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CÁSSIA ALVES DA SILVA
RESÍDUOS MEDIEVAIS DO GROTESCO NO CORDEL DE METAMORFOSE
CONTEMPORÂNEO
FORTALEZA
2010
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CÁSSIA ALVES DA SILVA
RESÍDUOS MEDIEVAIS DO GROTESCO NO CORDEL DE METAMORFOSE
CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
do Ceará, como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em Letras na Área
de Literatura Comparada.
Orientadora: Professora Doutora Elizabeth Dias Martins
Fortaleza-Ce
2010
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CÁSSIA ALVES DA SILVA
RESÍDUOS MEDIEVAIS DO GROTESCO NO CORDEL DE METAMORFOSE
CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para a obtenção do
título de Mestre em Letras na Área de Literatura Comparada.
Aprovada em 17/08/2010
______________________________________________
Profª Drª Elizabeth Dias Martins
ORIENTADORA - PRESIDENTE DA COMISSÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
_______________________________________________
Profª Drª Cleudene Oliveira Aragão
1º EXAMINADOR
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
________________________________________________
Prof. Dr. Stélio Torquato Lima
2º EXAMINADOR
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
4
Dedico este trabalho a meus pais, Eliete Alves
e José Francisco, que me mostraram o
caminho para a busca do conhecimento.
À Professora Elizabeth Dias e ao Professor
Roberto Pontes, por serem meus grandes
incentivadores no universo da pesquisa.
A Deus, por me fazer existir e viver tudo isso.
5
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Elizabeth Dias Martins, pela cordialidade e paciência nos
momentos de orientação.
Ao Professor Doutor Stélio Torquato Lima, pelas sugestões apresentadas no
momento da qualificação, que muito me ajudaram.
Aos professores de literatura, pela enorme contribuição no meu aprendizado
durante os anos de Graduação e Mestrado.
A meus irmãos, Carla Alves, Carlos Ruben e Cássio Robson, pelo
companheirismo e pela força.
A minha cunhada Mônica, pela compreensão de sempre.
A amiga Mary Nascimento, grande companheira e incentivadora nos momentos
muito bons e, igualmente, nos mais difíceis.
À amiga Adalucami Menezes pelo compartilhamento e apoio indescritíveis
nesses anos de mestrado.
A Diego Alves, pelo incentivo nos dias de leitura e escrita.
Aos amigos Cristiane Alves, Diná Santana, Georgyana Rodrigues, Felipe
Pedrosa, Fernando Freitas, Ilmara Souza, Isaac Eufrasino, Leidson Pial, Mana
Rodrigues, Mariana Souza, Neuza Pedrosa, pela amizade e pelas palavras de
força durante a escrita.
Aos amigos conquistados no período do Mestrado, Isabel Guimarães, Silvana
Bento, Willian Craveiro, Wellington Rodrigues, pelo apreço e pelo alegre
convívio.
Ao grupo Verso de Boca: Camila Santos, Carla Jabour, Diná Santana, Leo
Cerqueira, Marília Costa, Mary Nascimento, Tatiana Pessoa, Thaís Loiola, pela
alegria da poesia compartilhada.
À CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior,
pelo apoio financeiro, indispensável ao desenvolvimento dessa pesquisa.
A todos que contribuíram, direta ou indiretamente, para a realização deste
trabalho.
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“Da Perfeição da Vida
Por que prender a vida em conceitos e normas?
O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... Dor e Prazer...
Tudo, afinal, são formas
E não degraus do Ser!”
Mário Quintana
“Quando todo o mundo é corcunda, o belo porte torna-se a monstruosidade”.
Honorè de Balzac
7
RESUMO
SILVA, Cássia Alves. Resíduos do grotesco no cordel de metamorfose
contemporâneo. Fortaleza, 2010. Dissertação (Mestrado) Curso de Pós-
Graduação Letras, Universidade Federal do Ceará, 2010.
Esta pesquisa, vinculada a linha Literatura e História, analisa o grotesco
residual no cordel de metamorfose contemporâneo. Utiliza-se a Teoria da
Residualidade, que se ocupa dos resíduos remanescentes de uma cultura em
outra, através dos processos de hibridação cultural, endoculturação e
cristalização. Os cordéis de metamorfose contemporâneos trazem o grotesco
nos seus dois tipos: o terrificante e o cômico. A partir da leitura de nove
cordéis, verificam-se resíduos do grotesco provocado pela forte atuação da
mentalidade cristã medieval na cultura do Nordeste do Brasil.
Palavras chave: Grotesco, residualidade, cordel
8
ABSTRACT
This research, linked to line Literature and History, analyzes the grotesque
residual in the metamorphosis’ drawstring contemporary. Use the Theory of
Residuality, which deals with waste remaining from one culture into another,
through processes of cultural hybridity, endoculturation and crystallization. The
metamorphosis’ drawstring contemporary bring the grotesque in their two types:
the terrificante and the comical. After the reading of eight drawstrings, we could
see residues of the grotesque caused by the strong performance of the
medieval Christian mentality in the culture of the Brazil’s Northeastern.
Keywords: grotesques, residuality, drawstring
9
SUMÁRIO
1. Introdução ...........................................................................................10
2. O grotesco: conceitos, aproximações e diferenças.........................22
2.1. Grotesco, sublime, belo e feio. ..............................................22
2.2. O grotesco: significação e origem do vocábulo .....................27
2.3. O grotesco na Antiguidade ....................................................32
2.4. A teorização do grotesco medieval ........................................40
2.5. Da Renascença à Contemporaneidade .................................57
3. Resíduos medievais na literatura de cordel do Nordeste do
Brasil......................................................................................................68
3.1. Noções de cultura: erudito e popular ........................................69
3.2. Mentalidade cristã medieval e cultura nordestina......................80
3.3. A medievalidade na cultura popular do Nordeste do Brasil......98
3.4. O cordel e o processo residual entre o Nordeste contemporâneo
e a Europa medieval.............................................................................108
3.5. O grotesco no cordel de metamorfose contemporâneo: uma
prática residual .....................................................................................113
4. Análise do grotesco nos cordéis de metamorfose
contemporâneos.................................................................................117
4.1. Histórias de metamorfoses......................................................118
4.2. O grotesco no aspecto social e a linguagem grotesca............120
4.3. A representação do monstruoso, do animalesco, do
desordenado e do desproporcional; a relação homem/ animal; A ruptura da
lógica................................................................................................................142
4.4. A tendência do artista em conceber o feio e o inatural como algo
inserido na realidade e no cotidiano................................................................148
4.5. O baixo material e corporal......................................................149
5. Conclusão..............................................................................................156
6. Bibliográfica..........................................................................................160
7. Anexos...................................................................................................166
10
INTRODUÇÃO
O cordel de metamorfose
1
, como o próprio nome já diz, tem como
característica principal a metamorfose de um personagem, normalmente o
personagem principal da obra. A metamorfose é a mudança da forma física
e/ou do caráter do indivíduo. Essa transformação ocorre por alguns motivos,
um dos principais é o desvio de alguma norma, de algum padrão, ou por uma
desobediência. O ser é metamorfoseado normalmente num animal repugnante
e as características ligadas ao mal são sempre ressaltadas através do animal.
O grotesco, desde os tempos mais remotos, configura-se como aquilo
que transcende normas e tratados. Não obedece a padrões, desconhece
limites. O seu caráter abjeto pode causar repugnância, terror ou o efeito
cômico. E, em todas as épocas e sociedades, pode-se vê-lo e senti-lo através
das várias formas de cultura: nas artes plásticas, na literatura, no dia-a-dia do
povo, nos contos populares. Enfim, o grotesco está em toda parte. Faz parte do
imaginário popular através das diversas manifestações culturais. Cada época
possui um imaginário do grotesco, mas a mentalidade do grotesco situa-se
num tempo remoto que é difícil saber onde começou. A mentalidade de que o
grotesco é tudo o que se configura fora dos padrões estabelecidos pela
sociedade se formou no humano num momento em que não podemos definir,
mas reconhecemos. Segundo Hilário Franco Júnior,
1
Tendo em vista a recorrência do tema da metamorfose na literatura de cordel brasileira, o
termo cordel de metamorfose vem sendo utilizado em trabalhos realizados, principalmente, na
Universidade Federal do Ceará. Exemplo disso é o texto “Sanção e metamorfose no cordel
nordestino (Resíduos do imaginário cristão medieval português”. In: Anais do XIX Encontro
Brasileiro de Professores de Literatura Portuguesa, Curitiba, 2003, p. 304-311). Antes, cordéis
desse tipo foram estudados na obra O mito na literatura de cordel, de Luiz Tavares Júnior. Os
cordéis de metamorfose são aqueles nos quais conta-se a história de um indivíduo que, por
algum motivo, foi transformado num animal ou objeto.
11
Existe ampla variedade de comportamentos, fatos culturais,
mas deve-se considerar que eles ocorrem dentro de um leque
de possibilidades limitado, fornecido por uma herança psíquica
inconsciente e enraizada.
2
Essa variedade e amplitude ocorrem por causa da interação de culturas
e da formação de um novo a partir do passado. Assim, cada sociedade constrói
uma idéia feio, aquilo que é repudiado e escarnecido.
O grotesco é aquilo que sabemos que existe, mas não nos sentimos
confortáveis ao reconhecê-lo. Transcende os estereótipos da normalidade. No
primeiro capítulo, portanto, voltamos no tempo e percorremos o caminho do
grotesco ao longo das épocas para, então, termos uma idéia geral do que é o
grotesco e depois nos determos na configuração dada a esse recurso artístico
no período que mais nos interessa: a Idade Média.
No capítulo dois, constatamos que o grotesco medieval deriva da
mentalidade cristã desse período e verificamos como essa mentalidade
remanesce na sociedade brasileira, principalmente no Nordeste e no cordel de
metamorfose.
Para entendermos como acontece essa remanescência do grotesco,
trabalhamos com a Teoria da Residualidade
3
. Esta diz respeito àquilo que
remanesce de uma cultura em outra, através dos processos de cristalização,
2
FRANCO JÚNIOR, Hilário. “O fogo de Prometeu e o escudo de Perseu. Reflexões sobre
imaginário e mentalidade”. In: Signum Revista da ABREM Associação Brasileira de Estudos
Medievais, nº 5, 2003, p. 92.
3
A teoria da residualidade foi proposta por Roberto Pontes e é base dos Estudos sobre
residualidade literária e cultural, certificado pela UFC e cadastrado junto ao CNPQ. A teoria diz
respeito àquilo que remanesce de uma cultura em outra e serve de base para vários trabalhos
acadêmicos na área de literatura e cultura.
12
endoculturação
4
e hibridação cultural. Através deste percurso, observamos que
uma mentalidade pode refletir-se em diversos imaginários.
A teoria proposta por Roberto Pontes diz respeito ao resíduo
5
de uma
cultura passada encontrado noutra época posterior. Significa que todos os
objetos culturais hoje presentes no nosso meio têm restos de outra época
próxima ou distante. Isso acontece por causa do que falamos acima: o
processo de endoculturação, primeiramente e, também pelo processo de
hibridação cultural. Durante esses dois ocorre também a cristalização do fato
cultural.
Como vimos, o que é residual é formado no passado, mas continua vivo
no presente, e não se pode dizer que é o passado em si, mas, sim “um
elemento efetivo do presente.”
6
Isso ocorre, pois,
O passado nunca morre por completo para cada homem. O
homem pode esquecê-lo, mas continua sempre a guardá-lo no
seu íntimo, pois seu estado em determinada época é produto e
resumo de todas as épocas anteriores. Se ele descer à sua
alma, poderá encontrar e distinguir nela as diferentes épocas
pelo que cada uma deixou gravada em si mesmo.
7
Embora o resíduo tenha sido formado no passado, na atualidade ele é o
núcleo de um elemento novo. Não é visto como algo ultrapassado, como algo a
ser contemplado num museu. O que acontece, na verdade, é que a presença
4
O termo endoculturação pode ser visto na obra Cultura: um conceito antropológico, de Roque
de Barros Laraia e vem sendo utilizado nos estudos sobre residualidade. Diz respeito à ação
do indivíduo ser correspondente à educação que ele recebe durante a vida.
5
O resíduo não pode ser visto aqui como algo negativo. Esta palavra foi importada de outra
área, mas possui uma nova significação, embora traga traços da primeira. Ele é a prova de que
uma mentalidade de uma época antiga pode povoar o imaginário doutra época e, assim, formar
uma nova mentalidade, mas híbrida.
6
WILLIANS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p 125.
7
COULANGES, Fustel. A cidade antiga. São Paulo: Edameris, 1961, p. 30.
13
do resíduo é tão forte e tão viva que, a priori, parece pertencer somente à
sociedade que o possui naquele momento determinado. Como exemplo,
citamos as várias histórias que povoam a mente do povo brasileiro. Na obra
Geografia dos mitos brasileiros, de Câmara Cascudo, encontramos várias
lendas que são contadas e repassadas de pai para filho no Brasil, mas, se
atentarmos, muitas delas têm origem noutros tempos e culturas. O autor
lembra que a população do interior do Ceará,
Quase imóvel durante longo tempo, manteve a maioria dos
mitos talqualmente os recebera. Como a influência negra não é
preponderante, mas apenas sensível e também mais
aproximada do oceano, encontramos os mitos de origem
européia e os indígenas, diversificados pela mestiçagem,
quase em estado de pureza.
8
Note-se que o autor usa a palavra quase. Portanto, embora os mitos europeus
tenham remanescido no Ceará, por meio do processo de hibridação cultural,
ainda assim, não pode ser o mesmo europeu. Na mesma obra o autor relata a
lenda da princesa encantada de Jericoacoara:
Há, sob um serrote onde o farol alumia a escuridão das noites,
uma princesa encantada, morando numa gruta, cheia de
riqueza. se desencantará se alguém for sacrificado. A
princesa está transformada numa serpente, com a cabeça e os
pés femininos. Faz-se uma cruz com sangue humano no dorso
da cobra. E ela voltará à forma humana, para sempre.
9
Segundo o mesmo autor, tal princesa tem origem nas mouras da Península
ibérica.
Assim, temos um resíduo de uma mentalidade de um período passado
remanescente numa época posterior. Essa mentalidade diz respeito ao:
8
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002, p. 24
e 25.
9
Ibidem, p. 341.
14
Plano mais profundo da psicologia coletiva, no qual estão
anseios, esperanças, medos, angústias e desejos assimilados
e transmitidos inconscientemente, e exteriorizados de forma
automática e espontânea pela linguagem cultural de cada
momento histórico em que se dá essa manifestação.
10
Segundo Hilário Franco Júnior a mentalidade faz parte de um processo
de longa duração e por isso ela quase o muda. O resíduo de uma
mentalidade é perceptível através do imaginário da outra época, que aparece
no “conjunto de imagens, verbais e visuais, que uma sociedade ou o segmento
social constrói com o material cultural disponível para expressar sua psicologia
coletiva.”
11
Citamos como exemplo a mentalidade cristã medieval refletida
através do imaginário do grotesco no cordel de metamorfose. Esse imaginário
constrói monstros que realçam a moral cristã, as conseqüências do pecado, o
medo dessas conseqüências e ainda o lado cômico advindo das dualidades e
da junção entre sagrado e profano.
Agora vejamos como isso acontece. Primeiro, temos o processo de
endoculturação que é mais individual. É um caminho pelo qual todos os seres
humanos passam desde o nascimento. É aquilo que ele recebe como herança
e internaliza. Tudo que é passado de pai para filho. Um indivíduo que nasce no
Brasil, um país com diversas religiões, mas que tem o cristianismo ainda como
sua base, encara como feio todos os feitos que vão de encontro aos princípios
da Igreja. Isso acontece porque cada ser humano aprende e acredita naquilo
que lhe é repassado. É o que vem de fora para dentro. Por isso é tão difícil
mudar de religião, pois aquilo que você apreende desde a infância fica
10
FRANCO NIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense,
2005, p. 184.
11
Ibidem, p. 183.
15
sedimentado e internalizado. Todos nós somos endoculturados, mas quando
entramos em contato com outros indivíduos e culturas não apenas olhamos
para esse ou esses outros, mas passamos por um novo processo de
endoculturação. Esse processo nos persegue durante toda a vida. E é por isso
que a mentalidade do passado encontra-se no presente. Lendas e histórias são
apreendidas e internalizadas pelo indivíduo que sempre as repassa através do
seu processo comunicativo.
A hibridação cultural ocorre quando a fusão de duas ou mais culturas
diferentes que formam uma nova cultura, uma cultura híbrida. E, se
observarmos, todas as culturas são produtos de hibridação. Como disse Nestor
Canclini, “hoje, todas as culturas são de fronteira”.
12
No nosso trabalho
verificamos a hibridação de culturas a partir do encontro dos povos europeus,
africanos e indígenas. A hibridação trata de todas as fusões que envolvem a
cultura, como “as fusões raciais ou étnicas denominadas mestiçagem, o
sincretismo de crenças e também de outras misturas modernas entre o
artesanal e o industrial, o culto e popular, o escrito e o visual nas mensagens
midiáticas.”
13
Acontece a partir de contatos, é a combinação de diferentes que
forma um novo híbrido, como aconteceu no Nordeste do Brasil, retomando o
exemplo citado anteriormente. O povo nordestino recebeu e assimilou as
lendas vindas da Europa e, consciente ou inconscientemente, repassou tais
histórias e, certamente, modificou, ainda que pouco, aquilo que ouviu. Peter
Burke, no entanto, diz que estas relações não acontecem somente de forma
12
Apud: BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Tradução de Leila Souza Mendes. São Leopoldo,
RS: Editora UNISINOS, 2003, p. 13.
13
CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
Tradução: Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: Edusp, 2003, p. 27.
16
positiva. Não proporcionam somente “um simples enriquecimento, mas muitas
vezes acontece “em detrimento de alguém”.
14
Isso é inevitável no processo de
fusão e com certeza aconteceu a um país que foi colonizado com o intuito de
lhe arrancarem as riquezas. No entanto, reconhecemos também as vantagens
desse processo.
A cristalização diz respeito ao polimento pelo qual passam os produtos
culturais. O objeto cristalizado não é, portanto, algo acabado, ou que se torna
imóvel, mas sim, algo que está em constante processo de transformação. Não
se pode entender a palavra polir como algo que retira o que é ruim e deixa só o
bom, mas como um processo de mudança pelo qual inevitavelmente toda
cultura tem de passar, mas sem que deixe algo do passado nela. No processo
de cristalização fica o resíduo remanescente do polimento que decorreu de
anos e anos.
Assim, percebemos que a mentalidade cristã medieval encontra-se no
imaginário popular do Nordeste brasileiro, por meio dos processos de
hibridação cultural e da cristalização do resíduo e ainda por meio da
endoculturação pela qual passa todo indivíduo formador de uma determinada
sociedade.
Através da leitura de obras medievalistas, assim como de obras que
contam a história da cultura popular do Nordeste do Brasil, pudemos constatar
a residualidade aqui presente. Dessa forma, no capítulo dois, de uma forma
14
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Tradução de Leila Souza Mendes. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2006, p. 7.
17
geral, trataremos dos resíduos medievais presentes na literatura de cordel
produzida no Nordeste brasileiro. Como compreendemos essa literatura
remanescente de outra época, certamente a consideramos como produto de
um processo de hibridação de culturas e da cristalização de resíduos culturais.
Sendo assim, fazemos a definição de cultura, de acordo com a proposta de
Ralph Linton, para quem a cultura é herança recebida e repassada de
sociedade para sociedade.
15
Como o termo cultura margem para interpretações diversas,
confrontamos os termos cultura popular e cultura erudita, e chegamos à
conclusão de que na verdade toda cultura é popular, pois diz respeito ao povo,
é feita e recebida pelo povo. No entanto, alguns produtos culturais podem, em
determinado momento, fazer parte de apenas um grupo social por motivos
diversos. Para compreender melhor essa oposição entre erudito e popular,
apoiamo-nos em alguns autores, como Peter Burke, Bakhtin e Darcy Ribeiro.
Então, chegamos à cultura popular do Nordeste do Brasil e observamos
que esta possui resíduos da mentalidade cristã medieval. Pois, segundo
Roberto Pontes,
À míngua de uma Idade Média que nos faltou, recebemos um
repositório de composições mais do que representativo da
literatura oral de extração geográfica e histórica cujas raízes
estão postas na Europa ibérica do final da Idade Média,
justamente quando ganhavam definição as nguas
românicas.
16
15
LINTON, Ralph. Cultura e personalidade. Tradução de Oscar Mendes. São Paulo: Editora
Mestre Jou, 1973.
16
PONTES, Roberto. “Residualidade e mentalidade trovadorescas no Romance de Clara
Menina”. Rio de Janeiro: Comunicação ao III Encontro Internacional de Estudos Medievais,
1999b, p. 1.
18
Destacamos como resíduo, principalmente a moral cristã e suas regras,
o pecado e suas conseqüências, o medo que estas podem causar e, por fim,
as várias dualidades medievais, como o sagrado e o profano que redundam no
cômico e no risível. Nestes encontramos o grotesco. Por quê? Porque o
grotesco se configura como tudo que foge a normas e preceitos e, portanto, é
condenado pela sociedade. O fato de ser sentenciado e repudiado pela
sociedade, porém, não significa que não seja atraente.
Todos os aspectos falados acima são encontrados na tradição popular,
por isso encaramos como um resíduo. Encontramos remanescência das festas
medievais, por exemplo, no que Câmara Cascudo chama de recreação
popular. Essa expressão, segundo o autor,
Não inclui apenas o divertimento, o folguedo, infantil e adulto,
mas igualmente as expressões de culto exterior religioso, na
parte em que o povo colabora na liturgia, ampliando ou
modificando o cerimonial, determinando sincretismos e
aculturações, transformada numa espécie de atividade lúdica.
17
Nos estudos sobre a Idade dia deparamos com vários movimentos
como a festa do asno, o charivari. Todos trazem em sua tradição elementos do
grotesco, como o uso de máscaras, a paródia, o riso, ou mesmo a gargalhada,
entre outros.
Em seguida, vimos vários exemplos na cultura e na literatura do
Nordeste que comprovam essa remanescência medieval. Neste ponto
mostramos como se deu essa hibridação de culturas entre Brasil
contemporâneo e Europa medieval.
17
CASCUDO, Câmara. Literatura oral no Brasil. São Paulo: Global, 2006, p. 27.
19
Continuamos a verificação das remanescências do grotesco e
percebemos que o imaginário presente na sociedade nordestina é povoado por
monstros que foram castigados por causa de algum desvio.
Nosso último capítulo trata de comprovar e detalhar o grotesco no cordel
de metamorfose contemporâneo. Primeiramente, falamos um pouco da
literatura de cordel, suas origens dos resíduos medievais nela encontrados.
Exemplo a ser citado é a vida de alguns santos que é relatada em alguns
cordéis. Algo parecido na Idade Média é a conhecida Legenda Áurea que traz
detalhes da vida de alguns santos. Segundo Andrè Jolles, as legendas na
atualidade “são, em geral, resíduos tradicionais de épocas anteriores.”
18
Obviamente o autor falou baseando-se no período em que escreveu a obra,
mas basta olharmos para alguns cordéis que neles encontraremos resíduos da
legenda na Idade Média.
Quando falamos do resíduo do grotesco no cordel de metamorfose,
detemo-nos, principalmente, no fato de que, assim como na Idade Média cristã,
o desvio da norma é considerado repugnante e traz todos os traços do
grotesco.
Depois, analisamos nove cordéis de metamorfose nos quais verificamos
a remanescência do grotesco medieval. Nosso corpus é constituído pelos
seguintes cordéis: O cachorro encantado e a sorte da megera, A
malassombrada peleja de Pedro Tatu e o lobisomem, A moça que virou
cachorra porque foi ao baile funk, de Klévisson Viana; O rapaz que virou barrão
18
JOLLES, Andrè. Formas simples: legenda, saga, mito, advinha, ditado, caso, memorável,
conto, chiste. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1930, p. 57 e 58.
20
ou o porco endiabrado, O porco endiabrado no programa do Ratinho, de
Klévisson Viana e Arievaldo Lima; O herói da floresta e a princesa encantada,
de João Firmino Cabral; O homem que casou com uma serpente, de Arievaldo
Viana e Pedro Paulo Paulino; O homem que virou macaco, de João Pedro do
Juazeiro; O mistério da pedra encantada, de Julie Ane Oliveira e Evaristo
Geraldo.
A análise parte de alguns tópicos através dos quais entramos em
contato com todos os grotescos possíveis no cordel de metamorfose
contemporâneo. Analisamos o grotesco presente na linguagem, o grotesco
social, o grotesco antes, durante e depois da metamorfose, o espaço grotesco
e ainda falamos um pouco do grotesco feminino.
Em nossa análise destacamos alguns pontos que julgamos importantes
na comprovação do grotesco nos cordéis examinados. Primeiro, observamos o
aspecto social que envolve o contexto no qual o grotesco está inserido, assim
como a linguagem. Também atentamos para a construção dos monstros, das
aberrações que desconhecem o encadeamento coerente das coisas.
Outro objeto também focado na análise é a questão do corpo como
baixo material e corporal, pois na Idade Média cristã, assim como no Nordeste
religioso do Brasil, o corpo é sagrado e deve traduzir o homem puro,
Tais concepções tendem a fazer do corpo uma imagem visível
da alma, e delas se autorizam os artistas para, às vezes,
valorizar a nudez, como por exemplo, nas cenas do martírio.
Mais comumente, o hábito que convém ao corpo exprime a
conformidade com uma norma ética e não somente social; ele
testemunha exteriormente a relação harmoniosa entre a alma e
o corpo. A desordem nas vestimentas é, portanto, signo do
pecado. O pior são os travestimentos, percebidos como uma
perversão da obra do Criador. As máscaras (para os homens)
21
e a maquiagem (para as mulheres) são condenados porque
ocultam ou pervertem de maneira sacrílega a imagem de Deus
no homem, pretendendo completar ou aperfeiçoar a Criação,
dando ao homem traços de animal que não tem alma) ou do
demônio (que é um espírito decaído), ou ainda, no tempo da
festa, invertendo as identidades sexuais fixadas por Deus e
que são uma parte da ordem social.
19
Nesse trecho é perceptível que a mentalidade cristã busca sempre a
purificação do corpo. No cordel percebemos isso de forma veemente,
principalmente com relação à mulher, que, assim como na Idade dia, ainda
é sujeita a muita repressão com relação ao seu corpo.
Também atentamos para a idéia do homem comparado ao animal. E
observamos quais as significações geradas a partir dessa comparação e
mesmo da confluência entre as características do humano e do animal
irracional. Isso gera várias aberrações e monstruosidades que rompem com a
lógica. Por fim, falamos um pouco de como o artista concebe naturalmente o
feio e o inatural como parte do cotidiano. Depois disso, teremos chegado à
constatação do grotesco no cordel de metamorfose contemporâneo como um
resíduo do grotesco medieval.
19
Dicionário Temático do Ocidente Medieval / coordenação Jacques Le Goff e Jean Claude
Schmitt; coordenador da tradução Hilário Franco Júnior. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP:
Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v.; V. 1, p. 261.
22
2. O Grotesco: Conceitos, Aproximações e Diferenças
2.1. Grotesco, sublime, belo, feio
Segundo Humberto Eco, o belo e o feio são relativos aos tempos e
às culturas, mas em todos os períodos da história sempre se tentou um padrão
definido, um modelo estável.
20
Basta atentarmos para as várias publicações
sobre o assunto. Assim, o belo e o feio sempre existiram, mas em cada época
e cultura assumiram conotações diferentes. características que são
inerentes ao feio e ao belo de todas as épocas, mas algumas podem ser
específicas duma determinada época. No geral, o belo relaciona-se com a
elevação das qualidades do homem ou daquilo que o enaltece de alguma
forma, ao passo que o feio está ligado à degenerescência do indivíduo ou do
meio em que ele vive. O belo está sempre ligado a algum aspecto positivo,
enquanto o feio tem profunda afinidade com caracteres negativos. Mas esses
dois adjetivos aparentemente tão contrários podem aproximar-se ou mesmo
confluírem:
Se examinarmos o sinônimo de belo e feio, veremos que,
enquanto se considera belo tudo aquilo que é bonito, gracioso,
prazenteiro, atraente, agradável, garboso, delicioso, fascinante,
harmônico, maravilhoso, delicado, leve, encantador, magnífico,
estupendo, excelso, excepcional, fabuloso, legendário,
20
ECO, Umberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007,
p. 10.
23
fantástico, mágico, admirável, apreciável, espetacular,
esplêndido, sublime, soberbo; é feio aquilo que é repelente,
horrendo, asqueroso, desagradável, grotesco, abominável,
vomitante, odioso, indecente, imundo, sujo, obsceno,
repugnante, assustador, abjeto, monstruoso, horrível, hórrido,
horripilante, nojento, terrível, terrificante, tremendo,
monstruoso, revoltante, repulsivo, desgostante, aflitivo,
nauseabundo, fétido, apavorante, ignóbil, desgracioso,
desprezível, pesado, indecente, deformado, disforme,
desfigurado (para não falar das formas como o horror pode se
manifestar em territórios designados tradicionalmente para o
belo, como o legendário, o fantástico, o mágico, o sublime.
21
O Dicionário de Filosofia, de José Ferrater Moura qualifica o termo
belo da seguinte forma: “o belo é o que causa prazer e agrada; (...) é um
atributo imanente nas coisas; (...) é uma aparência; (...) é uma realidade
absoluta; (...) se fundamenta na perfeição.”
22
Para Platão, “o belo é o que faz
com que haja coisas belas”.
23
Outras definições podem se juntar a essas e
dialogar entre si: “a beleza é uma realidade perceptível mediante um sentido
especial que não exige raciocínio, nem explicação (Hutcheson); o belo é o que
agrada universalmente e sem necessidade de conceito, finalidade sem fim
(Kant); a beleza é o reconhecimento do geral no particular (Schopenhauer)”
24
.
De forma que, diante de tais afirmações, vemos o belo como algo
extremamente positivo, atraente e desejável.
Por outro lado, o feio desagrada, causa desprezo e é desprovido de
beleza. Está relacionado com o baixo, com o inferior. Aristóteles liga o feio a
algo disforme e à comédia. Segundo o autor, este gênero corresponde à
21
ECO, Umberto. Op. Cit., 2007, p. 17 e 19
22
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tradução: Roberto Leal Ferreira Álvaro Cabral.
São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 65.
23
Ibidem.
24
Ib.
24
imitação de pessoas inferiores; não, porém, com relação a todo
o vício, mas sim por ser o cômico uma espécie de feio. A
comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiúra sem dor,
nem destruição; um exemplo óbvio é a máscara cômica, feia e
contorcida, mas sem a expressão de dor.
25
O sublime também foi objeto de estudo desde a Antiguidade.
Corresponde a um momento máximo mediante a contemplação de uma obra
de arte. Pode-se entrar em contato com o sublime através das representações
dos homens superiores os quais, segundo Aristóteles, esses homens são
representados nas tragédias. Para Longino
26
, é o mais alto grau de perfeição,
é o majestoso, o grandioso. É aquilo que nos causa espanto, nos fascina ao
contemplá-lo. Kant tece algumas observações sobre o belo e o sublime.
