 1
- Em “Poeta sum”, Marins mantém a relação de profissões vantajosas contrapostas à
miséria do poeta, ainda que à custa de acréscimos e alterações (2). De alguma forma,
Marins usa uma elocução adequada para o sermo, não comprometendo o estilo
discursivo, exceto em relação a um detalhe (3). No poema latino, o uso de quino
começo do primeiro, segundo e quarto verso, constância ao discurso, sugere a idéia
de uma listagem pela repetição do termo, e com isso ainda gera a expectativa de uma
quebra dessa constância. Essa quebra acontece nos dois últimos versos, cuja conotação
inversa conclui o modelo dialético do sermo. Tanto Leminski como Marins traduzem o
qui(quem) somente nos dois primeiros versos, e o ignoram no quarto verso, o que
compromete os efeitos da expectativa e da quebra, que fecha o poema (2). De qualquer
maneira, esse detalhe perdido que pode ser visto como um detalhe formal é bastante
sutil e não apaga a polaridade do poema, que nas duas traduções é mantida pelo
conteúdo dos versos, razoavelmente traduzido (3). uma predominância de troqueus,
como no poema latino, e além disso, o poema termina todo com 6 pés em cada verso, à
exceção do primeiro, que tem 7 (3).
Avaliação geral: 3
- Em “Geografia da luxúria”, a maior parte das referências originais e o teor das críticas
e comparações são conservados na tradução de Marins. A clarificação nada danosa
existente em “faisão” existe aqui também (2). Pássaros da África (“Afrae volucres”)
restringem-se a guinés da África”, funcionalmente válido (2). O ganso branco (albus
anser) e o pato pintado (“pictis anas involuta pennis”) são mantidos (3), e a tradução de
scarus (escaros) por “bodião”, o nome popular desse peixe, é especialmente
conveniente (3). Assim como Ruas, Marins, que deve ter lido a tradução de seu colega,
opta por uma tradução funcional, trocando o ruivo (“mullus”), popular na Roma de
Petrônio, pela tainha, popular no nosso Brasil (3). A referência aos genéricos lavrados
(“arata”) desaparece, embora permaneça a menção a Sirte (2). Além disso, Marins troca
o cinamomo pelo cravo, valendo-se das tradicionais e simbólicas figuras do cravo e da
rosa (2). A despeito dessas alterações ou exclusões, Marins consegue manter uma
razoável coerência na escolha dos correspondentes às luxúrias do poema latino.
Ademais, como afirmamos, o teor moralista continua presente, dando base às duas
teses do poema, antes já explicitadas (3).
Avaliação geral: 3
- Em “Elegia sobre a calvície repentina”, impropriedades comprometem a tradução de
Marins. Por exemplo, logo no início, cecidere capilli(caem os cabelos) é traduzido
por “Nossa cabeleira ... tece de cair”; uma expressão tão incompreensível quanto
incabível (1). areaque attritis ridet adusta pilis(e a eira chamuscada ri dos pêlos
sovados), verso que compara a mancha da calvície a uma eira, importante pela sutileza
que contém e por reforçar a associação do homem à natureza, é traduzido por “Peladas
sobrancelhas queimadas riem das lâmpadas perdidas”, o que nos leva a questionar se
Marins realmente se baseou no texto latino (1). De alguma maneira, compreende-se a
253
analogia básica da elegia, e embora a tradução complique a simplicidade original,
entende-se que o poema trata da calvície, e que ela é sinal da mortalidade do corpo,
informações fundamentais (2). A tradução dos finais da primeira e da segunda parte
conserva o tom de advertência, embora, assim como Ruas, Marins exclua a menção
explícita à natureza, no quinto verso: “o fallax natura” (oh falaz natureza) (2). É curioso
observar também que tradução de Marins para citius(mais rápido) em ut mortem
citius venire credas(e para que creias que a morte vem mais rápido) é praticamente a
mesma que a de Ruas. Ruas fala que a morte se aproxima “a largos passos”, e Marins
fala no “passo largo” da morte. Além disso, ao dispensar a menção à natureza, Ruas
transfere o adjetivo antes atribuído a ela (fallax) aos “deuses”, chamando-os de
“pérfidos”. Marins começa seu verso com “Ó perfídia! Ó deuses!” Se a tradução de
Ruas não é literal, a de Marins não é nada original (1). Em relação às características
métricas do poema latino, bastante significativas, não há correspondência. Além disso, o
tradutor sequer respeita as convenções poéticas, e compõe versos com mais de 20
sílabas, absolutamente prosaicos (1).
Avaliação geral: 1
- Em “Sexo como morte”, ao escolher “unimos” para a tradução de transfudimos”,
Marins parece ter considerado o sentido de fusão, e não o de transfusão, que denota
transmissão, transferência (1). Mais curiosa, no entanto, é a tradução de valete, curae
mortales (adeus, preocupações mortais) por Adeus à luta mortal”. Em seguida, a
tradução termina com o verso “Minha destruição começara.” Marins sugere talvez que
as preocupações mortais mencionadas por Encolpius são as disputas travadas com seus
rivais por causa de Giton, porém é difícil encontrar uma razão que justifique essa
mudança deliberada de “preocupações mortais” (“curae mortales”) por “luta mortal”. É
muito difícil entender por que Encolpius, dentro do poema em que narra uma noite de
amor, exaltando os prazeres, se despede de uma luta mortal, dizendo que sua
“destruição começara”. É fácil entender que a paixão por Giton causou,
paradoxalmente, a desgraça de Encolpius, que, apaixonado, acaba se metendo em lutas
mortais com outros rivais, mas ao que parece isso está apenas implícito em ego sic
perire coepi”; o resto é a prosa que explica (1).
Avaliação geral: 1
- Em “Dignus amore locus”, logo de início, o adjetivo atribuído ao plátano, “altivo”,
inverte o sentido cômico de mobilis”, que remete à frouxidão do falo de Encolpius (1).
