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ELISABETH LINHARES CATUNDA
POLIFONIA E DISCURSO JURÍDICO: UM ESTUDO DAS VOZES NAS
SENTENÇAS
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Lingüística, da
Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor
em Linguística. Área de concentração.
Aprovada em ___/___/ 2010.
BANCA EXAMINADORA:
_______________________________________________________
Profa. Dra. Maria Elias Soares (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_______________________________________________________
Prof. Dr. Gilton Sampaio Sousa (1º Examinador)
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN)
_______________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Luciano Pontes (2º Examinador)
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
_______________________________________________________
Profa. Dra. Maria Margarete Fernandes de Sousa (3º Examinador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_______________________________________________________
Profa. Dra. Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista (4º Examinador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
4
“A vida é dialógica por natureza. Viver
significa participar de um diálogo: interrogar,
escutar, responder, concordar etc. Neste
diálogo o homem participa todo e com toda a
sua vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a
alma, o espírito, com o corpo todo, com as
suas ações. Ele se põe todo na palavra, e esta
palavra entra no tecido dialógico da existência
humana, no simpósio universal”
MIKHAIL BAKHTIN
5
Dedicatória
A Deus, por ser fonte de todo amor e glória em minha
vida;
Aos meus pais, Eudes e Aparecida, por todo amor, pela
luta em formar todos nós, seus filhos, e por nos
proporcionar sermos o que somos;
Aos meus irmãos, Elda, Elvis, Elza, Elba, Elielda e
Erica, pela amizade e apoio incondicionais;
Aos meus sobrinhos, Valeska, Weridiana, João Paulo,
Carolina, Marcelo, Thiago, Wagner, Camila, Renan,
André, Alexander Filho, João Pedro e Leonardo, por
tornarem a minha vida mais colorida e feliz.
6
Agradecimentos
À professora Dra. Maria Elias Soares, pela perfeita tradução do “ser orientadora”,
aquela que guia sem conduzir, aquela que mostra os caminhos, mas não escolhe a
estrada.
Ainda à Maria, pela amizade e carinho, pelo seu sorriso sempre acolhedor.
Ao Programa de Pós-graduação em Lingüística, na pessoa de todos os seus professores
e funcionários, por tudo o que vivi e aprendi junto a vocês.
A CAPES, pela bolsa de estudos que me foi concedida durante o período deste estudo.
Ao Grupo Protexto, não por permitir meu afastamento durante a elaboração desta
pesquisa, mas por se fazer presente em minha vida como pesquisadora.
Aos professores, participantes da banca, Gilton Sampaio, Luciano Pontes, Margarete
Sousa e Lívia Baptista, por todas as contribuições a esta pesquisa;
Às amigas, Cláudia, Bárbara e Silvana, por compartilharem as alegrias e angústias do
fazer científico.
Ao amigo, Jean Batista, Defensor Público, por me ajudar a constituir o corpus desta
pesquisa.
Aos amigos que "torceram" por este trabalho: Cinthia, Silvio, Bernadete, Vânia, Sandra,
Eugênia e Paulo, entre outros aqui não nomeados.
Enfim, a todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização
desta etapa em minha vida.
7
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo fazer um estudo da polifonia do discurso jurídico,
mais especificamente da sentença de primeira instância e dos acórdãos jurídicos, ambos
os textos de cunho decisório na área Jurídica, a partir da análise de suas marcas
características e/ ou de sua organização textual e tem como objetivo geral analisar a
correlação entre o aspecto fomulaico dos gêneros em estudo e a constituição da
polifonia presente neles. Como objetivos específicos, a pesquisa centra-se na
identificação das marcas que comprovam a natureza polifônica da sentença de primeira
instância e do acórdão; na análise das marcas de desdobramento da voz do Estado em
leis, jurisprudência e doutrina; na análise da sobreposição e/ ou hierarquização de vozes
nas sentenças, principalmente a sobreposição da voz do juiz na sentença pelos
desembargadores no acórdão. Para o tratamento da polifonia constitutiva foram
selecionadas 24 peças decisórias sentenças de primeira instância e acórdãos
oriundos de fóruns e tribunais do estado do Ceará. Os métodos elencados foram o
indutivo, visto que se partiu das marcas observadas para que fosse possível tecer
considerações sobre o comportamento polifônico dos gêneros jurídicos; o método
qualitativo para se proceder a análise das marcas e o método bibliográfico, com o
propósito de se ter uma leitura mais apurada do fenômeno polifônico. A abordagem
dada ao tema baseou-se em pressupostos da Semântica Argumentativa e, como aparato
teórico-metodológico, utilizou as concepções de Bakhtin, Ducrot, Espíndola e Authier-
Revuz, no que concernem os conceitos de dialogismo, polifonia e heterogeneidade
respectivamente. A partir destas concepções, demonstramos como as vozes nos textos
decisórios são passíveis de apagamento e de hierarquizações/ sobreposições de forma
muito específica e como os gêneros jurídicos mesmo apresentando um aspecto
fomulaico, são passíveis de uma teia de vozes na sua composição. Esta pesquisa
apresenta, portanto, implicações de ordem teórica que enriquecem os estudos da
polifonia, bem como da heterogeneidade em peças decisórias e contribui para as
discussões sobre a interdisciplinaridade Lingüística/ Direito.
Palavras – Chave: Polifonia, Discurso Jurídico, Gêneros jurídicos.
8
ABSTRACT
This research aims to make a study of the polyphony of legal discourse, especially from
the ruling of first instance and legal judgments, both texts of stamp making in the Legal
Department, from the analysis of their distinctive markings and / or your organization
textual and aims at analyzing the correlation between the appearance fomulaico the
genera under study and the establishment of polyphony present in them. As specific
objectives, the research focuses on identifying marks that prove the polyphonic nature
of the sentence of first instance and the ruling and in the analysis of the marks to stagger
the voice of the state laws, jurisprudence and doctrine, the analysis of overlapping and /
or hierarchy of voices in the sentences, especially the overlap of the voice of the judge
in sentencing by judges in the Judgement. For treatment of polyphony were selected
constituent parts-making 24 - judgments of first instance and judgments - from forums
and courts of the state of Ceará. The methods listed are the inductive, since parted
observed the marks so they could comment on the behavior of polyphonic legal genres,
the method for carrying out qualitative analysis of brands and bibliographical method,
with the purpose of having a reading more accurate polyphonic phenomenon. The
approach of the theme was based on assumptions of Argumentative Semantics and as a
theoretical apparatus, we used the concepts of Bakhtin, Ducrot, Espíndola and Authier-
Revuz, as concern the concepts of dialogism, polyphony and heterogeneity respectively.
From these concepts, we demonstrate how the voices in decision-making texts are
subject to deletion and hierarchies / overlaps in a very specific genres such as legal and
even presenting an aspect fomulaico, are liable to a web of voices in their composition.
This research has, therefore, the theoretical implications that enrich the studies of
polyphony as well as parts of the heterogeneity in decision-making and contributes to
the debate about interdisciplinarity Linguistics / Law.
Key-Words: Polyphony, Juridical Discourse, juridical genres
9
Résumé
Cette recherche vise à mettre en place une étude à propos de la polyphonie du discours
juridique, plus exactement de la sentence de première instance et des arrêts - des textes
de caractère décisif dans le domaine juridique - à partir de l’analyse de ses marques
caractéristiques e/ou de son organisation textuelle et elle a comme objectif général
l´analyse du rapport entre l´aspect cooccurrent des genres étudiés et la constitution de la
polyphonie y présent. En ce qui concerne les objectifs spécifiques, la recherche poursuit
l´identification des marques attestant le caractère polyphonique de la sentence de
première instance et des arrêts; l’analyse des marques de dédoublement de la voix de
l’Etat en lois, en jurisprudence et en doctrine; l’analyse de la superposition e/ou de la
hiérarchisation des voix dans les sentences, notamment la superposition de la voix du
juge dans les sentences prononcées par des conseillers de la cour d´appel dans les arrêts.
Pour réaliser un traitement de la polyphonie constitutive, l´on a sélectionné 24 pièces de
décision sentences de première instance et les arrêts issues des tribunaux de l´État
du Ceara. Les méthodes répertoriées ont été, d’abord, la méthode inductive puisque l´on
a commencé par les marques permettant la production de considérations à propos du
comportement polyphonique des genres juridiques; ensuite, la méthode qualicative de
façon à favoriser l´analyse des marques; et, finalement, la méthode bibliographique avec
laquelle l´on visait le développement d´une lecture plus aiguë du phénomène
polyphonique. À partir de ces conceptions-là, l´on a démontré à la fois de quelle
manière les voix dans les textes de caractère décisif sont vulnérables aux éffacements et
hiérarchisation/superpositions de façon très particulière, et de quelle manière les genres
juridiques tout en présentant un aspect cooccurent sont vulnérables à un réseau de voix
dans sa constitution. L´approche choisie a été basée sur des presupposés de la
sémantique argumentative et comme fondements théoriques et méthodologiques, l´on a
utilisé les conceptions de Bakhtin, Ducrot, Espindola et Authier-Revuz, concernant les
concepts de dialoguisme, polyphonie et hétérogéneité respectivement. Cette recherche
présente, donc, des implications de nature théorique qui enrichissent tantôt les études de
la polyphonie, tantôt la hétérogéneité dans les pièces de caractère décisif et porte
également des contributions pour les discussions à propos de l´interdisciplinarité dans le
domaine du Droit et de la Linguistique.
Mots-clés: Polyphonie, discours juridique, genres juridiques
10
SUMÁRIO
1 Considerações iniciais
12
2 Sobre a concepção de Dialogismo e Polifonia segundo Bakhtin
17
2. 1 Ponto de partida 17
2. 2 Argumentação na língua: um pouco de história 18
2. 3 Ajustando o foco: a concepção de linguagem 21
2. 4 O Dialogismo de Bakhtin 23
2. 4. 1 O Círculo de Bakhtin: a noção de dialogismo e o estatuto do sujeito 25
2. 4. 2 Sobre o significado na perspectiva de Bakhtin 30
2. 5 O enunciado e os gêneros do discurso para Bakhtin 38
2. 5. 1 Gênero do discurso: as origens do conceito de gênero 41
3 Teoria da Polifonia
53
3. 1 Preliminares 53
3. 2 Polifonia e Argumentação: trajetórias 54
3. 3 Polifonia, segundo Bakhtin 56
3. 4 A teoria polifônica proposta por Ducrot 57
3. 4. 1 Por uma teoria polifônica 62
3. 5 Ducrot e a sua Teoria da Argumentação 67
3. 5. 1 Para compreender a da Teoria da Argumentação 68
3. 5. 2 Sobre a Teoria dos Topoi na língua 73
3. 5. 3 Marcadores de argumentação 82
3. 5. 4 Argumentação por autoridade 85
3. 5. 4. 1 Os verbos dicendi como marcadores da polifonia de locutores 88
3. 5. 5 Polifonia de enunciadores 93
3. 6 A(s) Heterogeneidade(s) Enunciativa(s) 97
4 Metodologia
104
4. 1 Delimitação da amostra 104
4. 2 A sentença e o acórdão: caracterização do corpus 105
4. 3 Procedimentos metodológicos 110
5 Discurso jurídico e Polifonia
112
5. 1 Sobre os gêneros textuais jurídicos: Sentença e Acórdão 112
5. 1. 1 O discurso jurídico 112
5. 1. 2 O discurso jurídico e os gêneros jurídicos 114
5. 1. 3 Aspectos do texto jurídico 117
5. 1. 3. 1 Requisitos estruturais da sentença e do acórdão 118
5. 1. 3. 2 O Discurso jurídico nas sentenças e no acórdão 121
5. 1. 3. 3 Polifonia nas sentenças e nos acórdãos 123
11
5. 1. 3. 4 Terminologia jurídica 125
5. 2 A Pluralidade das vozes na construção das Sentenças e dos Acórdãos 126
5. 2 .1 O Aspeamento como marcação do discurso relatado 126
5. 2. 2 O discurso relatado marcado por meio de outras marcas 135
5. 2. 3 O uso dos verbos dicendi como marcadores de polifonia 137
5. 2. 4 Os operadores argumentativos nos textos jurídicos 142
5. 2. 4. 1 Operador argumentativo modificador 147
5. 2. 5 Fechando as análises 149
Considerações finais
150
Referencias bibliográficas
153
Anexos
157
12
Considerações iniciais
O discurso jurídico tem sido cada vez mais objeto de estudo das Ciências da
Linguagem. O crescente interesse por este objeto fez com que sua natureza também se
expandisse não se limitando à linguagem jurídica, isto é, o vocabulário usado pelos
operadores do Direito, mas atentando também para o uso da linguagem na justiça.
Trabalhos nas áreas como a Retórica, a Pragmática, a Análise do Discurso, a
Lexicologia especializada e a Fonética são desenvolvidos por pesquisadores no Brasil e
no mundo
1
.
Seguindo a tendência internacional, o Brasil registra alguns estudos voltados
para o discurso jurídico, que trabalham, por exemplo, com textos provenientes de
audiências jurídicas, com o discurso do júri, com a argumentação e com a estrutura
retórica do acórdão, além de análises das tomadas de depoimento, etc. O
desenvolvimento dessas e de outras pesquisas, abrangendo vários temas da linguagem
do e no poder judiciário, ajudam a descrever e a mapear o funcionamento lingüístico-
discursivo da justiça brasileira.
Com a intenção de somar esforços para a compreensão do uso da linguagem
jurídica, nossa pesquisa foca uma etapa do desenvolvimento de um processo, mais
especificamente o que pode vir a ser o fechamento deste: preferimos trabalhar com
sentenças de primeira instância e acórdãos. A presente pesquisa surgiu então da nossa
inquietação diante do fenômeno das vozes presentes nesses textos, bem como da forma
muito peculiar de usar a língua pelos operadores do direito. Diante dessa dupla
inquietação, optamos por juntá-las, a fim de obter uma compreensão mais abrangente
desses fenômenos.
Devido à pluralidade de procedimentos, pessoas e até áreas do saber envolvidas
na elaboração dos autos que compõem um processo, quase sempre essas peças
1
The International Journal of Speech, Language and the Law e International Journal of Semiotics of
Law são alguns exemplos de periódicos publicados no exterior. Aqui no Brasil, a Revista Veredas (2005)
publicou um número todo voltado para trabalhos que versam sobre a interdisciplinaridade Lingüística /
Direito.
13
caracterizam-se por serem polifônicas. Como a elaboração de um processo se de
maneira prospectiva e retrospectiva, a construção de certas etapas processuais pressupõe
etapas seguintes e/ ou anteriores. No caso das sentenças e dos acórdãos,
necessariamente uma retomada de informações presentes em textos anteriores que são
feitas, na maioria das vezes, por citações, paráfrases, alusões, etc.
A nossa pesquisa tem como objetivo analisar a polifonia interna, constitutiva dos
textos produzidos nos espaços institucionais jurídicos, mais especificamente, a sentença
de primeira instancia e o acórdão, no que diz respeito à constituição dos textos
decisórios em seus aspectos formulaicos. A análise dessa polifonia nos permitirá
demonstrar as estratégias que os operadores do Direito utilizam na elaboração desses
textos, os efeitos de sentido decorrentes deste uso e se a estrutura desses textos é afetada
pela polifonia.
Uma das motivações para desenvolver esta pesquisa, cujos caminhos e escolhas
que serão trilhados para sua execução ora apresentamos, nasceu da nossa vivência como
participante do projeto Protexto da Universidade Federal do Ceará. Este projeto nos
proporcionou um longo e profícuo contato com as teorias que versam sobre Lingüística
Textual e Pragmática. Além disso, as atividades desenvolvidas pelo grupo também nos
ensinaram a olhar textos com olhos de pesquisador. Neste contexto, esta pesquisa é,
portanto, mais uma etapa de uma trajetória de estudo e reflexão sobre a forma como os
operadores do Direito lidam e produzem seus próprios textos.
A segunda motivação surgiu das leituras feitas durante o mestrado, quando já
nos instigavam alguns aspectos constitutivos das sentenças jurídicas. Dentre eles, a
questão das vozes despertou nossa atenção. Na época, tivemos a oportunidade de
conhecer alguns gêneros jurídicos e, de forma categórica, o acórdão. Sua função social e
sua constituição textual foram fundamentais para nossa escolha. Resultado: a pesquisa
desenvolvida no mestrado foi uma análise da organização do acórdão, bem como uma
análise da comunidade discursiva jurídica.
O envolvimento com este tipo de sentença nos fez perceber que muitos outros
fenômenos lingüístico-discursivos precisavam ser analisados. Um especificamente nos
instigou: a manifestação das vozes tanto na sentença de primeira instância quanto no
14
acórdão, principalmente por ser este fruto da decisão colegiada, quer dizer, sua autoria é
atribuída a uma câmara composta por três desembargadores - daí ser sua natureza é
essencialmente polifônica - mas esta autoria é atribuída ao Estado, isto é, monofônica.
Há, portanto, a nosso ver, uma tendência ao apagamento de vozes, e não é isso, a
possibilidade de uma sobreposição das vozes também é contemplada - a voz de um
desembargador se sobrepõe à de outro, haja vista, que apenas o nome do juiz relator é
identificado no corpo do acórdão. Além disso, entendemos que diferenças
categóricas entre as manifestações polifônicas em uma sentença de primeira instância e
um acórdão, dada a natureza de uma ser monocrática, isto é, singular e da outra ser
colegiada.
Outro ponto que consideramos relevante é a questão do apagamento da voz que
não vota junto com o colegiado, quer dizer, da voz dissonante quando a decisão não
acontece por unanimidade. Esta voz apagada pode ser objeto de recurso da parte que se
viu prejudicada com a decisão do tribunal. Entendemos que a(s) forma(s) como este
apagamento se revela um tipo de polifonia ainda não investigada pela comunidade
acadêmica. Essas e outras questões, que foram anteriormente colocadas como objetos de
nossa investigação, servirão para nortear os caminhos trilhados por esta pesquisa.
Embora saibamos que no texto jurídico, especificamente nas sentenças, tem-se
essencialmente a voz do Estado como voz predominante, verificamos que
desdobramentos desta voz quando o operador do Direito, revestido de Estado, faz uso
de outras vozes para sustentar sua decisão e/ ou seu ponto de vista. Percebemos também
que algumas dessas vozes se sobrepõem e, em alguns casos, apagam outras. A
constatação desses fatos foi um dos motivos que nos levou a propor a presente pesquisa,
cujo tema, em se tratando de análise da polifonia no discurso jurídico, poderá nos
permitir um maior conhecimento dos mecanismos polifônicos na construção da voz do
Estado nos textos em estudo. Para isso, as questões que norteiam nossa pesquisa são:
• Quais marcadores polifônicos são utilizados com maior freqüência pelos juízes
e pelos desembargadores como recurso para fazer valer seus pontos de vistas?
15
Por ser o acórdão uma sentença, fruto de um recurso cujo julgamento pode vir
a concordar ou não com a sentença de primeira instância, quando a discordância,
quais marcas são usadas para o apagamento da(s) voz (es) da sentença de primeira
instância?
Tanto na sentença de primeira instância quanto no acórdão, a voz que
prevalece é a voz do Estado. A autoria desses textos é atribuída ao Estado, se não, quais
marcas apontam para um desdobramento que revela a subjetividade da(s) autoridade(s)
autora (res) dessas sentenças?
• Como se dá o apagamento de voz dos desembargadores participantes da
Câmara/ Turma (quando a decisão não acontece por unanimidade) dentro do acórdão?
A estrutura dos textos decisórios, isto é, seus aspectos formais enquanto
gêneros jurídicos são afetados pela presença da polifonia?
b
As hipóteses que nos guiam para dar conta dos problemas apresentados partem
do princípio que: por serem textos cuja autoria é atribuída ao Estado, a sentença de
primeira instância caracteriza-se por ser uma decisão monocrática e o acórdão
caracteriza-se por ser uma decisão colegiada, presume-se que a polifonia se dá de forma
diferenciada e que apresenta características diferenciadas. Além disso, acreditamos que
para chegar a uma decisão acerca de uma lide tanto a sentença monocrática quanto a
sentença colegiada dialoga com outros textos e outras vozes se fazem presentes. A
partir desta constatação, acredita-se na existência de sobreposição de vozes dentro das
sentenças e que esta sobreposição é percebida através do uso de determinados
marcadores polifônicos.
Presume-se ainda que na sentença de primeira instância, os recursos polifônicos
utilizados pelo juiz se caracterizem por apagarem sua subjetividade diferentemente do
acórdão que tem um relator e que este se manifesta defendendo seu ponto de vista a fim
de convencer os outros componentes da câmara a votar junto com ele. Diante desta
suposição, acredita-se que as marcas polifônicas desempenham funções diferenciadas.
16
Além disso, acredita-se que ao construir um ponto de vista que se opõe a
decisão proclamada pelo juiz de primeira instância, os desembargadores responsáveis
pelo acórdão utilizam determinados recursos lingüísticos, recursos estes bastante
específicos, para negar, se sobrepor e/ou apagar a voz a qual eles se contrapõem. E por
último, quando a decisão não acontece de forma unânime. Parte-se do princípio que
uma voz é silenciada e que esta voz mesmo silenciada deixa marcas no texto, já que o
simples fato de a decisão não ser unânime abre precedente para uma apelação junto aos
órgãos superiores da justiça.
Quanto à estrutura, esta pesquisa está organizada em cinco capítulos, dois
teóricos e um de análise, além das considerações iniciais e das considerações finais. No
segundo capítulo, tem-se uma revisão que parte da argumentação na língua, passa pelas
concepções bakhtinianas de dialogismo, sujeito, significado, enunciado e gêneros do
discurso.
O terceiro capítulo trata da polifonia propriamente dita. Começamos com
Bakhtin, seguimos com Ducrot e toda a sua Teoria da Argumentação na Língua (TAL)
até chegar em Authier-Revuz e sua concepção de Heterogeneidade Enunciativa.
Discutimos neste capítulo as teorias e categorias que fundamentaram as nossas análises.
O quarto capítulo diz respeito às decisões metodológicas da pesquisa. Nele,
apresentamos o corpus, alguns procedimentos de tratamento do corpus e uma visão
sobre o discurso jurídico para, na sequência, operarmos as análises que acontecem no
capítulo cinco.
No capítulo cinco, temos dois momentos de análises: a primeira parte traz uma
discussão sobre o discurso jurídico e os gêneros jurídicos, objetos de nossa análise. Na
segunda parte, fazemos o levantamento dos tipos de polifonia identificados nos textos,
para discuti-los logo após cada tipo analisado. E, por ultimo, temos no capítulo das
considerações finais, algumas observações a partir dos resultados obtidos na pesquisa
realizada.
17
2 Sobre a concepção de Dialogismo e Polifonia segundo Bakhtin
Todas as esferas da atividade humana, por mais
variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a
utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter
e os modos dessa utilização sejam tão variados como as
próprias esferas da atividade humana, o que não
contradiz a unidade nacional de uma língua. (BAKHTIN,
2000, p. 29).
2. 1 Ponto de partida
Quando alguém se debruça sobre uma pesquisa, é necessário fazer a
explicitação da perspectiva epistemológica que irá fundamentar mais do que um único
trabalho, mas toda a relação entre o sujeito e seu objeto. A nossa pretensão, neste
momento introdutório da fundamentação teórica, é mostrar em que consiste o objeto de
estudo sobre o qual se depara esta investigação, bem como o ponto de vista pelo qual
ele é tratado, ou seja, o aparato que norteia a pesquisa empreendida. Estão aqui em foco
questões atinentes ao caráter dialógico da linguagem, especificamente o fenômeno da
polifonia e seus desdobramentos, na revelação da hierarquização de vozes e da estrutura
do poder no uso da linguagem, no espaço institucional jurídico.
As discussões iniciam-se com uma breve retrospectiva histórica do conceito
de argumentação. Na seqüência, apresentamos a concepção de língua adotada por esta
pesquisa e depois tratamos das concepções de Bakhtin sobre dialogismo e polifonia,
visto ser ele a fonte inspiradora de todos os estudos sobre o dialogismo na linguagem.
Em um primeiro momento, têm-se as noções de dialogismo e polifonia do autor russo, a
partir das quais procuramos traçar um percurso teórico capaz de abarcar a incorporação
de vozes alheias ao discurso, expandindo a perspectiva até Ducrot. As análises iniciais
sobre a polifonia nas sentenças e nos acórdãos indicaram a necessidade de expor a
diversidade de vozes atreladas aos motivos pelos quais elas aparecem.
18
Antes de passar para o próximo item, gostaríamos de retomar uma
observação bastante pertinente de Bakhtin (2000, p. 36) que associa a língua à vida
social em suas mais diversas esferas. Essa concepção de língua permeia este trabalho,
visto tratar-se da análise de textos que modificam a vida dos indivíduos quando impõem
uma verdade para que, a partir daí, seja cumprida por eles.
2. 2 Argumentação na língua: um pouco de história
De acordo com Barthes (1975, p. 23), os estudos sobre Retórica tiveram sua
origem mais precisamente em Siracusa na Grécia Antiga, por volta do ano 485 a. C., e
se destacaram também em Roma, principalmente nas obras de Cícero. Seu surgimento
deveu-se aos objetivos do direito de propriedade do povo espoliado pela expropriação
de suas terras, efetuadas por Gelton e Hieron. Com a queda desses tiranos, inúmeros
processos para reaver suas propriedades foram instaurados pelo povo que, diante de
grandes júris populares, defendia o seu direito. Para tanto, deviam convencer e ser
eloqüentes, já que a única linguagem utilizada era a oral.
Gradativamente, a Retórica passa a ter uma enorme importância na
democracia ateniense, em que o saber falar, para persuadir e convencer, se torna
essencial: nos tribunais, nas assembléias políticas, nas praças públicas, nos encontros
sociais, etc. A Retórica assume, assim, no seu início, "um caráter pragmático: convencer
o interlocutor da justeza da sua causa” (DUCROT; TODOROV, 1978, p. 99). De
"técnica de persuasão", a Retórica transforma-se, com Aristóteles, num corpo de
conhecimentos, categorias e regras - que, quem quiser bem falar e convencer, deve
aplicar ao discurso. Segundo Aristóteles (de cuja concepção indicaremos apenas
algumas linhas essenciais), a Retórica visa descobrir os meios que, relativamente a
qualquer argumento, podem levar à persuasão de um determinado auditório; o seu
objeto é o "verossímil" ou "provável".
Visto que este processo persuasivo implica uma relação do orador com seu
auditório, Aristóteles caracteriza três gêneros de discurso, a partir dos tipos de ouvintes
19
e de suas formas de se pronunciar em relação a um determinado tempo e finalidades.
São três os tipos de ouvinte que definem cada gênero: os membros de uma assembléia,
os juízes e o público (espectadores), próprios, respectivamente, aos gêneros
deliberativo, judiciário, e epidítico. De acordo com Osakabe (1999, p. 158), parece claro
que, a partir do critério da politicidade, dificilmente Aristóteles poderia chegar a outros
gêneros, embora a persuasão, para ele, pudesse ocorrer em outras formas discursivas.
Barthes faz uma longa análise de cada gênero e de seus aspectos
constituintes com o propósito de demonstrar que Aristóteles é bastante atual e que seu
estudo é o desvelador do mistério da técnica (Retórica). Ao analisar os gêneros
atentando para os seus propósitos e auditórios, o autor reforça a importância da presença
do outro, isso decorrente da necessidade de se viver em sociedade, e é a Retórica que
enforma toda essa teatralização da cena. O quadro abaixo mostra essa relação: gênero e
aspectos constituintes. Observa-se que o primeiro aspecto a ser avaliado é o auditório.
GÊNERO
DELIBERATIVO JUDICIÁRIO EPIDÍTICO
AUDITÓRIO
Membros de uma assembléia
Juízes Espectadores/
público
FINALIDADE
Aconselhar/ desaconselhar Acusar/ defender Elogiar/ criticar
OBJETO
Útil/ prejudicial Justo/ injusto Belo/ feio
TEMPOS
Futuro Passado Presente
RACIOCÍNIO
Exemplo Entimemas Comparação
amplificante
LUGARES
COMUNS
Possível/ impossível Real/ não real Mais/ menos
Quadro 01: Os gêneros e seus elementos (BARTHES, 1975, p. 201).
Posteriormente, e num processo que se estende até o século XIX (século que
marca o seu desaparecimento como disciplina escolar), a Retórica vai perdendo
influência e reduzindo o seu campo, sofrendo as seguintes modificações: perde o seu
objetivo pragmático imediato, deixando de ensinar como persuadir para passar a ensinar
20
como fazer "belos discursos”, o que causou um grande período de esquecimento da
Retórica, pois esta se reduziu ao simples inventário de figuras de linguagem. Ainda em
nosso século, a Retórica é apresentada como inventário de figuras de linguagem em
Manuais de Gramáticas, sendo entendida como oratória, ou seja, a arte de bem falar em
público, reduzindo-se a discursos políticos, jurídicos e de homenagens públicas.
Por algum tempo, os estudos sobre Retórica e Argumentação não
apresentaram alterações. Os trabalhos de Perelman e Tyteca (2002) deram um novo
impulso a esses estudos ao tentar aliar os principais elementos da retórica aristotélica a
uma visão atualizada do assunto. No plano geral, a argumentação é vista pelos autores
como busca da persuasão de um auditório pelo orador. Deste modo, é a representação
do alocutário que constitui o modo de o locutor argumentar, formando um processo
enunciativo.
A argumentação o se restringiu às teorias de Perelman e Tyteca, e sim se
tornou novamente objeto de análise dos lingüistas na Teoria da Enunciação. Segundo
Vogt (1980, p. 86), o texto tornou-se o objeto central de diversas tendências da
Lingüística moderna, como a Análise do Discurso que, com base nos textos, buscava
identificar nele marcas de um sujeito psicológico, o discurso subjacente, a ideologia
presente, etc. - a Lingüística Textual que busca analisar nos textos os processos de
referenciação/ seqüenciação calcados no conhecimento de mundo do produtor e receptor
do texto - e a Semântica Argumentativa que busca no texto marcas lingüísticas que
orientam argumentativamente o interlocutor do texto. Para Vogt,
Esta última, preocupada com a macrossintaxe do discurso,
postula uma pragmática integrada à descrição lingüística, isto é, como
algo intermediário entre o sintático e o semântico, considerando os
três níveis como indissoluvelmente integrados. Em decorrência,
postula que a argumentatividade está inscrita na língua, ou seja, a
enunciação se apresenta no enunciado por meio de uma série de
marcas, de modo que se torna possível alcançar o seu verdadeiro
sentido levando-se em conta essa marcas. É por meio delas que se
poderá chegar à macrossintaxe do discurso, o que constitui objetivo
da Semântica Argumentativa” (1980, p. 86).
21
Vale ressaltar que a perspectiva argumentativa desses autores foi aqui
incluída porque seus estudos, na retórica, trabalham a argumentação sob um olhar
interacionista, considerando o auditório (interlocutor) como elemento determinante de
estratégias argumentativas. Em outras palavras, muitos dos conceitos trabalhados por
Perelman e Tyteca, pela importância dada ao interlocutor como determinante na seleção
das estratégias argumentativas pelo locutor, pré-anunciam o que propõe a perspectiva
interacionista da linguagem. Não é nosso objetivo discutir estes conceitos
aprofundadamente, visto que o referido autor e algumas de suas concepções se fazem
presentes nesta pesquisa com o objetivo de destacar e reconhecer a importância de
Perelman, diante da concepção de
argumentação como um todo.
2. 3 Ajustando o foco: a concepção de linguagem
Para que se desenvolva a análise pretendida, faz-se necessário esclarecer a
noção de linguagem adotada ao longo desta pesquisa. A nosso ver, a concepção de
Bakhtin ([1929] 2002) sobre linguagem e suas formulações teóricas são pertinentes para
nortearem esta pesquisa, visto que são as que vão de encontro com a visão de linguagem
aqui defendida, como também servem para fomentar as perspectivas do tema estudado.
O autor, acima citado, em sua obra intitulada Marxismo e filosofia da
linguagem, antes de defender o caráter dialógico da língua, levanta questões como: “No
que consiste o objeto da filosofia da linguagem? Onde podemos encontrar tal objeto?
Qual é a sua natureza concreta? Que metodologia adotar para estudá-lo? Mas o que é a
linguagem? O que é a palavra?” (p. 69). Essas questões são os pilares de toda a
discussão empreendida pelo autor que, para dar respostas a essas indagações, promove
uma incursão histórica para tentar explicar como a linguagem era vista por seus
antecessores.
Para Bakhtin, têm-se duas correntes, dois pensamentos. O primeiro deles,
denominado de subjetivismo abstrato, defende o ato de fala como criação individual,
quer dizer, como uma enunciação monológica que leva em consideração apenas a
pessoa que fala. Dentro dessa perspectiva, a enunciação monológica se apresenta
22
através da expressão individual e corresponde a “tudo aquilo que, tendo se formado e
determinado de alguma maneira no psiquismo do individuo, exterioriza-se
objetivamente para outrem com ajuda de algum código de signos exteriores”
(BAKHTIN, 2002, p. 111). A partir dessa colocação, o autor esclarece que aquilo que é
dito pelo locutor durante o ato de fala é proveniente do seu interior, do seu espírito. Tal
concepção serve para nortear algumas críticas feitas pelo autor, visto que o que ele
defende é exatamente o contrário. Para Bakhtin, o núcleo da fala é o que está e o que
compõe o meio exterior, ou seja, corresponde ao meio social, lugar de existência e
atuação dos seres produtores e receptores dos atos de fala. Segundo Bakhtin,
O centro organizador de toda comunicação, de toda
expressão, não é o interior, mas o exterior: está situado no meio
social que envolve o indivíduo (...) a enunciação humana mais
primitiva ainda que realizada por um organismo individual, é, do
ponto de vista do seu conteúdo, de sua significação, organizada fora
do indivíduo pelas condições extra-orgânicas do meio social. A
enunciação enquanto tal é um puro produto da interação social, quer
se trate de um ato de fala determinado pelo contexto mais amplo que
constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada
comunidade lingüística (BAKHTIN, 2002, p. 121).
Dentro dessa concepção, o centro organizador de toda expressão é o meio
social, daí a natureza da língua estar pautada pelo fenômeno social da interação verbal.
E das reflexões sobre esse fenômeno resultam suas concepções de língua, de enunciado
e de gênero, tornando-se, pois, evidente que para Bakhtin a relação linguagem e
sociedade é compreendida como uma inter-relação dinâmica e complexa de tal forma
que “as relações sociais evoluem, depois a comunicação e a interação verbais evoluem
no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem em conseqüência da
interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança das formas da
língua” (BAKHTIN, 2002, p. 124).
De acordo com o pensamento bakhtiniano, não existe discurso monológico,
até o próprio sentido do termo diálogo foi ampliado, conseqüentemente o princípio do
23
dialogismo permeia as reflexões bakhtinianas, seja no que se refere a enunciado ou a
gêneros do discurso. Nesse sentido, é o próprio Bakhtin que traça essa relação de
imbricação entre enunciado e gênero quando afirma que os gêneros do discurso são
“tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 1997, p. 279). Esta
concepção de gêneros do discurso é importante para esta pesquisa, visto que nossa
análise é feita em dois exemplares do gênero do discurso jurídico. Deteremos-nos mais
sobre o tema quando formos tratar dos dois gêneros. Antes, porém, faz-se necessário
primeiramente abordar o que vem a ser dialogismo. Como a origem desta concepção é
atribuída a Bakhtin, no próximo item, apresentamos e discutimos alguns aspectos
históricos que, ao nosso ver, contextualizam a construção da concepção de dialogismo.
2. 4 O dialogismo de Bakhtin
De origem soviética, formado em História e Filologia em 1918, Mikhail
Bakhtin (1895-1975), segundo Tzvetan Todorov
2
, parece, à primeira vista, ser mais um
teórico e historiador da literatura da época conhecidos como os “formalistas russos”. No
entanto, Bakhtin foi um filósofo, um pensador cujos escritos abarcaram, ao lado da
lingüística, da Psicanálise, da Teologia e da teoria social, a poética histórica, a axiologia
(teoria crítica dos conceitos de valor) e a Filosofia. Clark; Holquist (1998, p. 21)
lembram, ainda, os trabalhos mais especializados de Bakhtin dedicados ao Vitalismo, ao
Formalismo, a Dostoievski, a Freud, a Goethe e a Rabelais. Figura marginal na
intelectualidade russa, exilado político no período de Stálin, Bakhtin teve sua obra
vertida para o inglês somente após quatro anos de sua morte.
