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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Patrícia Marques
Quaderna: a lírica erótico-amorosa de João Cabral de Melo Neto
MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2010
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Patrícia Marques
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica
Literária sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida
Junqueira.
SÃO PAULO
2010
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BANCA EXAMINADORA
________________________________________
________________________________________
________________________________________
À minha mãe, por me apresentar e confiar à vida.
À Caroline, pela vida fraterna.
Ao Djalma, pela continuidade da vida.
Agradecimentos
Agradeço ao Programa Bolsa Mestrado da Secretaria do Estado
de São Paulo, pela bolsa concedida.
À Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida Junqueira, pela orientação desta
dissertação e pela leitura atenta.
Aos meus mestres.
Aos meus pais e irmã, por tudo.
À Dinalva Diniz, à Sra. Natália de Brito e ao Miely de Araújo pelo
carinho próximo e energia positiva.
Aos amigos Rogério Almeida, Cintia Santana, e à pequena Sofia,
pelos coloridos grifos.
À Daniele Penteado Luiz e Flávio Sadao, pela agilidade.
Aos colegas educadores, pelo apoio positivo, em especial à
Elizabeth Ap. de Andrade, pela atenção.
À Diretora Patrícia Ribeiro Tavares Bellato, pelo auxílio
burocrático, incentivo e confiança.
À Maria Helena Mardegan Scabello (in memorian), por sua
onipresença.
Aos meus familiares.
Murilograma a João Cabral de Melo Neto
(...)
2
Sim: não é fácil chamar-se
João Cabral de Melo Neto
Força é ser engenheiro
Mesmo sem curso & diploma.
Pernambucano espanhol
Vendo a vida sem dissímulo;
Construir linguagem enxuta
Mantendo-a na precisão,
Articular a poesia
Em densa forma de quatro,
Em ritmos de ordem serial;
Aderir ao próprio texto
Com o corpo, escrever com o
Corpo;
Exato que nem uma faca.
Força é abolir o abstrato,
Encarnar pessoa física,
Apreender coisa real,
Planificar o finito;
(...)
Descobrir o ovo, a raiz,
o núcleo, o germe do objeto;
Ter linguagem contundente,
"A palo seco"; e portar
- Sem nenhum superlativo -
Olho e mão superlativos
Com o suplente microscópio.
Murilo Mendes
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo refletir sobre poemas do livro
Quaderna (1960), do poeta João Cabral de Melo Neto, a fim de apreender o nó
tensional que gera um lirismo às avessas do lirismo tradicional. Para alcançar essa
meta, levanta a seguinte indagação: Até que ponto o sujeito poético em Quaderna
materializa uma voz lírico-erótico-amorosa na linguagem poética de João Cabral de
Melo Neto? A fundamentação teórica que norteia este trabalho é composta por duas
vertentes: uma teórica, que buscou apreender por meio de teorias como as de Hugo
Friedrich e te Hamburger, o tipo de lirismo inscrito nos poemas selecionados; a
outra, teórico-crítca, que buscou, nas proposições poéticas do próprio poeta, as
possibilidades da tematização do feminino por uma veia erótico-amorosa. O trabalho
procura explorar, ao longo de três capítulos, a riqueza imagética dos poemas,
ressaltando primordialmente a abrangência poemática do discurso cabralino, no que
diz respeito à visualidade, plasticidade, concreção e sensorialidade. Entre outras
considerações, apreende-se em Quaderna uma temática lírico-amorosa que
enfatiza o feminino por meio de uma linguagem erótico-sensual que cria similitudes
entre mulher e elementos naturais, além de priorizar a própria escritura poética como
fonte de lirismo.
Palavras-chave: João Cabral de Melo Neto, Quaderna, lirismo, erotismo, imagem,
feminino.
ABSTRACT
The following essay is aimed to reflect the poems from the book Quaderna
(1960), by the poet João Cabral de Melo Neto. Its focus is to reflect on the tension
knot that generates a reversal lyricism from the traditional lyricism. In order to reach
this goal, the following questioning is raised: To what extent, does the book
Quaderna, materializes a lyric-erotic-loving voice in the poetic of João Cabral de
Melo Neto? The theoric reason that guides this paper is composed by two strands,
the first one on theoric that tried to apprehend in theories such as Hugo Friedrich’s
and Käte Hambruger’s, the lyricism type registered in Quaderna, the second strand
looked for in João Cabral´s criticism the possibilities of female thematization through
a loving-erotic vein. The paper tries to explore, throughout three chapters, the poems
imagery wealth,outstanding primarily the poetic width of Cabralian speech, that
concerns the visuality,plasticity,concretion and sensuousness. Among other
considerations, it´s aprehended in Quaderna the love-lyricism thematic that
emphasizes the female through a sensual erotic language that creates the similarities
between the woman and the natural elements, besides it also prioritizes the poetic
writing as a lyricism
Key words: João Cabral de Melo Neto, Quaderna, lyricism, eroticism, image,
female.
SUMÁRIO
Introdução ..............................................................................................10
1- Concepção sobre poesia ...................................................................17
1.1 – Concepção cabralina sobre poesia ......................................22
1.2 – Construção poética cabralina ..............................................28
2 – Cabral e a crítica ..............................................................................35
2.1 – Quaderna: na voz dos críticos ............................................42
3 – A lírica em João Cabral ....................................................................55
3.1 – A escritura em Quaderna ....................................................62
3.2 – O (des)velamento do feminino..............................................69
Considerações Finais .............................................................................80
Referências.............................................................................................82
Anexo .....................................................................................................86
10
INTRODUÇÃO
Por tempos, a origem da poesia foi envolta em mistérios. O termo poeta
surge no século V a.C. Antes disso o poeta era considerado “o homem com o dom
da palavra“ e justamente por isso um ser de função religiosa importante, pois era
quem se comunicava com os deuses, seu nome era aedo, vate ou bardo. Apesar
desse poder, sabe-se que Platão não queria a presença do poeta na República.
Corroborando o dito acima, Arnold Hauser enfatiza como os escribas eram infinitas
vezes superiores na hierarquia social de outras civilizações, como, por exemplo, a
egípcia:
Os compêndios escolares de escribas cultos fornecem a melhor
idéia da posição social subordinada do artista no Egito (...)
comparada com a posição desses escribas, a do pintor e do escultor
não parece ser muito honrosa (...) Isso evidencia que as artes
plásticas eram subestimadas em favor da literatura, a qual nos é tão
familiar através dos documentos oriundos da Antiguidade clássica
(HAUSER, 2000, p. 31).
Aristóteles, por sua vez, define a arte como uma vocação inata do ser
humano para a imitação. A base do gesto artístico é resultado da inclinação do
homem para a mimese. “A tendência para a imitação é instintiva do homem, desde a
infância.” (ARISTÓTELES, s/d, p.244). Sob esse ponto de vista, o homem tem uma
inclinação para cópias, entretanto, efetua esta cópia de maneira criadora,
engenhosa, a partir da emoção e da razão. O que Aristóteles postula, é inerente a
todo texto poético. Segundo Aristóteles, a poesia imita “os caracteres, as emoções e
as ações” (ARISTÓTELES, s/d, p. 231). Para ele, o poeta cria o ambiente do
possível, do verossímil, que o aproxima do desejado. Nesse sentido, “a poesia imita
nuances das diferentes faces do homem, uns melhores, outros piores e alguns como
são” (ARISTÓTELES, s/d, p.240). A arte o conduz à purgação de suas paixões e ao
equilíbrio para executar suas funções em sociedade.
Essa engenhosidade na criação artística, observada por Aristóteles, foi
empreendida por João Cabral de Melo Neto. A arte como criação foi também uma
das preocupações e parte integrante de seu projeto poético. Do mesmo modo, sua
predileção pela crítica levou-o a abordar o processo de sua produção poética de
modo racional. Em uma de suas entrevistas afirma:
11
Para mim, poesia é uma construção, como uma casa. (...) Eu
entendo o poético neste sentido. Vou fazer uma poesia de tal
extensão, com tais e tais elementos, coisas que eu vou colocando
como se fossem tijolos (MELO NETO, 1996, p.23).
Cabral afirma ainda ser seu primeiro livro um laboratório que indicava sua
predileção pela laboriosidade da construção textual, embora houvesse a intenção de
uma atmosfera noturna: “(...) imagens de aparência surrealista. Mas, na verdade
aparência, (...)” (In: ATHAYDE, 1998, p.100). Sua estreia deu-se em 1942 com o
livro A Pedra do Sono sob visível influência do Surrealismo, movimento que diz ter
deixado de lado. Qual o motivo de Cabral querer se distanciar do movimento
Surrealista? O poeta, quando entrevistado a respeito de um artigo que Antonio
Candido escreve sobre o Cubismo, faz afirmações oportunas também sobre o
Surrealismo:
(...) o Surrealismo, na minha opinião, sempre foi o traumatismo da
escrita. Como eu era absolutamente incapaz de fazer a tal escrita
automática, com a qual eu não concordava, e, ao mesmo tempo,
desejava continuar fazendo parte do grupo do Café Lafayette, eu
forjei um tipo de surrealismo, quer dizer, meu surrealismo era algo
construído. Quando li o artigo de Antonio Candido, me senti
encorajado a escrever desenvolvendo meu construtivismo (CABRAL,
1996, p. 24).
Cronologicamente situado na Geração de 45, Cabral diz não também a essa
filiação, pois, para ele, do ponto de vista literário, ela representa um retrocesso em
relação às conquistas de 22. Essa geração propõe uma volta ao passado, com a
valorização da rima, da métrica, do vocabulário erudito e das referências mitológicas.
Teve a intenção de retornar aos modelos literários parnasianos, com regras
clássicas de criação poética e rigor técnico. Além disso, foi passadista e inexpressiva
em termos de grandes autores. Para Cabral, a Geração de 45 não tinha
preocupação com uma renovação radical, somente extensão das conquistas
anteriores.
No período em que Cabral aparece, verifica-se que não havia um trabalho
coletivo em torno da poesia, um posicionamento conceitual a respeito da produção.
Não havia, como em outros momentos literários, uma articulação entre autores na
construção de um projeto literário. João Cabral foi incisivo em reivindicar seu
12
afastamento da geração de 45, dada a sua procura de uma nova objetividade.
Haroldo de Campos declara:
(...), a assim dita Geração de 45 encarnou, sobretudo, uma nostalgia
restauradora de cânones pré-modernistas, aliada, frequentemente, a
uma sensibilidade que se fixaria numa faixa gustativa anterior ao
próprio simbolismo, quase nunca perturbada no plano da metáfora
(...) pela revolução verbal que está já na obra dos mais importantes
poetas simbolistas (...). A poética de 45 cultiva preferentemente o
termo nobilis, a palavra erudita ou menos corrente; põe de
quarentena as dissonâncias imagéticas (...). Já JCMN está no pólo
oposto dessas preocupações. Sua poesia se prende, nitidamente, a
uma constante estilística que pode ser puxada, sem solução de
continuidade, desde 22: (...) e vai encontrar o seu lugar natural na
linguagem reduzida da poesia cabralina. (CAMPOS,
1992, p. 78)
Na esteira do pensamento haroldiano João Cabral, assim como o poeta
Jorge Luís Borges (2001), não aceita rotulações de estilo literário. Acredita que cada
poeta apresenta um estilo distinto que resulta em uma peculiar produção poética.
Borges chama de credo o estilo individual de cada poeta: “Suponho que haja tantos
credos, tantas religiões, quantos são os poetas” (BORGES, 2001, p.103). Para
Borges, o que importa é que a poesia esteja viva. Para isto, o poeta deve ter total
atenção no momento da construção, deve sentir cada palavra e perceber a unidade
do verso, o poeta é o artista que manipula as palavras como deseja, criando seu
estilo individual. Jean Cohen, nesse sentido, compara o poeta ao artesão: “O poeta
é poeta não pelo que pensou ou sentiu, mas pelo que disse. Ele é criador não de
ideias, mas de palavras.” (COHEN, 1966, p.38)
Os aspectos que sempre motivaram nossos estudos sobre João Cabral
foram a plasticidade de sua poética, a exortação aos devaneios e sua insistência em
explicar sua arte. A criação literária defendida aqui como trabalho intelectual distante
da inspiração e do sentimentalismo, corrobora-se em João Cabral que representa o
poético racional, que não transborda, mas que pensa e produz linguagem. Tal
plasticidade aproxima o poeta de um arquiteto que com o paradoxo da emoção
racionalizada desenha uma casa.
A linguagem reduzida e seca de João Cabral vem a ser outro ponto
inquietante de seu constructo. Entendemos que a rudeza e a secura das palavras
na poética cabralina, paradoxalmente, tornam-se leves pela precisão do poeta ao
empregá-las. Essa leveza toma espessura de acordo com a concreção da palavra
13
no poema que se assume como corpo e sensação. É o sensualismo, fazendo-se
linguagem, é a razão trazendo deleite na profunda emoção. Não concordamos com
Cabral quando diz que não é lírico, ou melhor, buscamos apreender que lirismo é
postulado na poética cabralina.
Quando se fala da leveza cabralina, reportamo-nos ao conceito de leveza de
Ítalo Calvino como procedimento estético e processo construtivo: “(...), a leveza é
algo que se cria no processo de escrever, com os meios linguísticos próprios do
poeta, (...)” (CALVINO, 2002, p.22). O processo construtivo de João Cabral o é
simples ou linear, reafirma o que Calvino propõe: é próprio, único. Poemas que por
vezes levaram anos a serem escritos, apontam para rigoroso processo de
construção. Este trabalho busca visualizar alguns ângulos desse caleidoscópio
cabralino, dessa geometria circularmente quadrática de Cabral, sem qualquer
proposta de torná-la única, o que incorreria em erro e ingenuidade.
A análise dos poemas de João Cabral pretende verificar o tensional que
gera este lirismo às avessas, ou melhor, o lirismo não imposto pelo poeta, mas pela
linguagem. Tal lirismo descrito por Hugo Friedrich no livro Estrutura da Lírica
Moderna: da metade do século XIX a meados do século XX, de 1978, consiste na
lírica como linguagem sagazmente trabalhada, a qual deixa de ser validada por seus
significados linguísticos, para ser reforçada por suas consonâncias e dissonâncias.
Nesse sentido, lirismo é a linguagem que quer ser compreendida pelos seus efeitos
não comunicáveis, é a linguagem que perturba, transcende e transforma a língua.
A concepção de Friedrich sobre o lirismo moderno refere-se ao poeta como
operador particular da língua, como transformador do modo de ver o mundo,
diferenciando-o do poeta romântico que produz a partir de um estado de ânimo
pessoal, individualista. Isso não impede que a poesia nasça da alma, contudo é algo
diferente do ânimo pessoal. A lírica moderna acomoda poemas desenvolvidos por
temas mais contrapostos que descritivos, culminando num texto polifônico que não
pode ser decomposto, separando os valores de sensibilidade.
Sob a luz das considerações de Friedrich sobre lírica moderna, selecionamos
a poética de João Cabral, apreendida no livro Quaderna (1960). Como um recorte
do lírico moderno, este livro enfatiza uma temática lírico-amorosa por meio da
imagem do feminino, cuja construção se faz em uma linguagem erótico-sensual que
cria um espaço de similitude entre mulher e elementos naturais, remetendo a
imagens nordestinas e espanholas. Alguns críticos, como João Alexandre Barbosa,
14
Luiz Costa Lima e Marta Peixoto declaram que Quaderna é exemplo de uma
peculiar veia temática dirigida ao erotismo e ao lirismo concretizados na imagem
feminina.
Frisa-se, no entanto, que o próprio poeta se distanciou do sentido mais
genérico da palavra “romantismo”. Temia aproximar sua poesia de um
emocionalismo inocente, enfatizava seu antilirismo por acreditar que
sentimentalismo e emoção estão sempre próximos à ideia primeira de lírica.
Afirmava: “(...) o poeta, a partir do momento em que se torna exclusivamente lírico,
passa a falar dele próprio. Onde está a poesia que fala das coisas?” (MELO
NETO, In: Athayde, 1998, p. 55). Essas “coisas”, concretizadas na linguagem
poética de Cabral, levam-nos a refletir sobre sua veia lírico-erótica-feminina.
Com essas premissas, nossos questionamentos envolvem o livro Quaderna
no que diz respeito ao tipo de lirismo nele apreendido: até que ponto há uma voz
lírica operacionalizada em Quaderna? Como é materializada essa voz na linguagem
poética de João Cabral de Melo Neto? Como é constituído esse ambiente lírico-
erótico-amoroso na poética de João Cabral? Os elementos naturais água, terra,
fogo e ar são constituintes processuais da imagem feminina sensualizada em
Quaderna? São essas as questões que o trabalho propõe-se a responder.
Alguns críticos confirmam a imagem feminina na poética cabralina. João
Alexandre Barbosa, por exemplo, em A Imitação da Forma: uma leitura de João
Cabral de Melo Neto (1975), assim como no ensaio intitulado A lição de João Cabral
(1996), que faz parte dos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira
Salles, discorre com propriedade sobre as características e a maneira ímpar de
Cabral produzir seus poemas, num ambiente lúcido e límpido. Revela uma vertente
temática até então desconhecida em Cabral: ao analisar poemas com a figura da
mulher em Quaderna. Afirma: “Na verdade, dos vinte textos que compõem o livro,
nove estão dedicados à composição de um espaço que seja possível falar da
mulher,(...)” (BARBOSA, 1975, p.158).
Luiz Costa Lima (1995), em Lira e Antilira: Mário, Drummond e Cabral, na
última parte do livro, pondera sobre o projeto poético de João Cabral de Melo Neto,
ao refletir sobre influências recebidas e incorporadas em seus poemas. Discute
criticamente alguns poemas e destaca uma estranheza que produz um diferencial
em Quaderna e que, segundo Hugo Friedrich, é característica fulcral da arte
moderna: a visualidade da cena numa temática amorosa.
15
Em Poesia com Coisas, de 1983, Marta Peixoto perpassa diacronicamente
a obra de Cabral, dirigindo seu olhar para o rigor do poeta em cada poema
produzido. Assim como Costa Lima e João Alexandre, depara-se com uma possível
inovação. Peixoto afirma encontrar um “eu” na poética de João Cabral, porém afirma
encontrá-lo somente no livro Quaderna: “O eu aparece poucas vezes e só em
Quaderna” (PEIXOTO, 1983, p.150).
José Ferreira de Lucena Júnior, em sua dissertação de mestrado, defendida
em 17 de março de 2009, intitulada Discurso erótico em três poetas modernistas:
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto,
analisa o discurso poético desses poetas a partir da perspectiva analítica
desenvolvida por Dominique Maingueneau. Considera o espaço discursivo como
uma rede de interação semântica, com a finalidade de mostrar como o erotismo é
visto pelos autores. Além desses, outros críticos também aludem para essa
possibilidade de leitura em João Cabral.
Essa insistência em dizer-se antilírico e a reafirmação de críticos sobre o seu
lirismo nos leva a reler a sua poesia sob esse prisma. Estamos também atentos, de
um lado, à crítica do próprio João Cabral em relação à poesia brasileira:
(...) A poesia brasileira é uma poesia essencialmente lírica, e por isso
eu me situo na linha dos poetas marginais porque sou
profundamente antilírico. Para mim, a poesia dirige-se à inteligência,
através dos sentidos (MELO NETO, In: Athayde, 1998, p.55).
E, por outro lado, às críticas sobre sua obra, como a de João Alexandre
Barbosa:
Deste modo, a maior contundência deste lirismo erótico-amoroso
está não apenas naquilo que é dito como no próprio jogo das
articulações sintáticas, criando trânsitos e interrupções (verdadeiras
pulsões) entre o dentro e o fora termos com os quais João Cabral
arma a rede de seu dizer erótico (BARBOSA, 1986, p.125).
Para contrapor e propor uma leitura em Cabral, em especial, de alguns
poemas do livro Quaderna, valemo-nos de propostas teórico-críticas que
apreendem conceitos de lírica moderna. Käte Hamburger, por exemplo, no livro A
lógica da criação literária, de 1986, aponta para uma conceituação do lírico que
hoje é compreendida como fenômeno linguístico-artístico. A compreensão deste
fenômeno dar-se-á dentro do sistema de enunciação da linguagem, no qual o sujeito
16
enuncia a proposição com o objeto enunciador. A linguagem é estruturada de modo
que se chegue ao objeto por uma reinterpretação do poeta. Essa linguagem,
resultante da relação ‘sujeito-lírico’ e ‘sujeito-objeto’ é a representação lírica. Isso
nos faz pensar que o lirismo se faça presente pela palavra: linguagem poética e não
pela manifestação de um sujeito pessoal, falante, como era identificado o lírico
clássico.
Nosso trabalho se divide em três capítulos. O primeiro, intitulado
Concepção sobre poesia”, apresenta considerações de poetas e teóricos sobre
poesia e sobre a arte literária, traz também a exposição do pensamento de João
Cabral acerca de poesia, do ato da escrita e, principalmente, da construção poética.
O segundo capítulo, denominado “Cabral e a crítica”, traz um recorte da
fortuna crítica que circunda a produção literária de Cabral, destacando a crítica que
buscou o lirismo, a concretude e a imagem na obra cabralina, principalmente a que
apreendeu o livro Quaderna.
Por fim, o terceiro capítulo, intitulado “A lírica em João Cabral”, apreende o
modo como se o lirismo em João Cabral, como a mulher é eroticamente (des)
velada silenciosamente, sem transbordamento em poemas de Quaderna.
17
CAPÍTULO 1 - CONCEPÇÃO SOBRE POESIA
“Empurrar a razão para os seus limites conduz delírio.
Edgar Morin
Acredita-se a poesia como indefinível, por sua ampla gama de significações
e até mesmo por sua condensação. Como teorizar sobre um material que em
diferentes mãos traça rumos diversos e contraditórios? Borges afirma:
(...), se preciso definir poesia, e se me sinto um tanto hesitante, se
não tenho muita certeza, digo algo como: “Poesia é a expressão do
belo por meio de palavras habilmente entretecidas.” Essa definição
pode ser boa o suficiente para um dicionário ou um manual, mas
todos sentimos ser bastante frágil. Existe algo muito mais importante
(BORGES, 2001, p.26).