Ao falar em “loureiro carregado de bagos”, Marins perde a brincadeira metalingüística
antes existente em bacis redimita Daphne(Daphne cingida de bagas) (1). Certamente
inspirado em Miguel Ruas, Alex Marins usa exatamente os mesmos termos que seu
colega usara para traduzir a descrição do pinho: “E o pinheiro esbelto farfalhava aos
ventos.” Com isso, o tradutor incorre na mesma inversão de conotação que dificulta a
associação à ninfa Pitys (1). Apenas “cipreste” conserva uma possível remissão a
Cyparissus (3). Na descrição do riacho, Marins enfatiza o lado prazenteiro da
representação: “Um riacho espumante de água vadia / Brincava entre eles, e cantara nas
pedras, / Em sonora corredeira.” Entretanto, as nuances de desagrado, existentes nos
ambíguos termos quereloe vexabat”, desaparecem (1). Marins, assim como Ruas,
opta por nomes mais populares na tradução de urbana Procne”: “a andorinha vinda da
cidade”. A mesma crítica feita antes, vale aqui: uso do nome Procne talvez contribuísse
254
para levar o leitor a pensar mais diretamente na história de Procne e Philomela, o que é
conveniente no caso (2).
Avaliação geral: 1
- Em “Encolpius ‘epicurista’”, a provocação do primeiro verso é mantida (3), mas ainda
no início do poema algumas traduções abalam a integridade do discurso construído no
poema. Por exemplo, a tradução de sermonis puri(de um linguajar puro) por “em
minha página pura” é particularmente imprópria (1). “Um estilo coloquial relata os
feitos do povo” não tem a retórica de quodque facit populus, candida lingua refert(o
que quer que faça o povo, minha língua cândida replica), e ainda compromete a
contraposição da ingênua imoralidade popular, simbolizada pelo mimo, ao radicalismo
moralista, simbolizado por Catão (1). Talvez a mais grave das impropriedades esteja na
tradução de nescit(não sabe, desconhece, ignora) em nam quis concubitus, Veneris
quis gaudia nescit?(pois quem não sabe o que é uma transa, os prazeres de Vênus?);
Marins traduz o verso por “Pois quem conhece o ato do amor, / Os prazeres de Vênus?”,
invertendo a retórica da pergunta (1). Os versos finais também são comprometidos. Se
lermos a segunda parte da tradução de Marins, veremos que o uso pérfido porque
distorcido da autoridade de Epicuro, que certamente provocaria os moralistas romanos
seguidores da doutrina epicurista, perde seu efeito e fica confuso: “Pois quem conhece o
ato do amor, / Os prazeres de Vênus? / Quem nos proibiria / De aquecer nossos
membros em uma cama meio cálida? / O sábio Epicuro, pai da verdade, / Ensina esta
doutrina e diz que nela jaz / O fim correto de toda vida” (1). Exceto pela manutenção da
provocação inicial aos Catões, a tradução de Marins destrói parte substancial da rede
subjacente de significados ligada àquelas personalidades, temas e fatos que
mencionamos antes. Os versos de Marins são razoavelmente bem ritmados, com
predominância de jambos (- /), troqueus (/ -) e anapestos (- - /) (2). uma curiosa
regularidade no início: os quatro primeiros versos todos têm 14 sílabas poéticas. Isso
não encontra, entretanto, nenhum paralelo na tradução. Na tradução de Marins não
nada semelhante à alternância de versos maiores e menores correlativa ao dístico
elegíaco, que encontramos na tradução de Ruas (1).
Avaliação geral: 1
- Em “Dinheiro e Fortuna”, os argumentos do discurso de Encolpius encontram bons
correspondentes na tradução de Marins, e exceto por um detalhe, a perversão do mito de
Dânae subsiste. “Se quiser poderá desposar a própria Dánae, / E fazer Acrisius acreditar
no que ela lhe disser” é uma boa tradução para uxorem ducat Danaen ipsumque licebit
/ Acrisium iubeat crederem quod Danae”, pois logra uma construção simples conquanto
literária em português, sem fazer recurso a grandes alterações ou clarificações (3).
Diferente de Ruas, Marins não explicita a suposta jura de virgindade de Dânae, e
mantém a insinuação cita (3). Talvez fosse conveniente padronizar os nomes. Marins
usa a ortografia portuguesa para traduzir o nome da princesa (Dánae), ao invés da
brasileira (Dânae), e mantém os nomes latinos Acrisius e Labeo, ao passo que opta
pelos equivalentes portugueses Catão e Sérvio (2). Ao menos dentro dos limites do
poema, os nomes poderiam estar todos em latim ou todos em português, segundo a
ortografia brasileira. No entanto isso é um detalhe que não compromete a paródia.
Talvez algo comprometedor seja uma pequena impropriedade na tradução de clausum
possidet arca Iovem(o baú possui Júpiter preso dentro dele), que Marins traduz por
“Júpiter está encerrado ao lado de teu cofre”. A noção de “ao lado” não possui paralelo
255
algum no poema latino. Ao colocar Júpiter “ao lado” do baú Marin torna a perversão do
mito ainda mais misteriosa no sentido interpretativo. E isso, por lado, chega a ser
interessante, ainda que não se possa afirmar que foi intencional por parte do tradutor,
mas por outro lado, desvia o foco do leitor, que talvez se concentre na interpretação
dessa nova imagem, ao invés de contemplar a bagunça feita por Petrônio (1).
Avaliação geral: 2
- Em “Tempestade no poema”, a interrupção do primeiro verso com exclamatum
verbo dicendi, tipicamente usado pelo narrador na prosa desaparece junto de todas as
suas implicações (1). Estranhamente, Marins apresenta sua tradução dos primeiros
versos não em versos, mas em prosa, como se fosse um único parágrafo. Apenas a
tradução dos dois últimos versos do poema latino é disposta em versos por Marins. Isso
talvez possa ser decorrente de algum erro de editoração, mas independente da causa,
isto é, tenha sido a mudança acidental ou deliberada, o fato é que isso compromete o
papel do poema como interrupção da prosa no Satyricon (1). As referências épicas estão
particularmente bem preservadas. Ainda que “Medéia furiosa combate aqui o sangue
irmão” seja sintaticamente discordante com Medea furens fraterno sanguine pugnat
(Medeia furiosa luta pelo sangue do irmão), a tradução é cabível (3). No entanto, a
sentença “Somente o amor desprezado é que vos força”, tradução para sed
contemptus amor vires habet(mas o amor desprezado tem força), afeta um pouco a
coerência do discurso (1). O trocadilho entre as ondas reais e as ondas metafóricas
desaparece nessa tradução também (1). Ademais, na retomada da prosa, não nada
correspondente à principal característica que destacamos nessa parte do poema latino: a
representação da elocução de Tryphaena conforme a tempestade (1).