Nos escritos de Bakhtin, o dialogismo é tema dominante e, de acordo com
Castro (1993, p. 87), o fenômeno não pode ser compreendido apenas como um conceito
nos escritos do autor russo, visto que, o dialogismo funciona como um pressuposto geral
que serve de base para o seu olhar cientificamente plural. O dialogismo é o reflexo da
visão de mundo de Bakhtin e apresenta-se em todas as áreas de seu interesse, não se
restringindo, portanto, aos estudos referentes à linguagem.
2
Todorov - prefaciou o livro Estética da criação verbal de Bakhtin, editado em Moscou em 1979.
24
Dentro dessa perspectiva, é importante destacar que a concepção de
linguagem como dialógica, contrapõe-se às concepções metodológicas denominadas
subjetivismo idealista e objetivismo abstrato. Nessas duas tendências, há uma exclusão
do dado situacional do escopo de análise, no qual os indivíduos estão inseridos no
momento da fala. O primeiro considera o sistema lingüístico como uma atividade
mental constante dos homens, utilizada para expressar seus pensamentos. o segundo
trata a língua como sistema abstrato, estruturado e coletivo, isto é, produto do social.
Ele concebe a língua como um sistema abstrato e autônomo e, ao fazê-lo, descarta a
enunciação e o ato de fala dos estudos lingüísticos.
Bakhtin opõe-se às duas concepções ao considerar a interação entre os
interlocutores, por meio da enunciação, o princípio fundador da língua. Para ele,
enunciação define-se como “o produto da interação de dois indivíduos socialmente
organizados” (Bakhtin, 2000, p.112). Dar ênfase a situação comunicativa entre os
indivíduos socialmente organizados tem como conseqüência considerar a situação social
responsável pela determinação ideológica do grupo social e a época à qual os
interlocutores pertencem. Portanto, na proposta dialógica de Bakhtin, o uso da língua
relaciona-se intrinsecamente ao momento sócio-histórico e ideológico em que se o
ato verbal produzido.
Para o pensador russo, a compreensão de dialogismo não se limita ao sentido
estrito do termo, como dois indivíduos colocados frente a frente, numa comunicação em
voz alta, mas engloba toda e qualquer comunicação verbal. Nos escritos do autor, ao
tratar do texto como objeto das Ciências Humanas, ele já aponta as duas concepções
diferentes do princípio dialógico. São elas: a do diálogo entre interlocutores e a do
diálogo entre discursos. Em síntese, essas e outras idéias do autor russo ficam claras
quando este define texto como:
a) objeto significante ou de significação, ou seja, o texto significa;
b) produto da criação ideológica ou de uma enunciação, com todos os aspectos que
estão subentendidos: o contexto, histórico, social, cultural, etc. Compreende-se, desta
forma, que o texto não existe fora da sociedade, mas somente nela e para ela;
c) produto dialógico. Em decorrência de duas características anteriores, o texto é
constitutivamente dialógico; “define-se pelo diálogo entre os interlocutores e pelo
25
diálogo com outros textos (da situação, da enunciação) e assim, dialogicamente,
constrói a significação” (Barros, 1999, p. 24);
d) objeto único, não reproduzível, pois os traços mencionados tornam o texto não
reiterável ou repetível.
Estes pontos do pensamento bakhtiniano são fundamentais para a análise
aqui empreendida. Como objeto significante, todo texto produzido nas instâncias
judiciárias é portador de significação, que se efetiva plenamente quando consideramos
sua natureza prospectiva ou retrospectiva (sua relação com outros textos dentro do
processo), os dados gerais do contexto enunciativo. Os textos são ideologicamente
conduzidos em sua produção, isto é, trazem em si características sócio-históricas e
culturais que devem ser consideradas. Logo, os aspectos acima citados que versam
sobre a construção enunciativa e dialógica da significação são evidentes nos textos que
compõem o corpus da pesquisa.
2. 4. 1 O Círculo de Bakhtin: a noção de dialogismo e o estatuto do sujeito
A noção de linguagem bem como a de discurso defendida pelo Círculo de
Bakhtin é essencialmente ativa, e, portanto, centrada no agente. Isto é, o processo de
intercâmbio lingüístico, no qual são produzidos os enunciados constitui o objeto de
estudo e o centro de seu empreendimento, ao mesmo tempo em que são precisamente
estes últimos o ponto de partida deste. A obra do Círculo pode ser entendida como uma
busca da superação de todas as propostas teóricas e metodológicas que tomam a parte
pelo todo, que não levam suas propostas às últimas conseqüências ou que sequer se dão
conta dessas conseqüências.
É no âmbito dessa concepção ativa, que se percebe uma tentativa de abarcar
a natureza dos atos humanos sem essencialismos. Desta observação, destacamos a
concepção de dialogismo, segundo a qual toda “voz” (todo ato) envolve a relação com
várias vozes, dado que nenhum sujeito falante é a fonte da linguagem/do discurso, ainda
que seja o centro de suas enunciações, do mesmo modo como nenhum agente humano é
a fonte de seus atos, ainda que seja o centro destes e por eles tenha de responsabilizar-se
(cf. BAKHTIN, 1997, p. 96).
26
Dentro dessa perspectiva, para compreender o dialogismo de Bakhtin é preciso
ver a identidade de uma coisa não como algo solitariamente isolado de todas as outras
categorias, mas como uma variável contrastante de todas as outras que poderiam, sob
condições diferentes, preencher a mesma posição na existência. Para entender essa
simultaneidade difundida por toda a parte, Bakhtin busca uma explicação no conhecimento
da existência. Na própria energia da existência encontram-se duas forças opostas sicas
que também a produzem, numa atividade incessante: a) as forças centrífugas que se
empenham em manter as coisas variadas e apartadas umas das outras; que compelem ao
movimento, ao devir e à história; e desejam a mudança, a vida nova; b) as forças centrípetas
- que se empenham em manter as coisas juntas e unificadas; resistem ao devir, abominam a
história.
Para o filósofo russo, dialogismo é compreendido como sendo a base da
concepção dos atos humanos essencialmente inacabados, ainda que plenamente
realizados, atos em permanente tensão com outros atos, passados e futuros, ou seja, base
da idéia de que da diferença nasce o sentido, isso sem desconsiderar a semelhança.
Sendo assim, nessa concepção vê-se a diferença não como propriedade de um sistema
(ou código) fechado, mas como participante das relações entre os homens na sociedade
e na história.
O dialogismo é tratado pelo Círculo de três formas distintas. Optamos por
apresentá-las do geral para o particular: como princípio geral do agir e mesmo do ser: só
se age/ se é em relação de contraste com respeito a outros atos de outros sujeitos/ a
outros sujeitos. Sendo assim, o vir-a-ser do indivíduo e do sentido está fundado na
diferença, no confronto eu-tu; como princípio de produção dos enunciados/ discursos
(Trataremos destas concepções nos próximos itens), mais especificamente do sentido
que advém de “diálogos” retrospectivos e prospectivos com outros
enunciados/discursos; e como forma específica de composição de enunciados/discursos,
opondo-se nesse caso à forma de composição monólogo, embora nenhum
enunciado/discurso seja constitutivamente monológico nos dois outros sentidos: o
simples fato de enunciar “a verdade” pressupõe a possibilidade de haver alguma outra
“verdade”, assim como a negação pressupõe uma afirmação (WITTGENSTEIN, 2005).
27
Dentro desta ótica, quando se considera o “confronto” de vozes de que fala o
Círculo, e que é fator constitutivo da interação verbal, percebe-se que todo discurso (e,
mesmo toda palavra) é arena (termo adotado por Bakhtin), lugar de confronto, de
presença do outro, não se podendo, pois, conceber um discurso monológico no sentido
de discurso que neutralize todas as vozes que não a daquele que enuncia, assim como
não se pode julgar idealista a relação eu-tu envolvida: a concepção de outro, adotada
pelo Círculo, como ressalta Castro (1993), é complexa: o outro pode ser amigável,
submisso, autoritário, inimigo etc., permanecendo em todos os casos constitutivos do
eu, tal como este é, como se costuma dizer, “o outro do outro” (p. 91).
Para Bakhtin, o dialogismo é constitutivo do discurso, mas este discurso
pode ser estruturado composicionalmente de forma que pode ou não apresentar as
marcas desse dialogismo. Assim, o discurso de tendência monológica é aquele que se
mostra, em termos composicionais, voltado para a “neutralização”, na superfície
discursiva, das vozes que o constituem, e para a instauração de uma voz como a voz
dominante, de maneira explícita ou velada.
Ao contrário deste, o discurso de tendência dialógica é aquele que se mostra
voltado para tornar presentes as vozes que o constituem; trata-se, portanto, do discurso
voltado para a instauração, mais ou menos explícita, de um concerto de vozes, que
naturalmente podem ser dissonantes. Logo, poderia haver discursos que, em sua forma
de composição, se mostram dialógicos e tendem ao monológico, bem como discursos
composicionalmente monológicos que tendem ao dialógico, havendo variação e/ ou
oscilação deste dialogismo.
Portanto, para o autor russo, as vozes, os discursos “outros”, são
constitutivos de todo discurso; a “mostração” e a “escamoteação” de marcas são
recursos do plano de composição da obra, de sua, por assim dizer, textualização, não de
sua constituição interdiscursiva e dialógica, de sua arquitetônica. Além disso, embora
haja um projeto enunciativo de que o locutor tem consciência, há inúmeros aspectos que
fogem ao seu controle: ele também responde a vozes que se fazem ouvir,
paradoxalmente, em suas réplicas apesar dele mesmo. Segundo Castro (1993, p. 92),
o sujeito que enuncia não tem nem pode ter total consciência de todas as vozes que
28
atravessam seu discurso, o que remete à questão do inconsciente, a qual não foi
abordada com muita profundidade nas obras do Círculo.
Em resumo, pode-se afirmar que o dialogismo é um todo constitutivo não
apenas dos discursos como da própria linguagem e mesmo do agir humano. Isso implica
que o locutor e o interlocutor (os sujeitos agentes) têm o mesmo estatuto: assim como é,
retrospectivamente, uma resposta a enunciações precedentes de interlocutores e
sobredestinatários “passados”, a enunciação do locutor responde prospectivamente a
interlocutores, e sobredestinatários, “futuros”. Sendo assim, a recepção é tão parte do
vir-a-ser do sentido quanto o são a produção e a circulação dos discursos, o que não
significa que a deriva do sentido seja infinita, ainda que seja ilimitada algo que
desautoriza algumas apropriações de Bakhtin por alguns teóricos do pós-modernismo
(CASTRO, 1993).
Quanto à noção de interlocutor, Bakhtin o percebe como dotado de
"responsividade ativa", isto é, a resposta concreta deste é que permite que se materialize
a compreensão daquilo que lhe é “proposto” pelo locutor, e este o propõe em termos de
uma dada “entoação avaliativa”. Sendo assim, faz sentido para os sujeitos aquilo que
responde a alguma coisa e só as coisas às quais é dada uma resposta, o que leva à recusa
de uma “linguagem exemplar” que não venha do intercâmbio verbal, caso se queira
apresentá-la como da ordem da enunciação.
Para Bakhtin, o caráter retrospectivo e o prospectivo do texto têm como
ponto de referência o realizado, o texto efetivamente enunciado, que é uma unidade,
dado que, constituído por outros textos, é resultado de um ato que mobiliza esses textos
constitutivos, que, sem ele, não teriam sobre que incidir, ao tempo em que remete direta
ou indiretamente a textos futuros (ou busca antecipar possíveis
objeções etc.), criando
assim um todo integrado que não é mera soma de seus elementos constituintes.
Dentro desta perspectiva, toda e qualquer enunciação, toda e qualquer
interação faz parte de processo contínuo de produção de sentidos, cada diálogo recria
sentidos criados por outros diálogos, assim como antecipa diálogos ainda inexistentes,
inserindo-os em novos modos de vida associados com os jogos de linguagem
(Wittgenstein) que a ressignificação instaura. Além disso, à luz desses elementos, a
29
percepção de social que Bakhtin leva em conta não se esgota no interdiscurso ou no
contexto imediato, material mesmo da interação.
Ao salientar a primazia do tema em relação aos significados cristalizados,
tanto na constituição como no próprio vir-a-ser dos sentidos, Bakhtin demonstra que o
sentido depende por inteiro do contexto e que esse contexto de modo algum se esgota na
situação imediata a que se restringe grande parte das teorias da interação verbal.
Destaca-se ainda que isso não exclui de modo algum o sistema lingüístico enquanto tal,
nem os processos cognitivos envolvidos, mas busca, integrando-os, ir além deles.
Dentre outros filósofos, Bakhtin se destaca por ter colocado a dinâmica
social da prática observável da linguagem como força especificadora que estrutura as
relações interpessoais, em sua filosofia da linguagem. O que o diferencia, portanto,
segundo Clark; Holquist (1998, p. 36), é sua ênfase na linguagem como prática tanto
cognitiva quanto social, aspectos esses que lhe permitem compreender e explicar os
complexos fatores que tornam possível o diálogo que abrange, simultaneamente, as
diferenças.
Diante do exposto, surge um questionamento: o que torna diferente as
diferenças? A questão dos filósofos modernos instigou Bakhtin e ele acaba por se
concentrar na “possibilidade de abranger diferenças numa simultaneidade”. Assim, o
filósofo julga como forças interativas, o que outros pensam ser excludentes, como por
exemplos, a necessidade de estabilidade das sociedades ser conciliada com sua
necessidade de adaptar-se a novas condições históricas, ou de um texto ser diferente em
contexto diferente, ou, ainda, de um eu individual incorporar tanta coisa que é
compartilhada com outros.
Sendo assim, Bakhtin constrói sua concepção dialógica de elocução, na qual
tais forças díspares coexistem. Uma elocução escrita ou falada sempre se expressa de
um ponto de vista. O ponto de vista, para Bakhtin, é mais um processo do que um lugar.
Para Bakhtin (2002, p.114), o grau de consciência, de acabamento formal da atividade
mental é diretamente proporcional ao seu grau de orientação social. Exemplifica isso
com a sensação de fome cuja tomada de consciência pode dispensar uma expressão
30
exterior, mas não uma expressão ideológica. Como toda tomada de consciência implica
“discurso interior, entoação interior e estilo interior”, a tomada de consciência de fome,
por exemplo, pode ser acompanhada de “deprecação, de raiva, de lamento ou de
indignação, com matizes mais grosseiros ou marcados da entoação interior embora a
atividade mental possa ser marcada por “entoações sutis e complexas”. A expressão
exterior, na maior parte dos casos, prolonga e esclarece a orientação tomada pelo
discurso interior e as entoações que ele contém.
Para o autor, a possibilidade de imprimir valor às palavras é o que permite a
atividade autoral, quer quando falamos ou escrevemos e essa é a idéia de autor para
Bakhtin. Porém, faz-se necessário especificar que moldamos os valores como formas
(palavras) a partir de um ponto de vista. Daí a forma como operamos os valores
dependerá de como articulamos o que somos em meio à diversidade de possibilidades
ideológicas abertas a nós em qualquer momento dado. Para o filósofo russo, em nosso
diálogo com o mundo, num trabalho prático de construção, determinamos a
arquitetônica de nossa própria respondibilidade.
Para Clark; Holquist (1998, p.38), Bakhtin é um filósofo da liberdade,
liberdade essa assentada na natureza dialógica da linguagem e da sociedade e que se
realiza por meio do jogo de valores condicionado pelas possibilidades sociais e
políticas. Bakhtin a fonte do significado da linguagem no social, ao contrário das
correntes personalistas que sustentam que a fonte do significado é o indivíduo singular.
Isso implica que, para Bakhtin, “nossas palavras vêm envoltas em muitas camadas
contextuais sedimentadas pelas numerosas intralinguagens e pelos vários segmentos e
patamares sociais, cuja soma constitui a linguagem de nosso sistema cultural”.
2. 4. 2 Sobre o significado na perspectiva de Bakhtin
É notório que, para Bakhtin, o significado está em algum lugar,
compartilhado e múltiplo, ou seja, cada indivíduo pode significar o que diz, mas que
de forma indireta, com palavras que são tomadas da comunidade e que são a ela
devolvidas, conforme os protocolos que ela observa. Logo, a voz de cada um pode
31
significar, mas somente com outros às vezes em coro, mas na maioria das vezes em
diálogo” (BAKHTIN, 1997, P. 92). Assim acontece a criação e uso dos signos.
Bakhtin (1997, p. 92) propõe um continuum de complementariedade entre
ambos. Para ele, considerando a concepção saussureana, entre a língua e a fala, ou seja,
sistema e desempenho. Segundo o autor (2002, p.92), “o sistema lingüístico é produto
de uma reflexão sobre a língua, reflexão que o procede da consciência do locutor
nativo e que não serve aos propósitos imediatos da comunicação”. Para o locutor, não
importa a forma linguística, mas aquilo que permite que a forma linguística figure num
dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação
concreta. Para o locutor importa somente a forma lingüística como signo sempre
variável e flexível, levando em consideração tanto o seu ponto de vista (do locutor)
como o de seu interlocutor e o meio social.
Portanto, o elemento que torna a forma lingüística um signo, não é sua
identidade como sinal, mas sua mobilidade específica, isto quer dizer que a
compreensão da palavra no seu sentido particular depende da compreensão da
orientação que é conferida a essa palavra por um contexto e uma situação precisos. A
palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou
vivencial” (BAKHTIN, 2002, p. 95). As formas lingüísticas vazias de ideologias são
apenas sinais da linguagem. Por outro lado, não há interlocutor abstrato, pois não
teríamos linguagem comum com tal interlocutor. Quando pretendemos nos exprimir de
forma impessoal, como se o nosso interlocutor fosse o mundo, estamos, na verdade,
falando do prisma do meio social concreto que nos engloba. Conforme Bakhtin,
(...) na maior parte dos casos, é preciso supor, além disso,
um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a
criação ideológica do grupo social e da época a que pertencemos, um
horizonte contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da
nossa moral, do nosso direito. (BAKHTIN, 2002, p. 112).
Em outras palavras, cada indivíduo realiza suas reflexões e tem seu mundo
32
interior com base em um auditório social próprio e bem estabelecido. A palavra que usa
está vinculada a si próprio e ao outro, ela é o produto da interação do locutor e do
ouvinte e, ainda que como signo essa palavra seja extraída pelo locutor de um estoque
social de signos disponíveis, a própria realização deste signo social na enunciação
concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais. Até os estratos mais
profundos da estrutura da enunciação são determinados pelas pressões sociais mais
substanciais e duráveis a que está submetido o locutor (BAKHTIN., 2002, p.114).
Sendo assim, existirá sempre uma orientação social de caráter apreciativo em
toda a atividade mental. Na relação com o outro, para Bakhtin (2002, p.115) dois
pólos nos quais se realiza a tomada de consciência e a elaboração ideológica: a atividade
mental do eu e a atividade mental do nós . No primeiro caso, a atividade mental tem
caráter primitivo, perde sua modelagem ideológica, sua orientação social, sua
representação verbal, aproximando-se da reação fisiológica do animal. No segundo
caso, a atividade mental do nós permite diferentes tipos de modelagem ideológica.
Sendo assim, o mundo interior do indivíduo, seu grau de consciência será cada vez mais
distinto e complexo conforme a firmeza e organização da coletividade no interior da
qual o indivíduo se orienta.
O termo “dialogia” surgiu na obra de Bakhtin, em seus estudos sobre a
literatura. Ele atentou para o criador e os seres criados por este (autor e herói). A
princípio, ele pensava que a construção estética somente poderia acontecer se uma vida
fosse vista do exterior, como um todo (“englobada no horizonte do autor”), para ter
sentido. Nesta fase, ele pensava ainda que a criação estética era um exemplo
particularmente bem sucedido de um tipo de relação humana, embora assimétrica de
exterioridade e de superioridade, o que seria condição indispensável à criação artística.
Reconheceu, mais adiante, que tal exigência de “exotopia” correspondia ao clássico e
que autores como Dostoievski esquecem essa lei estática de superioridade do autor
sobre a personagem e, em suas obras abalam essas posições, colocando tanto autor
como personagem no mesmo plano.
O autor refere-se à sua concepção anterior (da relação de superioridade do
autor sobre o herói) com o nome de “monologismo” e trata o estilo de escrita e
33
concepção do mundo encontrado em Dostoievski como “dialogismo”, assinala Todorov
([1981] 1998, p.18). Assim, apesar da crítica de 1929, assinada por Volochinov (um dos
nomes que assumiram os trabalhos de Bakhtin) pela qual o autor denunciava que a
sociedade moderna não ousava dizer nada com convicção e para dissimular as
incertezas, as pessoas refugiavam-se nos diversos graus de citação, o que fazia o autor
renunciar à sua superioridade - Bakhtin também rejeita a referência ao absoluto e à
realidade que sustentava a concepção anterior.
Bakhtin reconhece, então, que o romance “monológico” só admite duas
possibilidades: a) ou as idéias são assumidas por seu conteúdo, e então são verdadeiras
ou falsas; b) ou são tidas por indícios da psicologia das personagens. a “arte
dialógica” tem acesso a um terceiro estágio, acima do verdadeiro e do falso, do bem e
do mal, assim como no segundo, sem que por isso se reduza a ele: cada idéia é a idéia
de alguém, situa-se em relação a uma voz que carrega e a um horizonte a que visa,
explica Todorov (1998, p.8). Assim, no lugar do absoluto, encontramos uma
multiplicidade de pontos-de-vista: os das personagens e o do autor que lhes é assimilado
– sem privilégios ou hierarquias.
A relação dialógica em Bakhtin estabelece a união existente entre a
linguagem e a vida e é constituída pela relação entre o eu e o tu, ou seja, o dialogismo é
decorrente da interação verbal entre os sujeitos (locutor e interlocutor), no espaço do
discurso (BARROS, 2003, p. 2). O discurso é, portanto, a materialização das relações
dialógicas.
O autor russo assinala que as relações dialógicas ocorrem tanto no enunciado
como um todo, como em partes do enunciado. A própria palavra isolada, desde que não
seja interpretada como palavra impessoal da língua, é dialógica.
As relações dialógicas são possíveis não apenas entre
enunciações integrais (relativamente), mas o enfoque dialógico é
possível a qualquer parte significante do enunciado, inclusive a
palavra isolada, caso esta o seja interpretada como palavra
impessoal da língua, mas como signo da posição semântica de um
34
outro, como representante do enunciado do outro, ou seja, se ouvimos
nela a voz do outro. (BAKHTIN, 2002a, p. 184).
Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2000, p. 313), o autor afirma que a
palavra da língua não é de ninguém, mas também se apresenta para o locutor enquanto
palavra do outro, que pertence ao outro e preenche o eco dos enunciados alheios e
“como palavra minha, pois na medida em que uso essa palavra numa determinada
situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade”.
É importante salientar que o conceito de enunciado de Bakhtin se aproxima
do que hoje se entende como texto, como assinala Barros (1994, p. 1). Ela afirma que o
enunciado, em Bakhtin, é concebido como matéria lingüística e como contexto
enunciativo, sendo, portanto, o objeto dos estudos da linguagem.
A respeito do enunciado, afirma Bakhtin (2000, p. 315), seu estilo e sua
composição são determinados pela relação valorativa que o locutor estabelece com o
enunciado e que os enunciados não são indiferentes uns aos outros, nem auto-
suficientes.
O enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal.
Tem fronteiras nítidas, determinadas pela alternância dos sujeitos
falantes (dos locutores), mas dentro dessas fronteiras, o enunciado, do
mesmo modo que a mônada de Leibniz, reflete o processo verbal, os
enunciados dos outros e, sobretudo, os elos anteriores (às vezes os
próximos, mas também os distantes, nas áreas da comunicação
cultural). (BAKHTIN, 2000, p. 319).
Assim, além do dialogismo constituinte da linguagem, Bakhtin ainda
assinala um segundo tipo, que consiste no discurso bivocal, ou polifônico. É o discurso
em que se cruzam diferentes vozes. Convém, aqui, operarmos a diferenciação feita pelo
filósofo entre o discurso monovocal e o discurso bivocal. No primeiro, afirma Bakhtin
35
(2002a, p. 189), o discurso apresenta-se com uma voz, enquanto que, no segundo,
ocorre mais de uma voz.
O discurso monovocal pode ser de dois tipos: referencial direto (imediato ou
plenissignificativo) e objetificado (ou representado). O primeiro “nomeia, comunica,
enuncia, representa”, ou seja, visa à interpretação referencial e direta do objeto (2002a,
p. 186) e o segundo “é igualmente orientado exclusivamente para o seu objeto, mas ele
próprio é ao mesmo tempo objeto de outra orientação, a do autor” (2002a, p. 189). O
discurso objetificado, de acordo com Bakhtin, soa como se fosse um discurso de uma
voz.
No discurso bivocal, a voz do autor convive com a voz do outro, sem fundir-
se com esta e se apresenta de três formas:
1 Discurso bivocal de orientação única discurso da estilização, em que o autor “usa
o discurso de um outro como discurso de um outro” (BAKHTIN, 2002a, p. 190).
Bakhtin diz que o estilizador trabalha com um ponto de vista do outro, porém não
penetra no âmago do seu discurso, observa o discurso do outro de fora.
2 Discurso bivocal de orientação vária discurso da paródia. Bakhtin conjectura que
no discurso parodístico, diferente da estilização, o autor também utiliza a linguagem do
outro, mas o reveste de uma orientação semântica oposta à orientação do outro
(BAKHTIN, 2002a, p. 194). Acrescenta que esse tipo de discurso “se converte em palco
de luta entre vozes”.
Para Bakhtin, a ironia é análoga ao discurso parodístico e, na linguagem
cotidiana, esta prática é bastante difundida. Acrescenta também que o discurso do
cotidiano é cheio das palavras do outro e que tomamos diferentes posturas quanto à
utilização da palavra do outro, ora aceitando-a, ora contrapondo-se a ela e até fundindo-
a com a nossa.
O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras
de outros. Com algumas delas fundimos inteiramente nossa voz,
36
esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçamos as nossas
próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas por nós; por
último, revestimos terceiras das nossas próprias intenções, que são
estranhas e hostis a elas. (BAKHTIN, 2002a, p. 195).
3 Tipo ativo ou discurso refletido do outro Bakhtin chama esse discurso bivocal de
discurso polêmico. Ele afirma que, enquanto na estilização e na paródia, o autor
emprega as palavras do outro para expressar suas próprias idéias, no discurso polêmico,
“a palavra do outro permanece fora do discurso do autor, mas este discurso a leva em
conta e a ela se refere” (BAKHTIN, 2002a, p. 195). O filósofo denomina esse tipo de
discurso de variedade ativa, em oposição aos anteriores, que são variedades passivas,
porque “a palavra do outro influencia ativamente o discurso do autor, forçando-o a
mudar adequadamente sob o efeito de sua influência e envolvimento” (2002a, p. 198).
Bakhtin ainda afirma que, na medida em que se desfaz o grau de objetivação
do discurso do outro, ou seja, desfaz-se a distância entre o autor e o outro, o narrador se
transforma em uma simples “convenção composicional”. No entanto, com as palavras
orientadas para diferentes fins, o discurso se converte em dialógico, ou seja, “não
dominação absoluta da voz do autor sobre a idéia do outro, a fala perde a sua serenidade
e convicção, torna-se inquieta, internamente não-solucionada e ambivalente”
(BAKHTIN, 2002a, p. 199).
Por fim, acrescenta o autor que a originalidade de Dostoievski consiste na
utilização desses tipos de discursos bivocais distribuídos de maneira especial e na
variedade dos elementos composicionais básicos da obra: “Em Dostoievski quase não
discurso sem uma tensa mirada para o discurso do outro” (2002a, p. 204). Isso torna
a obra do autor em polifônica, por excelência.
O autor faz uma comparação entre o pluralismo de Dostoievski e Dante, mas
reconhece em Dante o caráter vertical das vozes do universo que apresenta (os
ocupantes de todas as esferas terrestres e celestes), enquanto Dostoievski apresenta um
mundo “horizontal” de vozes que coexistem. O conceito de “outro”, para o filósofo,
desenvolve-se na análise da tessitura polifônica do conjunto da obra de Dostoievski,
37
desvendada por Bakhtin em seu trabalho Problemas da Poética de Dostoievski,
especialmente com relação à novela “O duplo”. O autor analisa essa peça literária sob o
prisma discursivo, “enquanto trama sintática das formas de presenças de vozes que se
espelham, que se mimetizam, que se antagonizam, expondo os conflitos existentes entre
o mesmo e o outro” (BAKHTIN, 2002a, p. 199).
.
De acordo com Brait (2001, p.13), esse estudo de Bakhtin sobre a novela O
duplo” é uma das peças de resistência para o desvendamento dos conceitos de “outro”,
“alteridade”, “vozes”, “polifonia” e “dialogismo”, pois em sua análise da materialidade
lingüística ele destaca os fios discursivos que vão constituindo vozes e estabelecendo
conflitos constitutivos desse sujeito e de sua linguagem. Por exemplo, na análise do
diálogo do protagonista consigo próprio mostra como esse protagonista trata a si como
outra pessoa, substituindo com sua própria voz a voz de outra pessoa. E a voz dessa
segunda pessoa aparece como calma e segura e até provocante e zombeteira, enquanto a
primeira é insegura e tímida.
Para a autora, Bakhtin, portanto, percebeu que a obra de Dostoievski
representava, simultaneamente e no mesmo plano, várias consciências, umas tão
convincentes quanto as outras; mas, enquanto romancista, mantém uma na verdade
como horizonte último. Mas “do próprio conceito de verdade única não decorre, em
absoluto, a necessidade de uma única e mesma consciência. Pode-se perfeitamente
admitir e pensar que uma verdade única exige uma multiplicidade de consciências” (na
obra Dostoievski, p.107).
Surge, então, uma questão: ao admitir-se a pluralidade de consciências não
se exige a renúncia à verdade única? A essa questão, Bakhtin interpõe a idéia de inter-
humanidade. Para ele, o inter-humano é constitutivo do homem, ou seja, a
multiplicidade dos homens é a verdade do próprio ser do homem – e essa convicção que
também une Bakhtin a Dostoievski, por outro lado, como se vê, não se reduz a uma
ideologia individualista.
38
Disso tudo, percebe-se que, para o autor, a liberdade humana é apenas
relativa e enganadora; mas na ordem do sentido, ela é absoluta porque o sentido nasce
do encontro de dois sujeitos, e esse encontro recomeça constantemente - “O sentido é,
de fato, esse elemento de liberdade que transpassa a necessidade. Sou determinado
enquanto ser (objeto) e livre enquanto sentido (sujeito)”. Portanto, para Bakhtin o
sentido é liberdade e a interpretação é o seu exercício. Mas com tudo isso, o homem não
escapa de sua inserção nos gêneros do discurso que emanam das mais diversas esferas
da atividade humana, em qualquer enunciado que produza. A concepção bakhtiniana de
gênero do discurso nos interessa, haja vista que nossa pesquisa se detém em dois
gêneros jurídicos: a sentença e o acórdão, ambos produzidos pelos operadores do
Direito3, mas que acontecem em instâncias diferenciadas e são produtos de rituais
também diferenciados.
No próximo item, apresentamos uma breve incursão sobre a noção de
enunciado na obra do referido autor, para que se compreenda a sua concepção de gênero
do discurso. Ressaltamos, porém, que as discussões apresentadas sobre os dois pontos
se prestam a um esclarecimento sobre os gêneros que são objetos de análise desta
pesquisa.
2. 5 O enunciado e os gêneros do discurso para Bakhtin
Bakhtin (2000, p. 312) define o enunciado como uma unidade real da
comunicação verbal e aproveita para fazer uma crítica à concepção da Lingüística que
considera a função comunicativa da linguagem como um processo ativo por parte do
locutor e um processo passivo por parte do receptor. Nesse sentido, o papel do outro não
é levado em consideração, ou seja, os pontos principais da comunicação são o
enunciado e o próprio enunciador. De acordo com autor, o outro” não pode ser
ignorado, haja vista o enunciado como produto ser constituído a partir do processo de
se dirigir a um destinatário.
3
Denominamos operadores do Direito todos os profissionais, bacharéis em Direito, devidamente
reconhecidos pela Ordem dos Advogados do Brasil.
39
Três aspectos que caracterizam o enunciado são ressaltados pelo pensador
russo, que são: a atitude responsiva ativa, o acabamento do enunciado e o fato de que o
enunciado é um elo na cadeia de comunicação verbal. Para Bakhtin (2000, p. 314), todo
discurso aponta para uma atitude responsiva ativa, isto é, qualquer enunciado supõe
uma resposta. Essa resposta pode se apresentar de variadas formas desde a
materialização em uma resposta fônica concreta até uma compreensão responsiva muda.
Nesse sentido, mais cedo ou mais tarde o que foi ouvido ou lido encontrará um eco, seja
através de uma ação, de um comportamento, de uma atitude responsiva imediata ou
retardada. Conforme o referido autor, o locutor ao expressar um enunciado de forma
alguma espera uma atitude passiva. Na realidade, o que ele espera é uma concordância,
uma adesão, uma objeção, uma execução, dentre outros atos. Nesse sentido, esse tipo de
ouvinte passivo proclamado pela lingüística geral de Saussure não corresponde à figura
real na comunicação verbal.
Decorre daí, a noção de interlocutor de Bakhtin que o percebe como dotado
de "responsividade ativa", isto é, a resposta concreta deste é que permite que se
materialize a compreensão daquilo que lhe é “proposto” pelo locutor, e este o propõe
em termos de uma dada “entoação avaliativa”. Sendo assim, faz sentido para os
sujeitos aquilo que responde a alguma coisa e só as coisas às quais é dada uma resposta,
o que leva à recusa de uma “linguagem exemplar” que não venha do intercâmbio verbal,
caso se queira apresentá-la como da ordem da enunciação.
Sobre o caráter retrospectivo e o prospectivo do texto, o autor tem como
ponto de referência o realizado, o texto efetivamente enunciado, que, insiste Bakhtin, é
uma unidade, dado que, constituído por outros textos, é resultado de um ato que
mobiliza esses textos constitutivos, que, sem ele, não teriam sobre que incidir, ao tempo
em que remete direta ou indiretamente a textos futuros (ou busca antecipar possíveis
objeções etc.), criando assim um todo integrado que não é mera soma de seus elementos
constituintes.
Toda e qualquer enunciação, toda e qualquer interação faz parte de processo
contínuo de produção de sentidos, cada diálogo recria sentidos criados por outros
diálogos, assim como antecipa diálogos ainda inexistentes, inserindo-os em novos
40
modos de vida, associados com os jogos de linguagem (Wittgenstein)
4
que a
ressignificação instaura. Além disso, à luz desses elementos, a percepção de social que
Bakhtin leva em conta não se esgota no interdiscurso ou no contexto imediato, material
mesmo, da interação.
Faraco (2003, p. 55) coloca que o conceito de discurso, em Bakhtin, está
vinculado aos conceitos de enunciado e esfera de atividade humana. Para o filósofo, a
forma de utilização da língua está sempre relacionada com a esfera de atividade humana
em que se efetua. Se a utilização da língua está sempre relacionada à esfera de atividade
humana em que se efetuou, é possível buscar-se nessa utilização, em seus enunciados,
as marcas características de tal esfera, tanto em relação às suas condições específicas,
quanto às suas finalidades. Decorre deste posicionamento, seu conceito de esfera de
atividade e existência humana, retomarem a noção de produção, permanente no
pensamento do filósofo russo.
Quanto ao enunciado, Bakhtin defende que:
O enunciado reflete as condições específicas e as
finalidades de cada uma dessas esferas, não por seu conteúdo
(temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos
recursos da língua - recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais - ,
mas sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos
(conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se
indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados
pela especificidade de uma esfera de comunicação. (BAKHTIN, 2000,
p. 279).
