Download PDF
ads:
Universidade Federal de Juiz de Fora
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários
Afonso Celso Carvalho Rodrigues
RITMO E POESIA
A LÍRICA DA PERIFERIA URBANA
Juiz de Fora
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Afonso Celso Carvalho Rodrigues
RITMO E POESIA
A LÍRICA DA PERIFERIA URBANA
Dissertação apresentada à Universidade Federal
de Juiz de Fora, como requisito parcial para a
obtenção de título de Mestre em Estudos
Literários.
Orientadora: Profa. Dra. Enilce Albergaria Rocha
Juiz de Fora
2009
ads:
AFONSO CELSO CARVALHO RODRIGUES
RITMO E POESIA
A LÍRICA DA PERIFERIA URBANA
Dissertação apresentada à Universidade Federal
de Juiz de Fora, como requisito parcial para a
obtenção de título de Mestre em Estudos
Literários.
Aprovada em 16/12/2009.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof. Dra. Enilce Albergaria Rocha - Orientadora
Universidade Federal de Juiz de Fora
__________________________________________________
Prof. Dr. Edimilson de Almeida Pereira
Universidade Federal de Juiz de Fora
__________________________________________________
Prof. Dr. Emerson da Cruz Inácio
Universidade de São Paulo
RESUMO
O presente trabalho analisa a produção de textos por pessoas consideradas à margem da
sociedade. A dissertação se concentra nos autores de rap da periferia dos grandes centros
urbanos e na noção de território ideológico estabelecido por sua escrita e canto performático.
Tal análise é feita a partir de pesquisa bibliográfica e entrevista, tendo como objetivo ressaltar
a importância de um discurso inclusivo para as populações periféricas das grandes cidades
brasileiras.
Palavras-chave: Literatura de periferia. Rap. Música. Identidade pós-colonialista.
ABSTRACT
The present work analyzes the production of texts for people considered to the part of society.
The dissertation concentrates on the rap authors of the periphery of the great urban centers
and the notion of ideological territory established by its writing and performers singers. Such
analysis is made starting from bibliographical research and interviews, tends as objective to
stand out the importance of an inclusive speech for the outlying populations of the Brazilian
cities.
Keywords: Periphery literature. Rap. Music. Pos colonial identity.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 09
2 ARTE E SOCIEDADE.......................................................................................... 15
3 O VENTRE DO NAVIO: AMÉRICA E ÁFRICA............................................. 22
3.1 O Atlântico negro.................................................................................................... 24
3.2 Hip hop.................................................................................................................... 26
3.3 Autoconstrução cultural........................................................................................... 28
3.4 Rap rizoma............................................................................................................... 30
4 LITERATURA MARGINAL............................................................................... 33
4.1 Literatura e Poder.................................................................................................... 34
4.2 À margem do núcleo central literário...................................................................... 35
4.3 Novos textos contemporâneos................................................................................. 38
4.4 Seja bandido, seja herói........................................................................................... 38
5 UMA NOVA NAÇÃO........................................................................................... 42
5.1 Considerações sobre oralidade, música, escrita, nação e rap.................................. 44
6 RAP......................................................................................................................... 47
6.1 No início.................................................................................................................. 47
6.2 Negros também falam ............................................................................................. 49
6.3 O rap no Brasil ........................................................................................................ 51
6.4 A performance do rapper......................................................................................... 54
7 RAP E LITERATURA.......................................................................................... 56
7.1 Doce e útil................................................................................................................ 56
7.2 Remando contra a maré........................................................................................... 58
7.3 Poesia....................................................................................................................... 60
7.4 Lendo raps............................................................................................................... 61
7.4.1 Dinheiro na mão...................................................................................................... 62
7.4.2 Sub-raça................................................................................................................... 69
7.4.3 O homem na estrada................................................................................................ 71
7.4.4 Esse é o meu país..................................................................................................... 76
7.4.5 Diário de um detento............................................................................................... 80
7.4.6 Diário de um feto.................................................................................................... 84
7.4.7 Negro drama............................................................................................................ 86
7.4.8 Outros escritos......................................................................................................... 93
CONCLUSÃO........................................................................................................ 96
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 100
ANEXOS................................................................................................................. 108
9
RITMO E POESIA
A LÍRICA DA PERIFERIA URBANA
Para se conhecer o poeta é preciso ir à sua terra.
GOETHE
1 - INTRODUÇÃO
O objetivo desta dissertação é fazer um estudo sobre a produção de uma literatura de
periferia, ou seja, um tipo de produção de textos feita por sujeitos periféricos considerados
fora das estruturas sociais vigentes, tidas como “padrão”. Num país e numa sociedade como a
brasileira, o conceito de sujeito “fora das estruturas sociais vigentes” é extremamente amplo,
quase predominante, e cada vez mais inclusivo, o que gerou a necessidade de focarmos este
estudo a partir de um recorte mais específico. Escolhemos nos centrar num grupo de atores e
autores periféricos, habitantes dos subúrbios, em especial de dois grandes centros urbanos
brasileiros, São Paulo e Brasília que possuem um discurso político reivindicatório de
pertença que é viabilizado através de suas composições musicais: os rappers.
Nos anos 90 do século passado e nesta primeira década do século XXI, vimos surgir um
movimento cinematográfico e literário que gerou uma “espetacularização da periferia”,
entendendo-se por isto uma visibilidade maior das realidades dos habitantes das regiões
menos privilegiadas das grandes cidades brasileiras. Rotulados, respectivamente, de “cinema
favela” (“Cidade de Deus” de Fernando Meirelles e “Cidade dos Homens”, de Paulo Morelli,
por exemplo) e de “literatura marginal”(“Capão Pecado” de Leo Férrez e “Favela toma conta”
de Alessandro Buzo, por exemplo) geraram confusões na compreensão do que poderia ser
uma produção legítima das vozes periféricas, inclusive por não abarcar um conjunto maior do
que é produzido pelos autores de borda, que alguns continuam circulando fora do foco
midiático. Talvez a literatura tenha tido uma representação melhor do que o cinema, pois
10
gerou uma significativa produção feita por autores realmente oriundos dessa população, o
que, confessamos, deu um bom encaminhamento ao trabalho que ora apresentamos.
Nossas indagações a respeito deste assunto foram surgindo ao longo dos mais de trinta
anos vividos como artista plástico e leitor assíduo de textos literários incluindo um
particular interesse pelas parcerias entre as artes plásticas e o texto escrito –, além do
envolvimento profissional com música, manifestado na atuação em uma empresa de aluguel
de som para eventos, durante os anos 80/90. Foi exatamente este envolvimento com produção
musical que nos fez ter um interesse pela cultura de borda e nos mergulhou no universo dos
bailes de periferia, do funk, dos DJs, dos grupos de dança e dos rappers; enfim, da cultura hip
hop. Ao freqüentarmos os espaços onde aconteciam os eventos de hip hop, fosse nos clubes
da periferia de Juiz de Fora(MG) ou no largo de São Bento na cidade de São Paulo(SP),
observávamos como aquilo que poderia ter um perfil de entretenimento e diversão, possuía
um importante papel de aglutinação política e identitária. Através desta constatação fomos
construindo nosso olhar que, a cada encontro, era acrescido de dados que reforçavam que a
cultura urbana possuía um discurso de posse de espaço e status reivindicatório de cidadania,
fosse na escrita do grafitti, na maneira de vestir, no modo de falar, no jeito de andar, na forma
de dançar e no estilo de cantar. Mas foi no universo do rap que o mergulho foi maior, devido
à sua força de expressão, potencial discursivo, caráter performático e representatividade
política. Depois deste encontro o nosso interesse pelo assunto cresceu, instalando uma
formalização dos nossos estudos sobre esta produção.
O tema é complexo e logo de início nos confrontamos com o problema do texto do rap,
configurado como letra de música, pois esta condição coloca sua redação num outro viés que
o da escrita literária. Acreditamos, porém, que, pela característica de recitação dos rappers,
essas letras têm uma sobrevivência autônoma, quando deslocadas da melodia musical. O rap,
como definição de gênero, é ritmo e poesia; portanto, sua linha melódica” se restringe, na
maioria dos casos, a uma base rítmica, sobre a qual o cantor recita seus versos. O rappers,
cremos, é um artista da escrita, que exerce na redação de suas letras seu potencial
discursivo crítico e criativo.
Para desenvolvermos nosso assunto e defendermos nossa proposta analítica da
abordagem do texto da escrita rapper como um tipo de literatura, no caso associada à récita e
à performance, faremos uma trajetória de encaminhamento que, acreditamos, situará melhor
nossa postura como pesquisador de tal fenômeno artístico, que o rap não demanda deste
enquadramento na sua concepção original.
11
O rap possui hoje um imenso séquito de seguidores e, cada vez, maior número de
autores. Isto porque o gênero está associado ao discurso de pertença de um grupo, e este
grupo é cada vez maior: o habitante da periferia, o suburbano, o exilado social, o
marginalizado, o proscrito, o pobre, além das variantes combinatórias destes habitantes das
margens. Apartados socialmente, são pessoas cuja palavra é dificilmente audível; gente de
suspiros e sussurros, mas que é possuidora de um grito, cujo brado é cada vez mais alto. O
rap é um discurso próximo a estas pessoas por ter nascido no seu seio e ser fruto de seus
anseios. E como diz a letra da música Miséria, do grupo Titãs, gravada no seu disco Ö Blesq
Blom (1989), “miséria é miséria em qualquer canto/ riquezas são diferentes”; e graças a esta
generalização da paupéria, o gênero floresceu no mundo, promovendo o surgimento de uma
reivindicação de pertencimento ideológico e identitário expresso através da apropriação e
desvio do conceito de nação: “a nação hip hop”.
Nesse sentido, a escrita do rapper se configura como performática, ou seja, é
inseparável de sua atuação e audição o que implica o seu corpo (a dança, o gestual, a
indumentária, etc.), sua voz, e o seu público. Sua escrita é exercida longe das sintaxes e regras
da norma culta, e é portadora do modo de falar e das temáticas vivenciadas por seus
aficionados. É para este público que o rapper dirige a sua poesia de rua, instaurando através
de sua performance a interação dialógica crítica, levando o seu público a atuar como atores,
agentes produtores de um discurso coletivo. Esses habitantes das margens, através desse
discurso performático, vivenciam o sentimento coletivo da posse do ato da fala e o fazem se
apropriando da “escrita rota” destes poetas de sarjeta e guetos, que rompem com seu silêncio,
falando “as suas verdades”.
Optamos por iniciar nossa trajetória, no primeiro capítulo, com uma abordagem sobre a
arte, artistas e sociedade, pois sentimos necessidade desta introdução ao nosso trabalho
porque a percepção do que é o artista e seu fruto, a Arte se diluiu nestes tempos de
discussões, reavaliações, recolocações e até distorções do que é o fazer cultural. Com o
crescente banimento dos estudos sociais das artes das escolas, repensar os processos artísticos
e suas rotulações nos soou saudável.
A estratificação histórica da cultura, jogando-a para altos patamares de erudição, gerou
uma situação de elitismo e de exclusão que desterrou o homem comum para um território de
danação estética. O fazer artístico é erroneamente visto como um dom e usufruto de
poucos, dos iluminatti, o que pode até ser um fato, mas não é, de forma alguma, uma regra.
Até a Renascença, os artistas eram praticamente anônimos e o discurso do sensível,
12
resultando em obras de arte passava pelo desconhecimento genérico de quem eram os seus
autores: o artista era o homem, o ser humano.
Através do historiador da arte, Ernst Gombrich (1995), recuperamos o conceito da posse
da produção artística para as pessoas, e nos aliamos a Roland Barthes (1977) e à “morte do
autor” – para afirmar que o artista está na frente, como observador, e atrás, como produtor, da
obra de arte. Assim compreendemos o artista como aquele que depõe sobre seu tempo
enquanto interlocutor de diálogos artísticos, esteja ele onde estiver no estrato social.
No segundo capítulo chegamos então às questões históricas relacionadas aos povos
africanos e ao seu tráfico para as Américas. Associamo-nos a pensadores da cultura diaspórica
e do pós-colonialismo Stuart Hall (2003), Paul Gilroy (2001) e Édouard Glissant (2005)
para mostrarmos os processos de emergência de uma hibridez artística, fruto da intervenção
dos africanos no novo mundo dominado pelos colonizadores a partir do século XVI. Vamos
nos reportar ao conceito de “crioulização” de Édouard Glissant (2005), e de rizoma, de Gilles
Deleuze e Félix Guattari (1997), que nos ajudam a esclarecer o surgimento das linguagens
expressivas das minorias, e suas interações culturais transnacionais, potencializadas na
contemporaneidade pelo conceito de globalização que, ao invés de instalar uma
homogeneidade cultural, assiste ao surgimento de uma grande diversidade cultural, cada vez
mais híbrida. Mostraremos o rap como um elemento de fundamental importância neste
contexto e, por fim, faremos um estudo sobre a linguagem do rap.
Posto isto, faremos no terceiro capítulo, baseados em Júlia Almeida (2007) e Lúcia
Helena (2006), uma abordagem da produção de um tipo de literatura periférica na nossa
atualidade brasileira o rap e de como ela chegou e reivindicou um lugar de
reconhecimento no meio cultural, a partir do momento que foi colocada por autores deste
recorte “marginal” como coerente com este projeto literário. Esta escrita performática,
produzida na sua maioria por autores habitantes das regiões urbanas de borda, encontrou seu
público e seu lugar cultural porque abarca a intenção primeira de quem escreve: dar
visibilidade e representatividade a um discurso particular de um povo que nele se reconhece.
Esta produção literária nasce de um artista que, majoritariamente, tem formação
autodidata, o que evidencia a sua capacidade de resistência, de luta, e o seu espírito crítico.
Observamos que com este tipo de apreensão de conhecimento na maioria dos casos possuem
trajetória escolar incompleta esse autor se permite escrever sem se sentir pressionado ou
submisso aos parâmetros normativos da escrita: ele obedece ao seu impulso criativo e à sua
necessidade de expressar sua crítica social. O mercado, por sua vez, tem um público que
13
estes autores periféricos; existem as editoras alternativas que publicam este tipo de
produção e existem os intelectuais academia inclusa que produzem leitura crítica sobre
esta produção.
No quarto capítulo, veremos as alterações que a modernidade trouxe para o conceito de
pertença, de nação. Aliados a Gilles Deleuze (1974) e Carlos Walter Porto-Gonçalves (2001),
mostraremos como as percepções de nacionalidade foram e estão sendo solapadas por novas
formas de se sentir acolhido por outros territórios auto-construídos. Colocamos o movimento
hip hop como instalador de uma noção nova de pertencimento, agrupando sob o seu “guarda-
chuva conceitual” os múltiplos personagens das diferentes marginalidades: as pessoas de
menos valia”, aquelas enquadradas na “nova pobreza”, que não deixa alternativa alguma ao
pária urbano e que cai sobre seus destinos como uma condenação irremediável. A importância
do entorno geográfico/social que direciona nossa reflexão é explicitada na citação de que
“cada homem vale pelo lugar onde está; o seu valor como produtor, consumidor, cidadão,
depende de sua localização no território”. (SANTOS in: SILVA, 2006, p.52)
Os perfis identitário e político do rap fazem uma nova “pátria” acontecer coerente com
as possibilidades que a pós-modernidade abre para as instalações de outros territórios
simbólicos, fora dos parâmetros geográficos. O rap funda assim uma “nação” ideológica,
reunida em torno de uma linguagem, de um discurso crítico, de uma performance coletiva.
Partindo do seu nascimento histórico, no quinto e sexto capítulos, com a ajuda de René
Wellek e Austin Warren (1976), colocaremos o rap como um legítimo tradutor dos anseios de
um grupo e que, se nasceu limitado aos subúrbios da América negra, se alastrou pelo
continente e pelo mundo nas asas da necessidade de expressão, ansiada por todos os
injustiçados, oprimidos e excluídos. Veremos que o rap se torna o rebento mais novo do
Atlântico Negro, explicitado por Paul Gilroy (2001) e que cumpre a que veio: cantar as dores
de ser negro, de ser imigrante, de ser exilado, de ser pobre, de ser injustiçado, de ser doente,
de ser quem se é sem querer ser o que se está sendo. A potência deste discurso de protesto
torna-se perceptível nas letras ritmadas e discursadas por seus autores, nascidos nos lúmpen e
crescidos na marginalidade social, mas que apreenderam este modo de se expressar através da
assimilação da prática da escrita e do convívio com o gênero.
Através de uma análise do conteúdo das letras de grupos de rap atuantes em São Paulo
ou que para imigraram, mostraremos como se instala um potente discurso de delimitação
territorial e identitária, gerando uma pertença que lhes foi historicamente negada no decorrer
da história social e política brasileira.
14
Acreditamos que, desta forma, desenhamos um quadro do que é o rapper como ele se
percebe como produtor de texto para a música; como esta produção o encaminha para uma
literatura mais elaborada, e como e quando ele deixa de se perceber como “letrista” e se
como “escritor”. Terminamos com a constatação de que a mesma trajetória do rapper se
reproduz com o público ouvinte de rap, que é incitado tanto a uma imersão literária mais
abrangente através das letras dos “poetas de rua”, quanto a se perceberem “representados”
socialmente.
Como é explicitado no título de nossa dissertação, nosso objetivo é tratar dessa
produção poética e de seu extenso abarcamento político, que voz aos sub-cidadãos”,
habitantes das fronteiras extremas da nossa sociedade, mostrando seus autores como criadores
literários que instalam um novo compromisso com o processo da escrita.
15
2 - ARTE E SOCIEDADE
O homem conhece o mundo, não pelo que dele subtrai, mas pelo que a ele acrescenta de si mesmo.
CLAUDEL
Quando você aprende a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo.
JOÃO GILBERTO NOLL
Um caminhar atento pelas ruas de um grande centro urbano é hoje uma experiência das
mais significativas. Esta significação reside no fato de podermos constatar como se instalaram
diversos perfis culturais impondo, cada um a seu modo, os seus discursos heterogêneos que
demarcam seus territórios e pertenças ao meio de uma homogeneidade” dominante e
reducionista, que, por séculos, criou barreiras e critérios para legitimar o seu poder político,
estabelecendo desde uma estética particular e excludente, até mesmo uma valoração e um
dimensionamento do que seria a cultura, postulando uma “alta cultura” em detrimento de uma
“baixa cultura”.
As transformações pela qual as cidades brasileiras passaram no decorrer das últimas
três décadas do século XX foram determinantes para que as estratificações sociais se
formatassem no que são hoje: a migração das pessoas do campo para as cidades, que inflou a
população urbana; a política de renovação urbanística incentivada pelo milagre econômico”
dos anos 70, que gerou os novos desenhos do subúrbio; a instalação de meios de transporte
público mais eficazes, que empurrou a população carente para regiões cada vez mais distantes
da cidade; a especulação imobiliária, que solapou a qualidade das moradias, favelizando-as; a
ausência de uma política governamental relacionada ao planejamento familiar, que inflou a
massa da população; em resumo, o conjunto desses fatores principais gerou uma população
socialmente e urbanisticamente alijada para as periferias das megalópolis do
subdesenvolvimento.
Nessas bordas do tecido social surge o personagem central de nosso estudo: o pária
urbano. Este sujeito habita um mundo onde seus referenciais de cidadania não se encaixam
com os padrões ditados pela sociedade que habita, residindo num lugar de “ausência”:
ausência de Estado, de polícia, de escola, de saúde, de saneamento. Este lugar é visto como
diz Maria Nilza da Silva,
16
(...) como uma “zona de sombras”, onde tudo o que é considerado ruim para a
sociedade é encontrado, em especial as “gerações perdidas”. É da periferia que a
sociedade tem medo, quer real quer imaginário, dinamizado especialmente pelos
meios de comunicação em suas formas metafóricas (...). Além da pobreza e das
constantes privações a que está sujeito o morador das regiões periféricas mais
distantes, tem que conviver com o estigma com que é marcado e lutar contra ele.
(SILVA, 2006, p. 126-127)
Após ter percorrido um longo caminho de lutas, reivindicações e conscientização, este
personagem urbano pode se habitar munido de pelo menos uma certeza nascida de suas
reflexões existenciais: ser e estar numa sociedade inclui poder interferir nesta estrutura com
suas aceitações e suas revoltas. A felicidade intrínseca do cidadão reside no reconhecimento
de que sobre seus ombros recai uma responsabilidade substancial que é a de transformar os
desafios coercitivos em uma satisfação de se saber produtor dos acontecimentos. A coerção
social é força emancipadora que reelaborada pela vontade e pela consciência crítica contém a
esperança de liberdade.
Hoje temos condição de circular pelas cidades munidos da percepção de que o tecido
cultural se compõe de uma urdidura plural, (permitindo, inclusive, os esgarçamentos que a
reciclagem dos conceitos engessados de “cultura” trouxe, e traz), e que esta, influencia o
processo de autoconstrução das cidades. Na nossa práxis social nos damos conta dessa
complexidade, mesmo se nossa compreensão é relativa. Estar no mundo atual como atores
sociais e culturais, é estar consciente de que as coisas mudaram, trocaram de lugar e que
possuem discursos próprios.
Poderíamos entrar num universo de amplidão abrangente e mesmo extenuante se
fosse o caso de detalharmos os novos terrenos onde medram os discursos contemporâneos da
arte e da cultura. Eles são cada vez mais numerosos, diversificados e portentosos. Isto porque
possuem atrelados a si aquilo que a criação e o usufruto da arte possui de mais intrínseco: o
discurso de pertença.
A arte é um dos grandes referenciais de pertencimento. As culturas dos homens são
territórios de reconhecimento e identidade, e são tão plurais quanto o número de identidades e
de manifestações civilizatórias que foram perpetradas pela humanidade e que ainda serão,
considerando que o ser humano é uma entidade cultural sempre em processo, que se move na
cultura que cria, fazendo dela um espelho de seus domínios sociais, econômicos e sagrados.
Porém, a história está presentificada como narrativa, documento e testemunho da
trajetória dos homens sobre a face do planeta como seres atuantes e construtores de suas
identidades, e grande parte deste relato histórico é um discorrer incessante das lutas políticas e
17
dos documentos de dominação e subjugo de uns por outros, inclusos neste processo as
barbáries decorrentes da escravidão, colonização e subseqüentes processos de estratificação
cultural. O jogo do poder é intrínseco ao homem, ainda portador de valores muito prementes,
e a urgência no usufruto dessas demandas persiste no seu modus vivendi.
O mundo se tornou terreno para muitas redes de inter-relações, promovidas pelo
advento dos novos meios de comunicação, das novas percepções de tempo e informação, das
emergentes formas de diálogo e interação entre as pessoas.
Mas nem tudo se situa num patamar ideal: o conhecimento passou a circular de modo
mais acessível, porém sem eliminar os bolsões de ignorância; a economia adquiriu contornos
globais, porém sem eliminar a miséria; os direitos do homem se tornaram mais públicos,
porém a injustiça existe e emite seu pavoroso grito em meio a uma sociedade um tanto quanto
anestesiada pelas seduções da contemporaneidade. O discurso do ego se transformou num
espetáculo público trazendo à tona personalidades deformadas pelo efêmero, alterando
significativamente os conceitos de pertença e reconhecimento. E neste imenso caldeirão no
qual pululam os paradoxos e os conflitos, assistimos ao fenômeno do hibridismo das culturas,
conforme abordado por Glissant na noção de Relação, e também como nos explica Enilce
Albergaria Rocha ao referir-se a esta noção:
A noção de Relação ressalta a importância de se considerar a confluência da
multiplicidade das expressões culturais dos povos e das minorias na abordagem da
globalização, uma vez que o discurso dominante considera, de forma quase que
exclusiva, apenas seus aspectos políticos e econômicos (...). A Relação é a trama
concreta e obscura na qual o silêncio e o aniquilamento das comunidades, seus
desregramentos e suas tentativas de liberação se mostram, se dizem nos discursos
dos povos.(ALBERGARIA,2003,p.33)
Nosso convívio com esses processos identitários atuais inclui as conscientizações
inerentes aos novos desenhos de pertencimento, como nos orienta a noção de Totalidade-terra
realizada, cunhada por Glissant (2005). Segundo o autor, a Totalidade-terra realizada graças
às lutas dos povos, à revolução ideológica, à globalização nos coloca frente à concretude da
diversidade das culturas presentes hoje na cena do mundo, no momento mesmo em que
assistimos à confluência dessas culturas, conforme nos explica Albegaria ao abordar a
dialética entre o enraizamento cultural e a Relação:
A confluência das culturas está determinando transformações tanto nas sociedades
e comunidades, quanto nas sensibilidades dos seres humanos; e os povos, sobretudo
os que emergem da colonização, vêem-se confrontados com um movimento duplo e
aparentemente contraditório: o de seu enraizamento cultural, necessário à sua
sobrevivência, e o da Relação da totalidade das culturas.(ALBERGARIA,2003,p.32)
18
Ou ainda conforme nos explica Glissant no seu livro Introdução a uma poética da
diversidade, ao abordar a questão de lugar cultural da literatura: “a literatura provém de um
lugar, um lugar incontornável de emissão da obra literária. Mas, em nossos dias, a obra
literária convirá tanto mais ao lugar quanto mais estabelecer uma relação entre esse lugar e a
totalidade-mundo”(GLISSANT, 2005, p.42).
O escritor português Miguel Torga proferiu um discurso dirigido à comunidade
portuguesa no Brasil, intitulado O universal é o local menos os muros (LAIDI, apud:
MENDES, 1979, p.184). O que o escritor sugeriu é que o enraizamento num lugar é requisito
indispensável à construção de uma universalidade, ou, nos termos glissantianos, de uma
Totalidade-terra realizada. É preciso estar enraizado rizomaticamente para se pensar em
escala mundial, isto é, em termos de filiação simbólica a uma comunidade humana de valor
num determinado momento”, completando a fala de Torga. É exatamente nesta articulação
entre o local menos os muros” que podemos pensar, hoje em dia, numa relação complexa
entre o global e o local.
1
Mas em que rio os diferentes afluentes desta geografia social/cultural deságuam?
Podemos metaforizar a atual conjuntura da construção do novo rosto do homem que surge
neste milênio recém-nascido como “o caudaloso rio das emoções estéticas”. Toda emoção um
pouco mais intensa tende a se comunicar, a se difundir: toda emoção é contagiosa. Desponta-
se neste perfil, aquela que ocupa posição máxima: a emoção estética. Esta, na nossa opinião, é
a verdadeira criadora de uma solidariedade social. Toda experiência que nos ultrapassa e nos
dilui num êxtase interior é imediatamente impulsionadora de compartilhamento, de
comunicação com o outro, de sentir com o outro. O gozo estético é comunhão, e pode se
estender para muito mais além de nós e de nossa empatia com nossos semelhantes, e atingir
um grau de simpatia universal. E no centro desta função mágica encontra-se o artista, como
nos precisa Éduard Glissant:
Penso que esses combates culturais e políticos que todos já travamos e que
continuamos a travar inserem-se dentro de um contexto mundial no qual se torna
necessário, ao mesmo tempo em que travamos esse combate, verter o valor poético,
contribuir para mudar a mentalidade das humanidades (...). No meu entendimento,
trata-se de uma outra forma de combate, diferente dos combates cotidianos, e o
artista, penso eu, me parece ser um dos mais indicados para essa forma e combate.
Porque o artista é aquele que aproxima o ‘imaginário do mundo’; ora, as
1
Segundo Cliford Geertz, em seu livro “O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa” (1997), as
várias áreas de conhecimento são "modos de estar no mundo" que, pautados em formas simbólicas próprias
dialogam com este mesmo mundo, ou seja, o conhecimento precisa ser contextualizado.
19
ideologias do mundo, as visões do mundo, as previsões, os castelos de areia
começam a entrar em falência; é preciso, portanto, começar a fazer emergir esse
imaginário. E não se trata mais de sonhar o mundo, mas sim de penetrar nele.
(GLISSANT, 2005, p.69)
Cabe, portanto, ao artista esclarecer que as suas visões do mundo não são fatos
individuais, mas fatos sociais. A arte seguiu um caminho que perdura até hoje, graças à sua
autonomia em relação à sociedade, mas esse caminho não nega seu status de instituição
social. Tem um ritmo que lhe é particular, o qual não coincide forçosamente com o ritmo da
evolução dos grupos políticos, religiosos ou econômicos da sociedade que a produz, mas não
deixa de exprimir um ritmo coletivo. O artista toma parte ativa e dinâmica na vida social, mas
também sofre as pressões deste meio que habita, mergulhado nas mudanças que definem o
perfil de cada época, penetrando e elaborando o mundo através de sua obra, mas também
sendo por ele penetrado e elaborado.
Podemos lançar mão do pensamento de Gilles Deleuze, reproduzindo um de seus
escritos, onde sua percepção do papel da arte e de seu produtor, o artista é citada como
elemento de retro-alimentação e de renovação:
Ao invés de se deter nos clichês das formas, a arte capta e torna sensíveis as forças
da realidade. Isso define a arte criadora: qualquer que seja seu material de
expressão, a arte captura forças e compõe novas hecceidades, consolidadas de
espaços e de tempos que comportam neles mesmos, o novo, pois que fazem o
acontecimento e tornam sensíveis forças até então insensíveis, de tal maneira que a
novidade de uma obra se nesses recortes ou nessas novas categorias, que são
modos sensíveis de individuações impessoais, pré-individuais. Não se trata de
contar uma história num espaço e num tempo determinado, mas é preciso que os
ritmos, as luzes, os espaços-tempo tornem-se verdadeiros personagens. (DELEUZE,
1995.p.269)
A arte revela assim as escolhas de seu criador, deixando de ser um domínio formal para
se tornar uma sabedoria social. E revela uma “lógica” que pauta os comportamentos, e que é
igualmente valiosa para que sejam levados em conta tanto os processos intelectuais de uma
sociedade como aqueles associados à emoção e à sensibilidade. Neste recorte podemos
20
considerar as diferentes fruições do pensar e fazer artístico, que incluem as chamadas
“categorias apagadas” índios, excepcionais, velhos, negros, homossexuais –, todos que
tentam resgatar a perda de si. Estes atores isolados da vida social se situam numa posição
marginal que elimina para eles qualquer possibilidade de reinserção social. Para eles resta
na criação artística a possibilidade de “falarem” e deixarem emergir suas percepções da
sociedade e as possibilidades de modificarem as relações interindividuais através de suas
visões do contexto social do qual são excluídos. Pela criação artística, adquirem uma certa
consciência de si, de sua condição e das regras e normas que regulam a vida social, falando
através da arte, porém usando suas sintaxes particulares. Desta forma, transcendem sua
cotidianeidade e ingressam livremente no mundo da pertença.
Relata-se que o pintor Piet Mondrian (1872-1944) previa o desaparecimento da arte. Ele
acreditava que a realidade iria cada vez mais deslocar a obra de arte e que esta não seria nada
mais do que uma compensação para o equilíbrio deficiente da realidade atual: “A arte
desaparecerá na medida em que a vida adquirir mais equilíbrio”, portanto a arte é necessária
para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo.
E.H.Gombrich (1999), na introdução de sua História da Arte diz que aquilo a que se
o nome de arte não existe. “Existem somente os artistas”. A própria História da Arte, na
verdade, é a história dos artistas, daqueles homens que, de alguma forma, revolucionaram
nossa percepção do mundo através de suas percepções do mundo. O conceito de Gombrich é
muito inclusivo:
Não existe realmente essa coisa conhecida como Arte. Existem somente artistas
isto é, homens e mulheres que são favorecidos pelo maravilhoso dom de equilibrar
formas e cores até estarem ‘corretas’ e, mais raro ainda, que possuem aquela
integridade de caráter que jamais se contenta com meias soluções, mas está
disposta a rechaçar todos os efeitos fáceis, todos os êxitos superficiais, em nome do
esforço, da angústia e do tormento do trabalho sincero. Acreditamos que os artistas
são sempre natos. Mas se haverá também arte, depende, em não pequeno grau, de
nós mesmos, do seu público. Por nossa indiferença ou nosso interesse, por nossos
preconceitos ou nossa compreensão, poderemos, todavia decidir a questão.
(GOMBRICH, 1999, p.596)
Como podemos sentir nessas palavras de Gombrich, uma orientação em direção a uma
ética profissional e também uma afinidade com as idéias de Howard Becker
2
sobre a arte
como uma ação coletiva, com seus elos cooperativos e as convenções dos diversos mundos da
2
Sociólogo americano estudioso dos comportamentos sociais desviantes admite que eles não detêm o
monopólio de representação da sociedade, reconhecendo que outros gêneros também produzem conhecimento
indispensável sobre o social. Consagrado por seu olhar inovador sobre a transgressão, Becker oferece em sua
bibliografia, a qualquer leitor interessado no estudo da cultura, uma série de ensaios brilhantes a respeito de
artistas, escritores, gêneros literários e formas de representação. Vide bibliografia
21
arte, inclui também o público, ou seja o observador estético, como queria Nietzsche(1844-
1900).
Como existem tantas estéticas quanto observadores, o caráter participativo que
comentamos funciona como uma estrada de mão dupla, onde o processo do usufruto das
diferentes poéticas se consumam no ato da comunhão.
Ao traçar a poética intimista, que aflora do inconsciente dos contemporâneos e do seu, o
artista conta a história dos desejos. Seja da perspectiva individual, sociocomucacional ou
artística, a produção simbólica oxigena os impasses do caos, da entropia, das desesperanças e
sonha com um cosmos dinâmico, emancipatório.
O ato criador é o lugar do despertar da vida, um esforço para fazer passar uma corrente
de vida como uma força suprapessoal. foi dito que escrever é um ato solitário;
consideremos que escrever é um ato solidário.
Visto isto, passemos então ao próximo capítulo onde faremos um estudo sobre as
relações culturais estabelecidas decorrentes do tráfico de escravos entre a África e as
Américas e como surgiram manifestações artísticas, especialmente literárias, neste
intercâmbio. Se colocamos que o ato de escrever é um ato solidário, veremos como foram
importantes para os atores da colonização (colonizadores e colonizados) os discursos surgidos
deste encontro.
22
23
3 - O VENTRE DO NAVIO: AMÉRICA E ÁFRICA
Assim, mesmo brancos somos pretos. Digo-lhes, com respeito. Preto o senhor
também. Defeito da raça dos homens, esta nossa de todos. Nossa voz, cega e rota,
não manda. Ordens damos nos fracos: mulheres e crianças. Mesmo esses
começam a demorar nas obediências. O poder de um pequeno é fazer os outros
mais pequenos, pisar os outros como ele próprio é pisado pelos outros maiores.
Rastejar é o serviço das almas. Costumadas ao chão como é que podem acreditar
no céu? Descompletos somos, enterrados terminamos...
MIA COUTO
Durante a escravidão, chamava-se de “novo” ou “boçal” o negro recém- chegado
da África, aturdido com o tipo de sociedade que encontrava aqui, incapaz de
exprimir-se senão na sua língua natal e ainda distinguível pelas marcas tribais que
trazia no rosto. Desse estágio inicial, o negro africano passava a “ladino”, após
acostumar- se ao português, ao trabalho nas fazendas ou nas minas, ao serviço
doméstico, à disciplina da escravidão e às artimanhas dos seus pares, com quem
convivia, para evitar punições e desmandos e garantir-se proteção ou segurança.
Era “crioulo” o negro nascido no Brasil.
EDSON CARNEIRO
No seu livro Fala, crioulo, Haroldo Costa inicia da seguinte forma o seu projeto de
registro de auto-depoimentos de personalidades negras no Brasil atual:
Cada africano que embarcava à força para as Américas trazia consigo a sua
história pessoal e a de seu ovo. (...) Da história de seus povos, da história que ficou
na África, não sabemos tudo o que desejaríamos, mas sabemos muito. Pelo
menos daqueles que se organizaram em reinos, como os do Benin, do Congo e do
Monomotapa, e em cidades-estados, como Ifé, Oió, Quiloa e Patê, bem como dos
que tornaram cabeças de impérios como os do Mali, Songai, Lunda e Etiópia. Até
mesmo a história de povos sem poder centralizado, como os ibos, está sendo
escrita. O que não se conseguiu nem conseguirá refazer é o percurso de
determinados grupos que foram dizimados pelas guerras e pelas razias para
capturar escravos e cujos nomes, embora constem de relatos europeus do século
XVII, cem anos depois desapareceram completamente – até mesmo da memória dos
que lhes teriam sido vizinhos. (COSTA, 2009, p.11/12)
Estes povos citados por Costa viajavam nos porões dos navios negreiros por um tempo
longo, mais longo ainda se computarmos os padecimentos físicos e mentais a que eram
submetidos e que, certamente, tornavam a travessia África-Brasil uma eternidade. Ao
desembarcarem em terras americanas e brasileiras, desciam seminus e com uma percepção de
si mesmos solapada por tudo naquilo vivido oriundo da escuridão do porão e da escuridão da
alma humana, da prática de seus algozes; entretanto, mantinham vivos dentro de si, ainda que
de modo fragmentado e incompleto, as crenças, os valores, as estruturas sociais, os modos de
24
vida, as técnicas e os conhecimentos que seus ancestrais haviam desenvolvido, acolhido,
adaptado e refeito.
Suas referências de origem eram, a partir daí, diluídas no novo território americano,
onde se agrupavam coletivamente sob a classificação de “africanos” e, depois, no correr do
tempo, de “negros”. Como negros continuariam sua luta de pertença e trabalhariam na
elaboração de uma nova nação, que depois serviria de terra a ser habitada pelos seus filhos,
nela já nascidos: os crioulos.
Os negros africanos não chegaram aqui como imigrantes e - sim, reduzidos pela
violência - como mão de obra cativa, escravos. Eram os “migrantes nus”, de Édouard Glissant
(2005). Foram solicitados como tal na lavra dos campos, na transposição das montanhas e na
construção das cidades brasileiras, se imiscuindo com o colono/patrão, contribuindo com sua
força física para as tarefas ordinárias e extraordinárias, que conheciam técnicas de plantio,
pecuária, mineração e metalurgia. Assim, foram se estabelecendo como um “outro”
pertencente à nova terra mestiça que surgia e que, silenciosamente, por meio deles, permitia
que a África civilizasse a América. Na verdade, as muitas Áfricas civilizaram as muitas
Américas.