Segundo o filósofo,
A comoção produzida por ambos é agradável, mas segundo
maneiras diferentes. A vista de uma cordilheira, cujos cumes
nevados se elevam acima das nuvens, a descrição de uma
tempestade furiosa ou a caracterização do inferno, em Milton,
provocam satisfação, porém com assombro; em contrapartida,
a vista de um prado florido, vales com regatos sinuosos, com
rebanhos pastando, a descrição do Elísio, ou o que conta
Homero do cinturião de Vênus, também despertam uma
sensação agradável, que, porém, é alegre e jovial. Assim, para
que aquela primeira impressão possa se produzir em nós com
a devida intensidade, precisamos ter o sentimento do sublime;
e, para bem desfrutar corretamente da última, de um
sentimento do belo.
27
Para Kant o sublime é terrificante e diante dele a seriedade
prevalece, enquanto a contemplação do belo produz alegria plena e calma. E
25
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1992, p. 23 e 24.
26
LONGINO. Tratado do sublime. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1992, p. 73.
27
KANT, Emmanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Tradução de
Vinícius de Figueiredo. Campinas, SP: Papirus, 1993, p. 21.
25
esses termos, para o filósofo, se opõem ao grotesco e ao feio
28
. A
contemplação do feio o produz alegria, mas sim certo asco que pode ser
acompanhado de um riso cômico. Esse conjunto formaria o grotesco. Este
também pode ser terrificante e sério como o sublime, mas sua seriedade liga-
se à idéia de medo e terror.
Portanto, o grotesco corresponde ao que se caracteriza como o feio
e que pode provocar tanto o riso mico, como o horror e o temor. Dentro
desse universo está o hiperbólico, o desproporcional, o descomunal e o
assustador.
Victor Hugo, no prefácio de Cromwell, no qual faz considerações
sobre o sublime e o grotesco, advertia sobre a necessidade de uma atenção
mais aprofundada e abrangente do universo do grotesco:
Deveria ser feito, em nossa opinião, um livro bem novo sobre o
emprego do grotesco nas artes. Poder-se-ia mostrar que
poderosos efeitos os modernos tiraram deste tipo fecundo
contra o qual uma crítica estreita se encarniça ainda em nossos
dias
29
.
Para Hugo, é necessário atentar para a importância do grotesco,
pois se ele existe, deve ser olhado e analisado. nos seus dias o autor
percebia a fertilidade do grotesco, a sua plurisignificação quando presente
em uma obra.
Para Victor Hugo, a Idade Moderna, que ousou conhecer
metodicamente a natureza, habilita-se a imitar todas as formas sem
28
KANT, Emmanuel. Op. Cit., 1993, p. 53.
29
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução de Celia Berretini. o Paulo:
Perspectiva, 1988, p. 30.
26
confundi-las. Assim, nas suas criações o artista da modernidade mistura a
sombra com a luz, o grotesco com o sublime, o corpo com a alma. A
representação só do sublime seria monótona e cansativa, pois
Sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e
tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo.
Parece, ao contrário , que o grotesco é um tempo de parada,
um termo de comparação, um ponto de partida, de onde nos
elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais
excitada.
30
Victor Hugo ressalta o contraste entre o grotesco e o sublime e considera
ambos igualmente importantes. Embora sempre presente na arte de todos
os tempos, o grotesco ainda não havia recebido considerações teóricas que
o beneficiassem e que reconhecessem sua importância. O prefácio de
Victor Hugo foi, sem dúvida, um marco importante para o grotesco enquanto
categoria estética.
Cada um dos termos comentado (belo, feio, sublime e grotesco) tem
significado próprio. Porém, isso não impede que em determinada obra de
arte eles possam se unir ou, ao menos, aproximarem-se. Lembremos a
figura de Medusa: nela algo de terrificante e, ao mesmo tempo,
encantador. Ao contemplar a imagem de Medusa, somos tomados pelo
assombro, mas também encontramos algo que nos atrai e nos leva a
apreciar a imagem. Nisso encontramos um grotesco que traz em si o feio, o
repugnante, o atemorizante, mas, de certa forma, carrega também beleza e
sublimidade. Podemos pensar isso como a bela representação do feio.
30
HUGO, Victor. Op. Cit., 1988, p. 30.
27
Concluímos, pois, que uma mentalidade (longa duração)
predominante do grotesco que não sabemos onde começou. Mas,
verificamos que ela remanesce cristalizada no imaginário de diversas
sociedades através do processo de hibridação de culturas e endoculturação.
O grotesco é sempre o que está fora dos padrões de uma sociedade, aquilo
que causa repugnância, terror, riso. Embora encontremos características
semelhantes entre uma e outra sociedade, também podemos ver algo do
tipo: o que hoje é considerado grotesco, pode não ter sido em outros tempos
e pode não ser ainda em alguma sociedade. Voltaremos a essa questão.
2.2. O grotesco: significação e origem do vocábulo
Sobre o significado de grotesco, o Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa informa ser adjetivo e substantivo e data de 1548:
Diz-se de ou cada um dos ornamentos que representam
objetos, plantas, animais e seres humanos ou fantásticos,
reunidos em cercaduras, medalhões e frisos que envolvem os
painéis centrais de composições decorativas realizadas em
estuques e esp. em afrescos; brutesco, grutesco;
Diz-se de, ou estilo artístico ou obra desenvolvida a partir de
tais ornamentos
Exs.: a pintura g. de Arcimboldo
o g. dos flamengos e alemães;
Diz-se de ou categoria estética cuja temática ou cujas imagens
privilegiam o disforme, o ridículo, o extravagante etc.
Que ou o que se presta ao riso ou à repulsa por seu aspecto
inverossímil, bizarro, estapafúrdio ou caricato
Ex.: situação g.
28
Diz-se de ou caráter tipográfico que apresenta traço uniforme,
todo ele da mesma espessura, e é desprovido de serifa;
bastão, bastonete, etrusco, lineal.
31
O verbete acima abrange várias significações da palavra em questão, desde o
seu aparecimento. Para nós os quatro primeiros o os mais importantes, pois
dizem respeito ao nosso corpus.
Alguns autores se propuseram a elaborar estudos sobre o tema e
expuseram alguns conceitos do grotesco. Mary Russo nos apresenta dois tipos
de grotesco: o carnavalesco e o estranho. O primeiro tem relações diretas com
o cômico e encontra-se na Idade Média e no Renascimento e foi exposto por
Bakhtin em sua obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (o
contexto de François Rabelais). O segundo tipo verifica-se junto aos conceitos
e exemplos apresentados por Wolfgang Kayser e tem afinidades também com
o horror e com o estranho.
Bakhtin desenvolveu a tese sobre o realismo grotesco. Em sua obra
A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (o contexto de François
Rabelais), mostra e comenta o pensamento de alguns autores e expõe seus
conceitos sobre o assunto. O grotesco em Bakhtin não é visto apenas pela
ótica negativa, não tem o intuito somente de satirizar, pois, ao mesmo tempo
em que rebaixa, também eleva. Pode-se dizer que é um grotesco regenerativo.
Configura-se entre a morte e o renascimento.
31
HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2001.
29
Para Bakhtin, o grotesco acontece no meio das festas populares
medievais, por exemplo, nos carnavais de rua. Nessas festas, segundo Tércia
Costa Valverde,
A carnavalização grotesca transforma e abala as certezas do
mundo corriqueiro, assim como o riso e a ironia. Esses
elementos dialogam no que se refere à desconstrução da
organização social e suas ideologias, bem como o convite à
crítica, à ruptura de referenciais simbólicos ao reler-se o
mundo, dando-lhe um sentido às avessas.
32
Notamos que nessas festividades ruptura e inversão da ordem das coisas,
características do grotesco. A festa medieval desenvolve-se a partir da paródia.
Os celebrantes costumavam imitar os rituais religiosos, tirando-lhes a
seriedade e tornando-os mais leves. Porém, não era prioridade dos festejantes
satirizar os costumes, mas reafirmá-los. O grotesco bakhtiniano não pode ser
separado do riso, assim como da paródia, do hiperbólico, do extravagante e
deve ser sempre cheio de graça.
Enquanto Bakhtin se detém na Idade Média e no Renascimento,
Wolfgang Kayser inicia seu estudo a partir da Idade Moderna. Assim, o autor
trabalha com exemplos para se chegar a conceitos. Para Kayser, “o grotesco é
sobrenatural absurdo, isto é, nele se aniquilam as ordenações que regem o
universo.”
33
Portanto, configura-se como algo diferente da normalidade. Abala
as estruturas que parecem firmes. Para Bakhtin, o grotesco é regenerativo e
festivo.
32
VALVERDE, Tércia Costa. “O Grotesco em As Naus de Lobo Antunes”. In: MUNIZ, Márcio;
SEIDEL, Roberto. Novos nortes para a literatura portuguesa. Feira de Santana: Universidade
Estadual de Feira de Santana e Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade
Cultural, 2007, p. 104.
33
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução de Celia Berretini. o Paulo:
Perspectiva, 1988.
30
Os conceitos formulados pelos dois autores não são estanques.
Completam-se na medida em que se compreende que todos esses conceitos
envolvem o grotesco e podem apresentar-se simultaneamente numa mesma
obra. A anormalidade, a exceção que desconcerta a norma é objeto de estudo
dos dois autores e de outros teóricos, visto que essa é uma das principais
características do grotesco. Este se configura fora dos padrões de beleza
estabelecidos pela sociedade. É o hiperbólico, o que causa temor, o feio, o que
provoca o riso satírico. O grotesco desconhece formas padronizadas, quebra
as regras. Isso acontece porque abrange o estranho, o fantástico, o burlesco, o
cômico, o hiperbólico, o monstruoso, os seres híbridos. Estes podem ser
causadores do riso, medo, pavor, rejeição, espanto, entre outros. Essas
palavras, ao contrário de serem sinônimos de grotesco, contribuem para o seu
significado. Cada uma possui sentido específico abarcado pelo grotesco. Mas,
a significação dessas palavras também é ampla e gera inúmeras discussões.
Algumas delas podem ser verificadas no Dicionário de termos literários, de
Massaud Moisés. Para o nosso objetivo, que corresponde à ligação dessas
palavras com o grotesco, usamos apenas o sentido mais amplo delas. Burlesco
quer dizer gracejo e consiste em
obras literárias ou teatrais que, visando o cômico por meio do
ridículo ou da zombaria, recorrem à imitação satírica ou
parodística de obras sérias, de modo a se produzir
‘incongruência entre o assunto e o estilo, incongruência essa
que provoca o riso’.
34
O fantástico é assunto causador de muitas controvérsias, mas ficamos com a
idéia de que se apresenta na ruptura do mundo real que causa desordem. O
monstruoso, que pode estar dentro do fantástico, corresponde aos seres
34
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 266.
31
constituídos por deformidades causadoras de temor ou riso, ou ainda outros
sentimentos que podem mudar de acordo com a forma de ver o monstro em
cada época e cultura. O estranho, que pode também ser um monstro, é aquele
que não se configura nos padrões impostos por um determinado grupo. Por
exemplo, uma pessoa obesa entre várias pessoas magras é vista como
estranha. O hiperbólico também está no grotesco, pois corresponde a formas
exageradas, assim como os seres híbridos possuidores de várias formas ao
mesmo tempo, por exemplo, os centauros. Essas características sempre
estarão ligadas ao desvio de alguma norma.
A palavra grotesco surgiu no início do século XVI após a
descoberta de desenhos ornamentais de figuras híbridas. Desenhos de corpos
humanos atrelados a plantas ou corpos de animais foram encontrados a partir
de escavações feitas em Roma. Segundo Wolfgang Kayser, grotesco e seus
“vocábulos correspondentes em outras línguas são empréstimos tomados do
italiano.”
35
Deriva de grotta que significa gruta, local onde foram feitas as
escavações.
Com o tempo, os desenhos encontrados nas grutas passaram a ser
imitados por pintores no século XVI
36
.
A moda dos grotteschi se difundiu pela Itália e a França,
atravessou o século XVII e na centúria seguinte se mesclou ao
rococó. E é nesse tempo que adquiriu conotação estética,
graças sobretudo a J. Möser publicado em 1761. No século
XIX, com o aparecimento de Les Grotesques (1844), de
35
KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Tradução de J.
Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 17.
36
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 214.
32
Theophile Gautier, o termo, aplicado aos poetas barrocos,
alcançou definitiva consagração.
37
Observamos um pouco do grotesco após o aparecimento do termo
no século XV. Mas, se atentarmos para as características citadas, veremos que
sempre esteve na arte de todas as épocas. Segundo Kayser,
O fenômeno é muito mais antigo que o seu nome e que
uma história completa do grotesco deveria compreender a
arte chinesa, etrusca, asteca, germânica antiga e outras
mais, do mesmo modo que a literatura grega e outras
manifestações poéticas.
38
Necessário se faz atentarmos para um panorama geral do grotesco
desde a Antiguidade para chegarmos às características do fenômeno e
observarmos alguns exemplos
39
. Assim, obtemos mais informações para,
depois, o identificarmos no cordel de metamorfose contemporâneo.
2.3. O Grotesco na Antiguidade
Ao lembrarmos esse período áureo da humanidade, logo nos vem à
mente a imagem de deuses e heróis que se configuraram como ideal de
37
KAYSER, Wolfgang. Op. Cit., 2003, p. 17.
38
Ibidem.
39
Traçamos aqui características gerais do grotesco através de alguns exemplos de cada
época. Nosso intuito foi apenas mostrar a existência desse recurso e não nos aprofundarmos
sobre o assunto em cada época. Nosso aprofundamento se deu na análise do grotesco no
cordel de metamorfose contemporâneo.
33
perfeição e foram tidos como exemplos. Mas também sabemos da existência
de seres híbridos, deformados e monstruosos.
O mundo clássico foi durante muito tempo considerado ideal de
beleza, tanto que, por longo período, a Idade Média foi classificada como um
período sem muitos atrativos a oferecer. O modelo grego, porém, ainda que os
estudos mais contemporâneos tenham encontrado beleza noutras épocas,
continua sendo idealizado.
Isso acontece porque, ao estudarmos sobre os gregos, percebemos
que neles uma sede infinita de perfeição. Mas, observamos em Humberto
Eco que:
O ideal grego de perfeição era representado pela kallokagathia,
termo que nasce da união de kállos (genericamente traduzido
como ‘belo’) e agathós (termo usualmente traduzido como
‘bom’, mas que cobre toda uma série de valores positivos).
Observou-se que a virtude de ser kalos e agathos definia
genericamente aquilo que corresponderia, no mundo anglo-
saxônico, à noção aristocrática de gentleman, pessoa de
aspecto digno, de coragem, estilo, habilidade e conclamadas
virtudes esportivas, militares e morais.
40
Mesmo diante de tal afirmação, podem-se perceber contradições
existentes no mundo clássico quanto ao ideal de beleza. Tanto pode ser belo
aquilo que nos atrai o olhar, o que possui beleza exterior visível a todos os
olhos, como se pode encontrar beleza na alma. Uma pessoa pode ser bela a
partir dos seus atos bons, mas fisicamente não ser tão atraente, como era o
caso de Sócrates. O contrário acontece com a personagem Helena, jovem
tomada por grande beleza, mas que não hesitou em trair o seu marido,
40
ECO, Umberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007,
p. 23
34
causando uma guerra devastadora. Nesse caso, pode-se falar de uma beleza
ou feiúra moral que acompanha os seres humanos. Plotino
41
mostra um pouco
do feio moral que atinge a alma dos seres humanos. Segundo ele, o feio faz
parte do mundo material, um mundo que é feio por natureza e, por isso
mesmo, contamina a alma que se enche de inúmeros
Desejos e das mais profundas inquietações, temerosa por
covardia, invejosa por mesquinharia (...) vive a vida das
paixões do corpo e encontra prazer na feiúra. Não
poderíamos dizer, então, que a sua feiúra sobreveio do exterior
sobre ela, como uma doença que a ofende, a torna impura e
faz dela uma massa confusa de males? (...) A alma conduz a
uma vida sombreada pela impureza do mal, uma vida
contaminada pelos germes da morte. Ela não é mais capaz de
ver aquilo que uma alma deve ver; não lhe é permitido
recolher-se em si mesma porque é atraída constantemente
para a região de exterioridade, inferior e cheia de escuridão.
42
Em Platão, de acordo com Umberto Eco, encontramos recomendações
para que se
Evitasse a representação de coisas feias para os muito jovens,
mas admitia que no fundo, existiria um grau de beleza próprio a
todas as coisas, na medida em que se adequassem à idéia que
lhes correspondia; portanto pode-se dizer que é bela uma
jovem, uma jumenta, uma panela, cada uma dessas coisas
sendo, no entanto, feia em relação à precedente.
43
Platão também recomenda a não representação do feio, pois “a deformidade, a
falta de ritmo e a desarmonia são irmãs da linguagem injuriosa e do defeito de
41
Plotino viveu entre os anos 205 e 270. Apesar de ser egípcio, Plotino estabeleceu-se em
Roma aos 40 anos. Sendo um dos fundadores do neoplatonismo não é difícil encontrar na sua
escrita proximidade com as idéias de Platão, como a idéia de separar o mundo ideal do mundo
material.
42
APUD: ECO, Umberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record,
2007, p. 26
43
ECO, Umberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007,
p. 30.
35
caráter; as manifestações contrárias são irmãs e imitações (...) do caráter sábio
e virtuoso.”
44
Portanto, o filósofo admite a existência do feio, mas reforça a
importância do belo, das coisas belas e a não representação do contrário.
Para Aristóteles, o feio pode ser representado desde que belamente,
que a representação do ridículo seja muito bem feita. Segundo o filósofo,
“temos o prazer em contemplar imagens perfeitas de coisas cuja visão nos
repugna, como animais ferozes e (...) cadáveres.”
45
Outras ligações do belo e do feio na Antiguidade podem ser encontradas
em Esopo ou na Ilíada, de Homero, quando este descreve belamente o feio
Tersites.
46
Esopo, apesar de sua feiúra repulsiva era grande benfeitor. Nisso
percebemos que os conceitos de bom e belo (kallokagathia) são mais
complexos, por motivos óbvios: belo caráter não significa, necessariamente,
beleza física.
Os antigos conheciam, sem dúvida, o grotesco ligado ao pavoroso, ao
monstruoso. O universo mítico grego convivia muito bem com esses seres.
Basta lembrarmos os tritões, os sátiros, os cíclopes, as sereias, as rias, as
parcas, as harpias, os centauros; o gigante Polifemo está mais próximo do
grotesco terrível, assim como Sileno se aproxima mais do grotesco risível.
Nesses dois últimos, identificamos os dois tipos de grotescos aqui
44
PLATÃO. A República. Tradução de Eleazar Magalhães Teixeira. Fortaleza: Edições UFC,
Banco do Nordeste, 2009, p. 93.
45
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1992, p. 23.
46
ECO, Umberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007,
p. 30.
36
mencionados: um ligado ao estranho, pavoroso, horripilante e outro, ao cômico.
O fascínio por eles provocado é perceptível em diversas narrações mitológicas.
Além das deformidades, esses seres eram propensos a alguns
exageros. Alguns tinham um apetite sexual insaciável e apresentavam-se
bêbedos. Humberto Eco cita algumas representações de divindades pagãs,
como certas figurinhas femininas despidas, sátiros bêbedos e protuberâncias
fálicas.
47
Entre outras criaturas monstruosas, destacamos a Quimera que tinha
uma serpente como cauda e duas cabeças, uma de leão e outra de bode. Os
ciclopes eram gigantes de um olho e, em algumas versões, alimentavam-se
de carne humana. Na Odisséia, Homero aconselha aos homens a taparem os
ouvidos para não morrerem diante do canto da sereia. Esses seres dos quais
falamos são seres híbridos, uma característica do grotesco, assim como
assustadores e ligados a algum mal.
Esses seres têm em comum uma aparência deformante e aterrorizante.
São abundantes em partes dos seus corpos, são constituídos por formas
híbridas e recusam limites. Para compreendermos ainda mais, basta citarmos
algumas das importantes obras pertencentes à mitologia greco-romana, como
a Odisséia, na qual Homero faz a seguinte descrição:
Onde ladrar
Se aloja o monstro Cila,
Com tenrinhos cães,
Horrenda aos olhos
Os próprios deuses:
Pernas doze informes,
Seis longos pescoços,
Nas seis bocas
47
ECO, Humberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007,
p. 40.
37
Dentuça trílice,
Os colmilhos cheios
De negra morte
48
Também destacamos Eneida, de Virgílio, as Metamorfoses, de Ovídio e Os
ciclopes, de Eurípedes. Nessas obras podem ser encontrados diversos seres
deformados, de configuração hiperbólica. Transcrevemos mais alguns trechos
para observarmos um pouco mais de tais seres.
Ilhas do grande Jânio, em grego Strófades,
Nas praias me recebem: nestas ilhas
Mora a cruel Celeno e as mais harpias
(...)
Monstro maior,
Nem divinal flagelo
Nem peste mais voraz
Brotou da estige:
Tem laxo imundo ventre
E garra adunca,
Aves nojosas,
Com divinos rostos,
Magros, pálidos sempre
E esfomeados.
49
Em geral, essas personagens são tidas como seres inferiores, que importunam
e também causam desordem e confusão.
Alguns, em determinados episódios, são provocadores do cômico, como
os Ciclopes. Quando um grotesco ligado ao cômico, está normalmente
ligado ao baixo corporal. Este baixo, muitas vezes, relaciona-se com a
satisfação dos prazeres da carne. Isso pode ser observado no mito de Deméter
e Baubo. Esta última tenta obter um sorriso da deusa Deméter, sem sucesso.
48
HOMERO. Odisséia. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Versão para ebooksBrasil.com,
Fonte digital: Digitalização da edição, Biblioteca Clássica, sob a direção de G. D. Leoni e
Paulo R. Teixeira. São Paulo: Atena Editora, 2009, livro XII, versos 62-67.
49
VIRGILIO. Eneida. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Versão para ebooksBrasil.com,
Fonte Digital, digitalização do livro em papel: Clássicos Jackson, Vol. III. Digitalização
confrontada com a edição de 1854, disponível na web em rtf no “Projeto Odorico Mendes”
www.unicamp.br/iel/projetos/OdoricoMendes. 2005. Livro III, versos 220-222, 225-229.
38
Então, resolve levantar a saia e mostra o corpo indecentemente, de suas
partes íntimas sai Iaco, uma criança que ri. Assim, Baubo traz de volta o riso ao
rosto da deusa.
O baixo corporal se encontra ainda na comparação da morte com o ato
de rir que era condenado por alguns filósofos gregos, como Platão. Ao falar da
morte pelo fogo no seu livro I da República, ele diz que, enquanto o rosto do
indivíduo é consumido pelo fogo deforma-se, ao mesmo tempo em que parece
sorrir. Platão compara o riso a uma imagem repugnante. No próprio riso
encontra-se a deformação. Ao rir, o indivíduo se contorce e parece ter
convulsões.
As festividades antigas também mostram a presença do grotesco.
Dioniso, o deus da orgia, é símbolo dos desregramentos, das extravagâncias e
é acompanhado pelos grotescos sátiros. Entre as festas, temos:
As dionisíacas do campo, as bacanais, as leneanas, as
temofórias, ou as panatenéias são todas festas religiosas e
têm, necessariamente, uma significação global quanto ao
senso geral do mundo, o qual se acha a mercê dos deuses.
50
Nelas, podemos observar alguns elementos de importância para o nosso
estudo. São eles:
A reatualização dos mitos, que são representados e imitados,
dando-lhes eficácia; uma mascarada que lugar, sob
diversos disfarces, a rituais mais ou menos codificados; uma
prática da inversão, na qual é necessário brincar de mundo ao
contrário, invertendo as hierarquias e as convenções sociais; e
uma fase exorbitada, em que o excesso, o transbordamento a
transgressão das normas são a regra, terminando em caçoada
e orgia, presididas por um efêmero soberano que é castigado
50
ECO, Humberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007,
p. 30
39
no fim da festa. A importância desses elementos varia, mas
quase sempre eles se combinam e estão presentes.
51
O próprio deus que comanda essas festas é um ser inquietante,
perturbador. Liga-se ao estado de embriaguez que redunda em atos
grosseiros, causadores de desordem e violência.
A velhice também é tida como algo grotesco na Antiguidade. Para
Sóflocles, é uma maldição enviada pelos deuses, uma idade triste e que mata,
“uma caricatura grotesca”, para usarmos as palavras de Minois.
52
O corpo
está deformado e próximo do fim. E, por causa dessa proximidade com o fim,
se um velho tem atitudes que condizem com a vida ele é ridicularizado e torna-
se repugnante. Os vícios e as paixões, os prazeres da carne tornam-se
grotescos micos. Ao velho não compete banquetear-se, beber, deitar com
mulheres. A sua velhice significa a degradação do indivíduo.
Para Aristófanes, como para a maioria de seus
contemporâneos, o velho passou da idade do amor físico,
essencialmente porque sua feiúra torna revoltante qualquer
idéia de relação sexual; a velhice está nas antípodas do
erotismo, e a simples idéia de que um velho ainda possa ter
desejos é suficiente para torná-lo repugnante no espírito de um
grego, para quem beleza, juventude e amor são
indissociáveis.
53
Também na Antiguidade encontramos o grotesco na vileza humana. No
fato do homem ser capaz de qualquer baixeza para realizar seus desejos. No
Romance de Hipócrates, obra anônima do século I, o homem é causador do
51
ECO, Humberto. Op. Cit., 2007, p. 30.
52
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 52.
53
Ibidem.
40
riso satírico, se submete a sofrimentos para possuir cada vez mais e sem
nenhuma necessidade. Nesse caso, o grotesco aparece como uma crítica.
Após observarmos exemplos do grotesco na Antiguidade, verificamos,
então, a presença do grotesco nos seres monstruosos que estão relacionados
a seres inferiores, causadores de algum transtorno, também nas festas onde o
desregramento era a regra, na velhice, bem como nas atitudes vis do ser
humano. E vimos que esses exemplos de grotescos tanto podem estar ligados
ao horror, como ao riso em forma de brincadeira, sátira ou crítica. Assim,
tivemos a certeza de que o aspecto feio e repugnante do grotesco é um
importante recurso inventivo desde o mundo antigo.
2.4. A teorização do grotesco medieval
A Idade Média, como o próprio nome sugere, foi considerada
durante muito tempo como um período menos valioso que o anterior e o
posterior a ela. Mas, para Hilário Franco Júnior a época medieval não é apenas
um período intermediário entre Antiguidade e Renascimento. nela muitas
riquezas a serem exploradas através das remanescências encontradas na
41
sociedade atual. Le Goff nos fala de uma bela Idade Média
54
. Dessa forma,
devemos adentrar um pouco mais nesse período para conhecer suas riquezas.
Concordamos com a idéia de que,
Para o homem medieval, o referencial de todas as coisas era o
sagrado, fenômenos psicossociais típicos de sociedades
agrárias, muito dependentes da natureza e, portanto, à mercê
de forças desconhecidas e não controláveis. Isso gerava,
compreensivelmente, um sentimento de insegurança. (...)
Desamparado diante de uma natureza frequentemente hostil, o
homem encontrava as origens disso, e as possíveis
escapatórias, num mundo do Além. Sem dúvida aquela era
uma ‘sociedade habituada a viver sob o signo do
sobrenatural’
55
Sendo assim, todas as produções artísticas e culturais daquela
época vão estar, de alguma forma, relacionadas a esse caráter do sagrado.
Dentro desse sagrado medieval encontramos o grotesco que aparece para
desvirtuar um pouco, assim como acentuar o caráter religioso e também para
tornar esse período ainda mais atraente.
Quando se fala de grotesco, principalmente do grotesco medieval,
um dos autores basilares é Mikhail Bakhtin. Para este teórico, esse recurso
inventivo possui um caráter relacionado com o estranho, o disforme, mas
primeiramente está unido ao matiz satírico. Obviamente não possui intuito
somente satírico, como disse Scheneegans
56
, pois assim seria muito pobre.
Para Bakhtin, o grotesco é também regenerador.
54
LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Tradução de Marcos Castro. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008, p. 49.
55
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: o nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense,
2005, p. 139.
56
Autor criticado por Bakhtin por ressaltar apenas o lado satírico do grotesco e não atentar
para o caráter regenerativo.
42
Na Idade Média o mundo infinito das formas e manifestações do riso
opunha-se à cultura oficial, ao tom rio, religioso e feudal da época. Essas
manifestações estavam diretamente relacionadas à cultura carnavalesca,
expressada através dos ritos e espetáculos dos festejos de carnaval e de
outras festas, através das personagens cômicas, do vocabulário grosseiro,
como insultos, juramentos e blasonarias populares os quais existiam nas festas
de rua da época citada.
Os festejos do carnaval ocupavam um lugar muito importante na
vida do homem medieval. Além dos carnavais, que enchiam praças e ruas
durante dias inteiros, havia outras celebrações como a festa dos tolos, a festa
do asno e o riso pascal. Quase todas as festas religiosas apresentavam um
cunho cômico e popular. Os bufões e os bobos, por exemplo, eram
personagens características da cultura cômica da Idade Média e faziam parte
desses eventos festivos. Eles assistiam aos cerimoniais oficiais da Igreja e, em
seguida, parodiavam durante os festejos populares. O carnaval era uma
espécie de liberação das festas oficiais da Igreja. Funcionava como uma
abolição provisória de todas as relações hierárquicas, de todas as regras e
tabus.
Nessas manifestações populares a visão cômica do mundo
traduzia-se por meio de:
Obras verbais ligadas aos regozijos carnavalescos. Literatura
de festa, parodística, pela qual as condições sociais oficiais são
zombadas e reviradas e nas quais os ritos mais sagrados são
parodiados: liturgias, preces e sermões bufos, paródias de
romances de cavalaria, fábulas e farsas, peças religiosas com
diabruras. Enfim, para expressar a liberação, o caráter
dinâmico, mutante e festivo da realidade, essa visão cômica do
43
mundo tem necessidade de um novo vocabulário, no qual
pragas e grosserias desempenham um papel essencial.
57
O vocabulário usado durante o carnaval nas praças públicas rompia
diferenças e barreiras hierárquicas entre pessoas de diferentes classes sociais
e eliminava tabus da vida cotidiana. Era um tipo de comunicação impossível na
vida comum. Afastava possíveis restrições entre os indivíduos. E o havia
problemas no uso de um vocabulário repleto de palavras e expressões
injuriosas.
Para Bakhtin, o carnaval não era uma festa oficial, mas sim uma
festa do povo, festa de rua na qual o povo se despia do aprisionamento
dominante de todas as regras e tabus. Uma festa que se opunha a todos os
tratados e regulamentações, um momento de renovação. Segundo ele, a festa
oferecia:
Uma visão de mundo, do homem e das relações humanas
totalmente diferentes, deliberadamente não oficial, exterior à
igreja e ao estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo
oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os
homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor
proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões
determinadas.
58
Nessa festa todos criam e recriam a si, vestem-se de novos
personagens, trocam de personalidade, representam, vão para as ruas. Não há
57
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Helena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 157.
58
BAKHTIN, Mikhail: A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da
Universidade Federal de Brasília, 1999, p. 4
44
palco no carnaval, portanto não espectadores, somente atuantes. Todos
atuam na rua.