Entende-se que, para o autor, o enunciado ultrapassa seus limites puramente
lingüísticos, para vincular-se ao contexto vivencial de seus interlocutores, para
estabelecer relações histórico-sociais, ao se relacionar com a esfera de atividade humana
4
Jogos de linguagem – concepção trabalhada por Wittgenstein em Investigações filosóficas.([1953]
1995).
41
que o produziu. O enunciado é, portanto, a unidade de comunicação verbal e é ele que
deve ser objeto preferencial dos estudos da linguagem. A delimitação entre um
enunciado e outro faz-se pela alternância de enunciadores. O enunciado “(...) comporta
um começo absoluto e um fim absoluto: antes de seu início, os enunciadores dos
outros, depois de seu fim, há os enunciados-respostas dos outros (...) (BAKHTIN, 2000,
p. 294). Observa-se que cada enunciado tem a expectativa de resposta do enunciatário.
Esses conceitos são importantes para que se possa entender a rede de
relações discursivas estabelecidas nos gêneros analisados a sentença e o acórdão, pois
a partir daí, entenderemos o que os caracteriza enquanto formas específicas de relações
sociais e de utilização da linguagem. É característico desses gêneros e está em sua
natureza permitir a cada interlocutor dizer o que diz? No desenvolvimento da pesquisa,
analisaremos este aspecto dos neros estudados. Portanto, é necessário entender o
conceito de gênero de discurso, defendido por Bakhtin e adotado por esta pesquisa, a
fim de compreender as relações em cada um dos gêneros estudados e conjuntamente.
Nosso próximo passo.
2. 5. 1 Gênero do discurso: as origens do conceito de gênero
No início deste capítulo, apresentamos algumas concepções sobre a
argumentação na língua (ampliaremos essa discussão no próximo capítulo) e
antecipamos algumas informações sobre o surgimento da concepção de gênero em
Aristóteles. Neste ponto, retomamos o tema para apresentar a concepção bakhtiniana de
gênero do discurso.
Data da Antiguidade, mais precisamente do período clássico, na Grécia
antiga, a existência de uma preocupação com a delimitação e a nomeação dos textos.
Historicamente, pode-se considerar como o marco inicial dos estudos sobre gêneros, a
obra de Aristóteles intitulada Arte Retórica. Neste trabalho, o autor desenvolve três
idéias: a idéia de retórica relacionada com a dialética”; a definição de retórica”; e
também “os gêneros da retórica”.
42
É a partir da idéia de gêneros, tomada da retórica, que Aristóteles opera uma
divisão da arte retórica em três gêneros: o deliberativo, o demonstrativo (ou epidíctico)
e o judiciário (cf. Quadro 01), cuja característica fundamental é garantida pela persuasão
em três dimensões: a do orador, a do ouvinte e a do próprio discurso. Além disso, o
autor propõe duas partes obrigatórias na organização dos gêneros: a exposição e a
prova. A primeira indica o assunto e a segunda faz sua demonstração.
Outro ponto abordado por Aristóteles é a noção de estilo, que é colocada
como própria de cada gênero. Segundo ele, são dois os estilos: o oral (dos debates) e o
escrito. O estilo escrito é mais exato”, ao passo que o das discussões é mais
dramático”. Afirma ainda que ambos não se iguala, que o estilo de um não seja o do
outro. Como se pode perceber, a retórica aristotélica já tecia considerações sobre como
as informações deveriam ser organizadas dentro de um texto.
Recentemente, Bakhtin ([1979] 2000) instituiu uma nova perspectiva para o
reconhecimento dos gêneros. A partir daí começou a se formar uma noção de gênero
diferente, aplicada ao conjunto de produções verbais organizadas, como por exemplo: a
conversação, o resumo, a resenha, o artigo científico, a notícia, etc. Dentro dessa
perspectiva, a língua passou a ser entendida como realização do discurso, visto que o
uso que se faz da linguagem se faz obedecendo a modelos constituídos socialmente,
portanto ela também é constituída na e pela sociedade. Os modelos constituídos são
necessários tanto para a estruturação quanto para a compreensão do discurso.
Sendo assim, os gêneros são compreendidos, segundo Bakhtin, a partir de
sua natureza sócio-histórico-cultutal. São vistos, portanto, como fenômenos
contextualmente situados e construídos na interação comunicativa. Porém, é com sua
concepção de texto (ou discurso) como objeto comum de estudo das ciências humanas
e, conseqüentemente, com sua visão de que a comunicação humana se através de
gêneros e de que o homem é um produtor de textos, é que a Lingüística o insere
definitivamente como um dos principais estudiosos de gêneros do discurso.
43
Para que se possa compreender a rede de relações discursivas estabelecidas
por um determinado gênero, precisamos tentar entender o que o caracteriza enquanto
uma forma específica de relações sociais e de utilização da linguagem. No caso da
sentença monocrática e do acórdão, gêneros jurídicos aqui analisados por nós,
precisamos entender o que cada um permite a cada interlocutor dizer o que diz, visto
que isso está na própria natureza dessas sentenças enquanto discurso. Em um momento
posterior, discutiremos essa natureza, antes, porém, faz-se necessário entender o
conceito de gênero de discurso em Bakhtin, que defende que qualquer enunciado
considerado isoladamente, é claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominaremos
gêneros do discurso. (2000, p. 279).
Percebe-se, nesta colocação, que Bakhtin ao pensar a língua em sua
realização social concreta, em esferas de utilização, o que permite falar em gêneros,
permite-nos abstrair dos enunciados concretos um objeto de análise que transcenda cada
uma das realizações. Para ele, a esfera de utilização da língua está relacionada às esferas
de atividade humana, isto é, pode-se falar em tantos gêneros quantas forem as esferas de
utilização da língua e as esferas de utilização da língua serão tantas quantas forem as
esferas de atividade humana. Fica claro que não pode haver rigidez nem excludência na
delimitação de um gênero de discurso, ou seja, um gênero pode conter outro ou estar em
intersecção com outros e terá existência enquanto objeto de análise, a partir de critérios
pautados em dois parâmetros: o social e o da produção. Social porque a diversidade dos
gêneros se faz pela diversidade dos temas, das situações e da composição dos
protagonistas da interação discursiva. Por outro lado, a análise tem como foco a própria
produção discursiva.
O conceito de nero também aponta para seu aspecto histórico, para a sua
memória, ou seja, o gênero traz em si as marcas de seu percurso histórico, entrelaçado à
memória coletiva e ideológica das relações estabelecidas em uma sociedade. Tanto a
sentença quanto o acórdão, por exemplo, apresentam a tendência ideológica de uma
sociedade na qual a justiça se faz a partir de um grupo fechado, cuja legitimidade é
garantida por patamares que estabelecem critérios (tipo de saber específico, por
exemplo) para constituir seus enunciadores. Portanto, sua constituição enquanto gêneros
44
e suas enunciações são determinadas por um princípio de seleção dos enunciadores
constituídos e de exclusão dos demais membros da sociedade.
Ao se deter no problema dos gêneros do discurso, Bakhtin (2000, p. 60)
afirma que a riqueza e diversidade dos gêneros do discurso são ilimitadas por dois
motivos: primeiro, porque as possibilidades de atividade humana são inesgotáveis e os
integrantes de cada esfera de atividade humana, constantemente, geram enunciados
(orais ou escritos) únicos e concretos; e, segundo, porque cada esfera de atividade
contém um repertório inteiro de gêneros de discurso que se diferenciam e se
desenvolvem à medida que essa esfera particular se amplia e se torna mais complexa.
Então, chama-se gênero do discurso tipos relativamente estáveis de
enunciados cujas características do conteúdo temático, do estilo lingüístico (ou seja, a
seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua) e, acima de tudo, de
sua estrutura composicional fundem-se com aspectos que são determinados pela
natureza específica da esfera particular de interação social.
Devido à extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso, poderia parecer
que não um nível comum único pelo qual eles pudessem ser estudados. Mas Bakhtin
(2000, p.61) considera dois tipos de discurso: o primário (simples) e o secundário
(complexo). O que muda, na verdade, é o grau de complexidade da circunstância de
interação social e a forma como o discurso é apresentado. Assim, para Bakhtin, no
processo de formação, os gêneros secundários do discurso - como as novelas, o teatro,
todos os tipos de discurso resultantes de pesquisa científica, os grandes gêneros de
exposição de idéias etc. surgem principalmente escritos e em circunstâncias de uma
interação cultural (artística, científica, sócio-política, etc.) mais complexa e evoluída
com relação aos neros que lhe deram origem. Isso quer dizer que os gêneros
secundários “absorvem e transmutam” os gêneros primários que se constituíram em
circunstância de uma interação verbal espontânea.
Nesta ótica, os gêneros primários, que se caracterizam por sua relação
imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios (como a
réplica do diálogo cotidiano, a carta), poderiam ser inseridos, por exemplo, em outros
gêneros mais complexos. Assim, todos os gêneros secundários (nas artes e nas ciências)
45
incorporam tanto os gêneros primários do discurso na construção do enunciado como a
relação entre estes gêneros primários (os quais se transformam em função das
transformações das práticas sociais). Recorre-se, então, principalmente nos gêneros
discursivos escritos, a recursos lingüísticos que tentam acomodar e, por vezes, subtrair
vozes que teimam em se mostrar, fenômeno que pode ajudar a entender a complexidade
do que se compreende como heterogeneidade discursiva
5
, polifonia e dialogismo.
Além disso, é essa inter-relação entre gêneros primários e secundários e o
processo histórico da formação dos gêneros secundários que esclarece a natureza do
enunciado e permite perceber a correlação entre língua, ideologias e visões do mundo.
O enunciado, então, é visto por Bakhtin (1997, p. 67) como uma unidade de interação
discursiva, diferente, portanto, das unidades da língua: as palavras e as orações. Isso
porque a oração poderá funcionar como enunciado completo ao se tornar
individualizada, e ser abstraída de uma situação concreta de comunicação verbal.
Para Bakhtin (1997, p. 298), cada obra de construção complexa tem como
sujeito falante o autor, que manifesta sua visão de mundo, o que distingue esta obra das
outras obras com as quais se relaciona dentro de uma dada esfera cultural, quer como
apoio ou oposição. Portanto, toda obra tem também uma relação dialógica com as outras
obras-enunciado. Para que se alcance o acabamento do enunciado (que proporciona a
possibilidade de compreender de modo responsivo), três fatores ligados em seu todo
orgânico:
a) o tratamento exaustivo do objeto do sentido;
b) o querer-dizer do locutor (intuito discursivo);
c) a escolha de um gênero discursivo (formas estáveis do gênero do enunciado).
Decorre daí, a defesa de que a individualidade do sujeito se adapta ao gênero
discursivo determinado em função da especificidade de uma dada área da comunicação
(BAKHTIN, 1997:301). Observa-se que dentro da concepção bakhtiniana de gêneros do
discurso, há uma relação indissociável entre o gênero do discurso e a esfera da atividade
humana, onde este é produzido, conforme diz o autor:
5
Discutiremos esta concepção no próximo capítulo.
46
Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua
especificidade (...). Uma função (cientifica, cnica, ideológica,
oficial, cotidiana) e dadas condições específicas para cada uma das
esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um
dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista
temático, composicional e estilístico. (BAKHTIN, 2000, p. 283)
Para Bakhtin (2000), todas as esferas da atividade humana, por mais variadas
que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Esta utilização se
em forma de enunciados orais ou escritos, que refletem as condições de produção e os
propósitos comunicativos de cada esfera, em resposta às necessidades sócio-interativas
dos sujeitos que nelas se inter-relacionam, refletindo assim as condições específicas e as
finalidades de cada uma dessas esferas. Em outras palavras, é através da seleção
operada nos recursos da língua, ou seja, recursos lexicais, recursos gramaticais,
fraseológicos e também por sua construção composicional, que a comunicação se
estabelece e se manifesta através de gêneros, que são manipulados de acordo com os
participantes de uma determinada situação comunicativa.
Desse modo, os gêneros representam práticas discursivas reais e concretas,
pois apresentam um caráter sócio-histórico, que se caracteriza por uma relativa
estabilidade, multiplicidade, heterogeneidade e plasticidade, estando sujeitos a
modificações influenciadas pelas mudanças sociais. A partir dessa visão de gênero
como algo dinâmico, a concepção de gênero como algo estático é definitivamente
substituída. Além disso, Bakhtin imprime uma valorização ao caráter pico dos
gêneros que, segundo ele, são marcados por uma relativa estabilidade, e essa
“estabilidade” acaba por facilitar o processo discursivo habilitando o indivíduo a
atender com facilidade e prontidão às exigências de uma determinada esfera de uso da
língua. Assim sendo, os gêneros funcionam como um guia do processo discursivo, de
tal modo que, o enunciado reflete a especificidade de uma esfera por meio do seu
conteúdo temático aquilo que é dizível através de um gênero; estilo verbal diz
respeito à seleção dos recursos lingüísticos; e construção composicional está
47
vinculada ao tipo de estruturação e de conclusão de um todo. Verifica-se, portanto,
nessa concepção que, para Bakhtin (2000, p.279), qualquer enunciado considerado
isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus
tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do
discurso.
O caráter social da língua na concepção bakhtiniana comporta a valorização
das formas discursivas como uma forma de valorizar os gêneros (aqui entendidos como
formas específicas de uso da língua). Portanto, os gêneros são definidos pelo autor
como fenômenos de pluralidade, por conceber o texto como um ato humano que diz
respeito a toda produção cultural fundada na linguagem (para Bakhtin não produção
cultural fora da linguagem) (STAM, 1992. p.13).
Ao conceber o texto como ato humano, Bakhtin o situa no campo da
compreensão humana, como um sistema de signos cuja coerência e a unidade se deve à
capacidade de compreensão do homem na vida comunicativa e expressiva (Machado,
1996. p.235). Baseados nessa concepção, destacamos o fato de que o texto é um
articulador de discursos que se manifestam nas enunciações concretas, cujas formas são
determinadas pelos gêneros discursivos, que aqui tratamos como gêneros textuais,
terminologia adotada por Marcuschi (2000, p. 2), que ao nosso ver, contempla de forma
satisfatória e clara o fenômeno dos gêneros.
Bakhtin define enunciado como uma unidade concreta do texto, ou seja, uma
unidade resultante das combinações dos gêneros discursivos por refletir formas
específicas de usos das variedades virtuais de uma língua. O texto, dentro dessa
perspectiva, é visto sob dois aspectos que o definem como uma enunciação: intenção e
realização. A relação entre os dois é que determina a natureza do texto.
Percebe-se a ênfase que o autor às relações intersubjetivas, no que diz
respeito ao intuito discursivo do locutor. Assim sendo, o querer dizer e a reação do
destinatário como atitude responsiva são as diversas formas típicas de dirigir-se a
alguém, e as concepções típicas do destinatário são as particularidades constitutivas que
determinam a diversidade dos gêneros discursivos (Bakhtin, 2000, p.325).
48
O conceito de texto em Bakhtin (2000) deve ser entendido na mesma
perspectiva. Para ele, o que determina o caráter do texto são as inter-relações dinâmicas
(ou lutas) entre seu projeto discursivo e sua realização. Isso quer dizer que todo texto
teria não só a dimensão da língua, do lingüístico stricto sensu, mas também uma
dimensão do enunciado e do discurso. Percebe-se, portanto, que tanto no que diz
respeito ao enunciado, quanto ao texto, a dimensão extraverbal, não pode ser tomada
como algo que os envolve (enunciado e texto), mas antes deve ser tomada como uma
parte constitutiva destes. Por isso, para essa concepção, num nível conceitual, não cabe
separar enunciado/enunciação; texto/situação de produção.
Fica claro, portanto, que, para o autor, a linguagem é uma atividade
constitutiva, cujo espaço de realização e construção é a interação verbal. Não é algo
pronto, e sim produto de um trabalho lingüístico empreendido pelos sujeitos nas
diferentes esferas da atividade humana que integram. Quer dizer, os sujeitos se
constituem como tais, na medida em que, pela e na linguagem, potencializada através
dos mais variados gêneros textuais, compreendem o mundo. No dizer do próprio
Bakhtin:
Pode-se dizer que a gramática e a estilística se juntam e se
separam em qualquer fato lingüístico concreto que, encarado do
ponto de vista da língua, é um fato gramatical, encarado do ponto de
vista do enunciado individual, é um fato estilístico. Esses dois pontos
de vista sobre um único e mesmo fenômeno concreto da língua não
devem, porém excluir-se (com manutenção metodológica de sua
diferença) sobre a base da unidade real do fato lingüístico.
(BAKHTIN, 2000, p. 286)
Assim como os enunciados, embora únicos e não reiteráveis, não rompem a
barreira do silêncio pela primeira vez, a propósito de um dado objeto do discurso, suas
formas também não são completamente inéditas, distintas e diferentes umas das outras,
mas, ao contrário, repetem-se em diferentes enunciados. A essas formas típicas de
enunciados Bakhtin atribuiu a denominação de gêneros do discurso. Todas as esferas da
atividade humana são atravessadas por esferas de utilização da língua que lhe são
49
correspondentes e lhe conferem a qualidade propriamente humana. Cada uma dessas
esferas de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados,
denominados por Bakhtin como gêneros do discurso.
Não é sem razão que Bakhtin pretendeu um estudo mais aprofundado dos
gêneros do discurso, embora não tenha dado cabo do seu intento, deixando apenas um
fragmento, sob o título O problema dos gêneros do discurso6. Como parece
explicitado no título, Bakhtin inicia esse texto afirmando a inexistência e reclamando a
existência de estudos que visem uma abordagem geral dos vários gêneros do discurso,
focando sua natureza verbal comum, pois o que se tinha na época, era apenas e tão
somente o estudo de certos neros tomados em particular, como os literários e os
retóricos, situação esta que, de certa forma, se mantém até os dias de hoje. Todo gênero
é mais uma contraparte social dos enunciados que, embora sempre postos em relação
são, por definição, individuais.
Na verdade, não é sem motivo que somente esses gêneros foram tomados
como objeto de estudo. Esses eram as únicas espécies de texto designados sob o nome
gêneros, como observa Bronckart (1999, p. 73). Assim, para além de subverter o
conceito de gênero, Bakhtin também foi um dos que mais efetivamente ajudaram a
fomentar uma ampliação do escopo do uso desse termo. Para ele, todo e qualquer texto
lido ou escrito, falado ou ouvido, enfim, tudo que é dito ou dizível pertence a algum
gênero, por mais que, por vezes, não se saiba designá-lo ou reconhecê-lo.
Outro ponto relevante com relação às considerações de Bakhtin sobre gênero
é a afirmação de que todo enunciado refletiria as esferas de comunicação por seu
conteúdo temático, seu estilo e sua construção composicional e, portanto, esses seriam
elementos presentes nos gêneros, enquanto tipos de enunciados marcados pelas esferas
de utilização da língua.
O aspecto temático, a representação que o enunciador faz da situação e de
seu interlocutor e o aspecto expressivo determinam o estilo e a composição dos
enunciados. Observa-se, porém, que o autor não fornece definições precisas sobre esses
6
In: Estética da criação verbal ([1979] 2000, p. 277 a 376).
50
elementos, o que nos obriga a um certo trabalho interpretativo nem sempre abordado
explicitamente pelos textos, mas sempre tendo os indícios deixados pelo autor, em
diferentes passagens de sua obra, como suporte para análise dos três elementos.
Percebe-se, também, que esses elementos não recebem igual peso em termos de
destaque pelo autor.
Dos três elementos, Bakhtin se ocupa prioritariamente do estilo,
medianamente do conteúdo temático e dirige muito pouca atenção às formas
composicionais. Para ele, o conteúdo temático é o conjunto de temáticas que poderiam
ser abarcadas por um determinado gênero, quer dizer, o que pode ser dizível numa
determinada forma genérica.
O autor se refere ao conteúdo temático através de seus aspectos ou elementos
afins, utilizando diferentes designações. Algumas delas: objeto de sentido (uma das
designações mais usadas), ponto de vista temático, unidades temáticas, temas típicos,
aspecto temático. Dentre essas, talvez a que mais possa refletir o sentido que
pretendemos é temas típicos, na acepção de “típico” mencionada, que se determina
sócio-historicamente. Assim, o conteúdo temático, que faz parte do tema de um
determinado enunciado, esteve presente em muitos outros enunciados pertencentes a
um determinado gênero. Segundo Bakhtin, os gêneros correspondem a circunstancias e
a temas típicos da comunicação verbal, e, por conseguinte, a certos pontos de contato
típicos entre as significações da palavra e a realidade concreta (BAKHTIN, 2000,
p.312).
Com relação à construção composicional, Bakhtin se refere a ela e a seus
aspectos e elementos afins como ponto de vista composicional, unidades
composicionais, recursos composicionais, formas típicas de estruturação. Da forma
como a compreendemos, construção composicional diz respeito à estruturação, à
organização geral dos tipos de enunciado. Poderíamos dizer que ela é um conjunto de
restrições às formas de dizer impostas pelas situações recorrentes, mas específicas, de
comunicação.
o estilo, segundo Bakhtin, traz em si formas composicionais mais ou
menos estabelecidas, quer dizer, ao adotarmos um gênero, este traz em si formas que
51
determinam um rol, mais ou menos aberto, de estilos possíveis. O estilo genérico tem
relação com a seleção de recursos da língua, com determinados tipos de estruturação e
acabamento e com os tipos de relação que se estabelecem entre os interlocutores.
Podemos perceber que o estilo tende a ser uma categoria mais aberta que a
forma composicional, sendo prefigurado e restringido por essa, mas a partir de
recorrências estilísticas anteriores, dadas por especificidades das esferas de
comunicação. Há, nessa relação, uma mútua determinação entre todos os elementos
constituintes do enunciado, que faz com que Bakhtin afirme que esses elementos devem
ser investigados conjuntamente, um em relação ao outro, no interior dos gêneros e
sempre relacionados com as esferas de comunicação e com as situações de produção de
enunciados correspondentes, e não como integrantes de disciplinas isoladas,
independentes da natureza genérica, como faz uma certa tradição estilística, ou como
fazem as descrições estruturalistas ou formalistas.
Dentro dessa perspectiva, podemos concluir que um gênero abrange um
conjunto de temáticas que pode aser indeterminado, mas certamente sefinito. Mas
um determinado conteúdo temático pode não ser propriedade exclusiva de um
determinado gênero. O tratamento dado ao conteúdo temático, à forma composicional e
aos estilos de gêneros utilizados serão diferentes em cada texto pertencente a
determinados gêneros, dado que a representação dos interlocutores e os objetivos são
diferentes em cada caso.
É importante destacar, que de acordo com a concepção bakhtiniana, nem
todos os gêneros são permeáveis à mudança ou ao estilo de autor, ou se preferir, à
autoria. Para o autor, os gêneros ligados às ciências e ao direito (essa afirmação,
particularmente, nos interessa) são exemplos dessa impermeabilidade, isso porque eles
possuem um alto grau de formatação, que depende da correlação de forças da esfera da
atividade a que estão vinculados e aos demais aspectos das condições gerais de
produção que determinam a constituição de um gênero específico. Assim, por exemplo,
os gêneros jurídicos e os burocráticos possuem um alto grau de formatação, sendo
refratários às mudanças e às interferências individuais. Daí a nossa preocupação em
52
fazermos toda essa discussão em torno das concepções bakhtinianas, pois, assim como
Aristóteles, Bakhtin também colocou os gêneros jurídicos como uma categoria à parte.
O estudo dos gêneros, nesse sentido, reclama para si um estudo que além
das esferas de comunicação a que se vinculam e das situações de produção dentro das
quais se realizam enunciados pertencentes a um determinado gênero. Reclama para si
um estudo de sua forma composicional, de seu estilo e de seu conteúdo temático, feito a
partir da relação desses elementos entre si. Ao enfocar a problemática do gênero
discursivo a partir do entrelaçamento dos fatores lingüísticos e contextuais, o autor em
tela torna-se referência obrigatória na investigação de todo e qualquer gênero do
discurso, pois seus fundamentos fornecem subsídios para a compreensão e a análise de
gêneros.
Ao tomarmos como objeto de análise desta pesquisa as sentenças de 1ª
instância e os acórdãos, poderíamos imaginar que suas enunciações, por se tratar de
textos técnico/ científicos, deveriam ter caráter monológico devido à concentração em
um objeto. Mas esses enunciados (cada sentença, cada acórdão) não podem deixar de
ser uma resposta, em certo grau, ao que já foi dito sobre o mesmo objeto. Essas
perspectivas dialógicas preenchem os enunciados e deverão ser levadas em conta se
quisermos compreender a orientação argumentativa desses textos. Além disso, a escrita
destes textos tem como índice constitutivo o fato de estar voltado para destinatários
específicos, as partes envolvidas na questão jurídica.
Salientamos, porém, que, mesmo não sendo objeto desta pesquisa proceder a
uma análise dos gêneros em estudo (sentença e acórdão), apresentaremos algumas de
suas características (no capítulo de análise) para que se possam compreender os papéis
sócio-discursivos destes. Antes, porém, apresentamos, no próximo capítulo, a
concepção de polifonia adotada por esta pesquisa.
53
3. Teoria da Polifonia
Não contemplo o mundo com meus
próprios olhos nem a partir de meu íntimo;
contemplo-me em vez disso com os olhos do mundo;
acho-me possuído pelo outro. Não aqui
integração ingênua entre o extrínseco e o intrínseco
(...) (BAKHTIN, 194
3).
3. 1 Preliminares
Neste capítulo, apresentamos as concepções de polifonia e de argumentação,
segundo Bakhtin e Ducrot, para que se possa entender o trabalho de análise a ser
empreendido nos capítulos subseqüentes, sobre a manifestação das vozes nas sentenças
e nos acórdãos. Estão aqui, em destaque, questões atinentes basicamente ao caráter
dialógico da linguagem, bem como ao fenômeno da polifonia e seus desdobramentos,
visto que esta pesquisa objetiva investigar os aspectos polifônicos da argumentação
observados em textos jurídicos (sentenças e acórdãos). Nosso interesse pela Teoria da
Argumentação proposta por Oswald Ducrot e Jean-Claude Anscombre
7
, decorre deste
fato. Trata-se de uma abordagem semântico-argumentativa que parte do princípio de
que a função mais importante da linguagem é a de argumentar.
Iniciamos com Bakhtin, dando continuidade às discussões feitas no capítulo
anterior. Traçamos um percurso teórico que visa abarcar a incorporação das vozes no
discurso, partindo do autor citado, expandindo para Authier-Revuz e Ducrot. Nossa
pesquisa está pautada principalmente nas concepções de Bakhtin e Ducrot, visto serem
estas as que darão suporte às análises empreendidas.
7
ANSCOMBRE & DUCROT. L ´argumentation dans la langue, Mardaga, Bruxelas,
1983.
54
3. 2 Polifonia e Argumentação: trajetórias
Na ótica de Bakhtin, a língua poderia ser, como para Saussure, um fato
social cuja existência se funda nas necessidades da comunicação. Mas Bakhtin valoriza
a fala, a enunciação, afirmando sua natureza social (não individual), enquanto Saussure
e os estruturalistas, seus seguidores, dedicam-se ao estudo da língua como um objeto
abstrato ideal, um sistema sincrônico e homogêneo.
Para o filósofo, a fala está sempre ligada às condições sociais de interação
que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas sociais. Portanto, a comunicação
verbal revela e confronta valores sociais contraditórios que lutam entre si estabelecendo
relações de dominação, de resistência, de adaptação ou resistência à hierarquia e
implica, também, a utilização da língua pela classe dominante como recurso para
reforçar seu poder. Essas relações são analisadas pelo autor no uso dos recursos
linguísticos que constituem a materialidade do enunciado, graças às formas de
apresentação do discurso do outro.
Ao atentar para os conflitos geradores das variações de um mesmo sistema,
Bakhtin conclui que os motivos dessas variações da ngua obedecem tanto a leis
internas (reconstrução analógica e economia) como, principalmente, a leis externas, de
natureza social. Bakhtin (2002, p. 89) critica a idéia de sistema de oposição língua/ fala,
sincronia/ diacronia de Saussure
8
; por julgar o signo dialético, vivo, e questiona qual o
verdadeiro núcleo da realidade linguística. O autor opta não pela língua, mas pelo ato
individual da fala - a enunciação. Para ele, o modo de existência da realidade linguística
é a evolução criadora ininterrupta e não a imutabilidade de normas idênticas a si
mesmas. A forma linguística é sempre mutável. Na enunciação, então, juntam-se outras
condições (como entonação, conteúdo ideológico, situação social determinada) que
8
Segundo as concepções deste autor, a língua se opõe à fala como o social ao individual. Portanto, a
língua, para ele, é um princípio de classificação, ela é um produto que o sujeito registra passivamente. A
fala, ao contrário é um ato individual de vontade e de inteligência no interior do qual se distingue,
constitui a história da língua, com seu caráter individual e acidental, seria um processo diacrônico. Então
o sistema lingüístico, que constitui um fato objetivo externo à consciência individual - ou seja, a língua,
seria um sistema sincrônico. Para Bakhtin, esse sistema sincrônico, objetivamente, não existe em nenhum
verdadeiro momento da história e, portanto, em nenhum momento efetivo do processo de evolução da
língua.
55
afetam a significação, dando valor novo ao signo. Para o pensador russo, é a classe
dominante que tenta tornar o signo monovalente, mas o signo é sempre plurivalente e
a dialética pode resolver a contradição entre a unicidade e pluralidade de significação.
Toda essa discussão em torno da língua reforça a idéia de que a filosofia
marxista da linguagem, postulada por Bakhtin (2002), coloca na base de sua doutrina, a
enunciação como realidade da língua e, ao mesmo tempo, da estrutura sócio-ideológica.
Assim, o discurso interior (sentido que algo tem para determinada pessoa) parte da
consciência individual que se constrói pela consciência social (diálogo social). E a
consciência individual es impregnada de conteúdo ideológico. Portanto, não existe
uma consciência fora da ideologia, embora possa haver modificações ideológicas. As
transformações ideológicas acontecem como reação a uma modificação da infra-
estrutura (realidade vista como relações de produção e estruturas sócio-políticas) num
processo dialético de transformação social. Essa mesma realidade determina o signo
cujas formas são condicionadas pela organização social dos indivíduos.
Toda essa discussão em torno do signo deságua na visão do filósofo sobre as
vozes, sobre polifonia. Após uma análise criteriosa, Bakhtin (2002, p.194) expõe que
vários caminhos para estudar a transformação dialética da palavra, mas o melhor
caminho para estudar essa transformação seria estudar a transformação da própria
língua como material ideológico, como meio onde se reflete ideologicamente a
existência. Este caminho leva ao estudo da reflexão da evolução social da palavra na
própria palavra, dentro de contextos sócio-históricos.
De acordo com Bakhtin (2002, p. 195), a palavra categórica e assertiva
existe em situações científicas herdeiras da tradição positivista, pois em todas as outras
situações a atividade verbal consiste em distribuir a palavra de outrem e a palavra que
parece ser a de outrem. O filósofo afirma que não se leva mais a sério o conteúdo
semântico da enunciação e que sendo assim, essa reificação da palavra significa uma
deteriorização do valor temático da palavra.
56
3. 3 Polifonia, segundo Bakhtin
De acordo com Bakhtin (2002, p.146), a sociedade é quem associa, às
estruturas gramaticais da língua, elementos de apreensão ativa, apreciativa da
enunciação de outrem. Estes elementos são pertinentes e constantes e, como são
inseridos pela sociedade, eles têm seu fundamento na existência econômica de uma
comunidade linguística dada. Sendo assim, para o filósofo, as palavras são tecidas a
partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações, em
todos os domínios (p. 41). Serão, por este motivo, as palavras, os indicadores mais
sensíveis de todas as transformações sociais, desde as mais insipientes ou efêmeras
(BAKHTIN, 2002, p. 42). Desta forma, o autor descarta a subjetividade individual do
indivíduo, mas não o sujeito. Por isso, a subjetividade, sob a perspectiva bakhtiniana,
encontra seu fundamento no materialismo histórico e transforma-se na polifonia.
Compreendemos que, dentro desta perspectiva bakhtiniana, as formas de
transmissão do discurso de outrem são uma relação ativa de uma enunciação a outra que
podem ser apreendidas por meio de construções específicas da língua. Sendo assim, as
formas sintáticas do discurso direto e indireto constituem-se em esquemas formados a
partir de tendências dominantes em cada época, da apreensão do discurso de outrem.
Percebe-se que, se a língua é o reflexo das relações sociais dos falantes,
dependendo da época (história), dos grupos sociais, do contexto (espaço) vemos
dominar diferentes variantes ao longo do tempo. Se os meios lingüísticos permitem a
apreensão do discurso de outrem e mais, a infiltração de réplicas e comentários do dizer
de um no dizer de outro, esse tipo de apreensão tem por objetivo neutralizar, apagar as
fronteiras do discurso de outrem para colocar em destaque um ponto de vista
dominante.
Em Tchougounnikov (2001, p.121), têm-se algumas discussões sobre o
trabalho de Bakhtin. Podemos destacar a de Boris Grois (Reitor da Universidade de
Viena) que trata da questão da polifonia bakhtiniana. Segundo ele, a palavra bakhtiniana
é sempre “inicial e em parte passiva, alienada daquele que fala, sempre ‘material’”: as
vozes dos outros estão sempre presentes nele sob uma forma reduzida. Mas não
somente a palavra como corpo material do pensamento” é não autônoma, não
57
autêntica. É por isto que o ‘romance polifônico’, ultrapassando a característica de um
livro individual, e mais freqüentemente toda individualização, é enraizado por Bakhtin e
é interpretado como resultado da ‘carnavalização da literatura, isto é, como produto da
destruição do caráter isolado, individual da palavra, da abolição dos direitos do autor a
ter um discurso individual. Este último desaparece na polifonia geral da linguagem cujo
portador é o “povo”.
A partir das concepções bakhtinianas de dialogismo e polifonia, pautadas na
idéia de língua como processo de interação, Ducrot introduz definitivamente nas
reflexões lingüísticas atuais os estudos do filósofo russo. Sua proposta de utilização do
termo polifonia é, entretanto, diferente da de Bakhtin, pois não aplica a teoria a textos
ou seqüências de enunciados, como fez o filósofo russo, mas apenas a enunciados,
numa visão enunciativa do sentido.
3. 4 A teoria polifônica proposta por Ducrot
É notório o lugar privilegiado que tem a argumentação nas discussões sobre
o domínio da Retórica. Nossa pesquisa parte desta perspectiva, segundo a qual a língua
é por natureza argumentativa, pressuposto desenvolvido por Oswald Ducrot (1994), em
sua Teoria da Argumentação na Língua (TAL). Em seus estudos sobre argumentação, o
referido autor abandona as idéias de convencimento e persuasão, adotadas pela Retórica
Clássica e pelos estudiosos da Lógica Natural e passa a defender a determinação
lingüística da argumentação, mostrando que a linguagem, por si mesma, argumentativa.
Ducrot, ao estudar a argumentação, a defende como uma propriedade da
língua, mostrando que o sentido do enunciado esna qualificação de sua enunciação.
Desta forma, ao descrever o sentido do enunciado, deve-se captar a imagem que ele
projeta de sua própria enunciação (trataremos deste conceito mais adiante). Sendo
assim, o autor parte do princípio de que a argumentação deixa marcas na organização
lingüística da frase, isto é, a frase é um objeto teórico, que não pertence, para o
lingüista, ao domínio do observável, mas constitui uma invenção desta ciência particular
que é a gramática. (DUCROT, 1987, p.164). Essas marcas, denominadas
posteriormente de operadores argumentativos, possibilitam ao locutor orientar o
58
interlocutor no sentido de determinadas conclusões. Desse estudo, surgem as noções de
operadores argumentativos e de orientação argumentativa, que se realiza através do uso
dos operadores argumentativos. Segundo o autor (DUCROT, 1987, p.166), essas marcas
são denominadas de modalizadores textuais ou operadores argumentativos que
funcionam como pistas da orientação argumentativa dos enunciados.