É a definição desse “algo muito mais importante” da poesia que buscam os
estudiosos de literatura. Tem-se a consciência de que o objeto de estudo é artístico,
e sua teorização não pode ser técnica. Não é função desses estudiosos formular um
manual de leitura de poesia, muito menos construir um guia a ponto de possibilitar o
melhor caminho para uma correta leitura de poesia, porém é necessária a produção
de algo teoricamente palpável e ao mesmo tempo sensível.
O leitor de um texto sobre teoria ou análise de poesia não pode ter o
sentimento que o poeta Jorge Luís Borges (2001, p.11) dizia ter quando folheava
livros de estética: a sensação de que lia obras de astrônomos que nunca
contemplavam as estrelas, em virtude da escritura estar muito longe do objeto
contemplado.
Desse modo, o papel da crítica deve ser de estreitamento entre leitor-obra.
O leitor procura na arte poética uma relação de conhecimento de mundo, do real
poder da catarse e da mimese, do reconhecimento do ser. O crítico, enfatizando a
linguagem e a imagem literária, propicia a aproximação entre leitor-obra-escritor.
A palavra poesia, que vem do grego, significa criação, fabricação,
confecção. Pode-se dizer que poesia não existe sem a elaboração da linguagem.
Arnold Hauser, no livro História social da arte e da literatura (2000), traça uma
linha histórica dos primórdios da poesia, afirmando que a princípio ela se apresenta
oral, interligada à música, ao canto e à dança. Era anônima e coletiva,
18
representando os anseios religiosos. Nesse momento, traços de individualidade não
são reconhecidos nas produções primitivas, aliás, a ideia de um texto ser posse de
um autor surge apenas no culo XIX. A poesia falava sobre os anseios de uma
sociedade, de uma comunidade. Tratava de fatos circunstanciais e dos mais
variados temas como profano, amoroso e satírico, entre outros. Era desenvolvida e
utilizada para efeito ritualístico. Também era composta de elementos extrapoéticos
que envolvem performances corporais.
No livro Na madrugada das formas poéticas (2002), Segismundo Spina
revalida os apontamentos de Hauser, e tece considerações de como a estética da
poesia primitiva influenciou o formato que a poesia tem hoje. Enumera pontos
estéticos que se apresentam na poesia primitiva e que sutilmente persistem na
poesia moderna.
A estrutura poemática admite três dimensões fundamentais: a do
verso, a da estrofe e a do poema. Seria impossível um inventário
sistemático dos tipos de estrutura poemática vigente em todos os
povos e em todas as épocas. Quem lança os olhos sobre as duas
formas de poesia a dos povos naturais e a dos civilizados verá
entretanto que certos fatores comuns entre elas. A arquitetura do
poema está intimamente condicionada ao tipo de sensibilidade de um
povo; ao temperamento artístico e ao capricho de seus compositores;
às inovações constantes da estrutura musical; à introdução de ritmos
estrangeiros; à dialética do próprio conteúdo poético; à natureza do
mesmo conteúdo, a certas formas de raciocínio; a certas condições
cênicas das representações dramáticas; a numeração mágica e
finalmente ao gosto artístico da época. (SPINA, 2002, p. 97)
Com isso percebe-se que a poesia, mesmo anônima, apresentava
parâmetros estéticos, embora não se dispensasse total atenção à linguagem
utilizada na composição poética.
Jean Cohen no livro Estrutura da linguagem poética (1966) realça as
questões estéticas do poema e tece suas considerações desde a época clássica,
momento em que poesia era nomeação de um gênero literário diferenciado,
simplesmente, por ser um texto em versos. Salienta que hoje as considerações são
mais amplas e designou-se observar no poema sua impressão estética particular.
Cohen considera a poesia como objeto da poética e afirma que a poesia
desenvolveu a consciência de si mesma a partir do Romantismo. Com essa
afirmação de Jean Cohen, percebe-se a arte poética como um ser vivo que se
19
desenvolve e se aprimora com o passar dos tempos, adequando-se às
necessidades de uma época e de uma sociedade.
Sobre o tempo da poesia, Benedetto Croce (1967) afirma que ela renasce de
tempos em tempos, é renovada a cada processo de expressão criativa,
considerando o “eu” que se modifica. Croce salienta, ainda, que o caráter poético
não se dará no âmbito do sentimento particular, e que a totalidade da poesia se faz
no encontro consistente entre o “eu” e o universal, presentificando-se na linguagem
que transfigura o sentimento e aplaca opostos e iguais harmonizando-os. Croce,
nesse sentido, firma a atemporalidade da harmonia poética.
A harmonia na poesia está ligada ao significado contextual do poema, ou
seja, ao que está na escritura, às figuras retóricas, aos sintagmas e paradigmas
previstos no corpo do texto. Segundo René Wellek e Austin Warren (2003), a
harmonia estilística é alcançada na utilização da palavra necessária ao texto, no que
diz respeito a sinônimos, homônimos e no que tange à carga sonora, enfim, aos
componentes linguísticos que influenciam a produção poética.
A linguagem poética não está no mesmo patamar do senso comum. É
burilada pelo poeta para alcançar o ápice de ser imagem que representa o possível,
que imita por meio de nuances da escritura. Sobre a linguagem poeticamente
construída, Jorge Luís Borges (2001) diz que no momento da construção é preciso
que o poeta sinta cada palavra e perceba a unidade do verso. O poeta é o artista
que manipula as palavras como deseja, criando seu estilo individual. Cohen tem a
mesma visão de Borges ao afirmar que “O poeta é poeta não pelo que pensou ou
sentiu, mas pelo que disse. Ele é criador não de ideias, mas de palavras” (COHEN,
1966, p.38).
Boris Schnaiderman (1984) trouxe à luz teorias de Maiakóvski sobre o fazer
versos. Ressalta que o primeiro ponto é o de não haver regras para se escrever
poesia, porém compara a execução do poema com o jogo de xadrez, afirmando que
não são necessárias regras, porém brilhantes estratégias, estratégias de guerra. O
poeta deve desestabilizar em cada situação, criar ou chegar ao inesperado,
desorientar em cada verso, em cada rima, como o jogador em cada movimento.
Defende, ainda, que cada poeta deve elaborar seu processo de criação e tender
sempre para seu estilo particular.
Esse fazer poético, acredita Paul Valéry, é uma questão individual de como
manipular a linguagem. Declara que “(...) cada autor explora as palavras de acordo
20
com suas tendências, (...)” (VALÉRY, 1999, p.202) e é a tendência ou vivência do
poeta que transformará a palavra em palavra poética. Expõe ainda que podemos
observar palavras que usualmente não interferem numa frase, tendo o simples
intuito de comunicação. Essa mesma palavra, entretanto, dentro de um contexto
poético pode causar estranhamento, fazendo o leitor acreditar que tem mais funções
do que dizem os dicionários e as gramáticas.
Apesar dos estudiosos desenvolverem uma preocupação com a
manipulação da linguagem, visando à construção do texto, em nível sonoro, sintático
e semântico, ainda espaço para o imprevisto. O poético é espaço propício para a
criação. Destarte, como ler um poema sem deixar transparecer a relatividade
significativa das palavras ou como enredar uma única leitura sem identificar a
empregabilidade unívoca da palavra em cada verso?
Paul Valéry (1999) afirma ainda que a poesia é a arte da linguagem e que
produz sensações e imagens enraizadas no corpo da palavra. A imagem é o perfil, a
dimensão condensada da representação verossímil da palavra.
Alfredo Bosi (2000), para reafirmar a consistência das imagens construindo
linguagem, elucida que a representação não é o decalque de um objeto, ela é
construída por meio de um complicado processo de organização perceptiva desde a
infância. A imagem nunca é um elemento isolado, mas tem passado e presente e
uma continuidade que a mantém viva. Confirmando o que o autor de O ser e o
tempo da poesia diz, imagem no poema é palavra articulada, que representa e nos
faz experimentar o que o homem sente, revelando seus sentimentos e percepções.
Roland Barthes (2001) sustenta que a linguagem poética é caracterizadora
da literatura ao afirmar que o texto literário é construído não pela mensagem, mas
pelo jogo de palavras, presentificado no corpo do poema. O escritor desloca as
palavras levando-as para onde quer, tece o seu discurso fora do senso comum,
representa o real por meio do literário. Nesse processo, não se pode desvincular
imagem, palavra e discurso, quando se trata de poesia. Os três elementos coabitam
a literatura, são matéria prima para a produção da arte literária. No entanto,
prevalece na construção poética a autonomia do autor, além das inscrições de sua
época. O poeta intenta fazer, construir, lapidar a palavra, sua matéria bruta, e
transformá-la em cristal específico.
É ingênuo acreditar que tudo o que foi imaginado inicialmente pelo artista se
encontra no poema. Assim a distância entre os dois sujeitos-objetos será marcada
21
pela propulsão da palavra. Palavra que, mesmo engastada no seu uso cotidiano, é
habilmente trabalhada para transformar-se em linguagem poética. No momento da
concepção da obra, o poeta “quer fazer”, não “quer dizer”, como disse Valéry (1999).
Para “querer fazer”, a palavra precisa ousar combinatórias imprevistas, mesmo que
a gramática da língua e o senso comum desautorizem-na. assim proporciona
uma experiência limítrofe que articula a palavra dentro das necessidades do poema.
O labor poético imprime à palavra a carga semântica que deve possuir no
texto. Yuri Tynianov (1975) diz que a palavra existe significativamente dentro de uma
proposição, destaca-se dentro de seu campo semântico, quando utilizada dentro de
um contexto, não perdendo sua unidade, mas expandindo-se de acordo com a
proposição experimentada. O autor completa: “A palavra não tem um significado
preciso. É um camaleão no qual se manifestam não somente nuances diversas, mas
às vezes também colorações diferentes” (TYNIANOV, 1975, p.5). O poeta não
ignora o significado da palavra e sabe que pode experimentá-la em campos
semânticos diferenciados, e em cada experimento a palavra revela um singular
valor. Ainda sobre esse valor singular da palavra no texto poético, Tynianov
sublinha:
Esquece-se o fato de que na palavra estão presentes elementos que
têm valor diverso de acordo com a sua função. Um elemento pode
estar em evidência em detrimento de outros que por isso sofre
deformação e, neste caso, se reduzem a um nível de acessório
neutro. A palavra não é utilizada fora do momento da construção
literária, é neste momento que sua utilização é significativa
(TYNIANOV,1975, p. 8).
A poesia dilata assim os limites semânticos, sintáticos e as combinatórias
textualmente possíveis e cria uma gramática (im)possível. Com base nas
semelhanças e dessemelhanças ou na afinidade entre palavras normalmente
distantes no paradigma da língua, elabora-se o raciocínio poético que rompe a lógica
discursiva.
1.1 – Concepção cabralina sobre poesia
É incomum imaginar um arquiteto influenciando um poeta, desde que esse
poeta não seja João Cabral de Melo Neto. Cabral sempre fez questão de afirmar que
22
sua obra é construída a partir de lucidez e racionalidade. Podemos também
compreender essa influência sob a égide da visualidade ou do alicerce que é
essencial à arquitetura.
A lucidez defendida por Cabral se fundamenta também nas influências que
recebeu do arquiteto Le Corbusier:
Nenhum poeta, nenhum crítico, nenhum filósofo exerceu sobre mim a
influência que teve Le Corbusier. Durante muitos anos, ele significou
para mim lucidez, claridade, construtivismo. Em resumo: o
predomínio da inteligência sobre o instinto. (MELO NETO, In:
Athayde, 1998, p.133)
Numa conferência proferida por Le Corbusier, na Argentina, presente no livro
Precisões (2004), ele traça apontamentos a fim de demonstrar quais preocupações
um arquiteto deve ter para desenvolver seu projeto e, passo a passo, rascunha os
princípios de uma construção. Divide essa construção em dois eixos: “Abaixo da
linha: aquilo que é. Acima da linha: aquilo que sentimos.” (LE CORBUSIER, 2004,
p.47).
23
Seu desenho traça três bases abaixo da linha, intitulando-se: “Técnica:
materiais; Sociológico: equilíbrio social; Econômico: padronização”. Afirma que
essas três bases conduzem à perfeição e à liberdade. Acima da linha, esboça um
cachimbo e uma nuvem e os chama de “Lirismo: criação individual, valores eternos”.
O patamar nomeado por Le Corbusier como “Lirismo” é o andar no qual se
firmará a criação individual, o momento da concepção, aquele que trará as
características do projeto do criador e que conjugará os valores que ficarão
impregnados na obra. Pode-se entender, pela ótica de Le Corbusier, o lirismo como
concepção artística, como instante do criador. É interessante notar que o lírico
aparece topograficamente superior à razão. Nesse sentido, ser lírico é construir com
as emoções, é desenvolver um projeto que fora elaborado a fim de criar emoções,
não puramente descrevê-las. João Cabral pensa a poesia do modo como Le
Corbusier pensa a arquitetura ao afirmar: “A obrigação do poeta, repito, é criar um
objeto, um poema, que seja capaz de provocar emoção no leitor” (MELO NETO, In:
Athayde, 1998, p.29).
Nessa afirmação do poeta está embutida a ideia de não ser emotivo, ou
seja, o poeta não tem a intenção que o leitor sinta a sua emoção, espera que o
poema produza o instante emotivo no leitor. A impessoalidade cabralina está em não
descrever seus sentimentalismos, mas deixar o leitor encontrar o instante da catarse
por meio do poema, “Pois o homem que quer ler-se no que lê, quer encontrar-se
naquilo que ele é incapaz de fazer” (MELO NETO, 1999, p.736). Outro ponto em
comum entre o arquiteto e o poeta está na questão da criação individual, ou melhor,
no lirismo como instante de criação. Do mesmo modo como Le Corbusier traça seu
projeto, Cabral afirma: “A criação inegavelmente é individual e dificilmente poderia
ser coletiva” (MELO NETO, 1999, p. 736). Essa criação individual deve ser
identificada por seu público, o poeta que fala da beleza que somente ele e
descreve suas emoções, não as recria para seu leitor. O instante de criação é
individual e não individualista, esta diferença é essencial no momento da escrita. O
poeta individualista concebe um poema que registra ecos de sua voz e experiência,
enquanto a produção individual marca traços o arbitrários que legitimam o projeto
poético e incorpora significados concretos à voz do poeta.
Nessas circunstâncias o processo de construção é um dos momentos
significativamente individuais e precisos para o poema não se tornar eco, ou falação
24
individualista, é o instante do exercício poético de transmutação da linguagem
comunicativa em linguagem poética.
O exercício da escrita é individual no sentido de ser o momento em que
poeta e obra encontram-se, encaminham-se para o texto desejado. É no ato da
criação que se experimenta as palavras, exclui-se as indesejadas e busca-se a que
melhor completa o pensamento. É nesse instante que o poeta toma posse do objeto,
e ilumina-o, observa-o por todos os ângulos e escolhe as melhores construções
semânticas e sintáticas, as construções que melhor desenham seu objeto.
Sobre esse individual momento da criação, diz Edgar Allan Poe:
Compus essa estância, nesse ponto, primeiramente porque,
estabelecendo o ponto culminante, melhor poderia variar e graduar,
no que se refere à seriedade e importância, as perguntas
precedentes do amante e, em segundo lugar, porque poderia
definitivamente assentar o ritmo, o metro, a extensão e o arranjo
geral da estância, assim como graduar as estâncias que deviam
preceder, para que nenhuma delas pudesse ultrapassá-la em seu
efeito rítmico. Tivesse eu sido capaz, na composição subsequente,
de construir estâncias mais vigorosas, não teria hesitações em
enfraquecê-las propositadamente, para que não interferissem como
efeito culminante (POE, 2000, p.411).
Esse excerto de Filosofia da Composição, de Edgar Allan Poe, é aqui
usado não como ilustração do momento criativo, mas principalmente para
percebermos que a escritura do poeta revela que ele pensa, ou melhor, o que ele
deseja para aquela obra. Essa descrição de Poe é a explicação didática do ‘tijolo
sobre tijolo’ dito por Cabral, mas um elemento intangível na obra, pois ninguém
consegue pensar em absolutamente tudo. No entanto, pode-se entender que a
escritura impõe suas necessidades, conforme o poema vai tomando corpo, ele
também indica as possibilidades de composição semântica. Como diz Poe:
“Percebendo a oportunidade que assim se me oferecia, ou, mais estritamente, que
se me impunha no desenrolar da composição, estabeleci na mente o clímax, ou a
pergunta conclusiva (...)” (POE, 2000, p.411). Poe traz à luz o suor da concepção
poética, apresenta aos seus leitores o que e como pensou sua obra. Deste modo, a
arte literária não é fruto de um “sutil frenesi” (POE, 2000, p.407), mas um trabalho
pensado, medido, planejado sob total domínio do poeta. Está em suas mãos, o
poder de variação da obra “melhor poderia variar”, identifica-se também a
determinação do poeta, cabe a ele determinar o momento em que deve interferir no
25
processo para alcançar o objetivo desejado “enfraquecê-las propositadamente, para
que não interferissem como efeito culminante”. Tais afirmações lembram as do poeta
pernambucano.
Cabral sempre insistiu na produção poética como um trabalho sério e
profissional, como afirma em depoimento à revista Movimento, em abril de 1976:
(...) na verdade eu acho que minha poesia não é profissional porque
eu não vivo dela. Mas eu sou profissional na medida em que, desde
que descobri a poesia, eu não penso em outra coisa. [...] Eu sinto
que nasci mesmo para escrever poesia, de forma que eu procuro
fazê-lo com maior seriedade. Eu sou um poeta que trabalha
imensamente. A poesia que eu faço não é absolutamente diletante
ou gratuita. Eu a faço como se fosse ela que me desse dinheiro para
viver. Mesmo sabendo que ela não dá, e sim minha carreira
diplomática (MELO NETO, In: MAMEDE, 1987, p.152).
Por pensar na concepção poética como resultado de um trabalho
profissional é que João Cabral não acredita na poesia como advento da inspiração,
não aceita o poeta como um ser passivo que inerte espera o poema,, “,... sem jamais
forçá-lo a ‘desprender-se do limbo’” (MELO NETO, 1999, p.730). Na Conferência
pronunciada na Biblioteca de São Paulo em 1952 e posteriormente publicada sob o
título “A inspiração e o Trabalho de Arte”, Cabral separa duas famílias de poetas e
tece considerações sobre cada uma delas, por vezes de maneira irônica. À medida
que caracteriza cada família de poetas vai deixando claro não conseguir pensar num
poema que tome corpo sem um trabalho de transpiração e não de inspiração:
É inegável que existam autores fáceis, cujo interesse estará sempre
em identificar facilidade com inspiração, e autores difíceis, pouco
espontâneos, para quem a preocupação formal é uma condição de
existência (MELO NETO, 1999, p.726).
Sobre os poetas inspirados, Cabral afirma que seus poemas são frágeis, não
são poemas que se firmam sobre algum objeto, apenas o comunicam. Esses poetas
fazem do poema um meio de expressão transmissor, uma mera comunicação
pessoal, um depoimento. Afirma que “A poesia para eles é um estado subjetivo [...]”
(MELO NETO, 1999, p.729), e o leitor se coloca dentro de tal experiência. Cabral
aponta para o empobrecimento técnico desses poetas no trato com a palavra e a
26
linguagem, implicando poemas que o parecem um organismo que carrega
implicitamente uma tensão, mas são fragmentos alocados num mesmo bloco.
Os poetas que se comunicam por meio de seus poemas querem fazer parte
de um espetáculo, por vezes desejam ser mais que sua obra, estão no palco antes
da obra, como se a expressão de suas personalidades devessem se inscrever com
mais intensidade que a própria criatura. Fazem isso para garantir autenticidade e se
esquecem que a obra deve ser autêntica por sua originalidade, pela catarse de ser
arte.
A outra família de poetas, dentro da divisão estabelecida pelo autor, os que
pensam e produzem antagonicamente àqueles, apresentam marca de
individualidade, mas não de imposição de personalidade. Atentam para a poesia
como projeto poético do poeta, sendo reconhecido pela autenticidade de sua escrita.
Assim consideramos a individualidade como processo criativo, como afirma Cabral:
Do mesmo modo que ele cria sua mitologia e sua linguagem pessoal,
ele cria as leis de sua composição. Do mesmo modo que ele cria seu
tipo de poema, ele cria seu conceito de poema, a partir daí, seu
conceito de poesia, de literatura, de arte. Cada poeta tem sua poética
(MELO NETO, 1999, p. 724).
João Cabral aponta, sobretudo, o trabalho de limpeza e burilamento das
palavras e da linguagem na composição do poema. Esse trabalho deve ser um
trabalho de consciência poética, o poeta deve saber o que está a mais em seu
poema, o que serve e o serve: “(...), a consciência aguda do que nele é eco é
preciso eliminar, a qualquer preço” (CABRAL,1999, p.734). Acreditamos ser esse
trabalho de manuseio da linguagem que impregna o poema das digitais do poeta,
deixando não às vistas o poeta, mas suas marcas individuais. A digital é única,
particular e intransferível, o que faz cada obra ser expressão de seu autor, e não ser
seu autor. O poeta conduz a palavra para seu grau zero, o que Paulo Leminski
chama de fronteira ou abismo:
As nguas amam seus poetas porque, nos poetas, realizam seus
possíveis.Um Fernando Pessoa, um Maiakóvski, um Pound, um
Cummings, um Cabral, (...) são poetas que conduzem sua língua aos
extremos limites de expressão dela, quase assim na fronteira, no
abismo do incomunicável” (LEMINSKI, 1987, p.289).
27
A relação do poeta com a linguagem é o ponto com mais preponderância
para Cabral, conforme citou em discurso de agradecimento pelo prêmio Neustadt:
A poesia me parece alguma coisa de muito mais ampla: é a
exploração da materialidade das palavras e das possibilidades de
organização de estruturas verbais, coisas que não têm nada a ver
com o que é romanticamente chamado ‘inspiração’ ou menos
‘intuição’. (...) e como rigorosa construção de estruturas formais
lúcidas, lúcidos objetos de linguagem (CABRAL, 1999, p.800).
