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O fato de lhes ter sido atribuído caráter canônico não lhes priva de originali-
dade e de importância documental incomparável. Mas aqui [a obra à qual es-
te texto introduz] eles são considerados num conjunto, como uma grandeza
literária que os diferencia de outros escritos. Seriam eles os escritos produzi-
dos em nome da tradição apostólica, ainda no primeiro século? Este argu-
mento que ainda se impõe na pesquisa pressupõe ingenuamente uma linha de
transmissão desde os apóstolos, mesmo que exclua uma quantidade conside-
rável de textos que também se atribuem a mesma origem (ficcional, em am-
bos os casos). Para ajudar no processo de definição do canônico e de sua
primazia como documentação histórica o critério canônico é auxiliado pelo
mito do ano 100. É como se existisse uma tênue, mas decisiva, diferença en-
tre o que se produz no primeiro século da Era Comum e o que se produz de-
pois. Como se magicamente os textos passassem a perder seu núcleo históri-
co e a lendária popular das comunidades gentílicas invadisse as narrativas a
ponto de desfigurá-las. Estas questões são de importância decisiva para per-
guntar pela forma em que os documentos do cristianismo primitivo se rela-
cionam com a história enquanto contexto. Se segmentarmos esta produção li-
terária pelo critério canônico, privilegiando os textos considerados mais an-
tigos (a despeito de textos fundamentais como o Evangelho de Tomé ou a
Ascensão de Isaías poderem ser datados no primeiro século mesmo não sen-
do canônicos), desconsiderando continuidades das problemáticas e tensões
deste incipiente grupo religioso no Mediterrâneo, no segundo século adentro,
que tipo de relação esperamos criar com o seu contexto?
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Nem mesmo a imagem fantasiosa do “conclave sem papa” escapou de críticas:
O que me incomoda são os lugares que Meier reserva, com uma ingênua na-
turalidade, para as quatro personagens designadas para saírem de lá com
uma fórmula de “consenso” universal sobre a figura do Jesus histórico: um
católico, um protestante, um judeu e um agnóstico. Cabe, de fato, frente a es-
ta imagem, uma pergunta: a partir de que visão histórica e religiosa Meier é
levado a reservar os quatro lugares? Isto é: o que qualificaria os quatro, e
somente eles, para responderem à pergunta: “Quem foi Jesus de Nazaré?” A
quem pertencem os “direitos autorais” da imagem histórica de Jesus? Qual
sua real representatividade para a elaboração de um documento como esse?
[o autor então propõe um “assembléia alternativa” composta por uma mãe de
santo do Jabaquara, um rezador de Itapira, um pajé açu de Jaguaripe, uma
rezadora da CEB Antônio Conselheiro, um pastor da Igreja da Graça do a-
campamento Nova Canudos do MST, e Mano Brown dos Racionais MC´s,
todos estes doutorados em história antiga ou ciências da religião] Muito
bem, esta “assembléia alternativa”, interessada em desenhar uma imagem
histórica comum de Jesus de Nazaré, que se encontraria talvez não em Har-
vard, mas em São Bernardo do Campo, chegaria com toda a probabilidade a
conclusões diferentes da primeira. Pois é de pontos de vista, de hermenêuti-
cas, que estamos falando. O que quero dizer é que, se a busca do Jesus His-
tórico, em sua versão mais contemporânea, pauta-se por uma declarada in-
dependência com relação aos dogmas e às proposições da teologia cristã, is-
so não significa automaticamente sua independência em relação à visão de
mundo que a esta corresponde social e historicamente. A idéia de que a figu-
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NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “O Judaísmo Antigo e o Cristianismo Primitivo em Nova Perspecti-
va”. In. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza; FUNARI, Pedro Paulo de Abreu; COLLINS, John Joseph
(orgs.).Identidades Fluídas no Judaísmo Antigo e no Cristianismo. p. 9. No prelo.