Na sua servidão imposta, aprenderam com os seus senhores e deles copiaram os usos e
os costumes: aprenderam a construir igrejas, esculpir santos e altares de talha, a tocar
instrumentos, a cortar e costurar vestimentas no mais fino estilo europeu, e, com isto,
tornaram-se mestres. Mesmo assim não lhes era reservado um lugar nas áreas importantes da
casa-grande; mas a senzala transitava no quintal, na cozinha, na copa, no quarto das crianças e
estendeu-se para as esquinas das ruas. Dessa forma, foram temperando a verve brasileira,
colocando seus sabores na mesa, impregnando de figuras mitológicas africanas as histórias
que embalavam as crianças, curando doentes com suas ervas, contaminando o cotidiano com
seus instrumentos, ritmos e danças egraciosamentedando ao seu algoz novas palavras,
adoçando o idioma que foram obrigados a aprender. A vida privada do Brasil escravocrata
estava impregnada de África. No livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, Portella
comenta:
25
A casa-grande fala e ecoa na senzala; do mesmo modo que, em termos de
compreensão crítica, a senzala ilumina a casa-grande. E mais: a casa-
grande precisa da senzala para ser, numa relação dialética altamente
dinâmica do entendimento. (...) É pela via sensual do paradoxo, do
contraste, da mistura de coisas opostas, que a miscigenação se afirma e
transcende, alargando-se como uma espécie de grande trunfo
metodológico. (...) Os costumes de iniciação, na vida doméstica (o que se
espera socialmente da sinhazinha) e na vida sexual (as antecipações do
menino senhorial), os hábitos para o trabalho, todos os recintos do social,
institucional, religioso, festivo, as diversas condições da existência, se vêem
agilizados. O contraste, ao contrário de enclausurar, libera e multiplica. O
positivismo que nos deixara a certeza olímpica do progresso, mas em troca
aniquilaria a visão contrastiva do progresso social, sofre aqui o seu primeiro
revés. A miscigenação garante a realimentação das energias (e não das
estruturas decorrentes), das forças de união e de vivificação, da aventura ou
da rotina do indivíduo social. (PORTELLA, in: FREYRE, 1981, p.9/10)
Os negros não eram povos sem memória, como julgavam os europeus colonialistas e
escravocratas. E eram fazedores de histórias. Uma história, que a partir do século XVI,
acompanha a construção da identidade brasileira. Se nos nossos estudos da história brasileira
temos de nos referenciar e nos remeter ao que acontecia na Europa e em Lisboa para conhecer
nossa construção como nação, o que acontecia na África, especialmente na África Atlântica,
também exercia influência na nossa formação.
A história da África nos esclarece muito sobre o porquê de tanta resistência dos seus
filhos, submetidos no Brasil a humilhações e restrições de vontade, e sobre o porquê de terem
exercido neste lado do oceano um importante papel civilizador.
3.1 O Atlântico negro
Paul Gilroy, escritor e professor da Universidade de Yale, escreveu sua obra O
Atlântico Negro (2001), de onde tiramos o nome desta parte dos nossos estudos, na qual fez
considerações importantes acerca de novas conceituações sobre a modernidade, ressaltando a
importância da diáspora negra e de suas narrativas de perda e exílio para se pensar a
modernidade. Através das histórias de deslocamentos e novas construções de identidades, o
autor transforma a imagem histórica do navio negreiro em metáfora para se pensar a diáspora
africana. E o navio negreiro como metáfora cultural nos mostra um conjunto cultural
irredutivelmente moderno, instável, excêntrico e assimétrico, que foge das simplificações que
estreitam nossa percepção de cultura nos tempos atuais. Assim, somos confrontados com o
fato de que algumas idéias e paradigmas em torno dos conceitos de nação, raça e etnia,
sempre viajaram, sempre vieram “de fora”.
26
Gilroy combate a cadaverização das idéias, e procura demonstrar o seu hibridismo
3
, e o
hibridismo da história do intercâmbio entre as culturas africanas e o ideário dominante e
“branco”, salientando que não existe contradição entre a produção das culturas e das
identidades negras e a modernização.
Na nossa atual conjuntura de percepção cultural do mundo, nos deparamos com novos
espaços e novos desafios para o intercâmbio do pensamento e surgem novas colocações para a
percepção da “negritude”
4
enquanto um processo a ser construído por participantes atuantes,
engajados, inteligentes e cosmopolitas. Esta imagem da “negritude” vista como processo,
passa longe do estereótipo do negro situado - e até mesmo prisioneiro - de uma “África
atávica”, refém do seu passado.
O autor inglês situa os atuais descendentes dos africanos como compartilhantes de uma
cultura comum, nascida de uma condição histórica semelhante: primeiro sua situação de
escravos, depois seu status de libertos e, mais tarde, sua condição de discriminados
racialmente. Assim, observamos que os negros se tornaram uma “comunidade” e
compartilharam uma “cultura” após eles mesmos terem criado as condições para isto no Novo
Mundo. Nas palavras de Lívio Sansone, na apresentação do livro Atlântico Negro:
O Atlântico Negro aponta como, entre os descendentes africanos no Novo e no
Velho Mundo, um número significativo de indivíduos cujas ações alcançaram
grande repercussão e que, aproveitando todas as oportunidades da época, lutavam,
viajavam, liam e inventavam músicas, modas e idéias. Para esses, como para
Gilroy, as culturas negras, longe de serem grandes depósitos de atributos do
passado - africano -, são projetos de inovação, participação na modernidade e, às
vezes, subversão. (SANSONE, GILROY, 2001)
Nesta investigação sobre o intercâmbio cultural (e suas subseqüentes subversões)
acontecido na costa dos países africanos, europeus e americanos, a contextualização que o
autor dá aos navios negreiros é nossa primeira consideração.
Gilroy os como um elemento móvel que representava os espaços de mudança entre
os lugares fixos que conectava, e, dessa forma, precisam ser pensados como unidades
culturais e políticas em lugar de incorporações abstratas do comércio escravagista. Essas
3
O conceito de hibridismo que “enfatiza, acima de tudo o respeito à alteridade e a valorização do diverso”,
realça “o constante apelo e mesclas, reciclagens, metamorfoses e ultrapassagens de fronteiras” (BERND, 1988:
16-17)
4
Foi Aimé Césaire quem criou o termo em 1935, no número 3 da revista L'étudiant noir ("O estudante negro").
Com o conceito pretendia-se em primeiro lugar reivindicar a identidade negra e sua cultura, perante a cultura
francesa dominante e opressora, e que, ademais, era o instrumento da administração colonial francesa (Discurso
sobre o colonialismo, Caderno dum retorno ao país natal etc). O conceito foi retomado mais adiante por
Léopold Sédar Senghor, que o aprofunda, opondo a razão helênica à emoção negra. http://pt.wikipedia.org/
wiki/Negritude.
27
naves que cruzavam o Atlântico reportam à Middle Passage
5
, ou seja, um elemento de
passagem entre a política do tráfico de escravos e os processos de industrialização e
modernização. O navio é o primeiro dos cronótopos modernos pressupostos pelo autor para
repensar a modernidade por meio da diáspora africana no hemisfério ocidental.
Transportados nos porões infectos e desembarcados na América, os negros forjaram
uma cultura complexa, que abarca várias manifestações culturais dominantes. Uma dessas
manifestações é o rap: outra cultura vernacular negra, mais nova. O encaminhamento de
nossas considerações nos leva à inevitável hibridez e mistura de ideias que hoje desenham o
perfil da cultura nestes países onde a “negritude”, enquanto processo a ser construído por
atores participantes, desponta com sua entronização dos modelos de pertença, dentre eles a
multicultura corporativa dos softwares comportamentais americanos (hip hop e rap).
Linebaugh, no seu texto Atlantic Mountains
6
, comenta o trânsito atlântico e diz que o
navio continuava a ser talvez o mais importante canal de comunicação pan-africana antes do
aparecimento do long-play”. (LINEBAUGH, apud GILROY, 2001, p.54). Passaremos
portanto à nossa análise da música negra, o hip hop, e sua disseminação como elemento de
interligação e tradução das culturas negras do Atlântico.
3.2 Hip hop
Para os descendentes de escravos, o trabalho significa apenas servidão, miséria e
subordinação. A expressão artística, expandida para além do reconhecimento oriundo dos
rancorosos presentes oferecidos pelos senhores como substituto simbólico para a liberdade da
sujeição, torna-se, dessa forma, o meio tanto para a automodelagem individual como para a
libertação coletiva. Paul Gilroy coloca o fenômeno musical nas culturas diaspóricas
americanas como poética e poiética:
Poiésis e poética começam a coexistir em formas inéditas literatura
autobiográfica, maneiras criativas especiais e exclusivas de manipular a linguagem
falada e, acima de tudo, a música. As três transbordaram os vasilhames que o
estado-nação moderno forneceu a elas. (GILROY, 2005, p. 100)
Na seqüência da citação de Gilroy, remetemos a Adorno e citamos sua reflexão sobre o
papel da música como representação identitária de uma nação:
5
Middle Passage é uma expressão de uso consagrado na historiografia de língua inglesa que designa o trecho
mais longo e de maior sofrimento da travessia do Atlântico realizada pelos navios negreiros.
6
Traduzido no Brasil como "Todas as Montanhas Atlânticas Estremeceram", Revista Brasileira de História,
6, 1983.
28
Desde a metade do século XIX a música de um país tem se tornado uma ideologia
política por enfatizar características nacionais, manifestando-se como
representante da nação e por toda parte confirmando o princípio nacional... No
entanto, a música, mais do que qualquer outro meio artístico, expressa também as
antinomias do princípio nacional. (ADORNO, in: GILROY, 2001, p. 157)
Podemos, então, examinar qual é o lugar da música no mundo do Atlântico Negro, o
que significa observar a auto-compreensão articulada pelos músicos que a têm produzido, o
uso simbólico que lhe é dado por outros artistas e escritores negros, e as relações sociais que
tem produzido uma cultura expressiva única, na qual a música constitui um elemento central e
mesmo fundamental. Essas formas culturais são suficientemente fortes e intensas e
penetraram os interstícios da indústria cultural e se impuseram em nome não apenas dos
povos do Atlântico Negro, mas também dos pobres, explorados e reprimidos por toda parte.
Assim, a música produzida pela negritude diaspórica abarca democraticamente os “niggers of
the world”, cantado por John Lennon nos anos 80
7
. A proliferação de diferentes pátrias
simbólicas auto-constituídas por grupos organizados ou simplesmente pelos habitantes dos
guetos e das posse negras, geraram outras demandas identitárias. Signos de reconhecimento
proliferaram nesta demarcação das nações privadas”, como por exemplo conduta social,
apartheid, opções sexuais, modos de vestir, tags gráficas, códigos de gestos e olhares, falares
particulares, andares coreografados, passos de danças, posturas políticas e músicas (hinos?)
específicas multiplicaram-se redesenhando os parâmetros da história social. O elo comum a
esses novos códigos de relacionamento com o si-social é a inadequação às regras do
establishment, e a sensação obtusa de não concordância com os encaminhamentos dos
comportamentos homogeinizadores.
As atitudes comportamentais oriundas destes diversos exílios contemporâneos fazem
com que seus atores sejam considerados dentro das sociedades em que circulam como
“desajustados”; já as vertentes musicais geradas por este incômodo existencial são
diferenciadas em sua estrutura formal: jazz, raggae, blues, rap. Dentre todas estas vertentes,
pinçamos o rap para servir como o exemplo mais nítido e perceptível do seu uso e
manipulação por estes grupos, uma vez que trabalha com três elementos pedagogia,
afirmação e brincadeira que contribuem para uma conscientização e uma constelação
7
"Woman is the Nigger of the World" é uma canção de 1972, escrita por John Lennon e The Plastic Ono Band.
A frase foi originalmente cunhada por Yoko Ono durante uma entrevista em 1969 para uma revista. A canção foi
incluída no álbum Shaved Fish, de 1975.
29
cultural-popular, “em que nem a bússola política do esquerdismo cansado nem os lustrosos
instrumentos de navegação do pós-modernismo negro prematuro ofereceram até agora muita
coisa de útil em relação à estética”. (GILROY, 2001, p. 179)
A hibridez formalmente intrínseca ao hip hop não tem conseguido evitar que o estilo
seja utilizado como signo e símbolo particularmente potentes da autenticidade racial. É
significativo que quando isto acontece o termo hip hop seja muitas vezes abandonado em
favor do termo alternativo rap, preferido exatamente porque é mais etnicamente marcado por
influências africano-americanas do que o outro. Conceitualmente o hip hop possui uma
referência cultural histórica, que o identifica ao be-bop, conforme constata Gilroy:
O hip hop é, em diversos sentidos, a mesma coisa que o be-bop, porque era uma
música renegada. Ele veio de uma subcultura privada de direitos políticos, que fora
excluída do sistema. Eles disseram: “Vamos recuperar nossa própria vida. Teremos
nossa própria língua. (JONES, apud GILROY, 2001, p. 218/219)
O rap fundamenta assim um novo território de pertencimento, delimita um espaço novo
onde se erige uma nova cultura, embora nasça, na verdade, habitado por formas culturais
autóctones. Ele cria circunstancias próprias, uma mitologia de recomeços, e uma espécie de
tempo-de-ser de uma nascente vida social.
Percebemos aqui a extrema estreiteza do griot, na sua forma de contador de histórias,
com o rapper performático. Este narrador contemporâneo, conforme contextualiza Terezinha
Taborda Moreira, “é um ser de diálogo e em diálogo” (MOREIRA, 2005, p.25).
3.3 Autoconstrução cultural
A emergência das manifestações artísticas nos povos afro-americanos demonstra o
surgimento de uma “nova” cultura. Recorremos a Stuart Hall para situarmos melhor o que é
esta “cultura”:
(...) a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno.
“Não é uma arqueologia”. A cultura é uma produção. Tem sua matéria prima, seus
recursos de “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição
enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o
que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura,
a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é
uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das
nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma
acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural.
A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (HALL, 2003,
p.43)
30
As culturas emergentes das periferias atuais nascem de uma percepção de ameaças
vindas das forças da globalização portadora de conceitos homogeneizantes e de
conseqüências sociais geradas pelo racismo administrativo estatal. A tendência mais
perceptível nas possíveis reações destes grupos é o seu fechamento dentro de invisíveis
muralhas defensivas, formando guetos de pertença não permeáveis a diálogos. Mas ao que
assistimos não é o apego a modelos fechados e unitários, que imitam o padrão de
homogeneização, contra o qual lutam, de “pertencimento cultural”. Temos visto um maior
abarcamento de processos mais amplos o jogo da semelhança e diferença que estão
transformando as culturas no mundo inteiro. Esse é o caminho das diásporas, que são as
trajetórias de povos e de culturas modernas. O povo diaspórico é aquele povo que está na
civilização ocidental, que cresceu nela, mas que foi obrigado a se sentir, e de fato se sente,
fora dela, e que tem uma compreensão única sobre sua sociedade. Segundo Paul Gilroy, o
conceito de diáspora “ativamente perturba a mecânica cultural e histórica do pertencimento.”
(GILROY, 2001, p.18)
Através do processo de transculturação
8
, grupos subordinados ou marginais selecionam
e inventam a partir dos materiais a eles transmitidos pela cultura metropolitana dominante. É
um processo da “zona de contato”, um termo que invoca, conforme coloca Mary Louise Pratt,
“a co-presença espacial e temporal dos sujeitos anteriormente isolados por disjunturas
geográficas e históricas (...) cujas trajetórias agora se cruzam”. (PRATT, apud HALL, 2003,
p.31)
Há, portanto, a construção de uma “estética diaspórica”, ou seja, uma dinâmica
sincrética que se apropria criticamente de alguns elementos dos códigos mestres das
culturas dominantes e graças ao processo de crioulização, os “criouliza”, desarticulando certos
significados e os rearticulando de outra forma, em especial no seu significado simbólico.
Segundo o pensamento de Glissant (2005) essa dinâmica é o modo como a novidade entra no
mundo, ou seja, através das novas e inusitadas combinações dos seres humanos, das suas
culturas, idéias, políticas, filmes e canções, gerando os hibridismos, as impurezas e as
misturas transformadoras sempre em processo e imprevisíveis.
De qualquer forma as culturas sempre se recusaram a ser perfeitamente encurraladas
dentro das fronteiras ideológicas humanas: sempre foram “transnacionais” com seu centro em
todos os lugares e em lugar algum. Talvez seja essa situação de liberdade de lugar cultural que
caracterize o rap. Antes música de negros, hoje funciona como forma musical diaspórica
8
O conceito de transculturação surge pela primeira vez em 1940, no livro Contrapunteo cubano del azúcar y del
tabaco, de Fernando Ortiz. O vocábulo tornou-se referência obrigatória, sobretudo na área da antropologia, para
toda reflexão sobre o fenômeno da mestiçagem em toda a América. (REIS, 2005. p.465). Vide bibliografia
31
incorporada – uma das várias músicas negras que conquistam os corações dos garotos brancos
peloo mundo, transformando-os em wannabes”, ou seja, quero ser negro”. Eles se
empenham em serem imitadores do estilo rapper, falam misturas de línguas de negros
imigrantes, se vestem como seus ídolos musicais, e se sabem investidos de um prestígio
urbano justamente por assimilarem o “estilo negro” de ser. É claro que esta cooptação do rap
pelos atores da classe média branca, tal como vem acontecendo por várias partes no mundo,
representa tanto uma ameaça de diluição de seus signos de pertencimento e de seu discurso
crítico, como uma abertura à tendência implícita ao rap e ao fechamento de suas fronteiras.
Nessas trocas vernaculares, sentimos também a presença marcante do encontro do
“Primeiro Mundo” com o “Terceiro Mundo”, fertilizando-se um ao outro, construindo um
espaço simbólico onde a mais avançada tecnologia eletrônica encontra os ritmos da África
primitiva. Assim, o jovem (sub) urbano relê a África, interpreta a África e, no seu rap,
contextualiza a África mais do que qualquer estudo teórico sobre a condição diaspórica
poderia talvez fazer, ou seja, na prática social.
3.4 Rap rizoma
Diante dos nossos comentários sobre a luta pela quebra do monopólio globalizante
perpetrado pelas minorias, não poderíamos deixar de abordar o trabalho do martinicano
Édouard Glissand, que defendeu a diversidade das culturas face à estandardização cultural.
Para o antropólogo/ filósofo/ romancista e poeta, as artes a literatura em particular
cumprem a função da propulsão do imaginário utópico de suas coletividades; do contrário
estas correm o risco de não se nomear, de calar sua voz, sua identidade e seu projeto
coletivo”, como coloca Enilce Albergaria Rocha no prefácio do livro Introdução a uma
poética da diversidade. (ROCHA, apud GLISSANT, 2005)
Os africanos desembarcaram no Brasil absolutamente despojados, limitados em suas
possibilidades, incluindo de sua própria lingua. Glissant coloca que o ventre do navio negreiro
é o lugar e o momento em que as línguas africanas desaparecem, porque nunca se colocavam
juntas as pessoas que falavam a mesma língua. Este procedimento se estendia em terra, na
distribuição destes escravos nas plantações. O africano se encontrava dessa maneira
despojado de toda espécie de elementos de sua vida cotidiana, mas, sobretudo, de sua língua,
de sua capacidade de comunicação e reconhecimento. E o que este personagem espoliado faz?
Ele recompõe, através dos rastros e dos resíduos, uma outra língua e outras manifestações
artísticas que pudessem ser válidas. Reconstruíam uma nova potência, um novo modo de ser
híbrido, “crioulizado”.
32
Para Glissant, a “crioulização” exige que os elementos heterogêneos colocados em
relação “se intervalorizem”, ou seja, que não haja degradação ou diminuição do ser nesse
contato e nessa mistura, internamente, de dentro para fora, ou externamente, de fora para
dentro; e nesta rede de misturas, onde cabe, inclusive, a cultura do colonizador, cria
microclimas culturais e linguísticos absolutamente inesperados, lugares nos quais as
repercussões das línguas umas sobre as outras, ou das culturas, umas sobre as outras, são
abruptas. Nesta “poética da relação”, é preciso que haja duas ou várias identidades ou
entidades donas de si e que aceitem transformar-se ao permutar com o outro.
Nesta expansão do raciocínio da “crioulização”, Glissant explicita a distinção entre a
noção de raiz única e a noção de rizoma feita por Deleuze e Guattari. Diz o autor:
Precisamos voltar ao que propus quando abordei a questão das crioulizações no
Caribe e nas Américas e, mais especificamente, ao que sabemos sobre os problemas
de identidade. Quando abordei esta questão, eu me baseei na distinção feita por
Deleuze e Guattari, entre a noção de raiz e a noção de rizoma.
(GLISSANT,2005,p.71)
Estes autores propõe, do ponto de vista do funcionamento do pensamento, o
pensamento da raiz e o pensamento do rizoma. A raiz única é aquela que mata à sua volta,
enquanto o rizoma é a raiz que vai de encontro a outras raízes.
Resta-nos acrescentar a estes conceitos básicos de “crioulização” e “rizoma” a abertura
infinita que eles proporcionam em suas interfaces culturais e que são portadores de uma
imprevisibilidade nas suas composições culturais. Então, podemos posicionar os criadores de
rap autores populares e suas produções literárias como fruto e resultado desses processos
culturais nos quais estão inseridos.
Em entrevista a Pierre Nepveu, ao ser questionado sobre a possibilidade dos criadores
de rap estarem muito próximos da crioulização através da sua criação de sobrevivência e da
antropofagia linguística, Glissant respondeu
Sim, com a diferença de que na linguagem do rap, assim como na linguagem da dub
poetry jamaicana (...), e em algumas outras formas de linguagem que aparecem em
microclimas lingüísticos e culturais (...), deformação voluntária e agressiva de
uma língua no interior de outra língua. (...) Trata-se de uma deformação agressiva,
cultural, militante, voluntária, no interior de uma língua, bem como de um
questionamento da unicidade normativa dessa língua, que são praticados por um
grupo de pessoas que conhecemos, e sabemos em que momento começaram esta
prática e que talvez saibamos em que momento vão terminá-la. Ao passo que a
crioulização, repito, intervém quando duas ou várias áreas lingüísticas
heterogêneas que são colocadas em contato, com um resultado que é imprevisível.
Ninguém sabe quem pratica a crioulização, não aquela praticada no “texto”, mas
na crioulização da língua em geral, não se sabe quando a língua crioula nasceu,
nem através de quem, nem como. Sabemos que o rap nasceu, ou a dub poetry, e
33
através de quem e como. Em outras palavras, no que concerne aos fenômenos de
destruição (no bom sentido do termo) produzidos no rap ou na dub poetry ou nas
outras formas de expressão dessa natureza, pergunto-me se não poderíamos, por
exemplo, estabelecer uma relação com o joual tal como era falado agressivamente,
culturalmente e politicamente no Quebec. Qualquer que seja a interpretação, no
que concerne ao rap ou à dub poetry ou ao joual, trata-se da elaboração do mesmo
fenômeno de questionamento da unicidade da língua. E é através desse fenômeno
que tais práticas finalmente reencontram as duplicações (as felizes duplicações) das
línguas crioulas. (GLISSANT, 2005, p.66/68)
Cremos ter situado o rap no contexto de interculturalidade que nos interessa. Para
abordarmos o exercício da escrita dos rapeiros e sua importância dentro de seu território de
fala, sentimos a necessidade de ressaltar os conceitos de hibridismo cultural, crioulização e o
perfil rizomático que este estilo traz em si. A passagem da fala cantada para a escrita que nos
objetiva aqui como estudiosos do fenômeno, nos surge como conseqüência previsível dos
artistas desta prática autodenominada “poesia de rua”. O rap se delineia como um compósito
de situações histórico/culturais que o legitimam como autêntico fruto dos conceitos de
demarcação de identidade diaspórica na contemporaneidade.
Para melhor situarmos o rap como uma manifestação cultural contemporânea, faremos
a seguir um capítulo onde trataremos da escrita marginal, onde localizaremos a produção dos
rappers inserida dentro deste conceito, de modo a melhor visualizarmos a produção destes
escritores na atualidade.
34
35
4 - LITERATURA MARGINAL
O problema é saber em que direção vão os fios que tecem a
escrita.
FOUCAULT
É para você que escrevo, hipócrita
Para você – sou eu que te seguro os ombros e grito verdades
Nos ouvidos, no último momento.
ANA CRISTINA CÉSAR
Desde a publicação dos três “Atos” do caderno Literatura Marginal A cultura da
periferia”, pela Revista Caros Amigos
9
, o assunto que se determinou chamar de produção
literária marginal” tomou corpo entre a intelectualidade brasileira incluso o pensamento
acadêmico ao “expor o enlace entre literatura e periferia, entre cultura da escrita e
populações dela excluídas (pobres, marginais e índios)”, conforme ressalta Júlia Almeida, no
seu texto “Periferia em atos de escrita” (ALMEIDA, apud LINS, 2005.p.171), suscitando
grandes discussões que incluem desde os argumentos que defendem posturas favoráveis a este
surgimento até as idéias que são radicalmente contra este tipo de recorte.
O termo, nada original, que nas décadas de 70 e 80 foi usado para enquadrar certo
tipo de produção literária artística e comercialmente autônoma soa hoje um tanto quanto
midiático, que existe um foco artístico sobre populações de periferia, e denota certo
direcionamento ideológico/comercial mostrando-se inadequado ao seu contexto mais
genérico, o da literatura produzida e/ou oriunda da “ninguendade”. Guardando as proporções
devidas, o termo se restringe a uma literatura de confuso mapeamento, já que pede uma nova
cartografia e um novo redesenho do mapa da produção da escrita.
Seria a “literatura marginal” aquela feita por autores que estão apartados de alguns
setores mais privilegiados da nossa sociedade estratificada, ou seria aquela feita por
“marginais”, no sentido jurídico da palavra? Esta “marginalidade” se restringiria a valores
determinados por critérios econômicos ou pelos diferentes níveis da geral inanição cultural?
9
A Revista Caros Amigos publicou estes três números nos anos de 2002, 2003 e 2004 tendo como foco a
produção literária de autores habitantes da periferia de grandes cidades, São Paulo principalmente. Em 1997 e
1998 publicou matérias sobre o Movimento Hip Hop (julho, 1997) e entrevistas com o escritor Plínio Marcos
(setembro de 1997) e com o rapper Mano Brown (janeiro, 1998), dando destaque a esta produção cultural de
borda. Vide Bibliografia.
36
Quem são os autores que se encaixam neste rótulo? Que tipo de literatura produzem? Existem
concessões literárias de ordem qualitativa que são ou podem ser feitas a esta produção?
4.1 Literatura e Poder
A literatura tem poder? Para situarmos esta pergunta inicial do nosso desenvolvimento
teórico, citamos as palavras da autora Lúcia Helena (2006) no texto de apresentação na orelha
do seu livro Literatura e poder, onde diz:
Entre os espaços da vida e da arte, insiste sim esta pergunta. A arte, por seu poder,
debruça-se sobre a vida; a literatura, em sua capacidade de simbolização, faz
pensar a existência do que parece não existir; a palavra, ao permanecer, diz sim à
vida e à arte.
Seguindo esta colocação sobre o poder da escrita no nosso mundo contemporâneo, nos
firmamos como observadores atentos aos novos encaminhamentos das percepções do homem
como ser social e ator deste novo milênio e de suas conseqüentes responsabilidades, que o
aproximam dos fazeres da escrita e da potencialidade da literatura como aprofundamento de
seu pensamento e de sua dignidade. Nele, emergem as pistas do sofrimento e da esperança em
que a mão dos homens atua de forma partidária e solidária ou mesmo assombrando-nos pelo
potencial de vida e de morte, de inclusão e exclusão, de tal modo que o Estado, o mercado, a
filosofia, a arte, os costumes, os saberes acumulados e ainda os saberes que estão por vir
configuram, como pensava Walter Benjamin (1892-1940), documentos da cultura e da
barbárie.
Os novos desenhos das exclusões que surgiram ao longo do mundo contemporâneo
fazem intuir que há algo muito suspeito nos procedimentos gerais da atualidade que nos leva a
pensar que a discussão sobre as aproximações - e as divergências - entre literatura e poder seja
também matéria entre a literatura, o pensamento e a vida política, econômica, social e
subjetiva das comunidades. Citando mais uma vez Lúcia Helena:
37
Em meados do século XIX, quando a literatura era um fenômeno central para a
cultura e o intelectual dispunha de maior capacidade de mobilização pública ,
Charles Baudelaire e Gustave Flaubert pressentiram que uma crise rondava o
mundo burguês e sua sociedade de mercadorias. Na atualidade o problema retorna
com toda a força, acrescido de profunda modificação nas relações entre o
intelectual, o público e a literatura, assim como entre estes e a produção do
mercado.(HELENA, 2006, p.11)
Neste início de um novo milênio, o intelectual literário ainda exerce seu papel de
desenhista e testemunha de seu tempo, mas seu espaço cede lugar para aqueles outros que
também querem ocupar seu lugar na tribuna com a sua fala e fazer ouvir seus discursos em
prol das minoritárias narrativas de etnias, gêneros, classes sociais, etc. Estes discursos
estabelecem organismos políticos mínimosorganizações não governamentais, por exemplo
– que, se conseguem alguns êxitos em seus setores, não chegam muito perto de lutas coletivas
mais amplas, tendo perdido em parte o impulso revolucionário e utópico que empurra os
homens para o futuro e para reivindicações que tendem a uma universalidade, fato este
amplamente rejeitado em tempos de achatamento social e minimalismo ideológico. Isto
acontece dentro do imenso caldeirão dos impasses da produção cultural, onde o volume e o
giro selvagem do mercado, predispõe o consumidor a perder seu confortável contato com o
turbilhão eloqüente da cultura sedutora das imagens, espalhadas fartamente pelo mundo.
Dizer que a literatura não tem poder diante deste panorama, que ela perdeu o interesse
e/ou baixou de qualidade, ou dizer que ela não consegue atrair o público para seu discurso,
é ser precipitado: esta talvez possa ser a dedução mais fácil de se chegar. A literatura está viva
mesmo com os diversos prognósticos pessimistas de sua mudança de status – e, certamente,
não é uma entidade sobrevivente ao seu tempo. A literatura nos últimos 40 anos tem fornecido
um rico cardápio de estímulos para muita reflexão conseqüente acerca de vários problemas do
ser humano e das comunidades e sociedades, renovando-se, sem se perder em fórmulas
gastas. O meio acadêmico e os novos estudos de crítica literária produzem reflexões e leituras
instigantes sobre a solidão, a nação, o poder, o ceticismo, a exclusão, a diáspora, e tem
38
reunido esforços para questionamentos cada vez mais urgentes da conjuntura do mundo
contemporâneo. Neste aspecto consideraremos a literatura marginal(izada).
4.2 À margem do núcleo central literário
A Literatura Marginal, sempre é bom frisar, é uma literatura feita por minorias,
sejam elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à margem dos núcleos
centrais do saber e da grande cultura nacional, isto é, de grande poder aquisitivo.
Mas alguns dizem que sua principal característica é a linguagem, é o jeito como
falamos, como contamos a história, bom , isso fica para os estudiosos, o que a gente
faz é tentar explicar, mas a gente fica na tentativa, pois aqui não reina nem o
começo da verdade absoluta. (FERRÉZ, 2005. p.12,13)
Como é colocado nesta citação do escritor Leo Ferréz, existe uma “literatura marginal”
sendo produzida no Brasil. Sem configurar um salto muito radical ou precipitado entre as
primeiras considerações gerais colocadas no texto sobre “Literatura e Poder” que antecede a
este, cremos que, ao falarmos desta produção no nosso país, teceremos uma continuação da
potência do poder de se escrever, centrado neste recorte da “marginalidade”.
Se chamamos à literatura sua função de mediar pensamentos, rompendo com a
mistificação do valor literário e do “missionarismo” intelectual que canonicamente a
caracterizou, notaremos a emergência de outros protagonistas na arena do espetáculo público,
que desviam a produção contemporânea dos padrões canônicos e, ao mesmo tempo, os
reprograma em combinações às vezes não muito confortáveis. A cena literária pós-moderna
reconhece a propensão tendenciosa da literatura brasileira a dramatizar o que flui e se
manifesta pelos muros, pelas fachadas e pelos recantos recônditos (ou nem tão recônditos
assim) das nossas cidades contemporâneas: a acentuada e visível exclusão social, a
transmutação econômica da vida coletiva, o depauperamento da soberania do Estado, a
regulação dos conflitos de interesses e, até mesmo, o combate à criminalidade organizada. No
livro Estéticas da Crueldade, Ângela Maria Dias coloca:
39
A obscenidade, tomada ao da letra, como ‘excesso de cena’, pode
tranqüilamente freqüentar, tanto a deriva tardo-naturalista de grande parte da
ficção, quanto expressiva parcela do cinema contemporâneo. O coquetel previsível
sexo/violência/criminalidade tem circulado bem à vontade entre a linhagem
literária, originalmente rubem-fonsequiana agora inclusive, renovada pelos
narradores-habitantes das periferias e das prisões. (DIAS, GLENADEL, 2004.
p.18)
Existe um mérito inquestionável que temos que creditar à tecnologia e ao avanço do
acesso às mídias permitido às pessoas comuns via a informática, por exemplo a ruptura com
alguns entraves que sempre foram problemáticos àqueles que queriam se fazer ouvir. Se nos
anos das décadas de 60/70 o mimeógrafo era um recurso (arma?) dos autores que corriam à
margem da literatura enquanto máquina gráfica, hoje a disponibilidade de se lançar mão dos
recursos de impressão dos computadores, ou mesmo aos blogs do universo da internet,
democratizou as leituras das vozes que circulam longe das estratégias e mecanismos do
mercado editorial, e diluiu os filtros sociais.
Nossa sociedade criou seus territórios fechados, fortalezas de ideologias de
acomodação, e foi vítima de sua própria estratégia: estas fortalezas padecem da falta de
circulação de idéias, tornando-se focos de infecção ideológica e estados terminais de cultura.
Para oxigenar esta pauta viciada, nada melhor do que ir à rua, aos assentamentos, às periferias
e a outros terrenos da indigência existencial. Dos convivas do cotidiano podem surgir os
novos vetores e as novas forças da renovação da atmosfera claustrofóbica da nova sociedade
que percebe, cada vez mais, a importância criativa dos saberes comuns, que não se
circunscrevem às ideologias de grupos nem aos paradigmas estabelecidos: descortina-se na
outridade uma nova visão de mundo. Neste enfrentamento com a crueza que acontece no
nosso entorno desprivilegiado aflora o gesto da oratura e o gesto da literatura. A troca, o
choque, o embate, a interatividade criadora dá-se no campo da cultura, que espelha a
sociedade. Nas palavras de Nicolau Sevcenko: “O poeta sente a inquietude e, por isso, sofre
40
para além das fórmulas garantidas. Não recusa a angústia permanente, abre o peito ao grito
dos desajustados, em sua compreensão da literatura.” (SEVECENKO, 1983, p.42)
Seria a visão dos desajustados o grande repositório das culturas, dos mitos, da invenção
de outra História? Não estariam os desajustados transitando nas ruas calçadas e nas ruas de
esgotos a céu aberto da cidade contemporânea? Se os poetas colhem a “alma encantadora das
ruas”, como disse João do Rio (1881-1921), será possível que qualquer pessoa que se
interesse em mediar os sentidos contemporâneos possa se eximir de romper com os entraves
paradigmáticos e se abrir às visões – poéticas ou cruéis – do cotidiano?
O onírico da arte e o cotidiano da rua se encontram na dimensão mítica, na identidade
cultural e na visão do mundo de um povo. Nas palavras de Gilles Deleuze, “a literatura
consiste em inventar um povo que falta”
10
.
A cumplicidade de ambos cria o laço da comunicação: um ouve o outro, porque
compartilham do desejo coletivo na sua expressão escrita, a da literatura, ou na sua expressão
oral, a da oratura.
Para que o cotidiano se presentifique é preciso romper com as rotinas industriais da
produção cultural. É preciso superar a superficialidade das situações sociais e o predomínio
dos protagonistas oficiais. uma grande demanda reprimida que solicita uma urgente
democratização dos falares e dos escreveres. É cada vez mais necessário um mergulho no
protagonismo anônimo, nos “ninguéns” que compõem nossa vizinhança. É cada vez mais
importante não ouvir e ler estes atores sociais, mas reconhecer sua força como identidades
culturais na produção do nosso rosto simbólico multifacetado. Estes deslocamentos trazem
para nós a alteridade. O cotidiano não é composto de abstrações conceituais e sim de
experiências vivas que se tecem no tecido cultural. Só o ouvir destas vozes particulares
emergentes das estruturas locais pode oferecer elementos para uma narrativa viva e criativa
dos acontecimentos atuais. A literatura pode atender às necessidades reais de uma época e
também às suas necessidades subterrâneas. Devemos desenterrá-las e fabularmos.
Porém ainda encontramos as ilhas e os muros das verdades absolutas e das
metodologias engessadas. É urgente a interdisciplinaridade na abordagem do social.
Precisamos ter atenção aos significados políticos da cidadania e à presentificação do cotidiano
na narrativa ética, técnica e esteticamente transformadora onde se encontrarão as
transgressões das fórmulas vigentes na sociedade que julga ser hegemônica.
10
http:// www.scridb.com/doc/19487693/Gilles-Deleuze-A-literatura-e-a-vida
41
4.3 Novos textos contemporâneos
Não se pode negar a importância e o papel revitalizador da cultura hip hop no meio
suburbano e de sua contribuição para a música, as artes, a educação, a política e em outros
campos da vida social. Esta estrutura cultural despontou como máquina de energia sígnica e
subjetiva”, como coloca Júlia Almeida (ALMEIDA, apud LINS, 2007. p179). Claro que o que
primeiro desponta na nossa leitura do fenômeno da cultura urbana é a sua capacidade de
negociar com as forças da política, da mídia e do capital, e tomar parte na sociedade fazendo
uma interface com os signos estéticos, políticos, econômicos e de consumo. O movimento
nasceu, cresceu e se tornou portador de certo poder especialmente cultural que extrapolou
sua esfera de identidade da periferia e contaminou outras camadas do estrato social. Alguns
méritos despontam nas justificativas sobre esta penetração tão ampla do pensamento da
periferia: a busca de novos valores sociais, novos lugares de visão do mundo, e uma
revitalização em campos da cultura como o das artes visuais, dos esportes e da textualidade
impressa, entendendo-se aqui o surgimento de novas relações entre a escrita e as formas
sígnicas, que vêm esculpir uma nova presença na comunidade de pertencimento e no mundo.