Avaliação geral: 1
5. Avaliação específica de cada sutileza e avaliação geral dos poemas - Sandra
Braga Bianchet
- Em “Encolpius indignado”, embora não tenha nada a ver com os sotádicos originais,
compostos em tetrâmetros, Bianchet consegue um efeito rítmico coeso em seu poema
(2). Pelo uso de metros nobres, perdeu-se, no entanto, qualquer possibilidade de
conseguir alguma comicidade na forma (1). Igualmente aos outros dois tradutores,
Bianchet usa “Três ... terrível ... três” para a tripla repetição de ter (2), e anula do efeito
de thyrso, traduzindo o termo por “caule” (1).
Avaliação geral: 2
- Em “Virgílio transcrito”, incorrendo numa racionalização, Bianchet também destruiu a
principal sutileza do poema: a ambigüidade hilária de “illa”, que no contexto de Virgílio
se referia à rainha Dido, enquanto que no contexto de Petrônio se refere ao pênis
desfalecido de Encolpius (1). Não também qualquer busca de correspondência no
metro (1).
Avaliação geral: 1
256
- Na abertura do poema sobre a tomada de Tróia, o emprego de “desvendar” para
traduzir pandere insinua uma tentativa de se aproximar da ambigüidade do termo
latino (2). Não nenhuma aparente intenção de deixar o texto, dentro das
possibilidades da língua portuguesa, num arranjo confuso, mas também nota-se que
Bianchet não procurou embelezar o texto ou retirar-lhe a estranheza (3). Diferente de
Leminski e Marins, Bianchet não clareia o significado de “decuma ... messis”, e mantém
sua função sintática, corroborando a segunda sutileza dessa abertura do poema: o
encobrimento figurado dos gregos (3).
Avaliação geral: 3
- Nos versos que encerram a abertura do poema, onde o tema do escondimento fica
explícito, Bianchet deixa de traduzir um dos três verbos que denotam o ato de
“esconder”, atenuando a multiplicidade de significantes que configurava esta parte (2), e
ainda explicita a referência aos gregos, traduzindo o epíteto “dânaos” por “gregos”,
prejudicando a “cobertura” figurativa dada aos gregos até que eles tomassem lugar
dentro do cavalo (2).
Avaliação geral: 2
- A quebra, a modulação, representada pelos versos 11 e 12 do poema, promovida
especialmente pelo uso da expressão “oh! pátria” e pelo uso do verbo em primeira
pessoa, foi integralmente correspondida por Bianchet (3).
Avaliação geral: 3
- Na representação de Laocoonte, Bianchet perverte o sentido e a função de ictus
resilit (1). Dos elementos observados, o único mantido é invalidam manum”, que
Bianchet traduz por “mão debilitada” (3). Os demais, a repetição de sons (1) e os dois
gumes da segunda arma (1), inexistem. Cometendo impropriedades e não conseguindo
correspondências, Bianchet destrói a rede subjacente de significados ligados a fraqueza
e secundariedade nessa parte do poema, comprometendo o projeto dessa paródia
específica.
Avaliação geral: 1
- Em “Ecce alia monstra”, a ambigüidade e o efeito de dorsosão esterilizados com
“encosta”, que afirmanedos como uma ilha simplesmente e não ao leitor a chance
de pensá-la como mais um monstro (1). No entanto, curiosamente, Bianchet traduz
freta” por “braços do mar”; o adjetivo de “freta é o mesmo que de “pectora”:
tumida”. Ao que parece, a possibilidade de comparar o próprio mar às serpentes,
tomando ele também como outro portento (3). A idéia de fraqueza em minor permanece
com “mais fraca” (3). pulsumque marmor abiete imposita gemit (e sua superfície
geme ao bater contra a quilha) Bianchet traduz por “e a arrebentação por elas impelida
lamenta seus enganos desesperançosamente”. marmor (a superfície do mar) é
traduzido por “arrebentação”, e esta, ao invés de gemer ao bater contra a “abiete
(abies, abietis: abieto, quilha) dos navios, “lamenta seus enganos
desesperançosamente”. Evidentemente a tradutora se afasta bastante do sentido dessa
comparação, destruindo mais uma vez o jogo figurativo entre os portentos, pois assim
como Tênedos não tem mais dorso em sua tradução, os navios também não gemem
257
como a vítima de uma serpente (1). Além disso, o alongamento é gritante: as cinco
palavras no latim de Petrônio viram dez no português de Bianchet (1).
Avaliação geral: 2
- No final do poema sobre a tomada de Tróia, a tradução de effunduntpor “soltam”
não contempla seu efeito original (1). Bianchet não consegue manter o prefixo re ou
qualquer outra idéia de reiteração na tradução de relaxant”, porém, tomando certa
libertade, consegue encaixar o verbo relaxar oportunamente em outro lugar do poema. A
tradutora atribui o adjetivo “relaxado” ao cavalo, ao dizer que ele é solto das rédeas (3).
Ainda que tenham sido perdidas as imagens da carruagem e do jugo, esta especialmente
significativa, a conotação de fraqueza se mantém com “rédeas soltas”, assim como todo
o padrão do modelo épico (guerreiros e cavalos) (3).
Avaliação geral: 3
Em “Viver e comer”, Bianchet não clarificou o significado contextual de sic erimus
cuncti”, e convenientemente manteve o significado mais puro de auferetcom “levar”
(3). Na prosa, entretanto, ferculum se tornou “bandeja grande”, sendo destruído o
efeito gerado pelo uso combinado das duas palavras (auferet e ferculum) (1). Outro
elemento destruído foi a ambigüidade de esse(1). Ainda assim, ao menos a imagem
do Orco nos levando embora foi mantida, o que por si contribui para preservar
parte da rede de significados do poema (3). Bianchet não se preocupou muito com a
idéia de alternância métrica (hexâmetros e pentâmetros) inerente à epigrama e tampouco
demonstrou buscar algum efeito rítmico análogo ao dátilo (/ - -), a célula rítmica
característica dos versos originais (1). Todavia, parece ter tido um cuidado: o de garantir
que o verso final tivesse uma quantidade menor de acentos fortes em relação aos
demais, o que pode ser admitido como uma possível analogia ao pentâmetro final da
epigrama de Trimalchio (2).