No entanto, esse pressuposto sofreu um acréscimo para afirmar que não só a
língua é por natureza argumentativa, como também o uso que dela fazemos nas nossas
interações sociais. Um exemplo desta ampliação foi realizada por Espíndola (2003) ao
estabelecer uma conexão entre a língua e a vida, uma vez que considera que não
somente a estrutura da língua é argumentativa como também a sua utilização, nas mais
diversas esferas da atividade humana.
Na área de análise lingüística, Ducrot destaca-se por defender uma
perspectiva integrada da Pragmática, assim, o autor recusa claramente a distinção entre
Semântica e Pragmática, entre o sentido do enunciado e a intenção da enunciação.
Dentro da concepção integrada da Pragmática, Ducrot apresenta as seguintes propostas
fundamentais: a) distinção entre frase e enunciado (e consequente distinção entre
significação da frase e sentido do enunciado); b) a noção dangua como "instrução"; c)
a noção de semântica argumentativa, fundada na existência de significação nos topoi ou
lugares do processo argumentativo; d) a noção de "polifonia enunciativa". Essa última
nos interessa especialmente por constituir o ponto de partida para os estudos aqui
empreendidos.
O autor sustenta que o sentido de um enunciado deve ser entendido como
função de combinações possíveis desse enunciado com outros enunciados da língua,
isto é, como função de sua orientação argumentativa. Para o estudioso, o ato linguístico
fundamental é o ato de argumentar, o de orientar outrem, por meio de palavras, a
determinada conclusão, fazendo com que o falante, por meio da ngua, apareça
orientando seu interlocutor a determinada conclusão. O locutor nessa teoria não tem
nenhuma realidade psicológica, mas sim puramente semântica determinada pelo sentido
do enunciado, portanto, linguisticamente constituída. Deste modo, compreender uma
enunciação é apreender essas marcas deixadas pela língua.
59
A concepção de argumentação firmada por Ducrot e adotada por esta
pesquisa deixa de ser vista como uma simples habilidade para convencer e persuadir,
utilizada, principalmente, em determinados textos escritos e falados, e passa a ser
compreendida como uma característica intrínseca à linguagem e à interação humana que
permite que o falante, ao utilizar a língua, imprima suas intenções e sua subjetividade.
Sendo assim, parece bastante óbvio que toda e qualquer atividade interacional pressupõe
alguma intenção, uma vez que ninguém fala ou escreve sem um objetivo. Essas
intenções não ficam registradas no material lingüístico que selecionamos enquanto
interagimos, como já estão contidas na própria estrutura da língua.
A afirmação de que a própria estrutura da língua possui marcas
argumentativas justifica-se pelo fato de que, de acordo com as intenções que possui o
falante, ele seleciona determinadas estruturas linguísticas, uma vez que estas, e não
outras são úteis para o que ele pretende dizer ou fazer. Além disso, convém acrescentar
que, nas escolhas realizadas, dentro das possibilidades que a língua lhe oferece, fica
impresso o ponto de vista do falante sobre o objeto de sua interação. Portanto, é dessa
maneira que a argumentação vai da estrutura da língua para o seu uso.
Antes de apresentar a teoria polifônica de Ducrot, é pertinente discutir o
termo enunciação, que pode ser compreendido a partir de três concepções, segundo o
próprio autor:
1) pode designar a atividade psico-fisiológica, juntamente com o jogo de influências
sociais que a condiciona, ocorrida no momento de produção do enunciado;
2) pode ser entendida como o produto da atividade do sujeito falante, ou seja, pode ser
entendida como o enunciado proposto por Ducrot;
3) pode ser considerada como o acontecimento construído pelo aparecimento de um
enunciado, sendo essa última definição proposta por Ducrot que afirma que “a
realização de um enunciado é de fato um acontecimento histórico: é dado existência a
alguma coisa que não existia antes de falar e não existirá depois. É essa aparição
momentânea que chamo ‘enunciação’”. (DUCROT, 1987, p.168).
60
Dentro da teoria da enunciação, distinguem-se frase e enunciado. O primeiro
é entendido como o objeto teórico, que não pertence ao domínio do observável. O
segundo é aquele que pode ser observado, considerado como a manifestação particular
de uma frase. Deste modo, o enunciado é definido como um fragmento de discurso, já a
frase é vista como entidade abstrata suscetível de ser manifestada por uma infinidade de
enunciados.
Ducrot (1987) chama de significação da frase sua caracterização semântica e
sentido do enunciado, a caracterização semântica do enunciado. O sentido do enunciado
a descrição da enunciação, entendida como as indicações argumentativas e
ilocutórias da linguagem e, ainda, como as indicações, que o enunciado apresenta, no
seu próprio sentido, sobre o(s) autor(es) eventual(ais) da enunciação.
Deste modo, dizer que um enunciado, segundo a filosofia da linguagem,
possui uma força ilocutória é o mesmo que atribuir a sua enunciação um poder jurídico.
Utilizando um enunciado interrogativo, pretende-se
obrigar, pela própria fala, a pessoa a quem se dirige a adotar um
comportamento particular, o de responder e, do mesmo modo,
pretende-se incitá-lo a agir de uma certa maneira, se se recorre ao
imperativo, etc. (DUCROT, 1987, p.163).
Dentro da teoria polifônica formulada por Ducrot, verifica-se que é o
enunciado que mostra a enunciação e assinala, em sua enunciação, a sobreposição de
vozes. Afirmando que o enunciado apresenta a sobreposição de vozes, Ducrot questiona
a unicidade do sujeito. A unicidade do sujeito, que não seria questionada se todos os
enunciados se apresentassem como “Na semana passada, eu estava em Paris” para
responder à pergunta “Onde você estava na semana passada?”, pois, nele, facilmente,
encontramos as três propriedades constitutivas do sujeito falante, pois L é o indivíduo a
quem a pergunta é endereçada e que articula a resposta, é designado por eu e assume a
responsabilidade do ato de afirmação presente no enunciado. É nesta perspectiva que
Ducrot traça sua concepção de argumentação.
61
Ducrot trabalha com a noção de polifonia, propondo que a origem da
enunciação possa a ser atribuída a um ou a vários sujeitos. Esse termo, oriundo do
universo musical para designar um tipo de composição em que se superpõem diversas
vozes, é utilizado nos estudos de Bakhtin (2002a) sobre os romances de Dostoievski .
Bakhtin postulou a existência de dois tipos de literatura: a dogmática, de tipo
monológica, e a carnavalesca, popular ou polifônica. Na última, ele incluiu a obra de
Dostoievski.
Nessa mesma obra, o autor afirma que essa literatura polifônica foi utilizada
por Dostoievski e marca o surgimento de um herói que possui uma voz que se coloca de
igual para igual com a voz do autor. Segundo o autor, a voz do herói sobre si mesmo e o
mundo é tão plena como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem
objetificada do herói como uma de suas características, mas tampouco serve de
intérprete da voz do autor (p.
5).
Na literatura polifônica, o personagem apresenta a si mesmo, é “o agente do
discurso autêntico e não um objeto mudo do discurso do autor” (BAKHTIN, 2002a, p.
64). O autor, acrescenta Bakhtin, não fala do personagem, mas fala com ele,
estabelecendo um diálogo constante na obra. Na literatura dogmática, por sua vez, a
personagem é definida pelo autor, fechada e porta voz de um ponto de vista do autor.
Essa personagem se constrói no mundo do autor, objetivo
em relação à consciência da personagem; a construção desse mundo,
com seus pontos de vista e definições conclusivas, pressupõe uma
sólida posição exterior, um estável campo de visão do autor.
(BAKHTIN, 2002a, p. 51).
Para estabelecer o conceito de literatura polifônica, Bakhtin desenvolveu
toda uma teoria a respeito do discurso. Ele partiu da premissa de que o discurso é por
natureza dialógico e que a linguagem só tem existência nas relações dialógicas: “Toda a
vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a
62
prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas”
(BAKHTIN, 2002a, p. 183).
3. 4. 1 Por uma teoria polifônica
Como vimos no capítulo 1, o termo polifonia surge nos estudos de Bakhtin,
no interior da concepção de dialogismo. Ao trazer o termo polifonia para a Lingüística,
Ducrot (1988, p. 15) no capítulo intitulado “Esboço de uma teoria polifônica da
enunciação” objetiva questionar a unicidade do sujeito falante, pretendendo provar que
um enunciado “manifestação particular” ou “ocorrência hic et nunc de uma frase”
(1988, p. 164) pode ser perpassado por mais de uma voz, ou seja, Ducrot pretende
mostrar que o autor do enunciado não se expressa nunca diretamente, mas põe em cena,
no mesmo enunciado, um certo número de personagens lingüísticos (1988, p. 16).
Ducrot alerta, porém, que a tese da unicidade do sujeito começa a ser
contestada em enunciados mais complexos como quando L, a quem se censurou por ter
cometido um erro, retruca: “Ah! Eu sou um imbecil: você não perde por esperar!”. O
autor mostra que L, nesse enunciado, ainda é o produtor das palavras, é ainda designado
por eu, é responsável pelo primeiro ato de afirmação do enunciado, apesar de ele ser
atribuído ao ponto de vista de seu interlocutor.
Locutor é definido por Ducrot como responsável pelo enunciado, é referido
pelo pronome eu e outras marcas de primeira pessoa e ainda é distinguido do sujeito
falante, já que aquele é ser do discurso e este, ser empírico, psicológico. Há nas
formulações de Ducrot, dois tipos de locutores: um locutor enquanto tal (L) e outro
locutor enquanto ser do mundo (λ). L é apresentado pelo enunciado como o responsável
pela enunciação, pertence ao comentário da enunciação e λ é apresentado pelo
enunciado como uma pessoa “completa” que possui, entre outras propriedades a de ser a
origem do enunciado, que pertence à descrição do mundo. Ducrot identifica, em
seguida, dois tipos de polifonia presentes no discurso: a polifonia de locutores e a
polifonia de enunciadores.
63
Na Polifonia de locutores é encontrada, por exemplo, no discurso relatado.
No discurso relatado, estilo direto ou indireto, encontram-se pelo menos dois locutores
distintos. Nos enunciados com esse tipo de estilo, uma pluralidade de responsáveis,
“dados como distintos e irredutíveis” (DUCROT, 1987, p. 182). Em enunciados do tipo:
Carla me falou: Eu irei cedo, duas marcas de pessoa, atribuídas a dois locutores
distintos. O me é atribuído a um locutor, responsável pelo discurso, e o eu é atribuído a
outro locutor. Sendo assim, ambos são de pessoa, mas não se referem à mesma
pessoa do discurso.
Assim, é possível que uma parte de um enunciado imputado globalmente a
um primeiro locutor seja, entretanto, imputado a um segundo locutor (do mesmo modo
que, num romance, o narrador principal pode inserir no seu relato o relato que lhe fez
um segundo narrador). Segundo Ducrot (1987, p. 185), essa possibilidade de
desdobramento do locutor permite não somente dar a conhecer o discurso atribuído a
alguém como também produzir um eco imitativo, ou ainda, organizar um teatro no
interior da própria fala, ou que alguém se torne porta-voz de um outro e empregue, no
mesmo discurso, eus que remetem tanto ao porta-voz quanto à pessoa da qual é porta-
voz.
Neste tipo de polifonia, a enunciação é apresentada como dupla, ou seja, “o
próprio sentido do enunciado atribuiria à enunciação dois locutores distintos,
eventualmente subordinados” (DUCROT, 1987, p. 186). E, embora a enunciação seja
ação de um sujeito falante, a imagem do enunciado que se apresenta é de uma hierarquia
das falas, uma troca ou um diálogo entre os locutores, acrescenta o autor.
Voltemos ao exemplo dado, Carla me falou: Eu irei cedo, percebe-se a
presença desses dois locutores distintos: O primeiro L1 = (me) – responsável pelo
enunciado como um todo e o segundo L2 = (eu) a quem se atribui o relato “Eu irei
cedo”. Percebe-se também a hierarquia entre os locutores, uma vez que foi L1, o
responsável pelo enunciado como um todo, que colocou em cena L2, responsável
apenas pelo segmento “Eu irei cedo”.
Podemos citar como exemplo de polifonia de locutores, o discurso relatado,
as aspas, citações, referências, uma das formas da argumentação por autoridade etc. No
64
discurso relatado - Ducrot afirma que este tipo de discurso “procura reproduzir na sua
materialidade as palavras produzidas pela pessoa de quem se quer dar a conhecer o
discurso” (1987, p. 186), logo relatar um discurso é dizer que palavras foram utilizadas
pelo autor desse discurso. Partindo disso, podemos acrescentar que, língua escrita
dispõe de uma série de recursos para assinalar o discurso relatado e, por conseguinte, a
mudança de locutores, no texto. As marcas mais comuns são o travessão, as aspas, os
dois pontos, os verbos dicendi, como se pode perceber nos exemplos abaixo, retirados
do corpus desta pesquisa.
EX. (01) AC 02
Alega
9
o autor que em 07.11.2000 firmou com a promovida contrato particular de
promessa de compra e venda de um apartamento.
EX. (02) AC 02
(...) sob a relatoria do ministro Massami Uyeda, cuja ementa é do seguinte teor: (...)
Podem ainda aparecer, no sentido do enunciado, vozes que não são as de um
locutor. Essas vozes são atribuídas a enunciadores, que se expressam através da
enunciação sem que se utilizem palavras precisas. Os enunciadores falam no sentido da
enunciação, expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude e não suas
palavras. Ducrot compara a dupla locutor/enunciador à dupla autor + ator/personagem
na linguagem teatral. Na teoria narrativa apresentada por Genette (1972, p.195), o
locutor é associado ao narrador, o produtor efetivo externo ao sentido do enunciado é
comparado ao autor e, por fim, o enunciador corresponde ao que Genette denomina
“Centro de perspectiva”, ou seja, a pessoa de cujo ponto de vista são apresentados os
acontecimentos. Para Ducrot,
O locutor apresenta uma enunciação de que se declara
responsável como exprimindo atitudes de que pode recusar a
responsabilidade. O locutor fala no sentido em que o narrador relata, ou
seja, ele é dado como fonte de um discurso. Mas as atitudes expressas
9
Grifo nosso.
65
neste discurso podem ser atribuídas a enunciadores de que se distancia
– como os pontos de vista manifestados na narrativa podem ser sujeitos
de consciência estranhos ao narrador. (...) enunciador e centro de
perspectiva servem para fazer aparecer no enunciado um sujeito
diferente não somente daquele que fala de fato, (sujeito
falante/romancista), mas também daquele de que se diz que fala
(locutor/narrador). (DUCROT, 1988, p. 196).
O autor diferencia narrador de “Centro de perspectiva” afirmando que aquele
é quem fala e este é quem vê. A possibilidade de superposição de vozes diferenciadas
tanto de locutores quanto de enunciadores – no enunciado demonstra que Ducrot (1988)
adere ao dialogismo de Bakhtin como principio constitutivo da linguagem e do sentido,
e isso fica claro quando o autor afirma que “a enunciação é ação de um único sujeito
falante, mas a imagem que o enunciado dela é a de uma troca, de um diálogo, ou
ainda de uma hierarquia de falas”. (p. 187).
Ao tratar da enunciação, Ducrot destaca seu caráter histórico, o que promove
uma diferenciação entre a sua concepção de polifonia e a concepção de Bakhtin. Para
ele, a enunciação é o acontecimento constituído por um enunciado”, uma “aparição
momentânea”, isto é, é um acontecimento histórico no sentido de que existência a
alguma coisa que não existia antes da fala e que não existirá depois. Portanto, a
historicidade para o autor é vista em seu aspecto temporal, sem a implicação dos
envolvimentos contextuais, sócio-históricos ressaltados por Bakhtin.
A diferença entre o discurso relatado direto e o discurso indireto, de acordo
com Ducrot, é que o primeiro daria a conhecer a forma, ou seja, dizer que palavras
foram utilizadas pelo autor do discurso relatado, enquanto o segundo, o conteúdo. No
entanto, o estilo direto pode visar somente o conteúdo. Além disso, esse estilo pode
também visar o conteúdo, mas para fazer saber qual é o conteúdo, escolhe dar a
conhecer uma fala (ou seja, uma seqüência de palavras, imputada a um locutor).
(DUCROT, 1987, p. 187).
66
Para Ducrot (1987), o estilo direto implica fazer falar um outro e, desta
maneira, atribuir-lhe a responsabilidade das falas. Para Ducrot, “isto não implica que
sua verdade tenha uma correspondência literal, termo a termo” (p. 187). Já Bakhtin
(2002b), considera que a diferença entre o discurso direto e o indireto é de grau e
orientação de análise, ou seja, no estilo direto a análise do discurso do outro pelo
narrador é menor do que no indireto. E acrescenta que esse discurso integra elementos e
matizes que o outro deixa de lado.
Na perspectiva do filósofo (2002b, p. 159), o discurso indireto ouve de
forma diferente o discurso de outrem; ele integra ativamente e concretiza na sua
transmissão outros elementos e matizes que os outros esquemas deixam de lado. Por
isso transposição literal, palavra por palavra, da enunciação construída, segundo um
outro esquema, é possível nos casos em que a enunciação direta, se apresenta na
origem como uma forma algo analítica isso, naturalmente, dentro dos limites das
possibilidades analíticas do discurso direto. A análise é a alma do discurso indireto. O
autor ainda acrescenta que a análise, no discurso indireto, pode ser de conteúdo ou de
expressão (BAKHTIN, 2002b, p. 161). A primeira apreende o discurso do outro no
plano meramente temático e a segunda “abrange grandes possibilidades às tendências à
replica e ao comentário no contexto narrativo, ao mesmo tempo que conserva uma
distância nítida e estrita entre as palavras do narrador e palavras citadas” (BAKHTIN,
2002b, p. 161).
Diante do exposto, discordamos que a distinção entre discurso direto e
indireto não além da diferença entre forma e conteúdo, como postula Ducrot, e
concordamos com Bakhtin que se trata de uma questão de grau e orientação de análise.
No entanto, essa análise consiste em um maior ou menor comprometimento com o
relato do outrem pelo locutor (ou narrador, nas palavras de Bakhtin).
No estilo direto, o locutor responsável pelo discurso (L1) não se compromete
com o discurso dos outros locutores introduzidos em seu discurso, uma vez que não
assume a responsabilidade pelo relato dos outros locutores. No indireto, por sua vez, L1
se compromete com os relatos dos outros locutores, porque torna seu, o discurso do
outro; incorporando as palavras alheias e deixando de sinalizá-las (com aspas ou
travessão) como tal. Logo, trata-se de uma questão de maior ou menor
67
comprometimento, que no estilo indireto uma assimilação e no direto, um
distanciamento das palavras do outro. É exatamente isso que será observado no corpus
em análise.
3. 5 Ducrot e a sua Teoria da Argumentação
No capítulo anterior, fizemos uma breve discussão sobre as origens da
retórica, passando por pontos importantes que ressaltam as influências de filósofos e
teóricos de século XX. Como se tem observado, a compreensão e análise de sua própria
linguagem essa “ferramenta imperfeita” tem sido uma preocupação constante do
homem (CAMPOS, 2005, P. 24). Na atualidade, sob pontos de vista variados, como o
estrutural, o gerativista, o lógico, o psicológico, o psicanalítico, o ideológico, o
enunciativo entre outros, inúmeros teóricos buscam explicá-la, focalizando-a sob
diferentes aspectos, tais como, fonológico, sintático, semântico, pragmático, textual ou
discursivo.
Nossa pesquisa se propõe a investigar os aspectos polifônicos da
argumentação observados em textos jurídicos. Decorre daí, nosso interesse pela TAL -
Teoria da Argumentação proposta por Oswald Ducrot e Jean-Claude Anscombre, na
Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Trata-se de uma abordagem
semântico-argumentativa que parte do princípio de que a função mais importante da
linguagem é a de argumentar. Por isso, o sentido é definido como sendo essencialmente
argumentativo e, segundo a primeira fase da Teoria, está marcado, inscrito na língua por
meio de operadores lingüísticos que, de acordo com os estudos da linguagem,
corresponderiam a nomes, conjunções, advérbios etc.
No decorrer de seus estudos, Ducrot foi reformulando suas bases teóricas.
Assim, para justificar novas visões de sua teoria, busca os Topoi e reformula o conceito
de polifonia bakhtiniana. Ele faz isso partindo de questões que visam descrever ,
verificar onde se encontra e como se constitui a argumentação. Apresentamos, na
seqüência, uma análise da trajetória da Teoria da Argumentação. É uma análise breve,
feita de forma sucinta, mas suficiente para que se entenda o desenvolvimento do
pensamento do semanticista.
68
3. 5. 1 Para compreender a Teoria da Argumentação
Como vimos no início das nossas discussões teóricas, sobre a questão da argumentação,
Aristóteles - em sua primeira fase, segundo Brick (2002, p. 36) investigava sobre a
lógica formal. Isso nos faz crer que os estudos de semântica embasavam os de lógica
argumentativa. Os estudiosos, denominados analíticos, fundavam sua lógica em
princípios de verdade/falsidade e buscavam as verdades universais passíveis de
demonstrabilidade. Eles consideravam a razão igual à verdade e a falácia
correspondente à falsidade.
Aristóteles, em sua segunda fase, busca fragmentar essa igualdade entre
razão e verdade. Mostra que a verdade, além de poder ser uma asserção, algo
demonstrável ou verificável, pode, também, depender do consenso, não sendo
empiricamente verificada. A esses lugares onde o pensamento se coloca como uma
verdade que são lugares ltiplos, lugares de argumentação chama-os de topoi.
Com isso, o filósofo desestabiliza as bases da lógica analítica, e é justamente, esta fase
que vai inspirar os estudos sobre o papel da argumentação na língua em Ducrot.
Em síntese, fazendo um breve resumo da trajetória dos estudos sobre a
Semântica, observa-se que esta é substituída pelos estudos de Retórica na sociedade
romana, após a conquista da civilização grega pelos romanos, que focalizam, então, a
questão do estilo, efeito da palavra. A Retórica é reduzida à Estilística e isso acaba por
apagar sua dominância nos estudos semânticos da linguagem.
69
A semântica renasce como ciência, na França, com o filólogo Michel Bréal,
em Ensaio de semântica: ciência da significação, em 1987, com uma retomada da
cultura clássica grega. De um lado, os formalistas identificavam a Linguística como
uma ciência natural semelhante à Biologia, por exemplo. Para Bréal (1992, p. 26), a
linguística é uma ciência humana e histórica, pois não linguagem sem subjetividade,
não como abstrair o sujeito da linguagem (sujeito versus objeto). Sendo assim, o
sujeito é constitutivo da linguagem (esta também constitui os sujeito) que, por sua vez, é
histórica porque os processos de transformação o dependem de fatos naturais, mas da
história de uma língua e do trabalho lingüístico dos homens. Dentro dessa perspectiva, o
estudo dos processos de transformação por que passa a linguagem em sua ampliação e
modificação de sentido, deveria ser, de acordo com o filósofo, o fundamental dos
estudos lingüísticos. O autor enfatiza o elemento subjetivo como constitutivo da
linguagem, a inscrição do sujeito na linguagem e o sujeito e sua relação com a história
na construção do sentido.
Os fundamentos da Teoria da Argumentação na Língua (TAL) retomam, de
certa forma, as bases do pensamento filosófico grego, mas não mais à moda de Bréal,
abstraindo de suas investigações o método comparatista. Estes fundamentos estão nas
chamadas teorias estruturalistas. Nesta fase, percebe-se a preocupação desses estudiosos
com a materialidade lingüística a argumentação está na língua. Podemos citar como
textos representativos dessa época: Princípios de Semântica Linguística dizer e não
dizer (1997), Provar e Dizer (1981). Nessas obras, Ducrot (1997) colocava que o ponto
de partida do componente lingüístico era o enunciado e não a enunciação (o que, em
princípio, difere do posicionamento de Bakhtin), embora ele não descarte a
interferência da enunciação nas significações constitutivas do seu ponto de chegada:
“rompemos, portanto, definitivamente com a crença (...) segundo a qual tomar por ponto
de partida os enunciados é apenas renunciar a considerar a enunciação” (DUCROT,
1997, p. 141). Nesta primeira fase, em Provar e Dizer”, essas relações são apenas
parcialmente observadas, ainda que reconheça que “há encadeamentos que são
contrários ao espírito da língua” (1981, p.230), mas logicamente justificáveis. Ducrot
(1981, p. 229) considera que a redução à gica é “entendida como sistema de valores
de verdade”. Em Dizer e não dizer (1997), o autor discute o problema geral do implícito
- como se pode dizer uma coisa, sem, no entanto, aceitar a responsabilidade de tê-la
70
dito; como a implicitação pode surgir de forma involuntária com relação ao locutor, que
manobras estilísticas usa o locutor para implicitar sentidos no seu dizer e como o
semanticista descreve essa espécie de segundo código que se superpõe à língua descrita
nas gramáticas e dicionários.
Na Teoria da Argumentação na língua, Ducrot (1989) busca definir
conceitos e princípios, estabelecendo diferenças entre: enunciado/frase;
sentido/significação. Assim, considera ser o enunciado da ordem do empírico, jamais se
repetindo, pois o momento da enunciação é que faz significar o enunciado (leva em
conta, para isso, um produtor, um lugar, uma data e o(s) ouvinte(s)); pode haver, isso
sim, uma igual seqüência de palavras mas o sentido será diferente, pois está atrelado à
instância de enunciação. Para o autor, a frase é uma unidade abstrata, objeto do
gramático e não tem realização empírica. A partir daí, o autor distingue sentido –
valores semânticos atribuídos ao enunciado e significação valores semânticos
atribuídos à frase. A frase mostra o caminho a ser seguido para interpretar o que é
enunciado, especifica o que se deve procurar no contexto. Portanto, a significação é
constituída de diretivas, de instruções e pistas lingüísticas para que o sentido do
enunciado se estabeleça.
Para Ducrot, entre sentido e significado uma diferença de natureza,
porque há no sentido, uma preocupação com o externo da língua; sendo assim, o sentido
não está numa relação contínua com o significado, uma vez que esse restringe seu
campo às instruções lingüísticas contidas no enunciado. Em Dizer e não dizer”, Ducrot
(1997, p. 229) conceitua o efeito de sentido como a ação imposta pela enunciação,
através da inscrição do implícito, no enunciado. Mas somente coloca em relevância o
que é externo ao contexto semântico do dito no tratamento sobre como funcionam os
subentendidos.
Nesta primeira fase, Ducrot (1981) procura analisar também as maneiras
como as variáveis argumentativas (morfemas, locuções conjuntivas, conjunções,
adjetivos e advérbios) apontam diretivas e instruem para a compreensão do sentido dos
71
enunciados. Isto é, Ducrot acredita, então, que essas variáveis argumentativas
funcionam como espécies de códigos, que nos conduzem para uma determinada
estratégia argumentativa. O autor critica a concepção tradicional da argumentação que
mostra, por exemplo, seqüências como: A C A logo C Sou pobre, logo terei de
economizar para estudar. C A C já que A – Economizarei para estudar já que sou pobre.
Ducrot critica o papel secundário dado à língua na concepção tradicional da
argumentação, na qual a falsidade ou a verdade do argumento implica, necessariamente,
a falsidade ou a verdade da conclusão. Isso significa que A remete a um fato F e que
este fato pode ser considerado verdadeiro ou falso, ou seja, ele pode ser validado ou
não, com base na verificação factual da realidade externa. Tratar do sentido, nesta teoria
tradicional equivale a tratar da verdade ou da falsidade dos enunciados.
Nesta fase, Ducrot resiste em admitir e aceitar a situação externa como algo
constitutivo da língua, mas não aceita também os princípios do distribucional ismo. E
busca justificar-se, mostrando duplas de frases (noção de algoritmo de paráfrase,
oriunda do distribucionalismo) que podem indicar o mesmo fato F cujos enunciados,
ainda que a situação de discurso seja idêntica, não autorizam a mesma argumentação.
Ducrot apresenta alguns enunciados para criticar a noção de equivalência binária,
proposta a partir de bases distribucionalistas. O autor (1987, p. 27), ao descrever a
determinação do subentendido, explica, por exemplo, a diferença de efeito de sentido
entre “pouco” e “um pouco”:
a. “Pedro trabalhou pouco”;
B. “Pedro trabalhou um pouco”.
Para Ducrot (1987, p. 58), o conteúdo factual de (a) e (b), embora
semelhante, tem intenções argumentativas diferentes e não justifica a mesma conclusão,
ou a justifica de maneira diferenciada. Assim, os argumentos (a) e (b) permitem,
respectivamente, as conclusões: (a’)-“Ele não será bem sucedido. (b’)-Ele será bem
sucedido”. Mas, para chegar a essas conclusões, é preciso que alguém se coloque num
lugar especial de argumentação, um lugar “moral”, ou seja, um topos, que afirma:
Trabalhar é bom. Ora, esse topos pressupõe a existência de duas formas tópicas (FT)
72
recíprocas: FT
1
Quanto mais se trabalha mais se tem êxito. FT
2
Quanto menos se
trabalha menos se tem êxito. Por outro lado, se alguém a partir de (a)- Pedro trabalhou
pouco, concluísse (a’’) Ele será bem sucedido; e a partir de (b)-Pedro trabalhou um
pouco, concluísse (b’’) Ele não será bem sucedido, teríamos um outro topos, segundo o
qual o êxito não depende do valor do trabalho: O trabalho não leva ao êxito. Claro que
as formas tópicas desse último topos serão recíprocas, mas invertidas com relação às FT
do primeiro topos. Então, como FT do segundo topos, temos: FT
1’
- Quanto menos se
trabalha, mais se tem êxito. FT
2’’
Quanto mais se trabalha, menos se tem êxito.
Sendo assim, conforme ressalta Guimarães,
(...) a Teoria da Argumentação na língua passa a
distinguir um valor argumentativo tratado num nível semântico “mais
profundo” e o ato de argumentação que se realiza na enunciação. Ao
mesmo tempo considera que o valor argumentativo está
fundamentado em topoi que o graduais, segundo formas tópicas
recíprocas (Guimarães, 2002, p. 55).
Em resumo, neste estudo, Ducrot (1988, p. 144) conclui que pouco e um
pouco não determinam o topos, mas a forma tópica do topos convocado.
Ainda sobre os pressupostos da Teoria da argumentação, graças à análise e à
descrição semântica de operadores argumentativos, Ducrot afirma que a argumentação
está na língua, e através da língua é possível determinar os valores das orientações
argumentativas. Então, de acordo com esta teoria, Ducrot ressalta que os enunciados
apresentam força ou valor argumentativo diferentes – essa força ou valor argumentativo
são a chave do sentido do enunciado, pois orientam sobre o funcionamento do sentido a
ser atribuído a este e são atestados por operadores lingüísticos tais como advérbios,
conjunções, quantificadores, etc. faz-se necessário retomar alguns conceitos e exemplos
de descrições da Teoria dos Topoi na língua. É o nosso próximo passo.
Atentando para a constituição extremamente institucionalizada do nosso
corpus que traz em si o peso do contexto em que a enunciação se dá, deixando
sobressair as relações de poder no uso da linguagem, envolvidas nas construções
73
polifônicas somos levados a considerar também a perspectiva mais abrangente de
Bakhtin que considera a enunciação como uma instância determinada socialmente. Na
seqüência, trataremos dos aspectos constitutivos da polifonia na concepção de Ducrot.
3. 5. 2 Sobre a Teoria dos Topoi na língua
Ducrot (1989), partindo de concepções adquiridas em Aristóteles, se
apropriou do termo topos (vem do Grego e significa lugar, como foi dito antes).
Aristóteles o define como premissas que, não podendo ser julgadas em termos de
verdade ou falsidade, passam a constituir um conjunto cuja aceitabilidade depende de
um consenso entre aqueles que são reconhecidos como detentores do saber na sociedade
grega.
Para Ducrot (1989, p. 25), o topos limita os conjuntos de encadeamento
entre certos argumentos e suas conclusões. Na tentativa de restringir sua Teoria da
Argumentação na Língua (TAL) à descrição do funcionamento dos operadores
argumentativos na materialidade da língua, o autor adota uma concepção reducionista
de topos, limitando-o a relações escalares, como mostramos no item anterior. Então,
no início dessa teoria, Ducrot ainda tenta ligar a noção de Topoi à materialidade da
língua, ao caracterizar o topos através de três propriedades: a. universalidade – o topos é
compartilhado por uma comunidade lingüística da qual fazem parte a fonte e o alvo. O
autor deixa claro, no entanto, que a universalidade é apenas suposta ou pretendida; b.
generalidade – nesta, o topos é apresentado como válido em uma infinidade de situações
análogas, inclusive por sua condição de universal; c. gradualidade esta é a única
propriedade do topos que remete novamente para dentro da língua. De acordo com
Ducrot (1989, p. 26), todo topos considera duas propriedades graduais: P e Q. Uma
variação na propriedade P (aumento ou diminuição) implica uma variação na
propriedade Q, se todas as outras condições se mantiverem.
Para justificar a natureza gradual do topos, Ducrot analisa, empiricamente,
que uma homogeneidade entre o predicado utilizado no topos e o que intervém no
74
argumento. Então, o que pretendia mostrar, inicialmente, é que a gradualidade, que
incide em variações das propriedades dos morfemas inseridos nos enunciados, justifica
tanto uma condição de homogeneidade entre os predicados mobilizados por um topos,
como sustenta, ao mesmo tempo, o fato de que não se pode passar de um lugar, de uma
perspectiva para outra, senão pela mediação de escalas, de relações graduais. Portanto, é
pelas formas tópicas que Ducrot pretende sustentar a Teoria dos topoi na língua.
Em suas discussões sobre a gradualidade, Ducrot (1989, p.29) descreve dois
argumentos encadeados pelo conectivo “até mesmo”, como por exemplo: “Faz 16º,
talvez até mesmo 18º, vamos passear”. Neste caso, o topos seria “Uma temperatura mais
alta torna o passeio agradável”. Se o argumento fosse invertido Faz 18º, talvez até
mesmo 16º” e a conclusão fosse a mesma: Vamos passear”, o topos seria ao contrário:
Uma temperatura mais baixa torna o passeio mais agradável”. Diante disso, Ducrot
conclui que o segundo argumento, introduzido por até mesmo, é sempre mais forte que
o primeiro, e que o conectivo até mesmo atribui aos argumentos uma conclusão com
formações tópicas graduais dentro de um mesmo topos. “Se um topos aplicado a dois
argumentos, leva a ver um como mais forte do que o outro, é inevitável que o topos seja
gradual, que ele coloque em correspondência gradações” (Ducrot, 1989 p.29). Isso
acontece nos dois exemplos citados, em que o argumento se apresenta explícito como
escala lingüística.
Além disso, ao longo de suas observações a cerca dos topoi, o autor passa a
perceber que o topos de um enunciado pode ser heterogêneo e não-gradual, o que nos a
pensar invalidação da existência dos topoi na Teoria da Argumentação na língua. O
próprio semanticista começa a responder questões como essa, quando assume, em
primeiro lugar, que, assim como o valor das palavras não é integralmente lingüístico e
depende de uma realidade externa um topos a argumentação também não se funda
na língua, tendo em vista o fato de que argumentos que se produzem em torno da
própria ambigüidade de valores que são dados aos signos devido às condições históricas
em que o sujeito passa a inscrevê-los, determinando, em última instância, os sentidos
que lhe são atribuídos.
Ducrot (1988), passa buscar a descrição dos valores que os operadores
argumentativos (expressões argumentativas) podem assumir independente de valores
75
escalares. Em suma, a Teoria da Argumentação na Língua, de Ducrot, passou por alguns
processos de reformulação e esses processos são o resultado de uma série de estudos
sobre linguagem e argumentação desenvolvida pelo autor e estão sistematizados em
quatro fases: Descritivismo Radical, Descritivismo Pressuposicional, Argumentação
como Constituinte da Significação e Argumentatividade Radical. Atualmente, o
semanticista trabalha na investigação de uma outra fase denominada de Teoria dos
Blocos. Esta última não será tratada nesta pesquisa.