A revitalização desses campos da cultura, gerada por necessidades de demarcação de
território social e cultural, se tornou um parâmetro e um “quase” paradigma do pensamento
cultural contemporâneo. Graças à fundação desses parâmetros e sua assimilação por outras
camadas do tecido social é que surge no campo da textualidade impressa a chamada
“literatura marginal.”
4.4 Seja bandido, seja herói
Publicada pela revista Caros Amigos
11
, a então chamada “literatura marginal” mostrou a
sua cara. Talvez sem ter um rosto definido, mas com um corpo. Um corpo que fez sombra,
que era portentoso; muitos dos autores que se abrigaram debaixo do grande guarda-chuva do
11
Vide bibliografia.
42
rótulo tinham livros, textos ou outras obras conhecidas do público, como Paulo Lins
(Cidade de Deus), Leo Ferréz (Capão Pecado e Manual Prático do Ódio) e até mesmo Plínio
Marcos, considerado o precursor do pensamento dos escritores marginais. Juntam-se a estes
autores de livros independentes como Alessandro Buzo, Erton Moraes, Edson Véoca, Jocenir,
além de MCs, como Cascão, Atrês e Mano Brown, rapper líder do grupo Racionais MCs, e
outros muitos autores que são moradores das periferias de muitos outros centros urbanos do
Brasil e que, imediatamente, se engajaram em termos práticos e/ou ideológicos nesta forma de
escrita. Nas palavras de Leo Ferréz:Cultura de periferia, feita por gente de periferia e ponto
final, quem quiser que faça o seu, afinal quantas coleções são montadas todos os meses e
nenhum dos nossos é incluído?” (FERRÉZ, 2002, p.2)
Poderíamos partir do princípio que desta forma estava sendo estabelecido um novo
nicho literário, mesmo que não fosse tão novo assim, que a denominação não era nova e o
procedimento da escrita fora do contexto hegemônico era procedimento estabelecido a algum
tempo. Nas dobras das reflexões sobre o que poderia se encaixar neste conceito, caímos na
questão do gênero e do status desta escrita. O que seria a literatura marginal? Seria a escrita
dos que estão à margem, a princípio, mas poderia também ser a literatura dos marginais? A
experiência da possibilidade de se dar voz ao “marginal”, no sentido policialesco do termo,
morreu na tentativa, literalmente. A oportunidade de se ver nas prateleiras um possível livro
escrito por um bandido, no caso o traficante Marcinho VP, se extinguiu de forma trágica, com
o assassinato do mesmo em 28 de julho de 2003. O incentivo dado ao marginal para um
mergulho na literatura autobiográfica originou-se na voz do jornalista/escritor Caco Barcelos,
fato relatado no seu polêmico livro Abusado: o dono do morro Santa Marta (2004). O
desmembramento desta história é tão repleto de dúvidas éticas que faz com que cessemos o
comentário agora, somente citando a parte que nos interessa, e também por ela ter sido um
assunto amplamente divulgado na mídia
12
.
12
No livro Abusado: o Dono do Morro Dona Marta, o jornalista Caco Barcellos relata a história do traficante
Juliano VP e de toda a sistemática do funcionamento do tráfico de drogas no Morro Santa Marta e das ações do
Comando Vermelho na área. Existe também o relato da iniciativa do cineasta João Moreira Salles que em
fevereiro de 2000 ajudou o traficante a sair da vida criminosa mediante pagamento de uma mesada para que
escrevesse um livro autobiográfico. Vide bibliografia.
43
Portanto a literatura marginal pode ser vista como restrita ao autor habitante da periferia
social, urbana, econômica e geográfica.
A imprensa e a crítica se prontificaram a dissecar este modus operandi dos autores
marginais. Claro que houve muito choro e ranger de dentes, desde as aceitações e concessões
ao modo de escrever”, onde afloravam a linguagem e o léxico suburbano, até o chamado
“terrorismo literário”. Citamos mais uma vez Júlia Almeida:
É curioso notar pelas metáforas (terrorismo literário é exemplo) que o movimento é
reação energética à desigualdade discursiva do país, tornando-se logo objeto da
reação não menos energética dos críticos. Grosso modo, a crítica jornalística
balançou entre anunciar com algum otimismo o que seria uma nova onda cultural,
da qual tais atos de escrita são indícios, e denunciar seus propósitos no rol do que
seria uma cultura bandida que assolaria o país. A crítica literária também
compareceu para conferir se a coisa é mesmo literária, se merece o selo e pôde
reencontrar descanso ao acolher tais textos no escopo de uma literatura
testemunhal. (ALMEIDA, in: LINS, 2007. p172)
Dar voz, ou melhor, visibilidade, a estes personagens incomodou de fato, porém nada
que não estivesse previsto na esteira histórica das sociedades e da literatura. Nossa educação
nos encaminhou para um entendimento de viés inclusivo, graças a uma alfabetização estética
ampla, onde os conceitos de alta cultura e baixa cultura se diluíram ou pelo menos tiveram
suas fronteiras borradas no decorrer de nossa construção intelectual: o homem contemporâneo
é onívoro. Compreendemos, desta forma, a fala de Karl Erik Schollhammer sobre escrita
marginal:
(...) escrita por pessoas normalmente excluídas do meio literário (...) revelando o
fascínio em torno de vozes marginais, de uma realidade excluída, que agora
ganham espaço no mercado editorial, dentro de uma estética da literatura e
das artes e uma cultura do trauma, da ferida, em que a obra se torna
44
referencial ou real à medida que consegue provocar efeitos sensuais e afetivos
parecidos ou idênticos aos encontros extremos e chocantes com a realidade em que
o próprio sujeito é colocado em questão. (SCHOLLHAMMER, apud OLINTO,
2002. p.79,81-2)
Cabe aqui uma indagação: seriam estes atos de escrita uma estratégia singular de
reinvenção da relação da escrita com os processos de produção de cultura e de vida,
reconfigurando o próprio papel da escrita no conjunto de formas de expressão? Os grafiteiros,
para citar outra manifestação que envolve o escrever, se intitulam escritores”, redistribuindo
as relações entre escrita, desenho, suporte e potência enunciativa, inventando na densidade da
cidade, uma escrita singular e potente. Voltando a Júlia Almeida,
(...) esses escritores contemporâneos, dos muros e dos livros xerocados, e que tem
sido terminantemente desapropriados de sua vitalidade criadora pela cultura
de massa , deixam entrever nessa produção incessante o que poderia ser um
sinal de uma nova relação com o texto: ao aceitarem o desafio de produzir
textualidade na proximidade da imagem , em mesclas com a oralidade e
sobre os muros, parecem experimentar um tipo de saída para o impasse do texto
contemporâneo, que se confronta abertamente com novos suportes, novas
superfícies, não garantidas pela interioridade do livro, mas que os obrigam a
reinserir-se abertamente no mosaico sociocultural contemporâneo. (ALMEIDA,
2007.p. 179, 180)
A literatura marginal tornou-se uma realidade dentro do atual sistema de estratificação
da literatura seja de sua estrutura narrativa ou comercial e abre espaço para mais uma
contribuição na construção do painel da escrita literária no Brasil. Usando dos estigmas da
fala brasileira popular, da gíria, das construções semânticas distorcidas, da escrita
embaralhada, até mesmo das vozes daqueles que, às vezes, sequer escrevem ou lêem, cobra
seu lugar de direito, via a escrita de periferia. Violenta, romantizada, heróica, anti-heróica,
45
sarcástica, bruta, vulgar, racista, agressiva, ou na sua síntese, “fora do esquadro” ela é nóis
falando. E, como afirmou Nietzsche (1844-1900), se o Homem é o grande reinventador de si
mesmo”, contamos com esta revisão de valores para nos ultrapassarmos cada vez que for
necessário.
Antes de passarmos para a análise do surgimento de uma nação ideológica gerada pelo
rap, onde a escrita e o discurso das letras das músicas se transforma em elemento de
aglutinação identitária, colocamos que a literatura marginal é uma denominação ainda em
processo de definição mais clara devido ao seu uso em diferentes classificações, e, para isto,
fizemos no Anexo G algumas considerações que, cremos, serão interessantes para melhor
situarmos nossos artistas rappers.
46
47
5 - UMA NOVA NAÇÃO
(...) minha língua brasileira é a língua do homem de amanhã, depois da
purificação. Por isso devo purificar minha língua. Minha língua (...) é a arma com
a qual defendo a dignidade do homem. (...) Somente renovando a língua é que se
pode renovar o mundo.
GUIMARÃES ROSA
Um dos paradoxos da cena internacional atual consiste no duplo movimento de abertura
das nações à integração regional e global, e no movimento de fechamento das fronteiras
nacionais. Portanto, se a modernidade instalou no pensar e nas sensibilidades dos atuais
habitantes do planeta a (futura) possível diluição das nacionalidades em detrimento de estados
corporativos que agrupam diferentes países, sob denominações como Comunidade Européia,
Mercosul, ALCA, CEI, ASEAN e NAFTA, os Estados-nação tendem à implantação de
medidas que dificultam a circulação dos “outros” estrangeiros à nação. No cerne dessas
uniões está o comércio internacional e o pavor da perda de poder econômico e,
conseqüentemente, de poder político. Ora, o cidadão, o habitante destas nações/siglas
modernas, se enquadrado num emaranhado de novos enunciados de pertença onde sua
nacionalidade original perde alguns contornos tradicionais e, assim, se com dupla ou tripla
cidadania que o abrigam conforme suas necessidades, praticidades, obrigações ou
oportunidades. Mas o pertencimento a uma nação e a uma cultura nacional ainda é a
prioridade dos Estados-nação que exercem seu poder coercitivo sobre os cidadãos. Hernán
Neiva, no livro Trocas culturais na América Latina (2006), faz o seguinte comentário:
Apenas o fato de pisar um território nacional e mais ainda, nascer nele nos
obriga a um certo tipo de comportamento material e moral, ou seja, obriga-nos a
obedecer a certas leis e a viver segundo certo tipo de cultura. (...) O conceito de
cultura nacional inclui prescrições de comportamento e pensamento, e sanções
para quem não cumpre o exigido e até mesmo estabelece o umbral de tolerância de
tais prescrições. Toda cultura é tolerante e intolerante, só que, aquilo que para uma
não é critério de classificação entre o prescrito e o proscrito ou não alcança
umbrais de diferenciação relevantes, pode sê-lo para outra. culturas nacionais
muito permissivas que, no entanto, não se consideram a si mesmas tolerantes
porque as pautas com que elas mesmas definem a tolerância são tão amplas que a
maior permissividade é considerada estreiteza; enquanto outras podem se
considerar muito permissivas e são, contudo, muito intolerantes, pois os umbrais
de tolerância são definidos sobre diferenças muito pequenas. De modo que não
pode haver padrão universal para definir o conceito de tolerância cultural.
(NEIVA, apud SANTOS, PEREIRA, 2000, p.195/196)
48
Diante dessas considerações que abrem este momento do nosso trabalho, podemos dar
um direcionamento às nossas reflexões sobre a tolerância e a intolerância cultural neste século
XXI, pleno de novos conceitos sobre a produção do homem, agora habitante de um planeta
acrescido de novas redes de informação, de sistemas de migrações e imigrações cada vez mais
implementados pelas novas conformações econômicas e políticas, enfim, de um tempo de
contaminação de novos conceitos de pertença. Vejamos nosso caso, da América Latina
(América Latrina, segundo a autora), colocado por Maria Esther Maciel Borges:
A ocidentalidade da América Latrina não se define senão pela via do paradoxo.
Somos e não somos Ocidente, diria Octavio Paz. Somos ocidentais, pela força da
geografia, das cartografias, das caravelas, de todos os artifícios da colonização e
da modernização. Não o somos, porque nosso lugar na história cultural do
Ocidente inscreve-se nas margens e nos desvãos dessa mesma história, está dentro
e fora do mapa que nos circunscreve. (BORGES, apud SANTOS, PEREIRA, 2000,
p.33)
Alguns traços deste paradoxo são perceptíveis na nossa relação com o outro, com os
outros, sendo que o mais prolixo destes traços, para nós brasileiros, está expresso na metáfora
de Oswald de Andrade: a antropofagia. Temos a potencialidade de deglutir o outro próximo e
distante de nós, de transitar entre um cosmopolitismo sem fronteiras e um regionalismo feito
de matizes e rizomas. Resumindo: temos a capacidade de nos configurar como outra coisa,
por não nos adequarmos aos limites homogeneizadores dos paradigmas e dos rigores das
classificações.
Este aspecto de assimilação de “outridades”, que Glissant (2005) considera estar
acontecendo em âmbito planetário na atualidade, desencadeou um florescimento de muitos
espaços microculturais, com suas microlinguagens. Se pensarmos que uma língua é um
território de identidade, podemos pensar também que uma língua é, em si, uma série de
interlocuções entre as microlínguas que comporta, fazendo com que qualquer espaço de
unidade territorial, linguístico, nacional esteja recortado pela diversidade de seu falar
interno, conforme nos demonstra a sociolingüística em Labov (1976) e a Sociologia da
Linguagem em Calvet (1979). Do lingüista americano gostaríamos de ressaltar a seguinte fala:
Nous soutenons ici le point de vue suivant: Il est impossible de comprendre le
progression d’un changement dans la langue hors de la vie sociale de la
communanté il se produit. Ou encore, pour le dire autrement, que des pressions
sociales s’exercent constamment sur la langue, non pas de quelque point du
lointain passé, mais sons la forme d’une force sociale immanente et présentement
active”. (LABOV, 1976, p.47)
49
E do sociólogo da linguagem, Jean-Louis Calvet, a seguinte reflexão acerca daquilo que
se considera como “a bela linguagem”:
Qu’est-ce que ce “beau langage”, la notion de “nivaux de langue” est- elle
recevable, formalisable, etc? Mais, par-délà cette direction de recherche, il en est
une autre qui tenterai de lire la societé dans la langue, de la lire de divers points de
vue”.(CALVET, 1979, p.14)
Portanto, podemos dizer que a identidade de uma nação é uma constelação de
alteridades que se agrupam e assumem, para si e para os outros, uma margem visível.
5.1 Considerações sobre oralidade, música, escrita, nação e rap
É comum atribuir-se à narrativa oral o poder de transmitir um conjunto de referências
culturais, de preservar tradições, manter a identidade, mas também de introduzir as novas
configurações identitárias. Essas narrativas orais despertam o interesse em preservar o que foi
narrado, surge então a escrita como tentativa de registro. Mas a escrita comporta também as
suas impossibilidades, dentre elas a incapacidade do registro da “música das vozes”. Mas a
“música cria um passado”, afirma Oscar Wilde (1845-1900). Um passado que ignoramos.
Talvez seja esta a razão pela qual certas formas musicais surgem como centro no qual se
agrupam identidades diferentes, contraditórias e antagônicas, diferenças essas, cujas disputas
tendem a se apagar no momento em que os acordes se intensificam. Daí percebermos que a
música tem o poder de se transformar num símbolo cultural nacional, deixando de ser a
representação de um grupo ou comunidade, para tornar-se a representação de uma nação. Este
é o caso do tango, na Argentina, e do samba, no Brasil.. Nesse sentido o rap representa um
grupo, e não faria mais do que expressar no terreno musical características dos negros
americanos (do norte, do centro e do sul). Assim, vigora uma relação homológica entre os
sons e o grupo que os produz, entre as formas culturais e as estruturas sociais nas quais se
encontram imersas.
O rap convence como legítimo representante quando o deslocamos para a sua
representatividade política e simbólica que traduz a identidade dos muitos que o ouvem e o
praticam, e que se aglomeram mundialmente na “nação hip hop”, que obedece a outra
percepção “geográfica”: “Mais que a geografia, estamos diante de geo-grafias, enfim, do
desafio de geo-grafar nossas vidas, nosso planeta, conformando novos territórios, novas
territorialidades”.(PORTO-GONÇALVES, 2001, p.124)
50
A sobreposição ou justaposição de territórios tem sido tratada por muitos estudiosos da
contemporaneidade, entre eles Pierre Lévy, Beatriz Sarlo, Zygmunt Bauman e Suely
Rolnik
13
– que cunham conceitos como multiterritorialidades ou territórios cíclicos, justapostos
ou em rede, ou mesmo “territórios inventados”. As estruturas de poder público ou privado se
entrelaçam e se sobrepõem criando uma multiplicidade de instrumentos de uso, de dominação
e de controle sobre territórios e sobre populações, em especial sobre aqueles chamados de
“novos bárbaros”, que marcam e desmarcam sua presença, que grafam a terra, enfim, que
geo-grafam suas existências.
Observamos que o movimento cultural de periferias, que ora estudamos, tem caminhado
na direção da luta da alteridade e da demarcação de seus territórios, implementando eficientes
estratégias de luta por seus direitos. Nesse sentido, a nação rapeira existe hoje como
referência na consciência das sociedades; o espaço ganha uma espessura, ou seja, a nação
rapeira se constitui como uma teia de significações de experiências de ordem econômica,
social e política, isto é, a nação hip hop passa a ser vista como uma rede transnacional de
solidariedade territorial e cultural. Para compreender a nação rapeira é preciso viver a
“nação”, entrar no seu território de referências.
O rap se transformou assim em uma espécie de carta de alforria, um “salvo-conduto”
que possibilita aos sujeitos transitarem livremente de um local para o outro dentro da nação
hip hop mundial. É um documento de pertença, uma carta de liberdade, que materializa um
território simbólico.
Trata-se, então, de pensar e agir de modo diferenciado daqueles que parecem desarticular
as identidades e as contigüidades espaciais, como pretendem as correntes neo-liberais? Aqui a
proposta é mais ousada. Através dela o participante da nação rapeira percebe outra
possibilidade de pensar o mundo. O espaço pode ser percebido como um espaço da
solidariedade, da identidade, da integração e do encontro com os outros; mas também como
espaço da identidade excludente que exclui os não-participantes da rede de “nação” rapeira
cuja violência transforma as periferias das cidades em palcos de guerra.
Talvez não tão paradoxalmente como possa perecer à primeira vista, no momento que o
rap surge como mediador entre diversas diferenças de gênero, de raça, de classeele se
estabelece como um símbolo cultural aglutinador, que surge como denominador comum,
abarcando assim o espectro dessa “nação”, mesmo que esse espectro se mostre impossível à
homogeneização.
13
ROLNIK, Suely (2007); BAUMAN, Zygmunt (2001); LÉVY, Pierre (1993);SARLO, Beatriz (2005) Vide
bibliografia.
51
No seu usufruto, o rap exige audição atenta, e o pacto entre a poesia e a música se
ilumina na arte de “saber de memória”. Trata-se do apprendre par coeur a que alude Derrida
com respeito à experiência poemática, ou seja, aprender, compreender com o coração, e ouvir
o ditado do coração. Memória e coração, ritmo e poesia, o ritmo de um contido no outro. Por
isso o rapper realiza uma encenação que recria as grandes manifestações comunitárias, onde
os seus participantes têm um papel no ritual: o MC, como portador do discurso e da
performance; o DJ, como o suporte rítmico; e o público, como multiplicador do ato artístico.
Como escritor de suas letras/poemas, o rapper escreve sob uma perspectiva peculiar que
parece bárbara aos olhos dos leitores engessados, que manipula distorções de cânone,
gênero, sintaxe e língua normativa. Escrito desta forma, o rap se irmana com outras formas
literárias que tentaram a tradução de uma oralidade que se define pela transgressão e pela
busca de legitimação. Como “gênero menor”, o rap compõe uma política da língua.
Deleuze, em sua definição de literatura menor, reconhece três características desta
produção literária
14
:
1º) trata-se de uma literatura que uma minoria produz dentro de uma língua maior com um
forte componente de desterritorialização;
2º) estabelece a articulação individual no imediato político;
3º) caracteriza-se no agenciamento coletivo de enunciação.
É neste sentido que reconhecemos a dimensão política do rap, entendido como um
espaço de debate e confronto.
Exercendo o seu papel de demarcar temáticas existencialistas particulares, seria muito
ousado destacarmos as nuances filosóficas das letras de rap
15
? Cremos que não, que estas
criam uma passagem entre o particular e o universal que percorre as formas da experiência na
cidade moderna com um olhar irônico e trágico. Uma análise impiedosa da moral burguesa
desmascara sua hipocrisia e arremata as pequenas histórias cotidianas e suas narrativas
trágicas. A culpa, o castigo, a rebelião frente ao destino, as perguntas insolentes a um Deus
surdo e cego descrevem o marco dessa literatura que mostra o componente de
desterritorialização na alegoria da tragédia do homem marginal.
Passemos, portanto, a uma análise do movimento rap e sua importância política, social,
cultural e identitária.
14
Como citado no texto de Erika Kelmer Mathias. <http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/5/1516.pdf>
15
No livro Hip Hop e a Filosofia o coordenador William Irwin faz uma coletânea de textos de Derrick Darby e
Tommie Shelby, dois autores com PhD em Filosofia pela Universidade de Pittsburg, onde destaca que a filosofia
é intrínseca a todas as formas de expressões culturais, incluindo o rap neste contexto. Vide bibliografia.
52
6 RAP
De tudo que é escrito amo somente aquilo que alguém escreve com seu
sangue. Escreve com sangue; e te darás conta de que sangue é espírito.
Não é coisa fácil compreender o sangue alheio: odeio os ociosos que lêem.
Quem conhece o leitor não faz nada pelo leitor. Um século de leitores,
todavia – e até o espírito cheirará mal.
Que seja dada a todo mundo a possibilidade de aprender a ler e será
corrompido não somente o escrever, mas também o pensar.
O espírito que era Deus transformou-se em homem e depois em plebe.
Quem escreve com sangue, e em forma de sentenças, este não quer ser lido,
mas aprendido na memória.
NIETZSCHE (Assim Falou Zaratustra)
6.1 No início
Ainda fonte de pesquisas artísticas e históricas, alguns autores colocam que o
rap
16
surgiu na Jamaica em meados dos anos 1960, quando apareceram os sound systems, que
eram sistemas ambulantes de aparelhagens de som que se instalavam nas ruas dos guetos
jamaicanos para animar bailes. Eram nesses bailes que se apresentavam os toasters, que se
utilizavam destas aparelhagens sonoras como apoio para suas performances vocais.
Autênticos mestres de cerimônia (MCs), estes artistas comentavam, nas suas intervenções,
assuntos como a violência das favelas de Kingston e a situação política da ilha, sem deixar de
falar, é claro, de temas mais prosaicos, e de temas complexos como sexo e drogas.
No início da década de 1970, atropelados pela grave crise econômica e social que se
abateu sobre a ilha caribenha, muitos jovens jamaicanos foram obrigados a emigrar para os
EUA. Um destes jovens era o DJ jamaicano Kool Herc, que se destacou por introduzir em
Nova Iorque a tradição dos sound systems e do canto falado, que se sofisticou com a
invenção, por um de seus seguidores, do scratch, um modo especial de interferir no som
através do movimento de vai-e-vem da agulha do toca-discos sobre a superfície do vinil,
produzindo um arranhado característico que ficou diretamente relacionado a este estilo
musical.
As primeiras produções destes artistas eram gravadas em estúdios piratas, sendo que o
primeiro disco de rap de que se tem notícia foi registrado em vinil e dirigido ao grande
mercado fonográfico por volta de 1978. Numa tradução imediata desta sigla, que em inglês
significa rythm and poetry, a forma “ritmo e poesia” chegou ao grande público no trabalho da
16
Para esclarecimento dos termos específicos do rap, vide anexo C – Glossário.
53
banda Fatback, autora da célebre obra fundadora “King Tim III”. A partir daí o mundo das
artes - em especial da música - não se desvencilhou da incisiva métrica dos rappers.
Inicialmente visto como um estilo musical, o recitar rítmico do rap trazia no seu ventre
a geração de outras leituras, outras posturas. O rap era reivindicatório. O rap era político. O
rap era o novo rebento do Atlântico Negro, contextualizando aqui o que Paul Gilroy aborda
em seu livro (2001) sobre as trocas culturais entre a África e o Novo Mundo.
Claro que foram muitas as resistências a esta manifestação cultural que discutia a
questão negra, saída dos guetos pobres e violentos das grandes cidades dos Estados Unidos,
das “ruas das ilusões perdidas”, como coloca o autor francês, Olivier Cachin (CACHIN, 1996,
p.15). O sistema WASP
17
foi dominante na cultura americana e o temor da quebra de sua
hegemonia cultural, econômica e social persistia nos anos 70, nos quais, na verdade, se vivia
uma ressaca dos conflitos raciais, desde o pacifismo do movimento pelos direitos civis de
Martin Luther King, até a militância agressiva de Malcolm X e dos Panteras Negras, surgidos
neste período de 20 anos que precederam os sonhos anti-racistas. Quem rompeu com este
temor e esta hegemonia e deu visibilidade para os cantores de rap foi a indústria
cultural/musical que vinha estabelecendo seu espaço como área de reconhecimento e
pertencimento da cultura negra da América, desde a criação dos spirituals e do blues no
Mississipi, passando pelo jazz e pela Motown, em Detroit, e, agora, dando espaço e voz a
estes artistas do ritmo e da palavra que contaminavam a sociedade com seu dizer popular,
para não dizer com seu poder vulgar.
Entenda-se por vulgar aquilo que não possui mistério, aquilo que é explícito, sem
sutilezas, que é claro e livre de dúvidas. A cantoria rap era fruto de uma cultura popular de
recitação, de verborragia, de falas ditas em tom alto sem medo de ser ouvida por quem
estivesse próximo, de vocalismos de briga de vizinhança, de grito de revolta, de linguagem
chula, de dialetos do cotidiano, de gírias herméticas, dos ecos da plantation”. E de uma
agressividade veemente, distante das passividades históricas.
O rap, como fenômeno cultural, trouxe à tona um outro” personagem criador. Se
tratamos anteriormente sobre o artista e seu papel no meio social como tradutor de seu tempo,
o rapper chegou para mostrar que havia um novo ator criativo emergindo de onde menos se
esperava: do lixo suburbano, dos becos escuros, das favelas periféricas, do lúmpen proletário,
das margens sociais. Mas, especialmente, o rap mostrou que emergia um artista “inculto”,
sem formação musical ou literária, mas que compunha e escrevia a seu modo e ousadamente
se intitulava “poeta”. Estava fundada a mais recente forma contemporânea da cultura urbana
17
white/anglo-saxon/protestant, ou, traduzindo, branco/anglo-saxão/protestante
54
negra. Este poeta de pele escura vem sendo há tempos, nas palavras de Houston A. Baker, Jr,
“the last voices in América talking bravely back and black in these new times.”(BAKER, JR,
1993, p. xi)
6.2 Negros também falam
Pensar é sempre tirar um plano do caos. A cultura negra se viu descaotizada através de
uma formalização de seu pensamento pela métrica do rap. Através do uso de uma fórmula
(atualmente) clássica, a estrutura do rap se resume a dois quesitos:
a) Uma estrutura rítmica. Normalmente, uma montagem musical composta de trechos
“roubados” de outras gravações existentes, acrescidas de uma base” compassada.
Esta é a formalização do que se encaixa na definição de “ritmo” da sigla “rap”. Em sua
maioria, este ritmo, ou base, é criado em estúdios de gravação (profissionais ou
domésticos) onde o DJ (disc-jockey) usa samplers, ou amostras, de músicas
registradas em alguma outra mídia de execução (discos de vinil, fitas cassetes,
compact discs, ou em formato mp3) e as agrega através de uma mixagem, uma
mistura, na base principal. Hoje muitos artistas não usam este sistema, e produzem
todo o seu material musical de forma original, sem citações ao trabalho de outros
músicos.
b) Um texto escrito, de estrutura rítmica compatível com a métrica da base sobre a qual
será recitado, obedecendo a uma rima básica, no qual prevalece um discurso
predominantemente coloquial. Esta escritura é fruto de anotações que o artista compositor faz
durante seu cotidiano e pode ter, como suporte de registro, desde fragmentos de papel
tomados a esmo diante da sua necessidade de escrever determinada idéia, a até mesmo, hábito
adquirido recentemente, um caderno destinado a esta função, os black books, antes de uso
exclusivo dos grafiteiros, e agora assimilado pelos letristas.
Calcado nestes dois pilares de sustentação, o rapper transita no seu universo criativo
fazendo seu trabalho ora em duplas, o DJ (disc-jockey) e o MC (mestre de cerimônia), ora
sozinho. Acrescente-se que o rap é uma das manifestações da cultura hip hop, fruto cultural
de uma mescla de atividades nascidas no meio urbano, que inclui os músicos, os cantores, os
dançarinos de break, os grafiteiros e, mais recentemente, alguns praticantes de esportes
radicais como skatistas, bikers e os traceurs, praticantes do Le Parkour. Percebe-se que o
constructo do movimento rapper é de alternância, diálogo, ações combinatórias, parcerias e
remanejamentos de concepções da alteridade. Nesse sentido, o rap surge como música e
poesia, ritmo e silêncio pleno, configurando antes uma desterritorialização da fala. O verbo do
55
rapper é plural, serve a muitos senhores, canaliza muitas vertentes ideológicas e sintetiza a
diversidade de sua fonte criadora: os excluídos, falando por eles nas suas diferentes
linguagens expressivas.
O rapper fala de sua negritude reivindicatória, fala de seu espaço e de sua verdade. A
verdade é retórica, precisa do discurso para se instalar e se fazer crível. Para o negro rapeiro
seu melhor discurso é aquele que expressa a diversidade do público que o ouve, a consciência
de que se “vive junto”, e que aposta no despojamento dos limites, dos dogmas, dos
preconceitos e dos racismos. Dessa forma, se estabelece um exercício de linguagem, que
circula entre os rappers e o público. Mas algo mais nessa retórica que se constitui para o
rapper como uma espécie de revelação da sua subjetividade, como coloca Dina Toledo:
De um lado o “viver junto” ao outro, porque somos seres de linguagem: animal
político como animal lógico; mas por outro lado, a linguagem como instrumento de
uma autoconfissão, que é a filosofia. A retórica é a possibilidade da autoconfissão:
por meio dela eu convenço o outro de mim mesmo. (TOLEDO, Dina. in: LINS,
2007, p.117)
Introduzindo este sistema de leituras múltiplas e de diversidade cultural, o estilo,
nascido da experiência afrodescendente, se democratizou pelo mundo afora, tornando-se uma
“nação” ideológica, agrupadora de representantes multirraciais e multiculturais, criadora de
um espaço impalpável, porém eficaz, de pertencimento que borra as fronteiras físicas das
geografias políticas, das cores raciais e das religiões dogmáticas, estabelecendo-se no campo
do simbólico, usando, para seu fortalecimento, as dores particulares, as revoltas sociais, os
apartheids individuais e as fomes espirituais graças ao seu compósito música e literatura”.
Para Nietzsche, a “dança e a música são as únicas depositárias do sentido” (2007). Podemos
acrescer à frase do pensador também a literatura. Estas citadas modalidades das artes fazem
coro na estrutura do hip hop e do rap, mas o elo que as une e as transforma em fenômeno
cultural único, abarcante, é a atração, muitas vezes irresistível, pelo desafio do enfrentamento
com o desconhecido “estrangeiro” o Outro e a visceral necessidade que se tem de ser o
outro. O rap se configura assim como uma visão de mundo, que se propõe a redefinir o que
significa ser um com o mundo.
Um dos discursos mais veementes do rap diz respeito à quebra da hierarquia social,
destacando a unificação laboral do homem como ser atuante e interferente no mundo. Porém,
pelo seu incisivo discurso, desde o seu surgimento o rap e seus intérpretes vêm se tornando
importantes símbolos culturais da violência; demonizado na figura ameaçadora dos jovens
56
negros incontroláveis do gueto, transformado em alvo da mídia e da polícia, mixado com a
expansão da criminalidade, depositário da imagem degradante do “selvagem suburbano”,
afeito a badernas, contravenções sociais e depredação pública. Entretanto, trata-se de uma
tremenda injustiça imputar aos artistas da palavra cantada esta pecha porque sabemos que a
violência na contemporaneidade é estrutural. Não obstante, o rap exibe uma “violência
estética”: a força rápida e intensa de seu ritmo, seus métodos de samplear e arranhar discos,
seu estilo agressivamente alto e confrontante dão ao rap o vigor estético que aumenta a
energia, e também a consciência social e política de seus ouvintes.
Encontramos no ritual do rapper e em sua postura agressiva ecos de Frantz Fanon nas
suas reflexões sobre o colonialismo, quando clama por uma atitude radical de união dos
oprimidos contra a opressão. Num sistema social e econômico, que deslocou o campesino
para as periferias carentes de toda infraestrutura básica das cidades, podemos talvez atribuir
aos cidadãos excluídos da urbanidade nas metrópoles do mundo, o papel que Fanon sugere
que seja desempenhado pelo campesinato nas sociedades coloniais: o de detonadores das
estruturas.
No fogo do combate, todas as barreiras interiores devem fundir-se, a impotente
burguesia de negocistas e compradores, o proletariado urbano, sempre
privilegiado, o lumpenproletariat das favelas, todos devem alinhar- se com as
posições das massas rurais, verdadeiro reservatório do exército nacional e
evolucionário; nessas regiões cujo desenvolvimento o colonialismo
deliberadamente estancou, o campesinato, quando se revolta, logo aparece como a
classe radical: ela conhece a opressão nua, sofre muito mais que os trabalhadores
das cidades e, para impedi-la de morrer de fome, é preciso nada menos do que uma
explosão de todas as estruturas. (FANON, 2005, p.27)
O rap não nasceu da passividade. Por historicamente conhecê-la, o rapper fez dela sua
antítese: a interferência de seu discurso na consciência humana de ser de questionamento
social, ruptura de convenções, reivindicação de direitos e liberdade de ser. Nesse sentido, o
rapper é um ator de seu tempo.
6.3 O rap no Brasil
No Brasil, o movimento hip hop chegou no início da década de 80 por intermédio das
equipes de baile, das revistas e dos discos vendidos na rua 24 de Maio, em São Paulo. Os
pioneiros do movimento, que, inicialmente, dançavam o break, foram Nelson Triunfo, depois
Thaíde & DJ Hum, MC/DJ Jack, Os Metralhas, Racionais MC's, Os Jabaquara Breakers, Os
Gêmeos e muitos outros. Estes personagens se reuniam para dançar na rua 24 de Maio, no
centro da capital paulista, mas eram vistos como perturbadores da ordem pública e foram
57
perseguidos por lojistas e policiais. Em função desta pressão que era de ordem tanto
psicológica quanto física, pelas agressões se transferiram para a praça da estação do metrô,
em frente ao Mosteiro de São Bento, e permaneceram. Houve, no início, um período de
divisão entre os breakers e os rappers: os primeiros continuaram na São Bento e os outros
foram para a Praça Roosevelt, também no centro da cidade.
A prática do rap, a princípio chamado de "tagarela", ascende no cenário das
manifestações urbanas e os breakers também acabam formando grupos de rimadores. Em
1988, foi lançado o primeiro registro fonográfico de rap nacional, a coletânea "Hip Hop
Cultura de Rua", pela gravadora Eldorado. Desta coletânea participaram Thaíde & DJ Hum,
MC/DJ Jack, Código 13 e outros grupos iniciantes.
Crescendo dentro de seu espectro de produção, o movimento do rap no Brasil começa a
tomar corpo, e, ao ser divulgado espontaneamente entre seus ouvintes da periferia, torna-se
fenômeno do mercado fonográfico. Aparece na mídia, espalha-se pelo país e transforma-se
num estilo disseminado principalmente entre a juventude mais engajada nas questões sociais
da nação. Mas o crescimento do rap não foi um fenômeno isolado, a ser entendido
simplesmente como uma manifestação artística, uma nova moda que surgiu e teve seus
adeptos.
Nos anos 70, o Brasil viveu o chamado “milagre econômico”, fruto dos
encaminhamentos dos projetos políticos/administrativos oriundos do golpe de 1964. Se a
nação era redesenhada e redefinida por novos critérios de “progresso”, foram também
reenquadradas as questões sociais num outro parâmetro, que gerou um estado de discrepância
nos critérios de acumulação de riquezas e de extrapolações da miséria. Assistiu-se, então, ao
espetáculo da pauperização e espoliação, que se arrasta até hoje.
Pauperização e espoliação são as matérias-primas que potencialmente alimentam os
conflitos sociais: o Estado é o agente perverso do drama social. O crescimento vertiginoso da
economia muda o quadro das divisões de classe, forçando a migração da população do campo
para a cidade, inflando o espaço urbano, transformando a tessitura das cidades com
investimentos na implementação do transporte público que levou para bordas distantes
aqueles de menor valia moldando as chamadas metrópoles do subdesenvolvimento
industrializado e seus cidadãos de terceira classe, e com eles os conceitos de subcidadania e
exclusão social. Segundo Lúcio Kowarick (2000, p.10):
(...) a subcidadania é um processo político que produz uma concepção de ordem
estreita e excludente (...) que se manifesta na irregularidade ou clandestinidade
face a um ordenamento jurídico-institucional que, ao reconhecer a realidade
58
socioeconômica da maioria, nega o acesso a benefícios básicos para a vida nas
cidades. A condição da subcidadania abre espaço, por outro lado, a que se
construa no imaginário social o diagnóstico da periculosidade: o morador do
cortiço, da favela ou do loteamento clandestino por residir fica reduzido à
condição de um marginal ou bandido.
Este quadro dramático se desenvolveu com vigor durante a década de 70, juntamente
com as percepções que ele implementava. Como era de se esperar a situação demandou
movimentos de ação contrária a este quadro, e foi neste período que eclodiram as lutas
urbanas.
Nos anos 80, com a conscientização e ação dos movimentos populares, políticos e
sindicais, a nação instalada uma abertura política que deu início a muitas iniciativas
reivindicatórias de melhorias para diminuição do caráter excludente das condições de vida,
em especial da classe operária e dos moradores de periferia.