João Cabral pensa em poesia como resultado de um trabalho com a
linguagem, que alcance a visualidade por meio da elocução, que persista na lucidez,
que seja emoção racional, que englobe o essencial do discurso, que cante somente
pelo ritmo do verso, que desmistifique o código, que se movimente no espaço do
poema, enfim, que seja poético por excelência.
A poeticidade cabralina está centrada na produção de sentido textual, ou
seja, temos em Cabral uma poesia coesa, que não deseja ser ambígua. Antonio
Secchin (1985) destaca em Cabral a métrica e o ritmo como produtores de discurso
e encadeadores de sentido, não são elementos poemáticos meramente ilustrativos.
1.2 – Construção Poética Cabralina
João Cabral durante toda sua trajetória como poeta fez questão de
esclarecer suas concepções sobre poesia e o papel do poeta. Na ocasião de
receber o prêmio Neustadt, em 1992, disse:
Não sei como em vossos países do Norte, mas no meu, no seu uso
coloquial, a palavra ‘poeta’ tem certa conotação que vai de boêmio a
irresponsável, de contemplativo a inspirado, coisas essas que nada
têm a ver com a minha maneira de conceber a poesia nem com o
que consegui realizar (CABRAL, 1999, p.799).
Claro que para olharmos a poesia de Cabral temos de considerar suas
concepções poéticas, seu projeto poético, suas premissas discursivas, seus trejeitos
lingüísticos e composicionais, mas não podemos ler João Cabral somente por seu
olhar. A partir do momento que seu texto tornou-se público, tornaram-se amplas as
focalidades. Os grandes críticos de Cabral apontam para questões comuns em sua
obra, mas também convergem em alguns pontos. Voltaremos nosso olhar entre
28
esses pontos comuns e divergentes para visualizarmos mais combinações possíveis
em sua escritura.
Cabral declara-se antimusical, diz que a música lhe fazia dormir ou até que
não lhe deixava concentrar-se: “E a música embala-me, faz-me dormir. E eu procuro
viver no extremo da consciência e não no embalado” (CABRAL, In: ATHAYDE, 1998,
p.63). Assim tentou fugir da poesia melódica, cantada, mas de modo peculiar esta
arte pegou Cabral em sua negação, e mais uma vez o Nordeste e a Espanha
acometem-no e o poeta se enverga à música: “(Gosto) de flamenco, que foi uma
grande revelação em minha vida, e do frevo de Pernambuco. São músicas que me
excitam e despertam” (CABRAL, In: ATHAYDE, 1998, p.63). Cabral diz, ainda, que
esses são ritmos que se deixam visualizar.
Em “Estudos Para uma Bailadora Andaluza” (anexo), percebemos a
consonância da dança como movimento e som. Os estudos sobre a bailadora são
apresentados em forma de quadros não estáticos, percebemos a imagem sendo
construída cinematograficamente. Pelos vários enquadramentos da imagem da
bailadora, percebemos sua dança conduzida pela sonoridade e destacada no campo
visual. O som, para o poeta, é somente mais um elemento que compõe a dança e
apresenta o ritmo, enfatizando no corpo do poema o movimento e a imagem. É o
que se observa nas primeiras estrofes:
“D
ir-se-ia quando aparece
dançando por suiguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.
Todos os gestos do fogo
que então possui dir-se-ia:
gestos das folhas do fogo,
de seu cabelo, sua língua;
gestos do corpo do fogo,
de sua carne em agonia,
carne de fogo, só nervos,
carne toda em carne viva.
(...)”
(MELO NETO, 1994 p. 215)
1
1
MELO NETO, João Cabral. Obra Completa. Organização de Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar. 1999. As citações do livro Quaderna, presentes e recorrentes neste trabalho, serão acompanhadas,
daqui por diante, apenas do número da página.
29
Na primeira estrofe o verbo de ação ‘dançar’, empregado no gerúndio,
intensifica a movimentação, a ação de dançar é continua, ocorre no momento do
som, identificando-se como o fogo que também executa a dança, por meio da ação
de queimar. Nas estrofes seguintes tanto bailadora quanto fogo o consumidos
pela ação praticada. Ambos são corpos em movimento, “Todos os gestos do fogo”,
“gestos do corpo do fogo,” “carne de fogo, nervos,” a gestualidade marcada no
bailado do fogo e da bailarina remete a uma visualidade de semelhantes imagens.
Essa mobilidade, essa movimentação, ocorre no instante em que o eu-lírico deixa o
som ser materializado como dança.
O poema é todo construído por identificações da mulher como um elemento
concreto, visível. A bailadora inicialmente é afirmada como fogo, posteriormente
como animal, esse é o código de comunicação de sua dança. Na última parte deste
poema, a bailadora andaluza é emblematicamente representada pela vegetação
nordestina. A mulher é a saia do milho, vegetal típico nordestino, imagens do
Nordeste e da Espanha se fundem na bailadora, como se houvesse um intercâmbio
cultural entre os dois países:
“Na sua dança se assiste
Como ao processo da espiga
Verde, envolvida de palha;
Madura, quase despida.
(...)”
(p. 224)
“Afinal, todos os meus temas, os temas tratados na minha poesia são
nordestinos, motivos tirados de (MELO NETO, In: Athayde, 1998, p.64).
Percebemos o Nordeste cabralino por uma referência vegetal, não somente no
campo da construção de visualidade, mas também na percepção sensorial. No
poema “Jogos Frutais” (anexo) do livro Quaderna, João Cabral deixa o sabor
nordestino saltar à vista. Em vários versos o poeta parece apresentar o Nordeste por
sua produção vegetal: “Tens de uma fruta aquele/ tamanho justo;/ não de todas, de
fruta/ de Pernambuco.” E “Mangas, mangabas/ do Recife, que sabe / mais desenhá-
las.”, no entanto esse vegetal é sabor nordestino que salta à página: “de fruta de
muito açúcar”, “Ácida e verde:”, “vejo o que se saboreia,”. Esse fundir de visualidade
30
e sensorialidade é marca de uma linguagem que se movimenta, construindo um
discurso poético conciso e expressivo.
Essa concisão expressiva que marca a poética cabralina é enfatizada por
Affonso Ávilla (1969) como uma das características das poesias vanguardistas:
A poesia de vanguarda atende a concisão de nossa época e coloca a
disposição uma linguagem mais racional. (...) A poesia de vanguarda
traz uma linguagem nova, uma nova sensibilidade, não se comporta
somente para livros, ou leituras em voz alta, é objetiva, precisa,
direta da palavra (ÁVILLA, 1969, p. 66 e 67).
Desse modo, Affonso Ávilla desvincula Cabral da Geração de 45 afirmando
que Cabral nunca teve a intenção de estagnar a poesia, de não deixá-la progredir,
completa afirmando que o poeta de vanguarda é presente e lúcido ao mundo atual,
ele o teme o novo, busca a poética fora do anacrônico. Delicadamente destaca
João Cabral como percussor de uma poética vanguardista.
Esse ambiente de vanguarda apresentado pela poética cabralina segue
rumos não caminhados por poetas de sua época. A preocupação com a linguagem
clara, matemática, afasta-o dos poetas que acreditam a linguagem como meio
poético. Para Cabral, a linguagem é o poético, é o objetivo incorporado ao subjetivo:
A linguagem é colorida pelo estado de espírito afetivo. A poesia é
laboratório desse outro extremo. É o refúgio da linguagem afetiva.
Por isso atinge, chama a atenção. A poesia e a prosa, ambas, se
dirigem à inteligência. Apenas que a poesia, sensorialmente, e a
prosa, de forma concreta (CABRAL, In: Athayde, 1998, p. 53).
A marcante sensorialidade na poética cabralina é concebida pela visualidade
geográfica, arquitetônica, pela extensão de um objeto ou tema, pelo movimento, pelo
discurso que se fazem sentir com emoção.
Como no poema “A Mulher e Casa” (anexo) a arquitetura da casa é um
pretexto para visualizar a mulher, a qual não é percebida estaticamente, mas pelo
movimento dentro/fora. A mulher é transmutada à imagem da casa que é
primeiramente contemplada por fora, porém percebida no ambiente interno:
“(...)
uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
31
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.
(...)”
(p.241)
Essa visualidade o permanece na esfera da descrição do objeto casa ou
somente no espaço comparativo entre casa/mulher, ela transpassa a veia descritiva
e desenvolve-se na sensação produzida pelo contato tátil que proporciona bem-
estar:
“(...)
Pelos espaços de dentro:
Seus recintos, suas áreas,
Organizando-se dentro
Em corredores e salas,
Os quais sugerindo ao homem
Estâncias aconchegadas,
Paredes bem revestidas
Ou recessos bons de cavas,”
(...)”
(p.242)
Todo ambiente concreto visualizado por elementos descritivos de uma casa
tornam-se abstratos quando proporcionam aconchego. A casa aqui não é somente
concreto, parede, cômodo, recinto, ela é espaço de acomodação, sensação
prazerosa. Nessa linha construtiva percebemos a poeticidade cabralina partindo do
concreto, do visível: “O concreto é mais poético que o abstrato” (MELO NETO, In:
Athayde, 1998, p.65).
A preocupação de Cabral em não ser ambíguo o faz clarear sua poesia,
deixando-a visível. A utilização da palavra concreta, segundo ele, dá-lhe a certeza
que escreve o que deseja escrever:
(...) Uma palavra concreta é muito mais sensorial que uma palavra
abstrata. (...) Eu tenho a impressão de que é muito mais fácil eu dar
a ver com palavras concretas, que se dirigem aos sentidos, do que
usando palavras abstratas (MELO NETO, In: Athayde, 1998, p. 66).
Para Cabral a conceituação da palavra concreta não gera dúvidas, em
entrevista esclareceu: “... porque quando você maçã, você o conceito de maçã.
32
Melancolia, não” (MELO NETO, In: Athayde, 1998, p.65). Por meio dessa concepção
de palavra, Cabral ergue a sua poesia, e constroe sua linguagem poética.
É exatamente essa concretude que apreendemos em “Jogos Frutais”
(anexo), de Quaderna. Nesse poema Cabral utiliza as palavras: “carne” e “carnação”
para construir imagens que se assemelham a mulher e a frutas, fazendo-nos
compreender que fruta e mulher são carne de diversos sabores e texturas: “És fruta
de carne ácida;”, “carnação de mel de cana”, “frutas quase animais/e carne carnal.”
As semelhanças estabelecidas pelas palavras “carne” e “fruta” adentram no
ambiente sensorial do poema por meio da oposição dos sabores das frutas ácidas e
doces. Essa oposição, criada pela similitude entre carne-animal e fruta-vegetal, é
aproximada gradativamente e busca fundir em “fruta quase animal“ e em “carne
carnal”. A mulher é metaforizada por meio do saboreável, do sentir, é carne animal,
é carne sensual. Outros versos nos fazem acreditar que a fruta é carne, e não mera
polpa, revelando-se como tecido muscular humano ou animal.
Outra característica da construção poética de João Cabral é discutida por
Maria Lúcia Pinheiro Sampaio, no livro Processos Retóricos na obra de João
Cabral de Melo Neto (1978), a construção da metáfora:
Uma das características marcantes do estilo do poeta, em relação ao
emprego da metáfora, é o ato de elas nunca virem isoladas. O
poema é tecido com metáforas, imagens e comparações com semas
semelhantes, que familiarizam o leitor com o idioleto poético,
atenuando o desvio que acaba transformando-se em norma. (...) O
poema torna-se um campo gerador de figuras que se entrelaçam em
uma trama compacta, criando um clima altamente poético
(SAMPAIO, 1978, p.154).
Sampaio trata por sema o traço significativo mínimo da unidade lexical, ou
seja, termos denotativos ou conotativos adjacentes ao ambiente lexical de uma
palavra. Desse modo, quando Cabral no poema “Imitação da Água” (anexo) utiliza
os termos: “marinha”, “praia”, “folhas líquidas”, “onda”, “água”, “mar”, “águas fundas”,
possibilita ao leitor visualizar e se familiarizar com o ambiente praiano de seu
poema. As metáforas e todo o ambiente poético proposto são organizados a fim de
tecer o discurso poético, e o leitor, ao se familiarizar com esse discurso, no
estranhamento uma possibilidade imagética. Na primeira, estrofe algo é
assemelhado à onda, com a presença do elemento comparativo “parecias”:
33
(...)
De flanco sobre o lençol,
Paisagem já tão marinha,
A uma onda deitada,
Na praia, te parecias.
(...)
(p.260)
Essa rede de metáforas prossegue em todo o poema, confirmando Sampaio
quando afirma que as metáforas em Cabral nunca vêm sozinhas: “paisagem tão
marinha / uma onda deitada”, “uma onda que parava”, “uma onda que guardasse”, “o
dom de derramar”, “mais o clima de águas fundas”, e criam para o seu leitor a
imagem da onda quebrando na praia, porém é uma onda que não se despeja. O
poeta mostra ao leitor uma onda por meio de imagens comparativas. O leitor, pelo
olhar, segue o percurso da onda e a recepciona: “Uma onda que parava / ou melhor:
que se continha;”, “Uma onda que parava / naquela hora precisa”, “uma onda que
parava / ao dobrar-se interrompida,”, “Uma onda que guardasse / na praia cama
finita,”, “e certo abraçar completo / que dos líquidos copias.” Todas as metáforas
criadas para personificar a onda geram um ambiente de mobilidade e
movimentação, porém, exatamente no meio do poema, na quarta estrofe, surge um
elemento comparativo que quebra a movimentação, uma estabilidade é imposta: “e
se fizesse montanha / (por horizontal e fixa),” e logo é quebrada, voltando aos semas
familiares que compõem o poema: mas ao que se fazer montanha / continuasse
água ainda.”.
Essa preocupação de João Cabral em criar um clima poético não por
elementos poetizados enriquece sua poesia. O leitor é levado a buscar o poético
fora da poeticidade, é obrigado a sentir o poético pelo modo como articula o
discurso.
34
CAPÍTULO 2 - CABRAL: NA VOZ DOS CRÍTICOS
João nem parece um artista; parece cientista,
matemático, o que fortalece seu sopro lírico, domado,
reprimido, mas circulando como sangue dentro da pedra.
Arnaldo Jabor
Este capítulo apresenta um recorte da bibliografia crítica, em especial da obra
Quaderna, que versa sobre a construção da linguagem, do lirismo e da imagem
erótica da mulher na poética cabralina. Destacamos uma parte da crítica cabralina a
fim de centralizarmos nossos apontamentos, considerando a gama de estudos
críticos que existem em torno da obra de João Cabral de Melo Neto. As confluências
e divergências entre as possibilidades de leitura da obra são enfatizadas, pois
enriquecem e subsidiam a nossa leitura do livro Quaderna.
Quaderna foi publicado pela primeira vez em Lisboa, em 1960, e no Brasil em
1961, reunido com dois outros livros, Dois parlamentos e Serial, em obra intitulada
Terceira Feira. Sobre essa produção publicada na cada de 60, João Alexandre
Barbosa, no livro Alguma Crítica (2002), tece elogios sobre o domínio da linguagem
da poesia, além do nível poético no que diz respeito às tematizações e cnicas de
escrita. Afirma:
É como se houvesse uma passagem da poesia, dominada,
sobretudo, pelo exercício lúcido do poema, à poesia da linguagem,
abrindo o poema para exercícios lúcidos e lúdicos (BARBOSA,
2002, p.266).
Sobre esses “exercícios lúcidos” referidos por Barbosa, outros críticos
também tecem comentários. Observa-se que há unanimidade em esclarecer ao leitor
as preocupações do poeta sobre o ato de escrever, assim como em buscar nas
tensões dos versos a lucidez presente na escrita e na fala de Cabral. Sem
biografismos ou voz pessoalizada, os críticos de Cabral vão à agudeza de seus
ângulos poéticos, apontando para a inquietude calculada e artística representada em
sua poesia. Enfim, a crítica sobre João Cabral de Melo Neto tece reflexões sobre
vários aspectos de sua obra. Versam sobre estética, estilística, tematização, retórica,
entretanto todos discutem a linguagem poética singular de João Cabral.
Do livro Leitura de Poesia, organizado por Alfredo Bosi, em 1996,
destacaremos o ensaio de Alcides Villaça, intitulado “Expansão e limite da poesia de
35
João Cabral”. Neste ensaio Villaça discorre sobre a produção poética cabralina,
enfocando a evolução da escrita de Cabral, e como cada nova obra foi sendo
enriquecida a partir das anteriores. Enfatiza o contrato ético que o poeta tem com
sua escritura:
A precisão da linguagem de Cabral é conforme a valores éticos
básicos, que lhe dão a propriedade expansiva ao mesmo tempo em
que determinam seus limites. É uma ética de afirmação do elementar
sob o compósito, do limpo sobre o sujo, do analítico sobre o
sintético, do ordenado sobre o caótico, do deduzido sobre o
especulado (VILLAÇA,1996, p.149).
Villaça desperta nosso olhar, quando volta-se para a escritura de Cabral
indicando a existência de uma primeira pessoa, o que sempre foi negado pelo poeta:
“A primeira pessoa gramatical está obsessivamente assumida, mas no modo
paradoxal de quem o faz para declarar sua ausência” (VILLAÇA, 1996, p.145). Tal
afirmação abre a possibilidade de leitura para discutirmos a presença do lirismo em
Cabral.
Sobre o domínio da linguagem e do lirismo, Caio Riter regista, por meio duma
escrita metafórica, no ensaio “A paixão pela poesia e a poesia da paixão em João
Cabral de Melo Neto”, publicado na revista Ciências & Letras, de 2006, o modo
apaixonado como Cabral apreende as palavras e as despe, desnuda-as para
encontrá-las em sua essência. Para Riter, essa busca de Cabral pela palavra certa é
uma busca apaixonada, entretanto, afirma não ser uma paixão louca “Mas, uma
paixão intermediada pela razão” (p.214). Ainda alude para o domínio cabralino da
linguagem que por ser tão profundo consegue ser lírico sem ser subjetivo ao dizer:
“(...), Cabral constrói a lírica da objetividade” (p.217).
Assim como os demais críticos, Riter também afirma ser a construção da
linguagem a grande marca da poesia de João Cabral, acentua o estilo cabralino
como consolidação de uma poesia clássica no sentido de buscar equilíbrio,
harmonia e rigor formal. Riter ressalta sobre a insistente busca de Cabral em não ser
subjetivo ou ambíguo, assim como diz da criteriosa construção na linguagem poética
cabralina:
Na poética de João Cabral, estabelece-se um jogo verbal que, ao
silenciar a subjetividade, revela a busca do novo, o prazer do não-
dito, a criação/construção criteriosa da linguagem, criando uma
36
relação de fruição entre autor-poema-leitor. Sua poesia não tagarela.
E sua contenção abre caminho para a descoberta do prazer de
decifração da linguagem (RITER, 2006, p.217).
João Alexandre Barbosa em A imitação da forma: uma leitura de João
Cabral de Melo Neto (1975) percorre diacronicamente a poética cabralina desde
seu primeiro livro Pedra do Sono, de 1942, até o livro A educação pela Pedra, de
1966. Segundo Barbosa, Cabral estreou em um ambiente em que a Literatura
Brasileira tinha fortes e fixas características, determinadas pelos Modernistas da
década de 20. Com este destaque às características fixadas na Literatura
Brasileira, Barbosa quis afirmar ser difícil um poeta se firmar por sua própria
individualidade, sem seguir um grupo ou um movimento. Porém Cabral, desde sua
estreia, marca sua individualidade poética por seus próprios códigos, além de impor-
se certo idealismo lingüístico do qual se extrairia o poético, não do denotativamente
real, mas a partir do real. Assim Cabral precede a imagem à linguagem poética:
(...) ao ressaltar o valor plástico da imagem, João Cabral punha o
dedo naquilo que é básico desde os inícios de sua atividade como
poeta: o sentido de abstração que permeia os seus textos, mesmo os
mais densamente “figurativos”, por força da precedência conferida à
sintaxe e ao discurso em oposição ao “poético” vocabular e, portanto,
ao discursivo construído à base das proposições de atmosferas
poéticas” (BARBOSA, 1975, p.23).
João Alexandre Barbosa continua sua leitura salientando a aquisição do
domínio da linguagem perpassada por Cabral livro após livro. Ressalta o vínculo do
poeta com uma condição de contraponto entre poeta e escritor ao afirmar a sua
despoetização da linguagem em recusa a uma poetização desmedida, produzida a
qualquer custo. De maneira particular, acredita ser Quaderna, um marco na obra de
João Cabral, pois é o livro que evidencia o domínio do poeta pela linguagem da
poesia. Sugere uma leitura atenta do livro para que se verifique como João Cabral
incorpora o lírico, constantemente negado em sua obra (BARBOSA, 1975, p.158).
Para Barbosa, o lirismo na poética de Cabral é ocasionado pelo domínio da
linguagem, um lirismo que ruma para um lirismo de incorporação social, sem ser
confundido, “... com o ‘lírico’ entre aspas” (BARBOSA, 1975, p.158). Para melhor
entendermos, o crítico trata de “lírico entre aspas” o lirismo clássico e até mesmo o
lirismo subjetivo dos românticos. Desse modo, quando Barbosa usa o termo “lírico
37
entre aspas” é para diferenciar o lirismo cabralino e afirmar sua poética dentro dos
conceitos da lírica moderna, uma lírica não individualista, não referida ao estado de
ânimo do poeta, mas que operacionaliza a linguagem.
No livro A Biblioteca Imaginária (1996), no ensaio intitulado “João Cabral ou
a Educação pela Poesia”, João Alexandre Barbosa traz à luz outro traço
característico de Cabral, o modo particular e individual dos textos cabralinos que não
falam sobre poesia, mas fazem poesia. O crítico diz da maneira quase didática do
escrever cabralino, a fim de esclarecer o poema como construção:
(...) duas conseqüências de grande importância para a poética de
João Cabral: o realismo, a concreção de sua poesia e as tensões
entre transitividade e transitividade de seus enunciados (BARBOSA,
1996, p.244).