“A festa dos bobos” ocorria no meio eclesiástico. Nessa festa toda a
liturgia missal era parodiada. Segundo Minois, a representação litúrgica
formulada pelos festejantes:
descreve hinos de fantasia, recheados de gírias em latim, que
devem ser cantados em falso bordão, assim como a eleição
dos bispos ou papa dos bobos, que se desenrola segundo um
cerimonial parodístico e bufão. O eleito porta as insígnias de
sua função (cruz, mitra, cruz episcopal) e confere copiosas
bênçãos; trata-se de uma criança que se entrega a toda
espécie de facécias e podem-se imaginar os risos e as
extravagâncias que a cerimônia propicia.
59
É inegável que o meio religioso tem como característica sempre
presente a seriedade, que faz parte de uma instituição séria e detentora do
poder. No entanto, chamavam a atenção os brincalhões que faziam pilhérias
com os rituais da Igreja:
Turbulentos, boêmios, acompanham suas patuscadas com
canções de beber, sempre prontos a transformar um hino em
poema erótico ou uma peça em poesia burlesca, por
brincadeira, por vontade de chocar o burguês e as
autoridades.
60
Entre as pessoas que compunham essas festas estavam os goliardos,
considerados clérigos- estudantes vagabundos, com pouca reputação. A festa,
porém, não era proibida. Os estudantes recebiam uma licença para a diversão.
Não se pode esquecer que até o século XIV o meio religioso convive muito
bem com o cômico e com a mistura entre sagrado e profano. Hilário Franco
59
BAKHTIN, Mikhail. Op. Cit., 1999, p. 177.
60
MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 174.
45
Júnior fala-nos de uma unidade que conduz à perfeição e esta unidade
significa: “considerar que ‘sagrado’, do ponto de vista medieval, engloba o
profano’.”
61
Essa mistura tem como consequência a comicidade.
Outra festividade que permeava o universo parodístico popular e
grotesco medieval era “a festa do asno”. Esta também consistia numa
representação parodística de um momento litúrgico.
Vestido com uma rica capa, o asno faz sua entrada, às vezes
puxado pela cauda, enquanto a assistência entoa o verdadeiro
hino à alegria, em latim: ‘este dia é um dia de alegria!
Acreditem-me: afastem dessas solenidades qualquer um que
esteja triste! Que dispensem todos os assuntos de raiva e
melancolia! Aqueles que celebram a festa do asno querem
alegria’. Dois cônegos conduzem o asno ao púlpito, como se
fosse um bispo.
62
O asno simbolizava o humilde, o mais fraco e se destacava pelo
divertimento do popular, como um meio de fazer justiça aos mais fracos.
Semelhante à festa dos bobos, quando se trata da paródia de rituais
litúrgicos, a festa do asno “se destaca, sobretudo, pelo divertimento inocente e
popular do asno, assim como pelo desejo de fazer justiça ao mais modesto, ao
mais fraco.”
63
Essa festa gira em torno dos mais fracos e o objetivo é
representar uma liturgia que não deixe nada a desejar da oficial e que
provoque regozijo. Os tristes não são bem-vindos à festa. Esta era aprovada
61
FRANCO NIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense,
2005, p. 139.
62
MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 179 e 180.
63
Ibidem, p. 180
46
pelas autoridades religiosas da época. O auge do evento era a entrada triunfal
do asno, simbolizando a ascensão dos mais fracos.
Os religiosos se permitiam a alguns dias de folia e de riso
descompensado para depois voltarem com mais vigor aos trabalhos oficiais da
casa de Deus. Como se sentissem uma vontade de descansar do sério, do
perfeito, como se precisassem de um pouco de ar retirado do profano para
continuarem respirando. A profanação consistia em brincar com o sagrado,
misturá-lo ao profano, como se caminhassem lado a lado. Tudo que não era
permitido falar durante todo o ano recebia a liberação total e ninguém mais
precisava fingir.
Mas, mesmo com a união do sagrado e do profano declarada durante as
festas, o padrão religioso permanecia. Além disso, embora saibamos da
liberação, a festa denunciava o pecado.
64
Os medievais celebravam “a festa
dos bobos, segundo antigos costumes, o que alegra o chantrado; contudo, toda
glória devia ser para o Cristo circuncidado!”
65
Aliás, esse é um lema que faz
parte do imaginário cristão no qual todas as práticas humanas devem honrar o
nome de Deus e não ter como prioridade desfrute dos prazeres. Na primeira
epístola de Paulo aos Coríntios ele diz: “Portanto, quer comais quer bebais, ou
façais outra qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus.”
66
64
O chantrado era composto por membros da igreja (chantres) responsáveis pelo coro a ser
entoado nas capelas. Informação colhida no Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua
Portuguesa, 3.0. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.
65
Apud: MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 177.
66
BÍBLIA. Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios. Português. Bíblia de Promessas. Novo
Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Junta de Educação
Religiosa e Publicações Imprensa Bíblica Brasileira, 2006, p. 194.
47
Algumas comemorações tinham um caráter mais agressivo. É o
caso do “charivari”. Nesta festa, gargalhadas eram proferidas por um
determinado grupo contra um indivíduo que, até então, fazia parte daquela
sociedade. Esse indivíduo era insultado por ter transgredido alguma regra
social não punida judicialmente. Então, a sociedade se responsabilizava por
essa punição para que a ordem pudesse ser mantida. Provocavam essa
manifestação os velhos que casavam com moças jovens, pois impediam os
jovens de casarem, que era tão difícil conseguir um casamento naquela
época; os maridos que apanhavam das mulheres, entre outros casos que
desafiavam as normas sociais impostas por uma determinada comunidade ou
vilarejo. “Trata-se de sancionar um desvio que, se não constitui um delito
passível de recorrer à Justiça, exige atenção para o bom funcionamento do
grupo e preservação da moral costumeira.”
67
E certamente a punição funcionava, pois a vítima sentia-se
envergonhada de tal forma que se privava de sair na rua. Os praticantes do
charivari se reuniam em grupo caminhavam até a residência da vítima e
iniciavam o ato de difamações contra ela. Em alguns casos eram jogados
dejetos sobre a vítima que se sentia “envergonhada, excluída do grupo”, em
outros, a vítima era forçada a exilar-se. Algumas, por não suportarem tamanha
humilhação, chegavam ao suicídio.
68
Isso acontecia porque as ofensas
67
MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 170.
68
Ibidem, p. 171.
48
recebidas causavam vários danos psíquicos que, além de expor o desvio da
norma, isolava o indivíduo da sociedade, sem direito de defesa.
69
A liberação ocorrida na festa medieval era também uma forma do
indivíduo descarregar-se dos medos que o envolviam. Pressionado por todos
os lados e diante de todas as dificuldades que rodeavam seu mundo, ele não
tinha outra saída a não ser recorrer a aparente liberdade e ao riso da festa.
Segundo Minois,
O riso carnavalesco sempre tem uma função de liberação das
necessidades recalcadas, as forças vitais, obrigatoriamente
canalizadas na vida social cotidiana, encontram nesse riso
coletivo uma válvula de segurança (...) está para dar
segurança, para vencer o medo. É por isso que se vêem, nos
cortejos, figuras exóticas, monstruosas, falsamente
assustadoras que ameaçam atacar: provocar medo, sabendo
que é para rir (...) um meio de exorcizar o medo. Vêem-se
homens e mulheres selvagens, (...), dragões, tal como o
famoso monstro de Tarascon, gigantes engraçados e
inofensivos, cuja malandragem provoca hilaridade.
70
Podemos destacar alguns aspectos que caracterizam o grotesco
nessas festas. Primeiro, a mistura entre sagrado e profano o que ocasiona o
desvio da norma. Todas essas festas desviam-se do propósito cristão
medieval. E, ainda que o intuito fosse reforçar as normas cristãs, os
participantes violavam regras e praticavam atos que durante os demais dias do
ano seriam motivos de culpa para qualquer um dos praticantes. Assim, ocorria
o desregramento humano, tudo era permitido.
O grotesco está também no ato da paródia. Nesta, a união do
sagrado e do profano se materializa. Traz consigo deformações da ordem
69
Ver figura na página 49.
70
MINOIS, George. Op. Cit., 2003, p. 166.
49
natural dos seres e coisas, exageros caricaturais, comparação do homem com
animais e tudo isso provocando riso. Os praticantes da paródia, assim como de
outros gêneros usados durante essas festividades vestiam-se de forma
inusitada, usavam máscaras.
Uma imagem sem deformações certamente conduziria ao sublime, outra que
denegrisse essa imagem perfeita geraria o grotesco. E para que serviam essas
71
Os Charivari, MS. Fr. 146, f. 34, séc. XIV, Paris, Bibliothèque Nationale. Apud: ECO,
Umberto. História da feiúra
. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 141.
Representação da festa na qual um indivíduo era ridicularizado publicamente por um grupo de
pessoas.
50
Uma imagem sem deformações certamente conduziria ao sublime, outra que
denegrisse essa imagem perfeita geraria o grotesco. E para que serviam essas
Os Charivari, MS. Fr. 146, f. 34, séc. XIV, Paris, Bibliothèque Nationale. Apud: ECO,
. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 141.
Representação da festa na qual um indivíduo era ridicularizado publicamente por um grupo de
71
Uma imagem sem deformações certamente conduziria ao sublime, outra que
denegrisse essa imagem perfeita geraria o grotesco. E para que serviam essas
Os Charivari, MS. Fr. 146, f. 34, séc. XIV, Paris, Bibliothèque Nationale. Apud: ECO,
. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 141.
Representação da festa na qual um indivíduo era ridicularizado publicamente por um grupo de
51
figuras grotescas, qual era o intuito delas no meio da sociedade? Ou, por quais
motivos essa sociedade ria de seus próprios defeitos, aceitava mostrá-los em
público? Na verdade, o povo se reunia e suas características humanas eram
ressaltadas, por esse mesmo povo, de forma grotesca, pois os indivíduos
reconheciam-se defeituosos e representavam-se como se vissem seus reflexos
no espelho.
Por fim, mais um aspecto liga essas festas ao grotesco: o riso
conseqüência desse desregramento humano e dessa paródia da vida real, ou
melhor, da representação de um mundo às avessas. E pode-se observar desde
o riso alegre da festa do asno até a gargalhada ofensiva do charivari que:
Na Idade Média o riso coletivo desempenha um papel
conservador e regulador. Por meio da paródia bufa
72
e da
zombaria agressiva, ele reforça a ordem estabelecida
representando seu oposto grotesco
73
Para Minois, o riso grotesco nasce dessa:
defasagem permanente entre o que somos e o que deveríamos
ser. (...) é a desforra do diabo que revela ao homem que ele
não é nada, que não deve seu ser a si mesmo, que é
dependente e que não pode nada, que é grotesco em um
universo grotesco.
74
E por isso o homem ri de si mesmo e
do outro, desse fantoche ridículo, nu, que tem sexo, que peida
e arrota, que defeca, que se fere, que cai, que se engana, que
72
Costumavam parodiar através de um fanfarrão, um bobo. O bufão gracejava de uma pessoa,
ou situação.
73
MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 174.
74
Ibidem, p. 112.
52
se prejudica, que se torna feio, que envelhece e que morre (...)
uma criatura decaída. O riso vai se insinuar por todas as
imperfeições humanas.
75
Mas o grotesco da Idade Média não se resume aos festejos
populares nos quais predominam a união do sagrado e do profano, a paródia, a
quebra das regras e o riso. Há outros ambientes nos quais o grotesco medieval
pode ser testemunhado.
A baixa Idade Média é um período no qual a população é dominada
pelo medo, devido aos inúmeros problemas que dificultavam a
sobrevivência, como a escassez e a fome, causadas pelo aumento
desregrado da população, a guerra e, principalmente, a peste negra. Nesse
período, o grotesco, o estranho, o feio atingem o horror. Agora ele alcança o
medo, provoca um profundo mal estar, é assustador. Não há de que rir, nada
possui graça, somente a falta dela. E, se algum riso, este é
amedrontado, medroso.
Nos momentos mais difíceis, o povo, movido por crenças advindas da
religião cristã vigente naquele tempo, demonstrava medo do que
considerava sobrenatural. Isso mostrava a ausência, quase total, de
conhecimento sobre possíveis curas de doenças através de plantas
medicinais e remédios caseiros. A novidade não era aceita por aquela
sociedade que abominava o desconhecido. O receio mediante o novo levava
os detentores do poder religioso a determinar a erradicação de tais práticas,
as quais eram condenadas como magia e bruxedos.
75
MINOIS, George. Op. Cit., 2003, p. 112.
53
Ao receio e à tentativa de erradicação dessas práticas seguiam-se
reações como a caça às bruxas, uma prática comum em determinado
momento da Idade Média. Nesse período, eram as mulheres camponesas e
pobres que conheciam ou descobriam fórmulas para fazer remédios à base
de ervas. Devido a não instrução, algumas dessas mulheres julgavam-se
realmente possuídas pelos demônios. Segundo Eco,
As chamadas bruxas eram velhas curandeiras que diziam
conhecer ervas medicinais e outros filtros. Algumas eram
pobres embusteiras que viviam da credulidade popular, outras
estavam convencidas de que mantinha relações com o
demônio e eram casos clínicos. Mas as bruxas representavam
uma forma de subcultura popular. Existem, na Idade Média,
documentos de condenação das bruxas, como uma bula de
Alexandre IV, de 1258.
76
A bruxa aparece de forma assustadora e amedronta a sociedade
medieva. O grotesco apresenta-se por meio do horror provocado pelo mal. O
que causa espanto é o que está diretamente ligado às forças demoníacas, ao
diabo. E todos buscam fugir disso. Em O martelo das feiticeiras, escrito por
Sprenger e Kramer em 1486, pode-se ler sobre as bruxas:
Antes de tudo, falaremos de como agem com os homens,
depois com os animais e, enfim, com os frutos da terra. No que
concerne aos homens, interessa, sobretudo, como o
capazes de impedir com bruxarias a potência generativa ou o
ato venéreo para que a mulher não possa conceber e o homem
não tenha condições de completar o ato. Em segundo lugar,
como o ato é, às vezes, obstruído com uma mulher, mas não
com outra. Terceiro, de que modo os membros viris são
arrancados, como se fossem inteiramente separados do corpo.
Quarto, como é possível discernir quando uma coisa provém
unicamente da potência do diabo, que age sozinho, sem uma
bruxa. Quinto, de que modo as bruxas são capazes de
transformar em Bestas pessoas de um e de outro sexo com a
76
ECO, Umberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007,
p. 203 e 205.
54
arte dos malefícios. Sexto, como as bruxas parteiras matam de
diversas maneiras os fetos ainda no ventre da mãe ou, quando
não o fazem, como oferecem as crianças aos demônios (...).
Em conclusão, todas essas coisas provêm da concupiscência
carnal que nelas é insaciável (...). Não é de espantar que entre
os infectados pelas heresias das bruxas existam mais mulheres
do que homens (...) e bendito seja o altíssimo que tem
preservado até agora o sexo masculino de tão grande flagelo.
77
A bruxa era a representação do pecado e este, relacionava-se na
Idade Média, tal como hoje, com o desvio da norma, provocava repugnância.
A mulher, ao se deixar possuir pelos espíritos malignos, mostrava-se alvo
fácil do pecado. Era vista como impura, como sedutora para o
desvirtuamento. A sociedade, que se queria defensora da moral, ao observar
os poderes negativos dessas feiticeiras, pensava em meios de castigá-las.
Obviamente, o que se considerava impuro o estava somente nas
bruxas durante aquele período, mas em outras minorias formadoras daquela
sociedade, que não perdoava o desvio da moral cristã imposta pelos
membros da Igreja. Judeus, leprosos e prostitutas também foram
constrangidos pela ética popular. Os desviantes da norma eram
considerados estranhos e causavam terror ao se aproximarem dos membros
da comunidade medieva. De fato, a caça às bruxas foi intensificada no final
da Idade Média, pois antes os inquisidores se preocupavam principalmente
com os hereges.
77
APUD: ECO, Umberto. Op. Cit., 2007, p. 208.
Apesar do caráter atemorizante presente no contexto que
observamos acima, Minois lembra que o grotesco gracioso também
acompanha esse período e permanece por longa data. Aliás, pode
em algo m
ais que simplesmente gracioso. No meio do medo dos maus
espíritos, dos barulhos aterrorizantes que dominavam a população, nada
melhor para fazer esquecer que uma gargalhada diante do feio. Ainda que o
riso pareça não ser adequado ao meio sério da religião,
remédio para sobreviver diante das ameaças. Para Le Goff,
Na época medieval, na verdade, o riso era objeto de duas
definições contraditórias. A primeira, herdada dos Padres da
Igreja gregos e amplamente difundida no Ocidente latino,
conden
filósofo grego
Quintiliano, depois utilizada por uma linhagem completa de
78
Três bruxas com cabeça de asno, galo e cão partem para o sabá
Von den Unholden oder Hexen, Konstraz, 1489.
55
78
Apesar do caráter atemorizante presente no contexto que
observamos acima, Minois lembra que o grotesco gracioso também
acompanha esse período e permanece por longa data. Aliás, pode
ais que simplesmente gracioso. No meio do medo dos maus
espíritos, dos barulhos aterrorizantes que dominavam a população, nada
melhor para fazer esquecer que uma gargalhada diante do feio. Ainda que o
riso pareça não ser adequado ao meio sério da religião,
ele é o melhor
remédio para sobreviver diante das ameaças. Para Le Goff,
Na época medieval, na verdade, o riso era objeto de duas
definições contraditórias. A primeira, herdada dos Padres da
Igreja gregos e amplamente difundida no Ocidente latino,
conden
a o riso. A segunda, que encontramos primeiro com o
filósofo grego
pagão
Aristóteles, retomada pelo latino
Quintiliano, depois utilizada por uma linhagem completa de
Três bruxas com cabeça de asno, galo e cão partem para o sabá
, xilogravura em U. Molitor,
Von den Unholden oder Hexen, Konstraz, 1489.
Apesar do caráter atemorizante presente no contexto que
observamos acima, Minois lembra que o grotesco gracioso também
acompanha esse período e permanece por longa data. Aliás, pode
-se falar
ais que simplesmente gracioso. No meio do medo dos maus
espíritos, dos barulhos aterrorizantes que dominavam a população, nada
melhor para fazer esquecer que uma gargalhada diante do feio. Ainda que o
ele é o melhor
Na época medieval, na verdade, o riso era objeto de duas
definições contraditórias. A primeira, herdada dos Padres da
Igreja gregos e amplamente difundida no Ocidente latino,
a o riso. A segunda, que encontramos primeiro com o
Aristóteles, retomada pelo latino
Quintiliano, depois utilizada por uma linhagem completa de
, xilogravura em U. Molitor,
56
autores cristãos da Idade Média, afirma, ao contrário, que o
riso é próprio do homem.
79
E, ainda segundo Le Goff, “há toda uma literatura medieval que
ilustra sucessivamente o cômico, o espírito, o humor, a ironia, a caricatura, a
paródia, o grotesco”.
80
Minois lembra que, no Decameron, fala-se do riso nos
tempos difíceis.
Na Florença assolada pela peste negra, em 1348, alguns
rezam em procissão, mas é pura perda de tempo, nos diz
Bocaccio: ‘é em vão que organizaram, não uma vez, mas
várias, humildes preces públicas e procissões, e outras
súplicas foram dirigidas a Deus por pessoas devotas; quase no
início da primavera do dito ano, o flagelo desabou seus
dolorosos efeitos em todo o seu horror e afirmou-se de maneira
prodigiosa’ Outros reagem pelo riso: ‘eles afirmavam que beber
muito, usufruir, ir de um lado para o outro cantando e se
satisfazendo de todas as formas, segundo o seu apetite, e rir e
zombar do que pudessem rir era o remédio mais certo para tão
grande mal’. De igual modo, diante da avalanche de mortos,
‘eram raros aqueles que se comoviam com as lágrimas
piedosas ou amargas dos parentes. Ao contrário, essas
lágrimas eram, na maioria das vezes, substituídas por risos,
ditos alegres e festas’. É assim que um grupo de jovens,
homens e mulheres, decide passar o tempo contando as
histórias,, engraçadas se possível, que compõem a trama de
Decameron.”
81
Assim, percebemos a diversidade do grotesco na Idade Média
que varia entre o riso alegre e o ofensivo e também é terrificante. Os
exemplos citados são a prova da riqueza desse período tão importante que
até nos dias atuais é possível encontrar suas remanescências.
79
LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Tradução de Marcos Castro. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008, p. 286.
80
Ibidem, p. 287.
81
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Helena O. Ortiz
Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 243.
57
2.5. Renascimento, Idade Moderna e Contemporaneidade
Consideramos o Renascimento uma extensão da Idade Média. Nesse
período, que Hilário Franco Júnior chama de baixa Idade Média, o grotesco
atinge um tom mais crítico. Não é mais apenas brincalhão e desinteressado,
como fora na alta Idade dia, nem tampouco somente assustador, como
também foram alguns monstros medievais, como as bruxas.
O grotesco não atinge só as classes populares e não é mais uma
paródia saudável, brincalhona. Pode ser observado através duma sátira
agressiva direcionada a todos os níveis da sociedade, principalmente a alta
sociedade, incluindo a política e a igreja, como se pode observar na obra
rabelaisiana. “Rabelais, sem peias, nem sutilezas, é sardônico, chega a ser
chulo. Aos tapas de luvas de seus mestres, prefere o pontapé nos fundilhos; ao
eufemismo, o palavrão; ao salgado, o ácido”
82
O autor de Gargântua e
Pantagruel é um crítico sagaz e na sua representação do mundo, atinge,
através dos seus personagens gigantes, o nível mais elevado do grotesco. O
exagero, a extrapolação, o ridículo, o abjeto estão na obra de forma intensa
sem preocupações com a linguagem ou com as imagens que podem surgir na
mente do leitor, o que pode ser observado no trecho abaixo que trata do
crescimento e do aprendizado de Gargântua na adolescência. O jovem gigante
fala ao pai dos meios utilizados por ele para limpar suas partes íntimas e,
enquanto explica isso ao pai, profere alguns versos criados por ele:
82
AMADO, Eugênio. “Vida e obra de François Rabelais”. In: RABELAIS, François. Gargântua e
Pantagruel. Tradução de David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2003, p. 15 e 16.
58
Porcão,
Cagão.
Peidorreão
A gente fica exposta
À tua bosta.
De santo Antônio o fogo há de queimar-te
Se em toda parte
Do teu corpo os buracos não limpares
Antes de ires daqui para outros ares.
83
Toda a obra rabelaisiana segue esse padrão, não poupa nada, nem mesmo a
linguagem que provoca o asco. Os ambientes são descritos detalhadamente e
neles pode-se perceber a descrição satírica de uma sociedade interessada em
satisfazer os seus desejos carnais e materiais acima de tudo. As festas
promovidas por Grandgousier são ricas em bebidas, todos se embebedam e
querem sempre mais, nunca estão saciados. O próprio Gargântua ao nascer,
ao invés de chorar como acontece a toda criança, começa a gritar “beber,
beber, beber! Como convidando todo mundo a beber”
84
e a comemoração do
seu nascimento se dá com mais bebidas.
Até então, o vocábulo grotesco não existia e quando apareceu, em
meados no século XVI, primeiramente designava seres híbridos como plantas
misturadas a animais ou seres humanos. mais tarde, como dissemos,
passa a designar algo fantástico, fabuloso, horrendo, horripilante, ridículo,
cômico, entres outros adjetivos sinônimos que compõem o significado de
grotesco. Mas, como já vimos também, essa significação do grotesco não
passou a existir como o vocábulo grotesco que surgiu no século citado.
83
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Tradução de David Jardim Júnior. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia, 2003, p. 71.
84
Ibidem, p. 45.
59
fizemos o levantamento de épocas anteriores e encontramos essa significação
de grotesco desde os tempos da Antiguidade. A mentalidade do grotesco
acompanha o ser humano desde longa data e cada época agrega a essa
mentalidade uma nova roupagem que torna a arte sempre nova, ainda que
retome sempre o passado, perfazendo o processo de cristalização. É o que
acontece nesse período que, como vimos, tem na obra de Rabelais o auge do
grotesco responsável pela satirização da sociedade de um modo geral,
ninguém escapa à feiúra, o mundo todo é ridículo. O que é possível perceber
também em outras épocas e leituras, mas cada uma possui características que
a tornam únicas e dignas de olhares admiradores e curiosos.
Na Idade Moderna, além de continuar presente, o grotesco passará a
ser mais respeitado pelos críticos da arte. No Barroco e no Maneirismo, por
exemplo, pode-se observar um estilo considerado despropositado,
extravagante e que reflete deformações se visto pelos padrões do estilo
clássico. Segundo Eco, “Maneirismo e Barroco não temem recorrer àquilo que,
para a estética clássica, era considerado irregular”. certa aceitação não do
feio em si, mas das regras impostas pelos artistas. “A deformação é, portanto,
justificada como recusa da simples imitação e das regras, que não determinam
o gênio, mas dele nascem.”
85
Podemos observar isso nas obras de Brueghel:
nas suas figuras distorcidas, que parecem transformar ordem em caos. “Seu
traço peculiar é que, na sua obra, o noturno, o inferno e o abismal (...) irrompe
85
ECO, Humberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007,
p. 169.
em nosso mundo familiar e o põe fora dos eixos.”
na tela do referido artista.
87
Neste quadro, intitulado “A parábola dos cegos”, de 1568, Brughel, faz
uma possível alusão a um texto bíblico no qual Jesus diz aos discípulos que
não precisam lavar as os antes de comer, infringindo, assim, uma regra.
Fariseus que escutaram tal coisa se enfureceram e Jesus replicou: quando um
cego guia outro cego ambos caem no abismo. O mais interessante, porém, é
perceber a construção do quadro.
do grotesco para representar a realidade e
Pinta o mundo estranhante de nosso dia
ensinar, advertir ou provocar compaixão, mas precisamente
86
KAYSER, Wolfgang.
O grotesco
p. 36.
87
BRUEGHEL, Pieter. “A parábola dos cegos
60
em nosso mundo familiar e o põe fora dos eixos.”
86
é o que se pode perceber
na tela do referido artista.
Neste quadro, intitulado “A parábola dos cegos”, de 1568, Brughel, faz
uma possível alusão a um texto bíblico no qual Jesus diz aos discípulos que
não precisam lavar as os antes de comer, infringindo, assim, uma regra.
Fariseus que escutaram tal coisa se enfureceram e Jesus replicou: quando um
cego guia outro cego ambos caem no abismo. O mais interessante, porém, é
perceber a construção do quadro.
Segundo Kayser, o pintor usa a perspectiva
do grotesco para representar a realidade e
Pinta o mundo estranhante de nosso dia
-
a
ensinar, advertir ou provocar compaixão, mas precisamente
O grotesco
. Tradução de J. Guinsburg.
São Paulo: Perspectiva, 2003,
BRUEGHEL, Pieter. “A parábola dos cegos
- 1568”.
é o que se pode perceber
Neste quadro, intitulado “A parábola dos cegos”, de 1568, Brughel, faz
uma possível alusão a um texto bíblico no qual Jesus diz aos discípulos que
não precisam lavar as os antes de comer, infringindo, assim, uma regra.
Fariseus que escutaram tal coisa se enfureceram e Jesus replicou: quando um
cego guia outro cego ambos caem no abismo. O mais interessante, porém, é
Segundo Kayser, o pintor usa a perspectiva
a
-dia, não para
ensinar, advertir ou provocar compaixão, mas precisamente
São Paulo: Perspectiva, 2003,
61
como algo inapreensível, inexplicável, como o ridículo, terrível,
horroroso.
88
Há outros exemplos do grotesco na Idade Moderna. Citamos alguns com
o propósito de evidenciar o gosto sempre presente por esse recurso estético.
Parece haver sempre uma necessidade de representá-lo, como se isso fosse
inerente ao ser humano. Montaigne, por exemplo, tece elogios à mulher
manca, o que era considerado algo grotesco e causador de riso, fora tratado
pelo autor de forma que era depreciativa:
Diz-se na Itália, em um provérbio comum, que não conhece
Vênus em sua perfeita doçura quem não dividiu o leito com
uma mulher manca (...) eu diria que o movimento desajustado
da manca dava novo prazer à coisa e alguma ponta de doçura
àqueles que o experimentam, mas soube a pouco que também
a filosofia antiga o estabelecia: ela diz que, como as pernas
e as coxas da mulher manca não recebem, por causa de sua
imperfeição, o alimento devido, deriva daí que as partes
genitais, que ficam logo acima, são mais plenas, mais nutridas
e mais vigorosas. (...) Graças unicamente à autoridade do uso
antigo e público deste ditado, cheguei a acreditar outrora que
tinha mais prazer com uma mulher porque era manca, e listei
mais esta entre as suas graças.
89
Assim como o texto de Montaigne, no qual encontramos certo elogio ao
feio, temos conhecimento de outros autores e obras literárias, assim como
artistas da pintura e de outras artes que fazem uso do recurso. Basta
atentarmos para os textos de Shakespeare nos quais se pode ler os
sofrimentos de Caliban nA Tempestade e de Ricardo III diante da constatação
de suas deformidades; ou ainda a descrição da própria feiúra feita pelo poeta
88
KAYSER, Wolfgang. O grotesco. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003,
p. 39.
89
APUD: ECO, Humberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Record, 2007, p. 170
62
Andreas Gryphius
90
: “Tenho horror de mim mesmo: meus membros tremem/
Quando os bios, o nariz, o olhar encovado/ Cego pela vigília, e alento
pesado/ Contemplo”
91
. Essas e outras obras tendem mostrar defeitos dos seres
humanos. No caso da representação da velhice, nessa época, não a
intenção de zombar do indivíduo ou mesmo de representá-lo como mal, mas
mostrar isso como um mal provocado pelo tempo.
92
O grotesco é valorizado pelos românticos para quem a arte deve
representar tanto o belo, como o feio. Victor Hugo diz que o poeta deve guiar-
se pela natureza, portanto deve representá-la nas suas formas verdadeiras,
assim pode haver o feio e o belo. O romântico buscava na imperfeição e na
hiperbolização do grotesco ir de encontro à estética clássica que objetivava a
regularidade de toda a arte. Isso acontecia em Shakespeare “que soube
fundir o belo e o feio tal como ocorrem na natureza, onde as belezas singulares
nunca estão livres das encórias impuras”.
93
Assim, temos obras românticas
nas quais percebemos o disforme, o terrível, o horripilante, o repugnante e a
mesmo o cômico. Podem ser citados poemas de Byron, quadros de Delacroix
e, para falar da arte brasileira, poemas de Álvares de Azevedo, como na parte I
do poema “Um cadáver de poeta”:
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
90
Andreas Gryphius: poeta e dramaturgo alemão, autor barroco e significativo sonetista da
Alemanha do século XVII.
91
APUD: ECO, Humberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Record, 2007, p. 177
92
ECO, Humberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007,
p. 177.
93
Ibidem, p. 279
63
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
Morrer! e resvalar na sepultura,
Frias na fronte as ilusões — no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!
Tu foste como o sol; tu parecias
Ter na aurora da vida a eternidade
Na larga fronte escrita...
Porém não voltarás como surgias!
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!
Tua estrela mentiu. E do fadário
De tua vida a página primeira
Na tumba se rasgou...
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! como a caveira
Que um lobo devorou!
94
O poeta considera-se disforme e conforma-se com sua morte.
Reconhece que um dia foi como o sol, mas agora está fadado à escuridão. No
seu auto-retrato, mostra-se feio e desventurado.