Avaliação geral: 2
- No poema sobre a metáfora da queda, Bianchet destrói o detalhe que constitui a
principal sutileza do poema: a idéia de Fortuna está literalmente acima de nós (1).
Avaliação geral: 1
- Em “Publilius Syrus”, Bianchet conseguiu algumas aliterações, porém pela
semelhança fraca ou pela distância entre os fonemas na maioria dos casos, não é
possível dizer que são aliterações expressivas (2). Os elementos do primeiro verso
foram bastante embaralhados, o que comprometeu tanto sua idéia mais óbvia (a de que
Roma é depreciada pelo luxo) como a alegoria da luxúria: “O desejo de luxo enfraquece
as muralhas com a gargalhada de Marte”. A interpretação de Bianchet até seria
sintaticamente possível (embora contextualmente incabível) se não fosse pelo verbo
marcent (enfraquecem-se, desfazem-se, morrem) que implica o sujeito moenia
(muralhas) (1). rictué traduzido por gargalhada, e a boca não é da luxúria, mas de
Marte, o que condena o arranjo da alegoria (1). A menção às aves exóticas é
razoavelmente preservada (2), mas no primeiro verso da representação da cegonha,
Bianchet incorre num alongamento desnecessário, e distorce algumas noções ao invés
de dar-lhes correspondência semântica precisa, o que justificaria ou pelo menos
258
explicaria o alongamento (1). O termo “importado” foi acrescentado sem razão, e
“exemplo de dedicação materna” não condiz com o pietaticultrix, pois a piedade da
cegonha, de acordo com o conceito romano de piedade e de acordo com a crença sobre
os hábitos dessa espécie, é uma piedade de filho para pai, e não o contrário (1). Todavia,
os adjetivos gracilipes crotalistria foram preservados literalmente, o que contribui
para manter as duas conexões implícitas que esses termos sugerem (3). A infidelidade
da matrona, cuja importância perante o Satyricon recém comentamos, inexiste na
tradução de Bianchet, que traduz strato extraneo por “uma cama importada” (1).
Além disso, na tradução de Bianchet a retórica e o sarcasmo do verso nisi ut scintillet
probitas e carbunculis” (a menos que a honra brilhe dos carbúnculos) desaparece (1).
Avaliação geral: 1
- Em “Poeta sum”, Apesar da leve redundância presente em “enriquece com o grande
lucro”, inexistente no poema latino, a tradução de Bianchet não compromete a lista de
ocupações vantajosas, a não ser em um ponto: a tradução de ad ... peccat(peca por)
por “tropeça em” (2). A eloqüência fácil, didática, do sermo, não encontra plena
correspondência na tradução, que por vezes parece ir na direção contrária, buscando
alguma construção inusitada, como “Quem se confia ao mar”, ou vocábulos desusados,
estritamente literários, como “cingido” (2). Todavia, o modelo dialógico do sermo não é
em nada comprometido (3).
Bianchet compõe apenas versos longos e, como enfatizamos na escansão, não existe
nenhuma busca intencional de correspondência em relação ao ritmo troicaco (1).
Avaliação geral: 2
- Em “Geografia da luxúria”, ales(um nominativo singular, cujo plural seria alitia) é
traduzido por “Aves”, e substituição da referência a Fásis pela referência à personagem
mitológica, que teria sido princesa da Cólquida, ofusca a referência ao faisão. Isso, no
entanto, não acarreta uma perda significativa, pois a referência à Cólquida, uma região
longínqua que fornece a iguaria exótica, permanece (2). E além disso, pode-se
interpretar tal substituição de como uma tentativa de correspondência: a ave exótica é
vinculada a uma personagem mitológica feminina bastante ameaçadora, o que combina
perfeitamente com o padrão de analogias do poema (2). O poema, sucinto, diz apenas
que os pássaros exóticos não são fáceis (“quod non sunt faciles”), mas Bianchet clarifica
o que estava subentendido: “porque não são fáceis de se encontrar” (1). Por outro lado,
o poema fala em um pato branco e uma gansa pintada. Pato e ganso são palavras usadas
em muitos casos e nguas para se referir ao mesmo animal. Provavelmente
considerando isso, e considerando também que gansa não soa muito bem, Bianchet, de
modo conveniente, inverte os gêneros ao falar em “patae “ganso”, o que pode ser
entendido como uma correspondência cabível a essa oposição de gêneros algo que
existe também entre a rosa e o cinamomo (3). Bianchet, assim como Ruas, fala em sargo
ao invés de escaro ou bodião. Já comentamos que, embora ambos sejam peixes, não se
trata da mesma espécie, porém isso não afeta muito a função da menção ao escaro,
que um sargo é tão exótico quanto (2). Bianchet é a primeira a respeitar a menção a
arata Syrtis”, que traduz os termos por “os sulcos de Syrtes” (3). Entretanto, Bianchet
exclui a referência ao ruivo (“mullus”) e confunde consideravelmente as sentenças
probatur: mullus iam gravis est”, que traduz por “a mula já está carregada” (1).
Avaliação geral: 2
259
Em “Elegia sobre a calvície repentina”, em relação aos pontos importantes, que
destacamos na análise do poema, pode-se dizer que Bianchet atende às principais
analogias do poema e, à sua maneira, mantém seus elementos-chave (3). No entanto,
por vezes, Bianchet perde a letra do texto latino em sua tradução, incorrendo em
clarificações e alongamentos gritantes. É de se questionar, por exemplo, se a prosaica
frase “E agora, tuas têmporas se afligem com a dissipação da própria sombra
despida”, tradução de Bianchet para Nunc umbra nudata sua iam tempora maerent
(agora lamentam-se as têmporas, despidas de sua sombra), pode ser considerada um
verso, a despeito de qualquer ritmo que apresente (1). Além disso, sua tradução para
area(eira), “espaço desocupado”, é tão ingênua quanto imprópria, contribuindo para
que sua tradução pareça um calco filológico (1). Em relação às características métricas
do poema latino, bastante significativas, não correspondência. Além disso, a
tradutora sequer respeita as convenções poéticas, e compõe versos com mais de 20
sílabas, absolutamente prosaicos (1).