É justamente neste período que surge em São Paulo - a mais opressiva das nossas
cidades - o movimento rap na subúrbia brasileira, a princípio ainda como uma mimetização
do estilo americano, mas, a seguir, fomentado pela situação do cotidiano depauperado de seus
atores, torna-se um grito insuflado pela consciência da insubordinação. Alastrava-se um
sentimento de oposição e de revolta, experimentava-se formas variadas de resistência e de
reivindicaçõesfragmentadas ou parciaismas que muito iriam contribuir para o caráter de
desobediência civil que questionava a ordem instituída. Nesse contexto, o rap se transforma
então, num território de organização popular, e o cidadão rapeiro emerge assumindo os seus
direitos e deveres de participação na construção de uma nova sociedade. Não mais as
microvidas, não mais a moradia em zonas de alto risco, não mais a banalização da violência
cotidiana, não mais as consciências soterradas.
O estudo “Gangues, Galeras, Chegados e Rappers” (ABRAMOVAY, Miriam, et
al.,1999) mostra a juventude suburbana como a maior vítima das transformações da vida na
periferia das cidades brasileiras. Situando a pesquisa nas cidades satélites de Brasília, os
diferentes colaboradores demonstram como a falta de oportunidade, assistência e escolaridade
dirigem o jovem para uma vida de transgressões da ordem social básica, mesmo que este
caminho seja o da contravenção criminal, agrupados em turmas que se organizam através de
regras próprias: as gangues, as galeras e os chegados. Até aí, sem surpresas, que temos
plena consciência disto na atualidade desde novo século XXI, assim como temos
conhecimento que a maioria destes contraventores são negros ou pardos, repetindo a regra
geral da distribuição das raças nos mapas urbanos nacionais. O que queremos ressaltar é que
nesta estratificação espontânea dos movimentos das gangues suburbanas, os rappers se
59
destacam como um destes grupos, e são exatamente eles o agrupamento que, segundo Miriam
Abramovay (1999, p.135):
(...) não se dedica à prática de transgressões, não adotam rituais de admissão e
ingresso, não possuem qualquer tipo de arranjo hierárquico, não possuem chefe,
não enfrentam dificuldades de saída (do grupo). (...) Os rappers pensam no futuro,
não exatamente por meio de um projeto, mas lembrando o papel importante das
gerações futuras e suas responsabilidades. Eles falam em nome de uma geração
sem voz, periférica, estigmatizada, denunciando de maneira crua a realidade em
que vivem seus problemas locais, e expressam a sua revolta contra a ordem
estabelecida e um ‘destino’ de contínua exclusão, que parece predeterminado.
6.4 A performance do rapper
O rapper é um artista performático. Ele usa seu corpo como parte do discurso artístico
que propõe. Esta atitude coreográfica remete a duas referências: a primeira delas à récita
poética na Grécia antiga, onde o envolvimento do recitador com o seu público era acrescido
de uma coreografia desempenhada juntamente com a fala; e a segunda seria a tradição dos
recitadores africanos, os griots, que nunca separaram o discurso da coreografia performática.
No livro O vão da voz, de Terezinha Taborda Moreira (2005), encontramos a seguinte citação
de Zumthor que contribui conosco:
Não podemos esquecer o laço funcional que liga a voz e o gesto. Walter
Benjamin (1992), em suas investigações sobre a origem da linguagem, chamava
nossa atenção para o fato de que a fala é apenas uma forma de um instinto animal
fundamental: ‘o instinto de um movimento expressivo mimético através do
corpo’(p.226). Benjamin num único e mesmo poder mimético, as raízes da
expressão falada e da expressão gestual. Ambas projetam o corpo no espaço da
performance. Esta dá-nos conta do fato de que ‘uma atitude corporal encontra seu
equivalente numa inflexão de voz, e assim vice-versa, continuamente (ZUMTHOR,
apud MOREIRA, 2005, P.167-167).
Com esta citação, reforçamos o caráter de interatividade do rapper com seu público.
Através de uma gestualidade que potencializa seu falar, ele reproduz, com o seu corpo,
posturas retiradas das cenas de agressividade vivenciadas no seu cotidiano, das atitudes de
imposição de poder, como as poses humilhantes exigidas pelos policiais em suas revistas em
público, à procura de armas ou drogas. Esta “aparição” corporal do recitador é captada pela
percepção da platéia e se constitui num gesto inaugural que vai fixar as coordenadas de seu
discurso poético, repercutindo no público ouvinte com desdobramentos significativos da
mensagem contida no texto. Moreira ao expressar-se sobre a atuação e o papel desempenhado
pelo narrador africano, no caso em Moçambique, espelha claramente no nosso entendimento,
onde se fundamenta a atuação pública do rapper durante a sua récita.
60
Os movimentos da dança são encadeados pela narração, que pode ser interpretada
como além de uma linguagem. O corpo coletivo da comunidade espacializa o som
do tambor através das assonâncias e aliterações sugeridas na cadência rítmica das
palavras. Musicaliza-se. Torna-se canto na sua própria materialidade. O efeito
icônico dessa musicalidade possibilita-nos visualizar uma dança coletiva.
Governando o espaço, o corpo coletivo que dança é uma configuração da vida, cuja
duração na performance permite-nos fixar a própria experiência da dança
tradicional moçambicana em sua ação de revelar o reprimido, ou seja, a cultura e
religião moçambicanas subjugadas por séculos de colonialismo. (MOREIRA, 2005,
p. 172)
As representações arquetípicas são as mesmas, já que a origem do rap, na Jamaica ou na
América, era grito de revolta contra um sistema centenário de repressão e racismo, dos
tempos vividos sob o jugo do colonizador.
O rapper dialoga com seu público, seja na atuação de palco, seja na audição ou leitura
de seu texto. Ao criar o ambiente de interação entre o ouvinte e o falante, o diálogo cria e
enfatiza o ambiente da enunciação, como nos informa Bakhtin (1997, p.236) Toda
enunciação é um elo na cadeia do discurso comunicativo”. Comunicando-se com seu ouvinte,
o recitador cria uma interlocução, a ele permitindo penetrar no seu universo e com ele
interagindo. O ouvinte/leitor do rap se sente representado pelo cantor/escritor e um se torna o
outro, assunto tratado no Anexo F. Nesta interação simbólica, toda a “invisibilidade” do
personagem periférico, toda sua condenação diaspórica no meio social, se transforma numa
visibilidade pública, num reconhecimento do “outro”, da sua “outridade”, e esta se dissolve
num outro permeável”. No momento da atuação performática do rapper desaparece nos
indivíduos atores do público a sensação do exílio, do não-pertencimento, da disjunção, do
deslocamento, do sentimento de ausência no mundo; enfim, o sentimento de fragmentação de
sua identidade. O rapper traz à sua platéia, na sua atuação como artista, como colocado por
Chen no livro Figurações da Alteridade, uma abertura:
(...) que a coloca fora dos determinismos estanques e dos estereótipos e a faz
participar de um pensamento pós-moderno que valoriza a mobilidade de si e
questiona a noção de uma identidade formada unicamente a partir de critérios de
raça, lugar, de origem ou de gênero sexual. Na relação a si mesmo soi), pode-se
criar, à maneira de Ying Chen, um tornar-se outro: ’Começo hoje a me ligar a uma
outra paisagem em que me sinto mais em casa. Meu verdadeiro lar está onde me
torno aquilo que quero ser. (CHEN, 2004, apud FIGUEIREDO, 2007, p.20)
Jorge Glusberg, no seu livro A Arte da Performance, destaca o performer como agente de
transformação e de sua eficácia do uso que faz dos códigos abertos que dão à ele liberdade de
expressão gestual e comportamental. Nas palavras do autor “devemos enfatizar o seu papel
ativo e consciente”. (2009, p.78)
61
7 – RAP E LITERATURA
Aut prodesse volunt aut delectare poetae
Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci,
Lectorem delectando pariterque monendo.
18
HORÁCIO
7.1 Doce e útil
Nossa epígrafe nos coloca frente a um possível resumo da história da estética, cuja tese
e antítese, fruto desta dialética, seria o dulce e o utile, ou seja: a poesia é doce e útil. Se
olharmos separadamente para ambos os adjetivos, teremos a representação de uma noção falsa
do que seria a função da poesia. A concepção de que a poesia é prazer, conflita com a
concepção de que ela seria instrução. Talvez esteja embutida nesta concepção a arte como
“lúdica” e a arte como “trabalho”. Entretanto, nenhum destes conceitos pode e deve ser aceito
isoladamente.
Se nos afirmam que a poesia é “lúdica”, divertimento, sentimos que não se fez justiça
nem ao talento (cuidado, habilidade ou planejamento) do artista, nem à seriedade e
importância do poema; mas se nos dizem que a poesia é “trabalho” ou “artesanato”, sentimos
que foi praticada uma violência contra a sua alegria, e contra aquilo que Kant chamava sua
“gratuidade”. Devemos considerar a função da arte de modo a fazer justiça a um tempo ao
dulce e ao utile, como nas palavras de René Wellek e Austin Warren:
Ser “útil” é equivalente a uma “não perda de tempo”, não uma forma de passar o
tempo, e sim algo a que devemos dar uma séria atenção. Já o “doce” equivale a um
“não aborrecimento”, algo que traz em si uma compensação. (WELLEK, WARREN,
1967, p.74)
18
Os poetas querem ser úteis ou deleitar /obteve todos os votos /quem uniu o útil ao agradável ao mesmo tempo/
deleitando e instruindo o leitor. http://www.latim.ufsc.br/986ED7F3-3F3A-4BC2-BBE3-A3514D872AC1.html
62
Podemos usar este duplo critério como base para a definição da literatura no seu todo ou
não seria este um critério que remete a um certo tipo de leitor, de uma determinada classe
social, e a um certo estilo literário?
Pode haver dúvidas quanto ao fato de a literatura subliterária (textos da escrita cotidiana
das mídias impressas, a revista popular, etc.) ser “útil” ou instrutiva”. Ela é comumente
considerada como uma simples evasão” ou “divertimento”. Mas a pergunta deve ser
respondida pensando-se nos leitores subliterários e não nos leitores da considerada “boa
literatura”.
É provável que toda arte seja “doce” e “útil” ao seu público apropriado: que aquilo que
ela apresenta articulado seja superior aos sonhos ou reflexões pessoais desse público; que
prazer a esse mesmo público pela habilidade com que articula aquilo que ele considera
idêntico ao seu próprio sonho ou reflexão e pelo alívio que ele experimenta através desta
articulação.
Quando uma obra literária desempenha sua função com sucesso, as duas partes, o prazer
e a utilidade, fundem-se, como ressaltamos na citação:
O prazer da literatura, é preciso frisar, não é uma preferência dentre uma longa
lista de possíveis prazeres, mas um “prazer superior”, pois é prazer numa esfera
superior de atividade, ou seja, na contemplação não-aquisitiva. .(WELLEK,
WARREN, 1967, p.76)
Das concepções da arte como descoberta ou intuição da verdade, devemos distinguir a
concepção da arte, mais especificamente da literatura como propaganda, ou seja, a
concepção de que o autor não é o descobridor, mas o fornecedor persuasivo da verdade.
Analisemos a palavra “propaganda” e seu contexto.
O termo, na linguagem popular, é aplicado somente às doutrinas consideradas
perniciosas, espalhadas por homens que não merecem nossa confiança. Se entendermos o
termo como normalmente é aplicado “esforço consciente ou não para influenciar os leitores
a participar da atitude de alguém perante a vida” torna-se plausível a afirmação de que os
artistas são propagandistas ou deveriam sê-lo, ou, ainda, que os artistas sinceros e
responsáveis são moralmente obrigados a serem propagandistas. Segundo Harold
Montgomery Belgion (1892-1973), o artista literário é um “propagandista irresponsável”.
Quer dizer que o autor adota uma concepção ou uma teoria de vida. O efeito da obra é o de
63
persuadir o leitor a aceitar a sua concepção ou teoria. Essa persuasão é ilícita. Ou seja, o leitor
é levado a acreditar em alguma coisa, e este consentimento é hipnótico: a arte da apresentação
seduz o leitor. Nem tanto.
Existem os “propagandistas responsáveis”. Existe uma correlação entre a coerência
artística e a coerência filosófica. A visão do mundo que o artista responsável articula
perceptualmente não é simples, como muitas visões que obtêm sucesso como “propaganda”; e
uma visão de mundo adequadamente complexa não pode, por sugestão hipnótica, induzir à
ação prematura ou ingênua.
A partir desta postura podemos conduzir nossas considerações sobre as “funções” do
texto literário e chegarmos a um ponto que, especificamente, nos interessa: a catarse.
A função da literatura, alguns dizem, é nos aliviar tanto autores como leitores da
pressão das emoções. Expressar emoções significa libertar-se delas. O espectador/autor de um
romance ou tragédia, posicionado em qualquer uma das pontas da pena, experimenta
libertação ou alívio. Suas emoções encontram um foco, e o espectador-autor ao fim de sua
experiência estética, encontra a paz de espírito.
Mas isto é função da literatura? Ela alivia ou incita as emoções? Platão, que condenava
o teatro pelas emoções que suscita no público, disse que a tragédia e a comédia “nutrem e
saciam nossas emoções, quando nós deveríamos secá-las”.
Haveria um tipo de literatura estimulador e outro tipo catártico, ou deveríamos antes
distinguir entre grupos de leitores e a natureza de sua reação?
Em se tratando do rap, nossa idéia é tentar dar uma resposta possível a estas perguntas
propondo uma abordagem da produção de letras de rap. A arte que se perpetua e se
transforma em história é aquela que se renova nas seqüentes perguntas que desperta nas
gerações que se seguem à sua feitura. Não vamos nem queremos fazer uma análise
literária restritiva, mas defender procedimentos ou justificar novos encaminhamentos da
escrita poética. Não se trata aqui de desenhar um quadro de observadores/ juízes de um grupo
de artistas que canta suas poéticas rudes enquanto desfilamos as nossas elegâncias. O que
propomos é discutir esta voz impregnada do falar popular que, além de seu caráter estético é
também um documento de leitura histórica de uma época, mostrando, através de nossa
abordagem, que as comunidades periféricas estão plenas de expressividade.
7.2 Remando contra a maré
O rapou pelo menos sua vertente reivindicatória de remar contra a maré. Porque
este é o seu designo e este é o seu papel, porque é fundamentalmente uma linguagem
64
corrosiva, que perturba, assim como qualquer outra forma de protesto, de intervenção. O
rapper chateia e perturba, porque, quando se diz algo perturbador e que incomoda num
ambiente público onde ecoa a força da sua mensagem, consegue-se ser mais eloqüente, e cria-
se mais impacto, e também uma imagem simbólica em torno do seu protesto. Isso é o que
força e representatividade ao rap, como registra o autor e rapper português Contador: “Tu
podes dizer que isto é tudo uma merda, ninguém te ouve, mas se o disseres com uma música
por trás que cria um ambiente à volta das tuas palavras, toda a gente vai prestar-te atenção.”
(CONTADOR, FERREIRA, 1997, p.11)
Tentar perceber o rap é antes de tudo tentar entender as suas origens, e quando falamos
em origens do rap falamos, com certeza, das estruturas de narrativas orais: o xamã, o pajé, o
repentista. E em se tratando da tradição africana da oralidade, falamos dos griotscontadores
de histórias mas se ficássemos nisso estaríamos apenas enunciando um processo criativo
presente em todas as formas culturais resultantes da afro-diáspora. Paul Gilroy destaca o papel
destas produções culturais na definição do negro americano: “The culture and politics of black
América and the Caribbean havebecome raw material for creative process wich redefines
what it means to be black (...) Black culture is actively made and remade.” (GILROY, apud
BAKER JR. 1993, p.80)
O griot e suas diferentes denominações encontra-se nas formas culturais/musicais
nascida em locais onde a presença africana se faz notar, fruto do comércio de homens e almas
que tornaria diferente a paisagem humana e cultural de territórios como a América do Norte,
Caribe e Brasil. Esta figura mítica é notada em parte da produção cultural que tem por base a
oralidadea palavra –, em especial quando esta se conjuga com o ritmo do jazz ao soul, do
reggae à MPB, passando pelo blues, o funk e, naturalmente, o rap. No seu livro “Savannah
Syncopators, o autor inglês Paul Oliver descreve o griot como:
Figura comum nas tradições orais de vários povos africanos e sendo um dos
símbolos representativos de todos os narradores, dos que contam contos, cantam
décimas, sábios, avós, mães e todos estes personagens cênicos ou não, que, em
muitas sociedades são depositários de histórias, de testemunhos ou de tradições que
eles contam. (OLIVER, 1970, p.78)
19
O rap, na sua componente vocal ou expressiva a palavra, a voz, a poesia de rua
enquadra-se nesta herança ancestral. Mas o rap vai beber essa influência claramente nas
práticas orais mais recentes, existentes nas comunidades negras, nas ruas dos territórios
mestiços urbanos. A poesia de rua é prática oral onde se encontram ecos das histórias
19
Tradução do autor
65
suburbanas, particulares ou gerais, anedotas, desafios, emboladas, repentes, tudo que passa
por uma composição de diálogo rimado. Mas a sua grande característica distintiva é a dicção:
o rap é poesia vernácula feita no calão da rua. Conta-se de modo fluido histórias onde
habitam os pobres, os marginais, a polícia, as prostitutas, o jogador, o traficante, o político, o
evangélico, todos protagonizando a crueza de uma vida desesperançada, talvez tendo na sua
récita rapeira a única luz de apelo conscientizante.
O rap é um gênero musical questionador, que se movimenta nas águas conturbadas do
politicamente incorreto. Seu discurso utópico/distópico o torna refratário a alguns setores da
sociedade; torna-o praticamente opaco, pois canta a selva urbana, o homem negro à procura
da dignidade escamoteada, a justiça ausente e a inadimplência governamental para com os
exilados periféricos. Junte-se a isto uma estrutura literária que, se tem como base a métrica
poética, assimila de modo contundente o vocabulário centrado no gueto – palavrões inclusos –
para fazer seu apelo político de revolta e tomada de consciência. Falar sobre o rap implica não
perder a noção de que ele se insere num contexto social e cultural particular: o rap é
indissociável do espírito comunitário que rege os fundamentos do movimento da cultura
negra.
7.3 Poesia
Num mundo de culturas que se querem “estáveis”, o poeta do rap politizado rompe com
as estruturas do establishment e marca seu território. Neste terreno pisa com firmeza, pois
sabe que os limites de sua constituição como sujeito literário vem da transfiguração da sua
linguagem, matéria bruta subjugada pela poiésis. René Welleck e Austin Warren fazem a
seguinte observação sobre a limitação do que é o literário:
O problema é que considerar da ordem do literário, ou seja, da literatura de
imaginação, de criação estética, obras, enquadradas nos gêneros poesia e romance,
que não foram criadas através de uma forte imaginação criadora e que não
expressam elaboração da linguagem, e que por isto não conseguem arrebatar os
sentidos e a imaginação e sequer atendem nossas exigências estéticas, somente os
gêneros poesia e romance, estaríamos alijando do nosso arquivo cultural
monumentos literários em forma de cartas, biografias e congêneres. (WELLECK,
WARREN, apud LINS, 2007, p. 165)
Podemos considerar que é que se situariam as literaturas fronteiriças, as literaturas
“marginais”, nascidas na e da necessidade da escritura.
Ante o aparecimento das literaturas marginais, confrontamos nosso rosto esculpido pelo
cinzel da “alta cultura” com o rosto daqueles que querem contar sua história ou a história
66
coletiva de forma direta e simplista, agressivamente comunicativa, e que iluminam o caos
com alguma esperança dos atos emancipatórios que comporta. Estes cidadãos penetraram sem
serem convidados no banquete da expressão criativa, apesar de serem rodapés quase invisíveis
no imenso palácio da civilização, pessoas comuns que vivem a luta do cotidiano porque
clamam por tecer os sentidos contemporâneos num conceito democrático mais amplo;
desejam reconstituir suas histórias de vida num cenário das diferenças culturais que se
assinam nas múltiplas oraturas das sabedorias humanas da sobrevivência, das múltiplas
reinvenções do Estado moderno, das estratégias emergentes na cidade ou no campo, das
respostas criativas de todas as faixas sociais frente à indignidade e à infelicidade.
Para estes novos manipuladores da palavra chula” sua língua é sua pátria, essa língua
que está legitimada como pátria, mátria e frátria que vai de Caetano e Mia Couto, a
Fernando Pessoa e Guimarães Rosa e que revela os ecos profundos do modo de ser, do
modo de “se ser”, que não diz o que eletivamente se é, como anuncia o que se gostaria de
ser: o sonho perante a adversidade histórica, o mítico espelho do desejo coletivo que se
derrama na poética.
O rapper, imerso na promiscuidade, na insalubridade e na periculosidade de sua rotina,
descobre que muitos são os caminhos da interpretação, mas que eles vão desembocar na
condição humana. Sua dor recrudesce na rua, no cotidiano, no gesto da oratura ou no gesto da
literatura. O rapeiro fala por seus semelhantes, é porta-voz da “outridade”.
Transitando nas zonas obscuras da intertextualidade coletiva, o poeta do momento
recolhe sentidos, capta o recado da comunidade do qual é porta-voz e fala e escreve, a partir
deste contato imediato com o contexto social no qual está inserido. Em 1974, Barthes
falava da riqueza do ato da fala e sua cuidadosa transcrição para o ato de escrita:
“Embalsamamos aquilo que dizemos como faríamos a uma múmia, de modo a torná-lo
eterno. Pois é preciso que duremos um pouco mais do que a nossa própria voz; é evidente que
é preciso, pela (...) escrita, inscrevermo-nos em algum lugar.” (BARTHES, 1975, p.3)
A escrita é, pois, tirada do quintal doméstico, sem os refinos da escritura. A palavra do
rapper é vívida, dinâmica, imbuída da plasticidade dos vocábulos, da auto-recriação da
língua, da flexibilidade das sintaxes. Pela palavra cantada e pela lírica da escrita o poeta
diaspórico fala. Sua fala, seu discurso, cria um terreno protegido e demarcado pela palavra
que, como disse Paulo Lins, no seu livro Cidade de Deus. (LINS, 2002, p.21): onde falha a
fala, fala a bala”.
7.4 Lendo raps
67
Selecionar alguns raps para fazer comentários neste trabalho que ora desenvolvemos
não foi tarefa das mais fáceis. Primeiro veio à tona a enorme quantidade de letras perpetradas
por estes eloqüentes artistas e registradas num sem número de discos que circulam no
mercado oficial e paralelo; a seguir, qual critério adotar para pinçar exemplares que pudessem
ser os mais significativos, que o universo do rap possui várias vertentes estilísticas; e por
fim, qual enquadramento dar aos comentários, no âmbito da escrita literária.
Optamos por selecionar apenas algumas obras dos rappers que fazem parte da
história do gênero e nelas centrar nossos comentários, mantendo suas grafias originais para
reforçar o caráter de lugar político do discurso. Procuramos traçar uma rota de leitura que
poderá ser sistematizada por aqueles que se identificarem com nosso campo epistemológico.
Desta forma, selecionamos no trabalho de três grupos de rap: Racionais MCs, Câmbio Negro,
e GOG exemplos da produção hoje centrada em São Paulo letras significativas que
“conversam” com aspectos literários, sociais e diaspóricos, que são o recorte a ser
desenvolvidos por nós.
Seguindo o livre pensar, associado às referências culturais literárias do nosso acervo
pessoal, iniciamos nossa leitura, não sem antes citar Shelley (1792-1822), que afirmou que
“todos os poemas, do passado, do presente e do amanhã são episódios de um único poema,
erigido por todos os poetas do mundo”. Estendemos para o nosso foco a metalinguística
afirmação de Shelley, trazendo-a para o nosso presente histórico no qual se inscreve o rap,
porque pensamos que todos os raps fazem parte de um único rap.
7.4.1 Dinheiro na mão
Autoria: Genival Oliveira Gonçalves (GOG)
Juventude de atitude minha voz está no ar/
trutas e quebradas da ponte pra cá/
a cidade é nossa, rap é o som/
periferia tem seu lado bom/
cérebro a milhão, ritmo e poesia/
febre periférica, epidemia/
a bomba que explode, vai explodir/
vocês sabem quem eu sou?Careca sim e dai!?/
vivão e vivendo na fé de volta a cena/
roubando a cena preto do gueto, problema/
você sabe quem eu sou?/
soldado do morro, traficando informação um grito desocorro/
eu choro, Jesus chorou lágrimas de sangue/
sangue, suor e lágrimas chega de bang bang/
68
um pouco mais de malandragem sangue B/
razão pra viver acredite você preste a atenção sei que os porcos
querem meu caixão/
telefonemas anônimos, tiro de oitão tô ouvindo alguém me chama/
não deixem eles me levar só Deus pode julgar/
prepare-se pois dias melhores virão/
das trevas a luz, ressurreição/
nessa estrada todos são manos assim que se fala vários manos/
o rap treme o chão a verdade que liberta/
só os sangue bom cara bonita não interessa/
click-clack agora a casa cai/
baseado em fatos reais a vida é um desafio tem que ser sofredor/
sai da reta, idéia de caô caô /
quebrando as algemas do preconceito/
nem Cristo agradou, não sou perfeito; madrugada de sexta, noite
infeliz/
a vida por um triz/
disparo o principio das dores/
apenas mais um velório sem flores/
o ter: crime vai, crime vem/
o barato é loco, click-cleck-bang/
terceiro mundo terra sem lei/
fora da lei do amanhã não sei,/
do pesadelo acordei./
O rap é compromisso nova combinação/
paz no coração, sem drogas, sem canhão/
gladiadores por um pouco de lei/
do microfone: a justiça, a lei /
O rap é compromisso nova combinação/
paz no coração, sem drogas, sem canhão/
gladiadores por um pouco de lei/
do microfone: a justiça, a lei/
Só os fortes, um brinde aos guerreiros/
histórias da vida, relatos de um guerrilheiro/
aviso ao sistema, nós somos pesados/
nosso inimigos, tempo esgotado/
hoje eu vou me dar bem seja como for/
a lei do opressor, o jogo bruto é o terror/
filme de terror, destruição, lei do cão/
justiça feita com as próprias mãos/
atitude terrorista sem limites/
fim de jogo 2x0 para a elite/
em nome da honra o homem estragou tudo/
direitos conquistados, seu futuro/
a noite não se dorme aqui, UTI/
ninguém tá brincando aqui, vai subi/
violência gratuita, dinheiro maldito/
me diz do que vale tudo isso/
terceiro mundo, nervos a flor da pele/
campos de batalha, arte da guerra na febre/
69
drogas caminho sem volta, queda, decadência/
auto valorização saída de emergência/
apesar dos pesares não pare minha oração/
verdade relatada histórias do coração/
minha missão, minha versão, minha inspiração/
libertação, guarde minha voz no coração/
ó deus um bom lugar a todos meus manos/
paz nas quebradas, calor humano meu mano/
como vai mano? um sonho latino americano/
sei que me entende aprenda a jogar o jogo/
teste de sobrevivência, cena do loco/
artistas ou não o show continua/
levanta e anda a vida escola da loucura/
você tem que acreditar, basta acreditar/
pode chegar quero te encontrar/
pontos da periferia o senhor é meu guia/
formula mágica da paz, a chave da vida/
a verdadeira malandragem o exemplo tá ai/
se o mundo inteiro pudesse me ouvir/
quebra-cabeça bem bolado, viajem na rima/
vai na paz, vamos dar a volta por cima/
O rap é compromisso nova combinação/
paz no coração sem drogas, sem canhão/
gladiadores por um pouco de lei/
do microfone a justiça, a lei/
O rap é compromisso nova combinação/
paz no coração sem drogas, sem canhão/
gladiadores por um pouco de lei/
do microfone a justiça, a lei/
O rap é compromisso!/
A leitura da letra desta música do rapper Genival Oliveira Gonçalves, o GOG, original
de Sobradinho, cidade satélite de Brasília, radicado em São Paulo, pode nos servir como uma
iniciação à estrutura do rap. Nela, encontramos a presença de elementos da tradição poética,
tais como a métrica, a rima, as aliterações, as assonâncias. E também, elementos que
estavam presentes na poética da modernidade, de Manuel Bandeira, de Drummond, e Vinícius
de Morais, tais como o uso da linguagem coloquial, de gírias, de onomatopéias, a intensidade
no uso das palavras. Esta sistemática de redação do texto será uma constante nos trabalhos
que selecionamos são parte inseparável do discurso do rap. Entretanto, vamos nos deter na
análise do conteúdo das letras do rap, ou seja, vamos nos interessar pelo desdobramento dessa
poética particular como produtora de um pensamento diferenciado dirigido a um público
específico. Nisto a letra de Dinheiro na mão é profícua. Separamos este primeiro texto em
70
blocos no intuito de formalizar a leitura. Na sua forma original a escrita é corrida tal qual a
sua recitação.
Juventude de atitude minha voz está no ar
trutas e quebradas da ponte pra cá
a cidade é nossa, rap é o som
a periferia tem seu lado bom
cérebro a milhão, ritmo e poesia
febre periférica, epidemia
a bomba que explode, vai explodir
vocês sabem quem eu sou?
careca sim e dai!?
vivão e vivendo na fé de volta a cena
roubando a cena preto do gueto, problema
você sabe quem eu sou?
soldado do morro, traficando informação um grito de
socorro
Primeiro, lembramos o papel do rapper como “contador de histórias”: MC inicia seu
discurso em tom de convocação, delimitando também o seu território de atuação. Ele a
cidade dividida em partes e determina que a periferia é a terra do rap e que ela comporta
gente de bem, cabeças criativas, poesia contagiante e febril, e nesse sentido, sua fala é
performática pois incide positivamente sobre a baixa auto-estima daqueles a quem se dirige, e
ao se apresentar, lança mão de uma fala culturalmente pertinente no Brasil ao discurso dos
arrogantes das classes privilegiadas quando interpelados:Você sabe quem sou eu?”
Ele inicia “seu” auto-retrato usando as imagens estereotipadas atreladas ao homem
negro suburbano, que é visto como “problema”, “preto do gueto”, “soldado do morro”,
“traficante”, mas insere nelas um sentido que reverte estes significados, recontextualizando-
os. Ao mostrar-se desta forma como um outro personagem, cujo espaço de vida e de fala é o
da fé, o rapper, no exercício de sua função artística, ao mesmo tempo em que desmistifica
essas imagens estereotipadas, coloca-se como uma espécie de novo messias, identificando-se
a Jesus:
eu choro, Jesus chorou lágrimas de sangue
sangue, suor e lágrimas chega de bang bang
um pouco mais de malandragem sangue B
razão pra viver acredite você
preste a atenção sei que os porcos querem meu caixão
telefonemas anônimos, tiro de oitão
tô ouvindo alguém me chama
não deixem eles me levar só Deus pode julgar
71
prepare-se pois dias melhores virão
das trevas a luz, ressurreição
nessa estrada todos são manos
assim que se fala vários manos
o rap treme o chão a verdade que liberta
só os sangue bom cara bonita não interessa
click-clack agora a casa cai
baseado em fatos reais
a vida é um desafio tem que ser sofredor
sai da reta, idéia de caô caô
quebrando as algemas do preconceito
nem Cristo agradou, não sou perfeito
Neste bloco desponta o aspecto contrastante da vida crua e violenta do habitante das
periferias e as redenções prometidas pela justiça divina e pelo rapper. O discurso redentor
pela conscientização, tanto do artista, quanto do público rapeiro, é característica comum nas
letras e destaca o perfil messiânico deste tipo de rap. É interessante observar que ao
expressar-se na primeira pessoa no verso “sei que os porcos querem meu caixão...tô ouvindo
alguém me chamar não deixem eles me levar...” o rapper se identifica com o jovem
marginalizado e, ao mesmo tempo, com Jesus feito prisioneiro e morto pelas mãos dos
homens. E no verso seguinte dirige-se novamente através do tempo imperativo ao seu público
ouvinte, prometendo-lhe a esperança e a ressurreição:
prepare-se pois dias melhores virão/
das trevas a luz, ressurreição
O trecho seguinte nos serve para exemplificar como a poética da escrita destes
personagens retira de suas dores pessoais (e das dores coletivas) mais íntimas a beleza
transcendente, usando a liberdade para falar liricamente da presença cotidiana da morte, de
sua desesperança, do seu “aqui-agora” terceiro-mundista, e do seu futuro incerto.
madrugada de sexta, noite infeliz
a vida por um triz
disparo o principio das dores
apenas mais um velório sem flores
o trem: crime vai, crime vem
o barato é loco, click-cleck-bang
terceiro mundo terra sem lei
fora da lei do amanhã não sei,
do pesadelo acordei.
72
Para o habitante dos territórios depauperados, a percepção do tempo, na sua fugacidade
é muito mais presente. Seu convívio com a violência, a ausência de infraestrutura, de
educação lhe um horizonte restrito. Não é gratuita a citação do Terceiro Mundo estar
“excluído das leis do amanhã”.
O refrão, característica da poética da oralidade, é uma descrição do que é o rap e o
rapper, seus objetivos, sua meta, sua função, sua postura, sua sina:
O rap é compromisso nova combinação
paz no coração, sem drogas, sem canhão
gladiadores por um pouco de lei
do microfone: a justiça, a lei
Nele, o perfil do poeta é de um batalhador, de um guerreiro, de um gladiador, mas que,
ao invés de portar o gládio, porta o microfone na mão, figurado como potente extensão da sua
palavra, clamando por lei e justiça: os ecos dos gritos dos escravos ressoam na modernidade.
Só os fortes, um brinde aos guerreiros
histórias da vida, relatos de um guerrilheiro
aviso ao sistema, nós somos pesados
nosso inimigos, tempo esgotado
hoje eu vou me dar bem seja como for
a lei do opressor, o jogo bruto é o terror
filme de terror, destruição, lei do cão
justiça feita com as próprias mãos
atitude terrorista sem limites
fim de jogo 2x0 para a elite
Esta sequência mostra aspectos dicotômicos da postura dos rappers, pois ao mesmo
tempo em que diz que o rap “é paz no coração”, observa-se a presença de vocábulos bélicos,
como “guerreiros”, “guerrilheiro”, “fortes”, e de expressões como “somos pesados” para
referir-se aos rappers; funda o espaço da comunidade dos rappers como espaço de
enfrentamento ao sistema e às elites, assumindo uma posição anárquica expressa no penúltimo
verso “atitude terrorista sem limites”; retoma a instantaneidade do tempo para dizer ao seu
73
público que o tempo es esgotado para as elites, utiliza-se também de palavras do campo
bélico para referir-se às elites: “terror”(repetido duas vezes), “destruição”, “lei do cão”, critica
a ausência do Estado ao falar da “justiça feita com as próprias mãos”, e reivindica para os
rappers e sua comunidade “uma atitude terrorista sem limites”.
É curioso observar o uso de metáforas que remetem ao campo da representação ao
referir-se ao “jogo bruto” das elites como um “filme de terror” que retoma a imagem de
“pesadelo” expressa anteriormentee à luta de classes como um “jogo de futebol”, que se
tornou arena de enfrentamento das “tribos” das cidades, cujo resultado histórico é conhecido
por todos aqueles que os ouvem: “fim de jogo 2 X 0 para a elite”. Cabe ressaltar também a
retomada para si da frase “hoje eu vou me dar bem” que remete a um traço cultural da nossa
identidade, a nossa malandragem, o nosso “jeitinho”.
em nome da honra o homem estragou tudo
direitos conquistados, seu futuro
a noite não se dorme aqui, UTI
ninguém tá brincando aqui, vai subi
violência gratuita, dinheiro maldito
me diz do que vale tudo isso
terceiro mundo, nervos a flor da pele
campos de batalha, arte da guerra na febre
drogas caminho sem volta, queda, decadência
auto valorização saída de emergência
O tom de desesperança surge alavancado pela constatação de uma decadência moral e
espiritual. Os horizontes se encurtam perante o homem.
apesar dos pesares não pare minha oração
verdade relatada histórias do coração
minha missão, minha versão, minha inspiração
libertação, guarde minha voz no coração
ó deus um bom lugar a todos meus manos
paz nas quebradas, calor humano meu mano
como vai mano? um sonho latino americano
sei que me entende aprenda a jogar o jogo
teste de sobrevivência, cena do loco
artistas ou não o show continua
levanta e anda a vida escola da loucura
você tem que acreditar, basta acreditar
pode chegar quero te encontrar
pontos da periferia o senhor é meu guia
formula mágica da paz, a chave da vida
a verdadeira malandragem o exemplo tá ai
se o mundo inteiro pudesse me ouvir
74
quebra-cabeça bem bolado, viajem na rima
vai na paz, vamos dar a volta por cima
Mas o coração do poeta sobrevive. Ele se torna um profeta que canta no deserto. E,
imbuído da única certeza que tem, se apega ao seu fazer poético e rima a esperança que seu
discurso poderá ser ouvido e alterar o rumo de muitos dos seus irmãos. Na voz do rapper,
palavras desgastadas retomam seu poder de eloqüência, incontaminadas pela banalização dos
seus significados. Nos versos do rapper vocábulos como “vida”, “sonho”, “paz”, “oração” e
“coração” palpitam em suas etimologias originais.
Ao entoar pela última vez o refrão, o cantor reafirma seu papel como artista e assume
seu compromisso com a comunidade que representa. Cabe-nos reforçar aqui nossa
compreensão do rap como uma performance literária através da qual o rapper renova o pacto
com o seu público ouvinte a cada audição.
O rap é compromisso nova combinação
paz no coração sem drogas, sem canhão
gladiadores por um pouco de lei
do microfone a justiça, a lei
O rap é compromisso nova combinação
paz no coração sem drogas, sem canhão
gladiadores por um pouco de lei
do microfone a justiça, a lei
O rap é compromisso!
7.4.2 Sub - raça
Autoria: Câmbio Negro
Agora irmãos vou falar a verdade/
A crueldade que fazem com a gente/
Só por nossa cor ser diferente/
Somos constantemente/
Assediados pelo racismo cruel/
Bem pior que fel/
É o amargo de engolir um sapo./
Só por ser preto isto é fato/
O valor a própria cor/
Não se aprende em faculdades ou colégios/
E ser negro nunca foi um defeito/
Será sempre um privilégio/
Privilégio de pertencer a uma raça/
75
Que com o próprio sangue construiu o Brasil/
Sub-raça é a puta que pariu!