Em síntese, tem-se na primeira fase de sua teoria, denominada Descritivismo
Radical, a tese de que a argumentação estava baseada em meros fatos. Nesta fase, a
língua e a argumentação eram vistas separadamente, e os conectores apenas
estabeleciam as relações entre os fatos. Anscombre e Ducrot (1994, p. 195) afirmam
que, no Descritivismo Radical, a primeira contribuição da língua para a argumentação
não é propriamente argumentativa, porque esta contribuição se refere, simplesmente, ao
poder que as palavras têm de descrever fatos. No entanto, os pesquisadores
consideravam que, quando os conectores estabeleciam as relações entre os fatos,
introduziam argumentatividade nos enunciados. Para ilustrar, retomamos um exemplo
de Anscombre e Ducrot (1994, p.200), EX(01): Pedro trabalhou pouco e EX(02): Pedro
trabalhou um pouco. Pode-se perceber como se essa relação da língua com os fatos.
Os enunciados acima expressam quantidades diferentes de trabalho efetivado por Pedro:
no primeiro, Pedro trabalhou pouco, a quantidade de trabalho efetivada é menor que no
segundo, Pedro trabalhou um pouco. Logo, pouco e um pouco designam fatos diferentes
e, a argumentação se fundamenta nos fatos designados por essas expressões.
Os pontos relevantes desta etapa da pesquisa dos autores (1994, p. 199),
nesta etapa, são os seguintes: a) Os encadeamentos argumentativos do discurso estão
fundamentados nos fatos veiculados pelos enunciados; b) A função semântica primeira
das estruturas lingüísticas é a descrição dos fatos; c) As informações veiculadas pelos
enunciados resultam, por um lado, do valor semântico das frases (que é informativo) e,
por outro, da aplicação eventual a este valor das leis discursivas relativas à transmissão
de informação.
A segunda fase, denominada Descritivismo Pressuposicional, trata a
argumentação no ainda nível factual, embora Ducrot afirmasse que somente os fatos
76
afirmados (postos) eram utilizados argumentativamente. Na verdade, como Anscombre
e Ducrot (1994, p. 199) assumem que o Descritivismo Pressuposicional, proposto por
eles, trata-se de um ajuste da fase anterior. Quando Ducrot afirma que pressupor não é
dizer o que o outro sabe ou o que se pensa que ele sabe ou deveria saber, mas situar o
diálogo na hipótese de que ele já soubesse. Ele permanece postulando que o pressuposto
está marcado na frase e desta é transmitido ao enunciado (DUCROT, 1987, p. 33).
De volta aos exemplos a e b, no enunciado Pedro trabalhou pouco, o
conteúdo posto é a quantidade de trabalho efetivada por Pedro é fraca e o pressuposto é
Pedro trabalhou. Já no enunciado Pedro trabalhou um pouco, o posto é Pedro efetivou
uma certa quantidade de trabalho e o pressuposto é Se houve trabalho realizado, sua
quantidade foi fraca. Observa-se, portanto, que as marcas lingüísticas pouco e um
pouco ativam pressupostos diferentes. Além disso, como foi postulado por Ducrot que a
argumentação se a partir do conteúdo posto, e não do pressuposto, os enunciados dos
exemplos a e b apontam conclusões diferentes: no exemplo a, as conclusões possíveis
podem se referir à debilidade do trabalho realizado por Pedro e, no exemplo b, as
conclusões possíveis dizem respeito ao fato de Pedro ter trabalhado, ou seja, à
existência desse trabalho. A mudança dessa etapa em relação à primeira, de acordo com
os autores (1994, p. 201), é que, na primeira, a argumentação desses enunciados estava
descrita em termos quantitativos e, na segunda etapa, evita-se essa diferença
quantitativa para estabelecer potencialidades argumentativas opostas entre, por
exemplo, pouco e um pouco.
A fase seguinte da teoria, conhecida como Argumentação na Língua,
Ducrot começa a identificar e reconhecer valores argumentativos na língua, passa a
considerar os conectores e operadores argumentativos como elementos lingüísticos que
determinam e introduzem a argumentação na estrutura semântica da frase. Para o
semanticista (1988, p. 76), em todas as línguas existem pares de frases cujos enunciados
designam o mesmo fato, no mesmo contexto. No entanto, as argumentações possíveis a
partir dessas frases são completamente diferentes. No estudo realizado a partir do uso
das expressões pouco e um pouco, nos enunciados dos exemplos a e b -Pedro
trabalhou pouco” e “Pedro trabalhou um pouco”, respectivamente - em que a primeira
aponta para uma conclusão positiva e a segunda, para uma conclusão negativa, Ducrot
reforça que,
77
Lo importante es que en el mismo contexto las
conclusiones serán opuestas. De esto concluyo que las posibilidades
argumentativas no están determinadas solamente por los hechos sino
que la forma lingüística misma impone ciertas argumentaciones y no
otras. (DUCROT, 1988, p. 77).
Sendo assim, as formas lingüísticas adquirem a função de indicar a força
argumentativa dos enunciados, ou seja, a direção (ou conclusão) para a qual apontam. O
autor também postula que as frases impõem que seus enunciados sejam utilizados
argumentativamente e que o sejam em uma direção determinada (1994, p. 206). De
acordo com Ducrot, (1981, p. 180), dois conceitos básicos são indispensáveis para
compreender o funcionamento da força argumentativa no discurso: escala
argumentativa e classe argumentativa. Esta ocorre quando um conjunto de enunciados
pode igualmente servir de argumentos para uma mesma conclusão. Aquela, quando dois
ou mais enunciados se apresentam em gradação de força crescente para uma mesma
conclusão, ou seja, um enunciado é, sucessivamente, mais forte que o outro. Vejamos os
exemplos de classe argumentativa (03) e de escala argumentativa (04):
EX. (03):
Eduardo é o melhor professor (conclusão)
Arg. 1 – tem Licenciatura
Arg. 2 – tem experiência de sala de aula
Arg. 3 – tem os melhores índices de re-matrícula e aprovação.
EX. (04):
A festa de São João da escola foi um sucesso (conclusão R)
Arg. 1 – estiveram presentes todos os alunos
Arg. 2 – houve comidas típicas
Arg. 3 – houve a apresentação da quadrilha campeã da cidade. (argumento mais forte)
78
No Exemplo (03), percebe-se que todos os argumentos apresentam-se com o
mesmo peso para levar o locutor a concluir que Eduardo é o melhor professor, portanto,
tem-se uma classe argumentativa. no exemplo (04), percebe-se a existência de uma
escala gradativa entre os argumentos apresentados, do mais fraco (Arg. 1) para o mais
forte (Arg. 3), a fim de levar a conclusão de que a festa foi um sucesso. Tem-se,
portanto, uma escala argumentativa. A introdução de um conector em um dos
argumentos pode indicar que esse argumento possui determinada força, em determinada
escala argumentativa. É isso que ocorre no exemplo (04): “A festa São João da escola
foi um sucesso: estiveram presentes todos os alunos, houve comidas típicas e até
(mesmo, a mesmo, inclusive) a apresentação da quadrilha camp da cidade.”
Observa-se que a introdução do conectivo até direciona para a afirmação da conclusão
apontada.
Ressalta-se, porém, que se a escala argumentativa for utilizada para a
negação da conclusão, o conectivo que vai introduzir a escala argumentativa muda: “A
festa São João da escola não teve sucesso: não houve a apresentação da quadrilha
campeã da cidade, nem comidas típicas, nem mesmo os alunos estiveram todos
presentes.” Observa-se aqui que é mudado não somente o conectivo que vai introduzir o
argumento mais forte como também a escala de gradação dos argumentos.
Na quarta fase da teoria de Ducrot, a argumentação é inscrita
definitivamente na língua e então denominada de Argumentatividade Radical. Nesta
fase, os conectores são tidos como elementos que servem para especificar a força
argumentativa que terá o enunciado, no momento da enunciação. Desta forma, a
enunciação será o acontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado.
Para Ducrot (1988, p. 82), a Teoria da Argumentação na Língua exige que a
significação das frases seja aberta, ou seja, ela pede ao interpretante que descubra as
conclusões contidas no enunciado, em seu sentido. De acordo com o autor,
expressões na língua que têm, por si mesmas, um valor argumentativo. É a partir dessa
percepção que o Ducrot vai definir as expressões argumentativas (EA), que são
expressões que determinam o valor argumentativo dos enunciados, em que são
inseridas.
79
Nesta etapa da TAL, a Argumentatividade Radical defende que a introdução
de um operador em um enunciado não limita as conclusões possíveis, pois dependendo
da intenção do locutor e do contexto, a conclusão pode ser alterada. O autor irá provar
isso analisando, mais uma vez, os conectores pouco (poco) e um pouco (un poco)
(DUCROT, 1988, p. 93). Contrária a fase anterior, na qual o semanticista postulava que
pouco e um pouco tinham valores argumentativos opostos. Nesta última fase, ao
estabelecer contextos diferentes, as expressões acima passam a autorizar a mesma
conclusão, conforme os exemplos do próprio autor (DUCROT, 1988, p. 94).
EX. (05):
Contexto 1 – Para quem considera que o trabalho conduz ao êxito:
Trabalhou um pouco, vai ter êxito.
Trabalhou pouco, vai fracassar.
Contexto 2 – Para quem não considera que o trabalho não conduz ao êxito:
Trabalhou pouco, vai ter êxito.
Trabalhou um pouco, vai fracassar.
De acordo com Ducrot (1988, p. 94), tudo depende da idéia que o locutor
tem acerca do trabalho, no entanto é possível perceber que a argumentação nos
enunciados do contexto 1 e nos enunciados do contexto 2 é de natureza muito diferente,
porque o princípio argumentativo subjacente em cada contexto é diferente. Ele ainda
afirma que é legítimo dizer que “trabalhou pouco” e “trabalhou um pouconão têm o
mesmo valor argumentativo, não permitem a mesma argumentação, embora autorizem a
mesma conclusão.
O linguista expõe que existem determinados morfemas e, portanto, frases,
que favorecem ou mesmo impõem a leitura polifônica. Para Ducrot (1988, p. 72), a)
Segundo (diz) x: em seguida a enunciados como Segundo diz Pedro, o tempo vai
mudar”, parece muito mais comum encontrar encadeamento do tipo eu vou passear”,
do que Ele é mesmo otimista” b) O condicional ou a forma parece que impõem a
leitura polifônica, quando um jornalista escreve “Parece que o preço do petróleo vai
abaixar” ou O preço do petróleo baixaria brevemente”, entendem-se os enunciados
80
como reproduzindo a fala de alguém, de modo que eles poderão ser apresentados como
argumentos para conclusões do tipo: os esforços do governo foram coroados de
sucesso”, mas não para “ainda pessoas que acreditam em Papai Noel”. c) Certos
morfemas como já que, pois, que permitem numa conversação, retomar algo que acaba
de ser dito pelo alocutário, em oposição a outras como porque, com efeito, que não o
permitem. A: O tempo está bonito. (E2) B: Ótimo, vamos sair (E1), já que/ pois o tempo
está bonito. (E2) d) A negação: todo enunciado do tipo não-p pode ser descrito como a
realização de dois atos ilocucionários: um, que é a afirmação de p por um enunciador
E1, que se dirige a um destinatário D1; outro, que consiste na rejeição desta afirmação
por um enunciador E2 que se dirige a um destinatário D2.
Assim, todo enunciado negativo apresenta-se como uma espécie de diálogo
cristalizado: no quadro de uma concepção enunciativa do sentido, o evento enunciativo
é representado, no sentido de um enunciado negativo, como o defrontar de dois
enunciadores. Nele se faz alusão à asserção real ou virtual de p, por uma personagem
diferente do locutor. É por esta razão que o locutor, ao empregar um enunciado do tipo
não-p, faz alusão à proposição p que este encerra; e) Morfemas como mas e embora,
também podem impor ao enunciado uma leitura polifônica. Através deles, o locutor faz
falar um enunciador diferente dele, para depois apresentar a sua objeção. É o caso da
concordância parcial, quer na argumentação formal, quer na conversa cotidiana. f) Os
fenômenos da pressuposição e da ironia, entre outros (DUCROT, 1988, p.74).
Na análise que faremos dos enunciados negativos, partiremos da posição
sustentada por Ducrot (1987), segundo a qual um enunciado do tipo não-p representaria
dois atos ilocutórios: por um lado, a afirmação de p por parte de um enunciador E1 que
se dirige a um destinatário D1; por outro, a recusa de p, assumida por um enunciador E2
dirigindo-se a um destinatário D2. Para sustentar sua argumentação, Ducrot recorre à
própria concepção psicanalítica de negação: Pour Freud, un énonnon-p est une sorte
de travestissement utilisé pour dire, malgré la censure exercée par le surmoi, un p
correspondant à une pensée inconsciente et interdite... (DUCROT, 1987: 50.)
O autor especifica ainda algumas relações que se estabelecem no embate
entre enunciador e destinatário: E1 e E2 são necessariamente pessoas diferentes; E2
identifica-se normalmente com o locutor; D2 identifica-se normalmente com o
81
alocutário; E1 pode identificar-se com o alocutário, o que conferirá uma certa
agressividade à negação sustentada por E2.
Concebendo, deste modo, o enunciado negativo como uma espécie de
"diálogo cristalizado", no qual a produção de um sentido dependeria da explicitação de
E1 (o responsável pelo enunciado afirmativo subjacente), Ducrot justifica a posição que
assume: haveria uma dissimetria entre enunciados negativos e afirmativos, uma vez que
a afirmação estaria implícita na negação de um modo muito mais fundamental que a
negação na afirmação, segundo verificamos através do encadeamento de enunciados
negativos e afirmativos com a expressão ao contrário. A título de exemplo,
consideremos o seguinte enunciado: Pedro não é baixo; ao contrário, é bem alto. Como
se percebe, "é bem alto" exprimiria uma relação de oposição não a "Pedro não é baixo",
mas à afirmativa implícita em tal negação (a saber, a afirmação "Pedro é baixo").
O tratamento conferido por Ducrot à negação sofreu algumas reformulações
com o tempo. Em Dire et ne pas dire e em Provar e dizer, eram considerados dois tipos
de enunciados negativos: os que implicavam a rejeição de uma afirmativa prévia
(negação "polêmica" ou "metalingüística") e os que simplesmente apresentavam uma
dada realidade, sem qualquer objetivo de" contradizer" uma afirmativa implícita
(negação descritiva). Como se percebe, a própria classificação fornecida pelo autor
excluía a negação descritiva do âmbito de uma teoria polifônica.
Foi com o propósito de conciliar sua abordagem dos enunciados negativos
com uma visão polifônica da linguagem que Ducrot procedeu a uma revisão teórica do
fenômeno, passando a subdividir a antiga negação polêmica em dois tipos distintos (a
que denominou negação metalingüística e negação polêmica), redefinindo o conceito de
negação descritiva. Em O dizer e o dito, o quadro teórico passa a ser o seguinte: a
negação metalingüística coloca em cena um locutor responsável pelo enunciado positivo
implícito, agindo sobre seus pressupostos (como seria o caso de "Ela não parou de
fumar; na realidade, ela jamais fumou"); a negação polêmica se define como sendo a
que coloca em cena não um locutor, mas um enunciador responsável por uma afirmativa
82
virtual implícita; a negação descritiva passa a ser caracterizada como um derivado
delocutivo da negação polêmica.
Para completar, ressaltamos uma das contribuições de H. Nølke (2004) a
respeito da questão, quando assume que toda negação é essencialmente polêmica. O
autor admite, contudo, a possibilidade de o contexto exercer um papel relevante na
interpretação dos enunciados negativos. Desse modo, o contexto pode efetivamente
autorizar uma leitura descritiva de um enunciado negativo (p. 71). Com efeito, um
enunciado como "O muro não é branco" figurando num guia turístico (cuja finalidade é
apresentar, descrever uma certa ambiência) seria mais provavelmente interpretado como
descritivo, ficando a possibilidade de uma leitura polêmica bastante remota em tal
contexto. A referida leitura descritiva do enunciado negativo é resultante de uma
derivação descritiva: contextos que, promovendo o apagamento do enunciado
positivo subjacente, isto é, bloqueando a atualização do ponto de vista que
desencadearia uma leitura polêmica da negação, favorecem tal derivação.
3. 5. 3 Marcadores de argumentação
foi dito anteriormente que Ducrot utiliza o termo topos (no plural topoi)
para indicar um princípio argumentativo de que se vale o locutor como garantia que
assegura a relação entre o argumento e a conclusão: “El topos es, para mí, un garante
que asegura el paso del argumento a la conclusión” (DUCROT, 1988, p.102). Os topoi
podem ainda ser definidos como princípios, valores, pontos de vista que o locutor
apresenta como se fossem comuns a uma coletividade, ou grupo de referência, e que
funcionam como alicerce de sua argumentação. Além disso, o autor aponta
determinados mecanismos linguísticos que marcam essa argumentação. A esses
mecanismos Ducrot denominou de operador argumentativo.
O operador argumentativo antes tido como elemento responsável pela
marcação de argumentação, passa a ter o conceito de um elemento que modifica a classe
das conclusões que se podem tirar do enunciado para o elemento que age no percurso
que se faz para ir do enunciado à conclusão pretendida (ANSCOMBRE; DUCROT,
1994, p. 41). Espíndola (1988, p. 79) reforça a definição de operador argumentativo, a
83
partir dos autores citados, como elementos lingüísticos que “indicam a orientação
argumentativa (topos alicerce da argumentação) e a força como esse topos deve ser
atualizado”.
De toda essa explanação acerca dos desdobramentos da TAL, ressaltamos
que, para esta pesquisa, interessa-nos é que os operadores argumentativos, na quarta
versão da teoria de Ducrot, além de especificarem o tipo de utilização que se faz desses
princípios argumentativos, os topoi, determinam a força argumentativa do enunciado,
como pontua Espíndola (1998, p. 79). A autora ainda classifica os operadores
argumentativos em três grupos, a saber:
a) operador argumentativo no sentido estrito que são partículas lingüísticas que
aplicadas a um enunciado indicam além do topos, a força com que este topos será
atualizado, ou seja, indicam o princípio argumentativo e a sua força no enunciado;
b) conector argumentativo são os elementos lingüísticos que articulam duas porções
textuais, indicando o princípio argumentativo e a força com que é atualizado;
c) modificador palavras que possuem a função de modificar os predicados (nomes e
verbos) de uma língua e que indicam o princípio argumentativo e a força como esse
princípio é aplicado a uma determinada situação, pessoa ou fato.
Além dos operadores antes listados, outros recursos são utilizados para
marcar a polifonia, ou seja, a língua dispõe de outros mecanismos para ajudar o locutor
a deixar claro que um determinado fragmento de texto, um texto e/ ou apenas uma
palavra pertencem a outro locutor ou tem uma força argumentativa que denota um eu
que não é o eu do locutor primeiro. Dentre estas marcas, destacamos as aspas. Para
Ducrot e Authier-Revuz, as aspas , além de assinalar a voz de um locutor, possuem
outras diferentes funções, permitindo, inclusive, ao locutor se distanciar do que ele
introduz no discurso. Ou seja, de modo geral, colocar entre aspas uma palavra permite,
mesmo que se faça uso da palavra em um discurso, mostrá-la, ao mesmo tempo, como
um objeto que tido à distância, é designado como impróprio de certa maneira ao
discurso em que se figura: familiar, estrangeiro, contestado, etc.. (AUTHIER-REVUZ,
1998, p. 118).
84
Para autora (1998, p. 118), as palavras entre aspas estão marcadas como um
discurso pertencente a outro e, por isso, “o contorno que elas traçam no discurso é
revelador daquilo que o discurso tem a demarcar como ‘outro’ em relação àquilo em
que ele se constitui”. Isso significa que, através das aspas, o locutor traz o discurso de
um “outro” para dentro do seu discurso, deixando claro que aquele discurso assinalado
pertence a esse “outro”.
Authier-Revuz (1988, p.118) acrescenta que no discurso científico, por
exemplo, as aspas possuem duas funções diferentes. Quando as aspas estão assinalando
palavras científicas, o locutor deixa claro, ao seu leitor, que está usando palavras de
especialistas, logo de uma autoridade constituída. Por outro lado, quando assinala
palavras correntes, da linguagem cotidiana, a intenção é mostrar que não está utilizando
as palavras da Ciência, da autoridade. Neste sentido, a autora ressalta que
Ora, nos textos da D.C. são aspas duplas que correm
paralelamente sobre palavras “científicas” (eu falo com palavras de
especialistas, sabendo bem que não o as palavras de vocês leitores)
e sobre palavras correntes (eu falo com as suas palavras de todos os
dias, sabendo bem que não são as palavras da Ciência). (AUTHIER-
REVUZ, 1998, p. 118).
Tem-se, então, que a possibilidade das aspas indicarem ora o discurso da
ciência, ora a linguagem cotidiana, reforça a ideia de que o locutor possui intenções
diferentes, ou pelo menos assume posições diferentes com relação a esse discurso que é
colocado entre aspas: assumindo o discurso da ciência como o seu, no primeiro caso;
distanciando-se do discurso do outro, no caso da linguagem cotidiana.
A partir das concepções postuladas por Authier-Revuz, Koch (2001, p. 53),
enumera as diferentes funções das aspas, na operação de distanciamento. São elas:
a. Aspas de diferenciação para o locutor mostrar que se distingue daquele que usa a
palavra – “que somos ‘irredutíveis’ às palavras mencionadas”;
85
b. Aspas de condescendência o locutor usa para assinalar uma palavra que se
incorpora ‘paternalisticamente’, por saber que o interlocutor falaria assim;
c. Aspas pedagógicas aparece na vulgarização dentro do discurso científico,
geralmente para assinalar um termo ou expressão vulgar que será substituído por um
termo técnico, ao qual o locutor adere;
d. Aspas de proteção – o locutor a usa para mostrar que determinada palavra ou
expressão não é plenamente apropriada e que está sendo empregada no lugar de outra;
e. Aspas de ênfase – que assinala insistência;
f. Aspas de questionamento ofensivo ou irônico “quanto à propriedade da palavra ou
expressão empregada pelo interlocutor por prudência ou por imposição da situação”.
Além de analisar expressões, marcadores e outros recursos linguísticos para
descrever a polifonia, para defender sua Teoria da Argumentação na Língua, Ducrot
ainda opera uma classificação da argumentação por autoridade. Tratamos deste tópico
no item a seguir.
3. 5. 4 Argumentação por autoridade
Ducrot (1987) distingue a argumentação por autoridade em dois tipos:
arrozoado por autoridade e autoridade polifônica. Para o autor, a autoridade polifônica é
um caso de argumentação por autoridade que, segundo Ducrot, está ancorado
lingüisticamente: “É esta que me parece diretamente inscrita na língua” (1987, p. 143).
Na autoridade polifônica, o locutor L mostra um enunciador E1 sustentando
uma determinada proposição, ou seja, ele introduz em seu discurso uma voz que não é a
sua responsável pela asserção de P. L apóia em E1(a primeira asserção) uma segunda
asserção E2, identificando-se com E2. L apóia sobre esta primeira asserção uma
segunda asserção relativa a uma outra proposição, Q, o que significa duas coisas. De um
lado, que o locutor se identifica com o sujeito que assevera Q. E, de outro lado, que ele
o faz fundamentando-se em uma relação entre as proposições P e Q, no fato de que a
admissão de P torna necessário, ou em todo caso legítima, admitir Q (DUCROT, 1987,
p. 144).
86
Nesta ótica, o enunciado é construído de tal maneira que a admissão de E1
leva necessariamente à admissão de E2. Isso ocorre, segundo Ducrot, quando são
introduzidas, no discurso, determinadas formas lingüísticas como parece que, talvez e o
condicional de prudência (futuro do pretérito). Para ilustrar essa autoridade polifônica,
Ducrot (1987, p. 144) trabalha com o seguinte enunciado: Parece que vai fazer bom
tempo: nós deveríamos sair.
Sua análise parte do princípio de que neste enunciado tem-se um L,
responsável pelo enunciado, que coloca em cena dois enunciadores. O enunciador E1,
segundo o qual Parece que vai fazer bom tempo, não é necessariamente o ponto de vista
de L (pode tratar-se de uma asserção feita por terceiros ou em última instância pelo
senso comum), mas é trazido por L para o discurso. O E2 constitui-se do segmento nós
deveríamos sair, colocado em cena por L, que com ele se identifica. Para se admitir E2 é
necessário que se admita E1. O enunciador E1 é, portanto, uma autoridade trazida por L
para se fazer admitir E2. É esse jogo de autoridade que permite o convite proposto por L
ao seu interlocutor. Além do mais, não se pode atribuir a L a responsabilidade pelo
enunciado segundo o qual Parece que vai fazer bom tempo, pois esse é mostrado como
“um enunciador estranho” e se constitui em “uma autoridade”, utilizada por L para
justificar sua conclusão.
É isto que me permite falar de argumentação por
autoridade: o enunciador de P desempenha o papel de autoridade no
sentido de que seu dizer é suficiente para justificar que L, por sua
vez, se torna um enunciador de Q, fundamentando-se no fato de que a
verdade de P implica ou torna provável a de Q. (DUCROT, 1987, p.
146).
É pertinente ressaltar que a expressão Parece que ativa, no exemplo do
autor, a polifonia de enunciadores e é o que permite afirmar que esse tipo de polifonia –
a autoridade polifônica – é lingüisticamente marcada. Outras expressões da língua,
como talvez, provavelmente, etc. também podem ativar esse tipo de polifonia de
enunciadores.
87
Koch (2002, p. 149) afirma que a autoridade polifônica permite que o
locutor não se porte de maneira autoritária, preveja os discursos do adversário e,
admitindo-lhes certa validade, os incorpore ao próprio discurso e adote o seu discurso
de maior poder de persuasão, desarmando o seu adversário, uma vez que o pode ser
contestado, além de poder antecipar-se a ele com argumentos mais fortes.
O recurso da argumentação por autoridade é, segundo Ducrot (1987, p.
139), um mecanismo freqüentemente observado no discurso e que se apresenta de duas
formas, por ele denominadas de autoridade polifônica e arrozoado por autoridade. De
acordo com o autor, para que uma proposição P seja um argumento por autoridade, duas
condições precisam ser satisfeitas, ao mesmo tempo: primeiro “indica-se que P já foi, é
atualmente, ou poderia ser objeto de uma asserção” e depois “apresenta-se este fato
como se valorizasse a proposição P, como se a reforçasse, como se lhe apresentasse um
peso particular” (1987, p. 140).
O outro tipo de argumentação por autoridade é denominado pelo autor de
arrozoado por autoridade. Trata-se de uma polifonia de locutores. No arrozoado por
autoridade, o locutor responsável pelo discurso L1 traz para o discurso um outro locutor
L2, com o qual se identifica: “L assevera que uma asserção de P por X” (DUCROT,
1987, p. 148).
L2 é, portanto, a autoridade que L1 traz para o seu
discurso como prova do que está asseverando: “Para tanto ele se
fundamenta na idéia de que X, tendo em vista sua situação ou sua
competência, não se pode enganar, ou, pelo menos, tem poucas
probabilidades de se enganar quando diz¹ P”10 (DUCROT, 1987,
p.148).
Ducrot (1987, p. 157) afirma que o arrozoado por autoridade, como toda
prova, pode ser recusado: “Ou se considera que, em geral, a palavra de um homem não
10
Em Ducrot, o verbo dizer possui pelo menos dois sentidos possíveis: diz¹, que significa asseverar (no inglês to tell
ou to say) e diz², que significa mostrar (no inglês to show). (DUCROT, 1987, p. 141).
88
prova nada, ou sustenta-se que X, em particular, em se tratando de certo ponto
particular, provavelmente deva ter-se enganado”.
É importante acrescentar, aqui, que Ducrot ao considerar o arrozoado por
autoridade como uma polifonia de locutores, demonstra como um locutor L1 traz o
discurso de outro locutor L2 para que esse sirva de argumento às suas intenções, ou
seja, o discurso de L2 traduz o ponto de vista de L1. Para Bakhtin (2002a, p.64), esse
não seria um caso de polifonia, pois o teórico russo não considera como polifônico o
discurso em que a voz da personagem (L2) é portadora do mesmo ponto de vista do
autor (L1). É exatamente o tipo de literatura em que ocorre esse fenômeno que ele vai
denominar de dogmática.
Percebe-se que, enquanto para Bakhtin, polifonia se as vozes forem
independentes, para Ducrot, a polifonia também permite a dependência de vozes, ou
seja, um locutor pode utilizar diferentes vozes (outros locutores) com diferentes
intenções e assumindo diferentes posicionamentos com relação a essas vozes, inclusive
utilizando-as para fundamentar seus pontos de vista.
3. 5. 4. 1 Os verbos dicendi como marcadores da polifonia de locutores
Como discutido anteriormente, a polifonia de locutores é percebida pelo
uso de marcadores, isto é, por expressões que deixam claras que aquela porção de texto
refere-se a um determinado locutor que não é o L1. Esses marcadores podem vir como
verbos.
Em Neves (2000, p. 47), os verbos dicendi são incluídos em um grupo maior
de verbos, denominado pela autora de verbos de elocução. De acordo com a autora,
esses verbos são “introdutores de discurso (discurso direto ou discurso indireto)”. Daí a
autora sugere que, no discurso direto, a responsabilidade do locutor é muito menor com
relação ao discurso dos outros locutores que esse traz para o texto. Sendo assim, no
discurso direto o falante tem uma responsabilidade muito menor sobre a oração
89
completiva, que é uma citação direta, ficando o controle das expressões correferenciais
e dêiticas (de referência à situação) circunscritas à própria oração citada, e, portanto,
independente de referência ao falante (NEVES, 2000, p.47).
Para Neves (2000, p. 48), o discurso indireto é definido como uma
espécie de paráfrase e, nesse tipo de discurso, o falante assume a responsabilidade do
que é referido, além de controlar a correferência dos pronomes e advérbios dêiticos,
que a dêixis deixa de ficar centrada no sujeito do verbo da completiva.
Concordamos com Neves quando afirma que no discurso direto o falante
tem uma responsabilidade menor do que no discurso indireto perante o discurso do
outro, no entanto, não acreditamos que isso ocorra somente no campo da
referencialidade e da dêixis. Acreditamos que isso se com relação ao discurso do
outro como um todo. Em outras palavras, parece-nos claro que, ao introduzir um L2
através do discurso direto, L1 mantêm-se mais afastado do discurso daquele locutor do
que se esse o introduzir através de um discurso indireto. Analisaremos como isso se
nos textos que compõem o corpus desta pesquisa e o resultado desta análise encontra-se
no capítulo 5 que trata da polifonia.
Ainda em Neves (2000) tem-se a classificação dos verbos de elocução
em dois grandes grupos: o primeiro grupo, dos verbos dicendi que são os verbos de
elocução propriamente ditos, ou seja, “são verbos de ação cujo complemento direto é o
conteúdo do que se diz” (2000, p. 48). De acordo com a autora, os verbos falar, dizer,
gritar, berrar, exclamar, sussurrar etc. são exemplos deste grupo. O segundo grupo é
composto pelos verbos que “introduzem discurso, mas não necessariamente indicam
atos de fala
11
(2000, p. 49), a exemplo de acalmar, ameaçar, consolar, garantir, rir,
chorar, entre outros.
Outra distinção é operada pela autora dentro do grupo dos verbos dicendi: os
verbos básicos e os verbos que apresentam lexicalizado o modo que caracteriza esse
11
A noção de atos de fala é tratada em Neves é a adotada a partir de Austin (1990, p. 29), para quem ao se
dizer algo, se faz algo: “... casos e sentidos em que dizer algo é fazer algo; ou em que por dizermos, ou ao
dizermos algo estamos fazendo algo”.
90
dizer. Os verbos discendi básicos são neutros, como o verbo falar e dizer, que segundo a
autora são os verbos dicendi básicos e aqueles “cujo significado traz, somado ao dizer
básico, informações sobre o modo de realização do enunciado” (p. 48). Para a autora,
há, portanto, uma relação direta desses com os atos de fala, ou seja, é como se esses
verbos traduzissem, explicitamente, o ato de fala realizado. Ela dá como exemplo, desse
segundo tipo, os verbos gritar, berrar, exclamar, sussurrar, cochichar etc. E ainda
acrescenta que os verbos do segundo tipo ainda podem acrescer ao enunciado noções
sobre a cronologia discursiva, em verbos como retrucar, repetir, completar, emendar etc.
O segundo grupo de verbos é constituído por alguns que “apresentam
lexicalizado o modo que caracteriza esse dizer” (NEVES, 2000, p. 48). Dentro desta
concepção, a autora sugere que esses verbos são elementos modalizadores, apesar de
não discutir sobre modalização discursiva através dos verbos dicendi. Como exemplo,
ela cita os verbos: queixar-se, comentar, confidenciar, observar, protestar etc., que
podem também ser parafraseados por dizer uma queixa, dizer um comentário, dizer uma
confidência, dizer uma observação, dizer um protesto etc. Há, também, incluso neste
segundo grupo de verbos de elocução delimitado por Neves, alguns verbos que não
necessariamente indicam atos de fala, e a autora os subdividem em dois tipos. O
primeiro tipo de verbos diz respeito à instrumentalização do que se diz, como os verbos
acalmar, ameaçar, consolar, desiludir etc. E o segundo tipo com verbos que
circunstanciam o que se diz, como em rir, chorar, espantar-se etc. (NEVES, 2000, P. 49)
Para ilustrar sua divisão em dois grupos, a autora cita como exemplo a frase:
Raul ameaçou-o com os punhos: - Olhe, que eu lhe dou uns tabefes. Para Neves (2000,
p. 49), os verbos que instrumentalizam o que se diz “indicam ações realizadas com o
uso de um instrumento, que pode consistir, eventualmente, em um dizer”. Isso ocorre no
exemplo citado. Este tipo de verbo que circunstancia o que se diz “expressa uma ação
ou um processo que pode realizar-se ao mesmo tempo que o dizer” (p. 49). A autora
acrescenta que esses verbos indicam, portanto, as circunstâncias que caracterizam o ato
de fala.
91
Sobre o papel dos verbos dicendi, Cervoni (1989) postula que alguns verbos
enunciativos, ou seja, verbos dicendi podem ser portadores de modalidade. Para o autor,
determinados verbos como “afirmar, sustentar, confirmar, garantir, certificar, declarar,
contestar, negar,” são portadores de uma síntese lexêmica do tipo enunciativo +
modalidade. Enunciar Eu sustento que João é amável é “dizer mais” do que enunciar Eu
digo que João é amável (ou Eu respondo que, Eu explico que...): sustentar é o
equivalente de dizer + modalidade (noção de certeza). (CERVONI, 1989, p. 68).
É importante ressaltar que o exemplo trabalhado, pelo autor, ocorre em
primeira pessoa, e lustra sua preocupação em tratar a modalidade dentro do discurso do
próprio locutor responsável pelo discurso, ou como um ato ilocutório, como se mais
adiante. Não contempla, portanto, os casos do verbo dicendi nos textos em terceira
pessoa, a exemplo do que ocorre nas sentenças e acórdãos. Segundo o autor (1989, p.
70), “dizer que, responder que, explicar que, não são de modo algum considerados
como verbos modais; eles se limitam a explicitar as circunstâncias da interlocução”.
Ainda com relação a essas formas, Cervoni acrescenta que embora elas se pareçam com
as outras formas de modalidade, no sentido de que têm uma exterioridade com relação
ao enunciado que lembra a exterioridade das modalidades proposicionais em relação à
proposição (sic), essas estruturas se constituem em atos de linguagem.
Concordamos com as classificações postuladas por Travaglia (2003) e Neves
(2000) que, ao nosso ver, são bastante pertinentes e apresentam algumas características
bastante relevantes dos verbos dicendi e/ou verbos de elocução. Ressaltamos que essas
classificações nos parecem incompletas, visto que elas não descrevem com precisão o
funcionamento dos verbos dicendi modalizadores. A concepção de Cervoni, embora
considere a modalidade existente em alguns verbos enunciativos, também não
contempla o fenômeno de forma satisfatória, uma vez que considera a modalidade
apenas em enunciados do tipo “Eu + verbo dicendi + que...”. Essa proposta do autor não
é aplicável, portanto, aos fenômenos lingüísticos verificados no corpus desta pesquisa.