Se a Idade Moderna reconheceu que o feio existe ao lado do belo, a
Idade Contemporânea não considera isso. Vai além. O grotesco não é o
reverso do sublime. Agora se afirma como categoria estética independente.
Passa a ser mais respaldado pelos críticos e teóricos da arte em geral.
Nas vanguardas européias temos expressões de atualização do
grotesco na contemporaneidade. Principalmente no expressionismo, no
surrealismo e no dadaísmo que utilizaram o feio, o ridículo para mostrar uma
94
AZEVEDO, Álvares. Disponível no site: http://www.revista.agulha.nom.br/avz10.html. Data:
04 de agosto, de 2010.
64
arte que visava impactar, provocar seus admiradores, mas antes, construir um
objeto artístico que estivesse acima de todos os tratados, livre de regras pré-
estabelecidas. Uma nova estética.
Um bom exemplo dessa arte é o quadro expressionista “O grito”, 1893,
de Munch. Nesta obra vemos a figura de um ser que expressa profunda
angústia e desespero, trata-se da representação das perspectivas negativas
com relação ao final de um século e a chegada de outro. No seu manifesto da
literatura futurista, Marinetti diz:
Gritam-nos: ‘sua literatura não será bonita! Não mais teremos a
sinfonia verbal, com seus harmoniosos balanceios e com suas
cadências tranqüilizadoras!’ Mas claro! Ainda bem! Nós, no
lugar disso, utilizamos todos os sons brutais, todos os gritos
expressivos da vida violenta que nos circunda. Fazemos
corajosamente o feio em literatura e matamos em todos os
lugares a solenidade. Vamos! Não assumam esse ar de
grandes sacerdotes enquanto me escutam! É preciso cuspir a
cada dia no altar da arte! Nós entramos nos domínios sem fim
da livre intuição. Após o verso livre eis finalmente as palavras
em liberdade.
95
Esses e outros exemplos mostram a afinidade das vanguardas com o
uso do grotesco e não afinidade, mas também a defensoria. Nelas esse
recurso inventivo é representado por meio do fantástico, da dor, da loucura,
das impulsões sexuais, da exaltação do feio.
Da segunda metade do século XX até o início do século XXI, o feio toma
proporções maiores. Com o avanço da tecnologia e facilidade da veiculação de
informações o feio pode ser visto e praticado por todos em toda parte. O
indivíduo que faz parte dessa sociedade:
95
APUD: ECO, Humberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Record, 2007, p. 370
65
Também celebra o feio, mas não no sentido provocativo das
vanguardas. (...) Também nesse caso os artistas declaram que
pretendem denunciar as muitas atrocidades de nosso tempo,
mas é com espírito lúdico e sereno que os apaixonados de arte
comparecem às galerias para admirar tais obras e tais
performances.
E são os mesmos usuários que não perderam o sentido
tradicional do belo, e experimentam emoções estéticas diante
de uma bela paisagem, de uma bela criança, de uma tela plana
que repropõe os cânones da Divina Proporção. (...) Costuma-
se repetir em toda parte que hoje em dia se convive com
modelos opostos porque a oposição feio/belo não tem mais
valor estético: feio e belo seriam duas opções possíveis a
serem vividas de modo neutro”.
96
Reafirmamos que esse imaginário reflete a mentalidade do feio na arte:
ele é a representação do que es à margem dentro de uma determinada
sociedade ou grupo, ou, ainda, do que se configura como o lado mesquinho e
vil do ser humano. A representação do feio pode ser bela e bem aceita pelos
amantes da arte, mas sesempre a representação de algo fora dos padrões
impostos pelo grupo social ou de algo de caráter baixo. Por isso descremos
dessa neutralidade falada por Umberto Eco. Basta observarmos alguns
exemplos da literatura da época atual para confirmarmos essa mentalidade.
No cordel O rapaz que virou barrão, a imagem grotesca do porco é a
consequência do castigo recebido pelo rapaz que o hesitou em desacatar
uma norma: obedecer à mãe. Outro exemplo interessante é a obra O ensaio
sobre a cegueira, de José Saramago. Nessa obra verificamos um mundo abjeto
que causa horror e náusea. É a representação do indivíduo no auge de sua
vileza.
96
ECO, Umberto. Op. Cit., 2007, p. 423 E 426
66
Como observamos nos comentários acima, a mentalidade do grotesco
ultrapassou os limites temporais, vestiu-se a caráter e não deixou nenhum
período da humanidade sem sua presença sempre marcante, exuberante,
impactante, como convém ao grotesco. Este faz parte do imaginário de cada
época humana. Claro que aqui traçamos um panorama geral do grotesco em
cada época, sendo assim usamos apenas alguns poucos exemplos, pois do
contrário fugiríamos do nosso propósito que é mostrar a existência do grotesco
desde os primórdios da história da humanidade para constatar sua presença
residual constante até os dias atuais. Obviamente temos como base a história
que chegou até nós. Um estudo ampliado de cada época, uma atenção maior
para as diversas facetas do grotesco e suas inúmeras manifestações é um
trabalho, ou melhor, são diversos trabalhos que poderão ser desenvolvidos
para acréscimo e enriquecimento dos estudos sobre o grotesco. Ainda que isso
aconteça, apreender tudo é utópico. Basta sabermos que a humanidade ao
olhar para si, desde os primórdios, um reflexo não só do que lhe apraz, mas
também do temeroso, do absurdo, do feio, do ridículo. E, por mais estranho
que pareça, este lado tenebroso é tão atraente quanto o outro.
Por fim, depois de vermos um panorama geral do grotesco,
chegamos à conclusão de que o grotesco é tudo que se enquadra fora dos
padrões estabelecidos por uma determinada sociedade. Tudo aquilo que lhe
causa repugnância, medo, pavor e riso mico. Estas qualidades podem vir
juntas ou separadas. O grotesco pode estar no dia-a-dia dessa sociedade e
nos indivíduos que a compõe através de suas atitudes. Está também na arte
67
que representa essa sociedade. E não é possível conviver com a inexistência
do feio.
68
3. Resíduos medievais na literatura de cordel do Nordeste do Brasil
Segundo Lígia Vassalo, “é importante recolher alguns aspectos da
cultura européia na passagem da Idade Média para o Renascimento, porque
vários deles se transmitem às Américas.”
97
Por isso, para nós é fundamental
traçar esse paralelo entre Idade Média européia e Nordeste contemporâneo,
pois, de acordo com o que observamos, o Brasil é um guardador desse período
e não isso, mas também um polidor, um formador de novos traços culturais
baseados naquilo que o país recebeu de herança, sendo assim um cristalizador
de resíduos.
Para compreendermos como se a hibridação cultural entre a
medievalidade européia e a contemporaneidade do Nordeste brasileiro,
traçamos um caminho a ser percorrido. Primeiramente, compreenderemos a
significação da palavra cultura como uma herança social recebida e construída
pelos indivíduos formadores da sociedade. Em seguida, tratamos da cultura
popular, compreendida aqui como todas as manifestações culturais de um
povo. Para a melhor compreensão de cultura popular, fazemos a distinção
entre popular e o erudito e constatamos que tudo tem como raiz o popular.
Depois, observaremos peculiaridades da cultura popular da Idade Média e do
Nordeste do Brasil. E então, detectamos que, através da literatura de cordel, há
resíduos medievais. Dentre outros, observamos representações da
mentalidade religiosa, maniqueísta, castigadora da medievalidade européia no
97
VASSALLO, Lígia. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1993, p. 46.
69
Nordeste, assim como o aspecto risível zombador presente nessa cultura.
Nestas representações é que encontramos o imaginário do grotesco.
Esse imaginário é fruto da mentalidade cristã medieval que através da
hibridação cultural ocorrida no Brasil, por meio da colonização, chegou até nós
e formou essa cultura híbrida repleta de monstros, seres e acontecimentos
grotescos.
3.1. Noções de cultura: erudito e popular
A cultura já foi definida como algo elitizado, era:
entendida como uma criação intelectual realizada por ‘grandes
homens’, mais ou menos desvinculados do contexto histórico.
E também como uma criação letrada, pois mesmo as artes,
essencialmente visuais, pressuporiam certo conhecimento para
ser ‘compreendidas’.
98
Assim, só eram detentores da cultura alguns membros da sociedade que
tiveram acesso ao conhecimento que a maioria não obteve. No entanto, os
pensamentos acerca dessa definição mudaram e hoje a cultura pode ser vista
como:
Tudo aquilo que o homem encontra fora da natureza ao nascer.
Tudo que foi criado consciente ou inconscientemente para se
relacionar com outros homens (idiomas, instituições, normas),
com o meio físico (vestes, moradias, ferramentas), com o
mundo extra-humano (orações, rituais, símbolos). Esse
98
FRANCO NIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense,
2005, p. 102.
70
relacionamento tem caráter variado, podendo ser de expressão
de sentimentos (literatura, arte), de domínio social (ideologias),
de controle sobre a natureza (técnicas), de busca de
compreensão do universo (filosofia, teologia).
99
Nessa definição de cultura observamos que esta nada mais é do que a
reunião de todas as práticas de um povo, de uma determinada sociedade.
Sendo assim, é redundante falar em cultura popular e cultura erudita. Mais a
frente trataremos dessa dualidade. Agora atentemos para tudo que é produzido
pelo ser humano e que forma o que chamamos de cultura. Esta reflete a
mentalidade de um povo, seus “anseios, esperanças, medos, angústias e
desejos assimilados e transmitidos”
100
. A partir da transmissão consciente ou
inconsciente surgem os vários imaginários e a formação de uma nova
mentalidade, pois o imaginário é um “conjunto de imagens, verbais ou visuais,
que uma sociedade (...) constrói com o material cultural disponível para
expressar sua psicologia coletiva”
101
. Assim, a mentalidade cristã medieval
reflete-se na cultura medieva que, através da colonização, hibrida-se com a
cultura nativa dos índios brasileiros e a cultura africana e, assim, forma-se uma
nova cultura.
Segundo Ralph Linton, cultura “é um continuum que vai desde o começo
da existência até hoje. (...) Representa a herança social de nossa espécie.”
102
E essa herança atinge os diversos complexos que formam uma determinada
sociedade. São os modos comuns apreendidos durante a existência e que são
99
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Op. Cit., 2005, p. 102.
100
Ibidem, p. 184.
101
Ib., p. 183.
102
LINTON, Ralph. O homem: uma introdução à antropologia. Tradução de Lavínia Vilela. São
Paulo: Martins, 1965, p. 317.
71
repassados de pessoa para pessoa, de sociedade para sociedade. A cultura
diz respeito ao elemento humano, os demais seres vivos não a possuem. Para
Linton,
A cultura (isto é, a herança social) dos seres humanos é o
desenvolvimento de certas tendências evidentes na evolução
vertebrada, especialmente na mamífera. (...) Ao mesmo tempo,
a cultura difere profundamente de tudo quanto se encontra no
nível subumano. (...) a herança social do homem difere da do
animal pelo seu conteúdo incomparavelmente mais rico e pela
sua tendência a enriquecer-se progressivamente. (...) Parece
não ser este o caso da herança social das outras espécies
mamíferas.
103
Sendo uma herança social, a cultura é adquirida e repassada de pai
para filho. No entanto, ela não é repassada pura e simples tal como fora
recebida. Cada um que recebe essa herança contribui para o seu alargamento.
Contudo, esse alargamento não significa ter-se tornado maior ou menor. O que
veio depois não pode ser considerado melhor do que aquilo que veio antes. O
que acontece, na verdade, é que o novo é formado a partir de elementos
antigos. Sendo assim, não pode ser totalmente novo. Por isso, tudo é
remanescente. Tudo é residual. A sociedade nordestina tem traços residuais da
cultura medieval européia, pois aqui ocorreu a hibridação cultural, uma fusão
de várias culturas formadoras de uma nova cultura residual por meio da
cristalização, do polimento de alguns produtos culturais.
Através dessa herança, recebida e moldada, produto da mentalidade,
entramos em contato com diversos imaginários de povo e de várias
sociedades. Pois a “cultura é tudo aquilo produzido pela humanidade, seja no
plano concreto ou no plano imaterial, desde artefatos e objetos, até idéias e
103
LINTON, Ralph. Op. Cit., 1965, p. 103.
72
crenças. (...) É todo complexo de conhecimentos e toda habilidade humana
empregada socialmente.”
104
Se a cultura é produzida e adquirida pelo povo,
então nada mais coerente do que dizer que a cultura é popular, que,
segundo o dicionário, popular significa aquilo que pertence ao povo.
A cultura é do povo, pertence aos seres humanos e é formada por eles.
Os animais irracionais não a têm. E por qual motivo não a têm? Porque há
diversas diferenças entre os seres humanos e os demais seres. Entre as várias
disparidades, uma nos chama a atenção: o uso da linguagem falada. Esta
propõe uma grande interação. Os pensamentos podem ser expostos,
discutidos e repensados. Imaginemos as histórias de monstros que fazem parte
dos imaginários de tantas sociedades. Estas histórias não seriam repassadas,
ou melhor, não existiriam se não houvesse a linguagem de um ser que pensa e
que cria monstros. Um ser relacionado com o meio em que vive. Por isso,
histórias de sereias permeiam o imaginário do Nordeste, são ouvidas e
contadas pelo povo, assim como são reescritas no cordel de metamorfose.
Cordéis que contam histórias de alguns monstros que permanecem vivos no
imaginário têm remanescências, primeiramente, nos contos populares do Brasil
que são repassados oralmente e, num plano mais distante, são remanescentes
da Idade Média, pois, ao chegarem à América, os povos europeus, inclusive os
portugueses, “contemplaron El Nuevo Mundo a través de antiparras
medievales, y llevaban en su equipaje todas las ideas y leyendas que El
104
SILVA, Kalina Vanderlei e SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São
Paulo: Editora Contexto, p. 85.
73
medievo había propagado com efusión.”
105
No cordel encontramos várias
histórias, entre as mais conhecidas estão a das sereias e a do lobisomem.
Todas elas remanescentes das lendas brasileiras provenientes da
medievalidade que, por sua vez, já remanesciam da Antiguidade.
Tendo observado que a cultura pertence a todos os seres humanos,
Porque então falar em uma cultura popular e uma cultura que não é popular?
Na verdade a cultura é popular porque pertence ao povo. Mas tendo em vista a
existência desses termos, vejamos um pouco a razão disso.
Essa ambivalência entre popular e erudito é forte também na
medievalidade. Corresponde ao seguinte:
De um lado a cultura erudita, de elite, cultura letrada que pelo
menos até o século XIII foi eclesiástica do ponto de vista social
e latina do ponto de vista lingüístico. Conscientemente
elaborada (...), era transmitida (escolas monástica, escolas
catedralícias, universidades). Por isso tendia a ser
conservadora, a se fundamentar em autoridades. (...) De outro
lado, estava a cultura que foi chamada de popular, laica ou
folclórica, e que preferimos chamar de vulgar, pois para os
medievais esta palavra rotulava sem ambigüidade tudo que
não fosse clerical. A cultura vulgar era oral, transmitida
informalmente (...) por meio de idiomas e dialetos vernáculos.
Espontaneamente elaborada, ela expressava a mentalidade de
forma mais direta, com menos intermediações, com menos
regras preestabelecidas.
106
Através de exemplos citados por alguns autores, podemos ver a
remanescência da ambivalência erudito e popular, tanto na cultura de uma
forma geral, como, especificamente, na literatura. Tomamos como exemplo
105
WECKMANN, Luis. La herencia medieval Del Brasil. México: Fondo de Cultura Económica,
1993, p. 24. Tradução de Roberto Pontes: “contemplaram o Novo Mundo através de anteparos
medievais, e levavam em sua equipagem mental todas as idéias e lendas que o medievo havia
propagado com entusiasmo.” (p. 2)
106
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense,
2005, p. 102 e 103
74
alguns textos medievais e os cordéis. No caso do Brasil, até pouco tempo a
literatura de cordel ainda era considerada popular e de menor valor estético em
oposição à literatura que tem como suporte o livro e não o livreto do cordel. Na
Idade Média, sabe-se que os textos escritos eram privilégio dos membros da
igreja e nobres, enquanto o povo estava mais ligado à oratura.
Mas, sendo a cultura do povo, o termo cultura popular é redundante.
Para explicar isso, Peter Burke diz: “talvez seja melhor de início defini-la
negativamente como uma cultura não-oficial, a cultura da não-elite, das
‘classes subalternas’”.
107
O autor identifica a não elite da Europa moderna que
para ele estava em determinados grupos sociais, como artesãos e
camponeses, pessoas que ele chama de “povo comum”. Se pensarmos assim,
o popular estará relacionado somente às classes baixas da sociedade.
Mas, continuemos a observar como esse autor desenvolve seus
comentários sobre o assunto. Quando se refere à problematização do “popular”
Burke faz algumas colocações e destaca a definição dada por Bakhtin.
Segundo Burke,
O destaque dado por ele (Bakhtin) à importância da
transgressão dos limites é (...) relevante. Sua definição de
carnaval e do carnavalesco pela oposição não às elites, mas à
cultura oficial, assinala uma mudança de ênfase que chega
quase a redefinir o popular como o rebelde que existe em todos
nós, e não a prioridade de um grupo social.
108
Bakhtin reconhecia existência e oposição dessas duas culturas, para ele
na Idade Média e no Renascimento “o mundo infinito das formas e
107
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Tradução de Denise Bottmann. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 15.
108
Ibidem, p. 21
75
manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e
feudal da época.”
109
Compreende-se, pois, que a cultura popular para Peter Burke está
relacionada com a endoculturação de um povo, ou seja, ao que se apreende
sem necessidade de universidades ou de estudos sistematizados, mas,
fundamentalmente, através do conhecimento adquirido desde o momento em
que se nasce. São exemplos disso, as histórias, contos e canções populares.
Burke usa o termo bicultural para membros da elite que apreenderam
essas histórias que fazem parte do imaginário de uma determinada sociedade,
esse conhecimento apreendido por todos, mas que também faz parte de uma
cultura ensinada nas universidades a qual nem todos tiveram acesso. O autor
descreve “as elites da Europa moderna como biculturais, participando da
cultura popular, mas preservando sua própria cultura;” e define cultura “com
ênfase na mentalidade como ‘um sistema de significados, atitudes e valores
compartilhados, e as formas simbólicas (apresentações e artefatos) nas quais
eles se expressam ou se incorporam’.”
110
O mesmo autor ainda define cultura como “quase tudo que pode ser
apreendido em uma dada sociedade como comer, beber, andar, falar,
silenciar e assim por diante.”
111
No entanto,
109
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (o contexto de
François Rabelais). Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Edição Universidade de Brasília,
1999, p. 03.
110
BURKE, Peter. Op. Cit., 1989, p. 24 e 25.
111
Ibidem, p. 25
76
A história da cultura inclui agora a história das ações ou
noções subjacentes à vida cotidiana. O que se costumava
considerar garantido, óbvio, normal ou ‘senso comum’
agora é visto como algo que varia de sociedade para
sociedade e muda de um século para outro, que é
‘construído’ socialmente e, portanto requer explicação e
interpretação social e histórica
112
Observe-se que, primeiramente, o autor fala de atividades comuns a todos os
seres humanos, como comer, beber, e outros. Atividades necessárias à
sobrevivência ou a uma melhor convivência no mundo. Sendo assim, a cultura
engloba todas as pessoas; o que pode mudar o as formas de beber, comer,
andar etc. Pero Vaz de Caminha, ao descrever a nova terra e os seus
habitantes, relata um hábito dos índios: pegar farinha com a mão e jogar na
boca. Costume ainda presente nas mesas brasileiras. Então, a cultura engloba
desde os gestos mais simples da vida cotidiana, aqueles que são feitos, muitas
vezes, inconscientemente até os gestos mais pensados. E o que pode ser
diferente é a forma como cada povo realiza isso.
E por isso Burke diz que “se todas as pessoas de uma determinada
sociedade partilhassem de uma mesma cultura, não haveria a mínima
necessidade de se usar a expressão ‘cultura popular’.”
113
Significa que dentro
de uma mesma sociedade possibilidades diferentes. diferentes formas
de vestir e pode variar bastante entre os que fazem parte da elite e os que não
fazem.
Burke emprega os conceitos de Redfield: a “grande tradição” da minoria
culta e a “pequena tradição” dos demais: iletrados. Sobre isso, Burke diz:
112
BURKE, Peter. Op. Cit., 1989, p. 25.
113
Ibidem, p. 50.
77
Ao aplicar esse modelo aos inícios da Europa moderna,
podemos identificar com bastante facilidade a grande tradição.
Ela inclui a tradição clássica, tal como era transmitida nas
escolas e universidades; a tradição da filosofia escolástica e
teologia medievais, de forma alguma extintas nos séculos XVI
e XVII; alguns movimentos intelectuais que provavelmente
afetaram a minoria culta: a Renascença, a Revolução Científica
do século XVII, o iluminismo. Subtraia-se tudo isso da cultura
dos inícios da Europa moderna e o que restará? As canções e
contos populares, imagens devotas e arcas de enxoval
decoradas, farsas e peças de mistérios, folhetos e livros de
baladas, e principalmente festividades, como as festas de
santos e as grandes festas sazonais, o natal, o Ano-Novo,
Carnaval, Primeiro de Maio e Solstício de Verão. Esse é o
material que interessará basicamente neste livro: artesão e
camponeses, livros impressos e tradições orais.
O modelo de Redfield é um ponto de partida útil, mas
passível de críticas. Sua definição de ‘pequena tradição’
enquanto tradição da não-elite pode ser criticada, de modo
bastante paradoxal, por ser ao mesmo tempo ampla e estreita
demais.
A definição é estreita demais porque omite a
participação das classes altas na cultura popular, que foi um
fenômeno importante na vida européia, extremamente visível
nas festividades. O carnaval, por exemplo, era para todos. (...)
Os palhaços eram populares tanto nas cortes como nas
tavernas, e muitas vezes eram os mesmos. (...)
Não era apenas a nobreza que participava da cultura
popular; o clero também, particularmente no século XVI.
Assim, a diferença crucial nos inícios da Europa
moderna (quero argumentar) estava entre a maioria, para
quem a cultura popular era a única cultura, e a minoria que
tinha acesso a grande tradição, mas que participava da
pequena tradição enquanto uma segunda cultura.
114
Dessa forma, compreendemos a cultura popular como aquela que reflete
o imaginário do povo (tanto da elite, quanto da não-elite), suas crenças, suas
histórias, suas lendas. Nisto, a cultura Nordestina contemporânea tem pontos
de encontro com a cultura européia medieval, basta observarmos a profunda
religiosidade católica, o apego à Virgem Maria, algumas festas populares,
como o carnaval, a questão da moralidade cristã, a misoginia, entre outros
aspectos. O Nordeste brasileiro herdou fortes tendências dessa cultura
medieval.
114
BURKE, Peter. Op. Cit., 1989, p. 51 a 55.
78
Se levarmos em conta a literatura de cordel produzida no Nordeste, não
podemos deixar de falar numa literatura popular, numa produção que faz parte
da cultura popular, basta olharmos para o material com que é feita essa
literatura, que produz essa literatura e os assuntos que povoam essa literatura:
é esse conjunto que a faz ser chamada literatura popular. Aqui vamos
compreender cultura popular como uma cultura proveniente do povo:
costumes, gestos, gostos, histórias que fazem parte do imaginário de uma
determinada sociedade.
Em termos de Idade Média a cultura popular era aquela não oficial. A
oficial estabelecia seriedade e era formada pelas altas camadas sociais e pelo
clero.
É o mundo estático e impessoal da hierarquia social com todas
as suas barreiras, marcando o cotidiano pelo aspecto sério,
pois o riso, além de condenado, não tem o direito de ser
teorizado. Está inteiramente banido das comemorações das
classes dominantes. Nelas celebra-se o triunfo das verdades
eternas, das definições imutáveis e definitivas, próprias da
rígida concepção da filosofia do Estado feudal.
115
Em contrapartida a cânones tão rígidos e estanques situa-se a
cultura popular. Nela tudo contrasta com os primados dos
grupos hegemônicos: a mobilidade, o riso (...) exprime-se por
uma linguagem própria, que Bakhtin identifica à da feira e da
praça pública.
116
No entanto, essa mobilidade da cultura popular de que fala Bakhtin
atinge todos os níveis da sociedade. Não exclusões. Nas festas populares
não há palcos, todos são, ao mesmo tempo, atuantes e platéia. Quando se fala
115
VASSALLO, Ligia. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1993, p. 47.
116
Ibidem.
79
dos dois lados possíveis da cultura medieval é porque se sabe que havia uma
minoria que detinha o conhecimento da leitura. Assim,
Para a maioria, a cultura popular era a única e se exprimia
através do dialeto regional, ao passo que a minoria constituída
pela elite conhecia o escrito e o oral, bem como o latim, ao lado
de alguma forma literária do vernáculo, além do dialeto local.
117
No Nordeste brasileiro isso se opera um pouco diferente. No final do
século XIX e início do século XX havia reuniões nas quais familiares e vizinhos
se reuniam ao redor de um cantador, ou contador de histórias e este tinha as
suas histórias trazidas na mente. Havia realmente menos leitores, menos
pessoas escolarizadas, mas no decorrer dos anos isso mudou. O cordel, por
exemplo, nos dias atuais continua refletindo o imaginário do povo, mas está em
todos os lugares inclusive nos meios acadêmicos. A literatura de cordel é
produzida e adquirida, tanto por pessoas que fazem parte da elite social,
quanto pelos que pertencem às classes populares.
Hilário Franco Júnior destaca na Idade Média uma cultura vulgar
(popular), uma cultura erudita (eclesiástica) e entre essas duas ele coloca uma
chamada cultura intermediária que, segundo o autor, traz traços tanto da
cultura vulgar, quanto da erudita.
No nosso trabalho preferimos falar apenas em cultura popular, sem
distinção, sem qualquer juízo de valor. Estamos de acordo, portanto, com a
definição de Darcy Ribeiro
118
. E por qual motivo fazemos isso? Concordamos
com a idéia de que tudo nasce no âmbito do popular. Não falamos aqui de uma
117
VASSALLO, Ligia. Op. Cit., 1993, p. 46.
118
RIBEIRO, Darcy. O Dilema da América Latina: Estruturas de Poder e Forças Insurgentes.
ed., Petrópolis: Vozes, 1988.
80
cultura aprendida nas escolas e universidades, mas sim daquela que surge no
imaginário e vai com o povo a todos os lugares, inclusive para as
universidades, como o cordel. Hoje percebemos o cordel sendo feito também
por escritores que fazem parte da elite universitária. O mais importante é que
as histórias dos cordéis refletem o imaginário da sociedade nordestina,
portanto da cultura do povo residente no Nordeste.
sim uma diferença entre popular e erudito, mas não de menor ou
maior, superior ou inferior, ruim ou bom, menos ou mais. São duas coisas
distintas, como disse Darcy Ribeiro, que considera populares as manifestações
livres de expressão cultural, aquelas que reúnem todos os grupos sociais, e
eruditas as formas canônicas de expressão cultural, como, por exemplo, a
dança flamenca, hoje representada em teatros, cultivada por alguns e
vivenciadas por poucas pessoas, mas que é um tipo de dança influenciado pela
cultura cigana. A origem da dança flamenca está no popular, ela nasce no meio
do povo. Portanto, se analisarmos o que comumente é chamado cultura erudita
veremos nela nada mais que a cultura popular, pois sua origem está. O
popular é a raiz de tudo.
3.2. Mentalidade cristã medieval e cultura nordestina
Neste trabalho enfocamos, principalmente, a mentalidade cristã
medieval produtora do grotesco e remanescente na cultura nordestina, através
81
dos processos de cristalização, hibridação cultural e endoculturação, formando
um novo imaginário no qual se podem perceber resíduos culturais e literários
da Europa medieva.
Como percebemos, o grotesco na Idade Média está presente na cultura
de forma veemente: tanto na seriedade, no terrificante, no tenebroso, quanto
no que provoca riso. Liga-se ao baixo corporal que, para Bakhtin, se regenera.
Ressaltamos essa última parte, pois, em alguns cordéis de metamorfose,
observamos que o ser disforme pode se reabilitar fisicamente e moralmente.
Essa cultura não se desliga do popular, do povo.
Baseando-nos na periodização medieval proposta por Hilário Franco
Júnior, detemo-nos principalmente nos dois últimos períodos citados pelo autor:
Idade Média Central e Baixa Idade Média. Isso, porém, não impede possíveis
confluências com outras épocas.
Para compreender o grotesco na mentalidade cristã da Idade Média e,
em seguida, vê-lo como remanescente na cultura popular do Nordeste, faz-se
necessário atentarmos para o seguinte ponto: o cristianismo como religião
oficial da Idade Média provocou uma organização da sociedade totalmente em
torno do teocentrismo. Os grandes nomes da Igreja são representantes de
Deus aqui na terra e responsáveis por dizer como Deus quer o mundo. Dentro
desse universo religioso destacamos os seguintes pontos: 1. A moral cristã e
suas regras; 2. O pecado (compreendido como tudo aquilo que foge à moral
cristã) e suas conseqüências; 3. O medo da conseqüência do pecado; 4. As
várias dualidades medievais: O sagrado e o profano (dentro dos quais
encontram-se as festas paródicas), o mal e o bem, o pobre e o rico. Nesse
82
ponto destacamos também o lado risível da medievalidade, pois o homem
medieval também tirou dias para rir, rir de tudo. Dias nos quais ele poderia se
livrar do fardo pesado da religião e se entregar aos prazeres considerados
abomináveis noutros momentos. Para tal verificação, atentamos para as festas
populares ocorridas na medievalidade européia e também para a obra
Gargântua e Pantagruel (principalmente para a linguagem nela utilizada),
escrita no início do século XVI. Aqui, como ressaltamos antes, tomamos por
base a marcação de datas de Hilário Franco Júnior citada. Para ele, a Baixa
Idade Média inicia-se no século XIV e vai até meados do século XVI.
Para comentar cada item vejamos o seguinte: a cultura medieval, antes
de qualquer coisa, como vimos, caracterizava-se pela religiosidade. A Igreja
Católica controlava as manifestações culturais e interpretava os fenômenos da
natureza, assim como os sociais e políticos através da religiosidade. Por isso, o
período é chamado de teocêntrico, pois Deus estava no centro de tudo. Tanto a
riqueza, como a pobreza, segundo esta visão, eram determinadas pela
providência divina. Cada grupo social: nobre, clérigo ou leigo pertencia a sua
classe por aprovação de Deus. E cada um devia se conformar e aceitar sua
condição, portanto era muito difícil o indivíduo passar de uma classe para
outra.
A forte ligação com o religioso torna a sociedade séria e suscetível à
moral cristã e à imposição de suas regras que são um marco para os
indivíduos medievais e são motivadas pelo ideal cristão:
Identificar-se crente com a divindade, consagrando-se, o mais
possível, à vida do espírito, desprezando, maltratando e
espezinhando o corpo – essa carne corrupta e detestável, fonte
83
de pecado e abominação, trapo ignóbil que prende o espírito à
terra.
119
Por isso, podemos identificar tantos fiéis em autoflagelação, como forma
de penitência por seus possíveis pecados. Esse era o ideal, vivia-se sempre
em busca de uma maior proximidade com Deus, por isso, a mesmo nas
festas, que veremos mais à frente, pode-se perceber que as paródias dos
rituais cristãos não visavam afrontar o cristianismo, mas reforçar a aliança com
Deus.
