
O trabalho da consciência mestiza é quebrar a dualidade sujeito-objeto que a mantém uma
prisioneira e mostrar, no seu trabalho, na carne e através das imagens, como a dualidade é
transcendida. A resposta para o problema entre a raça branca e a colorida, entre homens e
mulheres, está em cicatrizar a rachadura que se origina na fundação de nossas vidas, nossa
cultura, nossas linguagens, nossos pensamentos. Um desenraizamento sólido do pensamento
dualista na consciência individual e coletiva é o começo de uma longa luta, mas que pode, em
nossas melhores expectativas, nos levar ao fim do sequestro, da violência, da guerra.
(ANZALDÚA, 2001, p.96)
Indígenas gostam de milho, e como milho, a mestiza é o produto de um cruzamento,
desenhada para preservação sob várias condições. Como uma espiga de milho – um órgão
feminino que carrega sementes – a mestiza é tenaz e firmemente embrulhada nas cascas de
sua cultura. Como grãos, ela se agarra ao sabugo; com caules grossos e fortes raízes, ela se
segura firmemente à terra – ela sobreviverá à encruzilhada. (ANZALDÚA, 2001, p.97)
(Tradução minha)
23
Haraway dialoga principalmente com obras das mulheres da América do Norte, mas
algumas feministas de outros mundos coloniais também se tornaram referências importantes
em sua obra, como a vietnamita Trin Minh-ha, que formula a expressão “outras
inapropriadas” (inappropriate/d others), que se torna uma importante via de figuração para
Haraway, e a indiana Gayatri Spivac, dos “estudos da subalternidade” (SPIVAC, 1997), que,
por exemplo, oferecem uma teoria da colonização da Índia que desloca as narrativas de uma
“história dos modos de produção” (transição do feudalismo para o capitalismo) para uma
“história da dominação e exploração”. Associo a produção de Haraway sobre as ciências
naturais a este movimento de Spivac. Como feminista ciborgue, ao invés de subalterna, ela
re-escreve muitas passagens da história da biologia deslocando-a de uma “história da
evolução rumo a uma visão cada vez mais clara sobre a natureza” para uma “história da
dominação e exploração”.
Em “Manifesto Ciborgue”, Haraway elabora essa figura como uma metáfora capaz de
condensar, numa relação com a conjuntura político-econômica e científica-tecnológica do
final do século vinte, as várias figuras propostas por essas e outras teóricas como proposições
para uma consciência feminista no mundo racista e colonial: “mulheres de cor” (MORAGA e
ANZALDÚA, 1981), “mulheres do terceiro mundo estadunidense” (SANDOVAL, 2004),
“mestiza” (ANZALDUA, 2001), “sister outsider” (LORDE, 1984), “outras inapropriadas”
(MINH-HA, 1986-7), entre outras figuras de fronteiras que inspiraram a formulação política
deste novo híbrido. O feminismo ciborgue de Haraway foi concebido, ao menos em parte,
23 No original: “The work of mestiza consciousness is to break down the subject-object duality that keeps her a prisioner
and to show in the flesh and through the images in her work how duality is transcended. The answer to the problem
between the white race and the colored, between males and females, lies in the healing the split that originates in the very
foundation of our lives, our culture, our languages, our thoughts. A massive uprooting of dualistic thinking in the
individual and collective consciousness is the beginning of a long struggle, but onde that could, in our best hopes, bring
us to the end of rape, of violence, of war. (ANZALDÚA, s.d., p.96)” e “Indigenous like corn, like corn, the mestiza is a
product of crossbreeding, designed for preservation under a variety of conditions. Like an ear of corn – a female seed
bearing organ – the mestiza is tenacious, tightly wrapped in the husks of her culture. Like kernels she clings to the cob;
with thick stalks and strong brace roots, she holds tight to the earth – she will survive the crossroads. (ANZALDÚA,
2001, p.97)”