João Alexandre Barbosa afirma a preocupação de aprendizado, citando a
compilação de poemas organizada por Cabral, à qual ele deu o nome de Poesia
Crítica. Essa seleção é dividida por Cabral em duas partes. A primeira nomeada
“Linguagem”, elenca poemas que têm como temática a criação poética. A segunda
parte que recebe o nome de “Linguagens”, abarca poemas que trazem como
temática personalidades criadoras, poemas sobre poetas e pessoas de outras áreas.
Essa segunda parte retrata a preocupação de Cabral em mostrar que arte é
construção.
João Alexandre Barbosa assina o Prefácio do livro Processos Retóricos na
obra de João Cabral de Melo Neto (1978) de Maria Lucia Pinheiro Sampaio. Traça
considerações sobre a linguagem poética, ou melhor, ressalta o modo como Cabral
desenvolve a linguagem em sua poesia. Afirma ser a linguagem poética um sistema
que subtrai da linguagem da sociedade e torna-se uma outra linguagem. Entretanto,
tal linguagem trabalhada pelo poeta é a mesma que a sociedade e a história
carregaram de significados e valores. O poeta tem a árdua tarefa de transpor esses
valores ou descarregar antigos e pressupor novos para a linguagem que será a
matéria de seu poema. Confirma essa ideia ao dizer:
Por isso, emprestar um novo significado à linguagem é exercício à
beira da utopia: fugindo à compreensão imediata (e fácil), a nova
linguagem, que é o poema, busca apontar o caminho para a
identidade da existência por entre a diferença (BARBOSA, 1978, p.
VII).
38
Barbosa ainda comenta sobre a escritura poética como um ambiente utópico
no momento em que se desvela e resgata a linguagem de seu espaço social e
acomoda-a no espaço do poema, a fim de reconquistar sua pureza utópica:
Não para usá-la [a linguagem], de novo, como instrumento de
separação, mas para fazê-la capaz de instruir a crítica de
significados que, somente ela, permitirá a fusão entre identidade e
diferença, a desalienação fundamental (BARBOSA, 1978, p. VIII).
Assim Barbosa coloca em relevo uma das características do poeta moderno:
aquele que tem consciência da precariedade dos significados da linguagem, e não
visa simplesmente ao embelezamento, mas primordialmente à grandeza de
significações possíveis da linguagem poética. Insere João Cabral no rol desses
poetas: “Poucos poetas brasileiros contemporâneos empenharam-se tão freqüente e
coerentemente nessa tarefa quanto João Cabral de Melo Neto” (1978, p. VIII). Nesse
sentido, Barbosa afirma que Cabral desde seu primeiro livro teve atenção com os
limites da linguagem poética. Mesmo sob influências surrealistas, respeitou os
limites da linguagem e, por isso, instaurou sua poética entre a palavra e a imagem
sempre na busca da valorização da linguagem.
João Alexandre Barbosa exemplifica essa preocupação cabralina com
excertos de alguns poemas a fim de confirmar o trabalho construtivo que Cabral
desenvolve em cada livro. Enfatiza na linguagem cabralina, o modo como a metáfora
torna-se instrumento de concretização da realidade.
Nesse prefácio, Barbosa, além de tecer considerações sobre a linguagem de
Cabral, apresenta-nos o trabalho da autora do livro que examina a obra de Cabral
por uma veia retórica:
Fortemente armada de uma terminologia e de uma conceituação
adquiridas no trato da Linguistica, a autora percorre os principais
recursos retóricos utilizados pelo poeta, estruturando o seu ensaio
em três partes, de acordo com uma classificação das figuras
emprestadas do Grupo Liège. [...] O Grupo Liège postula que
‘a literatura é em primeiro lugar um uso singular da linguagem. É
precisamente a teoria deste uso que constitui o primeiro objeto de
uma retórica geral, e talvez generalizável’ (BARBOSA, 1960, p. X-XI).
A autora vale-se também das idéias do crítico Jean Cohen, que distingue a
linguagem literária da não-literária pelos desvios da prática em relação ao código.
39
Assim, Maria Lúcia Pinheiro Sampaio submete a poesia de Cabral a testes de
desvios retóricos e, sobretudo, semânticos. O objetivo da autora é apreender o
espaço da linguagem poética cabralina no que tangencia os aspectos do processo
criativo. Sampaio afirma:
Este trabalho, ao estudar os processos retóricos em João Cabral,
mostra um dos aspectos importantes de seu processo criativo,
permitindo-nos observar como são geradas as figuras em sua obra e
sua importância na criação de um idioleto poético dos mais
estruturados e originais em nossa literatura (SAMPAIO, 1978, p.4).
A autora estrutura seu livro de modo didático. Primeiro conceitua os termos
apreendidos pela ótica lingüista, em seguida aplica-os em poemas de João Cabral.
Não faz, contudo, um estudo diacrônico da obra cabralina, permeia toda a obra de
Cabral publicada até 1973, enfatizando os processos retóricos presentes na
linguagem poética de João Cabral, exemplificando, num mesmo capítulo, com
poemas de diferentes livros. Compreendemos também no campo linguistico, com o
detalhado trabalho de Maria Lúcia, o quanto é rica a linguagem poética cabralina.
Sampaio, no capítulo 1, ao esclarecer sobre o processo de construção do
campo metafórico em Cabral, afirma que é característico do poeta criar três tipos de
metáfora: “a conceptual, a referencial e a contextual” (SAMPAIO, 1978, p.19); no
capítulo 2, a autora conceitua e exemplifica como se o processo de formação da
prosopopéia na linguagem de Cabral. Afirma:
(...) no poema “O Rio”, o Capibaribe é personificado, e como tal,
torna-se o narrador do poema. O foco narrativo em primeira pessoa e
o emprego de verbos, onde está presente o sema ‘humano’,
personificam-no (SAMPAIO, 1978, p. 40).
No capítulo 3, apresenta como Cabral constrói semanticamente a imagem
poética; no capítulo 4, trata do símile na poética cabralina, assim como das figuras
de linguagem que são utilizadas como elementos retóricos na poesia de João
Cabral. A autora diz:
Na obra de João Cabral não existe diferença muito marcante entre a
imagem e a metáfora,pois frequentemente ele transforma a imagem
em metáfora, (...).Na sua poesia a imagem é muitas vezes uma fase
preparatória para o estabelecimento da metáfora
(SAMPAIO,1978,p.50).
40
Esse trabalho de Sampaio é interessante e amplamente válido para nosso
estudo, pois não visa somente a elencar a aplicabilidade lingüística do discurso
cabralino. Sampaio o permanece no campo da investigação discursiva e
lingüística, busca demonstrar como o discurso influi na escritura de Cabral, como
são criadas as figuras poéticas, como essas interferem no processo criativo e,
principalmente, esclarece o domínio do poeta com a língua e com a linguagem que
deseja para seu poema.
O planejamento que João Cabral faz de seus poemas, traço marcante na
singualar escrita cabralina, deixava-o visualizar o produto final. Nesse sentido,
Cabral afirma que sempre escreveu o que desejava, do modo que desejava, em
estado de plena consciência da escrita. Pelo mesmo motivo, demorava anos num
poema até ter certeza que havia dito o que queria dizer, sem impor pessoalidade a
sua obra. Isso confirma o depoimento do poeta, dramaturgo e artista plástico
espanhol Joan Brossa para os Cadernos de Literatura (1996), sobre as conversas
que ele e João Cabral tinham sobre poesia e arte: “Cabral sempre dizia que arte e
poesia deveriam ter algum comprometimento, mas que isso não poderia ofuscar a
personalidade do artista” (BROSSA, 1996, p.16). Se buscarmos nos poemas de
Cabral elementos biográficos não encontraremos, porém, perceberemos as marcas
individuais do projeto do poeta. As imagens poéticas concebidas nos poemas de
Cabral são vistas pelo leitor a partir dos olhos do poeta, Cabral nos deixa ver o que
quer dar à vista. O que não significa ser uma poesia livre de ambigüidades, mas uma
poesia com traços geometricamente marcados, como um quadro cubista, que deve
ser contemplado nas várias faces.
A crítica sobre Cabral valeu-nos para confirmar que a sua poética é individual,
a começar pela ética que o poeta estabeleceu com sua linguagem, pela busca do
equilíbrio e pela harmonia conseguida por meio do rigor formal que impôs a sua
escritura. O respeitoso modo como João Cabral articula as palavras, deixando-as ser
o que são, faz de sua poética não uma poética negativa, mas afirmativa no sentido
da palavra não transbordar significados eloquentes, mas apresentar rigorosamente
os valores nela contidos. A consciência cabralina de arte poética torna-o crítico em
todos os aspectos de sua obra e embute-lhe uma negatividade em relação ao
poético tradicional, revelando-o como algo positivo.
41
2.1 – Quaderna: na voz dos críticos
A Obra Completa de João Cabral de Melo Neto, publicada em 1994, sob
organização da poeta Marly de Oliveira, apresenta um Prefácio em que a poeta
descreve brevemente a concepção do livro Quaderna. Informa-nos que os poemas
desse livro foram publicados primeiramente em Portugal, em 1960, e somente em
1961 foi publicado no Brasil a convite de Rubem Braga que havia fundado a Editora
do Autor, juntamente com Fernando Sabino. Cabral resolveu reunir Quaderna, não
conhecido no Brasil, Dois Parlamentos, que somente havia sido publicado em
Madri, e o inédito Serial. A essa reunião deu o nome de Terceira Feira, que foi
publicada em 1962, e que Marly de Oliveira afirma ser um marco na poética
cabralina:
A partir desse momento parece tornar-se ainda mais consciente a
ideia do uso das formas que iriam marcar o resto de sua poesia. Os
livros posteriores, obviamente, têm inovações, variações, mas parece
que o essencial já está aqui (OLIVEIRA, 1994, p.19).
Sobre Terceira Feira, Luis Costa Lima escreve um ensaio para a revista de
cultura da universidade de Recife, “Estudos Universitários”, no qual diz ser uma obra
nova e fértil, por ser o ápice cabralino em questão de plasticidade, até então. Costa
Lima ressalta ainda o Nordeste brasileiro pela conquista da realidade nordestina, por
meio de uma estética. Destaca também a claridade dos poemas que compõem todo
o livro. “O poeta pernambucano [...] trilhou o caminho mais limpo e próprio para uma
poética desalienante” (COSTA LIMA, In: Mamede, 1987, p.231).
Marly de Oliveira, em seu prefácio, nos alude para o projeto inicial de
Quaderna que seriam quatro poemas com o tema dos quatro elementos da
natureza: o fogo, a água, a terra e o ar, intitulados “Imitações”. Segundo Oliveira, os
primeiros “Imitação do fogo” e “Imitação da água” iriam sair num jornal em São
Paulo, mas o primeiro passou a ser o início do poema “Estudos para uma bailadora
andaluza” e o segundo, a ser parte de Quaderna (OLIVEIRA, 1994, p.19). Zila
Mamede (1987) confirma Marly de Oliveira e registra, na compilação bibliográfica
Civil Geometria, que o poema “Imitação da Água” foi publicado pelo jornal O Estado
de São Paulo, no suplemento literário antes da publicação de Quaderna (MAMEDE,
1987, p.61).
42
Zila Mamede também compilou uma nota do “Jornal de Letras” (MAMEDE,
1987, p.228), quando da edição portuguesa de Quaderna, que comentava a
segurança poética cabralina nas formas contempladas em Quaderna, enfatizava os
poemas de versos nítidos, pausados e com rigor plástico não desligado das
significações humanas. A nota ressalvava para os temas tipicamente cabralinos: o
Nordeste e a Espanha, e findava dizendo sobre a aguda retórica e a emoção
contida, também, típicas de João Cabral.
Sobre as formas poéticas, a poeta Marly de Oliveira aponta para as imagens
nada convencionais nos poemas de Quaderna. Chama nossa atenção para aqueles
que são gerados a partir de um objeto, como, por exemplo: o telefone em “Paisagem
pelo telefone”, a casa em “A mulher e a casa” e a água em “Imitação da água”, que
trazem em seu cerne um objeto que constrói a imagem da mulher, fugindo do
confessional e fazendo da imagem o núcleo do poema.
No prefácio da Obra Completa, Marly de Oliveira comenta sobre o título do
livro e na busca de compreensão. Diz ser este mais um exemplo de equilíbrio e
racionalidade de João Cabral:
No que se refere ao título, tudo leva a supor que tenha surgido de
“cuaterna via”, usada por Berceo, e entre as acepções dadas por
Aurélio encontramos as que vem do latim “quaterna”, em um número
de quatro. Em heráldica, objeto composto de quatro peças em
quadrado, de ordinário em forma decrescente, ou face do dado que
apresenta quatro pontos; e, em botânica, distribuição de pétalas
quatro em quatro (OLIVEIRA, 1994, p.20).
No ensaio “Lição de João Cabral”, publicado no livro Alguma Crítica, João
Alexandre Barbosa (2002) aponta também para o uso integral da quadra em
Quaderna, acrescentando ser uma quadra que tende às raízes populares do
Nordeste brasileiro, no que diz respeito ao romanceiro ibérico (BARBOSA, 2002,
p.267).
Verificamos a preocupação do equilíbrio inclusive no que tange à construção
estética do livro, quase todo construído em quartetos, com exceção do poema
“Jogos Frutais” que apresenta vinte e oito tercetos, intercalando as estrofes de
quatro versos.
Para observação da racionalidade em relação às imagens cabralinas e
à preocupação do poeta em confirmar sua poética por meio do equilíbrio e do
43
inteligível, citaremos a dissertação de mestrado de Lisiane Delai, de 2008. Delai
considera além de Quaderna, os livros Morte e vida Severina, O Rio e O cão sem
plumas, conclui sobre a presença do número quatro não na estética, na
linguagem, mas também na construção metafórica que produz as imagens:
A leitura das obras selecionadas verificou a racionalidade que rege a
produção poética cabralina, orientada pelo número quatro, bem como
a construção de duas paisagens opostas, ao descrever o homem e a
mulher. Desse modo, a análise de “O cão sem plumas”, “O Rio”,
“Morte e vida Severina” e Quaderna permitiu dividir o estado de
Pernambuco em quatro regiões: o sertão, o canavial, o litoral e o
mangue (DELAI, 2008, p.103).
Lisiane Delai (2008, p.68) destina um capítulo a Quaderna, a fim de pinçar o
erótico entre a imagem e a paisagem que constitui a poética de Cabral. Destaca que
a mulher é apresentada a partir de elementos concretos, objetivamente, sem se
valer do tom confessional.
No livro Poesia com coisas, de 1983, Marta Peixoto percorre um estudo
diacrônico da obra cabralina desde a primeira publicação a o livro Escola das
Facas de 1979. Esse texto assinala as diferentes manifestações em cada
publicação, com destaque para o modo como Cabral manipula sua poética. Peixoto
discute a linguagem de Cabral, que evita a representação do eu e centra-se nos
objetos e paisagens. Pontua também, as classificações dadas pelos críticos sobre
Cabral ser ou o lírico, e conclui, após sua análise, sobre uma voz impessoal na
poética cabralina. Entretanto, afirma uma diferença em Quaderna, “O eu aparece
poucas vezes e só em Quaderna” (PEIXOTO, 1983, p.150).
João Alexandre Barbosa (1975), no livro A imitação da forma: uma leitura de
João Cabral de Melo Neto, além de tecer apontamentos sobre a linguagem poética
cabralina e a questão darica, também afirma ser em Quaderna a estreia da
temática “mulher” na obra de João Cabral. Tal temática é ressaltada pelo crítico
como uma inovação que causa estranhamento, pois pode ser um ponto de abertura
para o lírico nesse poeta. Sugere uma leitura atenta do livro para que se verifique
como João Cabral incorpora o lírico, constantemente negado em sua obra
(BARBOSA, 1975, p.158). De maneira particular, Barbosa afirma ser Quaderna um
marco na obra deste poeta, visto ser, para ele, o livro que evidencia o domínio do
poeta na linguagem da poesia.
44
Quando falamos em linguagem, temos que nos atentar para o tratamento
dispensado à palavra. Percebe-se que em Quaderna as palavras são de tal modo
trabalhadas que transpiram sensorialidade, não somente estão ali no poema, são os
poemas em sentires e gostos. Quando da publicação portuguesa do livro, essa
faculdade cabralina foi observada pelo crítico João Palma Ferreira do jornal “Diário
Popular”. A crítica de Ferreira aludia para a palavra em Quaderna ser leve e
sutilmente marcada pela sensorialidade, o que era desprezado por poetas desse
período. Nota-se essa palavra sensorialmente marcada em todo o livro, porém nos
poemas que trazem o feminino como tópico são marcados pelo gosto, pelo olhar, de
modo especialmente novo em Cabral.
Embora apresente uma visão simplificada do projeto poético de Cabral, os
Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, de 1996, trazem
ensaios, breve biografia, manuscritos e uma entrevista cedida por Cabral. Ele
respondeu a perguntas sobre sua vida diplomática, sua obra, seus livros e sobre a
composição da sua linguagem poética. Nessa mesma publicação, João Alexandre
Barbosa contradiz, mesmo que por uma leve vertente, João Cabral. O poeta que
afirma ser sua poesia ausente de lirismo e imagens abstratas é contestado (MELO
NETO, 1996, p.25). João Alexandre Barbosa (1996, p.81) enfatiza que no livro
Quaderna é veiculado pela primeira vez a temática do lirismo amoroso, um lirismo
erótico-amoroso, embora não facilitado, mas seguindo a veia característica do poeta.
Alude-nos para um lirismo não romântico, mas um lirismo que aponta para a
concreção da linguagem poética. Barbosa afirma que o lirismo cabralino é construído
sob a lucidez da linguagem que contempla a imitação do objeto.
Luis Costa Lima (1995), no livro Lira e Antilira: Mário, Drummond, Cabral,
torna claro que em Terceira Feira há duas temáticas distintas: uma amorosa e outra
regionalista. A primeira segue uma linha lírica que se constrói contrário à retórica do
emocionalizado, permanecendo a visualidade característica da poética cabralina
(COSTA LIMA, 1995, p.298). Apesar da peculiar tematização amorosa, o corpo, a
figura da mulher, serão objetivamente presentificadas, a imagem nunca ficará em
segundo plano, completa Costa Lima. A segunda temática, a regionalista, traça
paralelos construídos a partir da extração plástica de imagens do Nordeste e da
Espanha. Esses dois espaços o apresentados desnudos de seus caracteres
folclóricos ou míticos, -- para que se ative a realidade e não a aceite constituída”
(COSTA LIMA, 1995, p.303).
45
Costa Lima ainda desenvolve uma profunda análise sobre alguns poemas do
livro Quaderna, centrando-se nos eixos lírico-amoroso e imagem-linguagem. Em
especial, analisa e discorre sobre o poema “Estudos para uma bailadora andaluza”,
o qual é rico na exposição do tema até então não presente em Cabral, frisa Costa
Lima.
Antonio Carlos Secchin (1995), em João Cabral: a poesia do menos
transcorre sua leitura pela produção de Cabral que vai desde o livro A Pedra do
Sono até A Escola das Facas. O capítulo dez de seu livro, que recebe como título
“O controle do discurso”, diz sobre o livro Quaderna de João Cabral. Ressalta a
temática conhecida o Nordeste e a Espanha e enfatiza uma temática nova de
Cabral, o feminino, “(...) presença do feminino como referência no poema”
(SECCHIN, 1995, p.133). Segundo o crítico, a temática relacionada com a mulher
não é apresentada com homogeneidade, mas a mulher é apresentada como objeto
que transcende o ambiente: “O novo objeto será apreendido sob vários ângulos, e
servirá de diversas intenções” (SECCHIN, 1995, p.133). Secchin faz uma leitura da
estrutura dos poemas que versam sobre o tema do feminino e confirma a perfeição
rítmica e trica, dos nove poemas que envolvem a figura da mulher, sete
apresentam o mesmo esquema rítmico. Elenca um oitavo poema “História Natural”
como diferente dos demais pela diferença temática, pois trata do ambiente erótico
entre homem e mulher. O crítico completa apontando o nono poema deste grupo
“Jogos Frutais” como atípico em relação aos demais que compõem Quaderna, seja
em relação ao esquema rítmico, à estrofação, às rimas. um componente lúdico
nas aproximações e afastamentos entre a mulher e as frutas do Nordeste construído
a partir das metaforizações, da concisão, da tensão e da forma (SECCHIN, 1995,
p.146).
A leitura de Secchin perpassa todos os poemas de Quaderna, porém nos
deteremos nas interpretações dos nove poemas que ressaltam a imagem feminina.
Quanto à voz lírica, Secchin aponta para uma pessoa em “Estudos para uma
bailadora Andaluza”, afirma que neste poema o olhar recai sobre a dança. Os
desdobramentos dar-se-ão sobre a imagem base da dança efetuada pela bailadora.
Para o crítico, no ambiente deste poema não há privacidade, a bailadora é exposta
(SECCHIN, 1995, p.134). Quanto aos demais poemas, com a temática feminina,
Secchin diz exibir uma cumplicidade linguística entre sujeito lírico e o objeto, que
recairá no olhar do sujeito, o qual incide diretamente num corpo, segundo o crítico,
46
aqui privacidade (SECCHIN, 1995, p.134-135). “O eu-lirico não se incluirá
diretamente no espaço que descreve, o que o tornará infenso ao sentimento
amoroso” (SECCHIN, 1995, p.139).
O grupo de nove poemas separados por Secchin é por ele divido em dois
subgrupos. Em um subgrupo, reúne os poemas: “Paisagem com Coisas”, “A Palavra
Seda”, “Rio e/ou Poço”, “Imitação da Água” e “Jogos Frutais”, pois, segundo ele,
nesses poemas características unificadoras como a valorização do mineral
líquido, eventualidade de metáforas vegetais aos topos nordestino, referenciando um
espaço aberto de tensão entre espaço interno e externo. O outro subgrupo é
composto pelos poemas “A Mulher e a Casa” e “Mulher Vestida de Gaiola”, os quais
a afinidade é identificada pelos títulos. O vocábulo mulher que se ancora no
fechamento da “casa” e da “gaiola” (SECHIN, 1995, p.139), além da imagem estar
subordinada ao fechado, o espaço interno é refratário ao externo, a reclusão do
objeto feminino.