Avaliação geral: 2
- Em “Sexo com morte”, Bianchet aparentemente assume o motivo primário do poema,
a celebração do sexo, e toma certa liberdade na tradução de transfudimus hinc et hinc
labellis errantes animas(pelos lábios vertemos de um lado pro outro nossas almas
errantes): “roçamos nossos lábios aqui e ali, almas errantes” (2). No entanto, a outra
sutileza, aquela presente em ego sic perire coepi”, foi mantida pela tradução franca de
Bianchet, sem nenhuma transcriação idiossincrática: “Foi assim que eu comecei a
morrer”. A tripla possibilidade de interpretação da frase final do poema foi, assim,
mantida (3).
Avaliação geral: 3
Em “Dignus amore locus”, “Plátano flexível” é uma tradução bem pura para mobilis
platanus”; o contexto pode até ajudar, mas é difícil perceber uma conotação maliciosa e
cômica em “flexível” (2). A tradução de bacis redimitapor “coroado de seus frutos”
corrobora a brincadeira metalingüística, porém a opção pelo nome latino “loureiro” ao
invés do grego Daphneprejudica as analogias (2). A tradução da descrição do pino
merece comentário à parte. A palavra vertex (cujo ablativo singular é vertice) pode
designar tanto um turbilhão como o cume de uma árvore ou de um monte, por exemplo.
Parece mais cabível imaginar o cume de uma árvore que trepida ao ser balançada (pelo
vento ou não) do que pensar num vento que trepida. Bianchet, no entanto, prefere
entender trepidanti verticecomo “turbilhão de vento trepidante”. A interpretação da
tradutora não coincide com a nossa, que em trepidanti vertice pinus (pino de
vértice trépido) uma possibilidade de associação à ninfa Pitys, uma possibilidade
bastante condizente com o discurso cômico sobre fracasso e desapontamento,
supostamente implícito no poema e absolutamente explícito na prosa (1). As nuances de
prazer e desagrado existentes em amnis ... querulo vexabat rore lapillos(o riacho
revoltava as pedras com sua água querelante) são niveladas a um tom prazenteiro e
tenro com a tradução de Bianchet: “um rio ... sacudia as pedrinhas com sua ruidosa
água”. Exceto pela palavra “ruidosa”, que pode sugerir alguma conotação ligada ao
desagrado, o rio representado na tradução é bastante mimoso (1). Em contrapartida, a
preservação do nome grego Procne mantém possibilidade de se fazer uma alusão ao
mito da princesa Procne, que embora contenha um caso de amor em seu enredo, possui
260
uma temática que envolve desapontamento, vingança e até mesmo castração temas
bastante consoantes ao contexto do poema (3).
Avaliação geral: 2
- Em “Encolpius ‘epicurista’”, Bianchet mantém razoavelmente todos os elementos
importantes: a provocação inicial aos Catões, a ênfase na pureza e na simplicidade que
os hábitos e o linguajar do povo inspiram, o elogio ao despudor, e a distorção do
pensamento de Epicuro (3). A tradução do quarto verso, quodque facit populus,
candida lingua refert(o que quer que faça o povo, minha língua cândida replica),
perde em força retórica com “e através de uma linguagem clara reproduz o que o povo
faz” (2). Porém o uso palavra grega τέλος, mantendo o empréstimo antes feito por
Petrônio, tem mérito. Esse termo reforça a remissão à filosofia de Epicuro, por ser um
conceito central dentro dela, usado de maneira imprópria e intencional por Encolpius
(3). O poema de Bianchet é bem ritmado. Na maioria dos versos pode-se reconhecer
certa predominância de jambos (- /), anapestos (- - /) e péons de acento na quarta sílaba
(- - - /), no entanto, assim como no poema latino, no poema de Bianchet também
existem versos trocaicos, como o terceiro e o sexto, por exemplo (2). A tradutora outra
vez compõe versos demasiadamente longos, desrespeitando uma convenção da poesia
portuguesa que admite versos de até vinte sílabas, mas a despeito disso, na segunda
metade do poema, Bianchet apresenta dois pares de versos com 21 e 15 sílabas, nos
quais se pode reconhecer algum paralelo com o dístico elegíaco: a cadência produzida
pela intercalação de um verso maior com um verso menor (2).
Avaliação geral: 3
- Em “Dinheiro e Fortuna”, a tradução de uxorem ducat Danaen ipsumque licebit /
Acrisium iubeat crederem quod Danae” por “Pode casar-se com Dânae e ter o direito de
ordenar / ao próprio Acrísio que acredite em Dânae” não é impossível, mas sabemos
que uxorem ducat”, no contexto em que é usado, sugere algo mais simples e físico
(desposar, acasalar) que “casar”, que evoca diretamente a instituição do casamento. No
caso em questão, para que a paródia satírica tenha efeito, talvez fosse mais conveniente
sugerir apenas o ato físico, que tira a virgindade de Dânae (2). Além disso, Bianchet
imprime a sua interpretação racionalizada na tradução do final clausum possidet arca
Iovem(o baú possui Júpiter preso dentro dele) por “Teu cofre mantém Júpiter preso a
ti” (1). A mesma crítica feita a Ruas vale para Bianchet: essa frase que encerra o
poema é absolutamente sintética, sugestiva, ambígua, embora a inversão seja clara:
Júpiter, e não Dânae, está preso dentro do baú. Bianchet, entretanto, alonga a frase e se
permite imprimir-lhe uma estrutura distinta da original, que combina melhor com final,
quando poema então se dirige à segunda pessoa. Ainda que não seja tão
comprometedor, isso tem algum efeito destrutivo, pois a parcimônia e consistência da
frase final, sintética e incisiva, se perdem. Além disso, é possível afirmar que, também
nesse caso, a mudança desvia o foco do leitor, que pode perder de vista a bagunça
programada por Petrônio (1).