Para a conquista desse ideal foi necessário o estabelecimento de regras
e imposições a serem cumpridas por toda a sociedade, que ela era marcada
pelo poder da igreja. A palavra “moral” vem do latim mores que significa
costumes. A religião medieva tratava de erradicar os vícios humanos na
tentativa de fazer sobressair a razão e não as paixões que prejudicam o
indivíduo. Então, tudo que contribuía para as paixões humanas passou, na
Idade Média, a ser censurado. Essa vida mais livre dos prazeres da carne
era buscada um pouco antes da afirmação do cristianismo. Para Ivan Lins, “é
inegável haver-se constituído o Catolicismo o digno herdeiro dos grandes
moralistas, gregos e romanos (...) considerando as virtudes individuais como a
primeira base de todas as outras.”
120
As normas deviam ser seguidas, tendo
como propósito uma vida mais regrada, visando também uma melhor
organização da sociedade. Citamos alguns valores medievais que ainda podem
ser vistos através de resíduos no Nordeste do Brasil, principalmente nas
cidades interioranas. Um exemplo é a abstinência sexual. O ato sexual é livre
119
LINS, Ivan. A idade Média: a cavalaria e as cruzadas. Rio de Janeiro: Coeditora Brasílica,
1939, p 240.
120
Ibidem, p 107.
84
apenas após o casamento e, ainda assim, deve ter o intuito de procriar. Cristo
e sua mãe são exemplos da virgindade. Segundo Hilário, essa
interferência eclesiástica na vida íntima dos fiéis não foi aceita
com facilidade. Quanto mais recuados no tempo e mais
afastados dos grandes centros clericais (sedes de bispado,
mosteiros), mais os medievos puderam viver de forma “pagã”,
no dizer da igreja. Os camponeses, em especial,
superficialmente cristianizados até fins da Idade Média em
várias regiões, quase sempre escapavam àquele controle. Os
aristocratas, interessados em casamentos que garantissem
bons dotes e grande prole para dar continuidade à linhagem e
herdar o patrimônio fundiário da família, resistiram por muito
tempo o modelo de união sexual que a igreja determinava.
Mesmo os clérigos (...) não aderiram de bom gosto ao celibato
obrigatório imposto pela reforma gregoriana.
121
Mesmo assim, a imposição perdurou e ainda permanece, tão forte foi o
poder exercido pela Igreja medieval.
O mundo religioso medieval compreende imposições e sanções para
quem não cumprir as regras. A religião predominante na Idade Média ocidental
era o cristianismo que passou a ser oficial a partir de 392 e compreendia a
priori a igreja católica. A unidade do catolicismo era tão forte e mais consistente
do que mesmo os:
laços políticos que formavam a unidade romana: e toda
cristandade, (...), em todo o ocidente europeu, desde os reis e
os mais poderosos barões até os mais humildes e rústicos
servos da gleba, todos participaram e acompanharam
desenrolar das cruzadas com o mesmo ardor e entusiasmo.
122
121
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense,
2005, p. 127.
122
LINS, Ivan. Op. Cit., 1939, p. 63.
85
Vale lembrar que é também nesse período que se tem a noção de
humanidade. Na Antiguidade, a pátria era a “suprema noção social”
123
Os
romanos conseguiram fundir a maioria das pátrias “substituindo os laços
políticos, que ligavam os diferentes povos do império, por vínculos espirituais,
quando a própria extensão da conquista romana lhes tornou inevitável a
desagregação política.”
124
O catolicismo veio para impor a moral naqueles
traços sociais que começavam a fugir do controle político. Portanto,
observamos quão grande foi a importância dessa religião como o centro da
Idade Média. Todo esse período é regido por suas regras e imposições e todas
as sociedades que são remanescentes desse período têm características em
comum.
Essa Igreja, portanto, conduziu aquela sociedade medieval e moveu
suas crenças. Mas, isso foi possível graças às várias regras e tratados que
foram impostos aos cristãos daquela época. O catolicismo estabeleceu sua
moral e, assim, combateu os vícios, as paixões humanas, todas as vezes em
que estas se sobrepunham à razão. A religião cristã, através do catolicismo
buscava purificar o homem, “principalmente contra a luxúria, avareza e
soberba”
125
. É, portanto, uma religião aparentemente séria, porém nascida no
seio de um povo que tinha tradições. Depois nos ateremos a isso. Agora nos
deteremos na mentalidade medieval sobre o pecado.
123
LINS, Ivan.Op. Cit., 1939, p. 63.
124
Ibidem. p. 64.
125
Ib., p. 108.
86
Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa, pecado
significa “violação de um preceito religioso” ou “desobediência a uma norma”
126
. Normalmente na Idade Média o que era pecado para igreja era também
para a sociedade de uma forma geral, pois a religião predominava na época,
Deus estava no centro. Mas, o que era considerado como pecado? Melhores
exemplos não podem ser citados do que os sete pecados capitais que foram
expostos justo na Idade Média: inveja, gula, ira, soberba, luxúria, avareza e
preguiça. Foram instituídos no século VI pelo papa Gregório Magno e somente
incorporados à doutrina da igreja no século XIII através do teólogo São Tomás
de Aquino que explicou detalhadamente cada um deles. No entanto, os sete
pecados já apareciam em várias partes da Bíblia Sagrada.
Os pecados mais recorrentes, mais comentados na Idade Média são os
relacionados à luxúria, à heresia e à feitiçaria. E, se observarmos bem, esses
pecados vão além da prática espiritual, têm um significado social. A luxúria tem
relação com a misoginia muito forte naquela época. A mulher através da sua
sensualidade poderia corromper o homem e assim impedi-lo de exercer suas
tarefas coerentemente. Mas, apesar da misoginia, é na história cristã que uma
mulher gera o filho de Deus e intercede pelos seres humanos ao lado desse
filho. Essa é mais uma dualidade medieva. Sobre essas dualidades falaremos
no item quatro, quando comentaremos as várias ambivalências medievais.
Então, passemos a analisar a figura da mulher como fruto do pecado e
conseqüentemente como uma figura grotesca. A mulher que não seguisse as
regras era muito maltratada pela sociedade de forma geral. Primeiro, era
126
HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2001.
87
considerada como fruto do pecado, luxuriosa, lasciva e, portanto, poderia levar
o homem ao pecado da carne e era justamente o que a igreja condenava, pois
enfraquecia o seu reino tendo em vista que havia padres e guerreiros. O
pecado na Idade Média, porém, não estava somente relacionado diretamente à
religião, mas por fazer parte de uma sanção imposta pela moral medieval todos
podiam julgar. O próprio povo fazia juízo de valor. O charivari é um exemplo
disso, pois as pessoas que eram ridicularizadas passavam por isso por terem
violado uma norma estabelecida por um determinado grupo.
A heresia também foi bastante combatida na Idade Média. Em alguns
lugares foi tão atacada quanto a feitiçaria. Todos os que se desviassem de
alguma forma dos preceitos da Igreja Católica deveriam ser punidos, pois a
vitória de um herege poderia enfraquecer a Igreja. Toda obra contra a igreja era
considerada do diabo, ocasionada por ele que é destruidor. “É ele que perverte
os heréticos”.
127
A maior punição estabelecida pelo papa Gregório XI foi a
inquisição. Resquícios dessa mentalidade punitiva contra os que se desviavam
de alguma forma da religião católica, contra os que criticavam as normas
impostas pela igreja podem ser observados na cultura do Nordeste.
Observemos num trecho de um cordel a seguir que ninguém é detentor
do direito de criticar a igreja nem seus participantes. No caso do cordel em
questão, ocorre de um ateu atentar contra a Igreja, através da zombaria ao
padre Cícero. No entanto, o seu plano acaba lhe trazendo um malefício, pois o
127
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. Tradução de Maria Lucia Machado. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 586.
88
padre, através dos seus poderes espirituais, toma conhecimento da atitude
zombeteira e castiga o homem que se transforma num macaco.
Meu Padim abriu a porta
D’um quarto eles olharam
Estava um bicho preto
Todos pasmados avistaram
De coca num pano de saco
Transformado em macaco
Fora assim que encontraram
Meu Padim explicou
Ele mandou uma banana
Na cidade ao passarem
Ergueu do braço a cana
Quem brinca com divindade
Lhes digo na verdade
A si próprio engana
128
O homem entrega um recado a um grupo de romeiros que caminhava
em direção a Juazeiro para uma visita a Padre Cícero. O recado dizia “mando
uma banana/ pro Padre Cícero Romão”. E, embora os romeiros o tenham
dado atenção à provocação e à profanação do homem, este é castigado, pois
O pensar pecaminoso
É ferramenta do cão
Quem blasfema perde
A sua alma em vão
Perde quem muito fala
Ganha aquele que cala
Esta é a justa razão
129
Observamos na passagem o reflexo da mentalidade medieval punitiva.
Várias histórias permearam o universo popular em torno da figura
grotesca da mulher como fruto do pecado. Na Idade Média isso consiste
principalmente na sedução feminina que é capaz de levar o homem ao
128
JUAZEIRO, João Pedro do. O homem que virou macaco. Fortaleza: Folheteria Padre
Cícero, 2005, p. 6.
129
Ibidem, p. 8.
89
fracasso na sua vida racional, ao sucumbir aos desejos da carne. O
casamento, segundo Ivan Lins era considerado um suplício. Num poema do
século XIII
130
o poeta, depois de ressaltar a existência de vários purgatórios, diz
que o pior deles é o casamento. “Não passando de um martírio, torna-se o
meio mais seguro de obter a coroa celeste, possuindo os casados, no céu,
assento mais preciosos do que os monges”
131
, pois viver com uma mulher
causaria um maior sofrimento. Essa aversão ao casamento parte da
mentalidade misógina medieval, podendo ser observada em todo o Brasil. No
cordel A peleja de Leandro Gomes com uma velha de Sergipe, de Leandro
Gomes de Barro pode-se perceber essa repulsão ao casamento.
— A senhora fique certa
O que digo é com razão
A mulher geme sem dor
E gesta sem precisão
Casamento é para o homem
É ascarosa prisão
132
A diferença deste texto para o poema medieval é que, no texto de
Leandro Gomes de Barro, a voz feminina demonstra antipatia pelo marido.
Disse a velha: —- Meu senhor
Não há marido que sirva
Por melhor que a mulher seja
Trabalhadora e ativa
130
O poema, citado na obra de Ivan Lins, A Idade Média: a cavalaria e as cruzadas, é “Les
Lamentation de Mahieu”. Ivan Lins cita os seguintes trechos: “Dont jê me complainz à toy,
Dieux:/ Ou tu dors, ou tu es trop vieulx” e “Plus est crueuse (cruelle) leur bataille/ Que de
moynes Ne de prestraille”.
131
LINS, Ivan. A Idade Média: a cavalaria e as cruzadas. Rio de Janeiro: Coeditora Brasílica,
1939.
132
BARRO, Leandro Gomes de. A peleja de Leandro Gomes com uma velha de Sergipe.
Disponível em http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:HV4llMOt-
RoJ:www.arteducacao.pro.br/Cultura/cordel/cordel10.htm+o+homem+e+o+casamento+cordel&
cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Data: 13 de junho 2010.
90
Ele traz a vista nela
É capaz de a comer viva
133
Percebe-se então a cristalização daquela mentalidade que resultou num
novo produto cultural. A mulher também encontra o suplício no casamento.
O pecado aparece ainda através da feitiçaria. Esta foi fortemente
apenada naquele período por meio das fogueiras. Cabia “ao fogo purificador
destruir todos os germes maléficos”
134
. Seria a prática de algum encantamento
com o objetivo de conseguir algo como benefício. A Igreja, no entanto,
considerava quem fosse um praticante da feitiçaria, como uma pessoa tomada
por algum espírito maligno.
A mentalidade de que a feitiçaria está relacionada com o diabo é um
reflexo no imaginário religioso do Nordeste do Brasil, além de estar mais ligada
ao universo feminino. Por ter aceitado o fruto proibido indicado pelo diabo, por
muito tempo a mulher foi vista como a que levou o homem pecar e, portanto a
sofrer todos os infortúnios durante toda a sua existência. Assim, pelo seu poder
de sedução, a mulher aparece mais ligada à idéia de enfeitiçar. Observemos o
seguinte trecho:
A voz dessa bela moça
É um doce chamariz
Que hipnotiza os homens
(Assim a tradição diz)
Deixa qualquer um maluco
Sem chance de ser feliz
133
BARRO, Leandro Gomes de. A peleja de Leandro Gomes com uma velha de Sergipe.
Disponível em http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:HV4llMOt-
RoJ:www.arteducacao.pro.br/Cultura/cordel/cordel10.htm+o+homem+e+o+casamento+cordel&
cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Data: 13 de junho 2010
134
DUBY, Georges. O ano mil. Tradução de Teresa Matos. Rio de Janeiro: Edições 70, 1967,
p. 141.
91
O rapaz que vê a moça
Perde a razão num instante
Pois ela aparece nua
Com seu corpo fascinante
Dizendo assim para o moço:
- Venha ser o meu amante.
135
Percebemos a remanescência do resíduo da mulher relacionada ao seu
poder de sedução, capaz de enfeitiçar o homem que sucumbe ante as suas
investidas. Segundo Delumenau na Idade Média, a mulher “esposa ou amante,
é carcereira do homem. Este deve, pelo menos, às vésperas ou no caminho de
grandes empreendimentos, resistir às seduções femininas.”
136
Na obra O martelo das feiticeiras lemos:
Mulheres são “advinhas ímpias” e lançam mau-olhado.
Algumas “muito criminosas”, servindo-se de encantamentos, de
malefícios (...), impedem a procriação. Provocam a esterilidade
com ervas e composições mágicas.
137
A mulher, mesmo não sendo praticante do que os medievais
consideravam feitiçaria, era considerada como aquela que enfeitiçava,
ludibriava o homem: “Se não houvesse malícia nas mulheres, mesmo não
dizendo nada das feiticeiras, o mundo estaria liberto de incontáveis perigos”.
138
documentos
139
nos quais é possível comprovar que, mesmo receitas da
cura e adivinhação, eram consideradas obras do maligno.
135
OLIVEIRA, Julie Ane e GERALDO, Evaristo. O mistério da pedra encantada. Fortaleza:
Tupynanquim Editora, 2008, p. 04 e 05.
136
DELUMENAU, Jean. A história do medo no ocidente. Tradução de Maria Lucia Machado.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 467.
137
Ibidem, p. 483.
138
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, Jakob. O martelo das feiticeiras. Apud:
138
DELUMENAU,
Jean. A história do medo no ocidente. Tradução: Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009, p. 489.
139
Um trecho desse documento é citado por Jean Delumenau na obra A história do medo no
Ocidente, página 559. É um trecho do Confessionnal publicado em Nantes em 1612. “Qualquer
92
outro aspecto que deve ser considerado. Esse imaginário da mulher
enquanto bruxa, enquanto praticante da feitiçaria percorre os imaginários de
várias sociedades. E, segundo Humberto Eco,
Na maior parte dos casos as vítimas de tantas fogueiras foram
acusadas de feitiçaria porque eram feias. E a respeito dessa
feiúra, inventou-se que nos sabás infernais elas poderiam se
transformar em criaturas de formas atraentes, mas sempre
marcadas por traços amguos que revelariam sua feiúra
interior.
140
De fato, a mulher desprovida de beleza é denominada hoje por bruxa.
Assim como aquela que pratica atos maus e que também se relaciona com a
feiúra, desta feita do caráter. Para constatarmos o primeiro caso temos a
passagem a seguir:
Me casei com uma dama
com amor e com paixão
toda essa emoção
se acabou na hora da cama
se pensei que tinha fama
tinha agora só feiúra
acabou-se a doçura
começou o meu tormento:
mulher feia e jumento
só o dono é quem procura
seu cabelo era armado
parecendo uma bucha
sua cara era de bruxa
tinha um peito remendado
tinha um dedo remontado
todo torto na estrutura
um que junte ervas, fora da noite da festa de São João, dizendo orações ou conjurações de
qualquer espécie (...) peca mortalmente. Fazer alguma coisa com versículos de salmos para
encontrar coisas perdidas, ou para enganar mulheres e moças, ou obter seu amor e desposá-
las, peca mortalmente (...). Qualquer um que queira cuidar da dor de dente por meio de um
cravo invocado em nome de Deus peca mortalmente.” Sendo o texto datado de 1612, pode-se
perceber que o ataque aos feiticeiros se intensificou no fim da Idade Média, tendo em vista a
publicação de O martelo das feiticeiras em 1486 e após a Idade Média. Antes havia uma maior
preocupação com os hereges. As inquisições estavam mais voltadas para os que iam de
encontro aos poderes da Igreja. Então, percebe-se a mentalidade medieval passando adiante.
140
ECO, Umberto. História da feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007,
p. 212.
93
até a geração futura
vai fugir desse invento
mulher feia e jumento
só o dono é quem procura
141
Atos relacionados à feitiçaria eram praticados não por mulheres, mas
também por homens e esses atos podiam ser vistos de forma diferente pela
sociedade, de uma forma geral, e pelos detentores do poder. Para o senso
comum era feitiço aquilo que visasse prejudicar um ser humano ou um
animal, mas para o estado e os religiosos estavam no mesmo grupo “magia
branca e magia negra, adivinhações e malefícios, fórmulas que curam e outras
as que matam, uns e outros não podendo agir senão pela força do
demônio.”
142
O medo é, principalmente, o medo da morte. E na Idade Média isso
significa o temor da morte eterna, o sofrimento eterno. Mentalidade que até
hoje está viva no meio dos religiosos mais praticantes. Por isso, a apreensão
diante das normas. Quando o homem medieval é coagido a não pecar, a não
agir contra as normas ditadas pela igreja, ele obedece. Não está fazendo outra
coisa, a não ser tentando um lugar na vida eterna com Deus e fugir da morte
eterna com o diabo e isso nada mais é que o sofrimento eterno
143
. Se não
houvesse um meio de aterrorizar o humano ele não se importaria em pecar.
141
MARTINS, Arnaldo B. T. Mulher feia e jumento, o dono é quem procura. Disponível em:
http://cordeisdearnaldo.blogspot.com/2010/01/mulher-feia-e-jumento-so-o-dono-e-quem.html.
Data: 14 de junho 2010.
142
DELUMENAU, Jean. A história do medo no ocidente. Tradução de Maria Lucia Machado.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 558.
143
Para os religiosos cristãos, a bíblia é o livro base, é a voz de Deus. Nela está escrito que
todos os seres humanos, depois de deixarem a vida terrena, entrarão para a vida eterna. Esta
poderá ser passada ao lado de Deus ou ao lado do diabo. Quem ficar com Deus terá dias de
gozo eterno, do outro lado será sempre sofrimento.
94
Normalmente os que sofrem com as sanções da igreja cristã medieval
são algumas minorias que por algum motivo estão à margem da sociedade.
São exemplos disso, as mulheres feiticeiras; os hereges; os leprosos; os
judeus; as mulheres entregues ao sexo, entre outras. O medo cria monstros. A
partir do imaginário que uma determinada sociedade tem sobre o medo, criam-
se imagens para se definir tais monstros que causam medo e pavor. Muitos
exemplos podem ser citados. Lembramos aqui a história da mula-sem-cabeça.
Segundo o conto popular, a mulher que se envolvesse com algum padre seria
tomada por uma maldição, transformar-se-ia todas as noites numa mula sem
cabeça e passaria por grandes suplícios. Assim é que o pecado poderia ser
punido e ainda evitaria que outras pessoas agissem da mesma forma. A
punição visa provocar naqueles que a vêem o receio de cometer o mesmo erro
ou qualquer outro e também ser castigado.
Vejamos alguns exemplos da existência do medo por causa do pecado.
Segundo Jean Delumenau, o medo é “inerente à nossa natureza, é uma defesa
essencial, uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensável que
permite ao organismo escapar provisoriamente à morte.”
144
A inquisição
funcionava como a mais forte punição contra pecadores (esse tipos de pecados
eram cometidos em boa parte por indivíduos marginalizados pela sociedade)
Mas lembremos que para evitar alguns pecados, ou a punição de tais pecados,
foram estabelecidas festas nas quais todos gozavam de liberdade. Mas é
144
DELUMEAU, Jean. Op. Cit., 2009, p. 23 e 24.
95
importante ressaltar que “se ultrapassa uma dose insuportável, ele se torna
patológico e cria bloqueios.”
145
Se observarmos, não podemos falar de Idade Média sem falar de
religião, de cristianismo, de dogmas da igreja, regras, seriedade. Um mundo
que era cercado por dogmas e regras que deveriam ser seguidas cegamente
sem direito a questionamentos. O pecado era punível e isso provocava medo.
No entanto, verificamos que o homem medieval tirava momentos do ano nos
quais ele se libertava de todas as regras e se entregava aos prazeres. Isso
acontecia, segundo Bakhtin, através da festa. E nessa festa podíamos ver os
traços fortes do grotesco através do riso, do baixo corporal, da linguagem
baixa, e da existência completamente grotesca de algumas personagens
citadas por Bakhtin em seu livro.
Outro aspecto importante a ser visto na medievalidade são as suas
dualidades que culminam no riso e que também são revestidas do grotesco, do
tipo risível e que pode chegar à gargalhada. Nesse ponto tratamos também do
baixo corporal e da linguagem baixa. Esses aspectos podem ser observados
na obra de Rabelais que tem o espírito pertencente aos últimos séculos
medievais, pois personagens principais, assim como o caráter deles não são
originários de Rabelais, mas em contos que faziam parte do imaginário do povo
medieval de séculos anteriores.
O que o teria levado a se dedicar a tal gênero de sátiras (ele
mesmo o confessa) foi o sucesso lançados poucos meses
antes pelo livro “As grandes crônicas do grande e enorme
gigante Gargântua”, coletânea de lendas e anedotas de origem
medieval, escrita por um anônimo. Registre-se, portanto, não
145
DELUMEAU, Jean. Op. Cit., 2009, p. 24.
96
ter sido Rabelais o criador de Gargântua, e tampouco de
Pantagruel, ambos mitos surgidos séculos antes. (...) Tais
monstrengos, que com dragões e bruxos compunham a equipe
de coadjuvantes dos livros de cavalaria, conviviam no dia-a-dia
do anedotário popular.
146
Além disso, na linguagem grotesca utilizada por Rabelais, encontramos
inúmeras identificações com os cordéis por nós analisados e, assim,
verificamos mais traços da residualidade literária presente no cordel de
metamorfose contemporâneo. Esse grotesco rabelaisiano provoca o riso que,
nesse caso, pode-se chamar gargalhada.
A prática artística do riso no Renascimento
147
é, antes de mais
nada, determinada pelas tradições da cultura cômica popular
da Idade Média.
No entanto, nessa época, essas tradições não se limitaram a
ser transmitidas, mas entraram numa fase superior de sua
existência. A riquíssima cultura popular do riso na Idade Média
viveu e desenvolveu-se fora da esfera oficial da Ideologia e da
literatura elevada. E foi graças a essa existência extra-oficial
que a cultura do riso se distinguiu por seu radicalismo e sua
liberdade excepcionais, por sua implacável lucidez. Ao proibir
que o riso tivesse acesso a qualquer domínio oficial da vida e
das idéias, a Idade lhe conferiu em compensação privilégios
excepcionais de licença e impunidade fora desses limites: na
praça pública, durantes as festas, na literatura recreativa
148
Entre outros aspectos, falamos aqui do que Bakhtin chama “vocabulário
da praça blica”. Faz parte de todo grupo de indivíduos. Em todas as
sociedades se pode perceber aquela linguagem que provoca o riso que brinca
com tudo, a linguagem que marca um grupo de pessoas e que sempre diz
muito sobre este grupo. No cordel pode ser encontrada uma linguagem que
146
AMADO, Eugênio. “Vida e obra de François Rabelais”. In: RABELAIS, François. Gargântua
e Pantagruel. Tradução de David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2003, p. 17.
147
Lembramos que o período considerado por Bakhtin como Renascimento, Hilário ainda
considera Idade Média.
148
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (o contexto de
François Rabelais). Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Edição Universidade de Brasília,
1999, p. 61 e 62.
97
pode ser comparada àquela usada por Rabelais. Observemos um tema
bastante recorrente na linguagem do dia-a-dia do Nordeste. É o caso do humor
relacionado com aquele que sofreu alguma traição. O chamado corno. Sabe-se
que em muitos cordéis fala-se mal do corno. Este recebe injúrias e sua história
é contada através do humor e nela pode-se perceber o uso duma linguagem
comum no vocabulário popular:
O corno azulejo
Esse já vive liso
Do chifre fez brincadeira
É corno acostumado
Ele leva até recado
Pra negão se for preciso
O corno banana
Esse se baba de medo
De perder a mulher
Sai de casa cedo
Sabendo que o negão
Virá no seu pirão
Neste dia meter o dedo
149
Observe-se que a palavra banana faz parte do vocabulário popular do
Nordeste e possui várias conotações. Nesse caso, corresponde ao homem
sem atitude, que observa as coisas acontecerem ao seu redor e nada faz. Não
há receio por parte do poeta em usar o tal vocabulário.
149
JUAZEIRO, João Pedro do. As qualidades de corno. Fortaleza: Folheteria Padre Cícero,
2005, p. 3.
98
3.3. A medievalidade na cultura popular do Nordeste do Brasil
Para entender o Brasil como um repositório da medievalidade européia,
precisa-se compreender como isso aconteceu desde a colonização. “Com a
ocupação do Brasil, Portugal transpõe para a nova terra o sistema sócio-
político que adotava à época dos descobrimentos, bem como seus padrões
culturais.”
150
Essas características, “devido a circunstâncias particulares,
mantêm-se no Nordeste. (...) O resultado final engendrou um sincretismo
extremamente rico”.
151
Vassallo usa a palavra sincretismo, mas optamos pelo
uso de hibridismo cultural, tendo em vista considerarmos o sincretismo como a
fusão de algum aspecto ligado ao religioso. Assim, os traços medievais
portugueses vieram nas caravelas e aqui se mesclaram aos costumes
indígenas e depois aos dos negros africanos.
Hilário Franco Júnior cita vários exemplos da herança medieval do Brasil
na vida política, na vida social, no plano econômico, mas vejamos o que ele
disse sobre o plano cultural:
Apesar da globalização neste início de milênio, alguns
elementos medievais ainda são visíveis. Artur e Carlos Magno
estão presentes com freqüência na literatura nordestina de
cordel, cujo espírito, temática, transmissão e recepção
essencialmente orais prolongam a poesia européia da Idade
Média no Brasil do século XX. Mesmo certas criações eruditas
do Nordeste, (...) bebem fundamentalmente de fontes
medievais. (...) Festas como o Carnaval, no Rio de Janeiro e no
Nordeste, o Bumba-meu-boi, em São Luís do Maranhão, a
150
VASSALLO, Ligia. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1993, p. 57.
151
Ibidem, p. 58
99
Procissão de Círio, em Belém do Pará, têm inegáveis raízes
medievais.
152
Na obra Os cinco livros do povo, de Câmara Cascudo, observamos, por
exemplo, a remanescente história de Carlos Magno, parte do imaginário
popular do Brasil, tanto oralmente, quanto escrita nos cordéis.
A residualidade também é observada por meio do sincretismo religioso,
pois, se a Idade Média fundiu o paganismo ao cristianismo, no Brasil os cultos
africanos confluíram-se com o catolicismo.
Várias histórias e personagens, contos populares que permeiam o
imaginário popular do Nordeste, como a história da mula-sem-cabeça, das
sereias são documentos que atestam a cultura nordestina e brasileira como
residual. Além disso, as festas populares também contribuem para a mesma
residualidade.
Segundo Joseph M. Luyten,
Em todos os países, houve fortes e duradouras manifestações
em forma de contos. Na realidade, porém, em muitos casos
não se sabe quando esses contos foram transcritos da poesia
para a prosa. Os Edda (as sagas germânicas e escandinavas)
foram longamente perpetuados em forma poética, depois
passados para a prosa, registrados no século XIX por
folcloristas e desapareceram como tradição popular. No vale do
Reno, ficaram famosas história de “Rhijnhaert de Vos”, a
raposa, que juntamente com o lobo e o urso, infernizava as
florestas da região. Ninguém pode esquecer Thijl Uilenspiegel”,
o herói popular de Flandres hoje Bélgica e Holanda. Ele é
equivalente, em malandragem, ao nosso Pedro Malazartes
que é Pedro Urdemales na Espanha e que, por sua vez, tem
origens árabes.
153
152
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense,
2005, p. 169.
153
LUYTEN, Joseph Maria. O que é literatura de cordel. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 32 e
34.
100
Neste caso tem-se um bom exemplo de remanescência. A figura do
pícaro foi cristalizada na literatura atravessou gerações por meio da oralidade
ou da escrita e chegou ao Nordeste. E no próprio Nordeste ainda é um resíduo
que origem a um novo objeto cultural. É o caso de João Grilo e Chicó,
personagens de O auto da compadecida, de Ariano Suassuna. O próprio
Ariano Suassuna revela sua literatura como tendo um remanescente mais
próximo nos contos populares do Brasil e num plano mais distante nas histórias
que permeavam o imaginário europeu medieval. Assim como os contos
populares medievais têm remanescentes ainda mais longínquos. também
diversos cordéis que trazem o pícaro e, inclusive, Pedro Malazartes. É o caso
do cordel As aventuras de Pedro Malazartes, no qual os autores J. O. de Lima
e Manoel Caboclo mostram a figura desse malandro, como aquele que nunca
perde uma batalha porque sabe sempre se aproveitar das situações, é um
tremendo espertalhão, um sabido.
Oh! musa santa dos mestres
Dai-me força, rima e arte
Pra contar as aventuras
De um tal Pedro Malazarte
Nos truques e palhaçadas
Nunca perdeu uma parte
Os planos todos acertados
Nem um cálculo ele perdia
Tinha conversa bonita
Nos negócios que trazia
Tinha ciladas bem feitas
Que até o diabo sorria
154
154
Lima, J. O. de e Silva, Manuel Caboclo e. As aventuras de Pedro Malazarte. Disponível em:
http://www.jangadabrasil.com.br/revista/marco76/cn76003a.asp Data: 10 de junho 2010.
101
Assim como o pícaro europeu Thijl que não se cansa de se dar bem por
meio da desgraça alheia e convenceu um bando de doentes a fugirem do
hospital ao se passar por dico e oferecer tratamentos assustadores, Pedro
Malazarte não teme nada e é capaz de tudo para conseguir dinheiro:
Na porta de uma casa
Ouviu a mulher chamar
— Negra cuida do almoço
Teu senhor vem almoçar
E guarde comida das boas
Pra quando meu bem chegar
Pedro ouviu a mulher
Dizer com muita atenção
— Guarde a carne da galinha
Arroz e o macarrão
E guarde o vinho do Porto
Para a minha refeição
Pedro conheceu a trama
Ficou bastante animado
Com o urubu no braço
Ficou distante sentado
Esperando o dono da casa
Que chegava do roçado
Pedro botou-se pra lá
Com o passarinho na mão
Disse: — Bom dia, senhor!