Em sua dissertação de mestrado, que recebeu o título “Discurso erótico em
três poetas modernistas: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João
Cabral de Melo Neto”, Jose Ferreira de Lucena Junior (2009) analisa o discurso
desses poetas e volta-se para João Cabral através dos poemas de Quaderna e um
poema do livro Serial. Observamos, aqui, algumas considerações de Lucena sobre
os poemas de Quaderna. Lucena discute sobre a presença de erotismo na poética
cabralina, porém afirma ser um erotismo velado: “Sua habilidade em trabalhar com
as palavras mostra uma maneira particular de manifestação do elemento erótico”
(p.104). Ainda ressalta que a sutileza do estilo cabralino faz com que um leitor não
acostumado com seu modo de fazer poesia passe por ela sem perceber o tema
erótico nele embutido. José Ferreira busca em sua análise indícios de erotismo na
escritura de Cabral. Deste modo, garimpa os vocábulos que induzem à imagem do
erotismo, da mulher e, inclusive, do ato sexual, procurando nas metáforas vozes do
enunciador e desenvolvendo análises de cunho semiótico, visando a relações entre
significado/significante. Lucena afirma que Cabral constrói uma linguagem exata,
deixando sua escritura extremamente objetiva, rígida e com pouco espaço para o
sentimentalismo lírico. Desse modo, o poeta tem a sensorialidade como um núcleo
de construção figurativa da imagem no poema. Lucena considera que os poemas
analisados não somente parecem ser eróticos, mas são, principalmente, pela
abundância de metáforas e comparações.
47
Waltencir Alves de Oliveira (2008) em sua tese de doutoramento de título “O
gosto dos extremos: Tensão e Dualidade na Poesia de João Cabral de Melo Neto,
de Pedra do Sono a Andando Sevilha”, reavalia algumas considerações da
Fortuna Crítica de João Cabral no que tange à tematização do lirismo-amoroso, do
feminino e da inscrição do autobiográfico na poética cabralina. No capítulo “À
Floresta dos Gestos: Notas sobre a Figuração do Amor e do Feminino”, Oliveira
observa que os epítetos que costumam acompanhar o nome do poeta como:
arquiteto, poeta lúcido; antilírico; geômetra engajado; poeta do concreto; engenheiro;
prejudicaram o estudo de alguns temas como autobiografia, tematização do lirismo,
do amoroso e do feminino. Segundo Waltencir, esses temas foram tratados de modo
pontuais, em algumas obras de Cabral. Nega a crítica que afirma ser somente
Quaderna o livro que tematiza o lirismo amoroso, como o faz Secchin. Não deixa de
ressaltar João Alexandre Barbosa como o primeiro estudioso a observar, em
Quaderna, o feminino na poética de Cabral. Este último, seguindo as indicações
interpretativas de Haroldo de Campos para a poética cabralina, compreende a
representação do conceito abstrato que sucederá imagens concretas. Oliveira segue
seus apontamentos traçando divergências e concordâncias entre a crítica de Cabral,
e a nega no que restringe somente a Quaderna a detenção dos temas lírico-
amoroso e à mulher. Como os demais, afirma ser nesse livro que o tema lírico-
amoroso é mais densamente tratado. Em nove poemas, dos vinte presentes no livro,
aborda-se como temas o lirismo amoroso e a mulher. Assim, como João Alexandre
Barbosa, inclui nesse grupo de poemas o poema “Sevilha”, por afirmar que ele
desponta uma analogia entre a mulher e a cidade de Sevilha, descrita por figurações
do feminino (OLIVEIRA, 2008, p.86). Continua:
Julgo, no entanto, que, apesar da concordância dar a matéria uma
possível definição inquestionável, ela precisa ser matizada em alguns
aspectos. Compreendo, por exemplo, que a poesia lírica-amorosa e
a tematização da mulher não se restringiram ao livro Quaderna,
sequer foram inaugurada por ele, conforme atestam poemas
presentes, desde o livro de estreia, Pedra do Sono (1942).
Tampouco, concordo com Haroldo de Campos que afirma que o
tema conheceu considerações pontuais e incipientes, antes do
livro de 1959. O tema assume, para mim, uma dimensão progressiva
e processual na obra de Cabral e não isolada e pontual, como afirma
grande parte da crítica (OLIVEIRA, 2008, p. 69).
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Outro crítico que discute as imagens femininas na obra de João Cabral é
Lauro Escorel (1973) que, no livro A Pedra e o Rio: uma interpretação da poesia de
João Cabral de Melo Neto, a partir de uma leitura psicológica, elucida a mulher como
mais um dos objetos tematizados pelo poeta pernambucano. Seguindo o que ele
chama “itinerário poético de Cabral de Melo” (ESCOREL, 1973, p.11), chega até a
última publicação de Cabral, porém não tece observações isoladas de cada livro,
mas elenca pilares da obra de Cabral, de modo que seus capítulos o divididos e
nomeados como: sonho, pedra, deserto, rio, mulher entre outros. No capitulo
intitulado “A Mulher”, Escorel reflete sobre como é retratada a mulher em solo
cabralino.
Escorel propõe uma leitura da poética cabralina a partir da psicocrítica, com
base nas acepções de Charles Mauron, que diz sobre uma resistente imagem dos
poetas superposta em suas obras. Escorel apóia-se na psicologia junguiana e nos
critérios que Mauron afirma como principais para se adentrar numa escritura: as
relações pessoais do poeta como determinantes ou não de sua criação poética e o
estudo da personalidade inconsciente do poeta que traduzem em associações de
idéias involuntárias que possam definir as estruturas textuais conscientes: “O
pensamento consciente de um escritor se expressa mediante relações lógicas e
sintáticas, figuras de estilo, relações de ritmos e de sons” (ESCOREL, 1973, p.10).
Ainda, Lauro Escorel justifica sua atração por uma leitura de Cabral a partir de
premissas psicológicas, pois acredita ser uma linha crítica fecunda de visualidade do
imaginário do poeta. Esclarece também que suas observações se valeram de rigor
técnico nas utilizações das teorias psicológicas junguianas, e afirma saber das
contrariedades de muitos críticos em relação ao seu método de estudo, mas acredita
ser possível aparelhar a consciência do crítico à do poeta. Afirma:
Não ignoro as reservas e objeções feitas por determinados críticos
formalistas à abordagem psicológica da obra poética. Coloco-me,
porém, entre os que julgam possível aproximar-se a consciência do
crítico da consciência do poeta, ainda que partindo da premissa de
que se trata, tão-somente, de uma aproximação, e não de uma
identificação, que pudesse apreender, na sua totalidade, a
experiência original do ‘eu’ profundo do poeta (ESCOREL, 1973,
p.12).
Assim como Waltencir Alves de Oliveira, Escorel afirma que não somente em
Quaderna é possível perceber a presença do feminino, mas uma visão onírica da
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imagem da mulher está presente no primeiro livro de Cabral, Pedra do Sono
(1942). O poema “Três Mal Amados” (1943) dirige-se para versões de feminilidade
mais no âmbito do sonho do que do real, mais incorpórea do que sensual ou erótica.
Escorel afirma que a partir de O Engenheiro (1945) o tema do feminino desaparece
completamente e Cabral desenvolve sua poética em torno da temática
geometrizante. Ainda, à luz da psicocrítica, afirma que o ambiente noturno
desaparece e o elemento feminino “Luaé substituído pelo elemento “Sol”. Somente
em Quaderna, Escorel ressalta tanto a ótica junguiana, quanto o ressurgimento da
mulher como tema. Afirma que poemas com o tema feminino aparecem em
Quaderna e também nos livros Serial e Educação pela Pedra:
Será somente no livro “Quaderna” que, lado a lado com a exaltação
da cabra como animal paradigmático da fauna poética cabralina, a
mulher ressurge como tema poético. Naquele livro e nos seguintes:
“Serial” e A Educação pela Pedra” encontraremos quinze poemas
em que a figura feminina serve de inspiração a Cabral de Melo. Dá a
impressão o poeta, a essa altura, de haver incorporado ao seu
universo imaginário novas experiências eróticas, que o levaram a
redescobrir poeticamente a mulher. Mas, fiel à sua poética seca e
antisensual, Cabral de Melo se recusa a entregar-se à sedução de
Eros, na medida em que este representa uma complacência carnal e
um desfalecimento líquido a que sua consciência se opõe como
pedra se opõe à água (ESCOREL, 1973, p. 83-84).
Além de Escorel confirmar a presença do feminio em Quaderna, o crítico
enfatiza que, nos poemas de Cabral com tal temática, é possível perceber uma
mulher enfocada pelo poeta na figuração do espaço. Percebe-se uma mulher
retratada com a sensorialidade geográfica e arquitetônica, a partir de uma imagem
objetiva, numa visualidade cinematográfica fixa, sem qualquer emoção. Por essa
perspectiva de Escorel, admite-se que Cabral conduz sua poesia para a
sensualidade por meio da tensão e do discurso poético, não por meio de uma
descrição exibicionista da imagem do feminino. A esse respeito, diz:
O que Cabral de Melo realmente consegue evitar, fiel à sua atitude
ascética, é a complacência sensual na descrição da mulher; o que
ele procura conter é a livre expansão da força erótica da natureza
masculina, que conduz tantos outros poetas ao sensualismo, quanto
não a um franco erotismo exibicionista. Não que o poeta
pernanbucamo seja insensível à atração de Eros: a tensão de seus
poemas, inspirados na mulher, acusam, ao contrário, uma forte
sensualidade contida e transmutada em beleza poética. O que ocorre
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é que Cabral de Melo focaliza a mulher mais em termos de espaço
do que de tempo (ESCOREL, 1973,p.84).
Escorel confere importância à originalidade de Cabral e à rica expressividade
com que constrói a imagem da mulher a partir de detalhes. Do mesmo modo,
focaliza a mulher como um objeto desligado, ao descrevê-la de forma indireta por
meio de expressivas metáforas e sem nenhum deleite sensual, mesmo quando trata
das partes femininas que são partes do inconsciente erótico como coxas, seios,
nádegas.
O ensaio “Uma arquitetura do cosmos Quaderna quadrado quadra:
quatro” de Maria Raquel Leiria Ávilla (1995) traz discussão sobre a erotização
presente em Quaderna ao lado da marcação do número quatro na estrutura
estilística da obra. Ávilla afirma que
Trata-se de um erotismo alusivo, disfuso e, ao mesmo tempo,
totalizante, uma vez que ordena o mundo nos moldes arquitetônicos
e geométricos do quadrado. A maioria das estrofes dos poemas de
Quaderna são construídas sob o signo do quatro (ÁVILLA, 1995,
p.159).
Ávilla entrelaça essa questão com a marcação do número quatro, presente
em quase todo o livro. Analisa Quaderna como um livro que é constituído a partir
dos quatro elementos: água, terra, ar e fogo. Deste modo, o número quatro não se
faz presente somente na estética textual, mas também na composição de seu
conteúdo. Ávilla cita o poema “O número quatro”, do livro O Museu de Tudo (1975),
para confirmar que, não por acaso e anterior a Quaderna, o número quatro realiza a
poética de João Cabral. A esse respeito, afirma:
O “quatro”, segundo João Cabral, “está racional em suas patas; está
à margem e acima de tudo/ o que tenta abalá-lo, / imóvel ao vento
terremotos,/ no mar maré ou mar ressaca”. O “quatro”, ou “a coisa
pelo quatro quadrada”, realiza o imaginário poético do universo
cabralino, o projeto da perfeição, da concisão, da síntese, do
“enquadramento” do mundo aos seus quatro pontos cardeais: norte,
sul, leste e oeste. Tudo o que se desenrola na vida do planeta, na
vida dos seres que o habitam, na própria vida da natureza está
contido a perfeição geométrica do número quatro. A natureza
humana é cíclica: o homem nasce, cresce, amadurece e morre.
Como o fruto das árvores, a força das marés, a lua e suas
(também) quatro fases: cheia, minguante, nova e crescente (ÁVILLA,
1995, p.160).
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Apontamento feito também por José Lino Grünewald, em 1960, quando da
publicação de Quaderna, catalogado no livro Civil Geometria (MAMEDE, 1987, p.
313). Grünewald inicia sua crítica pela presença do número quatro no livro, diz da
ambivalência desse signo no que tange os elementos do cosmo, pormenorizando o
número quatro como sendo um limiar arquitetônico cabralino, no sentido de uma
dialética de linhas e planos retos e diretos. Confirma que a estilística nesse livro
desenvolve-se por um desdobramento de quadras.
Ávilla também tece considerações sobre uma temática erótica-feminina em
Quaderna, assim como os demais críticos que se debruçaram sobre essa obra de
João Cabral. Diz que a obtenção do erótico por meio da imagem feminina é
conseguido por uma similarização com um objeto concreto que, tratado
poeticamente, é levado a condições sensoriais. Com a mesma ênfase confirma a
dualidade entre a imagem da mulher e a da água em Quaderna, dois objetos que
são maleáveis, que sofrem transformações. Sobre a presença do número quatro,
Ávilla traz mais interpretações além das apresentadas por Marly de Oliveira. Abre
um leque de leituras quando posiciona o quatro não somente como um exemplo
geométrico, arquitetônico, mas engloba o número na semântica da poética de Cabral
e na realidade humana presente em seus poemas.
Ávilla traça também um panorama das publicações de Cabral e afirma que
Quaderna vinha sendo construído desde Pedra do Sono (1942) com metáforas
líricas e profundamente sensoriais. O Engenheiro (1945), segundo Ávilla,
estabelece a construção da poesia solar cabralina, uma poesia clara, concisa e
contida. Afirma que a partir desse livro, o projeto poético cabralino está equilibrado
dentro do universo geométrico e que, desde então, está aberta a eterna briga de
Cabral com as palavras. O ato poético torna-se duro e tenaz na busca da palavra
certa, sem encantamento e beleza, e o verso exorciza o sentimentalismo. Acredita
Àvilla que Cabral desenvolveu também uma poesia de cunho social quando, no livro
O Rio (1953), personifica o rio, abarcando as vozes da gente pernambucana.
Ressalta o poema “Uma faca lâmina” (1955), que nome ao livro, como o
poema que serve de metal afiado, que corta os excessos, que desmistifica o código
por meio das reflexões e negações contidas no corpo do poema. Por fim, afirma que
todo este percurso poético resulta em Quaderna, segundo ela, fundado na perfeição
do quatro:
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As constantes metamorfoses da mulher encontraram reflexo na
condição sempre mutável da água. A água representa em Quaderna,
as possibilidades pluridimensionais da mulher (...) (ÁVILLA, 1995,
p.164).
Em sua análise, Ávilla reafirma que o objeto feminino é descrito a partir da
sensorialidade, exemplificando com o poema “A Palavra Seda”. O poema, à luz do
tátil, constrói a imagem da mulher no poema, sugerindo a materialização da pele.
Em “A Mulher e a Casa”, enfatiza a visualidade como ferramenta que constrói o
ambiente poético, também a partir da dualidade, pois, segundo Ávilla, a mulher
inicialmente seduz pela aparência externa e uma casa seduz pelo aconchego
interno. Essa dualidade se entrelaça no desenvolver do poema ao ponto de a casa
ser personificada, gerando a imagem da mulher e ambas são sedutoras. Em
“Paisagem pelo telefone”, alude para a visualidade realizada a partir da fala da
mulher e para a claridade que emerge da mulher. Ainda sobre a visualização,
destaca os ângulos em que se pode observar a mulher em “Rio e/ou Poço”, quando
similarizada ao rio, vê-se deitada, quando a metáfora é construída a partir do objeto
poço, vê-se em pé. Também, nesse poema, volta a discutir a tensão entre mulher e
água.
Também em relação à imagem na poética de Cabral, Maria Lucia Pinheiro
Sampaio (1978) discute a construção imagética em Quaderna. Afirma que a imagem
na poética de Cabral é apresentada a partir das metáforas e comparações:
Na obra de João Cabral não existe diferença muito marcante entre
imagem e a metáfora, pois frequentemente ele transforma a imagem
em metáfora, suprimindo o termo real e o verbo de ligação. Na sua
poesia a imagem é muitas vezes uma fase preparatória para o
estabelecimento da metáfora (SAMPAIO, 1978, p.50).
Sampaio afirma, ainda, que a imagem na poética de Cabral une o humano à
natureza, ao material e imaterial e ao animal, articulando entre o abstrato e o
concreto. Exemplifica com o poema “Jogos Frutais” (anexo) do livro Quaderna,
apontando para a identificação e caracterização física da mulher com as frutas do
nordeste, às vezes afirmando-a, outras vezes negando-a pela imagem. Sampaio
(1978, p.48) elenca as seguintes imagens:
“A mulher é: um fruto medido bem desenhado
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uma fruta múltipla, mais simples, lógica
fruta que se saboreia, não que alimenta
fruta de muito açúcar
fruta de carne jovem e de alma álacre
fruta de carne ácida, de carne e de alma
fruta de carne acesa
fruta pernambucana
A mulher não é: aquosa, nem fruta que derrama vaga e sem forma
uma fruta fruta só para o dente
uma fruta flor, olor somente
fruta que o tempo ou copo de água lava a boca”
Sampaio (1978, p.150) intensifica sua discussão no que diz respeito a
amplificação das metáforas cabralinas, por ser característico em Cabral descrever as
particularidades de um assunto, “como se ele usasse uma lente de aumento, que
ampliasse o objeto estudado”. Deste modo, o poeta muitas vezes parte de um
núcleo e descreve aquela imagem girando em torno de um verso ou estrofe. “O
poeta geralmente constrói o poema, desenvolvendo uma metáfora, uma imagem ou
uma comparação” (SAMPAIO, 1978, p.49). Sampaio exemplifica sua afirmação com
o poema “Estudos para uma bailadora andaluza” de Quaderna, apontando para a
primeira estrofe em que o poeta identifica a bailadora com a imagem do fogo e nas
próximas oito estrofes detalha a imagem da bailadora como fogo. Quanto ao poema
“Imitação da água”, mostra a identificação da ‘mulher’ com a ‘onda’ na primeira
estrofe e a partir da segunda destaca a ‘onda e as particularidades dessa
semelhança. Outros poemas de Quaderna servem de exemplos para Sampaio
confirmar como as imagens são particularmente construídas na obra cabralina.
Imagens femininas construídas e validadas por João Cabral o assim
afirmadas por ele: “Descrevo uma mulher sem biografia; o que ela representou na
minha vida não vem ao caso” (MELO NETO, In: Secchin,1995, p.305). A nós,
leitores de Cabral, também não vem ao caso saber o lugar dessa mulher na vida do
poeta, mas como essa mulher foi concebida enquanto linguagem poética. A mulher
como imagem de concreção poética é a que nos interessa, a imagem feminina
retratada como paisagem sem nenhum tom confessional que traz o mistério lírico em
João Cabral. Alguns críticos argumentam que os epítetos rigorosos referidos à
Cabral não deixaram ler sua obra de outra maneira, porém podem ser estes epítetos
que o deixaram construir uma obra equilibrada, sem transbordar, que mostram o que
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está a ser mostrado: uma obra equilibrada como Quaderna, nascida sob o equilíbrio
do “quatro”.
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CAPÍTULO 3 - A LÍRICA EM JOÃO CABRAL
“uma bruteza
límpida
que em nada se detém”
Haroldo de Campos
Os estudos sobre lírica moderna são dirigidos pelo fenômeno linguistico-
artístico. Tais estudos convergem para análises da enunciação da linguagem. O
gênero lírico pode ser compreendido como conteúdo das formas. Segundo Käte
Hamburger (1986), a teoria do lírico é apresentada como subjetiva por ser
desenvolvida por um sujeito da enunciação, neste caso o que se valida é a
enunciação, não o eu lírico como sujeito pessoal. Afirma, também, que o gênero
lírico é compreendido pela palavra nele empregada, ou seja, pelo modo como a
palavra é empregada no discurso poético.
Hamburger (1986), para dizer sobre o eu-lírico, compara exemplos clássicos
com o contemporâneo. Compreende, assim, que a literatura clássica busca
identificar o eu lírico com o poeta, similarizando-os. Hoje, deve-se ter cuidado nessa
separação, pois existem teorias que convergem para os estudos biográficos,
compreendendo marcas pessoais do poeta presentes em sua escritura, o que difere
da voz lírica. Outras teorias ainda tratam o eu-lírico como caráter subjetivo da lírica.
Desse modo, o lirismo é compreendido pela própria escritura, pela linguagem, não
por uma voz em primeira pessoa marcada no poema.
Theodor W. Adorno (2003), quando se refere à linguagem lírica, conjuga a
mesma ideia, que a lírica não fala na voz de um sujeito, mas ela passa a se tornar o
sujeito que fala. Sendo assim, o eu-lírico ou sujeito-lírico é a própria enunciação.
Nesse sentido, o teor de um poema se faz por suas formas estéticas, o pela
intenção comunicativa, e a linguagem é veículo do estético que culmina no lirismo
Na lírica moderna, a linguagem é de tal modo trabalhada que não é mais
validada por seus significados lingüísticos, mas pelas consonâncias e dissonâncias.
É a linguagem que quer ser compreendida pelo seu efeito dissonante, não
comunicável, é a linguagem que perturba, transcende, que é transformadora da
língua.
A tendência da lírica moderna é ser dissonante e criar tensão entre
incompreensibilidade e fascinação. Nesse caso a dissonância significará
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obscuridade, e, segundo Vitor Hugo, a obscuridade envolve a lírica moderna
(FRIEDRICH, 1978). “Das três maneiras possíveis de comportamento da
composição lírica sentir, observar, transformar é esta última que domina na
poesia moderna,...” (FRIEDRICH, 1978, p.17). Às normas de sintaxe como e ao
vocabulário usual são intencionalmente aplicados sinais de lirismo, assim como nas
metáforas não conciliadas no uso real da língua.