Sub-raça sim é como nos chamam/
Aqueles que não respeitam as caras/
Dos filhos dos pais dos ancestrais deles/
Não sabem que seu bisavô como eu era escuro/
E obscuro será o seu futuro/
Se não agir direito/
Talvez ser encontrado em um esgoto de Ceilândia/
Com três tiros no peito/
O papo é esse mermo a realidade é foda/
Não de um bote mal dado senão o câmbio te bota/
Fica esperto racista se liga na fita/
Somos animais mermo/
Se foda quem não acredita/
Sub-raça é a puta que pariu!
Qualquer aferição que se possa fazer sobre este texto do grupo mbio Negro, oriundo
da cidade satélite Ceilândia, em Brasília, e atualmente em São Paulo, passa pela questão
explicitada desde o título da música: o racismo. A condição do negro no Brasil, seu passado
de submissão imposta por um sempre dominante “senhor” e seus desdobramentos são o cerne
do discurso do rapper.
Este texto, escrito de modo contundente, faz um trajeto discursivo que clama pelo
reconhecimento racial e dos valores da cultura negra, explicitando uma série de condições
relacionadas à permanência deste status discriminatório na sociedade brasileira, o de ser visto
como “sub-raça”.
Durante quatro séculos um regime escravagista caçou, espoliou, submeteu às maiores
injúrias físicas e morais, e tentou raspar a identidade de pelo menos quatro milhões de
africanos pertencentes a diversas etnias e regiões, que atravessaram o Atlântico em
verdadeiros “campos de concentração” flutuantes. Quantas vidas se perderam ao longo da
travessia, quantas famílias foram repartidas nos leilões macabros, quantos foram dizimados
pelos castigos inclementes; quantos estupros foram perpetrados, serão perguntas incômodas
na nossa cultura.
Não obstante este quadro terrível, os que lograram sobreviver deram o máximo de sua
força física para cimentar a economia agrícola do Brasil; o melhor do seu refinamento para a
criação da arte brasileira nos seus vários caminhos e formas, e a sua espiritualidade para
moldar o que mais tarde estaria estampado no nosso perfil mais evidente.
Nunca é tarde lembrar que nosso país foi o último a decretar a abolição, e que os
estilhaços da diáspora negra disseminaram novos padrões societários. O período pós-abolição,
76
por sua vez, revelou-se perverso e inconsistente para aqueles que o esperavam para usufruir
dos direitos civis de cidadania. Passou-se então a se desenhar na sociedade brasileira para as
populações de origem africana uma realidade composta de preconceitos, subserviência
atávica, incerteza existencial, despreparo e disputa por um lugar digno na sociedade.
Desenvolveu-se uma cultura de inferiorização do negro, e fomentaram-se na sociedade
aspectos estereotipados que grudaram e permanecem adicionados à sua imagem, à sua cor de
pele. Jean-Paul Sartre escreveu no seu livro Reflexões sobre o racismo: “Um judeu, branco,
entre brancos, pode negar que seja judeu, declarar- se homem entre homens. O negro não
pode negar que seja negro ou reclamar para si esta abstrata humanidade incolor: ele é preto.”
(SARTRE, 1968, p.94)
O rapper confronta esta situação histórica através de seu canto agressivo, chulo, talvez
por acreditar que é essa a linguagem daquele que o oprime. O artista oprimido lança mão
daquilo que acredita ser sua arma mais afiada - a palavra. No livro Fala, Crioulo, lemos o
seguinte depoimento do músico Naná Vasconcelos acerca da importância da conscientização
da população negra:
O que falta no negro brasileiro é a cultura. O negro tem que ler, tem que tomar
conhecimento de uma série de coisas, e então vai saber que não é obrigado a
conviver com a humilhação. A mim ninguém humilha mais, eu não abaixo a cabeça.
O negro precisa acabar com isso, e o que acaba com isso é a cultura, é a
consciência do valor que cada um tem como pessoa acima de tudo. É preciso que o
negro saiba direito quem somos, quem são os nossos heróis. Enfim, o negro precisa
escrever sobre o negro, e ser lido. Lido por todos, independentemente da cor,
porque nessa matéria todos temos muito a aprender. (NANÁ VASCONCELOS, apud
COSTA, 2009, p.54/55)
E essa conscientização, segundo o músico, passa pelo acesso à leitura e à escrita: é
preciso que o discurso sobre o negro seja assumido por ele, e que a sociedade brasileira como
um todo possa tomar consciência da problemática do afro-brasileiro tal como ela é vivenciada
e explicitada por esses atores sociais; ou seja, é preciso revolucionar a cultura do negro e a
necessidade da leitura e do uso da palavra:
O registro escrito do rap traz esta função explicitada no depoimento, mas a publicação
de livros escritos por rappers como Ritmo & Poesia: os caminhos do rap (Antonio Contador),
Sobrevivente (André Du Rap), Favela Toma Conta (Alessandro Buzo), ABC Rap (coletânea
de autores rapeiros), Hip Hop a lápis (coletânea organizada por Toni C.), Falcão: meninos do
tráfico (MV Bill e Celso Athayde) e Cabeça de Porco (MV Bill, Luiz Eduardo Soares e Celso
77
Athayde) exemplificam que o fazer autoral destes artistas produz uma literatura em outro
formato que é lida por leitores afro-descendentes e não afro-descendentes.
7.4.3 O homem na estrada
Autoria: Mano Brown/ Racionais MCs
78
Um homem na estrada recomeça sua vida./
Sua finalidade: a sua liberdade./
Que foi perdida, subtraída;/
e quer provar a si mesmo que realmente mudou, que
se recuperou e quer viver em paz, não olhar /
para trás, dizer ao crime: nunca mais! /
Pois sua infância não foi um mar de rosas, não./
Na Febem, lembranças dolorosas, então. Sim, ganhar
dinheiro, ficar/ rico, enfim. /
Muitos morreram sim, sonhando alto assim, me digam
quem é feliz,/ quem não se desespera, vendo/
nascer seu filho no berço da miséria./
Um lugar onde só tinham como atração, o bar, e o
candomblé pra se tomar a benção./
Esse é o palco da história que por mim será contada./
...um homem na estrada./
Equilibrado num barranco incômodo, mal acabado e
sujo, porém, seu único lar, seu bem e seu refúgio./
Um cheiro horrível de esgoto no quintal, por cima ou
por baixo, se chover será fatal./
Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou./
Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou.
Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas./
Logo depois esqueceram, filhos da puta!/
Acharam uma mina morta e estuprada, deviam estar
com muita raiva./
"Mano, quanta paulada!"./
Estava irreconhecível, o rosto desfigurado./
Deu meia noite e o corpo ainda estava lá, coberto com
lençol, ressecado pelo sol, jogado./
O IML estava só dez horas atrasado./
Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim, quero que meu
filho nem se lembre daqui, tenha uma vida segura/.
Não quero que ele cresça com um "oitão" na cintura e
uma "PT" na cabeça. /
E o resto da madrugada sem dormir, ele pensa
o que fazer para sair dessa situação./
Desempregado então./
Com má reputação./
Viveu na detenção./
Ninguém confia não./
...e a vida desse homem para sempre foi danificada./
79
Um homem na estrada.../
Um homem na estrada.../
80
Amanhece mais um dia e tudo é exatamente igual./
Calor insuportável, 28 graus./
Faltou água, já é rotina, monotonia, não tem prazo pra
voltar, hã! já fazem cinco dias./
São dez horas, a rua está agitada, uma ambulância foi
chamada com extrema urgência./
Loucura, violência exagerada. Estourou a própria
mãe, estava embriagado./
Mas bem antes da ressaca ele foi julgado./
Arrastado pela rua o pobre do elemento, o inevitável
linchamento, imaginem só!/
Ele ficou bem feio, não tiveram dó. /
Os ricos fazem campanha contra as drogas e falam
sobre o poder destrutivo delas./
Por outro lado promovem e ganham muito dinheiro
com o álcool que é vendido na favela./
Empapuçado ele sai, vai dar um rolê./
Não acredita no que vê, não daquela maneira,/
crianças, gatos, cachorros disputam palmo a palmo
seu café da manhã na lateral da feira,/
Molecada sem futuro, eu já consigo ver, só vão na
escola pra comer,/
Apenas nada mais, como é que vão aprender sem
incentivo de alguém, sem orgulho e sem respeito,/
sem saúde e sem paz./
Um mano meu tava ganhando um dinheiro,/
tinha comprado um carro,/
até rolex tinha!/
Foi fuzilado a queima roupa no colégio, abastecendo a
playboyzada de farinha,/
Ficou famoso, virou notícia, rendeu dinheiro aos
jornais, hu!, cartaz à policia /
Vinte anos de idade, alcançou os primeiros lugares...
superstar do notícias populares! /
Uma semana depois chegou o crack, gente rica por
trás, diretoria./
Aqui, periferia, miséria de sobra./
Um salário por dia garante a mão-de-obra./
A clientela tem grana e compra bem, tudo em casa,
costa quente de sócio./
A playboyzada muito louca até os ossos!/
Vender droga por aqui, grande negócio./
Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim,/
81
Quero um futuro melhor, não quero morrer assim,/
num necrotério qualquer, como indigente, sem nome e
sem nada,/
o homem na estrada./
Assaltos na redondeza levantaram suspeitas, /
logo acusaram a favela para variar,/
E o boato que corre é que esse homem está, com o
seu nome lá na lista dos suspeitos,/
pregada na parede do bar. /
A noite chega e o clima estranho no ar,/
e ele sem desconfiar de nada, vai dormir
tranqüilamente,/
mas na calada caguentaram seus antecedentes,/
como se fosse uma doença incurável, no seu braço a
tatuagem, DVC,/ uma passagem , 157 na lei.../
No seu lado não tem mais ninguém./
A Justiça Criminal é implacável./
Tiram sua liberdade, família e moral./
Mesmo longe do sistema carcerário, te chamarão para
sempre de ex presidiário./
Não confio na polícia, raça do caralho./
Se eles me acham baleado na calçada, chutam minha
cara e cospem/ em mim é../
eu sangraria até a morte.../
Já era, um abraço!./
Por isso a minha segurança eu mesmo faço./
É madrugada, parece estar tudo normal./
Mas esse homem desperta, pressentindo o mal, muito
cachorro latindo./
Ele acorda ouvindo barulho de carro e passos no
quintal./
A vizinhança está calada e insegura, premeditando o
final que já conhecem bem./
Na madrugada da favela não existem leis, talvez a lei
do silêncio, a lei do cão talvez./
Vão invadir o seu barraco, é a polícia!/
Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia, filhos
da puta,/ comedores de carniça!/
Já deram minha sentença e eu nem tava na "treta",
não são poucos e já vieram muito loucos./
Matar na crocodilagem, não vão perder viagem,
quinze caras lá fora,/ diversos calibres, e eu apenas/
com uma "treze tiros" automática./
82
Sou eu mesmo e eu, meu deus e o meu orixá./
No primeiro barulho, eu vou atirar./
Se eles me pegam, meu filho fica sem ninguém, e o
que eles querem:/ mais um "pretinho" na febem./
Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim, a gente sonha a
vida inteira e/ só acorda no fim, minha verdade/
foi outra, não dá mais tempo pra nada... bang! bang!
bang!/
Homem mulato aparentando entre vinte e cinco e
trinta anos é/ encontrado morto na estrada do/
M'Boi Mirim sem número./
Tudo indica ter sido acerto de contas entre quadrilhas
rivais./
Segundo a polícia, a vítima tinha vasta ficha criminal./
Esta letra, escrita por Mano Brown, segue na linha construtiva do gênero do rap. As
mudanças perceptíveis se localizam na narrativa. O cerne do trabalho reside na denúncia
escandalosa de uma vida perdida para a criminalidade, e o autor vai nos encaminhando para
uma posição onde reconhecemos as situações descritas por ele e que são parte de nosso
cotidiano via imagens e textos da mídia falada e escrita. A construção imagética contida na
letra nos mostra um quadro terrível, pintado com as cores densas retiradas dos nossos acervos
particulares do medo, que nos foi impregnado pela via do cinema, pelo telejornal, pela
narrativa radiofônica, pela conversa com o taxista, pelo comentário alarmista de amigos na
mesa do bar, nos paranóicos relatos do cotidiano trocados com familiares na mesa da sala de
jantar e na sala de visitas, onde a realidade da vida do homem proscrito é assunto de animados
julgamentos sumários: em todas estas formas de construção de um estereótipo, o homem
marginalizado é sempre réu.
A culpabilidade imputada indiscriminadamente ao homem simples é um dos
preconceitos maiores legados pelo processo da pós-abolição. O negro tem a sua imagem
pública vinculada à criminalidade: é o ladrão, o estuprador, o assassino e prescinde de
julgamento: é culpado. Talvez possamos fazer um desdobramento desta figura estereotipada
com uma das representações mais populares da figura do negro no Brasil: a escrava
Anastácia
20
.
Portadora de atributos imagéticos de forte impacto, a figura da escrava negra com uma
mordaça na boca é de uma eloquência constrangedoramente óbvia. A tortura ali figurada não
20
Ver anexo E
83
se localiza como um símbolo da antiga escravidão, mas se projeta para os tempos pós-
abolição como um silêncio imposto, uma restrição à fala do negro, situação que o persegue
historicamente. No seu livro Negro, Macumba e Futebol, o autor Anatol H. Rosenfeld coloca
“a performance do negro brasileiro no esporte e na religião como pertinente à esfera do
extraordinário: são considerados, mas não são levados inteiramente a sério (...) No Brasil o
negro fala por vias transversas, (...) pela música”. (ROSENFELD, 1993, p.105). Neste
sentido, os rappers surgem como legítimos porta-vozes da raça, e é exatamente isto que
fazem. Porém, nosso escritor rapeiro, autor de “O Homem na estrada” vai além.
Por trás da linguagem do jornalismo criminal, se esconde uma narrativa épica, que é
reforçada pelo tom pesado com o qual o texto é montado. Não encontramos nele nenhum
personagem mítico, com sua saga heróica, mas está o sujeito estigmatizado e sua trajetória
de mínimos. A mescla de narrativa policial e de narrativa da mídia, com o depoimento pessoal
do personagem que conta a história, faz um interessante contraponto literário, pois em
determinado momento não sabemos quem, na verdade, está no centro da história, se é o
narrador ou um “outro” narrativo. A métrica induz a um tempo preciso de leitura arrastada
como se carregasse o peso do que narra.
O tempo poético é um tempo fundador. Como num ritual, o rapper possui um tempo
para sua obra fluir e cumprir sua finalidade. Manipulando-o ele instala o culto, porta a
temporalização do seu ritual sagrado. A experiência de uma apresentação de rappers é
significativa no seu caráter religioso (de re-ligar), pois suas performances no palco, com o
microfone nas mãos, é inclusiva, apelando sempre para uma co-participação da platéia. O
discurso do rap e o texto do rap são dialógicos.
O dialogismo torna o discurso ação que coloca em movimento os significados
dinâmicos e heterogêneos nele criados. Ao criar o ambiente da interação entre ouvinte e
falante, o diálogo cria, conseqüentemente, o ambiente da enunciação. Cada texto torna-se,
então, um espaço onde a palavra enunciada adquire o valor de coisa dita. A repetição dos
versos provoca o aparecimento de uma relação definida entre o pronunciamento das palavras
e a natureza dos sons que a acompanham. Nesse sentido, Terezinha Taborda Moreira ( 2005,
p.69) propõe uma reflexão que nos parece interessante citar: “Eles exploram a forma de
trabalho da voz e identificam-se com esse trabalho ao torná-lo matéria significante. Tornam-
se, eles próprios, dicção. E é como dicção que esses textos se transformam em espaço de
fruição.”
A fruição do texto nos encaminha para as sonoridades das palavras e para a
caracterização da literatura como “arte auditiva”, conforme nos informa Rosenfeld:
84
O que de fato “funda” a literatura são as sonoridades das palavras e orações que,
quando a obra é lida, são “codadas” (apreendidas com o ‘ouvido interior’), e
diretamente dadas quando ela é recitada. Por isto a literatura costuma ser
classificada como ‘arte auditiva’. (ROSENFELD, apud MOREIRA, 2005, p.83)
De audição para memória, de memória para o registro que a perpetua, do registro para o
exercício da escrita, que, segundo Michel Foucault, constitui-se como o próprio corpo daquele
que escreve suas leituras do mundo:
O papel da escrita é constituir, com tudo que a leitura constituiu, um ‘corpo’. E é
preciso compreender esse corpo não como um corpo de doutrina, mas sim
segundo a metáfora da digestão, tão freqüentemente evocada como o próprio
corpo daquele que, transcrevendo as suas leituras, delas se apropriou e fez sua a
verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forças e em sangue.
(FOUCAULT, 2004, p.152)
Podemos vislumbrar, portanto, o encaminhamento do poeta de rua do rap: de habitante
de periferia a ator social, e de ator social a artista performático; de escritor a cantor; de poeta a
literato. O rapper assume-se como porta-voz das comunidades periféricas discriminadas e
exiladas, dentro do espaço da nação, dos direitos de cidadania. Em sua performance musical e
literária enumera os diferentes dramas da exclusão, os abusos e mazelas dos poderes
constituídos, e a omissão e conchavo entre o chamado quarto podera mídia falada e escrita
– e os poderes constituídos.
7.4.4 Esse é o meu país
Autoria: Câmbio Negro
Igualdade racial e social/
Negro e branco tratados de igual pra igual/
Boas escolas/
Analfabetismo inexistente/
Saúde em alta, bons hospitais/
Atendimento eficiente/
Mortalidade infantil/
Há muito eliminada/
Pobreza não se vê/
Foi erradicada/
Criminalidade cai 90%/
Todos tem moradia/
Ninguém ao relento/
85
Policiais ducados/
Segundo grau completo/
Recebem salário digno/
Equipamento moderno/
Não abusam do poder/
Não há brutalidade/
Admirados por todos/
Da comunidade/
Honestidade na política/
Admirável/
Mulheres no governo/
Com certeza invejável/
Tratadas como se deve/
Com respeito devido/
Não mais como cadelas/
E sim como indivíduo/
Vários negros no Senado/
Trabalho reconhecido/
Anos de faculdade/
Lugar ao sol merecido/
Vendemos tecnologia/
Para o mundo todo/
Cientistas brasileiros/
Sempre, sempre no topo/
Recebem prêmios e prêmios/
No exterior/
Criam o mais moderno/
Computador/
Aqui é o nosso país/
Brasil, primeiro mundo/
Todo mundo feliz/
Esse é o meu país./
Primeiro mundo/
Brasil/
Todo mundo feliz./
Segurança no trânsito/
Crianças sempre sorrindo/
Prêmio Nobel dado/
A um físico nordestino/
Atletas inigualáveis/
Apoio total do governo/
Escolas de atletismo/
Pelo país inteiro/
Idosos têm os seus /
Direitos assegurados/
Aposentadoria nunca atrasa/
São bem remunerados/
Na Universal ninguém é enganado/
86
Pastores não rouba /
Ninguém é enganado/
São uns pobres coitados
Voz do Brasil/
Programa de qualidade/
No Brasil todo/
Uma unanimidade/
Sempre atual/
Diversificado/
Eficiente/
Anos e anos na ativa/
Sempre competente/
Rap nacional/
Sempre difundido/
Letras inteligentes/
Trampo decente/
Bem produzido/
Não se confunde/
Liberdade de expressão/
Com desacato/
Espaço garantido/
Artistas de fato/
Vários discos de ouro/
Reconhecimento/
População bem informada/
Respeita o movimento/
Levando a sério/
Objetivos alcançados/
Povo da periferia/
Não é mais humilhado/
Aqui é o nosso país/
Brasil, primeiro mundo/
Todo mundo feliz/
Esse é o meu país/
Primeiro mundo, Brasil/
Todo mundo feliz./
Nossa escolha deste texto do grupo Câmbio Negro se deu pela necessidade de
evidenciarmos por sua importância, no nosso entender uma característica intrínseca ao
contexto desta vertente discursiva do rap: a utopia.
A reivindicação social está fundada na percepção de uma vida possivelmente melhor,
que pode vir a ser ou se situar no campo do simbólico. A utopia é irmã siamesa da esperança,
e a esperança, segundo Emily Dickinson (1813-1886), “é um pássaro que empoleira na alma e
lá insiste em ficar”.
87
O processo utópico não é estranho aos desvalidos, é a sua meta. Para aqueles a quem
não restou nada, a não ser a anorexia social, resta o sonho do ideal enquanto devir. O rapper é
uma das vozes utópicas contemporâneas que alcança um público cada vez mais universal. E,
especificamente, para o povo negro e afro-descendente, no seio do qual nasceu o estilo rap,
este constitui-se como uma representação cultural identitária com a qual esta parcela das
populações se identifica. No Brasil, histórica e simbolicamente o quilombo é identificado
como o espaço da resistência e da utopia. Mas, infelizmente neste século XXI, a periferia
urbana brasileira e das grandes metrópoles do mundo, pode ser identificada com o espaço
social das senzalas. O quilombo contemporâneo brasileiro, enquanto espaço simbólico de
resistência, nos parece estar contido na performance do rap através do canto, da dança e da
voz ativa que expressa a consciência social, de raça discriminada, e o ideal de liberdade e de
cidadania.
A letra de Esse é o meu país joga com uma dupla percepção: uma utópica e outra
distópica
21
. Ao mesmo tempo em que promove uma construção idealística do Brasil, nos joga
ao rés do chão com a constatação da imensa distância entre o sonho e a realidade. O autor
inverte a temporalidade da sua récita, dita no presente, e ressalta um estado atual com poucas
possibilidades de se encaixar em tamanha projeção no futuro. O tom é irônico, e a ironia é
arma poderosa, pois nunca sabemos do que trata realmente. A ironia instala a dúvida, e a
dúvida traz o tom distópico ao texto. Ressalte-se que a concepção da utopia é escorregadia.
Nas palavras de Paul Gilroy: “As utopias fogem ao alcance do meramente lingüístico, textual
e discursivo. A invocação da utopia referencia aquilo que podemos chamar de
transfiguração.”(GILROY, 2001, p.96)
Mas o poeta rapper escreve sua literatura de bordas, e cria um novo imaginário. As
grandes obras da humanidade não foram realizadas sem utopia e esta exige o espírito crítico,
sempre em alerta, contra a realidade cristalizada, conforme nos explica Theodor Adorno:
A Utopia da arte, o porvir contrafactual, está drapejado em negro. Ela continua a
ser uma lembrança do possível com acuidade crítica contra o real; é uma espécie
de restituição imaginária dessa catastrófica que é a história do mundo; é uma
liberdade que não se submeteu ao feitiço da necessidade e que bem pode jamais se
submeter. (ADORNO, 1982, p.196)
7.4.5 Diário de um detento
21
Uma Distopia ou Antiutopia é o pensamento, a filosofia ou o processo discursivo baseado numa ficção cujo
valor representa a antítese da utopia ou promove a vivência em uma "utopia negativa". São geralmente
caracterizadas pelo totalitarismoo, autoritarismoo bem como um opressivo controle da sociedade. Nelas, caem-se
as cortinas, e a sociedade mostra-se corruptível; as normas criadas para o bem comum mostram-se flexíveis.
Assim, a tecnologia é usada como ferramenta de controle, seja do Estado, de instituições ou mesmo de
corporações. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Distopia>.
88
Autoria: Mano Brown/ Racionais MCs
São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã./
Aqui estou, mais um dia./
Sob o olhar sanguinário do vigia./
Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK./
Metralhadora alemã ou de Israel./
Estraçalha ladrão que nem papel./
Na muralha, em pé, mais um cidadão José./
Servindo o Estado, um PM bom./
Passa fome, metido a Charles Bronson./
Ele sabe o que eu desejo./
Sabe o que eu penso./
O dia tá chuvoso. O clima tá tenso./
Vários tentaram fugir, eu também quero./
Mas, de um a cem, a minha chance é zero./
Será que Deus ouviu minha oração?/
Será que o juiz aceitou a apelação?/
Mando um recado lá pro meu irmão:
Se tiver usando droga, tá ruim na minha mão./
Ele ainda tá com aquela mina./
Pode crer, moleque é gente fina./
Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá.../
Tanto faz, os dias são iguais./
Acendo um cigarro, vejo o dia passar./
Mato o tempo pra ele não me matar./
Homem é homem, mulher é mulher./
Estuprador é diferente, né?/
Toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés,/
e sangra até morrer na rua 10./
Cada detento uma mãe, uma crença./
Cada crime uma sentença./
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima,/
sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio,/
sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo./
Misture bem essa química./
Pronto: eis um novo detento/
Lamentos no corredor, na cela, no pátio./
Ao redor do campo, em todos os cantos./
Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã.../
Aqui não tem santo./
Rátátátá... preciso evitar/
que um safado faça minha mãe chorar./
Minha palavra de honra me protege/
pra viver no país das calças bege./
Tic, tac, ainda é 9h40./
O relógio da cadeia anda em câmera lenta./
Ratatatá, mais um metrô vai passar./
Com gente de bem, apressada, católica./
89
Lendo jornal, satisfeita, hipócrita./
Com raiva por dentro, a caminho do Centro./
Olhando pra cá, curiosos, é lógico./
Não, não é não, não é o zoológico/
Minha vida não tem tanto valor/
quanto seu celular, seu computador./
Hoje, tá difícil, não saiu o sol./
Hoje não tem visita, não tem futebol./
Alguns companheiros têm a mente mais fraca./
Não suportam o tédio, arruma quiaca./
Graças a Deus e à Virgem Maria./
Faltam só um ano, três meses e uns dias./
Tem uma cela lá em cima fechada./
Desde terça-feira ninguém abre pra nada./
Só o cheiro de morte e Pinho Sol./
Um preso se enforcou com o lençol./
Qual que foi? Quem sabe? Não conta./
Ia tirar mais uns seis de ponta a ponta (...)/
Nada deixa um homem mais doente/
que o abandono dos parentes./
Aí moleque, me diz: então, cê qué o quê?/
A vaga tá lá esperando você./
Pega todos seus artigos importados./
Seu currículo no crime e limpa o rabo./
A vida bandida é sem futuro./
Sua cara fica branca desse lado do muro./
Já ouviu falar de Lucífer?/
Que veio do Inferno com moral./
Um dia... no Carandiru, não... ele é só mais um./
Comendo rango azedo com pneumonia.../
Aqui tem mano de Osasco, do Jardim D'Abril, Parelheiros,/
Mogi, Jardim Brasil, Bela Vista, Jardim Angela,/
Heliópolis, Itapevi, Paraisópolis./
Ladrão sangue bom tem moral na quebrada./
Mas pro Estado é só um número, mais nada./
Nove pavilhões, sete mil homens./
Que custam trezentos reais por mês, cada./
Na última visita, o neguinho veio aí./
Trouxe umas frutas, Marlboro, Free.../
Ligou que um pilantra lá da área voltou./
Com Kadett vermelho, placa de Salvador./
Pagando de gatão, ele xinga, ele abusa/
com uma nove milímetros embaixo da blusa./
Brown: "Aí neguinho, vem cá, e os manos onde é que tá?/
Lembra desse cururu que tentou me matar?"/
Blue: "Aquele puta ganso, pilantra corno manso./
Ficava muito doido e deixava a mina só./
A mina era virgem e ainda era menor./
Agora faz chupeta em troca de pó!"/
Brown: "Esses papos me incomoda./
90
Se eu tô na rua é foda..."/
Blue: "É, o mundo roda, ele pode vir pra cá."/
Brown: "Não, já, já, meu processo tá aí./
Eu quero mudar, eu quero sair./
Se eu trombo esse fulano, não tem pá, não tem pum./
E eu vou ter que assinar um cento e vinte e um."/
Amanheceu com sol, dois de outubro./
Tudo funcionando, limpeza, jumbo./
De madrugada eu senti um calafrio./
Não era do vento, não era do frio./
Acertos de conta tem quase todo dia./
Ia ter outra logo mais, eu sabia./
Lealdade é o que todo preso tenta./
Conseguir a paz, de forma violenta./
Se um salafrário sacanear alguém,/
leva ponto na cara igual Frankestein/
Fumaça na janela, tem fogo na cela./
Fudeu, foi além, se pã!, tem refém./
Na maioria, se deixou envolver/
por uns cinco ou seis que não têm nada a perder./
Dois ladrões considerados passaram a discutir./
Mas não imaginavam o que estaria por vir./
Traficantes, homicidas, estelionatários./
Uma maioria de moleque primário./
Era a brecha que o sistema queria./
Avise o IML, chegou o grande dia./
Depende do sim ou não de um só homem./
Que prefere ser neutro pelo telefone./
Ratatatá, caviar e champanhe./
Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe!/
Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo.../
quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!/
O ser humano é descartável no Brasil./
Como modess usado ou bombril./
Cadeia? Claro que o sistema não quis./
Esconde o que a novela não diz./
Ratatatá! sangue jorra como água./
Do ouvido, da boca e nariz./
O Senhor é meu pastor.../
perdoe o que seu filho fez./
Morreu de bruços no salmo 23,/
sem padre, sem repórter./
sem arma, sem socorro./
Vai pegar HIV na boca do cachorro./
Cadáveres no poço, no pátio interno./
Adolf Hitler sorri no inferno!/
O Robocop do governo é frio, não sente pena./
Só ódio e ri como a hiena./
Ratatatá, Fleury e sua gangue/
vão nadar numa piscina de sangue./
91
Mas quem vai acreditar no meu depoimento?/
Dia 3 de outubro, diário de um detento/
Mano Brown, mais uma vez, se apossa do estilo da narrativa policial e midiática para
tecer seus comentários sobre o sistema carcerário, sobre a manipulação do poder do Estado
sobre o cidadão, sobre a polícia e, de modo indireto, sobre o massacre histórico acontecido no
Presídio do Carandiru, em São Paulo, em 2 de outubro de 1992. A narrativa é estruturada
como se fora a leitura de um trecho do diário de um detento.
Testemunhamos a leitura como um desfiar de um rosário de desgraças, ao qual cairia
muito bem a definição daquilo que poderia ser potencialmente uma “versão carcerária” do
“Inferno” de Dante. A forma bruta como o texto é escrito, impregnado de um forte
contingente de revolta, instala um estado letárgico de conformidade à impossibilidade de
reversão da situação das coisas para nosso personagem, que descreve secamente seu cotidiano
mórbido. A fórmula é interessante porque coloca o detento num outro enfoque, mais
humanizado, denotando a sua potencialidade reflexiva. O autor, ao dar voz àquele que é o
protagonista da experiência narrada, nos coloca no lugar dele, rompendo com o perfil do fora-
da-lei estigmatizado, normalmente visto pela ótica da classe média pequeno-burguesa (sempre
medrosamente reducionista) como um criminoso hediondo e que merece a detenção ad
aeternum.
Brown ressalta o aspecto de depoimento contido na forma “diário”, que, além de
mostrar que no ato de escrevê-lo registra-se um relato cotidiano moroso e repetitivo, também
denota o gosto pela escrita e a consciência de que este fazer exige um exercício de filtragem
de uma hierarquia de valores, e uma manipulação dos arquivos pessoais, como coloca
Philippe Lejeune:
Todos os aspectos da atividade humana podem dar margem a manter um diário. A
forma, por fim, é livre. Asserção, narrativa, lirismo, tudo é possível, assim como
todos os níveis de linguagem e de estilo, dependendo se o diarista escreve apenas
para ajudar a memória, ou com a intenção de seduzir outra pessoa. (LEJEUNE,
2008, p.261)
O autor francês nos revela os princípios básicos do diário e de seu escritor, e prossegue
no seu livro O Pacto Autobiográfico informando ao leitor sobre desdobramentos oriundos de
sua pesquisa dos quais destacaremos como importante dado para nossa leitura, a constatação
de que quem escreve um diário o escreve para si. Segundo Lejeune, o diário é um modo de
nos conhecermos, mas é também um modo de nos perpetuarmos diante do esvanecimento, do
92
apagamento futuro. O papel e o lápis são grandes amigos e a escritura diária traz companhia,
consolo e resistência. Talvez sejam estes três fatores que o rapper destaca na sua letra, todos
em conformidade com o discurso da (in) justiça. Voltando a Lejeune (2008, p. 264):
“Mantém-se enfim um diário porque se gosta de escrever. É fascinante transformar-se em
palavras e frases e inverter a relação que se tem com a vida ao se auto-engendrar.”
Esta é a essência do texto contundente escrito por Brown, que se situa além daquele que
Silviano Santiago chamou do “narrador pós-moderno”, ao inserir o narrador como ator da
situação narrada e espetacularizada. Isto porque, segundo Silviano Santiago, o narrador pós-
moderno é: “aquele que narra a ação enquanto espetáculo que assiste literalmente ou não
da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca: ele não narra
enquanto atuante”. (SANTIAGO, in: KLINGER, 2007, p.100) Lemos esta letra sabedores que
foi fruto de experiência, de relato, de observação objetiva. O autor fala aqui a partir de seu
lugar.
7.4.6 Diário de um feto
Autoria: Câmbio Negro
Eu adorava aquele casal/
Pareciam feitos um para o outro/
Trabalhavam, curtiam, se divertiam/
Aonde um ia o outro ia/
Eram a minha família/
Eles gostavam de mim e eu deles também/
Até que a gente se dava bem./
Então um dia o sossego do nosso lar foi quebrado/
Somente um telegrama, meu pai desempregado/
Ele ficou possesso, completamente irado/
Depois de um ano emprego de vigia o único que tinha arranjado/
Minha mãe tentava acalmá-lo e ele até bateu nela/
Jogava tudo, quebrava talheres, pratos, panelas/
Sobrou até pro cachorro/
Minha mãe pedia socorro/
Ele derrubou a porta e foi se embriagar/
Graças a Deus ele saiu, pensei que o sofrimento não ia acabar./
Nos dias que se passavam as coisas só pioravam/
Minha mãe lavava, passava, e o dinheiro nunca dava/
Eu sem poder fazer nada, só observava/
Meu pai saía bem cedo emprego nunca arranjava/
Lavava carro, engraxava mas a miséria aumentava/
Tinha aluguel, tinha água, conta de luz e comida/
Um dia eu ouvi falar em tirar a própria vida/
93
Eles tentavam, é verdade disso sou testemunha/
Mas o que ganhavam não dava pra porra nenhuma/
O cachorro morreu de fome/
E a TV foi vendida/
Pra nos garantir mais um mês de comida/
Mesmo com toda essa crise eles não desistiam/
Por muitas vezes de fome eles nem dormiam/
Meu pai era meu herói aquilo sim que era homem/
Ficou dias sem comer/
Pra que eu não passasse fome./
Então um dia o sossego do nosso lar foi quebrado/
Somente um telegrama, meu pai desempregado/
Ele ficou possesso, completamente irado/
Depois de um ano emprego de vigia o único que tinha arranjado/
Minha mãe tentava acalmá-lo e ele até bateu nela/
Jogava tudo, quebrava talheres, pratos, panelas/
Sobrou até pro cachorro/
Minha mãe pedia socorro/
Ele derrubou a porta e foi se embriagar/
Até que um dia o desespero enlouqueceu minha mãe/
Disse não querer pra mim aquela vida sofrida/
Comida já não havia, agora comíamos lixo/
Falou que um filho seu jamais seria um bicho./
Abriu as pernas com uma haste de metal/
Me furou, machucou, torceu, dilacerou, estocou/
A minha mãe me matou!/
A inclusão deste texto e sua subseqüente disposição logo após outro relato em forma de
diário foi intencional. Se no Diário de um detento a narrativa era centrada num personagem e
na leitura das páginas escritas de seu caderno de auto-depoimento, nesta letra do Câmbio
Negro trata-se de um personagem o feto que não escreve, mas cuja história é narrada pelo
rapper. Neste caso, o testemunho toma outro tom, já que descobrimos ao findarmos a leitura
que o “outro falante” fala depois de morto, fazendo um retrocesso de sua parca vida.
A presença do narrador morto que fala e relata sua vida nos remete a uma literatura
machadiana. Diário de um Feto seria um Memorial de Aires com contornos particulares, ou
em um outro desdobramento, relacionado não à fala, mas ao ato do aborto em si: seria um
Pai contra a mãe contemporâneo. A decisão da mãe do nosso feto depoente, embora saída de
outro drama particular, coloca em cena uma personagem tão vítima do racismo e da exclusão
social quanto à do conto de Machado de Assis. E, em seu desfecho, reacende na nossa
memória a frase que encerra a dolorosa narrativa do Bruxo do Cosme Velho, afinal “nem
todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”. (ASSIS, in: DUARTE, 2007, p.152)
94
A escrita de Mano Brown é bem conduzida e não foge do tom de denúncia
predominante no rap. Os aspectos da redação jornalística podem configurar a importância que
o autor a este tipo de literatura do cotidiano, perpetrada nos textos da mídia impressa, mas
que, provavelmente, são a única fonte de leitura para muita gente simples que vive apartada
dos espaços bibliotecários e escolares. Nesta observação não nada que seja demérito: a
própria literatura contemporânea assimilou esta “literatura de rua”, haja vista a obra Eles
eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato (2006), onde encontramos, citadas pelo autor, rezas
populares, novenas, textos de panfletaria de rua, anúncios de jornal e outros textos da leitura
diária, que perfazem uma curiosa construção quando justapostos aos textos do escritor de
Cataguases.
Ora, sabemos bem que uma pessoa constrói seu mundo com a matéria que tem, e às
vezes, tem-se apenas o barro bruto do quintal para construir seus conceitos e sua escrita.
Recordamos que alegoricamente o Homem foi feito assim, da lama do mundo e, ainda
seguindo nesta figuração tirada das referências sagradas, logo lhe foi dada a palavra e ele
nomeou tudo que o rodeava. Vale a pena aqui citarmos Albert Einstein (1879-1955), pois,
segundo o cientista: “Não existe o monopólio da palavra. Só os medíocres tentam isto”.