Quero pedir ao patrão
Pra descansar um pouquinho
O homem disse: — Pois não
Ele amarrou o pássaro
Bem na perna da mesa
Porque ficava mais fácil
Sua janta com certeza
E na hora da comida
Fazia a sua defesa
Chamaram para o almoço
Pedro sentou-se então
Olhou os pratos e só viu
A farinha com feijão
Bateu com o pé no urubu
Foi a maior confusão
102
Ele nesta mesma hora
Levantou-se e foi dizendo:
— Se sabes, fique calado
Tanto que te recomendo!
Perguntou o homem: O que é
Que esse bicho está dizendo?
Pedro disse: — É porque ele
É um pássaro que adivinha
Ele agora disse a mim
Que lá dentro na cozinha
Tem vinho, arroz, macarrão
Carne de porco e galinha
A mulher ficou suspensa
Quase morre nesta hora
Gritou pela negra e disse:
— O que tu mereces agora?
A negra logo botou
Toda comida pra fora
E depois que almoçaram
O homem falou pra ele:
— Quer me vender este pássaro?
Diga quanto quer por ele
— Lhe dou por cem mil réis
Pode tomar conta dele
Contou todo mistério
Que o passarinho tinha
E disse: — Preste atenção
Toda essa história minha
Se alguém mijar-lhe a cabeça
Nunca mais ele adivinha
O homem passou-lhe as notas
E Pedro se retirou
Antes do homem ir pra roça
O passarinho amarrou
Com pouco tempo o amante
Da mulher também chegou
155
Pedro Malazartes consegue enganar a todos usando de sua esperteza e
também atingindo as pessoas, de forma que em todas as suas artimanhas
algum indivíduo sai perdendo. O mesmo acontece com Thijl, personagem dos
contos populares medievais.
155
Lima, J. O. de e Silva, Manuel Caboclo e. As aventuras de Pedro Malazarte. Disponível em
http://www.jangadabrasil.com.br/revista/marco76/cn76003a.asp, Data: 10 de junho 2010.
103
Conta-se que Thijl chegou a uma cidadezinha da época e o
burgomestre queixou-se de que muitos malandros se
aproveitavam da benevolência local e, fingindo-se doentes,
passavam meses no hospital à custa da comunidade. Thijl,
fazendo-se passar por médico, percorreu as salas do hospital
e, em voz alta, ia enumerando as operações e tratamentos,
que pretendia oferecer aos doentes a partir do dia seguinte. O
falso médico foi tão convincente, e os tratamentos tão
arrepiantes que, na madrugada seguinte, boa parte dos
pacientes havia fugido. Os outros, que eram doentes mesmo,
tinham morrido de medo. Assim, o hospital deixou de dar
problemas para a cidade e Thijl Uilenspiegel saiu acariciando
um saco de moedas de ouro que havia recebido do
burgomestre.
156
Note-se que ambos os malandros beneficiam alguns, mas ferem outros, porém
isso não importa, pois o que eles querem é apenas o benefício de si.
Ao atentarmos para traços da Idade Média presentes na cultura popular
do Nordeste brasileiro veremos vários pontos de contato. Usamos como
exemplo principalmente a literatura de cordel, primeiramente, por ser o nosso
objeto de estudo e, depois, porque nela, como percebemos, encontramos a
mentalidade do Nordeste brasileiro.
Vale ressaltar que, no mesmo período em que outros países europeus
entravam numa nova fase, os valores medievais ainda eram bastante vigentes
nos países ibéricos, principalmente em Portugal, o colonizador do Brasil.
Segundo Weckmann,
El rasgo distintivo y peculiar de la cultura ibérica (...) es La
pervivencia de factores medievales durante esse
renascimiento, que parecían como un gran árbol que hundía
sus raíces en la tierra medieval dando frutos tardíos de un
sabor anticuado como libros de caballerías y escritos de
ascética, así como la orden monástico-militar que a la usanza
medieval fundara San Ignacio de Loyola y cuyos miembros, los
156
LUYTEN, Joseph Maria. O que é literatura de cordel. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 34.
104
jesuítas, habrían de dominar La vida Del Brasil durante
siglos.
157
E esses detalhes fizeram com que o Brasil fosse possuído pelo espírito
medieval, mesmo na época moderna. Isso aconteceu por causa da hibridação
cultural.
Temos um país híbrido, formado pela junção de brancos, negros e
índios. Junção cultural que Roberto Pontes conceitua como afrobrasilusa. Na
formação do Brasil não como separar esses diferentes. Pontes define ainda
literatura afrobrasilusa como uma literatura descendente da mescla cultural
desses três lugares: África, Brasil e Portugal, tendo em vista que a história
desses países se cruza. Explica também a ordem dos gentílicos na formação
da palavra:
Em afrobrasilusa deve vir em primeiro lugar o elemento
morfológico que sugere a idéia de mais remoto historicamente;
o segundo deve o que patrocina a idéia de liame, de ponte, e
este pode ser o referente ao Brasil, pois é neste país que a
fusão das etnias se aperfeiçoa, visando a integração e o
entendimento mútuo; a Portugal cabe o fecho fonológico-
ortográfico deste neologismo porque, em qualquer ritual, são
lugares de honra sempre o primeiro e o último, os quais cabem
aqui, respectivamente aos africanos, que hoje reinventam a
Língua Portuguesa, e ao lusitanos, que a modelaram a partir do
Lácio. A nós, brasileiros, cabe-nos a alegria de desempenhar a
função de elo aglutinante nesta palavra sonora e bela.
158
157
WECKMANN, Luis. La herencia medieval Del Brasil. México: Fondo de Cultura Económica,
1993. Traduzido por Roberto Pontes: “O traço distintivo e peculiar da cultura ibérica (...) é a
residualidade de fatores medievais durante esse renascimento, semelhante a uma árvore que
fundia suas raízes na terra medieval, dando frutos tardios de sabor antiquado como livros de
cavalaria e escritos de ascetismo, e também fecundando ordens monástico-militares que à
usança medieval Santo Ignacio de Loyola fundara, e cujos membros, os jesuítas, haveriam de
dominar a vida do Brasil durante séculos.” (p. 2)
158
PONTES, Roberto. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Fortaleza: EUFC, Rio de Janeiro:
Oficina do Autor, 1999, p. 166 e 167.
105
Trazemos esse conceito para o nosso estudo para que possamos
compreender a hibridação cultural ocorrida no Brasil. A riqueza desta fusão de
culturas pode ser percebida nas crenças e histórias populares. Câmara
Cascudo, em sua obra Geografia dos mitos, traz vários exemplos dessa
hibridação tão forte no Brasil. As comprovações são mostradas a partir da
verificação da origem de vários mitos que permeiam o imaginário brasileiro.
Os colonizadores da América “contemplaron El Nuevo Mundo a través
de antiparras medievales, y llevaban em su equipage todas lãs ideas y
leyendas que El Medievo había propagado com efusión”.
159
Com relação à religiosidade:
Em la vida religiosa de La primera mitad Del siglo XVI, su
caráter ortodoxo fue copia fiel Del orden medieval de las cosas.
La tarea apostólica y civilizadora de las ordenes religiosas – en
El Brasil, primero de unos cuantos franciscanos, y luego de las
legiones de la Compañía de Jesús – se asemeja a la que había
caracterizado, siglos antes, a los monjes y frailes europeus.
Ambos grupos, cada uno en su lado del Atlántico, impartieron
justicia, fundaron escuelas y hospitales, dirigieron la
construcción de edificios (em Brasil de dues fortalezas
inclusive), enseñaron las artes manuales a los pueblos
paganos (eslavos o tupíes) e alentaron el desarollo de la
agricultura y la ganadería.
160
Na mesma obra encontramos ainda a constatação de vários outros
legados da Idade Média ao Brasil. Weckmamm nos fala das câmaras
159
WECKMANN, Luis. La herencia medieval Del Brasil. México: Fondo de Cultura Económica,
1993, p. 24. Tradução de Roberto Pontes: “contemplaram o Novo Mundo através de anteparos
medievais, e levavam em sua equipagem mental todas as idéias e lendas que o Medievo havia
propagado com entusiasmo.” (p. 6)
160
Ibidem. Tradução de Roberto Pontes: “Na vida religiosa da primeira metade do século XVI,
seu caráter ortodoxo foi cópia fiel da ordem medieval das coisas. A tarefa apostólica e
civilizadora das ordens religiosas no Brasil, primeiro de uns poucos franciscanos, e logo das
legiões da companhia de Jesus se assemelha à que havia caracterizado, séculos antes, os
monges e frades europeus. Ambos os grupos, cada qual em seu lado do atlântico, ministraram
justiça, fundaram escolas, hospitais, dirigiram a construção de edifícios (no Brasil, de duas
fortalezas, inclusive), ensinaram artes manuais aos povos pagãos (escravos e tupis) e
estimularam o desenvolvimento da agricultura e da criação bovina.” (p. 6 e 7)
106
municipais, da grande devoção à virgem, da navegação, das músicas e danças
e das várias manifestações da religião cristã no meio popular.
161
Assim, observamos a força da medievalidade no Brasil através do
resíduo medieval que está no meio de nós por causa do processo de
hibridação cultural. Numa obra literária podemos observar resíduos da
mentalidade da Idade Média que chegaram até nós por meio do referido
processo. Mas esse objeto, costume ou modo de pensar que hoje temos não é
idêntico ao da Idade Média, passou por um processo de cristalização e hoje é o
que é e reflete o imaginário do Nordeste brasileiro.
O que comprovamos, através da teoria da residualidade, são os
resíduos, próximos ou distantes, presentes na cultura sob forma cristalizada
através do processo de hibridação cultural ocorrente entre o Brasil e outros
povos de diferentes épocas. Esses resíduos se encontram no imaginário
popular que refletem a mentalidade de uma época passada, como já observado
em parágrafos anteriores e como poderá ser visto ainda neste capítulo, como
no próximo.
Fazemos parte de um país colonizado por portugueses que em suas
bagagens trouxeram suas práticas culturais. Chegando aqui impuseram os
seus costumes que, misturados ao dos nativos e negros, formaram o contexto
cultural do Brasil. A nós interessa o que aconteceu no Nordeste brasileiro.
Certamente o que aconteceu nesse trecho do país foi diferente do que
161
WECKMANN, Luis. Op. Cit., 1993, p. 2.
107
aconteceu nas demais regiões. Entre diversas características que tornam o
Nordeste um local movimentado pela cultura medieval estão:
O isolamento da população que cresceu mantendo-se
espalhada, a cosmopolita miscigenação racial dos primeiros
colonos provenientes do Sul arabizado de Portugal, aos quais
se juntaram os elementos ameríndios bem como os africanos
de múltiplas origens; a milícia dos latifundiários, equivalente à
própria do senhor feudal; o domínio da religião ainda que de
forma muito peculiar.
162
Atentamos, principalmente para a questão religiosa, pois, por meio dela
encontraremos o grotesco medieval residual no Nordeste. A igreja era
impositiva na Europa, como pudemos observar. E, tendo o Nordeste brasileiro
características que o faz se aproximar da estrutura de sociedade medieval, isso
proporcionou um estilo religioso semelhante. No Nordeste, o sertão era onde
grandes eventos aconteciam, basta lembrarmos Lampião, Antônio Conselheiro
e outros nomes. O diferencial do Nordeste se deu por ele se manter distante
das demais regiões do Brasil, principalmente as que passavam por maior
desenvolvimento, como a região Sudeste. Inclusive na religião isso se opera de
forma mais incisiva.
No interior, a religião assume o papel de reavivar e reforçar
laços sociais, sancionando o modelo do compadrio nas
relações de vizinhança. Portanto a religião rústica é utilizada
para justificar e reafirmar vínculos sociais profanos, já que atua
como veículos de reorganização social e fator de coesão grupal
para restabelecer inter-relações abaladas. E é sui generis, na
medida em que apresenta caráter de festa, em contraste com o
catolicismo dogmático, moral e puritano do litoral. Dentro desse
espírito de carnavalização enquadram-se também as danças
dramáticas folclóricas, ligadas em geral à liturgia de Natal e ao
mês de junho.
163
162
VASSALLO, gia. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1993, p. 60.
163
Ibidem, p. 62.
108
A religião possuía uma grande força social no sertão e o seu isolamento,
o isolamento do sertão fazia surgir cultos que redundavam em fanatismo,
misticismo que eram conseqüência também do “analfabetismo, da ignorância e
da instabilidade emocional do mestiço.”
164
Esse isolamento do Nordeste foi
também o que fez com que mantivesse muitas das características medievais,
pois, assim demoravam a ter contato com novas tendências.
3.4. O cordel e o processo residual entre o Nordeste contemporâneo e a
Europa medieval
A literatura de cordel em si é residual. Basta observarmos suas
possíveis origens que são controversas, mas podemos chegar a alguns pontos
comuns. Primeiro o fato de ter origem na oralidade. Também na Idade Média a
oralidade era muito forte, tendo em vista que a leitura não era privilégio da
maioria.
Quando analisamos a cultura do Nordeste do Brasil, percebemos nela
uma variedade de manifestações culturais que, a priori parecem pertencer
unicamente ao povo que convive com tais manifestações. Porém, ao estudar
as origens percebemos:
A cultura popular do Nordeste é herdeira do modelo português
da época dos descobrimentos, que emigrou para o Novo
Mundo com todas as suas práticas e características (...). A
oralidade predominante naquele período sobrevive fixada em
especial nessa região, por ser depositória do acervo cultural e
164
VASSALLO, Lígia. Op. Cit., 1993, p. 62.
109
social da Europa medieval. Aí permaneceu devido a múltiplas
razões: por ser a mais antiga zona de colonização que
prosperou; pelo isolamento prolongado em que a região
permaneceu, pelo encontro e cruzamento contínuo de raças e
culturas, pela estabilidade e longa duração de uma
organização social semi-feudal de latifúndio e patriarcalismo
perpetuadora das tradições herdadas. A continuidade da
literatura mediavalizante no Nordeste confirma o conceito de
arcaísmo atribuído a essa sociedade.
165
O processo descrito por Lígia Vassalo nada mais é do que o caminho
residual.
Essa cultura européia veio para a América oralmente e por
escrito, embora haja referências indiretas sobre as
manifestações literárias dos primeiros séculos da colonização.
Mas pode ser confirmada através da tradição que se manteve
praticamente inalterada.
Tal herança, que emigrou com a memória dos colonizadores,
se faz aparente em manifestações menores da literatura oral
(casos, provérbios, adivinhações, etc), mas ressurge mais
nítida nas novelas tradicionais, nos cordéis e nas
dramatizações ou folguedos. Apresenta temas profanos, bem
como personagens, situações e estruturas formais.
166
Assim é que temos no Nordeste uma cultura popular tão acentuada
perceptível principalmente através da literatura de cordel produzida
primeiramente no Nordeste. Essa literatura, que se origina na oratura
167
, possui
traços da oralidade medieval. Dialoga com várias histórias que fazem parte do
imaginário popular, são exemplos algumas histórias que permeavam o
imaginário português, Lembramo-nos dos cinco livros do povo citados pelo
165
VASSALLO, Lígia. Op. Cit., 1993, p. 69.
166
Ibidem.
167
Os poetas costumavam compor os seus versos oralmente. Mas, “no final do século XIX, (...)
pequenas tipografias possibilitaram que poetas populares nordestinos começassem a dar
forma impressa às composições orais, com a publicação de pequenos folhetos”.
(ANTONACCI, Maria Antonieta. “Tradições de oralidade, escritura e iconografia na literatura de
folhetos: Nordeste do Brasil, 1890/ 1940”. In: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados
em História e do Departamento de História PUC-SP. Projeto História: história e oralidade,
22, junho, 2001, p. 111.)
110
escritor Câmara Cascudo, na sua obra que recebe o mesmo nome. Uma delas,
a História da imperatriz Porcina tem versão portuguesa e nordestina. Segundo
Márcia Abreu, a confluência com os textos lusitanos:
pode ter (...) aumentado o repertório de situações, temas,
personagens, incorporados a uma forma poética fixa, criada e
aperfeiçoada pelos poetas nordestinos, primeiramente no
âmbito das camadas orais e, posteriormente, por meio de
folhetos impressos.
168
Mais uma vez comprovamos a vivacidade do resíduo. A história
perpassa a fronteira entre países e adquire nova forma sem que se apague
dela traços de um passado que lhe ficou arraigado.
Como vimos até o momento, os temas encontrados na literatura de
cordel o exemplos dessa fusão de culturas entre o medievo europeu e a
contemporaneidade nordestina. Os cordelistas também reconhecem que essa
literatura é produto de uma hibridação cultural e que não seria possível caso o
Brasil não tivesse sido permeado por vários povos europeus e africanos.
Inclusive a origem da literatura de cordel:
Por isso, caro leitor
Em versos vou relatar
A História do Cordel
E nesse livro narrar.
Onde se deu sua origem
Vou logo aqui lhe explicar
Na Europa Medieval
Surgiram os menestréis
Por serem bons trovadores
Às musas eram fiéis
E prendiam seus livrinhos
Pendurados em cordéis.
(...)
Na Europa Medieval
168
ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado de Letras, 1999 p. 134 .
111
Juntava-se multidão
De pessoas que saiam
Para a peregrinação
Rumo aos lugares santos
Com fé e devoção.
De Provença, Sul da França,
Iam pra Jerusalém
Da Lombardia pra Roma
Saíam dizendo: Amém!
E o terceiro lugar
Agora cito também.
Saíam lá da Galícia
Rezando no breviário
E lá da Península Ibérica
Para o grande santuário
Santiago Compostela
Seguindo o Itinerário
O bom poeta andarilho
Do povo seguia a pista
E funcionava como
Verdadeiro jornalista
Seus poemas de aventuras
Cantava como um artista.
Eis a origem da nossa
Poesia Popular
Pro Brasil, os portugueses
Trouxeram algum exemplar
E pras novas gerações
Puderam então repassar.
169
Os versos acima são do poeta José Antônio dos Santos.
170
Percebe-se
que o poeta faz um passeio pelos possíveis caminhos que nos trouxeram os
cordéis e confirma a herança medieval recebida pelo Nordeste.
169
SANTOS, José Antônio dos. História da Literatura de Cordel. Fortaleza: Tupynanquim
Editora, 2007, p. 1, 2 e 3.
170
Pode-se perceber na leitura do cordel um profundo conhecimento sobre a origem do cordel
o que nos faz refletir sobre a questão do imaginário que está no poeta de forma consciente e
inconsciente.
112
Outro aspecto representante dessa remanescência da cultura européia
medieval é a xilogravura presente no cordel. Esse “processo artesanal
nordestino guarda muitos resquícios desta herança medieval”
171
.
A remanescência da medievalidade no Nordeste do Brasil também tem
como foco os recitadores e cantadores. A literatura de cordel, por exemplo,
origina-se na oralidade. Atualmente a realidade mudou um pouco, mas sabe-se
que, no início do século XX, havia no meio das famílias e vizinhos destas o
costume de se reunirem ao redor de um cantador, ou de alguém que fazia
versos rimados. Segundo Zumthor,
O texto é uma oportunidade do gesto vocal: e o autor desse
gesto serviria mais ao meu propósito se não fosse quase
impossível captá-lo, na sombra dos séculos... Os documentos,
pelo menos, não faltam inteiramente e permitiram a sábios
como Faral ou Menéndez Pidal esboçar o retrato falado de
várias espécies e cantores, recitadores, atores, leitores
públicos aos quais (salvo raras exceções) a sociedade
medieval confiou a transmissão e a “publicação” de sua poesia.
172
Esses estudos nos levam às remanescências dessa poesia que nasce e
vive no meio do povo. Grande exemplo são os cancioneiros que trazem a
história de vários trovadores, pessoas do meio do povo que cantavam a poesia
para todos. E vale ressaltar o seguinte:
Oral não significa popular, tanto quanto escrito não significa
erudito. Na verdade o que a palavra erudito designa é uma
tendência, no seio de uma cultura comum, à satisfação de
necessidades isoladas da globalidade da vida, à instauração de
condutas autônomas, exprimíveis numa linguagem consciente
de seus fins e móvel em relação a elas; popular, a tendência ao
alto grau de funcionalidade das formas, no interior de costumes
171
CARVALHO, Gilmar de. Xilogravura: doze escritos na madeira. Fortaleza: Museu do Ceará/
Secretaria da Cultura e do Desporto do Ceará, 2001, p. 56.
172
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Tradução de Amálio Pinheiro (parte 1) e Jerusa Pires
Ferreira (parte 2). São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 55.
113
ancorados na experiência cotidiana, com desígnios coletivos e
em linguagem relativamente cristalizada.
173
uma tendência, por exemplo, a tratar o cordel como literatura popular
por ter origem na oralidade. Hoje, porém, pode-se perceber que não. Pois,
além do cordel ser escrito por poetas que não freqüentaram os bancos das
universidades, também é feito pelos que lá estão. Cordel, no entanto, é
literatura popular, não porque tem origens na oralidade, mas porque nasce no
meio do povo e traz histórias relacionadas com imaginário desse mesmo povo.
3.5. O grotesco no cordel de metamorfose contemporâneo uma prática
residual
Agora atentemos para o seguinte: “A residualidade se caracteriza por
aquilo que resta, que remanesce de um tempo em outro, podendo significar a
presença de atitudes mentais arraigadas no passado próximo ou distante”.
174
Sendo assim, os traços do grotescos encontrados por s no cordel de
metamorfose contemporâneo são resíduos cristalizados que se fazem presente
no imaginário da cultura popular do Nordeste. Atentamos para o fato de este
ser um processo residual tanto próximo como distante. Num plano mais
aproximado temporalmente, através das lendas e mitos brasileiros e num plano
173
ZUMTHOR, Paul. Op. Cit., 1993, p. 119.
174
PONTES, Roberto. “Mentalidade e residualidade na lírica camoniana”. In: SILVA, Odalice de
Castro e LANDIM, Teoberto (Orgs). Escritos do cotidiano: Fortaleza: Sete Sóis, 2003, p. 87-
104.
114
mais distante através das manifestações populares e de alguns costumes
medievais.
Na obra Geografia dos mitos brasileiros encontramos exemplos dessa
residualidade a curto prazo. Deparamo-nos várias vezes com o grotesco
característico do cordel de metamorfose contemporâneo. O mais interessante é
que o autor estudou somente mitos que ainda vivem na memória popular.
175
Assim, tais mitos, fazem parte do imaginário do povo nordestino e chegam ao
cordel. É o caso da história do lobisomem.
O cordel de metamorfose reflete o imaginário do grotesco na cultura
popular do nordeste que é um imaginário que reflete a mentalidade medieval
relacionada com a religiosidade, o mal (o desviar-se de uma norma), o feio, o
monstruoso e também o risível. Constitui-se como grotesco tanto o desvio da
norma, como o ser metamorfoseado.
Na maioria dos cordéis por nós analisados a metamorfose acontece
como punição a alguma transgressão. Lembramos aqui a história da mula-sem-
cabeça que faz parte do imaginário do sertão do Nordeste brasileiro, mas tem
origens medievais. A mula-sem-cabeça é uma entidade mitológica brasileira de
origem européia. Faz parte de uma antiga lenda da Península Ibérica trazida
pelos espanhóis e portugueses para América. Provavelmente o nome surge no
século XII, época em que as mulas serviam de transporte para os padres.
Representa, no Brasil, uma espécie de lobisomem feminino que assombra os
povoados onde existam casas rodeando uma igreja.
175
CASCUDO, Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002, p. 14.
115
Segundo a lenda, toda mulher que mantivesse estreitas ligações
amorosas com um padre, como castigo, tornar-se-ia uma mula-sem-cabeça.
176
A metamorfose ocorreria na noite de Quinta para Sexta quando a mulher, num
corpo de mula, mas sem cabeça, corre veloz dando violentos coices em quem
encontrar pela frente. Ao cantar do galo, volta à forma humana exaurida e
ferida devido aos fortes movimentos feitos. Para livrar-se dos golpes da mula,
deve-se deitar de bruços no chão e esconder unhas e dentes. Ela apresenta
cor marrom ou preta, é desprovida de cabeça e em seu lugar apenas fogo
(curiosamente, mesmo sem cabeça, emite uivos) suas ferraduras podem ser de
aço ou prata. Seu relincho é muito alto, pode ser ouvido a metros de distância e
é comum ouvir soluçar como um ser humano.
Para acabar com o encantamento deve-se: 1. Arrancar o cabresto que
ela possui; 2. Furá-la com algum objeto pontiagudo tirando sangue; 3. O padre
deve amaldiçoá-la sete vezes antes de iniciar a missa. É também conhecida
como a burrinha-do-padre, burrinha, mula do padre ou mula preta.
177
Outros seres metamorfoseados aparecem nas histórias contadas pelo
povo. Homens transformados em lobisomens, em porco. Mulheres
metamorfoseadas em cobras etc.
Através dessas histórias constatamos, portanto, a residualidade
presente no cordel de metamorfose contemporâneo. Assim como a riqueza da
176
O padre, no entanto, não era castigado. Isso comprova a misoginia medieval que coloca a mulher como
causa do pecado e, por isso, deve ser punida.
177
CASCUDO, Câmara. Op. Cit., 2002, p. 191-194.
116
literatura de cordel do Nordeste brasileiro com tantas histórias tradutoras do
imaginário correspondente a essa sociedade.
As características o destacadas e aprofundadas no nosso capítulo
três, no qual fazemos a análise detalhada do grotesco nordestino em cada um
dos oito cordéis analisados.
4. Análise do grotesco nos cordéis de metamorfose contemporâneos
117
Nossa análise, como dito anteriormente, preocupa-se em encontrar os
grotescos existentes em oito cordéis de metamorfose. Aspecto que é,
primeiramente, um reflexo da mentalidade cristã medieval residual no Nordeste
do Brasil. Segundo Le Goff, essa continuidade da medievalidade “é manifesta
nos domínios da cultura, da sensibilidade e da moral”
178
. Sendo assim, revela-
se através do imaginário de uma sociedade.
Para mostrar como isso acontece, fazemos um breve resumo de cada
cordel, em seguida, analisamos o grotesco na linguagem dos textos e no
aspecto social. Então, observamos as representações do monstruoso,
animalesco, desordenado e desproporcional; também a relação homem/ animal
ou seres inanimados e, a partir disso, a ruptura da lógica. Tendo em vista essa
quebra da coerência com o mundo real é que atentamos para a tendência do
artista em conceber o feio e o inatural como algo inserido na realidade e no
cotidiano. Noutro tópico, analisamos o corpo grotesco. Verificamos nesse corpo
a aproximação do baixo corporal com o baixo material. Por fim, concluímos
mostrando que vestígios da medievalidade são expressos como resíduos no
Nordeste do Brasil, através do grotesco no cordel de metamorfose.
4.1. Histórias de metamorfoses
178
LE GOFF, Jacques. Uma Longa Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 166.
118
Para que possamos compreender a análise dos textos, iniciamos com o
resumo de cada cordel. O cordel número um é O herói da floresta e a princesa
encantada, de João Firmino Cabral. Conta a história de um rei bravo e mau que
se aproveitava do seu reinado para tratar seu povo cruelmente. Possuía um
criado também cheio de maldades. No subúrbio desse reino havia um feiticeiro
por nome Viana que trabalhava para o bem das pessoas boas. Este tinha
um filho humilde, estudioso e corajoso. O rei também tinha uma filha a quem
amava, mas a criticava por ser uma pessoa de bom caráter e bondosa. Um dia,
outro feiticeiro, mas que trabalhava para o mal, adquire um retrato da princesa
por meio de um mercador. O feiticeiro Calixto se apaixona e a traz para junto
dele, a moça, no entanto, o rejeita. Ele então a transforma numa coruja
179
.
Viana observa tudo através da sua bola de cristal e, como tem um carinho de
pai pela princesa, resolve ajudar. Inicia seu filho para ir em busca da princesa.
Depois de enfrentar muitos obstáculos, com a ajuda de seu pai, feiticeiro do
bem, o jovem Clemente salva a moça e a leva para junto do rei. Como
agradecimento o rei concede a mão da filha a Clemente e ainda se arrepende
de ter sido uma pessoa má.
O cordel O homem que se casou com uma serpente conta a história de
um homem sem sucesso nos relacionamentos amorosos. Todas as suas
mulheres lhe fizeram muito mal. A história se concentra na sua última mulher.
Nos tempos de namoro era uma jovem bela e agradável. Por ter tido problemas
anteriores com traições femininas, Freire comprou um cachorro a quem
ensinou encontrar cartas de possíveis amantes de sua mulher. Um dia, porém,
179
Nesse caso, a metamorfose acontece como castigo, mas não porque a moça cometeu um
pecado contra Deus ou contra a sociedade, e sim por não aceitar o amor do feiticeiro Calixto.
119
Freire precisa viajar e deixar a mulher em casa. O cachorro também fica
para vigiar. No entanto, o animal se afeiçoa à mulher. Quando se preparava
para a viagem de volta, Zé Freire foi importunado por uma jovem que por ele se
apaixonara. Ele não corresponde aos seus caprichos, mas ela deixa, sem que
ele saiba, uma carta no seu bolso. Ao chegar em casa o cachorro logo percebe
e leva a carta à mulher de Freire que, indignada, se transforma numa
serpente
180
e faz ele passar por grandes pesares.
Em O mistério da pedra encantada entramos em contato com a história
de uma pedra que tem forma de mulher e, quando quer, se transforma numa
moça. Quando isso acontece os homens que a vêem ficam enfeitiçados. Um
deles ficou tão encantado que todos os anos voltava ao mesmo lugar para
encontrar sua amada. De tanto esperar por ela, envelheceu precocemente. A
moça quando viu seu rosto velho não o quis mais, pois se interessava pelos
rapazes belos e jovens. Assim, abandonou o rapaz e o jogou para longe,
deixando-o inconsciente. Enquanto isso, outro rapaz aparece, se encanta e fica
com a moça. Quando Nestor acorda, os dois abraçados a dormir, pega sua
faca e fere o rapaz, os dois travam duelo e acabam morrendo. A população do
local, preocupada com a destruição que a pedra enfeitiçada provocara, tentou,
em vão, destruir a pedra. Então, o lugar ficou isolado e ninguém se atreveu
mais a passar por lá.
181
180
A transformação da mulher em serpente acontece não como um castigo, mas para ressaltar
suas atitudes para com seu marido. O grotesco reside no próprio animal e nas atitudes da
mulher.
181
Nesse cordel, a metamorfose também não acontece como um castigo, mas como um
encantamento que sempre acontecia. O grotesco encontra-se, na estranheza provocada pela
transformação duma pedra em uma mulher e também nos estragos provocados por ela.
120
O enredo de O rapaz que virou barrão ou o porco endiabrado conta
sobre um rapaz chamado Jomar Lacerda. Este morava com sua e,
Raimundinha, em Fortaleza. O rapaz, no entanto, destratava sua mãe. Certo
dia, mandou ela comer um prato de dejetos. Por causa dessa atitude
desrespeitosa, o rapaz é transformado em um barrão
182
.
O homem que virou macaco relata a história de um homem que zomba
do Padre Cícero. Enquanto fiéis viajavam em procissão para encontrar o
Padre, o homem faz um gesto obsceno. Quando os fiéis chegam ao lugar
desejado, Padre Cícero conta o que viu através dos olhos espirituais. O
homem é castigado e transformado em um macaco.
O cordel A malassombrada peleja de Pedro Tatu e o Lobisomem conta a
história de um famoso cantador que é chamado a travar uma peleja por um
homem “magro, seco e empombado”
183
. A peleja segue até a transformação
do indivíduo em lobisomem e depois se trava um novo combate, mas para
desfazer a metamorfose até que o homem fosse desmascarado e Pedro Tatu
fosse considerado o vencedor do duelo.