A partir das considerações sobre lírica de Hamburger, Adorno e Friedrich,
podemos observar esse tom de lirismo na poética de João Cabral. Um lirismo não
confessional, mas um lirismo imposto pela linguagem, que marca o olhar do leitor
para outro plano, não o usual da língua, mas o plano sensorial, o plano da emoção
racionalizada, o plano da construção calculada: “Eu entendo poético nesse
sentido. Vou fazer uma poesia de tal extensão, com tais e tais elementos, coisas que
eu vou colocando como se fossem tijolos” (MELO NETO, 1996, p.21).
Essa premissa construtiva cabralina engloba sua poética num ambiente lírico.
As metáforas construídas por Cabral fazem com que o leitor busque o sentir por
meio do pensar. Nesse aspecto instala-se a lírica moderna. A poética de João
Cabral consegue animizar o homem, sem tirar dele uma das características humana:
o amor.
“O amor de passagem,
o amor acidental,
se dá entre dois corpos
no plano do animal,”
(p.233)
O excerto acima é do poema “História Natural” (anexo) do livro Quaderna.
Nele podemos observar que a metáfora criada entre homem e animal os similariza,
deixa-os dentro de um mesmo plano animal, como, por exemplo, no momento do
sexo, entendido somente como coito, como acidente carnal. A ironia incorporada
pelo termo “amor” em vez de sexo, deixa o animal-racional no mesmo patamar do
animal-irracional. Seu instinto o faz animal, no mesmo instante em que seu lado
racional pode amar. Esse tensional é característico da lírica moderna, a
linguagem transfigura-se, a compreensão se possível fora do plano usual da
língua. Como se cada palavra escolhida pelo poeta recuperasse o significado da
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outra, tanto pela similaridade quanto pela negação, além de imprimir-se o seu
próprio significado.
Friedrich (1978, p.29) expõe conceitos traçados por Novalis quando diz que a
linguagem poética que habita o texto lírico não tem nenhuma intenção de
comunicação, ela é como rmula matemática, vive um mundo particular. Friedrich
enfatiza que, segundo Novalis, o que vale são as relações internas da própria
linguagem, que não dependem somente da significação das palavras, mas de toda
estrutura linguística que compõe o poema.
O lirismo do poeta de Quaderna segue a vertente da lucidez e é realizado
construtivamente, configurando o domínio do poeta sobre a linguagem. Confirma
sua engenhosidade e seu teor calculista pelos desvios estilísticos percebidos, pela
linguagem apresentada fora do usual, pela objetividade sobrepondo-se à
subjetividade. Cabral faz questão de se intitular anti-lírico por acreditar na poesia
lírica como cantante: “...: é preciso não esquecer que, no tempo dos gregos, a
poesia lírica era a poesia que cantava,” (In:ATHAYDE, 1998, p.55) como subjetiva,
inclusive pessoal, “.... subjetivismo é o fato de o poeta, (...) excessivamente lírico,
passar a falar só dele próprio.” (In: ATHAYDE, 1998, p.55).
A lírica moderna não mais visa ao poeta como operador particular da poesia,
mas como “operador da língua” (FRIEDRICH,1978,p.17), como o transformador do
modo irreal de ver o mundo. O que não impede que a poesia nasça da alma, porém
é algo diferente do ânimo pessoal, o poema é desenvolvido por temas que são mais
contrapostos, é um texto polifônico, que o se pode decompor separando os
valores de sensibilidade. “Quando suavidades afins ao sentimento querem inserir-se,
palavras desarmoniosas e duras atravessam-nas como um projétil, despedaçando-
as.” (FRIEDRICH,1978,p.17)
.
O conceito apresentado pode ser similarizado com pensamentos de Cabral
sobre a sua poesia e sobre o ato de se fazer poesia: “Eu não acredito num poeta e
nem gosto da poesia que fale de coisas poéticas” (ATHAYDE, 1998, p.53). Se
considerarmos o termo “... poesia despoetizada,...” (FRIEDRICH, 1978,p.22) como a
negação da lírica clássica e afirmação da lírica moderna, tem-se a confirmação do
pensamento cabralino sobre poesia e como se fazer um poema.
Nesse sentido, pode-se compreender que na poesia moderna não um “eu”
referindo-se a uma pessoa particular, que essa poesia não alimenta uma ilusão de
ser uma compilação de sentimentos emocionalizados, no mesmo sentido em que a
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lírica moderna não é promovida pela presença do poeta, nem do leitor. Esses são
ocultados pela linguagem poética. Portanto, o sujeito lírico moderno existe a partir da
linguagem apresentada pelo poema, o sujeito lírico é o próprio texto.
Podemos observar esse movimento lírico em um trecho do poema “A Mulher
e a Casa” (anexo) do livro Quaderna:
“Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.”
(...)
(p. 241)
Poderíamos ler esse poema dizendo-o lírico somente por apresentar a
palavra “mulher”, se numa primeira leitura pensássemos nele como numa
dedicatória. Entretanto, a maneira como esta é tratada no poema não seria lírica
para os românticos, pois não há uma voz sentimentalizada referindo-se à mulher, ela
não é figurada nesse poema como algo intocável ou delicado. A mulher é aqui
habilmente assemelhada a uma casa, material concreto, rude, duro até mesmo frio.
Porém é tematicamente elevada ao aconchego do lar, do porto seguro feminino,
materno. Sua beleza não é inatingível, é possível não somente observá-la, mas estar
junto a ela, “ou por detrás da fachada.” A palavra “casa”, uma palavra não poética,
denotativamente real, é conotativamente metaforizada, criando a imagem da mulher
como lar, segurança, cosmo protetor. Como não dizermos da presença de um lirismo
cabralino, mesmo que às avessas? Dizemos desse lirismo pelo tratamento
dispensado a cada palavra, que nos leva a visualizar uma mulher real: que acolhe,
abraça, que seduz por ser mulher-sedutora e por ser mãe-casa.
Marta Peixoto (1983) tece considerações sobre um possível “eu” na poética
de João Cabral e considera uma voz narradora que poucas vezes se manifesta
como um “eu”. Diz também que a poesia cabralina esboça uma primeira pessoa
retraída. Confirma a impessoalidade e o lirismo se confrontando, além de concluir
que durante anos, ou melhor, em vários livros, é rara a apresentação da primeira
pessoa na poesia de Cabral, mas diz de um “eu-objeto” (PEIXOTO,1983, p.13).
Em “Estudos para uma Bailadora Andaluza” (anexo), de Quaderna, pode-se
perceber esse “eu-objeto”, apontado por Marta Peixoto. Inicialmente a bailadora nos
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é revelada por imagens do fogo, do fogo como corpo e como movimento. Nesse
momento, o fogo é o “eu-objeto” que desvela o “eu-humano”: “gestos do corpo do
fogo,/de sua carne em agonia,” o fogo-objeto efetua os passos da dança; o
movimento, nesse verso, é o próprio fogo que dança, representando à bailadora.
Tem-se aqui um “eu” que não se deixa perceber como uma voz pessoal, a voz
existe, mas é representada pela linguagem imagística. O “eu”, a voz poemática, é a
voz da linguagem que desenvolve o discurso poético, ou seja, um discurso estético:
Talhando as palavras para organizá-las dentro de estruturas verbais,
a preocupação do nosso poeta é revelar a poesia como forma
estética que não admite ser confundida com a expressão individual
(...) (ARAUJO, 2001, p.47)
Esta é a tênue linha que separa o lirismo estético firmado pela composição da
linguagem textual, do lirismo romântico pautado simplesmente na emoção da voz
lírica. Temos, no exemplo acima, o lirismo composto pela movimentação da
linguagem que é compassada ritmicamente pelo objeto, pelo concreto que produz
movimento.
Peixoto, ainda, ressalta uma discordância, entre os críticos, em classificar a
posição de João Cabral perante os conceitos de lírica:
Os críticos da poesia de Cabral discordam quanto a classificá-la ou
não de rica: Benedito Nunes se refere a uma “ruptura com o
lirismo”, Luis Costa Lima a uma “antilira”, João Alexandre Barbosa a
um “lirismo de tensões” e Alfredo Bosi a “uma nova dimensão do
discurso lírico (PEIXOTO, 1983, p.13).
À primeira vista pode-se confirmar uma discordância em relação à
classificação da poética de João Cabral, porém pode-se encontrar uma interseção
na questão do lirismo entre os críticos. Não podemos desconsiderar que há um olhar
dos críticos para uma vertente lírica em Cabral. Quando Benedito Nunes (1971) se
refere a uma “ruptura com o lirismo”, podemos entender nessa afirmação que o
poeta rompe com o lirismo clássico, o lirismo pautado nos conceitos de
sentimentalidade e musicalidade, numa poesia cantada por um eu, uma voz pessoal.
A partir dessas considerações, entendemos que Cabral rompe com essa vertente de
lirismo, por compreendermos que a poética de Cabral não se apresenta pessoal ou
confessional. No entanto, essa ruptura nos vale para podermos olhar para a poética
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cabralina inserida num ambiente de intencionalidade criadora, num ambiente que
vise a um lirismo na concepção moderna, um lirismo burilado pelo trabalho da
linguagem, desenvolvido pelo poeta. Essa crença se firma na afirmação de Benedito
Nunes (1971), quando diz da intelectualidade e depuração que cercam o trabalho
poético de João Cabral:
(...) o ponto de ruptura da poesia de João Cabral com o lirismo.
Visando diretamente às palavras e não aos sentimentos, que a
ascese intelectual neutraliza e esvazia, a intencionalidade poética,
inerente à atitude criadora assumida, guiada pela atenção reflexiva e
voluntária, mantém o Eu lírico, cujos atos expressivos deixam de ter
validade imediata, sob uma espécie de ‘époque’. Sem
desaparecerem, mas colocados entre parênteses, os sentimentos,
atingidos pelo trabalho de depuração e esvaziamento, perdem a sua
efetividade empírica. (...) Nem liquidação, nem superação do lirismo,
a ruptura, transformada num estado permanente, mobiliza, o sentido
de construtividade, ...” (NUNES, 1971, p.153).
Ao falar de “uma nova dimensão do discurso lírico”, Alfredo Bosi (1975) fecha
um pensamento que permeia os critérios da poética de João Cabral. Bosi afirma o
rigor da poética cabralina e diz de uma nova dimensão em que esta poética está
inserida, não nega o lirismo em Cabral, mas o coloca em um outro patamar ou em
um novo ambiente, no qual é ressaltada a linguagem e não o poeta. A nova
dimensão consiste em o poeta ser o diretor, e a protagonista ser a linguagem
poética, “... instaura um novo critério estético, o rigor semântico, pedra-de-toque da
sua radical modernidade” (BOSI, 1975, p.521).
Alfredo Bosi insiste na modernidade cabralina, afirma ser um poeta que não
está alheio aos acontecimentos e que a sua maneira sabe o rumo que deve dar a
sua poesia. Desse modo, não será Bosi a negar um estilo particularmente lírico de
João Cabral:
A esta nova poética não estaria alheio um certo maneirismo do
descarnado, o ósseo, do pétreo, que se estende, porém, ao menos
no momento em que apareceu, como necessidade de afirmar uma
nova dimensão do discurso lírico” (BOSI, 1975, p.521).
Luis Costa Lima (1995), quando utiliza o termo antilírico para se referir ao
poeta João Cabral, o faz nos mesmos propósitos que Benedito Nunes, tem a
intenção de negação dos preceitos da lírica clássica. Costa Lima procura confirmar
61
aos leitores de Cabral que tal poética é muito mais que o que se espera de poesia.
Não esperem da poesia cabralina tematizações sentimentalizadas, pois encontrarão
palavras empetrecidas, longe da musicalidade sentimental romântica. Alerta ainda
que encontrarão em Cabral a rudeza da imagem nordestina, transfigurada na secura
da linguagem. Costa Lima discute e exemplifica o afastamento lírico de Cabral:
Na poesia clássica, o olhar podia idealizar as coisas, compor quadros
de uma comunhão integral entre seres e natureza, entre desejo de
amor e realização amorosa, (...). Na poesia contemporânea (...)
a idealização é posta em xeque. (...) Temos insistido na idéia de que
Cabral se afasta dos padrões da lírica, que rompe com ilusionismo
poético, etc. (COSTA LIMA,1995, p. 307 - 309)
É esse “ilusionismo poético” que Costa Lima caracteriza como lírica, o
afastamento lírico de Cabral é o afastamento do “eu” como voz passional, voz
pessoal. Quando o crítico diz sobre a idealização posta em xeque, quer dizer sobre o
desafio do poeta contemporâneo que busca burlar o lirismo, mas é poético, utiliza-se
das características do gênero sem ser tradicional ao ponto de não dar voz a sua
escritura. Não encontramos um poeta de idealizações, mas um poeta de concretude
na linguagem poética.
João Alexandre confirma o lirismo cabralino orientado no discurso poético,
sendo este um lirismo de tensões que desmascara o lirismo sentimentalizado, o
lirismo que chama de “com aspas” (BARBOSA, 1975, p.166). As aspas de João
Alexandre o como que parênteses para dizer o lirismo de Cabral não é clássico, é
um lirismo às avessas, é um lirismo instaurado na escritura, provocando tensão
entre a voz e a linguagem, entre os temas e a plasticidade linguística que traz à tona
o real por meio de uma tênue linha verossímel.
Percebemos que a crítica de Cabral não desautoriza por completo, ou melhor,
não elimina na obra cabralina outras possibilidades de leitura. Cada grande crítico
do poeta por sabê-lo dominador da linguagem deixa aberto sua leitura, para que
dela faça-se outras, inclusive garimpando características não amplamente
discutidas.
62
3.1 – A Escritura em Quaderna
Quaderna é um livro de Cabral que poderia ficar escondido entre os outros
dois, Serial e Dois Parlamentos, com os quais fez parte da reunião que gerou a
compilação Terceira Feira. Entretanto, mostrou-se presente, principalmente por ser
um livro que desvela uma veia temática não muito difundida em Cabral.
Caracterizado pela permanente secura não se esperava que Cabral tratasse
da mulher, do feminino, muito menos de erotismo. No entanto, são esses alguns dos
temas que estão presentes em Quaderna, ao lado, é claro, de Nordeste e de
Espanha, espaços imagéticos também reveladores de erotismo na escritura de
Quaderna.
Com Quaderna (1960), João Cabral de Melo Neto inaugura uma
diversificada poesia erótica centrada principalmente na
metaforização corporal de realidades não-corporais. Trata-se de um
erotismo alusivo, difuso e, ao mesmo tempo, totalizante, uma vez
que ordena o mundo nos moldes arquitetônicos e geométricos do
quadrado (ÁVILA, 1995, p.159).
Com a afirmação de Maria Raquel Leiria Ávila, percebemos que Cabral não
foge ao seu projeto poético quando dá espaço para o erótico-feminino nesse livro.
Ele permanece centrado em seus traços firmes e arquitetonicamente marcado.
O discurso erótico não fica sensualmente enfatizado, as palavras que
carregam tom sensual não aparecem em seus poemas, sua peculiar veia de
concreção é mantida, a imagem do feminino é sutilmente figurada no patamar da
erotização, tais imagens são alusivas a cada metáfora e comparação construídas,
em geral por meio dos quatro elementos. Como afirma Maria Lúcia Pinheiro
Sampaio:
Na metáfora uma fusão do concreto com o abstrato, do humano
com a natureza, com o animal, o material e o gramatical, da natureza
com o gramatical e uma troca de significantes entre os próprios
elementos da natureza. (SAMPAIO, 1978, p.19).
A consideração dessa autora nos faz elencar ligações temáticas e referenciá-
las aos poemas de Quaderna:
63
Entre humano e natureza: temos a mulher que é onda em “Imitação da
Água” (anexo), a mulher que é fruta em “Jogos Frutais” (anexo) e a mulher que é
planta, mineral e animal em “História Natural” (anexo);
Entre humano e objetos materiais: temos a mulher que é casa em “A Mulher
e a Casa” (anexo) e a mulher que é gaiola em “A mulher e a Gaiola” (anexo);
Entre humano e elementos lexicais: temos a mulher que é palavra em “A
Palavra Seda” (anexo).
Outras elaborações de linguagem também modificam a metáfora, criando a
similitude entre a mulher e um terceiro objeto, como, por exemplo, em “Jogos
Frutais”, no qual mulher e fruta são carne ou em “Paisagem pelo Telefone”, nesse a
mulher é estátua ao telefone.
Percebe-se em Quaderna, inclusive, uma velada conquista erótica, a qual se
firma nos elementos concretos quando referidos às características femininas, como
nas primeiras estrofes do poema “Mulher Vestida de Gaiola”:
“Parece que vives sempre
de uma gaiola envolvida,
isenta, numa gaiola,
de uma gaiola vestida,
de uma gaiola, cortada
em tua exata medida
numa matéria isolante:
gaiola-blusa ou camisa.”
(p.261)
Esses versos representam mais que a veste da mulher, revelam sua timidez.
A gaiola é o pequeno e finito universo dessa mulher, como se ela estivesse isolada
do cosmos: “matéria isolante”. É uma mulher comedida, submissa que vive a não
expor seus desejos, os quais são ocultados, presos como que em uma camisa de
força: “gaiola-blusa ou camisa”. A mulher nesse instante é veladamente
apresentada, a imagem que se constrói é de uma mulher presa, enjaulada. A
concreção da palavra “gaiola” é habilmente burilada por Cabral, possibilitando-nos a
visualização poética de uma mulher que não tem vida própria, ou melhor,
possibilitando-nos apreender o abstrato a partir do concreto. A “gaiola” no discurso
cabralino remete a inferências abstratas que representam uma mulher submissa,
frágil, acanhada. É recorrente em Cabral esse tipo de construção, uma palavra
64
concreta como prerrogativa de abstração imagética. O que, segundo o poeta, é
muito mais poético: “O concreto é mais poético que o abstrato” (CABRAL, In:
Athayde, 1998, p.65)
Nos poemas “A Imitação da Água” e “Rio e/ou Poço”, ocorre à identificação da
mulher com a água. No primeiro, a mulher é identificada com a onda, no segundo, é
idêntica às águas do rio e do poço. Outra relação representativa é do elemento
natural “água” ao líquido placentário, imagem que nos remete ao complexo de
Édipo, conceituado por Freud como uma relação maternal de apego desejante.
Temos, ao longo de cada poema, a construção do sensual. Esta alusão está
presente em ambos os poemas, no primeiro “A Imitação da Água”, destacamos os
versos “De flanco sobre o lençol” e “na praia cama, finita,” do mesmo modo, no
poema “Rio e/ou Poço”, pode-se destacar os versos: “Mas quando na horizontal, /
em certas horas, te deixas,” // “água toda em profundeza,” a água e a mulher na
construção poemática estão envoltas pelo erótico. Esses versos foram destacados
com a finalidade de percebermos que a imagem poética cabralina é em grande parte
construída por metáforas que se formam sob um eixo paradigmático.
No poema “Jogos Frutais”, João Cabral utiliza-se da imagem para aproximar a
“mulher” a “fruta”. Essa imagem de aproximação não se fixa somente no momento
da descrição, ela se estabelece no ambiente da sensação. Como confirma Bosi, a
imagem é fundida no discurso poético:
A imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho,
as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A
imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto
e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em
nós (BOSI, 2000, p.19).
É exatamente esse lirismo discursivo, esse lirismo advindo da palavra que a
poética cabralina celebra. Em “Jogos Frutais”, a identificação da mulher com as
frutas nordestinas resulta num imagético erotismo de sensações experimentado pela
linguagem. Tal como afirma Samira Chalhub, “Uma sonoridade tátil-gustativa que
experimenta os possíveis da língua, sensualidade, ao mesmo tempo exposta e
oculta” (CHALHUB, s/d, p.39). Nesse sentido, podemos elencar:
Sensações táteis representadas nos versos: “De fruta é tua textura / e assim
concreta” // “Intensa é tua textura” // “E há em tua pele / o sol das frutas que o verão”
65
// “És fruta do Nordeste / tua epiderme; / mesma carnação dourada” // “corpo mais
tenso.”;
Sensações visuais representadas nos versos: “Sem transparência: / não de
água clara, porém // “porém o cega; / e sim de coisa que tem luz / própria,
interna.” // “e luz morena”, “Luminosos cristais” // “O teu encanto está / em tua
medida,” // “És um fruto medido, / bem desenhado;” // “Estás desenhada a lápis” //
“És tão elegante quanto” // “Não te vejo em semente, / futura e grávida;” // “vejo o
que se saboreia,” // “Tens aparência fácil,”.
Sensações gustativas representadas nos versos: “carnação de mel de cana”
// “Não és aquosa / nem fruta que se derrama” // “Também do ingá, / do musgo
fresco ao dente” // “Não és uma fruta furta / para o dente,” // “vejo o que se
saboreia,” // “Fruta que se saboreia, / não que alimenta:” // “És fruta de carne jovem”,
“porque picante” // “És fruta de carne ácida,” // “ca que tens o sabor” // “Jamais
pitanga, / que lava a língua e a sede / de todo estanca.” // “Ácida e verde:” // “Ao
gosto limpo do caju,”, ”De tanto açúcar”, “que uns te digam podre e outros / te digam
verde.”.
Essas várias relações, possíveis no campo poético, refletem o momento do
próprio poema. Não temos uma voz descrevendo, ou simulando um instante erótico,
temos o concreto: mulher e frutas como objeto do erótico. As possibilidades
comparativas existem, pois o poeta permite que seu objeto seja um organismo
independente, concebido por um “eu” não pessoalizado. Quando Cabral faz
afirmações sobre o poema elaborado, é este resultado que ele visa, o poema
reconhecido pela linguagem, pela poeticidade. Na ocasião da Conferência
pronunciada na Biblioteca de São Paulo sobre o instante da produção poética,
Cabral afirma:
Durante seu trabalho, o poeta vira seu objeto nos dedos, iluminando-
o por todos os lados. E é ainda seu trabalho que lhe vai permitir
desligar-se do objeto criado. Este será um organismo acabado,
capaz de vida própria. É um filho, com vida independente, e não um
membro que se amputa, incompleto e incapaz de viver por si mesmo
(MELO NETO, 1999, p.734).