Avaliação geral: 2
- Em “Tempestade no poema”, igual a Leminski e Marins, Bianchet dispensa a
interrupção do primeiro verso com exclamat”, deixando de lado todas as implicações
cruciais que isso tem (1). Além disso, na primeira parte do poema, a tradutora mantém-
261
se exageradamente próxima do latim em alguns casos e opta por soluções forçosas em
outros, logrando interpretações possíveis, mas desarmônicas entre si. A tradução de
quid nostrae meruere manus?(que desgraça mereceram nossas mãos? ou o que foi
que mereceram nossas mãos?) por “Por que nossas mãos se alistaram no exército?”, ou
a de pignuspor “garantia” não são, por exemplo, muito convenientes no contexto do
poema (1). Ainda assim, a tradutora consegue preservar parte fundamental das
referências épicas, e não altera a coerência do discurso sobre o ciúme (3). Tem mérito a
tradução da segunda metade do poema: os trocadilhos das ondas são devidamente
mantidos, e Bianchet não incorreu em nenhuma racionalização nem tendeu a clarificar
as metáforas, demonstrando sintonia com a prática de Petrônio (3). Na retomada da
prosa, porém, os termos escolhidos na tradução não trazem consigo a sugestão da
tempestade na elocução de Tryphaena (1). As linhas de Bianchet são bem estruturadas,
mas extravasam o limite do verso. Se a tradutora simplesmente as tivesse quebrado,
como fez Aquati, deixando a tradução com mais versos que o poema latino, mas
respeitando o limite silábico de um verso em português (20 sílabas) e ao mesmo tempo
preservando a integridade do texto de Petrônio, talvez lograsse melhores resultados
(1). Contudo, observa-se a impressão de um ritmo crescente, que sugere
grandiloqüência e é absolutamente condizente com os motivos épicos, indicando uma
significativa busca de correspondência nesse nível (3).
Avaliação geral: 2
6. Avaliação específica de cada sutileza e avaliação geral dos poemas - Cláudio
Aquati
- Em “Encolpius indignado”, a escolha do sotádico não teve correspondência alguma na
tradução de Aquati, que exacerbou o alongamento e seguiu também a tendência da
destruição dos ritmos, desconsiderando o ritmo original, mantendo apenas a existência
de algum ritmo que garantisse cadência ao poema (2). Exatamente igual aos outros
tradutores, Aquati optou por “Três ... terrível ... três”, para a tradução do ter ...
terribilem ... ter”, e o acúmulo desses sons não se dissolveu como no poema latino, com
a palavra thyrso, que foi traduzida por “caule” (1). Com isso, perde-se parte
significativa de toda essa rede de significados ligada a ter e thyrso, que joga com as
noções quantidade (três), intensidade (ter é um prefixo intensificador), expectativa e
decepção hilárias, etc., sutilezas cruciais do poema, elementos essenciais da paródia.
Avaliação geral: 2
- Em “Virgílio ‘transcrito’”, o único tradutor que demonstrou consciência da prática de
Petrônio foi Aquati. Todavia é preciso observar que na tradução de Aquati também
existe a mesma tendência deformadora presente nas traduções anteriores, a
racionalização, porém o tradutor incorre nessa tendência de modo contrário: ciente da
ligação de illacom pars corporis”, Aquati imprimiu seu entendimento na tradução,
usando “Aquela parte” para illa”, destruindo igualmente a referência à rainha Dido que
existe no poema de Virgílio (2). O significado do hexâmetro – que representa um
elemento de nobreza, contrastante com a prática satírica de Petrônio não encontra
correspondência na tradução de Aquati, embora seus versos sejam bem ritmados (1).
Avaliação geral: 2
262
- Na abertura do poema sobre a tomada de Tróia, Aquati não preserva a ambigüidade de
pandere”, confirmando a dificuldade dessa sutileza para a tradução (1). Embora seus
versos, como observamos, tenham cadência poética, a disposição deles sugere uma
organização textual muito mais prosaica que poética. Isto é, são compostos de modo a
facilitar a narração, a leitura fluída. Isso se depreende tanto do rearranjo lógico das
sentenças como da pontuação clarificante. A primeira sutileza, portanto, é perdida. A
segunda sutileza, o encobrimento figurado dos gregos, de forma menos sugestiva que no
poema latino, mas é mantida por Aquati, que manteve implícitos os autores do lendário
embuste, como requeria o procedimento de Petrônio (3).
Avaliação geral: 2
- No final da abertura, Aquati é o único que preserva essa multiplicidade lexical como
um todo, usando “secreto”, “Oculta-se” e “se escondem”, além de conservar, assim
como Ruas, o epíteto “dânaos” (3).
Avaliação geral: 3
- A quebra, a modulação, representada pelos versos 11 e 12 do poema, promovida
especialmente pelo uso da expressão “oh! pátria” e pelo uso do verbo em primeira
pessoa, foi integralmente correspondida por Aquati (3).
Avaliação geral: 3
- Na representação de Laocoonte, Aquati é o único que mantém o elemento dos dois
gumes da segunda arma, com “bipene” (3). Ele também preserva a idéia e a função de
invalidam manum”, com “fraca mão” (3), e mantém com precisão o significado de
ictus resilit”, com “o golpe resvala” (3), conquanto sua tradução de “latera pertemptat
por “sonda os flancosseja questionável (2). Assim como nas outras, não nenhuma
correspondência à repetição de sons (“iterum ... uterum”) na tradução de Aquati (1), no
entanto, pode-se dizer, ele foi o tradutor que menos destruiu a rede subjacente de
significados ligada aos temas da fraqueza e da secundariedade, sem com isso cometer
impropriedades ou incorrer em outras tendências deformadoras.
Avaliação geral: 3
- Em “Ecce alia monstra”, Aquati apaga a dubiedade de “dorso”, traduzindo o termo por
“linha de sua costa” (1). A ambigüidade de minor (menor), que tem um lado
depreciativo, contribuindo para a temática da fraqueza subjacente ao poema, tem seu
efeito enfraquecido em “mais baixa”, que informa apenas o caráter físico da onda (2).
Como ressaltamos, no poema latino a onda é menor no tamanho e também sugere a
inferioridade da imitação de Eumolpus. A informidade significante de um trecho dessa
parte poema, ou sua falta de acabamento formal, decorrente do estilo tosco de
Eumolpus, foi destruída pela racionalização e clarificação da tradução de Aquati (1).
Avaliação geral: 1
- No final do poema, Aquati, assim como os outros tradutores, não preservou a idéia de
derramar ou despejar (relativa ao despejo de vinho) presente em effundunt”; não se diz
263
“esparramar” uma bebida num copo, por exemplo (2). Da mesma forma, a noção de
reiteração implícita em relaxant foi apagada (1). A outra sutileza, entretanto,
constituída pela combinação do modelo épico que compara guerreiros indo à batalha a
cavalos em fuga não é prejudicada, e imagem do jugo é apropriadamente mantida (3),
embora isso não aconteça com a imagem da carruagem.