92
Adotamos a classificação proposta por Nascimento (2005). Em sua tese, o
autor organiza os verbos discendi em quadro que ele classifica como mais sintético dos
desses verbos e que se aplique não somente a enunciações em primeira pessoa, mas
também em terceira pessoa, a fim de dar conta da análise dos verbos dicendi nos textos
jurídicos, objeto de nossa pesquisa. Vejamos o quadro proposto pelo autor:
Verbos dicendi
1. não-modalizadores, ou de primeiro
dizer, falar, perguntar, responder, concluir
etc.
acusar, protestar, afirmar, declarar, etc.
Quadro 03: Classificação dos verbos dicendi
Para o referido autor (2005, p. 92), os verbos dicendi de primeiro grupo, não-
modalizadores, são aqueles que, por natureza, apresentam o discurso de um L2
(segundo locutor) sem deixar marcas ou avaliação do locutor que o apresenta (L1). Com
esse tipo de verbo, L1 tende a manter-se afastado do discurso de L2. Isso ocorreria em
enunciados como, por exemplo, O diretor disse ao aluno: “Não deixe de vir amanhã”.
Nascimento acrescenta que esses verbos, ao apresentarem o discurso de um
segundo locutor L2, também assinalam o ato verbal realizado por esse mesmo locutor:
fala, pergunta, resposta etc. Em outras palavras, L1 mantém-se em uma posição de
afastamento com relação ao discurso de L2, mas apresenta uma certa interpretação
desse discurso, dizendo que L2 realizou um ato de pergunta, resposta etc. (2005, p. 93).
o segundo grupo de verbos dicendi, proposto pelo referido autor, é denominado de
modalizadores e é constituído por aqueles que além de apresentarem o discurso de um
locutor (L2) assinalam uma avaliação, modalização ou direção desse discurso pelo
locutor que o apresenta (L1). É o que ocorre com verbos como protestar, acusar etc.,
como no exemplo abaixo. Os verbos deste grupo nos interessam particularmente, visto
93
que os textos do corpus apresentam um posicionamento, uma avaliação e/ ou uma
direção que é tomada pelas autoridades, no caso, os juízes.
Esses verbos dicendi modalizadores podem ser tanto epistêmicos, como
avaliativos. Como epistêmicos, eles veiculam um grau de certeza sobre o enunciado de
L2, por parte de L1. Alguns verbos funcionam como modalizadores epistêmicos, do tipo
quase-asseverativo, quando através dele L1 apresenta o discurso de L2 no campo da
sugestão, ou seja, como uma hipótese, logo expressando uma avaliação sobre o valor de
verdade do discurso do segundo locutor. Em outros casos, pode ocorrer um juízo de
valor de L1 com relação ao discurso de L2.
É importante ressaltar que Nascimento (2005) considera como verbos
dicendi quaisquer verbos que sejam utilizados por um locutor (L1) para apresentar o
discurso de um outro locutor (L2), independente desses mesmos verbos serem
utilizados, em outros discursos ou situações, com outros objetivos. Ou seja, para o
autor, isso significa dizer que verbos tipicamente dicendi, como os verbos dizer,
perguntar, etc., e verbos que em determinados contextos podem funcionar como
dicendi ou não. Esses últimos são, portanto, verbos potencialmente dicendi.No entanto,
de se assinalar que além dos verbos dicendi, propriamente ditos, o locutor
responsável pelo discurso (L1) pode se valer de outros recursos lingüísticos para
introduzir outros locutores no seu discurso.
3. 5. 5 Polifonia de enunciadores
A polifonia de enunciadores ocorre quando, no mesmo enunciado, são
identificados pontos de vista diferentes, colocados em cena pelo locutor. Os
enunciadores são, portanto, esses pontos de vista que o locutor traz para o seu discurso.
Para Ducrot (1987, p. 193, de uma maneira análoga, o locutor, responsável pelo
enunciado, existência, a enunciadores de quem ele organiza os pontos de vista e as
atitudes.
94
Desta forma, ao colocar em cena esses enunciadores, o locutor assume
diferentes posições com relação a esses enunciadores, ora aprovando-os, ora
assimilando-se a eles, ora se opondo a eles. No entanto, o mais importante para Ducrot é
que a presença dos enunciadores está intrinsecamente relacionada com o sentido do
enunciado.
E sua posição própria pode se manifestar seja porque ele
se assimila a este ou aquele dos enunciadores, tomando-o como
representante (o enunciador é então atualizado), seja simplesmente
porque escolheu fazê-los aparecer, e que sua aparição mantém-se
significativa, mesmo que ele não se assimile a eles. (DUCROT, 1987,
p. 193).
Ducrot cita a pressuposição, o humor e a ironia, a negação, os enunciados
formulados com masPA, entre outros, para exemplificar a polifonia de enunciadores.
Em cada um deles, o locutor assume diferentes posições frente os enunciadores que
atualiza. No entanto, esse trabalho vai deter-se apenas nos enunciados com masPA, por
ocorrer no corpus analisado, coincidindo inclusive com a polifonia de locutores, e com a
autoridade polifônica, para diferenciá-la do arrazoado por autoridade.
O conectivo mas, X masPA Y, para Vogt e Ducrot (1980) é um marcador de
oposição que apresenta duas possíveis funções diferentes. A primeira função é a de
retificador e a segunda, de operador argumentativo. Este último ativa uma polifonia de
enunciadores.A dupla função decorre da origem da palavra, pois o mas do português
deriva, de acordo com os autores, do advérbio magis do latim, que ora funcionava como
comparativo, assumindo, portanto, função argumentativa, ora assumia função
adversativa, como retificador. Vogt e Ducrot (1980, p. 104) denominaram o mas com
função retificadora de masSN, já que para eles esse conector vem sempre depois de uma
proposição negativa p = não-p’ e introduz uma determinação q que substitui a
determinação p’ negada em p e atribuída a um interlocutor real ou virtual.
95
Guimarães (1987, p. 61) analisa um exemplo de masSN, a partir do
enunciado: Ela não é nadadora, mas atleta. Para o referido autor, mas atleta se opõe ao
segmento anterior Ela não é nadadora. O que interessa, nesse caso, é que o conectivo
mas aparece sempre depois de um enunciado negativo, “com uma função de correção de
algo suposta ou realmente dito antes” (GUIMARÃES, 1987, p. 61). Observa-se ainda
que, no segundo segmento do enunciado mas atleta, ocorre a omissão do verbo ser. A
presença do verbo ser no segundo segmento eliminaria a função de retificação e
transformaria o masSN em masPA.
Segundo Guimarães, não é possível inverter esses segmentos, por ele
denominados de orações, pois não é possível Mas atleta, ela não é nadadora. A negação
recai somente sobre a primeira parte do enunciado e a interrogação incide sobre todo ele
(a interrogação e a negação são empregadas aqui, pelo autor, para testar a validade da
análise.). O encadeamento também recai sobre o enunciado como um todo. Ele utiliza
como exemplo o encadeamento creio que: Creio que ela não é nadadora, mas atleta.
O conectivo masPA, para Vogt e Ducrot (1980, p. 104), de função
argumentativa, não exige necessariamente que a proposição anterior p seja negativa.
Para esses pesquisadores, sua função é introduzir uma proposição q que orienta para
uma conclusão não-r oposta a uma conclusão r para a qual p poderia conduzir. Trata-se,
portanto, de um indicador de polifonia.
Ducrot (1988, p. 68) descrevendo a frase X mas Y, com o masPA, utiliza a
polifonia de enunciadores. Assim agindo, o teórico demonstra não como esse
conector funciona argumentativamente no discurso, mas também as diferentes posições
que o locutor pode assumir diante de diferentes enunciadores. No exemplo, Creio que
vamos ter êxito, mas nada é seguro na vida (Creo que vamos a tener éxito, pero nada
hay seguro en la vida), Ducrot identifica quatro enunciadores: E1 Creo que vamos a
tener êxito, que crê no êxito e que é aprovado por L, mas com o qual ele não se
identifica; E2 que aponta, a partir do êxito, para um otimismo absoluto (esse enunciador
é a conclusão r que é rechaçada por L); E3 pero nada hay seguro en la vida, que é o
ponto de vista que apresenta a falta de certeza frente às coisas da vida (esse enunciador
faz oposição a E1 e é apresentado por L que se identifica com ele) e o E4 que, a partir
da falta de certeza, conclui que o otimismo não deve ser absoluto. Esse último
96
enunciador é a conclusão não-r, que é também um ponto de vista com o qual o locutor
se assimila, ou seja, se identifica. Logo, L aprova E1, rechaça E2 e se assimila com E3 e
E4.
Ao analisar o exemplo citado, Ducrot mostra como deve ser descrita,
semanticamente, a frase X masPA Y , afirmando que de se identificar quatro
enunciadores.
La significación de esta frase (X mas Y) va a estar
constituida por el conjunto de consignas que la frase da a quien
interpreta sus enunciados. La primera consigna es la siguiente:
construya cuatro enunciadores. El enunciador E1 contiene el punto de
vista X, el enunciador E2 saca una conclusión r a partir de X,
conclusión que hay que descubrir (cuando queremos interpretar el
enunciado hay que inventar esa r). El enunciador E3 sostiene el punto
de vista de Y y, a partir de Y, el enunciador E4 concluye no r.
(DUCROT, 1988, p. 71).
O autor afirma também que, além de identificar os quatro enunciadores, o
interpretante terá de encontrar as posições do locutor em relação aos quatro
enunciadores.
(...) L rechaza siempre a E2 y se identifica con E4, es
decir que el locutor siempre concluye no r. En cuanto a E1 e E3 todo
lo que podemos decir es que L no los rechaza, en unos casos puede
aprobarlos, en otros puede identificarse con ellos. El enunciado dice
por lo tanto: imagine cuáles son las posiciones del locutor e imponga
algunos limites a esta imaginación. (DUCROT, 1988, p. 71).
É a partir desta concepção de operadores argumentativos de Ducrot e da
classificação proposta por Espíndola que fizemos um levantamento dos operadores
argumentativos encontrados nas sentenças e nos acórdãos. Além deste levantamento,
97
também operamos uma análise da polifonia dos locutores presentes nos textos jurídicos
participantes do corpus desta pesquisa. Nosso objetivo, ao elencar essas duas categorias
polifônicas, foi compreender como se a organização argumentativa desses textos,
bem como analisar os desdobramentos das vozes, no que diz respeito à negação e à
hierarquização.
No tópico seguinte, apresentamos a concepção postulada por AUTHIER-
REVUZ, denominada de Heterogeneidade Enunciativa. Nesta concepção, a referida
autora trata do discurso que é atravessado pelo discurso do outro ou por outros
discursos. Em outras palavras, das vozes presentes em um discurso. Sua concepção é
referencia nos estudos da Análise do Discurso.
3. 6 A(s) Heterogeneidade(s) Enunciativa(s)
O termo heterogeneidade refere-se a toda forma de alteridade no discurso, ou
seja, toda forma que altera a imagem de um discurso. O tom de um enunciado pode ser
identificável, por exemplo, pelo contraste entre idéias heterogêneas no interior de
um mesmo texto: podemos falar em tom irônico, tom polêmico etc. A
heterogeneidade enunciativa indica que todo discurso é atravessado pelo discurso do
outro ou por outros discursos, que mantêm entre si relações de contradição, de
dominação, de confronto, de aliança e/ou de complementação. Sendo assim,
heterogeneidade enunciativa, nesse quadro, é “entendida como manifestando diversos
tipos de “negociação” do sujeito falante com o que eu chamo de heterogeneidade
constitutiva” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 11).
Temos em Flores e Teixeira (2005) uma explicação da heterogeneidade
postulada por Authier-Revuz. Ela afirma que,
(...) a heterogeneidade de que fala a autora não se reduz
somente à relação com outros discursos, mas alude a toda forma de
alteridade enunciativa, inclusive aquela que é da ordem do
irrepresentável, que se mostra” no plano enunciativo em pontos de
98
“alteração” do dizer. Trata-se de uma heterogeneidade que se impõe ao
dizer, abrindo nele próprio a falha de um não-um constitutivo do um.(p.
84)
Essa falha do sistema é que irá constituir o não-um, a possibilidade de
equívoco de sentido, se falta de significação e, estruturalmente, da ausência, da brecha
que a palavra provoca no interior dos discursos, que deve ser preenchida em nome da
regularidade das significações e da memória discursiva, da interdiscursividade.
A autora adota também a noção de metaenunciação e de metaenunciado,
Como princípio metodológico. Para ela, a metaenunciação caracteriza-se pela presença,
na linearidade discursiva, de um metaenunciado, frequentemente com retomada
autonímia cuja função é modalizar os termos empregados ou avaliar a maneira pela qual
o enunciado se materializa, mostrando que
(...) o dizer retorna reflexivamente sobre um ponto de seu
desenvolvimento, para sustentar o “que vai por si mesmo”, sob o modo
pelo qual parece dar-se normalmente a nomeação, inscrevendo nela
explicitamente a falta por meio de uma interrogação [...], de uma crítica
[...], de uma aceitação [...], de uma renúncia. (FLORES e TEIXEIRA,
2005, p. 82).
Authier-Revuz, apesar de se inserir no quadro discursivo-enunciativo se
recusa sistematicamente a analisar as formas de heterogeneidades por qualquer outro
viés que não seja o estritamente lingüístico. A autora consegue descrever
minuciosamente as formas da língua que configuram o quadro das heterogeneidades,
incluindo-se nesse escopo as (não)-coincidências do dizer. De acordo com Flores e
Teixeira (2005), “sua análise não se detém propriamente em verificar as repercussões
não-lingüísticas da constituição do sujeito e do discurso pelo outro [...], de forma que [a
autora] não se coloca nem no campo da análise de discurso nem no da psicanálise” (p.
84). Essa característica teórico-meodológica da autora nos interessa, por encontrarmos
em sua proposta o elo entre Bakhtin e Ducrot, que por intermédio das categorias
99
elencadas pela autora consegue-se perceber a polifonia como constituinte da língua, mas
não só no nível da frase, mas do texto como pensa Bakhtin.
Para ela, um enunciado, ou melhor, um metaenunciado possui diversas
funções lingüístico-enunciativas que vão desde a fixação de sentido em quadros
discursivos cristalizados pela memória discursiva até a negociação que ocorre entre o
sujeito-enunciador e o Outro, definido no escopo lacaniano, passando pela negociação
entre o sujeito-enunciador e a estrutura faltante da linguagem e sua reincidente
incapacidade de nomear o real.
Duas ordens de heterogeneidade são elencadas por Authier-Revuz 1990,
1994, 2001 e 2004 distingue duas ordens de heterogeneidade:
(1) a heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso, em que a autora
mostra “o discurso como produto de interdiscursos, ou, em outras palavras, a
problemática do dialogismo bakhtiniano”;
(2) a heterogeneidade mostrada no discurso (que indica a presença do outro no
discurso do locutor). A heterogeneidade mostrada, por sua vez, ainda segundo a
autora, divide-se em duas modalidades: a marcada, da ordem da enunciação e
visível na materialidade lingüística e a não-marcada, da ordem do discurso e não
provida de visibilidade.
Ao estudar as várias formas de complexidade enunciativa, a autora
distingue como formas marcadas, que contribuem para manter a distinção entre o
eu pleno e o sujeito que ele atropela, as que apontam univocamente para o
outro (discurso direto, aspas, itálicos, incisos de glosas), e, como formas não
marcadas, aquelas onde o outro se faz reconhecer sem marcação unívoca
(discurso indireto livre, ironia, pastiche, imitação). Para Authier-Revuz,
Efetivamente, as formas não marcadas de heterogeneidade
mostrada – discurso indireto livre, ironia... de um lado, metáforas,
jogos de palavras... de outro, representam, pelo continuum, a
incerteza que caracteriza a referência ao outro, uma outra
100
forma de negociação com a heterogeneidade constitutiva; uma
forma mais arriscada porque joga com a diluição, com a dissolução
do outro no um, onde este, precisamente aqui, pode ser
enfaticamente confirmado mas também onde pode se perder. É deste
modo que tais formas, sem ruptura, conduzem aos discursos
que, bem mais próximos da heterogeneidade constitutiva,
renunciam a toda proteção diante dela, e tentam o impossível
“fazer falar”, no vertiginoso apagamento do enunciador atravessado
pelo “isso fala” do interdiscurso ou do significante tal como o
desenham, absolutos míticos [...], livros sem voz do autor, que
existem sozinhos” (1990:1984, p. 34).
Além dessa marcas, as alusões, o discurso indireto livre ou qualquer
jogo de palavras não marcado, como as metáforas, por exemplo, são passíveis,
segundo ela, para a heterogeneidade constitutiva. No caso do discurso indireto, o
locutor se comporta como tradutor: fazendo uso de suas próprias palavras, ele remete
a um outro como fonte do “sentido” dos propósitos que ele relata. No discurso
direto, são as próprias palavras do outro que ocupam o tempo – ou o espaço
claramente recortado da citação da frase; o locutor se apresenta como simples
“porta-voz”. Nas glosas, retoques e comentários sobre um fragmento da cadeia (com
ou sem aspas ou itálico), que especificam os parâmetros, pontos de vista,
um discurso põe explicitamente uma alteridade em relação a si próprio. A ironia,
o humor e outras formas podem, por exemplo, ser considerados rupturas no dizer,
que permitem a entrada do interlocutor como co-autor do narrado. As antecipações,
as correções e as auto-escutas são formas de modalização autonímica que apontam
um processo por etapas, que se inscreve no tempo. A paráfrase, as retomadas são uma
forma de heterogeneidade mostrada, onde o locutor atua como tradutor.
É importante ressaltar que para a autora tais noções, que se ancoram no
exterior da lingüística, sejam explicitadas, uma vez que de nada adianta limitar a
lingüística a aspectos intrínsecos: isto apenas promoverá concepções ingênuas em
torno do sujeito e de sua relação com a linguagem. Em se tratando da enunciação, o
exterior inevitavelmente retornará, de forma implícita, ao interior da descrição, “sob
a forma “natural” de reprodução”, ao se analisarem as evidências vivenciadas pelos
101
sujeitos falantes de uma determinada língua. Sendo assim, ela recusa tanto os enfoques
do sujeito como centro de seu dizer como os que se dedicam ao “salvamento
do sujeito”.
Para propor aquilo que chama heterogeneidade constitutiva do sujeito e de
seu discurso, toma por base os trabalhos que consideram o discurso como produto
de interdiscursos (o dialogismo de Bakhtin) e a abordagem do sujeito e de sua
relação com a linguagem por meio da releitura que Lacan faz os conceitos
freudianos (Psicanálise). Como vemos, o conceito de heterogeneidade(s)
enunciativa(s) inclui, entre outros, a dimensão dialógica da linguagem, segundo
Bakhtin, por meio da qual, ao construir sua fala, o locutor marca, de modo
aparente ou não, o lugar do outro, seu provável interlocutor.
Na heterogeneidade constitutiva espaço interdiscursivo - o discurso
não se origina no locutor e surge em uma dimensão de verticalidade, não linear: é o
caso da não coincidência interlocutiva, não coincidência do discurso consigo
mesmo, não coincidência das palavras e das coisas e não coincidência das palavras
com elas mesmas (AUTHIER-REVUZ, 2001: 22).
Na heterogeneidade mostrada espaço intradiscursivo o locutor conta
de sua enunciação, da delimitação que, apesar de ilusória, é necessária, do um, do
sujeito e do discurso em relação à pluralidade de outros sujeitos e outros discursos.
Lembra que o “dialogismo” do círculo de Bakhtin constitui uma teoria da dialogização
interna do discurso, onde as palavras são sempre “as palavras dos outros” e que a
saturação da linguagem constitui uma teoria da produção do sentido e do discurso.
Desta forma, segundo a visão bakhtiniana, os outros discursos atuam como um
centro exterior constitutivo, que pertence ao já-dito e com o qual se constrói a trama
do discurso.
É em relação ao exterior da lingüística que Authier-Revuz (1990: 26)
propõe “uma descrição da heterogeneidade mostrada como formas lingüísticas de
102
representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a
heterogeneidade constitutiva do seu discurso”. Esses exteriores teóricos
fundamentam também a retomada da questão da dupla heterogeneidade, em que se
toma como objeto a modalização autonímica, configuração enunciativa que se refere a
um desdobramento, em um único ato de enunciação, onde um dizer do
elemento lingüístico realizado por um comentário desse dizer.
O estudo lingüístico e discursivo da modalização autonímica é apresentado
por meio das não-coincidências do dizer e sua representação meta-enunciativa e remete
a uma das formas e dialogismo, tratado por Bakhtin: a do locutor com sua própria
palavra. Authier, com base nas reflexões bakhtinianas sobre o dialogismo, tematiza o
outro no discurso, focalizando a heterogeneidade do locutor e do discurso: a
interação com o outro, questão fundamental do dialogismo, apresenta-se como
constitutiva de todo discurso. O lugar do outro se insere dentro do próprio discurso,
uma vez que as palavras são sempre “as palavras dos outros” e um discurso é
sempre construído na relação com os outros discursos. Tal conceituação atravessa
tanto o plurilingüismo como as fronteiras constitutivas dos “falares sociais”, das
formas lingüísticas e discursivas do hibridismo e da bivocalidade, enfim de todas as
formas que permitem a representação no discurso do discurso do outro. O que
Bakhtin considera saturação da linguagem constitui-se numa teoria da produção do
sentido e do discurso; os outros discursos são colocados como um centro exterior
constitutivo, o do já-dito, com o qual se tece a trama do discurso.
Quanto à psicanálise, apoiada na teoria de Saussure e na releitura feita
por Lacan da obra de Freud, traz à baila “a dupla concepção de uma fala
fundamentalmente heterogênea e de um sujeito dividido” (AUTHIER-REVUZ
(1990: 28), o que revela palavras sob outras palavras, apontando a polifonia não
intencional de todo discurso. A esta concepção do discurso atravessado pelo
inconsciente articula-se aquela do sujeito dividido, descentrado, clivado, “ferida
narcísicaapontada por Freud, ao descobrir-se que “o sujeito não é mais o senhor de
sua morada”, o que possibilita seu mascaramento. Para Freud, não passa de uma
ilusão necessária, no entanto –, a idéia da centralização do sujeito. O
fundamento do sujeito centralizado muda à medida que se produz seu deslocamento:
no sujeito e em seu discurso está o Outro, constitutivamente e em torno dessa
103
afirmação reencontram-se as concepções do discurso, da ideologia e do inconsciente,
impossíveis de serem deixadas de lado pelas teorias da enunciação. Tal ponto de
vista lingüístico difere bastante da descrição das formas da heterogeneidade
mostrada no discurso, por meio das quais se modifica a unicidade aparente da cadeia
discursiva, para inscrever-se o outro, segundo diferentes modalidades, ancoradas
ou não em marcas unívocas.
Neste capítulo, buscamos apresentar os pressupostos teóricos da Teoria da
Argumentação da Língua proposta por Ducrot. Apresentamos também uma breve
discussão sobre Heterogeneidade Discursiva proposta Authier-Revuz. Expomos as
categorias que escolhemos para promover as análises desta pesquisa: os operadores
argumentativos e a polifonia de locutores, ambas pertencentes a TAL. Nos capítulos
seguintes, apresentamos uma análise dos gêneros sentença e acórdão, primeiramente, no
que diz respeito aos aspectos jurídicos, à linguagem jurídica, aos mecanismos do
Direito. Na sequência, apresentamos os caminhos metodológicos adotados pela pesquisa
para, depois nos determos na análise da construção polifônica argumentativas destes
textos.
104
4. Percursos metodológicos
Neste ponto da pesquisa, apresentamos nossas decisões metodológicas.
Decisões estas que foram feitas a partir das seguintes etapas: escolhas preliminares (uma
abordagem do tema e do referencial teórico), método de abordagem, delimitação do
universo e procedimentos de análise do corpus.
4. 1 Delimitação da amostra
O corpus desta pesquisa é composto de 12 (doze) sentenças monocráticas
oriundas do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, isto é, sentenças de primeira
instância, e de 12 (doze) acórdãos também oriundos do tribunal acima citado. A
princípio, foram adotados critérios específicos para coleta dos dados: não foi feita
nenhuma restrição com relação aos acórdãos e às sentenças coletadas, a não ser o fato
de elegermos acórdãos e sentenças pertencentes ao mesmo processo jurídico. Isto
implica em ter-se sentenças que foram contestadas e que houve um novo julgamento
que resultou em um acórdão. Sobre esta decisão, nosso objetivo foi comparar e/ ou
105
acompanhar a manifestação das vozes nos acórdãos e nas sentenças que os antecedem.
Além disso, optamos por manter todas as peças processuais com os seus dados
originais, isto é, sem termos que criar códigos para omitir as partes envolvidas na
questão jurídica, visto que estas peças processuais são publicadas.
Tanto os acórdãos quanto as sentenças oriundos do Tribunal de Justiça do
Estado do Ceará, Tribunal Regional do Trabalho da Região e fóruns, foram
conseguidos através da intermediação do Promotor Público Jean Batista Ferreira que
facilitou nossa participação em uma audiência da Terceira Câmara Cível, bem como
nosso acesso aos textos que compõem o corpus desta pesquisa. Catalogamos, portanto,
o corpus utilizando ST para indicar sentença de primeira instância e AC para indicar
acórdão. Como o corpus está constituído por 12 sentenças e por 12 acórdãos,
estabelecemos a numeração de 0 (zero) a 12 (doze) para os dois gêneros estudados.
Desse modo, teremos ST 01 a ST 12 e AC 01 a AC12.
Outro aspecto do tratamento dado ao corpus foi o de alterar os nomes das
partes, no caso de empresas e, no caso de pessoa física, usamos apenas as iniciais,
quando do uso destes para exemplificar as análises, no corpo do texto desta pesquisa,
como forma de resguardar esses indivíduos, apesar das peças serem de caráter público e
de não ter nenhum impedimento legal no uso dos nomes das partes nas análises. Já nos
anexos mantivemos os exemplares na íntegra e anexamos 5 (cinco) exemplares de cada
gênero jurídico, com o propósito de facilitar a conferência de alguma análise feita, além
de permitir que o leitor possa visualizar os gêneros analisados de uma forma mais
ampla. Ressaltamos que os textos que compõem os anexos foram fotocopiados e,
portanto, apresentam-se na sua forma original, com todos os nomes, fatos, carimbos,
etc.
4. 2 A sentença e o acórdão: caracterização do corpus
O discurso jurídico pode ser entendido como uma complexidade de
discursos que, embora apresente intersecções com outros discursos, ele também traz em
si especificidades que o individualizam. Este discurso se caracteriza, dentre outros
aspectos, pelo fato de que se dirige a um público bastante seleto. Apesar de os processos
106
jurídicos
12
, na sua maioria, serem públicos - com exceção dos que correm em segredo
de justiça - qualquer pessoa que desejar pode ter acesso a eles, mas em geral esse acesso
se torna restrito pela forma como os produtores desses textos utilizam a linguagem. Na
verdade, o discurso jurídico se dirige a poucos sujeitos.
Por terem como enunciadores desembargadores, juízes, promotores e
advogados, aqui denominados operadores do Direito, os textos jurídicos têm uma força
enunciativa que deve ser considerada, visto que eles têm o poder de alterar o rumo da
vida das pessoas nele envolvidas. Os advogados são enunciadores que são contratados
pelas partes
13
, a fim de representá-las em um mundo fictício, para o qual são necessárias
habilidades específicas. Esses enunciadores são os representantes do Estado
encarregados de solucionar os problemas a eles levados através de textos, que possuem
características especificadas/ determinadas pela comunidade da qual os enunciadores
fazem parte.
A estrutura dos textos jurídicos está definida na lei (arts. 458 e 282, do
Código de Processo Civil), e é essencialmente a mesma: primeiro deve conter uma
referência ao fato, a qual se chama relatório no caso específico da sentença; depois
deve-se mencionar a adequação desse fato à lei vigente no país, trecho nomeado de
fundamentação; e, por último, a conclusão, que, para o advogado, é o pedido e para o
juiz é o dispositivo, onde determina a procedência ou não da ação. São textos em que o
espaço para a criatividade é diminuto, uma vez que o enunciador deve-se cingir à
legislação vigente no país.
O Direito regula, através do Código de Processo Civil e do Código de
Processo Penal, um conjunto de atos ordenados com a finalidade de apurar um fato
delituoso e sua autoria, bem como a aplicação da lei cabível a tal infração. Esse
conjunto de atos denomina-se processo, que por sua vez também denomina os autos ou
12
Em sentido amplo, significa o conjunto de princípios e de regras jurídicas. Em conceito estrito,
exprime o conjunto de atos que se indicam necessários, para que se investigue, e, afinal, para que se
esclareça a pendência. (De Plácido e Silva, 1980: 1227).
13
Termo referente a toda pessoa que participa de um processo. Pode ser a parte que provocou o processo
ou a parte que se defende. Cada uma das pessoas que se opõem num litígio. ( De Plácido e Silva, 1980:
1123).
107
os papéis e documentos em que se materializam os atos do judiciário
14
. Em outras
palavras, o processo é um conjunto de atos sucessivos, atos esses materializados na
forma de documentos, para a solução de uma lide
15
.
A sentença, como dispõe o Código de Processo Civil, é uma espécie do
gênero ato processual, caracterizando-se por ser ato exclusivo do juiz, ao lado das
decisões interlocutórias e dos despachos, como disciplina o art. 162. O §1º do art. 162
do CPC define sentença como o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo
ou não o mérito da causa. A partir deste conceito depreende que há duas modalidades
de sentença, aquela que decide o mérito, denominada sentença definitiva, e aquela que
põe fim ao processo sem analisar o mérito, conforme hipóteses do art. 267 do Código de
Processo Civil.
De acordo com Santos (2000),
(...) a sentença definitiva
resolve a lide. O conflito,
suscitado pelo pedido do autor e contestação, real ou virtual, do réu,
se compõe pela decisão que o juiz profere. Fica, em conseqüência,
satisfeita a obrigação jurisdicional do Estado, esgotando-se a função
do juiz e, pois, encerrando-se a relação processual (p. 9).
Contudo, quando vislumbramos o processo em todas as suas fases, entre
elas a recursal, verificamos a impossibilidade de considerar-se de forma absoluta que a
sentença põe fim à relação processual e à controvérsia, pois, interposto recurso,
aguardar-se-á a decisão da instância superior, como é o caso do acórdão, e o trânsito em
julgado para o término do processo, salvo quando conformados os interessados com a
decisão da instância originária.
14
Relativo ao direito processual ou à organização da justiça (Ferreira, 1975).
15
Lide é o termo jurídico para o litígio que se instaura entre dois sujeitos, submetido à jurisdição do
Estado (Romualdo, 2002: 48).
108
As sentenças, para que assim possam ser consideradas e produzam efeitos no
mundo jurídico, devem atender a alguns requisitos, sem os quais resta prejudicada,
conforme as circunstâncias, sua existência, validade e eficácia. Sob o aspecto formal a
sentença é o ato que encerra o processo independentemente de apreciar-lhe o mérito ou
não, termos estes adotados pelo Código de Processo Civil - CPC (art. 162, §1º). Donde
podemos concluir que as sentenças que põem termo ao procedimento,
independentemente de lhe apreciar o mérito, são sentenças terminativas. Deste modo,
por encerrarem o processo, seriam passíveis de apelação, nos termos legais
16
de acordo
com a doutrina (NORONHA, 1995, p. 281).
sob o aspecto material, a sentença é o ato que estabelece, declarando ou
criando, a norma que regerá o caso concreto. Dentro desta perspectiva, temos que a
sentença corresponde a prestação jurisdicional em sentido estrito, vez que resolveria o
litígio material. Segundo Chiovenda (1998), a sentença é o meio pelo qual o juiz atende
ou não ao pedido do autor ou do réu, em julgando procedente o pedido do autor,
conseqüentemente julgará improcedente a defesa do réu e vice-versa (p. 198).
Abre-se aqui séria discussão a respeito do recurso cabível. Pois se
considerarmos a sentença sob seu aspecto material, seria sentença o ato do juiz que
apreciasse o mérito da causa, independentemente de lhe pôr termo ou não. Mas, em
nosso ordenamento, as decisões que apreciam o mérito nem sempre extinguem o feito,
devendo ser observado se o procedimento segue ou não para daí então averiguar qual o
recurso cabível. Em síntese, se a decisão aprecia o mérito sem extinguir o procedimento,
o recurso cabível será o agravo, retido ou de instrumento
17
e, se o extingue, caberá
apelação.
18
Para Santos (2000), a importância da distinção dos aspectos materiais e
formais da sentença é de ordem prática, ou seja, se o processo se extingue sem apreciar
o mérito da causa, em outras palavras, a razão de ser do pedido, será possível reabrir o
16
Art.513, do CPC.
17
Art. 162, §2º c/c art. 522 do CPC.
18
Art. 162, §1º c/c art. 513 do CPC.
109
processo, com as exceções da coisa julgada, litispendência
19
e perempção
20
. Ao passo
que, quando a sentença decide o mérito, será afetada pela coisa julgada após o fim do
prazo recursal ou quando não houver mais possibilidade de recorrer da decisão (p. 207).
Sobre o momento processual da sentença, vale ressaltar que se
considerarmos sentença o ato do juiz que decide o mérito da causa, veremos que esta
pode ocorrer a qualquer momento no processo. Contudo, diante do §1º do art. 162, do
CPC, podemos observar que a sentença é o ato do juiz que extingue o procedimento em
primeiro grau de jurisdição. Deste modo, não se pode esquecer que o momento
processual no qual se a sentença, é exatamente quando o procedimento é extinto em
primeiro grau de jurisdição.
O Código de Processo Civil, em seu art. 458, incisos I a III, prevê como
requisitos das sentenças, respectivamente, o relatório, os fundamentos e o dispositivo.
No relatório deve constar o nome das partes, a suma do pedido e da resposta do réu,
bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo.
Trata-se da síntese da demanda, apresentando, brevemente, os principais elementos
discutidos e apresentados no curso processual. Nos fundamentos da sentença, o juiz
analisará as questões de fato e de direito, a partir do que apresentará as razões de seu
convencimento quanto a quem assiste razão, de modo que seja possível aos interessados
compreenderem os elementos que o levaram à conclusão exposta no dispositivo. Neste,
por sua vez, apresenta-se a solução do litígio. É neste item que o juiz apresenta qual a
solução cabível para as questões de fato e de direito suscitadas pelas partes e por ele
analisada na fundamentação. Trata-se da conclusão das operações lógicas desenvolvidas
pelo juiz na motivação.
21
Veja-se, assim, que, embora prevaleça no Direito o princípio do livre
convencimento, ou seja, de que o juiz é livre quanto aos elementos embasadores de seu
convencimento, tem-se, de outro lado, como imprescindível, a fundamentação das
19
Litispendência: diz-se quando a lide ainda não foi decidida, está pendendo da decisão do juiz.
(GUIMARÃES, 2007, P. 399).
20
Perempção: é a perda de ão do autor; é a extinção do processo por abandono. (GUIMARÃES, 2007,
P. 439).
21
SANTOS,. Ob. cit., p. 20;
110
decisões judiciais, conforme art. 93, IX da CF, visando-se, com isto, dar efetividade ao
princípio da segurança nas relações entre jurisdicionados e Estado.
O gênero acórdão, também objeto de nosso estudo, é uma peça decisiva,
dentro de um processo jurídico. Este tipo de documento é resultado de uma apelação,
requerida por um dos lados envolvidos num processo, que por sua vez se viu
prejudicado pela decisão do juiz. Já o termo acórdão é oriundo da substantivação do
verbo acordar, que na linguagem jurídica, significa resolução ou decisão tomada
coletivamente. Segundo Silva (1982, p. 87),
(...) a denominação vem do fato de serem todas as
sentenças ou decisões proferidas pelos Tribunais, na sua
conclusão definitiva e final, precedidas do verbo acordam, que
bem representam a vontade superior do poder ditando o seu
veredicto.
O acórdão é um tipo de sentença, e como toda sentença jurídica segue a
ordem legal: relatório, fundamentação e dispositivo e também está sujeito aos requisitos
formais, determinados por lei. Segundo Carrasqueira (2001, p. 65),
(...) emerge daí então o fato de ele representar um
silogismo em que a premissa maior deve ser a regra geral, a norma ou
o direito, a menor, o fato, a ação conforme ou não a lei, e a
conclusão, a decisão condenando ou absolvendo o acusado.