Secchin declara que a concisão, textura e tensão nesse poema são frutos de
um esquema lúdico, baseado nas aproximações e afastamentos entre mulher e
frutas do Nordeste. Afirma: “E nunca é demais reiterar a técnica do deslocamento no
66
tratamento do tema erótico; o poeta, desviando-se (aparentemente) do objeto
feminino, efetua intensa sexualização das imagens que o conotam” (SECCHIN,
1995, p.146).
Em “A Mulher e a Casa” a palavra que mais se aproxima do campo do erótico
é a palavra “sedução”, como nos versos: “Tua sedução é menos” e “Seduz pelo que
é dentro”. Porém, a mulher seduz pelo que está oculto: “pois vem de como é por
dentro / ou por detrás da fachada.”, “melhor: somente por dentro / é possível
contemplá-la.”, ainda “pelo que pode ser dentro”, como no verso: “pelos espaços de
dentro”, assim como “ou recessos bons de cavas,” e por fim “a vontade de corrê-la /
por dentro, de visitá-la.” A imagem da mulher é representada pela arquitetura da
casa: “Tua sedução é menos / de mulher do que de casa:”. Porém, não se tem
nesse poema uma mulher-casa estática em seu terreno. nesse poema uma
tensão gerada no campo concreto da arquitetura. A imagem da casa é subordinada
ao ambiente fechado, porém esse fechamento se estabelece pela incorporação do
externo. Observemos as duas primeiras estrofes nas quais o sujeito lírico deseja
conhecer o ambiente interno da casa-mulher:
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
o
u por detrás da fachada.
Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,
(...)”
(p. 241)
A movimentação nesse poema gera uma tensão representada no campo
arquitetônico espaço interno/externo –, o movimento dentro/fora é articulado pela
imagem do objeto casa em identificação à mulher, resultando no desejo sexual,
apresentado na última estrofe do poema:
“(...)
exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.”
(p.242)
67
Como confirma Secchin: “Enquanto a voz tinha uma ultrapassagem do
fechado (sala) sua linha de força, a casa convida à permanência no recluso, em
metaforização ao ato sexual” (SECCHIN, 1995, p.148).
A arquitetura também é fetiche no poema “Paisagem pelo Telefone”, uma
relação da voz ao telefone com o corpo nu, conduz o eu lírico aos espaços da casa,
indo de uma sala até Pernambuco. Novamente o espaço interno e externo pronuncia
o movimento verossímil interno/externo representado no corpo do poema.
Em “História Natural” a linguagem poética é menos conotativa e descreve o
encontro do eu lírico com a mulher. De modo particular, o discurso poético percorre
o caminho da sedução até culminar no ato sexual. Aqui o tema não é
especificamente a mulher, mas os estágios do ato sexual. Diferente dos demais
poemas com essa veia lírico-erótica, esse já na primeira estrofe elucida o encontro:
“(...)
O amor de passagem,
o amor acidental,
se dá entre dois corpos
no plano do animal,”
(p.233)
Podemos compreender como “amor de passagem” ou “amor acidental” o
sexo, que ocorre por necessidade instintiva, “no plano do animal”, os dois corpos
que se encontram têm somente um único desejo. Não nesse poema uma
ambiente gerador de emoções, de sensações. O homem é animalizado ao
mesmo tempo em que é identificado como um vegetal e mineral, que cumpre seu
papel, sem necessitar de emoções. O campo semântico apresentado no discurso
autoriza a visualização da imagem poética como mero encontro ou desejo.
Pode-se identificar nos poemas comentados acima a presença de uma
segunda voz, com quem se fala. Neles uma cumplicidade lingüística entre sujeito
lírico e o objeto, tal cumplicidade recairá no olhar do sujeito que incide diretamente
no corpo feminino, enquanto a imagem da mulher investe na sedução. “O eu-lirico
não se incluirá diretamente no espaço que descreve, e o tornará infenso ao
sentimento amoroso.” (SECCHIN, 1995, p.139)
68
Diferente dos demais poemas, em “Estudos para uma Bailadora Andaluza”
(anexo) se percebe o sujeito falando de uma terceira pessoa, “um sujeito que
enuncia em terceira pessoa, da forma como se enxerga enquanto receptor”
(CHALHUB, s/d, p.102). O olhar lírico recai sobre a dança, sobre a bailadora, o
corpo é veículo desta mulher. Nesse caso não há privacidade nem cumplicidade, o
ambiente lírico centra-se na movimentação da dança/bailadora, os desdobramentos
dar-se-ão sobre a imagem base da bailadora.
Tem-se nesse poema um sujeito lírico que se coloca como praticante de
voyeurismo, ele não estabelece uma cumplicidade com a bailadora e sua dança.
Ambas estão sendo observadas pela voz lírica que proporciona um ambiente
sensual, erótico a partir da expressão corporal da bailadora. O corpo também está
presente nesse poema, porém distante. Num primeiro momento, a bailadora é
identificada com o fogo, por momentos ela é o fogo, é o desejo. Na segunda parte
do poema, a tensão é criada pela imagem da bailadora fundida na representação da
cavaleira e da égua, domina e é dominada. Logo, volta a ser humanizada e busca a
linguagem, a comunicação. Depois, é identificada com a árvore, a imagem da
longevidade, da volta à terra, da maternidade. Maternidade que busca a origem
nordestina cabralina, a bailadora, agora, é vegetal típico nordestino.
O erótico é vivenciado na linguagem pelo ambiente lírico, identificado em
cada metáfora, em cada comparação, em cada figura delineada para aquele verso.
A habilidade de João Cabral em trabalhar com as palavras mostra uma maneira
particular de manifestação do elemento erótico, no qual pouco indaga, mas a ver
a realidade observada.
A quadra como uma forma fixa na estrutura poética de Cabral aparecia
desde o livro O Engenheiro (1945). Nesse livro, o número quatro é exemplo de
racionalidade, de cálculo e precisão. Em Paisagens com Figuras (1956) e em Uma
Faca só Lâmina (1956) a quadra também está presente, mas ainda não é estrutura
absoluta. Finalmente, em Quaderna (1960), essa forma não somente estará em
todos os poemas, como remeterá ao próprio título do livro. Sobre a forma quadra,
Silvio Romero (1964) explica que esse tipo de estrofe tem ascendência europeia e é
a forma estrófica mais popular no Brasil, sendo a forma popular brasileira por
excelência, chamada entre os poetas populares de “versos” de quatro “pés”. Junto
com a sextilha, a quadra é forma predileta dos cantadores. Nessa junção entre
racionalidade e cultura popular, Cabral busca seu singular modo de escrever.
69
A insistência pelo número quatro se presentifica também no número total de
estrofes dos poemas de Quaderna, nos quais: “(...) a maior parte dos poemas de
Quaderna tem um número total de estrofes múltiplos de 4” (PEIXOTO, 1983, p. 140).
3.2 – O (des)velamento do feminino
João Alexandre Barbosa, Luis Costa Lima e Antonio Secchin registram o
caráter inaugural desse tema na poética cabralina, enquanto Haroldo de Campos
difere dos demais estudiosos por ressaltar que o tema feminino tinha sido
enfocado em outros livros:
Em Quaderna, por outro lado, assoma o motivo feminino, raro na
poesia cabralina anterior (lembre-se de “Mulher Sentada”, de O
Engenheiro), tratado porém com extrema sobriedade de notação
(“Estudos para uma bailadora andaluza”; “Mulher vestida de Gaiola”),
revelando uma técnica de conversão de emoção abstrata em
imagens concretas, coisificadas, que evoca a poesia dos chamados
“poetas metafísicos ingleses” (John Donne, por exemplo) (CAMPOS,
1992, p.86).
Antonio Secchin (1995) além de afirmar o tema feminino como inaugural em
João Cabral enfatiza ser em Quaderna a primeira vez que o tema é amplamente
representado. Sobre isso, em entrevista com João Cabral, questiona essa tardia
inclusão do tema em sua poesia. Recebe a seguinte resposta:
É um tratamento feminino que não é usado para falar de mim, de
minha vida. É verdade que sempre falamos um pouco de nós, a
simples escolha do assunto é uma opção pessoal. Mas quase
sempre, veja o caso de Vinícius de Moraes, o tema feminino é abrigo
de reações excessivamente subjetivas e até biográficas. Além disso,
por que a mulher deve monopolizar essa libertação de ânimo? O
poeta deveria demonstrar seu estado de espírito até no ato de
descrever um açucareiro. Na minha poesia a mulher é um tema a
mais, como qualquer outro. Não o utilizo para confessar frustrações
amorosas. Descrevo uma mulher sem biografia; o que ela
representou na minha vida não vem ao caso” (MELO NETO, 1995,
In: Secchin, p.305).
Essa resposta de Cabral é uma negação ao sentimentalismo. O poeta não
quer se fazer pessoalizado e afirma ser esse tema mais em sua poética. A resposta
defensiva em dizer de uma mulher sem biografia a coloca no lugar de um objeto, a
70
fim de que não enxergarmos a mulher sensualizada, mas a linguagem e imagem
poéticas, expondo veladamente a eroticidade na representação feminina.
Percebemos em Quaderna um sujeito lírico que eleva o corpo da mulher em
um nível que não deve ser descrito por uma mera visão pessoalizada, mas
utilizando-se de comparações, metáforas e outras figuras retóricas. Nesse sentido, o
poeta trata a mulher como tema amoroso não como exemplo amoroso, o faz de
forma distanciada, mesmo quando o sujeito lírico firma uma cumplicidade com a
imagem representativa da mulher.
As referências à mulher são feitas por meio de elementos naturais que
remetem a sensações. A mulher é água (onda, poço, rio), fogo, animal, fruta, casa,
vegetal, mineral, gaiola, palavra, enfim, a mulher é identificada por elementos
naturais concretos, o concreto poetiza a imagem feminina. O feminino é
gradativamente desvelado pela imagem da mulher construída a partir das sensações
que se fazem ver no espaço poético. Ressalta Ávila:
O que surge aos nossos olhos, então, é uma poesia de inspiração
erótica, elaborada a partir da erotização do objeto concreto, das
palavras triviais e prosaicas, que adquirem pelo tratamento poético a
condição sensorial, visual, tátil e olfativa do objeto “suspenso”. Esse
objeto suspenso, subliminar é a mulher (ÁVILA, 1995, p. 163).
Como ocorre nos poemas “Imitação da Água” e “Rio e/ou Poço”, aqui a
mulher é água. Elemento natural símbolo da vida, líquido placentário. Além dessa
identificação maternal, pode-se perceber a erotização difundida ao longo dos
poemas. No primeiro, a mulher é “onda do mar”, a mulher é comparada a onda
principalmente no que se refere a suas curvas, o elemento erótico está no ato de
doação da mulher, em esperar a voz lírica para o ato sexual: “Uma onda que
guardasse / na praia cama, finita,”. Segundo Secchin, a imagem poética apresenta
uma mulher sendo onda, “mulher na cama, onda no mar” (SECCHIN, 1995, p.142).
A onda percorre seu caminho até derramar-se na praia, nesse sentido a mulher
entrega-se ao momento sexual, derrama-se: “De flanco sobre o lençol”. Na primeira
estrofe, a mulher já está posta no cenário poético a espera de sedução:
“De flanco sobre o lençol,
paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia te parecias.
(p.260)
71
Gradativamente o eu-lírico se aproxima da mulher suspensa na imagem
poética, até que com cumplicidade adentra sua intimidade. Na última estrofe, a
mulher é abraçada assim como a onda abraça um corpo:
“(...)
Mais o clima de águas fundas,
a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.
(p.260)
No segundo poema “Rio e/ou Poço”, as antíteses são pontos de destaque da
imagem feminina construída por meio de contraposições entre “mulher deitada: rio” e
“mulher em pé: poço”, claramente visualizada nos versos: “Quando tu, na vertical, /
te ergues, de em ti mesma” e “Mas quando na horizontal, / em certas horas, te
deixas,”. A leitura de Antonio Secchin (1995) enfatiza a utilização dessa antítese
horizontal vertical. Conclui que a melhor imagem vertical da mulher é a horizontal,
pois também embute a ideia de movimento e estaticidade, na vertical a mulher está
estática impõe-se uma imagem proposta pela sociedade, enquanto na horizontal ela
pode fluir, movimentar-se, referindo-se ao ato sexual.
Em dado momento a mulher não se faz somente objeto metafórico de rio ou
poço, ela é afirmada como tal:
“(...)
então, se é da água corrente,
por longa, tua aparência,
somente a água de um poço
expressa tua natureza;”
(p.251)
A experimentação conivente entre a voz lírica e a mulher, desnuda toda a
representatividade do objeto rio / poço na caracterização feminina, a mulher deixa de
ser imagem do concreto e passa a ser o próprio concreto: “expressa tua natureza”. A
mulher é o natural feminino (des)velado, não mais o rio ou o poço.
As contradições marcadas ao longo do poema vão deixando a disparidade. A
cada estrofe se tornam paralelas e convergem para um final único, as duas
72
possibilidades da mulher tornam-na uma única mulher, porém, com características
opostas, a mulher é água leve e densa:
“(...)
água em si mesma, parada,
e que ao parar mais se adensa,
água densa de água, como
de alma tua alma está densa.”
(p.252)
O elemento natural água é emblema de nitidez, claridade e realidade do
(re)conhecimento, do saber-se “eu”. A água toma o papel de espelho, de reprodutora
das imagens nela refletidas. Desse modo, a mulher se (re)conhece por meio da água
com a qual é metaforizada. O discurso de Bachelard caracteriza a água como
material válido para o conhecimento pessoal e para reconhecimento do indivíduo
como parte do outro:
Diante das águas, Narciso tem a revelação de sua identidade e de
sua dualidade, a revelação de seus duplos poderes viris e femininos,
a revelação sobretudo de sua realidade e de sua idealidade
(BACHELARD, apud MATOS, 1981, p.34).
Nesse sentido a mulher diante da água (re)conhece sua alma, sua
consciência, tem a “revelação de sua identidade” aproxima-se de sua realidade e
devaneios. Porém, o discurso de Bachelard não caracteriza a água somente como
fonte de reconhecimento interior:
É certo que, para Bachelard, a água também se apresenta como
expressão da sexualidade, travestida em sua materialização móvel,
como rio, riacho, lago ou cachoeira, evocando em sua translucidez a
nudez feminina, uma nudez pemissiva, volúvel e ostensiva (MATOS,
2001, p.34).
O que claramente ocorre nos poemas “Imitação da Água” e em “Rio e/ou
Poço”, é que a mulher é exposta como expressão da sexualidade por meio do
elemento translúcido água e materializada como onda, rio e poço. Deste modo, é
despida e igualada à transparência da água em diferentes ambientes
representativos.
73
A materialização do feminino se em Quaderna também no espaço
arquitetônico. No poema “A mulher e a Casa”, casa como espaço habitável se
desdobra metonimicamente, ao passo que a mulher, ora é continente, ora é
elemento contido.
Em “A mulher e a Casa” o sujeito lírico adentra no ambiente, inicialmente a
mulher é continente: “Tua sedução é menos / de mulher do que de casa”, persiste
continente: “uma casa não é nunca / para ser contemplada;” a voz lírica passa a
persuadi-la e inicia o processo de transformação em conteúdo, a mulher é o
conteúdo da casa: “Seduz pelo que é dentro, / ou será quando se abra;” e
gradativamente ela passa a estar contida na casa: “pelos espaços de dentro: / seus
recintos suas áreas, / organizando-se dentro / em corredores e salas,”. Na última
estrofe, a mulher é a arquitetura, o objeto-mulher é agora o objeto-casa: “a vontade
de corrê-la / por dentro, de visitá-la.” Podemos inclusive aludir sobre a intimidade
entre o eu lírico e a mulher numa relação entre morador e moradia.
O movimento previsto semanticamente pelo vocábulo ‘contido’ implica
envolvimento, é ocorrência comum nos poemas de Quaderna a mulher envolver-se
ou ser envolvida. Vejamos os grifos nos poemas:
Em “Estudos para uma Bailadora Andaluza”:
“Na sua dança se assiste
Como ao processo da espiga:
Verde, envolvida de palha;
Madura, quase despida.
Em “Paisagem ao telefone”:
“Pois, assim, no telefone
Tua voz me parecia
Como se tal manhã
Estivesse envolvida,”
Em “História Natural”:
“que enquanto embaraçada
Lembrava um cipoal
(no de parecer uma
Sendo mesmo plural).”
Em “A Mulher e a Casa”:
“Tua sedução é menos
74
De mulher do que de casa:
Pois vem de como é por dentro
Ou por detrás da fachada.”
Em “A Palavra Seda”:
“A atmosfera que te envolve
Atinge tais atmosferas
Que transforma muitas coisas
Que te concernem, ou cercam.”
Em “Rio e/ou Poço”:
“Só uma água vertical,
Água parada em si mesma,
Água vertical de poço,
Água toda em profundeza,”
Em “Imitação da Água”:
“Mais o clima de águas fundas,
A intimidade sombria
E certo abraçar completo
Que os dos líquidos copias.”
Em “Mulher Vestida de Gaiola”:
“Parece que vives sempre
De uma gaiola envolvida,
Isenta, numa gaiola,
De uma gaiola vestida,
Em “Jogos Frutais”:
“Luminosos cristais
Possuis internos
Iguais aos do ar que o verão
Usa em setembro.
Essa tessitura vocabular amplia os horizontes imagéticos da poesia de João
Cabral, criando possibilidades do erótico se mostrar significativamente por meio das
palavras que se deslocam, criando diferentes concepções da ação como sujeito
ativo: “envolver” e como sujeito passivo: “estar envolvido”. Samira Chalhub (s/d)
pontua esse jogo vocabular como uma das características da arte:
Todas as palavras que se revertem em substitutos refazem o
dicionário referencial a arte destina-se, exatamente, a criar lexias,
signos, outros, que deslocam o apontamento reconhecido e
75
proporcionam uma nova tríade signo-objeto-referente” (CHALHUB,
s/d, p.35).
Não encontramos na obra de João Cabral a mulher desvelada pela
sensualidade pura e vulgar, não se encontra palavras de baixo calão ou partes do
corpo feminino coxa, nádegas, seios, genitália sensualmente desnudadas. A
mulher é desvelada pela construção imagética, a nudez revela-se e esconde-se por
meio das imagens concretas com as quais ela é similarizada. Tem-se um peculiar
erotismo cabralino tecido entre comparações e metáforas que potencializam o
(des)velamento da figura feminina. A erotização está na tênue linha entre o velado,
vestido, escondido e o desvelado, desnudo, demonstrado. Com Roland Barthes
(1993), entendemos esse espesso fio tensional que perpassa a poética de João
Cabral:
O lugar mais erótico de um corpo não é onde o vestuário se
entreabre? Na perversão (que é o regime do prazer textual) não
“zonas erógenas” (expressão aliás bastante inoportuna); é a
intermitência, como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica: a
da pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre
duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e a manga); é essa
cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de um
aparecimento-desaparecimento (BARTHES, 1993, p.16).
A imagem feminina é eroticamente sensualizada pelo mostrar-se e o
mostrar-se na água (onda, rio, poço), na arquitetura, na geografia, nos elementos
vegetais, minerais e animais. O sexo fica restrito às imagens, ele é indiretamente
figurado no velar e desvelar do corpo feminino, ao lado de objetos que insinuam ao
leitor erotização. Como nos versos do poema “Estudos para uma Bailadora
Andaluza”: “é a espiga, nua e espigada, / rompente e esbelta, em espiga.” A mulher
identificada à espiga é desnudada enquanto espiga, e encena sensualidade, ao
leitor cabe a imagem poética do instante concreto: mulher-espiga.
A consciência do discurso poético é ponto-chave em Cabral, de modo que até
mesmo de seu concreto objeto de trabalho ele extrai a visualidade erótica. No
poema “A Palavra Seda”, a palavra, instrumento do poeta, produz um ambiente
concretamente sensualizado:
“(...)
E como as coisas, palavras
76
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até mesmo este poema, seda.
É certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
(...)”
(p.246)
Inicialmente a voz lírica equipara “palavra” a “coisa” determinando a palavra
como objeto. Tatilmente a palavra torna-se pessoa: “de tua pessoa externa”, “de tua
pele e de tudo”. A palavra é pessoalizada, não é somente parte visível, que o sujeito
lírico deseja tocar. Dessa maneira, a palavra é humanizada no discurso. Tal
humanização se firma nos versos: “há algo de muscular, / de animal, carnal,
pantera,”.
A concretude da humanização cabralina se faz no ambiente do tátil-visível.
Em alguns poemas o objeto transmuta-se em pessoa pelo seu conteúdo material, o
vocábulo “carne” enquanto sua linha semântica figura o objeto em corpo-carnal. É o
que se nota nos poemas:
“Estudos Para uma Bailadora Andaluza”:
“gestos do corpo do fogo,
de sua carne em agonia,
carne de fogo, só nervos,
carne toda em carne viva.”
“A Palavra Seda”:
“há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,”
“Jogos Frutais”:
“És fruta de carne ácida,
de carne e de alma;
77
diversa da do mamão,
triste, estagnada.
e vem teu charme
do leve sabor de podre
na jovem carne.”.
O ambiente sensorial palpável na poética de João Cabral que se enfatiza pela
palavra “carne”, é também gustativo, olfativo e visualmente metaforizado no tecido
muscular da mulher-fruta no poema “Jogos Frutais”. Nesse poema o sujeito lírico
constrói a imagem feminina a partir da concreção sensorial , a fruta é mulher-tato:
“De fruta é tua textura”, mulher-sabor: “Fruta que se saboreia,”, “És fruta de carne
ácida”, “não és aquosa”, é mulher-cheiro: “mas é uma fruta flor, / olor somente” e
mulher-visualidade: “O mesmo metal de cana / tersa e brunida”, “Estás desenha a
lápis”. Essa tessitura harmoniosa da personificação da mulher por imagens
sensorialmente concretizadas flagra uma mulher real, que sente sensorialmente, que
é desnudada por suas premissas femininas, não por subjetivismos pessoalizados do
sujeito lírico.