7.4.7 Negro Drama
Autoria: Racionais MCs
Negro drama,/
Entre e o sucesso, e a lama,/
Dinheiro, problemas,/
Invejas, luxo, fama,/
Negro drama,/
Cabelo crespo,/
E a pele escura,/
A ferida a chaga,/
A procura da cura,/
Negro drama,/
Tenta vê,/
E não vê nada,/
A não ser uma estrela,/
Longe meio ofuscada,/
Sente o drama,/
O preço, a cobrança,/
No amor, no ódio,/
A insana vingança,/
Negro drama,/
Eu sei quem trama,/
E quem tá comigo,/
95
O trauma que eu carrego,/
Pra não ser mais um preto fudido,/
O drama da cadeia e favela,/
Túmulo, sangue,/
Sirene, choros e velas,/
Passageiro do Brasil,/
São Paulo,/
Agonia que sobrevive,/
Em meio a zorra e covardias,/
Periferias,vielas e cortiços,/
Você deve tá pensando,/
O que você tem haver com isso,/
Desde o inicio,/
Por ouro e prata,/
Olha quem morre,/
Então veja você quem mata,/
Recebe o mérito, a farda,/
Que pratica o mal,/
Me vê ,/
Pobre, preso ou morto,/
Já é cultural,/
Histórias, registros,/
Escritos,/
Não é conto,/
Nem fábula,/
Lenda ou mito,/
Não foi sempre dito,/
Que preto não tem vez,/
Então olha o castelo e não,/
Foi você quem fez cuzão,/
Eu sou irmão,/
Dos meus truta de batalha,/
Eu era a carne,/
Agora sou a própria navalha/
Tim..tim../
Um brinde pra mim,/
Sou exemplo, de vitórias,/
Trajetos e glórias,/
O dinheiro tira um homem da miséria,/
Mais não pode arrancar,/
De dentro dele,/
A favela,/
São poucos,/
Que entram em campo pra vencer,/
A alma guarda,/
O que a mente tenta esquecer,/
Olho pra traz,/
Vejo a estrada que eu trilhei,/
Mó corre,/
Quem teve lado a lado,/
96
E quem só ficou na bota,/
Entre as frases,/
Fases e várias etapas,/
Do quem é quem,/
Dos manos e das minas fraca,/
Hum../
Negro drama de estilo,/
Pra ser,/
Se for,/
Tem que ser,/
Se temer é milho,/
Entre o gatilho e a tempestade,/
Sempre a provar,/
Que sou homem e não covarde,/
Que deus me guarde,/
Pois eu sei,/
Que ele é neutro,/
Vigia os ricos,/
Mais ama os que vem do gueto,/
Eu visto preto,/
Por dentro e por fora,/
Guerreiro,/
Poeta entre o tempo e a memória,/
Hora,/
Nessa história,/
Vejo o dólar,/
E vários quilates,/
Falo pro mano,/
Que não morra, e também não mate,/
O tic tac,/
Não espera veja o ponteiro,/
Essa estrada é venenosa,/
E cheia de morteiro,/
Pesadelo,/
Hum,/
É um elogio,/
Pra quem vive na guerra,/
A paz/
Nunca existiu,/
Num clima quente,/
A minha gente soa frio,/
Vi um pretinho,/
Seu caderno era um fuzil,/
Negro drama,/
Crime,futebol, música, caraio,/
Eu também, vô consegui fugir disso aí,/
Eu sô mais um,/
Forrest Gump é mato,/
Eu prefiro conta uma história real,/
Vô contá a minha..../
97
Daria um filme,/
Uma negra,/
E uma criança nos braços,/
Solitária na floresta,/
De concreto e aço,/
Veja,/
Olha outra vez,/
O rosto na multidão,/
A multidão é um monstro,/
Sem,rosto e coração,/
Hey,/
São Paulo,/
Terra de arranha-céu,/
A garoa rasga a carne,/
É a torre de babel,/
Família brasileira,/
2 contra o mundo,/
Mãe solteira,/
De um promissor,/
Vagabundo,/
Luz,/
Câmera e ação,/
Gravando a cena vai,/
O bastardo,/
Mais um filho pardo,/
Sem pai,/
Hey,/
Senhor de engenho,/
Eu sei,/
Bem quem é você,é/
Sozinho,ce num güenta,/
Sozinho,/
Se num güenta a pé,/
Se disse que era bom,/
E as favela ouviu,mas também tem/
Whiski, e Red Bull,/
Tênis Nike,/
Fuzil,/
Admito,/
Seus carro é bonito,/
Hé,/
E eu não sei fazer,/
Internet, video-cassete,/
Os carro loko,/
Atrasado,/
Eu to um pouco sim,/
To,/
Eu acho sim,/
Só que tem que,/
Seu jogo é sujo,/
98
E eu não me encaixo,/
Eu sô problema de montão,/
De carnaval a carnaval,/
Eu vim da selva,/
Sô leão,/
Sô demais pro seu quintal,/
Problema com escola,/
Eu tenho mil,/
Mil fita,/
Inacreditável, mas seu filho me imita,/
No meio de vocês,/
Ele é o mais esperto,/
Ginga, fala gíria,/
Gíria não dialeto,/
Esse não é mais seu,/
Hó,/
Subiu,/
Entrei pelo seu rádio,/
Tomei,/
Cê nem viu,/
Nóis é isso, aquilo,/
O que,/
Senão dizia,/
Seu filho quer ser preto,/
Rhá,/
Que ironia,/
Cola o pôster do Tupac ae,/
Que tal,/
Que se diz,/
Sente o negro drama,/
Vai,/
Tenta ser feliz,/
Hey bacana,/
Quem te fez tão bom assim,/
O que se deu,/
O que se faz,/
O que se fez por mim,/
Eu recebi seu tic,/
Quer dizer kit,/
De esgoto a céu aberto,/
E parede madeirite,/
De vergonha eu não morri,/
Tô firmão,/
Eis-me aqui,/
Você não,/
Se não passa,/
Quando o mar vermelho abrir,/
Eu sou o mano/
Homem duro,/
Do gueto, brow,/
99
Oba,/
Aquele loko,/
Que não pode errar,/
Aquele que você odeia,/
Mas nesse instante,/
Pele parda,/
Ouço funk,/
E de onde vem,/
Os diamante,/
Da lama,/
Valeu mãe,/
Negro drama,/
Drama, drama./
Aí na época do barraco de pau lá na pedreira/
Onde se estava , que seis deram por mim ?/
Que seis fizeram por mim?/
Agora tá de olho no dinheiro ganho!/
Agora tá de olho no carro que eu dirijo !/
Demorô, eu quero é mais.../
Eu quero é ter sua alma/
Aí o rap fez ser o que eu sou/
Ice Blue, Edy rock e KLJay e toda família ,/
e toda geração que faz o rap,/
a geração que revolucionou/
a geração que vai revolucionar/
anos 90 século 21/
é desse jeito./
Aí você sai do gueto mais o gueto nunca sai de você, morô?/
Se tá dirigindo o carro o mundo todo tá de olho em você ,sabe
porque?/
Pela sua origem/
é desse jeito que você vive é um negro drama/
Eu num li,eu não assisti, eu vivo o negro drama, eu sou o negro
drama,/
eu sou o fruto do negro drama./
Aí dona Ana!!/
Sem palavras ó, a Senhora é uma Rainha/
Mais aí se tiver que voltar pra favela , eu vou voltar de cabeça
erguida/
porque assim que é, renascendo da cinza firme forte,/
Guerreiro de fé "vagabundo nada " !!!/
Podemos justificar a inclusão desta letra por se tratar de um outro aspecto do
depoimento pessoal, sendo, neste caso, composto de uma mescla de conteúdos pessoais e de
conteúdos históricos. A partir do momento que detectamos que a fala de Mano Brown é sobre
a sua visibilidade social, em contraste com a indigência social de seus semelhantes, nos
conscientizamos do caráter documental de sua performance.
100
O Negro Drama fala sobre seu tempo histórico, a partir de seu lugar, de forma dura, em
tom de denúncia, não nos deixando confortáveis face à permanência desse drama histórico
vivido pelos negros e afro-descendentes na sociedade brasileira.
Sabemos que existe uma pretensiosa tendência elitista para se separar a arte das coisas
simples e das necessidades prosaicas da vida, relegando-a num espaço asséptico sem ligação
com o mundo real. Ora, a arte é inseparável da existência social, enquanto eco, repercussão
que não exclui nenhum aspecto da vida cotidiana, a partir de um processo de estetização,
conforme nos informa Xiberras:
A experiência concreta, o dia-a-dia, o cotidiano, a vivência, são a matéria prima
que nutre o Imaginário como parte do ato de sentir, de emocionar, do sonho, da
arte que, antes de tudo, têm no lúdico, na fantasia a densidade do que se vive.
(XIBERRAS, apud ZOLADZ, 2005, p.168)
Toda manifestação cultural que se passa na vida cotidiana e que não é legitimada pela
cultura oficial tende a ser considerada com desinteresse e como inexistente. Uma produção
como o rap, nascida da indigência e se firmando como autêntica manifestação cultural,
revolve os conceitos estreitos das distorcidas neo-teorias colonialistas elitistas. Estas,
sabendo-se ameaçadas por um novo contingente de pensadores oriundos de nichos antes
relegados à invisibilidade, se abalam com sua existência real. Essas categorias apagadas,
invisíveis, ao mesmo tempo em que se perceberam como inexistentes, adquiriram a
consciência de que existiam carregadas de preconceitos e impotência. E em função deste
percepto, procuraram outras formas de organização.
“O negro nunca foi tão negro como quando foi dominado pelo branco”, diz Fanon
(2005). O “negro” foi “inventado” pelo branco dentro de um processo ideológico de
dominação. Assim, ainda persistem as rotulações ou percepções agregadas às raças, como, por
exemplo, o branco sendo “a mente”, responsável pela produção intelectual, e o negro, “o
corpo”, apto apenas à produção física. Contra estas classificações redutoras e racistas surge a
força complementar inversa, manifesta na potência da fala negra, da escrita negra, do diálogo
intelectual do negro com o mundo. O rapper através da escrita se coloca em cena para o outro
em sua performance no espaço público, praticando, dessa maneira, aquilo que Barthes cunhou
como “o pensamento teatralizado”:
Manifesta-se assim no escrito, um novo imaginário que é o do pensamento”.
Onde quer que haja concorrência dos atos de fala e escrita, escrever quer dizer, de
uma certa forma: eu penso melhor, com mais firmeza; eu penso menos em função
de vocês, penso principalmente em função da “verdade”. É evidente que o Outro
está sempre lá, sob a forma anônima do leitor; por isso, o pensamento
101
teatralizado” por meio das condições do script (por mais discretas, por mais
aparentemente insignificantes que elas sejam) permanece tributário da imagem de
mim que quero dar ao público. (...) No debate de idéias, muito desenvolvido hoje,
graças aos meios de comunicação de massa, qualquer sujeito é levado a se situar, a
se marcar, a se definir intelectualmente, o que quer dizer politicamente. Reside,
aqui, a função atual do diálogo público. (BARTHES, 1975, p.6)
O rapper fala e escreve. Trava seu diálogo com o público na batalha das palavras, longe
das estéticas arrogantes, através de seu gosto particular, de seu talento aprendido nas
banalidades das ruas, de seu exímio exercício das qualidades plurais polifônicas de sua arte.
De posse do seu conhecimento, protesta com veemência contra as estereotipias, pois é assim
que se percebe como destaca nos versos finais da letra:
Pela sua origem/
é desse jeito que você vive é um negro drama/
Eu num li,eu não assisti, eu vivo o negro drama, eu sou o negro
drama,/
eu sou o fruto do negro drama./
Aí dona Ana!!/
Sem palavras ó, a Senhora é uma Rainha/
Mais aí se tiver que voltar pra favela , eu vou voltar de cabeça
erguida/
porque assim que é, renascendo da cinza firme forte,/
Guerreiro de fé "vagabundo nada " !!!/
7.4.8 Outros escritos
Para concluirmos nossa passagem por esta abordagem da produção de textos, dos
aspectos literários e da contextualização das letras de rap como discurso de pertença e
reivindicação, citaremos duas produções feitas por autores oriundos do universo rapeiro, mas
que já se vêem e atuam como autores de uma literatura de perfil independente, deslocada do
contexto musical. Notaremos que a estrutura de construção do texto ainda remete ao fazer do
rap, porém, conforme nos pautamos na proposta desta dissertação, são estruturas pensadas e
elaboradas como poesia
22
. Mantemos, portanto, nossas análises, interpretações e
encaminhamentos de leitura, pois cremos que os ressaltos que deveriam ter sido dados a estes
aspectos foram desenvolvidos no decorrer desta parte da nossa dissertação. A nossa
solicitação é que prevaleça este critério aliado ao usufruto puro e simples do trabalho destes
poetas.
22
Relatamos no Anexo A a trajetória do rapper juizforano P. MC, onde destacamos a sua biografia e a sua
passagem de letrista de raps para escritor de textos literários, acreditando que ilustra com clareza aspectos
ressaltados até agora.
102
É COMO O DITADO DIZ
Autoria: Samantha Pilar
É como o ditado diz,/
De drão em drão/
O delegado enche o X/
Na terra dos valentes/
Quem tem arma é feliz/
O ladrão escaldado tem/
Medo de Cadeia/
Quem vacilar com o Calibre/
Vai cumprir a sua pena/
Onde há bandido há fogo/
Perdedor não entra nesse jogo/
Pode vir quente/
Que a rima está fervendo/
Quem brinca com o rap/
Vai acabar se queimando/
Não sou a última nem a primeira/
Se há batalha, sou fiel guerreira/
Família em 1º lugar/
Poesia não é droga/
Só que dá para viajar/
Em boca fechada/
Não entra mosca/
Cagueta, Zé-povinho e valente/
Morre porque não fecha a boca/
Nessa guerra interna/
Os manos persistem/
Na selva de pedra/
Só os fortes sobrevivem/
Quebrada/
Taboão da Serra no ar!/
Periferia é periferia em qualquer lugar!/
Mais vale um rimando/
Que dois se drogando/
Tenho uma coisa de surpresa/
Dentro da mente/
A caneta/
É bala no pente/
Espero que você perceba/
Devagar se vai longe/
A roupa não faz/
O caráter do homem/
Quem com porco se mistura/
Farelo come/
103
Escreveu não leu/
A rima nasceu/
Quem vê terno/
Não vê corrupção/
A carapuça serviu/
Ta dispensado da missão/
A caneta é bússola/
Que me conduz sobre o papel/
A palavra pra uns é antídoto/
Pra outros veneno Fel./
Samantha Pilar é MC do grupo Alforria, conhecida no meio do rap como Preta,
moradora da Zona Sul de São Paulo. Ela é estudante e procura conscientizar as pessoas
através de seu trabalho como rapper e escritora de poesias. Seu trabalho foi publicado na
coletânea Hip Hop a lápis. (TONI C., 2006, p. 120)
O PEREGRINO
Autoria: Sérgio Vaz
No caminho de crer e não crer/
Vivo na dúvida do milagre/
Entre as brumas da uva e do vinho/
Sou eu quem destila o vinagre./
Caminho no chão em busca do céu/
No fogo e água que não tem fim/
Porque/
Não me esforço para acreditar em deus/
Esforço-me para que ele acredite em mim./
Sergio Vaz é conhecido como o “Poeta da Periferia”. Natural de Minas Gerais, é
organizador do Sarau Cultural da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), em São
Paulo. Teve este seu poema publicado no livro Hip Hop a lápis. (TONI C., 2006, p. 123)
104
CONCLUSÃO
A poesia é indispensável. Se eu ao menos soubesse para que...
JEAN COCTEAU
Ao colocarmos bem claro a função do artista na sociedade, afastando as nebulosas
retóricas da crítica elitista, situamos o fazer dos artistas do rap como um ato de escrita, e os
rappers como produtores literários. Se como tal causam ainda reações refratárias, podemos
evocar Maiakovski quando se expressa sobre o “novo” (1893-1930) ao dizer que “era preciso
organizar socialmente a leitura e compreensão daquilo que traz o novo (a vanguarda): se uma
informação é nova para o repertório cultural de uma sociedade, essa sociedade tem de
aprender a lê-la”. (RISÉRIO, apud PEREIRA, ALEIXO, 2004, p.6).
Jean Cocteau (1889-1963), como citado em nossa epígrafe, joga com o dúbio ao
discorrer sobre o papel da poesia, pois ao mesmo tempo em que afirma a sua
indispensabilidade, confessa ter dúvidas sobre a sua “utilidade”, assumindo sua ignorância
sobre o fazer poético. Já abordamos neste trabalho a discussão sobre a “utilidade” da poesia.
Mas o que faz alguém se transformar num artista, num escritor? O que move alguém a lançar
mão de uma mídia qualquer de registro da escrita (seja o papel ou o teclado) e poetizar?
Esta dissertação se propôs a falar sobre os “outros” e sua poética. A intenção de
deslocar nosso olhar para uma “outridade” pertencente às invisibilidades do mundo, não foi
gratuita. Foi movida pela convicção de que sempre uma saída para as dores do mundo, e
ela aponta para o horizonte das sensibilidades humanas e suas representações estéticas, não
para a estreiteza dos pensares cristalizados. Para encontrarmos esta “outridade” basta nos
aventurarmos a sair dos nossos feudos seguros, dos nossos condomínios fechados, e irmos aos
bailes de periferia, aos shows sindicais, às festas particulares que acontecem nas salas, nas
lajes, nos quintais deste imenso mar de casas de arquitetura precária: as onipresentes favelas,
complexos, jardins”, cortiços, loteamentos clandestinos, cabeças de porco e palafitas. Ao
olharmos os sulcos do “rio da vida”, temos que ler o rio e compreendê-lo, e podemos fazer
esta leitura sem nomear o rio, podemos vê-lo na beleza do seu anonimato do nosso
anonimato e, estendendo esta condição de anônimos para a vida dos “outros anônimos”,
neles nos recomeçarmos, como poetizou Mário Quintana (1906-1994): “Não dê nome ao rio, /
é sempre outro rio a passar./ Nada jamais continua, / tudo vai recomeçar.”
105
Ao tocarem as músicas deste gênero, siglado como rap, e se estivermos presentes ao
ritual, notaremos que algo muda: instala-se imediatamente um clima de reverência. A trilha
musical se resume a um sincopado cardíaco, e uma fala corrida de poesias cruas dá-se a ouvir.
Emerge nas pessoas um orgulho único, não promovido pelo que exatamente se fala nas letras
– quase sempre narrativas de dores e padecimentos – mas pelo tom de reivindicação e
pertença que o ritual performático instala no público. Desenha-se naquele espaço de reunião,
as fronteiras de um novo território, habitado por cidadãos, e não mais por sub-cidadãos. E
esta experiência é muito próxima do arrebatamento, do maravilhamento.
Ao longo desta dissertação traçamos um quadro deste gênero de registro artístico,
observando, a partir de um recorte específico: o aspecto social da arte e o papel do artista; a
escrita nascida nas margens da sociedade; o conceito de nação na contemporaneidade; o
hibridismo e o processo de crioulização das culturas no mundo globalizado; a história do rap
e as temáticas através das quais elabora o seu discurso de alteridade.
Igualmente postulamos que existem conceitos acadêmicos que substanciam nossa
hipótese de poder enquadrar os escritores de rap como autores literários, que traduzem com
sua poiética particular os anseios das populações incluídas no conceito contemporâneo da
“nova pobreza”, ou seja, pessoas submetidas a um estado contínuo de privações de emprego,
de habitação, de saúde, de direitos civis e, talvez a mais importante, a privação da esperança.
Em nosso estudo, destacamos que a produção deste tipo de discurso artístico foi fruto de
um processo histórico de desmantelamento, remontagem e aperfeiçoamento cultural do povo
diaspórico africano que, ao cruzar o Atlântico, gerou no ventre dos navios negreiros a
promessa de uma nova civilização, erigida com os tijolos moldados com a argamassa dos
hibridismos artísticos. E, neste território onde passariam a habitar, foi pela arte da música,
aliada ao canto e à dança, que sua nova concepção de pertença surgiu, principalmente através
do uso da voz contaminada pelas misturas culturais, voz esta que ressoou inicialmente como
um grito na plantation e reverberou nas Américas, na melodia das palavras e nas suas novas
concepções musicais: nada do que foi produzido nas novas terras americanas deixou de passar
pelo negro e seu blues, seu jazz, seu spiritual, seu samba, sua conga, sua cumbia e seu rap. A
cantoria rapeira é fruto desta civilização nascida das trocas históricas e culturais, sempre em
processo, que se tecem nas rotas e nas margens do Atlântico Negro: cabe ao Atlântico
enquanto macrocosmo portador de uma rica diversidade cultural e de uma incontornável e
necessária memória histórica o papel antes subliminar, murmurante, mas agora
acintosamente explicitado – de dar voz aos herdeiros da alteridade, aos párias urbanos, a todos
aqueles vítimas da exclusão.
106
Portadores de uma poética particular, os artistas do rap escrevem suas letras e as
“espetacularizam” em suas performances. Neste ato performático exercem a metáfora do
jorro” resultante da ressonância da voz no interior do texto, seja como lágrima, como chuva
ou como sangue a penetrar na terra. A voz do rapper é água a fecundar o texto, potência de
seu próprio discurso. Discursar remete a dialogar, a reter na memória, a arquivar através da
escrita. E, neste sentido, apontamos também em nossa dissertação para o registro da escrita
dos rappers como o último status desta arte combinatória que não discrimina as possíveis
contaminações por outras formas, outras culturas, outros saberes e outros falares.
Concluímos nosso estudo com um poema fruto de um anseio estético, escrito por uma
pena que, ao mesmo tempo em que risca o papel, sela um compromisso. Com sua leitura
terminamos nosso trabalho, cientes de que rap é compromisso social e literário.
NEGRO POETA DE ESQUINA
Autoria: Serginho Poeta
Meia noite no gueto
Tem um preto parado na esquina
Será ladrão ou vendedor de cocaína?
Se perguntam os tripulantes da barca são-paulina
Que se aproximaram para abordá-lo
Interrogá-lo e espancá-lo
Não necessariamente nesta ordem, é claro
O homem permanece inerte
Ainda assim
Recebe um soco no rosto
Que é dado com gosto
Enquanto um segundo soldado
De um posto maior
Defere-lhe um chute
Não há quem não escute, naquela noite
O açoite moderno
Mas só quem vê é o azul eterno
O celeste noturno...
Cassetete, coturno, cassetete, coturno!
Por um momento
Cessam então o linchamento e ordenam:
Fala negro, não me enrola
O que faz na rua a esta hora?
Venho aqui para fazer poesia
107
Sou poeta da lua
Por isso, troco a noite pelo dia
E é tão triste quem na lua se inspira
Apaixona-se por ela, tornando-a sua lira
Mas apesar dessa paixão que no peito tranca
Não pode com a mão tocar a bola branca
Invejo os astronautas
Eu, poeta, aqui tão distante
E eles, meros militares, lá em cima,
Nos braços da minha amante
Sou poeta da rua.
E nesse caminho estreito
Aprendi a andar, a cair, a levantar
E a ter respeito...Mas nunca temer!
É isso, senhores, o que eu tenho a lhes dizer
Agora, espero que me deixem
Continuar olhando o céu
Pois negro já nasce poeta
Mas também já nasce réu
Ah, mas negro poeta
Isto é afronta! É passar demais da conta!
Meia-noite no gueto
Tem um preto morto na esquina
Os olhos abertos, o corpo ferido
O céu todo refletido no centro da retina
Não era ladrão, nem vendedor de cocaína
Era simplesmente um poeta
Sem escola, sem berço...
Um poeta de esquina.
Serginho Poeta tem 33 anos, é cidadão paulistano e trabalha como motoboy. Atua na
área de ensino como promotor de oficinas de poesia em escolas públicas da periferia da
cidade de São Paulo. Publicou este poema no livro Hip Hop a lápis. (TONI C, 2006, p.121)
108
109
REFERÊNCIAS
ABRAMOVAY, Miriam; (et al.). Gangues, galeras, chegados e rappers. Rio de Janeiro:
Garamond, 1999.
ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
______. A teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
ALBERGARIA ROCHA, Enilce. Revista de Estudos Literários. Revista IPOTESI.
UFJF. V.6, n.2, jul/dez 2002. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2003
ALEIXO, Ricardo, PEREIRA, Edimilson de Almeida. A Roda do Mundo. Belo
Horizonte: Objeto Livro, 2004
BAKER, JR. Houston A. Rap and the academy. Chicago: The University of Chicago
Press, 1993.
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BARCELLOS, Caco. Abusado; o Dono do Morro Santa Marta. São Paulo: Record, 2004.
BARTHES, Roland; (et al.). O texto, a leitura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro
Edições, 1975.
BASTIDE, Roger. Arte e sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1979.
BECKER, Howard. Outsiders: Estudo de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2008
______. Falando da Sociedade: Ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
110
BERGER, Peter L. Um rumor de anjos. Petrópolis: Vozes, 1973.
BERND, Zilá. O que é negritude. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988
BILL, MV, ATHAYDE, Celso, SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de Porco. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2005
BILL, MV, ATHAYDE, Celso. Falcão: meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva,
2006
BOTTON, Alain de. O desejo de status. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
BUZO, Alessandro. Favela toma conta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.
CACHIN, Olivier. L’Offensive Rap. Paris: Gallimard, 1996.
CALVET, Jean-Louis. Langue, Corps, Société. Payot: Paris, 1979.
CAROS AMIGOS: Movimento hip hop. São Paulo: Casa Amarela,1997.
CAROS AMIGOS: Plínio Marcos. São Paulo: Casa Amarela, 1997.
CAROS AMIGOS: Mano Brown. São Paulo: Casa Amarela, 1998.
CAROS AMIGOS: A cultura da periferia – ATO I. São Paulo: Casa Amarela/ Literatura
Marginal, 2002. Anual.
CAROS AMIGOS: A cultura da periferia – ATO II. São Paulo: Casa Amarela/ Literatura
Marginal, 2003. Anual.
CAROS AMIGOS: A cultura da periferia – ATO III. São Paulo: Casa Amarela/ Literatura
Marginal, 2004. Anual.
CESAR, Ana Cristina. Inéditos e Dispersos. São Paulo: Ática, 1998
111
CONTADOR, Antonio Concorda; FERREIRA, Emanuel Lemos. Ritmo & poesia: os
caminhos do rap. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.
COSTA, Haroldo (org.). Fala, crioulo. Rio de Janeiro: Record, 2009.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
______; GUATTARI, Félix. Regras concretas e máquinas abstratas. In: São Paulo: Ed. 34,
1997. Vol.5, cap.15: Mil Platôs.
DIAS, Ângela Maria. GLENADEL, Paula. Estéticas da Crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica,
2004.
DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis: afro-descendente. Rio de Janeiro/Belo
Horizonte: Pallas/Crisálida, 2007.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.
FERRÉZ, Leo. Terrorismo Literário. In: Caros Amigos: Literatura de Periferia- ato I.
São Paulo: Casa Amarela/ Literatura Marginal, 2002
______. Capão Pecado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005
______. Literatura Marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005
______. Manual prático do ódio. Rio de Janeiro: Objetiva, s/data
FIGUEIREDO, Eurídice, PORTO, Maria Bernadette (orgs.). Figurações da alteridade.
Niterói: EdUFF, 2007.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos. Vol. 5. Ética, Sexualidade e Política. Rio de
Janeiro: Forense, 2004.
FREIRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1981.
112
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Tradução
de Vera Mello Joscelyne. Petrópolis, Vozes, 1997
GILROY, Paul. O Atlântico negro. São Paulo, Editora 34, 2001.
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora
UFJF, 2005.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2009.
GOMBRICH, Ernst.H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1995.
HELENA, Lúcia, PIETRANI, Anélia (org.). Literatura e poder. Rio de Janeiro:
Contracapa, 2006.
HOBSBAUM, Eric. O Novo Século. São Paulo: Companhia das Letras, 2000
HORACIO. Arte poética. Madri: Editora Taurus, 1991
IRWIN, William. (coord.). Hip Hop e a filosofia. São Paulo: Madras, 2006.
KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.
KOWARICK, Lúcio. Escritos Urbanos. São Paulo: Ed. 34, 2000.
LABOV, William. Sociolinguistique. Les Éditions de Minuit: Paris, 1976.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Ed.34, 1993
LINS, Daniel (org.). Nietzsche Deleuze: imagem, literatura, educação. Rio de Janeiro:
Forense Universitária; Fortaleza: FCET, 2007.
LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2002
MARX, Carl; ENGELS, Friedrich. Sobre literatura e arte. São Paulo: Global, 1979.
113
MEDINA, Cremilda. A arte de tecer o presente. São Paulo: Summus, 2003.
MENDES, Candido. Representação e complexidade. Rio de Janeiro: EDUCAM, s/data.
MOREIRA, Terezinha Taborda. O vão da voz. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; Belo
Horizonte: Edições Horta Grande Ltda., 2005.
NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Vozes marginais na literatura. Rio de Janeiro: Editora
Aeroplano, 2009
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Ed. Escala. São Paulo, 2007.
NORONHA, Jovita Maria Gerheim (org.). O pacto autobiográfico: de Rousseau à
Internet/Philippe Lejeune. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
OLIVEIRA, Ronaldo de; BORGES, Neuza Pereira; VIEIRA, Carlos Bahdur (coord.).
ABC RAP coletânea de poesia rap. São Bernardo do Campo: SECE, 1992.
OLIVER, Paul. Savannah Syncopators. New York: Paperback, 1970.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Geo-Grafias: Movimientos Sociales, Nuevas
Territorialidades y Sutentabilidad. México, DF: Siglo Veinteuno Ediciones, 2001.
RAMOS, Artur. As culturas negras no Novo Mundo. São Paulo: Editora Nacional,1979.
REIS, Lívia de Freitas. Transculturação e Transculturação Narrativa. In: FIGUEIREDO, E.
(org.) Conceitos de Literatura e Cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental. Porto Alegre: Sulina: Editora UFRGS, 2007.
ROSA, João Guimarães. Guimarães Rosa: ficção completa. 2 v. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994, v.1: Diálogo com Guimarães Rosa.
ROSENFELD, Anatol. Negro, macumba e futebol. Campinas: Ed.Unicamp,1993.
114
RUFATTO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2006
SANTOS, Luís Alberto Brandão. PEREIRA, Maria Antonieta (orgs.). Trocas culturais na
América Latina. Belo Horizonte: Pós Lit/ FALE/ UFMG; Nelam/FALE/UFMG, 2000.
SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São
Paulo: EDUSP, 2005.
SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o racismo. Lisboa: Editora Difel, 1968.
SCHOLLHAMMER, Karl Erik. À procura de um novo realismo – teses sobre a realidade em
texto e imagem hoje. In: OLINTO, Heidrum Krieger (org.) Literatura e Mídia. Rio de Janeiro:
PUC-Rio, São Paulo: Loyola, 2002.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missãotensões sociais e criação cultural na
Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983
SILVA, José Maria; SILVEIRA, Emerson Sena da Silveira. Apresentação de trabalhos
acadêmicos. Juiz de Fora: Templo, 2004.
SILVA, Nilza da Silva. Nem para todos é a cidade. Brasília: Fundação Cultural
Palmares, 2006.
SOUILLIER, Didier. La littérature baroque em Europe. Paris: PUF, 1988.
SOVIK, Liv (org.). Da Diáspora: identidades e mediações culturais/ Stuart Hall. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003.
TONI C. Hip-Hop a lápis. São Paulo: Anita Garibaldi, s/data.
VELHO, Gilberto (org.). Sociologia da Arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966.
______. Sociologia da Arte II. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
WELLECK, René, WARREN, Austin. Teoria da Literatura. Lisboa: Publicações Europa-
América, 1976
115
ZENI, Bruno (coord.). Sobrevivente do rap (do massacre do Carandiru). São Paulo:
Labortexto Editorial, 2002.
ZOLADZ, Rosza W.vel (org.). Imaginário brasileiro e zonas periféricas. Rio de Janeiro: 7
Letras/ Faperj, 2005.
SITES CONSULTADOS:
BIBLIOTECA on-line. Disponível em: <http://www.wikepédia.com/biografia>. Acesso em
13/03/2009
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo:
Editora 34, 1997. V.4. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/19487693
/gilles-deleuze-a-literatura-e-a-vida>. Acesso em:15/03/2009
MATHIAS, Erika Kelmer. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/enc2007
/anais/5/1516.pdf> Acesso em 12/05/2009
Disponível em: <http://www.cliquemusic.uol.com.br/artistas>. Acesso em 10/05/2009
Disponível em: <http://www.letrasdemusicas.com.br/biografias>. Acesso em 10/04/2009
Disponível em:<http://www.rapnacional.com.br>. Acesso em 10/04/2009
Disponível em: <http://www.bluesworld.com>. Acesso em: ?????
DISCOGRAFIA:
P. MC E POETAS DE RUA. Revolução por novos ideais. São Paulo: TNT Records,1995.
RACIONAIS MC’S. Raios-X do Brasil. São Paulo: Zimbabwe Records, 1993.
RACIONAIS MC’S. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Cosa Nostra, 1998.
RACIONAIS MC’S. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Unimar Music, 2002.
CÂMBIO NEGRO. Cambio Negro. São Paulo: Trama, 1998
116
CÂMBIO NEGRO. Diário de um feto. São Paulo: Discovery, 1995
CÂMBIO NEGRO. Sub-Raça. São Paulo: Discovery, 1993.
GOG. Tarja Preta. São Paulo: Só Balanço, 2004
117
ANEXOS:
Anexo A - Estudo de caso
As coisas que vejo me vêm como eu as vejo.
PAUL VALÉRY
Não tenho gramática/tenho prática.
P.R.O.
A criação artística, literária ou não, sempre se constitui como um depoimento sobre o
seu criador. Seja na forma de um depoimento explícito, como nos casos das autobiografias
literárias, onde o texto é escrito na primeira pessoa o Eu, somente eu”, de Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778 ou de forma fictícia, espelhado na criação de um personagem
narrador ou de um personagem ator, conforme Madame Bovary, c’est moi de Gustave
Flaubert (1821-1880). Philippe Lejeune nos explica que o autor se inscreve, simultaneamente,
em seu texto e em seu contexto:
Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito a um só
tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define
como sendo simultaneamente uma pessoa real, socialmente responsável e o
produtor de um discurso. (LEJEUNE, 2008, p.23)
Um artista, na tessitura de sua obra, cria um “espaço autobiográfico” onde pode
claramente se situar como protagonista, ou explicitar situações identitárias que tecem um elo
entre ele e a sua escrita. E nós, leitores, somos seduzidos por narrativas que se aproximam de
uma realidade que nos é reconhecível, ou na qual nos reconhecermos.
A sedução pelo outro e sua escrita é um fenômeno que atualmente tomou outros
caminhos além das tradicionais narrativas de expressão artística, como as que despontam na
rede mundial de computadores na forma de sites pessoais e blogs. A “blogsfera” nos fornece
uma intoxicação de vidas reais e ficcionais que anseiam silenciosamente por serem lidas.
Nada que não nos surpreenda nestes nossos tempos de “espetacularização do sujeito”, tempos
da ânsia do falar de si, como Arfuch destaca:
118
O avanço da cultura midiática de fim de século oferece um cenário privilegiado
para a afirmação desta tendência. Nela se produz uma crescente visibilidade do
privado, uma espetacularização da intimidade e a exploração da lógica da
celebridade, que se manifesta numa ênfase tal do autobiográfico, que é possível
afirmar que a televisão se tornou o substituto secular do confessionário eclesiástico
e uma versão exibicionista do confessionário psicanalítico. Assistimos hoje a uma
proliferação de narrativas vivenciais, ao grande sucesso mercadológico das
memórias, das biografias, das autobiografias e dos testemunhos; aos inúmeros
registros biográficos na mídia, retratos, perfis, entrevistas, confissões, talk shows e
reality shows; ao surto dos blogs na internet, ao auge das biografias intelectuais, de
relatos pessoais nas ciências sociais, a exercícios de “ego-história”, ao uso dos
testemunhos e dos “relatos de vida” na investigação social, e à narração auto-
referente nas discussões teóricas e epistemológicas. (ARFUCH, in: KLINGER,
2007, p.22/23).
Todo relato remete para um além de si mesmo. Nunca aquele que escreve é um “eu
solitário”, pois ele escreve a partir de seu arquivo de referências culturais - os filmes e as
peças teatrais assistidos, os quadros vistos, os livros e os textos lidos - que compõem a sua
intertextualidade. Assim, toda obra de arte é continuada e reinterpretada no e pelo
leitor/espectador. E os textos de Humberto Eco, Jacques Derrida, Roland Barthes e Michel
Foulcault, nos apontaram tanto para a “morte do autor”, quanto para a intertextualidade e a
complementaridade entre quem escreve e quem lê. Somos todos co-autores, e, nesse sentido,
nossa fruição da obra de arte e nossas biografias contribuem para a construção da arte.
José Paulo é um rapper nascido em Juiz de Fora, em 1965, que reside em São Paulo
aproximadamente uns 15 anos, onde trabalha com a arte do rap e realiza trabalhos sociais em
parceria com algumas ONGs que atendem jovens de periferia. Também atua na FEBEM
como artista e professor num projeto intitulado “Oficina de Palavras”. Foi nos anos 80 que ele
descobriu o mundo dos rappers através da mídia: as trilhas das publicidades de refrigerantes,
a moda da garotada, os ídolos pop e toda a estrutura intrigante trazida por aquele estilo onde
um ritmo marcado servia de base para uma récita rimada. A sedução foi imediata e José Paulo
anteviu, naqueles tempos onde era apenas um observador, o embrião do artista P. MC autor
de raps no qual ele se tornaria – que iria emergir na cena pouco tempo depois.
Mesmo uma infância com poucos recursos materiais não impediu que nosso
personagem tivesse uma boa formação escolar, investimento incansável de sua mãe, que o
colocou no pré-primário num colégio de freiras, onde era um dos alunos mais aplicados por
causa de um fator fundamental: José Paulo gostava de ler.