Percebe-se, portanto, a íntima relação entre o fato, a norma e o valor que
consubstanciam o Direito. Além disso, o acórdão é uma sentença proferida pelos
Tribunais. Isso quer dizer que, ao contrário de uma sentença monolítica, é uma decisão
colegiada, ou seja, é tomada coletivamente por juízes-desembargadores.
111
Segundo Carrasqueira (2001: 58), o acórdão enquanto integrante de um
processo é um produto do poder judiciário e, salvo casos muito específicos é, via de
regra o término de um processo, dele não cabendo mais recursos. Em outras palavras, o
acórdão geralmente põe fim a uma lide.
4. 3. Procedimentos metodológicos
A análise do material coletado se processou com o objetivo de descrever a
estrutura polifônica das sentenças jurídicas de primeira instância e do acórdão.
Inicialmente, foi feito um levantamento das principais marcas de polifonia presentes nas
sentenças selecionadas. Nessa fase, de caráter puramente descritivo, identificamos as
marcas de polifonia (principalmente de locutores), como citações, aspeamentos,
referências, o uso dos verbos dicendi, o uso dos operadores argumentativos, etc.
Estratégias que denunciam a pluralidade de vozes existentes nas sentenças.
Realizada essa descrição, verificamos também quais dessas marcas aparecem
com maior freqüência, ou seja, quais são mais recorrentes nesse gênero do discurso.
Dessa maneira, estaremos tentando atingir o objeto deste trabalho, que consiste em
analisar a correlação entre o aspecto fomulaico dos gêneros em estudo e a constituição
da polifonia presente neles.analisar os principais recursos polifônicos das sentenças.
Todo este procedimento foi norteado por um estudo piloto que nos deu a
dimensão aproximada do trabalho que hora apresentamos. Selecionaremos uma amostra
06 acórdãos e 06 sentenças - do corpus coletado para criarmos alguns procedimentos
de análise e ajustarmos algumas decisões já feitas para este empreendimento. A idéia de
se fazer um estudo piloto surgiu da observância de que a polifonia nas sentenças assume
características muito particulares e que as pesquisas citadas anteriormente sobre este
fenômeno nos ajudarão, mas não serão suficientes para tanto.
Feito o estudo, ajustamos os instrumentos e procedimentos de análise do
corpus. Após a análise e os ajustes nos eixos teóricos da pesquisa, partimos para a
etapa da análise quantitativa dos dados. Nosso objetivo é o de, através da detecção
dessas marcas, analisar o caráter jurídico delas, dentro da perspectiva de uso que os
112
operadores jurídicos fazem, visto estes afirmarem que se utilizam da linguagem
ordinária.
O fechamento da pesquisa se deu quando estas etapas foram cumpridas e os
resultados figuraram no texto da nossa tese. Vale ressaltar que todo o processo de
análise implicou em dificuldades com a compreensão da língua usada pelos operadores
do Direito, em face da nossa limitação frente a textos jurídicos.
5. Discurso jurídico e polifonia
Este capítulo versa sobre as análises propostas e está organizado em duas
partes: a primeira trata dos aspectos dos gêneros sentença e acórdão, bem como do
discurso jurídico e das particulares que envolvem operadores do Direito e sua
linguagem. Na segunda parte, tem-se a análise da polifonia nos exemplares do corpus.
5. 1 Sobre os gêneros textuais jurídicos: Sentença e Acórdão
Nesta etapa da pesquisa, apresentamos algumas concepções/ alguns
conceitos sobre os gêneros, sobre os textos que compõem o corpus desta pesquisa,
pautados nas duas ciências, responsáveis pelo caráter interdisciplinar deste trabalho:
Linguística e Direito.
5. 1. 1 O discurso jurídico
113
De acordo com a literatura jurídica, existem várias teorias que conceituam o
Direito sob enfoques diferentes, entretanto, segundo Faria (1994), duas delas diferem
entre si. Uma porque o Direito como simples técnica de controle e organização
social, e outra na qual o sistema jurídico e o conhecimento técnico são vistos como “um
conjunto de manifestações parciais de uma experiência vivida e, como tal, incorporada à
própria percepção da realidade socioeconômica por parte dos advogados, promotores,
magistrados e juristas” (FARIA, 1994, p. 23).
Na primeira, o Direito é visto como um sistema estruturado de normas por
regras jurídicas de diferentes níveis que, tendo sua origem na autoridade estatal, tem por
fim delimitar os comportamentos dos homens, regular o uso da força nas relações
sociais e punir as condutas indesejadas, de acordo com a ordem que se quer mantida. O
Direito é reduzido, dentro dessa perspectiva, a um sistema de normas que, conferindo
sentido jurídico aos fatos sociais, desde que enquadrados no sistema normativo vigente,
considera apenas os aspectos técnicos procedimentais, desconsiderando as implicações
éticas da função social das leis e dos códigos.
Na segunda, o Direito é tido como instrumento de direção e promoção social, e
que tem como objetivo a realização do equilíbrio material entre vários setores e classes
sociais. Percebe-se, desta forma, a idéia de justiça como um princípio de balanceamento
de interesses que, por sua natureza, são irredutíveis a uma medida universal e geral,
rompendo, portanto, com o principio de igualdade de todos os sujeitos de direito, no
âmbito de um mesmo ordenamento jurídico. Desta forma, a lei não é mais vista como
sinônimo de Direito, e sim como uma peça importante, ao lado de outras, do processo
de realização das instituições jurídicas. Sendo assim, as normas jurídicas podem ser
aplicadas de modo legítimo e eficaz quando “conectadas hermeneuticamente com a
realidade social e econômica, integrando-a como parte necessária do sistema legal”.
(FARIA, 1994, p. 23).
Benveniste, na apresentação de um congresso de Filosofia, afirmou que é na
troca que se desalojam conhecimentos sedimentados pelo ponto de vista, construindo
novos objetos de reflexão e, talvez, de renovação. De acordo com o autor:
114
(...) serão propostas à atenção dos linguistas, daqueles que se ocupam
da linguagem como especialistas, como se diz, algumas maneiras,
provavelmente diferentes, de refletir sobre a linguagem. Assim,
começará, tardiamente é preciso dizê-lo, uma troca que pode ser de
grande valia. (BENVENISTE, 1995, p. 220)
No Brasil, este tipo de estudo ainda não constitui uma linha de pesquisa, visto
que os trabalhos que versam sobre o discurso jurídico
22
, segundo Alves (1999, p. 68),
são tematizados e endereçados aos lingüistas em encontros de Linguística, quando
muito tem despertado interesse de cientistas sociais de outras áreas, tais como
sociólogos e antropólogos. Sendo assim, esta pesquisa visa contribuir para o
desenvolvimento dessa linha de pesquisa, posicionando-se como mais um trabalho que
trata dessa interdisciplinaridade.
5. 1. 2 O discurso jurídico e os gêneros jurídicos
O discurso jurídico pode ser entendido como uma complexidade de
discursos que, embora tenham intersecções, têm também especificidades que os
individualizam. Este discurso se caracteriza, dentre outros aspectos, pelo fato de que se
dirige a um público bastante seleto. Apesar de os processos jurídicos
23
, na sua maioria,
serem públicos, ou seja, qualquer pessoa que desejar pode ter acesso a eles, geralmente
esse acesso se torna restrito pela forma como os produtores desses textos utilizam a
linguagem. Na verdade, o discurso jurídico se dirige a poucos sujeitos.
Por terem como enunciadores juízes, promotores e advogados, entre outros,
estes aqui foram denominados operadores do direito (termo usado pela própria
comunidade discursiva jurídica para referir-se aos participantes do universo jurídico), os
22
De acordo com Alves (1999: 71), o termo discurso jurídico foi herdado da Sociologia e contempla o
espaço institucional em que se produzem textos falados e escritos.
23
Em sentido amplo, significa o conjunto de princípios e de regras jurídicas. Em conceito estrito,
exprime o conjunto de atos que se indicam necessários, para que se investigue, e, afinal, para que se
esclareça a pendência. (De Plácido e Silva, 1980: 1227).
115
textos jurídicos têm uma força enunciativa que deve ser considerada, visto que eles têm
o poder de alterar o rumo da vida das pessoas neles envolvidas. Para se ter uma idéia de
como funciona este universo, vejamos: Os advogados são enunciadores que são
contratados pelas partes
24
, a fim de representá-las em um mundo fictício, para o qual são
necessárias habilidades específicas. Para solucionar o conflito existente entre as partes,
outros enunciadores participam do evento. São juízes e promotores, os representantes do
Estado, encarregados de solucionar os problemas a eles levados através de textos.
Textos estes que refletem as características de um grupo altamente institucionalizado.
Todas as estruturas dos textos jurídicos são definidas por leis. No caso dos
gêneros estudados, a sentença e o acórdão, suas estruturas são previstas pelos arts. 458 e
282, do Código de Processo Civil (CDC), e são essencialmente as mesmas, visto que o
acórdão é categorizado como uma sentença. A diferença está na constituição da parte
que representa o Estado. Na sentença, tem-se um juiz, enquanto que no acórdão tem-se
um colegiado, uma câmara, oriunda de um Tribunal.
Em 2005, o conceito de sentença sofreu um ajuste por parte do Código de
Processo Civil. Antes disso, o CDC previa que os atos do juiz seriam classificados
como sentenças, despachos e decisões interlocutórias, de acordo com o antigo artigo
162, do CPC. O § do referido artigo definia o conceito de sentença, como “§
Sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da
causa”.
25
O antigo dispositivo, portanto, definia a sentença através de dois critérios: a
finalidade da sentença e o efeito que esta tinha no processo. A finalidade da sentença era
extinguir o processo, independente do julgamento do mérito da ação. E o efeito era,
conseqüentemente, a extinção da ação, dando o provimento jurisdicional requerido pelas
24
Termo referente a toda pessoa que participa de um processo. Pode ser a parte que provocou o processo
ou a parte que se defende. Cada uma das pessoas que se opõem num litígio. (De Plácido e Silva, 1980:
1123).
25
Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973 de 17/173 – Código de Processo Civil, sem alteração da lei
11.232/2005.
116
partes. A sentença era o ato do juiz que dava termo ao curso do processo em primeira
instância.
A Lei 11.232/2005 revoga o artigo 162 do CPC que definia a sentença, e
a seguinte redação ao referido artigo:
“§ Sentença é o ato do juiz que implica alguma das
situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei”.
26
Para completar o conceito, faz-se
necessário transcrever os artigos 267 e 269 que esclarecem o papel da sentença e do juiz
ao produzi-la. Vejamos:
“Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:
I - quando o juiz indeferir a petição inicial;
Il - quando ficar parado durante mais de 1 (um) ano por negligência
das partes;
III - quando, por não promover os atos e diligências que Ihe competir,
o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias;
IV - quando se verificar a ausência de pressupostos de constituição e
de desenvolvimento válido e regular do processo;
V - quando o juiz acolher a alegação de perempção, litispendência ou
de coisa julgada;
Vl - quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a
possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse
processual;
Vll - pela convenção de arbitragem;
Vlll - quando o autor desistir da ação;
IX - quando a ação for considerada intransmissível por disposição
legal;
X - quando ocorrer confusão entre autor e réu;
XI - nos demais casos prescritos neste Código.”
26
Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil Atualizado
117
“Art. 269. Haverá resolução de mérito:
I - quando o juiz acolher ou rejeitar o pedido do autor;
II - quando o réu reconhecer a procedência do pedido;
III - quando as partes transigirem;
IV - quando o juiz pronunciar a decadência ou a prescrição;
V - quando o autor renunciar ao direito sobre que se funda a ação. “
27
O novo conceito de sentença privilegia o conteúdo do ato do juiz para
considerá-lo como sendo sentença ou não, nas hipóteses do artigo 269, em oposição ao
privilégio dado ao conceito anterior exclusivamente à finalidade e à conseqüência do
ato, como critérios para definição do ato jurisdicional. Isso porque, ao conceituar a
sentença como ato do juiz que encerra uma das hipóteses dos artigos 267 e 269, o CPC
releva o conteúdo da manifestação do juiz como critério para definir o que é sentença.
5. 1. 3 Aspectos do texto jurídico
O texto jurídico apresenta-se como espaço de realização da linguagem
jurídica manifestada de forma variada, atentando para o propósito e para as condições
de produção do evento comunicativo no âmbito da justiça. Nessa variedade destaca-se a
proeminência do texto escrito, consagrada no brocardo latino: Verba volant, escripta
manent, que significa que as palavras voam, o escrito permanece. (DINIZ, 1998, p.718).
Todos os atos jurídicos, mesmo aqueles oralmente realizados como o juramento, o
testemunho, a acusação necessitam ser transformados em textos escritos para poder
existirem.
três grandes categorias de textos escritos jurídicos que correspondem aos
três campos principais de utilização da linguagem jurídica: a doutrina, a legislação e a
jurisprudência. Em cada uma dessas categorias é preciso considerar os propósitos/
27
Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil Atualizado
118
objetivos do texto, o destinador, o destinatário e as condições de produção do texto. Do
conjunto dessas circunstancias, depende o aspecto formal e o conteúdo do texto
produzido, ambos previstos pelos códigos jurídicos.
O texto jurídico constitui-se em um gênero peculiar cuja produção segue a
regras previstas que caracterizam os vários estilos decorrentes das mais variadas
funções a que se propõe o Direito. Distinguem-se, dentre outros, o texto jurisprudencial,
o texto notarial, o texto forense, o texto administrativo, o texto de doutrina e o texto
parlamentar. Os textos que compõem o corpus desta pesquisa se situam nas categorias:
jurisprudencial: o acórdão; forense: a sentença.
Cada gênero jurídico tem uma feição própria que o distingue de outros
gêneros. Essa feição vai desde a disposição na página, estruturação do conteúdo, as
preferências léxicas e sintáticas, a outros detalhes formais que o configuram em um
estilo próprio. No item a seguir, trataremos dos aspectos previstos pelos códigos que
determinam a estruturação dos textos participantes do corpus desta pesquisa.
5. 1. 3. 1 Requisitos estruturais da sentença e do acórdão
A sentença ou decisão é o ato pelo qual o Juiz soluciona a questão que lhe é
submetida. Enquanto que os atos decisórios dos órgãos colegiados de segundo grau – os
Tribunais - são chamados acórdãos. Portanto, através da sentença e/ ou acórdão, o Juízo
entrega a prestação jurisdicional, terminando a sua tarefa.
Assim como quase a totalidade dos textos jurídicos a sentença e o acórdão
têm suas estruturas previstas pelo mesmo artigo do Código Processo Civil (CPC). O
artigo 458 deste código aponta como requisitos essenciais da sentença: o relatório (I), os
fundamentos de fato e de direito (II) e o dispositivo ou conclusão (III). Tais requisitos
são, em princípio, concorrentes e insupríveis, isso é, qualquer um deles faltando a
sentença é nula. O acórdão é regido pelo mesmo artigo visto ser um ato decisório, assim
como a sentença.
119
Em cada requisito deste, uma previsão não de informações, mas de
estrutura. O relatório se traduz na primeira parte da estrutura das sentenças e dos
acórdãos, na qual deverá o juiz fazer um resumo dos principais pontos do processo,
incluídos não apenas os fatos alegados pelas partes, as razões jurídicas apresentadas, as
provas produzidas, as propostas conciliatórias e as razões finais, mas os eventuais
incidentes verificados.
A exigência do relatório pelo art. 458 do CPC, além de ordem jurídica é
também política, pois, com ele, o juiz demonstra às partes que analisou minuciosamente
os autos
28
, antes de proferir a sentença. Isto é, por intermédio do relatório, ele afirma
que proferiu a sentença, com pleno conhecimento dos fatos principais da causa. O
relatório deverá ser sucinto, sem que essa brevidade constitua pretexto para omissões ou
atrofias deliberadas dos fatos principais do litígio. Será bastante que o juiz pontue,
resumidamente, aos fatos alegados pelo autor e aos pedidos formulados, ao valor da
causa, etc. Vejamos o exemplo retirado do corpus da pesquisa:
EX (06) ST 02:
Anunciado o julgamento antecipado da lide vide fl. 147, em caso de não possibilidade
de acordo e de não haver provas a serem produzidas, apenas os autores se manifestaram,
conforme doc. Apresentado às fls. 151/ 152.
É o relatório.
Decido.
O trecho acima explifica como o operador do Direito, no caso, o juiz, se
preocupa em demonstrar que fez a análise dos textos que compõem o processo, além de
deixar claro que aquele trecho do texto corresponde ao requisito obrigatório, o relatório.
Este cuidado por parte do produtor do texto tem como fundamento a anulação da
sentença em caso de não apresentar alguns dos requisitos estruturais, previstos nos
códigos.
28
Peças que compõem o processo (grifo nosso).
120
O segundo requisito é a fundamentação. Neste momento textual de uma
sentença/ de um acórdão, o juiz demonstrará como se formou seu convencimento
jurídico sobre os fatos narrados pelas partes envolvidas. É nela que o juiz apreciará e
resolverá todas as questões de fato e de direito, que digam respeito à causa,
compreendidas as que tenham sido alegadas pelas partes e aquelas que possa conhecer
por sua própria iniciativa.
Vemos assim que, a exigência da fundamentação das sentenças e dos
acórdãos visa a permitir que a parte vencida possa conhecer as razões jurídicas pelas
quais o juízo não acolheu as suas pretensões, e, com isso, recorrer ao tribunal, com o
objetivo de modificar o pronunciamento desfavorável. A parte vencida tendo ciência das
razões poderá argumentar perante o tribunal que a sentença apreciou equivocadamente
os fatos. Sem a fundamentação, a sentença é nula. Não é sentença, mas pura
arbitrariedade, segundo Teixeira Filho (2001, p. 146). Ele afirma também que a doutrina
não é suficiente e o que é necessário o juiz demonstrar como fez justiça, para, dessa
maneira, convencer a todos. O exemplo, a seguir, refere-se a um trecho de uma
fundamentação de um acórdão.
EX. (07) AC 03:
(...) Saliento que por não vislumbrar a presença dos requisitos autorizadores para o
deferimento da tutela antecipada requerida, deixo de concedê-la neste momento.
Acrescento, por fim, que caberá ao recorrente desocupar o imóvel, restituindo-o à
incorporadora apelada no mesmo prazo fixado de 15 (quinze) dias do trânsito julgado
deste acórdão.
Podemos observar, neste trecho do referido acórdão, especificamente em sua
fundamentação, uma das razões do não concedimento do pedido de nulidade pela falta
de (...)requisitos autorizadores para o deferimento (...)”. Além disso, percebe-se no
trecho restante uma instrução, isto é, o que deve ser feito a partir desta decisão.
O último requisito dos atos decisórios é a conclusão, também denominada
de dispositivo da sentença ou decisão. Diz respeito à parte final da sentença, na qual o
121
juiz resolverá as questões que as partes lhe submeteram (CPC, art. 458, III). No
dispositivo da sentença, reside a conclusão das operações lógicas desenvolvidas pelo
juiz na motivação e, pois, os termos da sua decisão, ou seja, as proposições que dão
sustentação a decisão. Vejamos um exemplo de decisão:
EX. (08) ST 09:
Assim, à luz de todas as considerações supra realizadas, e em especial em observância
ao ditame constitucionais constantes nos art. 7º, IV, julgo improcedente o pedido
exordial
29
a presente ação, deixando de ordenar a parte autora no pagamento das custas
processuais e honorários advocatícios face a gratuidade judicial que lhe foi inicialmente
deferida.
Pode se concluir que essa organização textual, prevista pelos códigos, é
determinante na elaboração dos gêneros em estudo. São, inclusive, determinantes de sua
validade ou não, ou seja, no caso da não observância de uma das etapas, o gênero
jurídico será considerado nulo. Essas etapas e o que cada uma deve conter apontam para
o que Marcuschi denominou de gêneros formulaicos (2000, p. 12), isto é, gêneros que
se comportam a partir de padrões altamente institucionalizados.
5. 1. 3. 2 O Discurso jurídico nas sentenças e no acórdão
A sentença e o acórdão são textos eminentemente modais. Isto significa que
eles são textos cujos produtores não apenas produzem o discurso, mas estão
constantemente emitindo opiniões sobre o conteúdo do discurso. Os juízes e
desembargadores, produtores destes textos, quando emitem os seus votos, suas decisões,
não estão relatando uma realidade - objetivamente considerada - eles estão construindo,
ou melhor, constituindo uma realidade. Esta dimensão modalizante, este caráter
opinativo, é próprio da substância do acórdão. Ou seja, sem ela o acórdão deixa de ser
29
Grifo do juiz.
122
acórdão. Concordamos com a definição de modalidade postulada por Ingedore Grunfeld
Villaça Koch, em Argumentação e Linguagem (2000, p. 138):
Dentro de uma teoria da linguagem que leva em conta a
enunciação, consideram-se modalizadores todos os elementos
lingüísticos diretamente ligados ao evento de produção do enunciado
e que funcionam como indicadores das intenções, sentimentos e
atitudes do locutor com relação ao seu discurso. Estes elementos
caracterizam os tipos de atos de fala que se deseja desempenhar,
revelam o maior ou menor grau de engajamento do falante com
relação ao conteúdo proposicional vinculado, apontam as conclusões
para as quais os diversos enunciados podem servir de argumento,
selecionam os encadeamentos capazes de continuá-los, o vida,
enfim, aos diversos personagens cujas vozes se fazem ouvir no
interior de cada discurso.
Nestes textos, têm-se modalidades que são predominantemente modalidades
deônticas. Isto quer dizer que as manifestações opinativas de seus produtores dizem
respeito, na maioria das vezes, ao reino do dever-ser. Segue exemplo:
EX. (09) ST 04
Concordo inteiramente com as contribuições jurisprudenciais transcritas (...).
Na enunciação modal deôntica, o enunciador expõe uma conduta e emite um
juízo sobre ela, dizendo se é obrigatória/ proibida/ permitida. Segundo Ferraz Jr.(1988,
p. 125),
(...) a modalidade é o elemento funtor. O termo funtor vem da lógica
e trata-se de operadores lingüísticos que permite modalizar as
asserções. Assim a asserção “isto é comprar” pode ser modalizada
por funtores como: é proibido comprar, é permitido comprar, é
vedado comprar, é obrigatório comprar. Dentre os inúmeros funtores
123
de que se vale a linguagem normativa, a doutrina seleciona três e
distingue, então, três tipos de norma: preceptivas, proibitivas e
permissivas. As primeiras regem pelo funtor deôntico (de-ontos:
deverser) é obrigatório. As segundas, pelo funtor é proibido. Do
ponto de vista lógico, os dois primeiros são comutáveis: pode-se
dizer é obrigatório o ato de comprar ou é proibida a omissão de
comprar.
É importante ressaltar que a modalização deôntica pode - ou não estar
associada a uma modalização axiológica. Ou seja, quando um magistrado, julga que
uma conduta é juridicamente permitida, ele pode incluir no seu julgamento um dos
seguintes raciocínios: a) tal conduta é juridicamente cita e moralmente positiva; b) tal
conduta é imoral - mas infelizmente o direito a permite. A possibilidade de dissociação
entre modalidade deôntica e modalidade axiológica é um dos pontos centrais da
doutrina positivista. Doutrina esta que fundamenta quase todo o Direito enquanto
ciência.
EX. (10) ST 04
Contribuições Fiscais e Previdenciárias. “A obrigatoriedade da retenção do imposto de
renda sobre rendimentos (...)”. Como se vê, as deduções fiscais e previdenciárias
constituem obrigações legais da empresa reclamada, independentemente de
determinação contida na sentença.
Temos nos exemplos (09) e (10) a manifestação da modalidade deôntica,
discutida nos parágrafos anteriores. Não nos deteremos em avaliar toda e qualquer
manifestação de modalidade deôntica presente no corpus da pesquisa. Apresentamos os
dois exemplos apenas para reforçar a discussão sobre o caráter essencialmente
polifônico dos textos.
5. 1. 3. 3 Polifonia nas sentenças e nos acórdãos
124
Estes textos são estruturalmente polifônicos, dado que se manifestam tanto o
juiz da sentença quanto os desembargadores do acórdão, através de um leque de vozes
heterogêneas e diferenciadas entre si. Existe, nos seus julgamentos, a intenção de
apresentar-se à comunidade jurídica como um todo harmônico de vozes. No acórdão, a
possibilidade de divergências doutrinárias entre os seus membros chega a ser silenciada,
aparecendo somente as vozes concordantes. Não houvesse esta multiplicidade de
pontos-de-vista entre os seus membros seria questionada em sua razão-de-ser como
órgão colegiado. Até mesmo as decisões unânimes de um acórdão envolvem a idéia de
polifonia. Estas decisões podem desfrutar de um grande prestígio exatamente porque
diversos juizes chegaram à mesma conclusão através de mecanismos intelectuais
diferenciados.
EX. (11) AC 02
Acordam os desembargadores integrantes da Turma Julgadora da Câmara Cível do
egrégio Tribunal de Justiça do estado do Ceará, por unanimidade, em conhecer do
presente recurso (...).
No exemplo acima observamos que todos os participantes da Câmara
concordam com o resultado do acórdão. O termo “por unanimidade” aponta para esta
concordância. Temos então um exemplo de vozes concordantes.
Quanto à argumentação, a sentença e o acórdão são essencialmente
argumentativos, e são polifônicos na sua argumentatividade. Os juízes e
desembargadores não apenas decidem o caso que lhes é apresentado, mas procuram ser
convincentes na sua decisão. Ambos têm por obrigação persuadir as partes - ou pelo
menos tentar persuadi-las - de que a decisão tomada tem a ver com motivos
profundamente racionais. Ou seja, a decisão tem que ser razoável. Não necessariamente
justa - é o que diz a doutrina positivista - mas certamente razoável, no sentido de ser
uma decisão que se explica com motivos racionais. É através da argumentatividade e
pela argumentatividade que se justifica a polifonia. A noção de argumentação que aqui
se utiliza está relacionada com a díade perelmaniana argumentador/auditório. O trecho a
seguir é de uma sentença:
125
EX. (12) ST 05
O Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da Região não foge dessa linha de decisão,
conforme se demonstra com a seguinte decisão (...)
É notório neste trecho o esforço em justificar a tomada de decisão e a partir
de que ela foi tomada. Pautada em que, ela foi tomada. Isso se dá porque, como defende
Perelman e Tyteca (2002, p 245), o argumentador se coloca como argumentador
porque supõe a existência (real ou virtual) de um auditório a ser convencido. Desta
forma, a argumentação é vista como a busca da persuasão de um auditório (alocutário)
pelo locutor. A relação locutor/alocutário, nesta perspectiva, é constitutiva da
enunciação, no sentido de que esta se faz na procura de procedimentos próprios para
persuadir o alocutário. Ou seja, a representação do alocutário constitui o próprio modo
de argumentar. E é importante ressaltar aqui que para os autores a argumentação não é
vista como um acessório a serviço da transmissão da verdade.
5. 1. 3. 4 Terminologia jurídica
A existência de uma terminologia essencialmente jurídica já é consenso entre
linguístas e juristas. Ambos concordam que existem termos específicos que são usados
apenas pelos Operadores do Direito. Segundo Cabré (1994, p. 589), a especialização da
linguagem jurídica se relaciona tanto com a especificidade do tema, quanto à
especificidade da comunicação, ou seja, enquanto a especificação temática se refere aos
traços específicos de um ramo de conhecimento ou atividade, a especialização da
comunicação diz respeito ao conjunto de fatores que compõem o processo
comunicacional, tais como interlocutores, propósitos e circunstâncias da situação de
comunicação. Os dois tipos são observados na linguagem jurídica como decorrência do
contexto de comunicação.
126
No corpus da presente pesquisa, encontramos vários termos que diríamos
pertencer à linguagem ordinária, isto é, a todo e qualquer falante da língua portuguesa,
mas que inseridos no contexto jurídico ganham traços específicos das condições da área.
Além de observamos as especificidades dos termos presentes no corpus, percebemos
também alguns aspectos morfológicos que denotam o caráter peculiar desta
terminologia. Podemos dizer que os aspectos como sufixação e prefixação são os que
mais contribuem para a criação desta linguagem específica dos Operadores do Direito.
Na segunda parte deste capítulo, têm-se, mais detalhadamente, as análises
de alguns desses aspectos da linguagem jurídica como participantes do caráter
polifônico dos textos que compõem o corpus da pesquisa.
5. 2 A Pluralidade das vozes na construção das Sentenças e
dos Acórdãos
Ser significa comunicar-se pelo diálogo. Quando
termina o diálogo, tudo termina. Daí o diálogo, em
essência, não poder nem dever terminar. (Mikhail
Bakhtin, Problemas da Poética de Dostoievsky)
Esta parte do capítulo é constituída da análise, propriamente dita, das
sentenças e dos acórdãos que integram o corpus desta pesquisa científica, com o
objetivo de investigar a validade ou o da hipótese que o norteia. Vale ressaltar que a
hipótese a ser verificada é de que a principal estratégia semântico-argumentativa da
sentença e do acórdão é a polifonia de locutores, seguida da utilização dos verbos
discendi. No primeiro momento, fazemos uma análise dos recursos usados para marcar
a polifonia de locutores, como o discurso relatado que através do uso das aspas, do
travessão, dos dois pontos, de citações, de referências faz surgir uma das formas da
argumentação por autoridade. Em seguida, analisamos o uso de verbos discendi como
127
marcadores deste tipo de polifonia e fazemos também o levantamento dos operadores
argumentativos recorrentes nos textos do corpus.
5. 2. 1 O Aspeamento como marcação do discurso relatado
O uso das aspas, com o objetivo de diferenciar o enunciador responsável pela
sentença e pelo acórdão (E1), assinala não o seu distanciamento do discurso de um
outro enunciador (E2, E3, etc.) trazido para o seu texto, mas também o desdobramento
do próprio E1. Visto que este, no caso dos textos jurídicos analisados, está revestido de
Estado, portanto, representa o próprio Estado, fala pelo próprio Estado e utiliza de
outros discursos também atribuídos pelo Estado, mas que se percebe claramente não
pertencerem a E1. O recurso em tela, aparece geralmente dentro do discurso indireto
para assinalar um não comprometimento de E com relação ao discurso de um outro
enunciador, além de poder determinar a não identificação somente com o termo ou com
todo o discurso do outro enunciador. No caso dos textos jurídicos, percebe-se que o uso
das aspas, quando estas marcam um desdobramento de E, se para reforçar o discurso
deste, para justificar a decisão tomada. Identificamos exemplos dos dois tipos de uso
das aspas, mas o uso para marcar o que aqui chamamos de desdobramento de E foi o
mais recorrente. Ressaltamos que mesmo quando as aspas não aparecem para marcar o
discurso indireto, explicitamente, é possível identificar dois locutores distintos, neste
tipo de discurso. Vejamos os usos de aspas nas sentenças analisadas:
EX. (13) ST 02
30
:
O aspecto central da problemática da consideração das atividades bancárias como
sendo relações jurídicas de consumo reside na finalidade dos contratos realizados com
os bancos. (...), quer porque poderá incidir no art. 6º, inciso do CDC, com a inversão
do ônus da prova a favor do consumidor”. (Revista Jurídica nº 229 – Nov/96, p. 17-18)
EX. (14) ST 09
31
:
30
(cf. anexo 01)
31
(cf. anexo 02)
128
(...) Vejamos a lição de Hely Lopes Meirelles:
“O princípio da isonomia, mesmo antes da Carta de 1988
que, pelo §1º do art. 39, modificado inteiramente pela EC
19, o havia determinado especificamente para servidores
civis (...). Dessa forma, mesmo com a EC 19 sua aplicação
não ser afastada. Mas de ser entendido e aplicado nos
justos limites do mandamento igualitário”.
EX. (15) ST 09:
(...). É mais que oportuna a lição de Hely Lopes Meirelles nesse sentido:
O que a constituição assegura é a igualdade jurídica, ou
seja, tratamento igual, aos especificamente iguais perante a
lei. A igualdade genérica dos servidores públicos não os
iguala em vencimentos e vantagens. (...), sem ofensa ao
princípio isonômico
32
.
Os exemplos citados trazem o uso das aspas para marcar o discurso
doutrinário, ou seja, o discurso oriundo de teóricos do Direito que são usados para
fundamentar, orientar e/ ou sustentar a decisão do juiz. Além de fazer uso das aspas o
Enunciador (E1) reforça a autoria dos discursos através de recursos gráficos como o
itálico no exemplo (13) e negrito nos exemplos (14) e (15). Como o discurso doutrinário
é produzido por teóricos do Direito, entendemos que o uso das aspas se faz pertinente,
pois, os doutrinadores não estão revestidos de Estado. Em outras palavras, os teóricos
do Direito são, em geral, cientistas da área. Já, o discurso legislativo e o jurisprudencial
são de autoria do Estado, visto que seus produtores estão no papel de Estado, quando da
sua produção, ou seja, estão revestidos de Estado.
32
Grifo do juiz.
129
É importante destacar que, os acórdãos participantes do corpus desta
pesquisa não apresentam nenhum exemplo de uso de aspeamento para marcar o discurso
doutrinário. O que se pode afirmar não haver uso deste tipo de discurso no corpus
citado. Na sequência, apresentamos exemplos de aspeamento para marcar o discurso
legislativo nos acórdãos.
EX. (16) AC 04:
(...) A culpa, no caso, atrai a responsabilidade de que cogita a Súmula 331. “A
irresponsabilidade poderia levar ao incentivo de conluio entre empresa tomadora e a
fornecedora de mão-de-obra” (comentários aos Enunciados do TST Francisco Antº
Oliveira – Ed. Revista dos Tribunais, 4ª edição, pag. 814).
EX. (17) AC 07:
Por outro lado, vê-se que o disposto n item IV da Súmula 331 do TST, no sentido de
que “o inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do empregador, implica a
responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços”, (...).
EX. (18) AC 10:
(...) A responsabilidade, neste caso, decorre das culpas in eligendo e in vigilando,
estando ligada, outrossim, ao chamado risco administrativo, cuja entendimento tem
assento constitucional (art. 37, § 6º) e dispõe que: “As pessoas jurídicas de direito
público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos
que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de
regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. (...)
EX. (19) AC 11
Adoto, no presente Acórdão, o relatório da fl. 71, da lavra da ilustre Juíza Maria Irisman
Alves Cidade: “A MMª Vara da Justiça do Trabalho de Fortaleza julgou procedente,
em parte, a reclamação trabalhista ajuizada por J. A. S. contra o Município de Fortaleza
(...)”.
130
Os acórdãos analisados apresentaram um baixo índice de uso das aspas para
destacar o discurso legislativo e jurisprudencial. Em contrapartida, as sentenças
apresentaram um número considerável de uso das aspas para este tipo de discurso. Na
sequência, temos os exemplos encontrados nas sentenças:
EX. (20) ST 02
“É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”. Súmula
121 do STF.
“É proibido contar juros dos juros; esta proibição não compreende a cumulação de juros
vencidos aos saldos líquidos de conta corrente de ano a ano” Lei de Usura, decreto
22.626, de 7 de abril de 1933, artigo 4º.
“É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada (Súmula
121): dessa proibição não estão excluídas as instituições financeiras, dado que a Súmula
596 não guarda relação de anatocismo. (...)”. Ementa. Recurso Extraordinário 90341/1.
EX. (21) ST 04
(...) verificar o conteúdo do inciso IV, do Enunciado 331, do Tribunal do trabalho,
assim:
“IV O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte
do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do
tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, (...) e
constem também do título executivo judicial (artigo 71 da Lei
Nº 8.666/93)”.
EX. (22) ST 04
33
:
Sobre o assunto, produziu o Tribunal Superior do Trabalho o aresto cuja ementa vai a
seguir transcrita:
33
Cf. anexo 03.
131
“AÇÃO RECISÓRIA DNER RESPONSABILIDADE
SUBSIDIÁRIA DO ÓRGÃO DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA POR DÉBITOS TRABALHISTAS ADVINDOS
DE TERCEIRIZAÇÃO ILEGAL
34
. 1. Um dos princípios
norteadores do Direito do trabalho, que lhe dão caráter de ramo
autônomo da Ciência Jurídica (...)para nele constar
expressamente a possibilidade de se impor responsabilidade
subsidiária a órgãos da Administração Pública. Recurso
Ordinário e remessa de ofício a que se nega provimento.”