Avaliação geral: 2
- Em “Viver e comer”, Aquati não clarificou o significado contextual de sic erimus
cuncti”, e convenientemente manteve o significado mais puro de auferetcom “levar”
(3). Na prosa, entretanto, ferculumse tornou “prato”, sendo destruído o efeito gerado
pelo uso combinado das duas palavras (auferet e ferculum) (1). Outro elemento
destruído foi a ambigüidade de esse(1). Ainda assim, ao menos a imagem do Orco
nos levando embora foi mantida, o que por si só já contribui para preservar parte da rede
de significados do poema (3). Em relação ao metro, apesar de não ter correspondido a
idéia de alternância métrica (hexâmetros e pentâmetros) inerente à epigrama e tampouco
o ritmo datílico (1), Aquati se preocupou em fazer com que o último verso fosse menor
em relação aos demais, o que é análogo ao desvio de regra existente no poema latino
(2).
Avaliação geral: 2
- Em “A metáfora da queda”, o tradutor manteve as palavras simplórias de Trimalchio,
assim como a sutileza tácita de Petrônio, sem destruir a letra do texto latino, a despeito
das características métricas que não eram importantes no caso (3).
Avaliação geral: 3
- Em “Publilius Syrus”, Aquati é o único que respeita a integridade do primeiro verso,
contribuindo para a sutil e crucial alegoria que estrutura o poema. A tradução de rictu
por “Na fauce” é perfeitamente cabível, assim como a de luxuriaepor “do prazer
ilimitado”. Além disso, a preservação do epíteto “Martis ... moenia” (muralhas de
Marte) é bastante conveniente (3). São, no entanto, poucas as aliterações na tradução
que produzem efeitos razoáveis, em respeito à principal qualidade formal do poema de
Syrus (1). Embora tenha mantido a integridade do primeiro verso, Aquati não preservou
a enunciação do poema, cuja voz se dirige a uma segunda pessoa (tu). Isso compromete
um pouco o caráter acusatório do poema, por dissolver o objeto de seu moralismo
(Roma) em várias pessoas (1). Todavia, não obstante essa alteração aparentemente
consciente, Aquati conserva todos os elementos centrais do poema as aves (3), pedras
e jóias exóticas diversas (3), os tapetes da babilônia e a seda trazida do oriente (3) – os
quais, como dissemos, são o veículo da crítica que se faz à ânsia pelo exótico, à luxúria
provocada pelo comércio marítimo na época. Com esse cuidado na preservação das
qualidades dessas luxúrias, Aquati também logra preservar as sutis ligações internas e
externas do poema, as quais comentamos reiteradamente: - a cegonha lasciva e as
matronas fúteis de Trimalchio e Habinnas (Fortunata e Scintilla); - a cegonha traidora e
a matrona infiel do poema; - o brilho e a exuberância da plumagem do pavão e o
contraste estruturante com o brilho, a suavidade e a perversa transparência da seda da
noiva (3). A gradação que vai da dignidade à perversão na descrição da cegonha persiste
plausivelmente na tradução (3). E ademais, diferente dos outros tradutores, Aquati
consegue sarcasmo, retórica e síntese relativamente correspondentes na tradução de
264
nisi ut scintillet probitas e carbunculis”: “Será para que do carbúnculo brilhe
honradez?” (3).
Avaliação geral: 3
- Em “Poeta sum”, Aquati, embora fique bem próximo do vocabulário do poema latino,
sem fazer recurso a grandes alterações ou clarificações, mantém uma linguagem
simples, conservando tanto a eloqüência e o modelo dialógico do sermo (3), quanto a
lista de ocupações vantajosas contrapostas à miséria da poesia, que imita os poemas de
Horácio e Tíbulo (3). As linhas de Aquati são versos, e isso corrobora a terceira sutileza
do poema: o contraste coloquial-formal causado pela justaposição do sermo ao
hexâmetro, ou simplesmente do sermo ao verso, como reconhecemos na tradução. Além
disso, com mais ou menos sucesso, o tradutor parece ter tentado imprimir um ritmo
ligeiramente trocaico em seus versos, o que corresponde ao poema latino (3).
Avaliação geral: 3
- Em Geografia da luxúria”, Syrtis”, comentamos, é uma referência à região do
golfo de Sirte, uma cidade localizada ao norte do Mediterrâneo, hoje conhecido como
golfo de Sidra. Na tradução de arata Syrtis por “produtos colhidos pelos Sirtes”,
Marins parece, pois, ter cometido uma impropriedade, que o termo é um genitivo
singular, e caso tivesse a conotação de “pelos Sirtes” deveria ser um ablativo plural
(syrtibus) (2). Além disso, alguém poderia reconhecer certo enobrecimento na tradução
de sapitpor “sabem”, com a conotação hoje erudita de “ter sabor” (2). A despeito
disto, que é absolutamente legítimo, Aquati, outra vez, fica convenientemente próximo
ao texto latino, e mantém todos os elementos cruciais às sutilezas do poema, sem com
isso minar a sua letra, sua literariedade, pois que oferece bons versos livres em
português. Nenhuma das luxúrias ligadas à rede de analogias que atravessa verso e
prosa teve sua descrição distorcida ou contrafeita aqui, e o tradutor sequer distanciou-
se da sintaxe latina. Uma vez que desconsideramos o metro do poema nesse caso, eis
uma tentativa razoavelmente bem sucedida daquilo que Berman chamaria de tradução
da letra (3).
Avaliação geral: 3
- Em “Elegia sobre a calvície repentina”, no plano do significado, o único aspecto não
contemplado na tradução de Aquati é a ambigüidade de area(eira), traduzido por
“cabeça” simplesmente (1). Os demais aspectos todos continuam: as analogias (vida,
homem, natureza e morte) (3), o paralelo entre os finais da primeira e da segunda parte
(3), o contraste entre elas (sobriedade-informalidade) (3), o tom de lamento próprio da
elegia etc (3). Tudo isso, à custa de um aumento no número de versos, está no poema
composto por Aquati, que parece aproveitar o privilégio da posição que ocupa, enquanto
quinto tradutor a publicar uma tradução de Satyricon no Brasil. Em relação às
características métricas do poema latino, bastante significativas, não
correspondência, mas o tradutor ao menos compõe versos razoavelmente ritmados, com
no máximo 20 sílabas, em respeito às convenções poéticas (2).