Em O cachorro encantado e a sorte da megera, conta-se a história de
um homem que resolveu se separar de sua mulher ao descobrir que ela
participava de rituais de magia e comia cadáver. Não conformada com a
decisão do marido, a mulher faz uma magia e o transforma em um cachorro
182
Os autores do cordel o como significado de barrão: porco reprodutor, pai-de-chiqueiro.
Significa que não era um porco, mas aquele porco que tinha uma grande importância entres
os demais. Pai-de-chiqueiro é também chamado o pai-de-santo, aquele que comanda o terreiro
de macumba. Simboliza tamm o bode, animal que é uma das representações do diabo na
sociedade brasileira.
183
VIANA, Antônio Klévisson. A malassombrada peleja de Pedro Tatu com o Lobisomem.
Fortaleza: Tupynanquim, 2002, p. 03.
121
que passa a viver todas as penúrias de um o de rua. Um dia encontra um
dono que o trata bem. No entanto, uma moça desconfia da humanidade do
cachorro e desfaz o feitiço. Ele então parte para uma vingança contra aquela
que lhe fez o mal e a transforma numa mula na qual bate todos os dias, como
castigo. Um dia um sultão observa essa cena e questiona o rapaz, mas ele
conta sua história e é perdoado pelo sultão que o aconselha matar a mula para
que ela não venha um dia lhe fazer mal outra vez. O homem assim o fez.
184
Por fim, temos o cordel A moça que virou cachorra porque foi ao baile
funk. Nesta obra entramos em contato com uma moça que enfrenta os pais e
vai a todos os eventos nos quais as mulheres são tratadas de forma baixa e
repugnante aos olhos da moral determinada pela sociedade nordestina. A
moça desafia a e: “Só acredito em Jesus/ Se eu me virar em cachorra!”
185
Contrariando ao que a moça pensava, ela realmente se transforma em uma
cachorra e, então, começa a sua saga. Arrependida, a moça pede perdão e,
para purgar seus pecados, “Fareja quem é ruim/ Buscando em vão se livrar/
Até que a metamorfose/ Um dia venha a acabar.”
186
184
Vale ressaltar que a vingança não é uma virtude cristã. A blia, como livro base dos
cristãos, ensina que o se deve pagar o mal com o mal. No entanto, o mesmo livro traz em
seus escritos que todos os que cometerem pecados serão arduamente castigados. Porém, o
castigo deve vir de Deus e não do homem. Mas, ao atentarmos para a história cristã,
percebemos que os componentes cristãos costumam exercer a função de punidores contra
pecadores. Ex.: a inquisição.
185
VIANA, Antônio Klévisson. A moça que virou cachorra porque foi ao baile funk. Canindé:
Edições Lamparina, 2006, p. 04.
186
Ibidem, p. 07.
122
4.2. O grotesco no aspecto social e a linguagem grotesca
Neste tópico, tratamos do grotesco inserido no meio da sociedade
expressa nos cordéis por nós analisados. Tanto o que é considerado grotesco
por essa sociedade, como suas ações grotescas. Uma sociedade dominada
pelas fortes regras impostas pela moralidade cristã.
Nos cordéis encontramos várias regras que são impostas pela
sociedade nordestina religiosa. Entre elas temos a veneração da figura do
santo padre Cícero que pode ser vista no cordel O homem que virou macaco.
Quem zombasse do padre, era considerado imundo. As regras também
existem para as mulheres, elas devem permanecer puras e evitar o
envolvimento com aquilo que a sociedade considera como libidinoso que pode
levar ao pecado da fornicação, pode levar à desvalorização da feminina. Estes
são apenas alguns exemplos que caracterizam certo imaginário social
nordestino. Ao atentarmos para cada cordel em análise veremos ainda diversos
casos que retratam essa sociedade.
Quanto à linguagem grotesca, nos cordéis analisados encontramos
trechos nos quais são usadas palavras torpes relacionadas com um indivíduo
ou uma situação. Pessoas recebem xingamentos. Essas são palavras que
expressam asco, ou algo que ofenda a moralidade. Isso também se liga ao
aspecto social.
O primeiro cordel a ser analisado é O rapaz que virou barrão ou o porco
endiabrado, dos irmãos Klévisson Viana e Arievaldo Lima. Logo no título da
123
obra algumas conclusões podem ser tomadas. Os autores dão dois títulos ao
cordel: “O rapaz que virou barrão”, “O porco endiabrado”. Analisamos o
primeiro: o barrão é um tipo de porco, a palavra é uma variante de varrão. É
aquele porco escolhido para ser reprodutor e, portanto, não pode ser castrado.
Vulgarmente, chama-se o homem “mulherengo”. Olhando para o segundo
título: podemos lembrar que o porco é um animal considerado imundo em
alguns casos, pois come de tudo. Referências a esse animal como imundo não
faltam, principalmente na Bíblia, o livro base da religião cristã. Vale ressaltar a
definição de Houaiss:
1. designação comum aos mamíferos artiodátilos da
infraordem dos suínos, esp. os da fam. dos suídeos,
distribuídos pelo Velho Mundo; de corpo robusto, com pelos
ger. esparsos e ásperos, pernas relativamente curtas, patas
com dois cascos funcionais e dois não funcionais, focinho
móvel dotado de um disco frontal cartilaginoso e longas
presas formadas pelos caninos superiores;mamífero da
fam. dos suídeos (Sus scrofa), originário do javali selvagem
do Velho Mundo e encontrado em todo o mundo como
animal doméstico [Fornece basicamente carne e banha, e
come praticamente de tudo, donde seu costume de revirar
lixo à cata de alimento.];
2. indivíduo sujo;
3. indivíduo moralmente baixo, de mau caráter;o diabo;
4. carne do porco, us. como alimento;
Ex.: fui proibido de comer p.
5. prato preparado com essa carne;
6. bebedeira, embriaguez;
7. sem higiene; sujo;
8. que ofende a moral, o pudor; imoral, obsceno;
Ex.: piada p.
9. malfeito, feito sem capricho
Ex.: serviço p.
187
No primeiro momento, interessamo-nos pelo sentido figurado dado a
essa palavra. Assim, podemos relacionar com as características do
personagem Jomar Lacerda. Atentemos para o item dois do verbete: indivíduo
187
HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 3.0. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2001.
124
sujo. Sabe-se, através da leitura do cordel, que o rapaz tinha afinidade com a
sujeira e não sentia asco para com o abjeto:
Ele bateu na velhinha
Depois espremeu um gato
Fez o bicho defecar
Até encher bem o prato
“- come velha desgraçada
Agora tu paga o pato”
188
Os porcos são animais associados à imundície, pois comem todos os
tipos de alimentos. Em algumas culturas, como a judaica, é proibido alimentar-
se da carne do porco devido a sua imundície. Na cultura popular do Nordeste é
possível encontrar ainda hoje pessoas que prefiram não comer tal carne, essas
pessoas alegam que o porco necessita de uma limpeza profunda e que, ainda
assim, pode o tirar todas as impurezas e causar doenças graves. No cordel,
quando o rapaz vira porco, essas características se tornam ainda mais
perceptíveis:
Tinha uma poça de lama
Ele roncando espojou-se
Na lama da dita poça
Jomar Lacerda sujou-se
A partir daquele dia
Sua vida transformou-se
Botavam janta pra ele
Porém ele não queria
Comeu um saco de milho
Que lá na cozinha havia
Todo caroço de manga
Que ele avistava comia
Banho ele não tomava
Nem dormia mais na cama
Vivia agora atolado
Em uma poça de lama
189
188
VIANA, Klévisson e LIMA, Arievaldo. O rapaz que virou barrão ou o porco endiabrado.
Fortaleza: TUPYNANQUIM Editora, 2002, p. 3.
189
VIANA, Klévisson e LIMA, Arievaldo. Op. Cit., 2002, p. 04 e 05.
125
Nos bestiários o porco também se liga à luxúria e à gula, pois tal animal
começa a copular aos oito meses.
190
Lembremos que o pecado da luxúria é
bastante condenado, pois, ao cometê-lo, o homem deixa que o seu corpo
domine, enquanto o lado espiritual é abandonado. Na Idade Média os prazeres
da carne deveriam ser evitados para se ter uma melhor convivência com Deus.
A personagem convive muito bem com a imundície, faz jus à
metamorfose que lhe acontece. Portanto, a relação do rapaz com o animal no
qual é metamorfoseado não é gratuita. Esse fato é uma recorrência na maioria
dos cordéis de metamorfose. O ser no qual o indivíduo é transformado é, na
verdade, uma metáfora da personalidade do indivíduo.
A terceira definição de Houaiss também nos leva a refletir sobre o
caráter de Jomar Lacerda. Era mesmo um indivíduo moralmente baixo e de
mau caráter. A escolha do animal porco não foi por acaso. De fato, as
características relacionadas ao animal correspondem a Jomar Lacerda. Há
diversos trechos do cordel nos quais podemos identificar o caráter baixo dessa
personagem. Primeiro, ele é um mau filho e isso é um mau caráter dos
maiores, pois para a sociedade da qual fazemos parte a família exerce lugar
importante na sociedade. Ela é um símbolo social, é a estrutura, o que fortalece
uma sociedade. O rapaz, no entanto, era “desalmado” e tinha uma “vida
mundana”.
191
Tais características condizem com um comportamento agressivo
e desrespeitoso para com sua mãe.
190
BRAGA, Maria Manuela. “A marginália satírica nos caderais do mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra e do Funchal”. In: Medievalista On Line (Revista do Instituto de Estudos Medievais
FCSH – UNL FCT, nº 1, 2005. ISSN 1646-740X.
191
VIANA, Klévisson e LIMA, Arievaldo. Op. Cit., 2002, p. 1.
126
Na derivação por extensão de sentido o porco representa a figura do
diabo. Mais uma vez a significação tem profunda ligação com a personagem.
Logo no título do cordel isso pode ser percebido: “o porco endiabrado”. Na
verdade, para a religião cristã as atitudes de mau caráter praticadas por Jomar
Lacerda indicam que nele está um espírito do mal. São coisas provocadas pelo
diabo. Na Bíblia o pecado pode vir de três lugares: da carne, do mundo e do
próprio diabo.
192
O diabo é o destruidor, então ele se apossa do indivíduo para,
através dele, obter êxito nos seus planos, como destruir famílias, para, então,
destruir a igreja e a sociedade. Depois que é transformado em porco, Lacerda
age como se estivesse tomado por um espírito maligno:
A chegada de Jomar
Causou grande confusão
A mãe de santo correu
No meio da multidão
E não houve cantimbó
Que detivesse o barrão
Saindo deste terreiro
Após grande panacéia
Entrou no templo da seita
“Pregadores da Judéia
Vejam o que ele aprontou
Na calçada da Assembléia
Encontrou uma evangélica
Rasgou-lhe a roupa no dente
Se escanchou em cima dela
Com um roçado diferente
Dizem que ele fez mal
À coitada dessa crente.
193
192
Na blia trechos comprovantes de que o pecado pode ser ocasionado pelo próprio
homem, pois a matéria que o constitui é fraca e não resiste às tentações, assim como o
homem pode ser tentado pelo mundo que o rodeia e ainda pelo ser sobrenatural, o diabo. Está
escrito na Bíblia que “tudo o que no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência
dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo”. (1 João, 2. 16) Em outro trecho
encontramos: “revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar firmes contra
as astutas ciladas do diabo.” (Efésios, 6. 11)
193
VIANA, Klévisson e LIMA, Arievaldo. Op. Cit., 2002, p. 7.
127
Este é um seguimento de ações que indica uma atitude demoníaca por
parte do Jomar Lacerda. É comum observarmos em cultos e missas os males
que o diabo provoca, assim como é também comum o diabo ser culpado por
tantos malefícios que ocorrem à humanidade.
Destacamos ainda o uso informal da palavra porco no Ceará, estado no
qual essa palavra está relacionada com bebedeira, embriaguez. Sendo o cordel
em questão escrito no Ceará e por dois cearenses, isso não pode deixar de ser
levado em conta. E também não se pode deixar de relacionar com as
significações anteriores: baixa moral e sujeira, pois bêbados o
freqüentemente tratados dessa maneira. Jomar Lacerda tem atitudes similares
as de um indivíduo que se entregou além da conta à bebida alcoólica. E as
características de sujo, sem higiene, obsceno podem ser confirmadas em
vários trechos do cordel:
Pior é que vez por outra
Tem ele uma recaída
Ainda é doido por manga
Banana podre e batida
Já o flagraram lambendo
Uma casca de ferida
194
Para usar palavras de Bakhtin, Jomar Lacerda vive “uma existência
grotesca”
195
, como viviam as personagens de Rabelais.
Outro fator importante a ser destacado no cordel em análise é uma
estreita ligação entre a linguagem utilizada tanto no cordel, como na obra
rabelaisiana. Parece que os autores não temem tal uso. É bem verdade que o
194
VIANA, Klévisson e LIMA, Arievaldo. Op. Cit., 2002, p. 14.
195
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (o contexto de
François Rabelais). Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Edição Universidade de Brasília,
1999, p. 52.
128
texto de Rabelais tinha outro propósito, criticar a elite de sua época, no cordel a
crítica é ao filho que desobedece a sua mãe, portanto uma crítica à moral
social. O que queremos ressaltar é a linguagem que valoriza o baixo corporal
em ambas as narrativas. Aliás, essa é uma linguagem comum em alguns
cordéis.
No cordel O herói da floresta e a princesa encantada o grotesco aparece
nas atitudes do rei que é grosseiro e tem atitudes provocadoras de medo,
assim como no seu criado Eloí, “Esse bandido cruel/ Que para o rei miserável/
Era bom igual o mel/ Mas para o povo era mau/ Pior que uma cascavel.”
196
E
essas atitudes vão de encontro a Deus. O poeta descreve o rei:
Aureliano era o nome
Do monarca impiedoso
Que além de ser um ateu
Era mau e orgulhoso
Com o coração de Nero
E o gênio de um revoltoso
197
Os comportamentos agressivos não são permitidos na sociedade
nordestina que traz traços da mentalidade cristã. A menos que a agressão seja
feita para alguém que mereça ser castigado. Exemplo disso, na Idade Média, é
o charivari que é uma ofensa, mas se justifica por ser um meio de afirmar as
regras impostas e castigar quem as desobedecer.
No cordel O herói da floresta e a princesa encantada o caso da
metamorfose ocorre como um castigo à tima por não aceitar o amor do
196
CABRAL, João Firmino. O herói da floresta e a princesa encantada. Fortaleza:
Tupynanquim, 2006, p. 2.
197
CABRAL, João Firmino. Op. Cit., 2006, p. 2.
129
feiticeiro, mas também a alguém da sua família, no caso o pai da princesa. O
próprio rei reconhece isso:
- Eu sempre fui muito mau
Mereci este castigo
Mas você lutou tirando
Minha filha do perigo
Case com ela e terá
Um sogro, um pai e um amigo.
198
O elemento diabólico aparece por meio de religiões consideradas, no
Brasil, como ligadas aos demônios. O bruxo Calixto tem todas as
características de uma pessoa e que é capaz de qualquer perversidade
para conquistar seus objetivos. Além disso, possui poderes mágicos que usa
para atingir seus objetivos. A ligação com a magia é considerada por alguns
somente como algo vindo do mal, mas na obra em questão o poeta nos
apresenta o feiticeiro de nome Viana que ele chama caboclo velho.
Era famoso e temido
Tratado por feiticeiro
Porém não fazia o mal
Nem para ganhar dinheiro
Mas desfazia o feitiço
De qualquer catimbozeiro
Alguém por não entendê-lo
O tratava com desdém
Dizia que ele era mal
Não ajudava a ninguém
Mas ele em sua defesa
Dizia: - Eu só faço o bem.
199
Esse trecho pode ser comparado à feitiçaria na medievalidade. Segundo Jean
Delumeau, a população não aceitava aqueles que tinham intuitos maus nas
198
CABRAL, João Firmino. Op. Cit., 2006, p. 32.
199
Ibidem, p. 3
130
suas práticas feiticeiras, mas os que praticavam alguma magia que
contribuísse para o bem não tinham problemas com a sociedade.
200
A linguagem grotesca também aparece nesse cordel. O criado do rei é
chamado de cascavel que, no sentido figurado, significa pessoa traiçoeira e
má. É uma linguagem usada popularmente no dia-a-dia. Clemente, o jovem
que lutou para salvar a princesa é “um pau pra toda obra”
201
. Esta expressão,
de uso vulgar no Brasil, pode ser considerada feia apesar de qualificar
beneficamente uma pessoa.
O casamento é também uma penúria, principalmente para o homem. No
cordel O homem que se casou com uma serpente conta-se a história de uma
mulher que era bela e tratava seu homem com muito amor. Mas, após o
casamento ela se transforma em uma serpente. No bestiário medieval a
serpente é símbolo do pecado e do demônio. No Dicionário Eletrônico Houaiss
de Língua Portuguesa um dos sentidos figurados atribuídos a este animal é o
de pessoa traiçoeira. Tais significações coadunam com a personagem do
cordel que não hesitou em fazer mal ao seu marido quando o teve de volta a
casa. Pode também significar mulher feia, bruxa. Se atentarmos, veremos que
a jovem, durante os tempos de namoro era bela, no entanto depois de um
tempo casada descobriu-se seu veneno. A beleza física da moça não superou
sua feiúra moral. O esposo
Tinha tudo neste mundo
Para ser um homem feliz
200
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. Tradução de Maria Lúcia Machado. São
Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 558.
201
A expressão significa aquilo que qualifica uma pessoa em prontidão para qualquer serviço.
131
Mas seu azar começou
Ao se casar na matriz
Com essa falsa princesa
Pois foi parar sem defesa
Lá nas barbas do juiz.
202
Nos anos de namoro, além de bela, a moça era prendada e tinha
inúmeras boas qualidades que causavam admiração e transtorno por onde
passava:
(...)
A mulher era uma santa,
O tratava com carinho
Preparava almoço e janta
Porém depois que casou
A moça se transformou
Numa fera sacripanta!
203
Mesmo tendo sido bastante elogiada no início da obra, depois de sua
transformação a mulher só foi rebaixada. Todos os seus defeitos são expostos.
É uma mulher mesquinha que tenta tirar tudo que pertence ao seu marido: os
bens materiais e a dignidade. Durante o processo de separação a mulher fez
grande exigências:
Nas barras dos tribunais
Tudo a serpente queria
Mais da metade dos bens
Que Zé Freire possuía
Nessa altura da questão
Só a mulher tem razão
Vejam quanta covardia.
204
Também se pode perceber a questão do grotesco feminino na tentativa
de colocar todos os defeitos morais na mulher e ainda fazendo com que ela
202
VIANA, Arievaldo e PAULINO, Pedro Paulo. O homem que casou com uma serpente.
Mossoró: Editora Queima-Bucha, 2006, p. 12.
203
VIANA, Arievaldo e PAULINO, Pedro Paulo. Op. Cit., 2006, p. 3.
204
VIANA, Arievaldo e PAULINO, Pedro Paulo. Op. Cit., 2006, p. 13.
132
seja a causa da perdição também física e moral do homem. Vejamos o
conselho que Zé Freire recebe do seu amigo Sérgio:
(...)
Tenha cuidado na vida,
Porque questão com mulher
É sempre causa perdida,
Ouça o que estou lhe falando;
Principalmente brigando
Com serpente enfurecida!
205
Além de gastar toda a fortuna que roubou do marido, a mulher gastou
todo o dinheiro em farras. A desmoralização feminina aumenta ainda mais
nesse ponto. A mulher ruim “é coisa de satanás”
206
. Tal como na Idade Média,
na qual a mulher estava ligada ao mal e podia levar o homem a perecer.
A linguagem torpe também aparece nesse cordel. A traição do cachorro
de Freire, para usar as palavras do autor, “o deixou puto”
207
. Tal palavra
tem diversos significados que estão relacionados ao baixo corporal, à
devassidão do indivíduo, mas nesse caso diz respeito à irritação sentida pelo
dono do cachorro traidor.
Continuando a análise do mesmo cordel, pode-se perceber que todas as
ex-mulheres de Freire o xingadas. Entre as palavras e expressões
usadas para qualificar tais mulheres estão: nojenta, jumenta, zangada, feia,
morrinha
208
, atrevida, pior que o diabo chupando manga, sacripanta.
209
Todas
205
Ibidem, p. 14.
206
Ib., p. 16.
207
Ib.
208
A palavra morrinha diz respeito à mula-sem-cabeça que também pode ser chamada de
morrinha do padre. CASCUDO, Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global,
2002, p. 191.
209
VIANA, Arievaldo e PAULINO, Pedro Paulo. Op. Cit., 2006, p. 3.
133
as características relacionam-se com o grotesco e com rebaixamento moral ou
corporal.
Outro cordel que também ressalta a vileza feminina é A moça que virou
cachorra porque foi ao baile funk. Neste cordel as atitudes da personagem são
criticadas por irem de encontro à moral apregoada pela sociedade da qual faz
parte.
Vê-se a menina arranjar
Um namorado por dia
Levar pra dormir em casa
Agindo como vadia
E Ali na barba do pai
Faz ela a maior orgia
Se o pai reclama ela diz:
- não venha com lenga-lenga,
Coroa, você não curte
Porque você foi molenga
Se vier encher meu saco
Garanto que viro quenga!
O pai que é temente a Deus
Fica muito envergonhado
A mãe implora a Jesus
Pra livrá-la do pecado
Pois vê a sua filhinha
Trilhando caminho errado.
210
Esse comportamento é combatido e o contrário é louvado como vimos
no cordel O herói da floresta e a princesa encantada. em A moça que virou
cachorra porque foi ao baile funk, as atitudes da moça que se chama bela são
ofensivas à moral. Mais uma vez as características físicas confrontam com o
modo de ser. Bela assim era chamada por possuir grande formosura, no
entanto, “(...) tinha a conduta/ De uma pessoa ruim/ Enquanto os pais rezavam/
210
VIANA, Antônio Klévisson. A moça que virou cachorra porque foi ao baile funk. Canindé:
Edições Lamparina, 2006, p. 2 e 3.
134
Ela fazia um festim/ Zombava das coisas santas/ Com instinto de Caim.”
211
Suas atitudes o repugnantes, asquerosas e não condizem com um bom
comportamento social:
Numa noite tenebrosa
Bela se uniu a laia
Saiu então sem calcinha
Com minúscula mini saia
Para ir ao baile funk
Se divertir na gandaia.
Ficou três dias na farra
Sem dá notícia de nada
E a pobre de sua mãe
Chorava desesperada
E no quarto dia, Bela
Entrou em casa drogada.
Mary Russo, na sua obra O grotesco feminino: risco, excesso e
modernidade, lembra que na sua infância (em meados do século XX)
Para uma mulher, expor-se tinha mais a ver com uma espécie
de descuido e perda da noção de limites (...). A minha
impressão era de que estas mulheres tinham feito algo errado,
tinham se colocado em evidência jovens demais ou velhas
demais, muito cedo ou muito tarde e, no entanto, qualquer
uma, qualquer mulher, poderia se expor ao riculo se não
tivesse cuidado.
212
No final da primeira década do século XXI, apesar de Jean Baudrillard falar que
estamos vivendo a pós-orgia, encontramos uma forte repreensão à exposição
feminina no imaginário popular do Nordeste. Numa sociedade em que a
mentalidade cristã prega a pureza da mulher, quanto menos ela estiver em
evidência, melhor. E, apesar da grande abertura oferecida pela mídia, isso
ainda é muito forte.
211
Ibidem, p. 3.
212
RUSSO, Mary. O grotesco feminino: risco, excesso e modernidade. Tradução de Talita M.
Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 69.
135
No entanto, vale lembrar em relação à mentalidade cristã presente no
cordel que não intuito de rebaixar a mulher, mas de elevá-la, tal como Le
Goff considera sobre a época medieval.
Maria, Maria Madalena, Marta... Os evangelhos estão
povoados de figuras femininas que rodeiam Cristo e o inspiram.
O cristianismo medieval, longe de reduzir a mulher a um papel
secundário, ao contrário, deu-lhe um verdadeiro lugar ao lado
do homem.
213
Sendo o cordel fruto do imaginário popular nordestino residual, traz
traços do olhar cristão sobre a mulher. Em diversos trechos nos quais a mulher
é vista de forma grotesca, é, na verdade, para uma conscientização de que,
dessa forma, ela não fica bem diante da sociedade. Tanto é que sua beleza e
bondade são sempre exaltadas. Quando isso não acontece, a mulher é tratada
como aquela que enfeitiça o homem, deixa-o cheio de desejos e capaz de
qualquer coisa para conquistar aquela que lhe apraz.
A mulher no cordel pode ser reverenciada ou não. É reverenciada
quando se comporta de acordo com os padrões impostos pela sociedade que
normalmente traz as regras impostas pela igreja. A mulher casta, obediente é a
mulher ideal. Aquelas que fogem à regra, aos padrões morais são rebaixadas e
tratadas de forma preconceituosa.
É o que se pode observar no cordel O homem que se casou com uma
serpente. O cordel inicia com vários exemplos de mulheres ruins. A mulher é
sempre rebaixada, como causa do mal. Conta a história de Freire que se
casou sete vezes e sempre teve má sorte. Todas as suas mulheres foram más:
213
LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 119.
136
A primeira foi embora
Com um vendedor de cocada
A segunda não prestava
Era gorda e abusada
A terceira era nojenta
E a quarta uma jumenta
Que só lhe dava patada.
A quinta era até direita
Mas algumas faltas tinha:
Falava da vida alheia,
Brigava com a vizinha,
Queimava sempre a comida,
Era zangada, atrevida,
Mais feia que a morrinha.
A sexta lhe maltratava
E fez dele um boi-de-canga,
Pois zangada era pior
Que o diabo chupando manga
214
Como se pode perceber a mulher é o princípio do mal. Em nenhum
momento Freire tem alguma culpa pela separação. Assim como na Idade
Média, percebemos traços misóginos no cordel nordestino. Todas as
características grotescas da personalidade feminina são ressaltadas. As
mulheres podem provocar a ruína de um homem, assim como faziam as bruxas
medievais que lhe tiravam o órgão genital, segundo lendas. Basta lembrarmos
trechos do Martelo das feiticeiras.
O rebaixamento da mulher é visível. A primeira é uma mulher sem
pudores, pois trai o marido e ainda foge com outro. Nela não se pode confiar,
pois é traiçoeira. Assim foi com Freire. A segunda é tratada como gorda e
nojenta duas palavras que denigrem a imagem, pois ao ler tal verso imagina-se
um ser grotesco e abjeto. Em nenhum momento essas mulheres aparecem
214
VIANA, Arievaldo e PAULINO, Pedro Paulo. O homem que casou com uma serpente.
Mossoró: Editora Queima-Bucha, 2006, p. 2.
137
como companheiras fiéis aos maridos, amantes verdadeiras, são sempre vistas
de um modo denegridor.
Segundo Beth Dias,
A forma animal impingida ao pecador é o sinal distintivo. Nela
está impressa a mentalidade da segregação e do isolamento
praticados na Idade Média, manifestados no cordel
contemporâneo através de resíduos da cultura cristã daquela
época presentes nesta literatura constituída de sedimentos
mentais do imaginário coletivo.
215
No cordel O mistério da pedra encantada acontece algo diferente. Não
metamorfose com animal. Conta-se a história de uma pedra que tem forma
de mulher e que às vezes se transforma numa bela moça que hipnotiza os
homens e os atrai para junto dela e os deixa escravo do seu amor. Tal
sentimento não pode ser vivido por completo, pois a pedra somente
desencanta em noites de luar e ao amanhecer torna a ser pedra. A sedução da
jovem é também um resíduo de uma mentalidade bastante antiga. Esta é uma
mentalidade existente no imaginário de quase todas as culturas. Mas, o piar da
coruja prevendo o final infeliz faz parte do imaginário medieval.
No cordel O homem que virou macaco, encontramos um personagem
que manda uma banana para o padre Cícero. A palavra banana aparece no
texto no sentido figurado e tem um valor pejorativo, tendo em vista que
“banana” é um gesto obsceno e é a representação do órgão sexual masculino.
215
MARTINS, Elizabeth Dias. Sanção e metamorfose no cordel nordestino: resíduos do
imaginário cristão medieval íbero-português”, In: Anais do XIX Encontro Brasileiro de
Professores de Literatura Portuguesa, Curitiba, 2003, p. 304-311.
138
Ao zombar do padre, o homem acaba sendo castigado. É
metamorfoseado em um macaco. Veja-se que o animal relaciona-se com a
obscenidade cometida pelo homem, tendo em vista que um dos alimentos
preferidos do animal em questão é a banana. Depois, verificamos a figura do
macaco como uma figura engraçada, mas, antes de tudo, relacionada ao diabo.
No cordel o homem que vira macaco é um ateu e, portanto, tem ligações com o
diabo, pelo menos para Igreja. Um dos sentidos figurados dado à palavra
macaco é indivíduo feio. Característica também relacionada com o diabo, com
aqueles que descrêem de Deus. Na mentalidade cristã todo aquele que não
tem parte com Deus comunga com o diabo. Ou você pertence a Deus ou ao
diabo.
A linguagem utilizada em alguns trechos do cordel traz um grotesco
agressivo e risível. O ateu, ao ver passarem os romeiros, fez um gesto e disse:
“(...) essa banana/ é pra vocês entregarem/ ao Padre Ciço Romão”
216
O gesto,
chamado vulgarmente de “banana”, é considerado obsceno e remete ao órgão
sexual masculino. Como vimos, o castigo recebido pelo homem não é
exatamente por ter feito esse gesto, mas por tê-lo oferecido a uma divindade. O
que causou a ira de Deus que o castigou. Para a cristandade, Deus é amor,
mas também é justiça. Tratar mal alguém que é considerado um ungido de
Deus pode trazer grandes conseqüências.
Agora, passamos à análise do cordel A malassombrada peleja de Pedro
Tatu com o Lobisomem. O cordel conta a história de um famoso cantador que é
216
JUAZEIRO, João Pedro do. O homem que virou macaco. Fortaleza: Folheteria Padre
Cícero, 2005, p. 03.
139
chamado a travar uma peleja por um homem “magro, seco e empombado”
217
.
A peleja segue até a transformação do indivíduo em lobisomem.
O mito do lobisomem é um dos mais antigos. Segundo Câmara
Cascudo, é possível verificar a existência do mito em quase todas as
sociedades
218
. O mito passa de sociedade para sociedade por meio da
hibridação cultural e do processo de endoculturação e adquire características
novas a partir da cultura em que se insere. Assim, aqui no Nordeste, o mito do
lobisomem, ainda que se conserve quase o mesmo desde tempos mais
antigos, tem algumas especificidades. Para defender uma criança das garras
do lobisomem, Pedro Tatu “Valeu-se da Virgem Santa,/ Que é mãe do
Salvador.”