EX. (23) ST 05:
“(...), aliás, vem-se firmando a jurisprudência dos nossos Tribunais trabalhistas,
conforme se demonstra a seguir:
“Servidor Público. Exigência de prévio concurso público. A
investidura em cargo ou emprego depende de aprovação prévia
em concurso público, ressalvadas as nomeações para cargo em
comissão declarado por lei de livre nomeação e exoneração.
(...). Relatora Juíza Semíramis Ferreira, de 16/03/1993.
EX. (24) ST 10:
(...) é perfeitamente corroborada pelo entendimento do Egrégio Tribunal Regional do
trabalho da Região, nos arestos cujas ementas vão a seguir transcritas: “Honorários
Advocatícios. Cabimento. A jurisprudência deste Tribunal, com arrimo no art. 20, do
CPC, e 133, da Constituição Federal (...) Relator Juiz Tarcísio Melo Amora DJ/CE
de 20/04/1996 – Unânime)”.
34
Grifo do juiz.
132
EX. (25) ST 12
35
:
Vejamos a jurisprudência:
“Na ação de ressarcimento de dano extracontratual, o fato
constitutivo da pretensão do autor consiste na culpa do réu,
cabendo àquele o ônus da prova, consoante regra de direito
processual.” (AC. TARS in “Julgados do Tribunal de Alçada
do Estado do Rio Grande do sul”, v. 018, p. 37).
Da análise empreendida, entendemos que, contrariando a homogeneidade do
discurso jurídico, os trechos aspeados apresentam-se, como afirma Romualdo (2002, p.
148), um corpo estranho delimitado, uma particularidade acidental, um defeito local.
Para o autor citado, o aspeamento não acontece a esmo, pois delimitar textos alheios
significa também se posicionar perante eles. Estes são ainda pontos escolhidos para
colocar explicitamente fronteiras, limites, demarcações.
É importante destacar que os exemplos foram transcritos seguindo
rigorosamente as marcações do texto original, atentando, inclusive, para os recuos das
citações, bem como o a pontuação que antecede cada uma delas, como é o caso do uso
dos dois pontos (:). Frisamos esta observação para reforçar a ação do enunciador (E1)
de cada texto analisado em deixar claro que aquela porção de discurso não pertence a
ele.
As marcas encontradas, nos exemplos citados, vão além da demarcação. São
reveladoras do que aqui chamamos de desdobramentos da voz do Estado. Ou seja, a voz
do estado ora aparece através do discurso doutrinatário, ora pelo discurso legislativo,
como também aparece por intermédio de outros enunciadores revestidos de Estado: as
jurisprudências. Neste último, tem-se o posicionamento de um juiz ou colegiado que, de
maneira inaugural, decide a cerca de um determinado tema. Esta decisão passa a
fundamentar as decisões de outros juizes e desembargadores. Há, portanto, o que
35
Cf. anexo 04.
133
defendemos aqui como sendo um desdobramento da voz do Estado, uma marca
polifônica especifica destes gêneros.
Nos exemplos a seguir, encontramos o uso das aspas para marcar uma voz
que não é do locutor (L1), mas de uma partes e/ou de um locutor que de alguma forma
participou do processo. Somente dois exemplos foram identificados. Ambos
pertencentes à mesma sentença são trechos de provas testemunhais. Isso nos leva a
deduzir que em textos jurídicos de cunho decisório não se tem o uso deste tipo de
polifonia. Segue os exemplos:
EX. (26) ST 12:
M. R. R. M. (fls. 145/145), testemunha não compromissada, diz que:
“que tomou conhecimento do fato relativo do acidente por se encontrar na
localidade de Torrões naquela época e haver sido procurado por populares logo quando
o fato se deu (...) que informa que o poste que fica situado no lado do porto foi tocado
por um mais alto...”
EX. (27) ST 12:
Z. H. O. (fls. 148/150): “... que não presenciou o evento morte... que percebeu Jaime
morto quando da chegada do barco em que o mesmo estava: que tomou conhecimento
que Jaime havia morrido em virtude da antena do radioamador ter encostado em fio de
energia elétrica(...)”
Na primeira parte deste capítulo, discutimos a estrutura dos textos analisados
a partir do que é previsto pelos códigos jurídicos. De acordo com o que foi exposto,
tem-se que na etapa denominada relatório na qual o juiz deve pontuar os eventos
relevantes para proceder a sua decisão. Nesta pontuação, via de regra, não se tem
citações dos autos como, por exemplo, trechos de provas testemunhais. Em geral, tem-
se o resumo dos fatos feito a partir de uma análise do juiz. Até porque a sentença ocorre
após uma análise precisa de todos os autos que compõem o processo e as provas
134
testemunhais estão contidas nele. Não sendo, portanto, um procedimento comum neste
gênero.
Os trechos usados para exemplificar o uso das aspas também se apresentam
como exemplos do que Ducrot denominou de discurso relatado - tipo de discurso que
procura reproduzir, na sua materialidade, as palavras produzidas pela pessoa de quem se
quer dar a conhecer o discurso (1987, p. 186). As aspas foram a primeira marca de
discurso relatado analisada, mas os exemplos também trazem citações, outro tipo de
marca citada por Ducrot (exemplos 14, 15, 16, 17, 18,19, 20, 21, 22, 24, 25) e, para isso
deixam claro o locutor dos discursos.
Temos então, o que Ducrot (1987) determinou como sendo tipos diferentes
de locutores: um locutor enquanto tal (L) e outro locutor enquanto ser do mundo (λ). L
é apresentado pelo enunciado como o responsável pela enunciação, pertence ao
comentário da enunciação e λ é apresentado pelo enunciado como uma pessoa
“completa” que possui, entre outras propriedades a de ser a origem do enunciado, que
pertence à descrição do mundo. Esse locutor (λ) aparece nas citações presentes nos
exemplos, acima listados, por intermédio da jurisprudência e da legislação.
Essa constatação nos permite ainda reforçar, pautados nas discussões feitas
no capítulo 2 que este tipo de polifonia detectada nas sentenças e nos acórdãos, a
enunciação é apresentada como dupla, ou seja, a enunciação nestes textos se por
intermédio de uma troca, mais especificamente, de um diálogo entre locutores. Diálogo
este que revela uma hierarquização das falas, uma subordinação entre um e outro
enunciado.
Observamos que uma freqüência no uso das jurisprudências
36
. Além de
aparecerem na etapa denominada fundamentação, elas sempre acontecem após uma
36
Assim é que se entende a jurisprudência como sábia interpretação e aplicação das leis a todos os casos
concretos que se submeteram a julgamento da justiça. (...) Extensivamente assim se diz para designar o
135
exposição da legislação que também é usada para fundamentar o ponto de vista dos
operadores do Direito, produtores das peças jurídicas objeto de nossas análises. Como
mostra o exemplo abaixo:
EX. (28) ST 05
37
:
De fato, verifica-se a nulidade do ajuste. É que, com o advento da Constituição Federal
de 1988, a admissão no serviço público somente se pode dar mediante concurso público,
sendo nulo qualquer ajuste que não observe o preceituado no art. 37, inciso II, da Carta
Política vigente. (...) Nesse sentido, aliás, vem-se firmando a jurisprudência dos nossos
Tribunais Trabalhistas, conforme se demonstra a seguir:
“Servidor Público. Exigência de prévio concurso público. A
investidura em cargo ou emprego depende de aprovação prévia
em concurso público, ressalvadas as nomeações para cargo em
comissão declarado por lei de livre nomeação e exoneração.
(...). Relatora Juíza Semíramis Ferreira, de 16/03/1993.
Diante do próprio conceito de jurisprudência, podemos afirmar que há,
por parte dos operadores do Direito, um uso recorrente desta para confirmar, para
validar o ponto de vista defendido nas sentenças e nos acórdãos. Verifica-se o que
Ducrot chamou de hierarquia das falas (cap. 02, p. 23) e o que nós sobreposição de
vozes, que essas são atribuídas ao Estado, tanto quanto as vindas do discurso
legislativo. Mas um certo tom de supremacia nas vozes oriundas das jurisprudências.
Acreditamos que isso se como decorrência da própria hierarquização e/ ou
estratificação da comunidade dos operadores do Direito. É o que Carrasqueira identifica
como patamar. Para a autora (2001, p. 73), a justiça brasileira está organizada em
patamares e estes correspondem às instâncias e, simultaneamente, aos poderes
conferidos aos que participam de cada uma delas.
conjunto de decisões acerca de um mesmo assunto ou a coleção de decisões de um tribunal. (SILVA,
1980, p. 902)
37
Cf. anexo 05.
136
5. 2. 2 O discurso relatado marcado por meio de outras marcas
Nesta seção, apresentamos exemplos de discursos relatados, retirados do
corpus da pesquisa, que acontecem por meio do uso do travessão, dos dois pontos, de
citações e referências. Há por parte dos enunciadores das sentenças e dos acórdãos uma
redundância na marcação do discurso relatado, haja vista que nos exemplos
apresentados sobre o uso das aspas percebe-se o uso de alguns dos recursos aqui
tratados juntamente com elas. Como ocorre nos exemplos abaixo:
EX. (29) ST 12:
Vejamos a jurisprudência:
“Na ação de ressarcimento de dano extracontratual, o fato
constitutivo da pretensão do autor consiste na culpa do réu,
cabendo àquele o ônus da prova, consoante regra de direito
processual.” (AC. TARS in “Julgados do Tribunal de Alçada
do Estado do Rio Grande do sul”, v. 018, p. 37).
EX. (30) ST 12:
M. R. R. M. (fls. 145/145), testemunha não compromissada, diz que:
“que tomou conhecimento do fato relativo do acidente por se encontrar na
localidade de Torrões naquela época e haver sido procurado por populares logo quando
o fato se deu (...) que informa que o poste que fica situado no lado do porto foi tocado
por um mais alto...”
EX. (31) AC 02:
Nesta vertente é o entendimento do STJ:
137
CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO
ESPECIAL. CONTRATO BANCÁRIO. REVISÃO. (...) 2.
Ausente a pactuação da capitalização mensal dos juros
remuneratórios, obstada está a sua aplicação. (destaquei) 3.
Agravo regimental improvido.
EX. (32) AC 04
38
:
(...) A culpa, no caso, atrai a responsabilidade de que cogita a Súmula 331. “A
irresponsabilidade poderia levar ao incentivo de conluio entre empresa tomadora e a
fornecedora de mão-de-obra” (comentários aos Enunciados do TST Francisco Antº
Oliveira – Ed. Revista dos Tribunais, 4ª edição, pag. 814).
No exemplo 29, há um L1 – responsável pela sentença – que introduz um L2
- uma jurisprudência. Observa-se que entre o discurso de L1 e o discurso de L2,
aparecem os dois pontos (:). Tem-se também no exemplo (29) o uso de referência que se
presta a indicar a fonte da jurisprudência. Ainda na mesma sentença, exemplo (30),
também o uso dos dois pontos para marcar a fala de uma testemunha, mas que vem
precedido do verbo dizer. Além disso, o discurso de E2 vem aspeado, demonstrando o
que afirmamos ser uma redundância que observamos em alguns exemplares do corpus.
Em ambos os exemplos, o relato de L2 é assinalado por aspas, constituindo-se, portanto,
no estilo direto.
5. 2. 3 O uso dos verbos dicendi como marcadores de polifonia
Não como negar que a linguagem jurídica caracteriza-se pelas
particularidades de seu uso tanto no aspecto lexical a terminologia da área tem seu
38
Cf. anexo 06.
138
vocabulário próprio, como pelas estruturas textuais. Nos itens anteriores pudemos
verificar como se o uso de alguns marcadores de polifonia nos textos do corpus.
Nesta etapa, apresentamos o uso de verbos dicendi. Travaglia (2003, p. 164) afirma que
os verbos dicendi podem exercer três funções em um texto. A primeira é a de introduzir
falas, “permitindo que se descrevam entonações, tons, altura de voz, etc. da fala, que
não podem ser reproduzidos na língua escrita”. Como exemplos desse primeiro tipo de
verbos ele cita sussurrar, sibilar, gritar, pedir num gemido, chamar desesperado (feliz,
ansioso, calmamente etc.). O segundo tipo de verbos dicendi, de acordo com Travaglia,
é aquele que serve para “dizer o tipo de fala que se produz”, a exemplo de perguntar,
responder, redargüir etc. Por fim, o autor diz que um terceiro tipo cuja função é
“instituir perspectivas em que se deve tomar a fala”. São exemplos desses verbos
segredar, instilar, acalmar etc. Ora, uma vez que estabelecem perspectivas, esses
verbos do terceiro tipo imprimem um ponto de vista do enunciador perante o dito, ou
mais especificamente, permitem que um enunciador, ao trazer o discurso de um outro
enunciador, imprima como aquele discurso deva ser lido. Em outras palavras, o verbo
adquire duas funções: a primeira é apresentar o discurso de um segundo enunciador
(E2), a segunda é indicar como o enunciador responsável pelo discurso (E1) quer que o
discurso desse segundo enunciador (E2) seja lido. Os exemplos a seguir, retirado do
corpus desta pesquisa, ilustram bem esse caso.
EX. (33) ST 01:
M. M. D., qualificado nos autos, ajuizou
39
a presente reclamação trabalhista em face de
P. P. N. L., alegando em síntese (...). em face do exposto pleiteia o pagamento das
parcelas relacionadas a fls. 03 (...).
EX. (34) ST (02):
39
Destacamos os verbos discendi dos exemplos.
139
P. R. J. e s/m T. M. L. R. pugnam pela suspensão dos pagamentos em folha de
pagamento quanto aos descontos das parcelas mensais do referido financiamento, face à
onerosidade excessiva (...)
Carlos Maximiliano delineia as diretrizes de interpretação do contrato de adesão: a)
contra aquele benefício do qual foi feita a estipulação; (...).
E a jurisprudência, trilhando esse princípio, admoestou: “essa submissão de uma parte
a outra numa cláusula de contrato de adesão (...).
O próprio Código Civil tem em seu texto lá a nos alertar: “São lícitas, em geral, todas
as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; (...)”.
EX. (35) ST 03:
A SEGUIR, O Juiz do trabalho Titular prolatou a seguinte sentença (...).
EX. (36) ST 05:
(...) De outro lado, observe-se o que preconiza o art. 3º, da lei de Introdução ao Código
Civil Brasileiro (Decreto-lei Nº 4.657, de 04/09/1942): Ninguém se escusa de cumprir a
lei (...).
EX. (37) ST (06):
Afrontando a pretensão autoral, em defesa escrita, aduziu a reclamada, em síntese, o
seguinte: prescrição, no mérito propriamente dito, afirma não concordar com a
postulação do reclamante, haja vista que o normativo consolidado e a jurisprudência
unificada do Tribunal Superior do Trabalho permanecem vigentes, a teor do disposto no
art. 193, § 1º, da CLT, e do Enunciado 191, do Tribunal Superior do Trabalho;
impugna todas as verbas postuladas, inclusive honorários advocatícios, pedindo, em
final, a improcedência de todos os pedidos formulados na petição inicial. Documentos
de 53/ 55.
O dispositivo da CLT estabelece que “o trabalho em condições de periculosidade
assegura ao empregado um adicional de 30% sobre o salário sem o acréscimo
resultantes de gratificações (...)”.
140
Posteriormente, o Tribunal Superior do Trabalho fez editar a nova redação do
Enunciado Nº 191, que dispõe, agora assim:
TST ENUNCIADO 191 ADICIONAL DE
PERICULOSIDADE, INCIDÊNCIA NOVA REDAÇÃO
RESOLUÇÃO Nº 121/2003(DJU DE 21/11/2003).
o adicional de periculosidade incide apenas sobre p salário
básico e não sobre este acrescido de outros adicionais. (...)
EX. (38) ST12:
M. A. G. S. (...). Pede, no final, a procedência da ação para o fim de se condenar a
promovida no pagamento, de uma vez, de uma indenização correspondente a R$
352.202,50 (...).
(...) Para que essa responsabilidade emerja, ensina o mestre Sílvio Rodrigues,
necessário se faz “... que haja uma ação ou omissão por parte do agente; que a mesma
seja a causa do prejuízo experimentado pela vítima; que haja ocorrido efetivamente um
prejuízo; (...). (In Direito Civil, Ed. Saraiva, v. I, parte geral, p. 30).
EX. (39) AC 02:
Por fim, propugnou pela mantença da sentença, bem como da gratuidade da justiça.
Às fls. 233, o representante do Ministério Público Estadual, que oficia nesta instância,
opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
(...) Ademais, o próprio Código de Defesa do consumidor, em seu art. 1º, prescreve:
O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do
consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos do
art. 5º (...).
EX. (40) AC 04:
(...). A culpa, no caso, atrai a responsabilidade de que cogita a Súmula 331.
141
“A irresponsabilidade poderia levar ao incentivo de conluio entre empresa
tomadora e a fornecedora de mão-de-obra” (Comentários aos Enunciados do TST
Francisco Antº Oliveira – Ed. Revista dos Tribunais, 4º edição, pág. 814).
EX. (41) AC 05
40
:
O Ministério Público do Trabalho, em Parecer, às fls. 55/57, da lavra do procurador
Francisco Gérson Marques Lima, opina pelo conhecimento e improvimento do recurso
ordinário, mantendo-se a decisão do Juízo de 1º Grau.
EX. (41) AC 06:
Adoto o relatório da lavra do Exmo. Juiz Plauto Carneiro Porto, in verbis:
“A Companhia Hidro Elétrica do São Francisco CHESF interpôs Recurso
Ordinário, inconformada com a sentença monocrática da MM. Vara do Trabalho de
Fortaleza, que julgou procedente a reclamatória ajuizada por J. L. C. (...).
EX. (42) AC 08:
Nota-se que o magistrado a quo, por ocasião dos embargos de declaração opostos contra
a sentença, expressamente revidou a acusação da ré, pelo que consignou: “Em primeiro
lugar, cumpre deixar consignado que são inverídicas as informações (...)”.
(...) Alega, a reclamada, a ausência de fundamentação da decisão de embargos de
declaração, que passou a integrara a sentença (...).
EX. (43) AC 10
41
:
Decidiu a Vara do Trabalho de Fortaleza, após rejeitar a preliminar de ilegitimidade
passiva suscitada pela segunda reclamada (CEF) e aplicar a pena de confissão e revelia
à primeira reclamada (COTEPRO), (...).
40
Cf. anexo 07.
41
Cf. anexo 07.
142
Nos exemplos citados, os verbos “ajuizou, alertou, propugnou, admoestou,
prolatou, preconizou”, além de introduzirem o discurso de um segundo locutor (L2),
deixam claro que o locutor responsável pelo discurso (L1=juiz) quer que o discurso de
L2 seja lido como uma orientação, uma afirmação, uma instrução. Logo, L1 direciona o
olhar das partes e/ ou do leitor para o discurso de L2, ou seja, modaliza e direciona o
discurso de L2. Aqui ocorre, portanto, um fenômeno discursivo bastante peculiar.
Temos um discurso polifônico em que L1 coloca em cena o discurso de um L2, e por
isso é também uma polifonia de locutores, e, ao trazer o discurso do segundo locutor,
L1 modaliza esse discurso, indicando como a partir dele, a decisão foi tomada, foi
reforçada, foi conduzida.
Além desse aspecto polifônico dos verbos citados, podemos ressaltar o que
colocado no início deste capítulo sobre as particularidades da linguagem jurídica. Em
linhas gerais, destacamos a existência de termos específicos que são usados apenas
pelos Operadores do Direito, ou seja, a especialização da linguagem jurídica se
relaciona tanto com a especificidade do tema, quanto à especificidade da comunicação.
Enquanto a especificação temática se refere aos traços específicos de um ramo de
conhecimento ou atividade, a especialização da comunicação diz respeito ao conjunto
de fatores que compõem o processo comunicacional, tais como interlocutores,
propósitos e circunstâncias da situação de comunicação. No caso dos textos analisados,
os verbos discendi encontrados apontam para o caráter decisório destes textos. Eles
revelam ainda como nestes textos tem-se uma organização lingüística voltada para uma
linguagem procedimentural. Observamos também, que estes verbos trazem consigo
valores semânticos reveladores do poder conferido aos seus produtores, isto é, os juizes
organizam suas decisões e as produzem conscientes do papel que exercem: o de Estado.
5. 2. 4 Os operadores argumentativos nos textos jurídicos
Nesta etapa da análise, apresentamos alguns exemplos de uso de operadores
argumentativos, observados no corpus. A análise aqui empreendida é fundamentada na
classificação proposta por Espíndola (1998, p. 79), que classifica os operadores
143
argumentativos em três grupos: a) O operador argumentativo no sentido estrito; b) O
conector argumentativo; c) O modificador. Na sequência, têm-se exemplos destes três
tipos de operadores argumentativos.
EX. (44) ST 01:
Para sua caracterização exige-se demonstração inconteste do abuso do direito de
demandar, até porque a boa-fé é presumida. (...)
No caso concreto, além de faltar tal demonstração, o próprio resultado desta sentença
demonstra o contrário.
(...) Arguição de ilegitimidade passiva sob o fundamento de inexistência de vínculo
empregatício se confunde com o mérito, visto que, somente diante das provas carreadas
aos autos é que se poderá declarar a existência ou não de tal liame.
EX. (45) ST (02):
Embora não configurado como causa, e, sim, efeito, o desequilíbrio contratual é o
cerne desta causa.
(...). Mas, em se tratando de uma relação jurídica plenamente regulada pelo Direito
Positivo, em que figuram pessoas físicas e jurídicas capazes, não nos é dado entregar à
lamúria, pois esta é a vida real.
EX. (46). ST (03):
(...), ninguém pode ser privado do exercício respectivo, ainda que não seja titular do
direito subjetivo material invocado, situação a ser reconhecida apenas na sentença que
julgue o mérito. Inacolho, pois, a preliminar suscitada.
EX. (47) ST (04):
(...); inexiste solidariedade com a primeira reclamada; também não é a contestante
responsável subsidiária, em face da inexistência de fraude, (...).
(...). Na condição de tomadora dos serviços, a Administração Pública, como qualquer
outro tomador, não pode ser isentada de responsabilidade, pois o beneficiário do serviço
144
deve vigiar para que a empresa prestadora de serviços observe a legislação trabalhista
em vigor. (...)
EX. (48) ST 05:
Afrontado a pretensão autoral, em defesa escrita, aduziu o Município reclamado, em
síntese, o seguinte: o contrato de trabalho da reclamante é nulo, pois a mesma foi
admitida sem concurso público; (...)
(...) A nulidade do contrato de trabalho, verificada pela não submissão do obreiro ao
concurso público, além de absoluta, opera efeitos ex func, pois, acima de todo e
qualquer princípio de proteção ao trabalhador, encontra-se a regra constitucional (...).
EX. (49) ST 06:
(...) Ilegitimidade passiva ad causam, tendo em vista que a contratação da primeira
reclamada foi lícita, pois para a realização de atividade-meio (serviço de vigilância);
(...).
EX. (50) ST 07:
(...) a reclamante não foi demitida de forma arbitrária e sem justa causa, pois o seu
emprego sempre esteve à sua disposição; não tem direito ao que pede (...)
EX. (51) ST11:
Acolhe-se, pois não existe prova nos autos de que o reclamante foi pré-avisado da
dispensa.
(...) É devido o pleito de 13º salário em relação ao ano de 2002 (10/12 avos), pois
inexiste prova de seu pagamento.
EX. (52) AC 01:
A empresa negou o vínculo laboral alegando que esteve sem funcionar, no período
alegado pelo reclamante, por não haver pago os impostos de lei. Mas, o doc. De fl. 25
145
declara que a mesma foi constituída antes de 1999 e que neste período (antes de 99) não
ficou inativa.
(...). Já o reclamante foi coerente em suas declarações (...), pois cita todas as obras onde
laborou (...).
EX. (52) AC 02:
Neste ponto, cabe ressaltar que o procedimento fixado pela sentença é o mais justo, pois
no pagamento de cada parcela primeiro deve-se amortizar o saldo devedor
42
, para
depois reajustá-lo na forma prevista no pacto e aqui revista.
EX. (54) AC 03:
A reclamação foi direcionada contra a empresa: R. E. METALÚRGICA LTDA., porém
com um pedido de responsabilidade subsidiária contra M. DIAS BRANCO
INDÚSTRIA E COMÉCIO DE ALIMENTOS LTDA.
(...) ANTE O EXPOSTO:
ACORDAM OS DESEMBARGADORES DO TRIBUNAL DO TRABALHO DA
REGIÃO, por unanimidade, conhecer do recurso, mas negar-lhe provimento.
EX. (55) AC 04:
(...) A recorrente vem ao feito não em razão deste fato, mas em decorrência do erro no
vigiar e do erro em eleger a prestação de serviços do primeiro reclamado. (...)
EX (56) AC 07:
ACORDAM OS JUIZES DO TRIBUNAL DO TRABALHO DA REGIÃO, POR
UNANIMIDADE, conhecer o recurso e dar-lhe provimento, para condenar SJ
Administração de Imóveis a honrar, de forma subsidiária (...).
42
Grifo do juiz.
146
EX. (56) AC 08:
Mesma sorte carrega a assertiva de indeferimento da oitiva da reclamante. Inicialmente,
não restou provado tal atitude do juízo singular, além de revidada a adução pelo próprio
magistrado, na decisão dos embargos (...).
EX. (57) AC 09
43
:
ACORDAM os Desembargadores integrantes da Turma Julgadora da Câmara Cível
do tribunal de Justiça do Estado do Ceará, por unanimidade, em conhecer do apelo, mas
para negar-lhe provimento, nos termos do voto do Relator, parte integrante deste.
EX. (58) AC 10:
A douta PTR declara não haver no presente feito interesse público que justifique sua
intervenção, mas ressalva a faculdade de intervir na Sessão de Julgamento e de pedir
vista regimental, (...).
(...) sendo que, nesta circunstancia, o TST já pacificou o entendimento de que o tomador
de serviços, ainda que integrante da administração direta, das autarquias, das fundações
públicas (...).
Nesta etapa da análise, verificou-se uma baixa freqüência no uso dos
operadores argumentativos. Temos exemplificado todos os usos encontrados nas 12
sentenças e nos 12 acórdãos. Outro ponto observado foi a baixa diversidade, ou seja,
não uma variedade de operadores argumentativos no corpus. Há, sim, uma preferência
alguns destes como: pois, mas, e, além de, ainda que, embora, também e porém. Além
disso, observou-se também que as sentenças apresentaram um número maior de uso
destes operadores. Acreditamos que este fenômeno ocorre, haja vista, os produtores
destes textos optem por usar os outros recursos trabalhados nesta pesquisa, como o
uso de citações, aspas, e de verbos dicendi. Essa característica vai de encontro ao
43
Cf. anexo 08.
147
propósito destes textos que tem como função primordial apresentar uma decisão acerca
de um determinado fato e para que fique completamente fundamentada, eles fazem uso
das vozes oriundas do desdobramento do Estado (Leis, jurisprudências, doutrinas, etc.).
5. 2. 4. 1 Operador argumentativo modificador
Os exemplos a seguir apresentam o tipo de operador argumentativo que
Espíndola caracterizou como modificador. Para autora, o modificador se expressa por
meio de palavras que possuem a função de modificar os predicados (nomes e verbos)
de uma língua e que indicam o princípio argumentativo e a força como esse princípio é
aplicado a uma determinada situação, pessoa ou fato. Elegemos exatamente esta
classificação, operada pela linguista citada, por entendermos que quando há a exposição
do voto no acórdão e por algum motivo um dos membros da Câmara não vota junto
com os outros, há o que chamamos no início desta pesquisa de apagamento. Este
apagamento se em função do não uso da expressão por unanimidade, ou seja, da
omissão, do ocultamento da informação que um dos membros votou contra. Não
concordou com a decisão tomada pelos outros dois componentes da Câmara. Esse
apagamento pode se manifestar também por meio de outros termos, como os observados
no corpus da pesquisa. Segue os exemplos:
EX. (59) AC 10:
ACORDAM OS JUIZES DO TRIBUNAL DO TRABALHO DA 7ª REGIÃO, por
unanimidade, conhecer do recurso ordinário e, por maioria
44
, dar-lhe parcial
provimento para excluir da condenação, apenas, os honorários advocatícios. Vencidos
os juizes Relator e Antonio Carlos Chaves Antero que davam provimento para,
44
Os grifos em negrito nos exemplos deste item são nossos.
148
afastando a responsabilidade subsidiária impingida à caixa Econômica Federal, excluí-la
do pólo passivo da reclamação.
EX. (60) AC 04:
ACORDAM OS JUIZES DO TRIBUNAL DO TRABALHO DA 7ª REGIÃO, por
unanimidade, conhecer do recurso ordinário e, por maioria, negar-lhe provimento.
(...).
EX. (61) AC 11
45
:
ACORDAM OS JUIZES DO TRIBUNAL DO TRABALHO DA REGIÃO,
PRELIMINARMENTE, por maioria, vencida a Juíza Relatora, não conhecer da
remessa oficial, (...).
EX. (62) AC 12
46
:
ACORDA o egrégio Tribunal de Justiça do Ceará, por sua composição plenária, à
unanimidade, em conhecer dos Embargos Declaratórios, mas para dar-lhes parcial
provimento, nos termos do relator, parte integrante deste.
No exemplo (59), temos por unanimidade e por maioria usados para
expressar a forma como se deu a decisão. Em um primeiro momento, a Câmara inteira,
isto é, os três desembargadores reconheceram o recurso. Mas, um deles negou Dra
parcial provimento. Aqui se tem o apagamento de uma das vozes que compõe a Câmara.
No exemplo (60), acontece o mesmo fenômeno: o apagamento de uma das vozes
também. Já no exemplo (61), há a identificação da voz que foi vencida, a Juíza Relatora,
enquanto que no exemplo (62), a decisão foi igual, ou seja, foi tomada em comum
acordo pelos participantes da Câmara.
45
Cf. anexo 09.
46
Cf. anexo 10.
149
É importante frisar que quando acontece de um dos membros não votar junto
com os outros, em geral, a possibilidade de acontecer um novo recurso impetrado
pela parte que não ficou satisfeita com a decisão de segunda instância. Podemos
concluir que a ausência da expressão “por unanimidade” diz para as partes que um dos
membros da Câmara não concorda com a decisão, mas isto não está dito no acórdão.
5. 2. 5 Fechando as análises
Neste capítulo, apresentamos uma análise dos gêneros jurídicos e uma
análise dos tipos de polifonia encontrados no corpus da pesquisa, constituído de
sentenças e acórdãos. Podemos concluir que a polifonia de locutores predomina nos
textos analisados, principalmente a que se por meio de citações, uso de aspas e
referências. Além de constatarmos o uso especifico de verbos dicendi muito próprios da
área. Acreditamos que este comportamento lingüístico-discursivo, por parte dos
operadores do Direito, se dá em vista hierarquização contundente da intuição a qual eles
pertencem. Isto é, fundamentar uma decisão, usando para isto a voz de um magistrado,
uma decisão já estabelecida, valida a decisão tomada.
150
Considerações finais
Nesta etapa da pesquisa, apresentamos as principais conclusões retiradas a
partir da análise empreendida e das investigações teóricas a respeito do nosso objeto de
estudo. Embora retomando alguns pontos já discutidos anteriormente, o objetivo é
apresentar uma avaliação, desde a hipótese postulada até as aplicações da teoria ao
corpus analisado. Apresentamos também possíveis aplicações da investigação aqui
realizada bem como uma análise crítica do trabalho que realizamos.
A hipótese postulada para este trabalho, de que a principal estratégia
semântica argumentativa dos textos jurídicos é a polifonia de locutores, o uso de verbos
dicendi e os operadores argumentativos. A observação da presença destes elementos nos
textos nos permitiu, desde o início, enxergar, não somente de que maneira essa
estratégia se apresentava, bem como os efeitos de sentido registrados no discurso.
Sobre a polifonia de locutores, a principal e mais relevante consideração é a
de que nesse tipo de polifonia, o locutor responsável pelo discurso (L1) assume
diferentes posições com relação aos outros locutores (L2, L3 etc.) que são introduzidos
151
em seu discurso. Isto é, L1 assume diferentes posturas com relação aos enunciadores
introduzidos em seu discurso, conforme assinala Ducrot em seus mais diversos
trabalhos. As posturas assumidas por L1 na polifonia de locutores são de engajamento e
não-engajamento, ou seja, a de assimilação ou não-assimilação ao discurso relatado.
Para chegar a essa conclusão foi de fundamental importância a investigação
teórica realizada na Teoria da Argumentação da Língua, partindo de suas origens, desde
a Retórica Clássica até a quarta fase da teoria proposta por Ducrot. A investigação
teórica nos permitiu um olhar crítico sobre o corpus investigado, bem como determinou
todos os passos metodológicos, quais sejam: levantamento das principais tipos de
polifonia presentes no texto; identificação dos efeitos de sentidos gerados no discurso,
no que diz respeito a hierarquização e também no apagamento de vozes. Com relação
aos verbos dicendi, a conclusão mais relevante é que eles não são apenas meros
introdutores de discurso ou relato. Além dessa função, eles são portadores de sentido e
podem indicar o modo como esse discurso ou relato deve ser lido.
Convém ressaltar que as conclusões acima assinaladas convergem para uma
conclusão maior, segundo a qual o fenômeno da argumentação, inerente à linguagem
humana, mobiliza diferentes recursos semântico-discursivos e que esses recursos variam
de um gênero do discurso para outro, dadas as funções de cada um e as esferas nas quais
estão inseridas e, nos gêneros estudados, pudemos perceber que mesmo como objetivo
principal julgar, decidir sobre algum fato, há sim diferenças de uso dos tipos de recursos
polifônicos usados. Enquanto na sentença encontramos várias citações, uso de aspas,
verbos dicendi e alguns operadores argumentativos, nos acórdãos, observamos que a
freqüência das citações foi maior do que todos os outros recursos polifônicos. Além
disso, podemos afirmar que na sentença, encontramos as vozes das partes, do juiz/
Estado (leis, doutrinas e jurisprudências), além das vozes de algumas testemunhas. No
acórdão, encontramos a voz do juiz monocrático, do juiz- relator, da legislação. Há,
portanto, o predomínio da voz do Estado, com os seus desdobramentos (as leis, as
jurisprudências) para fundamentar a decisão do colegiado.
152
Sobre os marcadores polifônicos, utilizados com maior freqüência pelos juízes e
pelos desembargadores, como recurso para fazer valer seus pontos de vistas,
verificamos que a citação é o recurso mais usado pelos juizes para fundamentar as suas
decisões e essas vem por meio das aspas, após os dois pontos e ainda pelo uso dos
verbos dicendi.
Tanto na sentença de primeira instância quanto no acórdão, a voz que prevalece
é a voz do Estado e essa voz acontece por intermédio de um desdobramento. As leis, as
jurisprudências, as doutrinas são atribuídas ao Estado, ou seja, os juízes se valem da voz
das vozes do Estado para, como Estado, falarem. Outra observação importante, diz
respeito ao apagamento de vozes que verificamos no acórdão. O que chamamos de
apagamento, trata-se da não citação do voto contrário do membro câmara, quando este
não vota junto com os outros desembargadores. Este apagamento tem um papel
importante para a justiça, visto que o voto contrário, o voto apagado pode gerar um
recurso pela parte que se sentiu prejudicada com a decisão.Além disso, percebemos que
ao construir um ponto de vista que se opõe a decisão proclamada pelo juiz de primeira
instância, os desembargadores responsáveis pelo acórdão utilizam determinados
recursos lingüísticos, recursos estes bastante específicos, se sobrepor e/ou apagar a voz
a qual eles se contrapõem.
Nesta pesquisa, tratamos apenas de alguns aspectos polifônicos encontrados nas
sentenças e nos acórdãos. Vários outros podem e devem ser tratados por outras
pesquisas, principalmente a negação polifônica que não foi tratada por este trabalho.
Concluímos que o caráter hierárquico da instituição jurídica é refletido nas construções
textuais polifônicas dos textos decisórios. Os tipos de polifonia detectados revelam o
alto grau de hierarquização deste grupo.
153
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157
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