Avaliação geral: 3
265
- Em “Sexo como morte”, a frase “[...] usamos nossos lábios para trocarmos de um para
o outro as nossas almas sem destino”, a despeito do alongamento notório, parece uma
boa solução para manter o duplo sentido suscitado por transfudimuse errantes(3).
A construção “trocamos de um para o outro”, inclusive, amplia a possibilidade de
enxergar uma referência à poligamia ou à transferência de afeições, e “sem destino”,
ainda que não contenha em si noção de erro (relativa à traição), mantém a noção de
vagância e de alguma maneira nega a monogamia, ou o amor eterno, bem ao gosto de
Petrônio (3). Na tradução da sentença final, “Mas, no que me toca, foi esse o princípio
do fim”, Aquati evidentemente demonstra ter reconhecido e acabou por clarificar os
motivos secundários de perire coepi(2). Tanto a condenação ao drama nefasto que
Encolpius enfrenta ao longo da obra, quanto a menção à luta “mortal” com Ascyltos que
é narrada logo depois do poema são possíveis de se ler na tradução. Ocorre que, à custa
dessa clarificação, Aquati perdeu a representação bastante propícia do sexo como morte,
que no fim das contas é uma síntese abstraída de todo o poema: o amante se acaba, se
consome plenamente no sexo, e o resultado desse ato condena sua vida eternamente (1).
Avaliação geral: 2
- Em Dignus amore locus”, a tradução de mobilispor “oscilante”, assim como o
“flexível” de Bianchet, não contém comicidade ou malícia em si, mas pode ser lido com
tal conotação dentro do contexto do poema (2). Todavia, “Dáfinis coroada de bagas”
(3), “ciprestes” (3) e o pinheiro de “trêmulo vértice” (3) preservam a hipertextualidade
dos elementos e de suas representações dentro poema (3). Não se pode dizer que a
tradução de Aquati para amnis ... querulo vexabat rore lapillos(o riacho revoltava as
pedras com sua água querelante) contempla as nuances de prazer e desagrado, deleite e
agressão, existentes em queruloe vexabat(2). Ao traduzir essa passagem por “um
... regato ... os seixos fazia rolar com sua água murmurante”, Aquati, assim como os
demais tradutores, tendem a assumir o lado prazenteiro, deleitoso, ou simplesmente
físico da representação. No entanto, a tradução de urbana Procne” por “citadina
Prócne” logra uma correspondência bastante satisfatória (3).
Avaliação geral: 3
- Em “Encolpius ‘epicurista’”, Aquati mantém a provocação dirigida aos Catões, no
primeiro verso (3), e enfatiza a candura e o despudor inspirados pelos costumes do povo
(3). Na tradução de quodque facit populus, candida lingua refert(o que quer que faça
o povo, minha língua cândida replica) por “e o que o povo faz, uma linguagem franca
traduz”, Aquati não toma a mesma liberdade que Ruas, e mantêm-se próximo do texto
latino (3). Porém, de certa forma, assim como Ruas, Aquati atenua a força retórica de
candida lingua refert (minha língua cândida replica), traduzindo a frase por “uma
linguagem franca traduz”, o que não chega a desfazer ou apagar qualquer das
associações implícitas (2). A tradução de Aquati não deixa de manter convenientemente
a menção a Epicuro e ao conceito de télos, mas o uso do termo “finalidade”, embora não
seja impróprio, fica sujeito a crítica: assim como Petrônio usa a palavra grega,
seguramente com intencionalidade, talvez fosse mais adequado fazer o mesmo
empréstimo, que τέλος reforça a menção explícita à filosofia epicurista, distorcida
irônica e provocativamente na paródia (2). Além disso, a tradução de Epicurus amare
iussit(Epicuro amar ordenou) por “Epicuro recomendou essas coisas em sua doutrina”
merece comentário. Aquati pode ter pretendido duas coisas ao tomar tal liberdade na
tradução: primeiro, evitar que o leitor confunda o atual conceito cristão de amor com o
266
conceito subjacente ao poema de Petrônio, que está muito mais ligado ao amor erótico,
ou aos prazeres físicos, como Epicuro supostamente teria se expressado, e segundo,
reforçar a idéia de “citação” distorcida do pensamento de Epicuro, considerando que o
tradutor pudesse estar consciente da sutileza (2). Não há muito o que afirmar em relação
às características métricas do poema de Aquati. Assim como o poema de Bianchet, o de
Aquati possui um ritmo predominantemente jâmbico e anapéstico, mas em possível
alusão ao ritmo do poema latino dispõe de alguns versos trocaicos: o terceiro, o sexto e
o sétimo verso (2). Não nenhuma analogia explícita ou sutil ao dístico elegíaco,
porém os versos são cadenciados e nunca longos demais, o que contribui para a
poeticidade da tradução (2).
Avaliação geral: 2
- Em “Dinheiro e Fortuna”, a perversão do mito de Dânae tem sua integridade quase que
inteiramente mantida (3). A referência ao mito que consta da primeira parte está
particularmente bem vertida: “Despose Dânae e ser-lhe-á permitido / que ordene ao
próprio Acrísio acreditar em Dânae.” No entanto, na tradução do final do poema, em
que Júpiter e o baú são mencionados, há um ponto questionável (2).
Avaliação geral: 2
- Em “Tempestade no poema”, apropriadamente, Aquati enfatiza o enxerto de uma
expressão prosaica no meio do hexâmetro épico que abre o poema, ato fortemente
sugestivo e programático (3). O discurso sobre o ciúme está bem mantido (3) e o
conjunto das referências épicas devidamente conservado (3). Aquati deixa a tradução
com mais versos que o poema latino, mas respeita o limite silábico de um verso em
português (20 sílabas), ao mesmo tempo em que preserva a integridade do texto de
Petrônio, logrando um resultado razoável com isso (2). Observa-se também a impressão
de um ritmo crescente, que sugere grandiloqüência e é absolutamente condizente com
os motivos épicos, indicando uma significativa busca de correspondência nesse nível
(3).
Avaliação geral: 3
267
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