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Ao aplicar esse modelo aos inícios da Europa moderna,
podemos identificar com bastante facilidade a grande tradição.
Ela inclui a tradição clássica, tal como era transmitida nas
escolas e universidades; a tradição da filosofia escolástica e
teologia medievais, de forma alguma extintas nos séculos XVI
e XVII; alguns movimentos intelectuais que provavelmente só
afetaram a minoria culta: a Renascença, a Revolução Científica
do século XVII, o iluminismo. Subtraia-se tudo isso da cultura
dos inícios da Europa moderna e o que restará? As canções e
contos populares, imagens devotas e arcas de enxoval
decoradas, farsas e peças de mistérios, folhetos e livros de
baladas, e principalmente festividades, como as festas de
santos e as grandes festas sazonais, o natal, o Ano-Novo,
Carnaval, Primeiro de Maio e Solstício de Verão. Esse é o
material que interessará basicamente neste livro: artesão e
camponeses, livros impressos e tradições orais.
O modelo de Redfield é um ponto de partida útil, mas
passível de críticas. Sua definição de ‘pequena tradição’
enquanto tradição da não-elite pode ser criticada, de modo
bastante paradoxal, por ser ao mesmo tempo ampla e estreita
demais.
A definição é estreita demais porque omite a
participação das classes altas na cultura popular, que foi um
fenômeno importante na vida européia, extremamente visível
nas festividades. O carnaval, por exemplo, era para todos. (...)
Os palhaços eram populares tanto nas cortes como nas
tavernas, e muitas vezes eram os mesmos. (...)
Não era apenas a nobreza que participava da cultura
popular; o clero também, particularmente no século XVI.
Assim, a diferença crucial nos inícios da Europa
moderna (quero argumentar) estava entre a maioria, para
quem a cultura popular era a única cultura, e a minoria que
tinha acesso a grande tradição, mas que participava da
pequena tradição enquanto uma segunda cultura.
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Dessa forma, compreendemos a cultura popular como aquela que reflete
o imaginário do povo (tanto da elite, quanto da não-elite), suas crenças, suas
histórias, suas lendas. Nisto, a cultura Nordestina contemporânea tem pontos
de encontro com a cultura européia medieval, basta observarmos a profunda
religiosidade católica, o apego à Virgem Maria, algumas festas populares,
como o carnaval, a questão da moralidade cristã, a misoginia, entre outros
aspectos. O Nordeste brasileiro herdou fortes tendências dessa cultura
medieval.
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BURKE, Peter. Op. Cit., 1989, p. 51 a 55.