A leitura, inicialmente limitada ao universo das publicações infantis e escolares, foi o
elemento principal de sua iniciação e estruturação intelectual e artística. Mas não foi o único
elemento que desencadeou o seu processo criativo: José Paulo era curioso o suficiente para se
sentir atraído por tradições e manifestações folclóricas, como a Folia de Reis, da qual
119
participava como seguidor dos palhaços e ajudava a cantar as músicas. Durante os festejos do
Dia de Reis, o incansável menino percorria as ruas e virava noites atrás dos grupos
folclóricos, juntamente com seu primo que tocava tambor. Foi exatamente através desta
manifestação popular da literatura oral brasileira que se deu o primeiro contato do artista com
a rima: (ver entrevista completa no anexo B):
Subi num pé de coqueiro
subi num pé de limão
sonhei que abraçava um menino
acordei abraçando um leitão. (Folclore brasileiro)
Sua formação escolar seguiu com qualidade e o encaminhou para uma escrita mais
freqüente, impulsionada pelo rap, agora uma arte cuja presença se tornou permanente em sua
vida. A audição dos artistas estrangeiros o intrigava pela qualidade da fórmula dupla “texto e
música”, que o estimulava a ouvir cada vez mais o gênero. A mera repetição de determinadas
sílabas na música rap era instigante, como explica P. MC: “parecia que o cara era gago”.
Esta “gagueira” faz parte da estrutura do rap, e ela é uma herança de tradições africanas,
sistematizada, posteriormente, como um elemento de comunicação na plantation. Assimilada
pela fala dos guetos, seduziu os rappers pela sua fluidez rítmica, conforme nos explica
Terezinha Moreira:
(...) faz a língua “fugir”. Fazem-na deslizar. Gaguejar. Bifurcam-na evariam seus
termos, segundo uma incessante modulação que imprime, na escrita, lapsos,
rangidos, sons, ligações estiradas, precipitações e desacelerações brutais que lhes
permitem, atingir a performance oral dos contadores de histórias. (MOREIRA,
2005, p.84)
O crescimento pessoal e a curiosidade intelectual logo colocaram P. MC em contato
com a produção de rap nacional: Thayde e DJ Hum, GOG, Câmbio Negro e os avatares dos
rappers brasileiros: Racionais MCs.
A complexidade musical e textual do estilo, agora compreensível estruturalmente para
nosso artista, representou para ele um elemento libertador e identitário - todas as vivências, as
marcas, as dores, as injustiças e as lutas que compunham o cotidiano de José Paulo passaram
a ser cantadas e figuradas através de letras contundentes, fortes. Em suas composições e
performances explicitava os aspectos cruéis de sua vida particular e de seus semelhantes e
vizinhança, desvelando, em ritmo e poesia, de forma coletiva, as máscaras hipócritas da
120
democracia racial brasileira que concernem à questão racial e à condição de ser negro no
Brasil.
Os seus métodos de escrever e compor foram aprendidos da maneira como a maioria
dos rapeiros aprendeu; pela livre assimilação e pela fruição espontânea. Escrevendo,
rabiscando, reescrevendo, apagando, lendo e relendo, as letras rimadas de José Paulo foram
saindo de sua cabeça e indo para o papel. Essas, ao mesmo tempo em que eram escritas e
construídas, também construíam o artista P. MC, o Poeta de Rua, residente no bairro Bela
Aurora, que agora cantava/discursava, através dos seus raps avassaladores, a sua aldeia. E as
temáticas abordadas em suas composições, e sua performance vocal e corporal, inseriam sua
aldeia dentro da complexa problemática da alteridade, da exclusão e da violência vivenciada
hoje por diferentes parcelas das populações em âmbito mundial.
SANTA RITA
Autoria: P. MC
Numa noite qualquer
Você pode se assustar
Na Vila se dorme
Não quer mais acordar
Para enfrentar
Um tema perdido
Discutido
Entre polícia e bandido
O que é certo ou errado
O enigma é esse
E quem vai decifrar?
Tai uma pergunta
Que ainda está no ar.
E quem não conhece meu nome
E o sentido de minha vida
Sou poeta de rua
Cantando Vila Santa Rita.
É assim
O tempo passando
E a situação piorando
E os moradores da Vila
Reclamando, implorando
Por uma vida normal
Um bem-estar social
Mas o retorno
Que eles tem
É miséria e violência
Isto os coloca
No elo da delinqüência.
121
E a Assistência Social
Nada faz para lhes ajudar
Na verdade eles querem
É os humilhar,
Discriminar.
Fruto do desprezo pela nossa cor
Eles são negros sim
(E tem o seu valor)
E as autoridades dizem
Que eles tem o que merecem
Mas baseado nestes fatos
As conseqüências aparecem.
Vila Santa Rita
Quem vai ajudar
Tai uma pergunta
Que inda está no ar.
Não!
Não são habilitados
Não tem dignidade
Não conhecem sequer
Não, a sua liberdade.
E as crianças vivendo
Com dificuldade
Muita repressão
É o que elas ganham
Da sociedade.
E as garotas em plena fase
De puberdade,
Se tornam mães
Aos 15 anos de idade
Todas rejeitadas pela comunidade
O caminho a seguir
É a marginalidade.
Vivendo na maldade
Sem vivacidade
Abandonado
Maltratado
Maltrapilho
Precisando de auxílio
Sem informação
Não conhece seu valor
Andam por aí dizendo
Que são terror.
Juventude repreendida
Pela sociedade
Com uma cara sofrida
Perambulando pela cidade
122
Jovem maltratado
Tirado como um ladrão
Vai garantir sua vida
Com um pau-de-fogo na mão.
Falta de alimentação
E de informação
Diariamente comunicado
Com esta situação.
A necessidade se torna
Vício maldito
Vendendo seu cabrito
Na esquina dos aflitos
Um relógio
Uma jaqueta
Um revólver
Um tênis de marca
Não!
Não dá para agüentar
Não da para segurar
As condições de vida
Que tem que enfrentar
Amedrontado
pela forte repressão
da ROTAM
e com certeza
eles sabem do seu amanhã
e algemado na caçapa
seu destino caminha então
para o presídio
de Santa Terezinha.
Vila Santa Rita
Quem vai ajudar
Tai uma pergunta
Que ainda está no ar.
Jovens inocentes
Sem maldades na mente
Se tornam dependentes
De entorpecentes
Eles precisam de ajuda
Para se livrar,
Mas a sociedade
Finge não enxergar
Que nas esquinas da vida
Eles vão distribuir
O conhecido papelote
Para se garantir.
E a polícia quando pá! pá!
123
Não quer saber de nada
Simplesmente o que eles fazem
É dar muita porrada
E por tanta violência
Eles pedem clemência
Por ser um povo sofrido
Perdido
Mal amado
Vivendo muito mal
Malandragem total
Com seu rosto no jornal
Página central
E para o mundo do crime
É agora mais um marginal.
E às cinco e meia da tarde
A notícia é fatal
É Vila Santa Rita
Na ronda policial.
Vila Santa Rita
Quem vai ajudar
Tai uma pergunta
Que ainda está no ar.
A vida do artista na cidade de Juiz de Fora era árdua, não pela dificuldade em
encontrar espaço para as suas apresentações como cantor, mas também para o ganho do
dinheiro necessário para se manter. Junte-se a estes fatores, a sua cada vez mais crescente
visibilidade no cenário dos bailes e das galeras dos subúrbios, o que aumentou a sua
responsabilidade por ser o rapper mais conhecido da cidade, para cuja figura convergiam
todas as projeções artísticas e as representações ideológicas associadas à sua posição de
destaque. Desta forma, o rapper se viu depositário das expectativas de ser o porta-voz de todo
um grupo de pessoas que se viam por ele representado. E, depois de muita luta, dramas
pessoais e questionamentos internos, P. MC decidiu, graças ao apoio de incentivadores, deixar
Juiz de Fora e ir tentar sua vida em São Paulo. Lá, sabia, haveria dificuldades, mas também
haveria oportunidades, que era o local onde o rap brasileiro e o movimento hip hop tinham
a sua maior concentração de atores.
Na Paulicéia, o rapper mineiro conseguiu cravar seu trabalho e batalhar por seu lugar,
conseguindo abrir espaço para que sua arte fluísse exatamente no meio onde o
reconhecimento de seu valor como artista se traduzia por melhorias profissionais. Interagindo
com os artistas locais, mantendo contatos com os profissionais certos, P. MC demarcou seu
terreno e se tornou uma figura importante no cenário do rap brasileiro. Sua carreira se
124
expandiu através de shows, gravou músicas com artistas nacionais importantes, inseriu seu
trabalho na mídia, participou de eventos que entraram para a história do rap brasileiro, e conta
hoje com o reconhecimento por parte do público e da crítica. Sua última incursão profissional
é a sua atuação como ativista cultural em várias entidades assistenciais que atendem aos
adolescentes infratores, onde executa um trabalho com a escrita, a leitura e o rap.
José Paulo se chama José Paulo, sem sobrenome. Esta condição de anonimato o dilui
numa indigência social/familiar e lhe uma condição de universalidade. Por não ser um
alguém portador de um registro oficial de seu passado hereditário, P. MC se torna um
membro representativo da coletividade, e sua genealogia possível, e dedutível, o encaminha
para o berço de todos os homens: o continente africano.
Seja pela cor de sua pele, mas, antes de tudo, por seu passado de exclusão social, P.
MC torna-se um real representante da ninguendade” brasileira, do anônimo das ruas, do
exilado sem identidade, do expatriado, do errante diaspórico, o que o situa em qualquer lugar
do mundo de hoje marcado pelo número crescente de excluídos dos direitos sociais e de
cidadania. Nosso personagem, consciente do seu despojamento social/racial/econômico, se
percebe como tal e se nutre dessa sua condição para se fazer presente no território de pertença
dos homens pelo caminho mais eloqüente - o da palavra. Através da sua palavra recitada se
imbui do poder da fala incógnita daqueles que representa.
A leitura do trabalho escrito por nosso rapper surpreende por ser tão provocador no
tato, tão prudente na sua eloqüência. P. MC faz do incógnito a lei da sua poesia. A sua
construção de versos é comparável ao plano de uma grande cidade (onde habita
verdadeiramente), em que as pessoas podem movimentar-se despercebidas, escondidas por
blocos de edifícios, portões ou pátios. Na mesma cidade que, em sua obra A situação das
classes trabalhadoras na Inglaterra, Engels descreve:
(...) Pode-se caminhar horas inteiras sem chegar ao menos ao começo de um fim,
tem algo de desconcertante. Esta concentração colossal, este amontoado de dois
milhões e meio de homens em um só lugar, centuplicou a força destes dois milhões e
meio de homens... Mas tudo isto que... isto custou, é algo que se descobre somente
em seguida. Depois de haver vagabundeado vários dias pelas ruas principais...
Começava-se a ver que estes londrinos devem ter sacrificado a melhor parte de sua
humanidade para realizar os milagres da civilização, dos quais a cidade está
fervilhante; que neles permanecem inativas e foram sufocadas cem forças
latentes...Finalmente, o fervedouro das ruas tem algo de desagradável, algo contra
o qual a natureza humana se rebela. Estas centenas e milhares de pessoas, de todas
as classes e de todos os tipos que se entrecruzam e se comprimem, não são por
acaso homens, com as mesmas qualidades e capacidades, e com o mesmo interesse
de serem felizes?...E não obstante, ultrapassam-se uns aos outros, apressadamente,
como se nada tivessem em comum, nada a fazer entre si; não obstante, a única
convenção que os une, subentendida, é que cada um se mantenha a direita ao andar
pelas ruas, a fim de que as duas correntes da multidão, que andam em direções
125
opostas, não se choquem; não obstante, a ninguém ocorre dignar-se a dirigir aos
outros, ainda que seja apenas um olhar. A indiferença brutal, a clausura insensível
de cada um nos próprios interessas privados torna-se tanto mais repugnante e
ofensiva quanto maior é o número de indivíduos que se aglomeram em um espaço
reduzido. (ENGELS, in BENJAMIN, 2000, p.46/47).
O rapper torna-se cúmplice da multidão sem rosto e quase se afasta dela quando rima
suas líricas. Ao subir no tablado para cantá-la, ao invés de destacar-se, mistura-se
profundamente a ela para fulminá-la e, ao mesmo tempo, redimi-la. Fala por ela e ela o
reverbera repetindo seus versos ritmados.
Neste plano poético, as palavras de P. MC têm seu lugar indicado com precisão, como
as palavras dos conspiradores antes de uma revolução: o artista conspira com a própria língua,
calcula seus efeitos a cada passo e é guiado pelo ímpeto de sua paixão pelas palavras e pelas
temáticas que aborda.
No exercício da sua arte, nenhuma palavra de seu vocabulário está destinada, de
antemão, a uma alegoria. Ele executa suas escolhas conforme o assunto a ser abordado e
destrinchado. A sua poesia é um ato de violência e nisto ele recorre a alegorias. São as únicas
que fazem parte do segredo de seu fazer. A crueza de seu discurso desperta outras fomes,
fazendo um contraponto com as anorexias da contemporaneidade. O artista usa seu arsenal de
experiências para esculpir seu texto com a mesma precisão e violência com a qual o
escultor retira do bloco de pedra uma poesia bruta, mas lírica. Sua experiência consiste,
precisamente, de acontecimentos fixados com exatidão na lembrança e na pele, mas também
de dados acumulados, freqüentemente, de forma inconsciente, e que afluem à memória,
descontroladamente, involuntariamente, portadores talvez da fala atávica de seus
antepassados.
Esta memória involuntária corresponde ao repertório íntimo do artista; mas nos arquivos
da experiência do sujeito, certos conteúdos do passado individual entram em conjunção com
elementos do passado de uma memória coletiva. Esta abordagem nos confronta com o artista
diaspórico, produtor de uma cultura híbrida, que mistura elementos da cultura diaspórica aos
discursos da atualidade. Como artista, percebe, apaga e reescreve as cartografias
contemporâneas, criando seu próprio território, que não tem fronteiras demarcadas.
A escrita pode ser como um sismógrafo sensível de um tipo de forças que ultrapassam o
sensível perceptivo. O artista, como perceptor de seu tempo, registra o mundo através de sua
sensibilidade libertadora. Como diz Clarice Lispector, a arte é purificação e não pureza,
libertação e não liberdade”.
126
Desta forma, P. MC o mundo e se sente um verdadeiro tradutor de realidades
desconfortáveis, transitando em espaços onde medram as vidas minúsculas, os
acontecimentos mínimos e as felicidades anãs. Traduz um universo de desesperanças
concretas, pouco visitado por sensibilidades suscetíveis. Faz um uso transcendental de seu
olho armado, vendo o invisível, aquele invisível que se quando se é violentado por um
dedo no olho. Faz um acoplamento de forças: a força sensível do grito e a força insensível do
que faz grita
LUZ VERMELHA
Autoria: P. MC
Uma luz vermelha desponta no início da rua
Uma interrogação na minha cabeça e na sua
Ela vem se aproximando cada vez mais
E um clima pesado já não mais te deixa em paz
Homens negros e brancos todos maliciosos e desconfiados
Te regulando então com um olhar fixado
Porém ela passa e a gente fica aliviado.
Quando o clima é totalmente tranqüilo
Novamente a luz vermelha aparece na rua
Ela pára, enquadra, é a viatura
- Mãos na cabeça...Você, deitado no chão
Eles perguntam: Tem flagrante?
E você: - Não, evidente que não.
Na sua cabeça o ferro ele segura, tremula a mão
Acelerando a batida do seu coração.
- É foda! Não dá para agüentar
Inseguro e preocupado você continua
E a luz vermelha reluzindo
No teto da viatura
Clareando a cena da humilhação
Muita interrogação,
Muito choque de mente,
Uma terrível situação.
Quem não deve não teme
É o que dizem por aí
Mas estando certo ou errado
O tambor pode girar
É melhor se jogar, correr
Corre que lá vem os hômi
Corre, corre
127
É tudo meio estranho e cabuloso, entende?
O medo te domina, desorienta, mexe na adrenalina.
E você se pergunta: Qual será a minha sina?
A mesma luz vermelha exibida no teto da viatura
Ilumina agora o brilho dos teus olhos
Um brilho de medo, com muita insegurança
Também, diante de tal situação, tal ignorância
É total a desconfiança.
Cagando de medo de homens iguais a você
Que não sabem, não querem, não acreditam, que só o hôme lá de
cima tem o poder
A razão versus emoção, condenação versus libertação
É melhor se jogar, disparar, correr
Corre que lá vem os hôme...
Bota preta engraxada
Bicudo na cara,
Cacetete na mão, Punho cerrado
Porrada no pulmão
Qualquer palavra de piedade
É sinônimo de desacato a autoridade.
Aí fudeu! Já era!
Muita tortura
Agulha embaixo da unha
Roupa mijada
Porrada no pau de arara
Brincadeira sacana:
Tapas, socos, chutes
No corredor polonês
Se der, se puder, se joga, pode correr
190 é o terror protegendo você.
Recorremos a Baltazar Gracián para delinear uma possível anatomia da poética rústica
de P. MC:Uma palavra é como uma hidra vocal porque, além de sua significação própria
direta, se a cortarmos ou a invertermos, de cada sílaba renasce uma sutileza de
engenho e de cada inflexão um conceito. (GRACIÁN, apud SOUILLIER, 1988, p.207)
Se, em termos de postura, frente a uma obra produzida por um “artista inculto”, somos
convocados a nos libertarmos dos preconceitos que nos afastam de uma possível “nova
literatura espontânea”, que nasce para o usufruto do espectador assim como todas as suas
demais “irmãs de métrica”, lembremo-nos que as narrativas do rap passam pelos épicos
particulares, pelas sagas domésticas, pelos evangelhos individuais. Através de rimas simples,
mas com uma escrita desapegada e descarrilada dos trilhos da norma culta, inscreve-se, no
128
altar da literatura, um “poema sujo” escrito por poetas nascidos na sarjeta da sociedade, na
senzala contemporânea, alguns ainda com as marcas indeléveis da escravidão histórica re-
significadas pelas marcas invisíveis da escravidão moderna.
Retomando a escrita de P. MC, ressaltamos o texto abaixo:
hoje nós temos três microfones quatro mc`s pra todos vocês primeiro
vai o p meu irmão agora é sua vez, agora fica com seu ouvido bem
aberto você vai tomar um sacode só pra fica esperto do barroco
mineiro ao rap brasileiro que se foda eu cantá de galo no seu
terreiro, o picolé de asfalto vai derreter na sua boca palavras
amargas na sua goela a força, quiseram fazer de mim negão arrasado
mais continuam por ai tudo fodido e mau pago, eu tentei mudar quis
amenizar mais o movimento quis me condenar respeito a quem
merece e bom de mais da conta quem tem sangue de b-boy ligado
na resposta, agora é pra chutá o pau da barraca, se eu escuta
conversinha eu to partindo é pra porrada, muito obrigado pela quem
adia do meu pelo pai celestial pode crê será bem pago
um microfone dois microfone três, chega mais que agora é nossa vez,
um microfone dois microfone três, jigaboo mandando rima pra vocês,
um microfone dois microfone três, pra ti mostra que aqui não tem
freguês,
um microfone dois microfone três, tio fresh vai que agora é sua vez,
é no um, dois, três digo a vocês não freguês, se rap for tecnologia
arigatô seu japonês, meia dúzia de filha da puta falaram que eu me
vendi (e ai) o preço disso foi a mina deles que eu consegui e se
microfone for revólver então eu sou do crime meu verbo é mais
pesado e odeia fazer regime se eu for pego roubando um banco ou até
um tênis puma respondo em liberdade e mando na frente do romeu
tuma, tão perigoso se o guarda me vê ele corre, to doente se o hiv vem
me pegar ele morre você pra mim é peixe eu tenho a vara e o anzol
minha voz faz seu ouvido usar óculos de sou minha rima será tema de
debate em qualquer escola o pinto do meu pai foi encontrado sem as
bola, sua rima e um chinelo de dedo a minha e um tênis reebok sp
funk anuncia que e o lado b do hip hop
um microfone dois microfone três, chega ai mostra o que você fez,
um microfone dois microfone três, eu to achando que agora é a nossa
vez,
um microfone dois microfone três, pra ti prova que aqui não tem
freguês,
um microfone dois microfone três, pmc vai que agora e tua vez,
sou mc e nunca falo o que eu não sei ando sempre bem informado pra
passar o meu recado e você sai por ai dizendo que sou alienado
muito preocupado parece até que quer dar o rabo enquanto eu fazia
hip-hop você fazia rock o seu cabelo e de bicha que pra dormir se pa
enrola bobe fica ligeiro ou largado se fica esperto porque aqui e
emiziele e todo mundo come quieto você não ligado chego ontem
no movimento e não ligado então pergunta aos seus manos a seus
aliados fica ai falando uma par sem saber qual que é a kevenin e o
129
cone e a maldade esta sempre de sua mãe, sua mina tia e prima
toda sua família gosta da minha rima eu um cara esperto não
tenho a língua comprida são doctors mc`s atormentando a sua vida
um microfone dois microfone três, chega mais que agora é nossa vez,
um microfone dois microfone três, jigaboo mandando rima pra vocês,
um microfone dois microfone três, pra ti mostra que aqui não tem
freguês,
um microfone dois microfone três, ai suave agora é sua vez,
é minha vez então eu falo o que eu quiser no microfone com mais
barulho que tua barriga quando tá com fome, eu quero ver alguém me
derrubar se rap fosse proibido nego ia ter que me multa ou me leva
para o pinel eu faço rap pra torcida do palmeiras com a camisa da
fiel, não to aqui de brincadeira tem gente ai que tira onda suave tira a
praia inteira eu metido e cheio de marra o meu nariz é tão impe
que seu respiro cai na tua cara, não vo muda eu sempre fui assim que
falem bem que falem mal mais pelo menos que falem de mim, eu to
sendo realista deixei tua cabeça dando voltas como naquele filme o
exorcista, no meio da pista de dança tendo mais convulsões que o
ronaldinho na copa da frança
um microfone dois microfone três, chega ai mostra o que você fez,
um microfone dois microfone três, eu to achando que agora é a nossa
vez,
um microfone dois microfone três, pra ti prova que aqui não tem
freguês,
um microfone dois microfone três, jigaboo vai que agora é sua vez.
De forma corrida, direta, o texto do rap de PMC metralha como um devaneio, ou
melhor, como um delírio febril, nascido das inflamações doloridas das chagas da diáspora
africana. O grito literário do rapper mineiro, todo escrito em caracteres minúsculos, é contra a
opressão de um sistema político que perpetua práticas de alienação generalizada, tal como
colocado por Alice Cherki no prefácio do livro Condenados da Terra, de Frantz Fanon (2006,
p.13): “(...) alienação por um mundo dominante, que subverte e altera tanto as coletividades
quanto os sujeitos, em seu devir pessoal”.
Dando voz ao autor antilhano que, através de seu conhecimento e atuação profissional
na área da psiquiatria, fez um dos discursos mais contundentes sobre a violência do processo
da colonização e apregoou uma descolonização que não descartasse a revolta, a insurgência, e
nem a radicalidade da linguagem do colonizado quando este falasse a linguagem do
colonizador, citamos Fanon (2005 p.52/53):
A descolonização nunca passa desapercebida, pois diz respeito ao ser, ela modifica
fundamentalmente o ser, transforma espectadores esmagados pela inessencialidade
em atores privilegiados, tomados de maneira quase grandiosa pelo rumo da
História. Ela introduz no ser um ritmo próprio, trazido pelos novos homens, uma
nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é verdadeiramente a
130
criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de
nenhuma potência sobrenatural: a “coisa’ colonizada se torna homem no processo
mesmo pelo qual ela se liberta.
P. MC surge neste nosso trabalho acadêmico como um caso real, próximo de nós,
vizinho de nossas vivências cotidianas e que figura muito bem como exemplo da
universalidade do procedimento do rapper enquanto verbalizador e escritor que representa
populações que sub-habitam as nossas sociedades. Se em nossa dissertação tentamos mostrar
a capacidade de um ator social em se habilitar e em se capacitar para adquirir a competência
de um tipo de discurso ideológico reivindicatório que se expressa através da construção de
rimas poéticas, é porque acreditamos que no enquadramento do perfil deste artista de rua está
presente a viabilidade deste processo artístico e o seu caráter emancipatório, e a possibilidade
de seu reconhecimento como válido. Terminamos nossa consideração com a letra do primeiro
disco deste rapper juiz-forano, intitulado eloqüentemente de “Revolução por novos ideais”:
REVOLUÇÃO
Autoria: P. MC
Revolução!
Revolução!
Revolução!
Muitos anos se passaram
E quase nada mudou
E nosso povo continua
Agora sem ter valor.
Eu não estou aqui
Querendo aparecer, não.
É apenas a verdade
que agora venho lhe dizer.
Então,
Diga que agora
Pelo menos vai entender
Este recado
Que eu transmito para você.
Estou te alertando
Estou te implorando
Para você parar, pensar
Poder analisar
Então,
Se conscientizar, irmão!
Você deve parar,
Raciocinar, refletir,
Sobre o que tem feito
Da sua vida até aqui.
131
Além de se sujeitar, a aceitar
Qualquer tipo de imposição,
Deixando ir por água abaixo
Ideais de nossos irmãos.
Que a séculos clamam:
Liberdade!!!
E nem na hora da morte
Perderam a dignidade.
Discriminado,
Otário,
Não se dá valor.
E por aí anda dizendo
Que é o terror.
Eu estou te alertando,
Estou te implorando,
Para você parar,
Pensar,
Analisar.
Então!
Se conscientizar, irmão.
É!!!
A hora a verdade é essa.
Eu quero ver então:
Revolução!
Filmaram e publicaram
100 anos de abolição,
100 anos de mentira,
Tudo isto é ilusão.
Revolução!
O nosso povo
Já vive com medo,
Ameaçado,
Humilhado,
Fudido também.
Discriminado, simplesmente.
Isto acontece
Em vários lugares.
Vamos gritar, irmãos!
Salve! Zumbi dos Palmares!
Um guerreiro de atitude
E personalidade.
Estrela negra,
Apagada na nossa sociedade.
Cabelo duro,
Boca grande,
Nariz achatado:
É o que eu herdei, sim,
132
Dos meus antepassados.
500 anos de sangue
Também de muita luta
Então,
Não pago comédia
Para quem não me escuta
Capacidade/ verdade
Verdade/ capacidade
Capacidade não é ser
Melhor que ninguém
É fazer você ouvir
Ouvir uma verdade
Que publicaram,
Que publicar uma mentira.
E aí?
Fugindo da realidade
Então!
Revolução!
Filmaram e publicaram
100 anos de abolição
100 anos de mentira
Tudo isto é ilusão
Revolução!
O racismo está em sua casa
E você agora finge que não enxerga
Querendo a vida separada
De pessoas normais
Que dentro da sociedade
Buscam idealizar.
Violência e humilhação
Não agüento mais
E o sistema traiçoeiro
Por nós nada faz
Então!
Vamos virar a mesa
E lutar pelos nossos ideais.
A muito tempo que estamos
Vivendo na merda
Cada dia que passa
A coisa fica mais feia
Pô! Não agüento mais
Esta situação
É, rapaz,
Essa coisa realmente está preta
A coisa nunca esteve preta
Sempre esteve branca
Os poderosos dominam
133
A sociedade
Com muita desigualdade.
Sociedade racista
Que inferniza nossa vida.
Essa é a verdade!
Levando tiro,
Porrada na cara,
Mão de polícia,
Batendo na nossa cara,
Situação descontrolada.
É foda!
Um país onde muitos
Não conhecem a história.
Passando anos e anos
Sem nenhuma memória.
Comemorando derrota,
Não existe vitória.
Somos América!
América do Sul!
Temos capacidade
De lutar por igualdade.
Como o Rei do Quilombo,
Zumbi dos Palmares!
Revolução! Sim!
Revolução! Então!
Revolução de ideais,
Com muita reflexão.
Revolução!
Revolução!
Revolução!
134
Anexo B – Entrevistas P. MC
ENTREVISTA 1
Entrevista concedida ao autor no dia 17 de julho de 2009, em São Paulo.
AFONSO: O que você está fazendo agora?
P. MC: Estou trabalhando com o pessoal de algumas ONGs e na FEBEM com os internos
no Tatuapé. Venho fazendo este trabalho algum tempo por convite dos organizadores e
estou mantendo a função até porque minha atuação rende muito. Sou um dos poucos que
conseguem lidar com os diferentes níveis dos internos.
AFONSO: Que níveis são estes?
P. MC: De periculosidade. Tem desde o nível 1, que é baixa periculosidade, até o 4 que é
aquele pessoal realmente perigoso, com idade maior. Tem funcionário que sequer entra
no setor deles. Desta conquista tenho de me gabar.
AFONSO: E este trabalho é com o hip hop, com o rap?
P. MC: Ainda não, mas é um trabalho que envolve a escrita e o texto literário. Chamo este
trabalho de “Oficina de Palavras”.
AFONSO: E como é isto? Eles escrevem? Criam textos?
P. MC: É mais ou menos assim. Eu coloco um grupo de palavras no quadro negro – feio isto,
né? “quadro negro”... e eles fazem uma escolha de palavras ou grupo delas e partem para a
escrita.
AFONSO: E o que gera no fim? O que eles têm que apresentar?
P. MC: Apresentam uma composição, no mínimo de dez linhas, dentro da temática que as
palavras escolhidas sugerem. É difícil no início, eles tem certa resistência até mesmo pela
falta do hábito de ler e, ainda mais, escrever. Mas com o tempo sai coisa muito boa.
AFONSO: Mas é um texto corrido ou precisa fazer rimas, dentro do princípio do rap, etc.?
P. MC: Não, pode ser um texto corrido. Eu começo a pedir uma rima mais na frente, na
quarta oficina, com um texto mais elaborado, mas antes eu vou fazendo assim. Mas no início
135
eu coloco desta maneira: texto corrido. Aí, em cima do material elaborado eu preparo outro
material que exprima a identidade deles. Eu nunca mudo o que eles fazem, eu uso o material
num outro trabalho, pois eles produzem muita coisa. Tudo que sai nos textos tem a ver com a
vida deles, com a realidade deles.
AFONSO: Como é que você entrou nesta história em Minas. Como você começou a se
envolver com o rap e a escrita?
P. MC: Foi devido à chegada mesmo do estilo lá, porque pra nós, na verdade, tinha toda
aquela coisa das campanhas da Coca-Cola, do Michael Jackson, aquela mídia toda, todo
garoto, todo adolescente, andava vestido como ele, de luvinha branca, de “oclinho” da Kodak
e de boné, tanto é que a gente comprava boné no Kodak. Isto era o hip hop chegando e
aí estava toda a turma envolvida com aquilo, como se fosse uma moda mesmo.
AFONSO: Como foi sua entrada, sua participação nisto tudo. Como você escrevia? Você
anotava? Aprendeu vendo os outros, fazia de ouvido, como era?
P. MC: Como tinha muita coisa de norte americano, parece que saiu daí, mas tinha antes os
palhaços da Folia de Reis que faziam versos, eu era daqueles moleques que acompanhavam
aquelas festas todas, eu e meu primo, ele tocava caixa e eu cantava e dançava os pontos.
Virava noite e dia. Tinha muita rima na Folia de Reis. Era interessante aquelas rimas: “subi no
coqueiro/ subi no de limão/ embaixo abracei um moleque/ pensando que era um leitão.”
Isto ficou na minha cabeça. Aí veio a música rap e a sua maneira de cantar.
Eu achava interessante a batida do rap, aquela coisa toda de palavras rimadas dos norte-
americanos, mesmo sem entender, gostava do recitado deles, parecia uma gagueira.
AFONSO: Você sabia que eles (os rappers) chamavam o estilo de “gagueira”? Era isto.
Aquela coisa de ficar repetindo uma sílaba o tempo todo era denominada “gagueira”.
P. MC: É mesmo. Mas diga o que você quer saber, mais específico?
AFONSO: O que me interessa é a origem deste conhecimento seu, do seu rap, de onde ele
veio, como começou a escrever. Era intuitivo? Você aprendeu a escrever na escola, certo?
Você intuiu isto tudo do rap? Intuiu?
P. MC: Imagina?!? Nada de escola. Eu comecei a escrever sozinho.
AFONSO: De onde veio isso?
136
P. MC: Na minha família, primos, irmãos e amigos em geral, e amigos de confidência, desde
a infância e adolescência, eu sempre fui aquele que gostava de estudar, de ler, desde a cartilha
dos Três Porquinhos, né? Na primeira série. Bem, minha mãe sempre preocupou com a minha
educação: eu fiz o pré-primário no Colégio de Freiras, fui muito bem preparado para adentrar
no primeiro grau, tanto que na primeira série era o melhor aluno da classe.
AFONSO: Você lia?
P. MC: Lia...
AFONSO: Livro mesmo?
P. MC: Não, era aquelas cartilhas dos bichinhos, dos animais... E outras leituras, mas nada de
livro. Era caro, na minha casa não tinha como ter.
AFONSO: Então você assimilou o gênero do rap... Foi ouvindo, absorvendo e fazendo. Você
se via como letrista ou como escritor.
P. MC: Como letrista, ainda não me via como escritor.
AFONSO: E você hoje se vê como escritor? Você se vê produzindo uma letra ou uma escrita,
um texto de literatura?
P. MC: Eu comecei a me ver como um escritor em 88 porque eu percebia que primeiro eu
criava uma história e depois fazia o rap. Eu criava uns mini textos e a partir daí eu tirava
umas palavras legais porque não me sentia pronto para rimar. Depois que eu fui
compreendendo a riqueza da rima e das palavras. Era tudo tirado do dia-a-dia, tipo “Ontem eu
vim no ônibus da tarde e vi o trocador implicando com uma mulher, vi um pessoal
protestando no parque Halfeld, vi a polícia dando prensa num moleque que tentou roubar uma
bolsa de uma senhora”, e daí eu tirava a minha inspiração. Nascia destas coisas que
incomodavam, as letras e os assuntos que chamavam a minha atenção. Hoje eu sei que o
trabalho do rapper é este, visto como “artista social”.
AFONSO: O rap nasceu na Jamaica, na América, de uma reivindicação, do protesto, criou
um território ideológico onde juntou um povo que precisava ter voz, mas eu acho que a
estrutura ultrapassou isto, o campo da música. O rap pode ser visto como literatura, uma
obra escrita. O rap sobrevive sem a base, pode ser lido em separado.
P. MC: Com certeza. é assim muito tempo. Quando alguém cantarola um rap, na
verdade ele está recitando.
137
AFONSO: Meu interesse é este, do escritor de rap como tradutor do seu tempo, como um
observador que registra o seu tempo. Mesmo com uma origem intuitiva, se denominam poetas
de rua, certo? Este termo “poeta” é bem aplicado? Você mesmo se colocou no seu primeiro
CD, ainda em Juiz de Fora, como poeta de rua.
P. MC: Com certeza...
AFONSO: E de onde vem esta produção “poética” se não há um “preparo”, um “estudo”?
P. MC: Era uma produção muito autônoma, era tudo gente autodidata. Que aprendeu vendo
fazer, como na cultura popular, não em escola, mas tem história. Hoje as coisas são outras.
existe a leitura da letra do rap em separado da batida, existe um novo pessoal mais
preparado escolarmente falando, que são chamados de “o lado B do rap”, que já vem com um
preparo maior, estudados, com segundo grau completo, e que foram contaminados pelo rap
pela música e pela letra, como estilo, e exercem este lado artístico compondo e escrevendo. É
uma molecada negra e também branca, de 14 a 23 anos, inclusive, que se viu como artista do
rap por causa das bandas novas de rock ou MPB que assimilaram o rap e que compuseram
músicas com rappers. A minha geração não tem alta escolaridade, a maioria que foi longe nos
estudos parou na ou série, mas tem muita gente estudada no rap, daí as letras estarem se
sofisticando mais e o aspecto literário se sobrepondo ao ritmo. Mas ainda é um estilo musical
negro.
(...)
AFONSO: Minha idéia é fazer um apanhado desta produção, desde os clássicos Thaíde,
Racionais mas também mostrando que não foi um fenômeno da grande cidade, que no
interior isto nasceu também, teve seus representantes. Este é o seu caso, nascido e criado no
Bela Aurora, nos cafundó de Juiz de Fora. Como isto começou em JF? O que te levou
escrever letras tão fortes? Foi insatisfação? O que te trouxe para SP? O que mudou na sua
maneira de ser como artista? Você melhorou? (rs...)
P. MC:em JF eu sofria por não ter apoio, eu era sozinho, não tinha como puxar este carro
desta maneira solitária. Cheguei a um ponto de ter um compromisso com a situação, não era
pegar no microfone, rimar sobre dança ou música, tinha algo a mais, era a questão do
conhecimento, buscar a leitura, outro tipo de música...
AFONSO: E você achou isto aqui?
138
P. MC: Achei. E hoje eu vejo que existe uma cena em JF, do hip hop, mas sem o rap.
Existem os grafiteiros muito fortes, alguns DJs e só.
AFONSO: Existe rapper fazendo faculdade. Sabe aquele pessoal do movimento hip hop de
JF, o Joãozinho grafiteiro, o Jagal, eles foram se apresentar no IAD e um deles era rapper e
fazia universidade. Você como mudou... mudando... A morte do Jagal foi um momento
dramático para o movimento.
P. MC: Em Juiz de Fora prevaleceu o graffiti. O rap lá morreu...
AFONSO: Este menino universitário quando foi falar pra gente eu procurei literatura sobre
isto e não achei ele tinha uma atitude de escrever seus rascunhos num black book”, sabe?
Assim como os grafiteiros fazem seus esboços num “black book”, os rappers também tem um
livrinho onde anotam suas idéias, versos, etc. Isto me parece muito organizado dentro da
espontaneidade do método rap. Isto acontece em SP?
P. MC: Não. Geralmente se escreve onde der. Tem gente que anda com caneta e um
papelzinho no bolso onde escrevem suas idéias. Ou anotam onde der: guardanapo, papel de
embrulho, e por vai. Sei que funciona assim com o pessoal de Curitiba, Porto Alegre e
Brasília. Aqui em SP também.
AFONSO: O que eu quero é saber de você como isto funciona. Como se estrutura a idéia?
P. MC: Bem, creio mais na espontaneidade do artista e na oportunidade. Nossas letras são de
caráter de depoimento. É que elas vão pegar o ouvinte. E se é depoimento sobre seu dia,
suas dificuldades, sobre discriminação, pobreza, desamparo. Daí o rap ter a força que tem na
periferia. Tem apresentação minha que vejo a turma toda cantando minhas letras de cor, o que
é uma experiência importante. Sinto a identificação, que eu falo por eles. Às vezes chega uma
galera novinha, de uma geração que veio depois da minha e falam assim pra mim: “Pô, você
que escreveu a letra tal? (tenta lembrar a letra) ‘(...) recrutando jovens para o pelotão de
Satanás”. Meu pai ouvia esta música e nunca mais esqueci”. Poxa, é muito legal isto, seu
depoimento cruzar gerações. A música que fiz com o Charlie Brown Junior correu o Brasil e
foi ouvida por gente rica, gente pobre, por branco e por negro deste país todo.