O espaço poemático de “Jogos Frutais” não é somente habitado pelo sujeito
lírico e pela mulher que gradativamente se reconhecem, mas o leitor participa desse
momento pela visualidade verossímil, o poeta nos (re)vela uma mulher de carne,
com características reais, e que (des)veladamente é seduzida, as sensações
literárias são dadas às vistas e aos sentidos.
Visibilidade e sentido se fazem presente também no poema “Estudos para
uma Bailadora Andaluza”, que inicia Quaderna. A assimilação da mulher com o
visível por meio dos elementos naturais está presente também nos demais poemas
do livro de cunho erotizado. Porém nesse a mulher é fogo, e segundo Bachelard,
fogo é o elemento que simboliza a união dos quatro elementos:
O fogo sexualizado é por excelência o traço de todos os símbolos.
Une a matéria e o espírito, o vício e a virtude. Idealiza os
conhecimentos materialistas; materializa os conhecimentos
idealistas. É o princípio de uma ambigüidade essencial que possui o
seu encanto, mas que é preciso denunciar constantemente,
psicanalisar sempre nas duas utilizações contrárias: contra os
materiais e contra os espiritualistas (BACHELARD, apud MATOS,
2001, p.35).
78
Podemos identificar nesse poema a mulher similarizada aos elementos
naturais, evidenciando a união da matéria e do espírito. Nesse sentido, a mulher
pode ser terra: “mas se orgulha de ser terra”, água: fluindo, informe e sem regra,”
ar, em referência aos saltos da bailarina: “Assim, em vez dessa ave / coisa que
parece sempre / aspirar a bailarina,” e fogo: “Todos os gestos do fogo”, “gestos do
corpo do fogo,”.
Diferente dos demais poemas do livro, a voz lírica nesse poema é marcada
pela terceira pessoa. Nesse sentido, segundo Secchin (1995), o olhar recairá sobre
a dança, o corpo é o veículo da imagem poética que propicia a construção
metonímicas do feminino erotizado. O ambiente imagético proposto não é privado, a
terceira voz enfatiza o caráter público do espetáculo. Desse modo, os
desdobramentos dar-se-ão sobre a exposição da imagem base da bailadora.
O bailado propõe uma ciclicidade ao poema desenvolvido pela imagem da
mulher que é o objeto de deslocação, o eu lírico mostra essa mulher como
expectador diante da figura desejada. Além da movimentação exposta pela própria
dança: “Sua dança sempre acaba / igual quando começa”, a imagem da bailadora
também perpassa um caminho cíclico no ambiente poemático. Na primeira estrofe,
“Dir-se-ia quando aparece / que com a imagem do fogo”, a mulher é apresentada
como fogo, é a representação da sexualidade na conjunção dos elementos. Nesse
sentido, mulher e fogo são um único elemento. O poema se desenvolve
evidenciando a mulher e sua relação com vários elementos, como mencionado
acima. Nas duas últimas estrofes, “porque, terminada a dança”, “a imagem que a
memória conservará / é a espiga, nua e espigada, / rompente e esbelta, em
espiga.”. A mulher volta à origem, ela agora é espiga, vegetal, semente, é o cosmo
poético.
Origem cósmica proposta no corpo do poema que, retrata uma cultura típica
andaluza suguiriyas”, forma de dança flamenca, na expressão do vegetal típico
nordestino “é a espiga, nua e espigada”.
Nesse sentido, Cabral nos aponta para uma unicidade entre mulher, origem,
cultura e natureza. A bailadora é sua dança, sua dança é sua cultura, sua cultura é
parte de sua natureza e ambos são universais, como os quatro elementos
identificados biologicamente no poema, que ciclicamente voltam às origens para
(re)conhecer o eu e o não eu. Isso nos faz pensar no homem como Sapiens-
Demens, como fundamenta a antropologia:
79
Entender o homem como vivente cosmo-psico-bio-antropos-social
implica devolvê-lo ao império da natureza, sem retirá-lo da república
da cultura, descentrá-lo de sua superioridade, para reinseri-lo na
diáspora cósmica universal. (...) Implica definir o homem como um
ser totalmente biológico e totalmente cultural. Diante da dupla
articulação, é forçoso reconhecer que o Sapiens-demens é capaz de
identificar noologias que circundam a vida das ideias, do espírito e da
própria sociedade (CARVALHO, 2002, p.167-168).
Nesse sentido entendemos a poética de Quaderna como um ambiente que
nos apresenta uma mulher o individualizada, mas cósmica e universal. A mulher
que traz em sua carne e alma, “És fruta de carne jovem / e de alma alacre”, “És fruta
de carne ácida / de carne e de alma”, os elementos universais, a alegria da
maternidade, a jovialidade da libido e sedução, a essência da sabedoria e
conhecimento, a acidez da vida. A mulher concretamente cabralina, severina.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quaderna assume um movimento na poética cabralina que vai do particular
ao universal. Da mulher como imagem, símbolo e matéria poética que condensa o
(des)velamento do eu e restaura a possibilidade do fazer poesia, não por elementos
já poetizados.
A operacionalização da voz lírica na poética de João Cabral perpassa todo o
discurso poemático, a imagem concreta é a maneira de impor seu lirismo. No caso
de Quaderna, a concretude é a revelação de um lirismo inscrito no discurso que
delineia o feminino por elementos visíveis. A relação entre objetos materiais e
naturais com a imagem do feminino criam um efeito de estranhamento e
distanciamento. O elemento erótico é sensorialmente descrito, não insinuação
sexual, há composição lírica que sensualiza o discurso poético, propondo uma
leitura erotizada.
A materialização dessa peculiar voz lírica cabralina se faz presente por meio
da escritura racionalizada e sensível do poeta, que busca a concreção objetiva, não
ambígua e a visualização das imagens retóricas, confirmando o que diz Benedito
Nunes:
Por sob o movimento das palavras, lateja sempre o movimento das
coisas. O essencial ao poeta é ver e dar a ver, (...) esses dois
movimentos, jamais desligados, fazendo-se e completando-se um no
outro. Nessas condições, ir da coisa à palavra ou da palavra à coisa
são percursos equivalentes no âmbito da linguagem-objeto (NUNES,
1971,p. 162).
Esse lirismo firmado pela elaboração da linguagem é tensamente oposto ao
lirismo clássico de discurso sentimentalizado. Em Cabral a palavra é objeto de um
discurso impessoal que presentifica o sensível por meio de metáforas e retóricas
sensoriais. O tensional cabralino está primordialmente na escritura, não na
particularidade do sujeito lírico. Assim como Benedito Nunes, Marta Peixoto também
confirma nossa leitura:
Nas relações entre a voz narradora, a palavra e o objeto, a
impessoalidade e o lirismo se confrontam, e a palavra poética, em
seu esforço de captar o objeto e superar as discrepâncias entre
81
linguagem e realidade, luta com sua própria insuficiência (PEIXOTO,
1983, p.13).
Esse discurso tátil-visual de João Cabral desnuda o feminino por uma
abundância imagética, transversalmente ligada a metáforas, comparações e outras
figuras retóricas. Por meio dessas figuras, o sujeito lírico (re)vela o erotismo feminino
relacionando o sexo ao corpo, propondo um erotismo velado o direto. Esse
erotismo-amoroso cabralino está subentendido no discurso retórico próprio da
linguagem poética bem elaborada. A sensualidade discursiva é imposta não pelo
que se quer dizer, mas pelo modo como se diz, confirmando o próprio poeta: “Poesia
é a maneira de tratar a linguagem” (MELO NETO, In: Athayde, 1998, p.76).
Em Quaderna o feminino é condensado como imagem identitária da mulher,
ela é o símbolo da universalidade, é água dura que flui, é fruta doce e ácida, é
carne, é animal que luta, é fogo gestual, é terra mãe e vida. João Cabral de Melo
Neto realizou desse modo, uma poesia lírica de cunho erótico-amoroso por meio da
figura feminina, identificada e reinventada por um discurso poético que prioriza a
escritura como fonte de lirismo.
82
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86
ANEXOS
Estudos Para uma Bailadora Andaluza
1
Dir-se-ia, quando aparece
dançando por suguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se idenfica
Todos os gestos do fogo
que então possui dir-se-ia:
gestos das folhas do fogo,
de seu cabelo, sua língua;
gestos do corpo do fogo,
de sua carne em agonia,
carne de fogo, só nervos,
carne toda em carne viva.
Então, o caráter do fogo
nela também se adivinha:
mesmo gosto dos extremos,
de natureza faminta,
gosto de chegar ao fim
de que ele se aproxima,
gosto de chegar ao fim,
de atingir a própria cinza.
Porém a imagem do fogo
é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz
com ela é, siguiriyas,
de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,
que somente ela é capaz
de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha.
2
Subida ao dorso da dança
(vai carregada, ou a carrega?)
87
é impossível se dizer
se é cavaleira ou é égua.
Ela tem na sua dança
toda a energia retesa
e todo o nervo de quando
algum cavalo se encrespa.
Isto é: tanto a tensão
de que vai montado em sela,
de quem monta um animal
e só a custo o debela,
como a tensão do animal
dominado sob a rédea,
que ressente ser mandado
e obedecendo protesta.
Então, como declarar
se ela é égua ou cavaleira:
há uma tal conformidade
entre o que é animal e é ela,
entre a parte que domina
e a parte que se rebela,
entre o que nela cavalga
e o que é cavalgado nela,
que o melhor será dizer
de ambas, cavaleira e égua,
que são de uma mesma coisa
e que um só nervo as inerva,
e que é impossível traçar
nenhuma linha fronteira
entre ela e a montaria:
ela é égua e a cavaleira.
3
Quando está taconeando
a cabeça, atenta, inclina,
como se buscasse ouvir
alguma voz indistinta.
Há nessa atenção curvada
muito de telegrafista,
atento para não perder
a mensagem transmitida.
88
Mas o que faz duvidar
possa ser telegrafia
aquelas respostas que
suas pernas pronunciam
é que a mensagem de quem
lá do outro lado da linha
ela responde tão séria
nos passa despercebida.
Mas depois já não há dúvida:
é mesmo telegrafia:
mesmo que não se perceba
a mensagem recebida,
se vem de um ponto no fundo
do tablado ou de sua vida,
se a linguagem do diálogo
é em código ou ostensiva,
já não cabe duvidar:
deve ser telegrafia:
basta escutar a diccção
tão morse e tão desflorida,
linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
a dicção em preto e branco
de sua perna polida.
4
Ela não pisa na terra
como quem a propicia
para que lhe seja leve
quando se enterre, num dia.
Ela a trata com a dura
e muscular energia
do camponês que cavando
sabe que a terra amacia.
Do camponês de quem tem
sotaque andaluz caipira
e o tornozelo robusto
que mais se planta que pisa.
Assim, em vez dessa ave
assexuada e mofina,
89
coisa a que parece sempre
aspirar a bailarina,
esta se quer uma árvore
firme na terra, nativa,
que não quer negar a terra
nem, como ave, fugi-la.
Árvore que estima a terra
de que se sabe família
e por isso trata a terra
com tanta dureza íntima.
Mais: que ao saber da terra
não só na terra afinca
pelos troncos dessas pernas
fortes, terrenas, maciças,
mas se orgulha de ser terra
e dela se reafirma,
batendo-a enquanto dança,
para vencer quem duvida.
5
Sua dança sempre acaba
igual como se começa,
tal esses livros iguais
coberta e contra-coberta:
com a mesma posição
como que talhada em pedra:
um momento está estátua,
desafiante, à espera.
Mas se essas duas estátuas
mesma atitude observam,
aquilo que desafiam
parece coisas diversas.
A primeira das estátuas
que ela é, quando começa,
parece desafiar
alguma presença interna
que no fundo dela própria,
fluindo, informe e sem regra,
por sua vez a desafia
a ver quem é que a modela.
90
Enquanto a estátua final,
por igual que ela pareça,
que ela é, quando um estilo
já impôs à íntima presa,
parece mais desafio
a quem está na assistência,
como para indagar quem
a mesma façanha tenta.
O livro de sua dança
Capas iguais o encerram:
com a figura desafiante
de suas estátuas acesas.
6
Na sua dança se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.
Parece que sua dança
ao ser dançada, á medida
que avança, a vai despojando
da folhagem que vestia.
Não só da vegetação
de que ela dança vestida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil é chita)
mas também dessa outra flora
a que seus braços dão vida,
densa floresta de gestos
a que dão vida e agonia.
Na verdade, embora tudo
aquilo que ela leva em cima,
embora, de fato sempre,
continue nela a vesti-la,
parece que vai perdendo
a opacidade que tinha
e, como a palha que seca,
vai aos poucos entreabrindo-a.
Ou então é que essa folhagem
vai ficando impercebida:
91
porque, terminada a dança
embora a roupa persista,
a imagem que memória
conservará em sua vista
é a espiga, nua e espidgada,
rompente e esbelta, em espiga.
_______________________________________________________________
História Natural
1
O amor de passagem,
o amor acidental,
se dá entre dois corpos
no plano do animal,
quando são mais sensíveis
à atração pelo sal,
têm o dom de mover-se
e saltar o curral.
O encontro realizado,
juntados em casal,
eis que vão assumindo
o cerimonial
que agora é já difícil
definir-se de qual:
se ainda do semovente
ou já do vegetal
(pois os gestos revelam
o ritmo luminal
de planta, que se move
mas no mesmo local).
No fim, já não se sabe
se ainda é vegetal
ou se a planta se fez
formação mineral
à força de querer
permanecer tal qual,
na permanência aguda
92
que é própria do cristal,
que não só pode ser
o imóvel mais cabal
mas que ao estar imóvel
está aceso e atual.
2
Depois vem o regresso:
sobem do mineral
para voltar à tona
do reino habitual.
Vem o desintegrar-se
dessa pedra ou metal
em que antes se soldara
o duplo vegetal.
Que enquanto embaraçada
lembrava um cipoal
(no de parecer uma
sendo mesmo plural).
Vem o desabraçar-se
sem querer, gradual,
de plantas que não querem
subir ao animal
certo por compreender
que o bicho inicial
a que agora regressam
(já vão no vegetal),
certo por compreender
que o bicho original
a que já regressaram
desliados, afinal,
não mais se encontrarão
no palheiro ou areal
multi-multiplicado
de qualquer capital.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
93
A Mulher e a Casa
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,
uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.
Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;
pelo que dentro fizeram
com seus vazios, como o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;
pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,
os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,
exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
_______________________________________________________________
A Palavra Seda
A atmosfera que te envolve
94
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E como as coisas, palavras
impossíveis do poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.
É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza,
que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.
_______________________________________________________________
Rio e/ou Poço
Quando tu, na vertical,
te ergues, de pé em ti mesma,
é possível descrever-te
com a água da correnteza;
tens a alegria infantil,
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popular, passarinheira,
de um riacho horizontal
(e embora de pé estejas).
Mas quando na horizontal,
em certas, horas, te deixas,
que é quando, por fora, mais,
as águas correntes lembras,
mas quando à tua extensão,
como se rio, te entregas,
quando te deitas em rio
que se deita sobre a terra,
então, se é da água corrente,
por longa, tua aparência,
somente a água de um poço
expressa tua natureza;
só uma água vertical
pode, de alguma maneira,
ser a imagem do que és
quando horizontal e queda.
Só uma água vertical,
água parada em si mesma,
água vertical de poço,
água toda em profundeza,
água em si mesma, parada,
e que ao parar mais se adensa,
água densa de água, como
de alma tua alma está densa.
_______________________________________________________________
Imitação da Água
De flanco sobre o lençol,
paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te aprecias
Uma onda que parava
ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.
96
Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.
Uma onda que parava
ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista
e se fizesse montanha
(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.
Uma onda que guardasse
na praia cama, finita,
a natureza sem fim
do mar de que participa,
e em sua imobilidade,
que precária se adivinha,
o dom de se derramar
que as águas faz femininas
mais o clima de águas fundas,
a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.
_______________________________________________________________
Mulher Vestida de Gaiola
Parece que vives sempre
de uma gaiola envolvida,
isenta, numa gaiola,
de uma gaiola vestida,
de uma gaiola, cortada,
em tua exata medida
numa matéria isolante:
gaiola-blusa ou camisa.
E assim como tu resides
nessa gaiola, cingida,
o vasto espaço que sobra
de tua gaiola-ilha
97
é como outra gaiola
igual que o mar: sem medida
e aberto em todos os lados
(menos no que te limita).
Pois nessa gaiola externa
onde tudo tem cabida,
onde cabe Pernambuco
e o resto da geografia,
três bilhões de humanidade
até canaviais de usina
sei que se debate um pássaro
que a acha pequena ainda.
Tal gaiola para ele
mais do que gaiola é brida;
como cárcere lhe aperta
sua gaiola infinita
e lhe aperta exatamente
por essa parede mínima
em que sua gaiola-mundo
com a tua faz divisa.
Contra essa curta parede
entre ti e ele contígua,
que te defende e para ele
é de força, é de camisa,
todo dia se debate
a sua força expansiva
(não de pássaro, de enchente,
de enchente do mar de Olinda).
Por que ele a quem sua gaiola
de outros lados não limita,
deseja invadir o espaço
de nada que tu lhe tiras?
Por que deseja assaltar
precisamente a área estrita
da gaiola em que resides,
melhor: de que estás vestida?
_____________________________________________________________________________________
98
Jogos Frutais
Da fruta é tua textura
e assim concreta;
textura densa que a luz
não atravessa.
Sem transparência:
não de água clara, porém
de mel intensa.
Intensa é tua textura
porém não cega;
sim de coisa que tem luz
própria, interna.
E tens idêntica
carnação de mel de cana
e luz morena.
Luminosos cristais
possuis internos
iguais aos do ar que o verão
usa em setembro.
E há em tua pele
o sol da frutas que o verão
traz no Nordeste.
É de fruta do Nordeste
tua epiderme;
mesma carnação dourada,
solar e alegre.
Frutas crescidas
no Recife relavado
de suas brisas.
Das frutas do Recife,
de sua família,
tens a madeira tirante,
muito mais rica.
E o mesmo duro
motor animal que pulsa
igual que um pulso.
99
De fruta pernambucana
tens o animal,
frutas quase animais
e carne carnal.
Também aquelas
de mais certa medida,
melhor receita.
O teu encanto está
em tua medida,
da fruta pernambucana,
sempre concisa.
E teu segredo
em que por mais justo tens
corpo mais tenso.
Tens de uma fruta aquele
tamanho justo;
não de todas, de fruta
de Pernambuco.
Mangas, mangabas
do Recife, que sabe
mais desenhá-las.
És um fruto medido,
bem desenhado;
diverso em tudo da jaca,
do jenipapo.
Não és aquosa
nem fruta que se derrama
vaga e sem forma.
Estas desenhada a lápis
de ponta fina,
tal como a cana-de-açúcar
que é pura linha.
E emerge exata
da múltipla confusão
da própria palha.
És tão elegante quanto
um pé d cana,
despindo a perna nua
de entre a palha.
100
E tens a perna
do mesmo metal sadio
da cana esbelta.
O mesmo metal da cana
tersa e brunida
possuis, e também do oiti,
que é pura fibra.
Porém profunda
tanta fibra desfaz-se
mucosa e úmida.
Da pitomba possuis
a qualidade
mucosa, quando secreta,
de tua carne.
Também do ingá,
de musgo fresco ao dente
e ao polegar.
Não és uma fruta fruta
só para o dente,
nem és um fruta flor,
olor somente.
Fruta completa:
para todos os sentidos,
para cama e mesa.
És uma fruta múltipla,
mas simples, lógica;
nada tens de metafísica
ou metafórica.
Não és O Fruto
e nem para A Semente
te vejo muito.
Não te vejo em semente,
futura e grávida;
tampouco em vitamina,
em castas drágeas.
Em ti apenas
vejo o que se saboreia,
não o que alimenta.
101
Fruta que se saboreia,
não que alimenta:
assim descrevo melhor
a tua urgência.
Urgência aquela
de fruta que nos convida
a fundir-nos nela.
Tens a aparência fácil,
convidativa,
de fruta de muito açúcar
que dá formiga.
E tens o apelo
da sapota e do sapoti
que dão morcego.
De fruta é atração
que tens, a mesma;
que tens de fruta, atração
reta e indefesa.
Sempre tão forte na carne jovem
e de alma álacre,
diversa do oiti-coró
porque picante.
E, tamarindo,
deixas em que te conhece
dentes mais finos.
És fruta de carne ácida,
de carne e de alma;
diversa da do mamão,
triste, estagnada.
É do nervoso
cajá que tens o sabor
e o nervo-exposto.
És fruta de carne acesa,
sempre em agraz,
como araçás, guabirabas,
maracujás.
Também mangaba,
deixas em quem te conhece
visgo, borracha.
102
Não és fruta que o tempo
ou copo de água
lava de nossa boca
como se nada.
Jamais pitanga,
que lava a língua e a sede
de todo estanca.
Aumentas a sede como
fruta madura
que começa a corromper-se
no seu açúcar.
Ácida e verde:
contudo, a quem te conhece
só dás mais sede.
Ácida e verde, porém
já anuncias
o açúcar maduro que
terás um dia.
E vem teu charme
do leve sabor de podre
na jovem carne.
Ao gosto limpo do caju,
de praia e sol,
juntas o da manga mórbida,
sombra e langor.
Sabes a ambas
em teus contrastes de fruta
pernambucana.
Sem dúvida, és mesmo fruta
pernambucana:
a graviola, a mangaba
e certas mangas.
De tanto açúcar
que ainda verdes parecem
já estar corruptas.
És assim fruta verde
e nem tão verde,
e é assim que te vejo
de há muito e sempre.
103
E bem se entende
que uns te digam podre e outros
te digam verde.
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