219
E o lobisomem obedeceu. Nesse cordel, encontramos viva no
imaginário nordestino uma lenda que vem sendo repassada desde a
Antiguidade. Isso mostra a força social na transmissão da cultura.
no cordel O cachorro encantado e a sorte da megera, a mulher é
chamada de megera
220
. Tal palavra diz respeito a uma mulher má. Isso nos
interessa por ser a mulher a causadora da metamorfose que nesse momento
não aparece como castigo pela falta de alguma moral, mas como feitiço
provocado pela mulher. Aqui temos um resíduo da feiticeira medieval, aquela
que pode provocar o desencaminhamento do homem, aquela que pode levá-lo
à perdição. O homem sente medo ao ver sua mulher comendo restos mortais
217
VIANA, Antônio Klévisson. A malassombrada peleja de Pedro Tatu com o Lobisomem.
Fortaleza: Tupynanquim, 2002, p. 03.
218
CASCUDO, Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002, p. 172-190.
219
VIANA, Antônio Klévisson. Op. Cit., p. 14.
220
Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, megera significa: mulher de
temperamento acre, que facilmente se enraivece; mulher má, mãe perversa, desnaturada.
140
de um humano e teme pelo que ela possa fazer com ele. Delumeau, ao falar da
feiticeira medieval, bastante discutida no Martelo das feiticeiras, lembra que o
homem “teme o canibalismo sexual de sua parceira”
221
e que, na Idade Média
assim como em diversos outros momentos, da humanidade, conta-se em
lendas que “os demônios podem realmente subtrair o pênis de alguém.”
222
No
cordel examinado, verificamos o medo do homem quando descobre que sua
parceira comia carne podre de defuntos, como se participasse de um ritual de
magia. Logo após a constatação do fato, o homem fica horrorizado e todo o
seu corpo é afetado por aquela visão. Vejamos o que ele diz logo que se sente
enfraquecido:
- Aí não tive mais forças
Para voltar ao meu lar.
Nem em Deus encontrei meios
Para poder regressar.
Eu saí vagando a esmo,
Junto da beira do mar.
223
O homem perde o vigor e, quando decide abandonar a esposa, não consegue
desfazer-se tão fácil. Ainda teve coragem de dizer sua decisão. No entanto, a
megera parte para ele que tenta se defender, porém sucumbe ao feitiço.
Segundo Delumeau, a mulher impede o homem “de ser ele mesmo, de realizar
sua espiritualidade, de encontrar o caminho da salvação.”
224
O homem perde
totalmente o controle, pois a mulher pode fazer dele o que bem entender.
Contudo, tal como na Idade Média o feitiço era condenado e castigado, assim
221
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. Tradução de Maria Lucia Machado. São
Paulo: Companhia de bolso, 2009, p. 467.
222
DELUMEAU, Jean. Op. Cit., 2009, p. 466.
223
VIANA, Antônio Klévisson. O cachorro encantado e a sorte da megera. Fortaleza;
Tupynanquim, 2002, p. 64.
224
DELUMEAU, Jean. Op. Cit., 2009, p. 467.
141
também aconteceu à megera. Depois de conseguir se livrar do feitiço o homem
recebe uma dica de como castigar sua ex-mulher: “(...) Leve esta água
encantada,/ Basta uma gota pingar!” Assim ele parte na tentativa de fazer seu
projeto dar certo.
- Fui ligeiro para casa,
Segui direitinho a bula.
Quando ela foi chegando
Ao me ver quase se anula.
Joguei logo a água nela:
Ficou virada numa mula!
- Agarrei-a pela crina
E lhe pus cabresto e sela.
Botei esporas nos pés,
Cravei num umbigo dela.
Lancei mão de um chicote
E com gosto bati nela
- Agora todos os dias,
Dou-lhe uma surra caprichada.
Mesmo meu braço doendo,
Para mim não vale nada.
De vontade ou contragosto,
Eu amanso essa malvada.
- Ao invés de carne humana,
Só come milho e capim,
Pois todo castigo é pouco
Para a pessoa ruim.
Pois para me desgraçar
Não teve pena de mim.
225
4.3. A representação do monstruoso, do animalesco, do desordenado e
do desproporcional; a relação homem/ animal; A ruptura da lógica
225
VIANA, Antônio Klévisson. O cachorro encantado e a sorte da megera. Fortaleza:
Tupynanquim, 2002, p. 77 e 78.
142
Segundo Sodré, “o fabuloso, o aberrante, o macabro, o demente –
enfim, tudo que à primeira vista se localiza numa inacessível à normalidade
humana encaixam-se na estrutura do grotesco”.
226
Podemos juntar a essas
características o feio, o ridículo etc. que também podem ser considerados
anormais sempre dentro de um determinado contexto e sempre traz consigo
efeitos da impressão como o riso ou medo, tendo em vista que o estranho, o
exótico, o anormal sempre vai causar certa impressão. No cordel O rapaz que
virou barrão ou o porco endiabrado, o rapaz metamorfoseado é uma anomalia,
causa espanto e medo nas pessoas. Porém, como na obra de Rabelais, o
mundo grotesco parece ser um mundo ordenado e não alguém que se
espante na obra diante de tanto asco. No entanto, toda obra é representação
do grotesco que domina a vileza humana e sabe-se que o intuito era
ridicularizar a mesquinhez daquela sociedade.
Os monstros, seres disformes, descomunais aparecem nos cordéis e
rompem com a lógica. Nessa ruptura da lógica ocorre o fantástico. Sabemos da
não possibilidade física de se transformar um ser vivo em outro. No cordel de
metamorfose a transformação ocorre gerando um ser disforme e incomum. O
homem é transformado em animal irracional ou mesmo num objeto inanimado
e se torna um ser monstruoso e que fica muitas vezes entre o cômico e o
assustador. Nesse caso, ocorre um rebaixamento, pois se transforma um
animal que pensa em um que não pensa. E não por isso, pois há animais
226
SODRÉ, Muniz. SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco: introdução a cultura de massa
brasileira. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 38.
143
com caráter positivo, como a águia, o falcão, o leão etc.
227
O que intensifica
esse rebaixamento é o fato de ser comparado a animais que ressaltam
possíveis defeitos humanos. Segundo Vladímir Propp,
animais cuja aparência, ou aspecto exterior, fazem-nos
lembrar certas qualidades negativas dos homens. Por isso a
representação de uma pessoa com o aspecto de porco,
macaco, gralha ou urso indica as qualidades negativas
correspondentes do homem.
228
Em outros casos, o indivíduo metamorfoseado se torna um ser que
desperta a curiosidade das pessoas, como no caso da pedra encantada.
Muitas vezes, antes mesmo da transformação suas atitudes correspondem
com a do ser no qual será metamorfoseado, como o homem que foi
transformado num macaco por ter feito um gesto obsceno (banana) para um
padre. Os animais perturbam outros indivíduos e entram em contato direto com
os indivíduos humanos. Às vezes, como uma forma de purgar os pecados que
causaram a metamorfose.
No cordel O herói da floresta e a princesa encantada, o grotesco
aparece através de vários monstros, todos eles terrificantes e amedrontadores.
Os monstros são o bruxo Calixto, o gigante, o urso e as serpentes. Todos
contribuem para intimidar a vitória do bem. Essa obra nos faz lembrar os
contos de fada nos quais o herói precisa enfrentar uma série de seres
terrificantes. Vejamos os trechos nos quais podemos confirmar o que
dissemos. Com relação ao bruxo responsável pela metamorfose, o poeta inicia:
227
PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini. o Paulo:
Editora Ática, 1992, p. 66.
228
PROPP, Vladímir. Op. Cit., 1992, p. 66.
144
(...)
Vou falar num grande bruxo
Que havia noutro reinado
Um monstro sem coração
Bruto, perverso e malvado.
229
Há também o gigante possuidor de atitudes que correspondem com
Golias, o gigante enfrentado pelo pequeno Davi no relato bíblico.
(...)
Era um gigante esquisito
Duma feiúra tamanha
O seu corpo tenebroso
Parecia uma montanha
230
Depois de enfrentar este monstro, o jovem Clemente avista um urso,
“fera terrível e valente” e as cobras:
231
Ainda há as cobras:
Nisso escutou ali perto
O rugir dos cascavéis
Que se arrastavam com pressa
Em direção aos seus pés
Aqueles répteis malditos
Venenosos e cruéis
232
Juntam-se à figura dos monstros aberrações, desproporcionalidades e
desordenações. O berro do gigante é agigantado e ele ainda é caçoado ao ser
derrotado por um rapaz de tamanho pequeno.
Clemente ficou perplexo
Olhando para o gigante
Ele diante do monstro
Era insignificante
Se comparava a um cabrito
Diante de um elefante.
(...)
O gigante vendo o moço
229
CABRAL, João Firmino, 2006. Op. Cit., p. 6.
230
CABRAL, João Firmino, 2006. Op. Cit., p. 18.
231
Ibidem, p. 20.
232
Ib., p. 22.
145
Tão pequeno em sua frente
Deu uma risada e disse?
- Quem será este demente
Perdeu o amor da vida
Ou é louco certamente!
(...)
O gigante levantou
Seu braço forte e pesado
Clemente acertou um golpe
Nas costelas do malvado
Que o monstro com a dor
Deu um berro agigantado.
233
O gigante ainda leva outros golpes que o desmoralizam ainda mais até o
levarem a morte.
Vale ressaltar ainda dois animais: a pantera e a serpente. O pai da
jovem princesa despreza a maneira bondosa da filha e prefere que ela fosse
uma “(...) pantera/ Má, perversa e criminosa.”
234
A esse animal dois sentidos
figurados são atribuídos relacionando-se à figura humana. Segundo o
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, diz-se de uma “pessoa
irascível, cruel;” e também de uma “mulher muito bonita e sedutora, tigresa.”
235
atentamos aqui também para figura feminina. Vejamos que mostrar seus
atributos de mulher é algo considerado feio, ligado ao mal. Vale observar a
próxima estrofe, depois que o pai declara preferir que a filha fosse uma
pantera:
Aurora dizia ao pai:
- Pense mai no seu destino
Não maltrate o povo pobre
Com seu rancor de assassino
Que um dia ajustará
233
Ib., p. 18 e 19.
234
CABRAL, João Firmino. Op. Cit., 2006, p. 5
235
HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2001.
146
Conta com o nosso Juiz Divino
236
A serpente é citada pela própria moça que diz preferir viver transformada
nesse animal rastejante, a aceitar o amor do bruxo. Serpente diz-se de
“qualquer cobra venenosa, ou de aspecto ameaçador ou gigantesco”. Também
pode ser nome atribuído a uma mulher velha e feia, bruxa ou ainda uma
pessoa má e traiçoeira.
237
Assim, a figura da mulher que se mostra bondosa, desprendida da
vaidade é exaltada. Aurora, a filha do rei, é uma jovem simples. O seu nome
também não aparece por acaso. A aurora é a claridade que aponta para o
início da manhã. Algo simples e belo. Tal como na Idade Média.
No cordel O cachorro encantado e a sorte da megera, como vimos,
acontecem duas metamorfoses. A primeira ocorre com uma pessoa de bem,
que não merecia tal repreensão e a outra é uma espécie de vingança para com
quem causou a transformação anterior. Primeiramente, o homem é
transformado num cachorro por não aceitar ficar com sua mulher que pratica
magia. No entanto, o cachorro tem boa sorte e é um animal querido, não é um
monstro. Aqui lembramos que a palavra cachorro, tem sentido figurado
negativo na sociedade brasileira, mas, como animal, é o melhor amigo do
homem. Nesse cordel, também encontramos mais dois animais aos quais a
mulher má é comparada. Um deles é a pantera, da qual já falamos. O outro é a
besta-fera. O marido ao olhar para esposa, irritada com sua decisão, observa:
- De sangue muito encarnado
236
CABRAL, João Firmino. Op. Cit., 2006, p. 5.
237
Informações retiradas do Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa.
147
Vi o olhar da megera.
Ela partiu para mim
Como faz uma pantera
Com instinto de matar-me,
Como faz a besta fera.
238
Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa, besta
se diz de “animais ferozes” e, no sentido figurado, significa “indivíduo mau,
desumano e sanguinário”. Tais traços podem ser encontrados na mulher. Ao
perceber a decisão do marido a mulher é tomada por um grande sentimento de
raiva que a faz expressar seu lado desumano e mau. Além disso, esse animal
relaciona-se com o diabo. Nos relatos bíblicos o anti-Cristo é chamado de
besta-fera. Sendo assim, compreendemos que a figura do animais
considerados maus, ferozes no imaginário do Nordeste são relacionadas às
pessoas que têm atitudes similares.
Quando o homem volta à sua forma normal, é aconselhado a se vingar
de sua ex-mulher. Como castigo, a mulher é transformada numa mula e todos
os dias recebe açoites, cumprindo, assim, a penitência por seus pecados. Esse
animal não aparece como um monstro e rompe com a lógica por um dia ter
sido gente. Vale lembrar que a mula é a fêmea do burro, animal que carrega
pesadas cargas. A mulher agora leva consigo o peso de ter sido perversa com
seu marido. Ainda nos faz lembrar a mula-sem-cabeça que carrega tal
maldição por ter se apaixonado por um padre.
238
VIANA, Klévisson. O cachorro encantado e a sorte da megera. Fortaleza: Tupynanquim,
2002, p. 65.
148
4.4. A tendência do artista em conceber o feio e o inatural como algo
inserido na realidade e no cotidiano
É comum percebermos na narrativa a presença de personagens que
fogem ao padrão estabelecido pelo contexto da obra. O poeta cordelista
organiza sua obra de forma que compreendemos ali a existência de um mundo
coerente, ainda que povoado por seres estranhos à realidade palpável, tal
como a feiúra presente nesses seres. Isso acontece porque o poeta faz uma
representação da realidade. O contexto da obra condiz com algo presente no
cotidiano. Já observamos isso nas obras em análise.
Em O herói da floresta e a princesa encantada, percebe-se que, mesmo
havendo uma luta travada com o sobrenatural, na obra aparece como algo
pertencente ao cotidiano. Na verdade, a luta entre o bem e o mal é uma
recorrência nas obras aqui analisadas e isto é o que faz com que a obra seja
parte do real. E, como vimos, o mal é sempre ligado ao feio. Além disso,
mesmo que em alguns casos os personagens principais sejam os vilões, é
sempre ressaltado o bom comportamento e o cumprimento das regras
impostas pela sociedade como um meio para se viver bem.
Não no cordel sobre o qual acabamos de discorrer, mas também nos
outros que fazem parte da nossa análise, observamos a luta entre o bem e o
mal. Todo aquele que pratica o bem, possui uma beleza e é digno da aceitação
social. Já o contrário é sempre punido e rejeitado e sempre aparece com
características repugnantes.
149
Mas, tal como defendeu Victor Hugo e outros teóricos do grotesco, não é
possível a não representação do feio tendo em vista que ele existe ao lado do
belo. O cordel de metamorfose é uma das formas de mostrar o lado grotesco
da sociedade. A obra literária é composta de autor, leitor, mundo real e mundo
ficcional e por isso constitui-se dessa forma.
4.5. O baixo material e corporal
O corpo no cordel de metamorfose contemporâneo tanto pode ser
sagrado como profano. Sempre é possível encontrar esses dois aspectos em
obras desse tipo. Se não possui um comportamento condizente com os moldes
pregados pela doutrina religiosa, principalmente a católica, o corpo do indivíduo
se liga à profanação, mas, se segue os preceitos religiosos, se liga ao sagrado.
Sabe-se que o corpo é considerado sagrado para a sociedade cristã
medieval. A mentalidade que proíbe o sexo antes do casamento é a
mentalidade cristã medieval. A proibição veio como uma forma de regrar o que
estava bastante desregrado anteriormente na sociedade clássica e mesmo na
romana. A mentalidade se forma um pouco antes da oficialização da religião
cristã.
Essa mudança de comportamento começara na verdade antes
do cristianismo, com certas correntes filosóficas pagãs
defendendo uma vida mais regrada, mais afastada dos
prazeres materiais considerados animalizadores do ser
150
humano. Como em vários outros aspectos, o surgimento do
cristianismo respondia a essa demanda psicológica e
comportamental da sociedade romana, daí seu sucesso.
239
Isso persiste na cultura cristã do Brasil, com bastante afinco no
Nordeste. Assim como no início do cristianismo, a vida deve ser mais de
entrega a Deus, do que aos prazeres da carne. Deve-se zelar pelo corpo que é
“templo e morada do espírito santo”. Por isso, exalta-se a castidade, a
abstinência. Por isso, melhor é casar para os que não conseguem se manter
castos, tal como Paulo em suas cartas bíblicas afirma ter conseguido. Além
disso, a vida sexual após o casamento na Idade Média deveria ser simples. Ter
prazer não era o objetivo, mas, sim, a procriação. O casamento também visava
a monogamia, mentalidade também persistente na contemporaneidade.
Segundo Jacques Le Goff, o corpo, na Idade Média, passa a ser tratado
de forma diferente de como fora na Antiguidade: “sob a influência do
cristianismo, uma nova ética sexual impôs-se na Idade Média. A carne e o
corpo são demonizados, como fonte do pecado. E a virgindade se torna o ideal
da igreja.”
240
Assim, o corpo passa a ser vigiado para que não se cometa erros
a partir dele. O corpo é também morada do Espírito Santo de Deus
241
. Por isso,
deve estar sempre evitando a contaminação com aquilo que não convém, com
o que faz mal ao corpo, com tudo o que rompe a pureza corporal. Além disso, o
corpo deve ser aproximado da perfeição.
239
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense,
2005, p. 126 e 127.
240
LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 137.
241
Bíblia Sagrada. Op. Cit., 1ª aos Coríntios, capítulo 6, verso 19.
151
No cordel A moça que virou cachorra porque foi ao baile funk, percebe-
se uma forte crítica ao uso desordenado do corpo. Ao ler o texto do cordel
verificamos a condenação da desmoralização do corpo. Pode-se observar a
forma como a moça se veste, o desagrado que causa a sua mãe e a sua
transformação em cachorra. As atitudes de rebaixamento corporal da jovem a
fazem ser castigada e transformada nesse animal. A moça se arrepende das
desobediências cometidas contra os pais e contra seu corpo, “mas tem que
vagar então/ Pelo mundo até que um dia/ Se desfaça a maldição.”
242
Então,
ela vaga pelas ruas e cidades carregando a maldição e perturbando a vida
daqueles que, assim como ela foi um dia, desobedecem e quebram as leis que
regem a moral social cristã:
Por isso que a cachorra
Para o pecado purgar
Fareja quem é ruim
Buscando em vão se livrar
Até que a metamorfose
Um dia venha a acabar.
(...)
Onde tem um baile funk
Ela morde todo mundo
Fica louca quando escuta
Entra num transe profundo
E uiva como quem diz:
“Este ritmo é vagabundo”.
(...)
Do turismo sexual
A cachorra anda no encalço
E fica louca espumando
Quando vê turista falso
Para estes exploradores
Já está pronto o cadafalso.
243
242
VIANA, Klévisson. A moça que virou cachorra porque foi ao baile funk. Canindé: Edições
Lamparina, 2006, p. 6.
243
Ibidem, p. 7, 8 e 9.
O corporal, o carnal mistura
oposição ao elevado, o céu
compõe a capa do cordel:
Compara-
se ao princípio bíblico d
terrenos e diferem do espiritual que é ligado a tudo que é elevado. Pode
observar nas vestes da moça e no que o poeta fala sobre ela que tais
vestimentas, assim como nas suas atitudes reprovadas pela sociedade de um
modo g
eral. Porque esta considera que o corpo deve ser preservado.
O contrário acontece no cordel
encantada
, de João Firmino Cabral. Nesta obra a beleza feminina é sempre
exaltada. Assemelha-
se aos contos de fadas, mas em forma d
diversas características confluentes com os contos de fadas. O autor inicia o
texto:
Com permissão do Divino
Conto uma história passada
Do tempo que existiam
Gênio, feiticeiro e fada
Do grande Herói da Floresta
244
Vale lembrar que, segundo a
Deus (que está no u)
o sopro do espírito.
indivíduo cristão desde o início de sua
152
O corporal, o carnal mistura
-se com a terra
, isto é, com o baixo em
oposição ao elevado, o céu
244
. Pode-
se observar através da xilogravura que
compõe a capa do cordel:
se ao princípio bíblico d
e que os prazeres da carne são
terrenos e diferem do espiritual que é ligado a tudo que é elevado. Pode
observar nas vestes da moça e no que o poeta fala sobre ela que tais
vestimentas, assim como nas suas atitudes reprovadas pela sociedade de um
eral. Porque esta considera que o corpo deve ser preservado.
O contrário acontece no cordel
O herói da floresta e a princesa
, de João Firmino Cabral. Nesta obra a beleza feminina é sempre
se aos contos de fadas, mas em forma d
diversas características confluentes com os contos de fadas. O autor inicia o
Com permissão do Divino
Conto uma história passada
Do tempo que existiam
Gênio, feiticeiro e fada
Do grande Herói da Floresta
Vale lembrar que, segundo a
Bíblia
cristã, o homem foi criado do da terra e recebeu de
o sopro do espírito.
Portanto, a dicotomia baixo/ elevado acompanha o
indivíduo cristão desde o início de sua
história.
, isto é, com o baixo em
se observar através da xilogravura que
e que os prazeres da carne são
terrenos e diferem do espiritual que é ligado a tudo que é elevado. Pode
-se
observar nas vestes da moça e no que o poeta fala sobre ela que tais
vestimentas, assim como nas suas atitudes reprovadas pela sociedade de um
eral. Porque esta considera que o corpo deve ser preservado.
O herói da floresta e a princesa
, de João Firmino Cabral. Nesta obra a beleza feminina é sempre
se aos contos de fadas, mas em forma d
e verso.
diversas características confluentes com os contos de fadas. O autor inicia o
cristã, o homem foi criado do da terra e recebeu de
Portanto, a dicotomia baixo/ elevado acompanha o
153
E a princesa encantada
245
Nesse caso, o baixo corporal acontece quando a moça é
transformada numa coruja, segundo o poeta, um animal feio. Nesse momento,
ela se aproxima do baixo, pois convive inevitavelmente com os monstros que
ali se encontram para fazer sua guarda.
Em outros cordéis também percebemos esse princípio do material e do
corporal, mas que, assim como falou Bakhtin, não finda no rebaixamento. a
renovação. Em vários cordéis analisados a metamorfose é revertida e a pessoa
passa a ter novas atitudes correspondentes com o elevado.
Em O homem que virou macaco, o baixo corporal aparece através do
gesto obsceno que representa o órgão masculino. Ao ser transformado, o
homem passa a agir como um macaco:
Quando vocês saíram
Ele no mato entrou
Correndo noite e dia
Muito cedo aqui chegou
Veio cortando marmeleiro
Por isso chegou primeiro
Por vocês aqui esperou
246
No entanto, assim como em outros cordéis, nesse também ocorre a
regeneração do indivíduo através do arrependimento. Dessa forma, o grotesco
não aparece apenas como aspecto negativo, mas também regenerador. O
245
CABRAL, João Firmino. O herói da floresta e a princesa encantada. Fortaleza:
Tupynanquim, 2006, p. 01.
246
JUAZEIRO, João Pedro do. O homem que virou macaco. Fortaleza: Folheteria Padre
Cícero, 2005, p. 6.
154
homem, antes ateu, reconhece o erro: “o homem que blasfemou/ E num bicho
se virou/ Louvava e pedia perdão
247
.
No cordel O herói da floresta e a princesa encantada o baixo material e
corporal aparece quando o corpo do gigante é comparado a uma montanha:
“Era um gigante esquisito/ Duma feiúra tamanha/ O seu corpo tenebroso/
Parecia uma montanha.”
248
Sendo assim, era um corpo cheio de imperfeições,
basta compreendermos que montanha se diz de grandes elevações que podem
ter trechos mais altos e outros mais baixos. Mas, nesse caso, não
renovação. Na verdade, a morte do gigante proporciona vida e libertação, mas
não dele e sim da princesa.
A feiúra da coruja conflui com o ambiente no qual ela se encontra, uma
caverna “nojenta, asquerosa e suja.
249
Assim, corpo e terra se misturam e dão
uma maior dimensão ao universo grotesco.
O princípio do baixo material e corporal também é muito forte no cordel
A malassombrada peleja de Pedro Tatu com o lobisomem. Acontece,
principalmente, no momento em que ocorre a metamorfose:
O amarelo, chegando
Ali, por trás de um poleiro,
Já estava se tremendo;
Tirando a roupa, ligeiro,
Fez uma reza e rolou
Por cima de um espojeiro.
250
247
Ibidem, p. 11.
248
CABRAL, João Firmino. O herói da floresta e a princesa encantada. Fortaleza:
Tupynanquim, 2006, p. 18.
249
CABRAL, João Firmino, 2006. Op. Cit., p. 13.
250
VIANA, Antônio Klévisson. A malassombrada peleja de Pedro Tatu com o lobisomem.
Fortaleza: Tupynanquim, 2002, p. 12.
155
O encontro com a terra é típico. É como se corpo e terra se misturassem
para gerar uma nova vida. Nesse caso, uma vida grotesca e monstruosa. No
entanto, a renovação é logo providenciada. As pessoas que vêem o homem
transformado em lobisomem, logo tratam de se defender e de fazê-lo voltar ao
estado normal. Pedro Tatu “fez o Sino-Salomão/ Ali, no meio do terreiro/ (rezou
o credo ao contrário);/ O bicho deu um berreiro!”
251
Confirma-se mais uma vez
o constante ciclo de renovação, morte e nascimento.
No cordel O cachorro encantado e a sorte da megera o rebaixamento é
ainda mais evidente. A descoberta do marido atesta isso:
- A vi abrindo uma cova,
Num ritual de magia.
Tirou um cadáver fora
Ali naquela agonia,
E rasgando a carne podre
Bem apressada comia.
Ao ver a cena macabra,
Fiquei tomado de horror,
As pernas enfraqueceram,
Meu rosto mudou de cor
Aquela mulher, pra mim,
Perdera todo valor.
252
Nesse caso, o encontro da vida com a morte, mas isso é rejeitado
pelo marido, pois tal atitude lhe provoca asco. A mulher se mistura aos dejetos
humanos não com o intuito de trazer a vida outra vez, mas para praticar o mal.
Todas essas constatações nos levaram à compreensão de que o
grotesco no cordel de metamorfose é causado pela forte atuação da
mentalidade cristã medieval no imaginário popular do Nordeste. Esse
251
VIANA, Antônio Klévisson. A malassombrada peleja de Pedro Tatu com o lobisomem.
Fortaleza: Tupynanquim, 2002, p. 15
252
VIANA, Antônio Klévisson. O cachorro encantado e a sorte da megera. Fortaleza;
Tupynanquim, 2002, p. 63 e 64.
156
imaginário, construtor de monstros repugnantes, levou-nos ao encontro de
várias possibilidades do grotesco no cordel de metamorfose, como seres
humanos transformados nos mais diferentes animais e praticantes de atitudes
repugnantes. Concluímos, pois, que os cordéis de metamorfose são obras que,
por meio de diversas histórias, usam o grotesco como recurso inventivo para
demonstrar o imaginário nordestino. O grotesco, como vimos, aparece como
tudo aquilo que pode ser qualificado como horrível, que provoca risos e é
terrificante. E o que pode ser isso? Não é mais do que tudo que está fora das
padrões impostos pela sociedade.
CONCLUSÃO
157
Ao traçarmos um paralelo entre a cultura popular medieval, por meio de
obras históricas e literárias, e a cultura popular do Nordeste, através de alguns
cordéis de metamorfose, nosso intuito foi encontrar o grotesco e os motivos
pelos quais ele existe em cada sociedade num exercício de comparação
embasado na Teoria da Residualidade. Mostramos que a mentalidade do
grotesco encontrado no cordel de metamorfose é um resíduo medieval que se
cristalizou no decorrer dos séculos e através da hibridação cultural e da
endoculturação alcançou a cultura do Nordeste. De acordo com o nosso
estudo, depois de termos verificado a existência e as características do
grotesco nos diversos períodos da humanidade, consideramos o grotesco
como aquilo que foge aos padrões do cristianismo estabelecidos na Idade
Média. Esses padrões permanecem residualmente no Nordeste e fazem com
que a não observância deles ocasione o grotesco.
Os cordéis de metamorfose por nós analisados trazem o grotesco nos
seus dois tipos: o terrificante e o cômico. Ao lermos esses cordéis, verificamos
um grotesco provocado pela forte atuação da mentalidade cristã medieval entre
o sagrado e o profano. As dualidades são inevitáveis, e também as
confluências dos dois diferentes que, em algum momento, podem se tornar
próximos.
Como pudemos observar nesse estudo, o cordel de metamorfose do
Nordeste é fruto do imaginário deste local que traz remanescências próximas
ou distantes, conscientes ou inconscientes e mostram a riqueza dessa
158
literatura. Os próprios cordelistas constatam isso no cordel O mistério da pedra
encantada:
Resgatamos essa lenda
Que é de nossa raiz
E o final dessa história
Que pena não foi feliz,
Mas transmiti-la a vocês
Assim nosso estro quis.
Evaristo e Julie Ane
Serviram de porta-voz
Pois transmitiram relatos
Do tempo dos seus avós
Antes escritos em crônica
Pela Rachel de Queiroz.
Leitor, com a nossa pena,
De forma justa e fiel
Versejamos uma crônica
Da nossa grande Rachel
Transformamos em romance
No estilo de cordel!!!
253
Se recordarmos o resumo do cordel feito no capítulo três deste trabalho,
veremos que esse cordel também nos lembra a temática de vários contos de
fada. A princesa é encarcerada por algum monstro e depois é libertada por um
jovem. Assim, constata-se a residualidade tanto a curto prazo, sendo o resgate
de uma crônica de Rachel de Queiroz, como também de épocas distantes,
como a dos contos de fada.
O grotesco é apenas um dos muitos aspectos remanescentes da
mentalidade cristã medieval que podem ser encontrados nos cordéis de
metamorfose. Muito se pode dizer ainda sobre essa tão forte ligação entre o
Nordeste do Brasil e a Europa medieval. Nas obras de cordéis, de uma forma
253
OLIVEIRA, Julie Ane e GERALDO, Evaristo. O mistério da pedra encantada. Fortaleza:
Tupynanquim, 2008, p. 16.
159
geral, assim como em outras literaturas, se olharmos com atenção, veremos
que, na verdade, nada é novo, tudo é residual.
160
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166
ANEXOS
Figura 1
254
254
JUAZEIRO, João Pedro do. O homem que virou macaco. Fortaleza: Folheteria Padre
Cícero, 2005.
167
Figura 2
255
Figura 3
256
255
CABRAL, João Firmino. O herói da floresta e a princesa encantada. Fortaleza:
Tupynanquim, 2006.
256
VIANA, Klévisson e LIMA, Arievaldo. O rapaz que virou barrão ou o porco endiabrado.
Fortaleza: Tupynanquim, 2002.
168
Figura 4
257
Figura 5
258
257
VIANA, Arievaldo e PAULINO, Pedro Paulo. O homem que se casou com uma serpente.
Mossoró-RN: Editora Queima-Bucha, 2006.
258
OLIVEIRA, Julie Ane e GERALDO, Evaristo. O mistério da pedra encantada. Fortaleza:
Tupynanquim, 2008.
169
Figura 6
259
Figura 7
260
259
VIANA, Klévisson. A moça que virou cachorra porque foi ao baile funk. Canindé-CE: Edições
Lamparina, 2006.
260
VIANA, Antônio Klévisson Viana. A malassombrada peleja de Pedro Tatu com o lobisomem.
Fortaleza: Tupynanquim, 2002.
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