AFONSO: É mesmo... Você gravou com o Charlie Brown...
P. MC: Gravei, fiz show, viajamos muito, fiz videoclipe...
AFONSO: E foi para a Europa, né? Foi onde?
139
P. MC: Holanda, Alemanha e Londres... Esta viagem com o Rooney é que mudou a atitude
do “b-boy” no Brasil. Tivemos grandes experiências lá com a turma do rap e do hip hop.
AFONSO: O rap criou uma nação sem fronteiras, uma pátria de despatriados. Você sentiu
isto lá fora?
P. MC: Claro. A identificação com o rap é sem fronteiras mesmo. Tem rap na Índia, em
Portugal. Tem rap no Brasil inteiro. Na Argentina, no Caribe...
AFONSO: Na África...
P. MC: Em todo lugar onde tem oprimido...
AFONSO: E o rap nasceu numa nação (Estados Unidos) democrática, mas imensamente
racista... Curioso isto, o que demonstra que o rap é um grito...
P. MC: E frutificou...
AFONSO: Pois é...
(...)
AFONSO: Entre os rappers tem crítica sobre o trabalho uns dos outros? Sobre as letras
principalmente?
P. MC: Tem. Falam das letras e dos erros de concordância... Normalmente a crítica vem
daqueles que tem escolaridade maior, mas é muito pouco. A maioria assume o jeito que fala.
A gíria, o falar cotidiano, os termos populares entram com tranqüilidade na letra do rap, mas
a discordância verbal não. Tem que falar a verdade crua, de modo natural. Tudo que sirva
para demonstrar a falta de afetividade, a vida sofrida, de modo real esta é a onda do rapper.
AFONSO: O rapper incorporou esta fala do cotidiano como parte da sua estrutura de
discurso artístico? Isto é atitude? Falar errado?
P. MC: Claro... Está embutido nisto o depoimento de vida das pessoas. A maioria dos artistas
faz questão de escrever como se fala, pois desta forma criam identidade com o público. O rap
é recente na classe média e rica. É música de pobre.
Dizem que se não for assim as pessoas não entendem. Dizem: “Eu falo assim e vou escrever
assim. É assim que meus muleques” entendem...” Por exemplo, nos Racionais, o Ed Rock
tem uma pronúncia muito melhor do que a do Mano Brown, mas o Mano canta com o “tom”
da periferia.
140
AFONSO: Você já leu algum livro do Ferréz, deste pessoal da escrita de periferia?
P. MC: Não...
AFONSO: Existe um grupo que escreve direto do subúrbio, da favela. Tem o Ferréz, o
Alexandre Buzo, o Alan da Rosa, aquele cara que escreveu sobre o massacre do Carandiru,
“O Sobrevivente do Rap”...
P. MC: Alguns freqüentam a Galeria do Rock, mas não li nada deles.
(...)
AFONSO: O rap tem uma estrutura poética. Como um artista plástico que pega o barro do
quintal dele, o rapper escreve com o que tem no seu “quintal” também.
Estou pegando aquele disco seu, o primeiro, feito em JF e fazendo comentários sobre isto.
Como alguém consegue fazer uma coisa como aquela, sem estudo, faz uma coisa sem
preparo, e escreve. Sem dizer do orgulho do rapper. O rapper fala da dor dele, da realidade
dele. O rapper tem um lugar que o faz rapper. Acho estranho existir no Brasil rapper oriundo
da classe média ou alta.
P. MC: O Gabriel (o Pensador) é visto com desconfiança pela galera suburbana... Ele é
inteligente, faz letras boas, mas reclama de barriga cheia. Não tem sangue de escravo.
AFONSO: Mas o Marcelo D2 deu uma boa mudada no rap nacional, com toda aquela
mistura de rap com samba. “A Procura da Batida Perfeita” é um hit na história da música no
Brasil...
P. MC: Ele tem atitude, daí a aceitação por parte do pessoal. O Marcelo canta do morro...
(...)
AFONSO: E na FEBEM? Como o rap funciona lá?
P. MC: O rap funciona parcialmente, por enquanto. Tem garoto que escreve na
naturalidade, mas todos ouvem e cantam rap. O rapper fala deles e para eles, da vida deles.
Quando comecei o trabalho e fui tendo uma aceitação grande por parte dos detentos, isto
gerou um mal estar na turma que atuava lá antes, os monitores...
AFONSO: Tem gente que coordena o trabalho? Eles aceitam o rapper fazendo oficina de
palavras? Dando voz ao moleque?
P. MC: O pessoal da pedagogia ficou revoltado
(...)
141
P. MC: Na medida que fui crescendo e determinando meu espaço dentro, fui encontrando
apoio e resistência. Foi daí que veio a idéia de eu entrar na faculdade para fazer Pedagogia...
AFONSO: Pois é, isto me surpreendeu, sabia? Por que Pedagogia?
P. MC: Na verdade eu queria fazer Sociologia, mas o pessoal lá dentro, os amigos, me diziam
assim: “Cara, você sabe tudo da sociologia. Aprendeu na rua e aplica aqui dentro. Você
tem muito é a ensinar para o pessoal daqui (os pedagogos). Faça logo um curso para
oficializar seu conhecimento e acrescentar coisas novas à teoria”. uma pessoa muito
influente, que me ajudou muito, me deu a força que faltava e consegui passar no vestibular e
estou no segundo ano de Pedagogia.
AFONSO: Parabéns, cara. Sempre acreditei no seu trabalho. Mas deve estar criando muita
polêmica na escola, né? Através da sua experiência.
P. MC: Nem me fale... Tem horas que “o bicho pega” com os colegas e com os professores.
Sempre questiono que a teoria, na hora da prática, acaba sendo outra. Acho importante saber o
que foi pensado pelos grandes teóricos, Piaget, Montessori, mas dentro da realidade de um
garoto internado numa casa de correção, parece tudo utopia.
(...)
AFONSO: O rap entrou lá (na FEBEM) como terapia?
P. MC: Tive que lapidar no início. Tinha a catarse. Muitos deles ouviram rap no rádio e
pensaram: “vou fazer isto aí”. Havia a identidade. O rap é muito inclusivo para este perfil de
pessoa. Aí, quando cheguei lá, eles pensaram: “Eu consigo fazer isto aí? Ele vai ensinar a
gente a fazer isto aí? Nem me conheciam, não sabiam quem eu era. Quando começou o
trabalho com as palavras, eles foram sentindo que teriam de praticar de verdade. Tinha cara
que nem conseguia pegar no papel e no lápis. Se tem um fator que foi importante, foi a
descoberta deles de que eu era o P.MC. Eles reconheceram minhas músicas e isto criou um
outro tipo de relação. Era como se um deles estivesse falando por eles. As oficinas foram
acontecendo e eles produziram os textos com uma cara de depoimento. (Mostra alguns
exercícios de palavras e listas de presença na oficina). Não mudo nada do que escrevem.
Respeito o que eles falam e como falam. A idéia é que, ao lerem os textos, compreendam
algumas coisas que os levaram lá para dentro (da FEBEM).
(...)
142
AFONSO: Você saiu de JF e encontrou seu espaço aqui. O elaborar da suas letras melhorou
por ouvir mais? Por conversar mais com outras pessoas do meio?
P. MC: Foi importantíssimo trocar idéias com outras pessoas, aumentar a informação, saber
ouvir, saber tirar proveito das vivências, e saber analisar o rap. Com isto aprendi algumas
técnicas novas, que aconteceram. O meu modo de falar mudou, o jeito de escrever mudou, por
exemplo, a parte metralhada” do rap eu não conhecia e eu assimilei (canta um trecho
“metralhado”, onde as palavras são ditas ininterruptamente como um disparo verbal). Até a
questão da técnica da escrita, a montagem da letra, a métrica, a técnica verbal... O pessoal, o
público, sabe o que você diz... Mas tem que saber dizer...
AFONSO: Sabem ouvir, assimilando as letras rimadas...
P. MC: Ou o cara sabe disto por causa da literatura (que rima na poesia) ou pelo rap, que é
ritmo e poesia juntos...
AFONSO: E onde este povo (os rappers) fica? De onde tiram isto, sua poética?
P. MC: Do dia-a-dia. Das reflexões do dia-a-dia. É impossível não constatar isto. O rap vem
de dentro do artista depois de processar sua vida.
AFONSO: Eu credito nesta criação espontânea”. no curso de Artes eu digo que as
pessoas, todas elas, tem um enorme potencial para se exprimir em linguagens visuais
diferentes por terem sido “alfabetizadas visualmente”. De tanto ver elas fazem, mesmo sem
saber das “regras”. Olhe as crianças: você pede que façam uma história em quadrinhos e
elas fazem, pede para fazer um cartaz publicitário e elas fazem, uma câmera fotográfica e
elas fazem boas fotos. O rap é mais ou menos a mesma coisa: as pessoas ouvem e fazem.
Possuem um repertório interno assimilado do qual lançam mão.
P. MC: Com certeza se aprende muita coisa assim hoje. No rap é mais ou menos assim. De
uns anos para melhorou muito a conscientização de quem faz rap. A pessoa se preocupa
em construir um texto coerente com o modo como será dito. Pensa na métrica, no trabalho da
base musical do DJ, mas se concentra mesmo é na escrita. É mais literatura dirigida...
(...)
AFONSO: Eu vejo o rapper como um artista plural, ele escreve, compõe, dança e é um
performer. Tem que ter presença de palco. A récita poética na Grécia antiga era mais ou
menos desta forma performática.
P. MC: Verdade. Era um ritual...
143
AFONSO: Você se sente bem nesta fase da sua vida?
P. MC: Sim, principalmente porque eu não sou daqui, mas faço parte da história do rap de
SP.
AFONSO: Portanto, do Brasil.
P. MC: (rs...)
ENTREVISTA 2
Entrevista especial com P.MC, feita em 1998 para o site www.rapnacional.com.br, falando
sobre o seu novo CD e o seu projeto com adolescentes que já passaram pela FEBEM...
RAP NACIONAL - P.MC, é verdade que você tinha desistido do rap nacional, mas resolveu
voltar à sua atividade?
P. MC - Sim, é verdade, de volta mas não muito satisfeito com a cena atual, tenho
consciência que além, de MC sou um artista–social, reconheço e sei muito bem até onde meu
talento pode me levar.
Com o passar do tempo, fui adquirindo mais experiência e profissionalismo e isso
infelizmente o rap do meu país ainda falta muito para alcançar.
RN – Você continua trabalhando com os adolescentes da FEBEM ?
P. MC - Sim, continuo, as minhas oficinas dentro do complexo estão paradas. Mas continuo
preparando material novo e dando segmento junto com alguns adolescentes ex-internos que
eu trouxe para esse meu novo disco. (não tenho ido à FEBEM, mas todos os dias encontro
com vários ex-alunos que não quiseram mudar e estão pelas ruas de SP e sempre que
possível tento dar uma assistência de alguma forma).
RN - O que o levou a vir com esse CD Meu rap é assim, totalmente diferente?
P. MC - Essa mudança, foi à liberdade de composição que eu encontrei dentro de mim, tudo
isso é um grande aprendizado que eu tive com o tão amado e odiado Jigaboo, as bases foram
bem elaboradas e o bom gosto musical do DJ Deco contribuiu muito para isso, eu fui ousado
demais em fazer um ska com hip hop , e tem uma faixa que eu tive a ousadia de vir cantando
uma melodia (Na asa da gaivota)
RN – Qual a sua análise sobre o rap nacional da atualidade?
144
P. MC - No meu ponto de vista, precisa-se de profissionalismo uma composição mais
abrangente e técnica vocal enfim , precisamos nos libertar desse hip hop tenebroso que vem se
difundindo no Brasil.
As rádios não tocam por que o nosso bpm é muito baixo, e não se pode fazer um rap falando
de uma garota ou de uma festa sem ser ridicularizado, por que mesmo se alguém fizer, toda a
rapa vem tirar você de comédia, com isso os gringos e algumas bandas de pop rock estão
aparecendo cada vez mais no cenário. E eu não vou ficar preso num HH tenebroso por que sei
muito bem do meu talento, e só Deus sabe o que eu passei de 1984 dançando break na rua em
MG até os dias de hoje.
RN – Você continua trabalhando com o Quadrilátero? Quem são os integrantes?
P. MC - Atualmente não, mas foi por intermédio deles que eu ministro oficina de HH na
FEBEM até hoje. Em meados de 1998 foi que eu comecei uma pré-seleção para construir uma
música que deu destaque para o Quadrilátero, que todo mundo do HH conhece que é a música
Realidade. Os integrantes são: O KS, Mano Dadai, Bones, Pierre, Juninho BV, Barba ZL e o
Villa que é o cara que mais dá o sangue pelo projeto.
RN Hoje você está vendo o rap com mais freqüência na televisão e outros veículos de
comunicação. O que você acha disso?
P. MC - Eu não estou vendo o rap com tanta freqüência assim na TV, o que eu assisti foi MV
Bill , Hood e o RZO no Faustão, isso não é ainda uma grande abertura, falta muito, temos
muito que conquistar ainda. Somos mais de mil grupos de rap no Brasil. Quanto aos outros
veículos também, não vejo tanta passagem de grupos por eles, não sou contra a mídia, por que
quando estou mostrando o meu trabalho em qualquer veículo de comunicação, tenho muita
firmeza e consciência de como devo agir e depois quem sabe dos meus venenos sou eu.
RN – Você é discriminado por ter um envolvimento maior com os brancos?
P. MC - Hoje em dia diminuiu, mas em relação a 1997 quando eu participei do disco do
Charlie Brown Jr. (respiração contínua e prolongada e no segundo disco também) muita gente
do HH veio falar o que eu pretendia quando estava me juntando a uma banda de rock branco,
depois veio minha primeira contratação por uma multinacional , aí que foi pior , por que todos
(menos o Hood) , disseram que eu tinha me vendido. D em 1999, formou-se o Jigaboo,
foi que os manos se giletaram de ódio quando trouxe o Suave. Nunca escondi que ele era de
classe média, sempre me respeitou, a minha junção com ele trouxe essa parada meio
145
crossover para dentro do rap e com isso tive um novo aprendizado, somos muito amigos
graças a Deus.
RN – Quem são os manos que participam da sua música nova Sem me entregar?
P. MC - Eles são: Alemão, HÓS, Rimático, Robson Dinamite, Da Lua e MR . Eles são
garotos que fizeram uma oficina bem rápida comigo quando eles estavam internados, eu os
trouxe para essa música por que tava na hora de mostrar o quanto um garoto desse tem
talento para vocal e composição.
RN - E o Jigaboo? Realmente acabou? Por quê?
P. MC - Eu vou usar um ditado que todo mundo conhece: “tudo o que é bom dura pouco”.
No meu novo disco as pessoas vão poder matar essa curiosidade que muitos querem saber,
ouçam a faixa Presente do Jigaboo, a resposta está lá.
Eu aqui deixo um abraço verdadeiro para o DJ Deco que soube unir dois estilos totalmente
diferentes P.MC/Suave que resultou num grupo que contribuiu para mudanças no rap do
Brasil, e também para o Suave que com certeza tem talento e veio para inovar deixando uma
interrogação, nas mãos da nova e da velha escola, preste bastante atenção, rap é liberdade de
talento.
RN – Deixe o seu salve.
P. MC - Para todos do Poppin’, Footwork, escritores, Mestres de Cerimônia e aqueles que são
maestros da cultura HH, cuidando da nossa musicalidade, que são os DJs.
146
Anexo C - Glossário
B.Boy – “B” abreviação de beat (batida), boy – garoto. Garoto de rua envolvido no
movimento hip-hop. Feminino: B.Girl.
Beat – Batida; os grupos de rap cantam sobre um fundo instrumental (base) de forte apelo
rítmico.
Bombeta – boné.
BPM - Batidas por minuto. Marcação rítmica do rap.
Break – Estilo de dança com movimentos robotizados ou quebradiços, podendo também ser
praticado com acrobacias no solo (break violento)
Breakers – Dançarinos de break.
DJ – Abreviatura de disc-jockey. No universo do rap é aquele que faz os efeitos sonoros da
música; é responsável pelos “scratches”.
Giletar – Passar raiva. Ter ciúmes.
Grafite – Arte de pintar ou desenhar (com spray ou tinta) muros, painéis, túneis, faixas, etc.,
com logotipos (tags) ou desenhos relacionados com o universo do movimento rap. Utiliza
letras tortas ou engarrafadas que faz com que muitas vezes apenas os grafiteiros entendam o
que está escrito.
HH – O mesmo que hip hop
Hip hop – Movimento cultural que reúne os rappers, breakers e grafiteiros. Alguns já incluem
também esportes radicais urbanos.
Jungle – estilo de música eletrônica surgida na periferia de Londres.
MC – Abreviatura de Máster of Ceremony (mestre de cerimônia). Rappers que cantam e
animam os bailes.
Posse – Quando dois ou mais grupos de rap se reúnem, formando uma turma.
Racha – “Batalha” de dançarinos de break para decidir quem é o melhor.
Radicais – Rappers que atacam em suas letras o racismo, a polícia, o sistema, tudo com que
não concordam, procurando dentro das suas concepções uma solução.
147
Raggamuffin – Estilo jamaicano que mistura elementos do raggae com o funk e rap.
Rap – Abreviatura de “rythm and poetry” (ritmo e poesia). Estilo de música onde um DJ e um
ou mais rappers se apresentam cantando sobre uma base instrumental a letra falada ou
declamada. Há vários tipos de rap: def, bass,
Miami, hip-house, ragamuffin, etc.
Rapeiro – O mesmo que rapper. A palavra derivou de “rapero” que é como se denomina o
rapper em países de língua espanhola.
Rap-love – Rap romântico, com ritmo lento e letras que falam de amor
Rappers – Aqueles que cantam o rap.
Scratch – Efeitos sonoros produzidos pelo atrito entre a agulha do toca-disco e o próprio
disco.
Smurf – Dança dos rappers, com passos que lembram o funk.
148
Anexo D – Biografias
RACIONAIS MCs
Um dos principais grupos de rap e hip hop brasileiros, surgiu no final da década de 80
na periferia de São Paulo com um discurso contra a opressão às populações marginalizadas
nas grandes metrópoles brasileiras.
A primeira gravação foi em 1988, na coletânea "Consciência Black". Dois anos depois,
o primeiro disco solo, "Holocausto Urbano" levou o grupo a fazer uma série de shows pela
Grande São Paulo, tornando-o mais conhecido. Em 1991, abriram para o show do grupo
norte-americano Public Enemy, um dos pioneiros e mais famosos grupos de hip hop. A partir
de 1992, os integrantes dos Racionais passaram a desenvolver um trabalho voltado para
comunidades pobres da periferia, fazendo palestras em escolas sobre drogas e violência
policial, racismo e outros temas.
Combativos, em suas letras procuram passar uma postura até mesmo agressiva contra a
submissão e a miséria, usando a linguagem da periferia, com gírias e expressões típicas. No
final de 1994, um show no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, acabou em confusão
e quebra-quebra quando os integrantes do grupo foram presos pela polícia sob acusação de
incitação à violência.
A violência policial é um dos temas mais constantes nas letras dos Racionais. O disco
"Sobrevivendo no Inferno" levou o sucesso do grupo a outro patamar, alcançando a marca das
500 mil cópias vendidas. No entanto, o conjunto adota uma postura dúbia em relação à mídia
e à indústria fonográfica, que dizem ser parte do sistema que combatem. Algumas músicas
dos Racionais são "Fim de Semana no Parque", "Pânico na Zona Sul", Mulheres Vulgares",
"Hey Boy", "Diário de um Detento", "Fórmula Mágica da Paz"e "Homem na Estrada". A
formação do grupo é com Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e Kl Jay.
GOG
149
Genival Oliveira Gonçalves, mais conhecido como GOG, é um cantor de rap brasileiro,
nasceu na cidade satélite de Sobradinho no Distrito Federal no ano de 1965, 15 dias depois da
chegada dos seus pais à Brasília. É o segundo de uma família de quatro irmãos.
Foi um dos pioneiros do movimento rap em Brasília. Desde o início da carreira, ganhou
a alcunha de Poeta. Seu mais recente trabalho é o DVD Cartão Postal Bomba!, lançado em
fevereiro de 2009. Seu primeiro disco de carreira foi gravado no ano de 1992.
Em 1973, muda-se para o Guará, Cidade Satélite de Brasília onde reside até 1991. Essa
cidade será o cenário de acontecimentos que irão transformar sua vida: futebol, convívio com
os primos mais velhos amantes da black music, os vinis e o toca-discos de seu pai, assim
como a formação do Grupo de Dança "Magrello's Pop Funk", que daria origem ao grupo de
rap "Os Magrello's, além da iniciação no break, a chegada ao rap e, consequentemnente, a
faculdade.
Ainda na adolescência, assiste a transição da ditadura para o regime democrático, o
ressurgimento do MST, ascendência do PT e de outros movimentos sociais de base, bem
como o retorno de exilados políticos e o fim da censura midiática. Paralelo a esse cenário, a
época do soul, do funk, das quadras e dos salões lotados também cresciam e se desenvolviam.
Contemporaneamente o break se faz conhecido internacionalmente e, nas periferias brasileiras
a palavra do momento era "Hip Hop".
Muito próximo a esta mudança histórica, ideologias e acontecimentos, incluindo a
queda do Muro de Berlim, o fim da Guerra Fria, o Hip Hop Brasileiro vai gerando a
fermentação cultural necessária para aprimorar-se e constituir um estilo nacional e autêntico.
Grupos como Thaíde e DJ Hum e Racionais Mc's arrebataram multidões com seus discursos e
ritmos, apontando um novo rumo à juventude do hip hop das periferias brasileiras.
No final dos anos 80, em Brasília, o Movimento Hip Hop vem crescendo, mesmo
independente de outros estados. Genival adota o pseudônimo GOG e inicia sua carreira
artística. A dupla paulista "Thaíde e DJ Hum" se apresenta no Distrito Federal pela primeira
vez e inicia-se um intercâmbio entre os estados.
No ano de 1990, GOG recebe o convite do DJ Leandronik para participar da coletânea
"Rap Ataca", do selo Kaskata's, e grava a música "A Vida", o que seria sua primeira gravação
oficial.
Em 1992, GOG em parceria com o selo de rap Discovery lança o compilado "Peso
Pesado" e seu nome passa a ser projeto pelo país.
150
Em 1993 GOG lança o selo independente "Só Balanço", para apresentar seus trabalhos e
dar oportunidades a novos talentos, diante das dificuldades enfrentadas pelo mercado musical.
O primeiro projeto foi o LP "Vamos Apagá-los... Com o Nosso Raciocínio", de sua autoria.
A "Só Balanço" a partir do ano de 1996 se torna loja de discos e mais tarde estúdio de
gravação, dentro do projeto de auto-gestão, objetivo principal de sua criação. Por todo o
Brasil acontecem apresentações e suas músicas são executadas nas rádios, inclusive nas
comunitárias. Suas ideias e letras se propagam, sendo GOG chamado de "Poeta do Rap
Nacional".
De 1994 a 2000, são lançados mais quatro discos "Dia-a-Dia da Periferia", "Prepare-
se!", "Das Trevas à Luz" e "CPI da Favela". Várias músicas desses álbuns foram divulgadas
nas periferias do Brasil. Gog também gravou videoclipes, no caso das versões de "Periferia
Segue Sangrando" e "Matemática na Prática", onde recebe o "Prêmio Porte Ilegal" como
melhor letrista do rap do país.
Em 1999 a "Só Balanço" lança "GOG Convida", sendo a primeira coletânea de rap do
Distrito Federal, e "Familia G.O.G - Fábrica da Vida" com proposta de ceder espaços para
novos artistas, com intuito de fortalecer a continuidade do Movimento Hip Hop na cidade.
Surgem os grupos A Família e Viela 17.
O próximo álbum, "Tarja Preta" é lançado em 2004 e recebe o "Prêmio Hutúz" de
melhor disco do ano.
Em 2005, GOG é convidado pela banda de reggae Natiruts a participar no CD "Nossa
Missão". GOG e Alexandre, apresentam ao público a comentada faixa "Quem Planta o
Preconceito?", com vídeo clipe também lançado. A parceria continuará em 2008 no novo CD
do grupo "A Família".
Em 2006, GOG participa do "Acústico MTV-Lenine". Ele apresenta-se ao lado do
artista da MPB interpretando a faixa "Eu e Lenine (A Ponte)". Nesse mesmo ano, Gog grava o
CD "Aviso às Gerações" que traz participações do cantador Rapadura e de Lindomar 3L,
ambos aclamados pela mídia como duas novas revelações do hip hop nacional. Ainda em
2006, Gog é convidado por KL Jay para participar da gravação do CD "Rotação 33, Fita
Mixada".
Em 2007, GOG grava seu primeiro DVD - "Cartão Postal Bomba!" cujo lançamento
para 2009. Destacam-se as participações de Lenine, Maria Rita, Gerson King Combo, Paulo
Diniz, Mascoty, Isaías Jr, Nego Dé, entre outros. O formato da apresentação é inovador: Gog
grava vários de seus hits acompanhado pela banda "MPB Black" composta por Angel
Duarte(Baixo), Paulinho (Bateria), Bruno (Guitarra Solo), Ariel Feitosa (Guitarra Base),
151
Richelme Oliveira (Percussão), Ted (Teclados), Ellen Oléria, Indiana Nomma e Kiko Santana
(Violões e Backing Vocals).
Nesse mesmo ano, é gravado o vídeo clipe da faixa "Cavalo Sem Dono Selvagem" do
CD "Aviso às Gerações" com participação de "Zumbi Rei". O cenário escolhido foi
Diamantina, nas Minas Gerais. O objetivo era reencontrar o hip hop pelo interior do país.
GOG recebe os prêmios "Hutúz" (quatro categorias) pelo CD "Aviso às Gerações" e
"Dom Quixote de La Perifa" que, segundo a Cooperifa "... é uma homenagem a umas cem
pessoas importantes da periferia, e pessoas que ajudam a periferia a se transformar em um
lugar melhor para viver".
Em dezembro de 2007, lança o CD "ao Vivo do DVD - Cartão Postal Bomba!". O
lançamento é feito com exclusividade pela internet através do site
“www.gograpnacional.com.br.”, Gog apresenta uma nova proposta de negociação,
divulgação, distribuição, reforçando assim, a interação com o seu público e toda comunidade,
promovendo o discurso conceitual da auto-gestão para debate.
A aproximação com a literatura marginal e os movimentos culturais são essenciais para
a sobrevivência do texto e do teor evolutivo do hip hop, segundo GOG, que estreita alianças
com vários ativistas: Sérgio Vaz, Cooperifa, Férrez, 1daSul, Nelson Maka, Coletivo
Blackitude, Alessandro Buzo, Suburbano Convicto e Sacolinha Graduado, entre vários outros.
Os movimentos sociais também se aproximam, como MST, MSTL, Ação Educativa passam a
ser parceiros de seu trabalho.
O "Poeta" prepara o lançamento do seu primeiro livro previsto para agosto de 2009.
O "Sub Raça", do Câmbio Negro, foi lançado apenas pelo selo alternativo Discovery -
BSB. Apesar disso, atingiu uma vendagem superior a 20 mil cópias e obteve uma excelente
repercussão no Brasil, Portugal, Espanha e Japão.
CÂMBIO NEGRO
A banda certa na hora errada, rock demais para os manos, rap demais para os roqueiros.
Formado no começo dos anos 90 por X e DJ Jamaika, em Ceilândia/DF, o Câmbio
Negro lançou seu disco (Sub-Raça, 1993 - Discovery) somente com bases e colagens e
após algum tempo X teve a ideia de passar a usar uma banda nos shows, o que acabou
fazendo com que DJ Jamaika saísse do grupo, sendo substituído por DJ Marcelinho, e
iniciando uma treta pesada com o X e o Câmbio Negro, que foi resolvida pouco tempo
atrás.
152
A partir do disco (Diário de um feto, 1995 Discovery), o Câmbio Negro passou a
ser uma banda, se mudaram para São Paulo e tocaram bastante pelo Brasil afora.
Em 1999 lançaram o disco (Câmbio Negro) pela Trama, que investiu bastante na
banda, com clips e tudo. O disco foi produzido pelo folclórico Edu K (De Falla) e teve uma
participação de peso, TC Izlam, filho da lenda viva Afrika Bambaataa.
Nessa época eu pensei que eles fossem se tornar uma banda grande, mas infelizmente a
parada não virou e a banda acabou encerrando suas atividades, totalmente desestimulada pelo
descaso do público para com o seu som. Após o fim do Câmbio Negro X iniciou um projeto
de palestras em colégio, associações comunitárias e presídios, e em 2002 chegou a se
candidatar a deputado distrital (cargo similar a vereador) no DF, não ganhou.
Após isso, X lançou dois discos solo e grilou de vez com a música, hoje trabalha como
zelador em um prédio. Dos outros integrantes da banda: Bell (guitarra), Ritchie (bateria),
Daniel (baixo) e DJ (Marcelinho); apenas DJ Marcelinho ainda está envolvido
profissionalmente com música, constantemente lança CD´s em que mistura
techno/dance/música eletrônica com MPB. Alguns anos atrás o Câmbio Negro iria tocar no
Porão do Rock em Brasília, seria a volta triunfal da banda, mas o evento foi cancelado.
153
Anexo E – Ilustração escrava Anastácia
Figura1 - A escrava Anastácia.
Disponível em: (http://pt.wikipedia.org/wiki/Escrava_Anast%C3%A1cia)
A existência da escrava Anastácia é colocada em dúvida pelos estudiosos do assunto,
que não existem provas materiais da mesma.
Seu culto foi iniciado em 1968, quando numa exposição da Igreja do Rosário do Rio de
Janeiro em homenagem aos 80 anos da Abolição, foi exposto um desenho de Étienne Victor
154
Arago representando uma escrava do século XVIII que usava máscara de ferro (método
empregado nas minas de ouro para impedir que os escravos engolissem o metal).
No imaginário popular, a Escrava Anastácia foi sentenciada a usar a máscara por um
senhor de escravos despeitado com a recusa de Anastácia em manter relações sexuais com ele.
A máscara seria retirada apenas para que ela fizesse as refeições, e a escrava terminou por
morrer de maus-tratos, em data ignorada.
ANEXO F – PERFORMANCE
O que conhecemos hoje como a arte da performance se iniciou em 1962 numa experiência
plástica de Yves Klein denominada Salto no Vazio, onde o artista saltava de um prédio para a
rua, transformando seu ato na obra em si. Porém o uso do corpo humano como sujeito e força
motriz do ritual remonta aos tempos antigos, onde percebemos atuações performáticas nos
ritos tribais, até as atuações dos artistas nos movimentos Futuristas, Dadaístas, Surrealistas
entre outros. Mas mesmo no início dos anos setenta do século passado que as atuações
performáticas emergem como gênero artístico independente, fazendo uma nova abertura para
o usufruto da criação de arte que diminuía a distância entre público e artista, sendo que estes
funcionavam como mediadores de um processo social ou estético-social.
A performance trabalha com todos os canais de percepção, alternadamente ou
simultaneamente, e o performer, enquanto criador e mediador, põe em ação todos os sentidos
e também produz significados, que “no trajeto do ritual, do sagrado e do profano, realizam
uma crítica às situações de vida: a impostura dos dramas convencionais, o jogo de espelhos
que envolvem nossas atitudes e sobretudo a natureza estereotipada de nossos hábitos e ações”.
(GLUSBERG, 2009, p.72)
O performer atua como observador, observando sua própria produção, ocupando o duplo
papel de protagonista e receptor do enunciado (a performance), provocando no espectador
uma projeção e re-codificação, transportando assim para o público sua atitude, trabalhando
não com um único código, mas com vários códigos ao mesmo tempo. Assim o performer é
um operador de transformações, e é neste processo que o poder da arte da performance está
radicalmente centrado.
155
O corpo é o verdadeiro rei da cena, pois é modelado e ritualizado, ainda que de forma
integrada, não fragmentada, é uma unidade auto-suficiente e, na arte da performance, essa
unidade é empregada como um instrumento de comunicação. Como o timoreiro de um navio,
o performer procura manter seu curso, que é o de manter a concepção totalizadora da
experiência, pressupondo que não descarta a absorção do insólito, do imprevisto e do
inesperado. A dimensão mágica da arte não provém do mero acaso ou da ignorância, mas,
segundo Jorge Glusberg, “vem da reflexão que, antes de impedir a magia, permite chegar até
ela”. (2009, p.84)
ANEXO G – LITERATURA MARGINAL: CONSIDERAÇÕES
O termo “literatura marginal”, no contexto de nossa dissertação, serviu para classificar as
obras literárias produzidas e veiculadas à margem do corredor editorial; que não pertencem ou
que se opõem aos cânones estabelecidos; que são de autoria de escritores originários de
grupos sociais marginalizados; ou ainda, que tematizam o que é peculiar aos sujeitos e
espaços tidos como marginais. Desta forma, partimos da publicação das edições especiais da
revista Caros Amigos onde foi dado destaque a uma relevante produção literária periférica em
São Paulo, para definir o termo e a produção dos rappers, mas não esquecendo de outros
enquadramentos dentro deste conceito. O primeiro ponto problematizado foi a própria
definição de literatura marginal, originada de idéias e vivências compartilhadas que
possibilitaram a formação do movimento de literatura dos escritores da periferia, que se
autoclassificaram como marginais. Porém o termo possui outros significados que são os
seguintes: 1) Refere-se às obras que estariam à margem do sistema editorial oficial e que
circulam em meios alternativos; 2) Refere-se a um tipo de escrita que recusa a linguagem
institucionalizada ou valores literários de uma época, como no caso as obras de vanguarda; 3)
Refere-se ao projeto intelectual de um escritor de reler o contexto de grupos oprimidos,
retratando-os nos textos. Ainda podemos enquadrar nestas considerações as obras produzidas
por autores pertencentes a minorias sociológicas, como negros, homossexuais, índios, etc.
A amplitude da expressão permite descrever a trajetória de diversos escritores brasileiros
sob a rubrica “marginal”, como, por exemplo, João Antonio (1937-1996), que lançou obras
entre 1960 e 1990 que tratavam do universo dos “malandros”, contraventores e trabalhadores;
Plínio Marcos (1935-1999), escritor e dramaturgo que escreveu sobre violência, prostituição,
meninos de rua e outros problemas sociais e de Antonio Fraga (1916-1993), autor carioca que
156
tratou da vida e da linguagem suburbana. Mas o termo mais difundido relacionado à literatura
marginal localiza-se no período da ditadura militar, na década de 1970, onde a criação de
circuitos de produção e divulgação alternativos abarcou o teatro, a música, o cinema e a
literatura, com a impressão de textos em livrinhos mimeografados. Neste período, a
organização de escritores em grupos (“Frenesi”, “Vida de Artista”,”Folha de Rosto”, entre
outros) a partir da condição comum de marginalidade institucional e material, produziu um
fenômeno literário com vínculos específicos com o campo cultural e intelectual no bojo do
debate sobre a cultura e política brasileira no período ditatorial, reunindo nomes como
Francisco Alvim, Ronaldo Bastos, Chacal e Cacaso. Estes autores/poetas assimilaram o rótulo
marginal que designava “um modo particular de conceber literatura, um tipo de linguagem
privilegiada nos textos, uma temática recorrente, um tipo de acabamento gráfico dos livros e,
até mesmo, certo comportamento dos autores.” (NASCIMENTO, 2009, p.41)
Na atual conjuntura do termo, percebemos uma elaboração de uma literatura marginal que
traz à tona certa realidade de espaços e sujeitos marginais, que agregou certo número de
escritores que passou a se identificar com a expressão e a atribuir o termo à sua produção
literária. Enquanto os poetas marginais dos anos 1970 proliferaram em maior número no
estado do Rio de Janeiro, o grupo dos atuais escritores de periferia é predominantemente
composto por moradores de São Paulo.
A publicação dos números da revista Caros Amigos com textos destes escritores pode ser
considerado um marco para a compreensão da entrada em cena dos escritores da periferia sob
a rubrica literatura marginal. O perfil editorial da publicação já era coerente com a proposta
destes autores, que a revista nasceu ocupando o espaço deixado pelos periódicosnanicos”
ou “alternativos” da década de 1970, assumindo um discurso de crítica e repúdio ao
neoliberalismo nacional e mundial. Desde 1998 que a revista abria espaço para assuntos
como o movimento hip hop e eventos políticos como o Fórum Social Mundial e o Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra.
Outras fontes de divulgação estimularam a entrada desta literatura marginal no circuito dos
leitores, como os jornais, revistas e sites especializados no tema, assim como algumas mídias
impressas e eletrônicas voltadas para o universo hip hop focadas nas manifestações culturais e
esportivas do universo urbano.
Ações extraliterárias abarcaram também o trabalho de divulgação da produção periférica,
como as associações civis de direito privado sem fins lucrativos ou econômicos. A ONG
Ação Educativa, criada em 1994 na região central de São Paulo, tinha entre suas ações a
formação de educadores e a assessoria a políticas públicas ou a projetos que fomentassem a
157
justiça social entre outras metas. Esta ONG realizou a “Semana de Cultura Hip Hop”, um
ciclo de debates, exposições, workshops com o objetivo de trazer ao público as principais
discussões sobre o movimento. Na terceira edição do evento, em 2003, um dos temas de
debate recebeu o título de “Escrito por nós: literatura marginal”, que contou com a
participação de escritores como Preto Ghoéz, Sérgio Vaz e Dugheto Shabazz, onde se tratou
da relação do rap com literatura, mas abordou também o difícil acesso dos moradores da
periferia aos bens culturais. Atividades e grupos semelhantes foram criados como a 1daSul, a
Cooperifa e o Núcleo de Literatura Periférica, que, entre suas metas está o mapeamento das
manifestações de literatura periférica, além do samba, grafite e hip hop em toda região
metropolitana de São Paulo além da divulgação dessas manifestações em mostras, saraus e
seminários.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo